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Esta obra é essencial para

quem deseja adquirir uma visão


de conjunto da história da Igreja
sem precisar recorrer a trabalhos
eruditos sobre períodos específi,
cos ou a colecões de numerosos e
'
pesados volumes.
Após percorrer uma narrativa
intensa, o leitor fechará este li,
vro confiante de que não impor,
ta quão sombrios ou perigosos
sejam os tempos, ·Deus nunca
· abandona seu povo.

ISBN 978- 85- 64734- 02-9

1 Castela 1111111111111 1 ~
9 788564 734029
O leitor obterá uma visão
·de conjunto da história
~desiástica mediante uma
leitura cativante, e então
estará préQarado para apro,
~fundar seus estudos, bene,
ficiando,se inclusive da bi,
bliografia recomendada .

.'
Diane Moczar, Ph.D., é pro,
fessora de História na · No~
them Virgina Community
College, Estados Unidos~·
Em 2012 a Castela Editorial
publicou Sete mentiras sobre
a Igreja C&tólica, o primeiro
livro da autora editado no ·
Brasil.
Diane Moczar

Dez datas que todo


católico dever ia
conh ecer
Diane Moczar

Dez datas que todo


católico deveria
conh ecer

Tradução:
Gabriel Galeffi Barreiro

1[..j1J Caste la
Copyright© 2005 Diane Moczar

Título original: Ten Dates Every Catholic Should Know

Tradução e edição: Gabriel Galeffi Barreiro


Revisão: Ana Grillo
Impressão: Zit Gráfica

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
M685d
Moczar, Diane.
Dez datas que todo católico deveria conhecer/ Diane Moczar ; tradução
Gabriel Galeffi Barreiro. - l. ed. - Rio de Janeiro: Castela, 2013.
il.

Tradução de: Ten dates every catholic should know


Apêndice
Incluí bibliografia
ISBN 978-85-64734-02-9

1. Igreja Católica - História 1. Titulo.


13-0248. CDD: 282.0S
CDU: 2s,
l l.01.13 15.01.13 042112

Todos os direitos desta edição reservados à


Aram Editora e Distribuidora Ltda. (Castela Editorial).
Rua Jardim Botânico, 674, sala 315,
Rio de Janeiro, RJ - Brasil - CEP: 22461-000
www.castelaeditorial.com.br
Pour l'abbé Georges de Nantes,
rnon pere spirituel et rnaitre à penser,
dont j' ai essayé de suivre,
de loin il est vrai,
la rnéthode historique "volontaire".

Je voudrais aussi remercier les freres et soeurs


de ses communautés pour leurs
merveilleux travaux historiques,
dont j' ai énormément profité.

Para o abade George de Nantes,


meu pai espiritual e mestre do pensamento,
a quem tentei seguir,
de longe, é verdade,
o método histórico "voluntário".

Gostaria de agraceder aos irmãos e irmãs,


de suas comunidades por seus
maravilhosos trabalhos históricos,
os quais aproveitei enormemente.
Sumário

lntrodução ...................................................................................9

313 d.e. O Edito de Milão e a libertação da lgreja ................ .15

452 d.e. São Leão Magno impede a invasão dos hunos ........... 33

496 d.e. O batismo de Clóvís e o nascimento


da França Católica ....................................................47

800 d.C. A coroação de Carlos Magno


pai da Cristandade ....................................................61

910 d.C. A fundação da Abadia de Cluny


e o renascimento da vida religiosa ............................ 81

1000 d.C. Início da era mais gloriosa da lgreja.......................97

1517 d. C. A catástrofe protestante ........................................ 119

1571 d.C. A Batalha de Lepanto:


a vitória naval de Nossa Senhora ......................... 137

1789 d.C. A era da Revolução ............................................... 157

1917 d.C. Fátima e o século XX............................................ 181

Livros indicados ................................................................... 201


Introdução

m 1943 veio à luz um livro infantil chamado Pegs of History:


E A Picture Book of World Dates. Foi publicado naquela "época
sombria" em que as datas eram importantes. Continha cerca de
vinte eventos, cada um brevemente descrito, datado e acompanha-
do de uma bela ilustração. O objetivo do livro estava expresso em
seu título: um marcador (peg) é algo que indica, determina ou di-
vide alguma coisa; um marco histórico, do mesmo modo, é um
princípio de organização para a memória, um ponto em torno do
qual se reúnem personagens e acontecimentos importantes. Para
se ter uma visão panorâmica da história católica, desde o período
romano até o século XX, é crucial selecionar um grupo de datas.
Esse grupo serve de estrutura para uma visão de conjunto, e é isso
o que este livro se propõe a fornecer.
Acredito ser unânime a opinião de que todo católico deve
conhecer alguma coisa do passado de sua religião; afinal, é em
decorrência desse passado que se compreende o atual estado da
Igreja e da Civilização Ocidental. Não basta conhecer o catecismo,
a vida de alguns santos e algumas passagens bíblicas. Na verdade,
o que se encontra na Bíblia é um relato detalhado de quão ativo
foi Deus na história do Povo Escolhido: ao guiá-lo, recompensá-lo
ou castigá-lo.
Entretanto, somos inclinados a acreditar que essa presença di·
vina desapareceu com a emergência da Cristandade; sentimo-nos
incapazes de discernir a mão de Deus agindo na História depois
dos tempos apostólicos, e temos portanto a impressão de que a His-
tória não passa de uma sucessão de acontecimentos sem designios
transcendentes.
10 Dez datas que todo católico deveria conhecer

Neste livro tentei fazer duas coisas: em primeiro lugar, apresen-


tar dez datas significativas - algumas delas marcadas no calendário,
outras ligadas a períodos de meses ou anos - em torno das quais o
leitor pode agrupar os acontecimentos principais da história da Cris-
tandade; em segundo, apontar algumas maneiras pelas quais Deus
costuma intervir no mundo temporal criado por Ele, e dar exemplos
inegáveis de Sua intervenção. Começamos com a conversão do im-
perador Constantino - uma "divina surpresa" - e com o edito que
ele lançou em 313 d.C., que mudou dramaticamente a história da
Igreja e, por conseguinte, a história do Ocidente. Terminamos em
1917, quando Nossa Senhora aparece em Fátima, no mesmo ano da
Revolução Russa.
Cada uma dessas datas é um ponto de referência para toda uma
era. Ao olharmos para antes de 313, vemos o tipo de mundo em
que viviam os primeiros cristãos, tempos de terríveis perseguições,
tempos em que se precisava lutar bravamente para sobreviver e con-
seguir transmitir a fé aos filhos. Depois de 313, vemos a Igreja saindo
das catacumbas e iniciando a criação de um novo mundo católico,
quando as invasões bárbaras destruíam o mundo romano. Do mes-
mo modo, ao olharmos para antes de 1917, compreendemos a situ-
ação da Igreja e do mundo no século XX, o desenrolar dos aconteci-
mentos daquele mesmo ano e das décadas e guerras que o seguiram.
É evidente que nenhuma lista que se proponha a apresen-
tar dez datas significativas da História pode alegar estar completa.
As datas que escolhi não são as únicas escolhas possíveis, mas re-
presentam excelentes marcadores que podem delimitar as prin-
cipais eras da história católica. Além disso, devido à sua impor-
tância, essas dez datas estariam presentes em qualquer lista das
principais épocas da Igreja e da Civilização Ocidental. Os eventos e
Introdução 1l

personagens tratados neste livro se encontram em qualquer bom


livro de história da Cristandade, pois marcaram nosso passado e,
por conseguinte, nosso presente.
Alguns leitores podem se surpreender com o fato de a maior
parte dos acontecimentos antecederem o século XVI. Lembro-
-me das palavras do professor R. Allen Brown: "Pode-se dizer
que os acontecimentos mais importantes da história da Europa
ocorreram por volta do ano 1300." O leitor deste livro irá cons-
tatar a veracidade de tal afirmação. As fundações básicas da Civi-
lização Ocidental, além dos princípios católicos que a moldaram,
assentaram-se por volta desse ano. Os séculos posteriores construí·
ram sobre (ou romperam com) as fundações estabelecidas naquele
período.
Acaso a autora deste livro espera que o leitor memorize todas as
datas, nomes e eventos aqui apresentados e responda a um exame ao
terminar a leitura? É claro que não. Esta obra não é de modo algum
um livro escolar. Meu único desejo é que o leitor se interesse por
estes capítulos e aprenda com eles. Para os estudantes, entretanto,
especialmente os interessados em aprofundar-se na história católica,
seria de grande utilidade memorizar as dez datas aqui menciona-
das, juntamente com os principais eventos, pessoas e temas a elas
associados.
O leitor irá adquirir neste livro uma percepção do desenvolvi-
mento da história católica: a partir das terríveis dificuldades que a
Igreja enfrentou nos tempos romanos, passando pelos perigos que
confrontou ao sobreviver às invasões bárbaras e ao converter os in-
vasores; os séculos de espantosa criatividade, progresso e glória; até
o aparecimento das ameaças modernas: heresias obstinadas, ataques
muçulmanos, revoluções e guerra generalizada. Os leitores verão
12 Dez datas que todo católico deiieria conhecer

também como certos desastres históricos atribuem-se, de acordo


com as palavras de Nosso Senhor e Nossa Senhora, à indiferença e
lassidão dos próprios católicos. Esses desastres foram de fato castigos
de Deus. Nos dias de hoje, é comum que se esqueçam das glórias
do passado católico, bem como das lições mais importantes e duras
pelas quais a Igreja passou. Devemos fazer nossa parte e preservá-las:
eis um objetivo para nossas vidas.
De z datas qu e tod o
católico deveria
co nh ec er
313 d.C
O Edito de Milão e a libertação da Igreja

o começo do século IV, os cristãos do Império Romano


N sofriam a pior perseguição que jamais haviam enfrentado. Ela
fora desencadeada pelo imperador Diocleciano em 303 d.C. e não
teve precedentes no que toca à crueldade e variedade das torturas
públicas (infligidas a suas vítimas com o fim de entreter a massa de
espectadores). Todos os homens, mulheres e crianças romanas de-
viam prestar culto aos deuses pagãos, caso contrário, seriam mortos.
A perseguição de Diocleciano, diferentemente das anteriores, não
se restringiu a determinadas províncias do império, mas impôs-se a
todas elas.
Assistir à tortura e à morte nas arenas não era algo novo para
os romanos. Combates entre gladiadores e lutas de animais antece-
dem o cristianismo e eram parte de uma política pública de entre-
tenimento destinada à grande classe de trabalhadores urbanos. As
dezenas de milhares de espectadores que lotavam as imensas arenas
adoravam-nas. O filósofo Sêneca, já no século l, descreve uma cena
típica dos anfiteatros:

De manhã se oferecem homens aos leões e ursos; à tarde os


gladiadores - obrigados a lutar entre si - duelam até a morte
e o vencedor é detido para outro combate. Só a morte põe fim
à diversão da plateia. "Mata, queima, castiga!", é tudo que eles
gritam. "Por que ele tem tanto medo da ponta da espada? Por
que está com medo de matar? Por que não morre com mais
bravura?" São chicoteados para que atuem com maior rapidez
(... ) São intimados a cortar a garganta do rival.
16 Dez datas que todo católico dei1eria conhecer

Na verdade, foi o empregador de Sêneca, o mentalmente de-


sequilibrado Nero, quem primeiro teve a ideia de usar os cristãos
para esses espetáculos macabros. A sua tentativa de culpá-los por
um incêndio em Roma (cujos rumores o resp~msabilizam) motivou
a doentia festa que realizou no seu jardim, em 64 d.C. Nela, os seus
convidados caminhavam no palácio imperial soh a luz de tochas, e
cada tocha era um cristão em chamas. Era comum também envolver
os cristãos em peles de animais e jogá-los aos lobos para que fossem
devorados.

Uma sociedade embriagada com a morte

Essa perseguição prosseguiu por anos a fio, tirou a vida de São


Pedro e São Paulo e de inúmeros membros da comunidade cristã
de Roma. Desde então, não houve um período sequer em que os
cristãos pudessem baixar a guarda; períodos de paz podiam se tornar
pesadelos da noite para o dia. Por vezes, a mera queixa de alguns
artesãos de ídolos que culpavam os cristãos pela baixa nos negócios,
ou acusações de atores furiosos com o fato de os cristãos se afastarem
da obscenidade e crueldade dos teatros era o suficiente para que
se iniciasse uma perseguição. Um motim podia começar facilmen-
te, em particular naquelas cidades em que abundavam os ociosos à
procura de divertimento, e as vítimas certamente seriam os cristãos.
Vizinhos rancorosos talvez os denunciassem às autoridades: os
cristãos recusavam seus convites para jantar, pois assim não pre-
cisariam oferecer a costumeira libação aos ·deuses da casa, e tam-
bém afastavam seus filhos das escolas pagãs. Conforme escreve São
Justino Mártir: "Os cristãos não prejudicam o mundo em nada. Mas
como rejeitam os prazeres que ele lhes oferece, o mundo os odeia."
313 d.C. - O Edito de Milão e a libertação da Igreja 17

Naquele tempo, a política imperial exigia a devoção aos deuses


romanos e, mais tarde, exigiu a participação no culto ao imperador.
Os judeus eram isentos dessa exigência e, até a época de Nero, as ali-'
toridades romanas não estavam cientes de que cristianismo e judaís-
mo eram religiões diferentes. Uma vez que a distinção foi feita, não
mais se pouparam os cristãos, e caso o Estado decidisse persegui-los
era muito difícil que conseguissem escapar. Eles estavam sujeitos à
execução pública a qualquer hora: era este um dos atos do programa
vespertino de entretenimento das massas.
Contudo, as massas se entediavam facilmente, e, à medida que
se tornavam insensíveis à violência e à morte, novos métodos de tor-
tura passaram a ser empregados. Na época da perseguição de Diocle-
ciano (começo do século IV), essas torturas alcançaram um grau de
crueldade tão alto, que alguns historiadores se abstêm de descrevê-
-las em detalhes. Conta-se que eram tão terríveis para as mulhe~es,
particularmente no Egito, que algumas delas, a fim de não se sub-
meter a tamanha vergonha e desonra, preferiam cometer suicídio.
Como observa o historiador Henri Daniel-Rops, "uma sociedade .
inteira embriagou-se com sadismo e tortura."
Mesmo para aqueles que viveram a perseguição comunista - que
por misericórdia divina durou apenas algumas décadas, e não sécu·
los - é difícil imaginar como era a vida dos cristãos em qualquer
local do vasto império romano da metade do século I até o ano 313.
Compreende-se por que os cristãos primitivos esperavam a Segunda
Vinda de Nosso Senhor com tanto fervor: não lhes restavam dúvidas
de que eram a última geração de fiéis. Nosso Senhor, no entanto,
não preparava a Igreja para o Seu retorno à Terra, mas sim para a
vinda de um libertador, um imperador romano.
18 Dez datas que todo católico det1eria conhecer

Constantino: uma "dit'ina surpresa"

Na Bretanha, na extremidade do Império Ocidental, o primei-


ro mártir britânico deu a própria vida em 303. Santo Albano era
pagão e foi convertido por um padre, ao qual dera refúgio no co-
meço da perseguição de Diocleciano. Ele tomou o lugar do padre
quando os soldados vieram, foi espancado e decapitado. Ali, três
anos depois, em 306, o exército romano proclamava imperador um
jovem que finalmente terminaria a matança que tirara a vida de
Albano. Seria o sangue desse mártir o preço da libertação de seus
irmãos?
Constantino certamente foi urna figura controversa. Seu pai
fora coimperador, e sua mãe, Helena, após se converter ao cristia-
nismo, tornou-se santa. Seu filho, todavia, era pagão e afirmava ter
tido urna visão de Apolo. Homem de alta estatura, forte, ele podia se
mostrar cruel e também gentil; e sem dúvida era ambicioso. Não se
sabe o grau de familiaridade que teve com o cristianismo quando se
tornou o governador eficiente e popular de grande parte da Europa
Ocidental. Contudo, diferentemente da maioria de seus compa·
nheíros governantes - que controlavam partes separadas do outrora
unido Império Romano -, ele não perseguiu os cristãos.
Diocleciano havia decidido que o império era grande demais
para que um só homem o controlasse (é preciso olhar um mapa da
época para se ter urna dimensão do seu tamanho) e implantou um
projeto para dividir o governo entre dois imperadores: cada um teria
um substituto que, teoricamente, não iria depô-lo e o sucederia no
momento adequado. No período caótico que se seguiu à aposen·
tadoria de Diocleciano, em 305, Constantino tinha em torno de
25 anos. Havia vários pretendentes disputando o poder, inclusive
313 d.C. - O Edito de Milão e a libertação da Igreja 19

antigos imperadores. O futuro autor do famoso edito estava entre


os concorrentes.
Antes de ser proclamado imperador, ele fugira por 25.000 qui,
lômetros, a fim de não ser exterminado por seus inimigos, e depois
ainda precisou fazer uma boa reivindicação do trono. Ele casara'5e
com Fausta, filha de Maximiano, o Imperador do Oriente, conheci--
do por renunciar ao cargo e depois se arrepender e tentar retornar
ao poder. Por fim, Maximiano tentou livraVie de seu genro, mas
Constantino tratou de se livrar dele primeiro - a menos que a morte
de Maximiano por enforcamento na prisão tenha de fato sido sui,
cídio - e então teve de enfrentar Maxêncio (irmão de Fausta) e seu
exército.
Chegamos aqui a um dos momentos mais críticos da carreira
de Constantino e em um dos acontecimentos mais imprevisíveis de
toda a História. Antes da Batalha da Ponte Mílvia contra Maxên--
cio, em 312, Constantino afirmou ter tido uma visão sobrenatural:
uma imagem no céu com as palavras "Com este símbolo vencerás".
Diversas fontes descrevem o que ele viu como uma cruz ou um
chi rho (símbolo cristão que combina as duas primeiras letras gregas
do nome Christus). A questão sobre qual foi o símbolo e exatamente
quando e onde Constantino o viu é motivo de divergência entre os
historiadores.
O Bispo Eusébio de Cesareia afirma ter ouvido essa história do
próprio Constantino, pouco antes de o imperador morrer, e não há
motivos para se duvidar dele.
No seu relato, Eusébio descreve o herói a caminho da batalha
contra Maxêncio, o qual tinha a reputação de ser cruel e opressor
com o povo romano. Então, "em uma tarde, conforme o sol se pu-
nha, ele viu no céu uma luminosa cruz!' Naquela noit'C, enquanto
20 Dez datas que todo católico deveria conhecer

dormia, "Cristo, o Filho de Deus, apareceu-lhe com o mesmo sím-


bolo que ele vira brilhar no céu, e ordenou-lhe que fizesse dele um
emblema e o reproduzisse em seus estandartes, prometendo-lhe a
. . ,,
,
vi tona.

Quando acordou, Constantino convocou alguns ourives para


que fizessem um modelo do símbolo, o qual Eusébio relata em de-
talhes. Ele descreve o modelo como uma cruz superposta a uma co-
roa, dentro da qual havia um chi rho; isso sustenta a tese de que
o imperador teria visto tanto a cruz como o monograma. Segun-
do Eusébio: "Desde então, o imperador usou um capacete com o
nmnograma entalhado (... ) e fez com que suas legiões carregassem
um estandarte marcado com o símbolo."
Eusébio confessa que se esqueceu do local em que o inciden-
te ocorreu. Alguns historiadores acreditám que a visão e o sonho
se passaram na Gália, antes de o exército descer até a Itália, e não
momentos antes do confronto. Essa teoria é plausível, em razão do
tempo que seria necessário para se fazer o modelo e reproduzi-lo
nos equipamentos de guerra e nos estandartes do exército. Em todo
caso, em uma campanha militar que por vezes é comparada à inva-
são da Itália por Napoleão, Constantino e seu exército de cerca de
40 mil homens adentraram o interior, onde muitos os receberam
como libertadores. Por fim eles confrontaram às margens do Rio
Tibre o poderoso exército de Maxêncio, de 100 mil homens, a
menos de 16 quilômetros de Roma.
Maxêncio consultara freneticamente todos os sacerdotes pagãos
que encontrara, em busca da ajuda dos deuses romanos. Sem dúvi-
da ele não era bom estrategista, pois partira do lado romano com
seu exército para atravessar o rio através da única ponte da região,
a Ponte Milvia, utilizando-se também de uma ponte de barcas. Ele
313 d.C. - O Edito de Milão e a libertação da lgreja 21

distribuíra seu exército de costas para o rio, e, quando teve de recuar


sob a ameaça de Constantino, sua fuga estava condenada. O próprio
Maxêncio caiu no rio com seu cavalo e sua armadura e morreu afo-
gado. No dia seguinte, 29 de outubro de 312, Constantino entrou
triunfante em Roma. A comunidade cristã sitiada viu na vitória dele
a mão de Deus libertando-a.
Se isso não transformou Constantino imediatamente em um
cristão, certamente deve tê-lo feito pensar sobre a religião de sua
mãe, e o dispôs a favor de seus praticantes. O fato de ele ter adota-
do publicamente símbolos sagrados do cristianismo equivalia a uma
profissão de fé ao Deus dos cristãos. Em Roma, construiu-se uma
estátua em sua homenagem, na qual ele era representado com uma
cruz em uma das mãos. A conversão de Constantino foi de impor-
tância inestimável para a história do Ocidente. O autor de um artigo
sobre esse assunto no competente Dictionnaire Apologétique de la Foi
Catholic escreve: "Ela trouxe uma reversão completa, e não se encon·
tra na História registros de uma revolução tão profunda."
Constantino tornou-se coimperador incontestado. Ele e Licínio,
seu parceiro, tinham à sua frente a monumental tarefa de restaurar
a ordem e a estabilidade no império cambaleante - plano que agora
incluiria a tolerância oficial da crescente população cristã.

O edito

Constantino não permaneceu muito tempo em Roma, pois ha.


via muito a se fazer nas outras cidades do seu novo território. No f"'
nal de janeiro de 313 ele seguiu para Milão, onde sua irmã se casaria
22 Dez datas que todo católico deve7'ia conhecer

com Licínio, seu coimperador. Milão era um reduto estratégico para


se monitorar negócios tanto na Gália como na Itália e, portanto,
o local adequado para reuniões periódicas entre os dois governan-
tes. O Edito de Milão provavelmente foi redigido em março de 313.
Tudo indica que foi menos uma proclamação formal do que um
protocolo consentido pelos imperadores; as principais características
do edito aparecem nas cartas registradas entre os dois e na promul-
gação - resumindo a nova orientação política - que Licínio postara
quando foi a Nicomédia, em junho.
Segundo a forma que dele temos hoje, o documento garantia
que "os cristãos têm plena liberdade para seguir sua religião", e que
"( ... ) cada um tem o direito de escolher e praticar aquilo que prefe-
rir." Ele também ordenava a devolução das propriedades confisca-
das dos cristãos, e prescrevia que tais providências deviam se tomar
conhecidas a todos.
Qual deve ter sido a reação dos cristãos romanos ao ler esse do-
cumento? Após quase três séculos de perseguições terríveis pelo Es-
tado romano, isso deve ter parecido bom demais para ser verdade.
Afinal, ainda se acreditava que os dois imperadores eram pagãos,
embora se contassem histórias a respeito da estranha experiência
de Constantino antes da Batalha da Ponte Mílvia. Garantias de to-
lerância aos cristãos não eram desconhecidas. Na verdade, impera·
dores haviam publicado um documento similar um ano antes, mas
as garantias anteriores provaram ter sido apenas temporárias, pois
as perseguições sempre recomeçavam. Portanto, juntamente com a
esperança que deve ter brotado no coração daqueles cristãos que
leram o edito, é provável que tenha havido ceticismo; eles
esperariam, cautelosamente, para ver como a situação se
desenrolaria. Naquele momento, os fiéis, padres e bispos que se
313 d.C. - O Edito de Milão e a libertaçdo da Igreja 23
\
reuniam nas catacumbas para celebrar a Missa ainda ficariam à
espreita, para ter certeza de que não estavam sendo seguidos.·
Como se viu, o Edito de Milão seria a grande carta de libertação
da Igreja Católica: ele foi uma das grandes "surpresas divinas" que
pontuam a história da Igreja. Quase tudo na vida dos cristãos - pelo
menos no Ocidente, pois a perseguição prosseguiu por mais tempo
em partes da Ásia Menor e do Egito - estava prestes a mudar.

Após o edito

A promulgação do edito teve como consequência imediata a


suspensão das perseguições; a "tolerância" temporária do cristianis-
mo proclamada em 312 agora se tornara um direito civil. A comu-
nidade cristã pôde deixar as catacumbas e praticar seus ritos publi-
camente e com segurança. Já em 313, o Papa Melquíades conduzia
um concílio no antigo palácio de Fausta, esposa de Constantino.
O próprio Constantino (assim como sua mãe) construiu majestosas
igrejas para o culto dos cristãos e tomou uma série de medidas em
favor deles. Ele declarou o domingo um dia de descanso e criou
leis contra algumas práticas imorais daquela sociedade notavelmente
dissoluta. Proibiu também a crucificação; porém, não aboliu as vio-
lentas "diversões" às quais os cidadãos romanos eram tão afeiçoados.
Reprimir hábitos depravados não é tarefa fácil. A popularidade de
nomes, costumes e festas cristãs aumentou entre o povo, e os ensina-
mentos de Cristo se difundiam mais facilmente.
Em 325, realiza-se o Concílio de Niceia, glorioso marco na his-
tória da Igreja. Já há alguns anos os bispos convocavam concílios
abertamente, fora das catacumbas, sem a necessidade de coloÇar
sentinelas nas entradas. Mas o que é significativo sobre este cond-
24 Dez datas que todo católico deveria conhecer

lio - cuja reunião fi.)i estimulada pelo próprio Constantino - é a


condenação da heresia ariana (a qual afirmava que Cristo não é
Deus) e a proclamação do Credo de Niceia, o protótipo de todos
os futuros credos cristãos. O Credo afirmava: Cristo é o "Filho
único de Deus(. .. ) consubstancial ao Pai." As bases cristológicas da
Fé foram codificadas primeiramente em Niceia.
Constantino estava encantado com o que via. Conta-se que
ele teria mencionado aos padres do concílio: "Vós sois bispos do
interior da Igreja, mas eu sou o bispo do exterior." Certamente
um bispo com pouco conhecimento d.e teologia, como se vê nas
9lrtas que ele escreveu para Ário e o seu grande rival católico,
Santo Atanásio. "Acho que a causa [i.e., se Cristo é Deus ou não] é
trivial," escreve ele. "Basicamente vós tendes opiniões semelhantes
(.. .) permanecei unidos! (. .. )A questão entre vós não diz respeito a
um ponto essencial d.a fé." É claro que Constantino estava inteira-
mente enganado, e por isso o concílio ignorou seus comentários e
realizou a sua grande obra, a despeito do "bispo do exterior."
Ao mesmo tempo, Constantino dava continuidade a sua
ameaçada carreira imperial. Ele foi o último dos grandes impe-
radores, pois conseguiu manter unido - através de medidas seve-
ras - um império fragmentado. Sua lúgubre vida pessoal não foi
tão bem-sucedida. Ele havia executado Licínio, pois o imperador
oriental voltara ao hábito de perseguir cristãos. Agora, só resta·
va um imperador tanto para o Ocidente como para o Oriente.
Constantino também executara sua esposa Fausta, pois suspeitava
que ela o estivesse traindo com seu filho Crispus (de um casa·
rnento anterior) e providenciou também a execução do filho. Ele
torturou prisioneiros de guerra até a morte e jogou um de seus
inimigos políticos aos leões.
313 d.C. - O Edito de Milão e a libertação da Igreja 25

Sua mãe, Helena, já envelhecida e muito triste com essa matan-


ça, fez uma famosa peregrinação de reparação à Terra Santa. Lá ela
conseguiu, mediante investigação inteligente e auxílio sobrenatural,
descobrir e escavar os sítios mais sagrados do cristianismo. O Calvá-
rio, a Vera Cruz, o Santo Sepulcro e muitos outros sítios foram des-
cobertos por Helena. E, graças à construção de igrejas sobre os locais
sagrados, estes puderam ser reconhecidos mesmo após a catastrófica
perda da Terra Santa para os árabes no século VIU.

A decisiva divisão do império

O filho de Helena, entretanto, tinha sua atenção voltada para


o Oriente. Ele desejava mudar a capital do império para um peque-
no posto comercial grego conhecido como Bizâncio, no Estreito de
Bósforo, perto do Mar Negro. Era uma ideia audaciosa, inimaginá-
vel para a maioria dos romanos; porém, havia bons motivos para
empreendê-la. Embora fosse próximo a fronteiras em que o império
sofria ataques esporádicos, o local tinha o potencial para se tomar
uma área praticamente inexpugnável. Era próximo a todas as pri~
cipais rotas de comércio, e a empobrecida Itália, não. Constanti·
no também tinha motivos pessoais para levar esse projeto adiante:
ele suspeitava da lealdade de Roma, onde tinha muitos inimigos
políticos: é provável também que Roma o lembrasse de Crispus,
Fausta e de seus pecados. Por último, embora ainda não fosse batiza~
do, tudo indica que ele quis sinceramente construir uma nova cida-
de que fosse cristã desde a sua fundação, apesar de lá haver templos
pagãos que ele tolerou.
A cidade - Nova Roma, ou Constantinopla - foi construida em
pouco tempo, e provou ser uma decisão sábia, ao menos do ponro
26 Dez datas que todo católico detieria conhecer

de vista estratégico. Após a queda do lmpério do Ocidente sob a


invasão dos bárbaros no século seguinte, Constantinopla, além de
outras partes do Império do Oriente, sobreviveria mais mil anos.
Por outro lado, a civilização latina que Constantino acreditava ter
transportando para lá não conseguiu fincar raízes, e o Império do
Oriente - conhecido como Império Bizantino - tomou-se uma
região helenizada: língua grega, pensamento grego e devoção grega.
Os imperadores orientais dominavam a Igreja, de tal modo que
ela perdeu sua independência do Estado. Longe de permanecer a
cidade católica dos sonhos de Constantino, Constantinopla seria o
palco de sucessivas heresias. Cada vez mais insatisfeita com a submis-
são ao papa, a Igreja Oriental por fim caiu no triste cisma 1 até hoje
não reparado.
Houve um grande benefício, talvez não reconhecido na época,
em transferir o aparato do governo para Constantinopla: deixou-se
Roma para a Igreja. Em vista do que ocorreria à Igreja no Orien-
te, o domínio do papado sobre Roma foi de um valor inestimável.
Em Constantinopla, os imperadores se intrometiam cada vez mais
em assuntos eclesiásticos e se ressentiam da autoridade dos papas
na longínqua Itália. Muitos papas foram vítimas da ira perigosa
desses governantes e chegaram a ser exilados ou mortos por ter lhes
recusado o controle sobre a Igreja. Mais tarde os papas enfrenta-
riam o mesmo tipo de problema com alguns monarcas do Ociden-
te, particularmente os imperadores germânicos. Mas é fato que em
Roma os papas estavam menos vulneráveis aos imperadores do que
se estivessem estabelecidos nas mesmas cidades que eles. O papado
iria, no futuro, adquirir os Estados Pontifícios, com o intuito de

1. O Grande Cisma do Oriente, em 1054 d.C. (N. do T.)


313 d.C. - O Edito de Mil.ão e a libertação da Igreja 27

transformá-los em territórios de proteção que desencorajassem as in·


vasões, e encontraria aliados entre o turbulento conjunto de tribos
que suplantou o domínio romano no Ocidente: os francos e os nor-
mandos. Estes, em troca, defenderiam a independência do Vigário
de Cristo. Foi portanto providencial que a Sé de Pedro permaneces-
se separada dos tronos imperiais; desse modo ela conseguiu respirar
livremente e prosseguir sua missão divina com certa paz e segurança.
Quanto ao imperador que alcançou tudo isso, sua vida es-
piritual foi repleta de ambiguidades até o final. No começo de
sua carreira, ele parece ter tentado combinar elementos pagãos
ao cristianismo. Mais tarde, tudo indica que a sua crença no
cristianismo se fortaleceu e ele se tornou mais devoto, embora
permitisse a construção de templos pagãos em Constantinopla
e preservasse o culto ao imperador. A questão do batismo de
Constantino é particularmente imprecisa. De acordo com Eu-
sébio de Cesareia, e também com a maioria dos historiadores
modernos, ele permaneceu um catecúmeno, por conseguinte im-
possibilitado de assistir à Santa Missa, até pouco antes de mor-
rer. Qualquer que fosse a razão para isso - era comum na época
atrasar o batismo a fim de ir diretamente para o céu após a morte,
sem chances de cometer mais pecados -, ele o evitou até os seus
últimos dias de vida.
Em 337, teve ele um pressentimento definitivo de que iria
morrer da doença que o acometera. Bispos reuniram-se ao redor
do seu leito de morte, e ele explicou que, embora pretendesse ba..
tizar-se no Rio Jordão, não iria mais esperar. Seus trajes reais de.
raro lugar à túnica branca utilizada no recebimento do Batismo.
"Hoje é o dia pelo qual tanto esperei", ele sussurrou. "Chegou a
hora da salvação que há tanto tempo aguardo." Após ser batizado
28 Dez datas que todo católico deveria conhecer

por um bispo ariano, ele ainda teve tempo de dizer: "Agora me


sinto verdadeiramente feliz. Vejo a luz divina." Constantino mor-
reu em um domingo de Pentecostes à tarde.
Outra versão da história se encontra em uma antiga tradição
romana e em uma inscrição na Basílica de Latrão, e tem sido cor-
roborada por escritos de padres e doutores da Igreja por mais de
mil anos, entre eles São Beda, o Venerável. Segundo esta versão,
Constantino teria sido batizado na Basílica de Latrão pelo
Papa Silvestre 1, que subiu ao trono em 314. Os escritos,
discursos e ações cristãs do imperador certamente datam da sua
vitória sobre Maxêncio, e, se não fosse pelo relato de Eusébio de
Cesareia - tocante e dramático -, não haveria empecilhos para se
aceitar a data anterior de seu batismo. Porém, quando se conside-
ra que Constantino pode ter sido batizado no leito de morte pelo
Bispo Eusébio de Nicomédia, que era ariano, permanece a pos-
sibilidade de que a história seja falsa, propaganda cujo objetivo
seria alegar que o grande governante estava do lado dos hereges.
(Esse é o tipo de dúvida que motiva os historiadores a se debruçar
sobre tomos antigos e empoeirados, à procura do documento deci-
sivo que irá cortar o nó górdio de insolúveis histórias conflitantes.
Mas, esqueçamos o problema. Algum dia saberemos a verdade.)
Não precisamos seguir o Império Romano até a sua dissolução
no século V. Essa história trata de desintegração econômica, social e
cultural e de impotência política e militar. Um dos últimos impera·
dores conseguiu unificar o império, mas apenas temporariamente. O
declínio populacional havia deixado o exército tão vazio de recrutas
que foi preciso convocar os bárbaros para nele lutar. Durante todo
esse tempo, aumentaram as invasões nas fronteiras, a própria Roma
foi saqueada - para espanto e temor de escritores cristãos como São
313 d.C. - O Edito de Milão e a libertação da Igreja 29

Jerônimo e Santo Agostinho - e, em 476, o império chega ao fim


com a deposição do último imperador romano do Ocidente por
um rei bárbaro. Examinaremos os invasores na próxima data do
livro.

O futuro da Igreja libertada

O período seguinte ao Edito de Milão foi a consecução de uma


utopia para a Igreja? Longe disso. Na verdade, agora a Igreja enfren,
taria desafios ainda maiores que as perseguições. O primeiro deles
foi a depravação da sociedade romana daquele período. Já men,
cionamos a devoção dos romanos à violência e a entretenimentos
obscenos; a vida privada era, em geral, igualmente degradada.
A reverência romana ao casamento, à maternidade e à fami.--
lia havia quase desaparecido no final do império, ao passo que
"entretenimentos" homossexuais e pornográficos se tornaram
comuns, juntamente com o aborto e o divórcio.
Portanto, quando milhões de cidadãos do império se torna,
ram cristãos, além dos bárbaros que examinaremos em breve, a
Igreja teve de lidar com um problema peculiar. As massas de con,
vertidos (ou de semiconvertidos) não se tornaram católicas devo-
tas de imediato. Era comum que não vissem nada de errado em
suas vidas imorais. Algumas vezes os romanos apostavam nos dois
lados e mantinham reverências secretas ao deus Sol, como no-
tou horrorizado o Papa São Leão Magno, ao ver alguns católicos
saudando o Sol antes de entrar na antiga Igreja de São Pedro. O
perigo era o de que esse afluxo de pessoas imorais e indiferentes
corrompesse toda a comunidade cristã. Mais à frente veremos que
isso de fato aconteceria no período seguinte à queda de Roma.
JO Dez datas que todo católico deveria conhecer

O segundo problema, também mais perigoso que as persegui-


ções, foram as heresias. O Concílio de Niceia lidou com a heresia
ariana, mas essa foi apenas uma entre as várias heresias da Igreja
primitiva. Muitas foram inventadas nas províncias orientais do im-
pério por intelectuais argutos, que tentavam combinar as doutrinas
de seus filósofos pagãos prediletos com as doutrinas cristãs, e aca-
bavam por distorcê-las e pervertê-las. No século V, a terra natal de
Constantino, a Bretanha, daria origem à heresia de Pelágio, que ne-
gava o Pecado Original e a necessidade da Graça para a salvação (São
Lupo e São Germano, após finalmente terem derrotado esse perigo-
so ensinamento, atribuíram a vitória ao protomártir Santo Albano.)
A Igreja, agora "na superfície", não entrou em uma era de paz
e tranquilidade após o edito de Constantino, muito pelo contrá-
rio; ela se deparou com massas de falsos convertidos, doutrinas trai-
çoeiras que intentavam suplantar a doutrina oficial, a pressão dos
imperadores de Constantinopla e a chegada dos bandos bárbaros
que trariam imensos problemas. Na realidade, esse período serve
de amostra para todo o resto da história da Igreja. Os intervalos
para respirar são poucos e distantes uns dos outros, e a Esposa só
conseguirá a paz duradoura e o descanso eterno com o banquete
do Esposo. Satanás não para de tentar destruir a Igreja que Cristo
ergueu, mas lhe falta originalidade: veremos que a maior parte dos
futuros problemas enfrentados pela Igreja serão apenas variações dos
temas há pouco mencionados.
O que é verdadeiramente inacreditável é o fato de a Igreja ter
triunfado em todas as crises que enfrentou. Com efeito, acreditamos
que a Igreja durará até o fim dos tempos. Em todas as épocas, Deus
envia aliados ao seu auxílio: os santos. Mas envia também homens
brutos e pecadores, que geralmente não parecem ser as escolhas
3 d.C. - O Edito de Milão e a Libe
31 rtação da Igreja 31

rnais prováveis par a ser vir de


ins tru me nto s div ino s; den tre
esses,
Co nst ant ino , o Gra nde , foi o
pri me iro exe mp lo.
452 d.C.
São Leão Magno in1pede a invasão dos hunos
,
E bem provável que os católicos do século IV tenham acredita·
do que a conversão de Constantino e a libertação da Igreja
representassem o começo de uma nova era cristã para o Império
Romano. O que antes era a Babilônia, a prostituta do Apocalipse de
São João, se tomou a Roma Católica; seria ela a responsável por
difundir o Evangelho "entre todas as nações"?
Mas não foi o que aconteceu. O cristianismo se tornaria a reli-
gião oficial do Império Romano antes do término do século IV, e
Constantinopla, a nova capital, não teria mais nenhum templo
pagão. Contudo, o império estava condenado. No século V,
o Império Ocidental terminou consumido pela miséria e pelo caos;
já o Império do Oriente, deixado à sua sorte, sobreviveu mais mil
anos, porém, na maior parte do tempo, caiu em cismas e heresias.
Quais as causas de tudo isso?

Um império se desintegrando de todos os lados

As causas do colapso do Império Romano do Ocidente têm sido


motivo de discussões intermináveis entre os historiadores. É certo
que a economia estava em crise. A despeito das medidas draconianas
tomadas por Diocleciano e mantidas por Constantino para que se
aumentasse a receita bruta e se atendesse ao custo crescente de dete.
sa das fronteiras, a inflação aumentava, as terras não produziam, e
os fazendeiros - outrora independentes - encontravam-se emprega·
dos nas terras de proprietários locais; seriam eles os futuros servos e
Dez datas c/ue todo católico deveria conhecer

senhores feudais. Os custos da assistência governamental aumen-


taram descontroladamente, à medida que os governos das cidades
lutavam para alimentar e entreter o proletariado urbano, a fim de
evitar rebeliões. Não havia homens suficientemente qualificados
alistando-se no exército (os homens das baixas camadas urbanas eram
inúteis como soldados) e, por isso, a quantidade de oficiais e recrutas
bárbaros aumentou. Muitos destes viviam dentro das fronteiras do
império há muitas gerações e se mostravam leais a Roma; mas havia
outros - particularmente os das tribos recém-estabelecidas dentro
do império - cuja lealdade era duvidosa. Perante uma situação em
que teriam de proteger uma fronteira contra seus próprios familia-
res, que empurravam do outro lado, é muito provável que abrissem
os portões, ou que não oferecessem resistência aos invasores.
A vida política nos séculos III e IV alternava entre breves pe-
ríodos de estabilidade e disputas brutais entre os pretendentes aos
tronos dos impérios do Ocidente e Oriente. As crônicas sobre essas
rivalidades sórdidas lembram mais disputas entre tribos selvagens
do que entre homens civilizados (embora seja verdade que alguns
governantes da época fossem bárbaros). Quando se queria desmo-
ralizar um oponente, era comum que se lhe enviasse a cabeça de
um de seus amigos. Essa era apenas uma das práticas brutais que
se tornaram comuns à medida que Roma cambaleava antes de seu
colapso final.
Acima de tudo, havia fatores psicológicos e espirituais envolvi-
dos na desintegração do império, alguns mencionados no capítulo
anterior. Certo historiador nos conta sobre a "assustadora letargia
de toda a população". Talvez, o mais espantoso fosse que muitos
membros dessa população, inclusive os políticos que empacotavam
as cabeças recém-cortadas, eram católicos. Os sermões em que São
452 d.C. - São Leão Magno impede a invasão.dos hunos 35

João Crisóstomo descreve as vidas pecaminosas dos católicos de


Constantinopla revelam que lá a situação não era melhor. Ele cen·
surava a vida luxuosa e indecente dos ricos, que não davam esmolas
aos pobres. Descreveu em detalhes os lares caros e extravagantes,
mobiliados com prata e marfim, e os banquetes sibaríticos em que os
convidados ouviam a execução de serenatas por mulheres de moral
duvidosa. São João Crisóstomo elogiava a generosidade de alguns
mestres cristãos para com seus escravos, mas não deixou de denun·
dar a crueldade praticada diariamente por outros. É deprimente
ler sobre essas coisas, bem como sobre a sobrevivência de costumes
pagãos, a luxúria e a mundanidade que havia dentro do clero.

Mais decadentes que os bárbaros

De fato, a imoralidade explícita se espalhava por todo o impé·


rio. Após um ataque dos vândalos na África por volta do ano 430,
Salviano de Marselha comparou o comportamento dos bárbaros
com o dos cristãos romanos. Primeiramente ele detalhou os vários
vícios que cresciam de maneira descontrolada em Cartago: "O mais
grave é o fato de que esses vícios, a respeito dos quais o abençoado
Apóstolo queixou-se com o mais profundo lamento de sua alma,
praticavam-se majoritariamente na África~ Os homens, tendo dei·
xado de lado o uso natural das mulheres, ardiam de desejo uns
pelos outros; cometiam abominações entre si e, por isso, receberam
o merecido castigo( ... ) O abençoado Apóstolo dizia essas coisas dos
bárbaros e selvagens? Não, na verdade ele falava de nós, os roma·
nos (... )" Salviano estava aflito com o fato de que tais absurdos tos·
sem praticados "em uma cidade cristã, em uma cidade eclesiástica,
onde os apóstolos pregaram (. .. )" Ele lamentava que, apesar de a
36 Dez datas que todo católico deveria conhecer

imoralidade dos romanos remontar aos tempos pré-cristãos, "ela não


cessou após o advento do Evangelho." O Batismo não foi o suficiente
para transformar os decadentes cidadãos do império em verda<leiros
cristãos.
Quanto aos bárbaros, Salviano se pergunta: "Quem, após tudo
isso, não admira os vândalos?" Não causaria surpresa se adotassem
os vícios dos habitantes das terras ricas e corruptas que conquista-
ram, porém não o fizeram, e "nenhum deles tornou-se efeminado."
Após descrever como os vândalos haviam libertado a África des-
se vício desnaturado e também, por certo tempo, da prostituição,
· Salviano pergunta: "Que esperança pode ter o Estado Romano
quando os bárbaros são mais castos e puros que seus cidadãos? (... )
Que esperança de perdão ou de vida podemos ter quando sob a vista
de Deus vemos a castidade entre os bárbaros e somos, nós mesmos,
impudicos?" Não foi a força dos bárbaros, tampouco a fraqueza física
e militar dos romanos, que determinou a conquista. "Os vícios de
nossas vidas ruins fizeram a conquista por si sós."
Ninguém menos que Santo Agostinho, dirigindo-se ao povo de
Hipona durante o cerco brutal dessa infeliz cidade africana pelos
vândalos, disse: "Basta de gemidos, basta de queixas! Não sois vós
todos responsáveis por este destino que vos acabrunha? 'Tempos
terríveis, tempos difíceis', dizem os homens. Mas o tempo somos
nós. Como nós formos, assim serão os tempos!"
Portanto, o castigo do século IV não seria lançado apenas sobre a
Roma pagã, chegara a vez da Roma cristã. Os instrumentos que Deus
usaria para a punição seriam os bárbaros, que invadiriam o império às
centenas de milhares, tribo após tribo, subjugando as defesas das fron·
teiras. Uma prévia disso ocorrera no Oriente, na Batalha de Adrino-
pla, em 378 d.C. Os visigodos que haviam se estabelecido dentro do
452 d.C. - São Ledo Magno impede a invasão dos hunos 37

império foram maltratados pelos oficiais romanos e pegaram em


armas em represália. Talvez ávido por obter a glória de derrotá-los
sozinho, Valente, o imperador oriental, não esperou a chegada de
seu parceiro Graciano, imperador do Ocidente, para começar a
batalha. Um relato detalhado do desastre nos foi deixado pelo histo-
riador romano Amiano Marcelino, que descreve a força dominante
da cavalaria inimiga, o terrível dano causado às tropas romanas e a
morte do imperador: "Só um terço do exército escapou. Nenhuma
batalha registrada em nossas crônicas, exceto a Batalha de Cannae
(216 a.C.), provocou tamanha destruição e matança."
Em 410, outro grupo de visigodos saqueou Roma. Os habitan-
tes prepararam-se para os saques e a matança indiscriminada que
normalmente acompanhavam as invasões no mundo antigo. A pi-
lhagem de fato foi terrível, porém Santo Agostinho assinalou algo
de novo a seu respeito. Ele a chamou de nova mora, uma nova ma-
neira de comportamento. Alguns soldados bárbaros pouparam os
civis, e até mesmo os escoltaram para as igrejas, que foram preserva-
das por serem locais de culto. Os visigodos procederam deste modo
pois eram cristãos - hereges arianos, mas cristãos de algum modo.
Esse ato trouxe alguma esperança para os católicos.

Os hunos: um novo tipo de bárbaros

Começava a parecer que aqueles romanos, dos quais se conta


que estavam tão desesperados com sua própria sociedade que che-
garam a "rezar a Deus para que lhes enviasse os bárbaros", teriam
o seu desejo realizado. Mesmo sendo evidente que o fun1ro do
Ocidente cairia nas mãos dos bárbaros, ainda restava uma que~
tão crucial: quais deles? Os visigodos e outras tribos germânicas
38 Dez datas que todo católico deveria conhecer

conviviam em paz com os romanos havia muito tempo, e várias tribos


eram arianas. Boa parte dos bárbaros estimava o valor da civilização.
Por volta do ano 400, no entanto, uma ameaça mais sinistra apa-
receu no horizonte. O misterioso povo que fora responsável pela
invasão mais terrível contra o império surgiu na cena romana em
pessoa. Os hunos, em sua longa viagem de 9.650 quilômetros ao
longo das estepes da Mongólia, haviam de tal modo aterrorizado os
povos que encontraram, que estes buscavam desesperadamente se
refugiar dentro das fronteiras do Império Romano. Durante certo
tempo, os hunos permaneceram em paz, e alguns até serviram no
exército de Roma. Podia-se vê-los nas ruas das cidades do império,
onde os romanos estranhavam sua aparência extravagante, seu vestu-
ário e seu cheiro. Essa situação mudou quando em 435 ascendeu ao
trono dessa tribo um gênio impiedoso chamado Átila.
O historiador romano Amiano Marcelino escreveu sobre os hu-
nos no século IV, antes da ascensão de Átila, quando eles primeiro
surgiram nas extremidades do Império Oriental, após terem conquis-
tado as tribos germânicas que encontraram no caminho. "A semen-
teira e origem de toda essa destruição e calamidade são os hunos.
Os escritores antigos os mencionam apenas superficialmente. Eles
residiam para além do Mar de Azov (. .. ) perto do oceano congelado.
Trazem consigo uma selvageria incomum." Além do mais, "não dis-
tinguem o certo do errado (... ) Não possuem religião ou crenças."
É possível que Amiano tenha exagerado, mas ele certamente refle-
tiu a percepção dos romanos sobre os hunos, bem corno das outras
tribos que deles fugiram. Ele nos conta corno os góticos pediram
desesperadamente para que o Império os acolhesse, a fim de não
serem massacrados pelos hunos, e nos relata o mau presságio dos
que já viviam dentro das fronteiras romanas.
452 d.C. - São Leão Magno impede a invasão dos hunos 39

No século V, o historiador bizantino Prisco de Pânio descre-


veu a aparência assustadora dos hunos, e como eles haviam ex-
pulsado a tribo dos alanos "utilizando o terror da sua aparência,
apavorando-os com seu semblante escuro. Eles não possuem rosto,
mas um tipo de massa sem forma, se assim se pode dizer, e em vez
de olhos, pontos pretos". Os hunos eram baixos, cambados e desa-
jeitados quando não estavam montados nos seus robustos e velozes
pôneis das estepes. Passavam a maior parte do tempo em seus ca-
valos e não desciam deles para negociar. Alimentavam-se de carne
semicrua, que esquentavam embaixo de suas celas enquanto cavalga-
vam; eles até mesmo dormiam em cima dos cavalos. A sua excentrici-
dade e as suas desconhecidas táticas de combate - extrema precisão
no manuseio do arco e flecha e grande habilidade no controle dos
cavalos - amedrontavam todos os que ouviam falar a seu respeito.
Átila, homem inteligente e talentoso, tinha um grande plano,
e quando iniciou seu governo, o perigo que os hunos representa-
vam para o Império Romano se tornara muito pior. Ele montou
fortalezas em Panônia, região que hoje compreende a Hungria, e
estabeleceu uma terra de ninguém - cuja extensão se cobria em três
dias de marcha - entre seu território e as fronteiras do império.
Recusou-se a permitir que os hunos se alistassem no exército roma-
no e crucificou os que lhe desobedeceram. Átila começou a unir
as tribos que habitavam os territórios por ele conquistados e criou
um exército de hunos e germânicos. Ele intentava conquistar o
Império Romano, cujos defeitos e fraquezas conhecia bem, já que
havia sido refém em Roma e falava latim. Contando com as inter-
mináveis estepes que os hunos já haviam subjugado, o império que
Átila desejava criar seria tão grande quanto o que os mongóis estahe·
leceram nos séculos XIII e XIV.
40 Dez datas que todo católico deveria conhecer

Ternos urna descrição de Átila, talvez do próprio Prisco (que,


corno enviado do imperador, tinha grande conhecimento sobre os
hunos), encontrada na obra de um historiador posterior:

Ele nasceu para fazer as raças estremecerem e aterrorizar todas


as nações. Os apavorantes relatos a seu respeito assustavam a
todos. Ele avançava orgulhosamente e deixava seu olhar correr
aqui e ali, a marca do sentimento de sua força dava firmeza a
todo o seu corpo. Ele gostava da guerra, mas sabia impor pe,
ríodos de trégua. Imperioso no conselho, atendia, no entanto,
às súplicas e se mostrava generoso com aqueles em quem con-
fiava. De baixa estatura, peito largo, cabeça avantajada, olhos
rasgados, barba rala e cinzenta, nariz chato, tez escura, tudo
1
nele denunciava sua origem de huno.

Átila foi apelidado por um monge de "O Flagelo de Deus'', e


parece que tomou a alcunha como elogio.
Ele iniciou seu ataque nas fronteiras do Oriente, destruindo
postos de comércio, cidades às margens do Danúbio e exigindo do
imperador Teodósio II enormes quantias para o pagamento dos res-
gates. Quando Marciano, o valente sucessor de Teodósio, recusou,se
a continuar o pagamento dos resgates, Átila partiu para o Ocidente.
O seu pretexto para invadi,}o, no entanto, foi uma carta que
a princesa Honória havia lhe enviado, juntamente com um anel e
certa quantia de dinheiro. Ao que parece, Honória, irmã do impe,
rador Valentiniano III, se casara e, junto com o novo marido, plane,
java depor seu irmão. O imperador descobriu a intriga e tratou de

1. Priscus, De legatíonibus Romanorum ad gentes.


452 d.C. - São Leão Magno impede a invasão dos hunos 41

arranjar um novo companheiro para a irmã, mas ela o re1e1tou.


Foi aí que teve a ideia de escrever para o huno, pedindo-lhe aju-
da para impedir o novo casamento que ela tanto odiava (sua mãe
fizera algo parecido muitos anos antes; então, isso era comum na
família.) Átila deve ter entendido o env~o do anel não como garantia
da identidade do remetente, mas como uma proposta de casamento,
e deve ter se intrigado com a ideia (errada) de que o dote de Honória
era metade do Império Ocidental. Ele não respondeu de imedia-
to, porém, quando iniciou o ataque ao Ocidente, utilizou-se dessa
justificativa.
De qualquer modo, no começo do ano 451 os hunos
deslocaram-se para a Gália com grande número de aliados germâni-
cos recrutados por Átila. Espalharam pânico. O número de mortes,
saques e cidades destruídas foi enorme. Átila poupou algumas: em
Troyes, o Bispo São Lupo persuadiu-o a não causar estragos; ele foi
feito refém pelos hunos, mas sobreviveu. (Ironícamente, tempos d~
pois São Lupo foi banido da sua Sé por alguns anos, acusado de ter
colaborado com o inimigo.)
Em Paris, uma mulher extraordinária, Santa Genoveva,
mobilizou os habitantes aterrorizados. A futura padroeira da cidade
tinha por volta de 30 anos e vivia em castidade e oração, tendo con·
sagrado sua virgindade a Deus. Quando os hunos se aproximaram,
ela prometeu aos habitantes que, caso fizessem penitência, a cidade
seria poupada. Dirigindo-se às mulheres, ela disse: "Deixem que os
homens fujam se não quiserem lutar. Nós, mulheres, vamos rezar
com tamanho fervor que Deus certamente nos ouvirá!" Deus as
ouviu, pois os hunos não atacaram Paris.
42
Dez datas que todo católico deveria conhecer

O papa, os bispos, os romanos


e os bárbaros unidos por uma causa comum

Em 451, os hunos se aproximavam da cidade de Orléans, ao sul


de Paris, quando se depararam com a primeira resistência significa-
tiva. O general Aécio reunira um exército com o que restara das le-
giões romanas e com representantes de várias tribos bárbaras - entre
elas uma recém-derrotada. Tanto os romanos como os bárbaros con-
sideravam os hunos a maior ameaça já vista e se dispuseram a unir
forças contra eles. A Igreja não esteve ausente deste esforço comum,
embora só tenha contribuído de forma decisiva no ano seguinte.
Enquanto isso, o bispo de Orléans alertou Aécio sobre a aproxima-
ção dos hunos, ao passo que outro bispo firmava um acordo com os
visigodos, trazendo-os para a coalizão.
As crônicas da batalha, que durou um dia inteiro, estimam o
número de perdas de ambos os lados entre 160.000 e 300.000
homens. Mesmo levando em conta a pouca confiabilidade das
estatísticas antigas, as estimativas indicam um esforço titânico que
custou caro a todos os participantes. Os hunos, enfraquecidos,
retiraram-se para o seu acampamento. Logo depois decidiram tomar
outro rumo, e então atravessaram o Rio Reno. Mas não haviam sido
de modo algum derrotados.
Na primavera de 452, Átila invadiu a Itália. Tomou cidade após
cidade. A população fugiu. Aquileia, no Mar Adriático, era tão gran-
de e bem fortificada que foram necessários três meses de cerco para
os hunos a conquistarem. Essa inconveniência fez com que os hunos
se vingassem de modo cruel: cem anos depois, as ruínas da cidade
mal puderam ser localizadas. Alguns habitantes dessa cidade e de
seus arredores fugiram para pântanos e ilhas, e seus assentamentos
452 d.C. - Sdo Ledo Magno impede a invasão dos hunos 43

mais tarde se tornaram o que hoje é Veneza. Ao mesmo tempo, Mân·


tua, Pádua, Milão e muitas outras cidades foram conquistadas. Em
algumas os hunos utilizaram o cerco, em outras, os moradores, de·
sesperados, abriram os portões para o inimigo.
A corte imperial havia estabelecido seus quartéis-generais em
Ravena, por considerá-la mais segura que Roma. Porém, ao saber da
aproximação dos hunos o imperador Valentiniano III decidiu não
testar as defesas da cidade: a corte fugiu para Roma, ao sul. Tudo in-
dicava que o Flagelo de Deus cairia agora tanto sobre a Igreja como
sobre o Estado; Roma seguiria o rumo de Aquileia. O imperador
resolveu então pedir ajuda ao Papa São Leão Magno. O pontífice
concordou. Provavelmente, ele já rezava sem cessar pela libertação
da cidade, tal como Abraão rezara por Sodoma. Sem dúvida não
se iludia a respeito das virtudes da população e não considerava a
destruição de Roma imerecida, tampouco se iludia acerca das in-
tenções de Átila, que parecia estar decidido a devastar e conquistar
a Itália. "A nossa única esperança", escreveu São Próspero da Aqui-
tânia, amigo e secretário de Leão, "era esperar a piedade de um rei
impiedoso." São Leão pretendia encontrar-se com o inimigo. O seu
plano consistia em encontrar os hunos, tentar impedir a invasão de
Roma e assim evitar a devastação da Itália.
Átila e seu exército haviam alcancado o Rio Mincio, ao norte,
quando avistaram uma procissão de padres, monges e outros religio-
sos que cantavam e traziam consigo ostensórios e crucifixos. Junto
com o papa vinham um cônsul, um ex-prefeito e outros oficiais do
governo habilitados para a negociação com o inimigo. Átila aden·
trou o rio a galope até uma ilhota, de onde gritou, perguntando
quem era o líder da procissão. "Sou Leão, o papa." O huno seguiu
até o outro lado do rio e os dois conversaram. "Átila", conta-nos
Dez datas que todo católico deveria conhecer

São Próspero, "recebeu a delegação com dignidade, e encantou-se


de tal modo com a presença de Leão que desistiu da invasão e re-
cuou para o outro lado do Rio Danúbio, após ter prometido paz."
Ninguém sabe ao certo o que o papa lhe disse. Quando Leão retor-
nou a Roma, disse ao imperador: "Agradeçamos a Deus, pois Ele nos
salvou de um grande perigo."
Não sabemos os argumentos que São Leão usou. Muitos
historiadores presumem que os oficiais romanos que o acom-
panhavam propuseram algum tipo de pagamento aos hunos.
Era essa a maneira corriqueira de evitar os ataques dos bárbaros
e, no caso dos hunos, presume-se que lhes teriam sido fornecidos
os suprimentos necessários para que deixassem a Itália rapida-
mente. Deste modo, eles se retiraram, ameaçando retornar caso
Honória não fosse entregue a Átila. Eles tentaram em seguida atacar
a Gália, mas acabaram expulsos pelos visigodos. Átila retirou-se para
Panônia, de onde, segundo Prisco, começou a atormentar o impera·
dor oriental com ameaças de invasão e exigência de tributos. Uma
missão enviada por Constantinopla não foi bem recebida na corte
huna, e a situação do Império do Oriente se tornava cada vez mais
perigosa, já que os hunos preparavam uma nova ofensiva.
Para a felicidade do Oriente e do Ocidente, Átila casou-se uma
vez mais em 453, e logo depois conheceu seu trágico destino. Pris·
co nos relata: "Esgotado pela folia excessiva em seu casamento, em·
briagado de sono e vinho, ele deitou-se de costas. Nessa posição,
uma hemorragia, que normalmente fluiria de seu nariz, foi desvia-
da de seus canais costumeiros, desceu-lhe pela garganta e o matou.
A embriaguez trouxe um fim vergonhoso para um rei famoso na
guerra." Em meio às disputas de poder que se seguiram entre os
vários filhos de Átila, as tribos germânicas que haviam integrado seu
452 d.C. - São Leão Magno impede a invasão dos hunos 45

exército se libertaram e deste modo toda a empresa dos hunos des-


moronou. Deus não usaria mais esse Flagelo para punir o seu povo.
São Leão Magno, Doutor da Igreja e vencedor de algumas
das heresias mais perigosas da História, retornou ao trabalho em
Roma. Em agradecimento à retirada dos hunos, derrubou uma es-
tátua de Júpiter e transformou-a na famosa estátua de São Pedro,
até hoje venerada em Roma. Diferentemente de Sodoma, Roma
fora poupada por Deus. Não havia muitos "homens justos" nela,
mas certamente havia um. Três anos depois, São Leão seria con-
vocado uma vez mais a negociar com um pretenso conquistador
- Genserico, o Vândalo - que cercava a cidade. Ele mostrou-se me-
nos dócil do que Átila perante a persuasão do papa, mas, mesmo
assim, dado o histórico de "vandalismo" de Genserico, o resultado
foi surpreendente. Ele se limitou a saquear a cidade e concordou em
não queimá-la, assassinar os habitantes ou destruir os monumentos
antigos. (Para um vândalo, tais atitudes representavam um extraor-
dinário autocontrole.)

O significado desse acontecimento

Historiadores têm argumentado que os hunos resolveram dei-


xar a Itália por motivos outros que a confrontação com São Leão.
O clima era insalubre; é provável que estivessem sem suprimentos;
alguns dos conselheiros de Átila observaram que Alarico 1 morrera
poucas semanas depois de saquear Roma, e Átila era supersticioso
(é bem provável que Leão tenha de fato usado esses argumentos.)
Contra isso se coloca o registro do progresso dos hunos na Itália antes
de alcançarem Roma, e o fato de que ansiavam para saquear a grande
cidade. Afinal, Átila já a conhecia, ele sabia que valia a pena invadi-la.
Dez datas que todo católico deveria conhecer

Não importa se outros motivos pesaram na decisão do rei huno,


pois foi a embaixada do papa que o fez parar, persuadindo-o a desis-
tir. Parece claro que o Flagelo de Deus finalmente havia sido afasta-
do, pois Deus ouvira as orações de São Leão e inspirara suas palavras.
Dois resultados se seguiram: os teimosos pagãos que se queixavam
da substituição do culto aos deuses de Roma pelo cristianismo re-
ceberam a sua resposta: Cristo, e não Júpiter, salvara Roma, através
do seu vigário - tema enfatizado por São Leão quando remodelou a
estátua de Júpiter na de São Pedro.
O segundo resultado foi que a Europa não estava fadada a ser
uma província da Ásia, tributária de um grande império das estepes;
esse destino cairia sobre a Rússia e outros Estados que os mongóis
dominaram; o destino do Ocidente seria outro. Naquele momen-
to, sem dúvida, ele não era animador, mas a disputa com os hunos
trouxera esperança. Romanos e bárbaros cooperaram para resistir
a um agressor comum, e nessa cooperação assentou-se o futuro da
Cristandade. O papel da Igreja - em particular o de santos como
São Lupo, Santa Genoveva e São Leão Magno - foi também uma
amostra da nova Europa católica que iria lenta e dolorosamente
emergir das ruínas do império, sob a liderança do papado.
496 d.C.
O batismo de Clóvis e o nascimento da
França Católica

or mais de um quarto de século, após a retirada dos hunos, o


P Império Romano do Ocidente sofreu mais crises e invasões ger-
mânicas. Por fim, o último imperador foi deposto em 476, e um
chefe germânico chamado Odoacro tornou-se rei da Itália - o pri-
meiro rei visto por Roma desde que os odiados reis etruscos haviam
sido derrubados em 509 a.C. Geralmente cita-se o ano 476 como
o fim do Império Romano do Ocidente. Embora o termo "queda
de Roma" possa ser debatido, matizado, modificado e tomar outros
significados, é evidente que aquele ano foi decisivo. Em todas as an-
tigas províncias do império, os chefes e reis das várias tribos bárbaras
estabeleceram territórios para si, locais em que a organização e a lei
romanas outrora se impunham.
Todas as instituições sofreram ao longo desse período conrurba-
do, e a Igreja não foi exceção. A principal dificuldade que ela encon-
trou nos novos governantes não era o fato de serem eles bárbaros,
mas sim a sua religião: quase todos eram arianos.

O arianismo bárbaro

Esse culto primitivo fora espalhado entre as tribos do norte por


missionários arianos que fugiram do império após a condenação
dessa heresia (a qual defendia que Cristo não é Deus) no Concílio
de Niceia, em 325. Atribui-se a sua persistência aos extraordiná-
rios esforços do gótico Úlfilas (século III), que tinha ancestralidade
48 De~ datas que todo católico deveria conhecer

grega e recebera educação católica. Culto e inteligente, ele visitou


Constantinopla quando jovem e lá aderiu ao arianismo. Recebeu
sagração episcopal de um bispo ariano, em seguida retornou à sua
tribo e passou sete anos difundindo o arianismo entre da. Úlfilas
era um missionário determinado e engenhoso. Criou uma escrita
gótica e traduziu as Escrituras. Deste modo, esse tipo de cristianis-
mo (se assim se pode chamar uma seita que nega a divindade de
Cristo) tornou-se uma religião comum entre os guerreiros germâni-
cos. A sua teologia era simples, e seus rituais apelavam para o gosto
bárbaro por celebrações à noite nas florestas, com grande cantoria.
A sua moral enfatizava a coragem e outros traços guerreiros. Esse aria-
nismo modificado não apenas não trazia civilização alguma consigo
(os arianos refinados teriam dificuldade em reconhecê-lo), mas estava
imbuído de hostilidade à cultura romana e à Igreja Católica.
O contra-ataque dos missionários católicos também se utilizou
da língua e escrita góticas, e conseguiu recuperar almas para a Igreja.
Porém, no século V, grande parte dos governantes da Espanha, Itália
e várias antigas províncias romanas eram arianos tanto na devoção
como na mentalidade. A atitude dos conquistadores arianos perante
os povos católicos que haviam subjugado variava. Alguns os perse-
guiam ativamente, muitos não os toleravam e outros se mostravam
mais flexíveis. No entanto todos viam o catolicismo corno a religião
inferior de povos derrotados. A situação dos católicos do Ocidente
não era animadora.

Os francos entram em cena

A tribo dos francos, que se estabelecera nas margens do Rio


Reno, ao norte da Gália, não se influenciara pela crescente po-
496 d.C. - O bastismo de Clóvis e o nascimento da França Católica 49

pularidade do arianismo entre os bárbaros e permanecia fiel aos


seus deuses pagãos. No século V, a simpatia que tinham por Roma
não era maior que a de seus vizinhos arianos. É verdade que luta-
ram algumas vezes ao lado dos romanos, quando isso os favorecia.
Mas traziam um vago rancor - em razão de maus-tratos causados por
um governador romano no passado - contra o domínio de Roma.
E, além do mais, os francos estavam suficientemente ocupados
defendendo seu território contra outras tribos bárbaras e lutando
entre si, portanto não eram úteis para o Império.
Contudo, esses pagãos não apenas se tornariam os campeões do
catolicismo, mas também seriam os futuros salvadores da civilização
clássica. Se houve alguma divina surpresa na História, foi essa - e ela
ocorreu poucos anos depois da "queda" oficial de Roma, nas últimas
décadas do século V.
Quem eram os francos? Tudo indica que o nome se refere a um
grupo de tribos originário da costa do Mar Báltico. Um ramo des-
ta conglomeração, os francos sálios, invadiu a Gália (atual França),
que ainda tinha uma parte sob domínio do enfraquecido Império.
Eles governaram parte do norte da Gália com aprovação romana, e
deslocaram-se para sul e oeste, à medida que as tropas romanas se
retiravam gradualmente entre 455 e 475. O povo franco encontrou
abrigo no sul da Gália, onde viviam os galo-romanos (católicos li-
gados fortemente a Roma e sua cultura). Ainda no século V. havia
muitos pagãos na Gália. A Igreja, todavia, era uma forte presença na
região, particularmente nas vilas e cidades. Muitas vezes, somente os
bispos possuíam a habilidade administrativa para manter os serviços
públicos operando, e a população buscava neles assistência espiritual
e material. A influente e estimada presença da Igreja desempenharia
um papel crucial quando um jovem rei franco ascendesse ao trono.
50 Dez datas que todo católico deveria conhecer

O bispo e o rei

Por volta do ano 470, a família merovíngia (assim chamada


depois de um lendário ancestral, Meroveu) adquirira uma posição
dominante na Gália, embora disputas e guerras esporádicas conti-
nuassem entre eles e as famílias aparentadas, bem como entre outras
tribos.
Clóvis era um adolescente de 15 anos quando se tornou rei
dos francos sálios em 482. Em língua franca, o nome deste enér-
gico guerreiro era Clodoveu - origem do nome Ludovico, ou Luís,
o que faz de Clóvis o primeiro dos grandes reis franceses com este
nome. Um incidente em 486 nos dá uma ideia da personalidade
do jovem rei. Seus soldados haviam saqueado várias igrejas e tra-
zido um vaso que São Gregório de Tours descreveu como "belo
e grande". O bispo enviou a Clóvis um pedido solicitando que o
vaso lhe fosse devolvido. Clóvis aceitou, mas antes que pudesse
devolvê-lo, um de seus soldados - aborrecido por não ter se apo-
derado do objeto - ergueu seu machado e em seguida o quebrou.
Clóvis manteve-se em silêncio e, paciente, limitou-se a devolver os
pedaços do recipiente ao bispo. Um ano depois, enquanto inspe-
cionava suas tropas, ele criticou esse mesmo soldado pela condi-
ção de suas armas, e jogou uma delas no chão. Quando o homem
inclinou-se para pegá-la, Clóvis desferiu-lhe um golpe mortal no
crânio e disse: "Assim fizeste ao vaso." Um jovem bastante cruel.
Mas, mesmo nessa situação, já demonstrava certa disposição favorá-
vel à Igreja.
Quando Clóvis ascendeu ao trono, São Remígio, o grande
Bispo de Reims, acreditava ser um bom momento para escrever uma
carta amistosa ao jovem rei.
496 d. C. - O bastismo de Clóvis e o nascimento da França Católica 51

Um grande rumor nos chegou: diz-se que tu acabas de tomar as


rédeas do governo de nossa nação. Não surpreende que sejas tu
o que foram teus pais. Mas vela para que nunca te abandone o
juízo de Deus, a fim de que, por teus méritos, logres conservar
esse posto que conquistaste por tua indústria e nobreza, por-
que, como diz o vulgo, os atos do homem se provam por seu
fim. Rodeia-te de conselheiros que honrem teu discernimento.
Sê prudente, casto e moderado; honra os bispos e atende a
seus conselhos, pois se vives em harmonia com eles, darás bem-
-estar ao país. Consola os aflitos, protege as viúvas, alimenta
os órfãos, faze com que todo mundo te ame e te tema. De teus
lábios saia a voz da justiça, deixa aberta a todo mundo a porta
de tua presença. Joga com os jovens, posto que és jovem, mas
aconselha-te com os anciãos. E se queres reinar, mostra-te dig-
no disso. 1

Sob diversos pontos de vista, essa carta é fascinante. Em ne-


nhum momento se menciona a Fé católica, nem se incita o jovem
pagão a se converter. Alguns historiadores modernos dizem que a
carta demonstra que a Igreja não estava interessada em converter os
bárbaros. Deixando de lado essa hipótese absurda (que exigiria uma
explicação a respeito do que São Patrício e todos os missionários da
Idade das Trevas acreditavam estar fazendo), a carta apresenta um
modelo de prudência eclesiástica e psicologia pastoral. São Remígio
deve ter ouvido algo sobre o caráter impetuoso e a personalidade do
jovem rei; é provável que outros incidentes semelhantes ao do vaso
houvessem ocorrido. Ele deve ter sabido também que Clóvis era

1. São Remígio, Carta para Clóvis, 481 d.C.


52 Dez datas que todo católico deveria conhecer

influenciado por sua irmã ariana. Sem saber exatamente o grau des-
sa influência, ele provavelmente desejava proceder com cautela e es-
tabelecer relações amigáveis. Acima de tudo, ele foi cauteloso ao evi-
tar o confronto com um jovem obstinado. Ele sabia que os bárbaros
com frequência se intimidavam com as autoridades espirituais, e que
as cenas e os sons da cerimônia católica, tal como o próprio clero, os
impressionavam profundamente. Em vez de exigir a conversão desse
governante demasiado jovem e ocupado, o bispo preferiu incutir em
sua mente alguns ideais simples, mas importantes.
Em primeiro lugar, o célebre chefe da Igreja de Reims expressa
sua satisfação com as notícias sobre a ascensão do jovem (ou seja,
a Igreja está disposta a apoiá-lo). Em segundo lugar, diz que a Pro-
vidência o elegera como rei, e que a Providência tinha um plano
para ele. (Clóvis deve ter se perguntado o que era a "Providência"
e qual seria o seu plano. Será que os bispos que ele devia consultar
lhe diriam?) Em terceiro, afirma que as coisas dariam certo caso ele
mantivesse boas relações com os bispos. (E supondo que ele não o fi-
zesse? Havia alguma ameaça sutil implícita? Será que o desconhecido
Deus desses fascinantes prelados iriam se vingar dele?) Por último,
o rei devia seguir não apenas os princípios do direito natural, mas
seguir o que só se pode chamar de moralidade cristã: um chamado a
um modo de comportamento que seria particularmente novo para
um franco, mas que devia apelar para qualquer idealismo que se
escondesse em sua alma de guerreiro.

Paris e Genoveva

Pode-se imaginar facilmente que Clóvis se impressionou com


essa carta; sem dúvida, ele não era um jovem que recebia muitas
496 d.C. - O bastísmo d.e Clóvis e o nascimento da França Católica 53

correspondências, e qualquer uma delas despertaria sua atenção.


Clóvís aceitou, e pouco depois derrotou uma tribo de francos ri-
vais ao leste da Gália - onde hoje se encontra a maior parte da
França moderna. Logo, os francos constituíam cerca de um quarto
da população do território e, felizmente, não estavam dispostos a
exterminar os galo-romanos ou a destruir tudo o que encontravam,
como fazia a tribo dos vândalos. No decurso da conquista da Gália,
Clóvis pensou naturalmente que tornaria Paris - a antiga Luteia
dos romanos, onde o imperador Juliano adorava ficar.
Para sua decepção, Santa Genoveva ainda era forte e popu-
lar entre os parisienses, em razão de sua santidade, seus mila-
gres e de tê-los mobilizado contra os hunos quarenta anos antes.
Ela estava com quase setenta anos agora, mas se mostrava mais
enérgica que nunca, e se não abrira os portões para um huno,
tampouco o faria para um franco. Ela havia jurado que nenhum
bárbaro jamais entraria em Paris. Portanto, quando Clóvis
cercou a cidade, sua única esperança era esperar até que os
habitantes morressem de fome.
Os parisienses permaneceram protegidos pelas fortes muralhas e
pela água que rodeava sua ilha. Clóvis não tinha barcos ou meios de
construí-los rapidamente. A situação dos habitantes tornava-se gra-
ve e as pessoas começavam a passar fome. Genoveva conseguiu par-
tir com doze barcos pelo Rio Sena, rumo a uma cidade onde pôde
enchê-los de suprimentos (realizando inúmeros milagres de cura ao
longo da viagem) e depois retornou para salvar Paris.
Clóvis desistira. Santa Genoveva conseguira manter os bárbaros
nos portões. Contudo, ela orou fervorosamente pela conversão do
rei franco. Enquanto isso, outra mulher forte, Clotilde - talvez em
resposta às orações da santa parisiense - entrou na vida do rei.
5-f Dez datas que todo católico detJeria conhecer

Clotilde transforma seu marido

Essa encantadora santa, filha católica de um rei burgúnJio, cres-


cera em meio à cruel violência da época, e tentava preservar sua
religiosidade e suas virtudes. Ela integrava o grupo de mulheres cris-
tãs que de bom grado se casaram com bárbaros na esperança de
convertê-los. Quando Clóvis solicitou a mão de Clotilde, ela não
recusou - a despeito de suas reservas pessoais. Eles se casaram em
491 ou 492, ele tinha 20 e poucos anos e ela, 17. Surpreendente-
mente, Clóvis desenvolveu por ela grande estima, e eles se tornaram
um casal afetuoso e dedicado. Mas ele permanecia pagão e cultuava
·os deuses francos. Os anos passavam e Clóvis se mantinha pagão,
apesar de estar cada vez mais impressionado com a fé de sua jovem
esposa (mesmo após ver seu primeiro filho morrer doente, logo após
aceitar que o menino fosse batizado}. Ele também mostrava grande
estima por seu conselheiro espiritual: Remígio, Bispo de Reims, que
lhe enviara uma carta na época de sua ascensão ao trono.
Conta-se que no dia 11 de novembro, no final dos anos 490,
Clóvis visitou o túmulo de São Martinho de Tours, no dia da fes-
ta do santo, e ali presenciou milagres que o impressionaram. Toda-
via ele só deu sinais de que abandonaria o paganismo quando se
envolveu em uma dura batalha com uma tribo inimiga, provavel-
mente os alamanos. Naquele momento, urna inspiração lhe veio: ele
rezaria ao "Deus de Clotilde" pedindo-lhe a vitória. "Jesus Cristo",
clamou, "Vós que, segundo Clotilde, sois o Filho do Deus Vivo,
ajudai-me nesta tribulação! Se me deres a vitória, acreditarei em Vós
e me farei batizar." Assim como Constantino na Batalha da Ponte
Mílvia, Clóvis saiu vitorioso. Ele passou a se perguntar seriamente
quem seria esse Deus, sem dúvida mais poderoso que os deuses dos
496 d.C. - O bastismo de Clóvis e o nascimento da França Católica 55

francos ou dos alamanos; e então buscou educação religiosa com


São Remígio.

Uma conversão épica

Rei e bispo estavam ansiosos para saber os efeitos da con-


versão do governante sobre seus súditos. Não era o povo franco
como um todo que os preocupava; o povo parecia ser indiferente
tanto à fé como aos deuses que seus líderes adoravam. Quem os
preocupava eram os companheiros mais próximos de Clóvis, os
guerreiros de seu círculo interno. Eles estavam tão ligados ao rei,
em todas as suas empresas, que uma súbita mudança de religião
da parte de seu líder poderia aliená-los. "Eu de bom grado te ou-
viria", disse Clóvis ao bispo, mas hesitou; estava convencido de
que seus homens não abandonariam os deuses pagãos. Decidiu
tratar do problema convocando-os, explicando-lhes o seu plano
e pedindo sua opinião. Os guerreiros concordaram em abando-
nar seus antigos deuses e em aceitar o único Deus pregado por
São Remígio. Tendo em vista que Clóvis os conhecia bem e não
esperava tal atitude, eis mais um exemplo da atuação de uma
extraordinária graça.
Naquele tempo, o Batismo geralmente se realizava na
Páscoa, porém nesse caso fez-se uma exceção, e a cerimônia
foi marcada para o Natal; o tradicional ano de 496 talvez
não seja a data correta, mas, no máximo, foi poucos anos
depois. Isso não importa. O que importa é que esse batismo
marcou o início da França Católica. Em todo o Ocidente,
Clóvis era o único rei católico, e já lhe foi dado o titulo de
"o Segundo Constantino."
56 Dez .datas que todo católico deveria conhecer

Aos pés do batistério, rodeado por vestimentas esplendorosas, a


iluminação da igreja e as litanias e hinos fizeram com que o impres-
sionado rei perguntasse ao santo: "É este o reino dos céus que tu me
prometeste?"
"Não", respondeu Remígio, "mas é o começo do caminho que
a ele conduz."
A procissão solene adentrou a catedral. Juntos, bispo e rei segui-
ram Clotilde, o coração dela sem dúvida transbordava de alegria e
gratidão. Em seguida vieram outros membros da família que tam-
bém receberiam o Batismo, entre eles as irmãs de Clóvis. A ariana
não precisou ser batizada, mas recebeu a Crisma. Logo após vieram
os 3 mil francos que aceitaram receber o sacramento juntamente
com o seu líder.
As famosas palavras ditas pelo grande bispo ao rei pouco antes
de receber o sacramento chegaram até nós: "Inclina humildemente
tua fronte, Sicambro. Adora o que queimaste e queima o que ado-
raste."
Durante a cerimônia de Batismo, ocorreu um incidente impres-
sionante, que teria consequências por 1.500 anos. No século V, cos·
rumava-se administrar o sacramento da Crisma logo após o Batismo,
e chegara o momento em que o bispo precisava do santo óleo para
ungir o rei. A catedral estava lotada, a movimentação era difícil, e o
clérigo que trazia o santo óleo não conseguia atravessar a multidão.
Nesse momento, São Remígio olhou para os céus e viu uma pomba
descendo com um frasco de óleo em seu bico. Com esse óleo ele un·
giu o rei. O óleo mais tarde seria usado nas cerimônias de coroação
de todos os reis da França (o historiador Edward Gibbon, recontan·
do o incidente com seu sarcasmo usual, apontou que o óleo ainda
era usado no seu tempo - por volta de 1780). Destruído durante a
496 d.C. - O bastismo de Clóvis e o nascimento da França Católica 57

Revolução Francesa, os seus restos foram recuperados e as últimas


gotas foram usadas na coroação de Carlos X, em 1824.
Que posição tomar quanto a esse incidente? Muitos historiado-
res, até mesmo católicos, consideram-no uma lenda. Eles apontam
que a história apareceu primeiramente nos escritos do grande arce-
bispo Hincmar, no começo do século IX, e que é pouco razoável; é
simplesmente fantástica demais para ser verdade. Por outro lado,
bibliotecas repletas de documentos da Idade das Trevas se perderam,
embora registros do século V tenham durado até o século IX. No
caso de Hincmar, é preciso lembrar que ele foi Arcebispo de Reims,
onde se diz que o milagre ocorreu. É possível que ele tenha tido
acesso a registros da época, talvez escritos pelo próprio São Remígio.
O relato que nos chegou reconta um milagre; não está embelezado
com detalhes fantásticos, como no caso de muitas histórias de falsos
milagres, e conta com o depoimento de testemunhas. Os santos e
reis da França acreditaram nele. Não vejo razão para que esse sinal
sobrenatural, origem do costume sagrado de ungir os reis franceses,
não tenha de fato ocorrido. Ele teria consolidado a fé dos novos
batizados, e também o prestígio do bispo e do rei, e simbolizaria o
auxílio de Deus para com a "Filha mais velha da Igreja".
Depois de o rei bárbaro ser apropriadamente batizado e ungi·
do, Santa Genoveva abriu os portões e recebeu o casal real na sua
nova capital. Pelo resto de suas vidas, Santa Genoveva os apoiaria
e aconselharia, e se tornou amiga próxima de Clotilde - uma jo-
vem santa e uma santa idosa, duas grandes figuras na história da
França. Clóvis continuou, assim como Constantino, sua carreira
dual de rei guerreiro e defensor católico. Ele chegou a convocar
(como fez Constantino em Niceia), o Concílio de Orléans, no qual
os bispos da Gália se reuniram e discutiram problemas comuns.
58 Dez datas que todo católico deveria conhecer

O povo franco não acordou católico na manhã seguinte ao batismo


do rei, mas a sua conversão não demorou muito. O prestígio do rei
e seus guerreiros era tal, que os esforços missionários da Igreja logo
deram frutos abundantes por toda a Gália.

Por que o batismo de Clóvis foi importante?

A conversão dos francos provou ser de enorme importân-


cia para o futuro da Europa Católica. O catolicismo não seria
mais a religião fraca e inferior de povos subjugados. Estava claro
para os pagãos e arianos que o Deus dos católicos era mais po-
deroso que o deles, já que dera a seus seguidores tantas vitórias
espetaculares. Sob essa forma bárbara de pensamento a Igreja pôde
se desenvolver. Bispos, padres, monges e santos peregrinos se mos-
traram favoráveis à ocupação da Gália pelos francos, e apoiaram
ativamente os conquistadores. Essa aliança entre os defensores cató-
licos e os representantes da Igreja significaria a conversão subsequen-
te de todo o continente, embora fossem precisos séculos de lutas e
esforços para consegui-la.
São Gregório de Tours, ao qual devemos a história desse período
- apesar de ele a ter escrito no século seguinte -, estava preocupado
com o alto grau de violência e crueldade que ainda se praticava entre
o povo e a corte dos francos, mesmo após a sua conversão. Os fran-
cos e seus reis não se tornaram católicos exemplares da noite para
o dia, assim como os romanos do século anterior. Diversos atos do
próprio Clóvis parecem brutais e de moralidade duvidosa, porém
a Igreja mostrou-se paciente. Como disse São Remígio: "Devemos
ser duas vezes mais pacientes com aquele que se fez o propagador
da Fé e o salvador das províncias." Pode-se notar aí a semelhança
496 d.C. - O bastismo de Clóvis e o nascimento dn França Católica 59

com Constantino. Francos recém-batizados ainda consultavam fei-


ticeiros e invocavam antigos espíritos pagãos. Mas a Igreja, uma vez
mais, foi paciente, tal como fora com os romanos, em circunstâncias
semelhantes.

Regresso e vislumbre de esperança

Santa Clotilde retirou-se para um convento após a morte do


marido, profundamente angustiada pelo combate fratricida desen-
cadeado entre seus filhos e pela morte de seus netos. O período
seguinte ao de Clóvis aparentava ser desanimador, pois o reino fran-
co se dividiu em facções rivais. Entretanto, pouco antes de sua mor-
te, conta-se que Clotilde teve a alegria de conhecer, ou ao menos
de ouvir falar, de sua sucessora, como a rainha santa dos francos.
O rei Clotário 1, o violento filho de Clóvis que o sucedera no.
trono, havia tomado como cativa uma jovem da família real de
Thuringian, terra germânica ao leste, no decurso de uma guerra
ali travada. Trazida para a França, ali criada e educada, a jovem
Radegunda descobriu a fé católica e se transformou profunda-
mente. Casou-se, relutante, com o insistente rei, mas o seu reina-
do, devido a sua caridade e santidade, não deve nada aos reinados
de Santa Elisabete da Hungria ou qualquer outra rainha santa.
Ela deixaria Clotário, com sua permissão, depois que ele matou o
irmão dela, e então tornou-se uma freira tão exemplar quanto fora
como rainha. Ela não seria a última das rainhas santas da França
cujas orações e exemplo, juntamente com o de outras santas como
Santa Genoveva, ajudaram - mais do que as sangrentas guerras
dos chefes bárbaros - a erguer a futura Cristandade do Ocidente.
Contudo, isso só se concretizaria alguns séculos depois.
800 d.C.
A coroação de Carlos Magno, pai da Cristandade

próximo grande personagem a entrar no palco da História é,


O de diversos modos, extraordinário. Ele se eleva acima de seus
contemporâneos - literalmente - pois tinha quase dois metros de
altura, e o seu cabelo e bigode castanho avermelhado lhe aumenta·
vam ainda mais a aparência imponente. Se ignorarmos sua voz esga-
niçada, ele foi grande em quase todos os aspectos da palavra: grande
guerreiro, grande rei e imperador, grande defensor da Igreja, grande
incentivador do ensino e grande promotor da renovação econômica.
Ele é Carlos, o Grande: protetor de Roma, unificador da Europa
e pai da Cristandade ocidental. É difícil imaginar como a Europa
católica teria emergido da Idade das Trevas sem a sua presença.
O fato de Carlos ser um católico de berço devia-se a Clóvis e ·
à conversão de seu povo. Entretanto, ele não descendia da família
de Clóvis. Ao longo dos dois séculos que haviam decorrido entre
a morte de Clóvis e ascensão de Carlos, a família real dos francos
havia se deteriorado rapidamente. Os merovíngios não apenas fize-
ram da guerra fratricida e das intrigas palacianas um hábito, como
também haviam se tornado completamente dissolutos e incompe-
tentes. É preciso estômago forte para ler os relatos de suas façanhas e
atrocidades, registradas por São Gregório de Tours e outros cronistas
da época.
Em termos de crueldade, as façanhas de algumas de suas mulhe-
res - Brunhilda da Austrásia, Fredegunda, entre outras - equipara-
vam-se ou até mesmo superavam as dos homens. Há um relato de
São Gregório de Tours a respeito de uma mulher merovíngia que
62 Dez datas que todo católico deveria conhecer

desejava se livrar de sua nora. Ela abriu um largo e pesado baú,


cheio de roupas belas e pediu que a jovem as examinasse. Quando
a inocente garota ajoelhou-se e se inclinou, sua sogra empurrou-a
para dentro, fechou a tampa e sentou em cima até estar certa de que
dentro do baú só restasse uma ex-nora e algumas roupas.
Quanto a Brunhilda da Austrásia, noiva do neto de
Clóvis, há maldade demais para se contar aqui. Por várias déca-
das ela representou uma impiedosa força política entre os fran-
cos, trabalhando pelos interesses de seu marido, seus filhos e ne-
tos, até que, por fim, aproximando-se dos 80 anos, seus crimes
se voltaram contra ela. Levada a julgamento, foi considerada
responsável pela morte de vários reis, clérigos e de pelo menos
um bispo canonizado (São Didier). Os relatos variam a respeito
de sua morte: se foi esticada na roda ou desmembrada por qua-
tro cavalos. 1 Mas, "finalmente", relata São Gregório, "ela havia
morrido." Estamos aqui muito distante dos dias de Clotilde.
A decadência e o comportamento brutal não eram os únicos
problemas dos governantes francos. Após a morte de Clóvis em
511, o seu reino de Francia se dividira entre partes que esporadi-
camente se uniam. Após 639, quando Dagoberto I - o último rei
a exercer um reinado pessoal - morreu, os merovíngios vieram a
ser conhecidos como "os reis que nada faziam", e tal descrição era
apropriada. Mas, se os reis não faziam seu trabalho, quem o fazia?
Alguns merovíngios perceberam sua própria incompetência e então
entregaram a liderança do Estado a um oficial intitulado o "mordo-
mo do palácio"; após o que, os reis ficaram livres para desfrutar de

L Antiga forma de execução em que se amarravam pés e braços da vítima


a quatro cavalos e ela era puxada em direções opostas, tendo os membros
arrancados. (N. do T.)
800 d. C. - A coroação de Carlos Magno, pai da Cristandade 63

seus divertimentos depravados, enquanto os mordomos governavam


o reino.

Os mordomos do palácio

Pode-se traçar até dois irmãos a linhagem da família que fome·


ceu aos reis francos os seus mordomos, um dos quais se tornou san·
to: Santo Arnulfo de Metz, do clã conhecido por arnulfidas. Arnulfo
veio de uma família franca eminente e, após receber educação, foi
enviado à corte, a fim de se preparar para um cargo governamental.
Ele era tão competente que serviu para funções militares e civis, e no
devido tempo, casou-se e teve dois filhos. Ele queria devotar sua vida
a Deus como religioso, mas quando a sede episcopal de Metz ficou
vacante, foi eleito bispo, embora continuasse a desempenhar papéis
na atividade política (não sabemos o que aconteceu a sua esposa, ela
já havia morrido nessa época). Arnulfo manteve-se ocupado tentan·
do preservar a paz entre os reis francos, instruindo e aconselhando
o jovem rei Dagoberto I e trabalhando pelo bem público. Finalmen·
te, ele pôde realizar seu desejo e, quando encontrou um bispo para
substituí-lo, retirou-se satisfeito para as montanhas, a fim de viver
seus últimos anos de maneira simples e contemplativa.
Esse homem habilidoso e santo iria prestar mais um serviço
à Europa. Através de seu neto, Pepino II, ou Pepino de Herstal,
Arnulfo tornou-se o fundador de uma das grandes dinastias da
Cristandade: os carolíngios.
64 Dez datas que todo católico deveria conhecer

Pepino II

Corno mordomo do palácio do rei da Austrásia - a parte orien-


tal do antigo reino de Clóvis - Pepino II provou ser um líder mili-
tar eficiente, ao aumentar o poder de seu reino contra a Nêustria,
parte ocidental da Francia - outrora o centro do poder merovíngio.
No período em que foi mordomo do palácio, de 680 a 714, também
comandou a defesa contra as tribos do norte e do leste. Um dos gran-
des benefícios que forneceu ao seu povo foi encorajar a atividade mis-
sionária; foi ele que convidou o grande São Willibrord de Utrecht a ir
até a Bretanha e dar início a sua extraordinária missão entre os pagãos
nas áreas recém-conquistadas pelo mordomo, território hoje cons-
tituído por Bélgica, Luxemburgo, Holanda e partes da Alemanha.
São Willibrord fundou escolas e mosteiros, com o apoio dos gover-
nantes francos e do papa, e por fim foi eleito bispo da região na qual
havia trabalhado.

Carlos Martel

Quando Pepino morreu, foi sucedido por Carlos, em latim Caro-


lus (raiz do nome carolíngio), seu filho ilegítimo. O objetivo imediato
de Carlos era dar continuidade à política de defesa do território
da Austrásia iniciada por seu pai contra as incansáveis tribos que
atacavam as fronteiras. Assim como Pepino, ele também dependia
dos missionários para converter e domesticar os turbulentos povos
vizinhos. Além de São Willibrord, que era seu amigo e também fora
amigo de seu pai, ele foi ajudado por outro dedicado missionário
britânico, São Bonifácio, destinado a tornar-se mártir. O território
escolhido por esse grande santo foi a região germânica ao leste do
800 d.C. -A coroação de Carlos Magno, paí da Cristandade 65

Rio Reno, onde a ligação aos antigos deuses pagãos e a resistência


à conversão era particularmente forte.
Bonifácio era um apologista precoce e também evangelista;
seus argumentos contra os deuses pagãos dos germânicos demons-
tram sua astúcia e inteligência, assim como sua caridade. Na or-
ganização das atividades missionárias, Bonifácio promoveu uma
abordagem inovadora que teria consequências muito positivas.
Ele estabeleceu mosteiros em regiões isoladas em que os monges
iriam limpar as densas florestas e cultivar, pregar e ensinar. Campo-
neses eram atraídos para as terras limpas e aprendiam técnicas de
cultivo com os religiosos; vilas e paróquias se formaram; as florestas
não mais eram consagradas aos deuses pagãos, e as conversões aos
poucos aumentavam. Os monges desempenhavam o papel de pro-
fessores, médicos, conselheiros e traziam benefícios inestimáveis à
população do campo.
Carlos apoiava e encorajava tudo isso, ao mesmo tempo que
organizava e administrava de modo incansável o reino dos francos.
(Por certo tempo ele chegou a fazê-lo sem rei, e, ao que parece,
ninguém sentiu falta do soberano.) Entretanto, o seu maior desafio
chegara: os ataques muçulmanos contra a Francia.
Poucas décadas antes, uma grande onda de árabes, junto a seus
aliados do norte da África, havia caído sobre a Cristandade oci-
dental e oriental. No Ocidente, ela deparou-se com as populações
decadentes e ignorantes dos reinos bárbaros; na Espanha, os bárba-
ros sucumbiram rapidamente ao domínio muçulmano, a despeito
da resistência heroica em alguns locais. Somente nas montanhas
das Astúrias, ao norte, um pequeno grupo de católicos visigo·
dos conseguiu sobreviver ileso: foi esse grupo a semente da longa
Reconquista Espanhola, que triunfaria muitos séculos depois.
66 Dez datas que todo católico de•1eria conhecer

O Mediterrâneo agora era um lago muçulmano; a Itália era atacada


repetida.mente e as costas do sul encontravam-se desprotegidas.
Após conquistarem a maior parte da Espanha, os muçulmanos
invadiram os Pirineus rumo à Aquitânia - área ao sudeste da Fran-
cia que reconhecia, com intermitências, o domínio merovíngio. No
começo do século VII, o seu duque, Eudo, aliara-se a Carlos. Ele
agora se encontrava seriamente ameaçado pelos ataques muçulma-
nos e necessitava de socorro imediato. Carlos reuniu um exército,
convocado de todo o reino franco, e o fez em um curto período de
tempo; caso os francos permanecessem desordenados, o perigo que
se aproximava talvez os tivesse varrido dali - como já havia varrido
\(árias regiões outrora cristãs.

A Baralha de Tours salva a Europa Cristã

Bordeaux fora queimada e as tropas muçulmanas seguiam


rumo ao norte. Seus comandantes haviam ponderado sobre o
tipo de resistência que enfrentariam, e conta-se que subestima-
ram os francos. Tudo indica que isso de fato aconteceu, pois
quando perseguiram o Duque Eudo da Aquitânia - que havia
fugido - eles destruíram igrejas e saquearam suas terras sem pie-
dade. Logo se aproximaram de Tours e do grande túmulo de
São Martinho, acercando-se perigosamente das fronteiras da
Nêustria, cuja cidade principal era Paris. Foi ali, em algum lugar
entre Tours e Poitiers, que Carlos e os francos os combateram. Era o
ano 732, cem anos depois da morte de Maomé ter desencadeado o
furacão que ainda devastava o mundo civilizado.
Em vez de atacar, corno era o costume franco, Carlos pe-
diu a seus homens que tornassem posição. Eles vestiam roupas
800 d. C. - A coroação de Carlos Magno, pai da Cristandade 61

quentes - era um dia frio de final de outubro - e os muçulma·


nos provavelmente tremiam em seus trajes leves, que usavam des-
de que partiram da Espanha. Um escritor espanhol, chamado
de "Pseudo-Isidoro", relata que a ofensiva muçulmana contra a
linha de soldados francos chocou-se contra uma "parede de
gelo". A linha se manteve firme até o crepúsculo, quando a
batalha cessou. As forças cristãs, ao observar de longe as ten-
das dos mouros à luz da aurora do dia seguinte, presumiram
que a batalha continuaria. Porém, surpresos com o silêncio
no acampamento m1m1go, enviaram soldados para conferir.
O acampamento dos mouros fora abandonado. Parecia bom
demais para ser verdade, e por isso os francos procuraram-nos por
toda a redondeza. Logo viram que os mouros tinham de fato recua-
do. A batalha fora vencida. Quanto ao Duque Eudo, ele havia se
redimido da sua fuga, pois se uniu ao exército de Carlos Martel e ·
lutou bravamente.
Essa batalha foi crucial para salvar a Civilização Ocidental? É
verdade que o trabalho de expulsar completamente os bandos
muçulmanos para longe do sul da Francia levaria algum tempo;
o próprio Carlos mais tarde seria obrigado a confrontar um gru·
po deles na Burgúndia, perseguindo-os até o Mediterrâneo. Al-
guns historiadores tentaram diminuir a importância dessa batalha
argumentando que a expedição moura no norte fora apenas um
ataque repentino, que não intentava conquistar a Europa Ocidental.
Mas tal argumento é irrelevante. Caso o ataque tivesse êxito, não
há razão para se duvidar que à fragilidade dos francos se seguisse a
conquista. Por que acreditar que os conquistadores da Pérsia, Síria,
Espanha, Egito, Norte da África, entre outros locais, iriam parar,
se o caminho para Paris estivesse aberto? Em todo caso, eles foram
68 Dez datas que todo católico det'eria conhecer

derrotados em Tours e não tentaram um novo ataque. A Cristan-


dade comemorou o triunfo, e o prestígio de Carlos Marte!, ou
"o Martelo", como passou a ser conhecido após essa vitória, cresceu
bastante.
Quando Carlos morreu em 741, deixou as terras que go-
vernava para seus dois filhos. Um deles logo abdicou Jo trono
e se entregou à vida religiosa, e então o controle foi entregue ao
outro - Pepino, o Breve. (Havia um obscuro rei merovíngio em
algum lugar dos bastidores, mas, como de costume, ele estava ocu-
pado não fazendo nada.) O prestígio desfrutado pelo herdeiro de
Carlos Marte! era tão grande que, uma vez que Pepino havia derru-
bado as rebeliões costumeiras (a mudança de regime sempre gera-
va revolta entre os francos), ele recebeu todo o poder do reino da
Francia, embora ainda fosse apenas um mordomo do palácio.

Pepino, o Brei•e, reúne o reino sob as ordens de Deus

Pepino concebia o seu cargo de uma maneira que deve ter pa-
recido radical a seus contemporâneos. Os reis francos, assim como
os outros soberanos até então, haviam tratado as terras que gover-
navam como posses pessoais, usando-as para aumentar sua própria
riqueza e prestígio. Pepino, todavia, fora educado por monges cató-
licos e pensava de modo diferente. "A nós", ele declarou, "o Senhor
confiou o cuidado do governo." O conceito de que a tarefa de gover-
nar era uma obrigação sagrada, concedida por Deus a um homem
que devia agir como Seu administrador, implicava um conceito in-
teiramente novo de responsabilidade política. Ao adotar esse princí-
pio, Pepino se afastava do antigo domínio tribal e se aproximava da
monarquia católica.
800 d.C. - A coroação de Carlos Magno, pai da Cristandade 69

Em 751, ele deu outro passo adiante, quando enviou repre-


sentantes ao Papa Zacarias para apresentar uma dúvida moral pe-
rante a autoridade suprema da Igreja: era correto que um homem
que não exercia poder político algum recebesse o título de rei?
A resposta do papa foi negativa. Em consequência disso,
enviou-se o último merovíngio para um mosteiro, onde ele mor-
reu um ano depois. Em seguida, Pepino, o Breve, foi ungido pelo
Bispo São Bonifácio (prática que se tornaria costume sagrado
entre os monarcas franceses) e era agora rei.
Até a data de sua morte, em 768, Pepino trabalhou incansavel-
mente pelo seu reino e pela Igreja. O Papa Estevão li foi à Francia
em 754 para se encontrar com o rei e ungi-lo, dando a ele e seus
filhos títulos romanos anteriormente conferidos somente aos repre-
sentantes do imperador oriental. Pepino trabalhou juntamente com
Bonifácio contra a corrupção no clero e enviou ajuda a Roma a fim .
de libertar o papa dos ataques dos invasores lombardos. (Esses retar-
datários, uma tribo germânica que provavelmente havia restado das
últimas invasões que derrubaram Roma, estavam prestes a ocupar
grande parte do norte da Península Itálica. Eles seriam uma dor de
cabeça para o papado e para o Império Oriental por certo tempo.)
Pepino também ampliou os Estados Pontifícios ao doar territórios
que havia conquistado, visando aumentar a segurança do papa. Em
759, eliminaram-se os últimos muçulmanos presentes no extremo
sul da Gália, e os francos agora finalmente controlavam a sua cos-
ta do Mediterrâneo. Há até mesmo indicações de que Pepino ten-
tou elevar a cultura franca: ele solicitou ao papa livros em grego.
No geral, foi um rei bom e rico, um predecessor digno do seu filho
ainda mais grandioso.
70 Det datas que todo católico deveria conhecer

Entra em cena Carlos, o Grande

Depois da morte de Pepino em 768, seus dois filhos, Carlomano


e Carlos herdaram o reino. Três anos depois, Carlomano morreu
subitamente (no mesmo ano em que o corajoso Papa Adriano I, cujo
pontificado se entrelaçaria ao de Carlos Magno, substituía o Papa
Estevão IV, fraco e cercado de escândalos). Aos 29 anos, Carlos era
agora o único rei.
Diferentemente de seu pai, Carlos era alto e certamente gozava
de excelente saúde. Isso se comprova pela imensa quantidade de ba-
talhas em que se envolveu para proteger seu reino, liderando pessoal-
mente dúzias de operações militares e administrando muitas outras.
O seu talento militar, a sua inteligência, piedade, energia e devoção
à Igreja trouxeram-lhe a reputação de um dos maiores governantes
ocidentais de todos os tempos.
As suas operações militares - em torno de sessenta, metade das
quais ele liderou pessoalmente - são impressionantes por si sós.
Ele combateu os inimigos de seu reino em todas as frontes: os tur-
bulentos e traiçoeiros saxões no nordeste, os selvagens ávaros no
leste, os muçulmanos e bascos no sul. Os interesses de Carlos eram
os mesmos que os da Igreja, e por isso ele defendeu o papado contra
seus inimigos. Com efeito, uma de suas primeiras atitudes como
rei foi proteger o Papa Adriano I (e mais tarde também Leão III)
contra os lombardos. Uma operação militar contra os muçulma-
nos ao longo dos Pirineus foi uma das poucas que fracassaram;
Carlos Magno foi forçado a recuar de forma trágica para as monta-
nhas, evento imortalizado no poema épico A Canção de Rolando.
Carlos foi mais que um general habilidoso. Ao longo de seu go-
verno, administrado com sabedoria e organizado de forma eficiente,
800 d.C. - A coroação de Carlos Magno, pai da Cristandade 71

o território dos francos tomou-se verdadeiramente unido. Logo, não


se falaria mais de um reino, mas de um império; as áreas que não
faziam parte <lo reino franco acabaram ou conquistadas por Carlos
Magno ou tornando-se seus tributários. Alguns dos povos com os
quais Carlos Magno teve <le lutar não mais são lembrados hoje, mas
eram motivos <le lendas assustadoras no seu tempo.
Um <lesses povos eram os ávaros, habitantes da atual Hungria.
Esses nômades têm sido comparados aos hunos por sua ferocidade e
violência. Eles haviam atacado os eslavos e os germânicos na Europa
Oriental, porém cometeram um grave erro quando resolveram ata-
car a Bavária, que havia se aliado a Carlos Magno. O rei os expulsou,
e quando os eslavos, e pouco depois os italianos, os atacaram, eles
foram completamente dizimados. Desaparecerem como povo; seus
remanescentes se misturaram a outros povos orientais, deixando na
Hungria um tesouro escondido, recentemente escavado e revelado
ao mundo. As descobertas recentes revelaram os saques praticados
pelos ávaros em seus dias de glória. Eles se dirigiram ao Oriente e
alcançaram até mesmo territórios bizantinos; entre as descobertas há
também objetos mais primitivos, geralmente relacionados a cavalos,
o que é típico dos nômades das estepes. Se Carlos Magno não os
tivesse derrotado, a Europa Ocidental talvez precisasse de uma nova
reunião milagrosa com esses pretensos imitadores de Átila.
Em todas essas áreas, ele organizou uma estrutura governamen-
tal eficiente, permitindo que os vários povos que governava pre-
servassem suas leis, embora insistisse que todos adotassem certos
princípios. Antes de Carlos Magno, as leis tribais geralmente se
transmitiam de forma oral e, por isso, Carlos resolveu codificá-las;
depois ele as revisou e modificou sem comprometer suas caracterís-
ticas particulares. Deste modo, princípios cristãos agora integravam
72 De~ datas que todo católico detieria conhecer

os decretos que ele emitia para as diferentes tribos. Havia exigências


para que as autoridades locais administrassem a justiça através de
representantes confiáveis, para que os pobres não fossem oprimidos
e que os criminosos fossem levados a julgamento. A nova lei dos
saxões, um violento povo recém-convertido, enfatizava a renúncia do
seu passado pagão. Proibiu-se o culto a árvores e a outros elementos
da natureza, bem como o sacrifício humano e a queima de igrejas; o
batismo de crianças tomou-se obrigatório.
Carlos Magno editou outras leis, que incluíam desde regulamen-
tos monetários até tratamento de camponeses, impostos e questões
comerciais. Outras lidavam com assuntos da Igreja. Em 802, ele edi-
tou um decreto dirigido aos monges, exigindo-lhes que "evitassem
completamente a embriaguez e a festividade, pois todos sabem que
tais atividades poluem o homem com a luxúria". Ele expressa preo-
cupação com os relatos de imoralidade nos mosteiros - particular-
mente com o "rumor maligno" de que "alguns monges praticam a
. " - e promete que "caso ouçamos um novo re1ato sobre
sodom1a
isso, puniremos não só os culpados, mas também aqueles que con-
sentiram com essas abominações, a fim de que nenhum cristão ouse
. atos " .
cometer tais
A burocracia da realeza não se constituía só de francos;
Carlos Magno buscava homens talentosos por todo o império, não
apenas em seu próprio povo ou nas classes altas. Ele mantinha con-
trole sobre os locais mais distantes de seu território ao apontar ho-
mens em cuja lealdade confiava - os missi dominici -, que deviam
checar as condições ao longo de todo o império e reportá-las a ele.
800 d. C. - A coroação de Carlos Magno, pai da Cristandade 73

A revitalização do ensino

O devoto Carlos Magno - que assistia diariamente a Missa e


rezava as Vésperas - zelava pelo bem da Igreja, pela pureza dos costu-
mes clericais e, especialmente, pela educação do clero. Uma carta de
sua autoria (ditada, pois o grande rei que falava duas ou três línguas
não sabia escrever) dirigida ao Abade Baugulfo de Fulda ilustra sua
crença de que o futuro da Igreja estava ligado à educação:

Os bispados e mosteiros que a Igreja nos confiou (... ) devem


também zelar pelo ensino daqueles que graças aos dons de
Deus são capazes de aprender, de acorelo com sua capacidade
individual. De maneira que assim como a observância da regra
traz ordem e graça à integridade dos valores, o zelo pelo ensino
e o aprendizado deve ter o mesmo efeito nas frases. Portanto, ·
os que desejam agradar a Deus através de uma vida correta
não devem se abster de agradá-Lo também pela fala correta(... )
Porque, apesar de a conduta reta ser superior ao conhecimen-
2
to, o conhecimento precede a conduta.

O rei refere-se às cartas que recebia de vários mosteiros, nas


quais se encontrava "o pensamento correto em um fraseado rude"
(aqui não posso deixar de pensar nos trabalhos de alguns alunos) e
manifesta sua preocupação: "Se a habilidade na escrita for reduzida,
assim também será a sabedoria para compreender a Sagrada Escritu-
ra. Todos nós sabemos que, embora os erros de fala sejam perigosos,
muito mais são os erros de compreensão."

2. Carlos Magno, Carta para o Abade Baugulfo de Fulda.


74 Dez datas c1ue todo católico detieria conhecer

Ele então manifesta o desejo - ou ordem - de que se melhore


a educação nos mosteiros ao escolher "aqueles homens (... ) que
tenham tanto a vontade como a habilidade de aprender e que
possuam o desejo de instruir os outros". Daí surge a grande Re-
nascença Carolíngia.
A partir de então, com seu entusiasmo típico, Carlos tomou
providências para promover a educação e o aprendizado den-
tro do seu império. Aconteceu de certo Alcuíno de Iorque, es-
tudioso inglês de meia-idade e professor, que se dirigia a Roma,
encontrar Carlos Magno em Parma, na Itália. Ele soube do in-
teresse do rei por educação e admirou-se com seus esforços.
Eles conversaram por muito tempo. Os interesses em comum
fizeram com que Alcuíno fosse apontado como responsável
pela nova escola estabelecida no palácio de Carlos Magno em
Aachen (Aquisgrano), sua capital. Alcuíno não planejara isso para
seus últimos dias, mas dedicou-se ardentemente ao trabalho, ini-
ciou cursos e montou faculdades por toda a Europa. Os livros a
ser utilizados já estavam à espera nas bibliotecas dos mosteiros,
onde vinham sendo copiados havia séculos, apesar de não serem
mais compreendidos. (Alcuíno ainda teria uma terceira carreira
na sua velhice, quando pensava em se retirar para a vida monásti-
ca: ele tornou-se um grande bibliotecário e colecionador de livros
preciosos. Estudiosos, de modo geral, não conseguem parar de
trabalhar.)
Alcuíno e seus colegas se esforçaram para compreender os te·
souros de sabedoria contidos naqueles livros, uma tarefa que exi-
giu persistência, inteligência e trabalho sistemático. O vocabulário
do latim clássico precisava ser dominado; os termos e princípios
de ciências desconhecidas teriam de ser compreendidos; as defi-
800 d.C. - A coroaçào de Carlos Magno, pai da Cristandade 75

nições de termos teológicos deviam ser deslindadas e ponderadas.


Foi uma tarefa hercúlea, que levou muitos anos para ser concluída.
É preciso salientar a grandeza dessa tarefa, um raio de luz em
meio à escuridão cultural. Ao longo dos séculos anteriores, a heran-
ça cultural de Roma - outrora tão viva na Gália, Espanha, Bretanha
e todo o Império Romano - fora submersa pela maré das invasões
bárbaras. O ensino clássico e religioso sobrevivera em pedaços aqui e
ali, através de estudiosos individuais: Boécio e Cassiodoro na Itália;
São Beda, o Venerável, na Inglaterra, por exemplo. Nos séculos VI e
VII, porém, os homens considerados instruídos demonstravam um
baixo nível de alfabetização.
São Gregório de Tours, cronista dos merovíngios, conhecia suas
próprias limitações e, humildemente, se desculpava por elas:

Temo que, quando comeco


, a escrever sem conhecimento de re- '

tórica e gramática, as pessoas cultas me dirão: camponês analfa-


beto, esperas que teu nome seja contado entre o dos escritores?
Esperas que este trabalho seja aceito por homens experientes,
tu, que não discerne os substantivos, que com frequência con-
funde os gêneros, que usa mal as preposições e confunde o
ablativo com o acusativo? Parecerás um corvo entre os pombos!

Havia agora, pela primeira vez desde a queda de Roma, um


ataque coordenado contra a ignorância em todo o império, uma
campanha organizada para recuperar o conhecimento antigo e en-
sinar as suas técnicas - quase perdidas. A escola do palácio educava
meninos e meninas, e estabeleceram-se escolas primárias (também
para ambos os sexos) por todo o império. Acima de tudo, Carlos es-
tava atento às suas responsabilidades para com o bem-estar espiritual
76 Dez datas que todo católico deveria conhecer

de seu povo, e se preocupava seriamente com a instrução religiosa


que as pessoas recebiam. Em muitas áreas, esta era inexistente ou de
baixíssima qualidade. Havia escolas monásticas e clericais no século
VI, contudo, a maior parte delas desapareceu durante as revoltas
do século VIII. Em 794, um concílio local obedeceu aos desejos do
rei e estimulou os bispos a instruírem o seu clero. Os mosteiros de-
viam fazer o mesmo. O próprio Carlos Magno tomou aulas na escola
do palácio e ensinou matérias que conhecia. Era uma experiência
inebriante para o pequeno grupo de estudiosos, que não mais liam
os clássicos e estudavam na solidão, mas agora compartilhavam as
experiências com os colegas e avançavam no aprendizado de conhe-
cimentos quase perdidos.
Até mesmo a arte da escrita deu grandes passos com a
invenção da Minúscula Carolíngia, uma nova caligrafia, que tornava
a leitura muito mais fácil e formaria a base da escrita ocidental mo-
derna. Características que atualmente sequer damos valor - clareza
na forma das letras, ausência de ornamentos em excesso, distinção
entre letras maiúsculas e minúsculas, espaço entre as palavras - fo.
ram inovações da época de Carlos Magno. Em comparação com
alguns manuscritos romanos tardios, todos eles redigidos em letra
maiúscula e sem espaços entre as palavras, a Minúscula Carolíngia
foi um prodígio de clareza e uma grande contribuição para a arte
da escrita. A encadernação e a ilustração de livros, a composição
de poemas, cartas elegantes, obras de história, teologia e literatura
floresceram; nem todas as obras carolíngias são obras-primas, mas
representam um marco no restabelecimento da cultura ocidental.
Carlos Magno se interessou até mesmo por antigos contos germâ-
nicos transmitidos em vernáculo, que ele desejava transcrever e pre-
servar (aparentemente, ele também promoveu um projeto similar
800 d. C. - A comação de Carlos Magno, pai da Cristandade 77

em seus territórios de língua românica e francesa, mas essas obras


se perderam). Embora as suas contribuições tenham ultrapassado
os avanços citados, o renascimento realizado por Carlos já seria o
suficiente para dar-lhe o título de "Magno".

O nascimento de um novo império: a Cristandade

O reinado de Carlos Magno alcançou o ápice de sua glória 14


anos antes do seu declínio. Já em décadas anteriores ao ano 800,
estava claro para os observadores perspicazes que Carlos Magno era
algo novo na história do Ocidente; um deles o chamou de "o pai
da Europa". Ele foi muito mais do que um simples rei e, de fato, a
extensão do território que controlou era semelhante à do Império
Romano do Ocidente (à exceção da Espanha). Isso se comprova
no pensamento de muitos clérigos e nobres eminentes que acom- ·
panharam Carlos até Roma, no Natal do ano 800. Eles diziam que
Carlos devia receber o título de imperador. O Papa Leão concor·
dou, e o coroou naquele mesmo dia 25 de dezembro, na Basílica
de São Pedro.
Existem relatos divergentes a respeito de quem exatamente teve
a ideia, se Carlos ficou surpreso, ou se a coroação sequer o agradou.
Mas o que importa é que ela ocorreu. Pela primeira vez, desde o co-
lapso do poder romano no Ocidente, havia um homem que os po-
vos da Europa podiam enxergar como a única autoridade política,
sancionada pela Igreja e unificadora da maior parte do continente
europeu. A Igreja tinha a garantia de um protetor mais poderoso
que todos os antigos reis bárbaros. O crescimento da Igreja e o go-
verno eficiente do Estado iriam agora cooperar para a promoção do
bem-estar espiritual e temporal dos cristãos.
78 Dez datas que todo católico deveria conhecer

O mais importante é que não houve predomínio de uma es-


fera sobte outra. No final do século V, o Papa São Gelásio havia
previsto o perigo de o novo Império Romano ameaçar a Igreja
tratando-a como um mero departamento de Estado, e de fato pra-
ticou-se esse cesaropapismo no Império Bizantino. No Ocidente,
entretanto, preservou-se um equilíbrio delicado, ocasionalmente
perturbado por um dos lados, desde o tempo da coroação de Carlos
Magno. Preservou-se também a tradição dos papas coroarem os im-
peradores do reino que no século seguinte seria chamado de Sacro
Império Romano-Germânico.
Deste modo, a Cristandade Ocidental começava a tomar sua
forma definitiva. Seus povos integravam uma grande comunida-
de cristã. O seu centro não era mais o Mediterrâneo, mas o norte
da Europa, fora do alcance dos ataques muçulmanos que amea-
çavam até mesmo Roma. O seu grande canal seria o Atlântico.
O conceito do monarca católico como defensor da Igreja e promotor
do cristianismo, a ideia de um reinado moralmente responsável, a co-
operação entre Igreja e Estado, cada qual em sua esfera, constituíam o
novo mundo católico nascido sob o governo de Carlos Magno.
A Civilização Ocidental nasceu de três elementos: o cristianismo,
a cultura clássica e as tradições dos povos europeus. Esses elementos
formaram nosso patrimônio há tanto tempo que por vezes temos di-
ficuldade em acreditar que eles possam de fato ter se fundido. Após a
queda de Roma, o catolicismo poderia ter permanecido uma religião
geográfica e religiosamente limitada, cercada de bárbaros ao norte,
muçulmanos ao sul e cismáticos ao leste. As. poucas luzes culturais
que brilharam ao longo da Idade das Trevas poderiam muito bem ter
se apagado, e a ignorância teria triunfado entre os fiéis. O fato de a si·
tuação ter mudado tão profundamente deu-se em razão da Providên·
800 d.C. - A coroação de Carlos Magno, pai d.a Cristandade 79

eia de Deus, que ergueu seus defensores: os francos. Clóvis, Pepino o


Breve e Carlos Martel iniciaram a criação e a defesa da Cristandade,
mas foi Carlos Magno quem promoveu a fusão dos elementos ca-
tólicos, romanos e germânicos, os quais se tornaram nossa herança
perene. As fundações sobre as quais ele construiu eram tão fortes que
os desastres do final do século IX e do século X não as destruiriam,
e, na segunda metade do século XI, uma Europa ainda mais gloriosa
iria emergir, com a missão de influenciar todo o mundo.
910 d.C.
A fundação da Abadia de Cluny e o renascimento da
vida religiosa

o início do século X a Europa encontrava-se sob ataque. Há


N mais de cinquenta anos os povos europeus lutavam para defen-
der-se da terceira onda de invasões que os atingira desde a queda de
Roma. A primeira onda trouxe os germânicos e os hunos; a segunda,
os muçulmanos. Agora, o perigo vinha do noroeste com os vikings e
do leste com os magiares. Já antes da morte de Carlos Magno, inva-
sores dinamarqueses haviam saqueado as costas do norte, apesar de
(felizmente para o império, que não tinha para onde fugir) não terem
conseguido empreender um ataque de grande escala. Desde então,
as condições na Europa deterioraram em quase todos os aspectos.
O império de Carlos Magno passara do fraco governo de seu filho
para seus três netos. O território foi dividido entre eles de acordo
com os costumes francos. Um filho ficou com a parte ocidental, a
futura França, e outro com a área ao leste, que mais tarde se tornaria
a Alemanha. Ao terceiro, restou o "reino do meio" - uma longa fai-
xa de fronteiras instáveis que percorriam a Europa Central e seriam
disputadas pelos vizinhos até o século XX.
Os ataques vikings começaram na metade do século IX e
continuaram até o século X. Seus efeitos foram devastadores.
Esses saqueadores pagãos estavam acostumados a roubar e a re-
tornar para sua terra natal com riquezas e escravos, mas, por ra-
zões desconhecidas, eles agora começavam a se estabelecer em
algumas áreas que antes haviam apenas saqueado. (Dizer que
"haviam apenas saqueado" é ser brando; na Irlanda, em particular, e
82 Dez data$ que tudo católico deveria conhecer

nas costas da Inglaterra, eles levaram a cabo uma terrível devastação,


destruindo cidades, mosteiros e bibliotecas repletas de livros precio-
sos, além de escravizar muitos habitantes). Ao penetrar o sistema
de rios da Europa Oriental, alguns vikings encontraram o que mais
tarde seria o primeiro Estado russo (Kiev). Outros seguiram na dire-
ção oposta, atravessando o Atlântico até a Islândia, que colonizaram;
prosseguiram até a Groenlândia e possivelmente até a América do
Norte. Outros desceram a costa do Atlântico e, enveredando pelos
rios, alcançaram cidades como Paris. Contornaram também a Espa-
nha, adentrando o Mediterrâneo para atacar os alvos ali escolhidos.
Os povos atacados fugiam aterrorizados para o interior, e mui-
tas vezes se defrontavam com um destino ainda pior: os magia-
res, tribo de nômades, selvagens das estepes, que assolou a Europa
partindo do leste, no século IX. Eles chamavam a si mesmos de
húngaros, pois acreditavam ser descendentes dos perigosos hunos
do século V, embora na verdade não o fossem. Havia, entretanto,
similaridades entre eles. Os magiares montavam pôneis velozes e
eram arqueiros habilidosos; apareciam e sumiam de modo rápido
e imprevisível, antes que alertas pudessem ser emitidos. Partindo
do seu acampamento na Panônia (atual Hungria), eles invadiram
a Europa Ocidental, matando e saqueando ao longo do caminho.
Ao mesmo tempo, esquadras muçulmanas realizavam novos ata-
ques nas costas do Mediterrâneo.

Perigos para a Igreja

A situação na Igreja refletia o caos na sociedade. Em Roma, as


disputas entre os herdeiros de Carlos Magno interferiam na políti-
ca papal, a intromissão de poderosas facções italianas enfraquecia o
910 d.C. - A fundação da Abadia de Cluny 83

papado e cresciam os atritos com a Igreja Bizantina. No meio desse


tumulto, aumentava a influência dos leigos nas tarefas da Igreja. Em
grande parte, os motivos para isso eram as ameaças que a Europa
enfrentava de todos os lados. Diante das invasões e do colapso do
poder político vigente, surgiu uma nova forma de organização no
antigo Império Carolíngio. As pessoas não mais buscavam proteção
no imperador, mas no guerreiro e senhor de terras mais próximo. Se
os que buscassem proteção fossem camponeses, eles se disporiam a
viver nas terras do senhor e a cultivar para ele, mantendo apenas o
que precisassem para si e sendo então protegidos. O clero também
necessitava de proteção, e, para consegui-la, precisava ceder o con-
trole de propriedades eclesiásticas e tolerar a interferência secular
na administração de assuntos do clero local. Quanto aos guerreiros
que não tinham terras, eles iriam se aliar com algum senhor mais
poderoso em troca de partes do território ou de outros benefícios.
Deste modo, emergia das ruínas do império de Carlos Magno o sis-
tema conhecido como feudalismo, como uma maneira de saciar as
necessidades de uma época conturbada. Para a Igreja, isso assinalou
os primeiros esforços contra os poderes temporais que a controla-
vam - tarefa que duraria séculos.
Além da precária situação da Igreja em Roma, houve diver·
sos problemas durante esse período. Entre os francos, ou seja,
por todo o antigo Império Carolíngio, era comum que bispos e
outros membros do clero viessem de familias nobres e, portanto,
possuíssem grandes propriedades. Os seus interesses como líde-
res eclesiásticos frequentemente coincidiam com seus interesses
seculares. Em um Estado baseado em princípios católicos, como
era o de Carlos Magno, isso aparentemente não representava um
problema sério, mas logo se tornaria.
84 Dez datas que todo católico deveria conhecer

Um dos perigos era que as posses e os anseios temporais po-


diam engendrar mundanidade e lassidão entre o clero; outro era
que as propriedades e riquezas da Igreja podiam tentar a cobiça dos
senhores feudais. Os mosteiros se mesclaram ao sistema feudal, seus
abades eram escolhidos por governantes locais ou, em níveis mais
altos, por reis. Predominava a prática da simonia (venda de cargos
eclesiásticos), bispos e abades eminentes pagavam altas quantias para
os senhores feudais em troca de nomeação para os cargos desejados.
A desordem da época e o controle dos leigos contribuíram para o au-
mento da ignorância e da imoralidade no clero. Não era incomum
que padres fossem "casados" ou que vivessem com concubinas.
Os ataques podiam deteriorar até mesmo comunidades monás-
ticas decentes. Os membros dispersos precisavam defender-se sozi-
nhos e lutar para sobreviver. Quando conseguiam se reagrupar, não
eram mais os mesmos monges de antes. A recuperação da disciplina,
do ascetismo e do espírito da regra monástica se tornava demasiado
difícil, se não realmente incompatível, para homens que cresceram
acostumados a hábitos tão diferentes. O grande edifício espiritual da
Regra Beneditina - criada por São Bento no século VI e implantado
na maior parte dos mosteiros da Europa - não estava mais em vigor,
em decorrência da ignorância ou da corrupção. As poucas almas
devotas - de clérigos e leigos - que perceberam o mau estado da
situação não viam soluções para combater a difusa e diversificada
corrupção. Essa época dificilmente seria a mais adequada para o iní-
cio de uma grande renovação espiritual.

O milagre

Quem poderia, então, esperar o que ocorreu em seguida?


No ano 910, enquanto a vida religiosa chegava ao fundo do poço
910 d.C. - A fundação da Abadia de Cluny 85

e os magiares e vikings semeavam o pânico e a desordem entre


os povos do Ocidente, fundou-se um mosteiro na Borgonha.
Não havia nada de surpreendente nisso, o que causava surpresa
- uma divina surpresa, pode-se dizer - foi, em primeiro lugar,
que um leigo o havia fundado, por motivos puramente espiri-
tuais; em segundo, que logo após fundá-lo, renunciou a todo
controle sobre ele. Tal atitude não tinha precedentes. Naquela
época, as casas monásticas geralmente se situavam nas proprie-
dades dos antigos abades que descendiam de famílias nobres.
Os mosteiros eram conhecidos havia muito tempo por suas técnicas
agrícolas pioneiras, que, combinadas com a disciplina e diligência
dos monges, tornaram algumas casas monásticas muito ricas. Além
do mais, muitos leigos devotos (ou penitentes) deixavam heranças
aos mosteiros, sob a forma de terras, dinheiro, edificações, objetos
sagrados de grande valor ou equipamentos. Tudo isso contribuiu
para aumentar-lhes a riqueza.

O duque e o abade

Todavia, o novo mosteiro fundado em 910 não estava submeti-


do ao controle secular. Isso não teria muita importância caso seus
abades e monges se assemelhassem a outros abades e monges da
época, que buscavam uma vida fácil, prazerosa e confortável - tal-
vez até lucrativa - nos mosteiros. Mas havia uma terceira surpre-
sa divina: o primeiro abade do novo mosteiro foi um santo. Além
disso, foi sucedido por uma longa linhagem de abades santos, todos
canonizados ou beatificados. Eis a história da Abadia de Cluny.

Desejando, enquanto é tempo, tomar medidas para minha sal·


vação, achei justo e mesmo necessário dispor, para proveito de
86
Dez datas qur todo católico deveria conhecer

minha alma, de algumas possessões temporais que me foram


concedidas (. .. ) Faço saher que por amor de Deus e do nos-
so Salvador Jesus Cristo, dou e entrego aos santos apóstolos
Pedro e Paulo a vila de Cluny (. .. ) Todos os monges e bens
estarão sobre a autoridade do Abade Bernon, até o fim de sua
vida. Após sua morte, os religiosos terão o poder de eleger li-
vremente, de acordo com a regra de São Bento, um novo aba-
de, sem o impedimento de qualquer autoridade externa (. .. )
Deste dia em diante os monges unidos na congregação de
Cluny estão libertos do nosso poder, do dos nossos parentes e
da jurisdição do rei, e nunca se submetam ao jugo de qualquer
poder terreno, nem ao de nenhum príncipe secular, conde ou
bispo, nem ao do Pontífice da sé Romana, mas apenas a Deus
(... ).1

Essa carta, que representa um marco, foi redigida em 11 de


setembro de 910. O seu autor foi um homem do qual pouco se
sabe: Guilherme, o Piedoso, Duque da Aquitânia. Ele era neto da
famosa Dhuoda, que viveu na metade do século anterior e perten-
cia à aristocracia carolíngia. O marido dela e seu filho mais velho
foram executados pelo rei Carlos II (o Calvo), que os acusou de trai-
ção; Bernardo, porém, o segundo filho, sobreviveu e foi o pai de
Guilherme, o Piedoso. Em 84 3, Dhuoda completou o seu Manual,
esçríto para seu filho mais velho. O tema da obra é o comporta-
mento ideal de um cavaleiro dentro do sistema feudal, e contém
conselhos práticos sobre os deveres recíprocos entre senhores e ser-
vos. A preocupação primordial, contudo, era com a vida espiritual

1. Carta da fundação da Abadia de Cluny, Duque Guilherme, 910 d.C.


910 d.C. -A fundação da Abadia de Cluny 87

de seu filho, ao qual ela relaciona seus deveres mundanos. Ela o


estimula a "renascer em Cristo todos os dias", e a "sempre crescer
em Cristo". O Manual foi bem conhecido na sua época, e prova-
velmente a profunda devoção de seus ancestrais ajudou o Duque
Guilherme 1 da Aquitânia a se tornar Guilherme, "o Piedoso".
(Ao que parece, a mãe de Guilherme, Ermengarda de Hesbaye,
também foi uma mulher piedosa; ela fundara uma abadia na cida-
de de Besle, em Auvergne, por volta de 885.)
Por vezes lê-se que a data da fundação da Abadia de Cluny foi
909, e não 910. É muito provável que essa diferença decorra de
um erro de cópia, mas também pode ter relação com as negocia-
ções a respeito da nova empresa, que possivelmente durou mui-
tos meses, antes de setembro de 910. Guilherme, antes de tudo,
precisava encontrar monges que estivessem dispostos a aceitar
a sua proposta. Felizmente, havia um pequeno grupo à procura
exatamente daquilo que ele planejava. São Bernon, que vinha de
uma família nobre da Borgonha, foi por si só uma grande força
reformadora, mesmo antes de conhecer o duque. Ele fundara,
cerca de vinte anos antes de 910, um mosteiro exemplar na sua
propriedade de Gigny e, em seguida, tornou-se monge da Abadia
de São Martinho de Autun, onde aprendeu sobre as práticas e o
espírito da ordem beneditina. Dali, seguiu para reformar a Aba-
dia de Baume Les Messieurs, um projeto financiado pelo rei da
Borgonha. A sua energia e determinação levaram-no até Roma,
onde obteve do Papa Formoso uma bula que permitia aos mon·
ges de Baume Les Messieurs eleger livremente o seu abade e os
isentava de pagar impostos eclesiásticos.
Só isso já era um feito extraordinário. Pretendentes correràm
para essas duas casas monásticas, famosas por serem das mais
88 Dez datas l[ue todo católico deveria con~cer

sérias e fiéis à Regra de São Bento. Logo São Bernon precisou de


mais espaço, e por volta do ano 909 ponderou sobre pedir ao Du-
que Guilherme uma casa localizada em suas terras, em Cluny. No
ano seguinte, Guilherme assinou, na presen~'ª de vários bispos e
leigos, a famosa carta, e o novo estabelecimento - que alojou os
monges de Gigny e Baume Les Messieurs - se tornou uma reali-
dade.
Algumas fontes afirmam que o Duque Guilherme nessa época
já era idoso (ele morreu em 918) e que no ano 910 acreditava que
morreria em breve. Em contrapartida, nessa data São Bernon apenas
começava seu governo histórico de 16 anos naquele que se tornaria
o maior mosteiro de seu tempo.

São Bemon difunde o zelo por reformas

O primeiro abade de Cluny esteve inicialmente preocupado em


estabelecer com firmeza as prescrições da Regra de São Bento, as
antigas tradições beneditinas e seu modo de vida. Em pouco tempo
a Abadia de Cluny se tornou um mosteiro exemplar, e noviços eram
atraídos pela reputação de santidade do local. Doações de admirado-
res leigos também chegavam (embora o mosteiro muitas vezes tivesse
dificuldades em sustentar o crescente número de monges). Ainda
assim, o trabalho de Bernon não havia acabado. Muitos príncipes
e senhores locais pediam-lhe que dirigisse os mosteiros que haviam
fundado, ou os que pretendiam fundar. Um desses foi um servo
do Duque Guilherme, que fundara urna casa religiosa em 917 e
deu-lhe os mesmos privilégios que Guilherme dera à Abadia de
Cluny. O santo abade tinha mais trabalho do que podia aceitar,
pois, segundo o direito canônico da época, um abade não podia
910 d.C. - A fundação da Abadia de Cluny 89

dirigir vários mosteiros ao mesmo tempo. Na prática dava-se pouca


atenção a essa cláusula e, além do mais, senhores poderosos vinham
juntando casas religiosas a suas terras havia muito tempo. O mais
honrado desses senhores percebera a corrupção em grande parte dos
mosteiros e implorou a São Bernon que os dirigisse, a despeito do
direito canônico.
Assim, aumentou a prática de leigos cederem o controle dos
mosteiros, por períodos longos ou curtos, à Abadia de Cluny. Uma
colônia de monges cluniacenses seria então enviada a outras casas
monásticas, para que reformasse os abusos e instituísse a obediência
completa à Regra de São Bento. A ligação de São Bernon com essas
casas era apenas pessoal; ele não tomou medidas formais para uni-
ficá-las, e, antes de morrer, dividiu o governo de suas casas originais
entre os companheiros mais próximos.

Santo Odon: a maior força religiosa de seu tempo

Bernon passou o governo da Abadia de Cluny para Santo Odon,


que a governaria por 26 anos. Durante o seu governo, a reforma
cluniacense atravessaria as fronteiras da Borgonha e da Aquitânia
e se espalharia por quase toda a Europa. Além de místico e asceta,
Odon era também um homem de ação: ele viajou bastante, con·
seguiu implantar reformas nas propriedades de numerosos leigos,
visitou muitos mosteiros e deu atenção aos monges interessados na
reforma de suas casas monásticas. Quando partia, deixava grupos de
monges cluniacenses encarregados de dar continuidade às reformas.
Nem todos os mosteiros desejavam ser reformados. Há o exemplo
da Abadia de Fleury, às margens do Rio Loire. O conde que governava
a propriedade havia convidado Santo Odon para refom1ar o mosteiro.
90 Dez datas que todo católico det eria conhecer
1

Esta era uma daquebs comunidades cujos monges haviam se disper-


sado em razão dos ataques vikings e tiveram dificuldades para se reu-
nir. Era também estimada pelos beneditinos, pois continha valiosas
relíquias de São Bento. Ao aproximar-se desse mosteiro, Santo Odon
deve ter se surpreendido ao ver os monges armados e posicionados
nos telhados e portas. Provavelmente esses irmãos haviam passado por
tempos difíceis durante os ataques dos vikings, e, quando finalmente
conse1;-ruiam se reagrupar, desejavam recuperar o modo de vida que
praticavam anteriormente. Mas então, logo quando tentavam retomar
a normalidade, surge um monge desconhecido cuja missão era mudar
as coisas radicalmente, lutando pela causa de uma "reforma" moder-
na. A atitude dos monges é compreensível.
Após três dias de discussão, Santo Odon desistiu de argumen-
tar. Ele corajosamente montou um burro e seguiu rumo ao portão
principal. "Venho em missão de paz" disse ele em voz alta, "não
farei mal a ninguém, cuidarei apenas de reformar a vida monástica
dessa abadia". A sua santidade e carisma eram tão evidentes, que os
monges abriram o portão e deixaram-no entrar, e essa casa rebelde
transfom10u-se de tal maneira que é considerado o mosteiro refor-
mado mais influente depois da Abadia de Cluny.
A única autoridade a que a Abadia de Cluny se submetia era a
Santa Sé. Isso obrigava Santo Odon a ir periodicamente a Roma,
onde Alberico 1, Duque de Spoleto, exercia grande influência.
O poder da personalidade de Odon era tão grande, que o pró-
prio duque se uniu à causa da reforma e deu ao abade autorida-
de sobre diversas comunidades e igrejas romanas. Ironicamente,
ou talvez como urna homenagem adequada, Odon reformou o
Mosteiro de Subiaco, local em que São Bento viveu em uma caverna
e atraiu seguidores.
910 d.C. -A fundação da Abadia de Cluny 91

Proposta mais difícil foi a de reformar a Abadia de Farfa, pró-


xima a Roma, a qual Alberico desejava que Santo Odon corrigis-
se. O antigo abade de Farfa tentara impor a Regra de São Bento
ali, no entanto acabou envenenado por dois monges, um dos quais
- um homem chamado Campo - tornou-se o novo abade. Ele e seu
cúmplice de assassinato viviam no mosteiro com suas esposas e seus
filhos. Outra tentativa de reformar o local expulsou Campo, mas o
novo abade também terminou morto por envenenamento. Quanto
a Odon, nunca lhe foi possível entrar em Farfa, e somente após a sua
morte o local foi finalmente reformado - com o uso de força militar!
A criação da Abadia de Cluny foi tão bem-vinda que se tomaram
extraordinárias providências em seu favor. Em resposta a um pedido
de Santo Odon, o Papa João XI emitiu uma bula em 931 na qual
declarava, entre outras medidas, que, "esse mosteiro, com todas as
suas posses atuais e futuras, estará livre de qualquer autoridade de
reis, bispos, condes ou quem quer que seja, até mesmo do Duque
Guilherme (nesta época, Guilherme II, o primeiro sobrinho e su-
cessor de Guilherme, o Piedoso). Ninguém, portanto, deve ousar
indicar superiores aos monges contra sua vontade; os monges devem
ter plena liberdade de escolher quem deve guiá-los, de acordo com
a Regra de São Bento, sem necessidade de consultar autoridades
externas (. .. )"
A Igreja também se certificou de que o mosteiro tivesse renda
suficiente, garantiu aos monges o direito de consumir tudo o que
cultivassem nos seus campos e vinhedos, e, até mesmo - o que nos
permite entrever as várias atividades em que os monges estavam en-
gajados - forneceu subsídios para o hospital de Cluny. Eles tinham
até suas próprias moedas, "como nosso filho Rodolfo, rei dos fran·
cos, garantiu-lhes". Em seguida, diz a bula, "como se sabe, a maioria
92 Dez e.latas que todo católico deveria conhecer

dos mosteiros se desviou de sua vocação. Por isso, garantimos que, se


um monge qualquer de um mosteiro qualquer desejar ingressar em
vossa comunidade, e tiver como único desejo melhorar a sua vida e
se, evidentemente, vier ele de um mosteiro em que seu abade tenha
negligenciado as prescrições da Regra de São Bento (... ) vós deveis
recebê-lo; até que a vida do mosteiro dele seja corrigida. Portanto,
também vos garantimos a imunidade( ... ) Ninguém, de maneira al-
guma, tem o direito de remover ou ocupar vossa propriedade sem
vos consultar."
Encarregado de toda a empresa da reforma monástica, Santo
Odon mais tarde obteria privilégios similares do Papa Leão VII, em
938. Na época de sua morte, em 942, ele havia se tornado, como diz
um historiador, "a maior força religiosa de seu tempo".

Outros abades santos levam adiante o trabalho de Cluny

Santo Odon foi sucedido pelo Beato Aymard, que continuou a


obra do seu grande predecessor durante a maior parte dos oito anos
que ainda viveria. Quando começou a ficar cego, ele ofereceu o car-
go a São Mayeul. O abade seguinte e seus sucessores, todos santos,
foram abençoados com uma longevidade extraordinária, que possi-
bilitou a continuidade e a harmonia de todo o projeto cluniacense.
São Mayeul implorou em vão para não ser feito abade. Uma
vez estabelecido no cargo, serviu fielmente a causa da reforma por
quarenta anos. Ele desfrutou de grande prestígio e influência com os
imperadores - o imperador Oto I propôs até elegê-lo papa - e outros
governantes leigos, entre eles Hugo Capeto, fundador da dinastia
capetiana na França. Assim como Santo Odon, São Mayeul viajou
bastante, expandindo o raio de influência da Abadia de Cluny entre
910 d.C. - A fundação da Abadia de Cluny 93

os mosteiros da Europa e corrigindo as propriedades que haviam


sido reformadas por Santo Odon, mas que haviam retomado ao es-
tado anterior. Certa vez, quando ele e sua comitiva foram cercados
e capturados por invasores muçulmanos nos Alpes, o seu resgate
foi rapidamente pago e as autoridades locais logo formaram uma
aliança que eliminou o grupo invasor. O seu sucessor escreveu a
seu respeito: "Os reis e os soberanos da terra o chamam de senhor e
mestre. De fato, ele era o soberano da religião monástica."
Santo Odilon, segundo sucessor de Santo Odon, foi o quinto
abade de Cluny, e governou por mais tempo ainda: de 994 a 1048.
Durante o seu governo, a Abadia de Cluny alcançou talvez o ápice
de seu poder e influência. Também viajante, como os seus prede-
cessores, e familiarizado com os poderes políticos da época, ele se
correspondeu com reis que não pôde visitar pessoalmente, como
Santo Estêvão da Hungria, o primeiro rei católico desse país. Du-
rante o seu tempo, reformas paralelas, em grande parte inspira- ·
das no seu exemplo, estavam em andamento na Alemanha e na
Inglaterra.
Anteriormente, o laço entre os mosteiros reformados e a Aba-
dia de Cluny fora somente o da obediência ao abade cluniacense.
No governo de Santo Odilon, essa associação distante praticamente
tornou-se uma nova instituição: uma nova ordem ou congregação
religiosa. As casas afiliadas eram governadas por priores, que, em
troca, deviam obediência ao abade de Cluny. Desse modo, eles pude-
ram contra-atacar um perigo inerente à organização beneditina origi·
nal. Diversas casas monásticas autônomas, como os primeiros mos-
teiros beneditinos, situavam-se em locais isolados, o l}Ue as tornava
vulneráveis à interferência de leigos durante os períodos conturbados.
Se elas se tornassem negligentes ou corruptas, não haveria nenhuma
94 Dez datas que todo católico deveria conhecer

autoridade para supervisioná-las com regularida<le. Quando o siste-


ma de Cluny corrigiu esse problema, criou-se um organismo forte e
unido a serviço da Igreja.
Santo Odilon foi sucedido - em uma linhagem talvez única na
História, em razão da baixa longevidade da época - por outro santo
longevo. São Hugo foi o sexto abade e reinou por quase 60 anos,
até 1109. A ordem beneditina vivia talvez o ápice de seu prestígio,
e ele ajudou a difundi-la por áreas anteriormente desconhecidas.
Hugo foi também responsável por iniciar, em 1088, a construção
da grande e famosa igreja chamada de Cluny III (pois era a tercei-
ra igreja do mosteiro, substituindo estruturas antigas). Foi uma das
maiores igrejas da Idade Média, embora só saibamos disso mediante
provas arqueológicas e registros da época. É uma pena que tanto a
igreja como outras edificações de Cluny tenham desaparecido quase
por inteiro.

O movimento de Cluny prepara uma grande renovação na Igreja

O êxito de Cluny exigiu a cooperação de tantos elementos


díspares- leigos exigindo reformas morais no clero, reis encorajando-
as, papas execuntado-as - que a sua coesão e triunfo parecem ter
sido um verdadeiro milagre. Os monges de Cluny não imaginavam
o efeito de suas ações quando primeiro se dedicaram a levar uma
vida puramente monástica e a escapar da influência corruptora
do controle secular. A preocupação deles com a castidade era uma
condenação implícita da imoralidade clerical. Entretanto, o combate
efetivo contra os pecados de fornicação e pederastia entre o clero
seria executado pelos bispos, pregadores e papas. Do mesmo modo,
a resistência ativa contra as investiduras dos leigos nos níveis mais
910 d.C. -A fundaçdo da Abadia de Cluny 95

altos da Igreja só seria realizada mais tarde, apesar de a Abadia de


Cluny ter sido o primeiro mosteiro a se livrar do controle secular. O
grande esforço de reforma eclesiástica e social alcançará seu clímax
um século depois, tendo sido fruto das sementes plantadas pelos
monges cluniacenses. Na verdade, seria um homem que viveu e
estudou em Cluny, Hildebrando (futuro Papa São Gregório Vll),
que levaria o movimento da reforma à consecução e o difundiria por
toda a Igreja.
É fácil acompanhar a linha de progresso depois que tudo estava
feito, desde o projeto de Guilherme I em 910, ao triunfo de Gregório
VII no final do século seguinte. Todavia, mesmo no período
conhecido pelos historiadores como a "Era de Gregório", nada
estava assentado, e o progresso parecia longe de seguir um caminho
consistente. Falsos comecos, iniciativas fracassadas e recaídas foram
parte de um longo e cansativo esforço. Entretanto, o objetivo seria
alcançado; e a sua gênese foi a inspiração e santidade da Abadia
de Cluny.
--

1000 d.C.
Início da era mais gloriosa da Igreja

historiador Anselmo de Líege conta que, em 968, o rei germâ-


O nico Oto I, acompanhado por um bispo, liderava seu exército
em uma campanha quando a luz do sol começou a sumir e a escu-
ridão se irradiou pela Terra. Imediatamente, os valentes guerreiros
entraram em pânico e, aterrorizados com a chegada do que acre-
ditavam ser o Juízo Universal, tentaram esconder-se onde podiam,
até mesmo em barris e embaixo das carroças. Apenas o bispo não
se perturbou, já que conhecia algo de astronomia, e prometeu aos
homens amedrontados que o sol logo retornaria.
Não conheço nenhum historiador moderno que aceite o antigo
mito de que havia uma expectativa generalizada da chegada do fim
do mundo às portas do ano 1000. Os documentos da época simples-
mente não fornecem bases para essa tese.
No entanto, sem dúvida há certa dose de medo e pessimis-
mo nos escritos do século X, o que é compreensível, em razão das
guerras devastadoras, invasões e penúrias da época. A despeito da
emergência da Abadia de Cluny, o estado da Cristandade declinava
vertiginosamente em quase todos os aspectos. O caos trazido pelas
incansáveis incursões bárbaras havia desorganizado a vida diária, o
governo, a agricultura, a educação e a religião na maior parte da Eu-
ropa. Alguns escreveram sobre cometas e outros temíveis presságios
prestes a castigar o mundo; houve também aumento do interesse
sobre o tema do Anticristo.
Mesmo assim, graças ao trabalho do Renascimento Carolíngio,
ainda se transmitia o ensino e a cultura. Portanto, essa época não foi
98 Dez datas 1/tte todo católico det•eria conhecer

tão tenebrnsa quanto o período seguinte à queda de Roma, e, após


a virada do milênio, h<i sinais da difusão de um novo espírito. Em
IOI.3, Tiethmar de Merseburg escreveu que "uma manhã radiante
alvoreceu sobre o mundo". Raoul Glaber, que geralmente escrevia
sobre presságios sombrios, observa na mesma época: "O mundo,
renovando-se e perdendo a sua idade antiga, cobria-se em todos os
lugares com o branco manto das igrejas." Esta é uma observação
interessante. As novas igrejas não se pareciam com as pobres estru-
turas de madeira dos tempos de convulsão social, em que não havia
nem recursos nem razôes para se construir algo mais refinado, pois
a probabilidade de serem destruídas durante as invasôes era grande.
As novas igrejas, altas, robustas, feitas de pedra branca, brilhavam
sob a luz do sol e podiam ser vistas a quilômetros de distância. Elas
foram o símbolo de uma grande mudança, o prenúncio de uma nova
e gloriosa era.

As raízes materiais de uma nova cultura católica

Dois fatores de ordem material sustentaram o que seria a civili-


.
zacão da Idade Média Plena 1: o fim das invasões bárbaras (à excecão .
dos ataques muçulmanos no sul) e a revolução na agricultura, que
foi um dos pontos de mudança da história da economia europeia.
Já que um nível mínimo de prosperidade material é necessário para
qualquer avanço cultural (homens vivendo no nível de subsistência
não têm tempo nem meios necessários para a criatividade), o pro-
gresso econômico se fazia necessário para que a civilização europeia
pudesse se recompor dos danos sofridos no século anterior.

1. Séculos XI a XIII. (N. do T.)


J!! 1
1000 d.C. - Início da era mais gloriosa da Igreja 99

Tal como outras realizações dos séculos XII e Xlll, a revolução


agrícola teve suas fundações assentadas no tempo de Carlos Magno.
Durante e após o seu reinado, implantou-se a prática de alqueivar
parte da terra, ou seja, mantê-la sem cultivo para que ficasse mais
fértil; isso possibilitava o aumento das safras quando se semeasse o
solo tempos depois. Redescobriram-se antigas tecnologias romanas,
como a roda-d' água, e invenções como o arado e o cabresto facili-
taram o cultivo do pesado solo do norte. Carlos Magno encorajara
o comércio dentro do seu império e até mesmo além dele, fomen·
tando deste modo o aumento da classe de mercadores que futura·
mente estimularia a atividade econômica. Na metade do século XI,
em muitas partes da Europa realizavam-se feiras nas quais artesãos e
mercadores ofereciam seus produtos. As vilas cresciam, os artesãos
prosperavam e os mercadores aumentavam seus armazéns. O povo
·europeu começava a experimentar a vida urbana uma vez mais desde
a queda de Roma. Vilas se transformavam em cidades, e estas, em
troca, se tornavam os centros que dariam à luz catedrais, universida·
des, hospitais e monarquias cada vez mais eficientes.
É claro que o florescimento da Cristandade não ocorreu da noi·
te para o dia. A despeito do progresso na agricultura, houve fome
ao longo de quase toda a metade do século XI. Seria preciso esperar
mais de um século para que a Igreja fosse efetivamente reformada e
libertada do poder secular. As notícias do Oriente não eram boas,
pois os conquistadores árabes da maior parte do Império Bizanti-
no - que abrangia a Terra Santa - deram lugar aos temíveis turcos
seljúcidas. Somente no final do século, com a Primeira Cruzada, em
1095, a Europa conseguiria reunir uma grande expedição militar
contra os muçulmanos. Apesar desses problemas, após o ano 1000
a Cristandade havia entrado na sua era mais gloriosa.
100 De:t. datas c/ue todo católico det•eria conhecer

Abundância de graças

Durante os três séculos seguintes, o clima manteve-se favorável


à produ,·ãn agrícola. (À exceção de séculos recentes, as condiçóes e
mudanças climáticas do passado são pouco conhecidas. Há indícios,
todavia, de que o clima europeu foi mais quente durante os períodos
da Idade Média Baixa e Idade Média Plena do que depois. No século
XIII, por exemplo, cultivou-se uva na Inglaterra e trigo em grande
parte da Noruega; um século depois, não mais era possível cultivá-los
nesses países.)
A Europa Ocidental se mantinha livre de grandes invasões es-
trangeiras, as reformas da Igreja triunfavam e os países da Europa
viam o surgimento de governos fortes e eficientes - muitos governa-
dos por santos - como não se via havia séculos. O aprendizado e as
artes floresciam de uma maneira vista somente, talvez, em Atenas,
no século V a.C. O gótico, o primeiro estilo arquitetônico que surgi-
ra após 700 anos, é uma evidência da grande originalidade cultural
da Idade Média Plena, e, na esfera intelectual, ele pode ser equipa-
rado às obras sublimes dos filósofos escolásticos, como Santo Tomás
de Aquino e São Boaventura. A ciência, as artes plásticas, a música,
o pensamento político e a religiosidade floresceram como nunca an-
tes entre os anos 1000 e 1300.

Uma cultura verdadeiramente católica

A inspiração para esse período de criatividade e realizações foi


a Fé. Os princípios que moldaram a política, a economia, a filoso-
fia, a literatura e outras manifestações culturais, as atitudes do ho-
mem em direção a tudo na vida, derivavam do catolicismo. lsso não
1000 d.C. - Início da era mais gloriosa da Igreja 101

significa que todo católico medieval era santo; eram pecadores


como nós, e havia malfeitores de sobra, como houve em todas
as épocas. Porém, diferentemente dos tempos atuais, a maioria
dos pecadores e bandidos tinha consciência de que de fato eram
pecadores. Exceto nos casos de hereges extremados, o católico me-
d ieval não fingia possuir uma nova espécie de santidade. A Idade
Média Plena foi o período em que a doutrina e a devoção católi-
cas inspiraram a vida pública e privada de modo mais profundo.
Foi o mais perto que se chegou do reino visível de Cristo Rei na
Terra.

Os reis do Ocidente

Em relação aos reis da Cristandade, na época da virada do


milênio, os governantes dos três principais Estados do Ocidente
(Inglaterra, França e Alemanha) lutavam para afirmar a sua auto-
ridade dentro de seus reinos e defender-se de ataques externos.
A Inglaterra ainda enfrentava ataques dos vikings ao norte e foi
invadida após a morte do rei São Eduardo o Confessor, segundo
testemunhas, por homens do norte que haviam se estabelecido na
Normandia, a oeste da França, e ali se civilizaram e converteram
ao catolicismo. Guilherme da Normandia, agora Guilherme l da
Inglaterra, transformou seu novo reino em um forte Estado feu-
dal onde encorajou reformas eclesiásticas.
A linhagem de Carlos Magno deu lugar, tanto na França
como na Inglaterra, a novas dinastias. No século XI, os reis
franceses controlavam apenas territórios circunjacentes a Paris.
Na metade do século XIII, a sua paciente afirmação de au·
toridade sobre uma área cada vez maior valera a pena, e a
102 Dez datas que todo católico dewria con~cer

França se tornou o reino mais próspero, poderoso e culto do


Ocidente, tendo como soberano um dos maiores reis da
História - São Luís IX.
Os imperadores germânicos, por outro lado, perseguiam três
objetivos que não conseguiram alcançar: pretendiam suhjugar os
barôes independentes da Alemanha, controlar a influente Igreja e
incorporar a Itália, inclusive Roma, ao seu Sacro Império Romano.
Se tivessem se contentado com os seus territórios, talvez conseguis-
sem desenvolver o tipo de Estado-nação que os reis da Inglaterra e
da França haviam criado. Mas, logo que deixavam a Alemanha para
lutar com os italianos, o que fizeram rotineiramente ao longo dos
séculos XI, XII e Xlll, revoltas irrompiam em seu território. E toda
vez que atravessavam os Alpes, retornando à Alemanha para conter
as revoltas, os italianos conseguiam se livrar do seu domínio. Além
disso, os seus esforços constantes de dominar a Igreja - entre os
quais as tentativas de controlar as eleições papais -, aumentaram o
conflito entre clérigos e leigos e motivaram os reformistas eclesiásti-
cos, que provariam ser os seus grandes antagonistas, como veremos
a seguir.

Guardiões do reino celeste: os papas

A influência católica na cultura medieval e as extraordínárias


realizações que ela possibilitou só poderiam se manter mediante a
vigilância incansável da Igreja institucional. O movimento inspirado
pelo trabalho da Abadia de Cluny integrou o esforço de eliminar os
escândalos de dentro da Igreja. Monges dedicados conseguiram al,
cançar objetivos nobres (vida casta, fidelidade à Regra, libertação do
controle secular) dentro das casas religiosas e exercer uma influência
1000 d.C. - Início da era mais gloriosa da Igreja 103

benéfica na sociedade, porém alguns dos piores abusos da época


estavam além do seu alcance. Somente os papas tinham poder
suficiente para combater o problema da simonia (compra e venda
de cargos eclesiásticos), porque amiúde os transgressores mais no-
tórios e escandalosos eram os bispos. O problema da intromissão
dos reis em assuntos eclesiásticos, entre estes a escolha e deposi-
ção de papas, também só podia ser combatido na esfera papal.

Papa São Leão IX: a reforma precisa vir do topo!

Um dos marcos do movimento pela reforma pontifícia ocor-


reu na metade do século XI com o pontificado do Papa São Leão
IX. Grande admirador da Abadia de Cluny, ele tentara introduzir
prindpios cluniacenses na sua diocese quando ainda era o bispo
Bruno de Toul. No momento em que o trono papal ficou vacante,
em 1049, o imperador Henrique III, dando continuidade a uma,
prática de longa data, elegeu Bruno como papa, seguindo o con-
selho do clero germânico.
Henrique era ele mesmo um homem santo, que buscou
de forma incansável iniciar reformas na Igreja, em todos os
níveis. Ele apoiava a reforma cluniacense e conta-se que che-
gou até mesmo a tentar se tornar monge. Os ancestrais de
Henrique vinham se envolvendo em questões papais já há al-
guns séculos, pois a influência de facções corruptas em Roma
tornara impossível a eleição livre do papa. O apoio dos im-
peradores foi determinante para a sobrevivência de diversos
pontificados, e amiúde os imperadores apontavam e man·
tinham homens competentes e santos no trono pontifício.
Assim, São Henrique não viu problemas em apontar um
104 Dez Jatas que todo católico deveria conhecer

parente seu como papa; ele certamente não o fez por motivos
políticos, e o clero genrn1nico havia concordado com ele.
São Leão, porém, diferentemente da maioria de seus predecesso-
res, recusou-se a ser papa até que fosse devidamente eleito pelo clero
e povo romanos, de acordo com o antigo costume. Certo relato diz
que durante uma visita a Abadia de Cluny, o prior Hildebrando
(futuro Papa Gregório VII), o teria aconselhado sobre a questão. A
insistência de Leão em ser eleito da forma romana tradicional deu
ímpeto ao movimento que, no final daquele século, veria as eleições
papais realizadas no Colégio dos Cardeais e liberta de qualquer con-
trole imperial. Devidamente eleito em Roma, em 1049, Leão iniciou
com todas as suas forças os trabalhos em favor da reforma - desta
vez não mais começando por baixo, com os monges e padres, mas
pelo topo, com os bispos. Após convocar um concílio em Roma que
condenou a simonia em termos claros, ele ampliou o combate para
outros locais. Com efeito, a maior parte de seu breve pontificado
seria empregada em viagens e na realização de concílios reformistas.
O primeiro destes ocorreu em Reims, no final de 1049, no dia
em que os franceses homenageavam o grande São Remígio, que ba-
tizara Clóvis. Leão apareceu, trazendo as relíquias do grande santo
em seus ombros. Em um momento histórico dramático, ele exigiu
que todos os bispos presentes jurassem na presença de São Remígio
que não mais comprariam cargos na Igreja. Houve grande espanto!
Havia bispos da Alemanha, França, Inglaterra, entre outros locais, e
eles foram pegos de surpresa. Alguns saíram apressados do concílio,
outros se confessaram e receberam o perdão do Santo Padre, junta-
mente com penitências a cumprir. Esse foi o começo da eliminação
do grande mal da simonia na Igreja. Leão, até o dia de sua morte,
em 1054, perseguiu os simoníacos por toda a Europa. Na época do
1000 d.C. - Início da era mais gloriosa da lgi-eja 105

fim de seu reinado, essa prática era muito menos comum que antes,
e após o pontificado de São Gregório Vll, duas décadas depois, a
simonia fora quase extinta.
Já a tentativa de reconciliação com a Igreja Grega levada a cabo
por Leão não obteve sucesso. Infelizmente, ele enviara a Constanti-
nopla um cardeal pouco diplomático, Humberto da Silva Cândida,
o qual, durante as negociações causou tamanha irritação aos gregos
que se considera a data de sua visita como a da formalização do
Cisma do Oriente, em 1054 - ano da morte do papa. Caso Leão
continuasse a intervir, talvez conseguisse reverter a situação; porém,
nunca saberemos a razão de ele, em outro trágico movimento daque-
le mesmo ano, ter liderado um exército contra os normandos no sul
da Itália. Os normandos eram descendentes dos vikings e haviam
cercado um território pontifício. Leão era ex-soldado e se dispôs a
defendê-lo. A sua tentativa falhou, ele foi capturado e morreu logo
após ser libertado.

Papa São Gregórío VII: o clímax da reforma

O papa do século XI cujo nome é associado a todo o movimento


da reforma - frequentemente conhecida como "Reforma Gregoria-
na" - foi o grande Gregório VII, antes chamado Hildebrando, con-
selheiro de Leão IX, diplomata e santo. Ele fora monge da Abadia de
Cluny, e certamente abraçou a resistência cluniacense contra a cor-
rupção moral e o domínio secular sobre a Igreja. O seu pontificado,
que começou em 1073, incluiu pelo menos uma grande controvérsia
teológica - a respeito da natureza da Transubstanciação -, expan·
diu o combate contra a simonia e a imoralidade no clero e implan·
tou punições para os seus praticantes. Ele manteve relações com a
106 Dez datas que todo católico deveria conhecer

maior parte das nações da Europa e até mesmo com um governante


muçulmano na África, onde conseguiu estabelecer e manter dois
ou três bispos. Foi também durante o seu pontificado que São Bru-
no fundou a Ordem Cartuxa, destinada a um futuro glorioso e
santo.
Gregório trabalhou sem cessar contra os males de seu tempo.
Em uma carta que escreveu a São Hugo de Cluny, no começo de
1075, ele revela quão difícil era o seu combate:

Gostaria de vos tomar compreensivas as tribulações que me aco-


metem e os cuidados incessantes que me afligem cada vez mais( ... )
Pedi muitas vezes ao Divino Salvador que me tirasse deste mundo.
Ou que me desse as graças para servir como devo à Santa Igreja,
mas Ele nem me resgatou de minhas aflições nem permitiu-me
prestar à Igreja o serviço que a ela devo. 2

Gregório em seguida demonstrou sua aflição com o cisma da


Igreja Oriental e a escassez de bons bispos e reis na Europa, e implo-
rou orações ao abade e a todos os monges de Cluny, pois a grande
crise do seu reino estava prestes a começar.

Gregório, o controverso

Os objetivos e a personalidade de São Gregório VII são motivo


de grandes desavenças entre os historiadores. Até mesmo historia-
dores católicos o criticam excessivamente, ou, na melhor das hipó-
teses, não elogiam o que realizou. (Um deles chega a relembrar, de

2. Gregório VII, Carta a São Hugo de Clun,, janeiro de 1075.


1000 d.C. - Início da era mais gloriosa da Igreja 107

maneira falsa, que, embora ele seja um santo canonizado, nunca teve
um culto popular. Quando li isso comecei a rezar a São Gregório,
sou devota dele.)
O ponto de controvérsia é este: teria ele ido longe demais ao
afirmar as prerrogativas do papado sobre a sociedade cristã, inclusi-
ve sobre autoridades seculares? Não nos propomos aqui a examinar
detalhadamente essa questão. Fazer justiça a São Gregório requer
estudar suas verdadeiras palavras na língua em que foram escritas ou
faladas, examinar precisamente o que elas significavam dentro do
discurso teológico da época e pesquisar as situações que as estimu-
laram. Essa é uma condição fundamental para se analisar qualquer
texto. Diversos papas da Idade Média têm sido mal compreendidos
pelos historiadores modernos, pois estes falham no seu dever, ou de
fato o ignoram.
Eis um exemplo de quão complicado isso pode ser: uma famosa
lista de princípios aparentemente redigidos por Gregório, conhecida
como Díctatus papae, pode ser interpretada como uma exaltação ex-
tremada do poder papal sobre reis,· imperadores e todos os católicos.
Mas o que era essa lista, afinal de contas? Um historiador sugeriu
que ela não foi nada mais que uma alocução que o papa planejava
dar aos cardeais. Se esse foi o caso, precisaríamos então saber se
ele realmente fez o discurso daquela forma - oradores não seguem
necessariamente suas anotações! Alguns escritos também atribuídos
a Gregório são de autenticidade duvidosa. Portanto, a tentativa de
descobrir exatamente o que ele disse não é tarefa fácil.
Analisemos os fatos. O confronto que obscureceu a maior parte
do seu pontificado foi a sua épica disputa com o imperador Hen-
rique IV a respeito da "investidura" de leigos sobre clérigos. É um
tema complexo, e Gregório, não obstante a intransigência com a
108 Dez datas c/ue todo católil'o clewria rnnhecer

qual alguns historiadores o têm acusado, se dispôs a fazer concessões


em diversos pontos, a depender das circunstâncias. Em uma época
em que homens do alto clero podiam ser também proprietários de
terras e em alguns países até mesmo administrar propriedades para
o Estado, era correto que os reis tivessem alguma autoridade sobre
suas funções administrativas. Para alguns, porém, essa controvérsia
ultrapassava a esfera prática e se tornava uma questão de princípios;
alguns germânicos argumentavam que Deus dera a Constantino - e
por conseguinte aos imperadores que se consideravam seus sucesso-
res - o domínio não só sobre o poder temporal mas também sobre
a esfera espiritual da sociedade cristã.
Gregório defendia que o verdadeiro chefe da família das nações
católicas é o Vigário de Cristo. Ele admitia a distinção entre reino
temporal e espiritual, mas, ao que parece, defendia que o poder tem-
poral não fora diretamente entregue aos governantes por Deus como
um direito divino. Na verdade, Deus lhes havia imposto deveres so-
lenes e, caso eles não governassem da forma correta, caberia ao papa
julgar o não atendimento de suas obrigações morais e, se necessário,
até mesmo declará-los depostos e libertar os seus súditos de qualquer
obediência a eles.
A controvérsia da investidura, portanto, estava tão profunda-
mente imersa nas esferas espiritual e temporal, tão entrelaçada com
a história, os cosrumes, os bons e os maus propósitos, que talvez
apenas a dolorosa medida da excomunhão e anatematização pudes-
se cortar o seu nó górdio. E a Gregório coube o pesado fardo de
empreendê-la.
1000 d.C. - lnício da eTa mais gloTiosa da lgreja 109

O adversáTio imperial

Caso o devoto imperador Henrique UI, que governou de 1039


a 1056, ainda ocupasse o trono germânico, o relacionamento entre
as esferas temporal e espiritual talvez se resolvesse sem problemas.
Talvez não ocorresse de modo algum, pois nenhum conflito sério
se levantara. Foi preciso um personagem sórdido para que se ini·
ciasse um problema. Henrique IV, quando criança, foi abandonado
pela mãe, que aparentemente não ligava para os defeitos morais, a
falta de disciplina e a depravação do filho. Ele podia ser instável
e imprevisível nas suas ações e cruel ao tratar o povo. Ele abusou
da tirania e insultou deliberadamente seus súditos saxões, certa vez
mantendo uma delegação à espera o dia todo por uma audiência, en·
quanto zombava deles, e então os despediu sem que os deixasse falar.
Quando finalmente os saxões se rebelaram contra a sua opressão,
Henrique revidou, cercando suas terras, vendendo alguns campone-
ses como escravos e usando outros para trabalhos forçados. Ele não
tinha interesse algum por reformas. Para ele, Gregório representava
urna ameaça ao poder desfrutado pelos imperadores germânicos de
intervir nas tarefas eclesiásticas, ao eleger seus papas e bispos pre-
feridos. Gregório não era sequer germânico, como muitos de seus
predecessores, mas um patriota italiano nativo da Toscana.
Embora o imperador tenha aceitado como um fait at.-complí a
eleição de Hildebrando em 107 3, dois anos depois ele convocou
uma nova eleição papal e conseguiu o apoio dos bispos germâni·
cos. Em consequência disso, Gregório o excomungou e o declarou
deposto. Esta atitude fez com que os reis germânicos, descontentes,
tomassem partido do papa. Henrique desesperou-se com a possibili·
dade de perder o trono.
110 Dez datas que todo católico det eria conhecer
1

O conto de Henrique em Canossa, frequentemente citado, é


dramático e tnígicn. Gregório havia convocado um concílio em
Augsburg, em fevereiro de 1077, ao qual presidiria e que lidaria
com a questão da legitimidade do governo de Henrique. Ao final
de dezembro de 1076, o pontífice iniciou sua jornada para o norte.
Enquanto isso, Henrique estava apreensivo sobre qual seria o resul-
tado do concílio e como poderia evitar uma decisão que lhe prejudi-
casse. Então, teve a seguinte ideia: interceptaria o papa antes que ele
deixasse a Itália e faria as pazes com ele em privado. Naquele mesmo
mês de dezembro Henrique partiu rumo ao sul, levando consigo sua
resignada e negligenciada esposa, além de seu filho pequeno - talvez
com o intuito de amolecer o coração de Gregório.
O inverno de 1076-1077 foi um dos mais rigorosos registrados na
História, e os desfiladeiros dos Alpes, já suficientemente perigosos
no verão, estavam em condições extremas. A comitiva de Henrique
foi atrapalhada perto de Genebra, por Adelaide, sogra do imperador
e governanta do território por onde os germânicos teriam de passar.
Adelaide hostilizava Henrique em razão da maneira rude como ele
tratava a sua filha e, em um primeiro momento, recusou-se a per-
mitir que ele atravessasse suas terras. Somente após ele desistir de
cinco bispados - de onde extraía seus impostos - e de sua esposa
ter suplicado em seu favor, ele conseguiu permissão para continuar
sua jornada. (Naquele momento ele deve ter se sentido um azarado,
pois a sua sogra, vendo a apreensão e o cansaço de sua filha, deci-
diu juntar-se à comissão.) Alguns membros da comitiva de Henrique
morreram no caminho; outros perderam partes dos membros, em
razão do forte frio; mas, por fim, chegaram à Itália.
1000 d.C. - Início da era mais gloriosa da Igreja 11 l

O drama em Canossa

São Gregório, a caminho da Alemanha, era acompanhado por


sua amiga e benfeitora, a Condessa Matilde de Canossa, poderosa
soberana da Toscana que tentara em vão fazê-lo desistir da perigosa
travessia dos Alpes. Ele mal resolvera iniciar sua jornada - na qual
podia muito bem ter perecido de frio - quando a condessa recebeu
as notícias de que Henrique e um grupo de homens armados se
aproximavam. Ela imediatamente temeu por um ataque ao papa, e
então decidiu levar toda a delegação papal para a sua fortaleza em
Canossa. Lá, São Gregório encontrou São Hugo de Cluny, que ali
estava por outros motivos. São Hugo alegrou-se ao saber da vinda
do imperador, pois Henrique era seu afilhado e o santo estimava o
jovem monarca.
De seus quartéis-generais, Henrique enviou mensageiros ao papa
com o pedido de uma audiência e uma promessa de submissão. Gre-
gório respondeu apenas que eles se encontrariam em Augsburg.
Cada vez mais apreensivo, Henrique convenceu Matilde e São Hugo
a interceder em seu favor junto a Gregório; Matilde concordou, mo-
vida por simpatia a Bertha, esposa de Henrique, e São Hugo, movi-
do por amor ao seu afilhado. Em todo caso, logo o papa permitiria
que Henrique se dirigisse à fortaleza.
Tendo chegado lá, porém, o imperador se surpreendeu ao per-
ceber que não seria recebido de imediato. Ele teve de esperar por
três dias, os quais passou na neve, descalço, em jejum, e andando
de um lado para o outro, em frente à janela do papa, vestido com
trajes de penitência. Ele devia estar com o corpo congelando e a
alma em ebulição. Quanto a Gregório, ele mais tarde rec.onheceria
que "todos questionaram a nossa rígida atitude". Ele mesmo havia
112 Dez 1.laws l/Ue todo católico det eria conhecer
1

"passado dias e noites em oração, rogando ao Todo-Poderoso que


nos iluminasse dn alto, a fim de sabermos o que fazer cm ocasião
tão séria, e o que excluir das decisões de um concílio".
Gregório deve ter suspeitado dos motivos do imperador, mas,
como sacerdote, não podia recusar um cristão que aparentava es-
tar arrependido e que esperava humildemente do lado de fora,
na neve, vestido com roupas penitenciais. Ele finalmente recebeu
Henrique, que se jogou no chão e disse: "Perdoai-me, Santo Pa-
dre, perdoai-me!" Com lágrimas nos olhos, Gregório assim o fez.
Mais carde, ele celebrou a Missa, e, no momento da Consagração,
virou-se e se dirigiu a Henrique, mantendo a hóstia elevada. Ele
se reteriu às falsas acusações proferidas contra ele por Henrique
e seus partidários e declarou que apelaria ao julgamento de Deus
na questão: "Que o corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo, que
estamos prestes a receber, seja neste dia uma prova de nossa ino-
cência. Oremos ao Todo-Poderoso para que afaste toda a suspei-
ta caso sejamos inocentes, e que nos traga a morte súbita caso
sejamos culpados." Em seguida, ele resume as queixas que lhe
foram dirigidas a respeito de Henrique, e pede ao imperador que
prove a sua inocência da mesma maneira - através do Corpo do
Senhor.
Henrique não conseguiu fazê-lo. Ele hesitou, visivelmente
perturbado, e depois exigiu tempo para ponderar. Consultou
seus amigos, e todos concordaram que ele não devia cometer tal
sacrilégio. Ao retornar para a frente da capela, recusou-se a
comungar, alegando que grande parte da sua corte não estava
presente e que, portanto, o ato não teria valor. "Portanto, eu
suplico que a prova seja adiada para o dia da reunião geral da
Dieta." Gregório virou-se e prosseguiu com a missa.
1000 d.C. - Início da era mais gloriosa da lg-reja 113

No jantar realizado após a missa, o papa tentou iniciar uma con·


versa amigável com o imperador, tendo recebido apenas uma fria
reserva. Por fim, ele deu a Henrique uma bênção de despedida, e o
imperador voltou para a Alemanha. Os príncipes continuaram a se
opor a Gregório. A complexa situação política estava fora do contro-
le do papa. Henrique continuou a desafiá-lo em diversos assuntos
eclesiásticos e então foi excomungado novamente. Desta vez até mes-
mo alguns bispos germânicos que originalmente apoiaram o papa
passaram para o lado do imperador.

O último ato

Após a sua segunda excomunhão, Henrique aproveitou-se da


conturbada situação política e das opiniões divididas e promoveu
o excomungado arcebispo Guiberto de Ravenna como o antipapa
"Clemente III". Em seguida marchou para Roma e lá o instalou,
em 1080. A maior parte dos cardeais passou para o lado do "papa"
Clemente. Enquanto os germânicos marchavam para a Itália, a Con·
dessa Matilde (uma mulher extraordinária que, quando adolescen-
te, liderara por duas vezes suas tropas toscanas contra um exército
germânico que tentava instalar um antipapa) aderiu à batalha com
seus soldados. Derrotada, ela se refugiou em Canossa, mas depois,
por um artifício astuto, conseguiu uma vitória ao cercá-los, apro-
veitando-se de uma providencial neblina. Em seguida foi a Roma,
e os germânicos que a perseguiam aproveitaram o momento para
destruir suas terras e roubar seus pertences.
Em Roma, ela organizou a defosa da cidade. Decidira esperar
pelo cerco dos germânicos, que logo começou. O cerco continuou
por quase dois anos, tendo começado em 1081. Os germânicos
114 Dez datas que todo católico detJeria conhecer

começaram a sofrer com a falta de suprimentos no inverno e a malá-


ria no verão; eles se desgastavam e, à noite, eram perturbados pelas
investidas dos homens de Matilde que saíam de dentro da cidade.
Henrique, porém, travou contato com traidores romanos e, gra-
ças aos seus esforços, conseguiu entrar na cidade em março de 1084;
o antipapa, seu joguete, o coroou "imperador" - título que ele sem-
pre desejou obter de Gregório.
Nessa situação extrema, o Papa Gregório receheu ajuda de alia-
dos inusitados: os normandos. Esses descendentes dos vikings ha-
viam estabelecido um Estado na Sicília e em partes do sul italiano,
e haviam tomado de facto terras que pertenciam à Santa Sé. Embora
, tivessem se tornado católicos, eles haviam se negado a reconhecer as
reivindicações pontifícias sobre terras que haviam tomado para si.
Em 1054, o Papa São Leão IX havia liderado um exército contra eles
a fim de recuperar o Ducado de Benevento, a nordeste de Nápoles.
Parte deste território fora cedida ao papado no século VIII, pelo
duque local, e em torno do ano 1050 o imperador Henrique III
concedeu todo o território ao Papa Leão IX, em troca do Bispado de
Bamberg. Quando os normandos invadiram a região, o seu conde,
Drogo, garantiu a Leão que respeitaria a soberania papal sobre o
Ducado de Benevento. Porém, Drogo foi assassinado em 1051, e
a confusão subsequente entre os normandos culminou com novos
ataques a terras do sul italiano. O Ducado de Benevento foi tomado
pelos normandos em 1053. A tentativa fracassada de reconquista
pelo Papa São Leão IX ocorreu no ano seguinte.
Em 1080, contudo, Gregório conseguira estabelecer uma aliança
com os normandos, poucos dias depois de o imperador Henrique IV
ter apontado o seu antipapa. Eles permaneceriam fiéis a essa alian-
ça, mesmo após Gregório perder o apoio de vários antigos aliados.
1000 d.C. - Início da era mais gloriosa da Igreja 115

Gregório havia mandado uma mensagem urgente ao líder nor·


mando, Roberto de Altavila, no momento em que se tornara cla-
ro que Roma cairia nas mãos dos germânicos. Altavila, com seus
soldados ferozes, se apressou em ajudá-lo, e conseguiu expulsar as
tropas de Henrique de Roma, mas os seus soldados, por sua vez,
saquearam-na - eles não concebiam o combate sem a recompensa
de saquear as riquezas.
Mesmo liberta das tropas de Henrique, Roma não era um
local seguro para Gregório; o imperador ainda gozava de poder e
continuava perigoso. Roberto de Altavila, que parece ter demons-
trado grande reverência ao papa, ofereceu-lhe refúgio em seu ter-
ritório, e os cavaleiros de Matilde acompanharam o pontífice até
a fronteira. Por todos os lados, os italianos se aproximavam para
estimulá-lo e pedir-lhe bênçãos. Ele teve a consolação de visitar o
Monte Cassino durante alguns dias de descanso e oração. Rober-
to levou Gregório para Salerno, o refúgio mais seguro que podia
oferecer. Ele mostrou ao papa a Catedral de São Mateus, que ha-
via construído, e implorou-lhe para que a consagrasse, pedido ao
qual o papa atendeu. São Gregório, todavia, tinha pouco tempo
de vida. Ele se aproximava dos 70 anos, estava desgastado pelo
trabalho e sentia-se cada vez mais fraco.
Matilde, ao retornar da Toscana, depois de conseguir uma vi·
tória expressiva contra outra investida das tropas de Henrique, cor·
reu a Salerno para visitar seu pai espiritual e o encontrou à beira
da morte. Gregório deu sua última bênção para ela. São Hugo de
Cluny também estava lá, e dele São Gregório recebeu o Viaticum.
Conta-se que, pouco antes de morrer, Gregório teria dito "amei
a justiça e odiei a iniquidade; por isso morro no exílio". Ao que
São Hugo respondeu gentilmente: "Santo Padre, vós não podeis
1l6 Dez datas L/ue todo católico deveria conhecer

morrer no exílio, pois vós, sucessor de Cristo e seus apóstolos, recebes-


tes como herança as naçôes e como posse toda a extensão da terra."
Era 23 de maio de 1085.
Talvez Gregório estivesse exilado, mas havia conseguido várias
vitórias: as suas políticas triunfaram em libertar a Igreja do controle
secular e refrearam bastante a prática da simonia e a imoralidade en-
tre o clero. Esse combate teria de ser renovado mais tarde, quando os
mesmos vícios antigos reapareceram. Os papas seguintes deram con-
tinuidade à luta. No pontificado de Inocêncio III, no século XIII, o
papado estava no auge de sua independência, influência e prestígio,
embora o triste conflito com os imperadores germânicos ainda con-
tinuasse. Ele terminou, todavia, com a vitória da soberania papal,
cujas fundações foram assentadas por São Leão e, especialmente,
São Gregório VII.
Quanto ao incorrigível Henrique, ele foi excomungado uma vez
mais por Victor III, sucessor de Gregório, mas ainda traria proble-
mas para o sucessor de Victor, Urbano II (que teve de passar um
ano em uma ilha no Tibre, pois Henrique e o seu papa joguete o
mantiveram fora de Roma). Matilde uma vez mais se envolvera na
proteção do papa. Os últimos anos de Henrique, assim como toda
a sua vida, foram repletos de tormentos. Em 1104, o seu filho se
rebelou contra ele, aprisionou-o e o forçou a abdicar do trono no
ano seguinte. Mostrando sua resistência habitual, ele escapou em
1106 e conseguiu reunir apoio considerável, porém morreu pouco
tempo depois. Clemente III, o seu "papa", já havia morrido, tendo
terminado seu "pontificado" em 1100.
1000 d.C. - Início da era mais gloriosa da Igreja 117

O início de uma grande era

É possível considerar o ano 1000, no qual nada de historicamen-


te significativo aconteceu - muito menos o Juízo Universal - como
a entrada de um período glorioso da História. Os três séculos que
0 seguiram viram a ascensão do papado ao ponto mais alto de seu
poder e prestígio, o desenvolvimento das nações europeias, o maior
desabrochar de desenvolvimento cultural e institucional da história
do Ocidente, incontáveis santos e grande prosperidade material. As
coisas talvez continuassem deste modo - não havia razões explíci-
tas para que não continuassem -, todavia, ao final do século Xlll,
uma nova mentalidade começara a emergir. Ela mal foi notada no
começo, porém traria à Cristandade terríveis castigos, sob a forma
de guerras, fome, pestes e, acima de tudo, heresias obstinadas. Eis a
história do próximo capítulo.
1517 d.C.
A catástrofe protestante

"Mesmo se derramássemos todo o Rio Elba em lágrimas,


isso ainda não seria o suficiente para lamentar os de-
sastres da Reforma: é um mal sem solução." Por mais estranho
que pareça, essas palavras não foram ditas por um católico, mas
por Filipe Melâncton, amigo de Lutero e um dos principais rea-
lizadores da Reforma. O próprio Lutero, pouco antes de morrer,
escreveu sobre a mágoa que sentia a respeito do caos e da pro-
liferação das seitas que seus ensinamentos propagaram: "Devo
confessar que minhas doutrinas produziram muitos escândalos.
Não posso negá-los, e isso me assusta, especialmente quando
minha consciência traz-me a lembrança de que destruí a situação
na qual a Igreja se encontrava, calma e tranquila, sob o papado." ·
Se até mesmo alguns líderes protestantes chegaram a ter
essa percepção sobre a Reforma, não espanta que os católicos
a vejam como uma verdadeira catástrofe. O historiador Paul
Johnson chamou-a de "uma das maiores tragédias da História, e
a tragédia central do cristianismo." Ela foi uma catástrofe e um
castigo para a Cristandade; um desastre levado até as últimas con-
sequências, pois foi o apogeu de uma série de castigos sem prece-
dentes, desatrelados no curso dos dois séculos anteriores.
Duzentos anos antes de Lutero pregar suas famosas teses
em 1517, o primeiro dos castigos que demoliriam a civiliza-
ção medieval já havia sido lançado: a grande fome de BIS a
1322, que causou muitas mortes no norte da Europa, onde
algumas áreas tiveram uma taxa de mortalidade de 10%.
120 Dez datas que todo catdlico deveria conhecer

No mesmo século, houve sete outras grandes fomes no sul


da Frat11;a.
Desastres ainda piores vieram em seguida. Menos de trinta anos
depois, a maior pandemia que o mundo já viu - a Peste Negra -
tirou a vida de milhões. Iniciou-se a Guerra dos Ct•m Anos, entre
França e Inglaterra, e o papado enfrentava uma série de adversida-
des, entre elas o Papado de Avignon, o Grande Cisma do Ociden-
te e a heresia do conciliarismo (que reivindicava para os concílios
uma autoridade maior que a do papa). Como se já não bastasse, um
novo grupo muçulmano, os turcos otomanos, invadiu o sudeste da
Europa em 1354.
Por que Deus parecia estar punindo a Europa de Santo Tomás
de Aquino e São Luís, de São Gregório Vll, São Francisco de Assis
e tantos outros grandes santos católicos? É claro que os historiadores
seculares negam que os desastres dos séculos XIV, XV e XVI tenham
sido castigos de Deus. Para eles, as coisas na História simplesmente
acontecem, sem qualquer plano ou desígnio superior. Mudanças cli-
máticas ocorrem periodicamente, guerras simplesmente estouram,
epidemias podem se espalhar a qualquer momento. Para eles, o tra-
balho do historiador consiste apenas em analisar e registrar os acon-
tecimentos e não buscar neles algum significado transcendente. O
historiador católico, por outro lado, vê a História como a ação de
Deus no mundo em que Ele se encarnou. Para isso, Deus utiliza-se
de instrumentos humanos, e nem sempre é fácil notar de que modo
e em que lugar opera a Sua mão.
No entanto, podemos examinar as pistas. Desastres e ca·
tástrofes de fato aparentam ser respostas de Deus a males mo-
rais. Deste modo, enquanto o historiador secular considera a
catastrófica dissolução da civilização medieval corno um mero fenô·
1517 d.C. - A catástrofe protestante 121

meno interessante, eu me inclino a considerá-la como um castigo.


Mas um castigo contra o quê, visto que a era precedente parecia tão
dedicada às coisas de Deus e à Sua Igreja?

A frieza

São Francisco de Assis já havia notado algo errado na sua época,


o começo do século Xlll. A despeito da impressão que se tem do
século XIII como uma época fervorosamente devota, Francisco a via
como uma nova "era do gelo" para a espiritualidade. "A caridade",
dizia ele, "congelou."
Como é possível, no século em que o Papa Inocêncio III orde-
nara a internação gratuita dos pobres nos hospitais estabelecidos
em todas as grandes cidades, no período em que até mesmo reis e
duquesas se dispunham a cuidar dos doentes, em que se fundaram
novas ordens para pregar, ensinar, curar e redimir prisioneiros?
É evidente que São Francisco, ao utilizar a palavra "caridade",
não se referia somente aos trabalhos de misericórdia corporal - em-
bora ele estivesse profundamente empenhado neles -, mas pensava
antes de tudo naquele terno amor por Deus, comandado pelo que
Nosso Senhor chama de "o primeiro e maior" dos mandamentos.
Era o amor a Deus que havia esfriado. (Vale a pena observar que
Dante, ao escrever na entrada do século XIV, representou as puni-
ções dos recantos mais profundos do inferno não com o tradicional
fogo, mas com gelo).
A coleta da Festa dos Estigmas de São Francisco de Assis, em
17 de setembro (Missal Tridentino), se refere a esse crescente esfria-
mento:
122 Dez, dntas que todo católico deveria conhecer

Senhor Jesus Cristo, que no meio da indiferença do século


Vos dignastes, para reacender os nossos corações no fogo
da Vossa caridade, gravar na carne do bem-aventurado Fran-
cisco os estigmas da Vossa paixão, concedei-nos, por seus
merecimentos e intercessão, a graça de sempre levar a cruz e
produzir frutos dignos de penitência.

Outro sinal desse esfriamento espiritual é o fato de que


o Quarto Concilio de Latrão, em 1215, viu-se obrigado a exi-
gir o recebimento da Sagrada Comunhão ao menos uma vez
por ano, sob a pena de pecado mortal. O fato de que a expres-
são central da devoção católica - sem mencionar o inefável
privilégio - precisasse ser transformada em uma obrigação em vez
de ser naturalmente considerada uma alegria, nos mostra uma vez
mais como o fervor religioso havia diminuído. É claro que Deus
não responde ao pecado somente com castigos, ele também envia
graças especiais. Aqui, encontramos Deus se revelando de maneira
extraordinária a duas almas santas desse mesmo século: ele deu à
bem-aventurada Juliana de Liege a missão de promover a Festa de
Corpus Christi, para reviver a devoção ao Santíssimo Sacramento; e
a Santa Gertrudes, no final do século, Ele revelou o Seu Sagrado
Coração.

A sociedade medieval e o desenvolvimento do comércio

A questão permanece: o que causou essa diminuição do fer-


vor e o crescimento da frieza, mesmo no século que parece ser o
mais católico de todos? Alguns culpam as heresias que coloca·
vam em dúvida a verdadeira presença de Cristo na Eucaristia.
1517 d.C. - A catástrofe protestante 123

Todavia, a maioria delas fracassou e não trouxe muitos danos, embo-


ra tenha sido necessário o uso de grande força militar para reprimir
a bizarra seita dos cátaros que florescia no sul da França e em partes
da Áustria e Itália. O ensinamento cátaro de que toda matéria era
produzida por um espírito maligno atacava implicitamente o culto
ao Corpo de Cristo no Santíssimo Sacramento. No século Xlll, con-
tudo, as heresias ainda não tinham a grande influência que viriam a
ter mais tarde dentro da Cristandade; ainda não chegara o seu mo-
mento. As heresias medievais, portanto, não foram a causa principal
do crescimento da frieza, bem como a corrupção que existia aqui e
ali dentro do clero.
Logo, deve haver outro elemento envolvido no enfraqueci-
mento da fé e do amor na Idade Média Plena, e o ambiente no
qual São Francisco cresceu nos dá uma pista disso. Seu pai era
um próspero mercador de tecidos e residia em uma movimentada
cidade-Estado, em um tempo em que a atividade comercial
crescia por toda a Europa. Por si só, isso não foi algo ruim.
Comerciantes e associações de artífices operavam sob princípios
cristãos, prestando serviços sociais aos seus membros, regulando
a qualidade do trabalho, pagando salários dignos e cobrando pre-
ços justos. Gradualmente, porém, aumentava a complexidade dos
negócios e o individualismo dos comerc:iantes; no século XIII,
ganhar dinheiro tornou-se uma preocupação muito maior do que
nos séculos anteriores.
Um medievalista francês observou que embora o povo do come-
ço da Idade Média pudesse ser ganancioso, ao cobiçar terras, prestí-
gio, poder, entre outras coisas, o que de vê no período final da Idade
Média é diferente. É o crescimento da avareza: o amor pelo dinheiro.
Enquanto a cultura dos negócios crescia rumo ao que por vezes se
124 Dez datas i1ue todo católico deveria conhecer

chama protocapitalismo, os corações católicos se mostravam cada


vez mais di\'ididos entre Deus e o mundo. Um mercador do sécu-
lo XV escreve no topo do seu livro de contabilidade: "Em nome
de Deus e do lucro." Como observa outro historiador da Idade
Média Tardia: "Começou-se a manter dois tipos de condutas:
uma voltada para o lucro e a outra voltada para Deus."
Nosso Senhor afirma claramente: "Não podeis servir a Deus
e a Mamom." Daí a pobreza radical esposada por São Francisco:
Deus enviara um santo que dizia aos católicos o que estava errado
e o inspirara a ensinar-lhes o remédio. Ao que parece, os ensina-
mentos de Sào Francisco nào foram suficientemente praticados. A
ordem franciscana cresceu rapidamente, e as massas ouviam os
frades pregarem. Governantes santos como Isabel da Hungria e
Luís de França entraram para a Ordem Terceira franciscana. Po-
rém, rudo indica que esse grau de conversão não satisfez os pedi-
dos de Nosso Senhor.
É difícil acreditar que essa crescente preocupação com lucro
não teve efeitos sobre a vida espiritual dos habitantes - cada vez
mais ocupados - das cidades do século XIV. O amor pelo dinheiro
talvez não impeça que uma alma ame a Deus, mas pode facilmente
destruir o ardor espiritual, o gosto pela contemplação, pelas devo-
ções e o zelo pelos trabalhos de caridade. As crônicas nos contam
que até mesmo depois da Peste Negra, as pessoas não se tornaram
menos avarentas, muito pelo contrário. As heresias que brotaram
naquele momento, de algum mo<lo, causaram mais danos e fin-
caram raízes mais fortes nas mentes do que as heresias anteriores;
as ideias heterodoxas de John Wycliffe na Inglaterra e Jan Hus na
Boêmia duraram bastante nos seus países de origem. Tudo isso,
a]ém dos problemas que prejudicaram o papado e neutralizaram
1517 d.C. - A catástrofe protestante 125

sua resistência aos males da época, havia enfraquecido as almas dos


católicos comuns, tornando-os mais vulneráveis aos heresiarcas do
século XVI.

Subversão do pensamento

Quanto aos intelectuais, muitos haviam sido influenciados ao


longo dos séculos XIV e XV pelas novas ideias de Guilherme de
Ockham, cuja filosofia do nominalismo subverteu a grande sínte·
se escolástica de fé e razão, ao destruir sua fundação filosófica no
realismo aristotélico. Ockharn defendia que a mente humana é ca·
paz de conhecer coisas individuais, mas não conceitos universais
(defendidos pelos realistas), ou seja, não se pode conhecer Deus pela
natureza; algo que é verdadeiro pela fé não o deve ser pela razão, e
vice-versa. Esses são apenas alguns pontos de um amplo e complexo
pensamento, porém eles já indicam uma mudança radical na me~­
talidade - da confiança medieval e clássica no uso da mente, ao
pessimismo teológico e filosófico.
A perda de confiança na possibilidade de que a razão pu-
desse demonstrar a existência de Deus, e a ideia das "duas ver·
dades" (uma de fé e outra da razão) geraram incerteza teológi·
ca e até mesmo futilidade. O nominalismo tornou-se popular
entre círculos reformistas; é até possível qüe ele tenha sido o mo..
tivo de Lutero ter se voltado inteiramente contra a razão: "A razão
é a prostituta, sustentáculo do Diabo", escreve ele. "O Batismo
deve eliminá-la."
O Renascimento do final do século XV e do sél:ulo XVl dt•s-
feriu o derradeiro golpe na estrutura cambaleante da civilização
medieval. O individualismo, já alimentallo pela nova cultura dos
126 Dez datas t/Ue todo católico det 1eria conhecer

negócios, tornou-se um verdadeiro culto para escritores como Pico


della Mirnndola, que glorificava o homem de uma maneira nunca
antes vista em cultura alguma, incluída aí a dos gregos e romanos.
Outros exaltavam o "indivíduo heroico", enquanto Maquiavel, com
o seu infame mote "os fins justificam os meios", conseguiu ser o
mais imoral de todos aqueles que estavam determinados a manter
sua posição e poder. As ideias desses homens representavam a antí-
tese do pensamento medieval, que valorizava a comunidade em vez
do individualismo, a humildade em vez do orgulho e a moralidade
católica em todas as esferas.

A rewlta seguinte

Esses elementos não representam as causas inevitáveis do desas-


tre conhecido como Reforma Protestante, mas forneceram o clima
que favoreceu a sua emergência. A frieza espiritual, a preocupação
excessiva com os afazeres mundanos, o individualismo, a exposição a
diversas noções heréticas e a corrupção generalizada do pensamento
(o que prejudicou a relação entre fé e razão): todos esses elementos
contribuíram para deixar as mentes confusas e as almas indefesas
perante o tsunami que estava prestes a atingi-las.
Aqui já podemos notar a diferença entre essa análise e
a versão convencional sobre as origens da Reforma. O mito
da Reforma é descrito da seguinte maneira: No século XVI,
a Igreja Católica havia se tornado mundana e corrupta. O clero era
imoral, os mosteiros eram fossas de iniquidade e se praticava a com-
pra e venda de coisas santas. A situação era intolerável por toda par-
te, todos sentiam que alguma medida precisava ser tomada. Havia
uma insatisfação generalizada contra a Igreja Católica, e um grande
1517 d.C. - A catástrofe protestante 127
1

anseio por uma religião mais simples, fiel aos Evangelhos e que colo-
casse as pessoas em contato direto com Deus. Por fim, um corajoso
padre alemão, Martinho Lutero, revoltado com a venda de indul-
gências, indignou-se e protestou publicamente. Esse foi o começo de
uma grande renovação do cristianismo, inevitável e historicamente
necessária.
A maioria dos protestantes, evidentemente, tem aceitado
esse enredo, e até mesmo historiadores católicos aceitaram partes
dele, talvez intimidados com a difusão universal do mito nos li-
vros didáticos e nas universidades. No entanto, a verdade é bem
diferente.
Em 1991, a Oxford University Press publicou uma revisão do
assunto feita por Euan Cameron intitulada The European Reforma-
tion. É um excelente e erudito resumo sobre a Reforma, e inclui uma
investigação das pequenas seitas e das práticas religiosas do povo
comum. Contribui muito para desmantelar os elementos do mitc
reformista. A respeito da afirmação de que a corrupção no clero in-
flamou entre o povo um clamor generalizado por reforma, Cameron
diz o seguinte:

Antes do ano 1500, padres extravagantes ou libertinos


vinham sendo reprimidos em sermões há pelo menos 150
anos. São Bernardo de Claraval, já no ano 1150, escre-
via de forma severa contra a cobiça no clero. No que diz
respeito a vícios e interesses políticos, João XII (955-964)
ultrapassou facilmente o Papa Alexandre VI. Se os proble-
mas eram antigos, também eram as críticas. Contudo, os
agitadores "reformistas" do ano 1500 pensavam que sua
128 Dez datas que todo católico deveria conhecer

época era uma época de declínio catastrófico, precedida por


séculos de primordial piedade. Esse mito precisa ser visto
apenas como mais um clichê.

Uma abordagem como essa traz novos ares para os estu-


dos sobre a Reforma. Males existiam e sempre existiram. Os
católicos comuns não esperavam que o homem - com sua
natureza corrupta - fosse perfeito, e não mudariam da indigna-
ção com as "maçãs podres" dentro do clero para a ideia de que a
própria Igreja devia ser fragmentada. Não há evidências de que a
maioria dos católicos sequer quisesse que a Igreja ensinasse algo
que já não o fizesse antes. Muitos estavam conscientes da necessi-
dade de reformas institucionais, para garantir, por exemplo, que
os bispos fizessem seu trabalho adequadamente e que os padres
fossem corretamente educados. Com efeito, o Quinto Concílio
Geral de Latrão, realizado de 1512 a 1517, incluiu entre os diver-
sos temas a serem discutidos a necessidade de reformas. Toda-
via, o foco principal foram as questões políticas urgentes, e o seu
trabalho foi dificultado pelas rivalidades entre alguns participan-
tes. Talvez tenha sido uma última chance dada à Igreja para que
respondesse com vigor à apatia e ao materialismo dentro do cle-
ro; pouco depois, naquele mesmo ano de 1517, era tarde demais
- Lutero havia entrado em cena.
Ao analisar as origens da Reforma, é preciso lembrar também
que grande parte da Europa não cedeu às suas ideias. Onde a
Reforma de fato ocorreu, observa Cameron, o seu sucesso estava
ligado à prática de submeter o dogma ao debate público. No lugar
da verdade divinamente revelada, convidavam-se as pessoas a esco-
lher aquilo em que desejavam acreditar. Nessas áreas, entretanto,
1517 d.C. - A catást.mfe protestante 129

a religião misturou-se com a política. O historiador Carlton Hayes


diz: "O protestantismo foi o aspecto religioso do nacionalismo." Se-
gundo Cameron: "A Reforma deu a muitos grupos da Europa as pri-
meiras lições sobre o comprometimento político com uma ideologia
universal. No século XVI, a religião se tornou política de massa."

Três "reformistas": Lutero, Calvino e Henrique VIII

Não discutirei aqui em detalhes as posições teológicas dos fun-


dadores das três novas religiões criadas na Reforma. Além da falta
de espaço, seria inútil falar sobre a "posição teológica" de um ho-
mem como Henrique VIII. As principais novidades ensinadas pelos
heresiarcas se encontram em diversas obras católicas conceituadas.
Em todo caso, minha preocupação é menos com as complexidades
teológicas do movimento herético do que com a questão de por que
ele obteve sucesso. Irei simplesmente apontar algumas característi·
cas do novo ensinamento protestante que parecem ter agravado o
enfraquecido estado espiritual em que grande parte da Cristandade
já se encontrava: esfriamento da devoção a Deus, a Nossa Senhora
e à Santa Eucaristia, preocupação excessiva com dinheiro e aumen-
to do individualismo. Até mesmo o abuso que levou Lutero a ir
a público apregoar suas novas ideias religiosas - que ele já havia
desenvolvido - era o tipo que interessava à sua época: a venda de
indulgências.

A questão das indulgências

Essa afronta causou escândalo na época, e embora o Papa Leão


X (Giovanni di Lorenzo de Médici) a tivesse ordenado, algumas
130 Dez datas que todo católico deioeria conhecer

autoridades da Igreja não a permitiam em suas dioceses. Leão - que


queria dinheiro para a construção da nova basílica de São Pedro
- e um arcebispo alemão endividado com jogos reuniram forças
para implantar a venda de indulgências (reduçües das punições
temporais decorrentes do pecado, inclusive os pecados dos indiví-
duos que estão no purgatório). O famoso verso citado por Tetzel,
"Assim que soa a moeda no fundo do cofre, sai do purgatório a alma
que sofre'', talvez seja um pouco exagerado, mas sintetiza o objetivo
da campanha: venda por atacado de benefícios espirituais em troca
de dinheiro.
Esse tipo de comércio imoral não era algo novo; há um vende-
dor de indulgências trabalhando de modo semelhante nos Contos
de Cantuária, obra de Geoffrey Chaucher, do final do século XIV.
,. O mais interessante é a razão de esse comércio estar ativo naquele
momento. Não se pode imaginar a venda de indulgências sendo tão
lucrativa sem que houvesse urna economia florescente e uma men-
talidade receptiva da parte das classes endinheiradas. Certamente,
o homem de negócios, não propenso a adquirir as indulgências me-
diante orações e boas obras, e sem tempo para rezar por seus paren-
tes falecidos, veria o mercado de indulgências como uma bênção.
Dinheiro, tinha-o; tempo livre, não. Mais tarde, quando Lutero dis-
se-lhe que não existe a necessidade de indulgências e que, portanto,
ele poderia guardar seu dinheiro, ele ficou ainda mais feliz.

As ideias de Lutero se adaptam a uma era


comercial e individualista

Podemos agora examinar as ideias de Lutero no contexto de sua


época. A sua afirmação de que "somente a fé" é necessária para a sal-
1517 d.C. - A catástrofe protestante 131

vacão, por exemplo, casou bem com a era, ao livrar-se da necessidade


daquelas penosas boas obras. (Lutero não disse que não se devia
fazer boas obras; na verdade, ele disse que se devia fazê-las; mas é na-
tural ao homem concluir que, se algo não é estritamente necessário
para a salvação, pode ser deixado de lado.) Lutero também disse que
"o cumprimento dos deveres temporais é a única maneira de agradar
a Deus". Essa perda na ênfase da contemplação e da vida espiritual
provavelmente contribuiu para o fechamento dos mosteiros e con-
ventos na Alemanha e para a concentração em objetivos seculares,
entre eles os negócios. Isso soou bem aos ouvidos dos burgueses do
Sacro Império Romano-Germânico, e se adaptou bem ao espírito da
época. Devemos relembrar que desde a Idade Média reis e autorida-
des esforçavam-se incansavelmente para controlar as terras da Igreja
dentro do império. Não é de admirar que seus descendentes tenham
se encantado ao ver esses valiosos territórios, que seus ancestrais tan-
to haviam cobiçado, desprotegidos e sem poder de reação.
Outro ponto que casou bem com era e que seduziu mentes cada
vez mais individualistas foi o princípio de que somente a Bíblia era
a regra de fé e de que cada indivíduo podia interpretá-la sozinho.
Como observa um autor moderno, "o mandato divino de decidir o
que era verdade e o que era heresia foi passado da Igreja - de onde
pertencia - para o indivíduo."

A teologia de Calvino prepara o terreno para os negócios

O pregador francês João Calvino concordava com Lutero em


muitos pontos, mas enfatizou a doutrina que se tornaria seu car-
tão de visitas: a Predestinação Absoluta. Calvino acreditava que,
desde a eternidade, Deus havia determinado algumas almas ao
132 Dez datas que todo católico deueria conhecer

Céu e outras ao Inferno, e nada que um indivíduo fizesse poderia


mudar sua sentença eterna. Era horrível ter de conviver com uma
ideia como essa, e os primeiros calvinistas com frequência se angus-
tiavam com a noção de que talvez estivessem condenados e que não
havia nada 4ue pudessem fazer contra isso.
A teoria fora de algum modo abrandada, todavia, pela ideia de
que se o indivíduo fosse um dos "eleitos", sabê-lo-ia mediante alguns
sinais de Deus. Acreditar nos ensinamentos calvinistas seria um des-
ses sinais, bem como se comportar bem; o sinal mais seguro, no
entanto, porque mais objetivo, seria o de que os negócios mundanos
da pessoa estavam melhorando. Isso se inspira no modo como Deus
lidava com os hebreus no Antigo Testamento, recompensando-os
com prosperidade material se eles O agradassem.

Henrique VIII promove o cisma da Inglaterra

Diferentemente de Lutero e Calvino, Henrique VIII não preten-


dia criar uma nova teologia; ele queria apenas um divórcio, e o papa
não queria concedê-lo. Quando fez de si mesmo o chefe da Igreja
na Inglaterra, rompendo com Roma, ele primeiramente criou um
cisma, e não uma nova igreja. Contudo, mesmo antes de morrer,
depois de ter passado por mais dois divórcios e ter executado duas
esposas, os seus colegas de ideologia protestante haviam começado a
introduzir mudanças na liturgia católica.
Ao longo do reinado do sucessor de Henrique, emergiu a. Igreja
da Inglaterra. Era uma nova seita protesrnnte que costurara remen-
dos católicos com diversas ideias heréticas e com uma forte associa-
ção à coroa e aos deveres patrióticos. Mais tarde, alguns calvinistas
- sempre radicais e militantes - se tornaram muito influentes no
1517 d.C. - A catástrofe protestante 133

país, a ponto de, no século XVll, conseguirem implantar uma revo-


lução e executar o rei legítimo (Carlos 1). Essa influência calvinista
afetaria a sociedade e a economia tanto na Inglaterra como nos Es-
tados Unidos, onde rebeldes puritanos fundaram as primeiras colô-
nias da Nova Inglaterra em 1620 e 1630. As ideias calvinistas ingle-
sas contribuiriam para moldar a perspectiva americana sobre a "ida
política, social e econômica.

Resultados e consequências

Conhecemos bem os resultados da Reforma. Criaram-se novas


religiões hostis a Roma e em geral submissas às novas monarquias
sob as quais haviam emergido. Fragmentou-se a Cristandade de
modo irreversível, e a Igreja perdeu grande parte da Europa, que
conseguira unificar a duras penas durante a Idade das Trevas. Os
santos da Contrarreforma conseguiram recuperar alguns desses
territórios e reformar os abusos na administracão eclesiástica, mas
grande dano já havia sido causado e a grande parte da Civilização
Ocidental permaneceria infestada com ideias protestantes. O Padre
Frederick Faber, ele próprio um convertido do anglicanismo, anali-
sou diversos efeitos da mentalidade protestante nos católicos da In-
glaterra do século XIX. "É difícil", observa. ele, "viver entre icebergs
e não sentir frio."
Em um de seus livros, ele aponta um dos resultados mais preju·
diciais da convivência dos católicos com os descrentes:

As Sagradas Escrituras comparam a vida a uma terra cansada


(... ) Assim é com a religião. Não podemos viver entre descren-
tes, e, ao mesmo tempo, gozar da brilhante vida espiritual dos
134 Dez datas que todo católico deveria conhecer

que vivem nos tempos e regiões de fé. Os que passam a vida


em uma espécie de Éden doméstico, que deixariam senão
com pesar, caso encontrem os que são filhos da Igreja, não
tardam a se ressentir destas relações, desde que vivam em paz
com aqueles a quem nunca deveriam cessar de tentar conver-
ter. A Fé, bem como a santidade, debilita-se e fenece no con-
vívio de tal sociedade, cuja atmosfera não lhes é conveniente.
Daí originam-se tantas opiniões estranhas quanto à facilidade
da salvação para os hereges, indo até a baixeza de considerar
a bondade de qualquer doutrina como medida de verdade,
mas bondade, entenda-se, não para com Nosso Senhor e a
Sua Igreja, mas para com os que não lhes são ligados, a Ele
ou a Ela.

Quem, hoje em dia, não tem na família ao menos um descren-


te, com o qual ninguém quer discutir, para não ter que perturbá-lo
com incômodas questões religiosas?
O processo de mudança da civilização católica da Idade Mé-
dia Plena até a fragmentação do mundo cristão no século XVI
pode se resumir da seguinte maneira: a cobiça e a mundanida-
de primeiro produziram indiferença às coisas de Deus, e o amor
por Nosso Senhor esfriou. Quando nem sequer os numerosos
santos que Deus enviou no século XIII puderam tocar os cora-
ções dos cristãos na proporção que Ele desejava, a Europa sofreu
os castigos da fome, da peste e da guerra. Consequentemente, os
homens cresceram piores e não melhores. Puniram-se até mesmo
os papas com cismas e heresias. O castigo seguinte, muito pior, foi a
difusão de erros filosóficos e teológicos em toda a Cristandade por
1517 d.C. - A catástrofe protestante l35

heresiarcas carismáticos e obstinados, pregadores de falsas doutri-


nas e ódio à Igreja.
Esse processo continua. Com efeito, o julgamento privado alcan-
çou sua conclusão lógica no culto do homem moderno: a partir do
conceito "todo homem é um papa" durante a Reforma, para a ideia
de que "todo homem é seu próprio rei" no período revolucionário
seguinte, chegando até o atual "todo homem é seu próprio deus".
É verdade que a Igreja da Contrarreforma, cuja ponta de lança foi
o Concílio de Trento, reformaria abusos e conseguiria grandes vitó-
rias. Papas exemplares a lideraram e ela recebeu a graça do auxílio de
vários santos. O número total das legiões de almas que ela não pôde
recuperar na Europa talvez tenha sido compensado pela conversão
de milhões no Novo Mundo.
No entanto, muito do que se perdeu nunca mais foi recuperado.
A Igreja, no mundo moderno, tem permanecido na defensiva, e ~o­
dos nós fomos afetados pela mudança do clima intelectual origin~
riamente introduzido pela mentalidade protestante. Mas é evidente
que, como sempre, há motivos para se ter esperança; no próximo
capítulo veremos um grande triunfo católico sobre outro grande pe-
rigo que ameaçou o catastrófico século XVI.
1571 d.C.
A Batalha de Lepanto: a vitória naval de
Nossa Senhora

o final do século XVI, os católicos ansiavam desesperadamen-


N te por uma nova intervenção divina. A Igreja havia iniciado
seu contra-ataque à revolta protestante, mas a Cristandade perma-
necia tragicamente divida, e várias partes dela aparentavam ter sido
perdidas para sempre. Revoltas violentas e guerras religiosas haviam
devastado vários países, deixando a Europa vulnerável a ataques
estrangeiros, e os inimigos não demoraram a aparecer. Se o Sacro
Império Romano-Germânico deu a merecida atenção às revoltas
internas que o luteranismo nele produziu, não fez o mesmo com
os problemas que se passavam do outro lado das fronteiras, e deste
modo os enfraquecidos Estados da Europa Oriental ficaram à mercê
dos exércitos estrangeiros.
Foi então que uma afronta formidável, que por séculos reunia
forças, resolveu atacar: os conquistadores muçulmanos do Impé-
rio Bizantino haviam decidido incorporar o Ocidente ao Império
Otomano.

O islã em marcha

O confronto entre a Europa e o islã vem ocorrendo des-


de o século VII, quando os árabes realizaram operaçôes milita·
res espetaculares e conquistaram o Norte da África, a Espanha, a
Terra Santa e grande parte do Império Bizantino. Na França,
eles foram detidos por Carlos Martel na Batalha de Tours. Na
138 Dez datas que todo católico dewria conhecer

Espanha, a resistência iniciada nas montanhas das Astúrias - que


culminaria com a expulsão dos mouros cm 1492 - ganhava força.
No Oriente, porém, as coisas haviam ocorrido de modo diferen-
te. Em resposta a um apelo desesperado do imperador bizantino,
em 1095, e ao fervoroso d1amado do Papa Urbano II, os reinos
do Ocidente organizaram uma série de expedições militares - as
Cruzadas -, cujo objetivo era ajudar Constantinopla a resistir aos
ataques dos árabes e turcos seljúcidas e recuperar a Terra Santa.
Somente a Primeira Cruzada triuntlnt, tendo recuperado Jerusalém
por algum tempo. No século XIII, todavia, o Império Bizantino
fora reduzido pelos conquistadores muçulmanos a uma pequena
fração de seu território original, apesar de Constantinopla não ter
sido conquistada.
Em seguida vieram os otomanos. Esse povo turco, nativo das
estepes da Ásia, converteu-se ao islã e começou a invadir áreas an-
teriormente dominadas por árabes e turcos seljúcidas. Eles desen-
volveram um sistema estatal bem organizado, com grande poderio
bélico. Até o século XIV, Constantinopla conseguiu se esquivar
deles, mas em 1350 os turcos estabeleceram uma cabeça de ponte
na Europa por meio da Península Balcânica. Isso devia ter soado
o alerta para o continente, mas a ameaça foi ignorada em razão da
Guerra dos Cem Anos e das rebeliões posteriores à Peste Negra. A
atenção dos governantes seculares estava focada em problemas do-
mésticos, bem como a Igreja, que nos séculos XIV e XV se manteve
preocupada com a anomalia do Papado de Avignon e, logo depois,
com o Grande Cisma do Ocidente. Por décadas, houve dois ou
três postulantes ao trono papal, e poucos fiéis sabiam quem era o
verdadeiro papa. Quando a questão foi por fim resolvida no século
XV, os membros do concílio que a haviam resolvido passaram a
1571 d.C. - A Batalha de Lepanto: a vitória naval de Nossa Senhora 139

afirmar que eles eram o poder máximo na Igreja: esse foi o problema
do conciliarismo.
Enquanto isso, os otomanos, comandados por líderes deter-
minados e habilidosos, perseguiam metodicamente o seu objetivo
de construir um grande império. Eles desenvolveram uma série de
inovações administrativas, uma delas chamada de "sistema janíza-
ro". Esse criativo esquema de treinamento de soldados fanáticos e
súditos servis envolvia o sequestro de meninos nas terras invadidas
pelos turcos e o transporte deles para as terras do sultão. Ali, eles
se transformavam em pequenos muçulmanos: eram submetidos à
circuncisão e a todos os rituais típicos e educados para serem total-
mente leais a seu mestre. A sua educação durava vários anos e se
lhes impunha um rigoroso treinamento físico, cujo objetivo final
era integrá-los na elite da infantaria e dos guarda-costas do sultão,
conhecidos como janízaros. Os que demonstrassem inclinações pa~a
a vida intelectual eram instruídos a fim de ser inseridos nos níveis
mais altos de administração do governo imperial. Os janízaros não
tinham permissão para ter propriedades ou se casar, pois deviam se
dedicar inteiramente ao sultão.
Preparados para posições de prestígio no exército e governo oto-
manos, e recompensados com grande riqueza por seus serviços, a
maioria dos janízaros com o tempo se esquecia das memórias de sua
terra natal e da língua de sua infância. Veremos um desses súditos,
entretanto, que não as esqueceria.
Em 1453, os turcos otomanos conseguiram tomar a inconquis.
tável cidade de Constantinopla. O sultão Maomé II não mantinha
segredos a respeito de seus planos futuros: "O império mundial deve
ser só um; uma fé e um rei." Mesmo sob tão grande perigo, a Europa
se mantinha inteiramente focada em si mesma e não deu atenção às
140 Dez datas que todo católico dewria conhecer

ameaças externas (embora se conte que a queda de Constantinopla


tenha c:lllsado um colapso no rei Henrique Vl da Inglaterra, o que
causou a sua morte pouco tempL) depois). Somente a Europa Orien-
tal conhecia (de modo contundente) o perigo que a ameaçava, e seus
heróis lutaram sozinhos.

O papa, o general e o santo

O nepotistaAlfonso Bórgia tornara-se o Papa Calisto III em 1455.


A despeito de seus defeitos, ele via com clareza a necessidade de com-
bater os turcos: "Eu, Calisto III, prometo a Deus Todo-Poderoso e à
Santíssima Trindade que, quer seja pela guerra, imprecação, proibi-
ção, excomunhão, ou qualquer outro meio sob o qual tenho poder,
expulsarei os turcos, os maiores inimigos dos cristãos." Calisto reu-
niu os fundos que estavam à sua disposição e convocou uma cruzada.
Infelizmente, os governantes do Ocidente já tinham problemas de-
mais e não puderam atender ao chamado; o máximo que o papa con-
seguiu foi enviar alguns navios para ajudar a defesa das ilhas medi-
terrâneas. Mas era muito pouco. Sem grandes obstáculos, à exceção
das pequenas e mal preparadas forças dos principados balcânicos, os
rurcos se voltaram para o norte, território governado pela Hungria.
O seu objetivo principal era a cidade de Belgrado, cercada de
muralhas e siruada em urna posição estratégica no encontro de
dois rios. Se Belgrado caísse, todo o sudeste da Europa abrir-se-ia
aos exércitos muçulmanos. A defesa da cidade se fazia crucial para a
sobrevivência da Europa, mas naquele momento parecia quase im-
possível organizar qualquer resposta à ameaça; senhores húngaros
discutiam se deviam lutar ou recuar. Os magnatas feudais relutavam
em confiar as tropas a um esforço comum, e o rei também duvidava.
1571 d.C. - A Batalha de Lepanto: a vitória naval de Nossa Senhora 141

Mas, por fim, ele decidiu não esperar mais e agiu: apontou João
Corvino como comandante-chefe do exército húngaro. Para os
turcos, esse grande guerreiro deve ter parecido uma figura onipre-
sente. Ele recapturou fortes, libertou cidades sitiadas e neutralizou
vários ataques; certa vez, o inimigo fugiu em pânico à sua chegada.
Corvino seguiu para defender Belgrado.
De acordo com o historiador J. B. Bury: "O cerco durou três
semanas do mês de julho de 1456. Poucas vezes, nos combates en-
tre a Europa e os turcos otomanos, houve um feito tão brilhante
como a libertação de Belgrado por João Corvino e seu exército." O
exército que Corvino conseguiu reunir era pequeno e desprepara·
do. O Papa Calisto enviara um embaixador para tentar conseguir
apoio para a causa, e emitiu uma bula papal convocando a Cristan-
dade à oração, à penitência e ao jejum. Quando uma epidemia se
espalhou em Roma, ele recusou-se a fugir; disse ao embaixador que
muitos turcos haviam perecido em razão da mesma doença, e no
entanto o sultão não interrompera sua marcha.
Por fim, foi São João Capistrano, o grande pregador italiano,
que, ao viajar ao redor da Hungria, incentivou aqueles que o ou·
viram a pegar em armas contra os turcos. O próprio São João, em
um primeiro momento, desencorajou-se pela fria recepção aos seus
fervorosos apelos. Mas certo dia, enquanto rezava missa, teve a vi-
são de uma seta com as palavras "Não temas; triunfarás sobre os
turcos pela virtude de meu Nome e da Santa Cruz, que tu portas."
Ele falou dessas visões nos seus sermões, e a sua nova confiança
estimulava os homens a lutar. Vários voluntários afluíram para os
estandartes de Corvino e, ao romper o bloqueio dos navios n1rcos
com a pequena frota que havia reunido, o exército adentrou a cida-
de no dia 15 de julho.
142 Dez datas c/ue todo católico det1eria conhecer

Mas a ameaça muçulmana contra Belgrado permanecia, e os ca-


nhões otomanos continuavam a danificar as muralhas. Quando se
tornou evidente que os turcos estavam prestes a impedir qualquer
contato externo com a cidade, São Joiio fugiu, mas prometeu retor-
nar com um exército que iria surpreender turcos e cristilos. Enquan-
to isso, à medida que o exército turco se reunia para o ataque decisi-
vo, os defensores cristãos se assombraram com o imenso número de
homens e, especialmente, com a artilharia do inimigo. João Corvino
disse que esse exército era quatro vezes maior que qualquer outro
anteriormente reunido pelos turcos. O grande ataque às muralhas
começou no fim da tarde de 21 de julho, e foi devastador. São João
chegou com o seu "exército", uma multidão esparsa e heterogênea
de homens despreparados, que Corvino considerava inapta para o
combate. Segundo alguns relatos, Corvino começava a acreditar que
uma trégua com o sultão seria a única maneira possível de salvar
pelo menos algumas vidas naquele momento drástico. São João dis-
cordou, argumentando vigorosamente e prometendo-lhe a vitória.
Corvino por fim concordou e continuou a lutar.
A história completa do Cerco de Belgrado, das táticas ins-
piradas dos defensores, por terra e mar, e do dia da batalha final
é muito longa para ser contada em detalhes aqui. No decorrer
do combate, o incansável Capistrano se manteve em um ponto
alto da costa, à vista de turcos e cristãos, balançando um estan-
darte marcado com a cruz e gritando o nome de Jesus. Durante
essas três semanas, ele recebeu e abençoou os novos voluntários
que chegavam, e ajudou a retirar os doentes e feridos das forta,
lezas para as vilas, rio acima. Raramente dormia ou comia, em,
hora houvesse bastante comida disponível, pois novos cruzados
haviam chegado aos milhares da Alemanha, Polônia, Boêmia, entre
1571 d.C. - A Batalha de Lepanto: a vitória naval de Nossa Senhora 143

outras nações. Não eram soldados profissionais, mas sua veneração


por São João era tão grande que eles o seguiam aonde quer que fos-
se. Padres e religiosos chegaram com novos contingentes: celebravam
missas, cantavam os ofícios e ouviam confissões. Conta-se que um
soldado observou: "Temos um santo capitão, devemos evitar todo
pecado." O grito de guerra que São João lhes dera foi "Jesus, Jesus,
Jesus!"
Nos dois últimos dias da grande batalha, 21 e 22 de julho, a es-
perança se alternava com o desespero, enquanto os turcos invadiam
a cidade e alguns defensores fugiam, temendo a derrota. Os inimigos
haviam conseguido atravessar o fosso ao redor da fortaleza e, antes de
escurecer, no dia 21 de julho, os janízaros cruzavam-no e subiam as
muralhas. Porém, a maré mudou novamente. Corvino ordenou aos
defensores que jogassem todo tipo de material inflamável (inclusive
pedaços de bacon) para dentro do fosso e o incendiassem. O fosso
tomou-se uma cortina de fogo, separando os janízaros de dentro da
cidade de seus companheiros do lado de fora; aqueles que estavam
no fosso pereceram ou se feriram gravemente. Os defensores então
se concentraram nos inimigos que haviam atravessado as muralhas
e os massacraram. Na manhã do dia 22 de julho a batalha havia ter-
minado. Os remanescentes do exército turco ainda eram muitos, e
os defensores católicos, prudentes, decidiram não os perseguir, com
receio de cair em uma emboscada.
Neste momento algo estranho ocorreu. Ao que parece, alguns
cruzados saíram da fortaleza e se posicionaram frente a frente com
as linhas otomanas. Eles começaram a trocar insultos com alguns
turcos. Aparentemente, os turcos restantes - preocupados com
seus feridos e com a desordem de suas tropas - viram os cruzados
como um mero incômodo. Então, um pequeno grupo de cruiados
144 Dez datas que todo católico det.•eria conhecer

começou a atirar em alguns turcos que se reagrupavam. Estes


fugiram, e logo grande número de cristãos começou a deixar a reta-
guarda e a atacar contra as ordens. São João saiu ao acampamento
para chamá-los de volta; contudo, quando os defensores de dentro
da fortaleza lá o viram, correram para fora e juntaram-se a ele. Ao
ver os soldados cristãos se aproximarem, os turcos fugiram e foram
perseguidos, e os cristãos capturaram sem luta as armas do inimigo
usadas no cerco.
São João viu nesse avanço espontâneo a vontade de Deus, afas-
tou-se daqueles que poderiam impedi-lo, seguiu a multidão e esca-
lou um monte empunhando seu porta-estandarte. Lá, ele encorajou
os cristãos que duelavam com as reservas turcas, acenando sua cruz
e gritando orações. Ao entardecer, eles retomaram à fortaleza; os
turcos recuaram para o seu acampamento, ansiosos para sair dali o
quanto antes. Eles haviam perdido cerca de 50 mil homens, além de
trezentos canhões e trinta navios. Belgrado fora salva.
Corvino acreditava ser o momento de perseguir os turcos e ex-
pulsá-los de urna vez por todas da Europa. Ele escreveu rapidamente
ao papa, argumentando que isso era possível, "caso a Cristandade
estivesse disposta a se levantar." Poucos dias após a batalha ele mor-
reu doente. São João também adoecera, e no final de outubro estava
morto. A Cristandade não se impôs, e os turcos não demorariam a
retornar.

Um novo guerreiro adere à batalha

Em 1423, João Castrioto, o governante de Epirus - parte


da atual Albânia - havia sido forçado pelos turcos a aceitar du-
ríssimos termos para um acordo de paz. Eles incluíam a pres-
1571 d.C. - A Batalha de Lepanto: a vitória naval de Nossa Senhora 145

crição cruel de mandar seus quatro jovens filhos como reféns


para a corte otomana, onde eles foram circuncidados, forçados
a se converter ao islã e treinados para servir ao sultão. Especula-
-se a respeito do que aconteceu com três dos irmãos, há rumo-
res sobre morte por envenenamento; eles sumiram da História.
Entretanto, isso não ocorreu ao quarto irmão, Jorge. A sua destreza
militar agradou a corte e logo ele estava vencendo batalhas para os
exércitos otomanos. Era tão forte, valente e habilidoso que os turcos
o chamavam de Iskanderbey, a palavra turca para Alexandre, o Gran-
de; ele entrou para a História como Scanderbeg.
A cronologia e os eventos do começo de sua carreira são incer-
tos. Certa versão conta que, em determinado momento, ele retor-
nou em segredo ao cristianismo, e quando o sultão decidiu con-
quistar a Albânia, em 1433, ele escapou da corte e retornou a sua
terra nativa, onde assumiu o comando de seu exército. Outra versão
situa-o na Albânia no mesmo ano, mas ainda no comando do exérci-
to otomano contra o exército de João Corvino, que havia ido ao sul
enfrentar os turcos. De acordo com essa versão, em um momento
crucial, Scanderbeg, juntamente com outros albaneses nas frontes
turcas, passou para o lado dos húngaros e lutou ao lado de Corvino
contra os otomanos.
Ambas as versões são plausíveis; o que é certo é que no ano de
1433 ele deixou de servir os otomanos e tornou-se o grande campeão
albanês, unindo seu país e mantendo os turcos afasrados até a data
de sua morte, em 1468.
Foi por isso que, após a morte de Corvino, o Papa Calis-
to via Scanderbeg como o último grande guerreiro disposto a
combater pela Cristandade "resistindo quase sozinho, corno
uma fortaleza", disse ele. Ele fez de Scanderbeg o general da
H6 Dez datas que todo católico dewria conhecer

cruzada antiturca de 1457, quando o albanês estava envolvido na


implacável luta pela liberta\:ão da Albânia e na preserva-
ção de sua liberdade. Ele obteve tanto sucesso que o sultão
o reconheceu como soberano absoluto da Albânia em 1461.
Os sucessores de Calisto, Pio II e Paulo II, continuaram a clamar
desesperadamente por uma nova cruzada, mas se deparavam com a
apatia da Europa. Com o escasso apoio que o papa e alguns nobres
italianos puderam lhe oferecer, Scanderbeg, o "Campeão de Cristo",
continuou a combater os turcos até os seus 60 anos. No ano de sua
morte por febre, em 1467 ou começo de 1468, conta-se que o sultão
exultou: "Finalmente a Europa e a Ásia são minhas. Ai da Cristan-
.dade! Perdeu sua espada e seu escudo!"
A frase se mostrou verdadeira para a Albânia. Um grande exér-
cito turco foi enviado contra ela em 1467. Scanderbeg passou os úl-
timos meses de sua vida combatendo-o. Quando morreu, os turcos
derrotaram as suas enfraquecidas tropas. A Albânia foi devastada
pelo exército inimigo, e milhares de albaneses foram escravizados,
apesar de certa resistência aos turcos ter sobrevivido, juntamente
com a Fé e a lembrança de Scanderbeg. Os otomanos estavam agora
muito próximos de se tornar vizinhos dos Estados da Europa Oci-
dental. A República de Veneza, em particular, possuía territórios
na baixa costa do Mar Adriático, região que tinha a Albânia cristã
servindo de para-choque contra os turcos. Agora, só o Mar Adriático
separava a Albânia otomana da Itália. No século seguinte, a ameaça
otomana contra toda a Europa se tornaria mais grave com a emer-
gência do maior sultão já visto por este império: Suleiman.
1571 d.C. - A Batalha de Lepanto: a vitória naval de Nossa SenhOTa 147

Suleiman, o Magnífíco

Suleiman não foi somente um governante poderoso e um plane-


jador magistral de campanhas otomanas, mas também um grande
patrono das artes. As construções que ergueu para embelezar a sua
capital, os trabalhos literários que patrocinou e o seu legado justifi-
cam a alcunha de "o Magnífico". O seu reinado, de 1520 a 1566, foi
o apogeu do Império Otomano. O Mar Negro estava sob comando
turco; eles controlavam o Golfo Pérsico e todas as rotas comerciais
com o Oriente. O norte da África e o Egito estavam sob seu contro-
le. Os mouros, derrotados em Granada em 1492, ansiavam por se
aliar aos otomanos e reinvadir a Península Ibérica.
Determinado a conquistar a Europa, que agora não estava só
preocupada com suas políticas triviais mas também dividida pela
Reforma, Suleiman iniciou sua grande campanha na primavera de
1521, ao capturar a cidade de Belgrado - ainda crucial para se1,1s
propósitos. No verão seguinte ele conquistou a Ilha de Rodes, defen-
dida heroicamente pelos Cavaleiros de São João. O sultão mostrou
alguma nobreza ao permitir que os sobreviventes - cavaleiros, solda-
dos e civis - saíssem vivos da ilha.
Chegara a hora de preparar a grande ofensiva contra a Hun-
gria, portão de entrada da Europa. Ao se dizer ofendido pelo fato de
Luís, o jovem rei húngaro, não tê-lo parabenizado por sua ascensão
ao trono, Suleiman reuniu um enorme exército de cerca de 70.000
soldados regulares e 40.000 irregulares e partiu para o norte. A Eu-
ropa estava plenamente consciente desses ataques, e caso o novo
Sacro Imperador Romano não estivesse tão pressionado pela revolta
luterana e pelas concomitantes revoltas de camponeses, talvez tives-
se tomado alguma providência. (É até mesmo passivei que Lutero
f
1
1 148 Dez datas c/ue todo católico det eria conhecer
1

1
1
1
;'
tenha visto a investida turca como favorável a suas ideias, uma vez
que ele ath-ogava o pacifismo com relação ao inimigo. Disse ele: "Lu-
tar contra os turcos é resistir ao Senhor, que pune nossos pecados
de forma tão dura.") J. B Bury escreve: ''A difusão da doutrina dos
reformistas parece ter sido uma das causas que afrouxou e enfraque-
ceu a resistência húngara contra os turcos otomanos."
Conforme o perigo se aproximava, Lutero mudou de posição e
começou a incentivar os príncipes a apoiar o imperador em uma cru-
zada - embora ele ainda afirmasse que os desastres da ofensiva oto-
mana pudessem de certo modo ser culpa dos papas e bispos. Mesmo
assim, a Hungria enfrentou o seu destino quase sozinha. O rei Luís,
com 19 anos, deixou a capital para combater um exército de cerca
de 100.000 homens com apenas 3.300 soldados. Quando alcançou a
planície de Mohács, onde a batalha teria início, o seu exército havia
aumentado para talvez 25.000 - ainda assim ultrapassado em uma
proporção de quatro para um. O resultado já era esperado: em 29
de agosto de 1526, as forças húngaras foram derrotadas e o rei Luís
II, morto. A maior parte do país caiu sob domínio turco por dois
séculos.
Em 1529, Suleiman se concentrou no próximo alvo: Viena, a
porta de entrada da Europa Ocidental. A cidade estava situada em
uma posição estratégica, não apenas por causa de suas muralhas,
mas também por causa da proteção oferecida pelo terreno aciden-
tado das florestas vienenses, cuja travessia por um grande exército
seria impossível. Se Suleiman conseguisse tomar essa cidade, o exér-
cito otomano poderia invadir o Ocidente quilômetros adentro sem
encontrar resistências significativas. Devido a um longo período de
chuvas, ele teve de adiar a aproximação de seu exército. Quando
iniciou o cerco da cidade, era final de verão e, no período em que
1571 d.C. -A Batalha de Lepanto: a vitória naval de Nossa Senhora 149

se retirava, após não ter conseguido romper as defesas, a chuva se


transformara em neve. O sultão tentou novamente três anos depois,
porém, mais uma vez começou o cerco tarde demais - dessa vez
em razão da resistência heroica de uma fortaleza húngara situada na
fronteira, que impediu seu avanço. Ele fora mais uma vez forçado a
desistir. Incapaz ele conquistar a cidade, Suleiman descarregou sua
raiva nos camponeses da Áustria, saqueando e destruindo suas plan-
tações e vilas.
Suleirnan, o Magnífico, nunca entrou em Viena. Os turcos só
iriam tentar o seu derradeiro ataque sobre essa cidade - o mais for-
midável deles - no século seguinte, mas foram derrotados pela nova
geração de heróis que havia surgido.
Os dias do sultão se aproximavam do fim. Em 1566 ele mor-
reu durante o cerco de Szigetvás, outra heroica e resistente forta-
leza húngara. Ele deixou ao seu filho, Selim II (conhecido como
"o Beberrão"), um império de 64.000 quilômetros quadra-
dos, uma frota invicta e o sonho de ser o imperador do mundo.
Entretanto, Selim não era o mesmo homem que seu pai. Suleiman
podia ser impiedoso e cruel - ele presenciou o estrangulamento de
um de seus próprios filhos -, mas também possuía um lado cava-
lheiro e magnânimo e era um governante altamente capaz. O fraco
e beberrão Selim passou a maior parte do seu reino sob a influên-
cia de Sokolli, o seu grão-vizir, e o seu reinado inclui atrocidades
e fraudes que não ocorreram no governo de Suleiman. No entan-
to, foi durante o regime de Selim que os otomanos iniciaram o seu
ataque ao Mediterrâneo cristão. Eles não apenas conquistaram ra-
pidamente a maior parte das ilhas da parte leste, mas os mouros
da África do Norte, que vinham pedindo ajuda otomana para in-
vadir novamente a Espanha desde 1567, tinham agora boas razões
150 Dez datas que todo católico dei1eria conhecer

para crer que logo iriam consegui-la. Ainda havia muitos mouros
restantes na Espanha, e a combinação de revoltas internas com
ataques externos provavelmente causaria muitos danos. A Europa
reagiria dessa vez, a uma ameaça tão próxima? Estava claro que a
frota otomana estava a caminho, embora as noticias viajassem len-
tamente; em todo caso, se o papa estava consciente desta ameaça
geral, também estavam as cortes para as quais ele enviou os seus
diplomatas.

O Papa São Pio V soa o alarme

Pelo menos um homem enxergou com clareza a gravida-


de da situação. Em 1570, enquanto a ameaça movia-se rumo
ao oeste, o Papa São Pio V contatou os governantes do Oci-
dente para que se unissem contra o inimigo que ameaçava a to-
dos. Mas foi em vão. Elizabeth da Inglaterra? "The cold queen of
England is looking in the glass" 1 escreve Chesterton em seu famoso poe-
ma épico Lepanto. Ela estava focada em si mesma, na sua rivalidade
com a Espanha, na sua intricada diplomacia e perseguição aos cató-
licos. A França? "The shadow of the Valais is yawning at the Mass. "2 Nes-
sa época, a França aliara-se aos turcos por certo tempo. O país era
rasgado por guerras religiosas e governado pelo instável Carlos IX,
um dos filhos doentes da maquiavélica rainha Maria de Médici. Até
mesmo Felipe li da Espanha, campeão da causa católica contra os
protestantes, estava muito ocupado com seu novo império no Novo
Mundo e não respondeu pessoalmente aos chamados do papa.

t. "A fria rainha da Inglaterra olha-se no espelho."


2."A sombra dos Valeis boceja na Missa."
1571 d.C. -A Batalha de Lepanto: a vitória naval de Nossa Senhora 151

No entanto, de enviou seu meio-irmão, Dom João da Áustria,


um jovem de pouco mais de vinte anos, além de dúzias .de navios.
Tendo chegado à Itália, João recebeu voluntários de todos os países
mediterrâneos e começou a reunir uma frota em 1571. Ele
conseguiu reunir cerca de 210 navios (oitenta a menos do que a frota
turca), a grande maioria vinda dos Estados Pontifícios, da Espanha,
de Veneza e de outros Estados italianos. Os Estados aliados chama--
varo-se a Santa Liga.
A nau do almirante genovês Giovanni Andrea Doria trazia uma
imagem intrigante que Felipe II da Espanha lhe enviara. Felipe a
havia recebido do arcebispo do México, que a confirmou como uma
cópia da misteriosa imagem de Maria surgida em 1532 no manto de
um índio asteca. O arcebispo, ao ouvir as notícias dos ataques turcos
à Europa e do esforço para se tentar organizar urna defesa eficaz,
deve ter pensado sobre os vários milagres associados à imagem de
Nossa Senhora de Guadalupe. Quando a cópia foi terminada, ele
a comparou com a original e enviou-a para o rei, aconselhando-o a
·colocá-la em um dos navios da Santa Liga, esperançoso por vitória.
O Papa São Pio V também buscava a ajuda de Nossa Senhora atra-
vés da recitação do Rosário, que pediu a toda a Europa, a fim de
que a ofensiva cristã saísse vitoriosa. Quando os navios partiram do
porto siciliano de Messina, em 16 de setembro de 1571, todos os
homens a bordo levavam consigo os seus terços.

As atrocidades turcas alarmam o Ocidente

Havia opiniões diferentes entre os membros da Santa Liga a


respeito de organização e táticas; alguns sugeriam uma postura de-
fensiva, ao passo que outros preferiam ir de encontro aos turcos e
152 Dez datas que todo católico deveria conhecer

atacá-los rapidamente. A medida que a frota se movia lentamente


rumo ao leste, ela parou rapidamente em Corfu. Os homens se hor-
rorizaram com o que viram: os turcos haviam atacado a ilha há pou-
co, tendo profanado igrejas e destruído objetos de culto. A vontade
dos guerreiros se inflamou e eles prosseguiram a rota. Logo depois
ouviram acerca das atrocidades ainda piores ocorridas algumas se-
manas antes.
Em agosto, os otomanos haviam cercado a ilha de Chipre, uma
colônia comercial de Veneza, rendido a cidade de N icosia e forçado
a aceitação de termos de paz. Os turcos, todavia, logo romperam os
acordos e assassinaram milhares de cidadãos indefesos. As mulheres
lutaram bravamente para que não fossem aprisionadas e vendidas
como escravas em haréns; algumas saltaram dos telhados para evitar
a captura. Quando centenas de mulheres e meninos foram captura-
dos e enviados de navio rumo aos mercados de escravos da Turquia,
uma jovem mulher, Amalda de Rocas, conseguiu, desesperada, infla-
mar a pólvora que estava a bordo e explodir todo o navio.
Foi então a vez da cidade de Famagusta. Novamente, uma ci-
dade forçada a se render aceitou as promessas dos sitiantes turcos
de que os habitantes seriam poupados, e uma vez mais o inimigo
recusou-se a honrar seus próprios termos. Os residentes da cidade
foram massacrados. O corajoso comandante Marco Antônio Braga·
dino foi submetido a terríveis torturas: esfolado vivo nos diques de
Famagusta, teve a pele recheada de palha e costurada, e em seguida
o cadáver foi arrastado pela cidade. Esses incidentes de crueldade e
traição pelos turcos galvanizaram a resolução dos guerreiros da Santa
Liga, especialmente em dois dos irmãos Bragadino, comandantes de
alguns dos navios.
1571 d.C. - A Batalha de Lepanto: a vitória naval de Nossa Senhora 153

A gmnde batalha

Em Roma, o Papa Pio V se reunia com seu tesoureiro. Subi-


tamente ele se levanta, vai até a janela e contempla o céu. Então
se vira e diz: "Agora não é momento para negócios; agradeçamos
a Deus, pois nossa frota acaba de derrotar os turcos." Era dia 7 de
outubro de 1571, e o que o papa aparentemente enxergou naquela
visão - pois é impossível que a notícia tenha chegado até ele por
meios naturais - foi o que tem sido chamado de a maior batalha
naval desde a Batalha de Accio (entre as forças de Marco Antônio e
Cleópatra, de um lado, e Otávio do outro) em 31 a.C.
Historiadores de navegação têm analisado extensivamente a
Batalha de Lepanto, descrito as manobras das duas frotas e as diver-
sas táticas e armamentos utilizados, e em diversos websites é possível
encontrar mapas e imagens detalhadas. Não tratarei aqui das que.Y.
tões técnicas, mas alguns pontos devem ser mencionados.
A frota turca estava ancorada no Golfo de Corinto no momen-
to em que os aliados se aproximaram. Ela era mais numerosa que
a frota cristã, mas o número de combatentes possivelmente era o
mesmo; talvez 30.000 de cada lado. Os cristãos tinham a considerá-
vel vantagem de possuir seis galleas (barcos maiores que as galeras e
portadoras de canhões laterais). As galeras possuíam apenas canhões
frontais. Deste modo as galleas podiam infligir grande dano a qual-
quer navio que se aproximasse lateralmente.
Alguns relatos dizem que no momento em que as frotas alcança-
ram o raio de combate, no amanhecer do dia 7 de outubro, o vento
soprava a favor das velas turcas e as impulsionou contra as embar·
cações cristãs. Então, subitamente, o vento mudou, e os navios de
Dom João puderam se aproximar do inimigo. Essa proximidade era
154 Dez data.~ que todo católico dei eria conhecer
1

necessária, pois o combate naval no século XVI incluía luta corpo a


corpo nos deques, bombardeio de canhões e arremesso de flechas.
Assim, a vitória cristã em Lepanto custaria caro. Nas palavras
vivas de Chesterton:

Don John potmding from the slaughter-painted poop


Purpling all the ocean like a bloody pirate's sloop
Scarlet running over on the silvers and the gold.s ... 3

Quilômetros de mar avermelharam-se de sangue quando, no fi-


nal da tarde de 7 de outubro, a batalha terminou. A Santa Liga per-
dera cerca de 8.000 homens e tinha pelo menos o dobro em feridos.
O mesmo número de turcos morreu; milhares foram capturados,
cinquenta navios afundaram e pelo menos 117 embarcações foram
tomadas.
Um acontecimento imprevisto foi a saída, dos fundos das galeras
turcas, de milhares de escravos cristãos que haviam sido forçados a
remar os navios. Chesterton descreve:

Thronging of the thousands up that labor under sea,


White for bliss and blind for sun and stunned for liberty.
Vi\lat Hispania! Domino Gloria!
Don John of Austria has set his people free. 4

3. Dom João batendo no cepo de sacrifício da popa/ Cobrindo de púrpura


todo o oceano como uma chalupa de um horrível pirata/ O escarlate escor-
rendo sobre a prata e o ouro.
4. Entronizando os milhares que laboram sob o mar / Brancos de felici-
dade, cegos pelo sol e surpresos pela liberdade./ Viva a Espanha! Glória ao
Senhor! / Dom João da Áustria libertou o seu povo.
1571 d.C. -A Batalha de Lepanto: a vitória naval de Nossa Senhara 155

Um famoso espanhol que lutou nesta batalha, o escritor Cervan·


tes, serve de símbolo nos versos finais do grande poema:

Cervantes on his galley sets the sword back in the sheath


(Don John of Austria rides homeward with a wreath.)
And he sees across a weary land a straggting road in Spain,
Up which a lean and foolish knight for ever rides in vain,
And he smiles, but notas Sultans smile, and setdes back the biade.
(But Dom John of Austria rides home from the Crusade)5

Quando as notícias chegaram à Europa, houve grande alívio,


regozijo e ação de graças. Quanto ao Papa Pio V, ele deu à batalha
o merecido crédito, declarando o dia 7 de outubro como a Festa de
Nossa Senhora da Vitória; mais tarde mudou-se o nome para Festa
de Nossa Senhora do Rosário.

Uma história sem fim

A grande importância desta magnífica batalha, o apogeu da lofl'


ga resistência cristã contra a conquista muçulmana, foi que ela termi·
nou com todos os grandes ataques turcos nas costas mediterrâneas.
A frota otomana, dizimada, seria parcialmente reconstruída, e uma
ou duas ilhas e áreas costeiras da África mais tarde seriam atacadas
pelos turcos. Porém, eles não mais ameaçavam o Mediterrâneo como

5. Cervantes na sua galera embainha a espada/ (Dom João da Austria retor·


na a casa coroado de flores.)/ Vendo à dist~lncia a terra cansada e uma estra·
da difícil na Espanha,/ Na qual um cavaleiro tolo e de triste fi)t?ltra cavalga
em vão,/ E ele sorri, mas não como sorriem os sultão,'\, e recoloca a lâmina
/(Dom João da Áustria retorna das Cruzadas para casa).
156
De':{ datas que todo católico dewria conhecer

antes do dia 7 de outuhro de 1571. A Espanha não seria mais invadi-


da pelos mouros, e o resto das costas sulinas da Cristandade se man-
teria segura. Para os seguidores de Alá, um entre os dois principais
caminhos para se conquistar a Europa fr)fa bloqueado.
É verdade que os exércitos otomanos ainda se mantinham for-
tes, e no século seguinte eles lançariam um último ataque contra
Viena. Seria a sua ruína. Partindo da bem-sucedida defesa da cidade,
os exércitos cristãos iriam reverter as conquistas turcas na Hungria e
em grande parte dos Bálcãs, embora algumas áreas só tenham sido
libertadas no começo do século XX. Com a ajuda de Maria - como
Nossa Senhora da Vitória e Nossa Senhora de Guadalupe-, os san-
tos e heróis cristãos do século XVI haviam iniciado essa libertação.
No começo do século XX, o Império Otomano era conhecido
como "o homem doente da Europa". As potências europeias an·
siavam por desmantelar o paciente e repartir suas possessões. Elas
tiveram uma chance depois da Primeira Guerra Mundial, quando
os Estados que constituíam o Oriente Médio se transformaram em
mandatários ingleses e franceses.
Poder-se-ia pensar na época que qualquer ameaça futura do islã
ao Ocidente fosse um sonho. Mas, ao contrário, tornou-se um pesa·
delo, um pesadelo que agora virou realidade. Os agentes britânicos
que ensinaram os súditos árabes a se revoltar contra os otomanos
descobriram, para sua surpresa, que os árabes fariam o mesmo com
seus "salvadores" ocidentais. Quando esses salvadores resolveram
então colocar um Estado judeu no meio de nações voláteis que eles
mesmos haviam arbitrariamente criado, aumentaram ainda mais o
nacionalismo árabe. Conhecemos o resto da história. Talvez, ainda
em nosso tempo, precisaremos de um novo Corvino, um Scander·
beg ou um João da Áustria.
1789 d.C.
A Era da Revolução

17 de junho de 1689: "Avisa ao filho primogênito de Meu Sa-


grado Coração que, assim como o seu nascimento temporal
foi obtido pela devoção aos méritos de minha Sagrada Infância,
assim ele, igualmente, obterá seu nascimento na glória eterna, pela
consagração ao Meu Coração Adorável. Meu coração deseja reinar
em seu palácio, sendo pintado nos estandartes e gravado em suas
armas, para que se tornem vitoriosas sobre todos os seus inimigos
e sobre todos os inimigos da Igreja."
Essas são as palavras de Nosso Senhor a Santa Maria Margari-
da Alacoque, durante uma de suas aparições à religiosa da Ordem
da Visitação, em Paray-le-Monial, França. O filho primogênito em
questão é Luís XIV, o "Rei Sol", chamado de "Dado por Deus
(Dieudonné)", pois o seu nascimento fora o resultado das insis-
tentes orações públicas de seus pais e do povo por um herdeiro do
trono. Agora, Deus pedia um favor em troca. Ele daria início ao.
reinado do Seu Sagrado Coração na terra mediante o palácio de
Luís, de onde se espalharia por todo o mundo. Essa graça inaudita
oferecida aos homens devia se realizar através do rei da França,
"a filha mais velha da Igreja", terra de Clóvis, Clotilde, Carlos
Magno, Luís IX e Joana d'Arc. No entanto, essa graça foi recusada.
Em razão dos conselhos de seu contessor, de seu próprio orgu-
lho e vaidade, ou de outros motivos, Luís não cumpriu o pedido
de Deus. Cem anos depois, no dia 17 de junho de 1789, a decla-
ração de uma Assembleia Nacional de revolucil)fülrios franceses
a respeito da soberania do "povo" marcaria a queda iminente da
158 Dez datas que todo católico deveria conhecer

monarquia e o início de um longo castigo. Começara a Era da


Re\'olução.

A frieza, mais uma vez

A catástrofe que iria consumir a Europa e plantar as sementes


da rebelião generalizada foi o castigo pela recusa de um rei or.E,ru-
lhoso em atender ao pedido de Deus? Sim, mas tudo indica que
houve outras razôes para que a Cristandade fosse punida. Na sua
segunda revelação a Santa Margarida Maria Alacoque, em 1674,
Nosso Senhor lhe mostrou o Seu Coração e queixou-se da ingrati-
dão dos homens: "Isso custa-me muito mais do que tudo quanto
sofri na Minha Paixão. Se eles correspondessem com um pouco
de amor, eu teria em pouco tudo quanto fiz por eles, e quisera
fazer ainda mais se fosse possível. Contudo, não têm senão friezas
e repulsas por todo este meu desejo de lhes fazer o bem." Um ano
depois, na terceira revelação, Ele disse aquelas palavras solenes:
"Eis aqui este Coração que tanto tem amado os homens, que a
nada tem se poupado até se esgotar e consumir para lhes testemu-
nhar seu amor; e em reconhecimento não recebo, da maior parte
deles, senão ingratidões por meio das irreverências e sacrilégios,
tibiezas e desdéns que usam para comigo neste Sacramento de
amor. "
O remédio que Nosso Senhor já havia proposto a Santa Ger-
trudes para a frieza do século XIII fora a devoção ao seu Sagrado
Coração. Esta permaneceu como uma devoção pessoal, prati·
cada por algumas casas religiosas e almas devotas no curso dos
séculos seguintes. Mas, mesmo assim, a frieza cresceu. Nos sé·
culos XVII e XV111, o protestantismo havia penetrado a maior
1789 d.C. -A Era da Revoluçdo 159
1j
parte da Cristandade; devoções tradicionais e práticas contemplati·
vas passaram a ser ridicularizadas e desprezadas.
Dentro da própria Igreja, ao longo desse período, surgiu a here-
sia do jansenismo - uma espécie de puritanismo católico que con·
tinha algumas ideias calvinistas, tais como a negação do livre-arbítrio
e a defesa da impossibilidade de resistência à graça - e o quietismo,
que pregava a passividade espiritual como caminho de perfeição.
Segundo os quietistas, atos de fé, esperança e caridade eram desne·
cessários, assim como o desejo do céu e o medo do inferno. Essas
ideias heterodoxas contribuíram para a falta de devoção e amor pelo
Sagrado Coração, motivo da queixa de Nosso Senhor. Com efeito,
havia até mesmo oposição ativa a essa devoção, que católicos de vá-
rios países começavam a praticar.
Entre o clero católico do século XVII e, particularmente, do
século XVIII, havia alguns bispos vivendo de forma mundan~a e
luxuosa, e crescia a fascinação pelas novas ideias e sistemas politi·
cos iluministas. Havia também muitos homens sem vocação, que
entraram na vida religiosa por vontade dos pais, ou porque haviam
recebido um cargo eclesiástico como recompensa de um político ou
patrono do clero. As suas distrações mundanas podem explicar, em
parte, a difusão de certa frieza não apenas com relação a Deus, mas
também com relação aos desamparados e infortunados ao longo do
século XVIII. Cem anos antes, São Vicente de Paulo havia estirou·
lado o socorro aos pobres e o estabelecimento de instituições de
caridade. No século XVIII, entretanto, a quantidade de hospitais
e abrigos que se fundava havia diminuído pela metade. Contudo,
a necessidade deles era maior do que nunca, já que o númeroJe
indigentes crescia de modo alarmante e o índice de criminalida-
de aumentava. Às vésperas da Revolução, a França ainda era uma
160 Dez datas que todo católico cleiieria conhecer

nação católica, mas a sua vida espiritual e ordem social declina-


vam rapidamente.
Os pecados dos reis

Quanto aos reis, no século XVU eles há muito já não eram


modelos para o povo; na verdade, alguns deles estavam entre os
mais lihertinos de uma época de baixa moralidade. Luís XIV não
foi o primeiro rei francês a ter várias amantes, a despeito de uma
esposa fiel. Ele era também uma dor de cabeça para a Igreja, pois
conduziu tentativas de tornar a Igreja da França mais "indepen-
dente" de Roma. Alguns pensaram que seu monumental orgulho
o havia levado até mesmo a simpatizar com a ideia de se fazer o
líder da Igreja na França, tal como Henrique VIII fizera na Ingla-
terra. Porém, Luís era católico o suficiente para não sucumbir a
essa tentação - se de fato pensou nela -, e morreu como homem
devoto, em 1715.
Apesar de a primeira parte do longo reinado de Luís XIV ter
triunfado gloriosamente ao aumentar o poder político, a prospe-
ridade doméstica e a cultura francesa, a situação se tornou insatis-
fatória nos seus últimos anos. Todas as guerras que ele iniciou não
tiveram sucesso, e a Franca encontrava-se derrotada e endividada.
O país estava cada vez mais pobre e o rei recebia muitas críticas -
ao que parece, merecidas - por dar mais atenção às guerras que ao
bem-estar social de seu povo. Podemos nos perguntar se alguma
vez ele atribuiu a baixa abrupta na sua sorte ao fato de nã0 ter fei-
to a única coisa que Deus - através de uma intervenção sem pre-
cedentes na História - lhe pedira. Na questão mais importante,
o Rei Sol, apesar de toda a glória de seu reinado, foi um fiasco. A
sua nação e seus descendentes iriam sofrer por causa do seu erro.
1789 d.C. - A Era da Revolução 161

Luís )(\/ (1715-1774) mostrou-se ainda mais libertino que


seu pai. Ele periodicamente se arrependia e mandava embora a
amante do momento, mas pouco depois cometia adultério uma
vez mais. Ele se deixou influenciar por essas mulheres, particular-
mente quando colocou a França na desastrosa Guerra dos Sete
Anos, aos caprichos de Madame Pompadour, não obstante a au-
sência de motivos de interesse nacional. Ele talvez conhecesse
os pedidos do Sagrado Coração - membros de sua família certa-
mente praticavam a devoção -, mas não tomou medidas para
implantá-la.

Os huguenotes buscam vingança

Entre os que se encontravam separados da Igreja, os calvinistas


franceses (conhecidos como huguenotes) eram especialmente hos-
tis aos reis, em razão de mágoas provenientes do século anterior.
Buscando terminar as guerras civis que haviam arruinado a Fran-
ça durante a Reforma, o rei francês Henrique IV emitira o Edito
de Nantes em 1598, que garantia tolerância aos huguenotes. No
século seguinte, esses diligentes seguidores de Calvino haviam se
organizado a ponto de possuir suas próprias torres fortificadas e
um exército e marinha privados. Eles também mantinham relações
diplomáticas com a Inglaterra e outros Estados protestantes. A sua
força crescia, e por isso o Cardeal Richelieu, jovem primeiro-minis-
tro de Luís XIII, que normalmente se dispunha a apoiar os Estados
protestantes por razões políticas, havia lançado uma campanha
militar contra as fortalezas dos huguenotes - com o intuito de
reforçar a unidade e a segurança nacionais -, e as havia
desmantelado.
162 Dez datas que todo católico detiería conhecer

Portanto, no reinado de Luís XIV (164 3-1715), os huguenotes


não eram mais politicamente independentes, mas o "Rei Sol" os
via como um problema para a França. Ele assistiu com horror e
indignação à organização da Revolução Puritana pelos calvinistas
ingleses em 1640, a qual culminou com a execução do rei legíti-
mo, Carlos 1 - tio de Luís - e com a ditadura do fanático Oliver
Cromwell. Pela primeira vez na história europeia, súditos haviam
ousado julgar e executar um monarca "escolhido por Deus". O
caráter revolucionário do protestantismo, por conseguinte, reve-
lou-se mais claramente do que nunca. Auguste Comte, pensador
francês do século XIX, observou: "Toda ideia revolucionária é
apenas uma aplicação social do princípio de livre interpretação
[da Bíblia]." Ao citar a Sagrada Escritura (o Velho Testamento de
preferência), militantes calvinistas pretendiam transformar a In-
glaterra no acreditavam ser uma "comunidade correta."
Luís XIV não desejava que isso ocorresse na França. Ele queria
manter seu país religiosa e politicamente unido, e por isso encora-
jou tentativas de converter os protestantes, por vezes oprimindo-os
de modo rígido e até mesmo cruel. Por volta de 1685, ele achava
que o Edito de Nantes não era mais necessário, e se propôs a
anulá-lo. O Papa Inocêncio XI tentou adverti-lo de que tal atitude
não seria prudente, mas "reis sóis" são maus ouvintes. Luís anulou
o edito, brincando consigo mesmo que todos huguenotes tornar-
-se-iam católicos e súditos leais. Porém o resultado foi outro: cerca
de 200.000 deles deixaram o país. Eles levaram consigo ouro e
habilidades técnicas, e colaboraram com os inimigos da França no
exterior, por vezes juntando-se a exércitos estrangeiros contra a sua
terral natal. (Os descendentes de alguns deles lutaram junto aos
alemães contra os franceses na Primeira Guerra Mundial.) Os que
1789 d.C. - A Era da Revolução 163

haviam permanecido na França tornaram-se hostis e se envolveram


em revoltas esporádicas quando tiveram a oportunidade.É certo que
Luís havia transformado os huguenotes em inimigos da monarquia.

A zombaria de Voltaire anuncia uma revolta cultural

O século XVIII foi nomeado por seus próprios intelectuais de


"Século das Luzes". Esse "iluminismo" refere-se a uma mentalida-
de à qual aderiu uma elite internacional, majoritariamente ateia ou
agnóstica; entre seus devotos estavam norte-americanos como Ben-
jamin Franklin e Thomas Jefferson. O culto da ciência se tomara
uma nova moda, e esses pensadores acreditavam que tudo deveria
se conformar às "leis da natureza", recentemente descobertas por
cientistas como Newton. Espinosa, no começo dessa moda cientí-
fica, declarara no século anterior: "Devo considerar as atividades e
os desejos humanos exatamente do mesmo modo que me preocupo
com linhas, planos e sólidos."
Conhecidos como philosophes - entre eles o arguto, malicioso
e materialista Voltaire -, esses novos pensadores empenhavam-se
em eliminar elementos "não científicos" e "irracionais" da nova so-
ciedade que planejavam eonstruir. A religião precisaria ir embora,
pois não era suficientemente científica. O q1tolicisrno, em particu-
lar, devia ser destruído: "Destruam a coisa infame", dizia Voltaire.
Costumes, tradições e todas as ideias antigas deviam desaparecer,
inclusive a fantasiosa noção de Pecado Original, que considera a
natureza humana fraca e inclinada ao mal. De acordo com os ilu-
ministas, essa noção é absurda. A natureza humana é boa e racio-
nal, basta que seja libertada dos costumes e da religião. Esse novo
"liberalismo" aderiu ao "livre de" qualquer coisa que um pensador
164 Dez datas que todo católico de••eria conhecer

acreditasse estar sujeita a objeções. Para o economista, significava


uma economia de livre mercado sem nenhuma regulação estatal;
para os que planejavam se tornar líderes de uma futura nova ordem
mundial significava cidadãos livres que de algum modo conduziriam
suas atividades de uma maneira estritamente racional. Para a maio-
ria desses destemidos e sofisticados pensadores, significava a destrui-
ção da moralidade cristã, da Igreja Católica e da monarquia.
De acordo com o philosophe Jean-Jacques Rousseau, um defensor
do retorno à natureza, a liberdade significava a libertação de todos
os constrangimentos da vida civilizada. Rousseau escreveu uma das
primeiras obras sobre educação moderna: Emílio. Esse tratado conta
a '\educação" - se se pode chamá-la disso - de uma criança imaginá-
ria deixada livre para "aprender fazendo".
"Quando me livro das lições das crianças", escreve Rousseau,
"me livro da principal causa de suas tristezas; isto é, de seus livros. A
leitura é o flagelo da infância." Desde então, gerações de educadores
progressistas têm se alimentado de tais palavras, sem questionar as
qualificações de Rousseau para escrevê-las.
Rousseau só desempenhou a função de educador uma vez na
vida, como tutor particular, porém, irritou-se tanto com a criança
que precisou deixar o emprego, temendo agredi-la. É verdade que
ele teve cinco filhos com sua criada, mas logo que nasceram fo-
ram deixados no orfanato mais próximo, local em que as chances
de sobrevivência eram baixas. Visto que Rousseau não tinha expe-
riência prática, de onde tirou suas ideias? Tal como todos os ou-
tros iluministas, ele as inventou; são ideias abstratas, sem base na
realidade. Elas são, na verdade, receitas para a criação de uma nova
realidade - exatamente o que os revolucionários franceses, herdeiros
do iluminismo, pretendiam fazer.
1789 d.C. -A Era da Revolução 165

As ideias desse grupo difundiram-se através da imprensa, que


era excessivamente livre na França do século XVIII. No palácio real,
cortesãos gargalhavam com as últimas zombarias de Voltaire, e no-
bres e senhoras aplaudiam peças subversivas, sem sequer questionar
a origem das ideias ali apresentadas. As classes baixas francesas, ao
menos na cidade, eram alfabetizadas e costumavam ler; por isso, pan-
fletos e romances designados a incutir sentimentos de insatisfação
proliferaram. Radicais corno Voltaire haviam escolhido como arma
a incansável zombaria do povo, das classes e das ideias que não apro-
vavam. Os seus livros circulavam em grande quantidade.
As graciosas reuniões da elite cultural nas casas de anfitriões
endinheirados e bem posicionados socialmente, conhecidas como
salons, também foram usadas para difusão dessas ideias. Os hóspedes
prediletos muitas vezes eram estrangeiros excêntricos, como Benja-
min Franklin. Isso gerou um fluxo internacional de ideias. As lojas
secretas da maçonaria, fundada na Inglaterra em 1717 e rapidamente·
espalhada pelo continente e pelas colônias inglesas, eram os princi-
pais canais do pensamento britânico. Nesse período houve maçons
até mesmo entre o clero. Assim como os homens cujo destino seria
decidido pelas pessoas que tanto lhes agradavam, o clero demorou
bastante para perceber a total incompatibilidade dessas novas ideias
com a Fé.
É um fenômeno interessante que os movimentos intelectuais
"racionais" e seculares mais militantes estimulem a emergência de
correntes inteiramente contrárias. O período do iluminismo viu
também a proliferação de grupos envolvidos com ocultismo, hipno-
se e práticas neopagãs. Havia um novo interesse em gnosticismo e
reencarnação. É estranho que muitos dos intelectuais que pregavam
a "racionalidade" de modo tão vociferante fossem membros desses
166 Dez datas que todo católico deveria conhece-r

grupos (tal como Freud e Marx no século XIX). Ao que parece, os


inimigos da Igreja e da monarquia possuíam mais de uma maneira
de enfeitiçar as mentes francesas ...
Houve um contra-ataque católico a todos esses males, embora
alguns apologistas admitissem a sua frustração em tentar contragol-
pear as sátiras e o sarcasmo malicioso de homens como Voltaire. A
grande ordem intelectual da Igreja, os jesuítas, devia estar atuando,
entretanto, sob pressão das famílias Bourbon da Espanha, França
e alguns territórios da Itália, o Papa Clemente XIV concordara em
paralisar as atividades dessa ordem religiosa, em 8 de junho de 1773.
"Dentro de vinte anos", deleitava-se Voltaire, "não restará nada da
Igreja."
A história da vitória dos inimigos da ordem jesuíta é muito
complexa para ser discutida aqui, mas vale a pena mencionar que
a Sociedade de Jesus recebera de Deus - através de Santa Maria
Margarida Alacoque - a missão de promulgar a devoção ao Sagrado
Coração de Jesus. Alguns jesuítas, como São Claude de Colombiere
- confessor e amigo de Santa Margarida - certamente o fizeram,
mas muitos não cumpriram seus deveres. Os confessores de Luís
XIV, que aparentemente não fizeram nada para incentivar o rei a
realizar os pedidos de Nosso Senhor, e talvez tenham até o desenco-
rajado a fazê-lo, infelizmente eram jesuítas. Terá sido a paralisação da
ordem um castigo sobre eles?

O duque radical

Em seu palácio - o Palais Royale, no centro de Paris, à mar-


gem direita do Rio Sena - Felipe, Duque de Orléans, estava des·
lumbrado com a fermentação intelectual e política que o rodeava.
1789 d.C. - A Era da Revolução 167

Ele era primo de Luís XVI e pensava frequentemente sobre como


estava mais bem preparado para o trono do que seu mal-educado
e inepto parente. Felipe gostava de se sentir parte da avant-garde;
ele abriu seu palácio para os intelectuais mais sofisticados e os po-
líticos mais ousados e os apoiou com sua enorme fortuna. A sua
vasta rede de contatos lhe possibilitou desempenhar um papel na
revolução que ainda permanece pouco conhecido, pois grande parte
realizou-se em segredo. Ele advogava o discurso indecente que esta-
va em moda dentro de alguns círculos; ao menos uma vez cantou
canções libidinosas no palco, e certamente foi bastante aplaudido.
(Caso não o fosse, ele não teria cantado).
Falaremos novamente dele mais à frente.
Com a aproximação da revolução, os salons se transformaram em
clubes políticos. O mais radical deles, o Clube Jacobino, originou-se
em Versalhes. Outros haviam aparecido por toda a Paris, reunindo
não apenas pensadores teóricos, mas também políticos que organiza-·
vam ativamente seus partidos e se preparavam para agir no momen-
to certo. No começo de 1789, estavam prestes a atacar.

Luís e o desejo de ser adorado

Luís XVI e sua esposa Maria Antonieta, filha da grande impe-


ratriz católica Maria Teresa da Áustria, eram jovens quando ines-
peradamente herdaram o trono da França. Estavam casados desde
1770, quando ele tinha 16 e ela 15 anos. Quatro anos depois, após
a inesperada morte do pai de Luís, viram-se rei e rainha. Intimida-
ram-se de tal modo com a nova responsabilidade que, ao ouvir a
notícia, ajoelharam-se e choraram pedindo a Deus furças para que
conseguissem suportar a difícil prova para a qual se sentiam
despreparados.
168 Dez daws que todo católico deveria conhecer

Luís levou a nova responsabilidade a sério, tentou escolher


ministros competentes, desemaranhar questôes financeiras in-
tricadas e tratar da necessidade de reformas em várias áreas da
política e sociedade francesas. Ele ordenou muitas reformas; um
exemplo foi a proibição do trabalho infantil na França. Essa proi-
bição só viria a ocorrer muito depois na lnglaterra e nos Esta-
dos Unidos. Luís tinha tanto zelo por seus projetos de reforma
que conduziu muitas delas de modo apressado e elas acabaram se
tornando um fator de desestahilidade na vida política francesa.
Amiúde ele se mostrava tão ansioso para iniciar uma nova refor-
ma que não percebia que a última não obtivera êxito.
Acima de tudo, desejava ser amado por seu povo, e isso pro-
varia ser o seu ponto fraco. Diversas vezes, no início da revolução,
recusou-se a ordenar que suas tropas contessem grupos opositores
quando tal ordem poderia reverter a seu favor uma crise ainda
incerta. Mesmo assim, ele se esforçava; era devoto, honrado e um
bom pai de quatro filhos. Sua esposa, Maria Antonieta, após um
período um tanto frívolo e extravagante no começo do casamento,
havia se tornado uma mãe dedicada. No entanto, seus anos de li-
bertinagem na juventude haviam gerado rumores, e, por ser estran-
geira, era alvo fácil para os inimigos da monarquia. Ela foi atacada
de forma incansável. Inventou-se uma história infame, na qual se
dizia que ela adquirira ilegalmente um colar de diamantes. Era uma
história falsa, mas funcionou como ferramenta de propaganda,
em meio a outras histórias maliciosas a seu respeito.
O rei e a rainha também tinham seus desgostos pessoais; sua
filha mais nova, nascida em 1786, morrera com 1 ano de ida-
de; outro filho, nascido em 1781, morreu com 8 anos. Os filhos
restantes eram Maria Teresa, nascida em 1778, e o delfim, Luís
1789 d.C. -A Era da Revolução 169

Carlos, nascido em 1785. Somente Maria Teresa sobreviveria à


Revolução.
Embora o rei Luis fosse devoto a Deus e ao seu povo, entusiasta
por reformas e ansioso para agradar a população, houve uma "re·
forma" a que ele não deu atenção até que fosse tarde demais: não
atendeu aos pedidos do Sagrado Coração, feitos ao rei Luís XIV,
embora sua irmã, Madame Elisabeth, houvesse encorajado-o a
fazê-lo em 1788. Ela chegou até a escrever uma forma de consagração
para que ele a utilizasse.

Prólogo: os personagens da tragédia se reúnem

Em 17 89, o palco estava montado e os atores representavam


seus papéis: os clubes políticos organizavam comícios e reiteravam
suas queixas contra o governo e o seu desejo de mudanças políticas.
O Duque Felipe reunia-se com os inimigos de seu primo em seu
palácio e os ajudava a financiar suas atividades. Membros da loja
maçônica Grande Oriente bolavam planos para uma nova e utópica
França. Oradores radicais treinavam discursos no Café Procope, na
Rive Gauche. A imprensa, trabalhando em horas extras, imprimia
panfletos e jornais incendiários. Só faltava uma faísca para inflamar
todo aquele combustível.
Enquanto isso, o rei havia convocado uma reunião da Assem-
bleia dos Estados Gerais para maio de 1789. Essa assembleia reu-
nia representantes das divisões tradicionais da sociedade francesa:
o clero, a nobreza e as outras classes - o "Terceiro Estado". Ela não
fora criada com a intenção de participar do governo, como é o Par·
lamento Britânico, mas apenas para aconselhá-loi por conseguinte,
cada "estado" tinha apenas um voto na questão em debate. E..~e an·
170 Dez datas que todo rntôlico deveria conhecer

tigo corpo político não se reunia há mais de um século. A nobreza,


cada vez mais empobrecida, se envolvia nos negócios e se mesclava
com a classe média. A classe média alta, e até mesmo os campo-
neses ricos, estavam ávidos por adquirir - ou conseguir através de
casamentos - títulos da nobreza que aumentariam o seu prestígio.
Os membros do clero vinham de todas as classes. Os "estados", por-
tanto, já não estavam mais delineados de forma organizada.
Além de convocar a reunião, o rei havia solicitado a opinião de
todas as províncias a respeito dos verdadeiros problemas do país.
Esses relatórios (cahiers) eram majoritariamente redigidos por advo-
gados e ativistas políticos; mesmo assim, enquanto a maioria estava
preocupada em igualar a carga tributária (a prioridade do rei), ne-
nhum deles se referia à substituição da monarquia por outra forma
de governo.
Nos meses anteriores à histórica reunião em Versalhes, a atmos-
fera tornou-se mais tensa em razão das mudanças climáticas que co-
meçaram no verão de 1788, com tempestades devastadoras seguidas
de secas. Veio então o rigoroso inverno de 1788-1789. O frio intenso
trouxe fome para os moradores de Paris. Organizou-se nas ruas uma
distribuição de alimentos, o rei e a rainha serviram sopa aos famin-
tos. Ao aproximar-se o Natal, Maria Antonieta levou seus filhos para
um quarto no palácio e lhes mostrou os brinquedos que os merca-
dores haviam lhe dado. Ela disse aos filhos que todos os brinquedos
seriam devolvidos e o dinheiro seria usado para alimentar os pobres;
havia crianças passando fome e, portanto, os brinquedos deviam ser
deixados de lado. (É falso o relato de que Maria Antonieta teria
dito, ao saber que o povo pedia pão: "Se não têm pão, que comam
brioche." Essa acusação infame é na verdade uma frase retirada de
uma obra de Rousseau (Confissões). A frase teria sido dita por uma
1789 d.C. - A Era da Revolução 171

"princesa" desconhecida - isso pelo menos dois anos antes de Maria


Antonieta ter sequer chegado à Franca.)
Após o terrível inverno, as colheitas da primavera foram escas-
sas, o que prolongou a falta de alimentos e aumentou a insatisfação
geral. No dia 5 de maio, abriu-se a cortina para a execução do primei-
ro ato da Revolução Francesa.

A explosão

Eis aqui o mito da Revolução Francesa, o que dominava a his-


toriografia moderna até pouco tempo: as classes baixas da França,
especialmente os camponeses, há séculos eram oprimidas pelo egoís-
ta clero católico e pela insensível nobreza. Os reis se mostravam to-
talmente indiferentes à condição do povo e não haviam feito nada
para reformar a sociedade francesa. Por fim, movidos pelo deses-
pero, o "povo" ergueu-se e subjugou seus opressores, instaurando
uma iluminada forma de governo republicano. Esse governo tomou
medidas muito boas até o momento em que, alguns anos depois,
radicais ocuparam-no e criaram um breve período de terror. No final
das contas, entretanto, a Revolução Francesa foi um dos grandes
progressos da História.
É claro que a versão acima não passa de mentira. Já mencionei
a busca por reformas empreendidas pelo rei e seu governo. Além do
mais, como observou um escritor da história dos Estados Unidos, as
revoluções nunca são realizadas por "muitos". Elas são executadas
por poucos, que mobilizam as massas contra outro grupo de poucos.
Os verdadeiros criadores das revoluções são as elites revolucionárias
que se utilizam das massas com o intuito de cumprir seus próprios
objetivos. Quanto à ideia de que a Revolução Francesa tenha se
172 Dez datas que todo católico det't:Tia conhecer

tornado brutal somente após passar por um declínio, há escritos


da época demonstrando claramente que o objetivo de eliminar "os
privilegiados" existia desde o começo.
Não trataremos aqui do curso completo dos acontecimentos da
Revolução, mas podemos examinar os eventos mais importantes
através de uma perspectiva incomum: o olhar de uma criança. Luís
Carlos, filho de Luís XVI, tinha 4 anos quando a família foi a Versa-
lhes, onde seu pai tentava satisfazer as exigências dos estados. Duran-
te o curso das reuniões, seu irmão mais velho, o delfim, o príncipe
herdeiro, adoeceu gravemente com o que parece ter sido uma forma
de tuberculose óssea. O garoto foi enviado para uma área distante no
campo, acreditava-se que o ar lhe faria bem. O rei se reunia diaria-
mente com os representantes dos estados, cujas palavras se tornavam
cada vez mais acaloradas e incontroladas. Algum tempo depois ele
viajou para encontrar seu filho. Mesmo após a morte do menino,
no dia 4 de junho, os delegados reunidos exigiam a presença do rei.
"Eles não me dão tempo para sofrer", se queixava o pai.
O Terceiro Estado exigiu uma votação por contagem, em vez do
voto único tradicionalmente utilizado por cada estado, e conseguiu
fazer cumprir sua vontade quando alguns clérigos e nobres radicais
aderiram à causa. Em 17 de junho, o Terceiro Estado se proclamou
uma Assembleia Nacional, e o rei validou a "soberania do povo".
(Cem anos antes, Jesus pedira que seu Sagrado Coração reinasse na
França; agora, outros deuses o substituiriam.) Multidões exultantes
bradavam frases do lado de fora da casa onde a família real se en-
contrava, em Versalhes. Algumas frases se dirigiam contra a rainha
e outras a favor do Duque de Orléans. No entanto, quando Luís
Carlos, agora o delfim, apareceu com sua mãe e irmã na varanda da
casa, a multidão se encantou; mas esse sentimento não durou muito.
1789 d.C. - A Era da Revolução 173

A Assembleia Nacional mudou-se para Paris, a 30 quilôme·


tros de distância, a fim de escrever uma constituição; o rei foi
obrigado a participar de algumas seções. A rainha sofria angus-
tiada pela segurança do marido, e o filho tentava consolá-la:
"Ele vai voltar, mamãe, você vai ver. Meu pai vai voltar!" Na primeira
vez ele voltou. Mas após o ataque à Bastilha, em 14 de julho, uma
multidão marchou até Versalhes, invadiu o palácio e "escoltou" a fa.
mília real até Paris. Luís Carlos, ao olhar para fora da carroça, viu as
cabeças dos guardas, que eram seus amigos, espetadas nas pontas das
lanças que a multidão exibia. Em Paris, a família residiu por certo
tempo no Palácio das Tulherias, onde os pais das crianças tentaram
levar uma vida normal. Luís Carlos tinha outros meninos para brin-
car com ele, ganhou um uniforme e uma pequena espada com a qual
inspecionava suas tropas. Transeuntes frequentemente conversavam
com ele através da grade. "Se eu morasse aqui," disse uma mulher,
"seria feliz como uma rainha." "Feliz como uma rainha?", o menino
respondeu. "Conheço uma que chora todos os dias."
O garoto aumentava sua caridade assim como seu conhecimen·
to, ansioso por fazer pequenos favores a sua mãe e dar aos pobres
tudo o que pudesse. As medidas do governo do "povo" se tornavam
cada vez mais opressivas. A Constituição Civil do Clero, de 1790,
transformou o clero em um empregado do governo e exigiu que ele
fizesse um juramento à República. Os que se recusaram a fazê-lo
- cerca de 90% - eram considerados agora inimigos do Estado: se-
riam caçados como cães e executados. O rei cooperou com o novo
governo, em uma fraca tentativa de salvar a situação, porém, mesmo
quando teve a oportunidade de ordenar que suas tropas, ainda fiéis
a ele, apoiassem uma ofensiva contra os revolucionários - o que sua
esposa e seus amigos lhe imploraram para fazer -, recusou-se. Ele
174 Dez datas que todo católico de•vería conhecer

não derramaria Umél gota do sangue do "povo", ignorando desse


modo o já crescente número de mortes entre a população. Finalmen-
te, no começo de 1792, quando Robespierre, a "besta do Terror",
começou a galgar poder, o Palácio das Tulherias foi cercado por um
grupo jacobino. A família tentou uma fuga para a Assembleia, mas
acabou sendo presa. A devota irmã do rei, Madame Elisabeth (então
com 28 anos), voluntariamente se juntou à família.

A agonia de uma família: prisão, tortura e morte

Fora dos muros da prisão, a nação estava em guerra com os pa-


íses vizinhos que se preocupavam com o caos na França e temiam
pela segurança da família real. O imperador da Áustria, José II, era
irmão de Maria Antonieta, e havia outros governantes que tinham
laços de sangue ou matrimônio com a família real. Além do mais, a
deposição do caráter sagrado da monarquia cristã, sem falar na exe-
cução de um governante legítimo, parecia algo quase sacrílego. Por
último, havia temor por toda a Europa de que o vírus da Revolução
se espalhasse para além do território francês. Dentro da França, pri-
vações econômicas aumentavam e houve revoltas contra o regime re-
volucionário por todo o país, especialmente nas províncias do oeste.
Na Vendeia, iniciou-se um grande levante de camponeses leais
ao rei e à sua Igreja. Como só a nobreza possuía treinamento militar,
os camponeses precisavam recrutar os senhores de terras locais (os
quais, por vezes, precisavam ser persuadidos com grande esforço)
para que os liderassem. Um desses líderes foi François Athanase
Charette de la Contrie; um discurso pronunciado por ele perante
suas heterogêneas tropas resume a verdadeira questão entre o uto-
pismo ateísta da revolução e o espírito da França católica: "Para nós,
1789 d.C. -A Era da Revolução 175

nosso pais são nossas vilas, nossos altares, nossos túmulos e tudo
o que nossos pais amaram antes de nós", disse ele. "Nosso país é a
nossa Fé, nossa terra, nosso rei. Mas qual é o país dos revolucioná-
rios? Vós me compreendeis?(. ..) eles o têm em suas cabeças; nós o
temos sob nossos pés." Quão bem colocada é essa distinção entre
idealismo filosófico e realismo!
A perseguição contra a Igreja prosseguiu, ao passo que a nova
"religião da razão" organizava encenações blasfemas, entre elas a
apresentação de uma cantora de ópera vestida de Deusa da Liber·
dade em um cenário erguido na nave da Catedral de Notre-Dame.
A perda de tesouros artísticos e relíquias de santos foi incalculável,
e a guilhotina raramente manteve-se em silêncio.
Dentro da Torre do Templo - o antigo castelo dos cava-
leiros templários em que a família estava aprisionada - Luís
XVI tentava criar uma aparência de normalidade para sua fa.
mília. Ele dava aulas regulares para as crianças e conduzia as
orações. Acima de tudo, insistia que seus inimigos fossem
perdoados. O governo ainda estava dividido sobre o que fazer
com o rei. Thomas Paine, o panfleteiro revolucionário, suge-
riu que o exilassem nos Estados Unidos, mas essa ideia não
satisfez os radicais jacobinos, que se tornavam cada vez mais
poderosos; eles queriam a morte de Luís. Na Convenção Na-
cional realizaram-se diversas votações sobre a questão e, em
uma delas, o voto decisivo pela execução foi dado por Felipe
de Orléans (agora um deputado que chamava a si mesmo de
"Felipe Igualdade"). Luís XVI escreveu seu testamento, con·
sagrou o seu país ao Sagrado Coração - tarde demais - e se·
guiu com bravura para a morte no dia 21 de janeiro de 1793.
O seu filho de 7 anos era agora rei Luis XVII.
176 Vez datas que todo i:atólico detieria conhecer

A violência continuou a escalar durante todo aquele ano e tam-


bém no ano seguinte, alcançando seu clímax demoníaco na "Repú-
blica da Virtude" de Robespierre. "As forças motrizes do( ... ) governo
popular durante uma revolução são a drtude e o terror'', proclamava
ele, e o número crescente de condenados começava agora a incluir
os seus antigos companheiros que não fossem considerados suficien-
temente "virtuosos''. Sob as suas ordens, ou pelo menos com o seu
conhecimento, Luís Carlos foi separado da mãe, da irmã e da tia.
Em um caso nefasto de maus-tratos infantis, tratou-se do menino
alternando momentos de brutalidade e benevolência, com o innlito
de lhe enfraquecer a vontade. Guardas depravados o embebedavam
e depois lhe ensinavam pala\-Tas e frases indecentes que devia repetir.
É provável que ele também tenha sofrido abusos sexuais. Quando,
nos momentos de sobriedade, ele se recusava a cooperar, puniam-no
cruelmente.
Os seus carcereiros queriam que ele contasse a seguinte hist&
ria: que sua mãe e sua tia tinham abusado sexualmente dele. Eles
pretendiam utilizar esse "testemunho" contra a mãe de Luís em um
processo. Os representantes do governo foram até a cela do garoto,
anotaram o que os carcereiros haviam forçado a criança a repetir e
obrigaram o menino a assinar. Feito isso, o garoto não era mais útil,
e então o deixaram sozinho. Ele já sofria da mesma enfermidade
que matara seu irmão e começava a entender pelo menos parte do
que lhe estava acontecendo. Mesmo assim, permanecia diligente ao
ensinamento de seus pais: certa vez, após os carcereiros terem lhe
perturbado, um deles perguntou, "o que farias se fosse rei e livre?",
ao que ele respondeu, "te perdoaria".
No julgamento de Maria Antonieta, quando se leu o falso
testemunho de seu filho, ela não apenas se recusou a aceitá-lo, como
1789 d.C. - A Era da Revolução 177

apelou dramaticamente à plateia: "A natureza se recusa a permi-


tir tal acusação feita a uma mãe", ela gritou. "Eu apelo a todas as
mães que porventura aqui estiverem." Esse apelo gerou comoção
nos presentes, e a sessão precisou ser suspensa por certo tempo.
O julgamento prosseguiu com novas acusações, e a rainha por fim
enfrentou o mesmo destino de seu marido: a guilhotina. Era 16 de
outubro de 1793. Luís Carlos nunca soube da morte da mãe; até
o fim de sua vida acreditou que ela estivesse em um quarto logo
acima do seu.
Luís Carlos estava agora abandonado, a sua cela estava imunda
e a sua roupa <le cama nunca era trocada. Suas unhas cresciam e
não havia ninguém para cortá-las; ele também havia crescido, mas
corno suas roupas não eram trocadas, elas passaram a ser uma tortu-
ra para ele - particularmente quando sua saúde piorou. Ele tentava
agora não falar com seus brutais carcereiros; estava mais velho e
entendia com mais clareza a sua situação. Em maio de 1794, sua tia
foi executada, deixando sua irmã, Maria Teresa, sozinha. Perturba-
da, triste e com medo, ela ainda se lembrava dos ensinamentos de
seu pai, e rabiscou nas paredes de sua cela: "Oh, meu Deus! perdoai
aqueles que fizeram minha família morrer."
Do lado de fora, as coisas estavam mudando. A revolução des-
truía a si mesma a tal ponto que o próprio Robespierre pereceu.
É gratificante lembrar que Felipe Igualdade já havia sido levado ao
patíbulo em 7 de novembro de 1793. Afinal, era um aristocrata e,
portanto, um inimigo do "povo" - embora tenha tentado salvar sua
cabeça dizendo que não era filho do último duque, mas sim de um
cocheiro. A desculpa não funcionou, e sua cabeça também rolou.
O novo governo (antes de ser tomado por Napoleão, em um epi·
sódio que não trataremos aqui) considerou então a questão do
178 Dez datas que codo católico deveria conhecer

herdeiro do trono. Nesse meio-tempo, Maria Teresa foi integrada em


uma troca de prisioneiros que a devolveu para a família de sua mãe
na Áustria.
Luís Carlos, poucos meses antes de morrer, finalmente recebeu
um carcereiro gentil. O guarda o chamava de "Vossa Majestade", e
lhe descrevia como o havia visto nos jardins das Tulherias vestido no
seu uniforme. Certa vez o garoto lhe perguntou: "Viste a minha es-
pada?" Ele recebeu tratamento médico, embora ineficaz, e também
o máximo de conforto possível. Em 8 de junho de 1795 aproximava-
-se do fim. Perguntado sobre o seu estado, ele respondeu: "Ainda
sofro, mas muito menos agora; a música é tão bela!" Perguntado
sobre de onde vinha a música, disse ao guarda: "De cima (. .. ) não
ouves?" O homem ajoelhado ao seu lado fingiu que a ouvia, apesar
de não ouvir nada. "No meio de todas essas vozes", continuou a
criança, "reconheço a voz de minha mãe!" Depois, perguntou se sua
irmã poderia ouvir a música também; "isso faria tão bem a ela!" Ele
inclinou-se em direção ao seu gentil amigo e disse: "Tenho algo a lhe
dizer... " e morreu. Tinha 10 anos; o último rei da França.
Seu corpo foi jogado em um túmulo comum, para que seus res-
tos não fossem venerados. Entretanto, o médico que realizou a au-
tópsia guardou o coração do rei. Ele o levou secretamente e o preser-
vou em álcool. O coração sobreviveu a muitas vicissitudes e acabou
com uma família católica fora da França. Perto do fim do último
século, veio à tona em Paris, e um teste de DNA provou que era de
fato o coração de Luís XVII. Em junho de 2004, em um ato solene
que reuniu milhares de franceses devotos, o coração foi colocado na
cripta real da Basílica de São Dinis, em Paris.
1789 d.C. - A Era da Revolução 179

As sementes da revolução se espalham

A despeito do regime de Napoleão e dos governos de al-


guns reis "constitucionais", outras revoluções ocorreram na
França nos séculos XIX e XX. A "Revolução" passou a ser vista
como um processo bom e libertador que devia ser exportado
para os quatro cantos do mundo. As ideias impetuosas dos re-
volucionários, com sua glorificação do "povo" e seus direitos,
migraram para toda a Europa com os exércitos de Napoleão
e os novos regimes que ele instalou nos países que subjugara.
Essas ideias chegaram aos países inimigos da França através
dos próprios soldados que contra ela haviam lutado. Oficiais
russos e poloneses, por exemplo, começaram a formar socieda-
des secretas devotadas à adaptação de princípios da Revolução
Francesa aos seus próprios países, e mais tarde arquitetaram
suas próprias revoluções. Quase todos os países da Europa
sofreram alguma revolução ao longo do século XIX, embora a
maior delas estivesse reservada para o século XX, como vere-
mos no próximo capítulo.
Com efeito, as ideias impetuosas da Revolução Francesa con-
tinuam a influenciar o mundo ainda hoje. Os princípios de que
"o povo" é soberano em tudo, que hierarqt.1ias de qualquer es--
pécie são ruins, que a democracia é a única forma de governo
possível, que as mulheres devem se rebelar contra a autoridade do
homem, leigos contra o clero e filhos contra os pais, podem ser
traçados até a Revolução Francesa. As falsas ideologias e a auto-
devoção dos philosophes ainda estão conosco, legitimizan<lo todo
tipo de erros e perversões, inventando novas e chamando·as de
"direitos do homem".
180 Dez data.1 que todo católico dewria conhecer

Em razão da tirania e do derramamento de s<ingue que desceria


sohre a Europa no século XX, poder-se-ia pensar que Deus abando-
naria o seu povo infiel ús consequências merecidas de suas açôes e
ideias. Mas isso não ocorreu; Ele tentaria uma vez mais tocá-lo; é o
que veremos no capítulo final.
1917 d.C.
As apariçôes de Fátima e o século XX

' ' participa aos meus ministros que, dado seguirem o exemplo
do rei de França na demora em executar o Meu mandato, tal
como a ele aconteceu, assim o seguirão na aflição."
Essas são as palavras de Nosso Senhor à Irmã Lúcia, no verão de
1931. Ele retornou ao assunto em agosto do mesmo ano: "Não quise-
ram atender ao meu pedido. Como o rei de França, se arrependerão
e por fim o farão, mas será tarde."

O último recurso divino

A que essas extraordinárias mensagens se referem, mencionando


explicitamente o erro de Luís XIV em não consagrar a si mesmo e a
seu país ao Sagrado Coração de Jesus? É preciso considerá-las dentro
do contexto geral da revelação de Fátima, por si só profundamente
relacionada com a história do século XX, no qual os tradicionais ca-
valeiros do Apocalipse - a guerra, a fome, a peste e a morte - atacam
a terra com ímpeto.
Foi como se Deus, "ofendido" (para usar termos humanos) com
a desobediência a seus sucessivos pedidos, decidisse dar uma última
chance e enviasse Sua Mãe em uma missão para tocar os corações
de um mundo cada vez mais indiferente e pecador. Ao começar
no início do século XIX, a "Era de Maria" presenciou um número
incomum de aparições de Nossa Senhora, primeiramente em
1830, com Sua visita a Santa Catarina de Labouré, em Paris, e em
seguida com as aparições de La Salette, Lourdes e Pontmain.
182 Dez datas l/Ue todo wtôlic.:o dewria conhecer

Em todas essas apariçôes Nossa Senhora pedia por oração e


penitência.
Em 16 de setembro de 1828, o beato Guilherme José Chamina-
de, fundador dos marianistas, escreveu profoticamente ao papa ares-
peito do que via como o começo de uma nova era na História. Essa
era - a Era de Maria-, dizia ele, traria um grande triunfo para Cris-
to e sua Igreja. Em outra carta escrita no ano seguinte, ele diz: "Para
Ela, portanto, reserva-se uma grande vitória em nosso tempo, pois
a Ela pertence a glória de salvar a Fé da destruição que a ameaça."

No limiar de um desastre

No alvorecer do século XX, todavia, o triunfo do bem parecia


improvável. Ao longo dos últimos anos do século XIX, os otimistas
e materialistas (geralmente as mesmas pessoas), exaltavam as novas
descobertas como o prenúncio de uma era de paz e progresso. Ao
longo da década de 1890 descobriram-se os bacilos que causavam a
malária e a peste bubônica, detectaram-se os raios-X, inventou-se a
câmera de filme cinematográfico, o dirigível e construíram-se ma-
ravilhas como o metrô de Paris e a hidroelétrica das Cachoeiras de
Niágara. O que a ciência não atingiria, o que a humanidade não
escreveria nas páginas em branco da História, abertas no dia 1º. de
janeiro de 1900?
O Papa Leão XIII, cujo pontificado começou em 1879 e du-
rou até 1903, não tinha perspectivas otimistas a respeito do pro-
gresso do mundo. Em 13 de outubro de 1884~ o pontífice sofre-
ra um desmaio após celebrar uma Missa - aparentemente um
derrame ou infarto - e permaneceu inconsciente por certo
tempo. Na verdade, não fora um problema de saúde, mas uma graça
1917 d.C. - As aparições de Fátima e o século XX 183

espiritual: Leão teve uma visão em que via Satanás pedindo a Deus
mais tempo para que pudesse desatrelar todo o seu poder sobre o
mundo e a Igreja, e viu Deus concedendo-lhe um período de cerca
de cem anos. Após essa visão, Leão XIII compôs duas orações a São
Miguel Arcanjo: uma delas é curta e devia ser recitada após a Missa,
a outra, uma forma mais longa de exorcismo. Conta-se que ele com·
preendeu que após o período deste formidável ataque se seguiria a
vitória de São Miguel e da Igreja.
Portanto, quando se iniciou o ano 1900, o papa não tinha ilu-
sões acerca do novo século - especialmente por causa da difusão do
modernismo ("o compêndio de todas as heresias", como o chamou o
Papa São Pio X). O Padre Alfred Loisy, um dos principais expoentes
do modernismo, escrevia as obras que difundiriam essa heresia nos
seminários, nas escolas e nas mentes dos católicos. Pode-se dizer que
o modernismo é o darwinismo aplicado à religião. Ele defende que
tudo aquilo em que se acreditava até então era provisório, pois os
dogmas "evoluem" constantemente. Cada nova geração, dizem os
modernistas, precisa descobrir e criar suas próprias noções teológi-
cas, pois as doutrinas definidas solenemente são simplórias e ana·
crônicas. Não é difícil ver o potencial que esse pensamento tem para
destruir a Fé. Nós ainda não nos livramos dele.

O ano de 1900 e o cavaleiro da morte

Olhemos para alguns acontecimentos do ano 1900. O rei Um·


berto I da Itália fora assassinado, em um dos vários ataques ter·
roristas do período. Os anarquistas, que visavam à destruição de
toda ordem pública e estrutura social, eram apenas um entre os
vários grupos envolvidos com terrorismo; entre 1894 e 1914, eles
184 Dez datas que todo católico det1eria conhecer

conseguiram matar seis chefes de Estado. Entre as suas vítimas, além


do rei Umberto 1, estavam o presidente da França, dois primeiros-mi-
nistros espanhóis, a imperatriz Isahel da Áustria e William McKin-
ley, presidente dos Estados Unidos. Em 1900, estava em curso a san-
grenta Guerra dos Bôeres, entre a Grã-Bretanha e os colonizadores
holandeses na África do Sul, e estourara na China o Levante dos
Boxers. Essa rebelião, realizada por uma sociedade secreta pagã, ti-
nha como objetivo aparente combater poderes estrangeiros no país,
porém, enquanto o número de vítimas estrangeiras girava em torno
de algumas centenas, o número de cristãos chineses que foram assas-
sinados alcançou os milhares. Naquele mesmo período, Frederick
Nietzsche, o escritor anticristão que desprezava os fracos e exaltava
os impiedosos "super-homens" morreu em um hospício; nas décadas
seguintes, as suas obras alimentariam - ou melhor, envenenariam
- inúmeras mentes alemãs. Em 1900, Sigmund Freud publicou A
interpretação dos sonhos, anunciando a era da psicanálise, com sua
irracionalidade, obsessão por sexo e perspectivas materialistas.
Esses novos fatos do ano 1900 prenunciavam as más notícias
que se veriam no novo século: movimentos de terrorismo anarquis-
ta, nazista e comunista; conflitos entre poderes ocidentais e asiáticos
e ideologias ateístas mascaradas de política ou ciência. Quatro anos
depois, estourou urna guerra entre o Japão e a Rússia, e o tumulto
econômico subsequente gerou crises agrícolas e rebeliões no segun-
do país, bem como milhares de assassinatos terroristas. Entre 1905 e
1914, urna série de crises internacionais e guerras deixara o mundo
à beira do caos.
O Papa São Pio X, que sucedeu Leão XIII em 1903, não se mos-
trou mais otimista que seu predecessor. Em sua primeira encíclica,
E supreme apostolatus cathedra, ele se referiu ao "horror" que sentia
1917 d.C. - As aparições de Fátima e o século XX 185

perante a vergonhosa condição em que se encontrava uma huma-


nidade indiferente e apóstata. Diz ele: "Afinal, é com muita au-
dácia e ira que se persegue por toda parte a religião, combatem-se
os dogmas da fé, procura-se descaradamente extirpar e aniquilar
todo tipo de relação do homem com a divindade! Nisso reside,
segundo o mesmo Apóstolo, o caráter próprio do 'anticristo';
o próprio homem, com infinita temer.idade pôs-se no lugar de
Deus." Ele se perguntava também se "quem considera tudo isso
tem razão em temer que tal perversidade de mente seja uma es-
pécie de amostra e talvez o início dos males, reservados para os
últimos tempos; que já esteja no mundo o 'filho da perdição', do
qual fala o Apóstolo (II Tess 2,3)".

Fátima

A Era de Maria rapidamente se tornava o século da guerra ge-


neralizada, mas Ela se preparava para intervir: combateria Satanás
mediante a série de visitas celestes mais espetaculares da Histó-
ria. Em 1957, em um encontro com o padre mexicano Agustin
Fuentes, Irmã Lúcia disse: "Nos planos da Providência Divina
Deus utiliza sempre todos os outros remédios, antes de castigar
o mundo. Mas quando Ele vê que o mundo não lhe dá qualquer
atenção, então, corno dizemos na nossa maneira imperfeita de
falar, Ele nos oferece, com alguma apreensão, o último meio de
salvação, a Sua Mãe Santíssima".
Portanto, além dos terríveis castigos, o século XX viu a vi-
sita de Nossa Senhora a urna pequena cidade de Portugal.
A natureza das mensagens de Fátima, a sua ligação com os even·
tos globais e o extraordinário milagre público no qual elas se
186 Dez datas que todo católico deveria conhecer

comprovaram não tinham precedentes na história das aparições


marianas.
Em 1916, um anjo visitou várias vezes três jovens pastores-Lúcia,
Jacinta e Francisco. Referindo-se a si mesmo como o Anjo da Paz e
o Anjo de Portugal (São Miguel), ele ensinou às crianças orações
de penitência e incentivou-as a fazer sacrifícios pela conversão dos
pecadores. Ele mencionou particularmente "as ofonsas, os sacrilégios
e a indiferença" com que se ofende Nosso Senhor, e disse que
"homens ingratos ofondem a Sagrada Eucaristia de modo grave".
No dia 13 de maio de 1917, Nossa Senhora apareceu às crianças,
prometendo retornar no décimo terceiro dia dos próximos cinco
meses.

O cai1aleíro da guerra e a grande revolução

No mesmo ano, ocorreram dois eventos importantes na


Europa, embora as crianças talvez só tivessem ouvido a respeito
de um deles. Portugal lutava na grande guerra mundial que cau-
sava devastação desde 1914, quando complexos desastres diplo-
máticos resultaram na invasão alemã à Bélgica e à França, e trou-
xeram devastação e morte ao continente europeu. Além do fato
de a tecnologia moderna ter tornado esse conflito mais devasta-
dor que qualquer outro na História, os seus efeitos foram sen-
tidos muito além da Europa, à medida que diversas nações eram
sugadas pelo redemoinho. A matança parecia não ter fim, e em todo
lugar havia angústia e tristeza pelos soldados em combate.
Algo mais ocorria em maio de 1917. Poucos deram atenção aos
tumultos na Rússia, que começaram em fevereiro, com a escassez de
alimentos. Com efeito, a nação vivia há muitos anos uma condição
1917 d.C. - As aparições de Fátima e o século XX 187

precária. Grupos radicais, entre eles os recém-organizados marxistas,


há décadas tentavam desestabilizar o governo; entre 1906 e 1911,
houve cerca de 4.000 assassinatos terroristas, e entre os mortos esta-
vam homens competentes como o primeiro-ministro Piotr Stolypin,
que havia implantado uma série de medidas benéficas aos campo-
neses, aumentando a prosperidade do país de modo significativo.
Porém, algo pior aconteceu: a família real caíra no feitiço de uma
das figuras mais bizarras e sinistras da História, o monge Grigori
Rasputin.
O passado negro de Rasputin inclui participação em ritos ocul-
tistas; ele fora denunciado por um bispo da Sibéria (sua terra natal).
Sem dúvida, Rasputin possuía poderes de cura incomuns. Ele tam-
bém previra acertadamente o assassinato de Stolypin, ao apontar
para a carruagem do primeiro-ministro quando a viu passar na rua,
no dia 13 de setembro de 1911, e bradou "a morte está atrás dele!"
Stolypin foi assassinado no dia seguinte. A reputação de promiscui-
dade rendeu a Rasputin o apelido de "O Devasso", e a despeito de
sua aparência suja, o seu apartamento em São Petersburgo tornou-se
um ímã para as senhoras da corte, sobre as quais ele exercia uma
espécie de atração hipnótica. Uma de suas seguidoras costumava
chamá-lo de "Deus", e ele não se opunha.
Ele entrou para a História quando se tornou amigo do Czar
Nicolau II e da Czarina Alexandra, transformando-se em uma atra-
ção no palácio real. O casal valorizava Rasputin em razão da sua
incomum habilidade de interromper as perigosas hemorragias do
pequeno príncipe, que era hemofílico. Quando a criança suplka-
va e os médicos nada podiam fazer pela dolorosa hemorragia inter-
na, Rasputin se levantava aos pés da cama do menino e olhava-o.
Em poucos instantes a criança se recuperava. Certa vez, quando a
188 Det datas que todo católico deiieria conhecer

família estava de férias longe de casa, um ataque violento colocou


em risco a vida do príncipe. Alexandra enviou um telegrama pe-
dindo conselhos a Rasputin, que estava em São Petersburgo. Ele
respondeu que ela não devia fazer nada, pois a criança iria se
recuperar - o que sucedeu imediatamente.
A grande influência de Rasputin sobre a czarina mostrou-se evi-
dente quando se iniciou a Primeira Guerra Mundial, à qual opôs
o antiquado exército russo à moderna máquina de guerra alemã.
Persuadiu-se o czar para que se juntasse às suas tropas no campo de
batalha, embora ele não tivesse experiência militar. Alexandra per-
maneceu em casa e agora estava no comando, tendo Rasputin como
seu principal conselheiro. O governo imperial estava literalmente
sob o controle dela. A czarina demitiu vários funcionários experien-
tes e os substituiu por incompetentes recomendados por "Nosso
Amigo"- era esse o modo pelo qual o casal se referia a Rasputin nas
suas correspondências.
Um dos indicados por Rasputin era quase louco, outros
eram pouco melhores, mas todos eram incompetentes. Caso
fosse um agente bolchevique, seu trabalho em destruir o regime
teria sido excepcional. O czar recebia petições para que tomasse
alguma medida em relação às atitudes de Rasputin. Certa vez
em que o czar tentou evitar a substituição de outro oficial por
um joguete de Rasputin, a própria czarina dirigiu-se em segredo
ao acampamento do exército a fim de persuadi-lo, e ele cedeu
uma vez mais. A esposa do czar sempre jogava com duas cartas:
considerava Rasputin um verdadeiro homem de Deus (já que
ela desconhecia, ou não queria dar atenção aos relatos sobre a
devassidão dele), e o fato de que só Rasputin conseguia ajudar
o príncipe.
1917 d.C. - As aparições de Fátima e o século XX 189

O "Amigo" por fim foi assassinado em 1916, por homens que


não viam outro modo de se livrar dele. Eles tiveram de levar a
cabo uma tarefa horripilante, cujos detalhes bizarros confirmam
os poderes sobrenaturais do "monge". A força anormal e a resis-
tência à morte que ele demonstrou podem muito bem ter sido
o resultado de possessão diabólica. O plano original dos conspi-
radores era simplesmente envenená-lo, e, aconselhados por um
médico, eles adicionaram a uma taça de vinho veneno suficiente
para matar um elefante. Por precaução, colocaram a mesma quan-
tidade de veneno em alguns doces; Rasputin era famoso por gos-
tar de doces. O príncipe Félix Yusupov então convidou Rasputin
para uma festa em seu apartamento, convite que o monge acei-
tou de imediato, pois pensou que a esposa do príncipe lá estaria.
Ao saber que ela havia ido visitar a mãe e não estava presente, o
monge fez o que mais lhe agradaria naquele momento: começou
a entornar o vinho e a devorar os doces, e pediu que Félix lhe
tocasse a balalaica.
Logo ficou claro que Rasputin ingerira veneno suficiente
para matar dois elefantes, mas ele permanecia consciente; Fé-
lix: começava a ficar nervoso. Rasputin olhava-o consciente e
Félix: se deu conta de que o veneno não fizera efeito. Nervoso,
disse a Rasputin que precisaria ir ao andar. de cima fazer algo.
Os conspiradores que lá estavam disseram-lhe para atirar em
Rasputin. Ele desceu as escadas armado de uma pistola e encon-
trou "Nosso Amigo" virado de costas, olhando para uma bela cris-
taleira, acima da qual havia um crucifixo. "Grigori Ephemovich",
disse-lhe Félix:, "você faria melhor em olhar para aquele crucifixo
e começar a rezar", ao se virar, Rasputin foi baleado no peito à
queima-roupa e caiu sobre um tapete branco.
190 Dez datas que todo católico de1ieria conhecer

Porém quando os conspiradores, nervosos, reuniram-se para re-


mover o corpo, não havia nenhum sangue no tapete e o "cadáver"
agarrou a garganta do príncipe, gritando seu nome: "Félix! Félix!"
Félix e seus amigos fugiram aterrorizados. Quando reuniram co-
ragem para voltar, Rasputin conseguira sair da casa e estava atra-
vessando a quarteirão. Baleado uma vez mais, ele permanecia vivo;
por fim eles o espancaram com um atiçador de ferro. Em seguida
amarraram-no e o jogaram no Rio Neva, cuja água estava semicon-
gelada, mas, mesmo assim, parece que ele ainda não havia morrido
no momento em que foi jogado, pois quando se recuperou o corpo
na manhã seguinte descobriu-se que as cordas estavam parcialmente
desamarradas e os pulmões cheios de água - sinal de que ele ainda
respirava quando caiu no rio.
Rasputin finalmente havia morrido, mas o dano que causara já
não era mais reversível. A administração estava tão desestabilizada que
os ativistas marxistas puderam tirar vantagem dos tumultos de 1917
para montar uma revolução. O czar abdicou, quase sem protestos,
e o comunista "moderado" Kerensy tomou-se chefe do Parlamento
recém-criado. Mais tarde naquele ano, quando ocorreu a Revolução
de Outubro (em novembro, de acordo com nosso calendário), um re-
gime comunista mais radical subiu ao poder, sob a liderança de Lênin,
Trotsky e do jovem Josef Stalin.

Uma repetição da Revolução Francesa

Há muitas semelhancas
'
sinistras entre a Revolucão
'
'
Russa e o
seu protótipo francês: em ambos os casos, um indeciso líder de boa
vontade permitiu que os acontecimentos fugissem ao seu contro-
le; ambas progrediram de rebeliões moderadas para o extermínio e
1917 d.C. - As aparições de Fátima e o século XX 191

atrocidades em massa. Nas duas, executaram-se os governantes reais


e se perseguiu a lgreja. O próprio Lênin demonstrou estar ciente
dessa relação com a Revolução Francesa quando perguntou: "Onde
encontraremos nosso Fouquier-Tinville?", referindcrse ao revolucio-
nário francês que mandou várias vítimas para a guilhotina. Citando
o Abbé Siéyes, Lênin declarou: "É preciso isolar e enviar os inimigos
da classe para campos de concentração, a fim de garantir a segurança
da República Soviética."
Assim como os revolucionários franceses, Lênin buscou uma
oportunidade de destruir a igreja russa, e a encontrou quando a
fome devastou a região do Volga. Em uma recém-descoberta carta
de 1922, Lênin escreve para o Politburo: "No presente momento, em
que se pratica o canibalismo nas áreas assoladas pela fome, devemos
empreender a expropriação das terras da Igreja com todo o nosso
vigor e a nossa fúria (... ) Precisamos esmagar a sua resistência com
tamanha crueldade que eles precisarão de séculos para se esquecer."
E, assim como alguns bispos franceses, como Talleyrand, que coope-
rou com os ateístas franceses, o patriarca russo Tikhon afirmou em
1923: "Adotei inteiramente os princípios soviéticos."

A mensagem de Nossa Senhora e o milagre

Os videntes de Fátima não souberam de nada disso, enquanto


mantinham seus encontros com Nossa Senhora. Na primeira apari·
ção, em 13 de maio de 1917, a Santíssima Virgem ensinou-lhes uma
oração, e pediu-lhes que recitassem o Rosário, fizessem penitência
pelos pecadores e rezassem pelo fim da guerra. Na sua segunda vi-
sita, no mês seguinte, ela anunciou que Deus desejava estahelecer
na Terra a devoção ao Imaculado Coração de Maria. Na tt!rceira
192 Dez datas que todo católico det•eria conhecer

aparição, em julho, ocorreu a famosa visão do Infúno e revelou-se


o misterioso ''Terceiro Segredo".
Irmã Lúcia revelaria muitos anos depois outra mensagem rece-
bida nessa visão: Nossa Senhora prometeu que a guerra terminaria,
mas se os homens não parassem de ofender a Deus,

(... ) no pontificado de Pio XI começará outra [guerra! pior.


Quando virdes uma noite alumiada por uma luz desconhecida,
sabei que é o grande sinal que Deus vos dá de que vai punir o
mundo de seus crimes, por meio da guerra, da fome e de per-
seguições à Igreja e ao Santo Padre. Para o impedir, virei pedir
a Consagração da Rússia a Meu Imaculado Coração e a Comu-
nhão reparadora nos Primeiros Sábados. Se atenderem a Meus
pedidos, a Rússia se converterá e terão paz; se não, espalhará
seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à
Igreja. Os bons serão martirizados; o Santo Padre terá muito
que sofrer; várias nações serão aniquiladas. Por fim, o Meu
Imaculado Coração triunfará. O Santo Padre consagrar-Me-á à
Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum
tempo de paz.

Em outubro, Nossa Senhora prometeu às crianças que diria o


seu nome e o que desejava, e realizaria um grande milagre.
Nas duas visões seguintes a Santíssima Virgem repetiu algumas
das instruções anteriores, continuou a insistir nos pedidos de ora~
ção e penitência, e mencionou novamente o que faria no dia 13 de
outubro. Naquele dia, ela se referiu a si mesma corno Nossa SenhD-'
ra do Rosário e prometeu que a guerra terminaria e em breve os
soldados retornariam para casa. Ela falou uma vez mais sobre quão
1917 d.C. -As aparições de Fátima e o século XX 193

ofendido Nosso Senhor estava com os pecados dos homens e so-


bre a necessidade da conversão e da recitação diária do Rosário.
Só as crianças viram Nossa Senhora neste dia (assim como
várias aparições de São José). Mas então, em plena vista de 50.000
a 70.000 testemunhas - peregrinos e repórteres vindos de toda a
Europa - ocorreu o famoso Milagre do Sol. O Sol rodou no céu
e emitiu raios coloridos, antes de retornar ao seu lugar e estado
normal. Pessoas a quilômetros de distância relataram tê-lo visto,
isso desmente a afirmação de que o acontecimento foi "alucina-
ção em massa". Até mesmo um repórter agnóstico de um jornal
socialista admitiu ter visto o milagre e o descreveu em detalhes.
Deste modo, Nossa Senhora confirmou a sua mensagem.

Os cavaleiros da peste e da fome

Ao longo do século XX, todas as profecias se concretizaram,


uma após a outra. A Primeira Guerra Mundial terminou em 1918,
mesmo ano em que a maior epidemia de gripe' da História assolou
o mundo. Ela teve início no estado americano do Kansas, através
da mutação do vírus de um pássaro, e foi levada para a Europa por
tropas americanas, onde sofreu outra mutação e tornou-se ain--
da mais devastadora. Essa doença matou cerca de 40 milhões de
pessoas em todo o mundo. Um número desconhecido morreu de
infecções secundárias decorrentes do vírus. Oitenta e cinco por
cento dos soldados americanos em combate morreram em
decorrência da gripe, e não da guerra.

1. Gripe Espanhola.
194 Dez (latas que todo católico deveria conhecer

Uma década depois do fim da guerra, a Grande Depressão para-


lisou o m\lndo industrializado, devido à desarticulação econômica e
à miséria. O desemprego e a estagnação da produção e distribuição
Je alimentos causaram mortes por fome em alguns lugares. Durante
os anos 1930, uma escassez produzida intencionalmente devastou a
Ucrânia, país em que os camponeses haviam resistido ao controle co-
munista da sua nação e de suas fazendas. Em um dos episódios mais
cruéis da História, Stálin deliberadamente causou a morte lenta de
S milhões de camponeses ao confiscar suas terras, reservas alimenta-
res e todos os mantimentos.
Os 7 milhões de camponeses russos que tentaram resistir à co-
letivização morreram fuzilados ou nos campos de concentração, e
dezenas de milhares pereceram antes que Stálin - talvez o maior
genocida em massa da História - morresse em 1953. Mesmo assim,
não se fez a consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria
pedida explicitamente por Nossa Senhora em 13 de junho de 1929.
O Papa Pio XI soube dos acontecimentos em Fátima e da mensa-
gem de Nossa Senhora, mas optou por não agir em favor delas. Isso
nos parece um pouco estranho, já que foi durante o seu pontificado
(1922-19 39) que se investigaram e aprovaram as aparições. Ele este-
ve pessoalmente interessado nelas e chegou até mesmo a distribuir
cartões de oração com a imagem de Nossa Senhora de Fátima. Ele
estava também perfeitamente consciente dos perigos que ameaça-
vam o mundo, e certa vez afirmou: "Vemos hoje algo que nunca
se viu antes na História: a bandeira de Satã tremulando na batalha.
contra Deus e a religião, contra todos os povos, e em todas as partes
do mundo".
Mesmo assim, ele não realizou a consagração pedida por Nossa
Senhora, que converteria o pobre país da Rússia, sobre o qual o papa
1917 d.C. - As aparições de Fátima e o século XX 195

provavelmente refletia bastante. Talvez o seu foco fosse tentar evi-


tar a Segunda Guerra Mundial; talvez a continuação da política
de conciliação com a Rússia Bolchevique iniciada por Bento XV o
impedisse de fazer algo que os comunistas veriam como uma pro-
vocação. É possível que o Papa Pio XI, assim como muitos lideres
do Ocidente (o escritor Alexander Soljenítsin notou que, no pe-
ríodo seguinte à Revolução, "as potências ocidentais fizeram todo
o possível para impulsionar a economia do regime soviético"),
tenha se preocupado antes de tudo em apaziguar e não irritar a
poderosa e imprevisível União Soviética, recém-criada.

A guerra, uma vez mais

Na noite de 25 de janeiro de 1938, ocorreu um extraordi-


nário fenômeno atmosférico: estranhas luzes avermelhadas alu-
miaram o céu da Europa Ocidental. O fenômeno intrigou os
astrônomos. Irmã Lúcia, no entanto, ao observar o fenômeno
do seu convento na Espanha, o reconheceu como o prometido
sinal de que uma nova guerra começaria. Três meses depois,
durante o pontificado de Pio XII, Hitler anexou a Áustria - o
seu primeiro passo na série de conquistas que engatilhariam a
guerra mundial no ano seguinte. Ao mesmo tempo, a Guerra
Civil Espanhola devastava a Espanha desde 1936, acompanha-
da da grande perseguição da Igreja por anarquistas e comu·
nistas. Assassinou-se de maneira brutal um oitavo dos padres
espanhóis, além de inúmeras freiras. Somente a vitória do Ge-
neral Franco em 1939 restaurou a ordem no país e trouxe paz
ao clero espanhol. Franco conseguiu manter a Espanha fora da
Segunda Guerra Mundial. Para o resto do mundo, entretanto,
196 Dez datas que todo católiw deveria conhecer

essa guerra seria um pesadelo sem precedentes, prenunciando a Era


Atômica e a Guerra Fria.
Agora, finalmente, Roma dava atenção a Nossa Senhora, ao me-
nos em parte. Em 1942, o Papa Pio XII aprovou a devoção repara-
dora dos primeiros sábados, e a devoção a Nossa Senhora de Fátima
começou a se difundir por toda a Igreja. Porém, o Papa Pio XII não
consagrou a Rússia ao Imaculado Coração de Maria em união com
todos os bispos do mundo, tal como Nossa Senhora não cessara
de pedir. Ele consagrou o mundo inteiro, em outubro de 1942, e
incluiu uma oração pela conversão da Rússia. Nosso Senhor disse a
Irmã Lúcia que, devido ao gesto do papa, os dias de guerra seriam di-
minuídos, e, de fato, o ponto de mudança na Segunda Guerra Mun-
dial ocorre exatamente neste ano: com as vitórias dos aliados em
Midway, El-Alamein e Stalingrado, a maré começou a mudar contra
o eixo de poder. Mesmo assim, o fim da guerra deixou em ruínas a
Europa e grande parte da Ásia, e a União Soviética no controle de
toda a Europa Oriental. A perseguição contra a Igreja no regime co-
munista, até o seu colapso institucional (pelo menos na Europa) nos
anos 1990, trouxe uma quantidade indizível de sofrimento e morte.

O futuro nos reserva um novo castigo?

Já vimos, em nossa breve passagem sobre alguns episódios da his-


tória católica, quão severas podem ser as punições por não se atender
aos pedidos de Deus. Devemos tomar como lição o período da Idade
Média Tardia, quando a indiferença espiritual e o materialismo do
qual Nosso Senhor se queixou aos seus santos foram punidos com as
penosas mudanças climáticas, a fome, as pestes e as guerras do século
XIV. O paganismo e a mundanidade do período do Renascimento, e
1917 J.C. -As aparições de Fátima e o século XX 197

o contínuo interesse por lucro - uma característica tão proeminente


da vida moderna - foram acompanhados do formidável ataque dos
turcos otomanos à Europa.
Durante certo tempo, no final do século XVI e no século XVII,
a conversão e a devoção floresceram novamente sob a influência da
grande Contrarreforma Católica e da multidão de santos que a pro-
moveram - pelo menos nos países que se mantiveram fiéis a Roma.
Mas logo depois veio o Renascimento, trazendo seu declínio moral
em todos os níveis da sociedade e sua zombaria a respeito de tudo
o que fosse católico - desde a devoção até a política. Até aí, as coi-
sas haviam tomado um rumo muito ruim, como vimos no capítulo
anterior. No entanto, nosso bom Deus, que nunca abandona seu
rebanho, uma vez mais ofereceu um remédio ao seu povo: que o rei
da França se humilhasse e de modo solene consagrasse a si e a sua
nação ao Sagrado Coração de Jesus.
Como vimos, Luís XIV se recusou a fazê-lo. Que necessidade ti-
nha ele de auxílio divino, já que as coisas iam tão bem? Ele chamaria
atenção caso realizasse uma consagração tão inusitada; poderia pare-
cer um tolo. Pior ainda, talvez se esperasse que ele de fato praticasse
a nova devoção ao Sagrado Coração, como faziam aquelas "devotas"
senhoras da sua corte; quein saberia como isso iria afetar a sua repu-
tação? Melhor seria deixar a questão de lado; aquela moda religiosa
certamente se extinguiria.
Mas essa talvez não seja uma comparação apropriada. Talvez os
homens sejam melhores agora do que eram no século XVII, quando
Nosso Senhor se queixou a Santa Maria Margarida Alacoque. Talvez
não mereçamos um castigo como o da Revolução Francesa, ou não
precisemos mais da Consagração da Rússia. Os homens se converte-
ram, mudaram suas vidas e agora amam a Deus e evitam o pecado
198 Dez dt1tas que todo católico dewría conhecer

mais do que faziam duzentos anos atrás? A resposta é evidente, é só


olhar ao redor. St' houve alguma mudança, fi.Ji o mundo ter se tor-
nado ainda mais indiferente a Nosso Senhor e ter tomado caminhos
mais pecaminosos do que nunca antes na Era Cristã.
Dentro da Igreja, a situação não é diferente. Hoje em dia, em
muitos países católicos da Europa, algo em torno de 5% dos cató-
licos - o povo de Carlos Magno e Santo Odon, de Scanderbeg e
Gregório VII - frequentam a Missa regularmente. A indiforença
religiosa, confusão doutrinal e ambiguidade moral infestaram pro-
fundamente a Igreja.
Em uma situação como essa, é indispensável dar ouvidos aos
pedidos de oração, penitência, conversão, e, sim, de um ato especial
de consagração da Rússia feito pelo papa e os bispos (embora haja
desavenças sobre se a consagração já tenha sido devidamente reali-
zada. Pessoalmente, acho que não). O Terceiro Segredo de Fátima,
com suas imagens de uma cidade em ruínas, um anjo punidor e uma
multidão de mártires em que se inclui o papa, talvez seja um vis-
lumbre das consequências dos contínuos desprezos à mensagem de
Fátima. Todavia, o historiador não pode afirmar, mas apenas apon-
tar, preocupado, para o que aconteceu na última vez que se ignorou
uma exigência explícita do Céu. Luís XVI fez a sua consagração no
momento em que estava aprisionado, prestes a morrer e seu país
decaía no caos e começava a "espalhar seus erros pelo mundo." Esse
castigo demorou cem anos para chegar. Ainda não se passaram cem
anos desde 1917, mas estamos nos aproximando.
1917 d. C. - A~ aparições de Fátima e o século XX 199

Poderá haver outra "divina surpresa"?

Chegamos aqui a um tema confortante e que não podemos dei-


xar de mencionar. Se há algo que o passado católico demonstra, é
como Deus geralmente interfere quando as coisas não parecem ter
soluçôes humanas, e muda o rumo da História (um exemplo é a
conversão de Constantino). Além disso, temos a promessa de dois
grandes desenvolvimentos históricos: a conversão da Rússia (a qual
Irmã Lúcia disse que seria rápida e completa) e algum período de
paz. Temos as palavras de Nosso Senhor de que isso acontecerá. Essa
promessa deve nos encher de esperança.
Estamos vivenciando um capítulo inacabado, possivelmente o
mais interessante - assim como o mais perigoso - de toda a história
da Cristandade. É, de fato, uma grande provação que exige de nós
heroísmo e dedicação. A mensagem de Fátima se dirige não somente
aos papas e bispos, mas também a nós, os leigos. A recitação diária
do Rosário, a devoção dos primeiros sábados, as orações ensinadas
por São Miguel e Nossa Senhora e o cumprimento de nossos deveres
religiosos são armas de que nós, da Igreja Militante, devemos nos
utilizar, motivados por nossa devoção e amor por Nosso Senhor e
Nossa Senhora e pelo nosso desejo de reparação.
Não sabemos quando chegarão os tempos de paz, ou quais as
catástrofes que podem precedê-lo. Mas é certo que o final deste capí-
tulo da História será algo fascinante de se presenciar.
Livros indicados

Há boas histórias gerais da Igreja disponíveis. Para os perío-


dos antigos, recomendo a série A história da Igreja de Cristo, de
Henri Daniel Rops. Os primeiros três volumes tratam das épocas
apresentadas nos três primeiros capítulos deste livro. São eles: A
Igreja dos Mártires (São Paulo, Quadrante, 1988); A Igreja dos tempos
bárbaros (São Paulo, Quadrante, 1991); A Igreja das catedrais e das
Cruzadas (São Paulo, Quadrante, 2012).
Grande parte do que se escreveu sobre a Idade Média ao leitor
comum é pura difamação, resultado do preconceito anticatólico
dos escritores modernos. Duas autoras em quem podemos confiar
são Eleanor Shipley Duckett, autora de diversos trabalhos curtos
sobre a Idade Média e personagens importantes dessa época, e a
medievalista francesa Régine Pernoud (sua obra O mito da ldade
Média é um bom antídoto contra muitas obras difamatórias dessa ·
gloriosa época).
Sobre a Revolução Protestante, o livro do Dr. Warren Car·
roll, The Cleaving of Christendom (Christendom Press) é um bom
resumo. Uma brilhante revisão feita por um não católico, que
demole muitos dos mitos sobre a Reforma e examina a essência
do seu sucesso é The European Reformation, de Euan Cameron (Ox-
ford University Pres). A obra The Stripping of the Altars, Traditional
Religion in England 1400 - 1580 (Yale University Press), fornece
uma boa visão a respeito das mudanças impostas pela Refurma
Inglesa na vida das pessoas comuns. Há mais santos nesse período
e mais biografias deles do que se poderia listar aqui. Em geral, as
obras antigas são mais confiáveis e podem ser localizadas através
de uma busca na Internet.
202 Dez datas que todo católico deveria conhecer

Quanto à guerra contra os turcos, o livro The Cleaving of


Christendom, do Dr. Carrol!, trata do assunto, bem como a maioria
das histórias gerais da Cristandade.
Para a Revolução Francesa, é uma boa ideia ter uma visão geral e
conhecer a cronologia dos acontecimentos utilizando qualquer livro
didático de história (ignorando a ideologia). Em seguida recomendo
que se leia The Guillotine and the Cross, de Warren Carroll (Trinity
Comunications), e Citizens - A Chronicle of the French Revolution, de
Simon Schama (Alfred A. Knopt). Este é um exemplo de "revisão
histórica" que ousa qualificar a Revolução como um acontecimento
que não trouxe nada de glorioso e benéfico.
Enquanto os banhos de sangue do século XX desafiam os resu-
mos, há alguns trabalhos curtos sobre ternas específicos. A editora
Christendorn Press publicou The Last Crusade, do Dr. Warren Car-
roll, sobre a Guerra Civil espanhola, e Red Banners, White Mantle,
sobre a Revolução Russa. Ambos são muito bons, assim como o seu
colossal The Rise and Fall of the Communist Revolution. Sobre Fátima,
os três volumes de Tout la vérité sur Fatima, de Fr. Michel de la Sainte
Trinité, é um estudo profundo e de fácil leitura (a tradução inglesa se
chama The Whole Truth about Fatima e foi publicada por Imrnaculate
Heart Publications.)
Romances históricos frequentemente são pura invenção.
Alguns, entretanto, foram escritos por estudiosos católicos que con-
heciam profundamente o assunto e podem nos fazer compreender
melhor determinado período. Para a época das perseguições no Impé-
rio Romano, há dois clássicos: Fabíola, do Cardeal Wiseman, e Callis-
ta, do Cardeal John Henry Newman. Para a Reforma, temos os roman-
ces de Mgr. Robert Hugh Benson, filho convertido de um arcebispo
de Cantuária, que portanto conhecia os dois lados do penoso debate
Livros indicados 203

sobre a Reforma na Inglaterra. Seus romances mudam a concepção


que temos desse período, e possuem personanges cheios de vida,
tanto na história como na ficção. Listados cronologicamente desde
o reinado de Henrique VIU até o reinado de Carlos 11, eis algumas
das obras: The King's Achievement; The Queen's Tragedy; Come Rack,
Come Rope; By What Autorithy; e Oddfish. À exceção de The Queen's
Tragedy, recomenda-se lê-los em ordem cronológica, visto que alguns
dos personagens aparecem em mais de um livro.
Dez datas que todo católico deveria conh.?cer
Livros indicados 205

Nota biográfica

Diane Moczar é professora de História na Nothem Virginia Com-


munity College. Graduou-se em História e Filosofia na San Franciso
College for Women e, após dois anos de estudos em Paris, obteve o
diploma de mestre na Columbia University. Completou seu traba-
lho de doutorado na Catholic University e na George Mason UniveF-
sity. Ela já escreveu para as revistas Triumph, Smithsonian, Catho-
lic Digest, National Review, entre outras.
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Livros indicados 207

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