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Primeiro capítulo do livro: José Luís Jobim.

A poética do fundamento;
ensaios de teoria e história da literatura. Niterói: Editora da Universidade Federal
Fluminense, 1996,

A LEITURA E A PRODUÇÃO TEXTUAL: UMA VISÃO HISTÓRICA

A relevância da leitura para o aluno parece ser auto-evidente na visão


predominante em nosso sistema educacional. Porém, a partir deste aparente
consenso, podemos indagar: "- É possível resumirmos em uma única descrição
científica, válida universalmente, a relação entre a leitura e a produção
textual?"

A própria pergunta já aponta para um certo quadro de referência,


vinculado a uma imagem de Ciência. Não é difícil nos depararmos com autores
que propõem a separação entre História e Ciência, argumentando que a
abordagem científica aspira à universalidade e atemporalidade de seus
fundamentos, enquanto a histórica limita a validade de suas conclusões às
circunstâncias em que se inserem. Se tivéssemos a pretensão de estabelecer
distinções entre duas possíveis abordagens da relação entre leitura e produção
textual, uma dita científica e outra dita histórica, talvez o fizéssemos desta
maneira: uma abordagem científica, com sua pretensão à abrangência e
validade universais, provavelmente determinaria uma descrição padronizada
da relação, estabelecendo normativamente quais são os elementos relevantes e
quais os irrelevantes, para esta descrição. Contudo, como estamos longe de ter
esta pretensão, e até mesmo questionamos a validade de seus fundamentos, o
que poderemos oferecer é o reporte de como as descrições mudaram e mudam
ao longo do tempo. Por conseqüência, partindo de nossa perspectiva, o que se
alcança é uma história das mudanças nos tipos de descrições da relação entre
leitura e produção textual, aceitos em vários momentos. Nunca imaginamos
chegar a uma única e completa descrição, válida atemporalmente, que incluiria
ou englobaria todas as outras. Por quê? Porque a idéia de produzir esta
descrição freqüentemente omite o seu próprio processo de constituição como
"única, completa e válida atemporalmente", escamoteando o contexto a partir
do qual se extraiu a idéia - contexto particular e historicamente situado. Assim,
a aparente solidez da descrição acaba sendo reafirmada pelos modelos de
consciência produzidos nas sociedades e nos momentos históricos, para os
quais a base desta descrição é sólida e fundadora. Trata-se, portanto, de uma
solidez cujos alicerces são sociais...e portanto sujeitos a abalos.
Na contemporaneidade, por exemplo, podemos observar que a
perspectiva sobre a relação entre leitura e produção textual ainda está
profundamente marcada por resíduos do mito romântico da imaginação
livremente criativa1, o que significa que ainda estamos afetados por resquícios
da ideologia romântica. Dois pontos desta ideologia nos interessam
particularmente: 1. a visão do autor como gênio; 2 . a expectativa de
originalidade.
A visão do autor como gênio - diferente do comum dos mortais - é
uma das pedras de toque do Romantismo. Através dela se justifica para o leitor
a estética da expressão do eu autoral. Imaginemos que um autor romântico,
desejando despertar o interesse do leitor, argumentasse que sua obra expressa
os sentimentos, emoções e pensamentos dele, autor. O leitor, então, poderia
contra-argumentar: "- Esta obra deve ser muito interessante para seus parentes
e amigos, que querem conhecê-lo...mas não para mim, que não tenho nenhuma
relação com o senhor." Então, como antídoto para este tipo de resposta do
público, a figuração do autor como gênio é perfeita: o leitor deve ler a obra,
porque ela expressa um eu muito especial, cujos sentimentos, emoções e
pensamentos são de qualidade superior. Por isso, a abundância de metáforas
do autor como demiurgo, como responsável pela gênese absoluta daquilo que
escreve - em outras palavras, como aquele que cria o texto do nada, assim como
Deus criou o mundo. Trata-se de uma imagem que se refrata em várias outras,
entre as quais: a) a do autor como aquele que tem uma espécie de Deus interior;
b) a do autor como profeta - como aquele que enxerga mais longe que o comum
dos mortais, e portanto pode ver melhor os caminhos do porvir ; c) a do autor
como aquele que sempre produz um texto cuja origem absoluta está no próprio
sujeito criador - daí a cobrança desta originalidade dos textos, e a condenação
da imitação.2
Curiosamente, há vestígios desta ideologia romântica fortemente
enraizados na cultura brasileira de hoje. Afinal, não assistimos ainda aos

1 A expressão é de GADAMER, Hans Georg. Truth and Method. 2. ed.


New York: Continuum, 1993.
2 Cf. JOBIM, J.L. O autor como sujeito. Rio de Janeiro: UERJ, 1995. Col. A
teoria na prática ajuda.V.1.
críticos literários de plantão, cobrando originalidade das obras submetidas a
seu crivo? E não existe, no sistema escolar, a cobrança de originalidade,
inclusive na sua versão didática mais próxima, a criatividade? Não há uma
certa transferência, para o aluno produtor de redação escolar, de uma
expectativa de originalidade/criatividade que se cobrava do autor romântico?
Os românticos imaginaram o autor como a instância responsável pela
gênese absoluta da obra, e valorizaram a irredutibilidade desta obra a qualquer
instância precedente. O que era a originalidade romântica, senão a cobrança de
que a obra surgisse originária e absolutamente do autor?
No entanto, é também possível observar que a proposta de uma
originalidade absoluta encontra a priori um certo quadro de referência já
presente, a partir do qual esta própria proposta se constitui e pode ser
entendida. O que nos permite indagar: - Como a originalidade absoluta pode
ter um a priori? Quem se propõe como fonte absoluta de um texto pode admitir
a presença de uma instância anterior, também relacionada ao surgimento deste
texto? Como admitir o autor como fundamento absoluto da criação textual, se
este fundamento não é incondicionado? Como conciliar a idéia de liberdade
absoluta de criação com o fato de a atividade de produção textual se exercer
com/ a partir de/ contra práticas e tradições preexistentes, que funcionam
como um certo substrato pré-constituído, no próprio momento da gênese do
texto? Se o autor é a origem absoluta da obra, como escapar à condicionalidade
autoral, que inclui a sua própria experiência em um mundo já constituído? A
inserção do escritor no mundo não prejudica a idéia de uma autonomia
originária do criador, libertado de todo constrangimento contextual? Será
possível a existência de um sujeito autoral, com uma identidade absoluta,
reclusa em si própria, cujas ações - inclusive a de escrever textos - não sofram
nenhum tipo de influência ou determinação extra-subjetiva? Em vez de uma
origem absolutamente constituinte - o autor em si - será que não encontramos
uma instância sempre já constituída, que paga um pesado tributo às formas de
representação e aos modos de conhecer vigentes na sociedade em que se
enraíza?
Estas perguntas correm o risco de cair no vazio, caso se dirijam a um
receptor para o qual a ideologia romântica seja auto-evidente: um público que
acredite nos pressupostos desta ideologia. Mas podemos também dirigir nosso
olhar a outros públicos, que sequer a conheceram. Para isto, é necessário
voltarmos nosso foco para o passado mais distante.
Na Arte Poética, de Horácio (escrita no primeiro século antes de
Cristo), encontramos uma referência bastante clara ao papel do leitor, que
estava relacionado a um papel atribuído ao autor. Como o texto a ser lido
deveria ser útil, o leitor deveria, ao mesmo tempo em que se deleita, também
aprender:

"Omne tulit punctum qui miscuit utile dulci


lectorem delectando pariterque monendo;
hic meret aera liber Sosiis, hic et mare transit
et longum noto scriptori prorogat aeuum.” 3

("Recebe sempre os votos, o [autor] que soube misturar o útil ao agradável,


pois deleita e ao mesmo tempo ensina o leitor: é este o livro que dá dinheiro
aos Sósios, que passa aos mares e oferece ao célebre escritor imortal
renome.")

O princípio de que o autor deve unir o docere ao delectare, isto é,


deve ao mesmo tempo agradar e ensinar o leitor, permanecerá por muito tempo
como uma verdade auto-evidente para os escritores e seu público. Como
exemplo, podemos lembrar, a partir do final do século XI., a existência de
prólogos às obras escritas em latim e consideradas importantes. Nestes
prólogos constavam: o nome da obra [Titulus (inscriptio, nomen) libri ]; o
nome do autor [ Nomen auctoris ] ; a intenção do autor [Intentio auctoris]; o
assunto do livro [Materia libri]; o método do procedimento didático
empregado na obra [Modus agendi]; a ordem do livro [ordo libri]; a utilidade
do livro [utilitas] e o ramo de conhecimento a que a obra pertence [ cui parti
philosophiae supponitur ]. É interessante notar a presença do docere no Modus
agendi : nesta parte do prólogo, os comentaristas descreviam as qualidades
estilísticas do texto, sempre tendo em vista apresentar o valor instrucional ou
pedagógico da forma literária.4 A Utilitas, por sua vez, buscava explicitar
porque a obra era útil - a utilidade da Bíblia para os leitores, por exemplo, era
auto-evidente naquela época, mas havia obras que necessitavam de
justificativas explícitas para que pudessem fazer parte de um currículo cristão,
isto é, para que servissem a um leitor fortemente constrangido por vínculos
institucionais religiosos.5

3 HORÁCIO. Arte Poética. Lisboa, Clássica, s.d. p. 107.


4 MINNIS, A.J. Medieval Theory of Authorship. London, Scholar Press, 1984.
p.21.

5 Ibidem, p. 23.
A. J. Minnis nos chama a atenção para a existência, no final da Idade
Média (1100-1400), de uma situação em que um certo número de auctores de
textos escritos em Latim é lido e estudado nas escolas e universidades. É
interessante, contudo, assinalar o sentido do termo para a época: "Em um
contexto literário, o termo auctor denotava alguém que era ao mesmo tempo
um escritor e uma autoridade [auctoritas, em Latim], alguém que não apenas
devia ser lido, mas também ser respeitado e acreditado."6 A partir da leitura e
análise destes textos, os eruditos produzem glosas e comentários, que hoje são
repositórios da recepção daquele época.
Minnis diz que o curso-preleção medieval sobre determinado auctor
começava com um discurso introdutório em que o texto abordado seria
considerado como um todo, e se daria ao aluno o esquema daqueles princípios
e critérios literários e doutrinais - que se supunha apropriados ao texto em
questão. Quando a série de preleções era transcrita pelos alunos, ou preparada
para publicação pelo próprio professor, a preleção inicial tornava-se o prólogo
ao comentário sobre o texto.

"Toda disciplina, toda área de estudo tinha seus auctores. Na


gramática, havia Prisciano e Donato junto com os antigos poetas; na retórica,
Cícero; na dialética, Aristóteles, Porfírio e Boécio; na aritmética, Boécio e
Marciano Capela; na astronomia, Higino e Ptolomeu; na medicina, Galeno e
Constantino, o Africano; na lei canônica, Graciano; na Teologia, a Bíblia e,
subseqüentemente, também as Sentenças de Pedro Lombardo." 7

É claro que a Bíblia era a fonte dominante da auctoritas na época.


Como conseqüência, ela era também o principal objeto a ser lido. Mas não se
tratava de uma leitura "livre", baseada no pressuposto de que o leitor deveria
chegar às suas próprias conclusões. Esta leitura deveria ser filtrada pelos
comentários e exegeses daqueles que eram institucionalmente credenciados
para produzir interpretações aceitáveis pelo sistema. Portanto, tratava-se de
algo controlado, em que um certo policiamento do sentido era prática vigente.
Se déssemos um salto no tempo, e passássemos do final da Idade
Média ao século XVII, verificaríamos que, com certas modificações, ainda
permanece a relação dos leitores com os auctores. É bem verdade que, no
Seiscentos, as palavras de ordem serão outras. Discrição, agudeza, prudência,
serão cobradas tanto dos autores quanto de seu público, na Península Ibérica e

6 Ibidem, p. 10
7 Ibidem, p.13.
na América. E estas palavras de ordem indicarão uma figuração de discurso
padronizado por certa racionalidade.
João Adolfo Hansen8 aponta vários pressupostos desta racionalidade,
entre os quais uma articulação retórica e uma encenação de ordem social.
Em relação ao primeiro item, é importante assinalar que, para autores
e leitores barrocos, havia a pressuposição do conhecimento de um universo de
procedimentos retóricos que constituíam a base mesma do discurso
seiscentista. Em outras palavras, havia um contrato implícito entre autor e
leitor, caracterizando ambos como discretos, agudos e prudentes, conforme um
padrão apropriado e desenvolvido desde o século XV "nos livros de formação
do perfeito cavaleiro, que se tornara modelar em práticas cortesãs dos séculos
XVI e XVII."9 Não seria discreto, agudo nem prudente desconhecer aqueles
procedimentos, pois quem os ignorasse poderia ser classificado como vulgar,
o que significaria ocupar um lugar menor na encenação vigente de ordem
social.
A discrição, a prudência e a agudeza do discurso também tinham seus
auctores: Gracián, Tesauro, Pallavicino, entre outros. E a influência da
codificação discursiva proposta por eles atingirá até o século XVIII, como
veremos. Contudo, interessa-nos neste ponto enfocar um aspecto específico
da relação entre produção textual e leitura no século XVII. Trata-se de um
aspecto que não é mais auto-evidente para a maioria das pessoas em nosso
século: o circuito comunicacional da obra seiscentista era baseado numa
poética da imitação e da emulação. O que significa isto?
Para explicar melhor, vamos encenar uma possível reação de
receptores atuais e contrastá-la com uma provável reação de leitores
hipotéticos seiscentistas. Assim, imaginemos que um contemporâneo nosso
tivesse diante de seus olhos uma obra que imitasse ou emulasse Gôngora,
Quevedo ou Marino. Talvez este leitor julgasse negativamente esta obra,
exatamente porque ele valoriza a originalidade.
Entretanto, no século XVII, por exemplo, Gregório de Matos e seu
público provavelmente apreciariam a imitação de autores como Gôngora,

8 HANSEN, João Adolfo. Colonial e Barroco. In: AMÉRICA: descoberta ou


invenção. Rio de Janeiro: Imago/UERJ, 1992. p. 347-361. Para toda a
argumentação sobre o século XVII, adotamos a perspectiva de Hansen.

9-----.Pós-Moderno e Barroco. In: Cadernos do Mestrado/Literatura UERJ,


Rio de Janeiro: 8: 28-55, 1994. p. 35.
Quevedo ou Marino, pois considerariam que são modelos de um certo discurso,
que devem ser emulados. Além disto, pressupunha-se que autores e leitores
compartilhassem um mesmo universo de convenções retóricas, e apreciassem
a presença de todo o inventário de artifícios que pertencia àquele universo.
Será que isto significaria necessariamente que os seiscentistas tinham uma
aversão à inovação?
Não, pois a agudeza do autor também era medida pelo que ele
produzisse de novidade. Só que não se tratava de uma novidade absoluta - uma
novidade que não tivesse nenhuma relação com algo anteriormente existente.
Tratava-se, isto sim, de uma novidade dentro de algo já criado: um trabalho
que tinha como referência linhas de discurso previamente existentes, buscando
segui-las e aperfeiçoá-las. Por isto, em seu Cannocchiale Aristotelico, Tesauro
afirma:

"...em todo parto agudo é necessária a Novidade; sem a qual a maravilha


diminui: e com a maravilha a graça, e o aplauso. Chamo pois IMITAÇÃO uma
sagacidade com a qual, proposta para ti uma metáfora ou outra flor do
humano engenho, atentamente consideras as suas raízes e, transplantando-a
em diferentes categorias como em um solo cultivado e fecundo, propagas
outras flores da mesma espécie, mas não os mesmos indivíduos."10

Assim, autores e leitores seiscentistas não buscavam textos de uma


nova espécie, mas textos da mesma espécie, embora não exatamente os
mesmos textos (flores da mesma espécie, mas não os mesmos indivíduos). Isto
porque, se fossem os mesmos, não se trataria de imitação ou de emulação, mas
de pirataria (palavra utilizada para o que, hoje, chamamos de plágio). Para o
público seiscentista, não haveria problema se Gregório de Matos emulasse
Quevedo, pois ele estaria emulando um mestre do verso. Contudo, se Gregório
copiasse literalmente o texto daquele poeta espanhol, apresentando-o como
seu, isto seria pirataria. Por isto, a resposta a uma sátira de Gregório, atribuída
ao vigário Lourenço Ribeyro, seria extremamente ofensiva :

Doutor Gregório Guaranha,


pirata do verso alheio,
caco, que o mundo tem cheio,
do que de Quevedo apanha:

10Apud HANSEN, João Adolfo. Notas do Seminário UERJ sobre o Barroco.


Mimeo. set. 1991.
já se conhece a maranha
das poesias, que vendes
por tuas, quando as empreendes
traduzir do Castelhano;
não te envergonhas, magano?11

Chamar um poeta de pirata do verso alheio é uma tremenda


desqualificação. Caco, filho de Vulcano, que aparece na mitologia como ladrão
de gado, designa aí o ladrão das poesias de Quevedo, as quais - segundo o
vigário Lourenço - Gregório tenta fazer crer que são suas. Somente um
indivíduo de baixa extração (magano) se prestaria a um papel destes, do qual
deveria se envergonhar:

.........................................
logo mal te apelidaste
o Mestre da poesia
furtando mais em um dia
que mil ladrões em um ano:
não te envergonhas, magano?12

As idéias do Seiscentos ainda encontrarão eco no século seguinte. Um


bom exemplo disto é a Nova Arte de Conceitos que com o título de Lições
Acadêmicas, na pública Academia dos Anônimos de Lisboa, ditava e explicava
o beneficiado Francisco Leitão Ferreira, Acadêmico Anônimo (1718). Nesta
obra, praticamente traduzindo o seiscentista Pallavicino13, Ferreira afirma:

"...assim como eu propriamente não tomo, mas só roubo por metáfora, o lume
do meu vizinho, se com o lume do meu vizinho acendo outro lume para mim;
mas sim cometo furto, se lhe tomo para mim a mesma vela acesa de que é

11MATOS, Gregório de. Obra poética. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1990.
V. 1. p. 603.
12Ibidem, p. 604.
13Cf. Tratatto dello stile e del dialogo, oue el cercarsi l'Idea dello scriuere
insegnatuo, Discorresi partitamente de' verij pregi dello Stile sì Latino come
Italiano. E della natura, dell'imitazione, e dell'utilitá del Dialogo. Composto
dal Padre Sforza Pallavicino Della Compagnia di Giesu. In Roma, Nella
Stamparia del Mascardi, 1662.
possuidor: da mesma sorte o tomar ou furtar uma cousa a outrem, então se diz
nos escritores propriamente roubo, furto e latrocínio, quando a mesma coisa
em indivíduo inventada por um, é usada por outro; porque se ela foi um
distinto indivíduo, já se não dirá tomada, nem furtada, mas imitada ou
competida: e só por metáfora se pode chamar roubo."14

Contudo, é interessante assinalar que Ferreira - um divulgador das


idéias sobre leitura e produção textual do Seiscentos - poderia ser classificado
até de pirata por um público daquela época, pois a acusação do vigário
Lourenço a Gregório de Matos - de que aquele poeta fazia crer serem suas as
poesias, as quais apenas traduzia do castelhano - caberia muito bem para
Ferreira, em relação a Pallavicino. Vejamos um exemplo disto:

PALLAVICINO

"Emulare finalmente é procurar di conseguire con altri modi nell'animo de'


lettori un simile ò maggior piacere di quello che anno conseguito gli Scrittori
emulati."

FERREIRA

"A emulação no imitador, é um procurar por diferentes modos mover nos


ânimos dos leitores, e ouvintes um semelhante, ou maior deleite, daquele que
moveram os escritores emulados..."15

É importante notar também que a poética da emulação pressupunha


que tanto autores quanto leitores possuíssem valores compartilhados sobre os
discursos socialmente aceitos. O escritor seguiria o molde discursivo de um
auctor, buscando aperfeiçoar o modelo, pois é isto que esperavam dele os
leitores e ouvintes. Ao produzir um discurso assemelhado ao de um auctor, o
escritor já pressuporia que o público teria um prazer assemelhado ao que teve
com o texto do auctor emulado. O prazer poderia até ser maior, se o leitor
achasse que o imitador conseguiu "melhorar" o modelo seguido.

14Apud CASTRO, Aníbal Pinto de. Retórica e Teorização Literária em


Portugal (do Humanismo ao Neoclassicismo). Coimbra: Românicos, 1973.
p. 174-5.
15Ibidem, p. 175.
A poética da emulação perdeu terreno no século XIX. Outras idéias
entraram em cena: o mito romântico da imaginação livremente criativa; a idéia
do autor como gênio que expressa no texto a sua subjetividade privilegiada; o
questionamento dos modelos textuais legados pela tradição ocidental etc. A
um poeta ultra-romântico como Álvares de Azevedo, por exemplo, não
interessava seguir ou aperfeiçoar moldes alheios, mas, isto sim, variar sua
escrita de acordo com o que lhe passasse pela cabeça: "Se vario no verso e
idéias mudo / É que assim me desliza a fantasia..."16 No entanto, é importante
assinalar que efetivamente a proposta da expressão de uma subjetividade
pretensamente sem modelos - isto é, a proposta da criação de um texto cuja
gênese absoluta ocorreria no próprio autor - não se realiza plenamente nem
nos textos dos ultra-românticos. Vejamos um exemplo.
Quando lemos o primeiro quarteto de Adeus, meus sonhos!, de
Álvares de Azevedo, podemos até imaginar que se trata da expressão singular
de um certo estado subjetivo de desânimo com a vida, que afetava apenas
aquele poeta:

Adeus, meus sonhos, eu pranteio e morro!


Não levo da existência uma saudade!
E tanta vida que meu peito enchia
Morreu na minha triste mocidade!17

Entretanto, se incluirmos outros autores oitocentistas em nossa opção


de leituras, podemos nos surpreender com a semelhança entre seus textos e o
de Azevedo, o que talvez nos leve à conclusão de que existem modelos
românticos para a expressão singular de um certo estado subjetivo de
desânimo com a vida. Em outras palavras, longe de termos diante de nós um
texto cuja gênese absoluta encontra-se nas profundezas do eu autoral, nós nos
encontramos diante de um poema cuja forma se assemelha à de muitos outros
do período. Assim, em vez de confirmar a hipótese ultra-romântica da
singularidade absoluta do poema - expressão de um estado de alma peculiar e
único de seu autor - , admitiremos a existência de um certo "modelo"
discursivo, comum aos poetas do período. Para melhor visualizarmos a
questão, comparemos aquele fragmento de Álvares de Azevedo com dois
outros: o primeiro de Casimiro de Abreu e o outro de Alfred de Musset:

16AZEVEDO, Manuel Antônio Álvares de. Poesias Completas. São Paulo:


Saraiva, 1962. p. 354.
17Ibidem, p. 306.
Oh! vem depressa, minha vida foge...
Sou como o lírio que já murcho cai!
Ampara o lírio que inda é tempo hoje!
Orvalha o lírio que morrendo vai!...18

Oh! terra! quem por noivo te deu o sol formoso?


Por que cantam as aves, e a brisa ouço gemer?
Por que de vosso amor vindes mostrar-me o gozo
A mim, o suicida? a mim, que vou morrer?19

A série de elementos percebidos no fragmento de Azevedo (spleen,


uma certa melancolia, morbidez etc.) poderia, após a leitura de Abreu e
Musset, ser interpretada como uma formatação de estilo, comum a vários
autores em diferentes literaturas nacionais, no período romântico. Assim, o
leitor que tenha acesso a um certo volume de textos deste período
provavelmente não confirmará a visão do autor como auto-suficiente, mas
perceberá o ar de família do acervo bibliográfico lido.
O Romantismo questionou as normas estéticas herdadas da tradição,
e a visão do autor como gênio teve um papel importante nesta cena: serviu para
justificar tanto a colocação em cheque dos gêneros tradicionais quanto a
pretensão a uma escrita absoluta. Entretanto, é interessante notar que, já no
final do século XX, podemos ainda detectar vestígios daquela ideologia
oitocentista em nossa cultura. Talvez seja agora o caso de repetir as questões
que já formulamos anteriormente, nem que seja apenas para propor um esboço
provisório de resposta. Afinal, não assistimos ainda aos críticos literários de
plantão, cobrando originalidade das obras submetidas a seu crivo? E não
observamos, no sistema escolar, a cobrança de originalidade, inclusive na sua
versão didática mais próxima, a criatividade? Não podemos detectar uma certa
transferência, para o aluno produtor de redação escolar, de uma expectativa de
originalidade/ criatividade que se cobrava do autor romântico? E a idéia de
leitura, como se insere neste contexto?

18ABREU, Casimiro de. Poesias completas. São Paulo: Saraiva, 1961. p.


143.
19MUSSET, Alfred de. Excerto do poema "Rolla". In: MAGALHÃES JR.,
Raimundo. Poesia da França. Rio de Janeiro: Ed. de Ouro, 1966. p. 335-6.
Evidentemente, se acreditarmos no mito romântico da imaginação
livremente criativa, não acharemos que a leitura possa servir para modelizar o
texto do aluno. Caso a escola faça o discente crer que a sua redação escolar é
produto apenas de sua própria subjetividade, a leitura poderia ser considerada
como supérflua. É claro que esta posição não encontra muitos defensores,
especialmente no meio acadêmico atual, pois não se ignora que os elementos
constitutivos do texto (a língua, os temas, os recursos disponíveis etc.)
transcendem a individualidade singular de seu autor. Mas, se descartarmos a
hipótese da subjetividade autoral auto-suficiente, e imaginarmos a leitura como
um modelo, a partir de cujas normas e princípios se dá a produção textual,
ainda assim há questões a serem respondidas. Por exemplo: - Que modelo?
Para equacionar uma resposta coerente a esta pergunta, tentaremos a
seguir esquematizar o contexto em que, hoje, esta pergunta se coloca.
Para começar, é interessante assinalar que não há consenso entre os
pensadores atuais sobre a própria natureza do período em que nos
encontramos. Para alguns, encontramo-nos em plena pós-modernidade,
vivendo sob condições de permanente e incurável incerteza: uma vida na
presença de uma quantidade ilimitada de formas de vida, incapazes de provar
suas aspirações a se fundamentarem em qualquer coisa mais sólida e amarrada
do que suas próprias convenções históricamente moldadas.20 Para outros, nem
caberia falar em pós, se a modernidade ainda é um projeto incompleto.21
Se adotássemos esta última hipótese, como deseja Habermas,
teríamos as normas e princípios do Iluminismo para seguir. Em outras palavras,
o Século das Luzes seria a origem das instâncias legitimadoras de determinadas
formas discursivas, instâncias consubstanciadas em normas e princípios que
aspirariam à universalidade e que permitiriam cobrir a multiplicidade de
famílias textuais, classificá-las e criar matrizes para sua reiteração. Haveria um
corpus de saber, um cânon de autores e obras a serem lidos, e a leitura deste
corpus nos conduziria ao saber fazer.
A partir deste ponto de vista, que prega uma clareza racionalista dos
princípios e normas a serem seguidos, é possível imaginar um discurso
governado por regras estabelecidas. Ainda que seja como telos, pode-se pensar
em um consenso, fundamentando-se o juízo crítico num acervo de normas e

20BAUMAN, Zygmunt. The fall of the legislator. In: DOCHERTY,


Thomas, org. Postmodernism - a reader. New York: Columbia University
Press, 1993. p. 128-140. p. 135.
21HABERMAS, Jurgen. Modernity - An Incomplete Project. In:
DOCHERTY, op. cit., p. 98-110.
princípios existentes a priori, compartilhados por autores e público. Pode-se
também conceber a presença de arquitextos, fundadores e originários,
"clássicos", paradigmas, modelos legitimadores dos que os seguem, matrizes
da produção textual posterior. Retendo a experiência de leitura destes
arquitextos, o produtor textual poderia fundamentar a priori a sua aspiração a
compor um texto "satisfatório", pela aplicação de categorias conhecidas e
aprovadas. E o autor poderia também ter um fundamento mais sólido para a
expectativa da recepção positiva de seu texto, pois conheceria previamente a
perspectiva de seus leitores potenciais.
No entanto, também podemos considerar as normas e princípios da
modernidade como um modus hodiernus. Nesse caso, poderíamos perguntar:
"Como um modo de hoje (modus hodiernus) pode pretender ser uma instância
reguladora universal, se é temporalmente limitado e singular?"
Jean-François Lyotard usa o termo moderno associando-o a certas
"metanarrativas"22, que têm como finalidade legitimar instituições, práticas
sociais e políticas, legislações, éticas, maneiras de pensar. Só que, para ele, o
projeto moderno, baseado nas normas e princípios do Iluminismo como padrão
universalmente válido, não se sustenta mais: "Meu argumento é que o
projeto moderno (de realização da universalidade) não foi abandonado,
esquecido, mas destruído, 'liquidado'."23 Contudo, também poderíamos
perguntar: - Será que o argumento de Lyotard não esconde uma certa pretensão
à universalidade, que ele alega estar "liquidada"?
Se podemos aceitar que nossa sociedade não é baseada na crença
compartilhada universalmente em um elenco exclusivo de normas e princípios,
isto não significa aceitarmos uma versão de que estamos sob o domínio do caos
ou da anomia. Cremos que não se trata da ausência de normas e princípios, mas
de sua proliferação ilimitada, de tal maneira que a coexistência até de normas
e princípios mutuamente exclusivos torna débil ou insustentável a proposta de
um fundamento absoluto.
Estamos já longe da Inglaterra do século XVI, quando a Bíblia não
era apenas um livro que todos liam, mas, para a maioria dos alfabetizados, o

22 Cf. The Postmodern Condition: A Report on Knowledge. Trans. Geoff


Benington & Brian Massumi. Minneapolis: University of Minnesota Press,
1984. p. XXIII.; Le Postmoderne expliqué aux enfants. Paris: Galilée, 1988.
p. 32.
23Le Postmoderne expliquée aux enfants, p.32.
único livro.24 No entanto, embora o cardápio de leitura tenha sido ampliado
em níveis inimagináveis para aquele século, é importante ressaltar que as
bibliografias dos vários campos institucionalizados de saber - inclusive a
Teologia - constituem um corpus limitado. E mais: dentro das várias
disciplinas através das quais se institucionaliza o saber, há um certo cânon de
obras que devem ser lidas - aquelas que os especialistas recomendam, por
considerarem básicas. O que significa este dever ser? Significa que há uma
hierarquia no acervo bibliográfico: determinadas obras e autores ocupam o
centro, enquanto o resto é relegado a uma posição secundária, periférica ou
marginal. Ou seja: há um certo cânon que constitui o fundamento de cada
disciplina; existem normas e princípios emanados deste cânon. Portanto, nada
de caos ou anomia. Mas também é preciso ressaltar que este cânon disciplinar,
embora às vezes pareça ser permanente, é sempre fruto de uma relação de
forças históricas e, por isso mesmo, mudáveis.
Em nossa sociedade, é possível verificar a existência de normas e
princípios que aspiram a regular universalmente a produção textual e a leitura,
pois se recorre a eles, quando se invocam regras de competência ou critérios
de julgamento. A pluralidade de nossa cultura permite que não haja apenas um
modelo de produção textual possível, cobrado e legitimado universalmente: há
vários, inclusive alguns que se pretendem excludentes em relação a outros.
Temos autores que colocam sob suspeita determinados pressupostos de seus
contemporâneos e são rejeitados pelo segmento de público que adota a
perspectiva questionada; mas também temos os que atendem a certos
pressupostos, buscando garantir a satisfação dos leitores que desejam o
atendimento de um gosto estabelecido.
Mas é bom lembrar que há hierarquias socialmente localizáveis no
acesso aos modelos: alguns estão disponíveis apenas para um segmento
privilegiado da população, e o seu conhecimento pode acabar se transformando
em marca de classe, em sinal de afiliação a um certo grupo, em inscrição na
hierarquia social e também em segregação dos que a ela não pertencem,
diferenciando os que têm acesso àqueles modelos dos que não têm.
De qualquer modo, os padrões de produção e recepção textual são
sempre referências, que podemos reiterar, citar, negar ou rearranjar,
deslocando seus limites. A única coisa que, do ponto de vista histórico, não
devemos fazer é negar a sua existência...e a sua diferença. Essa diferença, que
a História nos mostra, permite-nos o acesso a visões de mundo que não são as

24GREENFIELD, Liah. Nationalism - Five Roads to Modernity.


Cambridge: Harvard University Press, 1992. p. 54.
nossas. Ao nos defrontarmos com pontos de vista de uma cultura a que não
pertencemos e que possui pressupostos com os quais podemos não concordar,
é mais fácil perceber as nossas idiossincrasias. Através da comparação de
nossos parâmetros com outros, externos à nossa mundivivência, podemos
iluminar por contraste aspectos importantes de nossa própria perspectiva
cultural, que sem a intervenção da consciência histórica talvez permanecessem
obscuros.

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