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COLONOS, COLÔNIAS

E COLONIZADORAS
aspectos da territorialização
agrária no sul do Brasil
João Carlos Tedesco
Rosane Marcia Neumann
(Org.)

2019
NEHI
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História da Imigração
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COLONOS, COLÔNIAS
João Carlos Tedesco | Rosane Marcia Neumann (Org.)

E COLONIZADORAS
aspectos da territorialização
agrária no sul do Brasil

João Carlos Tedesco


João Carlos
Rosane MarciaTedesco
Neumann
Rosane Marcia Neumann
(Org.)
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COLONOS, COLÔNIAS E COLONIZADORAS

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Sumário
Introdução.................................................................................................................. 7
Estudos comparados na imigração: Brasil e Chile como
possibilidade investigativa................................................................................ 11
Marcos Antônio Witt
Appunti sulla presenza degli italiani nel processo di colonizzazione
in Argentina e Brasile........................................................................................... 46
Federica Bertagna
Imigrantes e colônias: da Pampa bonaerense à Serra Gaúcha ............ 63
Alba Cristina Couto dos Santos Salatino
Chłopi, os camponeses e a imigração: as teorias do campesinato e
os colonos poloneses no Paraná e no Rio Grande do Sul ...................... 87
Rhuan Targino Zaleski Trindade
Detratores e marqueteiros da imigração italiana para o Brasil:
Borges de Medeiros e as exposições mundiais de 1904 e 1906......... 111
João Carlos Tedesco
Giovani Balbinot
Política imigrantista e identidade étnica: o elemento
teuto-brasileiro na visão de Karl von Koseritz.......................................... 142
Tiago Weizenmann
Colonização e capitalização: relações jurídicas e
político-econômicas no norte do Rio Grande do Sul............................. 171
Ironita A. Policarpo Machado
Desmatamento e migração no Alto Vale do Rio do Peixe.................... 201
Susana Cesco
“Atrair para povoar”: as propagandas do projeto de colonização
Porto Novo nas décadas de 1920 e 1930.................................................... 223
Leandro Mayer
Maikel Gustavo Schneider
Políticas indigenistas e colonização: fragmentos históricos para
compreensão dos atuais conflitos entre indígenas e agricultores
no Sul do Brasil..................................................................................................... 243
João Carlos Tedesco
Rosane Marcia Neumann
Apontamentos para uma história do Campo do Meio.......................... 262
Ney Eduardo Possapp d’Avila
Sobre os autores.................................................................................................. 290
João Carlos Tedesco | Rosane Marcia Neumann (Org.)

Introdução

A
coletânea Colonos, colônias e colonizadoras: aspectos da territo-
rialização agrária no sul do Brasil tem por propósito discutir o
processo de imigração e colonização no sul do Brasil, nos séculos
XIX e XX, reduzindo a escala de análise para os espaços – as colônias
– e seus sujeitos – os colonos e as colonizadoras –, no que diz respeito à
territorialização agrária, levando em consideração que esse intrincado
emaranhado de relações e interesses era atravessado pelas políticas pú-
blicas – ou por sua ausência –, planejadas e executadas pelo Estado, seja
em nível nacional, estadual ou local.
O crescimento dos programas de pós-graduação em História, soma-
do à retomada das discussões sobre os movimentos migratórios atuais
em escala global e seus desdobramentos, trouxe essa temática à pauta
de discussões acadêmicas em fóruns e congressos, projetos de pesquisa,
dissertações e teses. Além desse movimento, também se sobressai o diá-
logo com a historiografia clássica, bem como novas abordagens e temas,
ampliação das possibilidades de fontes de pesquisa, revisitação de temas
e fontes.
Todavia, essa mobilização no campo da pesquisa ainda carece de es-
tudos em escala reduzida, na busca pelas redes sociais, as trajetórias no-
minais de imigrantes, os projetos de colonização particulares, o cotidiano
dos colonos e das colônias e, especialmente, os desdobramentos dessas co-
lônias – ou seja, qual o seu perfil hoje? Avançando um pouco mais, temos
as novas ondas e/imigratórias do século XXI, bem mais difusas quanto à
sua origem, ao seu destino e ao perfil do e/imigrante, mas que carregam
consigo demandas e expectativas semelhantes às anteriores, impactando
de imediato no mercado de trabalho e nas políticas sociais, retomando a

7
Colonos, colônias e colonizadoras

questão da recepção ao “outro” pelos estabelecidos – incluindo as medi-


das oficiais do Estado – e reacendendo os casos de xenofobia.
Contudo, ao reduzir o foco de análise ao particular, corremos o ris-
co de produzir pesquisas fragmentadas, ao individualizar processos que
ocorreram em uma conjuntura mais ampla e interconectada. Logo, esse
jogo de escalas é fundamental para avançar nos estudos e propor novas
ou outras perguntas. Partindo desses pressupostos, a presente coletâ-
nea, em seu volume V, busca ampliar as discussões dos volumes anterio-
res e reúne onze trabalhos inéditos, baseados em fontes empíricas. Sem
perder de vista o específico e monográfico, foram contemplados estudos
que analisam o seu objeto na perspectiva da história comparada e extra-
polam o contexto do sul do Brasil.
Os três primeiros estudos têm como ponto de convergência a com-
paração da política de imigração do Brasil com a da América Latina.
Marcos A. Witt situa historicamente a história comparada como método
de análise e os seus teóricos, apontando possibilidades e problemas do
uso desse método nos estudos de imigração. Como possibilidade investi-
gativa, compara os projetos de imigração alemã do século XIX propostos
e executados no Brasil e no Chile. Na mesma linha, Federica Bertagna
compara as políticas de imigração para italianos adotadas no Brasil e
na Argentina, no período de 1820 a 1960, buscando pontos de contato e
afastamento. Já Alba C. C. S. Salatino reduz a escala de análise e com-
para a criação e a função de duas colônias no século XIX: a Colônia de
Pigüé, situada ao sudoeste de Buenos Aires, na Argentina, destinada a
um grupo de imigrantes franceses; e a colônia Nova Petrópolis, na serra
gaúcha, que recebeu imigrantes alemães.
A imigração polonesa e seus núcleos coloniais no sul do Brasil ainda
é um campo de pesquisa pouco explorado. Com uma trajetória acadêmi-
ca no tema, Rhuan T. Z. Trindade discute as teorias do campesinato e,
a partir destas, a complexidade da inserção do camponês polonês no Pa-
raná e no Rio Grande do Sul, numa perspectiva de história comparada.
Os fluxos migratórios para o sul do Brasil oscilaram conforme as
políticas governamentais, mas também em decorrência da atuação de
detratores e defensores dessa região como propícia para a recepção e a
alocação de imigrantes. Nessa perspectiva, João Carlos Tedesco e Gio-

8
João Carlos Tedesco | Rosane Marcia Neumann (Org.)

vani Balbinot analisam como o Rio Grande do Sul se fez presente e foi
representado nas exposições mundiais de Louisiana, em 1904, e Milão,
em 1906, com o intuito de atrair os imigrantes italianos ao estado.
A política imigratória no Brasil também contou com os próprios imi-
grantes entre seus defensores. Um dos expoentes mais atuantes na defe-
sa da imigração e dos imigrantes alemães, na segunda metade do século
XIX, foi Karl von Koseritz. Debruçado sobre uma vasta documentação,
Tiago Weizenmann traça o perfil desse intelectual e seu engajamento
público e político em defesa dos imigrantes alemães, a construção de uma
identidade étnica e sua inserção nos diferentes espaços da sociedade sul-
-rio-grandense, inclusive a política.
Já nas primeiras décadas do século XX, encontramos esses descen-
dentes de imigrantes inseridos na dinâmica local, envolvidos na disputa
pela posse de terras nas colônias novas. Ironita A. P. Machado, a par-
tir do estudo exaustivo de um processo judicial, demonstra a correlação
entre colonização e capitalização da propriedade da terra, bem como os
sujeitos envolvidos e seu capital social.
Um dos traços apontados pela historiografia no perfil dos imigran-
tes e seus descendentes é sua propensão para a mobilidade espacial, des-
locando-se toda vez que novas e melhores possibilidades de acesso à pos-
se da terra ou de melhores rendimentos se apresentavam. No início do
século XX, a nova fronteira de atração aos colonos sul-rio-grandenses era
o oeste de Santa Catarina. Susana Cesco estuda a imigração, colonização
e construção da ferrovia e os seus impactos ambientais no Alto Vale do
Rio do Peixe. Investiga esse processo na colônia Caçador sob a perspec-
tiva da história ambiental, afirmando que a floresta foi a razão para a
colonização, ocupação e transformação da região. Por sua vez, Leandro
Mayer e Maikel Gustavo Schneider tratam da propaganda divulgada na
imprensa sul-rio-grandense sobre a mesma região, visando à venda de
lotes coloniais aos colonos. Centram a análise na colônia étnica-confes-
sional de Porto Novo.
As tensões e os conflitos entre os diferentes grupos em disputa pela
posse da terra marcaram o processo histórico da colonização e permane-
cem latentes no norte do Rio Grande do Sul, como apontam João Carlos
Tedesco e Rosane M. Neumann. Em uma leitura panorâmica, mapeiam

9
Colonos, colônias e colonizadoras

o processo histórico, as políticas públicas, as estratégias e a importância


da terra para os grupos sociais em disputas – colonos e indígenas.
O estudo monográfico de espaços que ficaram à margem dos projetos
de colonização, mas, ao mesmo tempo, inseridos nesse contexto, como o
Campo do Meio, é o objeto de estudo de Ney E. P. d’Avila.
Portanto, colonos, colônias e colonizadoras são os fios condutores
para a tecitura desta coletânea, cujos trabalhos dão mostras da riqueza
da temática e apontam para inúmeras possibilidades para novos estu-
dos. Uma boa leitura.

João Carlos Tedesco


Rosane Marcia Neumann

10
Marcos Antônio Witt

Estudos comparados
na imigração: Brasil e
Chile como possibilidade
investigativa
Marcos Antônio Witt

O Chile não é país de imigração, a fomentada oficialmente, mais por es-


pírito de imitação que por necessidade, foi um fracasso completo. E era
lógico: o argentino e o brasileiro não trabalhavam no campo, deixam que
outros explorem o solo, são os patrões; o chileno ama mais o solo, cultiva-o
sozinho. Por outro lado, o Chile não tem a riqueza agrícola do Brasil e da
Argentina, nem reúne outros fatores importantes, que estimulam decisi-
vamente a emigração... A distância, a pouca facilidade de comunicações
comparadas com as oferecidas pelo Brasil e pela Argentina, e o escasso co-
nhecimento que se tem do Chile, contrastando com a propaganda incansá-
vel de outros países, não eram estímulos muito poderosos para criar uma
intensa corrente migratória. O Chile não é, pois, por enquanto, país de imi-
gração espanhola; demorará muito para sê-lo, ou talvez isso nunca acon-
teça. A única expectativa atual para o espanhol é o exercício do comércio,
porém sem a risonha e fascinante ilusão de juntar fortunas colossais, como
as que puderam ser economizadas em outros países hispano-americanos.1

1
Consejo Superior de Emigración de España (1916, p. 168).

11
Estudos comparados na imigração: Brasil e Chile como possibilidade investigativa

Estudos comparados na imigração2

T
alvez, a maior dificuldade em se realizar estudos comparados no
âmbito da imigração esteja relacionada ao forte embate entre a
produção acadêmica e a não acadêmica – esta última também in-
titulada de memorialista ou municipalista.3 Produzidos, normalmente,
no seio da comunidade de descendentes de imigrantes, os textos não aca-
dêmicos chegam com maior facilidade ao seu destino, isto é, ao público
da própria coletividade na qual foram escritos e publicados. Obras de
cunho laudatório reforçam a ideia de que os estudos sobre os imigrantes
estão mais para o folclore do que para a análise científica. Mesmo com a
produção acadêmica em crescimento, os livros mais requisitados e lidos
ainda trazem uma história que tem como pauta principal a travessia do
Atlântico, as promessas não cumpridas, o trabalho árduo dos primeiros
anos e a vitória sobre todos os obstáculos. Narrativas com esse perfil fa-
zem do imigrante e de seus descendentes algo semelhante a heróis que,
apesar de todas as dificuldades, contribuíram de forma relevante para o
desenvolvimento das Colônias4 onde foram instalados, da futura cidade
que daí surgiu e do próprio sul da América. Oswaldo Truzzi (2005, p. 140)

2
O projeto de pesquisa “Imigrantes em ação: organização social e participação política. Estudo
comparado sobre a imigração no Brasil, Argentina e Chile – séculos XIX e XX”, foi desenvolvido
no período de 2015 a 2017, junto ao Núcleo de Estudos Teuto-Brasileiros (NETB), vinculado ao
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos),
conta com o apoio do Edital Universal do CNPq e tem em sua equipe três bolsistas de iniciação
científica: Luís Henrique Malaquias Lemos, Samanta Ritter e Welington Augusto Blume. Para o
presente texto, a comparação compreende somente a imigração no Brasil e no Chile. Analisar,
ainda, a imigração na Argentina significaria um aporte de fontes e de referencial teórico que ex-
trapolaria os limites deste trabalho.
3
A divisão entre produção acadêmica e não acadêmica é complexa, uma vez que autores e obras
se enquadram em múltiplas interpretações. Observa-se que um livro elaborado na academia, em
determinado tempo e lugar, traz conteúdo e análise que o aproximam mais à produção memo-
rialista que à acadêmica. Já uma obra de cunho memorialista pode alçar à categoria de clássico
dependendo do seu alcance enquanto referência para os estudos migratórios. O primeiro caso
é representado por Aurélio Porto, autor de O trabalho alemão no Rio Grande do Sul (1934); o
segundo, por Germano Oscar Moehlecke, autor de O Vale dos Sinos era assim (1978). Outra
referência singular é a produção de Telmo Lauro Müller, fundador do Museu Histórico Visconde
de São Leopoldo, em 1959, e diretor da instituição por 48 anos. Não obstante sua formação em
História, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, seus livros abordam a história da imi-
gração de tal forma que integram o rol de obras memorialistas sobre o tema.
4
Quando escrito com a inicial em maiúscula, Colônia(s) significa o núcleo onde foram assentadas
inúmeras famílias, como a Colônia de São Leopoldo; com a inicial em minúscula, colônia(s)
representa a pequena propriedade agrícola recebida por uma família, também chamada de mini-
fúndio. Assim, uma Colônia era formada por muitas colônias, ou seja, por centenas de pequenas
propriedades rurais onde famílias de colonos plantavam e criavam pouca quantidade de animais.

12
Marcos Antônio Witt

discorre sobre essa questão, explicando o impacto das monografias na


vida profissional dos historiadores da imigração:
De fato, é muito comum – a prova é que vários de nós fazemos isso – a entrada
no campo estudando um grupo, buscando o resgate de uma história contada a
partir do foco de uma determinada comunidade. Debruçar-se sobre um grupo,
em um local e períodos determinados, acaba por enfatizar o que é específico
em detrimento do geral, tanto porque se focaliza um grupo ou uma comuni-
dade quanto pela forma, pelo nível de análise, porque, em geral, isso é feito
como uma monografia. E, para um estudo monográfico se tornar interessante,
é preciso que ele aponte o específico, o singular, o pouco habitual. Então, há
uma certa perseguição, uma certa busca não ao similar, mas ao diferente; não
ao comum, mas ao fora do padrão; não ao usual, mas ao inabitual.

A narrativa romântica sobre imigração traduz um mundo fechado,


no qual praticamente não há diálogo com outras experiências. Via de re-
gra, as obras originadas de pesquisas locais abordam a história de uma
Colônia descrevendo a chegada dos pioneiros e o seu desenvolvimento.
A opção metodológica de se pesquisar e abordar somente a história de
uma localidade é um entrave para os estudos comparados no âmbito da
imigração, pois inibem um olhar mais abrangente para o fenômeno mi-
gratório. A partir desta abordagem, o leitor poderá conhecer a história
de sua Colônia, talvez hoje uma cidade, mas desconhecerá a relação que
esta comunidade estabeleceu com outros espaços. Ao valorizarem o po-
tencial da comparação, Jürgen Kocka e Reinhard Bendix batem de frente
com os resultados dos estudos pontuais: “[...] as comparações ajudam a
criar um clima de história investigativa menos provinciana” (KOCKA,
2014, p. 279); e “[...] os estudos comparativos aumentam a visibilidade de
uma estrutura em contraste com outra” (BENDIX, 1977 apud TRUZZI,
2005, p. 136). Apesar de tais esforços, como o de Kocka e o de Bendix, as
bibliotecas municipais, de museus, de escolas, e mesmo as bibliotecas de
universidades, estão repletas de livros que narram a criação da Colônia
e o desenvolvimento proporcionado pelas famílias que ali se estabelece-
ram. São narrativas que pouco conversam entre si; metaforicamente, são
como ilhas isoladas que desconhecem as águas que as conectam.
Não obstante a defesa realizada por Kocka e Bendix, os acadêmi-
cos das Ciências Humanas têm se aproximado muito timidamente da
proposta metodológica da comparação. Sua produção se difere das obras
memorialistas ou municipalistas no que se refere, especialmente, às
questões teórico-metodológicas. Ainda assim, os estudos acadêmicos têm

13
Estudos comparados na imigração: Brasil e Chile como possibilidade investigativa

uma carga de pontualidade que pouco colabora para o exercício da com-


paração. Se os temas pesquisados e publicados ganharam nova dimen-
são, como o estudo de redes junto aos imigrantes e seus descendentes, os
trabalhos, via de regra, apontam para uma família, ou mesmo para uma
pequena coletividade, que está circunscrita a uma região e/ou vinculada
a um recorte cronológico bastante preciso. Desse modo, percebe-se que a
renovação historiográfica avançou em determinadas áreas, como a origi-
nalidade de temas e o aprofundamento das discussões teórico-metodoló-
gicas, mas se mantém distante da proposta comparativa. A fim de proble-
matizar essa discussão, Kocka (2014, p. 281) apresenta “[...] três sérias
razões metodológicas que fazem a comparação difícil, três características
que constituem uma certa tensão entre a abordagem comparativa e a
tradição clássica da história como disciplina”.
A primeira questão, para Kocka, vincula-se ao domínio de uma ex-
tensa literatura e do acesso a fontes em língua estrangeira. Quanto mais
se expande o domínio dos estudos comparados, maior é a quantidade de
obras e fontes que o pesquisador precisa dominar. O segundo aspecto
diz respeito ao fato de que a abordagem comparativa pressupõe que as
unidades de comparação podem ser separadas umas das outras. A ênfase
não está nas continuidades ou nas influências mútuas dos eventos, mas
na artificialidade de considerá-los independentes e analisá-los a partir
das similaridades e diferenças. A terceira razão metodológica que faz a
comparação difícil, de acordo com as reflexões de Kocka, concentra-se na
impossibilidade de comparar a totalidade. Enveredar por esse caminho
significa selecionar determinados aspectos que possam ser comparados.
Assim, selecionar, abstrair e descontextualizar se impõem como impe-
rativos para o pesquisador que reúne dois ou mais objetos e os coloca
no campo de batalha da comparação. Para Truzzi (2005, p. 141), em sua
análise sobre o tema, as dificuldades seriam:
Trabalhos que adotem uma perspectiva comparada no terreno da historio-
grafia da imigração para o Brasil têm sido relativamente raros. Em parte
porque são trabalhosos ao requererem, na maior parte dos casos (ao menos
idealmente), disponibilidade e estruturação de dados dificilmente similares
e compatíveis entre os dois países analisados; em parte porque exigem do
pesquisador conhecimentos equilibrados acerca de dois objetos ou realidades
distintas; também pelo motivo, talvez menos científico, embora não menos
decisivo, de tais estudos envolverem frequentemente deslocamentos interna-
cionais de pesquisadores.

14
Marcos Antônio Witt

Theda Skocpol (1985, p. 11-12), por sua vez, ao colocar lado a lado
países como China, França e Rússia, explica da seguinte forma como
pode se dar o trabalho de um sociólogo comparativo:
O comparativista não dispõe nem do tempo nem de todas as capacidades apro-
priadas para realizar a investigação primordial que necessariamente consti-
tui, em grande medida, a base na qual se assentam os estudos comparativos.
Em vez disso, o comparativista vê-se obrigado a concentrar-se na busca e no
exame sistemático das publicações dos especialistas que se relacionem com as
questões consideradas importantes, quer pelas considerações teóricas, quer
pela lógica da análise comparativa. Na realidade, o trabalho do comparativis-
ta só se torna viável depois de ser elaborada pelos especialistas uma extensa
literatura básica.

Há consenso de que os estudos voltados à história da imigração so-


freram, até a década de 1990, forte crítica por valorizarem, em dema-
sia, o papel do imigrante e de seus descendentes no desenvolvimento da
América, sobretudo do Brasil e Chile. É possível, de acordo com Cláudio
Pereira Elmir e Marcos Antônio Witt (2014, p. 7), que esta crítica esteja
relacionada “[...] ao fato de que boa parte da produção sobre o campo dos
estudos de imigração é resultado de esforços acadêmicos e diletantes de
autores cujos vínculos étnicos pessoais com o objeto de suas investigações
constituem uma característica importante a ser considerada”. Segundo
os autores, a proximidade entre o sujeito e o objeto do conhecimento não
representa uma variável determinista, mas é capaz de produzir efeitos
na historiografia. Não obstante as observações de Elmir e Witt, com a
constituição de novos programas de pós-graduação, o acesso a fontes iné-
ditas e a revisitação a fontes consagradas, como escrituras de compra
e venda, inventários, processos-crime, registros eclesiásticos, registros
paroquiais da Lei de Terras, trouxeram novo ânimo para as pesquisas
vinculadas à história da imigração.
Com a consolidação de programas de pós-graduação em Antropo-
logia, Ciências Sociais, Demografia, História, Linguística, Literatura e
Teologia, intelectuais acadêmicos passaram a formular novas perguntas
acerca do universo imigrantista. O perfil de pesquisa e análise adotado
por não acadêmicos passou a ser contraposto, à medida que colóquios,
congressos, jornadas, seminários, simpósios e outros encontros passa-
ram a discutir novos problemas, os quais exigiram fontes diversificadas e

15
Estudos comparados na imigração: Brasil e Chile como possibilidade investigativa

posicionamentos distintos por parte dos historiadores profissionais.5 Nos


últimos anos, houve avanço na aproximação entre Demografia e Histó-
ria, as quais colocaram em pauta a possibilidade de analisar resultados
quantitativos e qualitativos no âmbito das migrações. Em se tratando de
números, os cálculos que permitem o mapeamento de quantos imigran-
tes entraram na América apresentam fragilidades, as quais podem ser
vistas não como entrave, mas como rico potencial de análise. Substan-
cialmente, os números permitem a comparação e, postos lado a lado, pre-
enchem gráficos, quadros e tabelas significativos para os estudos migra-
tórios. As informações apresentadas por Jean-Pierre Blancpain (1987,
p. 66) demonstram as potencialidades desses dados para a comparação:
Por lo menos diez millones de germano-hablantes pasaron del Viejo Mundo al
Nuevo, entre 1820 y 914; de ellos, tres eran originarios de países Habsburgo o
del Imperio ruso. El geógrafo Ratzel estima que los alemanes que se dirigieron
a Estados Unidos fueron 50.000, en 1848, tres veces más numerosos en 1850
y cinco veces más, en 1854, año de la mayor afluencia. Para Brasil, las entra-
das se estimam en 250.000, para todo el período, habiendo ya 20.000 antes de
1880. Argentina, por su parte, recibió a más de 100.000. Según el Handbuch
des Deutsch-tums im Ausland (“Manual sobre la germanidad en el extran-
jero”), en 1903 habría habido 11 millones de germano-americanos que aún
sabían el alemán; de ellos, 9 millones en Estados Unidos, 700.000 en Brasil,
200.000 en Canadá, 150.000 en Argentina y 30.000 en Chile.

Baldomero Estrada (1999, p. 475) complementa esses dados, infor-


mando que, “[...] no período 1887-1891, [...] ocorreu o maior ingresso de
imigrantes de toda a história do Chile. Isso evidencia que, durante o
mandato de Balmaceda, foi maior a preocupação e o interesse pela vinda
de estrangeiros”.
Contudo, mesmo com a qualificação das pesquisas via criação de
programas de pós-graduação, constata-se que há um forte apelo, ainda,
para que a produção sobre imigração privilegie o exótico, o folclórico, o
inabitual, o romântico, principalmente quando os escritos estão vincula-
dos à indústria do turismo. Neste sentido, a discussão apresentada neste
texto está em sintonia com a mais recente produção historiográfica sobre
os temas da imigração, uma vez que rompe com os estudos pontuais e se
vincula aos trabalhos de cunho mais crítico sobre e/i/migrações.

5
Além das obras referidas no presente estudo, apresentamos, ao final, as obras consultadas,
que não têm por objetivo esgotar o tema, mas fazer um breve inventário das publicações sobre
imigração na perspectiva da história comparada, contribuindo para fomentar novas pesquisas.

16
Marcos Antônio Witt

Estudos migratórios e comparação:


conceitos relevantes
No que tange à história da imigração, o estabelecimento de cone-
xões entre áreas coloniais é um ponto vulnerável tanto nas pesquisas
quanto nas publicações. Essas conexões podem ser apreendidas por meio
da circulação de determinados agentes históricos, o que colabora para o
recrudescimento da “tese do isolamento”. Esta tese constitui-se em uma
interpretação equivocada que deu margem a análises distorcidas sobre o
processo de elaboração e constituição de Colônias de imigrantes no Bra-
sil dos séculos XIX e XX (WITT, 2015). A difusão da “tese do isolamento”
reflete o quanto os estudos pontuais sobre determinados núcleos domina-
ram o cenário não acadêmico por certo período. A partir do “isolamento”,
cristalizou-se a ideia de que Colônias não se desenvolveram porque fica-
ram isoladas, sem contato significativo com outros núcleos ou com gran-
des centros consumidores. São Leopoldo, por exemplo, primeira Colônia
alemã6 do sul do Brasil, conectada a Porto Alegre, capital da província do
Rio Grande do Sul, via Rio dos Sinos, mereceu considerações detalhadas
por parte de acadêmicos, autoridades eclesiásticas e políticas, pesqui-
sadores municipalistas e viajantes, desde o século XIX, pois teve cres-
cimento demográfico e econômico relevante para o Rio Grande do Sul.
Esta análise quase maniqueísta, entre uma São Leopoldo que deu certo
e núcleos que ficaram “isolados”, não permitiu que as especificidades de
cada Colônia ou grupo fossem observadas e se chegasse ao entendimento
de que cada Colônia deu certo à sua maneira, dependendo dos contextos
espacial, temporal e social em que foi constituída. As ideias propostas
por Truzzi (2005, p. 143) ratificam a discussão sobre o isolamento:
Estudos comparativos no campo da história da imigração deveriam ser mais
estimulados porque nos resguardam dos perigos do provincialismo, ou pelo
menos os atenuam, forçando-nos a constantemente rever o conjunto de supo-
sições implícitas com as quais lidamos no dia a dia ao nos dedicarmos a uma
única sociedade ou cultura.

6
Os termos “alemã” e “alemão”, em suas variadas formas, referem-se aos indivíduos de línguas
germânicas que habitavam pequenas aldeias ou cidades que, em 1871, iriam compor o Estado
alemão. Além disso, populações de língua germânica que vieram à América habitavam outros
territórios que extrapolavam o limite das fronteiras que formariam a Alemanha.

17
Estudos comparados na imigração: Brasil e Chile como possibilidade investigativa

Ao praticamente encerrar o seu texto, Truzzi (2005, p. 154) explicita


que “[...] meu argumento é que devemos problematizar a natureza ‘iso-
lacionista’ de trabalhos acadêmicos no campo dos estudos migratórios”.
Sem problematização, a “tese do isolamento” colaborou para a difu-
são dos estudos pontuais sobre as Colônias, uma vez que valorizou inves-
tigações individuais e pouco críticas sobre o processo de desenvolvimento
de núcleos coloniais. Portanto, considera-se a “tese do isolamento” um dos
entraves para se estabelecer conexões entre os diversos núcleos coloniais
do Brasil e Chile. Se prevalecer a ideia de que agentes históricos dos sé-
culos XIX e XX deixaram de dialogar por estarem em regiões marginais,
fora do eixo das grandes cidades, então ficará difícil compreender como
famílias se uniram e transpuseram espaços quilometricamente distantes
com o objetivo de se transformar em parentelas “exponenciais”. O con-
ceito de “exponencial” (WITT, 2001) foi cunhado para designar os colonos
alemães que se destacaram no plano socio-econômico-político. Como não
faziam parte da elite que se originou da imigração e colonização açoriana
e portuguesa, no caso brasileiro, optou-se por conceituá-los dessa forma.
Os “exponenciais” identificados e analisados tampouco integravam a eli-
te alemã intelectual e/ou de grande destaque econômico, como o jorna-
lista e político alemão Karl von Koseritz, estabelecido em Porto Alegre,
Rio Grande do Sul (WEIZENMANN, 2015). Ao contrário, constituíam-se
como personagens de uma camada média que negociava interesses pró-
prios com a elite culta e rica, tanto nacional quanto alemã, entremeados
com as solicitações dos que estavam socialmente abaixo (WITT, 2001).
O estudo de Samuel Baily (1983) sobre italianos em Buenos Aires e
São Paulo complexifica a discussão sobre o possível isolamento dos imi-
grantes e de seus descendentes. As três categorias apresentadas pelo
autor, as quais explicam a experiência migratória, demonstram que o
processo é muito mais complexo e dinâmico do que memorialistas/mu-
nicipalistas objetivam comprovar. Segundo Baily (1983, p. 295), existem
as variáveis relacionadas às características dos grupos quando da emi-
gração, aquelas vinculadas à sociedade de acolhimento, e as mudanças
ocorridas ao longo do tempo, no seio das próprias comunidades imigran-
tes. Com seu estudo, a ideia de que existiram comunidades imigrantes
isoladas perde força, pois o entrelaçamento das categorias trabalhadas
pelo autor comprova que o mundo dos imigrantes estava conectado a ex-
periências anteriores, em território europeu, aos novos códigos culturais

18
Marcos Antônio Witt

presentes na sociedade em que se inseriram e na própria dinâmica de


suas vidas, quando passaram a exercer suas profissões nas áreas rurais
e urbanas dos países americanos. Esta complexidade de fatores colabo-
rou para que os “exponenciais” lançassem mão de seu capital social e
ocupassem lugar de destaque em seus grupos de atuação.
Os estudos desenvolvidos pelo autor do presente texto têm prioriza-
do determinados temas, como organização social e participação política
dos imigrantes e de seus descendentes. Para aprofundar a pesquisa, con-
ceitos como rede e estratégia foram incorporados à análise de universos
mais amplos no campo da imigração. Esta abertura se deu pelo exercício
comparativo, o qual envolveu Colônias de imigrantes fixadas no Brasil
e Chile, nos séculos XIX e XX. De acordo com Cristina Mazzeo de Vivó
(2009, p. 276),
[...] os comerciantes [de Lima] exerciam também funções políticas, já que eram
integrantes do Cabildo e também da Audiência, o que significava ter um nível
maior de poder e decisão, e não apenas prestígio social, o que gerava maior
confiança nas negociações.

Neste caso, o exercício da comparação permite o levantamento de


pontos em comum e de diferenças entre espaços coloniais distintos e en-
tre estratégias usadas por imigrantes e descendentes para conquistar
lugar ao sol no Novo Mundo. O conceito de estratégia tem como parâme-
tro a proposta de Jean Paul Zuñiga (2003 apud VIVÓ, 2009, p. 265-266),
que define o termo como:
[...] um conjunto de práticas e comportamentos que permitem alcançar ou che-
gar a uma posição de privilégio como resultado de um esforço realizado. São
habilidades postas em prática seja de forma individual, seja através de um
grupo familiar para alcançar ou manter um status social, político e também
econômico.

Por sua vez, o conceito de rede, fundamental para a análise política


e econômica dos imigrantes e seus descendentes, tem como referência a
discussão proposta por Renato Venâncio (2009, p. 239-240), o qual defen-
de que “rede social” é:
[...] uma noção que se contrapõe à de grupo social... na formação da rede...
somente alguns, e não todos os indivíduos componentes, têm relações uns com
os outros. Nesse sentido, o conjunto de afilhados e compadres de um indiví-
duo não forma um grupo social... e, sim, uma rede social com conectividades
mais ou menos intensas e que podem ser acionadas em momentos e situações
diversas.

19
Estudos comparados na imigração: Brasil e Chile como possibilidade investigativa

Também para Vivó (2009, p. 268), “[...] trabalhar uma rede é muito
mais complexo do que fazê-lo com um grupo de família de elite”.
Ao se propor a análise comparativa nos estudos migratórios, os mo-
delos apresentados por Nancy Green podem se constituir em ferramen-
tas relevantes para a concretização de tal exercício. De acordo com Green
(1990, p. 1335), o modelo “divergente” seria aquele em que se procura
avaliar as diferentes trajetórias seguidas por um mesmo grupo étnico em
países distintos. No que toca ao projeto de pesquisa desenvolvido pelo au-
tor, “Imigrantes em ação: organização social e participação política. Es-
tudo comparado sobre a imigração no Brasil, Argentina e Chile – séculos
XIX e XX”, o modelo “divergente” permite que se compare a trajetória de
imigrantes alemães no Brasil e no Chile, desde o século XIX. A indagação
formulada por Frederik Luebke (1987 apud TRUZZI, 2005, p. 147-148)
tem servido de inspiração para o estudo em andamento: “[...] por que
alemães saídos de uma mesma região tornaram-se tão diferentes nos
Estados Unidos e no Brasil?”. O subcapítulo a seguir busca responder a
esta questão, colocando Brasil e Chile em ambiente comparativo.

Brasil e Chile como possibilidade investigativa


Quanto à imigração no Brasil e no Chile, os alemães constituem-se
um dos primeiros grupos chegados a esses países. A segunda década do
Oitocentos marcou a entrada desses imigrantes, sendo que, no Brasil,
o ingresso se deu por projeto individual mediado pelo governo, a partir
de 1817, e, no Chile, ocorreu de forma mais espontânea, entre os anos
de 1810 a 1848. Ambos os governos se preocuparam com a imigração e
passaram a redigir documentos que detalhavam os meios pelos quais
europeus ingressariam em seus países. A Independência do Brasil, em 7
de setembro de 1822, permitiu a escrita e promulgação de sua primeira
Constituição, em 1824, na qual ficou registrada a possibilidade de entra-
da de imigrantes no país. Os projetos governamentais chilenos voltados à
colonização, em 1811, 1824, 1825, 1838 e 1842, atestavam a preocupação
do governo em atrair trabalhadores europeus para colonizar o território.
Em se tratando de projeto de colonização, os irlandeses foram os
primeiros imigrantes a chegar ao Chile; desde 1825, as autoridades pre-
tendiam instalar 500 famílias de irlandeses; até 1848, 10 mil famílias

20
Marcos Antônio Witt

(BLANCPAIN, 1987, p. 31). Segundo Baldonero Estrada (1999, p. 463),


“José Miguel Carrera propunha, em 1811, a atração de imigrantes irlan-
deses para que ‘colaborassem na defesa do território’”. Ainda, conforme
Estrada (1999, p. 463),
[...] desde o próprio instante da independência houve um manifesto desejo, da
parte dos governantes – um interesse declarado – de atrair migrantes euro-
peus para o território. Em função da luta com a Espanha e da crítica e rejeição
generalizadas a tudo o que significasse hispanidade, pensou-se na vinda de
escoceses, suíços, irlandeses ou alemães.

Sobre os irlandeses no Brasil, sua presença pode ser percebida no


Rio de Janeiro, onde atuaram como soldados. Bösche (1836 apud MAR-
TINS; WITT; MOREIRA, 2014, p. 147) deixou registrado em suas memó-
rias que “[...] em fins de 1827 chegaram ao Rio, procedentes de Cowes, os
Irlandezes que o coronel Cotter fôra aliciar”. Contudo, em terras brasilei-
ras, não houve uma imigração sistemática originária da Irlanda.
A fim de agilizar o processo de imigração e colonização, os governos
brasileiro e chileno criaram sociedades de imigração, as quais visavam
organizar todas as etapas relacionadas à e/i/migração. No Chile, a Socie-
dade Nacional de Agricultura se ocupava dos locais onde os colonos se-
riam assentados. Apesar de todos os seus esforços em captar mão de obra
europeia para a colonização, até 1850, a imagem do Chile como espaço
receptor de imigrantes gozava de reputação questionável na Europa. De
acordo com Estrada (1999, p. 462), representantes chilenos na Europa
enfrentavam dificuldades com diferentes governos, “[...] que se mostra-
vam renitentes em permitir a emigração dos seus respectivos países
para as costas chilenas”. Um dos aspectos que gerava dúvidas nas auto-
ridades europeias estava relacionado à sobrevivência das Colônias e ao
grau de conflitos estabelecidos com os índios Mapuche. Com a missão de
alavancar e dinamizar os processos migratórios, esta sociedade recebeu,
em 1872, o caráter de Oficina General para la Inmigración (ESTRADA,
1999, p. 465). No Brasil, o governo imperial criou a Sociedade Central de
Imigração, provavelmente em 1883, a qual tinha posições muito claras
quanto ao imigrante ideal: buscava-se o agricultor europeu, branco e, de
preferência, que possuísse alguns bens para investir. Tais ideias eram
defendidas por expressivos agenciadores e colonizadores, como Hermann
Blumenau, empreendedor responsável pela instalação da Colônia Blu-
menau, no sul do país, na província de Santa Catarina, em 1850.

21
Estudos comparados na imigração: Brasil e Chile como possibilidade investigativa

Em ambos os países, parecia haver a intenção de disseminar os ge-


nes das famílias brancas europeias entre a população da sociedade re-
ceptora. No Brasil, esta ideia cristalizou-se sob a forma de uma política
de branqueamento. Em termos de organização, os responsáveis pela imi-
gração e colonização no Chile selecionavam os locais de assentamento de
tal modo que os chilenos pudessem ser mesclados com os estrangeiros.
Wilhelm Frick, imigrante chegado ao Chile em 1840, defendia que “la
asimilación es un imperativo. El colono debe llegar a ser sangre, carne
y hueso de la nación chilena” (BLANCPAIN, 1987, p. 48). A partir de
1850, colonos alemães foram instalados em Valdivia, ao sul, via projeto
de colonização. Depois dessa data, muitos chilenos preocuparam-se em
elaborar um projeto de colonização pensando, inclusive, em atrair imi-
grantes de outros países, como a China. No Brasil, a criação das Colônias
de Nova Friburgo e Petrópolis, em 1818 e 1819, com suíços e alemães,
tinha como objetivo implantar núcleos agrícolas próximos à capital, Rio
de Janeiro, os quais foram parcialmente responsáveis pelo fornecimento
de alimentos àquela população. No que tange a Valdivia, sua localização
era estratégica em função do projeto governamental que objetivava a
efetiva consolidação da conquista do sul chileno; já Nova Friburgo e Pe-
trópolis estavam posicionadas de tal forma que seus recursos materiais
e humanos – alimentos e homens – seriam canalizados para a capital, a
fim de manter estável a vida da corte e da população em geral.
A fundação de Colônias com estrangeiros, em toda a América, deu-se
por motivos estratégicos, os quais estavam vinculados ao setor político e
à iniciativa privada. Muitas vezes, somavam-se esforços – públicos e pri-
vados – para que médios e grandes projetos fossem executados. No caso
do Brasil, os motivos gerais da imigração traduziam esforços de indiví-
duos, empresas e governos imperial e provincial, os quais depositavam
suas esperanças no ingresso de mão de obra livre em um país ainda sus-
tentado pelo trabalho escravo. A literatura que apresenta esses motivos
é vasta e enfatiza quase sempre algumas das razões que levaram à união
de esforços no sentido de captar trabalhadores e soldados europeus e en-
viá-los ao Brasil. De um modo geral, podem ser resumidos em: agencia-
mento de imigrantes para o serviço militar (o Contrato de Colonização,
no seu artigo XVIII, previa que os homens capazes, entre 18 e 40 anos,
deveriam se alistar); branqueamento da população; diminuição do poder

22
Marcos Antônio Witt

da elite estancieira (proprietários de grandes extensões de terra); dina-


mização do mercado interno; estabelecimento de minifúndios voltados a
agricultura e criação diversa de animais (vacum, suíno, aves); fabricação
de utensílios, ferramentas e máquinas via artesanato; ocupação do terri-
tório (ocupação de áreas estratégicas); produção de alimentos; substitui-
ção da mão de obra escrava.
Agrupando os motivos gerais da imigração para o Brasil, eles aten-
deram a quatro demandas importantes: ocupação do território, dina-
mização do mercado interno, cooptação e recrutamento de soldados e
branqueamento da população. Essas diretrizes variaram de acordo com
o período, o local e as características dos grupos étnicos assentados nas
respectivas áreas destinadas à colonização. No entanto, em sua totalida-
de, representam os anseios expressos em cada discurso e posicionamento
daqueles que defenderam os projetos de imigração. No que se refere à
ocupação do território brasileiro, as famílias imigrantes e seus descen-
dentes foram assentados em áreas estratégicas, seja pela necessidade de
delimitar uma fronteira mais estável, como no sul, seja pela urgência de
inserir trabalhadores nas fazendas de café, à medida que a mão de obra
cativa diminuía ou era redirecionada para outras regiões do país.
Sobre a dinamização do mercado interno, a condição de plantation
ainda marcava a identidade do jovem império independente. Desde o
açúcar, a economia girava em torno da exportação em detrimento do
mercado interno. Nesse sentido, a produção de alimentos e a confecção
de artefatos e utensílios via artesanato tinham como objetivo central in-
crementar o mercado das cidades e das áreas rurais, a partir do ingres-
so de alimentos e produtos artesanais fabricados no Brasil e destinados
ao consumo de seus residentes. Quanto à cooptação e ao recrutamento
de soldados, o século XIX foi marcado pela explosão de conflitos bélicos,
envolvendo o Brasil e os países que estavam muito próximos de suas
fronteiras. Os processos de independência das ex-colônias espanholas e
a própria independência do Brasil deixaram como herança um século
de guerras entre os países do sul da América. As independências da Ar-
gentina (1810-1816), do Chile (1810-1818), do Paraguai (1810-1811) e
do Uruguai (Banda Oriental – Guerra da Cisplatina – década de 1820
– independência reconhecida pela Argentina e Brasil em 1828), assim
como as guerras dos Farrapos (Revolução Farroupilha – Brasil – 1835-

23
Estudos comparados na imigração: Brasil e Chile como possibilidade investigativa

1845), do Prata ou contra Oribe e Rosas (Argentina, Brasil e Uruguai


– 1851-1852) e do Paraguai (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai –
1864-1870), atestam a necessidade que esses países tinham em conse-
guir homens para compor os seus quadros militares. Miquéias Henrique
Mügge (2012), em seu livro sobre a Guarda Nacional, comprova que os
colonos alemães de São Leopoldo foram, muitas vezes, recrutados à força
e obrigados a marchar para a guerra.7
Ainda, no que se refere ao branqueamento da população, os cientis-
tas das teorias raciais do século XIX viam com descrédito o que se enten-
dia por miscigenação e classificavam os grupos por categoria de inteli-
gência. Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882), autor de “Ensaio sobre
a desigualdade das raças humanas” (1853), acreditava que a desigualda-
de das raças humanas estava ligada à miscigenação. Quanto à eugenia,
Francis Galton (1822-1911) (1869) formulou a tese de que os caracteres
mentais também eram hereditários, o que exigiria a realização da “hi-
giene racial”. Brancos europeus – os mais puros – ocupavam o primeiro
estrato dessa categorização e foram, por isso, desejados como imigrantes.
Em terras latinas, deveriam desenvolver as regiões nas quais passaram
a residir e trabalhar, e, do ponto visto social, seus genes qualificariam a
população nacional por intermédio de casamentos interétnicos. Em mui-
tas regiões do Brasil, autoridades se posicionaram contra a formação de
núcleos imigrantes homogêneos, uma vez que isso impediria ou dificulta-
ria o processo de branqueamento da população brasileira. O ideal seria a
formação de Colônias mistas, compostas por mais de um grupo imigran-
te, próximas de áreas em que houvesse a presença de famílias nacionais.
Refletindo tema semelhante, um ministro chileno afirmou, em sessão
extraordinária da Câmara dos Deputados, de 6 de janeiro de 1883, que a
colonização “[...] deve tender a refundir duas ou mais raças numa só, tor-
nando-as mais elevadas e vigorosas. Esse fato evidencia as vantagens da
homogeneidade de raças para a colonização” (ESTRADA, 1999, p. 466).
Quanto ao Chile, os motivos gerais para a imigração, segundo Lo-
reto Vanessa Hermosilla Jaramillo (2011), estão relacionados ao avanço
territorial em direção ao sul e ao incremento na área da educação, porém,

7
Quando não compunham os quadros do exército ou das milícias, os imigrantes e seus descen-
dentes integravam-se a outros esquadrões, como o de bombeiros, de Valdivia, Chile, no início do
século XX (BLANCPAIN, 1987, p. 123-125).

24
Marcos Antônio Witt

não apenas na educação formal, mas no enriquecimento cultural da po-


pulação que seria formada a partir do contato que nacionais e imigrantes
estabeleceriam. Em seu texto, Jaramillo (2011, p. 26) questiona:
Cuál fue el verdadero propósito del Estado para llevar a cabo este proceso: re-
poblar o educar? Si bien la carencia de población en la zona sur austral de Chi-
le fue un argumento indiscutible para llevar adelante la política inmigratoria,
existe un motivo que a juicio personal, ha sido subestimado por la historiogra-
fía especializada, que tiene relación con el valor cultural que se les atribuía a
los alemanes. El legado que ellos traerían al país era altamente apreciado, ya
que conllevaría progreso material, moral, científico e intelectual.

Jaramillo reforça sua tese mediante as considerações de um natura-


lista polaco, Ignacio Domeyko, o qual argumentou que a questão educa-
cional teria mais peso para o governo do que o povoamento da região sul
do Chile. De acordo com as palavras de Domeyko (1850, p. 5),
[...] el objeto, pues, principal de la colonización en Chile, mediante la inmi-
gración extranjera, no puede ser el aumento numérico de la población, sino la
educación práctica, la moralización del pueblo, la introducción entre la jente
trabajadora del orden doméstico, del espíritu de economía, del amor al traba-
jo, de los métodos prácticos en la agricultura, adecuados al temperamento i el
suelo de las provincias del sud.

Os argumentos de Domeyko encontram ressonância nas considera-


ções de María Loreto Egaña Baraona (2000, p. 12), a qual defende que
“[...] aumentar los niveles de instrucción se percibía como una condición
de la modernización y un requerimiento para ingresar a los circuitos co-
merciales internacionales”. Para Estrada (1999, p. 462), desejava-se “[...]
provocar mudanças culturais, tendo em vista o trabalho educacional e a
influência dos migrantes”. Assim sendo, para as autoridades chilenas,
mais importante do que povoar o sul do país era qualificar a população
por meio da educação formal e informal. Com a entrada de imigrantes
alemães, esperava-se elevar o nível educacional e cultural da nação, cuja
independência havia ocorrido em 1818. Portanto, as estratégias do go-
verno recém-independente giravam em torno de dois grandes investi-
mentos: alargar e garantir a fronteira em direção ao sul e incrementar o
desenvolvimento cultural da nação.
Esses objetivos seriam conquistados com a fixação de imigrantes
brancos europeus em terras chilenas, alemães em um primeiro momen-
to, responsáveis pelo crescimento econômico e cultural do país receptor.

25
Estudos comparados na imigração: Brasil e Chile como possibilidade investigativa

A preferência por trabalhadores de fala germânica encontra-se registra-


da nos documentos produzidos pelas autoridades chilenas, tanto as que
representaram o país na Europa, por intermédio dos escritórios de recru-
tamento de imigrantes, quanto as que permaneceram no país e organiza-
ram a chegada e fixação de indivíduos solteiros e famílias estrangeiras.
Em um desses documentos, ficou registrada a seleção criteriosa em-
preendida pelos encarregados em concretizar os projetos de imigração
para o Chile. Em um projeto redigido e proposto pela Sociedad Nacional
de Agricultura, de 15 de dezembro de 1871, na primeira cláusula, os
responsáveis pela sua elaboração classificaram os imigrantes a partir
de determinadas características, quase todas vinculadas à profissão e
ao universo do trabalho. Alemães, franceses, ingleses, irlandeses, suíços
e belgas – nessa ordem – foram identificados e definidos como melhores
imigrantes, considerando as experiências migratórias já vividas pelos
grupos e adjetivos embasados nas teorias sociais e raciais do século XIX.
Na análise dos proponentes, os alemães seriam os melhores, seguidos de
suíços e belgas. No caso destes últimos, afirmaram que “[...] si se le busca
donde vive mas en contacto con el aleman es parecido a este, pero nunca
preferible”.8
A garantia da manutenção do território e a consequente delimitação
das fronteiras encontravam-se no rol de preocupações dos governos bra-
sileiro e chileno. Não obstante todo o empenho dos chilenos, para Estra-
da (1999, p. 462),
[...] as economias de países como o Brasil e a Argentina requeriam grande
quantidade de mão de obra. Essa demanda tornava possível oferecer aos
europeus salários atraentes. O caso do Chile era diferente, um país geogra-
ficamente distante e com uma economia de mercado de trabalho limitada,
determinando a existência de salários pouco interessantes para os migrantes
europeus. No entanto, em todos os instantes a elite chilena considerou impor-
tante trazer imigrantes europeus para o país.

Com os movimentos de independência concluídos em 1818 e 1822, a


República chilena e o Império brasileiro precisaram urgentemente povo-
ar o sul do território e definir suas fronteiras. Apesar das diferenças de
governo – uma República e um Império –, ambos os países depositaram

8
Archivo Histórico de Chile, Catálogo del Fondo Ministerio de Relacionaes Exteriores, 1810-1900,
Volume 160, 1873-1875.

26
Marcos Antônio Witt

na imigração a conquista de determinados objetivos como a ocupação de


territórios considerados por eles demograficamente vazios – mesmo com
a presença indígena em seus limites. De igual modo, os letrados e/ou
intelectuais9 que pensaram os projetos de imigração convenceram-se de
que o homem branco europeu seria capaz de trazer progresso e moderni-
dade às nações em formação. Nos dois casos, houve posicionamento fa-
vorável à entrada de alemães, muito embora vozes discordantes tenham
questionado os gastos empreendidos com a imigração em detrimento do
elemento nacional e mesmo do sujeito escravizado (o Chile aboliu a escra-
vidão em 1823; o Brasil, em 1888). Imediatamente após a independência,
houve reação à política imigratória adotada pelo imperador D. Pedro I.
Suas determinações sobre o tema provocaram forte reação na classe lati-
fundiária, contrária ao financiamento da colonização. Em 1828, Nicolau
de Campos Vergueiro discordou da criação de um núcleo colonial em São
Paulo para recebimento de imigrantes alemães. Em seu parecer, o futuro
senador afirmou que:
[...] chamar os colonos para fazê-los proprietários à custa de grandes despesas
é uma prodigalidade ostentosa, que não se compadece com o apuro de nossas
finanças. O meu parecer, pois, é que se acabe o quanto antes com a enorme
despesa que se está fazendo com eles, continuando-se o que parecer necessário
para eles procurarem serviço (1828 apud PETRONE, 1982, p. 22).

Para o Chile, Jaramillo (2011) observa que houve oposição em re-


lação aos projetos de imigração. Sua implementação, portanto, foi vis-
ta com receio por parte da sociedade chilena. Aqueles que se opuseram
viam com desconfiança a chegada e instalação dos imigrantes europeus.
De acordo com a interpretação de Jaramillo (2011, p. 33),
9
“Os intelectuais, diz Coser, são os descendentes, ou os herdeiros, dos sacerdotes e dos profe-
tas, dos clérigos e dos letrados. Têm relação, em primeiro lugar, com a busca e a conservação
da verdade, dos valores coletivos e sagrados, aqueles que governam um grupo, uma sociedade,
uma civilização. Esses valores centrais formam um campo sensivelmente diferente daquele das
especialidades profissionais, fruto da divisão do trabalho intelectual e do que se pode chamar
de expertise, entendida como emprego pontual de saberes práticos e aplicados. O intelectual é
um ser híbrido que, profissionalmente, produz uma obra artística ou científica e que, enquanto
ator engajado nos assuntos da vida pública, é dotado, queira ou não, de uma visibilidade que os
aproxima dos stars, dos homens políticos, dos homens da mídia” (LECLERC, 2004, p. 16-17).
“Embora com nomes diversos, os intelectuais sempre existiram, pois sempre existiu em todas as
sociedades, ao lado do poder econômico e do poder político, o poder ideológico, que se exerce
não sobre os corpos como o poder político, jamais separado do poder militar, não sobre a posse
de bens materiais, dos quais se necessita para viver e sobreviver, como o poder econômico, mas
sobre as mentes pela produção e transmissão de ideias, de símbolos, de visões de mundo, de
ensinamentos práticos, mediante o uso da palavra” (BOBBIO, 1997, p. 11).

27
Estudos comparados na imigração: Brasil e Chile como possibilidade investigativa

[...] esta suspicacia radicaba en dos factores principales. La primera, en que


se criticaba la cantidad de recursos que el Estado estaba invirtiendo en llevar
adelante esta empresa de inmigración. Particularmente, el sector más conser-
vador de la sociedad chilena creía que los recursos que se estaban utilizando
para tal tarea podrían servir absolutamente para satisfacer otras necesidades
que poseía el país, las que eran „verdaderamente‟ importantes. Su principal
medio social para dar a conocer sus opiniones era el Diario El Mercurio. El
segundo factor en tanto, corresponde al luteranismo que profesaban los in-
migrantes, que „amenazaba‟ de alguna forma la religión católica, que era la
oficial en Chile de acuerdo a lo establecido en la Constitución de 1833 vigente
en la época.

Da mesma forma, Estrada aponta discordância entre políticos chile-


nos, que não se entendiam quando o assunto era a origem dos imigran-
tes. Na sessão extraordinária da Câmara dos Deputados, de 6 de janeiro
de 1883, houve manifestação pró e contra alemães e bascos:
Naquela sessão manifestaram-se opiniões dissidentes, que não compartilha-
vam da posição de Aldunate. Francisco Puelma Tupper qualificava os bascos
de fanáticos religiosos e pouco especializados profissionalmente, e se inclinava
em favor da vinda de alemães. Diante disto, Aldunate afirmava que não era
propósito do governo trazer migrantes de uma única nacionalidade, porém
não se mostrava partidário da vinda de alemães, porquanto acreditava que
estes não se integravam à sociedade nativa e se isolavam, como era a situação
no momento dos germânicos no Sul do país (ESTRADA, 1999, p. 467).

Desse modo, de acordo com as fontes, percebe-se que não havia con-
senso em relação à instalação de imigrantes europeus no Brasil e Chile.
Se havia vozes muito favoráveis à concretização dos projetos que visa-
vam ao crescimento via mão de obra branca, livre e europeia, de igual
modo surgiram facções que discordavam desses encaminhamentos.
Quanto ao aspecto religioso, imigrantes acatólicos se defrontaram com
situação marginal em ambos os países, que professavam, oficialmente,
a fé católica. Na redação dos artigos constitucionais, encontra-se a de-
claração explícita de vínculo com a Igreja Católica Apostólica Romana.
Todavia, há pequena diferença na parte final dos artigos, pois o governo
brasileiro registrou como os acatólicos poderiam praticar o seu culto, en-
quanto que o chileno posicionou-se de forma mais evasiva nesse quesito.
O texto da Constituição brasileira de 1824 (BRASIL, 1824) estabeleceu,
em seu Título I, artigo 5º, que “[...] a Religião Católica Apostólica Ro-
mana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras Religiões
serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para

28
Marcos Antônio Witt

isso destinadas, sem forma alguma exterior do Templo”. Por sua vez,
o texto da Constituição chilena de 1833 (CHILE, 1833) assinalava, em
seu Capítulo III, artigo 5º, que “[...] la religión de la República de Chile
es la Católica, Apostólica y Romana, con exclusión del ejercicio público
de cualquiera otra”. No mesmo projeto de colonização, com data de 15
de dezembro de 1871, redigido pela Sociedad Nacional de Agricultura,
na terceira cláusula, defensores do catolicismo no Chile propuseram que
“[...] en igualdade de circunstancias se preferira emigrantes catolicos”.10
Apesar de tais restrições, a América recebeu imigrantes alemães
católicos e protestantes (evangélico-luteranos).11 Colônias dos mais di-
versos tipos foram criadas, desde as que abrigaram somente um dos gru-
pos confessionais, até as mistas, que reuniram vários grupos étnicos e/
ou de religiões diferentes. Ao longo dos séculos XIX e XX, a fundação e o
desenvolvimento de núcleos coloniais estiveram sob a responsabilidade
de governos centrais, provinciais, estaduais e, também, de particulares
– indivíduos ou empresas. Isso ocorreu tanto no Brasil quanto no Chile.
Em se tratando da experiência brasileira, os projetos de imigração vi-
sando desenvolvimento territorial e social têm início, ainda, com o rei
português, D. João VI, quando de sua estada no país. De acordo com
Giralda Seyferth (2000), os primeiros imigrantes alemães chegaram ao
Brasil antes da independência. Alguns, com mão de obra especializada,
fixaram-se nas cidades a partir da abertura dos portos, em 1808; outros
foram encaminhados para as sesmarias de Jorge Guilherme Freyreiss,
na Bahia.
Em 1818, Freyreiss obteve a concessão de cinco sesmarias no sul da
Bahia, onde estabeleceu uma Colônia alemã denominada de Leopoldi-
na. Na mesma região, outras sesmarias foram concedidas com o objetivo
de criar novas Colônias alemãs, caso da Frankental, do recrutador Ma-
jor Georg Anton von Schäffer. Várias razões impediram o florescimento
desses empreendimentos coloniais. Em poucos anos, a Colônia Leopol-
dina foi transformada em uma plantation escravista. Segundo Seyfer-

10
Archivo Histórico de Chile, Catálogo del Fondo Ministerio de Relacionaes Exteriores, 1810-1900,
Volume 160, 1873-1875.
11
O termo protestante refere-se aos integrantes das igrejas luteranas alemãs que formariam, no
final do século XIX, a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). No Rio Grande
do Sul, o pastor Wilhelm Rotermund fundou o primeiro Sínodo em 1886. Para maiores detalhes,
ver Witt (2015).

29
Estudos comparados na imigração: Brasil e Chile como possibilidade investigativa

th (2000), dois motivos contribuíram para o não desenvolvimento dos


núcleos coloniais instalados na Bahia e no Rio de Janeiro: por um lado,
a colonização não interessava aos latifundiários; por outro, o governo
estava muito preocupado com as questões relativas à formatação e à ma-
nutenção da fronteira no sul do Brasil. Isso levou a um redirecionamento
do projeto de colonização, privilegiando a Região Sul.
No Chile, a busca por agricultores e artesãos (imigrantes com mão
de obra especializada) também esteve na pauta do governo e de parti-
culares. Em 1845, Bernhard Eunom Philippi solicitou apoio das casas
comerciais alemãs de Valparaíso, com a intenção de promover a coloniza-
ção privada. A primeira ação empreendida pelos agentes foi a aquisição
de um “[...] terreno de mil cuadras cuadradas en Santo Tomás, a lo largo
del río Bueno” (BLANCPAIN, 1987, p. 49). A fim de captar camponeses e
artesãos alemães, Philippi encarregou seu irmão, que residia na Europa,
de divulgar o empreendimento e recrutar imigrantes que se enquadras-
sem nessas duas categorias. A fim de obter sucesso, Philippi
[...] se vale de sus relaciones con los geógrafos alemanes. Wappäus difunde su
llamado en una serie de folletos, como “Deutsche Auswanderung und Coloni-
sation” (“Emigración y colonización alemanas”), llamando a la constitución de
“colonias libres” en Brasil y en Chile, embriones de una Australia alemana en
el nuevo mundo (BLANCPAIN, 1987, p. 49, grifos nossos).

Por intermédio das ações desses agentes de colonização, várias ci-


dades chilenas receberam trabalhadores que detinham conhecimentos
específicos. De acordo com Estrada (1999, p. 462), “[...] num primeiro
momento implementou-se um projeto de colonização estatal, para em se-
guida passar a um projeto de migração urbana, pelo qual se procurou
importar trabalhadores especializados”, após 1882.
Quanto ao Brasil, ainda antes da independência, houve uma segun-
da tentativa no que se refere à criação de Colônias na província do Rio de
Janeiro. Em 1819, imigrantes suíços católicos fundaram Nova Friburgo,
na região serrana. Afora o compromisso de produzir alimentos e objetos/
utensílios via artesanato para a sociedade da época, o Contrato de Colo-
nização que norteou o agenciamento desses imigrantes estipulou, no seu
artigo XVIII, o serviço militar para homens capazes com idades entre 18
e 40 anos. O soldado e escritor Carl Seidler foi extremamente crítico em
relação às atitudes do governo imperial para com os imigrantes suíços.

30
Marcos Antônio Witt

Segundo Seidler (1980), os colonos haviam sido instalados na localidade


de Cantagalo, em terras antes pertencentes ao “ministro da colonização,
o muito citado monsenhor Miranda”. A praticidade de se estabelecer uma
Colônia próxima à capital e a possibilidade de comprar as terras do mi-
nistro fizeram com que o governo optasse por criar Nova Friburgo. Em
seus relatos, Seidler informa que se tratavam de terras de péssima qua-
lidade para agricultura, o que acarretou a pouca prosperidade da nova
Colônia. De forma taxativa, sentenciou: “Destarte Nova Friburgo não
tem significação alguma e talvez ao cabo de vinte anos nem mais exista”
(SEIDLER, 1980, p. 124).
As considerações pessimistas de Seidler em relação a Nova Friburgo
devem ser relativizadas. De acordo com os estudos de Roland Spliesgart
(2006), houve certa prosperidade na Colônia. Isso pode ser demonstrado
no fato de o pastor Sauerbronn ter batizado escravos em sua comunida-
de. Apesar das constantes lamentações do pastor sobre o seu estado de
pobreza e o da maioria dos colonos de Nova Friburgo, segundo o autor,
15% das famílias daquela comunidade possuíam escravos em suas pro-
priedades. Contudo, nem todos os líderes religiosos aprovavam a escra-
vidão. De acordo com Spliesgart, o pastor Hollerbach, de Teófilo Otoni,
Minas Gerais, onde também havia a presença de alemães, posicionou-se
contra o uso de mão de obra cativa.
No Chile, diferente do Brasil, o contato interétnico entre escravos e
imigrantes foi praticamente inexistente, pois a abolição se deu em 1823.
Assim, o debate girou em torno da prosperidade das Colônias, o que de-
finiu o envio de maiores ou menores recursos aos projetos de imigração.
A maior preocupação dos colonizadores e das autoridades públicas e/ou
políticas vinculava-se às Colônias assentadas mais ao sul do território.
Esses cuidados estavam ancorados em alguns índices pouco animado-
res, veiculados a partir de relatórios oficiais. De acordo com o “intenden-
te” Astorga, a província de Valdivia, em 1854, representava apenas 2%
da população chilena. Conforme dados coletados por Blancpain (1987,
p. 80), “[...] según opinión de un funcionário, el departamento de Valdivia
es ‘el más miserable que se pueda imaginar”.
Em 1845, o governo imperial brasileiro decidiu instalar uma Colô-
nia na região serrana da província do Rio de Janeiro, que foi denominada
de Petrópolis. Esse núcleo colonial ocupou as terras da fazenda do Cór-

31
Estudos comparados na imigração: Brasil e Chile como possibilidade investigativa

rego Seco, em virtude de uma estrada que estava sendo construída em


direção à província de Minas Gerais. Como em outras Colônias, a mobi-
lidade social se fez presente em Petrópolis. Muitos imigrantes deixaram
a lavoura para trabalhar na cidade, principalmente no atendimento à
Corte, que fez da futura cidade um local de descanso e sociabilidade. Mas
a Colônia imperial também foi marcada pela mobilidade espacial, uma
vez que muitos homens e muitas famílias abandonaram seus lotes e, em
alguns casos, retornaram à Alemanha. Isso se deu, também, com os co-
lonos instalados em Nova Friburgo e com aqueles que permaneceram na
capital, Rio de Janeiro. Segundo Seyferth (2000, p. 26-27),
Nova Friburgo e Petrópolis são as principais experiências de colonização com
imigrantes no Estado do Rio de Janeiro. Outras localizações denominadas
“colônias”, incluindo alemães, mencionadas eventualmente por viajantes e
historiadores, na verdade foram estabelecidas na década de 1850 por gran-
des cafeicultores [...] no regime de parceria. [...]. Cinco colônias desse tipo,
[...] formadas com imigrantes agenciados nos estados alemães, tiveram curta
duração, porque os contratos de parceria eram desvantajosos para os colonos.
Juntas, possuíam, aproximadamente, 700 colonos.

Geograficamente posicionadas muito próximas da capital, ambas


as Colônias foram representadas por broker – mediadores (GRENDI,
2009), que, na maioria das vezes, ocupavam o cargo de líderes religiosos
ou professores. Em alguns outros casos, a mediação esteve sob a respon-
sabilidade de comerciantes, funcionários públicos ou políticos. No que se
refere a Nova Friburgo, o pastor Sauerbronn ocupou esse espaço e foi im-
portante para a administração da Colônia, uma vez que era o porta-voz
dos colonos e fazia traduções para o governo. Ao atender as duas partes,
tornou-se, informalmente, um tipo de funcionário administrativo do im-
pério, o qual ajudava o governo a controlar a Colônia, mas também era
controlado por ele. De acordo com Spliesgart (2006), Sauerbronn viveu
esse embate até o final de sua vida: por um lado, dispunha de capital
simbólico para negociar com o governo imperial; de outro, era tão mise-
rável quanto a maioria dos colonos.
No que tange à província do Rio Grande de São Pedro, os primei-
ros imigrantes chegaram às terras que formariam a Colônia alemã de
São Leopoldo em 25 de julho de 1824. A partir desse núcleo, novas Co-
lônias foram fundadas devido à explosão demográfica e à valorização do
mercado fundiário. Os principais objetivos que justificam sua instalação

32
Marcos Antônio Witt

vinculam-se à delimitação da fronteira, à ocupação do território por fa-


mílias imigrantes, à tentativa de se estremecer o poder dos grandes la-
tifundiários, à produção de alimentos e ao incremento do mercado inter-
no via artesanato. Reconhecida, hoje, equivocadamente, como “Berço da
Imigração Alemã no Brasil”, título decretado pelo Congresso Nacional,
mediante o Projeto de Lei nº 215, em 17 de outubro de 2009, a Colônia
de São Leopoldo foi alçada à categoria de vila em 1846 e à condição de
cidade em 1864.
Do mesmo modo que os demais conceitos das Ciências Humanas, o
sul, como categoria territorial, foi pensado e elaborado a partir de uma
necessidade concreta. Se o conceito é abstrato, os motivos que levaram à
sua formulação encontram-se no plano do palpável, do material. Em am-
bos os países analisados neste texto, os projetos de imigração obtiveram
maior alcance na região sul de cada um deles. Definição de fronteiras,
ocupação de território, produção artesanal e de alimentos e necessidade
de derrotar inimigos, que, mediante a sua existência ou as suas ações,
impediam o desenvolvimento daquela região, são motivos que levaram à
sua ocupação. No Brasil, o inimigo poderia ser as repúblicas vizinhas em
fase de emancipação ou recém-emancipadas e/ou os grandes estanciei-
ros estabelecidos há décadas ou mesmo séculos na fronteira com a atual
Argentina e o Uruguai; no Chile, os índios Mapuche constituíram-se, na
ótica do governo, o maior entrave para o desenvolvimento dos projetos de
imigração.
O sul, portanto, mereceu atenção especial por parte dos governos
brasileiro e chileno quando temas relevantes precisaram ser debatidos e
colocados em prática. As ideias de progresso e modernidade sustentaram
a ação de governantes e de particulares quando estes se convenceram
de que determinadas regiões ainda se encontravam em atraso. Todas as
etapas do processo e/i/migratório levaram em consideração a suposta ha-
bilidade do imigrante branco, europeu, agricultor, artesão ou soldado em
desenvolver o país receptor. Por esse motivo, ele sofreu a metamorfose
de emigrante para imigrante (SAYAD, 1998), tanto no Brasil quanto no
Chile.

33
Estudos comparados na imigração: Brasil e Chile como possibilidade investigativa

Palavras finais
Bem-vinda seja a imigração europeia, porque ela traz consigo o avanço mo-
ral para as nossas massas ignorantes; introduz entre nós práticas úteis e
contribui para cimentar a paz e a prosperidade, o progresso nas instituições
e a liberdade... Saúdo essa imigração que traz consigo o estandarte da igual-
dade, da fraternidade e do progresso universais (VILLARINO, 1867, p. 171).

Os agentes que pensaram e executaram os projetos de imigração


no Brasil e no Chile estavam convencidos, do mesmo modo que Joaquín
Villarino, de que a entrada e fixação de solteiros e casais brancos, eu-
ropeus, trariam o progresso para seus países. Mediante esta convicção,
saudaram a imigração, considerando-a o melhor caminho para se chegar
ao desenvolvimento econômico, cultural, humano e social de suas socie-
dades. Seus escritos, como os de Vicente Pérez Rosales (1983), dão as
boas-vindas à imigração europeia, e os motivos dessa simpatia e acolhi-
mento, traduzidos por Villarino, atestam que os letrados e/ou intelectu-
ais conheciam as teorias raciais do século XIX e discutiam as implicações
de sua implantação. Ao fazer uso de palavras que representavam gran-
des ideais – “da igualdade, da fraternidade e do progresso universais”
–, Villarino também demonstrou que as ideias circulavam e tocavam os
homens de outros continentes.
Ao aproximar continentes, países e regiões, objetivou-se demons-
trar, por meio do conteúdo destas muitas linhas, de um lado, que é pos-
sível fazer uso da proposta metodológica da comparação no âmbito dos
estudos migratórios; de outro, que este exercício requer e exige que se
recortem e selecionem temas, que se delimitem tempo e espaço, para que
os resultados da comparação possam redimensionar as análises e os re-
sultados das pesquisas e dos escritos da história da imigração. Segundo
Truzzi (2005, p. 140),
[...] assim como nas ciências sociais de modo geral, no campo específico dos
estudos migratórios, os historiadores são mais resistentes a armar um dese-
nho de pesquisa comparativo, provavelmente porque são mais reticentes em
se mover do particular ao geral. A valorização das especificidades históricas,
cultivada pela experiência particular e minuciosa de imersão nos arquivos,
colabora para tal. É necessário mencionar também as barreiras impostas por
fontes produzidas sobre uma base geográfica, normalmente nacional, dificil-
mente homogêneas, a ponto de poderem ser comparadas entre si sem adap-
tações, bem como a exigência equilibrada de domínio de bibliografia e mesmo
de distintos idiomas, ao se estudar, por exemplo, casos em países diferentes.
Tudo isso reforça o primado da monografia no campo dos estudos migratórios.

34
Marcos Antônio Witt

Desse modo, a comparação como instrumento de apoio para se inves-


tigar duas ou mais realidades impõe o seu preço ao, no mínimo, duplicar
o trabalho do pesquisador. Em primeiro lugar, há o domínio de dois gru-
pos historiográficos vinculados a dois ou mais objetos, que são colocados
lado a lado para a percepção de semelhanças e diferenças. Em segundo,
há o alargamento das fontes disponíveis em arquivos físicos ou on-line.
A busca e a análise das fontes poderão redimensionar as atividades in-
vestigativas, se houver dificuldade em acessar os arquivos, se houver a
necessidade de viajar e se as fontes estiverem em língua estrangeira.
Para a confecção deste texto, tornou-se imperativo conhecer parte
da historiografia e das fontes brasileiras e chilenas sobre imigração. Dos
dois países, documentos impressos e on-line produzidos por autoridades
diversas, fotografias, livros de memorialistas e acadêmicos, mapas, me-
mórias produzidas por intelectuais e viajantes foram consultados, copia-
dos ou fotografados, analisados e comparados, para que os objetivos pro-
postos pudessem ser alcançados. Em síntese, a partir da problemática
ora apresentada e debatida e do uso dos conceitos referidos, propôs-se
comparar a atuação dos imigrantes e de seus descendentes em determi-
nadas regiões do Brasil e do Chile, sobretudo a forma como se organiza-
ram, desde a chegada aos países receptores, até a fundação de Colônias
e as ideias presentes em alguns letrados e/ou intelectuais que pensaram
e executaram os projetos que visavam a atração e instalação de imigran-
tes estrangeiros no sul da América. Em termos metodológicos, optou-se
pelo uso da comparação, pois se trata de recurso potencializador no que
se refere à tentativa de recompor a trajetória de determinados núcleos
coloniais e/ou de determinadas famílias/indivíduos. Concorda-se, portan-
to, com Truzzi (2005, p. 141), quando o autor afirma que “[...] análises
comparativas são, nesse sentido, fundamentais”. Por intermédio da com-
paração, parafraseando Kocka (2014, p. 279), o presente estudo ousou
ser menos provinciano no âmbito dos estudos migratórios.

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Estudos comparados na imigração: Brasil e Chile como possibilidade investigativa

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43
Estudos comparados na imigração: Brasil e Chile como possibilidade investigativa

ANEXOS
Figura 1 – Valdivia e Osorno, região de colonização alemã (Chile)

Fonte: Fábio Tito (2011).

Figura 2 – Nova Friburgo e Petrópolis, região de colonização suíça e alemã (Brasil)

Fonte: Rafael Galdo (2014).

44
Marcos Antônio Witt

Figura 3 – São Leopoldo e região de colonização alemã (Brasil)

Fonte: disponível em: <https://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1516986>. Acesso em: 10 jan. 2017.

45
Appunti sulla presenza degli italiani nel processo di colonizzazione in Argentina e Brasile

Appunti sulla presenza


degli italiani nel processo
di colonizzazione in
Argentina e Brasile
Federica Bertagna

Introduzione

A
lla conclusione dei loro processi di indipendenza, rispettivamente
nel 1816 e nel 1822, Argentina e Brasile avevano in comune sia
l’enorme estensione dei loro territori che la scarsissima popola-
zione che li occupava: in Argentina 700 mila abitanti erano sparsi su 2,8
milioni di km2, in Brasile 3,6 milioni di persone erano distribuite su 8,5
milioni di km2 (FAUSTO; DEVOTO, 2004).
Non sorprende, dunque, che entrambi i Paesi si aprissero all’im-
migrazione già all’avvio dei medesimi processi di indipendenza, ovvero
nel 1808 a Rio de Janeiro, con l’arrivo dell’imperatore Don João VI e nel
1810 a Buenos Aires, con la formazione della Prima Giunta di governo;
e neppure che adottassero rapidamente, già negli anni Venti, politiche
attive di popolamento.
Così, mentre la libertà di immigrazione, coincidendo con la conclu-
sione del ciclo delle guerre napoleoniche in Europa, favoriva l’afflusso

46
Federica Bertagna

di commercianti europei nei principali centri urbani, Rio de Janeiro e


Buenos Aires – soprattutto portoghesi nel primo caso; genovesi, baschi e
inglesi nel secondo –, tali politiche si tradussero anche nella fondazione,
organizzata e sussidiata dallo Stato, delle prime colonie agricole.
Fondazione che rispondeva da un lato a esigenze strategiche, di pre-
sidio demografico delle zone di frontiera, contese agli indios o in conflitto
con il potere centrale (come le province meridionali del Brasile, dove non
a caso negli anni Trenta sarebbe scoppiata la rivolta autonomista nota
come Rivoluzione Farroupilha); e dall’altro agli ideali di civilizzazione
attraverso la promozione dell’immigrazione europea di parte delle classi
di governo (DEVOTO, 2009). In Brasile, questi ideali sottintendevano
in realtà propositi più specifici di “blanqueamiento” della popolazione,
circostanza che si spiega in ragione della diversa composizione etnica
delle rispettive popolazioni, che nel 1819 era ancora per il 38% formata
da schiavi negri, mentre in Argentina era per il 70% bianca (FAUSTO;
DEVOTO, 2004, p. 42).
Proprio il perdurare del sistema di produzione schiavista in Brasile,
dove la Lei do Ventre Livre, decretata nel 1813 in Argentina, tarderà fino
al 1871 e la definitiva abolizione della schiavitù fino al 1888, fu all’origi-
ne di una fondamentale differenza nel processo di immigrazione agricola
nei due Paesi: una grossa parte del flusso immigratorio in Brasile sarà
infatti destinata alla sostituzione del lavoro schiavo nelle fazendas del
caffè e avrà cronologia e caratteristiche sue proprie.
L’obiettivo di questo saggio è analizzare similitudini e differenze dei
processi di colonizzazione in Argentina e Brasile, per capire quale ruolo
gli immigrati italiani giocarono in essi nel periodo compreso tra il 1820
e il 1960.

Le prime colonie (1820-1875)


Se i primi tentativi di colonizzazione agricola risalgono, dunque,
agli anni Venti dell’Ottocento in entrambi i Paesi, gli italiani non par-
teciparono alla fase embrionale del processo, che vide protagonisti solo
pochi gruppi di immigrati tedeschi in Brasile, e inglesi e scozzesi in Ar-
gentina. In Argentina, infatti, la prima fase dell’immigrazione italiana si

47
Appunti sulla presenza degli italiani nel processo di colonizzazione in Argentina e Brasile

caratterizzò per il prevalente radicamento urbano: a partire dal decennio


successivo, durante il governo di Juan Manuel de Rosas, si produsse un
flusso di arrivi che riguardò soprattutto genovesi e in generale liguri, che
si dedicarono ad attività legate alla navigazione fluviale e al commercio,
stabilendosi in particolare a Buenos Aires, nel quartiere portuale noto
come La Boca del Riachuelo: secondo il primo censimento nazionale ar-
gentino del 1869 risiedeva a Buenos Aires il 59% degli italiani presenti
nel Paese, che erano già oltre 70mila, il primo gruppo straniero (e il 3,8%
del totale della popolazione), e un altro 3% viveva nella seconda città
argentina, Rosario (DEVOTO, 2002).
Dopo la caduta di Juan Manuel de Rosas (1852) ai liguri si unirono,
oltre a un discreto numero di esuli risorgimentali, che di nuovo si fer-
marono quasi tutti a Buenos Aires, anche lombardi e piemontesi; furono
costoro a inoltrarsi nelle aree rurali e a popolare alcune delle prime co-
lonie fondate dal governo di Buenos Aires nella provincia omonima (per
esempio Chivilcoy), e da quello della Confederazione nelle province di
Santa Fe (San Carlos) ed Entre Ríos (San José). Era il risultato dell’azio-
ne di reclutamento nelle campagne della Pianura Padana degli agenti e
subagenti di emigrazione, che agivano per conto delle compagnie di navi-
gazione e degli impresari impegnati nei progetti di colonizzazione. Ques-
te prime colonie rurali ebbero vita difficile, sia per la minaccia costante
rappresentata dagli indigeni, che per le difficoltà di commercializzazione
dei prodotti dovute alla mancanza di vie di comunicazione.
Per quanto riguarda il Brasile, invece, al di là delle presenze spo-
radiche di avventurieri, commercianti e, di nuovo, esuli risorgimentali,
questi ultimi concentrati soprattutto nella capitale dell’impero, Rio de
Janeiro, non si può parlare di una vera e propria immigrazione italiana
in questa fase centrale del XIX secolo e solo alla metà degli anni Set-
tanta, nel quadro della politica di colonizzazione imperiale, nuclei com-
patti di contadini lombardi e veneti furono inviati in due diverse aree
del Rio Grande do Sul: la prima nel centro della provincia e la seconda
a nord-est, nella regione collinare e montuosa dell’Encosta Superior da
Serra (ZANNINI; GAZZI, 2003), destinata a diventare il centro dell’area
di colonizzazione italiana e anche il suo simbolo. Erano aree contermini
a quelle in cui a partire dagli anni Venti erano affluiti i primi coloni te-
deschi, che si erano insediati nelle zone della provincia con i terreni mi-

48
Federica Bertagna

gliori e meglio collegate alle vie di comunicazione che scendevano verso


la costa (ROCHE, 1969; WITT, 2015).
Fino agli anni Settanta, in ogni caso, sia in Brasile che in Argentina
la creazione delle colonie su iniziativa statuale o imperiale, o dei muni-
cipi e delle province, fu piuttosto discontinua, a causa della mancanza di
risorse. Inoltre, molte non prosperarono e furono rapidamente abbando-
nate dai loro primi abitatori, che si ritrovarono indebitati, o indifesi di
fronte alle incursioni degli indigeni. Maggiore successo arrise alle colonie
fondate da impresari, in quanto questi nuclei erano quelli in genere me-
glio situati, e consentivano ai coloni una più facile commercializzazione
dei loro prodotti.

L’immigrazione di massa (1875-1920)


Tra gli anni Settanta e Ottanta si aprì una nuova fase. Sia l’Argen-
tina che il Brasile si inserirono a pieno titolo nel ciclo delle migrazioni di
massa che aveva cominciato a interessare il mondo atlantico dopo la fine
delle guerre napoleoniche: l’espansione delle loro economie e la messa a
coltura di milioni di ettari di territorio, dopo l’eliminazione violenta degli
indigeni, furono un potente fattore di attrazione per i contadini europei
costretti ad abbondonare le campagne in seguito alla crisi agraria provo-
cata dall’afflusso dei grani americani e russi, commercializzati in Europa
a prezzi concorrenziali grazie all’abbattimento del costo dei noli prodotto
della rivoluzione dei trasporti (FAUSTO; DEVOTO, 2004).
Per altri versi, in Italia gli anni Settanta coincisero con l’inizio
dell’emigrazione di massa: al crollo del prezzo dei prodotti agricoli si
sommarono, come fattori di espulsione, l’aumento demografico e la forte
pressione fiscale esercitata dal nuovo Stato, unificato nel 1861. La crisi
colpì più duramente, almeno fino alla fine degli anni Ottanta, le regioni
settentrionali del Paese, che erano quelle più integrate nei mercati inter-
nazionali e subivano quindi più direttamente la concorrenza dei cereali
importati (FRANZINA, 1976).
Le due spinte, l’offerta di terra in Argentina e Brasile, e la domanda
dei contadini del Nord Italia, erano destinate a incrociarsi: dal Piemonte,
dalla Lombardia e dalle province del Veneto (di cui all’epoca faceva parte

49
Appunti sulla presenza degli italiani nel processo di colonizzazione in Argentina e Brasile

il Friuli), oltre che dal contiguo Trentino (all’epoca austriaco) sarebbero


arrivati in larga maggioranza i contingenti di immigrati che popolaro-
no la “pampa gringa” da un lato (soprattutto piemontesi e lombardi); e
dall’altro le zone di colonizzazione delle province (poi stati) meridionali
del Brasile e le fazendas pauliste.
In Argentina, dopo che le prime fasi dell’immigrazione e della colo-
nizzazione si erano svolte in assenza di uno stimolo legislativo statale
forte, nel 1876 fu promulgata la Ley de inmigración y colonización, che
prevedeva concessioni di terre pubbliche, creava un Ufficio di collocamen-
to e offriva una serie di altre agevolazioni agli immigrati, come l’alloggio
gratuito per cinque giorni nell’Albergo degli Immigranti e il biglietto del
treno per raggiungere le destinazioni dell’interno del Paese. Più per ef-
fetto, in realtà, dell’enorme espansione della frontiera (da 200.000 ettari
coltivati nel 1872 si passò a 1.600.000 ettari nel 1888) e del conseguente
e prepotente sviluppo dell’economia che ne derivò (costruzione di infras-
trutture urbane, ferrovie, commerci, servizi) che della legge, tra il 1881
e il 1914 sbarcarono in Argentina circa 4.200.000 immigrati europei1:
quasi la metà di essi, circa 2.000.000, erano italiani (DEVOTO, 2002).
Conclusasi la fase della “alluvione immigratoria”, come fu chiama-
ta, il censimento nazionale del 1914 registrò 930.000 italiani nel Paese, il
12% della popolazione. Pur mantenendo una spiccata vocazione urbana
(erano il 20% della popolazione nelle due principali città, Buenos Aires
e Rosario, ed erano presenti in tutti i settori professionali e gli strati so-
ciali), essi erano dominanti anche nelle aree di colonizzazione agricola:
la “pampa gringa” era diventata in larga misura una pampa italiana
(DEVOTO, 2007).
Questo perché, per quanto gli impresari protagonisti del processo di
colonizzazione continuassero a non essere italiani, a partire dagli anni
Settanta gli immigrati in maggioranza lo erano sicuramente: da un lato
gli italiani andarono a risiedere nelle antiche colonie abbandonate dai
pionieri, dall’altro furono reclutati in massa in Piemonte e Lombardia
soprattutto per popolare le nuove colonie fondate in quegli anni nelle
province di Santa Fe, Córdoba, Entre Ríos e Buenos Aires, come dimos-
trano anche i toponimi scelti per attirarli (Nuova Torino, Rafaela etc.).

1
Questa cifra è una stima per difetto, o meglio include solo gli immigrati considerati tali dalla stessa
legge del 1876, ovvero le persone sbarcate da navi provenienti “de ultramar”: restano esclusi dal
calcolo tutti coloro che, per esempio, giungevano in Argentina da Montevideo.

50
Federica Bertagna

Il processo di colonizzazione si svolse con modalità diverse rispetto


alla fase iniziale. Si passò da un sistema misto, pubblico-privato a uno
interamente privato: le terre furono cedute a impresari, che acquistava-
no grandi estensioni e si occupavano, direttamente o attraverso inter-
mediari, della suddivisione in lotti e dell’assegnazione dei medesimi ai
coloni.
L’alta domanda di terra, prodotto delle continue ondate di arrivi, e il
progressivo esaurirsi a inizio Novecento della frontiera naturale genera-
rono una crescita speculativa del valore dei terreni. Anche per effetto di
ciò, da un certo momento in avanti, e sempre di più dopo il 1890, i coloni,
invece di acquistare a rate in tre o cinque anni i lotti, come era avvenuto
in precedenza, li affittavano. I contratti di affitto prevedevano diverse
formule: le principali erano la mezzadria, in cui il raccolto veniva diviso
a metà tra la famiglia che lavorava il lotto e il suo proprietario (o l’inter-
mediario che l’aveva a sua volta subaffittato) e l’affitto dietro pagamento
in denaro del terreno.
Molti immigrati cominciavano in realtà come lavoratori a giornata e
braccianti nei campi di loro connazionali. Nonostante il susseguirsi degli
arrivi, i salari pagati ai peones, soprattutto nei mesi del raccolto, rimase-
ro costantemente alti: ciò consentì a tanti immigrati di risparmiare per
alcuni anni per poi comprare o più spesso affittare a propria volta un
lotto. Parimenti, se i raccolti erano buoni, dai contratti di mezzadria si
poteva passare alla proprietà della terra, nel contesto di una economia
che negli ultimi decenni dell’Ottocento era già pienamente capitalistica
e di mercato e che avrebbe conosciuto nel nuovo secolo una progressiva
modernizzazione anche a livello tecnologico (DEVOTO, 2002).
In Brasile il periodo dell’immigrazione di massa che è racchiuso tra
il 1875 e il 1920 si può suddividere, in rapporto all’immigrazione italia-
na, in due fasi ben distinte. La prima si concluse nel 1902, e conobbe un
vero e proprio picco di arrivi nel quindicennio 1887-1902, quando com-
plessivamente vi approdarono circa 900 mila italiani.
Fu questo il risultato della politica di immigrazione sovvenzionata,
con il sistema dei biglietti prepagati, che gli Stati produttori di caffè, San
Paolo e Minas Gerais, adottarono in quegli anni per soddisfare la neces-
sità di braccia generata nelle fazendas dall’abolizione della schiavitù nel
1888: essa si tradusse nell’invio di agenti e nel reclutamento di migliaia

51
Appunti sulla presenza degli italiani nel processo di colonizzazione in Argentina e Brasile

di famiglie di contadini, soprattutto nelle campagne del Nord Italia: i


veneti, che assieme a trentini e friulani rappresentarono il 30% del totale
del flusso, e i lombardi furono i due gruppi principali.
La promulgazione in Italia del cosiddetto Decreto Prinetti, che nel
1902 per l’appunto proibì l’immigrazione sovvenzionata, rappresentò
una cesura drastica e definitiva per il flusso italiano in Brasile, che non
sarebbe più tornato ai livelli precedenti: nel quindicennio successivo, in-
fatti, esso si ridusse di due terzi (circa 300.000 immigrati tra il 1902 e il
1920), per poi calare ulteriormente negli anni Venti e Trenta. La stessa
composizione regionale del flusso cambiò: dopo il 1902 a prevalere furono
i meridionali, soprattutto campani, calabresi e abruzzesi, che andarono a
stabilirsi principalmente nelle città, e in primis a San Paolo.
Considerato complessivamente, il flusso italiano in Brasile si indiri-
zzò lungo due direttrici fondamentali: una parte, minoritaria, si diresse
nelle aree di colonizzazione degli Stati meridionali, Rio Grande do Sul
(dove si stima vivessero circa 50.000 italiani nel 1902), e in minor mi-
sura Santa Catarina, Paranà e Espírito Santo (12.000 alla stessa data),
e nella capitale Rio de Janeiro. Il grosso si concentrò invece negli Stati
del caffè, Minas Gerais (43.000 nel 1920) e soprattutto San Paolo, dove
nel 1902 viveva il 70% degli italiani presenti nel Paese, che erano oltre
550.000, ben il 52% del totale degli stranieri residenti (TRENTO, 2002).
Analogamente a quanto avvenuto in Argentina, dalla metà degli
anni Settanta il Brasile imperiale diede forte impulso alla fondazione
di nuove colonie negli Stati meridionali, finanziando il trasporto delle
famiglie di immigrati dal porto di sbarco ai nuclei coloniali e garantendo
loro gratuitamente una casa (in realtà si trattava di alloggi precari), ali-
menti, attrezzi e sementi, che avrebbero dovuto essere rimborsati a rate
dopo il primo raccolto (ZANNINI; GAZZI 2003; BARROS et al., 1980).
Nel Rio Grande do Sul, l’area di colonizzazione italiana si sviluppò
attorno alla colonia “madre” di Caxías, in nuclei gestiti dal governo o da
imprese private, in cui alle famiglie di coloni, in gran parte come detto
venete, trentine e lombarde erano assegnati lotti da disboscare e mettere
a coltura. Le condizioni erano difficili ma il numero di abbandoni non
fu mai elevato e la creazione di nuovi nuclei fu costante, almeno fino a
quando, nel 1894, il governo della neonata República Velha delegò ai
singoli Stati la gestione della politica migratoria, con i relativi oneri per

52
Federica Bertagna

il trasporto e il primo insediamento dei coloni: da quel momento, infatti,


solo gli Stati del caffè, San Paolo e Minas Gerais, furono in grado di sos-
tenere tali costi (TRENTO, 2002).
Nello Stato di San Paolo, in realtà, già dagli anni precedenti si stava
dirigendo la stragrande maggioranza degli immigrati italiani. In parte,
come in Argentina, essi si radicarono nelle città e nei nuclei urbani che
andavano sviluppandosi nella cintura attorno alle aree di produzione ca-
ffeicola e soprattutto sfruttarono le opportunità di lavoro generate nella
capitale, San Paolo, proprio dall’ingente flusso immigratorio, e dal con-
seguente sviluppo delle infrastrutture, dei servizi e dei commerci, tanto
che a fine secolo San Paolo era già tanto “italiana” quanto Buenos Aires
(FRANZINA, 1995).
Tuttavia, nei numeri e nell’immaginario, la “fase paulista” del flusso
italiano in Brasile è legata soprattutto al lavoro nelle fazendas del caffè.
Nelle piantagioni di quello che era diventato il principale prodotto di es-
portazione brasiliano gli immigrati italiani furono reclutati, come detto,
per sostituire la manodopera schiava, con quanto ne conseguiva in ter-
mini di condizioni di lavoro e rapporti sociali. Veneti e lombardi, in par-
ticolare, erano preferiti dalle classi dirigenti brasiliane perché ritenuti
pacifici e grandi lavoratori, uno stereotipo funzionale al mantenimento
del sistema socio-economico della piantagione (VANGELISTA, 1982).
Le famiglie di coloni, oltre a occuparsi del caffè e della raccolta, ave-
vano diritto a tenere animali e a coltivare piccoli appezzamenti di terre-
no ai margini della piantagione per il proprio sostentamento; potevano
inoltre vendere le eccedenze ma, dato l’isolamento in cui si trovavano, la
commercializzazione era gestita dai fazendeiros, che decidevano a discre-
zione quanto pagare i prodotti. In un contesto siffatto, in cui il risparmio
e l’accesso alla proprietà risultarono estremamente difficili per la prima
generazione di immigrati, l’abbandono della fazenda fu una scelta obbli-
gata per molti, e, per chi non optava per il rientro in Italia, si tradusse
in un movimento verso Ovest, alla ricerca di terre e fazendas migliori, e
in un ulteriore afflusso di immigrati nella città di San Paolo (TRENTO,
1984; GROSSELLI, 1991).
I rapporti inviati in Italia dai rappresentanti diplomatici e dagli is-
pettori del Commissariato generale dell’emigrazione, istituito in Italia

53
Appunti sulla presenza degli italiani nel processo di colonizzazione in Argentina e Brasile

nel 1901 per regolamentare il flusso migratorio e tutelare gli emigranti,


con le descrizioni che contenevano delle condizioni di vita degli italiani
nelle piantagioni, assimilati socialmente a “schiavi bianchi” e trattati
come tali dai fazendeiros, convinsero le autorità a bloccare la politica dei
biglietti prepagati con il citato Decreto Prinetti del 1902 (GROSSELLI,
1991).

L’esperienza degli immigrati italiani nelle


colonie rurali e nelle fazendas
Se per i proprietari terrieri italiani quella di emigrare nei decenni
finali dell’Ottocento era diventata una vera e propria “smania febbrile”,
una “allucinazione mentale”, come scrivevano sui loro giornali (FRAN-
ZINA, 1976), che induceva i contadini a lasciare tutto e partire, per gli
emigranti, come risulta dalle loro lettere, dai diari e anche dalle canzo-
ni, la “Merica”, che negli anni della crisi agraria voleva dire in prima
battuta Brasile e Argentina, era un luogo quasi mitico, in cui c’erano
terra a prezzi irrisori e cibo a volontà, e i rapporti sociali erano più liberi
(FRANZINA, 1979).
Tuttavia, l’esperienza migratoria, soprattutto nelle fasi pionieristi-
che della colonizzazione, non corrispose se non in minima parte a tale
immagine. Questo vale senza dubbio per le fazendas del caffè, dove gli
immigrati italiani, oltre a condizioni abbruttenti di vita e lavoro, come
detto, ebbero a che fare con padroni delle piantagioni abituati a disporre
impunemente degli schiavi, e che al minimo segno di protesta non esi-
tavano a far ricorso allo scudiscio o alle armi. In un contesto di totale
isolamento, in cui, a parte la fuga, la ribellione individuale era l’unica
forma possibile di affermare le proprie ragioni, non mancarono episodi di
reazioni violente ai maltrattamenti e si verificarono casi di uccisioni di
fazendeiros per mano di immigrati (TRENTO, 1984).
Nelle aree di colonizzazione la situazione era da questo punto di
vista diversa ma il rapido abbandono in Argentina di alcune delle prime
colonie, in cui erano presenti anche immigrati italiani, lascia pochi dubbi
sulla precarietà di questi tentativi iniziali e sulla durezza delle condi-
zioni di vita dei pionieri: sotto la minaccia costante degli indigeni, quasi

54
Federica Bertagna

impossibilitati a commercializzare i loro prodotti per la pressoché totale


assenza di vie di comunicazione, e in balìa delle calamità naturali (dalle
invasioni delle locuste ai capricci del clima), erano continuamente espos-
ti al rischio di perdere completamente i raccolti e di veder naufragare il
proprio progetto migratorio.
Le testimonianze dirette degli stessi emigrati sono concordi nel des-
crivere anche la fase successiva, quella della colonizzazione organizzata
a livello governativo, che come detto inizia negli anni Settanta sia in
Argentina che negli Stati del Brasile meridionale, come una fase eroica
in cui era necessario affrontare ogni sorta di difficoltà, dalle violenze
degli indios “selvaggi” alle inondazioni, dalle bestie feroci all’isolamento
estremo (FRANZINA, 1979; BRUNELLO, 1994). Le fonti indirette (per
esempio i viaggiatori di passaggio) sono altrettanto concordi nel sottoli-
neare che gli immigrati italiani diedero prova di una capacità di lavoro,
resistenza e adattamento superiori a quella di altri gruppi immigratori
(FRANZINA, 1995; GROSSELLI, 1991).
Se questo era vero in generale, a uno sguardo meno superficiale
emergono anche impreparazione e inadeguatezze, nei metodi di lavoro
per esempio, che col tempo furono corrette ma per tanti dei primi immi-
grati rappresentarono una delle ragioni di insuccesso (DEVOTO, 2007).
Un primo problema era la dimensione dei lotti. Tanto nella pampa
gringa quanto nelle regioni di colonizzazione del Brasile meridionale i
terreni assegnati e messi a coltura dagli immigrati tendevano a essere
troppo grandi per le forze di una singola famiglia: in Argentina accadeva
che, per quanto questa fosse numerosa e fosse solita impiegare anche i
bambini nel lavoro dei campi, parte dei raccolti doveva essere abbando-
nata.
Un secondo problema era legato all’uso di tecniche di coltivazione,
ma anche di sementi, che gli immigrati erano soliti impiegare in Italia
ma che erano poco adatte al nuovo habitat: anche in questo caso, l’unica
possibilità era procedere con prove ed errori. Nelle colonie del Sud del
Brasile, in particolare, i coloni dovettero famigliarizzare con il sistema
del cosiddetto “taglia e brucia”, che consisteva nel tagliare e bruciare la
boscaglia solo in una parte del podere per poi seminare e ricominciare
dopo alcuni anni con terreni lasciati incolti, a rotazione.

55
Appunti sulla presenza degli italiani nel processo di colonizzazione in Argentina e Brasile

L’aspetto in cui la “Merica” delle colonie agricole in Brasile e Argen-


tina più corrispose fin da subito alla sua immagine mitica di luogo della
“cuccagna” e dell’abbondanza, fu probabilmente quello dell’alimentazio-
ne. Superati i primi momenti, in cui la cacciagione dovette compensare
la scarsità delle provviste alimentari fornite ai coloni, la fertilità e la
produttività dei suoli, che apparivano assolutamente straordinarie agli
occhi degli emigrati, garantirono loro, costretti in patria a una penuria
ai limiti della pura sussistenza, un deciso miglioramento: oltre alla pos-
sibilità di consumare regolarmente alimenti, come la carne, che in Italia
erano riservati ai signori, era la quantità del cibo disponibile a stupire gli
emigranti, che, abituati a soffrire la fame, immancabilmente ne parlava-
no nelle loro lettere ai familiari e nei loro diari (FRANZINA, 1979, 1992).
Un peggioramento rispetto alla situazione di partenza in Italia vi
fu, invece, nelle condizioni abitative, soprattutto nei primi tempi: nelle
colonie i nuovi arrivati dovevano costruirsi da soli le abitazioni, in gene-
rale descritte come molto spartane; inizialmente, poi, vivevano in capan-
ne con il tetto di paglia (Argentina) o ammucchiati in grandi baracche
(Brasile).
Le dimensioni dei lotti accentuavano il senso di isolamento, per
quanto le abitazioni non fossero costruite al centro dei medesimi ma lun-
go gli assi viari interni alla colonia. In Veneto all’epoca dei reclutamenti
in massa per il Brasile alcuni paesi letteralmente si svuotarono e ci fu-
rono numerosi casi di preti che partirono assieme ai propri parrocchiani
ma in generale nelle colonie mancavano non solo i religiosi e le chiese ma
anche più in generale i luoghi e i momenti di socializzazione ai quali gli
emigranti erano abituati nei paesi da cui provenivano: l’unico punto di
ritrovo finiva per essere lo spaccio dove essi andavano occasionalmente
ad acquistare, a prezzi carissimi, un po’ di tutto, dagli alimenti agli attre-
zzi. Le colonie nulla offrivano, poi, a livello di servizi: mancavano scuole
e medici, e i coloni ovviavano come potevano, retribuendo maestri privati
e creando associazioni di mutuo soccorso che fornivano ai soci sussidi in
caso di malattia e per l’istruzione dei figli.
Una questione relativamente poco studiata è quella dei rapporti che
si instaurarono tra gli immigrati e i gruppi indigeni presenti, in forma
più o meno stabile, tanto nel Sud del Brasile quanto nella pampa argen-
tina (BRUNELLO, 1994). Benché non esistano dati certi, in Argentina il

56
Federica Bertagna

loro numero era relativamente piccolo ma tribù indigene vivevano nelle


aree di colonizzazione, in particolare nel Nord della provincia di San-
ta Fe e nel Sud di quella di Buenos Aires, in quest’ultimo caso almeno
fino alla spedizione militare condotta dal generale Julio Argentino Roca
e nota come “campaña del desierto” (1879), che portò al loro pressoché
completo annientamento.
Nelle lettere degli emigrati gli indigeni erano descritti come “selva-
ggi”, ostili e violenti: abbondano le testimonianze sugli attacchi ai nuclei
coloniali, che venivano respinti con le armi. Ma come ha mostrato in for-
ma eloquente, anche con il supporto di un prezioso materiale fotografico,
Piero Brunello per il Brasile, nel contatto con gli indigeni gli italiani, ol-
tre che subirla, esercitarono una violenza su cui le testimonianze dirette,
per ovvii motivi, sono parche di informazioni ma che includeva spedizioni
per “liberare” territori nei quali vivevano tribù indigene e “caccie al sel-
vaggio” con uccisioni indiscriminate (BRUNELLO, 1994). Bisognerebbe
capire se e in quale misura sia avvenuto qualcosa di simile in Argentina
ma c’è da dire che le zone in cui si concentravano maggiormente gli indi-
geni non coincidevano se non in parte con quelle popolate in prevalenza
da coloni italiani, per cui i contatti dovettero essere piuttosto occasionali.
Molto di più sappiamo sul coinvolgimento degli immigrati in movi-
menti di lotta collettivi, che nella stessa Argentina furono, contempora-
neamente, una forma di rivendicazione dei propri diritti e un canale di
integrazione nella società di arrivo attraverso la partecipazione politi-
ca, almeno fino alla promulgazione della Ley Saenz Peña, che nel 1912
stabilì il suffragio universale maschile con voto segreto e obbligatorio.
Nei territori di frontiera gli immigrati, esposti nella loro condizione di
stranieri all’arbitrio della giustizia locale, avevano appreso presto a loro
spese che l’intervento delle autorità diplomatiche italiane poco serviva a
far valere le loro ragioni. Nel 1893 in provincia di Santa Fe molti coloni
italiani presero le armi per difendere i loro diritti in una sollevazione
guidata dall’Unión Cívica Radical e nel 1912 la speculazione e la conse-
guente crescita dei fitti nella regione pampeana provocarono un nuovo
vasto conflitto, noto come il “Grito de Alcorta”, che vide protagonisti so-
prattutto coloni italiani e spagnoli e che sfociò nella fondazione di una
organizzazione sindacale di piccoli e medi proprietari e fittavoli, la Fede-
ración Agraria Argentina (GALLO, 2007; SCARZANELLA, 1983).

57
Appunti sulla presenza degli italiani nel processo di colonizzazione in Argentina e Brasile

Tensioni sociali e proteste nelle colonie per il mancato rispetto dei


contratti non mancarono neanche in fasi successive, neppure quando,
come ha rilevato Pantaleone Sergi studiando il caso della colonia fascista
di Villa Regina, ci si poteva aspettare che la comune fede politica di colo-
ni e amministratori bastasse a placare i contrasti: in realtà, qui e altro-
ve risultò chiaro che le motivazioni che avevano condotto gli immigrati
in Argentina erano assai materiali e lontane dalle aspirazioni politiche
imperialistiche in nome delle quali il regime fascista aveva promosso la
colonizzazione agricola in Sudamerica (SERGI, 2013).

La colonizzazione promossa dallo Stato italiano


(1920-1960)
Già prima che il conflitto mondiale scoppiato nel 1914 provocasse
la brusca interruzione dell’emigrazione transoceanica europea, il princi-
pale giornale italiano in Argentina, “La Patria degli italiani” di Buenos
Aires, lamentava la progressiva trasformazione del flusso immigratorio
italiano nel Paese in un flusso temporaneo (la cosiddetta immigrazione
“golondrina”, come fu chiamata) e l’esaurirsi del ciclo della colonizzazio-
ne agricola; e ne imputava la responsabilità alle colpevoli miopie della
classe dirigente argentina, che non avevano saputo frenare la specula-
zione, l’accaparramento di terre e la concentrazione della proprietà.
In Brasile, per altri versi, l’afflusso di immigrati italiani si era note-
volmente ridotto, come detto, fin dal 1902 in seguito alla promulgazione
del Decreto Prinetti, e tutti i tentativi di rilanciarla furono inutili, anche
quelli compiuti dal Rio Grande do Sul, Stato pressoché estraneo alle de-
nunce diffuse in Italia sulle condizioni di vita degli emigranti in Brasile,
che inviò tra l’altro propri emissari in Italia a fini di propaganda, e nel
1906 partecipò con un proprio spazio all’Esposizione Universale di Mi-
lano, per mostrare i successi degli colonizzazione italiana (BALBINOT;
TEDESCO, 2016).
Nondimeno, se volessimo tracciare un bilancio dell’esperienza della
colonizzazione agricola italiana in Argentina e Brasile alla fine della pri-
ma guerra mondiale, ammettendo per un attimo che una simile opera-
zione sia legittima, per un processo tanto diversificato al suo interno, e

58
Federica Bertagna

tanto esteso nello spazio e nel tempo, le note positive prevarrebbero pro-
babilmente su quelle negative. Nel caso della pampa gringa nessuno lo
mette in discussione ma anche laddove, come nelle fazendas brasiliane,
le condizioni di vita e di lavoro, particolarmente degradanti e dure, ave-
vano costretto alla fuga molti e avevano a un certo punto indotto persino
il governo italiano a intervenire per bloccare le partenze, quello che era
l’obiettivo della stragrande maggioranza, “fazer a América”, che voleva
dire accedere alla proprietà della terra, per una quota parte piuttosto
significativa degli emigrati italiani si era rivelato raggiungibile, sia pure
a prezzo di immani sforzi e sacrifici.
Tralasciando storie di successo straordinarie quanto eccezionali,
come quella del “Rey do cafè” Geremia Lunardelli, che da colono divenne
imprenditore e giunse a possedere decine di migliaia di ettari in diversi
Stati del Brasile, secondo i dati raccolti da Thomas Holloway il numero
di proprietari italiani nella zona occidentale dello Stato di San Paolo,
quella di più recente colonizzazione, era aumentato costantemente nei
primi decenni del Novecento, fino a raggiungere nel 1923 il 32% del tota-
le delle proprietà: gli italiani a quella data erano secondi solo ai brasilia-
ni, che ne possedevano il 56,9% (HOLLOWAY, 1980, p. 155).
Anche nelle aree di colonizzazione degli Stati meridionali la percen-
tuale di proprietari sul totale degli immigrati era piuttosto elevata: sia
nel Rio Grande do Sul che in Santa Catarina circa il 30% degli italiani era
proprietario della terra che lavorava alla volta del 1920 (TRENTO, 2002).
Benché non tutta la storiografia sia concorde oggi nel dare una let-
tura ottimista di questi numeri e in generale della traiettoria degli ita-
liani in Brasile,2 è certo che in Italia il mito della colonizzazione agricola,
che fin dall’età liberale era legato in particolare alle due grandi repubbli-
che sudamericane, resistette tenacemente, tanto nell’immaginario degli
emigranti (FRANZINA, 1992) quanto nella visione di una parte della
classe dirigente dell’epoca, la quale aveva considerato le “colonie libere”,
ovvero la colonizzazione agricola spontanea degli emigrati in particolare
proprio in Sudamerica, una potenziale forma di espansionismo (PROTA-
SI; SONNINO, 2003).

2
Di diverso avviso sono per esempio Franzina (1995) e Trento (2002), mentre altri hanno messo in
rilievo giustamente che queste traiettorie devono essere lette in modo più complesso, ovvero non
come un crescendo lineare verso il successo economico e l’ascesa sociale (TRUZZI; PALMA,
2014).

59
Appunti sulla presenza degli italiani nel processo di colonizzazione in Argentina e Brasile

La novità fu però che, dagli anni Venti agli anni Cinquanta del No-
vecento, lo stesso Stato italiano condusse numerosi tentativi di colonizza-
zione, finanziandoli con capitali pubblici dell’Istituto nazionale di Credito
per il Lavoro italiano all’Estero (FAURI, 2009). Dapprima, negli anni tra
le due guerre, per impulso del regime fascista vennero fondate colonie
soprattutto in Argentina, e nel secondo dopoguerra, anche col sostegno
di compagnie private e previa costituzione di cooperative di lavoratori
in Italia, si puntò ancora una volta soprattutto sullo stato paulista e in
generale sul Brasile3 (SERGI, 2013). La sconfitta militare nella secon-
da guerra mondiale, del resto, aveva fatto tramontare definitivamente
i sogni imperiali e nazionalistici di popolamento in Africa, ponendo fine
all’ambiguità che aveva contraddistinto nell’Italia unita il termine “colo-
nia”, volutamente impiegato sia per indicare i possedimenti territoriali
che appunto le colonie degli emigrati, entrambe destinate a conservare,
nell’idea delle classi dirigenti, un forte vincolo con la madrepatria.

Considerazioni conclusive
Una comparazione tra questi ultimi tentativi di colonizzazione e
quelli della fase precedente è resa estremamente difficile dalla diversità
dei contesti storici e geografici. Per quanto riguarda i decenni tra le due
guerre, si può parlare, per alcune colonie, come per esempio Villa Regina,
nell’Alta valle del Rio Negro in Argentina, di un successo nel medio e lun-
go periodo; esso però fu merito quasi esclusivo non dell’amministrazione
della colonia, che si mostrò inadeguata sotto molteplici punti di vista, ma
della tenacia dei coloni, che riuscirono a superare le enormi difficoltà dei
primi anni (SERGI, 2016).
Gli esiti furono, invece, pressoché ovunque fallimentari4 nel secondo
dopoguerra, per una serie di motivi. Terreni che si rivelarono inadat-
ti alle coltivazioni, per quanto fossero state inviate missioni di tecnici
per valutare la fattibilità dei progetti; carenza di risorse adeguate per il

3
Ma anche altrove, a riprova di quanto la classe dirigente italiana ancora credesse nella coloniz-
zazione agricola ovunque e comunque: una missione tecnica e poi tentativi di colonizzazione
furono condotti anche in Cile, con famiglie soprattutto trentine (GROSSELLI, 2011).
4
Non è affatto certo, peraltro, che quelli che ex post, da una prospettiva storiografica, vengono
giudicati come dei fallimenti lo fossero anche nella percezione degli emigranti o nel loro ricordo
successivo dell’esperienza migratoria: sono interessanti al riguardo le osservazioni di Elmir e Witt
(2014, p. 9-13).

60
Federica Bertagna

primo impianto delle colonie; vere e proprie truffe ai danni dei coloni; e
da ultimo, anche, immigrati che abbandonarono rapidamente le colonie
perché non erano disposti a tollerare le precarie condizioni abitative e
di vita nelle medesime (GROSSELLI, 2011; TRENTO, 2002, p. 9). Non
perché tali condizioni fossero peggiori di quanto fossero state in passato,
al tempo della “Merica” e della frontiera: anzi, erano senza dubbio assai
migliori. Era piuttosto la situazione di partenza dell’emigrante, e quindi
erano le sue esigenze e le aspettative riposte nel progetto migratorio, a
essere cambiate: in Italia nel secondo dopoguerra mancava il lavoro e lo
sforzo economico imposto dalle esigenze della ricostruzione costrinse il
Paese, almeno fino alla seconda metà degli anni Cinquanta, a comprime-
re al massimo i livelli di consumo, anche alimentari, ma non si moriva
più di fame, come succedeva durante la crisi agraria di fine Ottocento.

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61
Appunti sulla presenza degli italiani nel processo di colonizzazione in Argentina e Brasile

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Prealpi venete e il Brasile meridionale: storia e demografia, 1780-1910. v. II.
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62
Alba Cristina Couto dos Santos Salatino

Imigrantes e colônias:
da Pampa bonaerense à
Serra Gaúcha
Alba Cristina Couto dos Santos Salatino

Primeiras palavras

O
presente trabalho integra uma investigação maior sobre o Rio
Grande do Sul e a província de Buenos Aires, focada, sobretudo,
em um estudo que inter-relaciona o local e o nacional. Argumen-
tamos, a partir de duas áreas de colonização, a organização do espaço, as
vivências e experiências dos imigrantes em relação ao desenvolvimento
econômico1 e social. A América Latina se apresenta como uma região fe-
cunda de estudos comparados, sobretudo, na ideia de Marc Bloch (1998),
comparando o que é comparável e preservando as peculiaridades regio-
nais.
O processo de colonização na segunda metade do século XIX é o que
nos propomos a discutir neste texto. Analisamos a colonização francesa,
ao sudoeste da província de Buenos Aires, e a alemã, na Serra sul-rio-
-grandense, como estudos de caso. À luz da compreensão de Charles Tilly

1
Ao falar em desenvolvimento econômico, referimo-nos ao estudo sobre a criação de cooperati-
vas de crédito que ali se desenvolveram, trabalho que que foi desenvolvido na tese de doutorado
Tudo para todos?. Um estudo comparado de princípios e de práticas cooperativas: de Pigüé (Bs
As) e de Nova Petrópolis (RS) (1898-1920) (SALATINO, 2018).

63
Imigrantes e colônias: da Pampa bonaerense à Serra Gaúcha

(1991), estabelecemos uma classificação a partir das propriedades de se-


melhanças e diferenças da colonização nesses espaços. Dessa maneira,
inserimo-nos no que Tilly nomeou de análise globalizadora, que procura
explicar as características de diferentes casos dentro de um mesmo sis-
tema.
O processo de imigração do século XIX não foi um acontecimento iso-
lado, conforme a literatura que aborda sobre o tema tem demonstrado.
Os deslocamentos, sobretudo para América, podem ser caracterizados
como um sistema, composto de diferentes elementos e com desdobramen-
tos que só podem ser avaliados se olhados caso a caso. Esta será nossa
reflexão neste trabalho: avaliar os aspectos comuns e incomuns e, princi-
palmente, verificar as peculiaridades na lógica da imigração e da criação
dessas colônias em seus primeiros anos.
No Brasil e na Argentina, a organização social do espaço nacional
está intrinsecamente ligada ao processo imigratório e à construção de
uma sociedade branca e europeia, entendida como civilizada, no discurso
de intelectuais daquele momento. No século XIX, diversos intelectuais
latino-americanos propugnavam o branqueamento da população, por
meio da marginalização (quando não do extermínio) de povos autóctones,
africanos e mestiços. As ideias de superioridade da “raça branca” eram
tão acentuadas que, na Argentina, por exemplo, os espanhóis e os latinos
eram desprezados em relação ao tipo anglo-saxão. O Brasil comunga-
va da percepção de necessidade da vinda de europeus, como modelo de
civilidade, e fomentava na figura do imigrante o agente transformador
da sociedade. Esses países voltaram-se para atingir o branqueamento
impulsionando o processo de imigração.
A noção de branqueamento ainda repercutia nas primeiras décadas
do século XX.2 Citamos um exemplo do trabalho de Ana Paula da Silva,
ao analisar o pensamento do intelectual Gilberto Freyre e os diálogos en-
tre os intelectuais brasileiros e argentinos no período de 1910-1940. Ela
identificou, na escrita de Freyre, em 1922, uma fascinação pelas políticas
de branqueamento do país vizinho. Segundo Freyre, o Brasil teria muito

2
A política de branqueamento refere-se a africanos. Ver mais, para o caso brasileiro, em Schwartz
(1993) e Cook-Martín e Fitzgerald (2014). Para o caso argentino, observamos para análise a po-
lítica de branqueamento étnico em relação aos grupos ameríndios, ver mais em: Secreto (2013).
Pode-se consultar também o capítulo 2 da tese de Salatino (2018).

64
Alba Cristina Couto dos Santos Salatino

que aprender com os argentinos, os quais vinham logrando sucesso, con-


forme segue:
Parece que neste ponto a República do Prata leva decidida vantagem sobre
os demais países americanos. Em futuro não remoto sua população será pra-
ticamente branca. Tão inferiores em número à caudalosa maré caucasiana
são os elementos de cor que o processo de clarificação da raça argentina será
relativamente breve, fácil e suave região do prata concebida pela Argentina,
Uruguai e sul do Brasil seria aquela região que conseguiu efetivamente fazer
o processo de branqueamento e no futuro alcançaria sua plenitude (SILVA,
2011, p. 314).

No Brasil, foi adotado, desde a chegada da Corte de D. João VI


(1808), uma política de colonização que rompia com as restrições aos es-
trangeiros à Colônia. Reconhecia-se a necessidade de povoar o país for-
mando os primeiros núcleos coloniais em Espírito Santo, Rio de Janeiro,
São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul (COSTA, 1977, p 149-
178). Na Argentina, a entrada de imigrantes estava reconhecida desde a
criação da Junta Independente (1810), coincidindo em um momento de
abertura, portanto, em ambos os países.
De acordo com Emília da Costa (1977), em São Paulo, por exemplo,
entre 1827-1837, cerca de 1.200 colonos foram localizados na província.
Michel Hall (2005, p. 121), num estudo mais recente, destaca que, ao
final do século XIX, em 1893, os estrangeiros representavam a maioria
da população, cerca de 54%. O Brasil era um país pouco atraente para
os emigrados, pois apresentava: uma política escravocrata; o catolicis-
mo como religião oficial; e uma economia subdesenvolvida, tipicamente
rural. Tudo isso deixava claro ao estrangeiro as escassas possibilidades,
além da predominância da grande propriedade. No entanto, ainda assim,
o Brasil está no rol dos países sul-americanos que mais receberam emi-
grados europeus, figurando ao lado da Argentina. Aportaram, no país,
grandes números de italianos, alemães, espanhóis, portugueses, sírio-li-
baneses, entre outros.
Com maior fluxo no período, destacam-se os emigrados da Alema-
nha. René Gertz (2008) assinala que o Brasil foi o país que mais recebeu
imigrantes alemães entre o século XIX e XX, ficando atrás apenas dos
Estados Unidos. E, mesmo que consideremos a grande diferença numé-

65
Imigrantes e colônias: da Pampa bonaerense à Serra Gaúcha

rica entre eles, é inegável a representatividade dessa imigração.3 As pro-


víncias do sul do Brasil foram os principais destinos.4 Caracterizou-se
numa imigração centralizada, organizada e subsidiada pelo Estado, a
exemplo de São Paulo, os colonos eram contratados na Europa e tinham
a viagem e o transporte até a fazenda de café pagos pelo governo, en-
quanto que as outras despesas eram encaradas como um adiantamento.
Nesse sentido, Herbert Klein (1999, p. 21-25) apontou o Brasil como
o terceiro país mais receptor. Antes de 1880, foi instalada, no Rio Grande
do Sul e em Santa Catarina, uma migração significativa de colonos agrí-
colas oriundos da Alemanha e do norte da Itália. Cerca de 455 mil imi-
grantes desembarcaram no país, por volta de 1880, com destino a essas
províncias. Esses colonos representaram, no ano de 1872, por exemplo,
cerca de 3,7 milhões de brancos registrados. Na Argentina, foram regis-
trados, no mesmo período, cerca de 440 mil europeus.
A Argentina promoveu a colonização mediante acordos com agentes
intermediários que, na Europa, ofereciam concessões de terras e crédito.
Mas, das diversas colônias instaladas, nenhuma sobreviveu às guerras
civis e às dificuldades econômicas. De acordo com Bóris Fausto e Fernan-
do Devoto (2004, p. 40-46), as imigrações que obtiveram bons resulta-
dos, nas primeiras décadas, foram aquelas de caráter espontâneo. Desde
1810, a liberdade de imigração favorecia a entrada de comerciantes eu-
ropeus, sobretudo ingleses e franceses. A Argentina era o país ideal para
receber migrações, mas isso não ocorreu inicialmente devido às lutas po-
líticas até 1850, as quais frearam esse movimento. Foi na década de 1830
que a Argentina recebeu um maior número de imigrantes e, a partir
da década de 1880, começaram os debates sobre subsídios ao imigrante
(KLEIN, 1999, p. 21-25).
Os imigrantes irlandeses, genoveses, bascos e franceses iniciaram o
povoamento em algumas zonas rurais (principalmente no sul de Buenos
Aires), cidades e vilas da região. A Argentina foi o país que mais atraiu
imigrantes depois dos Estados Unidos, pois a propaganda e as oportuni-
dades de trabalho, com salários e condições melhores, foram determinan-
3
O Brasil teria recebido cerca de 250.000 imigrantes, em torno de 5% dos 5 milhões que os Esta-
dos Unidos receberam até a Segunda Guerra Mundial (GERTZ, 2008, p. 119).
4
Embora o processo de povoamento sulino tenha iniciado muito antes da independência, com
caráter de ocupação estratégica das regiões conflituosas do país, ele ganhou mais força entre
os anos de 1820-1830.

66
Alba Cristina Couto dos Santos Salatino

tes. De acordo com Ana Paula da Silva (2011, p. 306-307), a Argentina


construiu uma imagem de um país branco, sem as marcas do índio ou da
escravidão negra, almejando branqueá-lo ainda mais.
Segundo Márcio de Oliveira (2011, p. 5), o período de 1880 a 1895
foi marcado pelo grandes investimentos na imigração subsidiada à Ar-
gentina: “O governo argentino pagou aproximadamente 136 mil passa-
gens para imigrantes deixando portos europeus. O objetivo aqui foi se
opor à ofensiva das elites paulistas que, na mesma época, subsidiaram
milhares de famílias de italianos”. De acordo com o autor, franceses e
espanhóis foram privilegiados com essa política, esses últimos com a mo-
tivação do Cônsul argentino em Barcelona, em 1885, de colonizar com
gente da própria raça.
A imigração francesa na Argentina ocupa um lugar importante como
um modelo cultural e intelectual das classes dirigentes no século XIX. A
França foi o segundo país a investir capital financeiro, somente atrás da
Grã-Bretanha, e ocupou a terceira posição quantitativa no fluxo imigra-
tório, ficando atrás dos italianos e espanhóis, sendo esses o primeiro e
o segundo lugar, respectivamente. Os franceses selaram sua marca de
maneira geral na cultura argentina, na forma de falar, atuar, pensar e,
também, na moda (FERNÁNDEZ, 1999, p. 9).
Na Argentina, as províncias de Córdoba, Santa Fé e Buenos Aires
receberam muitos imigrantes europeus. No Brasil, foram aquelas do sul
e do sudeste. No Rio Grande do Sul, majoritariamente alemães e italia-
nos, em Buenos Aires, franceses, italianos e espanhóis. No espaço rural,
os imigrantes foram estabelecidos em terras vistas como espaços vazios,
pelo governo, que precisavam ser habitadas com núcleos coloniais, sem
“atrapalhar” a economia agropecuária dos grandes estancieiros.
Com a crise econômica que afligia a Europa, atrelada ao difícil aces-
so à terra e à mão de obra barata, os imigrantes foram atraídos pela
fronteira aberta no Sul da América, pelo acesso abundante de terras dis-
poníveis e, por consequência, pela produção do alimento e pelo anseio de
obter condições de vida melhores.

67
Imigrantes e colônias: da Pampa bonaerense à Serra Gaúcha

Preenchendo “os vazios”


Paulo Zarth (2013, p. 152) ressaltou que a bibliografia sobre a co-
lonização do sul do Brasil tem discutido largamente a relação entre a
natureza e a sociedade centrada na questão étnica do imigrante europeu,
sustentando a imagem daquele que desbravou a floresta selvagem e ma-
nipulou a natureza inóspita. Para uma análise crítica desse posiciona-
mento, o autor utilizou a bibliografia recente sobre história ambiental e
o trabalho do arqueólogo Pedro Inácio Schimitz. Schimitz esclareceu, em
seu trabalho, que o norte do Rio Grande do Sul estava ocupado há séculos
pelos povos indígenas, muito antes da chegada dos imigrantes europeus,
no século XIX.
Zarth analisou diferentes percepções que criticam a historiografia
marcada pela visão do colonizador, isto é, da floresta que precisa ser
combatida e enfrentada, assim como o mito do vazio demográfico, entre
outros pontos. Nessas abordagens, o autor identificou uma nova constru-
ção da escrita do mundo rural do sul do Brasil, a qual tem demonstrado
preocupação com o meio ambiente, os povos tradicionais, os africanos e
os povos originários.
É importante chamar a atenção para dois fatores denominados pelo
autor: o mito do pioneiro e o mito do vazio demográfico. Zarth (2013)
discute as ideias de progresso e de desenvolvimento atreladas à imagem
do colono. De acordo com o autor, esse vazio demográfico foi, por muitas
vezes, utilizado para justificar o grande número de imigrantes destina-
dos ao sul, no século XIX, e o termo é recorrente nos documentos oficiais
dos governos brasileiro e regionais, assim como na bibliografia. A maio-
ria das dissertações e teses analisadas por Zarth denunciam a presença
de caboclos e indígenas vivendo nas terras que foram destinadas para a
imigração, questionando, desta maneira, a ideia do pioneirismo ligada
ao vazio demográfico. A literatura recente tem demonstrado justamente
o encontro entre os colonizadores e os indígenas, caboclos e/ou negros.
A crítica recai sobre a tão conhecida expressão “terras devolutas”, que
sugere, juridicamente, terras desocupadas.
Os costumes tradicionais dos colonos teriam modernizado a agri-
cultura em meados do século XX, a conhecida Revolução ou Fronteira
Verde, iniciada desde a abertura das primeiras picadas. De acordo com
Paulo Zarth (2013) e Juliana Bublitz (2014), mesmo que os imigrantes

68
Alba Cristina Couto dos Santos Salatino

tenham colocado suas experiências agrícolas em prática, era necessário


interagir com as culturas e o ecossistema locais. Zarth ressalta que os co-
lonos, pequenos agricultores, aprenderam com a observação de gerações
anteriores no território brasileiro ou se apropriaram dos conhecimentos
herdados dos caboclos e indígenas.
Dentre os estudos que relacionam a imigração e os povos tradicio-
nais e ameríndios, destacamos a comunicação da historiadora Cíntia Ro-
drigues (2012) no XI Seminário Nacional de Pesquisadores de História
das Comunidades Teuto-Brasileiras.5 Para ela, a questão indígena no
século XIX deixou de ser um problemas de mão de obra e tornou-se um
impasse na disputa da terra. Segundo a autora, a política oficial para
as populações nativas, outorgada na primeira metade do século, foi in-
cipiente. A política do Estado para avanço da sociedade nacional com o
incentivo da imigração europeia deixava evidente que o responsável pelo
cultivo da terra era o colono e não o índio, o qual era visto, pelo Estado,
como “selvagem” e incapaz.
Promover a expansão populacional no Rio Grande do Sul assegu-
raria o desenvolvimento regional e a fronteira nacional. As terras desti-
nadas à imigração foram aquelas mais ao norte da província, pois ao sul
estavam concentrados os grandes proprietários de terras que desenvol-
viam a agropecuária. Ao colono coube desenvolver uma economia base-
ada inicialmente no minifúndio. O índio, nesse contexto, tornara-se um
empecilho à expansão colonial, fator primordial dos projetos dos coloni-
zadores. Dessa maneira, a relação entre os imigrantes e os povos nativos
não foi amistosa, e cada vez mais a historiografia tem demonstrado isso,
conforme exemplificam as palavras de Rodrigues (2012, p. 67):
As relações entre índios e imigrantes permearam todo o processo de constru-
ção da sociedade sul rio-grandense. Ainda vale contemplar que os índios, me-
diante o processo oficial de colonização, em 1824, com a chegada dos alemães
à Colônia de São Leopoldo e posteriormente, durante todo o século XIX com a
vinda de colonos provenientes de vários países da Europa, são violentamente
rechaçados do seu habitat, sendo expulsos de seu espaço e conduzidos aos
aldeamentos, a partir de 1845, para facilitar a efetiva colonização das terras
“desocupadas”.

5
O tema do evento foi “Imigração: diálogos e novas abordagens”, tendo ocorrido entre os dias 1º
e 3 de julho de 2010, em Novo Hamburgo, RS. O texto da autora encontra-se publicado no livro
Imigração: diálogos e novas abordagens (2012), que reúne as comunicações e as conferências
do evento.

69
Imigrantes e colônias: da Pampa bonaerense à Serra Gaúcha

Rodrigues evidenciou o descaso com o problema indígena e a insta-


lação de colônias de imigrantes até meados do século XX, pois a política
criada era somente a partir da visão e dos interesses econômicos dos
colonizadores e fazendeiros, com a prática do aldeamento.6 Dessa forma,
impediam o ataque dos índios às estâncias, ao comércio de gado e aos
imigrantes alemães, que progressivamente chegavam à serra do nordes-
te da província.
Na Argentina, veremos que a relação com os índios não foi da mes-
ma maneira. Após a independência do Rio da Prata em 1810, os gover-
nantes defendiam a supremacia e a liberdade do indivíduo, inspirados
nos princípios liberais, segundo Heloísa Reichel (2005, p. 299):
É necessário destacar, porém, que a adoção de uma política orientada pelo
individualismo liberal, na qual os povos indígenas deixavam de estar subme-
tidos a uma legislação específica, vinha ao encontro do anseio dos pecuaristas,
que era a liberação de terras para a expansão pecuária.

A fronteira no contexto argentino passa ser um elemento chave de


análise na história da constituição do Estado e das próprias áreas de co-
lonização. Considera-se como fronteira, tanto no período colonial quanto
no pós-independência, a região na qual os índios viviam de maneira inde-
pendente, ou seja, fora da jurisdição colonial e, mais tarde, da nacional.
No século XIX, a região ocupada pelos índios era considerada e denomi-
nada como “deserto”, isto é, áreas disponíveis para ocupação. Por isso,
“vencer” a fronteira contra o “selvagem” foi crucial para a construção
do Estado. O Rio Salado foi visto por muito tempo como uma fronteira
natural entre os índios e os colonizadores. Na primeira metade do século:
O Salado era uma fronteira relativamente estável com os indígenas nas últi-
mas décadas da colônia. Com a independência, a valorização do gado, o livre
comércio e a crise pecuária da Banda Oriental e de Entre Rios, decorrente das
guerras nesses espaços, as estâncias bonaerenses extrapolaram a linha do Sa-
lado, espalhando-se pelo sudoeste da província até a serra de Tandil e a área
da atual Mar del Plata (MONSMA, 2011, p. 91).

6
“A prática oficial da política de aldeamentos no Rio Grande do Sul teve início no ano de 1846.
Foi uma prática constante para literalmente tirar o índio das terras que deveriam ser utilizadas
para colonização”. Evitar ataques dos índios às estâncias e garantir a presença do Estado nas
fronteiras também eram objetivos dessa estruturação. O discurso político era o de integrar os
índios à “civilização” (RODRIGUES, 2012, p. 67-68).

70
Alba Cristina Couto dos Santos Salatino

A região pampeana argentina passou a receber preocupação gover-


namental somente a partir da segunda metade do século XIX, para asse-
gurar e controlar o território nacional. Para isso, era preciso ampliar a
fronteira interna e estender coercitivamente os domínios sobre a socieda-
de indígena. Finalizada a Campanha do Deserto, as terras do sul foram
concedidas a oficiais do Exército argentino.
O Estado iria se consolidar nessas regiões a partir do exercício do
poder sobre “novos” espaços do Norte ao Sul do país, inclusive da re-
gião binacional, a Patagônia. Segundo alguns autores, que se dedicam
a pesquisar a região da Pampa úmida e Patagônia, há uma escassez em
estudos relacionados com esse avanço territorial. E aqueles encontrados
não possuem nenhuma relação com as reivindicações dos povos domina-
dos, que foram marginalizados e excluídos do processo de nacionalização,
quando não exterminados. Contudo, trabalhos recentes têm demonstra-
do preocupação com o processo de argentinizar e com os conflitos interét-
nicos (REICHEL; BANDIERI, 2011).7
“La incorporación coactiva de los territorios del sur se correspondió
entonces con las necesidades expansivas del modelo agroexportador, que
requería de la incorporación de nuevas tierras a la producción” (BLAN-
CO, 2009, p. 198).
O mapa da Figura 1 representa as áreas ainda ocupadas por indí-
genas no século XIX. A área colorida corresponde ao Sudoeste da provín-
cia de Buenos Aires, para identificar a fronteira na qual foi instalada a
imigração francesa, para a criação da colônia agrícola de Pigüé, como
veremos a seguir.

7
Tomamos como exemplo Graciela Blanco (2009), que, em seu artigo sobre Los atores sociales de
la ganadería patagônica, reitera a visão de conquistar e civilizar do Estado em relação aos índios
nas últimas décadas do século XIX. A expansão da fronteira era necessária para atender a cam-
pos de pastoreio e garantia da propriedade rural, mediante a supressão dos índios e uma reforma
do sistema prático da administração da região da Campanha (BLANCO, 2009, p. 196-197).

71
Imigrantes e colônias: da Pampa bonaerense à Serra Gaúcha

Figura 1 – Localização aproximada dos povos ameríndios, Argentina, século XIX

Fonte: Reichel (2005, p. 298).

De acordo com Heloísa Reichel (2005), a expulsão dos índios da re-


gião serrana de Buenos Aires, para a construção do Forte da Indepen-
dência, em Tandil (1823), desencadeou tal situação, rompendo, dessa
maneira, com o acordo que o governo havia firmado com os caciques da
fronteira em 1820. Estavam, então, liberadas as terras para o projeto de
colonização.
Em 1879, Julio Argentino Roca utilizou-se de um plano ofensivo
contra os indígenas que não se rendessem às tropas, expulsando ou sub-
metendo-os pelas armas. Essa política era embasada no discurso civiliza-
dor contra a barbárie, e isso legitimava tais condutas. Calculam-se mais
de 20 mil indígenas mortos e 3 mil capturados.

72
Alba Cristina Couto dos Santos Salatino

Utilizando a justificativa da busca pela civilização e contando com o apoio dos


setores agroexportadores, Roca empreendeu sua Campanha ao Deserto com
relativa facilidade. Os recursos disponíveis nas mãos do governo como telé-
grafo e a existência de um exército profissional e bem equipado, deu grande
vantagem frente às sociedades que há séculos habitavam a região, resistindo
à pressão colonizadora (POMPEU, 2011, p. 7).

As colônias: da iniciativa particular de Pigüé à


provincial de Nova Petrópolis
Na década de 1990, Hernán Otero (1999) atentava para a escassa
escrita da história sobre a imigração francesa na Argentina, sobretudo
aquelas que ocorreram na segunda metade do século XIX. Para ele, o que
havia eram histórias episódicas e pouco aprofundadas. De fato, depara-
mo-nos com pouca historiografia sobre essa imigração, tendo o referido
autor como principal expoente de consulta e diálogo.
Houve um grande fluxo interno na França, cujas zonas regionais são
de fronteiras. Otero (1999, p. 128) destaca duas características básicas
da emigração: 1) a concentração em departamentos, considerando que a
emigração não foi em todo o país; 2) a especialização da mão de obra, de
acordo com o país de origem. A partir de 1880, essa configuração muda
substancialmente com as novas zonas de emigração, principalmente na
região sudoeste do país, destacando os habitantes de Aveyron – que ti-
veram como destino os Estados Unidos da América e a Argentina –, e de
Saboia – que também tiveram como destino a Argentina.
Após essa década, a geografia da emigração voltou a se estabilizar
e incorporou mais uma zona que adquirirá importância no fluxo emigra-
tório, a Brentagne. O aumento emigratório identificado entre 1870-1880
na França se explica pelas transformações econômicas da Europa e pela
ampliação dessas zonas emigratórias.8

8
Uma revolução técnica colocou a agricultura como principal atividade econômica do mundo oci-
dental, um novo industrialismo que impulsionou o imperialismo. Portanto, a crise nesse setor,
com queda de preço, de produtos e da terra, bem como o empobrecimento de pequenos e mé-
dios proprietários, causaria profundos prejuízos. As crises agrícolas constituíram, segundo Otero
(1999), um mecanismo regulador, que afetou diretamente o cotidiano dos pequenos proprietários
rurais. “Os exemplos mais significativos são: a crise da videira entre 1853-1858 e a mais devas-
tadora, a da filoxera entre 1870-1890. Essa última afetou países como Languedoc, o País Basco
e Aveyron” (OTERO, 1999, p. 132, grifo nosso).

73
Imigrantes e colônias: da Pampa bonaerense à Serra Gaúcha

Os franceses que vieram ao sul da América, especialmente ao Rio da


Prata, são em grande medida do Oeste francês, com traços significativos
de regiões focalizadas. Uma influência importante nesses deslocamen-
tos foi a especialização regional, baseada em fatores culturais, a qual
orientou os destinos. Essas características merecem uma atenção para
compreender elementos culturais e ações praticadas pelos imigrantes no
lugar de destino. Em nosso caso, aqueles de Pigüé, pois o departamento
de Aveyron, localizado no sudoeste francês, compõe uma região com po-
pulação majoritariamente rural, essencialmente católica e mais latina.
A Argentina foi um dos países que mais recebeu imigrantes france-
ses, no final do século XIX, nesse sentido, é importante salientar moti-
vos pelos quais os imigrantes se sentiam atraídos: entre 1881-1995, as
passagens foram subsidiadas pelo governo argentino, com a presença de
um agente de imigração e o possível acesso à propriedade da terra. To-
dos esses fatores formaram um conjunto de elementos significativos para
atrair estrangeiros ao país. Os imigrantes com foco no trabalho rural
foram instalados ao sul da província de Buenos Aires e nas províncias de
Tucumán, Mendoza e Entre Ríos.
Pi-Hué ou Pigüé9 foi instalada na região montanhosa no Vale de
Curá-Malal ou Curamalán. De acordo com Margarida Alric (1947), os ín-
dios que viviam ali eram puelches pampas. O que foi caracterizado como
Batalha de Pi-Hué ocorreu bem antes da campanha do deserto da década
de 1870. Em 15 de fevereiro de 1858, as forças governamentais avança-
ram essas terras pelo arroio Pigüé, sob o comando do coronel Granada.
Nessa primeira tentativa, o triunfo foi indígena. No entanto, na década
de 1870, foram intensificadas as investidas por toda a Pampa, levando a
cabo a campanha de Julio Roca.
De uma iniciativa privada, após a vitória do governo e da “civili-
zação”, foi criada a Colônia de Pigüé, em acordo com a Lei de Terras,
de 5 de outubro de 1878.10 Com o protagonismo de dois personagens:

9
Pi-Hué: termo indígena que significa vale redondo, lugar de encontro ou onde se reúnem. Tam-
bém se encontra pino del lugar entre os significados. O fato é que, com o passar do tempo, foi
sendo chamado de Pigüé, mesmo nome do arroio que corta a cidade (ALRIC, 1947, p. 1). Lugar
de encontro é utilizado até os dias de hoje na propaganda turística da cidade.
10
“Art. 4º. Destinase igualmente a la presente ley, el producido de las tierras públicas que la provin-
cia ceda de la que se le adjudicará por esta ley. Esas tierras serán enajenadas en la misma forma
que las nacionales sin afectar la jurisdicción provincial y los derechos adquiridos por particulares”
(MONFERRAN, 1955, p. 33).

74
Alba Cristina Couto dos Santos Salatino

Eduardo Casey, argentino, filho de irlandeses, e Clemente Cabanettes,


francês de um pequeno distrito de Aveyron, recém-chegado no país. Em
1882,11 Eduardo Casey comprou a concessão de terras do coronel Angel
Plaza Montero, que não conseguiu cumprir com suas obrigações. Coronel
Montero havia recebido as terras de acordo com a lei outorgada em 29 de
outubro de 1878, que autorizava o Executivo a vender não mais que 300
hectares a ele próprio.
Deputados e senadores atenderam à proposta de compra do coronel
mediante algumas condições: a) pagar o preço fixado pela lei geral de
terras vigente, 20 pesos por hectare; b) fundar estabelecimentos de cria
e cruza de equinos para exportação; c) contribuir para o projeto de colo-
nização, criando uma sociedade anônima e radicando sessenta famílias
europeias; d) efetivar o pagamento da concessão no prazo de um ano
após a promulgação da lei, caso contrário, o contrato seria considerado
inválido; dentre outras.
A Concessão Plaza Montero, como ficou conhecida a lei, foi ao en-
contro da proposta do governo de ocupar as novas terras nacionais, no
primeiro momento, com a pecuária em grande escala e, posteriormente,
com o povoamento. Ao comprar as terras, Casey rapidamente atendeu
às exigências da concessão. De acordo com Alric (1947) e Ernesto Mon-
ferran (1955), Montero vendeu as terras a um sindicato britânico, o qual
representava Eduardo Casey e o inglês Runciman. Quando se tornaram
donos dessas terras, Casey era o principal acionista e diretor. Logo, eles
criaram a companhia de colonização La Curamalan.
Interessado em fazer uma colônia francesa, Clemente Cabanettes
foi conhecer as terras do “deserto,” para execução do seu plano, e dizem
que foi aí que ele conheceu Eduardo Casey. Outros afirmam que o encon-
tro dos dois foi em Buenos Aires. O fato é que Cabanettes confiou seus
projetos a Casey e, em troca, ele lhe ofereceu a venda de uma parte de
suas terras para tal fim. Clemente Cabanettes aceitou o negócio. Com a
venda desses lotes, fundava-se ali uma nova colônia. A primeira publica-
ção oficial sobre a criação da colônia data de 9 de outubro de 1883.

11
Nas bibliografias consultadas, encontramos a data de 1882. No tomo II sobre a formação das
cidades da província de Buenos Aires, encontramos a data de 1881 (ARGENTINA, 1895).

75
Imigrantes e colônias: da Pampa bonaerense à Serra Gaúcha

Francisco Issaly (1993), o terceiro nome que é referência sobre a


fundação da colônia, foi o agente colonizador em território francês. Em
contato direto com Cabanettes, diretor da colônia, ele organizou a vinda
das primeiras quarenta famílias aveyronesas para o sudoeste de Buenos
Aires. Viajaram a bordo do navio Belgrano de Rodez a Buenos Aires e
chegaram em Pigüé em 4 de dezembro de 1884.
Para instalar ali uma colônia agrícola, Cabanettes contou com o
subsídio do Estado12 e da companhia La Curamalan, a qual lhe facilitava
o capital para preparar a recepção aos novos imigrantes, conforme segue:
El convenio entre Casey y Cabanettes consistía en la venta de 10 leguas de
campo, tomando por base la línea Noroeste, para formar la Colonia, al precio
de diez y seis pesos la hectárea a pagar en varios plazos. De inmediato esta-
bleció en Pigüé la administración de la colonia, tratando de que se preparara
alojamientos para cuando llegaran los colonos (ALRIC, 1947, p. 12).

Ao desembarcar em Buenos Aires, alojaram-se no Hotel do Imigran-


te, na cidade de Buenos Aires, no qual poderiam permanecer até cinco
dias gratuitamente. Dali partiram, provavelmente de trem,13 para os alo-
jamentos que Cabanettes organizara, os quais seriam as casas provisó-
rias prometidas, em madeira e telhado de zinco. Cada família14 poderia
receber uma concessão de 50 a 100 hectares, desde que cumprisse os
seguintes critérios: “1º ser cultivador, de buena vida y costumbres. 2º
No haber sido penado en Francia. 3º Poseer un capital efectivo de tres
mil francos, al menos y la mitad para las concesiones de 50 hectáreas”
(MONFERRAN, 1955, p. 51-52). Estava criada a Colônia de Pigüé, com
160 pessoas.15
Logo Cabanettes construiu, no centro da colônia, um templo católi-
co, um depósito para os agricultores armazenarem suas colheitas e uma

12
O transporte da França para a Argentina foi por conta dos colonos, tendo suas passagens bara-
teadas mediante parceria firmada com as companhias de viagem. O transporte de Buenos Aires
até a colônia, os materiais agrícolas e as casas provisórias foram gratuitos (ISSALY, 1993, p. 23).
13
A empresa Ferrocarril Sud atendeu à solicitação de Casey para que se fizesse, ali em suas ter-
ras, uma estação, aquela que ficaria no centro da Colônia de Pigüé. A inauguração foi no mesmo
ano, em 1884.
14
Era considerada como família toda relação de duas pessoas que se declaravam como tal, ca-
sados ou não (ISSALY, 1993, p. 22). É importante dizer que, no censo de 1895, a maioria dos
franceses de Pigüé declararam que sabiam ler e escrever (ARGENTINA, 1895).
15
A bibliografia sobre a Colônia de Pigüé encontrada carrega, em grande medida, as marcas da
historiografia do seu tempo, isto é, ainda que se procure contar a história dos anos iniciais da
colônia inserindo a figura do índio, sua escrita tem as marcas da ideia da “civilização” e do selva-
gem, justificando a ocupação do “deserto”.

76
Alba Cristina Couto dos Santos Salatino

escola. Julio Huret, em uma de suas viagens, esteve ao sul de Buenos Ai-
res e passou pela colônia de aveyroneses em Pigüé. Ele conta que as ter-
ras abrangiam 25 mil hectares e, mais tarde, 50 mil. Para ele, era quase
uma cidade francesa, com casas no estilo francês e nomes franceses es-
tampados nos armazéns (FERNÁNDEZ, 1999, p. 27). Huret evidenciou a
presença francesa inscrita em pequenos detalhes da vida na colônia, ha-
via, para ele, a cultura francesa preservada naquele recanto bonaerense.
Para obter a propriedade da terra, os imigrantes deveriam pagar
50% do total da colheita, durante seis anos, e por isso deveriam semear
logo. Eles plantavam cereais, majoritariamente o trigo. Nos primeiros
anos, ocorreu tudo como se imaginara, sempre de olhos bem abertos a
“invasões” e roubos dos indígenas. No final da década 1880 e no início
de 1890, o cenário mudou. Foram anos muito difíceis para a colheita, o
clima serrano foi severo. Precisavam pensar numa solução que suprisse
os danos causados pelo granizo nas plantações, que não foram poucos.
Dessa necessidade, um grupo de 53 pessoas teve a ideia de criar uma so-
ciedade mútua, a qual foi registrada no ano de 1898 (SALATINO, 2017).
Essa sociedade recebeu o nome de El Progreso Agrícola de Pigüé: So-
ciedade Cooperativa Mútua de Seguros Agrícolas y Anezos Ltda. Essa foi
a primeira experiência de uma cooperativa agrária na Argentina, criada
a partir de experiências associativas e cooperativas francesas. A coopera-
tiva – existente até os dias de hoje – influenciou outros a unirem esforços
mútuos, principalmente no meio rural, e a constituírem cooperativas. A
El Progreso atuou também como uma linha de crédito para seus associa-
dos. Clemente Cabanettes também atuou como um dos sócios fundadores
e foi um grande fomentador do sistema cooperativo na região. Por meio
dessa iniciativa, a colônia foi ganhando cada vez mais visibilidade na
organização social.
Ao contrário da imigração francesa, a alemã tem uma literatura ex-
pressiva. No entanto, os estudos de caso sempre podem contribuir nas
reflexões, sobretudo da ideia de homogeneidade do processo imigratório.
Os alemães chegaram no Rio Grande do Sul no ano 1824, para fundar a
Colônia de São Leopoldo. Em sua tese, Marcos Tramontini (2000) mos-
trou a disputa por terras desde a má distribuição até a demarcação dos
lotes da Real Feitoria – às margens do Rio dos Sinos, a qual deu origem
à Colônia de São Leopoldo – para os colonos. Essas falhas, por muitas

77
Imigrantes e colônias: da Pampa bonaerense à Serra Gaúcha

vezes, tocaram em propriedades privadas. As irregularidades seguiram


até a década de 1850 e causaram muitas confusões.
Ao contrapor a ideia de vitimização e ingenuidade dos colonos, Tra-
montini (2000, p. 64-66) evidenciou a resposta do governo brasileiro às
críticas referentes ao possível não cumprimento das cláusulas do proces-
so imigratório. A confusão de propriedade foi instalada, segundo o go-
verno, pelas exigências dos colonos, que não queriam ser estabelecidos
próximos às ameaças e aos ataques dos índios. Além disso, eles queriam
escolher lugar perto uns dos outros.
A Colônia Provincial de Nova Petrópolis foi criada como uma conti-
nuação da Colônia de São Leopoldo, rumo ao norte da Real Feitoria. Pre-
dominantemente alemã, ela foi fundada no ano de 1858, pelo presidente
da Província, Angelo Muniz Ferraz.16 Helga Piccolo (1989) mostrou que a
Lei Geral nº 514, de 28 de outubro de 1848, assegurou a criação da Colô-
nia de Nova Petrópolis, pois, no artigo 16 do Capítulo III, concedia a cada
província do Império 36 léguas quadradas de terras para colonizar. Em
consequência, a partir de 1849, a província de São Pedro do Rio Grande
do Sul teve suas próprias iniciativas.
Entretanto, outra lei, antes da criação dessa colônia, mudou verti-
ginosamente as condições de chegada e estabelecimento dos colonos, a
Lei nº 304, de 30 de novembro de 1854. Para citar algumas mudanças
dessa lei, destacamos: a) as terras deveriam ser pagas a um preço míni-
mo de 300$000, por lote de 100 mil braças; b) a compra poderia ser paga
a prazo, sem exceder 5 anos; c) o presidente da província deveria zelar
pela entrada de imigrantes que assegurasse a criação de colônias agrí-
colas; d) quanto ao transporte, o presidente ficava autorizado a adiantar
auxílio de passagem aos colonos até 50$000, sendo este último obrigado
a reembolsar a quantia no prazo de 5 anos; e) considerava-se despesa
gratuita ao colono apenas a acomodação indispensável na província até
sua chegada ao destino da colônia. Enquadrando-se nessa legislação e
também na Lei Geral nº 514, os imigrantes destinados a Nova Petrópolis
não tiveram os mesmos subsídios oferecidos, pelo governo imperial, às
antigas colônias (PICCOLO, 1989, p. 18-25).

16
A imigração no Brasil teve o patrocínio do governo imperial, do governo provincial e de inicia-
tivas particulares. Registramos, em trabalho anterior (SALATINO, 2017), que essa colônia não
recebeu subsídios do Estado. Com o avançar da pesquisa e uma leitura mais atenta na literatura
específica, esclarecemos e corrigimos tal dado.

78
Alba Cristina Couto dos Santos Salatino

De acordo com Angelo Muniz Ferraz, essa colônia provincial foi es-
tabelecida para servir como um ponto intermediário entre Porto Alegre e
os Campos de Cima da Serra. A colônia, para ele, cumpria o papel de in-
teriorização do povoamento no sul do Brasil. A sua criação teve também
objetivos econômicos, que visavam integrar a região serrana aos merca-
dos da região metropolitana. Entre os Rios Cadeia e Caí, aos fundos da
Linha Nova17 (Colônia de São Leopoldo), teremos a mais linda colônia,
próxima às linhas do Café e do Hortêncio, registrou o presidente. Pela di-
mensão e pelo terreno, nomeou Nova Petrópolis (PICCOLO, 1989, p. 50).
O primeiro grupo de imigrantes foi composto por 80 pessoas estran-
geiras. De acordo com Helga Piccolo (1989), os imigrantes que Nova Pe-
trópolis recebeu foram diversos, inclusive o elemento nacional, o qual
nem sempre recebeu o apoio e as vantagens dadas ao elemento estrangei-
ro. Porém, os primeiros grupos podem ser destacados como os lavradores
originários da Pomerânia e da Saxônia, em grande medida, professavam
a fé protestante. Da região renana e dos territórios anexados pela Prús-
sia, veio uma população majoritariamente católica, que vivia da pequena
propriedade rural e da prática da agricultura familiar.
Segundo Schallenberger (2012, p. 16-17), essa população era mar-
cada pelo conservadorismo agrário, o que favoreceu uma organização
social caracterizada e constituída pelas raízes culturais plantadas nas
tradições de comunidades rurais e baseadas nos princípios ético-religio-
sos do catolicismo, concebendo assim uma visão romântica da sociedade.
As questões do campo ganhavam a Europa. A industrialização tardia e os
problemas fronteiriços nos quais aquela região se inseria – entre França,
Bélgica e Suíça – contribuíram ainda mais para essa tensão. Em meio a
esses conflitos, cristãos encontraram um novo campo de ação e se dedi-
caram a essas questões.
Assim como os imigrantes franceses da Argentina, esses alemães
também viram a crise agrícola e a do campo chegar na Europa. Nesse
sentido, eles podem também ter tido algum conhecimento da crescente
atuação de líderes religiosos no campo. Em que pese a França, a Bélgica
17
Linha ou picada são termos originados a partir das primeiras trilhas de penetração na mata
virgem da colônia. Quando se abria uma clareira para ali erguer sua moradia, configurava-se
uma nova propriedade, e o termo foi gerado da própria estratégia de ocupação adotada. Em
sua acepção original, linha nada mais significava do que o desmatamento, a trilha de acesso às
novas propriedades (RAMBO, 2011, p. 15-16).

79
Imigrantes e colônias: da Pampa bonaerense à Serra Gaúcha

e a Alemanha como os países percursores de associações e de caixas de


crédito rurais confessionais.
No Rio Grande do Sul, a questão da terra era mais conflituosa do
que em Buenos Aires. Enquanto os imigrantes de Pigüé recebiam seus
lotes de terra sem grandes problemas, em Nova Petrópolis, eles enfren-
tavam (ainda) conflitos e disputas, mencionadas anteriormente sobre a
Colônia de São Leopoldo. A área destinada para instalação da nova colô-
nia alemã, no Noroeste do estado, não era totalmente desocupada ou sem
proprietários, ainda que o processo de aldeamento já tivesse iniciado. As
terras dessa região não eram muito valorizadas, mas já havia concessões
para luso-brasileiros às margens dos Rios Taquari e Caí. Um exemplo é a
fazenda Pirajá, da família Perez, era uma dessas concessões. Mais tarde,
as terras da fazenda foram vendidas para os colonos alemães (PICCOLO,
1989, p. 51-52).
As primeiras linhas abertas e ocupadas na Nova Petrópolis ainda
no ano de 1858 foram: Olinda e Imperial. No ano de 1859, foram abertas
mais duas, a linha Christina e a Sebastopol, e assim foram crescendo a
cada ano. Após a instalação, os colonos tiveram muitas dificuldades: na
técnica do plantio, na comercialização dos seus produtos e no próprio
abastecimento da colônia, essas últimas por conta da comunicação pre-
cária dos meios naturais, para que ocorresse o escoamento da produção.
Frequentemente, a colônia enfrentava más condições de navegabilidade
nos rios que a cercavam.
Tais problemas assolavam a economia da região e se agravavam
com a falta de estradas que dessem acesso a Porto Alegre.18 Era preciso
pensar em estratégias para melhorar essa situação. Nos Relatórios da
Administração das Colônias da Província de São Pedro do Rio Grande
do Sul,19 foram mencionadas as dívidas dos colonos, e, a partir da década
de 1870, Nova Petrópolis figurava entre as colônias que mais deviam à
província e que, por consequência, tinham menor desenvolvimento.

18
O governo da província ficaria responsável, de acordo com o art. 3 da Lei nº 514, pela demar-
cação de estradas, igrejas, portos, cemitérios e outras servidões públicas, as quais achasse
necessário. Ao que tudo indica, o presidente da província não achou essas demarcações tão
necessárias assim.
19
Acervo Especial da Biblioteca Central Irmão José Otão – Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul.

80
Alba Cristina Couto dos Santos Salatino

Com lotes de aproximadamente 50 hectares, o cultivo era diversi-


ficado, com batata doce, mandioca e feijão, entre outros produtos, além
da criação de porcos. Outros grupos étnicos chegaram posteriormente,
em pequeno número: franceses, poloneses dinamarqueses, holandeses e,
após 1875, italianos. Em grande medida, predominava a pequena pro-
priedade. Vendia-se apenas o excedente, ainda assim, o contato direto
com o lucro e o capital não era do produtor rural, e sim do comerciante,
como evidenciou Sandra Pesavento (1983). Os produtos que saíam da
cidade passavam por Novo Hamburgo, São Sebastião do Caí e São Leo-
poldo, até Porto Alegre, tendo, dessa maneira, um agente intermediário
durante todo esse processo. Esse foi o principal motivo para criação de
uma associação-cooperativa no final da década de 1890, com a presença
de religiosos jesuítas na colônia.
O jesuíta Theodor Amstad e o senhor Hugo Metzler apresentaram a
ideia de criar uma alternativa econômica para os agricultores, no mesmo
momento de criação da Associação Rio-Grandense de Agricultores, no
Congresso Católico de 1899. Após o discurso de Amstad, a Sociedade Co-
operativa de Economia e Empréstimos de Nova Petrópolis foi constituída
por dezenove membros. O próprio Amstad redigiu a ata20 em alemão, e
nela se refere à caixa pelo nome de Caixa de Economia e Empréstimo
Amstad, a Sparkasse Amstad. A Caixa de Economia se inseria, essencial-
mente, num espírito comunitário. Essa forma de cooperação foi uma das
mais expressivas no Rio Grande do Sul e a primeira no ramo do crédito
do Brasil.
Oficializada no ano de 1902, a Associação de Agricultores teve como
finalidade atender as questões sociais e religiosas, enquanto a coopera-
tiva atendia as questões econômicas dos imigrantes, como um braço da
associação. Mediante a atividade da Sparkasse Amstad, os líderes da as-
sociação acreditavam que poderiam dar conta da produção, da compra e
da venda dos produtos agrícolas, sem a presença do comerciante. Parece
que deu certo, pois ainda hoje a cooperativa é atuante.

20
A transcrição da ata da fundação – Relação dos sócios fundadores – encontra-se na dissertação
de Leonel Pedro Cerutti, História do cooperativismo de crédito: estudo comparativo entre Rio
Grande do Sul e República Argentina (2000, p. 57-58). Após várias denominações e transforma-
ções na legislação das cooperativas financeiras, a então Caixa Rural é conhecida atualmente
como Sicredi Pioneira/RS, integrando o Sistema de Crédito Cooperativo, o qual atende, pelo
menos, 21 estados brasileiros.

81
Imigrantes e colônias: da Pampa bonaerense à Serra Gaúcha

Mesmo a colônia de Nova Petrópolis tendo recebido diferentes gru-


pos étnicos, a cultura que prevaleceu foi a alemã, demonstrada na sua
arquitetura e em seus costumes. A religião é outro elemento que chama
atenção. Na colônia de Pigüé, a manifestação de fé católica foi majori-
tária, inclusive, em meio a uma forte política anticlerical da Argentina,
já em Nova Petrópolis, foi preciso aprender a conviver com duas mani-
festações religiosas, ainda que cristãs, o catolicismo (a religião oficial do
governo imperial) e o protestantismo (um culto tolerado pelo governo),
inclusive no interior das citadas associações.

Considerações finais
A propaganda, aliada a uma política de ocupação, ao embranque-
cimento e à mão de obra livre, tornou o processo migratório algo que
lograria algum sucesso, para o Estado e para o imigrante, sobretudo para
aqueles que vieram com algum subsídio. Veremos que as áreas nas quais
foram instaladas as colônias francesa e alemã, em específico, tiveram ob-
jetivos de ocupação que se aproximavam em relação ao alargamento da
fronteira interna. Os imigrantes tiveram que lidar com as adversidades
do novo mundo e suas próprias expectativas – imprimindo, em menor ou
maior grau, seus costumes e suas tradições –, sem perder de vista suas
obrigações e a expectativa do Estado de ocupar e produzir.
Há muitas semelhanças no processo imigratório para os dois países,
em especial para cada região. No Rio Grande do Sul, assim como em Bue-
nos Aires, tem-se uma colonização que atende à organização do espaço
nacional em primeiro lugar, isto é, o Estado utilizou a colonização como
fronteira (seja na expansão da fronteira interna, seja para assegurar e
ampliar a fronteira nacional), diante de eminentes tensões (inclusive
depois de instalados), assim como de invasões platinas (no caso do Rio
Grande do Sul).
A Colônia de Pigüé foi criada poucos anos depois da principal inves-
tida militar contra as populações ameríndias. Foi instalada numa região
que não estava desocupada, mas abandonada pelo Estado. Também, con-
sideremos que a ocupação na Argentina ocorria, primeiro, com o gado
e/ou a agropecuária, demarcando, dessa forma, a fronteira que estava
sendo alargada para além do Rio Salado. Na Colônia de Nova Petrópolis,

82
Alba Cristina Couto dos Santos Salatino

não ocorreu essa ocupação. Ela foi criada a partir das linhas ou picadas
já abertas quando da expansão para o norte da Colônia de São Leopoldo.
Em ambas as colônias, houve uma preocupação de não entrar em
conflito com os grandes estancieiros na disputa da terra, pela própria lo-
calidade onde foram instaladas. Rodeados de morros, a produção ficaria
limitada a agricultura e pequenas chácaras, atendendo as necessidades
agrícolas dos governos. Sobre os subsídios recebidos para o transporte
desde o lugar de origem até a América, houve diferenças, mas aquele da
província até a colônia teve o mesmo tratamento para todos os imigran-
tes.
Em ambos os casos, os colonos tiveram o compromisso de pagar pela
terra dentro de um prazo específico. Tal fato, ao lado do pagamento de
suas próprias passagens, justifica, de certa maneira, o discurso que afir-
ma a realização dessas colônias somente a partir de iniciativas particu-
lares e espontâneas.
A reprodução de costumes agrícolas nem sempre foi útil em terras
do sul da América. Deve-se admitir a necessidade de observar o clima, o
solo, as rochas e as novas técnicas para lidar com a nova vida, ações que
não são premeditadas. O Estado, por sua vez, após o incentivo e a propa-
ganda de colonizar, não foi tão presente como parecia ser nessas áreas,
deixando, muitas vezes, os problemas se solucionarem “sozinhos”.
A prática agrícola, assim como a organização do espaço colonial, foi
se construindo numa fusão de conhecimentos, locais e tradicionais. O
cooperativismo foi uma estratégia econômica para atender as demandas
agrícolas, mas também atendeu os investimentos futuros, nos emprésti-
mos para construções, nas estradas, na concretização do desenvolvimen-
to da colônia.
A singularidade das colônias em relação ao mutualismo e ao coo-
perativismo rural se deve à expansão sistemática dessas organizações,
após 1880, na Europa, mas também aos indivíduos que compartilharam
conhecimentos comuns sobre o tema – empregados quando os desafios da
nova terra se fizeram presentes. Tais informações auxiliaram significati-
vamente no cumprimento dos compromissos contratuais, no desenvolvi-
mento local e no fortalecimento da identidade étnica.

83
Imigrantes e colônias: da Pampa bonaerense à Serra Gaúcha

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Imigrantes e colônias: da Pampa bonaerense à Serra Gaúcha

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86
Rhuan Targino Zaleski Trindade

Chłopi, os camponeses e
a imigração: as teorias do
campesinato e os colonos
poloneses no Paraná e no
Rio Grande do Sul
Rhuan Targino Zaleski Trindade

E
m polonês, a palavra Chłop (no plural Chłopi), entre outras coisas,
designa o “camponês”, personagem consagrado na literatura polo-
nesa do escritor Wladyslaw Reymont, o qual retrata, em diferentes
títulos, os habitantes do campo polonês no século XIX. São em geral estes
camponeses que, diante das inúmeras dificuldades de seu país, imigram
para o Brasil e, neste novo ambiente, constituem uma figura central da
paisagem rural do país.
A imigração e a colonização europeias no Brasil fazem parte do pro-
cesso de ocupação do território brasileiro, da formação da sua população
e da paisagem rural, em especial dos estados sulinos, os quais mais for-
temente foram atingidos por esse fenômeno. A imigração de poloneses
integra esse processo mais amplo, sendo importante no Paraná e Rio
Grande do Sul. Nesse sentido, se considerarmos, a partir de Wachowicz
(1974), que 95% dos imigrantes poloneses eram camponeses em busca

87
Chłopi, os camponeses e a imigração: as teorias do campesinato e os colonos poloneses no...

de terras, podemos definir esta imigração como essencialmente rural.


A estrutura das colônias constituídas por poloneses no Brasil, em geral,
segue o padrão da ocupação agrícola, voltada à distribuição de terras
para o estabelecimento de agricultores que habitassem em seus lotes e
produzissem alimentos.
Nosso objetivo fundamental é,1 partindo da bibliografia clássica
sobre a imigração polonesa no Brasil, no Paraná (WACHOWICZ, 1974;
GLUCHOWSKI, 2005) e no Rio Grande do Sul (GARDOLINSKI, 1958;
STAWINSKI, 1976), delinear a condição camponesa dos colonos polone-
ses que chegaram e se instalaram no Brasil, pensando a constituição de
uma sociedade camponesa baseada em aspectos definidores desta sua
demarcação categorial, formulados a partir da economia, sociologia e an-
tropologia.2 Nossos apontamentos são exemplificados com os casos dos
colonos poloneses da colônia de Guarani das Missões, no Rio Grande do
Sul (WENDLING, 1971; MARMILICZ, 1996; POLANCZYK, 2010), e da
colônia Araucária, no Paraná (KERSTEN, 1983).
Para tanto, partimos de algumas teorias do campesinato capazes de
fornecer subsídios para identificar a constituição daquelas comunidades
enquanto camponesas, com comportamentos cultural e econômico espe-
cíficos. Para este estudo comparativo, preocupamo-nos com o período dos
primórdios da imigração, o assentamento inicial dos imigrantes, o seu
estabelecimento e, depois, com os processos de desarticulação da comu-
nidade camponesa com a modernização da agricultura3 e a urbanização,
que modificam as estruturas internas e externas dos colonos.
Não é nosso objetivo reificar a categoria camponês ou reformulá-la,
para atender às nossas exigências metodológicas, mas pensar o termo
enquanto nomeação de um determinado fenômeno, clarificando o que se
1
Este trabalho é uma versão ampliada e revisada do texto publicado em Trindade (2014).
2
Para outro trabalho futuro, pensamos incluir uma comparação entre a conformação do campe-
sinato e das colônias polonesas no sul do Brasil com a constituição dos camponeses poloneses
pré-imigração, no contexto europeu.
3
Processo iniciado com o fim da Segunda Guerra Mundial no Brasil que nos anos 1960, com o
regime militar, ganha impulso e, entre outras consequências, promove a expansão da agricul-
tura mecanizada, utilização de insumos, a produção monocultora voltada ao mercado externo,
em que o Rio Grande do Sul tem proeminência inicial através da cultura da soja. Este projeto
interfere efetivamente na condição camponesa dos agricultores e muda suas relações com a
sociedade englobante, nesse contexto, o termo camponês mudaria de concepção. Entre as con-
sequências sociais e ecológicas da modernização está a concentração de terras, a expulsão de
mão de obra excedente para as cidades (êxodo rural) e o oeste brasileiro (marcha para o oeste),
além do aumento da poluição e desmatamento.

88
Rhuan Targino Zaleski Trindade

quer dizer quando se utiliza esta expressão e compreendendo a necessi-


dade de aproximar os estudos históricos, em especial os ligados à questão
da imigração e da colonização europeias, da discussão acerca das noções
de camponês e sociedades camponesas, a fim de evitar resumir à ocupa-
ção de pequeno agricultor, automaticamente, a palavra camponês.

As perspectivas das ciências sociais sobre


o campesinato
Em primeiro lugar, o termo camponês e campesinato:
[...] não é, em sua origem, um conceito cientificamente construído mas, sim,
uma generalização oriunda do sentido comum que, a posteriori, os que pes-
quisam as sociedades humanas tentam transformar em conceito, é preciso
sempre recordar que aquilo que é aparentemente dado ou evidente na noção
de campesinato pode ser altamente ilusório (CARDOSO, 2002, p. 31).

Cardoso (2002) aponta para a utilização, pelo menos na História, do


conceito para diferentes espaços e tempos, quais sejam, realidades histó-
ricas heterogêneas e, sendo assim, necessitariam de um esclarecimento.
Portanto, é o “‘Campesinato’ [...] noção vaga, ampla demais, carregada de
estereótipos e de lugares-comuns culturais e políticos; concomitantemen-
te, é impossível abandonar tal noção, por ser idéia socialmente difundida
desde muito antes do advento das ciências sociais” (2002, p. 35).
Marx (1969), assim como boa parte dos seguidores de sua teoria,
aponta que os camponeses seriam parte da primeira forma de divisão
social do trabalho, mas, do ponto de vista da inserção política, o campo-
nês seria conservador, um “saco de batatas” incapaz de se representar. O
autor reconsidera sua posição posteriormente, segundo apresentado por
Shanin (1983). As sociedades camponesas, de acordo com Marx, estariam
na lógica do capitalismo, mas o modo de vida camponês seria uma con-
tradição, em razão da não separação dos vendedores da força de trabalho
dos seus meios de produção e de uma reprodução simples do capital dife-
rente com a presença do autoconsumo. Para Marx, com o desenvolvimen-
to do modo de produção capitalista, essa contradição iria desaparecer.
Seguida por muitos autores, principalmente no Brasil na década de 1970
(WANDERLEY, 2003), a perspectiva marxiana e marxista pode ser útil

89
Chłopi, os camponeses e a imigração: as teorias do campesinato e os colonos poloneses no...

para explicar os camponeses numa sociedade em transição para o capita-


lismo, como era o Brasil no período dos grandes fluxos migratórios, con-
tudo, podemos pensar o campesinato a partir de alguns outros aspectos
que denotam completude maior da noção, uma vez que elementos como
autonomia, comunidade, cultura (etnia e religião), família e acesso à ter-
ra são dados constituintes dessa categoria.
Chayanov (1974) tenta refletir sobre o modo de vida camponês sob
uma lógica própria, diferente do capitalismo, baseada num equilíbrio da
satisfação das exigências da demanda familiar e a penosidade das tare-
fas (autoexploração do trabalho familiar), de maneira que o trabalho “a
mais”, ou acima da necessidade da sobrevivência, não teria sentido. Para
Chayanov, o objetivo do camponês é a satisfação das suas necessidades
e não o lucro,4 sendo, portanto, o limite da produção de bens a superex-
ploração da força de trabalho familiar, ou seja, ao serem cumpridas as
necessidades, cada unidade adicional de trabalho passaria a ter, para a
família, valor decrescente.
Alguns autores apoiam-se no pressuposto da existência de uma so-
ciedade camponesa relativamente autônoma. Wolf (1976) parte de uma
perspectiva mais antropológica, buscando estabelecer modelos embasa-
dos pela análise de características comuns entre os camponeses, como a
importância das estruturas externas identificando a vinculação da so-
ciedade camponesa e sua lógica interna com a sociedade envolvente e as
cidades, com as quais os camponeses estabelecem, ao longo do tempo,
relações de subordinação, que implica na conformação de estratégias de
sobrevivência diferentes, de acordo com sua lógica de inserção social.
Dentro desse contexto, a cultura parece ser importante, uma vez que não
há um resumo da produção para as necessidades físicas da família, mas
a constituição de fundos (de manutenção e cerimoniais), que dizem res-
peito a uma sociedade camponesa mais complexa. Tais acepções permi-
tem-nos pensar os colonos poloneses também sob o viés cultural, o qual
se mescla com o caráter étnico-religioso.
Mendras (1978, p. 14-15) atenta para cinco traços que definem a
sociedade camponesa: a autonomia relativa das coletividades campone-
sas; a importância estrutural do grupo doméstico; um sistema econômico
4
Não que o camponês seja conservador ao ponto de não “querer ganhar dinheiro”, mas a sua
reprodução não necessariamente pressupõe a espiral do modo de produção capitalista.

90
Rhuan Targino Zaleski Trindade

de autarquia relativa, que não diferencia consumo e produção e tem re-


lações com a economia envolvente; uma coletividade baseada no inter-
conhecimento; e relações com a sociedade envolvente mediadas por no-
táveis (padres, comerciantes, intelectuais, profissionais liberais, líderes,
etc.), permitindo uma autonomia relativa da comunidade camponesa.
Os colonos/camponeses devem ser entendidos como sociedades parciais
com culturas parciais, que se relacionam com uma sociedade englobante
também de modo parcial e incompleto nas suas pertinências econômicas
e comerciais.
Confirmadas estas posições, cabe pensar, portanto, algum “limite”
analítico, posto que, como Cardoso (2002) apontou, campesinato nomeia
um processo cambiante ao longo do tempo. Os mercados são um bom
argumento para se compreender o que(m) são os camponeses, porquanto
a relação da sociedade camponesa com a sociedade englobante pode ser
identificada de duas maneiras: uma pela venda de mercadorias, daí a
importância dos mercados; e/ou por códigos da sociedade englobante in-
correndo na vida cultural camponesa.
Conforme Schneider (2010, p. 40), a vinculação com o mercado, a
intensificação e a complexificação da divisão social do trabalho são ca-
pazes de definir, por exemplo, a separação de camponês da categoria de
agricultor familiar, este último aparece quando há “[...] o maior envol-
vimento social, econômico, e mercantil que torna [o][...] mais integrado
e mais dependente em relação à sociedade que o engloba”. Ellis (1988,
p. 4) alerta que os camponeses são “[...] apenas parcialmente integrados
a mercados imperfeitos”, tendo algum grau de mercantilização, entre-
tanto, Schneider (2010) deixa claro que esta mercantilização não deve
ser o índice primeiro da reprodução social do camponês, posto que, se é
este o caso, agricultor familiar seria o termo corrente. Ploeg (2006, p. 5)
também assevera que o modo de produção camponês é mais autônomo e
historicamente garantido, contudo, esta autonomia não elimina formas
de subordinação e dependência.
Ao longo da exposição, tentaremos esclarecer qual a medida da vin-
culação a mercados que os colonos poloneses possuem de acordo com a
bibliografia, identificando os graus de autonomia relativa deles. No en-
tanto, Max Weber (1974) já afirmara que, na América, ao contrário da
Europa, o mercado foi anterior ao campesinato. Isso significa reconhecer

91
Chłopi, os camponeses e a imigração: as teorias do campesinato e os colonos poloneses no...

que, mesmo por meio de uma economia de excedentes, o colono sempre


produziu para o mercado, ao contrário do camponês, cuja característica
é a produção para o autoconsumo. Adiantamos, não obstante, segundo o
que destaca Woortmann (1995, p. 58), “[...] o envolvimento com o mercado,
que caracterizou os colonos do Brasil meridional, só muito recentemente
afetou sua orientação holística”, não sendo fundamental para destituí-lo
de sua característica camponesa na fase inicial da colonização. Enten-
dendo tais características centrais de acordo com a bibliografia, partimos
para a especificação, pensando uma expressão regional, o colono.
O colono, no Brasil, refere-se a uma situação específica, “[...] no seu
significado mais geral a categoria colono é usada como sinônimo de agri-
cultor de origem européia, e sua gênese remonta ao processo histórico da
colonização” (SEYFERTH, 2000, p. 38). Além da condição camponesa,
há um elemento étnico irredutível, portanto é também uma categoria
étnica, alterada no momento em que o imigrante se torna efetivamente
colono, apropriando-se da designação oficial como categoria definidora de
uma identidade social (SEYFERTH, 2009).
Wolf (2003, p. 138), ao tratar dos tipos de campesinato, identifica o
“[...] representado pelos colonos estrangeiros que introduziram mudan-
ças tecnológicas no sul do Brasil”, caracterizado pela presença em áreas
de floresta; com a colonização promovida pelos governos centrais para
criar amortecedores contra pressões militares de fora e movimentos lo-
cais de autonomia; os colonos viram-se instalados numa fronteira eco-
lógica cultural; houve um período inicial de cultura e aculturação, que
seguiu uma integração crescente no mercado nacional por meio da venda
do produtor para o mercado.
Além de saber que esta categoria tem tais especificidades, devemos
tratar de outra implicação que torna ainda mais intrincada a análise dos
“colonos”, posto que estamos diante de uma nomeação identitária, a qual
pressupõe um trabalho de (re)criação de representações sobre o mundo
num espaço de lutas simbólicas para enunciação do real (BOURDIEU,
1989), nas quais os dominantes tem o privilégio reduzir sua verdade ob-
jetiva à sua intenção subjetiva, ou seja, controlar a produção de sua ima-
gem, enquanto os dominados não.
Para Bourdieu (1977, p. 4, tradução nossa),

92
Rhuan Targino Zaleski Trindade

[...] entre todos os grupos dominados, a classe camponesa, sem dúvidas porque
ela nunca se deu ou nunca lhe deram o contra-discurso capaz de a constituir
em sujeito de sua própria verdade, é o exemplo por excelência da classe objeto,
constrangida de formar sua própria subjetividade a partir da sua objetivação
[...].5

Não podemos deixar de lado a importância da atribuição categorial


interna dos camponeses poloneses enquanto colonos, ao criar um “nós”,
os colonos, autoafirmando-se desta maneira, atrelados a características
abonadoras, notadamente à noção de pioneiro/civilizador, e os “outros”,
nomeadamente os caboclos ou nacionais6 (SEYFERTH, 1993), os quais
eram caracterizados negativamente (preguiçosos, desorganizados, etc.),
estabelecendo-se, portanto, fronteiras identitárias num contexto intera-
cional específico, em que permeavam europeus e “nativos”.7
Tendo tais assertivas claras, passamos à compreensão mais ampla
da constituição dos colonos. A literatura que aborda a temática da coloni-
zação associada à da imigração, baseada numa política estatal planejada
e apoiada pela iniciativa privada, é bastante antiga, alguns autores que
escreveram nas décadas de 1950 e 1960 foram relidos por pesquisadores
mais recentes, dos quais existem congruências nas ideias propostas.
Sobre a colonização europeia, Waibel (1958, p. 206) descreve: “[...]
durante 120 anos, uma classe de pequenos proprietários rurais de ori-
gem europeia está tomando posse de terras e estabelecendo comunidades
próprias”. Conforme o autor, o Brasil precisava de pequenos proprietá-
rios livres (brancos), que cultivassem terras de mata com apoio das suas
famílias, sem interesse no uso da mão de obra escrava ou na criação (in-
tensiva) de gado, para fornecer gêneros alimentícios. Esse processo teria

5
Do original: “Entre tous les groupes domines, la classe paysanne, sans doute parce qu’elle ne
s’est jamais donné ou qu’on ne lui a jamais donné le contre-discours capable de la constituer em
sujet de sa propre vérité, est l’example par excellence de la classe objet, contrainte de former sa
propre subjectivité à partir de son objectivation”.
6
Termo de definições escorregadias (SILVA, 2014), necessitando de análise nos seus respectivos
contextos, pois há ingerências raciais, econômicas e sociais. Serão entendidos como “brasileiros
pobres do meio rural”, pois sua aplicação neste trabalho está intimamente ligada à interação
imigrante/colono versus caboclo.
7
Conferir Zanini (2006, 2008, p. 89-108). Segundo Seyferth (1993), a noção de colono está dia-
leticamente oposta ao caboclo, portador de características desabonadoras, como atraso, agri-
cultura rudimentar, desapego à terra, entre outras, portanto, a caboclização, enquanto termo
que exprimia a apropriação pelo colono daquelas características, deveria ser evitada. O colono
também seria uma antinomia aos fazendeiros, assim sendo, trabalho árduo, produção de alimen-
tos, cuidado da terra, pioneirismo/civilização, o enraizamento, a liberdade, entre outras virtudes,
caracterizariam o colono enquanto categoria social.

93
Chłopi, os camponeses e a imigração: as teorias do campesinato e os colonos poloneses no...

se iniciado com a imigração alemã, na qual se desenvolve a economia co-


lonial, embasada na subsistência, na mão de obra familiar e na venda de
excedente (MOURE, 1996). Dentro desse esquema, o imigrante proprie-
tário seria o “colono”, personagem que, de acordo com Woortmann (2004),
seria uma variante da categoria mais ampla de “camponês”, adaptado às
características econômicas e naturais do país receptor.
Zarth (2008) e também Lando e Barros (1996) destacam que o Bra-
sil passava por uma crise de produção de alimentos, sem condições de
sustentar o mercado interno, em razão da monocultura e da escravidão.
A agricultura para produção alimentícia teria sido consequentemente o
foco estatal dos processos imigratórios, com imigrantes europeus manda-
dos para as matas, objetivando, além de garantir as fronteiras, produzir
para sua subsistência e para o mercado interno, o que deveria conformar,
para o Estado, a noção do farmer americano8 e não exatamente o cam-
ponês. Esses colonos, na conformação da adaptabilidade à nova situação
e diante dos ideais estatais de ocupação e produção alimentícia, tinham
de habitar no lote rural, cujo significado remete a: “[...] concessão prefe-
rencialmente familiar, lugar de moradia, destinado à lavoura e criação,
supondo-se pela dimensão de 25 hectares o caráter familiar do trabalho”
(SEYFERTH, 2009, p. 54). Nas “linhas”, e não em aldeias, que perpas-
savam os lotes, conformavam-se os novos espaços de sociabilidades dos
agricultores (para construção de escolas, sociedades, igrejas, etc.).
Apesar dessas preocupações e das condições de formação das “colô-
nias”, a colonização europeia no Brasil meridional não foi acompanhada
por uma infraestrutura de transporte e comercialização que garantisse a
distribuição e o abastecimento interno, isso ocorre apenas com o cresci-
mento das colônias, de modo que “[...] a produção agrícola dos colonos deu
origem a um mercado de gêneros agrícolas, contribuindo para abastecer
as estâncias e estabelecer relações comerciais entre colonos e criadores
de gado” (ZARTH, 1997, p. 150). Somente com as mudanças das décadas
posteriores é que ocorre uma maior integração dos colonos aos mercados
e, consequentemente, a desestruturação da sua configuração camponesa,
fator de enriquecimento principalmente dos comerciantes estabelecidos
nas colônias.

8
Segundo Seyferth (2009), a colonização produziu colonos mais remediados, mas não o farmer.

94
Rhuan Targino Zaleski Trindade

Entendidas as definições mais gerais de camponês e colono, pensa-


mos em aplicá-las num contexto específico, a fim de compreender do que
tratamos quando nos referimos a tais denominações. As considerações
seguintes não pretendem situar os camponeses poloneses exatamente
dentro dos parâmetros teóricos revistos, ainda que possam apontar vá-
rios enquadramentos e permitam definições buscando evidenciar carac-
terísticas fundamentais dos colonos nos casos avaliados.

O camponês polonês no Brasil


A imigração polonesa está inserida no contexto das ondas imigra-
tórias provindas da Europa rumo à América, principalmente do último
quarto do século XIX até 1930. Durante o século XIX, oficialmente, a
Polônia não existia, estando seu território dividido entre os Impérios
Prussiano, Austríaco e Russo, cada qual com diferentes maneiras de ad-
ministrar a situação dos poloneses. Somados a isto, o fim da servidão e a
instalação do modo de produção capitalista na região criaram uma série
de dificuldades para o camponês polonês, as principais delas eram a falta
de terra e a proletarização da mão de obra rural (WACHOWICZ, 1974).
Nessa conjuntura, a emigração se torna uma alternativa para a repro-
dução camponesa, uma vez que a terra é condição fundamental para o
camponês e seu modo de vida.9
O Brasil ofereceu lotes coloniais nos estados sulinos para famílias
de camponeses ansiosos por melhorar sua condição de vida, ainda que
permanecendo no campo. Nesse contexto, o Paraná e o Rio Grande do
Sul foram dois dos estados que receberam esses imigrantes com modelos
distintos de ocupação.
No Paraná, a imigração polonesa inicia em 1871, com colônias próxi-
mas à Curitiba, conformando uma grinalda em torno da cidade, onde os
poloneses tornavam-se fornecedores de produtos alimentícios e estavam
em distâncias menores do centro consumidor. Posteriormente, as colô-
nias polonesas foram se expandindo para o interior do sudeste e centro
9
Para Woortmann (1995, p. 116), “[...] a migração é a solução mais coerente com o que se poderia
chamar uma identidade camponesa: ela permite a reprodução, enquanto camponeses, não só
daqueles que migram, mas igualmente daqueles que ficam; ela significa a busca de novas terras,
em outro lugar, e a preservação da terra no lugar de origem”, sendo importante o parentesco
como fator de expulsão e migração de grupos de parentes.

95
Chłopi, os camponeses e a imigração: as teorias do campesinato e os colonos poloneses no...

do estado, a partir das colônias antigas, com o processo de enxamagem10


(ROCHE, 1969) ou da criação de novas colônias com imigrantes provin-
dos da Europa.
No Rio Grande do Sul, a imigração polonesa se desenvolve paralela
à italiana, em 1875, na serra gaúcha. Contudo, é a partir dos anos 1890,
com a “febre brasileira”,11 que é criada a maioria das colônias, ainda que
mais esparsamente que no Paraná, visto terem sido fundadas duas no
sul de Porto Alegre e principalmente no noroeste do estado, fruto de rei-
migrações ou imigração direta da Europa.
A maioria dos imigrantes poloneses eram trabalhadores do campo,
pequenos proprietários e/ou o que chamaríamos de proletários rurais, os
quais procuraram no novo mundo a propriedade da terra e, geralmente,
a conseguiram.12 Os lotes de terra recebidos eram de matas virgens, nos
quais os poloneses adaptaram seu modo de vida camponês imigrado.
Wachowicz (1974) considera que, no Paraná, os poloneses são pro-
dutores de gêneros de subsistência e possuem uma “mentalidade campo-
nesa” baseada na religiosidade católica. Quanto ao Rio Grande do Sul,
Stawinski (1976, p. 65) propõe que os colonos vinham atrás de terras,
sendo “pobres lavradores”, os quais chegavam em razão da política go-
vernamental de subvenção de passagens.
Quanto à propriedade e à produção, a terra recebida era em torno de
25 hectares, por meio de compra, em que os poloneses resolveram prati-
car o cultivo de uma série de produtos. Gluchowski (2005), cônsul polonês
10
Jean Roche (1969) utilizou o termo para explicar a criação de novas colônias a partir das co-
lônias velhas alemãs; trata-se da saída de descendentes dos antigos imigrantes. Embora isso
tenha ocorrido com os poloneses, a colonização do Alto Uruguai e Missões muitas vezes se deu
a partir da ida do próprio imigrante de primeira geração, que vende seu antigo lote e compra um
outro na nova colônia.
11
Período entre 1890 e 1894, quando milhares de poloneses, especialmente do Império Russo,
espalham-se pelo sul do Brasil.
12
Wachowicz (1974), sobre o Paraná, parece ter um pensamento menor com relação à adaptabi-
lidade dos agricultores poloneses à nova sociedade: “Os poloneses transformaram as outrora
incultas terras de matas, dos dois primeiros planaltos do Paraná, em celeiro do Estado, introdu-
zindo e difundindo novas técnicas agrícolas, novos instrumentos, novos produtos e uma nova
mentalidade agrícola” (1974, p. 172). Comenta a introdução, no Paraná, de: carroça “polaca”,
arado, grade, picador de palha, mangual, moinho manual, o “radnik” (utensílio utilizado para fa-
zer sulcos no solo para a semeadura), tendo, a partir disso, a comunidade polonesa seus méritos
agrícolas reconhecidos. O autor parece destacar a noção de civilizador e pioneiro do migrante/
colono polonês no sertão paranaense, balizando a característica do trabalho, muito difundida
como elemento abonador da identidade do colono, e diminuindo as mudanças ocorridas no pro-
cesso de instalação e efetiva colonização, as quais veremos a partir das análises de Cybulski
(1980), quanto aos processos de uma espécie de “caboclização”.

96
Rhuan Targino Zaleski Trindade

em Curitiba nos anos 1920, afirma que os poloneses, inicialmente, ten-


taram manter as técnicas europeias (num período de experimentação)
com a utilização do arado e os produtos “europeus”,13 como centeio, trigo
e batata inglesa, contudo, segundo o autor, logo tiveram de se adaptar,
pois tal tipo de produção exigia um grande dispêndio de trabalho para
poucos rendimentos, dado que, diferentemente das planícies polonesas
com séculos de cultivos, as matas brasileiras eram virgens, com araucá-
rias e outras árvores centenárias com troncos grossos e raízes profundas.
Apesar dos elogios aos poloneses, com sua inaudita laboriosidade
e perseverança impressionante ante o elemento nacional, considerado
preguiçoso e desleixado com o trabalho rural e a criação de animais, Glu-
chowski (2005) afirma que o conservadorismo do colono era motivador
da falta de organização, cooperação e melhor desenvolvimento agrícola.
O colono “[...] agarra-se teimosamente a toda a sorte de preconceitos,
trazidos da Polônia por ele mesmo ou por seus pais, e tenta a todo o cus-
to introduzir aquelas culturas apropriadas à sua antiga pátria” (2005,
p. 292). O mesmo acontece com o cultivo da terra, a seleção de sementes,
as ferramentas agrícolas, etc., sendo o conservadorismo e o obstinado
atraso características do agricultor polonês.
Para poder cultivar suas novas propriedades, a técnica da queimada,
utilizada há muito tempo pelos caboclos, foi desenvolvida pelos polone-
ses, que cortavam parte da mata, deixavam secar e, então, queimavam,
restando apenas os tocos mais grossos, em torno dos quais realizavam os
cultivos. Além disso, plantaram batata doce, feijão e mandioca, produ-
tos que desconheciam e aprenderam a cultivar com os caboclos. Depois,
ainda cultivaram uma série de produtos tropicais, tais como arroz, fumo,
cana-de-açúcar, etc. (GLUCHOWSKI, 2005, p. 289), todos já adaptados
à temperatura e ao território do Brasil. Decorrido algum tempo de utili-
zação e experimentação do solo, os poloneses conseguiram usar o arado e
reproduzir suas culturas tradicionais.
Destacamos, assim, um enquadramento com as questões levantadas
por Chayanov (1974), para quem a autoexploração tem um limite em
razão das necessidades. Segundo Ploeg (2006, p. 24), o modo de produção
camponês tem necessidade de eficiência técnica e uma mudança técni-
13
A batata tem origem nas Américas, mas é cultivada na Europa, sendo base alimentar de alguns
países, desde o século XVI.

97
Chłopi, os camponeses e a imigração: as teorias do campesinato e os colonos poloneses no...

ca não material, daí a escolha de novos produtos, além do fato de que,


na América, os colonos não tinham uma estação sem atividade direta
no campo, como no inverno europeu, dado complicador e que diminui o
tempo de reprodução de outras atividades (a pluriatividade), exigindo a
ampliação das culturas para o ano inteiro.
As práticas adaptadas dos caboclos não foram sempre bem recebi-
das, a reclamação de que a queimada prejudicaria as colheitas, o desen-
volvimento e a reprodução dos colonos também existem entre os polone-
ses, assim como no caso dos alemães analisados por Roche (1969). Teodor
Cybulski (1980, p. 200), secretário da Liga Morska i Kolonialna (Liga
Marítima e Colonial) em 1931, destaca que:
[...] as propriedades que cultivam outros produtos tais como o milho, a man-
dioca, arroz, cereais europeus, etc., porque todos eles utilizam o velho sistema
de queima das roças, sistema esse que era eficiente quando se tratava de flo-
restas virgens — no início da colonização — quando a utilização do arado era
impossível por causa dos troncos de árvores e destroços que encontravam-se
na terra. Este método, no entanto, deixa de ser eficiente quando a terra já está
desgastada pelas sucessivas queimas e os agentes atmosféricos. Para dar uma
imagem completa do estado atual nas propriedades agrárias desejo por em
relevo o fato de que em muitas colônias, que existem há mais de vinte anos, o
arado continua a não ser utilizado, mas a foice para cortar os matos, que em
seguida são queimados — e o acinho [sic] para limpar o milho. Por isto, nessas
regiões é necessário fazer a propaganda da mecanização do cultivo (o arado e
a grade), porque sem ela as colônias não se desenvolveram adequadamente.

Quanto à relação com os mercados, primeiramente identificamos,


conforme Mendras (1978), que um fator importante na definição do ser
camponês é sua vinculação com a sociedade englobante, o que ocorre prin-
cipalmente por intermédio da venda de mercadorias. Nas comunidades
camponesas, verificamos a existência de relações comerciais, ainda que
tênues, pois em geral a subsistência era o foco mais importante, com a
comercialização dos excedentes sendo algo comum, desde que com um mí-
nimo acesso a meios de transporte (estradas carroçáveis e/ou ferrovias).
No Rio Grande do Sul, as estâncias (ZARTH, 1997) e as cidades
(coloniais ou não) eram os mercados consumidores mais importantes de
gêneros alimentícios, assim vale também para o Paraná, sendo Curitiba
um centro abastecido basicamente pelas colônias polonesas de seu entor-
no (GLUCHOWSKI, 2005), diferente de Porto Alegre, a qual contava com
o abastecimento das colônias alemãs do vale dos Sinos e das italianas da

98
Rhuan Targino Zaleski Trindade

serra, sendo os poloneses do Alto Uruguai, secundários no fornecimento,


bem como dependentes da ferrovia que chegaria somente no século XX.
A necessidade de estradas era constante e um pedido dos poloneses: “[...]
o principal problema relativo à comercialização dos produtos agrícolas é
a falta de contato direto entre o colono e os grandes centros comerciais”
(CYBULSKI, 1980, p. 203). O secretário da Liga Morska i Kolonialna
ainda adverte: “Um dos problemas mais importantes relativo à venda
dos produtos com o qual o colono tem que lutar é o problema do transpor-
te”, pois, para ele, as “[...] grandes distâncias e as condições em que este
transporte é efetuado e que são às vezes inconcebíveis para um europeu”,
provavelmente fazendo referência ao pequeno tamanho dos países euro-
peus em comparação com o Brasil, ou por um possível melhor sistema de
transportes no “Velho Continente” (CYBULSKI, 1980, p. 203).
Não existindo quase nenhuma manutenção de estradas, este fator
seria um dificultante para a promoção da indústria e a expansão dos
mercados. Para Cybulski (1980, p. 206):
Como nós não temos nenhuma influência no sentido de melhorar as condições
de transporte, a única forma de ultrapassarmos essa dificuldade é a de valori-
zar os produtos agrícolas o mais possível, isto é, transformar as matérias-pri-
mas em produtos semi acabados, que agüentariam as condições e os custos de
transporte.

Uma adaptação aos mercados, nos quais os colonos poloneses co-


meçaram a se inserir, pode ser percebida, segundo o cônsul polonês Glu-
chowski, ao ponderar que o milho também fora vendido, mas, em regiões
com pouco acesso físico aos mercados, acabou tornando-se ração para os
porcos. A mesma situação pode ser encontrada na atuação dos colonos
ervateiros do Paraná, que trocaram a agricultura de subsistência pela
cultura da erva-mate, que, segundo Gluchowski, era mais rentável jus-
tamente por permitir a venda. Contudo, com a queda do preço e a explo-
ração por parte dos “vendeiros”, diminuiu a produção ao longo dos anos.
Para Cybulski (1980, p. 203):
A erva, graças ao seu preço elevado, às facilidades de venda, à ajuda concedida
pelo governo e graças a existência de importantes firmas exportadoras – o que
racionalizava a sua produção e proporcionava a estandardização do produto –
proporcionava simultaneamente altos e fáceis lucros aos produtores, já que a
produção não requeria grande esforço e a sua venda era quase que garantida.

99
Chłopi, os camponeses e a imigração: as teorias do campesinato e os colonos poloneses no...

Os colonos, apesar das disposições supracitadas, acabavam ficando


na mão dos “vendeiros”, assim como nas regiões pioneiras da imigração
polonesa no Rio Grande do Sul, na serra, onde os colonos estavam sujei-
tos aos comerciantes italianos e descendentes, fator que contribuiu para
os processos de reimigração dos poloneses (STAWINSKI, 1976) para o
Alto Uruguai e Missões. A relação colono-vendeiros é outro elemento in-
trínseco ao modo camponês desenvolvido no sul do Brasil, mas, apesar
disso, a análise desse elemento demandaria uma explicação mais longa,
que não abordaremos neste momento.
De acordo com Gluchowski (2005), a criação de animais teria papel
secundário entre os colonos devido à pouca quantidade de terra. Apesar
disso, ele considera que os poloneses trouxeram desenvolvimento para
o setor de laticínios, com melhorias na produção e no beneficiamento.
O autor identifica uma superioridade polonesa frente aos caboclos bra-
sileiros (ainda que diferencie os poloneses pelas regiões de emigração:
masurianos, mazovianos, galicianos, etc.), demonstrando a evolução do
colono em diferentes setores, com a introdução do arado e das carroças
puxadas a cavalo.
Percebe-se pelos dados reunidos, que – depois de um começo difícil – ultima-
mente de maneira geral os colonos estão numa situação muito boa, que ocu-
param uma grande extensão de terra, que ocuparam um patrimônio conside-
rável e que, em síntese, demonstraram uma grande capacidade de conquistar
novas áreas para a civilização, vale a pena lembrar disto (GLUCHOWSKI,
2005, p. 300).

As colônias de Araucária, PR, e Guarani das Missões, RS


Para exemplificar as questões teóricas sobre campesinato e as ét-
nicas sobre a imigração polonesa, passamos a dois casos paradoxais da
literatura sobre os poloneses e a agricultura no Brasil, sendo um no Pa-
raná e outro no Rio Grande do Sul, propondo discutir semelhanças e
diferenças em ambos os casos, recompondo com as discussões teóricas já
discutidas.
A primeira colônia, Tomás Coelho, na cidade de Araucária, 17 km
de Curitiba, no Paraná, foi formada por volta de 1876, formando um dos
maiores e mais antigos núcleos, recebendo a maior parte dos poloneses

100
Rhuan Targino Zaleski Trindade

da região, como um exemplo das múltiplas áreas de assentamento dessa


etnia no entorno curitibano. No período, existiu um projeto político do
estado do Paraná que previa a criação de um “cinturão verde” produtor
de alimentos ao redor de Curitiba, na maioria, com colônias polonesas, o
que conforma diferenças com relação às colônias gaúchas de poloneses,
mais distantes dos centros urbanos.
Kersten (1983), ao pensar a colônia Tomás Coelho, passa por uma
explicação baseada no capitalismo e na subjugação do âmbito rural ao
capital, ainda que pretenda incluir especificidades regionais, sociais e
étnicas à macroexplicação das categorias marxistas. Para a autora, a
expropriação dos produtores diretos e de seus meios de produção era um
reflexo da tendência do desenvolvimento do capitalismo na agricultura.
Assim, o camponês era parte da sociedade de classes. A autora analisa as
mudanças ocorridas a partir da modernização dos anos 1970 na região
e contribui para o entendimento do seu impacto econômico e social. No
entanto, os avanços teóricos da economia camponesa sob lógicas próprias
diferentes do capitalismo, embora sejam discutidos no seu texto, não são
opções da autora, já que, para sua temporalidade, prefere evidenciar a
interferência do capital no campesinato pela intermediação do mercado.
Por ter esta perspectiva, a autora considera os poloneses, instalados des-
de 1876, como subordinados aos mercados, seja como produtores de ali-
mentos para o consumo dos centros urbanos (na definição do que e como
produzir), seja como vendedores da força de trabalho para essa mesma
região, portanto, os colonos seriam agentes do capital e ocupariam um
espaço criado por ele.
No Paraná, houve maior diversificação dos poloneses nas culturas
agrícolas e pecuárias, com vários se tornando fazendeiros ou grandes
produtores de uva, mandioca, erva-mate, entre outros produtos, mas a
especialização ao longo do tempo na cultura da batata, nas colônias do
entorno de Curitiba, designou inclusive uma expressão, que abrangia a
perspectiva étnica: “polaco batateiro”. Diferentemente do Rio Grande do
Sul, onde a dispersão da população polonesa em distintas regiões não
configurou essa especialização, com cada região respondendo a uma de-
manda produtiva distinta.
Sem entrar no mérito da análise da subjugação do camponês ao ca-
pital, o fato é que, no geral, a conformação das colônias polonesas no Pa-

101
Chłopi, os camponeses e a imigração: as teorias do campesinato e os colonos poloneses no...

raná seguiu a lógica da pequena propriedade, do autoconsumo e da au-


tossubsistência, sendo mantida por uma racionalidade própria, em que o
mercado, apesar de presente desde os primórdios da instalação colonial,
só a partir do processo de modernização da agricultura e industrialização
no Brasil, em meados século XX, muda a conformação holística, transfor-
mando os camponeses em agricultores familiares ou proletários.
Quanto ao exemplo do Rio Grande do Sul, a colônia de Guarani das
Missões era a maior colônia polonesa no estado e, até os anos 1940, des-
pontava como um grande centro polonês em desenvolvimento. A insta-
lação dos colonos na região se deu por volta de 1890, com a entrega de
2 mil lotes para reimigrantes de outras regiões do estado e poloneses
provindos diretamente da Europa. Segundo Stawinski (1976, p. 50), as
“terras férteis” da colônia foram ocupadas por lavradores, pois tinham na
agricultura a principal renda.
Alguns autores dedicados ao estudo da cidade e colônia de Guarani
das Missões definem que em Guarani são assentados camponeses, termo
que Marmilicz (1996, p. 77) define como “[...] pequeno proprietário rural
que utilizando-se basicamente da mão de obra familiar produz para o
mercado”. Tal assertiva está baseada na análise do período mais recente
da cidade, mas contém um problema evidente: definir o camponês na
medida de seu vínculo com o mercado.
A partir dos dois exemplos, pensamos em indicar alguns aponta-
mentos que proponham uma definição mais clara, tendo nossa hipótese
de que esses colonos poloneses, apesar das diferenças, são camponeses
no momento inicial de sua imigração e instalação, autonomizados mes-
mo que vinculados a mercados, e é ao longo do tempo que alteram suas
características, até perderem essa condição.
Em primeiro lugar, para a definição da condição camponesa, a di-
mensão da propriedade, embora uma característica, é menos importante.
São as relações sociais envolvidas que definem o camponês, independen-
temente disso, destacar que a maior parte das colônias de Guarani e
Tomás Coelho tinham o tamanho médio comumente distribuído para os
imigrantes chegados a partir do último quarto do século XIX, de apro-
ximadamente 25 hectares, permite entender aqueles colonos, também,
como pequenos proprietários, um fator que ajuda a compreender a con-
formação daquela sociedade e das suas relações, o que ajuda a compreen-

102
Rhuan Targino Zaleski Trindade

dê-la na sua condição camponesa. Ambas as colônias estavam em regiões


de matas, o que tornava difícil o assentamento inicial dos colonos e sua
adaptação.
Em segundo, destacamos a mão de obra. De acordo com as teorias
mencionadas, em especial a de Chayanov (1974), a família deve ser cen-
tral para camponês, isto é, sua unidade social básica (SCHNEIDER,
1994). O regime de trabalho em Guarani, como Wendling (1971) desta-
ca, é justamente o familiar, como igualmente destaca Polanczyk (2010,
p. 259-260), ao apontar que “[...] a estrutura agrícola de Guarani das
Missões é a pequena propriedade explorada por seus próprios donos”, ou
seja, “[...] o trabalho é realizado exclusivamente pela família, inclusive
crianças, e com auxílio de animais de tração”. Kersten (1983, p. 60) afir-
ma que todos os colonos de Tomás Coelho eram proprietários “com força
de trabalho familiar”, o que imperava nas colônias da região do “cinturão
verde” ao redor de Curitiba.
Em terceiro, quanto à vinculação com mercados em Guarani, consi-
deramos que possivelmente até 1960, quando do projeto de “moderniza-
ção conservadora” da agricultura (GRAZIANO DA SILVA, 1981), não ha-
via grande investimento em negócios externos à fazenda, pois “[...] não se
buscava de forma agressiva a produção de bens para a venda. Distantes
dos mercados aos quais estavam ligados por precários meios de transpor-
te, contentaram-se [os poloneses] em satisfazer suas necessidades bási-
cas” (POLANCZYK, 2010, p. 262). Segundo Wendling (1971, p. 9), “[...]
entre os grandes problemas [...] encontrados, merece menção a falta de
estradas e meios de comunicação”. Somente com o crescimento das cida-
des coloniais de Santo Ângelo e Ijuí, as distâncias decresceram. A falta
de transporte indicava a prioridade de subsistência, sendo a venda de
caráter subsidiário e existindo uma autonomia da sociedade campone-
sa em relação à englobante, que não incidia totalmente na comunidade
camponesa.
Quanto à região paranaense, existe uma diferença clara. A política
do estado de criar diversas colônias produtoras de alimentos no entor-
no da maior cidade, Curitiba, chegou a gerar um excesso de produção,
em grande parte, devido às dificuldades de escoamento das mercadorias
para fora da região, fruto da falta de um sistema de transporte. Apesar
disso, a ligação das colônias através de estradas carroçáveis com Curiti-

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Chłopi, os camponeses e a imigração: as teorias do campesinato e os colonos poloneses no...

ba permitia a venda em feiras dos produtos alimentícios (centeio, batata,


feijão, etc.), além de madeira e erva-mate (KERSTEN, 1983, p. 65). A
autonomia e a prioridade do autoconsumo, embora existissem em To-
más Coelho, eram complementadas pela renda obtida com a venda de
produtos, a proximidade com o centro urbano eliminava o intermediário
(vendeiro) e permitia maior lucro para o colono/camponês. Ao contrário
do Rio Grande do Sul, a figura do intermediário cresce com o desenvolvi-
mento da região metropolitana de Curitiba e a abertura de novos merca-
dos em outros estados (KERSTEN, 1983, p. 71).
A partir do início do processo de modernização agrícola, por volta dos
anos 1960, no noroeste gaúcho, com o boom da soja na região e a mecani-
zação agrícola, as vinculações com os mercados se tornam extremamente
fortes com a criação da Rota da Produção, a qual liga Guarani das Missões
aos centros distribuidores, mudando práticas e relações de trabalho, inse-
rindo os colonos em políticas públicas, promovendo intensas relações com
a sociedade englobante e dependendo dela para sua reprodução social.
Os camponeses passam a produzir para o mercado exportador, tornan-
do-se dependentes de créditos e insumos estatais. Tal definição permite
marcar que, até 1960, tratam-se de “camponeses” e não de “agricultores
familiares”. Como assevera Jurach (1978, p. 42), para o caso de Santa
Rosa, somente “[...] a partir dos novos conhecimentos adquiridos (terra-
ceamento, destocamento, uso de insumos e corretivos, utilização correta
de implementos) [o agricultor] abandona o sistema agrícola campesiano
para tornar-se produtor”, em suma, um agricultor familiar.
Já na região próxima a Curitiba no estado do Paraná, a situação
é diferente. Os mercados estiveram presentes mais fortemente desde o
início, ainda que as colônias mantivessem características propriamente
camponesas. Contudo, a partir do início dos anos 1970, com a industria-
lização, a instalação de um polo petroquímico e a urbanização fruto do
crescimento da região metropolitana de Curitiba, começa a gerar a prole-
tarização dos camponeses, os quais encontram alternativas em serviços
urbanos ou aceleram os processos e impactos sociais da modernização
agrícola mudando as características e as relações do campesinato local, o
que, para Kersten (1983), subordina o camponês ao capital.
A fim de complementar a identificação da constituição de uma so-
ciedade formada por camponeses, pretendemos abordar os referenciais

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Rhuan Targino Zaleski Trindade

culturais e étnicos poloneses, em especial o religioso, a importância das


relações pessoais (parentesco em especial) e a atuação dos notáveis, os
quais predominam nas duas regiões de análise. Existem nas colônias
diferentes redes (de negócios, parentais, de amizade, reciprocidade, etc.),
de acordo com a economia campesina, a qual presume diversos vínculos
sociais, a exemplo do que assevera Ploeg (2006), ao afirmar que o pro-
cesso de trabalho camponês é regido por relações de parentesco, gênero,
idade, religião e reciprocidade, que estão presentes na medida em que
a família é o elemento fundamental, instaurando o interconhecimento,
fator preponderante da definição da sociedade camponesa.
Os notáveis, na constituição da sociedade camponesa, são também
figuras importantes que fazem a mediação com a sociedade envolvente. O
padre é figura muito importante entre os camponeses (MENDRAS 1978,
p. 107, 120), particularmente no grupo étnico polonês (GARDOLINSKI,
1958; STAWINSKI, 1976; WACHOWICZ, 1974; KERSTEN, 1983). Con-
tudo, segundo Cybulski (1980, p. 204), a posição do padre deveria ser
relativizada:
O segundo elemento que possui influência nas colônias são os padres. No en-
tanto dado o tamanho das paróquias, esta influência não é tão direta e é mais
esporádica com exceção das localidades próximas do local de residência do
padre. A influência do padre em geral depende muito da sua própria individu-
alidade. Apesar de tudo é o elemento mais esclarecido nas colônias e indepen-
dentemente das convicções de cada um, é necessário tomar em consideração o
papel deles nas colônias.

Conforme Cybulski (1980, p. 203), havia o “vendeiro”, o comercian-


te, ou seja, o grupo migrante voltado ao comércio, que exerceria o papel
de notável e de ligação da comunidade de imigrantes com o mundo ex-
terior, já que o comércio colonial funcionaria por intermédio das vendas:
Quando surge uma nova colônia, os colonos mais inteligentes e ativos ligam-se
ao comercio. Graças a essa atividade eles conseguem maior influência entre
os colonos, por que sendo os únicos a manterem contato com o mundo externo
e em resultado aprenderem a língua mais rapidamente, eles entram em con-
tato direto com as autoridades locais e assim estão na posição de resolverem
muitos dos problemas dos colonos. São raros os casos em que outras pessoas,
além dos proprietários das vendas, que pela sua inteligência ou perspicácia
tornam-se pessoas de influência entre os colonos.

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Chłopi, os camponeses e a imigração: as teorias do campesinato e os colonos poloneses no...

Os vendeiros, segundo Cybulski (1980, p. 204), tinham sua influên-


cia aumentada com o desenvolvimento da colônia, e poucos seriam aque-
les sem instrução, buscando lucro, o que os fadava a explorar a colônia,
mas, para o secretário da Liga Morska i Kolonialna, ele era o elo com o
exterior, além disso, seria entre os comerciantes e seus descendentes que
se formaria a elite intelectual colonial polonesa, mesmo que “travassem”
o desenvolvimento colonial “ditando e abaixando os preços dos produtos
agrícolas tendo em vista somente os lucros imediatos”, mesmo assim,
“em contrapartida, como são pessoas ricas em geral, são para nós um ele-
mento positivo porque são pessoas de influência nas repartições públicas
provinciais”.
Cybulski escrevia principalmente para o estado do Paraná, além
disso, enquanto membro da Liga Morska i Kolonialna, estava no bojo do
“confronto” das autoridades estatais polonesas com o clero pelo “contro-
le” das colônias de poloneses no Brasil (WEBER, 2015). Por esta razão,
talvez, desfaz a importância dos padres nas comunidades e destaca outro
elemento, com o qual pretendiam se aliar para exercer o efetivo tutora-
mento dos imigrantes, sendo necessário, portanto, relativizar seus apon-
tamentos. Os padres são fundamentais na constituição das comunidades
imigradas camponesas e, entre os poloneses, são as primeiras lideranças,
revelando as incessantes relações pessoais presentes nessas sociedades.
Esses exemplos e descrições do estabelecimento dos colonos polo-
neses no Brasil, em especial, no Paraná e Rio Grande do Sul, especifica-
mente, Guarani das Missões e Araucária, pareceram úteis para destrin-
char a adaptação dos poloneses no país de acolhida e as condições para a
definição de camponês e sociedade camponesa nos estudos imigratórios.

Considerações finais
Não é difícil perceber que a proposição do exercício de pensar a cate-
gorização “camponês” para uma realidade empírica não é tarefa fácil, em
primeiro lugar, por ter de levar em consideração inúmeros aspectos cul-
turais, econômicos, sociais e, inclusive, políticos, os quais se destrincham
em elementos religiosos, étnicos, etc. Além disso, tal exercício para este
número restrito de páginas é algo que demanda muito esforço e termina
com uma sensação de incompletude. Apesar das dificuldades, a vincula-

106
Rhuan Targino Zaleski Trindade

ção das diferentes questões que permeiam o termo camponês, ao anali-


sarmos a questão dos colonos, especificamente os poloneses, demonstra
a necessidade de se delinear com precisão o que tratamos por camponês,
se entendemos o colono como parte desta categoria e, também, o que/
quem é este colono dentro da lógica de uma sociedade camponesa. Nosso
objetivo foi assinalar semelhanças e diferenças de cada caso, explorando
as teorias do campesinato, mas sem apontar para uma direção única e
estritamente fechada.
As perspectivas éticas e econômicas que unem os camponeses de
Guarani das Missões e Araucária, movidos por uma sociabilidade seme-
lhante, haja vista serem basicamente fruto do mesmo processo imigrató-
rio composto pelo mesmo tipo de imigrante (sobretudo agricultores), bem
como o modelo de assentamento rural em colônias formadas por peque-
nas propriedades, com mão de obra familiar, voltado ao autoconsumo e
à venda de excedentes, permitem comparações sob a lógica teórica das
sociedades camponesas. A grande diferença é a proximidade com os cen-
tros urbanos. A presença de um grupo de colônias polonesas próximas da
capital Curitiba é a distinção central ante a dispersão das colônias polo-
nesas no Rio Grande do Sul. Tal fato demonstra a dificuldade de grandes
generalizações, devendo-se analisar caso a caso, bem como a necessidade
de observação dos objetos ao longo do tempo, com a clara diferenciação
entre os processos, por exemplo, de urbanização em Tomás Coelho e da
modernização agrícola em Guarani, que consomem com as característi-
cas camponesas dos colonos poloneses.
Mesmo assim, o termo colono não perde sua força enquanto afir-
mação identitária, a qual permanece, em boa medida, no meio rural do
Rio Grande do Sul e do Paraná, mas, enquanto categoria constituinte
daquilo que entendemos como camponês, perde sua validade. Até mesmo
para momentos posteriores, há quem defenda, em detrimento de agri-
cultor familiar, o uso do termo camponês, propondo outras definições,14
entretanto, não é o nosso caso, em que propusemos a categorização con-
dicionada no tempo e no espaço, de acordo com os diferentes contextos

14
“Em primeiro lugar, o campesinato, mesmo tendo perdido a significação e a importância que
tinha nas sociedades tradicionais, continua a se reproduzir nas sociedades atuais integradas ao
mundo moderno. Pode-se identificar, portanto, em diversos países, na atualidade, setores mais
ou menos expressivos, que funcionam e se reproduzem sobre a base de uma tradição campo-
nesa, tanto em sua forma de produzir, quanto em sua vida social” (WANDERLEY, 1996, p. 6).

107
Chłopi, os camponeses e a imigração: as teorias do campesinato e os colonos poloneses no...

pesquisados. Em suma, não foi nossa intenção esgotar o tema e concluí-lo


definitivamente, por sinal, deixamos diversas lacunas, as quais podem
ser preenchidas em estudos mais completos comparando colônias polo-
nesas nos próprios estados ou com o camponês polonês na Europa. Ao
refletir para o interior da constituição de uma comunidade de imigrantes
europeus no sul do Brasil, em diferentes temporalidades, verificamos a
necessidade de categorizar com base teórica o fenômeno camponês dos
colonos poloneses, avançando para o desenvolvimento dos estudos histó-
ricos sobre a imigração.

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João Carlos Tedesco | Giovani Balbinot

Detratores e marqueteiros
da imigração italiana
para o Brasil: Borges de
Medeiros e as exposições
mundiais de 1904 e 1906
João Carlos Tedesco
Giovani Balbinot

Introdução

A
imigração é um fato totalizante da humanidade; é um dado civili-
zatório. De uma forma ou de outra, ela sempre foi e continua sen-
do impactante. O mundo continua em movimento. Nesse início de
novo século, a imigração revela ser altamente preocupante, produzindo
tensões sociais e políticas; suas causalidades e consequências continuam
sendo múltiplas. Para alguns países, ela é uma grande fonte de recursos,
em razão das remessas financeiras recebidas; para outros, os de destino
de fluxos, os imigrantes, não obstante as falácias políticas e econômicas,
contribui para o desenvolvimento socioeconômico e cultural. O mundo
globalizado dinamiza múltiplos processos que ocasionam fluxos migrató-
rios, principalmente nas esferas informacionais, econômicas e culturais.

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Detratores e marqueteiros da imigração italiana para o Brasil: Borges de Medeiros e as...

Elementos positivos e negativos dessa realidade são integrantes de


um mesmo processo. Há um pouco mais de um século, a imigração ita-
liana para o Brasil e outras partes da América Latina, ainda que em di-
ferentes contextos, condições e deliberações, também passava pelo crivo
da aceitação/atração bem como da negativização de muitos agentes, ins-
tituições sociais e dos próprios sujeitos envolvidos, ou seja, os imigrantes.
Esses fatos revelam que a imigração carrega consigo uma história longa
de processos sociais, econômicos, religiosos, territoriais, linguísticos, etc.
Na denominada “velha e grande imigração italiana” (FRANZINA,
2006; TRENTO, 1989) de há mais de um século para o Brasil, não falta-
ram ações que se revelaram conflituosas e tensas, narrativas oficiais e
independentes demonstram as péssimas condições, segundo quem anali-
sava, vividas pelos imigrantes (GROSSELLI; GIANOTTI, 1987). Outros,
porém, a defendiam e a incentivavam. Instituições públicas, privadas e
religiosas orientavam suas ações também em correspondência com as
informações recebidas e obtidas por vários meios em relação ao fenômeno
imigratório para o Brasil (ALVIM, 1986). Estratégias e discursos eram
adotados para estancar os fluxos, assim como para incentivá-los. Esse
foi o tom do jogo de forças e do campo em disputas, fruto de interesses
regionais, étnicos, religiosos e econômicos em que os sujeitos migrantes
se viram inseridos. Viajantes, políticos, intelectuais, jornalistas e imi-
grantes (esses últimos, em suas cartas) auxiliaram nas decisões e no de-
senvolvimento das políticas públicas, tanto italianas quanto brasileiras,
que forneceram as legislações orientadoras do processo de deslocamento
populacional para o Brasil.
Dentre os inúmeros escritos que compõem esse contexto, as obras
Al Brasile, de Alfonso Lomonaco, e L’Europa alla conquista dell’America
Latina, de Ferrucio Macola, são deveras importantes pela repercussão
que alcançaram e também pela sua importância como fontes históricas
para a compreensão dos debates acerca da e/imigração italiana para o
Novo Mundo. Publicadas, respectivamente, em 1889 e 1894, as obras
caracterizam-se pelo seu olhar de aguda crítica ao Brasil. Buscando um
embasamento dito científico, com visões racistas e etnocêntricas, ilus-
tram as condições insalubres do clima, das cidades, do trabalho, da hi-
giene, para, então, introduzir-se na condição de pobreza dos imigrantes
italianos aqui estabelecidos.

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João Carlos Tedesco | Giovani Balbinot

As descrições e análises de Lomonaco e Macola, mesmo a partir de


perspectivas distintas, desaconselham decididamente a emigração para
o Brasil. Alfonso Lomonaco, por meio de uma visão científica, que bei-
rava o darwinismo social e a hierarquização das raças, acreditava que
tanto o meio quanto o povo seriam capazes de corromper os italianos,
tornando-os perniciosos como os brasileiros. Por sua vez, Ferrucio Maco-
la considerava a hipótese da emigração, entretanto, desaconselhava que
esta ocorresse dirigida para a América do Sul, em particular, ao Brasil.
Macola criticava acidamente o governo italiano pela sua incapacidade
de tutelar o processo emigratório italiano, permitindo que este dirigisse
seu fluxo para as Américas e não para um território que comportasse
maior desenvolvimento econômico do elemento italiano, desperdiçando a
presumida possibilidade de estabelecer lucrativas redes comerciais com
estas “colônias” no exterior.
Contudo, ambos consentiam sobre a situação do emigrante italiano
e sua relação com o autóctone brasileiro. Apelidados pretensiosamente
de “carcamanos” (TRENTO, 1989), os italianos, na visão dos dois auto-
res, eram hostilizados e humilhados em território brasileiro, tendo a eles
sido negadas as condições minimamente dignas de trabalho. Conforme
retrata Constantino (2005, p. 33), ambas as publicações ridicularizam o
Brasil e os brasileiros, considerados representantes de uma raça inferior,
narram um país de males e de maus, para onde os italianos não deve-
riam emigrar em hipótese alguma.
Várias narrativas demonstravam que a emigração italiana ao Bra-
sil, em particular para São Paulo, tinha sido um equívoco e que o impe-
rativo de seu estancamento deveria partir da esfera pública, retirando
subsídios à viagem, não efetivando novos acordos e exigindo do governo
brasileiro ações em favor dos já imigrados. O Decreto Prinetti, em 1902,
surge nesse contexto de discussão em torno da situação dos imigrantes
italianos estabelecidos no Brasil, mais particularmente em São Paulo,
nas fazendas de café. Foi a estratégia encontrada pelo governo italiano
para demonstrar seu descontentamento e, ao reduzir o subsídio, subtrair
a possibilidade de grandes levas de emigrantes.
Não obstante tais processos, é correto afirmar que o Brasil repre-
sentou um dos principais destinos da emigração italiana, assim como
o imigrante italiano delineou-se como um dos principais grupos sociais

113
Detratores e marqueteiros da imigração italiana para o Brasil: Borges de Medeiros e as...

constituintes da população brasileira. Segundo os dados do governo ita-


liano, entre 1876, ano em que iniciou-se a contabilidade dos expatriados,
até 1975, as cifras de emigrantes com destino ao Brasil alcançavam apro-
ximadamente 1,5 milhão de indivíduos (BIRINDELLI; BONIFAZI, 2011,
p. 493).
Nesse contexto de detratores e defensores do fluxo migratório ita-
liano para o Brasil, a Louisiana Purchase Exposition de 1904 e a L’Es-
posizione Internazionale del Sempione de 1906, analisadas a seguir, tor-
naram-se centrais na tentativa de evitar e/ou desbloquear situações que
estavam impedindo e/ou dificultando este processo emigratório. Essas
exposições serviam como cartão postal do país. Uma eficaz ferramen-
ta para delinear, construir ou remodelar a imagem do país no exterior,
expondo especialmente sua pujança econômica e sua total recepção aos
imigrantes italianos em particular (BENEDUZI, 2012).
No presente texto, buscamos delinear a participação do Brasil nes-
ses dois eventos universais do início do século XX e que estão no cenário
da necessidade de reatrair o imigrante italiano. Objetivamos compreen-
der, em particular, os ensejos e as estratégias que induziram Borges de
Medeiros a empreender onerosos gastos na instalação de uma galeria de
exibição do Rio Grande do Sul, figurando como o único estado da federa-
ção a representar-se no evento de 1906.
Para concretizar tais objetivos, utilizamo-nos, sobretudo, das corres-
pondências trocadas entre o presidente do estado e do PRR, Antônio Au-
gusto Borges de Medeiros, e os emissários do regime borgista enviados
aos Estados Unidos da América e à Itália. Essa documentação foi locali-
zada no Arquivo Borges de Medeiros, sob a guarda do Instituto Histórico
e Geográfico do Rio Grande do Sul.
A incorporação dessas fontes permitiu delinear a participação do
Rio Grande do Sul na Exposição Universal de Saint Louis em 1904 e
de Milão em 1906, com seus aspectos políticos, econômicos e culturais,
contribuindo de forma fundamental para a compreensão das relações en-
tre a participação nas exposições e as variações no fluxo emigratório de
italianos para o estado na primeira década do século XX. Em intersecção
com a documentação disponível no Arquivo Borges de Medeiros, os argu-
mentos, os discursos e as representações dos fatos, a recepção, o número
de visitantes, etc., em relação tanto à apresentação da exposição quanto

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João Carlos Tedesco | Giovani Balbinot

aos motivos da participação do Rio Grande do Sul em tal evento, foram


esquadrinhados em periódicos de imprensa da época.
Disponível na Hemeroteca Digital Brasileira, da Fundação Biblio-
teca Nacional,1 o jornal A Federação, veículo de divulgação dos ideais e
desígnios políticos do Partido Republicano Rio-grandense (PRR) e, com a
ascensão do partido ao governo do estado, porta-voz oficial da opinião do
governo, publicado de 1884 a 1937, foi intensamente utilizado devido à
sua capital importância para a compreensão do encadeamento dos fatos
históricos e do discurso governista. Analisamos também as matérias do
jornal Correio Paulistano, no qual é possível vislumbrar os embates em
torno da imagem do Brasil, do tratamento e das condições dos imigrantes
italianos em São Paulo.2
Nosso estudo é mais amplo e abarca outras participações do Brasil
em exposições universais entre a segunda metade do século XIX até o fi-
nal a Primeira Guerra Mundial. No entanto, efetuamos um recorte tem-
poral, tendo em vista que buscamos apenas analisar as duas exposições
pela relação existente com a imigração italiana e a redução de seu fluxo
em razão do Decreto Prinetti.
Desse modo, organizamos o texto analisando sinteticamente alguns
argumentos e narrativas de detratores e defensores da emigração italia-
na para o Brasil, a decretação de uma normativa que retirou da esfera
pública a subvenção, demonstrando, com isso, que a força dos detratores
exerceu maior influência. Em razão disso, buscamos entender as estra-
tégias empreendidas nas exposições universais pelo governo brasileiro e,
em particular, pelo sul-rio-grandense em tentar reverter os impedimen-
tos à imigração italiana subvencionada.

1
Disponível em: <http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 12 ago. 2017.
2
Não é nossa intenção, neste texto, confrontar e/ou questionar as fontes. Sabemos que o jornal A
Federação era o órgão de divulgação do governo do estado, portanto do PRR. Em razão disso,
notícias poderiam superestimar a presença sul-rio-grandense nas duas exposições e exaltar as
ações de Borges de Medeiros. É nosso projeto, para outro momento, confrontar as correspon-
dências (cartas) com o conteúdo expresso e narrado no referido jornal, bem como comparar com
notícias do Correio Paulistano e de outros jornais ítalo-brasileiros em torno do tema.

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Detratores e marqueteiros da imigração italiana para o Brasil: Borges de Medeiros e as...

Alguns detratores e defensores da emigração


para o Brasil
Há inúmeras produções jornalísticas, documentais e autobiográfi-
cas expressando descontentamento com as condições oferecidas e prome-
tidas aos imigrantes italianos no Brasil (por agências de viagem, Igre-
ja Católica, governos italiano e brasileiro, cafeicultores, dentre vários
outros agentes públicos e privados), bem como narrativas de vivências
em situações desesperadoras e/ou precarizantes. Algumas impactaram,
outras ficaram no anonimato, na experiência e na memória de quem as
vivenciou.3
Entre os vários detratores da imigração que buscavam delinear a
realidade do italiano nas fazendas de café, encontramos Oreste Ristori,
imigrante, anarquista toscano, estabelecido no Brasil a partir de 1904,
após passar pela Argentina e pelo Uruguai. Ele prossegue seu trabalho
político e jornalístico, notadamente através de seu jornal anarquista, La
Battaglia. Com o Contro l’immigrazione al Brasile, publicado em 1906 no
Brasil e em 1907 na Itália, Ristori propunha duas questões: o despertar
de uma consciência política entre os imigrantes italianos estabelecidos
no Brasil e, também, um alerta para aqueles que, ainda na península,
cogitavam a emigração (BENEDUZI, 2012). Aos já estabelecidos no país,
a obra de Ristori buscava o despertar de uma consciência política e de um
movimento de classe que viesse a promover uma luta para a mudança
das condições subalternas e de maus tratos; aos ainda em solo italiano,
buscava dissuadir da ideia de emigrar para o Brasil.
Diante desse contexto e dos relatos a partir dele produzidos, em bus-
ca do real conhecimento da situação, o Commissariato dell’Emigrazione

3
Ver análises de jornais ítalo-brasileiros analisados por Ângelo Trento, dentre suas várias pro-
duções, ver o artigo “Os viajantes italianos na América Latina durante o período fascista: entre
curiosidade e ideologia” (2008); além de obras como as de Alvim (1986), Franzina (2006), Gros-
selli e Gianotti (1987).

116
João Carlos Tedesco | Giovani Balbinot

da Itália destacou ao Brasil dois agentes, Ildo Zattery e Adolpho Rossi,4


para verificar a realidade encontrada pelos egressos da península itálica.
O primeiro foi incumbido de inspecionar a situação dos imigrantes radi-
cados em Minas Gerais e no Espírito Santo. Ao segundo coube examinar
a situação dos italianos nas fazendas de café paulistas. O relatório ela-
borado por Adolpho Rossi obteve especial importância tanto pelo debate
que promoveu na imprensa italiana e brasileira quanto pelo diagnóstico
apresentado sobre o resultado da imigração italiana para o Brasil e as
repercussões diretas deste panorama para o fluxo populacional Itália/
Brasil e no governo italiano.
Conforme matéria titulada “Immigração Italiana em São Paulo”,
veiculada no jornal Correio Paulistano na terça-feira, 10 de junho de
1902, as notícias que chegavam de Roma e eram então publicadas nas
seções telegráficas dos jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro versavam
que o relatório que o jornalista Adolpho Rossi apresentara ao Comissa-
riado de Imigração da Itália delineava o pior cenário possível sobre a
vida dos peninsulares no Brasil:
Como já se sabe, o Sr. Rossi, no seu relatório, frisou, com as cores mais negras,
o que de ruim, em sua rápida passagem, pode lobrigar sobre as condições mo-
raes e materiaes em que se encontram os immigrantes neste Estado, ou o que,
por informantes suspeitos, lhe foi narrado.5

Um sumário do relatório elaborado por Rossi, tido como um concei-


tuado e importante jornalista italiano, foi amplamente divulgado pela
mídia italiana, especialmente pelos jornais Corrieri della Sera, Secolo

4
Adolpho Rossi (1857-1921) foi escritor, jornalista e diplomata italiano. Nascido em uma pequena
cidade do Vêneto, emigrou para os Estados Unidos da América com 20 anos. Depois de ten-
tar carreira em diversas profissões, destacou-se rapidamente pela sua competência no âmbito
literário e jornalístico. Em Nova York, fundou e dirigiu o periódico Il progresso Italo-Americano,
tornando-se, em breve espaço de tempo, um distinto enviado especial de importantes jornais
italianos, especialmente Il Messagero, La Tribuna e Il Corriere della Sera. Autor de reportagens
ligadas ao fenômeno migratório italiano, escreveu sobre a realidade dura e as dificuldades da
inserção dos italianos no país norte-americano, mas também as grandes possibilidades e opor-
tunidades oferecidas pela pátria norte-americana. Sua ligação com o Brasil iniciou nos primeiros
anos do século XX, quando a crise do café no estado de São Paulo começava a prejudicar as
condições de vida dos muitos imigrantes italianos. De fato, em 1901, com o encardo de inspetor
viajante, passou a fazer parte do Commissariatto dell’emigrazione Italiana, um novo organismo
dependente do Ministério do Exterior, criado para garantir uma cadeia assistencial aos sempre
mais numerosos emigrantes italianos no estrangeiro.
5
Correio Paulistano, São Paulo, 10 de junho de 1902. Ano 1902 - Arquivo 13937. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 1º fev. 2017.

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Detratores e marqueteiros da imigração italiana para o Brasil: Borges de Medeiros e as...

e Giornale d’Italia.6 As informações apresentadas pelo enviado deline-


avam um quadro absolutamente precário das condições dos italianos
emigrados para as terras brasileiras, embora reconhecesse que apro-
ximadamente 5.230 italianos em São Paulo já apresentavam-se como
proprietários rurais. Rossi descrevia a ideia da emigração para o Brasil
como a pior da vida dos emigrantes peninsulares. Apresentava o Brasil,
mais pontualmente as fazendas paulistas, como uma terra insalubre e
bárbara, assolada pela falta de higiene e pestilência, onde as relações de
trabalho eram permeadas por um tratamento semelhante ao dispensado
ao cativo africano, há poucas décadas liberto, tanto em relação a humi-
lhações e hostilidades físicas e psicológicas quanto em relação à falta de
liquidação dos empenhos financeiros devidos aos imigrantes após os tra-
balhos na cafeicultura. Conforme noticiado no Correio Paulistano:
O Brasil inteiro, na opinião do Sr. Adolpho Rossi, é uma immensa hecatombe
de italianos, os fazendeiros, na sua quase totalidade uma categoria de escra-
vagistas ferozes, que exploraram o trabalho alheio, e não satisfazem os seus
compromissos, e remata o seu digno relatório com affirmativa de que a emmi-
gração italiana para o Brasil é um crime.7

Houve um intenso debate promovido pelas informações apresenta-


das por Adolpho Rossi e seguiu-se ainda um informativo intitulado Le
condizioni dell’Emmigrazione agrícola in Ribeirão Preto, fruto da compi-
lação da Comissão Geral de Emigração, por meio de diversas referências
às denúncias de dificuldades levadas por imigrantes italianos às suas
representações diplomáticas no Brasil. De acordo Anna Maria Birindelli
e Corrado Bonifazi (2011, p. 503):
Il Commissariato dell’Emigrazione invia ispettori sia nelle colonie italiane sia
nelle fazendas: ne emerge un quadro preoccupante sulle condizioni di vita e
sugli episodi di sfruttamento della manodopera, per cui il governo italiano
emana, nel Marzo del 1902, il decreto Prinetti-Bodrio.

Protestos em relação aos espaços ocupados pelos imigrantes nas fa-


zendas de café, episódios de sobreposição entre as figuras dos cativos
africanos e dos trabalhadores peninsulares, ocorrências de subalternida-
des dos trabalhadores italianos e constantes disputas políticas e ideoló-
6
Correio Paulistano, São Paulo, 22 de junho de 1902. Ano 1902 - Arquivo 13949. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 1º fev. 2017.
7
Correio Paulistano, São Paulo, 13 de junho de 1902. Ano 1902 - Arquivo 13940. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 1º fev. 2017.

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João Carlos Tedesco | Giovani Balbinot

gicas sobre o controle ou não do processo de emigração efervesceram, não


apenas com denúncias promovidas por imigrantes aos consulados italia-
nos ou narrativas e discussões entre defensores e detratores da emigra-
ção, mas também produziu-se uma legislação acerca deste processo, uma
nova normativa do Reino da Itália, conhecida como Decreto Prinetti, de
1902, que estabelecia a proibição da emigração subsidiada para o Brasil.
Entretanto, cabe ressaltar que tanto o relatório de Adolpho Rossi
quanto as críticas promovidas pela imprensa italiana sobre as condições
dos emigrados em São Paulo não passaram alheias e despercebidas no
Brasil. Houve protestos veementes por parte da mídia impressa paulista
e das autoridades governamentais relacionadas à imigração. O jornal
Correio Paulistano, em especial, elaborou um inquérito a respeito das
condições dos imigrantes em São Paulo. Ele publicou uma seção especial
dedicada ao tema dos italianos, em particular, algarismos que deline-
avam as boas condições em que se encontravam as colônias italianas
nesse estado, cuja grande parte da riqueza econômica, social e política
devia-se “[...] pela intelligencia e operosidade de seus membros, cujo tra-
balho tem fecundado a riqueza e o progresso do nosso Estado”.8
Em uma sequência de publicações, foram expostos dados estatísti-
cos e comentários que procuravam evidenciar a conjuntura profícua dos
imigrantes italianos em São Paulo, com dados referentes a bens imóveis
adquiridos, hipotecas realizadas sobre imóveis, casas comerciais estabe-
lecidas, indústrias constituídas, entre outras informações, como as re-
lativas ao comércio entre Itália e Brasil, argumentando que: “[...] [se]
a emmigração italiana para o Brasil é um crime, como, no entanto, de
quarenta a cincoenta milhões são annualmente remettidos pelos colonos
para a Italia, e a importação do commercio italiano chegou até hoje a 16
milhoes de liras por anno?”.9
Além desses dados, também foram questionadas as informações
contidas no relatório elaborado pelo jornalista Adolpho Rossi, que, am-
bos os jornalistas, destinados para avaliar a condição dos emigrados em
solo brasileiro, foram designadas “antes recompensas a serviços políti-
8
Correio Paulistano, São Paulo, 10 de junho de 1902. Ano 1902 - Arquivo 13937. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 1º fev. 2017.
9
Correio Paulistano, São Paulo, 13 de junho de 1902. Ano 1902 - Arquivo 13940. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 1º fev. 2017. Os dados mencionados en-
contram-se publicados nas edições posteriores, identificadas nos arquivos 13937 a 13949.

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Detratores e marqueteiros da imigração italiana para o Brasil: Borges de Medeiros e as...

cos, que interesse pela emigração”, argumentando também que Adolpho


Rossi esteve em solo brasileiro pelo breve período de três meses, sendo
“[...] verdadeiramente incrível, que em tão curto lapso de tempo, se pos-
sa apresentar um tal trabalho conscienciosamente”, de forma que uma
“[...] peça tão rica de observações e conclusões que um diplomata hábil
e acostumado as artimanhas do officio, teria a muito custo pensado que
fosse possível conseguir tanto material e tanta sabedoria em dezenas de
annos de estudo”.10
Dessa forma, eram questionadas as conclusões apresentadas so-
bre condições sanitárias e de higiene das colônias italianas, as humi-
lhações e hostilidades dispensadas aos imigrantes e o descumprimento
dos empenhos financeiros devidos aos colonos.11 Nesse contexto, foram
questionadas, de forma enérgica e constante, as motivações e intenções
que regeram a ação de Rossi e dos envolvidos no trabalho de pesquisa e
elaboração do seu relatório, argumentando que, “[...] pela exiguidade do
tempo, o Sr. Rossi não terá podido visitar todas as fazendas e aquellas
que ele visitou talvez fossem indicadas por pessoas que tem interesse em
prejudicar o Estado de São Paulo, como centro de grande emmigração”.12
O Correio Paulistano, em edição de 13 de junho de 1902, argumentava
que:
[...] é um crime sim, mas que resultados deliciosos dá esse crime! Ah, si cer-
tos repórteres se lembrassem em tempos das boas normas do seu officio, não
cahiriam tão desastradamente nos bestialógicos do absurdo quando o pavor
ou a cegueira dos partidos dominantes os elevam a cargos de responsabilidade
superior as próprias forças.13

Os imigrantes italianos, oriundos de diferentes regiões da Itália, de-


pararam-se, no Brasil, com relações econômicas, sociais e culturais há
muito tempo estabelecidas. A partir do fato de que os imigrantes foram
inseridos no processo produtivo e no espaço social antes ocupado pelo
escravo africano, embora em condição jurídica não similar à do cativo,

10
Correio Paulistano, São Paulo, 13 de junho de 1902. Ano 1902 - Arquivo 13940. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 1º fev. 2017.
11
Correio Paulistano, São Paulo, 22 de junho de 1902. Ano 1902 - Arquivo 13949. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 1º fev. 2017.
12
Correio Paulistano, São Paulo, 22 de junho de 1902. Ano 1902 - Arquivo 13949. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 1º fev. 2017.
13
Correio Paulistano, São Paulo, 13 de junho de 1902. Ano 1902 - Arquivo 13940. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 1º fev. 2017.

120
João Carlos Tedesco | Giovani Balbinot

este era visto e percebido pelos “senhores do café” da mesma maneira


que suas antigas propriedades servis.
A imigração italiana era entendida, a partir desse prisma, como a
solução para o problema nacional. Uma vez que a produção cafeeira deli-
neava-se como o motor econômico nacional, os italianos deveriam resta-
belecer a dominação sobre o trabalho por meio da manutenção do baixo
custo com a mão de obra e da rentabilidade da produção cafeeira. Dessa
forma, a figura do imigrante italiano, ao ocupar os mesmos espaços fí-
sicos produtivos e sociais dos escravos, fora, muitas vezes, percebida e
mesmo tratada como a do novo negro ou do novo escravo branco. Essa
percepção era reforçada pela circunstância do financiamento das viagens
transatlânticas por parte do Estado brasileiro e das diversas formas de
endividamento contraídas pelos egressos da península itálica que con-
tribuíam no processo de subordinação desta nova mão de obra. Nesse
contexto, a transição do trabalho escravo africano para o trabalho livre
imigrante torna-se componente essencial para a compreensão da colos-
sal diferença entre o horizonte de expectativas carregadas através do
Atlântico pelos italianos e a realidade encontrada por eles nos eitos das
fazendas de café paulistas (BENEDUZI, 2015, p. 77-80).
Diante da queda de braço entre detratores e defensores, o governo
italiano resolveu agir em prol dos primeiros, decretando o fim da emi-
gração subsidiada junto a determinadas companhias de navegação. Isso
preocupou cafeicultores, colonizadores, o próprio governo brasileiro e o
modelo de organização política positivista implantado no estado sulino,
o qual contava com a presença do imigrante italiano para produzir ali-
mentos, trabalhar a terra com racionalidade econômica e implantar pro-
cessos capitalistas de produção.
É importante enfatizar que, entre 1888 e 1902, no auge do processo
emigratório, aproximadamente 950 mil italianos aportaram em terras
brasileiras (TRENTO, 1989). Durante esses anos, o Brasil foi o princi-
pal destino dos emigrados italianos, superando tanto Estados Unidos da
América quanto Argentina; e os emigrantes italianos foram a maioria
dos estrangeiros a entrar no país, sendo aproximadamente 70% do total
de entradas.
O chamado Decreto Prinetti, em verdade, nunca foi um decreto,
mas, sim, tratou-se de uma portaria expedida pelo Comissariado Italiano

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da Emigração, assinada em 26 de março de 1902 pelo então comissário-


-geral Luigi Rodio, sendo Giulio Prinetti o Ministro de Exterior. Assim,
o Decreto Prinetti definia a suspensão da licença especial conferida a
quatro companhias de navegação e a um pequeno “vetor” para realizar
transporte transatlântico gratuito de emigrantes italianos para o Bra-
sil, além de coibir as operações de recrutamento por parte dos agentes
contratados por tais companhias e proibir a emigração subsidiada para
o Brasil. Entretanto, cabe ressaltar que este decreto de forma alguma
proibia a emigração espontânea de italianos, apenas se limitava a extin-
guir a emigração subvencionada e colocava o Brasil, especialmente São
Paulo e Rio Grande do Sul, no mesmo plano de outros países para onde
se direcionavam grandes fluxos emigratórios, como Estados Unidos da
América e Argentina (CENNI, 2003, p. 235).
A emigração para o Brasil começa a declinar já a partir de 1902, em
um processo de inversão de tendências que não conhecerá mais pausas,
alinhando-se, em valores anuais, em torno de 17.000 emigrados. Os Esta-
dos Unidos da América tornar-se-ão, no período de 1902 a 1920, o destino
predominante, mas a Argentina também terá suas quotas aumentadas,
graças, precisamente, aos limites impostos no cenário brasileiro (DEVO-
TO, 2003; BERTAGNA, 2006). Entre 1902 e 1920, os Estados Unidos da
América receberam aproximadamente 70% do fluxo emigratório italiano
para o solo das Américas, totalizando 3.581.322 indivíduos, enquanto, no
mesmo período, a Argentina recebeu 18% desse mesmo fluxo, contando
com 953.453 emigrantes. Nesse período, o Brasil, preterido neste fluxo
emigratório, sustentou modestos 6% dos emigrantes, com 306.652 pesso-
as (TRENTO, 1989, p. 59).
Nesse cenário de extrema redução de imigrantes, em particular, o go-
verno Borges de Medeiros buscou encontrar formas de revogar o Decreto
Prinetti e, para isso, criou condições para a construção de uma imagem
sobre o estado sulino no panorama italiano diferenciada das realidades
brasileira e paulista, sendo essa última a que gerou o estabelecimento do
decreto. A intenção era a de ampliar o fluxo emigratório italiano para a
colonização em várias regiões do estado. Um primeiro ensaio ocorreu na
Exposição Universal de 1904.

122
João Carlos Tedesco | Giovani Balbinot

As estratégias das exposições: Louisiana, 1904


A estreia do Brasil como participante oficial nas exposições univer-
sais ocorreu em 1862, na cidade de Londres. Fomentada principalmente
pelo Imperador D. Pedro II, a participação brasileira buscava, por um
lado, evidenciar o potencial agrícola e industrial, atraindo assim imi-
grantes e investidores, e, por outro, inserir o Brasil como um dos atores
no teatro das nações civilizadas (PESAVENTO, 1997). O Brasil retorna
ao circuito das exposições universais em 1889, em Paris. Novamente com
o apoio do Imperador D. Pedro II, somente alguns meses antes de sua de-
posição, a exposição brasileira buscava proporcionar aos países europeus
e aos visitantes a visão de um Brasil rico em oportunidades de emprego
e terras férteis a serem cultivadas, aguardando os europeus dispostos a
emigrar e construir suas fortunas. Lembramos que esta participação e a
tentativa de construção da imagem brasileira ocorreu no contexto de ex-
pansão da economia cafeicultora e substituição do braço escravo, liberto
no ano anterior (AVELLA, 2015).
Já em período republicano, vemos o Brasil novamente participar
das exposições universais. A denominada “1904 Louisiana Purchase Ex-
position” foi elaborada para a comemoração do centenário da aquisição
americana do até então território francês da Louisiana. Inaugurada em
30 de abril e encerrada em 1º de dezembro de 1904, com proporções gi-
gantescas, contou com aproximadamente 5 km², com pavilhões de 62 na-
ções, mais de 1.500 construções destinadas a exposições e um público
de 19 milhões de visitantes. Foram construídos palácios de exposições
que buscavam ilustrar o estado da arte nos diferentes campos do conhe-
cimento humano, assim como uma área com edificações destinadas às
comissões de exposições estrangeiras. A peculiaridade da feira de 1904
encontrava-se no espaço destinado às mostras dos estados americanos,
dos quais 43 dos 45 participaram.
Em relação ao país-sede, a exposição buscava exaltar os avanços
econômicos, tecnológicos, políticos e diplomáticos dos Estados Unidos
da América. Esse contexto influenciou a escolha da cidade-sede. Saint
Louis, localizada no grande entroncamento ferroviário e fluvial dos Rios
Mississipi e Missouri, era versada como a entrada para o oeste, marco
das grandes fortunas garimpadas na mineração, construídas sob os tri-
lhos das ferrovias ou mesmo da especulação dos florescentes mercados
financeiros (MACEDO, 2012, p. 19-21).

123
Detratores e marqueteiros da imigração italiana para o Brasil: Borges de Medeiros e as...

Nesse período, a competição entre as nações permanecia restrita nos


âmbitos da cultura, da política e da economia, com especial enfoque ao
desenvolvimento da ciência, da tecnologia e de suas aplicações práticas
no maquinário e na indústria. Esse fator não passou desapercebido pelas
páginas do periódico A Federação, que, baseado na missiva do correligio-
nário enviado, José Carlos de Carvalho,14 descreve: “[...] a Exposição, com
seu genuíno aspecto de encyclopedia, da uma vasta licção de cousas, vae
estabelecer o confronto das industrias das nações”, no entanto, “[...] o prin-
cipal, com um característico de grande duelo industrial, segundo se figura
a ilustre compatriota, é o cotejo entre a Allemanha e os Estados Unidos”.15
Tudo que os Estados Unidos inventam, aperfeiçoam e fabricam em grandes
proporções a Allemanha reproduz logo após em maior quantidade e muitíssi-
mo mais barato, embora de qualidade inferior. D’ahi resultam as dificuldades
e competências dos Estados Unidos nos mercados consumidores. 16

Delineando relações e atritos entre Alemanha, França, Inglaterra e


Estados Unidos da América, que findaram por eclodir na Primeira Guer-
ra Mundial, A Federação relata que:
[...] o que se dá com a Allemanha e s Estados Unidos, dá-se há muito com a
Allemanha e a França: A França crea, a Allemanha reproduz, a França orga-
nisa, a Allemanha explora, uma inventa e a outra aproveita. [...]. E si a pró-
pria Inglaterra não sofre muito já com a concorrência allemã, é que, além dos
créditos industriaes ingleses universalmente preferida, os capitaes ingleses
gyram na exploração das ryquezas naturaes dos paizes novos e das enormes
zonas coloniaes inglesas.17

14
“Nesta exposição universal teremos que assistir ao duelo industrial entre a Allemanha e os Es-
tados Unidos, por amor da conquista commercial do mundo inteiro. É o que se pode concluir
desde já em vista das instalações que a Allemanha está fazendo em todos os departamentos da
feira de S. Luiz. Pois tudo que os Estados Unidos inventão, aperfeiçoão e fabricão em grandes
proporções e caro, a Allemanha reproduz logo depois em maior quantidade e muitíssimo mais
barato, embora de qualidade inferior. Dahi procedem as dificuldades da competência dos Esta-
dos Unidos nos mercados consumidores, sem contar o systema de negociações deste paiz fora
da Europa. A Inglaterra mostra que mantem a sua indústria especial e universalmente preferida
ela influencia dos seus capitaes em constante guia commercial e na exploração das riquezas
naturaes de paizes novos e das suas colônias”. Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do
Sul. Arquivo Borges de Medeiros. Carta de José Carlos Carvalho. Saint Louis, Estados Unidos,
2/4/1904. 8 folhas. Documento 12106. Descritores: Política Internacional, Partido Republicano
Rio-Grandense, Exposição Internacional.
15
A Federação, Porto Alegre, 11 de maio de 1904. Ano 1904 - Arquivo 00137. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 30 nov. 2017.
16
A Federação, Porto Alegre, 11 de maio de 1904. Ano 1904 - Arquivo 00137. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 30 nov. 2017.
17
A Federação, Porto Alegre, 11 de maio de 1904. Ano 1904 - Arquivo 00137. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 30 nov. 2017.

124
João Carlos Tedesco | Giovani Balbinot

Dessa forma, compreendemos que a construção de pavilhões (Figura


1), o envio de comissões e a apresentação de variados gêneros nacio-
nais nas exposições mundiais tornaram-se os modos mais profícuos de
estabelecer relações comerciais, tecnológicas, diplomáticas e culturais
com as diversas nações mundiais partícipes desses eventos. No entan-
to, destacamos que o envolvimento nacional nessas exposições também
proporcionava uma ferramenta simbólica eficaz de delinear, construir
ou remodelar a imagem do país no exterior. Ferramenta conhecida, reco-
nhecida e noticiada pelo jornal A Federação, quando assevera que: “[...]
agora a existência do Brasil não será mais considerada um mytho ridí-
culo, explorado pela ignorância de muitos e pela inveja de alguns”, sendo
incluído “[...] no catalogo official do grupo das grandes nações civilizadas
do mundo inteiro [...] seu pavilhão julgado pela imprensa yankee a pero-
la do diadema dos pavilhões estrangeiros”.18
O periódico segue afirmando que a “República Brasileira acaba de
receber com toda a solenidade nos Estados Unidos da América do Norte
a consagração de grande paiz civilisado e prospero”, reconhecido no “[...]
concurso universal de S. Luiz como paiz que soube apresentar-se para
fazer valer o seu adiantamento nas industrias modernas [...] [e] seu va-
lor em riquezas sem fim e naturaes”; e finaliza afirmando que o Brasil,
após sua participação na exposição, passa a ser visto como “a primeira e
a mais poderosa Republica da America do Sul”.19

18
A Federação, Porto Alegre, 11 de maio de 1904. Ano 1904 - Arquivo 00137. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 30 nov. 2017.
19
A Federação, Porto Alegre, 11 de maio de 1904. Ano 1904 - Arquivo 00137. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 30 nov. 2017.

125
Detratores e marqueteiros da imigração italiana para o Brasil: Borges de Medeiros e as...

Figura 1 – Pavilhão de exposições do Brasil na Exposição Universal de 1904

Fonte: Aguiar (1904, p. 47).

A participação do Brasil nessa exposição apresentava dois objetivos


bem delineados. Do ponto de vista econômico, a participação brasileira
na Exposição Universal de Saint Louis buscava estreitar as relações co-
merciais entre as duas nações americanas, expandindo o mercado con-
sumidor de seu maior gênero de exportação, o café, que, nas palavras de
José Carlos Carvalho, “[...] vem de toda parte, menos do Brazil”.20 Com
esta nota enviada a Borges de Medeiros, torna-se compreensível o inves-
timento na concepção, construção e ornamentação do pavilhão brasileiro
(Figura 2), uma vez que este estava “destinado estrictamente para ne-
gócios”, entregue “[...] ao cuidado do pessoal brasileiro, que se esforçará
para corresponder aos intuitos do certâmen, e como o principal producto
é o café”; este “[...] será este exposto em grandes vasos de cristal, for-
necendo-se varias informações sobre sua producção, desenvolvimento e
cultura aos visitantes que se interessarem pelo assumpto sob o ponto de
vista comercial”.21

20
Carta de José Carlos Carvalho. Saint Louis, Estados Unidos, 2/4/1904. 8 folhas. Documen-
to  12106. Descritores: Política Internacional, Partido Republicano Rio-Grandense, Exposição
Internacional.
21
A Federação, Porto Alegre, 11 de maio de 1904. Ano 1904 - Arquivo 00137. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 30 nov. 2017.

126
João Carlos Tedesco | Giovani Balbinot

Figura 2 – Parte interna do pavilhão do Brasil na Exposição Universal de 1904, destacando-se os vasos de
cristal em que o café era exposto

Fonte: Aguiar (1904, p. 47).

Desta forma, o principal gênero de agroexportação da recém-ins-


taurada república, fator fundamental na balança comercial brasileira e
essencial para a manutenção da elite dirigente paulista, figurou como o
grande ator do pavilhão brasileiro, estando “grandemente representado
na exposição” e servindo “de atractivo aos visitantes da exposição”.22 Des-
tacam-se as palavras do comissário brasileiro na exposição, divulgadas
em A Federação: “[...] desejamos que todos os que nos visitarem sintam-
-se perfeitamente a vontade. [...] Desejamos que tomem nosso café, des-
cansem e deleitem-se a vista da luxuriante e a exuberante vegetação que
d’aqui se goza”.23
Incumbido pelo Ministro do Interior e pelo Presidente Rodrigues Al-
ves, o presidente da Comissão da Exposição do Brasil em Saint Louis, o
Coronel Francisco Marcellino de Sousa Aguiar, publicou um volume de-
nominado Brazil at the Louisiana Purchase Exposition St. Louis 1904.
O livro buscava guiar o leitor pelas diferentes áreas do Brasil. A leitura
da primeira parte proporciona um panorama geral da localização, dos

22
A Federação, Porto Alegre, 23 de maio de 1904. Ano 1904 - Arquivo 00148. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 30 nov. 2017.
23
A Federação, Porto Alegre, 23 de maio de 1904. Ano 1904 - Arquivo 00148. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 30 nov. 2017.

127
Detratores e marqueteiros da imigração italiana para o Brasil: Borges de Medeiros e as...

recursos naturais, das principais culturas de cultivo e, em diferentes as-


pectos, recursos, poderes produtivos e estágio de progresso tecnológico.
Entretanto, como principal protagonista da obra figurava o café: “[...]
coffee is the agricultural product most extensively cultivated and the
principal source of wealth in Brazil” (AGUIAR, 1904, p. 45). O visitante,
examinando os produtos exibidos nos diferentes departamentos, espe-
cialmente relativos ao café brasileiro, poderia tornar-se desejoso de pos-
suir maiores conhecimentos do progresso e dos recursos naturais do país
do qual esses produtos vieram, que o interessaram especialmente, assim
como da qualidade ou outra informação qualquer desejada. Assim, do
ponto de vista comercial, essa obra realizava a ligação entre o visitante
e o expositor, essencial para o início de relações comerciais mutuamente
lucrativas.
A referida exposição proporcionava uma significativa oportunidade
para uma ressignificação da imagem do Brasil ante as antigas potências
coloniais europeias e os emergentes Estados Unidos da América. A feira
de 1904 figurava como uma oportunidade de “expor perante o mundo” o
“[...] desenvolvimento e grandesa só patente em relação ao Brasil no sécu-
lo XX, [...] melhor diríamos para o Brasil e para todos os paizes da Amé-
rica latina”.24 O café carregava consigo a presença do imigrante italiano;
a dinâmica econômica e sua qualidade davam o tom de uma nova era, de
um grande ativo financeiro qualificado pela presença do imigrante.
O jornal A Federação é enfático ao afirmar que, “[...] si alguém man-
tem illusões sobre a capacidade dos povos latinos da America que estudo-
-lhes a historia no correr do século findo, afim de desvanecel-as, [...] mais
fácil, porém, em um só dia, percorrer todos os departamentos em que se
representam em S. Luiz”.25 Na exposição,
[...] adquirirá a convicção do quanto o seu espirito e o seu trabalho serão ca-
pazes de fazer na primeira metade deste século, [...] [pois] ali revelam-se in-
ventores, mecânicos, artistas, esculptores, poetas, tão grandes como os que o
mesmo século possa produzir. Quanto a estadisas e generaes nada expõem que
permitta suppor que os terão notáveis.26

24
A Federação, Porto Alegre, 23 de maio de 1904. Ano 1904 - Arquivo 00148. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 30 nov. 2017.
25
A Federação, Porto Alegre, 23 de maio de 1904. Ano 1904 - Arquivo 00148. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 30 nov. 2017.
26
A Federação, Porto Alegre, 23 de maio de 1904. Ano 1904 - Arquivo 00148. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 30 nov. 2017.

128
João Carlos Tedesco | Giovani Balbinot

Na narrativa do jornal A Federação, a “[...] história do Brasil no sé-


culo XIX já esta escripta e pode ser estudada por quem quizer conhecer
o seu estado de civilização”.27 No entanto, justifica o periódico do PRR
que a transição do Império para a República ocorrera no Brasil “[...] de
um modo definitivo e tão rápido e pacificamente que o custo em vidas e
dinheiro não excedeu talvez o de uma eleição primaria no Estado do Mis-
souri ou a redemarcação da sede de um município no Estado do Kansas”.28
Como bem explica Macedo (2012), o governo de Rodrigues Alves,
assim como a política externa capitaneada pelo Barão do Rio Branco,
buscava a diminuição da dependência dos mercados europeus e uma
aproximação comercial com os Estados Unidos da América, que também
representava o anseio da nova classe dirigente em reproduzir o modelo
americano de república. Por sua vez, o Rio Grande do Sul buscava, na
“1904 Louisiana Purchase Exposition”, o contato com novas tecnologias,
em especial no setor de transporte fluvial. A cidade de Sant Louis deli-
neou-se como o ponto de partida das migrações para a região do oeste
americano, especialmente para garimpeiros e colonizadores que busca-
vam o “wild west ou far West”.
Com esse contexto, compreendemos que os enviados do Rio Grande
do Sul buscavam na exposição novas tecnologias aplicáveis na solução
de problemas relativos à navegabilidade dos rios sul-rio-grandenses,
conforme missiva enviada por José Carlos de Carvalho a Borges de Me-
deiros, na qual afirma que: “[...] tudo no terreno pratico de emprego de
actividades por todo este paiz, [...] [pois] quando voltar ao Brazil poderei
dizer que não vim aos Estados Unidos somente admirar as maravilhas
do entendimento privilegiado de um povo excepcional”; e, sim, “[...] que
vim aprender na pratica de melhoramentos reaes, o que pode ter appli-
cações no meo paiz”.29 Na correspondência trocada com o Presidente do
Estado, pode-se perceber o constante interesse sobre os assuntos relati-
vos à navegação fluvial:

27
A Federação, Porto Alegre, 2 de abril de 1904. Ano 1904 - Arquivo 00156. Disponível em: <http://
memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 30 nov. 2017.
28
A Federação, Porto Alegre, 2 de abril de 1904. Ano 1904 - Arquivo 00156. Disponível em: <http://
memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 30 nov. 2017.
29
Carta de José Carlos Carvalho. Saint Louis, Estados Unidos, 2/4/1904. 8 folhas. Documento
12106. Descritores: Política Internacional, Partido Republicano Rio-Grandense, Exposição Inter-
nacional.

129
Detratores e marqueteiros da imigração italiana para o Brasil: Borges de Medeiros e as...

Nos poucos dias que estive em Nova York, vi alguma couza de interessante
nos trabalhos de escavação e conservação desse porto. As machinas modernas
fazem prodígios em pouco tempo, e ahi no Brazil acredito que se tinha noticia
destes trabalhos novíssimos, pelo que dizem revistas especiaes [...] assistir
como se faz o trabalho e como se removem de prompto as dificuldades que
aparecem a todo o momento, e de inquestionável vantagem para tirar-se todo
o proveito da machina.30

Do ponto de vista econômico, o Rio Grande do Sul buscava propa-


gandear na exposição, nos mercados das repúblicas americanas, nos
mercados europeus e, especialmente, nos Estados Unidos da América, os
gêneros produzidos no Brasil, para “[...] tornal-os apreciados e desejados
por aqueles que só o conhecem pela belleza do porto do Rio de Janeiro, e
aqui pela borracha da Amazônia”.31
Nesse sentido, o Rio Grande do Sul, junto com São Paulo e Minas
Gerais, figurou entre os principais expositores do pavilhão brasileiro,
apresentando uma grande quantidade de artigos relativos a manufatu-
rados, transportes, recursos naturais, gêneros agrícolas, caça e pesca,
minas e metais, além de apresentações e conferências relativas aos es-
tados da educação, das belas artes, da antropologia, entre outros aspec-
tos da economia e da sociedade no estado sulino. Entre os gêneros que
buscavam ser conhecidos e reconhecidos e conquistar espaços comerciais
entre os visitantes da exposição, ganharam destaque: madeiras, pedras
preciosas, tabaco, ouro, prata, carvão e manganês, exemplares dos re-
banhos e carnes, erva-mate, cereais, especialmente o trigo, e, também,
diretamente das regiões coloniais, carne, lã, seda, cerveja e banha.
A produção de banha também ganhou relevo apropriado, destacan-
do que a indústria: “[...] is progressing, especially in Rio Grande do Sul,
Santa Catharina, Parana and Minas Geraes, furnish lard for the local
market, also for the export” (AGUIAR, 1904, p. 54). No entanto, mais
do que o desenvolvimento de publicidade visando alcançar os mercados
americanos e europeus, a propaganda em relação à produção de banha
buscava apresentar que o Brasil, apesar de ainda não ser um país in-

30
Carta de José Carlos Carvalho. Saint Louis, Estados Unidos, 2/4/1904. 8 folhas. Documen-
to  12106. Descritores: Política Internacional, Partido Republicano Rio-Grandense, Exposição
Internacional.
31
CARVALHO, José Carlos. Carta. Saint Louis, Estados Unidos. 2/4/1904. 8 folhas. Documen-
to  12106. Descritores: Política Internacional, Partido Republicano Rio-Grandense, Exposição
Internacional.

130
João Carlos Tedesco | Giovani Balbinot

dustrial, possuía todos os recursos naturais e incentivos governamentais


para estar entre os primeiros do mundo no ramo.
Nessas condições, tornam-se compreensíveis os motivos do intenso
envolvimento do corpo diplomático brasileiro e, também, dos comissá-
rios sul-rio-grandenses na Exposição Universal de 1904, em Saint Lou-
is. Observamos a participação do Brasil e, de forma particular, do Rio
Grande do Sul nessa como um ensaio, consciente ou inconsciente, para
a Exposição Universal de 1906, em Milão. Borges de Medeiros revelava
interesse em analisar a experiência e as novas tecnologias dos Estados
Unidos e, em específico, de Saint Louis na abertura, na manutenção e
no melhoramento das vias fluviais, além da importância econômica de
divulgação dos gêneros de produção e exportação e das oportunidades de
investimento no estado delineadas aos visitantes americanos e europeus.
O governo sul-rio-grandense empreendeu a necessidade de recons-
trução e modelação da imagem simbólica de uma nação ou estado conti-
da nas exposições universais. A construção do palácio, a preparação das
exposições, o envio dos produtos expostos, a elaboração dos catálogos de
propaganda e dos livros de divulgação, o conhecimento da dinâmica de
organização e funcionamento da exposição, a compreensão da abrangên-
cia e eficácia dos gêneros expostos e das ideias apresentadas proporcio-
naram uma fundamental experiência para a participação do Rio Grande
do Sul em Milão dois anos depois.

A Exposição Universal de 1906 em Milão


Na exposição de Louisiana, a questão migratória apresentava-se de
uma forma indireta nos produtos como café, banha e carnes, tendo o pri-
meiro como central. Porém, estados com grande presença de imigrantes
italianos, como os casos de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul,
foram centrais. Nessa dinâmica de reproduções sociais, econômicas e ét-
nicas, ao realizarem-se tais exposições, reúnem-se, em um mesmo espa-
ço, as nações em expansão imperialistas europeias e os Estados Unidos
da América, normalmente como anfitriões ou sustentando as posições de
destaque. Para os países emergentes da América Latina que buscavam a
ascensão no concerto mundial como promissoras fontes de matérias-pri-
mas, as exposições constituíam-se na mais condensada representação do

131
Detratores e marqueteiros da imigração italiana para o Brasil: Borges de Medeiros e as...

projeto de mundo eurocêntrico e capitalista. O mundo estava, então, in-


terconectado em redes de interdependência econômica (BARBUY, 1995).
A Exposição Universal de 1906 em Milão foi dedicada ao mundo do
trabalho e à sua expressão nas tecnologias de transporte. A ideia para a
exposição surgiu para solenizar a inauguração da estrada de ferro que
estabelecia a ligação entre Paris e Milão, na ocasião da conclusão do Tú-
nel do Simplon, túnel ferroviário entre os Alpes, o qual estabelecia a liga-
ção entre a cidade de Briga, na Suíça, e a localidade de Iselle, na Itália.
A cidade de Milão (Figura 3) era considerada a capital econômica
da Itália na primeira década do século XX. Encerrada em 31 de outubro,
dois foram os locais escolhidos para a sua concretização: a Piaza d’Armi,
vasta planície nos subúrbios da cidade, ligada, por meio de um viaduto,
ao Parque do Simplon,32 perfazendo um total de aproximadamente 250
acres, cerca de um milhão de metros quadrados, recebendo oficialmente
4.012.777 visitantes.33

Figura 3 – Farol construído em frente à edificação destinada aos transportes marítimos

Fonte: site oficial da Exposição Universal de 1906.34

32
A Federação, Porto Alegre, 10 de abril de 1906. Ano 1906 - Arquivo 00085. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 1º mar. 2016.
33
Site oficial da Exposição Universal de 1906. Disponível em: <http://mi1906.ning.com/>. Acesso
em: 1º mar. 2016.
34
Disponível em: <http://mi1906.ning.com/>. Acesso em: 1º mar. 2016.

132
João Carlos Tedesco | Giovani Balbinot

As principais potências econômicas do período erigiram os maiores


e mais centrais palácios de exposições. França, Inglaterra e Alemanha
ocuparam espaços centrais. Além das três principais potências europeias
e suas monumentais exposições, havia presenças modestas de países de
menor envergadura econômica e política no quadro mundial da época,
dentre estes Bélgica, Suíça, China, Turquia e Japão, com a exibição de
seus principais artigos.
Abrangendo uma área de cerca de 700 m2, constituía-se o pavilhão
da América Latina (Figura 4), abrigando as exposições de Argentina,
Chile, Uruguai, Peru, Guatemala, Costa Rica, São Domingos e do único
estado brasileiro, o Rio Grande do Sul. Como peculiaridade deste espaço,
havia o Salão dos Presidentes, que reunia retratos, em tamanho natural,
dos presidentes que comandavam as nações republicanas latino-ameri-
canas. Esse salão era dedicado às recepções oficiais e, notadamente, à
solene comemoração do IV centenário da morte de Cristóvão Colombo.35

Figura 4 – Palácio da América Latina destinado às exposições de Argentina, Chile, Uruguai, Peru, Guate-
mala, Costa Rica, São Domingos e Rio Grande do Sul

Fonte: site oficial da Exposição Universal de 1906.36

35
A Federação, Porto Alegre, 11 de abril de 1906. Ano 1906 - Arquivo 00086. Disponível em: <http://
memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 1º mar. 2016.
36
Disponível em: <http://mi1906.ning.com/>. Acesso em: 1º mar. 2016.

133
Detratores e marqueteiros da imigração italiana para o Brasil: Borges de Medeiros e as...

Do espaço ocupado pelo Pavilhão da América Latina, 136 metros fo-


ram dedicados à exposição do Rio Grande do Sul.37 Conforme reportagem
de A Federação,
[...] destes, o Rio Grande tem 136 metros, isto é, dispõe dum dos maiores sa-
lões e occupa o primeiro posto entre todas as nações que se fazem representar
naquele pavilhão [...]. Todos estes países dispõem de pequenos espaços e estão
collocados aos dous ou três no mesmo salão, ao passo que o Rio Grande terá o
seu salão exclusivamente para os seus productos, além de poder ainda expor
artigos especiaes no salão do centro.38

Nosso interesse volta-se para o fato de que, dentro do universo de


estados que compunham a federação brasileira, ou mesmo a nação, uni-
camente o Rio Grande do Sul participou dessa exposição, como foi am-
plamente publicado pelo governo de Borges de Medeiros: “E’ de lastimar
porem, que o Brasil, por circumstancias que não me é dado analysar, não
se faça officialmente representar n’este grande certâmen, onde a maior
parte das nações apresentarão o que tem de melhor em producções indu-
triaes e naturaes”.39
Desse modo, a fim de compreender os motivos do governo Borges
de Medeiros para promover a participação do Rio Grande do Sul na Ex-
posição Universal de 1906, é necessário estabelecer a articulação entre
processos distintos em suas conjunturas e distantes geograficamente.
Entretanto, ligados pela dinâmica do deslocamento populacional gera-
do pela emigração italiana para o Brasil: a realidade encontrada pelo
imigrante destinado à lavoura de café em substituição ao braço escravo
em São Paulo, os debates realizados entre defensores e detratores da
emigração em solo italiano e o estabelecimento do Decreto Prinetti, que
influenciou o fluxo populacional italiano pra o Brasil, inclusive para o
Rio Grande do Sul.

37
“Como verá da correspondência official, além do salão de 136 metros quadrados, alguns exposi-
tores poderão servir-se de vitrines e de bases de estantes. Convirá, porem, que se decidam com
urgência”. Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Arquivo Borges de Medeiros.
Carta de Bruno Chaves. Roma, Itália, 1º/2/1906. 2 folhas. Documento 12147. Descritores: Políti-
ca internacional, Partido Republicano Rio-Grandense.
38
A Federação, Porto Alegre, 11 de abril de 1906. Ano 1906 - Arquivo 00086. Disponível em: <http://
memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 1º mar. 2016.
39
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Arquivo Borges de Medeiros. Carta de
Bruno Chaves. Roma, Itália, 14/2/1906. 2 folhas. Documento 12148. Descritores: Política inter-
nacional, Partido Republicano Rio-Grandense.

134
João Carlos Tedesco | Giovani Balbinot

Propaganda étnica e econômica e interesses políticos


A imigração italiana foi enaltecida na exposição: sua situação eco-
nômica, de condição de proprietários de terra, de comércio e de pequenas
indústrias. Buscou-se dar ênfase aos que, segundo matéria do jornal A
Federação, já somavam mais 300 mil estabelecidos no estado e que se
encontravam em ótima situação econômica e social.
Mas que, em todo o caso, a emigração para o Rio Grande do Sul, graças a salu-
bridade do clima, a feracidade do solo e as sabias e liberalíssimas leis é cousa
bem diversa e grandemente proveitosa, tanto para o emigrante como para o
Estado que o acolhe bastando para prova recordar que existem no Estado 300
mil italianos, proprietários quase todos das terras que cultivam, de prédios e
bens que lhes proporcionam boa renda, ou exercendo commercio e indústria
remuneradores.40

Percebemos, na carta de Murillo Furtado, designado por Borges de


Medeiros ao cônsul do Rio Grande do Sul na referida exposição, o relato
da visita do Ministro do Exterior Italiano, Cav. Fittoni, sua real intenção
da participação do estado na Exposição Universal, que era permitir o
conhecimento do estado sulino e da situação dos emigrantes italianos,
bem como o consequente cancelamento do Decreto Prinetti, colaborando,
assim, para a retomada e o incremento do fluxo de emigrantes italianos
para o estado.
O ministro Fittoni prometeu estudar seriamente o problema magno e complexo
da emigração e fazer tudo o possível para conseguir a revogação do Decreto
Prinetti, pois está convencido de que os Estados do Brazil, autônomos como
são, offerecem vantagens diversas aos colonos e que o Rio Grande do Sul, por
suas condições especiais de clima, situação geographica, riquezas naturaes e
sabias leis que o regem, está destinado a receber a maior parte da corrente
emigratória futura.
Oxalá se torne em realidade sua promessa....41

Para concretizar tal ambição, o governo de Borges de Medeiros bus-


cou expor as características do clima, da terra e das leis do estado, de-
monstrando o desenvolvimento agrícola, comercial e industrial e a con-

40
A Federação, Porto Alegre, 15 de outubro de 1906. Ano 1906 - Arquivo 00239. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 1º mar. 2016.
41
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Arquivo Borges de Medeiros. Carta de
Murillo Furtado. Milão, Itália, 23/9/1906. 2 folhas. Documento 12143. Grifo nosso. Descritores:
Política internacional, Partido Republicano Rio-Grandense.

135
Detratores e marqueteiros da imigração italiana para o Brasil: Borges de Medeiros e as...

tribuição do emigrante italiano nestas áreas, além de expor as condições


econômicas e sociais destes indivíduos em solo sul-rio-grandense.
Esse contexto fica mais claro quando analisamos a reportagem de
15 de outubro de 1906 do órgão oficial do PRR, que ilustra os resulta-
dos dos trabalhos do professor Lessa Paranhos, do tenente Guilherme
Chaves Moutier e do designado cônsul do Rio Grande do Sul, Murillo
Furtado, comissários responsáveis pela exposição do Rio Grande do Sul:
“Tem os nossos commissarios desenvolvido uma propaganda insistente,
captando a attenção dos visitantes de nosso salão, em Milão, com as in-
formações minunciosas com que os acompanham, elucidando os sobre o
que nos interessa, especialmente para o problema da emigração”.42
Essa estratégia propagandista buscava enfatizar a prosperidade
econômica do estado e o reconhecimento social em relação aos imigran-
tes italianos, concretizando não apenas o sonho da propriedade, mas
também o da ascensão às atividades em casas de comércio e posses de
cargos públicos, mas, principalmente, o da promessa, para possíveis fu-
turos emigrantes, de encontrar, no estado sulino, “facilidades desde que
aportam no Estado, e sabendo ainda que as nossas riquezas estão por
explorar”, como exposto no texto a seguir:
As explicações e informações ministradas suprehendem principalmente os
próprios italianos, mais que os forasteiros. Aquelles, em grupos e com grande
curiosidade, perguntam e reperguntam tudo, sobre tudo, principalmente, de-
pois que ficam sabendo, admiradíssimos, que vivem no Rio Grande centenas
de milhares de italianos, e que lhes são mostrados os mapas prhotographias
e os dados acerca de tudo que concerne aos italianos. Verdadeira satisfacção
revelam os ouvintes ao saberem da prosperidade dos colonos italianos no Rio
Grande do Sul, proprietários em sua maior parte, possuindo grandes extensões
de terra cultivada: de campo, casas de commércio, exercendo cargos públicos,
electivos e de nomeação, encontrando todas as facilidades desde que aportam
no Estado, e sabendo ainda que as nossas riquezas estão por explorar.43

Aos italianos que visitavam a exposição do Rio Grande do Sul eram


expostos dados detalhados acerca do desenvolvimento econômico e social
dos compatriotas que escolheram a opção da emigração. Eram apresen-
tadas as facilidades propostas pelo governo de Borges de Medeiros em

42
A Federação, Porto Alegre, 15 de outubro de 1906. Ano 1906 - Arquivo 00239. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 1º mar. 2016. Grifo nosso.
43
A Federação, Porto Alegre, 3 de setembro de 1906. Ano 1906 - Arquivo 00206. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 1º mar. 2016. Grifo nosso.

136
João Carlos Tedesco | Giovani Balbinot

relação ao transporte para o estado, além das possibilidades de ganhos


e lucros auferidos pelas lavouras das pequenas propriedades coloniais.
Também eram apresentados dados relativos ao salário dos emigrantes
que, no Rio Grande do Sul, dedicavam-se ao trabalho operário industrial,
além das possibilidades de envolverem-se com empreendimentos comer-
ciais e agroindustriais e de praticarem seus cultos e sua fé com liberdade.
A citação a seguir é ilustrativa nesse sentido:
Ficam maravilhados (os italianos visitavam a exposição) com as noticias acer-
ca do nosso clima, do preço dos salários do trabalhador industrial ou operá-
rio, dos lucros que entre nós proporciona qualquer lavoura, pequena que seja,
qualquer pequena indústria, da segurança individual, da liberdade para qual-
quer trabalho como para professarem seu culto, das garantias de locomoção e
da facilidade de transportes, etc., etc.44

Com o desejo de conquistar a simpatia do Rei da Itália para o esta-


belecimento dos vínculos anteriores ao processo de emigração italiana e
colonização sul-rio-grandense, Guilherme Moutier destacou que Júlio de
Castilhos batizou uma das colônias do Rio Grande do Sul de Garibaldi,
em homenagem ao italiano Giuseppe Garibaldi, que compartilhou dos
combates da Revolução Farroupilha: “[...] a uma d’estas colônias elle deu
o nome de Garibaldi para que seja sempre lembrado que o intrépido ita-
liano dedicou os mais bellos annos de sua mocidade em auxiliar a causa
santa dos rio-grandenses, sedentos de bem estar e liberdade”.45
A carta enviada de Milão pelo comissário Murillo Furtado, datada 12
de novembro de 1906, apresenta-nos maiores informações sobre a visita
do Rei da Itália à exposição sul-rio-grandense. Segundo Furtado, ao Rei
da Itália, enquanto este analisava uma estátua de Giuseppe Garibaldi
feita em madeira, Guilherme Moutier discorreu sobre ele e suas ações em
favor da causa sul-rio-grandense, que lhe renderam o status de herói esta-
dual e homenageado com o nome de um dos principais núcleos coloniais.46

44
A Federação, Porto Alegre, 3 de setembro de 1906. Ano 1906 - Arquivo 00206. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 1º mar. 2016. Grifo nosso.
45
A Federação, Porto Alegre, 29 de agosto de 1906. Ano 1906 - Arquivo 00202. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 1º mar. 2016.
46
“Ao próprio rei não vacilou Moutier em fallar sobre o Rio Grande do Sul e fazer breve e eloquente
improviso alusivo ao heroe Garibaldi e suas primeiras campanhas na arte da guerra pela liber-
dade no território do Rio Grande. Aproveitou elle para isso o momento em que o rei se detinha
a examinar o projecto em gesso da estatua de Garibaldi”. A Federação, Porto Alegre, 17 de de-
zembro de 1906. Ano 1906 - Arquivo 00291. Disponível em: <http://memoria.bn.br/hdb/periodico.
aspx>. Acesso em: 1º mar. 2016.

137
Detratores e marqueteiros da imigração italiana para o Brasil: Borges de Medeiros e as...

Seguindo a visita, Sua Majestade italiana foi presenteada com um


exemplar de luxo da obra Un viaggio a Rio Grande del Sud; obra con-
cretizada sob a direção de Guilherme Moutier, com editoração dos jor-
nalistas Carlo Parlagrecco e Vittorio Buccelli, apresentando fotografias,
mapas e estatísticas relativas à agricultura, ao comercio e à indústria do
Rio Grande do Sul, com especial destaque à contribuição do emigrante
italiano nessas áreas. Além do Rei italiano, esta obra também se tor-
nou presente para mais de 200 comissários estrangeiros que visitaram a
exposição sul-rio-grandense, além de ministros, senadores, aristocratas,
intelectuais e jornalistas italianos.
A obra publicada por Vittorio Buccelli teve como principal propósito
uma descrição da conjuntura recente do estado, avaliando as produções
agrícola e manufatureira, pontos sobre a urbanística, o estado da saúde
e da higiene, a conjuntura política, as circunstâncias culturais e de ins-
trução relativas à imigração, com o objetivo final de promover o fluxo de
imigrantes para a colonização. Por fim, para encerrar a visita realizada
em 30 de abril pelo Rei italiano, à sua esposa, agradecendo a visita real,
foi oferecido, em nome da América Latina, um buquê de flores naturais:
“Ao proprio Rei não vacillou Moutier falar sobre o Rio Grande do Sul e
fazer uma breve allusão a Garibaldi e seus primeiros passos na arte da
Guerra, ensaiados em território rio-grandense”.47
Quanto ao Rei, após este demonstrar curiosidade e interesse a uma
exposição de mármores e outros minerais de valor, além de uma rica cole-
ção de madeiras de lei, fora oferecida como presente uma pedra ametista
que havia lhe agradado, presente por ele recusado. Entretanto, conforme
as palavras de Murillo Furtado, o objetivo maior da exposição parecia
ter sido alcançado, ou seja, uma possível revogação do Decreto Prinetti:48
“Eu provejo nisso tudo a revogação do celebre Decreto Prinetti”.49

47
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Arquivo Borges de Medeiros. Carta de
Murillo Furtado. Milão, Itália, 12/11/1906. 2 folhas. Documento 12144. Descritores: Política inter-
nacional, Partido Republicano Rio-Grandense.
48
“Como é de seus hábitos, o rei d’Italia não acceitou, confessando-se penhoradíssimo. Estres fac-
tos parecem indicar a previsão de ser revogado o celebre decreto Prinetti, contrário a imigração
para o Brasil”. A Federação, Porto Alegre, 17 de dezembro de 1906. Ano 1906 - Arquivo 00291.
Disponível em: <http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em: 1º mar. 2016.
49
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Arquivo Borges de Medeiros. Carta de
Murillo Furtado. Milão, Itália, 12/11/1906. 2 folhas. Documento 12144. Descritores: Política inter-
nacional, Partido Republicano Rio-Grandense.

138
João Carlos Tedesco | Giovani Balbinot

A revogação do Decreto Prinetti era entendida, pela esfera pública


sul-rio-grandense, como fundamental aos interesses do povoamento e da
colonização, bem como para a produção de alimentos e os seus processos
agroindustriais. O intenso fluxo de emigrantes italianos direcionados
para a Argentina e outros países do continente americano nos primeiros
anos do século XX, além de propiciar o desenvolvimento econômico des-
ses territórios, poderia servir de atração emigratória para os imigrantes
já estabelecidos no estado, os quais poderiam encontrar parentes e/ou
tentar melhores condições no país vizinho.
Não obstante os esforços empreendidos e as estratégias adotadas
para reverter o referido decreto, esse não foi alterado, ao contrário, ser-
viu para legitimar ações contra a emigração de italianos para outras na-
ções também. A imigração italiana que se seguiu foi, em grande parte,
não subsidiada, muitos imigrantes, anos antes da Primeira Guerra Mun-
dial, reemigravam da Argentina e se estabeleciam no Rio Grande do Sul.
O governo de Borges de Medeiros foi expressivo na estratégia de
favorecer processos de colonização para imigrantes, em particular, ita-
lianos. Esses preenchiam as condições que as políticas públicas de de-
senvolvimento pretendiam, bem como justificavam os investimentos em
transportes (trens e aberturas de estradas), na produção do trigo, na
dinâmica comercial e industrial, nas agroindústrias e nas ações extra-
tivistas (madeireiras e erva-mate). A pujança econômica de quase todas
as colônias oficiais de imigração no estado dava as credenciais para os
investimentos públicos.
Enfim, fazendo ligação com o primeiro parágrafo de nosso singe-
lo texto, podemos dizer que o fenômeno imigratório conserva horizontes
particulares, contraditórios, conjunturais, etc. Enquanto algumas nações
questionavam (e continuam questionando e dificultando) a presença de
imigrantes em seu interior, o Brasil, em particular, no estado meridional,
adotou múltiplas estratégias para atraí-los, pois os italianos se encaixa-
vam nas novas dinâmicas de desenvolvimento econômico e produtivo,
de ocupação territorial e de referência cultural e religiosa. A primeira
exposição analisada deu um ponta pé inicial nesse processo, porém, na
segunda, foi central. Os intentos das exposições analisadas podem não
ter revertido o Decreto Prinetti, porém atraíram imigrantes italianos
que encontraram estratégias para se inserir nos espaços favorecidos pela
esfera pública.

139
Detratores e marqueteiros da imigração italiana para o Brasil: Borges de Medeiros e as...

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140
João Carlos Tedesco | Giovani Balbinot

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141
Política imigrantista e identidade étnica: o elemento teuto-brasileiro na visão de...

Política imigrantista e
identidade étnica:
o elemento
teuto-brasileiro na visão
de Karl von Koseritz
Tiago Weizenmann

O
s diversos escritos deixados por Karl von Koseritz, bem como seu
engajamento na imprensa, na política e nos círculos intelectuais
do século XIX, permitem pensar sobre alguns dos condicionantes
fundamentais para uma identidade étnica teuto-brasileira em constru-
ção e que, ao longo do tempo, contribuíram para consolidar atributos
políticos e culturais como referenciais identitários pertinentes às gera-
ções descendentes das primeiras levas de imigrantes.1 Ao considerar a
sua chegada ao Brasil, em 1851, com destaque à intensa atuação polí-

1
A apresentação deste texto é parte dos resultados obtidos nos estudos desenvolvidos na cons-
trução da tese de doutoramento (WEIZENMANN, 2015), ao analisar e compreender as possibi-
lidades criadas por Karl von Koseritz na atuação em diversos empreendimentos tipográficos de
Porto Alegre, entre os anos de 1864 e 1890. O período entre sua chegada à capital da província
e sua morte configurou o momento de maior produção intelectual, enquanto jornais, álbuns ilus-
trados, folhas literário-científicas e almanaques constituíram os instrumentos fundamentais de
divulgação de suas ideias.

142
Tiago Weizenmann

tica e intelectual a partir do seu estabelecimento, em 1864, na capital


da província – Porto Alegre –, até a sua morte repentina em 1890, é
possível reconstruir alguns dos percursos do brummer2 Karl von Kose-
ritz, validando a conclusão de que foi, ao longo da história, um dos prin-
cipais expoentes em defesa do elemento teuto-brasileiro, vinculado ao
contexto da imigração e da política de colonização do Império, que mar-
caram, especialmente, a segunda metade do Dezenove brasileiro.
Entre as análises que destacaram a figura de Koseritz como expoen-
te intelectual e político está, certamente, aquela empreendida por Carlos
Oberacker Junior. Seu estudo, entre outros pontos, demonstra o engaja-
mento pela valorização do elemento teuto no Brasil, diante do contexto
de imigração que se criara, a partir de 1824. Palavras pronunciadas por
Koseritz, em 1889, confirmam essa afirmação, quando ressaltava sua
condição como responsável pelo seu almanaque em língua alemã: “Tenho
em vista apenas uma finalidade, uma diretriz na atuação como redator:
a elevação do elemento teuto neste País, a defesa dos seus interesses e as
condições de seu progresso”.3
A citação efetivamente reflete parte significativa da atuação que
Karl von Koseritz realmente exerceu. Isso significa, entre outras coisas,
que ele tomou a linha de frente nas questões mais importantes que pro-
curavam garantir a inserção e a atuação do imigrante alemão à realida-
de brasileira. Não é equivocado, inclusive, afirmar que foi ele que, pela
primeira vez, projetou o tema e o debate da etnia para campos mais am-
plos e dinâmicos, encontrando ecos na província e também no Império.
Tal condição, por exemplo, acabou sendo admitida pelo pastor Wilhelm

2
Brummer é o termo atribuído aos soldados mercenários contratados pelo Império brasileiro, que
chegaram ao país em 1851. Era uma legião composta por mais de 1.700 soldados, entre eles
50 oficiais, tecnicamente e intelectualmente qualificados para a guerra. Sua atuação voltava-se
às agitações políticas da metade do século XIX, na fronteira entre o Império brasileiro e as
nações platinas – Argentina e Uruguai. Brummer, em alemão, significa “zumbidor”, “rezingão”,
“murmurador”, descontente com a sua sorte. Um dos brummer relatava que chamavam assim
as moedas graúdas de cobre que recebiam os soldados como soldo, passando a expressão a
denominar os próprios mercenários. Depois de dissolvida a legião, alguns brummer passaram a
exercer influências política, social, econômica e cultural: Barão von Kahlden, além de Karl von
Koseritz, Wilhelm ter Brüggen e Frederico Hänsel, que foram membros da Assembleia Provincial
do Rio Grande do Sul; Herrmann Rudolf Wendroth, pintor que registrou em aquarelas a vida da
província naqueles tempos; Franz Lothar de la Rue, primeiro diretor da colônia de Teutônia; Carl
Otto Brinckmann, atuou na imprensa em Santa Maria; Carlos Jansen, jornalista em Porto Alegre
(WEIZENMANN, 2015, p. 31-34).
3
Koseritz’ Deutsche Zeitung, 10/7/1889.

143
Política imigrantista e identidade étnica: o elemento teuto-brasileiro na visão de...

Rotermund, ao dizer que Koseritz era o líder, embora agradável para al-
guns ou lamentável para outros, “[...] podemos felicitar a coletividade por
esse líder ou podemos cordialmente deplorar esta situação. O fato é que o
senhor Koseritz, entre todos, é o que goza de maior confiança dos teutos
na Província” (DEUTSCHE POST, 1882 apud GANS, 2004, p. 247).
Na historiografia sobre a imigração alemã no Brasil, a discussão
sobre a identidade teuto-brasileira tem reforçado e elucidado, ainda que
não o suficiente, a contribuição de Karl von Koseritz para a temática.
Nessa perspectiva, Martin Dreher (2001, p. 8) refere-se a três distintos
grupos que ofereceram, já no século XIX, orientações filosófico-religiosas
para a população imigrante e para os seus descendentes estabelecidos
no Brasil. Tal classificação, que define uma história intelectual para a
imigração alemã no sul do Brasil, coloca em evidência duas importantes
vertentes religiosas, sobretudo na figura dos pastores Wilhelm Roter-
mund e Hermann Dohms, para os teuto-brasileiros luteranos, e na figura
dos jesuítas Theodor Amstad e Max von Lassberg, para o contingente
católico. Finalmente, uma terceira orientação encontrar-se-ia vinculada
à liderança de Karl von Koseritz e reuniria, sobretudo, uma vertente de
cunho liberal,4 sendo, diferente das anteriores, desprendida dos movi-
mentos religiosos. Nesse ponto, devemos pensar que a vertente liberal
em Koseritz não se apresentava somente no sentido político-partidário,
mas muito mais, como bem lembra Guilhermino Cesar (1971, p. 252),
na presença do racionalismo agressivo e contundente. A demonstração
dessa heterogeneidade, marcada pela existência das diferentes correntes
de pensamento que mobilizaram imigrantes e descentes de uma maneira
distinta, aponta para o reconhecimento das disputas travadas entre os
grupos.
Diante dessas considerações iniciais, podemos afirmar que, assim
como alguns estudiosos já o fizeram,5 Koseritz é um proponente original

4
Hailke R. K. da Silva ainda se refere a outros critérios que podem ser utilizados para elencar lide-
ranças. Para tanto, cita-se a afirmação de René Gertz, quanto à chamada “Geração de 48”, que
teria trazido consigo uma experiência política e de guerra maior, além de pertencerem a níveis
sociais e culturais mais privilegiados, se comparados aos primeiros emigrantes (SILVA, 2005, p.
301; GERTZ, 1987, p. 34).
5
É importante ressaltar que, entre os estudos realizados, Oberacker Jr. sinaliza o papel primordial
desempenhado por Koseritz para a instituição de uma ideologia teuto-brasileira. Segundo ele,
“[...] ninguém melhor do que Koseritz, talvez manifestou de modo tão claro e categórico, a ideia
de uma germanidade radicada no solo do País” (1961, p. 52).

144
Tiago Weizenmann

para a constituição de uma ideologia teuto-brasileira. Seguindo conside-


rações de Giralda Seyferth (1999, p. 88), os princípios distintivos dessa
identidade foram calcados nas características sociais e culturais pecu-
liares das colônias alemãs, bem como nos pressupostos do jus sanguinis,
diferenciando-se dos “imperativos de assimilação ditados pelo naciona-
lismo brasileiro como condição de cidadania”. Neste caso, a categoria
teuto-brasileiro (Deutschbrasilianer) concretiza-se pelo jus sanguinis6 e
pelo jus soli,7 visualizando a combinação entre a origem alemã e a cida-
dania brasileira, como Koseritz também imaginava. Pelo laço de sangue,
haveria a preservação dos traços culturais mais característicos, e, como
cidadãos nascidos em solo brasileiro ou naturalizados, os teuto-brasilei-
ros fariam do Brasil a sua pátria, o que representaria sua integração
efetiva na política. Koseritz, um alemão naturalizado, fez dessas ideias
uma de suas principais propostas, fazendo entender a noção de cidada-
nia teuto-brasileira por meio dela. A concepção de etnicidade seria ma-
terializada na imprensa, especialmente em literatura produzida pelos
teuto-brasileiros, como fizera Koseritz.8
[...] a construção de uma nova identidade está atrelada a dois pertencimentos
“pátrios” – algo absolutamente estranho para um nacionalismo assimilacio-
nista – com destaque para a “índole” e o “espírito” germânico (próprios da
percepção do jus sanguinis). Essa identidade, que logo as lideranças coloniais
denominaram teutobrasileira, surgiu para marcar as distintividades étnicas
da população de origem germânica num contexto social em que a maior parte
dela não tinha direitos de cidadania [...] (SEYFERTH, 2002, p. 129).

O conjunto de ideias que caracteriza o pensamento sobre o teuto-


-brasileirismo pode ser encontrado em diferentes espaços ocupados por
Koseritz, seja como intelectual, como redator da imprensa alemã ou bra-
sileira, ou, também, pela sua atuação como político da província de São
Pedro do Rio Grande do Sul, ocupando, recorrentemente, a tribuna da
Assembleia para chamar a atenção das autoridades. A partir disso, po-

6
A nacionalidade é definida a partir do território onde a pessoa nasce.
7
Atribui-se determinada nacionalidade a alguém, levando em consideração critérios consanguíne-
os de ancestralidade.
8
Para Seyferth (1999, p. 75), “[...] mais do que as diferenças concretas, caracterizáveis como
étnicas, o discurso sobre Deutschtum e Deutschbrasilianertum, e a ênfase, principalmente da
elite local, na identidade teuto-brasileira, deram margem a conflitos, principalmente para aqueles
cuja trajetória de ascensão social ultrapassou os limites da comunidade local, e pelo fato de a et-
nicidade ser considerada pelos brasileiros como obstáculo à assimilação e risco para a unidade
nacional”.

145
Política imigrantista e identidade étnica: o elemento teuto-brasileiro na visão de...

demos destacar uma premissa básica para um novo tipo de brasilidade,


voltada às comunidades de origem teuta. Essa nova forma de identida-
de, que tanto fora pretendida por Koseritz, afastava-se da compreensão
que era carregada pelo próprio Estado brasileiro, manifestada no uso da
noção de que a língua e, eventualmente, a religião pudessem constituir
motivos de discriminação entre filhos do mesmo país, como diziam suas
próprias palavras.9
Na prática, não poderia ser estranho ao país encontrar homens e
mulheres de origem alemã, fiéis à sua origem étnica, ocupando-se com
coisas brasileiras. Tal constatação permite inferir que Koseritz instituiu
uma maneira singular ao comportamento do elemento teuto, a qual in-
cluía a premissa fundamental de que os colonos de origem alemã e seus
descendentes devessem ser absolutamente brasileiros, especialmente
naquilo que dizia respeito à esfera política. Contudo, essa dimensão não
excluía o elemento cultural. Ao contrário, Koseritz passou a ditar uma
postura que harmonizava duas categorias diferentes, entre elas, por um
lado, o pensamento político-estatal e, por outro, os indicadores étnico-
-culturais da germanidade, sem romper com os laços culturais da terra
natal de tantos imigrantes estabelecidos no Brasil. Entre tantos escritos,
poderiam ser citadas algumas passagens de Bilder aus Brasilien, nas
quais Koseritz alertava para algumas questões de integração, sobretudo
quando comparava as colônias alemãs ao sul com o núcleo alemão do Rio
de Janeiro (KOSERITZ, 1885, p. 242).
Se, por um lado, a ausência da miscigenação poderia trazer benefí-
cios econômicos à Alemanha, por outro, tal projeto de imigração não ele-
varia o elemento teuto ao reconhecimento político, o que poderia resul-
tar em uma integração mais consistente à pátria que o recebera. Assim,
Koseritz enxergava a presença teuta nos Estados Unidos e na Austrália,
por exemplo, ligada, sobretudo, a interesses econômicos, sem que, de
fato, essa população contribuísse de maneira efetivamente política com
a terra que os acolheu. Fundamentado na perspectiva de que a partici-
pação política era importante, Koseritz reafirmava os laços com a antiga
pátria, que se caracterizavam como culturais, seja pela utilização da lín-
gua vernácula ou pela prática de costumes e hábitos, mas colocando a po-
lítica como artefato indispensável e insuperável de integração ao Brasil:

9
Koseritz’ Deutscher Volkskalender, 1880, p. 169.

146
Tiago Weizenmann

“Nós não vivemos no Brasil sob a bandeira alemã, mas pela língua e pe-
los costumes fazemos parte da Alemanha; nós estamos ligados por todas
as fibras do coração à velha pátria, politicamente, porém, somos plena e
completamente cidadãos brasileiros [...]” (KOSERITZ, 1885, p. 241).
Ao analisar as categorias que compõem a questão identitária do teu-
to-brasileiro e que estão presentes em Koseritz pelo viés da imprensa,
percebemos que ele dimensiona conscientemente duas perspectivas dife-
rentes, mas complementares: a esfera étnico-cultural e a esfera política.
Traço original do seu pensamento, trouxe à tona uma necessidade que se
mostrava basilar, separando a face político-estatal da cultural. Compre-
ender essa perspectiva, segundo Oberacker Jr. (1961, p. 53), é diferenciar
Koseritz de outros casos que, de alguma maneira, tiveram importância
na definição teuto-brasileira. Johann Daniel Hillebrand, um dos direto-
res da Colônia de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, referenciado por
Koseritz como o “Patriarca de São Leopoldo”,10 por exemplo, não teria
contribuído para a construção teórica de uma concepção teuto-brasileira,
uma vez que não compreendera a importância em separar a cidadania
política do imigrante no Brasil da esfera cultural. De outro modo, o tra-
ço original de Koseritz confirma-se pela criação de uma alternativa a
correntes que detinham maior influência sobre as áreas de colonização
alemã. Fez valer uma identidade teuto-brasileira que não se encontrava
ligada à vertente religiosa, fosse ela católica ou protestante. Projetou
uma via de participação política capaz de manifestar os interesses, os
anseios e os direitos de uma população que reivindicava o seu espaço de
cidadania. Era, portanto, uma via independente e liberal.
Para André Fabiano Voigt (2008, p. 119-120), ao propor um estu-
do sobre aquilo que denomina de “invenção do teuto-brasileiro”, desta-
ca que algumas releituras realizadas a partir do papel de Koseritz no
contexto da colonização alemã, em especial no artigo apresentado por
Arpad Szilvassy no I Colóquio de Estudos Teuto-brasileiros,11 em 1963,
equivocaram-se, ao atribuir ao intelectual do século XIX a separação do
político-estatal do cultural.

10
Koseritz’ Deutscher Volkskalender, 1874.
11
O “I Colóquio de Estudos Teuto-brasileiros” foi realizado entre os dias 24 e 30 de julho de 1963,
organizado pelo Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. Intelectuais ligados aos estudos da imigração alemã no
Brasil participaram do colóquio, como Emílio Willems, Artur Hehl Neiva, Egon Schaden, José
Fernando Carneiro, além do convite feito a Gilberto Freyre para presidi-lo, embora não pudesse
comparecer (VOIGT, 2008, p. 107).

147
Política imigrantista e identidade étnica: o elemento teuto-brasileiro na visão de...

[...] logo após, afirma um enunciado-chave, repetido à exaustão pelos autores


que se dedicam ao assunto: “Ele [Koseritz] conseguiu separar o elemento po-
lítico-estatal do cultural” [...]. Szilvassy sustenta esta afirmação como se, na
época do jornalista – no século XIX, o século das nacionalidades fundamenta-
das no conceito de Kultur – fosse possível haver clareza da separação destas
esferas do mesmo modo que em meados do século XX. De acordo com a citação
que faz de Koseritz, é questionável atribuir a ele a ideia de ter realizado uma
separação abrupta entre as esferas da política e da cultura em pleno século
XIX, mas sim, que tenha conclamado as populações de imigrantes alemães e
descendentes no Brasil a participarem ativamente da vida política brasileira,
sem que o reconhecimento ou não de sua identidade cultural se tornasse um
óbice para a sua participação ativa. A afirmação de Koseritz destoa da con-
cepção do autor do artigo, que nos parágrafos seguintes insiste em dizer que
os colonos alemães e seus descendentes viviam não só fora da sociedade local,
como os luso-brasileiros os tratavam com desprezo e, às vezes, até mesmo
com hostilidade. [...] os descendentes dos alemães encontravam-se num grupo
social profissional e etnicamente rejeitado [...]. Nota-se, mais uma vez, que a
insistente necessidade de afirmar a rejeição do teutobrasileiro no quadro na-
cional não se concilia com o que Koseritz pleiteava em seus escritos do século
XIX. Szilvassy, no afã de reafirmar a construção de heróis teuto-brasileiros,
acaba por trazer incongruências interpretativas, as quais acabam por estra-
tificar saberes em favor da vitimização teuta, e não para incentivar a saída
de seu imobilismo político. A fabricação da vítima é a territorialização da sua
incapacidade como ser pensante e politicamente ativo.

Ao retomar a reflexão de Voigt, é importante pontuar que Koseritz


propôs um novo conceito para a brasilidade, e que ela perpassava, de
forma fundamental, a separação que ele propunha entre o viés político-
-cidadão e as questões culturais do imigrante alemão e de seus descen-
dentes. Diante disso, reconhecer as categorias presentes na identidade
teuto-brasileira não é promover um equívoco sobre os limites que a defi-
nição representou para o século XIX. Fato é que elas apresentam-se no
pensamento de Koseritz de maneira muito clara, funcionam de forma
separada e constroem um perfil original para pensar o corpo teórico des-
sa ideologia. Como já destacamos, se elas se encontram separadas, não
significa que se excluam ou que uma se sobreponha à outra. Oberacker
Jr. (1961, p. 53) lembra que as duas dimensões relacionam-se em harmo-
nia, ao mesmo tempo em que se complementam – para Koseritz, “[...] a
atividade política também é uma atividade cultural da coletividade de
cultura e língua alemãs”.
Dentre as evidências que podem ser utilizadas para corroborar esta
concepção de identidade e de cidadania, faz-se referência ao momento em

148
Tiago Weizenmann

que Koseritz, em 1883, no Rio de Janeiro, fazia algumas considerações


sobre os festejos à presença do príncipe alemão Henrique, na Sociedade
Germânia, uma das principais entidades teutas da Capital do Império.
Chamava atenção ao observador o fato de que apenas se usavam ban-
deiras da Alemanha, uma vez que, no Rio Grande do Sul, a bandeira
brasileira nunca faltava ao lado da alemã, “[...] pois a grande maioria
dos homens de língua alemã de lá já é nascida no Brasil e uma grande
porcentagem dos imigrantes é naturalizado”. Continuava dizendo que o
[...] centro dos interesses está no Brasil, nós devemos participar da vida pú-
blica do país, no qual não vivemos temporariamente, mas onde nos estabe-
lecemos e fundamos as nossas famílias, que ao Brasil dão o nome de pátria.
Formamos hoje a sexta parte da população do Rio Grande, e no que respeita
as contribuições fiscais, a metade talvez do que a província arrecada vem de
mãos alemãs. Daqui provém a necessidade de ganhar influência sobre o go-
verno, de criar posição política que garanta ao elemento alemão sua parte no
governo do país. No Rio Grande e em Santa Catarina os alemães têm uma
tarefa cultural a cumprir e são um fator político de peso. Ali nos envolvemos
francamente na vida brasileira e empregamos todos os esforços para o desen-
volvimento e o progresso do país, ao qual nos ligam os mais estreitos laços de
vida e dos interesses. Mas nem por isto deixamos de guardar no coração um
fiel amor pela velha terra, e sempre a ajudamos, que ela atravessa horas pe-
nosas. A língua e os costumes alemães, o amor ao trabalho, a fidelidade alemã
são praticados por nós como talvez por ninguém no exterior, e nós mantemos
os laços espirituais com a Alemanha tão firmemente quanto aderimos decidi-
damente ao Brasil pelos laços políticos (KOSERITZ, 1972, p. 165).

Sem deixar de aludir, igualmente, a outra importante ideia de Voigt,


não se pode enxergar na proposta de inserção política no cenário brasilei-
ro uma concepção de vitimização para com o imigrante alemão. Recons-
truir a proposta de Koseritz requer compreender que se tratava de um
engajamento propositivo, que almejava efetivar mais ainda a participa-
ção e a contribuição ativa e dinâmica de um grupo étnico recém-chegado
ao Brasil, para exercer, enfim, sua cidadania no Brasil.
Sobre o teuto-brasileiro, não somente teorizou e propôs uma agenda
de integração à política imperial, como se demonstrou um atento obser-
vador, especialmente sobre manifestações que fugiam do viés por ele pro-
posto e que despertavam declarações curiosas, como a que se registrou,
por exemplo, no Koseritz’ Deutsche Zeitung:12

12
Koseritz’ Deutsche Zeitung, 25/10/1885.

149
Política imigrantista e identidade étnica: o elemento teuto-brasileiro na visão de...

É curioso o comportamento dos teuto-brasileiros em Porto Alegre. Deram-se


o apelido de “filhos de Havana”. Ninguém sabe, ao certo, de onde tiraram
este cognome. Há um “Clube de Havana” em Porto Alegre e seus membros
são exclusivamente teuto-brasileiros. Alemães natos são excluídos. Os “Filhos
de Havana” nada querem saber de “alemães do Reino”. “Eu sou cidadão bra-
sileiro”, é o que dizem a toda hora. Muitos deles dizem abertamente: “Tenho
vergonha de ser de origem alemã”.

O trecho pode sugerir que uma integração do elemento teuto esta-


va condicionada não exclusivamente à resolução de problemas políticos.
Ela, de certa forma, seguiu caminhos que projetavam distinções entre os
membros de um mesmo grupo. A diferenciação entre alemães do Reino e
teuto-brasileiros era uma construção que se dava em meio à população
étnica de determinados locais, como se constata na passagem anterior,
para o caso de Porto Alegre. Não que se tratasse de um movimento de
grande repercussão, mas permite pensar que a homogeneidade cultural
não pode ser confirmada, muito menos radicalizada. A impressão, enfim,
pode ser a mesma que Koseritz tivera ao comparar os alemães do Rio
Grande do Sul aos do Rio de Janeiro. No entanto, a questão encontrava-
-se, então, muito mais próxima dele.
Da mesma forma, não é apenas o viés criado por Koseritz que per-
mitiu discutir a integração do imigrante ao cenário público do Brasil.
A historiografia tem demonstrado, como chama atenção Ryan de Sousa
Oliveira (2008, p. 80), diferentes vestígios que atestam para o protago-
nismo e para o exercício da cidadania pelos teuto-brasileiros, que soube-
ram criar canais de negociação com os Estados provincial e imperial. A
análise dessas evidências possibilita relativizar, inclusive, as teses clás-
sicas que insistiam em uma não integração política e não cidadã dos teu-
to-brasileiros, bem como ultrapassar a visão que vitimiza os colonos por
meio de uma legislação excludente e no conceito de isolamento.
As demandas culturais, religiosas, econômicas e políticas dos teuto-brasileiros
encontraram seus espaços na estrutura jurídica, burocrática e administrativa
brasileira, de maneira que é possível constatar que cidadania não se constrói
apenas com disposições constitucionais, mas a partir de pequenos conflitos e
entendimentos entre poder público e sociedade, em que um simples requeri-
mento pode assumir vital importância como participação cidadã.
Na busca por atender seus interesses, os teuto-brasileiros procuraram uma
relação mais próxima com o Estado. Para defesa de seu direito de propriedade
diante de litígios, recorriam ao judiciário requisitando mediação. Para pleitear
assistência religiosa ou escolher o pastor titular da comunidade, lançaram mão
de requerimentos dirigidos à Administração Pública (OLIVEIRA, 2008, p. 83).

150
Tiago Weizenmann

Koseritz compreendia que a participação mais ativa do elemento


teuto na dinâmica sociopolítica do país poderia potencializar uma con-
tribuição mais efetiva. Essa contribuição poderia manifestar-se, segundo
suas ideias, pela presença imponente de predicados que eram atribuí-
dos ao elemento alemão, destacando-se a mentalidade, o sentimento do
dever e da fidelidade, bem como o amor pelas instituições. Caso esses
atributos estivessem presentes no contexto brasileiro, segundo Koseritz,
seriam como forças regeneradoras e cumpririam uma missão, cujo escopo
final seria o de engrandecer a nova pátria que os acolhera. Assim, deixa-
va registrado, em seu mais importante almanaque: “O elemento alemão
deve conquistar o lugar que lhe compete, e isso somente será conseguido
por uma participação mais ativa na vida política da nação”.13
Enfim, é de grande importância reconhecer o programa político que
Koseritz destinava à comunidade alemã no Brasil. Ele possibilitava, tam-
bém, estabelecer parâmetros comparativos entre os núcleos distribuídos
pelo país. Reconhecia diferenças visíveis entre as áreas de colonização no
Rio Grande do Sul e as situadas na Região Sudeste, como as que visitou
em 1883, citando Rio de Janeiro e Petrópolis.14 Nesses locais, segundo
Koseritz, os alemães eram apenas estrangeiros e faziam do Brasil nada
mais que uma estação de passagem.
Há que se ressaltar que o incentivo à participação política no Brasil
não representava uma via exclusiva para efetivar uma maior integração.
Ao mesmo tempo em que reconhecia essa necessidade, exigia das autori-
dades provinciais e imperiais maior engajamento para promovê-la. Isso
significava, entre outros pontos de reivindicação, um incentivo à natura-
lização dessa população.
A província do Rio Grande, cujo futuro depende da imigração, quer a gran-
de naturalização facultativa e para poder tê-la, é mister que se reforme a
constituição em mais pontos, do que permite a acanhada proposta do governo
imperial.15

13
Koseritz’ Deutscher Volkskalender, 1879.
14
Sobre sua passagem no Rio de Janeiro e Petrópolis, Koseritz não consegue reconhecer os nú-
cleos germânicos como semelhantes aos instalados nas regiões coloniais do Rio Grande do Sul.
Para tanto, basta observar os registros que se encontram na obra Bilder aus Brasilien, de 1885
(KOSERITZ, 1885, 1972).
15
Gazeta de Porto Alegre, 10/3/1879.

151
Política imigrantista e identidade étnica: o elemento teuto-brasileiro na visão de...

Embora insuficiente aos olhos de muitos agentes políticos favorá-


veis a uma integração mais abrangente, ao final da década de 1870, a
grande naturalização, como foi chamada a concessão aos imigrantes que
se estabeleceram no Brasil, mas ainda restringindo certos direitos po-
líticos, tornava-se uma das primeiras e mais significativas conquistas
no campo político do Império, após décadas de imigração. Ela foi apro-
vada após a formação do Gabinete Sinimbu, do qual também Gaspar
Silveira Martins era integrante. Contudo, a crise que se instalou naquele
gabinete liberal, em 1878, expôs as problemáticas levantadas por Silvei-
ra Martins, que chegou a desligar-se do governo por entender que era
necessário executar uma reforma mais ampla, que chegasse a atender
os não católicos e naturalizados de sua província. A atitude de Silveira
Martins foi elogiosamente noticiada em jornais de Porto Alegre, como o
Deutsche Zeitung, tratada como “[...] um gesto valoroso e abnegado com
que surpreendeu a nação e todo o mundo civilizado quando, por questão
de consciência, sacrificou a honrosa posição de ministro de Estado”.16
Contudo, a ideia de naturalização e de integração à realidade po-
lítica brasileira não se demonstrou como uma opinião homogênea, tor-
nando-se ponto de discórdia entre algumas personalidades germânicas
de destaque. Ao mesmo tempo, o debate deu força a um dos maiores
adversários de Karl von Koseritz, incluindo uma ferrenha oposição ao
seu pensamento. Nesse contexto de disputa, Wilhelm ter Brüggen17 re-
futava a noção de teuto-brasileiro, uma vez que acreditava na fidelidade
e na relação que os imigrantes ainda deveriam manifestar ao império
alemão. Wilhelm ter Brüggen, assim como Koseritz, era um brummer e
esteve vinculado ao cenário político como deputado provincial, na década
de 1880, com destaque à atuação na comunidade germânica de Porto
Alegre. Além disso, foi representante consular do Reich no Brasil e, como
tal, rejeitava a inclusão dos imigrantes alemães e de seus descenden-
tes à política local. Essa constatação reforça, novamente, a condição que
Wilhelm ter Brüggen projetava sobre os imigrantes alemães no Brasil,
como súditos fiéis ao Kaiser.

16
Deutsche Zeitung, 21/2/1879.
17
Como já destacamos anteriormente, embora tenha ocorrido uma aproximação durante quinze
anos, com a entrada de Koseritz como redator do jornal Deusche Zeitung, sendo Wilhelm ter
Brüggen um dos administradores do periódico, o rompimento definitivo ocorreu em 1881, tendo
em vista as fortes divergências que se apresentaram entre eles, devido à Exposição Brasileira-
-Alemã.

152
Tiago Weizenmann

Se Koseritz compreendeu que uma efetiva participação do elemento


teuto-brasileiro poderia contribuir para a grandeza da nação, sem que
isso representasse o abandono da sua germanidade, Silvio Romero, es-
pecialmente na primeira década do século XX, dirigiu duras críticas à
imigração alemã ao Brasil, incluindo a própria figura de Koseritz. Cal-
cado na ideia de que a mestiçagem estava atrelada à condição de desen-
volvimento nacional, passou a condenar a “aglomeração” de europeus na
Região Sul, bem como a imigração alemã e o pangermanismo, reconhe-
cendo os imigrantes e seus descendentes como concorrentes e perigosos,
sob o ponto de vista nacional. O pensamento de Romero18 pressupunha
um imigrante que não só se deixa assimilar, “[...] mas também se integra,
pela mestiçagem, com os nacionais, cumprindo o desígnio do branquea-
mento. [...]. Daí a conveniência da imigração lusitana, ou até mesmo da
imigração italiana – segundo seus termos, menos perigosas por serem
gentes latinas e mais assimiláveis” (SEYFERTH, 2002, p. 131). Dessa
forma, passava a denunciar o “alemanismo” no sul, onde a língua portu-
guesa não era utilizada, e, consequentemente, a abrir possibilidade para
um novo Estado. Pelas palavras de Seyferth (2002, p. 131), Romero
[...] situa a etnicidade teuto-brasileira no extremo oposto da pretendida for-
mação histórica, pela qual o Brasil tem a definição de país ibero-latino. O
argumento que desqualifica os alemães tem, aparentemente, uma natureza
política: é o discurso antiimperialista, condenatório do pangermanismo e ba-
seado na doutrina Monroe, mencionada no opúsculo de 1906. Entretanto, o
que importa é a “desnacionalização”, a diferenciação cultural, o fato simples
da fronteira grupal e da construção da identidade étnica [...].

Mesmo expressando essas considerações, Romero não deixaria de


perceber Koseritz como um importante ícone da imigração alemã, em-
bora não poupasse críticas às pretensões que seriam geradas pela colo-
nização no sul do Brasil. Alberto Luiz Schneider destacou que Romero,
em texto publicado em 1904, fazia menção ao ilustrado e ativo alemão,
imigrado desde 1851, seu amigo, ao qual atribuía a seguinte revelação:

18
Segundo Giralda Seyferth (2002, p. 131), é possível encontrar discursos xenofóbicos e panfletá-
rios em Silvio Romero, especialmente aqueles apresentados na Conferência no Real Gabinete
Português de Leitura do Rio de Janeiro, em 1902, bem como em texto datado em 1906.

153
Política imigrantista e identidade étnica: o elemento teuto-brasileiro na visão de...

Em 1885 requeri a Assembleia do Rio Grande do Sul a concessão de transpor-


tar da Alemanha trezentas mil famílias para elas povoar todo o território das
Missões; a Assembleia indeferiu tal pretensão e foi pena; porque, como você fa-
cilmente avalia, seria o gérmen seguro do futuro Estado germânico em terras
da Meridional América (ROMERO, 1906 apud SCHNEIDER, 2005, p. 150).19

Entre outros argumentos que se aliavam à percepção que Romero


descrevera, é possível compreender a rejeição que ele propunha à presen-
ça teuta no sul do Brasil, o que não excluía uma depreciação da própria
personalidade de Koseritz e de sua ideologia teuto-brasileira. Afinal,
como era possível compreender uma identidade nacional sem que as di-
mensões culturais estivessem dissociadas, num primeiro plano, da atu-
ação política? Certamente, essa incompreensão reforçara-se em outros
planos com as crescentes tensões internacionais, incluindo a deflagração
da Grande Guerra, em 1914, e a posterior tomada de posição do Brasil
contra a Tríplice Aliança.
Para além das questões de ordem teórica, a participação de Koseritz
no âmbito das sociedades demonstrava seu interesse concreto em pro-
por medidas em prol da imigração alemã para o Brasil, destacando-se a
criação da Sociedade Central de Imigração – Centralverein für Einwa-
nderung. Fundada em 1883, foi idealizada por três imigrantes alemães
de grande influência regional entre as comunidades teuto e teuto-brasi-
leiras, incluindo os nomes de Karl von Koseritz, Herrmann Blumenau
e Hugo Gruber.20 O significado da criação da entidade está em um dos
seus pronunciamentos na Assembleia, dois anos mais tarde, quando se
lembrava de que havia tido o privilégio de explanar, “[...] perante um
numeroso e seleto auditório, [...], no Rio de Janeiro, vendo coroada de tão
feliz êxito a minha iniciativa, que então fundou a Sociedade Central de
Imigração, que tantos e tão relevantes serviços já tem prestado à causa
da imigração”.21
Além desses, alemães como o Barão de Thautphöus e Gustav Trinks
fariam parte do movimento de criação, bem como outros nomes proe-

19
O texto ao qual Alberto Luiz Schneider se refere é “O elemento português no Brasil”, no qual
Romero condensa e aprofunda suas especulações sobre a herança ibero-lusitana na formação
histórica e cultural do Brasil, considerando, entre outras coisas, a primazia dos portugueses na
fundação da nacionalidade brasileira.
20
Herrmann Blumenau foi fundador da colônia de mesmo nome, em Santa Catarina. Hugo Gruber
ocupou o cargo de diretor do jornal Allgemeine Deutsche Zeitung, no Rio de Janeiro.
21
Anais da Assembleia da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, 1885, p. 23-24.

154
Tiago Weizenmann

minentes ligados à comunidade luso-brasileira figuram como agentes


importantes para a concretização da sociedade, e suas assinaturas en-
contram-se nos manifestos públicos, entre eles, Henrique de Beaurepai-
re-Rohan, Alfredo Escragnolle Taunay, Ennes de Souza, Barão de Irapuá
e Barão de Tefé.22 De forma geral, os líderes da sociedade eram pessoas
importantes, cujas ideias gozavam de grande notoriedade nos círculos
políticos e intelectuais do século XIX. Nessa mesma perspectiva se com-
preende a tese de Michael Hall, ao sustentar que a associação foi dirigida
por agentes da:
[...] nova classe média-alta urbana, sobretudo intelectuais, profissionais in-
dependentes com treinamento científico e técnico, altos funcionários públicos
e negociantes envolvidos no comércio externo. Praticamente todos os líderes
tinham filiação com a Europa, através de nascimento, família, educação ou
negócios. Pela sua eloquência, autoconfiança e treinamento técnico, eles de-
monstraram ser uma nova força na vida brasileira: um grupo de classe média
consciente de seus interesses próprios e donos de uma crítica coerente e cabal
da sociedade tradicional brasileira (HALL, 1976, p. 153).

Koseritz expressava a opinião de que os “[...] brasileiros nativos não


tinham um conhecimento adequado das vantagens de uma imigração
mais intensa para o Império. Daí terem convidado para uma reunião
diversos ‘estadistas, jornalistas e capitalistas’ e deliberarem sobre o as-
sunto”.23 Koseritz (1972, p. 206-209) seria ainda mais incisivo ao dizer:
“Nós declaramos guerra ao latifúndio”, “nós queremos imigrantes para
fazer deles pequenos proprietários, e desta maneira estabelecer a po-
licultura”. Sua pauta particular em muito se aproxima daquilo que foi
proposto pela Sociedade de Imigração. Dito isso, Hall compreende esses
enunciados como sendo o principal propósito da Sociedade, ou seja, o de
criar uma classe média fortalecida, a partir de imigrantes europeus in-
dependentes, em contraponto ao sistema latifundiário vigente no Brasil
desde o século XVI. De outro modo, Egon Frederico Steyer (1979, p. 23)
considera que a criação da Sociedade Central de Imigração estava atre-

22
Seus nomes estão também nos manifestos, publicados em diferentes jornais, como o manifesto
público ao povo brasileiro no jornal Koseritz’ Deutsche Zeitung, 12/11/1883, bem como o segun-
do manifesto, impresso no mesmo jornal, em 18/12/1883.
23
A perspectiva de Michael Hall (1976, p. 148) sustenta uma análise baseada na formação de uma
classe média, com o incentivo à pequena propriedade, em detrimento do latifúndio, tarefa que
passava a ser sistematicamente defendida pela Sociedade Central de Imigração. O seu estudo
busca compreender as características e limitações do liberalismo da classe média do Brasil do
século XIX, a partir da análise da organização, das atividades e do programa da sociedade.

155
Política imigrantista e identidade étnica: o elemento teuto-brasileiro na visão de...

lada ao desinteresse do governo do Império pela imigração, acentuado


na década de 1880, tendo em vista as questões políticas em pauta, o que
acabou culminando na movimentação da iniciativa particular. Durante
quase uma década, os seus líderes mobilizaram-se a favor da imigração
europeia, aliada a um conjunto de reformas estruturais no Brasil.24 An-
gela Bernadete Lima (2013, p. 10) vale-se da tese de que a Sociedade con-
gregava os aspectos teóricos, pelos quais se debatiam os diversos tipos
de problemas, com as questões práticas, mesmo que não contasse com
departamentos específicos, tentava, por si ou pelas suas filiais, atender
às necessidades dos colonos.
Cabe lembrar que, de certa maneira, a criação dessa entidade
também poderia ser uma resposta à ineficiência atribuída à Sociedade
Protetora de Imigrantes. No Rio Grande do Sul, ela foi criada, em Porto
Alegre, no ano de 1882. Sua atuação, no entanto, logo recebeu críticas
da imprensa local, sendo tratada de maneira hostil, também em textos
noticiados no Koseritz’ Deutsche Zeitung:25
Que faz a Sociedade para amparar e proteger os imigrantes? Quem da cúpula,
o tesoureiro, o presidente ou secretário se dá ao trabalho de receber os imi-
grantes que chegam [...]?
[...].
Por que os membros da Sociedade não comparecem ao embarque dos imigran-
tes? Muitos destes sentem-se perdidos e desamparados. Desconhecem a terra,
o idioma, os costumes e as particularidades da região. Muito facilmente são
enganados por qualquer marginal ou aproveitador. A presença da cúpula da
Sociedade e respectivos membros seria utilíssimas nessas oportunidades.

A constituição da Sociedade Central de Imigração pode ser acompa-


nhada pelos registros presentes na imprensa. Koseritz foi, seguramente,
quem mais contribuiu para que os seus jornais divulgassem ao público as
movimentações em prol de uma organização que se ocupasse com ques-
tões voltadas à imigração, ainda que a própria Sociedade tivesse o seu
periódico mensal, conhecido como A Imigração, espaço no qual também
foram publicadas as principais declarações e normativas da sociedade,
como os manifestos e os estatutos. Até mesmo Koseritz (1972, p. 205)
comemorava a publicação da primeira circular na imprensa do Rio de
Janeiro, assinada por Blumenau, Gruber e ele, citando o jornal Diário do
24
A Sociedade Central de Imigração manteve as suas atividades até cerca de 1891.
25
Koseritz’ Deutsche Zeitung, 8/11/1883.

156
Tiago Weizenmann

Brasil, o que, para ele, demonstrava adesão à causa levantada. É nesse


propósito que, como destaca Gustavo Barreto (2014), a imprensa passou
a ser um dos alvos da entidade, buscando influências pelas relações e
posições dos seus membros, com o objetivo de “[...] serem decretadas to-
das as reformas necessarias para que o estrangeiro ache uma verdadeira
patria no Brazil” (BARRETO, 2014, não paginado). Barreto lança a ob-
servação de que a condição para participar da entidade estava vinculada
a contribuições monetárias, o que leva a entender que “quanto maior,
maior a importância dentro da Sociedade”.26
O primeiro manifesto já exaltava a ponderação de alguns meios da
imprensa que “desinteressadamente” já ofereciam espaço à Sociedade.
Dentro desse contexto, por exemplo, era possível encontrar as notícias
veiculadas também pela imprensa em língua alemã, como o Koseritz’
Deutsche Zeitung,27 divulgando os passos que deram origem à fundação
da entidade.
No dia 5 de outubro de 1883, os três líderes publicaram um manifesto às clas-
ses dirigentes do país nos seguintes termos:
- A crise de desemprego que atinge o país, convence-nos de que é chegada a
hora de dar primazia de atendimento à pequena propriedade em detrimento
do latifúndio. Só pela pequena propriedade se consegue extrair da terra toda a
sua riqueza. Somos forçados a olhar para a América do Norte que, em situação
idêntica, chamou para seu território grandes massas de imigrantes, pois lá
imperava a convicção de que só com elas seria possível levar o país ao desen-
volvimento, o que realmente aconteceu.
O mesmo programa poderá ser executado no Império, desde que sejam remo-
vidos alguns obstáculos que ora impedem sua concretização, quais sejam, os
entraves para a grande naturalização, para o casamento civil, para a igualda-
de civil e a regularização dos direitos eleitorais dos naturalizados.
A iniciativa privada deve intervir na imigração de europeus, notadamente na
capital do Império, e a colaboração dos jornalistas, capitalistas, deputados e
estatísticos é indispensável.28

Com a presença de um grande número de pessoas, em 14 de ou-


tubro daquele ano, realizava-se a primeira reunião organizatória. Essa
assembleia determinou que a política imigratória de grupos europeus

26
Na Sociedade Central de Imigração de Porto Alegre, os sócios podiam ser as pessoas que se re-
gistrassem em lista e que pagassem, previamente, a contribuição anual de 6$000 réis. Koseritz’
Deutsche Zeitung, 8/10/1884.
27
Koseritz’ Deutsche Zeitung, 8/11/1883.
28
Tradução de Steyer (1979, p. 23-24).

157
Política imigrantista e identidade étnica: o elemento teuto-brasileiro na visão de...

deveria ter continuidade, sustentado por propagandas internas e exter-


nas. Os presentes também se manifestaram contrários à imigração chi-
nesa, considerando-a perigosa a todos os povos ditos civilizados. Nascia
assim, mais tarde, em 28 de novembro de 1883, a Sociedade Central de
Imigração, agregando objetivos que incluíam o debate sobre a imigração
europeia ao Brasil, a criação de representações provinciais da sociedade,
as condições dos colonos, a nomeação de representantes para cada colô-
nia, a elaboração de planos para criação de colônias em áreas devolutas,
até a equiparação do preço de passagens – Hamburgo a Nova Iorque e
Hamburgo a Porto Alegre (STEYER, 1979, p. 24). Em 5 de outubro de
1884, passado um ano da criação da entidade no Rio de Janeiro, surgiu,
de acordo com os estatutos, a Sociedade Central de Imigração de Porto
Alegre, passando a ter obrigações que passavam a priorizar as demandas
imigratórias provinciais, na qual também Koseritz passava a ter impor-
tante atuação.29
Como já mencionado, a imprensa tornou-se importante agente de
propaganda. Koseritz promovia a entidade, convidando novos sócios
para que se associassem, especialmente aquelas pessoas que demons-
travam “interesse pelo futuro da imigração”, convidando-as para que se
dirigissem ao escritório da redação de seu jornal.30 Além disso, noticiava
os avanços da entidade, sobre o “florescente desenvolvimento” no qual
ela se encontrava, a repercussão que o primeiro manifesto atingiu ao
ser publicado em todos os grandes jornais do Rio de Janeiro, os folhetos
impressos distribuídos em todo o país e o importante apoio de Taunay.
Lembrava, ainda, da solenidade de instalação da Sociedade no Liceu de
Artes e Ofícios do Rio, ocorrida em 17 de novembro de 1883, com as fa-
las do presidente Henrique de Beaurepaire-Rohan e de Taunay, além
da presença de D. Pedro II. A mesma notícia destacava a simpatia do
Imperador pela iniciativa, e, segundo a afirmação do Koseritz’ Deutsche
Zeitung, o monarca estava disposto a valer-se de suas forças para ani-
mar as aspirações da sociedade. Como era conhecimento de todos, sua
postura era contrária à imigração de cules chineses, dando preferência
aos povos europeus. Ainda, o anúncio fazia alusão ao grande número de

29
Encontra-se, dias depois, no jornal de língua alemã, o projeto de estatuto da entidade, com sede
na capital da província. Koseritz’ Deutsche Zeitung, 8/10/1884.
30
Koseritz’ Deutsche Zeitung, 29/11/1884.

158
Tiago Weizenmann

novos sócios, afirmando que “já hoje a elite de toda sociedade do Rio já
pertence à jovem associação”, e que a Sociedade Central de Berlim en-
contraria um grande apoio na Sociedade Central de Imigração do Rio de
Janeiro.31 De maneira geral, foram frequentes as referências e os textos
sobre a Sociedade, reproduzidos do Allgemeine Deutsche Zeitung para o
jornal de Koseritz, em Porto Alegre.32
Como já destacado, a questão de imigrantes chineses no Brasil trans-
formou-se em uma das pautas mais importantes da Sociedade Central de
Imigração, o que acabou dividindo opiniões entre políticos do Império.
Em cartas aos seus jornais,33 Koseritz (1972, p. 208) chegou a citar o
grande entusiasmo dos barões do café durante a presença do embaixador
chinês no Rio de Janeiro, em 1883, e o grande apoio desses cafeicultores
ao projeto da “imigração amarela”, como forma de preservar a “vida va-
gabunda” e substituir os escravos negros. O que estava em jogo, segundo
sua impressão, era o egoísmo dos fazendeiros, mesmo que houvesse uma
expressiva opinião pública contrária aos “filhos do Celeste Império”.
Como destaca Egon Frederico Steyer (1979, p. 28), a ideia de trazer
do Extremo Oriente os cules chineses era muito popular entre latifundi-
ários e políticos. O barão de Cotegipe era um de seus defensores, e sua
ideia reforçou-se, segundo o exposto pelo Koseritz’ Deutsche Zeitung,34
após conhecer pessoalmente as colônias de Santa Catarina e conven-
cer-se da existência de uma “ameaça alemã”. Nesse contexto, proferiu
discursos no Senado favoráveis à imigração de chineses, que seria mais
segura e ocorreria de maneira paralela à europeia, o que resultou na
aprovação da verba para a imigração, sendo utilizada igualmente para
promover a vinda de chineses ao país.
Na outra ponta, a Sociedade de Imigração passou a fazer campa-
nha sistemática contra a vinda de orientais para o Brasil, argumentando
que o incentivo à imigração europeia seria o elemento diferencial para
a solução do país. A isso ainda se somavam discursos preconceituosos

31
A notícia termina com a reprodução do breve artigo de Ferdinand Schmid para o jornal Allgemei-
ne Deutsche Zeitung, no qual fala sobre a realização do evento descrito por Koseritz. Koseritz’
Deutsche Zeitung, 27/11/1884.
32
Koseritz’ Deutsche Zeitung, 13/12/1883; 5/3/1884.
33
Há uma descrição sobre a visita de Koseritz ao Imperador, acompanhado de sua filha, e durante
a sua saída do palácio imperial, observou a presença do embaixador chinês para também reali-
zar sua audiência com D. Pedro II (KOSERITZ, 1972).
34
Koseritz’ Deutsche Zeitung, 8/11/1883.

159
Política imigrantista e identidade étnica: o elemento teuto-brasileiro na visão de...

dirigidos aos cules chineses, considerados desclassificados e preguiçosos,


que somente produziriam bem se fossem submetidos a castigos. A argu-
mentação ainda usaria o caso dos Estados Unidos, onde a experiência
havia sido decepcionante. Bastava lembrar, enfim, que esses imigrantes
“[...] procuravam enriquecer de qualquer forma no exterior, mas nada
faziam para enriquecer o país que os hospedava. Nem mesmo o cadáver
entregavam à pátria adotiva, pois, por contrato, garantiam a remessa
dele para o ‘Celeste Império’” (KOSERITZ’ DEUTSCHE ZEITUNG, 1883
apud STEYER, 1979, p. 28). Destarte, é possível concordar com Michael
M. Hall (1976, p. 160), quando fala que “[...] a Sociedade exprimiu vigo-
rosamente o seu racismo”, opondo-se aos trabalhadores chineses, sendo
difamados em várias ocasiões, como pelas expressões: “pestilento fluido
emanado da podre civilização da China”; “uma raça atrofiada e corrup-
ta”; “bastardizada e depravada”; ou, simplesmente, como “detestável”.35
Se as pautas da associação reuniam um grande número de pessoas
em propósitos comuns, como a negação à importação de trabalhadores
orientais, bem como o otimismo que tomou conta das expectativas que
se fizeram sentir inicialmente, não tardaram, porém, as críticas que se
projetaram sobre a Sociedade de Imigração. Dentre os primeiros confli-
tos, em 24 de novembro de 1883,36 em espaço reservado a breves notícias,
Koseritz trazia ao público aquilo que chamou de “tipicamente brasileiro”,
lembrando-se de um fato editado no jornal Allgemeine Deutsche Zeitung,
que tratava sobre as rivalidades que a Sociedade Central de Imigração já
possuía antes mesmo de iniciar suas atividades, em referência à reação
do Inspetor Geral para Terras Públicas e Colonização do Ministério da
Agricultura, o engenheiro Manuel Maria de Carvalho. Koseritz retruca-
ria dizendo que este era mais um ato de “bravura do sistema governa-
mental desse país”, e que o chefe da Inspetoria de Terras fora convidado
a propósito da criação da Sociedade, mas se viu ameaçado pelas ações
privadas da futura entidade, especialmente no que dizia respeito à fis-
calização feita por ela sobre o tratamento dirigido aos imigrantes pela
mesma Inspetoria, resolvendo fazer concorrência à Sociedade. Para Ko-

35
Segundo Hall (1976, p. 160), até mesmo “Taunay, normalmente um homem refinado e compas-
sivo, apressou-se a informar ao público brasileiro” impressões preconceituosas para com os
chineses.
36
Koseritz’ Deutsche Zeitung, 24/11/1883.

160
Tiago Weizenmann

seritz, essa concorrência não era perigosa, e, se todos os procedimentos


em seus pormenores não fossem característicos do burocratismo local,
isso poderia alegrar a todos, percebendo que o nascimento da Socieda-
de havia “despertado do sono” as instituições governamentais, para que
cumprissem o seu papel.
Nessas desavenças, talvez seja importante ressaltar aquilo que não
foi mencionado pelas partes envolvidas, como a divulgação do Guia do
Imigrante, pela Inspetoria de Terras e Colonização, que originou críti-
cas à publicação, oriundas da Sociedade Central de Imigração, a qual
também externou descaso sobre os registros do cônsul italiano sobre as
colônias italianas. De outro modo, a referência exclusiva da Sociedade
Central de Imigração ao “manual” dirigido por Koseritz aos emigrantes
alemães, julgado pela entidade como excelente, gerou outros desdobra-
mentos e posturas radicalizadas, contra e a favor da obra de Koseritz.
Tais questões serão analisadas a seguir.
Se algumas previsões parecem demonstrar-se previsíveis, outras se
deslocam por caminhos totalmente inesperados. É assim que, ao final do
ano de 1884, desenhava-se uma disputa, que culminaria com a saída de
Koseritz da Sociedade Central de Imigração de Porto Alegre. A polêmica,
noticiada naquele mês no Koseritz’ Deutsche Zeitung,37 rendeu um artigo
sob o título “Um conflito”, no qual se expuseram as divergências causadas
pela publicação de Ratschläger für Auswanderer nach Südbrasilien,38 di-
vulgado na Alemanha em 1880. Além da exposição sobre as desavenças,
Koseritz reproduziu a carta que enviara a José Joaquim Dias, presidente
da entidade, na qual ressaltava não poder permanecer na Sociedade em
função das críticas contra ele noticiadas no “primeiro número do ‘Jornal
Oficial’ da Sociedade”, autor de Ratschläger für Auswanderer, valendo-se
dessa situação para solicitar que seu nome como sócio honorário fosse
riscado dos quadros da entidade. Além do ofício de desligamento da enti-
dade, que foi publicado primeiramente no jornal A Reforma, segundo as
referências do texto, Koseritz compartilhou a sequência de fatos que cul-
minaram na discórdia originada pelos comentários depreciativos de Gas-
par Rechsteiner à obra destinada aos emigrantes da Alemanha, além de
publicar o texto de seu opositor, referente às denúncias que o envolviam.
37
Koseritz’ Deutsche Zeitung, 31/12/1884.
38
Conselhos aos emigrantes para o sul do Brasil.

161
Política imigrantista e identidade étnica: o elemento teuto-brasileiro na visão de...

Para resgatar essa situação, que foi polemizada na imprensa, é pre-


ciso voltar ao ano de 1879, quando Koseritz ainda era o redator-chefe
do jornal Deutsche Zeitung. Nesse periódico, investiu em uma série de
artigos que, no ano seguinte, completados pelos alemães Albrecht Wi-
lhelm Sellin e Ottokar Dörffel, foram reunidos em livro em Berlim, para
que fosse reproduzido e distribuído depois de impresso. Um exemplar
do pequeno livro foi entregue pelo autor a Rechsteiner. Mais tarde, os
dois voltaram a encontrar-se, e Koseritz teria comentado que uma se-
gunda edição estava sendo planejada, ao que Rechsteiner observou que
o julgamento sobre as colônias do Estado era injusto e via-se forçado a
protestar sobre essa passagem presente no livro. Segundo Koseritz, ele
teria respondido que isso seria desnecessário, tendo em vista que, na pró-
xima edição, tal capítulo seria retrabalhado, diante das condições dessas
colônias, que eram efetivamente outras se comparadas a 1879. Diante
da troca de acusações, Koseritz insistia na existência da interlocução que
descrevera, embora o seu oponente a negasse, constatando que a questão
estaria resolvida se Rechsteiner não tivesse a intenção de acertar um
golpe no elemento alemão, além de insistir em colocar a Sociedade Cen-
tral de Imigração numa postura hostil à imigração alemã.
Em sua nota informativa, a qual gerou a reação de Koseritz, Rechs-
teiner destacou a obra Ratschläger für Auswanderer, segundo a qual fora
redigida pelo núcleo porto-alegrense da Sociedade Central Geográfica
Comercial,39 que teria empreendido uma descrição assustadora, valendo-
-se de palavras duras para citar os diretores e a população das colônias
de Caxias, Dona Isabel, Conde d’Eu e Silveira Martins, enquanto as co-
lônias provinciais e particulares eram enaltecidas, bem como os seus ha-
bitantes. Denunciava, ainda, a forma como se mencionavam os alemães
instalados naquela região, os quais haviam sido forçados a assentar-se
em suas terras, deixando incontável sofrimento, que fora imposto por
colonos de outras nacionalidades e por agentes do governo. Referia-se,
igualmente, a passagens nas quais as terras não teriam valor, que polo-
neses, franceses, tiroleses, tchecos em grande parte eram vagabundos,
péssimos vizinhos, bem como diretores brasileiros, engenheiros e muito
jovens, que viviam uma vida devassa e indisciplinada.

39
A Central Verein für Handelsgeographie tinha sede em Berlim, incluindo representações em al-
gumas cidades brasileiras, como Porto Alegre.

162
Tiago Weizenmann

Em contraposição ao que teria sido escrito, Rechsteiner deu desta-


que ao documento descrito produzido pelo cônsul da Itália, Pasquale Cor-
te, sobre as colônias italianas, no qual se encontrava a afirmação de que
em nenhum lugar do mundo teria ele encontrado tamanha satisfação,
prosperidade e progresso quanto entre os colonos italianos do Rio Gran-
de do Sul. Proporia ainda outro contraponto, a partir das informações
das tabelas tornadas públicas na mesma edição do jornal aos escritos
enaltecedores feitos por Koseritz na Gazeta de Porto Alegre, que certa-
mente colocavam em dúvida a situação de algumas colônias alemãs. Para
Rechsteiner não restava dúvida: uma das maiores necessidades para a
qual a Sociedade Central de Imigração poderia contribuir seria a criação
de uma agência na Europa, que pudesse divulgar informações corretas
e precisas. Entre as últimas palavras, destacava: “[...] cai sobre nós uma
grande diferença entre a brochura do núcleo de Porto Alegre (Sociedade
Alemã) e a brochura do cônsul italiano. Esta demonstra, e não cobre o
que está mal, em outras palavras, ela não nos ofende”.40
Nota semelhante também foi divulgada no jornal da capital do Im-
pério. O jornal republicano O Paiz, na data de 25 de novembro de 1884,41
publicou artigo no qual se fizeram duras ressalvas ao folheto de Koseritz
e elogios ao “manual” aos emigrantes europeus, redigido pelo cônsul ita-
liano. Segundo as palavras do artigo, assinado por Flávio,42 o autor Ko-
seritz teria feito declarações inconvenientes, como a de propor aos emi-
grantes que evitassem os agentes ou cônsules brasileiros e pagassem a
sua própria passagem, para não se comprometerem e verem-se forçados
a dirigir-se a uma colônia do Estado, onde imperava a necessidade e a
miséria, bem como a pior forma de sociedade.43

40
Koseritz’ Deutsche Zeitung, 31/12/1884.
41
O jornal vinha noticiando artigos sobre as “florescentes colônias” da província do Rio Grande do
Sul, a partir dos escritos do cônsul italiano – sob o título “As nossas colônias julgadas por um es-
trangeiro imparcial”. O texto em questão era o quinto de uma mesma série. O Paiz, 25/11/1884.
42
Não foi possível identificar quem foi “Flávio”.
43
Essa referência feita pelo jornal O Paiz aos escritos de Koseritz encontra-se em citação direta –
“mais ou menor por este trecho e com pequenas variantes para pior está calcado o trabalho do
Sr. Koseritz”. O Paiz, 25/11/1884.

163
Política imigrantista e identidade étnica: o elemento teuto-brasileiro na visão de...

Muito desejaríamos aconselhar o mesmo proceder em relação à Alemanha,


aproveitando-se para isso o folheto, publicado também recentemente, em lín-
gua alemã, pelo Sr. Koseritz, membro proeminente e um dos diretores da So-
ciedade Central de Imigração; mas absolutamente não o fazemos porque, além
de conter ele apreciações errôneas sobre o Brasil, está cheio de inexatidões,
que muito nos comprometem e vão até o ponto de contrariar as informações
dadas pelo próprio Governo na sua publicação oficial.
Este fato é gravíssimo e exige imediata intervenção do Governo no sentido de
evitar a distribuição do folheto do Sr. Koseritz, que só servirá para afugentar
do Império o emigrante que tiver a infelicidade de o ler.
[...].
Bem contra a nossa vontade desviamo-nos do caminho traçado para o artigo
de hoje; mas, estamos convencidos de que não perdemos o tempo, porque foi
ele empregado em debelar um mal, que muito pernicioso será para o nosso
país se lograr desenvolver-se.
Flávio.
22 de novembro de 1884.

Em resposta às acusações de calúnia ao Brasil e aos italianos e


ao fato de Rechsteiner considerar a sua obra um perigo público, Kose-
ritz investiu em desconstruir as supostas e falsas informações sobre a
criação de uma agência da Sociedade na Europa – a partir das quais
sugeriu que o próprio opositor talvez quisesse ocupar a vaga. Em con-
sequência a esses embates, o membro honorário da Sociedade decidiu
por desligar-se da entidade, dizendo que dessa atitude ficavam de fora
as provocações pessoais que a ele foram dirigidas. No mesmo artigo da
folha alemã em que Koseritz faz essa declaração, destacam-se observa-
ções que questionavam as reais intenções de Rechsteiner, quando, por
exemplo, teria feito menção à autoria do livro, atribuindo-a diretamente
à Sociedade Central Geográfica Comercial, enquanto Koseritz reforça-
va que seu nome encontrava-se logo abaixo do título, sendo, portanto,
ele o autor, de modo que somente a ele deveriam ser feitas as críticas.
Nessa questão, Koseritz valia-se da hipótese de que o oponente tinha
pretensões em atingir a entidade, envolvida também em programas de
imigração e de comércio entre o Brasil e a Alemanha. Da mesma forma,
Koseritz terminava a declaração trazendo considerações pontuais do seu
ponto de vista sobre a controvérsia que se criou entre eles, dizendo que
Rechsteiner estava somente há poucos anos na província, não conhecia,
pessoalmente, ele mesmo uma única colônia e de todo o caso fazia pouco
tempo que ele havia se ocupado com o assunto da colonização. Da mes-

164
Tiago Weizenmann

ma forma, acrescentava dizendo que, se não fosse sua autoestima sem


limites, Rechsteiner deveria ter hesitado ao lançar ataques a alguém
que se encontrava há mais de um quarto de século como defensor do
Brasil na imprensa europeia, especialmente na alemã, na qual travou
lutas árduas durante muito tempo, anedotas e outras adversidades para
com o Brasil, tempo no qual “[...] o Dr. Rechsteiner certamente ainda
estava preparando-se ao frequentar a escola secundária”. Ao sugerir a
inexperiência de seu opositor, acrescentava que, se não fosse o seu “auto-
conhecimento ilimitado”, ele poderia ter estudado e buscado informações
com aqueles que envelheceram acompanhando a emigração para o Brasil
e a colonização dessa terra. O último parágrafo lembrava que o texto
original fora escrito em 1879, quando expôs julgamentos severos sobre
algumas regiões coloniais, e essa “assustadora descrição” demonstrava
as condições infelizes nas quais se encontravam as colônias do Estado
na província. Comprometia-se a tornar público o capítulo sobre essas
colônias, traduzindo-o para o mesmo jornal, para que o público pudesse
analisar as palavras e seus sentidos, que ele julgava como verdadeiros.
Do que havia escrito anteriormente, assumiria palavra por palavra e não
voltaria atrás para nenhuma delas. Se, mais tarde, as circunstâncias
mudassem, os diretores se moralizassem, grandes e excelentes estradas
fossem construídas, se as colônias italianas avançassem, como de fato
havia ocorrido, não se sustentaria mais aquilo que escrevera antes, nem
mesmo de manter afastado os imigrantes alemães das colônias do Esta-
do. Finalizou o texto afirmando que Ratschläger für Auswanderer não
foi escrito no propósito de fazer propaganda incondicional. Ao recomen-
dar aos emigrantes alemães e aconselhá-los a dar preferência ao Brasil,
Koseritz via-se assumindo uma responsabilidade sobre o futuro dessas
pessoas, e era, portanto, um dever dizer-lhes a verdade e falar sobre tudo,
sem obscurecer imagens que a eles eram apresentadas. Uma propagan-
da puramente enaltecedora, como fizera Joseph Hörmeyer44 em serviço

44
Depois de viver anos no Brasil, Joseph Hörmeyer (1824-1866) dedicou-se a atividades literárias
na Alemanha. Chegou ao Rio de Janeiro, como Capitão de Infantaria, em 1851 e foi destacado
para o Rio Grande do Sul, assumindo uma tropa na guerra contra o argentino Rosas. Após o
conflito, viveu algum tempo nas colônias alemãs de Santa Catarina. Retornou, posteriormente, à
Alemanha e publicou, em 1854, Beschreibung der Provinz Rio Grande do Sul in Südbrasilien mit
besonderer Rücksicht auf deren Kolonisation (Descrição da Província do Rio Grande do Sul, com
especial atenção à sua colonização), pelo qual recebeu uma boa crítica no Allgemeine Auswa-
nderungs Zeitung, um dos mais importantes jornais sobre a imigração alemã nesse período.

165
Política imigrantista e identidade étnica: o elemento teuto-brasileiro na visão de...

ao governo brasileiro, somente traria prejuízos e desencorajaria o colono,


enganado pelas falsas esperanças. A partir dessa mesma impressão, Ko-
seritz condenaria a ação da Sociedade de Imigração pelos prejuízos que
poderiam ser causados, caso ela criasse uma agência para esse mesmo
propósito.45 Por fim, seu texto findava os debates públicos sobre o caso,
muito embora a cisão instituída continuasse a acompanhar o projeto de
imigração alemã ao longo daquela década.
Anos mais tarde, voltava a abordar, em artigo específico, a questão
da imigração italiana. Koseritz ressaltava semelhanças e diferenças en-
tre os grupos étnicos, mas colocando em vantagens os colonos alemães.
Os dois grupos étnicos assemelham-se em muitos aspectos. Sua formação polí-
tica foi idêntica e simultânea e, em parte, aconteceu uma em função da outra.
Ambas as etnias, tendo condições favoráveis, são assimiladas rapidamente.
Assim, por exemplo, os italianos desta província já na primeira geração co-
meçam a ser assimilados, enquanto que os alemães só na segunda. O inverso
ocorre nos E.U.A.. Ao que tudo indica, ambas as etnias foram talhadas para
enfrentar as matas da Província e ficar. Ambos os grupos sentem um precon-
ceito moderado contra elementos de pele escura (negros e mestiços). Há que
se fazer diferença entre italianos vindos do Norte e Sul da península Itálica.
Os do Norte são bons agricultores, mas muitos do Sul (napolitanos) prefe-
rem radicar-se em cidades (KOSERITZ’ DEUTSCHE ZEITUNG, 1883 apud
STEYER, 1979, p. 30).

Ao mesmo tempo em que os imigrantes italianos são enaltecidos pelo


seu discurso, chamados de “ótimos colonos”, também seriam criticados
pelo fato de radicarem-se majoritariamente em grandes propriedades
de São Paulo, tornando-se agregados, o que demonstraria falta de um
espírito progressista e incompetência para administrar a própria terra.
Destacava-se que esse comportamento não representava um bom serviço
ao Brasil e que a salvação da pátria estaria “[...] na democratização da
lavoura e na divisão da grande propriedade improdutiva. Pois, se a sal-
vação do país dependesse da substituição de escravos por trabalhadores

Como destaca Gerson Norberto Neumann (2005, p. 50-52), a produção de Joseph Hörmeyer é
propagandística, ao tentar desviar a intensa emigração alemã dos EUA para o Brasil. “Nesse pe-
ríodo Hörmeyer também entra em conflito com J. J. Sturz, antigo cônsul brasileiro em Hamburg,
que fazia propaganda contra a emigração alemã para o Brasil com textos agressivos em jornais
e revistas alemães”. O governo brasileiro o nomeou como agente de imigração em Viena. É de
sua autoria a obra literária Was Georg seinen deutschen Landsleuten über Brasilien zu erzählen
weiss, reescrita em nova versão para o título Georg, der Auswanderer. Oder: Ansiedlerleben in
Süd-Brasilien.
45
Koseritz’ Deutsche Zeitung, 31/12/1884.

166
Tiago Weizenmann

assalariados, então seria até razoável importar os cules chineses”. Os


italianos apresentavam boas qualidades como colonos, por serem aplica-
dos, persistentes, terem espírito de poupança e espírito caseiro. Todavia,
nas palavras de Koseritz, alguns deles chegavam a abandonar a lavoura
para procurar trabalho em outro lugar, fazendo forte concorrência aos
luso-brasileiros, já que eram vistos como eficientes e trabalhadores. Sem
se valer de uma afirmação mais direta sobre a comparação entre alemães
e italianos, fica evidente compreender que Koseritz enxergava uma con-
tribuição muito maior por parte dos teuto-brasileiros, fosse pela organi-
zação em pequenas propriedades policultoras, fosse pelo cuidado com o
trabalho na lavoura colonial.

Considerações finais
Para finalizar, ao considerar a presença de Koseritz nas discussões
sobre a identidade teuto-brasileira, confirma-se seu papel como intelec-
tual, manifestação que se revela em seu engajamento público e político
sobre o tema da imigração. Poder-se-ia, também, apontar para a constru-
ção daquilo que foi denominada por Oberacker Jr. (1961) como a ideolo-
gia teuto-brasileira, ao destacar a figura emblemática assumida por Ko-
seritz ao ser um dos primeiros a discutir os elementos de uma identidade
em construção, fossem eles políticos ou culturais. Seu pensamento, nessa
perspectiva, encontra-se nas mais diferentes tarefas que desempenhou
como político, redator da imprensa ou advogado de causas públicas, na
defesa de alemães e descendentes. Contudo, como observa Ana Elisete
Motter (1998), a imprensa pareceu constituir um significado maior para
a construção da concepção teuto-brasileira, uma vez que, no espaço da
tribuna na Assembleia Legislativa, o programa de Koseritz em muito
pouco tratou da preservação da língua e da cultura germânicas entre
teutos e teuto-brasileiros no país.
Para Motter (1998, p. 151), essa cautela representava uma estraté-
gia para que se evitassem “as prevenções de deputados luso-brasileiros
em relação à diversidade étnica do elemento teuto”, presente na provín-
cia. Nesse sentido, como lembra Motter (1998, p. 77), Koseritz proferiu
apenas um discurso na Casa Legislativa, no qual defendeu o direito aos
teuto-brasileiros de utilizarem a língua alemã e de continuarem preser-

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Política imigrantista e identidade étnica: o elemento teuto-brasileiro na visão de...

vando os seus costumes, manifestação que se fez após as declarações do


senador Barão de Cotegipe, em 1888, sobre os perigos daquilo que con-
siderava ser a “germanização” de Santa Catarina, reforçando ainda sua
postura contrária ao processo imigratório de alemães para o Brasil.
Sendo assim, seus primeiros textos para o Deutsche Zeitung, em 14
de maio de 1864,46 ainda como colaborador, revelavam sua preocupação
com o elemento teuto na província. Koseritz entendia que a imprensa
tinha um papel fundamental nesse processo. Para tanto, apresentava
as tipografias pelas quais passou (Deutsche Zeitung e Koseritz’ Deutsche
Zeitung) como órgãos capazes de dirigir todos os temas aos habitantes
das regiões coloniais, explicando-os e esclarecendo-os aos seus leitores.
Em contrapartida, os jornais brasileiros não eram acessíveis à maioria
dos alemães e teuto-brasileiros, uma vez que muitos periódicos nacionais
não compreendiam o real significado da germanidade no Brasil. Para
Koseritz, o elemento alemão, confiante em si mesmo, deveria fazer-se
respeitar, como qualquer outro povo, cabendo-lhe a vantagem, segundo
suas palavras, de carregar em seu interior o valor moral. Dessa maneira,
acreditava que era de responsabilidade do elemento teuto destacar a na-
cionalidade e honrá-la da maneira que fosse possível. Seria esse, segun-
do ele, um belo empreendimento, que poderia render bons frutos, capaz
de representar o “vértice e a base da pirâmide social da germanidade na
província”. Dito isso, reforçava a postura que, insistentemente, veiculou
na imprensa, ao longo dos anos seguintes, afirmando que os “interesses
do Brasil são hoje os nossos, é nossa segunda, mas é dos nossos filhos a
única pátria”. Tudo deveria interessar e despertar interesse ao elemento
teuto: as relações públicas, os eventos políticos, o campo econômico.

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170
Ironita A. Policarpo Machado

Colonização e
capitalização: relações
jurídicas e
político-econômicas no
norte do Rio Grande do Sul
Ironita A. Policarpo Machado

Introdução

C
olonização e capitalização apresentam um elo histórico. A afirma-
ção da existência de um elo entre o público e o privado na ocupação
e comercialização de terra, no processo de capitalização sul-rio-
-grandense, na República Velha, considera que, de um lado, atuavam as
Comissões de Terras e Colonização, subordinadas à Diretoria de Terras
e Colonização, por sua vez, afeta à Secretaria dos Negócios das Obras
Públicas do estado, determinando a centralização e o controle do poder;
de outro, as companhias particulares de colonização e empresas de ini-
ciativa privada de infraestrutura e/ou exploração e comercialização de
recursos naturais, na maioria das vezes tuteladas pelo Estado.

171
Colonização e capitalização: relações jurídicas e político-econômicas no norte do...

As Comissões de Terras e Colonização, visando obter receitas na co-


mercialização das terras ao Estado, bem como facilitar a sua ocupação,
atuaram em diversos espaços regionais1 e instalaram núcleos que con-
centravam a administração das terras públicas, e o controle do poder
acontecia por intermédio de uma prática autoritária e pelos veios da ação
paternal, uma vez que as tramitações pertinentes à terra, por exemplo,
não se constituíam em simples procedimentos de compra e venda, mas
estava implícita a concepção de um estado paternal, visto que os sujeitos
solicitavam a concessão do Estado, pelas comissões ou diretamente ao
governo, e deste esperavam a obtenção do benefício.
É nessa perspectiva de estudo que nos debruçamos neste texto, re-
fletindo o processo de colonização e capitalização via associações comer-
ciais, investimentos de capitais nacionais/regionais e/ou associação com
capital estrangeiro de uma elite capitalista, financeira e mercantil, rural
e urbana, do estado do Rio Grande do Sul. A narrativa reflexiva tem por
corpus documental fontes judiciais; as ações cíveis2 analisadas permitem
identificar as relações jurídicas e político-econômicas acerca da terra, no
norte do Rio Grande do Sul, nos trinta primeiros anos republicanos.
Da mesma forma, identificada nas fontes judiciais, a atuação das
lideranças políticas locais, ora atuando como chefes políticos, ora como
operadores do direito, era caracterizada pelos favores e pela confusão
entre público e privado envolvendo grandes proprietários regionais e
companhias de colonização, configurada nas inter-relações de poder e
nos interesses locais. Ao analisar os processos judiciais, identificamos a
conjunção público-privado da ação personalista do Estado, que pode ser

1
Núcleos que concentravam a administração das terras públicas: núcleo que abrangia as terras
nos municípios de Cachoeira, Rio Pardo, Santa Cruz, Venâncio Aires, Lajeado e Soledade, sob a
administração da Comissão de Terras de Soledade, foi seu primeiro chefe o engenheiro Lindolfo
Alípio Rodrigues da Silva, em 1908; em 1890, foi criada a colônia Ijuí; em 1891, a colônia Gua-
rani; em 1908, foi criado o núcleo que abrangia terras do município de Erechim, sendo nesse a
sede da Comissão de Terras, seguindo na direção norte até a divisa com Santa Catarina. Como
chefe desta colônia, Carlos Torres Gonçalves nomeou Severiano de Souza Almeida; em 1915,
seguindo a estrada de ferro do norte do estado, foi instalado o núcleo, com sede localizada no
município de Santa Rosa; o diretor-chefe era o engenheiro João de Abreu Dahne; outro núcleo
de colonização do norte do estado concentrou-se no município de Palmeira das Missões, com
instalação da Comissão de Terras e Colonização em 1917, sob a direção de Frederico Westhalen
(cf. DALLA NORA, 2006; FRANCO, 1975; JACOMELLI, 2004).
2
Ações Cíveis da Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Acervo do Judiciário, Arquivo Histórico
da Universidade de Passo Fundo.

172
Ironita A. Policarpo Machado

verificada, entre diversas situações,3 no caso da Associação Comercial:


compra e venda de terras – loteamento e colonização em nome de Timo-
theo Pereira da Rosa e Rodolpho Ahrons, pelo processo cível de reinvin-
dicação de propriedade4 e pelos documentos de indenização que tiveram
por várias áreas de terras desapropriadas às margens da via férrea de
Passo Fundo pelo Estado.5
Interpretando, neste caso, entre outros, o Judiciário como meio e
agente de capitalização, tomamos o processo judicial de reivindicação de
propriedade como espinha dorsal da narrativa, na primeira seção, e ou-
tros processos judiciais que contemplam litígios envolvendo capitalistas
regionais, na segunda seção; em ambos os casos, é possível identificar a
rede de poder político e econômico que se constituiu em torno da coloni-
zação.

O arquétipo capitalista sul-rio-grandense


A narrativa que segue objetiva formatar um quadro identificador de
quem eram e que práticas efetivaram os agentes de negócios particulares
acerca da colonização – típicos capitalistas da Primeira República sul-
-rio-grandense – pelo Processo de Reivindicação de Propriedade datado
de 1930, que remete a 1852. Os suplicantes eram o bacharel em Direito
Timotheo Pereira da Rosa, que desempenhou as funções de professor na
Faculdade de Direito de Porto Alegre (1900), de promotor público em São
Sebastião do Caí (1890) e em Porto Alegre (1890 e 1920) e de deputado
na Assembleia dos Representantes do Rio Grande do Sul (1913-1916); e
o engenheiro Rodolpho Ahrons, que era proprietário do Escritório de Pro-
jetos e Construções, responsável pela construção do prédio da Diretoria
Regional dos Correios e Telégrafos do Rio Grande do Sul, em 1910 (AITA;

3
Os processos civis (Justiça do Estado RS), Comarca de Cruz Alta, Soledade e Passo Fundo –
Arquivo Histórico Regional da Universidade de Passo Fundo (AHR-UPF) e Arquivo Público do
Estado do Rio Grande do Sul (APERS) –, de tipologias restituição de posse, reivindicação de
propriedade, dissolução de sociedade, esbulho, execução, entre outras, permitem identificar as
relações entre privado e público, colonização e capitalização.
4
Processo de Reivindicação. Dr. Rodolpho Ahrons e Dr. Timotheo Pereira da Rosa vs. Carlos
Guilherme Theophilo Sontag. Juízo Distrital do Civil e Crime de Soledade, Rio Grande do Sul.
1930. AHR-UPF, acervo do Judiciário.
5
Documento da Secretaria das Obras Públicas – Secretaria da Agricultura, Indústria e Comércio
– Secretaria da Agricultura e Abastecimento. AHR-UPF.

173
Colonização e capitalização: relações jurídicas e político-econômicas no norte do...

AXT; ARAUJO, 1996; MELLO, 1943; SANTOS, 2000). Os dois sujeitos


desenvolveram atividades de compra e venda de terras para loteamento
e colonização e, por essa razão, também foram indenizados por várias
áreas de terras desapropriadas às margens da via férrea de Passo Fundo
pelo Estado.
No reverso desse processo judicial de reivindicação, como suplica-
dos se situam vários sujeitos: indiretamente, grandes proprietários e,
diretamente, pequenos posseiros agricultores e caboclos, representados
por Salvadora Maria de Ramos e Guilherme Teófilo Sontag. Os sujeitos
envolvidos, na visão do operador do direito:
Antes de entrarmos na apreciação do caso em foco, necessário se torna di-
zer duas palavras sobre as pessoas dos litigantes. Os autores são pessoas de
nomeada neste Estado. Graças ao perseverante de seu trabalho, adquiriram
largo renome – e principalmente – pela acendrada cultura dos mais elevados
dotes morais e sua aplicação a vida profissional. São duas notabilidades rio-
-grandenses: Rodolpho Ahrons, no campo da engenharia e Timotheo Pereira
da Rosa na esfera do direito. Os réus são verdadeiros antípodas da situação
cultural dos A.A. bem como da sua localização jurídica, no terreno do debate
que ora trava rudes colonos incapazes de compreender uma norma de direito,
instrumentos de outros, verdadeiros e completos tipos de “homme de paille”.6

A contestação da ação de reivindicação feita por Guilherme Theo-


philo Sontag é rechaçada pelo advogado dos autores, Evaristo Teixeira
do Amaral Filho, configurando-se numa representação das relações de
poder via Judiciário, valendo-se de diversos argumentos acerca de nor-
mas, jurisprudência e juízo de valores sobre o lugar social dos sujeitos.
O advogado Evaristo Teixeira do Amaral Filho inicia a defesa dos
suplicantes, diante da contestação dos suplicados, dizendo que os autores
eram dois notáveis rio-grandenses por serem bacharéis, um em direito
e o outro em engenharia; os réus eram “homens de palha”, porque eram
“rudes colonos incapazes de compreender uma norma de direito, instru-
mentos de outros”. Dessa afirmação, podemos indicar dois elementos de
força, que se configuram nas relações de poder no período: a primeira,
na visão da fração de classe que o advogado se situava e representava,
6
Inicial da argumentação de contestação feita pelo advogado Evaristo Teixeira do Amaral Filho,
como representante dos suplicantes no processo de reivindicação, página 52. Processo de Rei-
vindicação. Dr. Rodolpho Ahrons e Dr. Timotheo Pereira da Rosa vs. Carlos Guilherme Theophilo
Sontag. Juízo Distrital do Civil e Crime de Soledade, Rio Grande do Sul. 1930. Arquivo da autora,
Síntese – Processos Civis – Terra, 1870 a 1930, décadas de 1920/30; e AHR-UPF, acervo do
Judiciário.

174
Ironita A. Policarpo Machado

os “homens de poder” – bacharéis, advogados, grandes proprietários e


legisladores – e, também, do governo do estado, a posição social estava
assentada na formação intelectual e na capacidade/relação produtiva,
como elementos determinantes da aptidão de reivindicação à justiça. As-
sim, essa aptidão cabia aos bacharéis, pois, com eles, neste caso, estavam
a competência técnica e a sabedoria das normas, da doutrina e da juris-
prudência; e os colonos, por serem pequenos proprietários, trabalhado-
res agrícolas e se dedicarem à produção familiar de subsistência, eram
homens “rudes”, sem formação, portanto, sem argumento e competência
jurídica para reivindicação; como segundo fator, a declaração de que os
colonos eram instrumentos de outros demonstra que, de fato, eles estive-
ram envolvidos em litígios de grandes proprietários – e, também, muitos
colonos/pequenos proprietários foram autores de ações judiciais defen-
dendo seus direitos.
Portanto, especificamente com relação a esta ação de reivindicação
de propriedade, os referidos fatores ilustram como os processos judiciais
eram aparelhados de argumentos e documentados para elucidar apenas
o que interessava aos autores, quando se tratava de “homens de poder” –
econômico e político –, pois em várias passagens se identificam lacunas,
como, por exemplo, não haver menção a outros sujeitos, até mesmo na
autuação foi negligenciada a presença de grandes proprietários vende-
dores das terras aos autores e de colonos que ocupavam a área de terra
em litígio.
Em relação às terras em litígio, diziam os doutores Timotheo Pe-
reira Rosa e Rodolfo Ahrons que, em 20 de dezembro de 1852, na então
Capela de Nossa Senhora da Soledade de Butucaray, termo da vila do
Espírito Santo da Cruz Alta, Comarca das Missões, Manoel Alves da
Rocha vendeu a José Pedro da Silva, por escritura pública, uma posse
de terras de cultura e matos que havia comprado de Luiz Fernandes de
Castro. Na escritura pública de compra e venda, foi a referida posse de
terras e matos discriminada como sendo localizada no

175
Colonização e capitalização: relações jurídicas e político-econômicas no norte do...

[...] então terceiro distrito da Cruz Alta, sobre a Serra Geral do Taquari, divi-
dindo-se com o rio Fão ao nascente e com o Lageado Honorato; ao sul, com uma
picada que vai do campo para o Rio Taquari; ao poente com uma coxilha seca
que divide as águas do Lageado Honorato das do Lageado Grande, tendo mais
ou menos três quartos de légua.7

A posse adquirida pelos suplicados em 1906, ao que tudo indica,


refere-se à terra de sesmaria; e os trâmites jurídicos tiveram início três
anos após a compra. Além da referência ao fator compra, dita na peti-
ção dos suplicantes, não há nenhuma menção à forma de aquisição do
primeiro posseiro; portanto, até então não interessava aos suplicantes
questionar a origem jurídica da terra-propriedade.
Alegavam que, em 12 de março de 1906, José Pedro da Silva, por
escritura pública, vendeu aos suplicantes Timotheo Pereira da Rosa e
Rodolfo Ahrons um sítio de terras de campos e matos sobre a Serra Ge-
ral do Taquari, a referida escritura pública foi registrada no Registro de
Imóveis do então foro do imóvel, Município do Lajeado, e que, solvida a
divergência existente sobre os limites entre o município de Soledade e
de Lajeado, passou o imóvel a pertencer quase que exclusivamente ao
primeiro.
Relativo à compra feita pelos suplicantes em 1906, o documento de
transmissão de propriedade8 – escritura pública de compra e venda –
é muito elucidativo; amplia as informações que aparentemente foram
negligenciadas nos registros das audiências. No referido documento, há
registro de que a compra foi feita de quatro grandes proprietários, discri-
minando os sujeitos e a terra vendida com os seguintes dados: o primeiro
vendedor, Gustavo Francisco de Campos, vendeu um sítio chamado “Ve-
ado Prado”, com a área superficial de 57.386.125 m², “situado no quinto
distrito do município de Soledade na serra geral do rio Taquari, na es-
trada que vai de Soledade para o Campo do Meio”; o segundo, José Pedro
da Silva, vendeu um sítio chamado de “Turvo”, com a área superficial de
23.438.008 m², situado no quarto distrito do mesmo município, na serra
geral do Rio “Jacuy”, na estrada que vai de “Lagoão” para o “Jacuizinho”,

7
Processo de Reivindicação. Dr. Rodolpho Ahrons e Dr. Timotheo Pereira da Rosa vs. Carlos Gui-
lherme Theophilo Sontag. Juízo Distrital do Civil e Crime de Soledade, Rio Grande do Sul. 1930,
p. 50. Arquivo da autora, Síntese – Processos Civis – Terra, 1870 a 1930, décadas de 1920/30;
e AHR-UPF, acervo do Judiciário.
8
Documento juntado ao Processo Civil de Reivindicação de Propriedade - 1930. AHR-UPF.

176
Ironita A. Policarpo Machado

e, também, um sítio de terras e matos situado sobre a serra geral de


Taquari, entre o arroio Fão e Lajeado Honorato, com 30.317.981 m²; a
terceira vendedora, Margarida Serafina de Brumum, vendeu “[...] um
sítio de terras e matos sobre a margem esquerda do lajeado ‘Putinga’ na
serra geral do Taquari, com uma área de dezessete colônias de mil braças
quadradas, oito milhões duzentos e vinte e oito mil metros quadrados
(8.228.000 m², 0)”. A quarta vendedora, Maria Hermógenos Rubles, “[...]
vendeu uma área de doze colônias a cem mil braças quadradas, cinco mi-
lhões oitocentos e oito mil metros quadrados (5.808.000 m², 0) de terras
situadas no segundo distrito de Lajeado”.
Assim, ao que tudo indica, as terras em litígios eram apenas uma
parte das terras adquiridas por Timotheo e Rodolpho. Na Figura 1, segue
a planta das terras em litígio.

Figura 1 – Planta de terra em litígio já demarcada para venda

Fonte: Arquivo da autora. Processos Civis 1870 a 1930, AHR-UPF acervo do Judiciário. Adaptação de Alex Vanin.

177
Colonização e capitalização: relações jurídicas e político-econômicas no norte do...

Pela descrição da área vendida, no relatório do agrimensor, trans-


crito e anexado ao processo de reivindicação, constata-se que se tratava
de grande extensão de terra, própria para agricultura, criação de gado,
matas e ervais, extração de recursos naturais, madeira de lei e pedra
ágata, com vias de transporte já abertas, que davam acesso a outros mu-
nicípios, distritos e aguadas de potencial hidráulico, sobre a qual os com-
pradores Timotheo e Rodolpho pagaram aos vendedores três contos de
réis (3:000$000) do total de oito contos e quatorze réis (8:014$000), sendo
tratado que o restante seria pago no prazo de três anos da data da escri-
tura (12/03/1906), com o direito de abaterem deste pagamento a soma de
sessenta e quatro milésimos do real correspondente a cada metro qua-
drado que até então se verificava faltar na área vendida.
Não há explicitação sobre que área de terra estaria faltando, mas
tudo indica, pelo histórico de ocupação e apossamento de terra daquela
região e também pela descrição apresentada no relatório, que a área de
terra era explorada (ervais devastados e terras cultivadas) por posseiros
lavradores, caboclos e colonos, pequenos agricultores e extrativistas, tra-
tando-se das terras em litígio.
Em relação às terras objeto da ação de reivindicação de propriedade,
os suplicados, representados por Salvadora Maria Ramos, que, em 25 de
novembro de 1925, no cartório distrital do oitavo distrito do município de
Soledade, constitui seu bastante procurador em causa própria Luiz José
Pedro da Silva, morador naquela vila, para fazer venda de uma pequena
área de terras de cultura situada no oitavo distrito no lugar denominado
Fão, que se achava dentro das delimitações do imóvel dos suplicantes,
destacam que o procurador alegava que a outorgante tinha a posse por
ocupação primária, com o seu finado marido João Eugenio de Castilho;
terras legitimadas pela Secretaria de Obras Públicas.
Ainda, os suplicados alegavam que
[...] o imóvel que faz parte o pedaço vendido por Salvadora Maria de Ramos
à Guilherme Theophilo Sontag, sempre foi tido na Secretaria de Estado dos
Negócios e Obras Públicas do Estado do Rio Grande do Sul, como terra de
domínio privado – como se comprova com a certidão da mesma Secretaria,
junto com documento nº 11, sendo portanto absolutamente impossível [àquela
secretaria] ou qualquer outra repartição pública legitimar terras pertencentes
ao domínio privado.9

9
’ Processo Civil de Reivindicação de Propriedade, 1930. AHR-UPF.

178
Ironita A. Policarpo Machado

Portanto, os suplicados propuseram a ação de reivindicação, sob for-


ma sumária, pela qual pediam a entrega da área vendida ilegalmente a
Guilherme Theophilo Sontag e a indenização de perdas e danos causados
a eles, “os legítimos proprietários”.
O depoimento de que a área de terra vendida por Salvadora a Gui-
lherme sempre foi tida, na Secretaria de Estado dos Negócios e Obras
Públicas, como terra de domínio privado, de acordo com documento nº
11 anexado, é um bom exemplo dos arranjos harmoniosos que advogado
e suplicantes realizaram no referido processo de reivindicação, pois isso
não consta no processo judicial, sendo que a única menção feita a esta
questão está na cópia nos Autos de apelação cível de nº 1806, de Por-
to Alegre, em que os apelantes são Rodolfo Ahrons e Timotheo Pereira
da Rosa, e os apelados, a Fazenda do Estado e outros, na qual é feita
citação aos interessados na demarcação de uma área de terra situada
em Lajeado, datada de 27 de dezembro de 1909; também, é transcrito o
termo de audiência especial da instalação dos trabalhos da demarcação
de terras datado de 11 de janeiro de 1912, no qual é referenciada a pre-
sença de João Aleixo Hennemann, guarda fiscal da Coletoria Estadual
do Município de Lajeado, representando a Fazenda do Estado, o qual foi
ouvido pelo juiz e declarou “que nada tinha a opor sobre as condições de
contrato”.10
Esses documentos transcritos, bem como o depoimento do funcioná-
rio público, não podem ser tomados como uma declaração, muito menos
como uma certidão da Secretaria de Estado dos Negócios e Obras Pú-
blicas do Rio Grande do Sul. Mesmo que o referido documento estives-
se anexado ao processo judicial, ainda assim estaria desconsiderando o
histórico de ocupação e apossamento daquela área de terra em nome de
uma escritura que era muito simples e fácil de realizar, desde que pagos
os impostos sobre a propriedade e de custa judiciária.
Diante desse emaranhado de depoimentos e documentos, que lugar
ocupava(m) e o que dizia(m) o(s) suplicado(s)? Primeiramente, é preciso
destacar que há discordância de datas dos documentos transcritos, indi-
cando os arranjos do processo judicial. Por exemplo, o Translado do Ter-
mo de Audiência, em que o advogado dos suplicantes acusava as citações
feitas aos réus propondo a ação de reivindicação, registra que a audiência
ocorreu em 24 de julho de 1930, e a contestação da ação de reivindicação
feita pelos réus foi transcrita com data de 9 de julho de 1930. Assim, não
10
Processo Civil de Reivindicação de Propriedade, 1930. AHR-UPF.

179
Colonização e capitalização: relações jurídicas e político-econômicas no norte do...

poderia a contestação dar-se previamente à acusação. Em segundo lugar,


na transcrição de contestação da ação de reivindicação, assinada pelo ad-
vogado Pedro Correia Garcez, consta que estava acompanhada de quatro
documentos, mas apenas um deles fora juntado, datado de 19 de maio
de 1931. É o documento que fez Guilherme Theophilo Sontag de subs-
tabelecimento de exclusão de procuração da autorização de fazer venda,
receber e dar quitação, na pessoa do advogado Pedro Correa Garcez, aos
poderes dos seus constituintes conferidos em documento procuratório em
causa própria, passado em 31 de agosto de 1929.
Aparentemente, não há nada de discrepante em uma prática judi-
cial, mas uma análise mais detida revela as verdadeiras intenções e prá-
ticas judiciais. Esse é mais um indício de como foi arranjada a ação de
reivindicação, de acordo com os interesses dos suplicantes, ou seja, com
as escolhas de palavras, documentos, testemunhas e normas e as respec-
tivas interpretações, arranjadas para dar uma versão da realidade; os
operadores do direito faziam parte e representavam uma fração de classe
no poder e com poder de interferir na justiça.
Voltando aos dados referentes à posição e à fala dos suplicados, pela
contestação da ação de reivindicação feita pelo réu, Guilherme Theóphilo
Sontag, contraposta com a argumentação final de defesa dos autores, Ro-
dolpho Ahrons e Timotheo Pereira da Rosa, feita pelo advogado Evaristo
Teixeira do Amaral Filho, que afirmava “[...] a cristalina prova dos autos
desnecessita, mesmo, quaisquer razões em favor dos autores”. De modo
que a “[...] absoluta ausência de motivação suficiente da detenção do imó-
vel reivindicado pelos réus ressalta flagrantemente a primeira vista”. E
a “[...] completa deficiência de argumentos em favor do réu, vai ao ponto
de ter como inexistente uma ação de demarcação julgada em última ins-
tância pelo Egrégio Superior Tribunal deste Estado”.11
De fato, olhando desse prisma, a argumentação, a montagem dos
autos, principalmente, da forma como os documentos foram copiados,
transladados e anexados, configuram a especificidade da tipologia de
processo – reivindicação de propriedade – na condição de autores, mas o
que existia eram duas situações entrecruzadas e distintas: de um lado,
uma situação de ausência de legitimação de posse, mas com escritura de
compra e venda; de outro, a compra de imóvel com demarcações e regis-
tros sobre a mesma terra.

11
Processo Civil de Reivindicação de Propriedade, 1930. AHR-UPF.

180
Ironita A. Policarpo Machado

Dessa forma, constitui-se uma correlação de força entre dois grupos


sociais: um grupo composto por homens que, além dos poderes econômico
e político, tinham o poder do conhecimento – normativo e legislativo, da
funcionalidade da estrutura administrativo-burocrática –, com capaci-
dade estratégica aquisitiva e especulativa; e outro grupo composto por
posseiros agricultores desprovidos de informações e de justa defesa à
propriedade.
Dessa forma, por exemplo, visualizado por esse processo judicial, na-
quele período, através do Judiciário, dava-se a constituição de uma rede
de poderes articulada em prol de interesses individuais, em detrimento
da comunidade rural; cooptavam-se operadores de direito (advogados,
juízes, jurisconsultos), funcionários públicos, legisladores e grandes pro-
prietários, em torno de causa privada, arranjando harmonicamente as
normas, as provas e os depoimentos, até atingirem a sentença desejada.
Isso se comprova pelo modo como se encerra o processo judicial de
reivindicação aludido, pois, mesmo não estando registrada a sentença do
juiz, pelo que consta nos dois últimos documentos juntados, deduz-se que
os autores ganharam a causa. No penúltimo documento, consta que Gui-
lherme Teófilo Sontag busca em juízo revogar os poderes de fazer venda
e receber e dar quitação de terras que lhe foram consentidos pelos seus
constituintes, cumprindo determinação do juiz da comarca; e, no último
documento, os autores solicitam ao juiz que, por desistência dos réus,
coloque fim à ação, mandando lançar a conta da custa.
Nesse caso de ação de reivindicação, entre outros elementos, como
em outros processos, primeiramente, a estratégia foi tanto pelo uso de
determinados artigos do Código Civil (1916), do Código do Processo Civil
e Comercial do Estado do Rio Grande do Sul (1921), dando uma interpre-
tação estreitamente direcionada, e do documento de Acórdão do Egrégio
Superior Tribunal do Estado do Rio Grande do Sul, que apenas ratifica
a legitimidade de instalação dos trabalhos de medição e demarcação de
terras presente numa certidão de edital copiada e juntada ao processo
judicial, quanto pela cópia da ata do conselho municipal de Soledade, na
qual, a pedido do advogado Evaristo Teixeira do Amaral Filho, aquele
conselho fez em juízo protesto pela invasão de divisas entre os municí-
pios de Soledade e Lajeado, consequentemente, resultando que a posse
de terra reivindicada ficou sob os limites e a jurisdição do município de
Soledade, no qual, em um de seus juízos distritais, corria o referido pro-
cesso judicial. Também é importante destacar que o advogado Evaristo

181
Colonização e capitalização: relações jurídicas e político-econômicas no norte do...

era promotor público no município de Soledade em 1928 (AITA; AXT;


ARAUJO, 1996; MELLO, 1943; SANTOS, 2000).
A trajetória dos próprios sujeitos promove a constituição de uma
rede de poderes. Nesse caso, o autor, Dr. Rodolpho Ahrons, na condi-
ção de engenheiro proprietário do Escritório de Projetos e Construções,
responsável pela construção de uma repartição pública do porte da Di-
retoria Regional dos Correios, revela o estreitamento de relações que ti-
nha com a fração de classe no governo do estado e que se fortalecia pela
associação que tinha com Timotheo Pereira da Rosa, que, além de ser
advogado, desempenhava as funções de promotor público e era deputado
na Assembleia dos Representantes do Rio Grande do Sul. Portanto, não
foi por acaso que os sujeitos de vida pública e ligados ao poder do par-
tido-Estado tiveram trâmites facilitados para produzir e juntar provas
documentais na ação de reivindicação.
No período de 1890 a 1920, em que o advogado Timotheo foi promo-
tor público e deputado e o engenheiro Dr. Rodolpho Ahrons entregou o
prédio da diretoria geral dos correios do Estado, a associação comercial
que efetivaram entre si promoveu grandes transações comerciais em tor-
no de compra e venda de terras para loteamento e colonização, como
identificamos no processo judicial e, também, nos documentos de indeni-
zação que tiveram por várias áreas de terras desapropriadas às margens
da via férrea de Passo Fundo pelo Estado, representando a dimensão de
suas ações comerciais no norte sul-rio-grandense, como pudemos obser-
var nos dados da Secretaria das Obras Públicas do Estado do Rio Grande
do Sul, que seguem:
Timotheo da Rosa (Dr.) e Rodolpho Ahrons (Dr.) Planta dos terrenos da inde-
nização, 15 de abril de 1911 - Margem da via - férrea Passo Fundo, área de
10.508.561,95785 m2 - Área entregue aos doutores por conta da indenização de
16.000.000 m2. Despacho presidencial de 30 de julho de 1910; e, outras inde-
nizações de terras, por exemplo, tais como: no 8º distrito de Passo Fundo s.d.,
área total 27.269.257,21045 m2 - Escala Antigo polígono G. Einloft entre as
estações Barro e Balisa, área total de 33.453.593,16565 m2 na Soc. De Boaven-
tura J e Pacheco e no Polígono Dourado Lambedor [Passo Fundo] s.d.; nos mu-
nicípios de Lajeado e Soledade [Passo Fundo] em 1912, área 26.296.454 m2.12

12
Dados retirados das plantas das terras e das cadernetas de campo. AHR-UPF: A-2.4. Secretaria
das Obras Públicas – Secretaria da Agricultura, Indústria e Comércio / Secretaria da Agricultura
e Abastecimento / Secretaria da Agricultura. Ver Anexo 11 - Plantas e Cadernetas de Campo de
Terras indenizadas pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul na República Velha, p. 282.

182
Ironita A. Policarpo Machado

Figura 2 – Planta de terras entre os municípios de Lageado e Soledade

Fonte: Arquivo da autora. Processos civis 1870 a 1930, AHR-UPF, acervo do Judiciário. Adaptação de Alex Vanin.

183
Colonização e capitalização: relações jurídicas e político-econômicas no norte do...

Figura 3 – Plantas e cadernetas de campo de terras indenizadas pelo governo do estado do Rio Grande do
Sul na República Velha

Fonte: AHR-UPF: A-2.4. Secretaria das Obras Públicas.

Assim, num contexto em que a hegemonia econômica do sul enfren-


tava a concorrência do norte do estado, enquanto a capital tornava-se o
centro econômico do Rio Grande do Sul, o advogado Timotheo da Rosa e o
engenheiro Rodolpho Ahrons estiveram à frente de cargos, funções e ne-
gócios que os tornaram “notabilidades rio-grandenses”, muito mais como
homens de negócio – capitalistas em detrimento de “homens de palha”
– do que como homens defensores do bem público.
Rodolpho Ahrons era engenheiro reconhecido pela administração de
um escritório de engenharia de grande nome sediado na capital e, além
dos trabalhos solicitados pelo governo federal, como a construção do pré-
dio da Diretoria Regional dos Correios, participou da iniciativa privada
em setor considerado de interesse público. Um deles diz respeito ao plano
para melhoria da navegação fluvial que, consequentemente, impunha as
obras do porto de Porto Alegre.13
A Secretaria de Obras, sob a direção de Candido José Godoy, tinha
o projeto de construção do porto e do cais de Porto Alegre, intentando
torná-la o centro das principais vias de navegação do Rio Grande do Sul
e integrar o projeto “Porto Alegre porto de mar” aos demais projetos de
hidrovias em andamento no estado.
13
Sobre a navegação fluvial na República Velha sul-rio-grandense e a iniciativa privada no setor
público, ver Reinheimer (2007).

184
Ironita A. Policarpo Machado

Sobre esse projeto, nos primeiros relatórios da Diretoria de Viação


de Obras, o diretor Faria Santos reafirmava a importância dos melho-
ramentos no porto e também suas convicções contrárias à participação
da iniciativa privada nos setores considerados de interesse público. As-
sim mesmo, a execução do projeto do cais da Praça o Senador Florên-
cio foi contratada, em concorrência pública, com o engenheiro Rodolpho
Ahrons, a 31 de julho de 1911. O engenheiro Ahrons havia sido o primei-
ro projetista para as obras do porto. O governo terceirizou a empreitada,
uma vez que o Estado não conseguia concluí-la. No mesmo contrato de
31 de julho de 1911, foi acertada a construção de 140 m de cais. A etapa
contratada com Ahrons, em 1911, foi concluída em 24 de julho de 1913
(REINHEIMER, 2007, p. 101-102).
O engenheiro Rodolpho Ahrons, em sociedade com Gruen & Bielfin-
ger, com sede em Meinhein, Alemanha, representado pelo primeiro como
seu procurador, em 1913, apresentou uma proposta de continuidade ao
projeto de obras do porto à Comissão dos Diretores técnicos e ao diretor
da Viação Fluvial, participando e concorrendo com a proposta da Société
Française de Entreprises de Dragoges et de Travause Publics, com sede
em Paris, representada pelo engenheiro Hielmann. Em 1913, o presi-
dente do Estado mandou aceitar a proposta da Société Française. Essa é
mais uma exemplificação da participação de capitalistas da capital como
grandes negociantes de terras no norte do estado, nas questões que en-
volviam empresas privadas em obras públicas, bem como a associação
com o capital estrangeiro.
Essa participação do engenheiro Ahrons com projetos e execução no
planejamento e melhoramento dos rios, efetivados pela administração
pública, inseria-se num programa político que visava recuperar a eco-
nomia do centro-norte do estado por meio da Diretoria de Viação, que
desenvolvia projetos para o setor de transportes, incluindo os projetos hi-
droviários, o que demonstra a sua perspicácia em reconhecer a valoriza-
ção das terras naquela região e a relação com outros setores produtivos.
Quanto à participação da navegação fluvial na economia do estado e
suas relações com outros setores produtivos, integravam-se ainda às ati-
vidades das empresas de navegação muitas outras empresas, entre elas,
por exemplo, as fábricas de móveis e as casas importadoras de máquinas
e motores, em destaque a Wiedemann e Cia., que também integrava o

185
Colonização e capitalização: relações jurídicas e político-econômicas no norte do...

grupo de fundadores da associação que formou a Liga da Navegação Rio-


-Grandense, em 1919. A empresa Wiedemann e Cia. também era dirigida
por capitalista comerciante de terras no norte do estado. Nesse período,
Alfredo Wiedemann era proprietário de terras e matos de cultura no lu-
gar denominado “Herval Grande”, no terceiro distrito do município de
Soledade, com área de 83.252.406 m², também medidas e demarcadas
pelo agrimensor Leonardo Seffrin. As ditas terras foram legitimadas
pelo Decreto nº 451 B, de maio de 1890.
Nesta linha, no desenrolar da instalação da administração do go-
verno republicano no Estado, também “[...] a ação pública para o setor
elétrico tramitou, assim, por competências nebulosas, parecendo muito
mais produto de uma multiplicidade de acordos dispersos entre capita-
listas individuais” (AXT, 2001, p. 330), e destacaram-se muitas empre-
sas privadas de capital do setor elétrico sul-rio-grandense, dentre elas, a
Companhia Força e Luz Porto-Alegrense.
Segundo Gunter Axt, a Companhia Força e Luz Porto-Alegrense –
1906 – teve como seu principal idealizador Possidônio Mâncio da Cunha,
grande acionista da Carris Porto-Alegrense, influente político ligado às
hostes do Partido Republicano Rio-grandense (PRR), privando do círculo
íntimo de Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros, que na época integra-
vam a diretoria de importantes empresas,14 como a Cia. Predial e Agrí-
cola, fundada pelo seu sogro Manoel Py, que tinha ações na Companhia
Força e Luz Porto-Alegrense e atuou no norte do estado com compra e
venda de terras para colonização e, especificamente, nas terras de Cima
da Cerra, fundou a Colônia São Paulo. Acompanharam-no na nova em-
preitada seus tradicionais sócios, juntamente com investidores ligados
especialmente a bancos, companhias de seguro e imóveis. “Todos compu-
nham a elite do capital financeiro mercantil urbano. Muitos deles ocupa-
vam também posições políticas vinculadas ao PRR” (AXT, 2001, p. 333).
Nessa elite do capital financeiro mercantil urbano, o capitalista as-
sociado a Possidônio, com ações na Companhia Força e Luz Porto-Ale-
grense e na Cia. Predial e Agrícola, era Thimóteo Pereira Rosa, sócio
do engenheiro Ahrosn nos negócios de terras do norte do estado. Assim,
podemos concluir que, se o engenheiro não teve trânsito direto na vida
14
A Cia. Telephônica Rio-Grandense (fundada em 1908), a Cia de Seguros de Vida Previdência do
Sul, a Cia. Fiação e Tecidos de Porto Alegre, entre outras (AXT, 2001, p. 333).

186
Ironita A. Policarpo Machado

política no que se refere a funções e cargos, teve-o de forma indireta, pois


podia contar com seu sócio, o capitalista e deputado Thimóteo Pereira
Rosa.
No plano de eletrificação, “[...] a hidrelétrica do Jacuí deriva do mais
ousado projeto da iniciativa privada regional no setor e foi concebida por
Rodolpho Ahrons”.15 Assim, após alguns anos de medição e projeções,
Ahrons solicitou à Diretoria de Terras da Secretaria de Obras Públicas,
em 9 de setembro de 1919, a concessão para exploração do potencial
hídrico do Rio Jacuí, com vistas à construção de uma hidrelétrica com
30.000 HP. Como o empreendimento, objetivava abastecer diversos mu-
nicípios, entre os quais a capital, as atribuições legislativas em torno
da concessão excediam o âmbito municipal para a esfera estadual. Em
1920, a Secretaria de Obras Públicas chamou então concorrência pública
para concessão do potencial do Jacuí. Não se enquadrando a proposta
de Ahrons nas cláusulas do edital, nova concorrência foi chamada, com
novos concorrentes, cujos projetos eram bastante débeis. As propostas
foram rejeitadas, e a terceira concorrência, que instigou interesses diver-
sificados, foi prejudicada pela guerra civil que irrompeu em seguida no
Rio Grande do Sul.16
O projeto de Ahrons sofreu diversas críticas e discordâncias pelos
burocratas da Secretaria das Obras Públicas, da qual fazia parte o enge-
nheiro Afonso Heber, seu principal concorrente em obras de construção
civil encomendadas pelo Estado, mas as principais oposições ao projeto
partiram dos engenheiros Faria Santos e Torres Gonçalves, que propu-
nham a realização do empreendimento pelo próprio governo estadual ou
por meio de parceria deste com os municípios beneficiados com o capital
privado. Entretanto, a hostilidade do governo do estado ao projeto pri-
vado de Ahrons e, também, a indisponibilidade de recursos, ou porque
a Revolução de 1923 questionou a tendência intervencionista que se for-
15
Processos Civis 1870 a 1930.
16
“O projeto de Ahrons foi orçado em 30.000 contos na terceira concorrência, embora os técnicos
da SOP admitissem que as inversões pudessem alcançar até 50.000 contos – Ahrons pretendia
captar os recursos junto a investidores regionais e nacionais. Estimava-se que 46% da energia
produzida seriam de pronto absorvidos por Porto Alegre, que, não obstante consumir à época
cerca de 60.000 KW/hora por dia, apresentava uma demanda reprimida da ordem de 140.000
KW/hora por dia, o que totaliza 200.000 KW/hora. Acreditou-se, com razão, que unicamente as
necessidades da capital, em luz e força, bastariam para justificar o empreendimento. Os cálculos
da SOP previam uma renda líquida ao capital investido (tomado como 50.000 contos) da ordem
de 18,4%” (AXT, 2001, p. 341).

187
Colonização e capitalização: relações jurídicas e político-econômicas no norte do...

talecia na política econômica borgista que levou ao não seguimento da


proposta do governo, inviabilizou o projeto da hidrelétrica do Jacuí.
Diante do exposto, concluímos que os autores do processo judicial
de reivindicação, o advogado Timotheo da Rosa e o engenheiro Rodolpho
Ahrons, incorporam os elementos que caracterizam um agente de negó-
cios – típico capitalista da república sul-rio-grandense; e esses negócios
são firmados na base de preço de contrato (sobre a terra), no qual o valor
era avaliado na base de fatos que viriam depois, ou seja, fundam-se em
possíveis lucros, em que o comprador paga o preço fixado visando à ca-
pitalização e à rentabilidade com sua comercialização, baseando-se em
prováveis acontecimentos futuros, nesse caso, temos a questão da valo-
rização das terras do alto Jacuí e do desenvolvimento das vias e trans-
portes fluviais para valorização dos produtos coloniais, por isso a terra
em litígio tinha tamanho valor aos suplicantes da ação de reivindicação.
Assim, como bacharéis de vida pública, os homens de negócios (ca-
pitalistas) integravam um grupo de homens de poder, que o usavam em
proveito de interesses privados e em detrimento dos públicos, caracteri-
zando a ação típica do processo de racionalização capitalista no período.
Ainda, formava-se uma rede de poder na e da vida forense, agindo como
força extrínseca às comunidades rurais, que passavam a integrar o negó-
cio lucrativo em torno da terra.

Agente regional de poder e de negócios


O agente regional de poder e de negócios corresponde a forças in-
trínsecas às comunidades rurais, ou seja, é o sujeito que integrava aque-
le grupo de poder, ora como agente de negócio e/ou de influência político-
-partidária e judiciária que o favorecia, ora associado a forças extrínse-
cas – capitalista da capital e, em diversas situações, associado ao capital
estrangeiro. Em muitos casos, tinha sua origem familiar e profissional
atrelada ao mandonismo local, ou seja, às elites político-econômicas, que
se fortaleciam ou se constituíam paulatinamente, atreladas ao Estado
através de favorecimentos.
Caso exemplar de sujeito que integrava o grupo de poder político e
econômico pela força político-partidária e jurídica, como força intrínse-

188
Ironita A. Policarpo Machado

ca da comunidade rural, pode ser remetido ao advogado dos autores no


processo de reivindicação de Timotheo e Rodolpho. O advogado Evaristo
Teixeira do Amaral Filho pertencia à genealogia de coronéis do mando-
nismo local – grandes latifundiários e líderes políticos locais. Seu avô foi
Antônio Teixeira do Amaral, grande proprietário de terra,17 casado com
dona Balbina Iria Prestes, que faleceu em 1866, deixando cinco filhos
menores.
Entre os filhos de Antônio Teixeira do Amaral, destaca-se Evaristo
Teixeira do Amaral,18 coronel, chefe político em Palmeira das Missões.
Nas eleições para os cargos legislativos, tanto estaduais como federais,
Palmeira das Missões sempre obteve destaque político e, por longo tem-
po, elegeu representantes. O PRR local, por suas origens, sempre esteve
ligado à política estadual e elegeu como representante na Assembleia
do Estado o filho de Evaristo Teixeira do Amaral, o advogado Evaristo
Teixeira do Amaral Filho, também coronel, que atuou como deputado
estadual em duas legislaturas, de 1905 a 1908 e de 1909 a 1912, foi pro-
motor público interino nas comarcas de Taquari em 1918, Rio Pardo em
1922, e promotor público em Palmeira em 1927, em Soledade em 1928 e
em Erexim em 1934 (DALLA NORA, 2006; JACOMELLI, 2004; MELLO,
1943; SANTOS, 2000).
Nessa perspectiva, a análise dos processos judiciais19 indicou diver-
sos agentes de negócios, como grandes ou pequenos comerciantes, sendo
alguns deles bacharéis, homens de vida pública – os agentes de negócio
–, que, integrando um grupo de homens de poder, constituíam-se em for-
ças intrínsecas à comunidade rural no processo de racionalização capi-
talista, por meio da comercialização da terra. Dentre esses, destaca-se
Leonardo Seffrin.
17
Registro paroquial n° 148, em 15 de maio de 1856, no lugar denominado Palmeira, distrito da
vila da Cruz Alta, um rincão de campo que houve por compra feita a Joaquim Antônio Ribeiro
(descendente do Atanagildo Pinto Martins, por parte de Ana Joaqina do Amaral), o qual se dividia
ao norte com Antônio José de Oliveira, por um lageado abaixo até a Serra Geral, ao sul, da ponta
a uma cerca ao rumo de um banhado abaixo, até o lageado; pelo lageado abaixo, dividindo com
Alberto José Corrêa, até o Rio Guarita, e pelo Rio Guarita abaixo, até a Serra Geral, com Jerôni-
mo Moreira, tendo o predito rincão mais ou menos, de comprimento, uma légua e ½ de largura.
15/5/1856.
18
Evaristo Teixeira do Amaral era coronel republicano e foi assassinado por causa de desavenças
políticas locais no município de Palmeira. Sua morte agravou a animosidade entre maragatos e
pica-paus. Cf. Reverbel (1985, p. 43).
19
Processos judiciais envolvendo colonização e propriedade da terra: Ações Cíveis de 1880 a
1930. AHR-UPF, acervo do Judiciário.

189
Colonização e capitalização: relações jurídicas e político-econômicas no norte do...

Nos processos judiciais, no período de 1910 a 1920, o capitão Leonar-


do Seffrin aparece ora como advogado ora como agrimensor. Seu nome
figura atrelado ao poder público municipal a partir do final da década de
1910, como vereador, e na década de 1920, como intendente. Fora eleito
prefeito em 10 de agosto de 1928, para a administração da intendência
do município de Soledade, pelo PRR, até 3 de março de 1931, mas não
completou o mandato eletivo, em razão das alterações institucionais de-
correntes da Revolução de 1930. Nesse pleito, concorreram para a prefei-
tura de Soledade Leonardo Seffrin e Cândido Carneiro Júnior (Coronel
Candoca). Fora presidente da Junta de Alistamento Eleitoral em 1928 e
em 1929, como resultado da aliança entre o PRR e o Partido Libertador,
em nome da candidatura de Vargas, foi eleito presidente efetivo desta
aliança no município.
Em 26 de maio de 1936, matou o então prefeito de Soledade, Cam-
pos Borges, sendo absolvido por terem os jurados considerado que agira
em legítima defesa, visto que a morte não fora motivada pela questão
política, já que ambos pertenciam ao Partido Republicano Liberal, mas,
sim, de cunho econômico, originária de uma dívida de Seffrin para com
a Prefeitura Municipal, uma execução fiscal movida contra Seffrin e seu
irmão (GUERREIRO, 2005, p. 94-95).
Diante dos dados obtidos pelos processos judiciais e de documentos
de época da Prefeitura Municipal de Soledade, além da função de agri-
mensor, advogado e funcionário público, podemos classificar as ativida-
des de Leonardo Seffrin como as de agente financeiro e agente comercial
de terra para colonização, já que sua riqueza como grande proprietário
deu-se pelas transações comerciais que realizava.
A classificação da função de agente financeiro pauta-se na prática
de empréstimos que Leonardo Seffrin fazia a pequenos e grandes pro-
prietários, tomando por garantia as terras desses, como, por exemplo, o
processo judicial de execução de 1911. O referido processo corresponde a
uma ação de execução na qual Leonardo Seffrin, como credor hipotecá-
rio de Aníbal Gregório Alonso e sua mulher Apolinária Alves Figueira,
citava-os como devedores para que pagassem a dívida e os juros. Caso
o pagamento não fosse feito, seriam hipotecados os referidos bens pela
quantia capital de 9.940:000, com juro de 1% ao mês, de uma parte de

190
Ironita A. Policarpo Machado

terras e matos, do mesmo segundo distrito, lugar denominado “Serra da


Figueira”, cuja parte tinha a área de 15.628.655 m2.20
Ainda se encontram na documentação de época da Prefeitura de So-
ledade21 vários extratos, escrituras de hipoteca e registros do Cartório
de Registros Gerais e Especiais, entre eles, vários apresentam Leonardo
Seffrin como credor. Por exemplo, o seguinte extrato: credor Leonardo
Seffrin, empregado público, residente e domiciliado no município de So-
ledade, devedor Bertholdo Peukert e sua mulher, Adelaide Peukert, agri-
cultores e proprietários, com escritura lavrada em 14 de abril de 1930,
pelo notário ajudante Candido Borges, o valor do crédito para garantia
da responsabilidade do credor como avalista das notas promissórias do
valor total de oito contos duzentos e oitenta mil réis, firmados pelo pri-
meiro devedor hipotecário a José Antonio dos Santos e Euzébio Santos
Ortiz, o imóvel circunscrito a Soledade denominado de “Datas” no oitavo
distrito, correspondendo a uma parte de campos de cultura com área de
1.350.000 m².22
Constata-se que a atividade de agente financeiro dava-se em torno
da terra, não dissociada desta, também, a de agente comercial. Assim,
Leonardo Seffrin fazia investimentos com a compra de terra para reven-
dê-las e criava o capital de giro também pela aquisição de empréstimos,
como o crédito que ele e seu irmão, Fernando Armando Jacob Seffrin,
contraíram da Caixa Cooperativa Santa Cruzense, com sede em Santa
Cruz, lavrado em escritura pública de 12 de julho de 1927 naquele muni-
cípio, no valor de oitenta contos de reis (80:000$000), com juro de 12% ao
ano e data de vencimento em 12 de julho de 1930, para compra de terras
de cultura no 4º e no 8º distrito de Soledade, de João Feliciano Franco e
Olivério José Franco, correspondendo a uma área de 4.600.430 m², e de
Maria Deolinda de Menezes, uma área de 12.674.800 m².23

20
Processo Judicial de Hipoteca. Leonardo Seffrin (credor) vs. Aníbal Gregório Alonso (devedor).
Juízo Distrital do Civil e Crime de Soledade, Rio Grande do Sul. 1911. Arquivo da autora, Síntese
– Processos Civis – Terra – 1870 a 1930, década de 1910; e AHR-UPF, acervo do Judiciário.
21
Arquivo digitalizado dos autores e Casa de Cultura de Soledade – Soledade, Rio Grande do Sul.
22
Escritura de Hipoteca, Livro 55 “b”, fls. 86, de 1930, Cartório de Notas, 17 de maio de 1930,
Soledade. Fonte: Arquivo digitalizado da autora e Casa de Cultura de Soledade – Soledade, Rio
Grande do Sul.
23
Extrato n° 8.939, p. 98 v; n° 212, p. 13, do Livro nº 2 “A”, do Protocolo apresentado em Soledade
em 03 de fevereiro de 1928. Casa de Cultura de Soledade – Soledade, Rio Grande do Sul.

191
Colonização e capitalização: relações jurídicas e político-econômicas no norte do...

Outro registro interessante é uma escritura de venda datada de 28


de dezembro de 1928, na qual Fernando Armando Jacob Seffrin é procu-
rador dos outorgantes vendedores Victor Antunes de Almeida e sua mu-
lher, Francisca Arãn, e o comprador seu irmão, Leonardo Seffrin, de uma
parte de terras de matos com área de cinquenta hectares no 7º distrito do
município de Soledade, lugar denominado “Paiol Velho”.24
Esses documentos de transações comerciais correspondem à aqui-
sição particular de empréstimos, de compra, hipoteca e registro de imó-
veis, mas todos foram registrados como traslados e cópias nos arquivos
da então administração da intendência de Soledade, juntamente com
documentos da mesma ordem, ou seja, registro de permuta de terras, de
compra e venda de terras realizadas pela mesma intendência. Esse tipo
de negócio realizado e o tipo de registro indicam o quanto o privado e o
público invadiam suas “fronteiras” jurídicas. Da mesma forma, entre ou-
tros fatos, o envolvimento do irmão de Leonardo Seffrin, como outorgante
dos sujeitos que venderam terras àquele, demonstra que o agenciamento
de vendas das terras dava-se por uma diversidade de estratégias.
Leonardo Seffrin, como agente financeiro e comercial de terra para
colonização, fez parte de uma sociedade comercial com Waldemar Leo-
nardo Matte e Jacques Borges de Camargo, em 22 de março de 1919,
com a denominação genérica de “Empresa Colonizadora Serrana” e sob
a razão social de J. Camargo & Comp., conforme instrumento social ar-
quivado na Secretaria da Junta Comercial de Porto Alegre em 1º de abril
de 1919, sob o nº 9.231, que se destinava a compra e venda de terras,
comércio de tábuas, madeiras de lei e demais produtos do país.
Num processo judicial de prestação de conta requerido pelo sócio Ja-
cques Borges de Camargo em 1925,25 é registrado que, para constituição
desta sociedade, cada sócio concorreu com a quota de cento e cinquenta
contos de reis (Rs 5:000$000); em 3 de junho de 1919, a firma J. Camar-
go & Comp. Adquiriu, por compra de Germano Maestrelin, uma fração
de terras situada no 1º distrito do município de Soledade, pelo preço de
cento e vinte e seis contos de réis (Rs 126:000$000), e, em 11 de junho
24
Translado de Escritura de venda e compra. Livro n° 50, f. 18. Arquivo digitalizado da autora e
Casa de Cultura de Soledade – Soledade, Rio Grande do Sul.
25
Processo Judicial de Prestação de Contas. Jacques Borges de Camargo (requerente) vs. Leo-
nardo Seffrin e Waldemar Leonardo Matte Juízo Distrital do Civil e Crime de Soledade, Comarca
de Passo Fundo, Rio Grande do Sul, 1925.

192
Ironita A. Policarpo Machado

de 1922, vendeu o mesmo imóvel ao governo do estado do Rio Grande do


Sul, pelo preço de trezentos e sessenta contos de réis (Rs 360:000$000);
além desse, nenhum outro negócio fez a sociedade. Entretanto, a atuação
de Leonardo Seffrin não se restringia apenas a esta empresa e, também,
como se demonstrou, com base na leitura dos processos judiciais e da do-
cumentação de época da Prefeitura Municipal de Soledade, há diversas
indicações de que ele detinha um amplo capital em terras.26
Nesse caso, evidenciamos que o negócio de terras era lucrativo, pois
em apenas três anos o valor da terra mais que duplicou, além do fato de
o governo do estado pagar valor tão alto por terras privadas. No entanto,
mesmo que reconheçamos que, no período em questão, a terra começava
a ficar escassa, ainda, havia terras devolutas. Isso, mais uma vez, de-
monstra a dificuldade na definição e na separação entre privado e públi-
co nas práticas comerciais entre capitalistas, líderes locais e governo do
estado.
Por outro lado, assim como Leonardo Seffrin, os sócios que perten-
ciam àquela comunidade rural eram grandes proprietários e tinham es-
treitas relações políticas com os líderes políticos locais. Portanto, quando
se pensa em forças atuantes para racionalização, colonização e capita-
lização na República Velha sul-rio-grandense, não podemos fazê-lo res-
tringindo-nos aos capitalistas da capital. Assim, podemos compreender
que o processo de racionalização capitalista que promove as transforma-
ções de uma comunidade rural, tornando-a transitória, é dinamizado por
forças intrínsecas e extrínsecas a ela.
Nessa dinâmica, o governo realizava seus objetivos de ocupação, co-
lonização e modernização do estado do Rio Grande do Sul por intermédio
da penetração do capitalismo, que contou com a importante atuação das
companhias que intermediavam a colonização. Essas empresas atuaram
no Rio Grande do Sul no período de 1850 a 1920, para comercializar
lotes de terras a imigrantes europeus e seus descendentes. Para a elite
latifundiária, a criação de colônias particulares de imigração tornou-se
o meio mais lucrativo de aproveitamento das áreas de matas. Por essa
razão, surgem muitas empresas colonizadoras e empresários da coloni-
zação. Também ocorria a ação individual desses últimos, proprietários
26
Fragmentos de documentos referentes às atividades financeiras e comerciais de Leonardo Sef-
frin. Fonte: Casa de Cultura de Soledade – Soledade, Rio Grande do Sul.

193
Colonização e capitalização: relações jurídicas e político-econômicas no norte do...

que loteavam e comercializavam suas áreas individualmente, e daque-


les organizados em torno de companhias, as quais envolviam um nú-
mero maior de proprietários e, em muitos casos, estavam atreladas a
outras empresas de diversos setores produtivos bem como ao capital es-
trangeiro. Dessa forma, segundo Jean Roche (1969, p. 139), ao chegar o
ano de 1920, as empresas privadas haviam colonizado 10.800 km² para
24.000 km² de colonização oficial.
A respeito das companhias colonizadoras, dentro dos limites de nos-
sas fontes – o processo judicial, principalmente de execução, de dissolu-
ção de sociedade e de invasão de terras –, temos o indicativo de algumas
empresas que atuaram no norte sul-rio-grandense no período.
A Cia. Predial e Agrícola de Porto Alegre, que instalou e adminis-
trou a Colônia São Paulo no 4º distrito do município de Soledade, além de
atuar no interior do estado, com interesse de comercializar terras para
colonização e empreitar a construção de obras de estradas, atuava no
município de Porto Alegre com empreendimentos de urbanização. Essa
companhia foi fundada em 7 de janeiro de 1897, por Manoel Py; seus
principais incorporadores eram Possidônio Mâncio da Cunha Júnior,
genro do fundador, acionista da Carris Porto-Alegrense, integrante da di-
retoria de importantes empresas, como a Cia Telefônica Rio-grandense,
a Cia. de Seguros de Vida Previdência do Sul, a Cia. Fiação e Tecidos de
Porto Alegre e o Banco Comercial Franco-Brasileiro; influente político li-
gado às hostes do PRR, foi deputado estadual entre 1893 e 1909; quando
assumiu a cadeira na Câmara; em 1891, foi nomeado tenente-coronel da
Guarda Nacional; Aurélio Py, acionista nas companhias citadas e depu-
tado estadual pelo PRR, da 8ª a 10ª legislatura; João Py Crespo, deputa-
do pelo PRR na 2ª legislatura; Antônio Carlos Panafiel, genro de Júlio de
Castilhos, médico, diretor dos jornais O Diário e Federação, entre 1911 e
1915, deputado estadual entre 1914 e 1921; Armênio Jouvin, advogado,
proprietário do Jornal do Comércio, de Porto Alegre, acionista da Fiat
Lux e deputado durante a 6ª legislatura; Thimoteo Pereira Rosa, sócio de
Possidônio (e do engenheiro Ahrons), advogado e deputado durante a 7ª
legislatura; entre outros. Portanto, entre os principais acionistas da Cia.
Predial e Agrícola constavam tanto pessoas físicas, que compunham a
elite do capital financeiro mercantil urbano, como jurídicas, destacando-
-se E. de Azevedo & Cia. e o Banco da Província. Essa companhia conse-

194
Ironita A. Policarpo Machado

guiu sobreviver à crise econômica do final do século XIX e início do século


XX.27
A empresa A. Tasch & Cia. foi fundada por Abraão Tatsch, que foi
juiz de paz em 1877, vereador em 1881, coronel da Guarda Nacional; era
proprietário de farmácia e de uma indústria de bebidas destiladas, que
teve 22 acionistas – capitalistas da capital – que, juntos, em 1893, fun-
daram uma refinaria de banha em Santa Cruz do Sul. No mesmo ano,
a nova empresa de A. Tasch & Cia. registrou a marca “Excelsior”, uma
das mais conceituadas do setor de embutidos do Rio Grande do Sul. No
interior do estado, a empresa A. Tasch & Cia. atuava em compra e ven-
da de terras, especificamente, no norte sul-rio-grandense, associando-se
ao capitão Paulo Billig, em 1892. Para o referido fim, instalaram uma
serraria no 5º distrito de Soledade, próximo às diversas colônias de sua
propriedade; a sociedade terminou em 1902, com a morte de Abraão e
conflitos entre os demais acionistas.28
A Empresa Colonizadora Serrana, J. Camargo & Cia., foi fundada
em 1919 pelos cidadãos soledadenses: capitão Leonardo Seffrin, agri-
mensor, advogado por concessão de alvará, político filiado ao PRR, que
desempenhou a função de intendente de 1928 a 1930, Jaques Borges
de Camargo e Waldemar Leonardo Matte, ambos criadores de gado e
grandes proprietários de terras na região. A companhia destinava-se a
compra e venda de terras, comércio de madeiras de lei e outros produtos
de extração nativa, atuando até o ano de 1922.29
Nesse contexto, os acionistas das empresas e companhias podem ser
tomados como referencial histórico e conceitual (agentes de negócios) sob
duas dimensões, a de sujeitos pertencentes à comunidade rural, que agiam
associados aos seus pares e/ou aos capitalistas da capital, e a da elite do
capital financeiro mercantil urbano, representando forças extrínsecas no
negócio lucrativo de terras. Portanto, deduz-se que o capital financeiro

27
Cf.: Axt (2001), Reinheimer (2007), Guerreiro (2005), Processos Civis – Terra – 1870 a 1930,
décadas de 1920/30, e AHR-UPF, acervo do Judiciário.
28
Cf.: Axt (2001); Reinheimer (2007); Guerreiro (2005); Processos Civis – Terra – 1870 a 1930,
décadas de 1920/30; e AHR-UPF, acervo do Judiciário.
29
Outras companhias são citadas, mas não obtivemos outras fontes de consulta; portanto, sendo
apenas referências, optamos em não incorporá-las no corpo do texto. São as seguintes: Tomas
Cia. & Chispim José Silva, os sócios diretores eram cidadãos moradores de Soledade e Cruz
Alta e tinham relações comerciais com V. Torres e Cia. de comerciantes da capital do estado; F.
G. Bier e Cia. um de seus acionistas era Emílio Textor, morador do 5º distrito de Soledade; Fraeb
Hieckole e Cia detinha a hipoteca de terras de Luiz Landroigt e outros, no município de Cruz
Alta. Fonte: Processos Civis – Terra – 1870 a 1930, décadas de 1920/30; e AHR-UPF, acervo do
Judiciário.

195
Colonização e capitalização: relações jurídicas e político-econômicas no norte do...

mercantil urbano esteve diretamente ligado ao negócio de terra no norte


do estado, donde também advinha parte do capital aplicado em outros se-
tores produtivos; questão ilustrada pela atuação da Companhia Predial e
Agrícola, pelos projetos e pela atuação do engenheiro Rodolpho Ahrons.
A esse respeito, Kliemann sustenta que o Estado tinha interesse em
“facilitar a atuação dessas companhias e empreendimentos”, desde que
“pudessem manter o programa econômico estabelecido”. Para exemplifi-
car essa constatação, que, por sua vez, vem ao encontro das análises so-
bre companhias e capitalistas deste texto, destacamos o caso da coloniza-
ção realizada pela Jewish Colonization Association (ICA), que tinha por
objetivo atender aos judeus emigrantes. Em 1902 e 1910, a colonizadora
comprou e fundou colônias em Santa Maria (Colônia Filipson) e Ere-
chim (Fazenda Quatro Irmãos), sendo que o interesse por essas terras
partiu da escolha de Franz Philipson, vice-presidente da entidade, que,
na ocasião, era presidente da Compagnie Auxiliare de Chemins du Fer
au Brésil. Essa companhia, de capital belga, era, na época, arrendatária
das linhas Porto Alegre-Uruguaiana, Cacequi e São Gabriel e Bagé a
São Sebastião. A partir de 1905, foi arrendatária de toda a rede ferrovi-
ária sul-rio-grandense. Outro exemplo é o da Companhia Internacionale
Bohrgesellschaft, que solicitou privilégio de venda de terras na zona do
Alto Taquari, onde, em sociedade com o colonizador Carlos Trein Filho,
passou a fundar núcleos e alojar colonos (KLIEMANN, 1986, p. 105-121).
Nessa dinâmica de poder e de racionalização capitalista, os sujeitos
constituíam-se em agentes capitalistas transformando o Judiciário em
meio e agente de três formas: operadores do direito, ocupando cargos
públicos, usufruíam desta prerrogativa; a interpenetração da justiça, no
direito público-privado e na sobreposição das normas, como estratégia
para tornar a posse de terra juridicamente reconhecida; o uso do poder
de mando local e/ou das estruturas administrativo-burocráticas do go-
verno do estado para intervir nos conflitos internos da comunidade rural,
como garantia do projeto de modernização, do avanço da fronteira agríco-
la e da prática da propriedade elaborada pelas normas.30
30
No âmbito dos interesses e práticas do Estado, no que tange ao projeto oficial de colonização, na
República Velha, como os indicados pelos processos e pela publicação do referido edital, os tra-
balhos de colonização, que, antes, eram de competência do governo central, como decorrência
da norma constitucional, passaram à competência do Estado. Assim, destacam-se a atuação da
Diretoria de Terras e Colonização e, respectivamente, das Comissões de Terras e Colonização,
dentro de um aparato administrativo e jurídico. Em 29 de dezembro de 1889, o governo, pelo
Decreto nº 32, criou a Diretoria de Terras e Colonização ligada à Superintendência de Obras
Públicas do Rio Grande do Sul, com a tarefa da administração das terras públicas bem como dos
serviços de colonização, sob a direção de Carlos Torres Gonçalves de 1909 a 1928.

196
Ironita A. Policarpo Machado

Ainda sobre o assunto, tornaram-se confusos os conceitos de terras


públicas e privadas. Os processos de legalização, demarcação, esbulho,
reivindicação de posse e mercantilização da terra deram-se via Comis-
sões de Terras e Colonização e via juizados civis distritais e de comarcas,
sendo que muitas vezes se entrecruzavam. Ilustra a problemática o texto
que consta do relatório do engenheiro Torres Gonçalves, que estava à
frente da Diretoria de Terras e Colonização do Estado, em 1908, no qual
o funcionário explica por que o Estado, indevidamente, instalou colonos
em terras particulares:
É verdade que, em todos esses casos, ou na maioria deles, pelo menos, a ori-
gem dos títulos de domínio era mais do que suspeita. Tais títulos consistiam
em translados de escrituras de compra e venda, colocando a propriedade em
mãos de terceiro ocupante antes da lei de 1850 e seu regulamento de 1854, do-
cumentos, portanto, dando à propriedade o caráter privado, independente de
legitimação. Os originais desses translados, e aqui começa a fraude, deviam
existir no cartório de Soledade, onde tinham sido extraídos; mas esse cartório
fora vítima de um incêndio durante a última luta civil [...].31

Dentro da ordem instituída, o governo buscou introduzir a contra-


ditória política de defesa e controle da ocupação territorial, pois o Esta-
do estava organizado para interferir nos municípios, por meio de corpos
provisórios, orientados e armados, da imposição de interventores. Assim,
os coronéis, as relações de compadrio, os funcionários do Estado e das
comissões e os demais envolvidos no processo de colonização regional
constituíam-se em pilares e fundamentos do conjunto das relações de
poder. Assim, “[...] para favorecer os amigos, o chefe local resvala muitas
vezes para zona confusa que medeia entre o legal e o ilegal, [...], mas a
solidariedade partidária passa sobre todos os pecados uma esponja rege-
neradora” (AXT, 2001, p. 113).
Têm-se, ainda, as práticas das companhias de comercialização e de
colonização de terras, envolvendo sujeitos da própria regionalidade e ca-
pitalistas da capital como promotores da modernização e da expansão
demográfica e agrícola; também, as despesas das empresas limitavam-se
ao custo inicial das glebas, bem como sua avaliação, escritura ou título
Torrens, medição, demarcação, registro e extrativismo de madeira de lei
e beneficiamentos, sendo que o lucro provinha da diferença entre os pre-
31
Anexo ao Relatório do Secretário das Obras Públicas, Dr. Cândido José Godoy, em 28/08/1908,
Porto Alegre, 1908.

197
Colonização e capitalização: relações jurídicas e político-econômicas no norte do...

ços de compra e de venda, embutidos os custos de produção e promoção


dos empreendimentos. Nesse sentido, é importante registrar que o lucro
tinha fluxo contínuo às localidades de origem dos empreendedores ca-
pitalistas, principalmente a Porto Alegre, onde eram realizados outros
investimentos, como, por exemplo, em indústrias têxteis e de alimentos,
loteamento e infraestrutura urbana.32
As práticas das companhias analisadas a partir dos processos judi-
ciais demonstram o grande interesse na valorização de seus empreen-
dimentos através da incorporação de bens, usos e serviços. A compra de
grandes áreas de terras para o loteamento para colonização por parte dos
capitalistas revela a preocupação no direcionamento dos recursos para
um setor com lucratividade garantida em longo prazo. De outro modo, as
mínimas exigências regulamentadas pelo poder público e judicial para
os novos empreendimentos indicam a ampla liberdade de ação dos pro-
motores fundiários que, coincidentemente, ocupavam importantes car-
gos públicos, da mesma forma que os operadores de direito, que, em sua
maioria, procediam de acordo com os seus interesses, dos poderes locais,
de seus aliados políticos e também da oposição pela modernização, uma
vez que a maioria deles ocupava os cargos municipais e era filiada ao
PRR. Assim, encontravam uma forma de conciliação local com a oposição
para o apoio ao governo do estado.

Considerações finais
Diante das questões apresentadas referentes a colonização e capita-
lização sul-rio-grandense através de relações jurídicas e político-econô-
micas, podemos afirmar que, a partir da última década do século XIX, a
figura do proprietário fundiário começa a se associar e/ou ceder lugar às
companhias de loteamento, criadas especificamente para atuar no mer-
cado de terras e no ideário da modernização das lideranças locais e do es-
tado por meio da expansão demográfica e da produção agrícola da região,

32
Segundo Strohaecker (2005), a Companhia Predial e Agrícola foi a única empresa que conse-
guiu sobreviver aos difíceis anos que deram início ao século XX. Com a incorporação das extin-
tas companhias Territorial Porto Alegrense, Territorial Rio Grandense e Cia. Rural e Colonizado-
ra, a Companhia Predial e Agrícola praticamente monopolizou o mercado de terras da capital do
estado até a metade da década de 1920. Ela detinha um patrimônio fundiário considerável na
periferia da cidade em arrabaldes ou bairros emergentes da zona sul (Glória, Teresópolis, Parte-
non), como nos bairros ao norte da capital (Navegantes, São João, Higienópolis e Auxiliadora).

198
Ironita A. Policarpo Machado

pois junto delas chegavam, consequentemente, infraestrutura e vias de


transporte, bem como o desenvolvimento urbano. Na realidade, é a nova
ordem econômica emergente no país que exige esses melhoramentos. As-
sim, os escassos recursos disponíveis são canalizados para o centro da ci-
dade – muitas foram as emancipações de distritos nesse período – e para
aquelas áreas em que o grande capital começava a ser locado.
Ainda com relação às bases de apoio ao governo castilhista-borgista,
que, registrado pela historiografia, deu-se pelos “[...] grandes comercian-
tes financistas urbanos, especialmente de Porto Alegre, Pelotas e Rio
Grande, dos charqueadores e de alguns poderosos locais, que pretendiam
estabelecer sua faixa de domínio pessoal nas municipalidades através
da sustentação do governo estadual” (AXT, 2001, p. 63), este estudo, em
certa medida, é ratificado pela leitura analítica dos processos. Entretan-
to, com relação às lideranças locais, destacamos que as neutralizações
das oposições, principalmente por interesses econômicos, deram-se pelas
barganhas, ou seja, a “permanência negociada”, com as lideranças polí-
ticas e econômicas locais, também, buscando incorporar os novos segui-
mentos da sociedade civil, se não pela participação política, pela coerção,
pela repressão, pelo consenso via o apoio nas transações econômicas em
torno da terra que chegavam aos juízos distritais e de comarca.
Em síntese, o processo de racionalização capitalista apresenta uma
conjuntura, nas três primeiras décadas do século XX, em que ocorre a
culminância da aplicação das normas e das políticas públicas fundiárias,
decretadas e sancionadas em sua maioria na década de 1900, marca-
da pelo término da imigração subsidiada, pela escassez de terras para
ocupação e pelos processos judiciais no norte sul-rio-grandense. Assim,
refletido nos conflitos e nas contradições das mudanças provocadas pela
busca de modernização através de iniciativas políticas oficiais e particu-
lares, das relações socioeconômicas e das normas para libertar o impulso
econômico dos entraves da política econômica tradicional, consequente-
mente, não de mentalidade e de práticas da maioria dos sujeitos que
constituíam a comunidade rural, da concepção de direito à terra e da
prática do Judiciário do estado do Rio Grande do Sul.
Dessa ordem de considerações, concluímos que o estado do Rio
Grande do Sul, nas três primeiras décadas do século XX, configurou-se
por uma ação política autoritária e intervencionista na economia, apesar
de o programa do PRR preconizar o protecionismo à economia nacional,
favorecendo e privilegiando a penetração de capital estrangeiro, as ini-

199
Colonização e capitalização: relações jurídicas e político-econômicas no norte do...

ciativas de pequenos e grandes agentes em setores públicos e privados.


Isso, consequentemente, favoreceu a fração de classe no governo que não
somente justificava e mantinha seu domínio, mas conquistou o consenti-
mento da burguesia emergente. E ambos, Estado e burguesia, tinham o
Judiciário como agente e meio para a racionalização capitalista.

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194-13.htm>. Acesso em: 20 maio 2018.

200
Susana Cesco

Desmatamento e
migração no Alto Vale
do Rio do Peixe
Susana Cesco

Introdução

O
s trabalhos recentes sobre imigrações e colonização não deixam
de analisar os fatores ambientais condicionantes desses proces-
sos e, por vezes, elementos fundamentais e até instigadores de
tais eventos. Pesquisas de autores como Donald Worster, Warren Dean
ou Keith Thomas, por exemplo, que passaram a incluir a cobertura flo-
restal de uma região como “sujeito” da história, não podem mais ser igno-
radas e acrescentaram novos elementos à pesquisa histórica.
Pesquisas mais antigas sobre o tema migrações e colonização no
Brasil, realizadas até meados do século XX, têm por base a tradição de
antigos viajantes, como Saint-Hilarie, Avé-Lallemant, von Tschudi, en-
tre outros. No caso específico do Alto Vale do Rio do Peixe, no estado de
Santa Catarina, mesmo não tendo sido rota desses naturalistas/viajan-
tes estrangeiros que se aventuraram pelo interior do Brasil até o século
XIX, os textos produzidos tiveram inspiração nesses relatos de viajantes.
As obras de autores que escreveram sobre o local fizeram uso de longas
descrições e se apropriaram das noções de civilizado e selvagem. Tais
textos, em sua maioria, descreveram o estado de Santa Catarina, para

201
Desmatamento e migração no Alto Vale do Rio do Peixe

além da serra, como um sertão bravio e selvagem, que precisava ser des-
bravado e civilizado.
A identificação, muito comum nesse período, de regiões pouco ou não
povoadas33 como “sertões” ou “grotões”, em oposição às cidades, foi uma
clara divisão da sociedade brasileira em espaços simbólicos dicotômicos
(ARRUDA, 2000, p. 13). Essa divisão é, mais que tudo, uma forma de
atribuir qualidades positivas a uma das partes – no caso, as cidades – e
mostrar que a outra – o sertão – pode vir a ser tão boa quanto as cida-
des, desde que domesticada e civilizada, além de ocupada por modernos
equipamentos.
As representações envolvidas nesse processo de explicação da sociedade bra-
sileira remetem a outros termos que historicamente formaram pares opostos:
moderno/arcaico, civilizado/incivilizado, progresso/atraso. Cidades e sertões
são termos que traduzem novas sensibilidades surgidas no processo acelerado
de concentração populacional e de urbanização, por que algumas regiões pas-
saram na primeira metade deste século. Mais propriamente pode-se falar que
se trata de “lugares da memória” do processo de urbanização vivenciado de
diferentes formas por diversos contingentes populacionais. Processo de trans-
formação das paisagens, de construção e reelaboração de representações sobre
o território e populações (ARRUDA, 2000, p. 14).

Esses locais, “de terrenos pouco explorados, no início do século, tor-


naram-se mapeados, reconhecidos, nomeados e cartografados” (ARRU-
DA, 2000, p. 16).34 A representação de um “espaço geográfico” teve por
base mapas e relatórios produzidos e publicados em grande número pe-
los institutos históricos e geográficos, por comissões estaduais de carto-
grafia, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ou por edições
particulares. Essa produção cartográfica, segundo Diego Moreno (1990,
p. 44-45), se vista com olhos de rapina, possibilita, a partir de uma utili-
zação instrumental, localizar e reconhecer o terreno em estudo, em suas
condições atuais.
Ainda de acordo com Arruda (2000), a representação de “cidades e
sertões” perpassa a explicação ou a adequação da então realidade bra-
sileira, entendida como local de natureza virgem diante da necessidade
33
A classificação “não povoada” é uma referência às expressões usadas por autores da época,
como José de Lima Figueiredo, na obra Cidades e sertões: páginas de história e geografia do
Brasil, de 1941. Esclarece-se que a ocupação dessas áreas por índios ou pelos conhecidos
caboclos ou sertanejos não está sendo desconsiderada.
34
O autor refere-se ao estado de São Paulo, porém o exemplo é pertinente, inclusive, à região em
estudo, que também é citada pelo autor.

202
Susana Cesco

eminente de exploração e transformação em áreas agrícolas. A natureza,


entendida como a floresta, representada por viajantes estrangeiros, por
autoridades brasileiras ou por poetas e romancistas, como paradigma da
nacionalidade, também serviu para ocultar ou justificar as diferenças
sociais regionais (ARRUDA, 2000, p. 18).
Na mesma tradição dos viajantes, autores nacionais, como Hercu-
lano D’Assunção, Demerval Peixoto, Artur Ferreira da Costa, Henrique
Boiteux, Aujor Ávila da Luz, General Vieira da Rosa, Carlos Costa Perei-
ra, entre outros, representaram Santa Catarina como um território em
estado “natural”, com muitas possibilidades de se tornar uma pujança
nacional, desde que bem trabalhado. Foram desses autores que partiram
muitas das ideias de “domesticação e civilização” de índios e caboclos do
século XIX e início do século XX: ideias de progresso e evolução econômi-
ca e de ocupação do espaço, que pode ser entendido “como uma represen-
tação cultural, resultado da ação dos homens” (ARRUDA, 2000, p. 136).
Esses autores, especificamente, não discutiram com profundidade as
consequências sociais da destruição das florestas, da erosão dos solos,
dos desequilíbrios climáticos; abordaram, entretanto, a questão econômi-
ca ligada a isso. Os recursos naturais35 constituíam o grande trunfo para
o progresso futuro do país, devendo ser utilizados de forma inteligente e
cuidadosa (PÁDUA, 2002, p. 13), especialmente para atrair imigrantes
que colonizaram a região.
Diante de tal quadro, o foco de análise recai sobre a relação das co-
munidades tradicionais e dos migrantes que ocuparam a região do Alto
Vale do Rio do Peixe, no meio-oeste do estado de Santa Catarina, com a
cobertura vegetal existente ali e os consequentes usos do solo e da na-
tureza locais na primeira metade do século XX. O caso pontual do mu-
nicípio de Caçador, que, em seus primeiros 16 anos de emancipação, já
era tido como um dos mais importantes da região, indicou que, além do
potencial natural a ser explorado, uma cidade urbanizada, dispondo de
boas estradas, pontes, hospitais e escolas, com uma receita que possibi-
litava a expansão futura, era um modelo de transformação da paisagem
do estado de Santa Catarina a ser seguido.

35
Entende-se por recursos naturais o que tinha valor econômico no período, ou seja, a madeira e
outros produtos agropastoris e florestais abundantes na região e passíveis de serem explorados
economicamente.

203
Desmatamento e migração no Alto Vale do Rio do Peixe

Para realização deste estudo, foram consultados acervos documen-


tais e bibliográficos, digitais e físicos do governo federal, do estado de
Santa Catarina e do município de Caçador, analisando informações re-
ferentes a legislação, terras e colonização programada. Nesse sentido,
verifica-se que as leis direcionadas a esses setores no período em questão
eram puramente voltadas à ocupação “oficial” do território, à exploração
comercial e à consolidação das fronteiras nacionais, pouco ou nada preo-
cupadas com populações nativas ou mesmo com a flora e a fauna locais.
Também os jornais e propagandas voltados à colonização foram funda-
mentais para uma compreensão mais profunda da realidade local e das
relações sociais, econômicas e culturais na primeira metade do século
XX. Foi, em grande parte, por meio dos jornais que se perceberam alte-
rações profundas na paisagem e, com elas, a percepção dos moradores
locais acerca de sua interdependência com a terra, provocando grande
transformação em hábitos e costumes dos homens, no meio ambiente,
nas práticas e apropriações da natureza. Esse processo de transformação
é observado sob o ponto de vista da história regional, e a abordagem se dá
em torno da apropriação e do uso da dita “natureza local” para fins eco-
nômicos e consequências ambientais, econômicas e sociais decorrentes
da colonização da região e dos novos usos atribuídos à terra.

Esboços de divisão regional


A região do Alto Vale do Rio do Peixe localiza-se na microrregião de
Joaçaba, no meio-oeste catarinense, cujos limites são as microrregiões
geográficas de Xanxerê, Concórdia, Curitibanos e Canoinhas e o estado
do Paraná. É constituída atualmente de 21 municípios, sendo os ana-
lisados por esta pesquisa: Água Doce, Arroio Trinta, Caçador, Calmon,
Ibicaré, Lebon Régis, Matos Costa, Pinheiro Preto, Rio das Antas, Salto
Veloso, Treze Tílias e Videira (SECRETARIA DE ESTADO DE COOR-
DENAÇÃO GERAL E PLANEJAMENTO, 1991, p. 90).
O Alto Vale do Rio do Peixe, cuja mata era composta pela associação
de araucária (Araucaria angustifolia) e imbuia (Ocotea porosa), “até me-
ados do século XIX [...] era território dos índios Kaingang que se disper-
savam do norte do Rio Grande do Sul, pelos Campos de Palmas, sertões
de Tibaji e Ivaí e penetravam em São Paulo” (ROSSETO, 2006, p. 258) e,

204
Susana Cesco

posteriormente, de caboclos, que tiravam sua sobrevivência da natureza,


alterando a cobertura vegetal sem a criação de propriedades agrícolas
com benfeitoras e plantações, ou seja, de forma diversa da que ocorreu
com a chegada dos migrantes de origem europeia vindos do Rio Grande
do Sul.
O conceito de sertão que, confrontado às cidades, equivalia a uma
comparação entre civilizado e incivilizado, muitas vezes, deveu-se à fal-
ta de conhecimento do que eram realmente os sertões (ARRUDA, 2000,
p. 20). Esse movimento de nomeação e demarcação de fronteiras atri-
buindo-lhes características naturais ocorre também com as “cidades”, ou
seja, é uma construção de identidades fundamentada em representações,
nesse caso, dos conceitos de cidade, sertão e fronteira, termos que, segun-
do Bourdieu (1989 apud ARRUDA, 2000, p. 20), são atribuições de luga-
res não naturais, de elementos ou características inscritos na cultura.
Esses sertões, especificamente o Oeste de Santa Catarina, eram co-
bertos por uma floresta exuberante que “deixa de ser simplesmente um
espaço de contemplação estética ou de reflexão filosófica para tornar-se
um elemento de integração e identidade das matrizes étnicas e culturais”
(ARRUDA, 2000, p. 19). Essas regiões só passam a existir como tal após
um processo de reflexão e pesquisa, apesar de a história regional tomar
um espaço geográfico a priori, sem levar em conta o fato de elas estarem
inscritas em uma rede de significados resultantes das práticas sociais.
São denominações que não pretendem enunciar um lugar, mas suas ca-
racterísticas (ARRUDA, 2000, p. 24).
São terras que só despertaram o interesse do Estado quando auto-
ridades argentinas reivindicaram um “território historicamente brasi-
leiro” (NODARI, 1999, p. 20). Essa disputa, que acabou conhecida como
“Questão de Palmas” ou “Missiones”, despertou a atenção do governo
para a necessidade de ocupar um território tido como seu e questionado
pelo país vizinho. Para ocupar, era necessário povoar a região; nesse sen-
tido, foram criadas, pelo Decreto Imperial nº 2.502, de 16 de novembro
de 1859, duas colônias militares na área, Chopim e Chapecó, somente
efetivadas pelo ministro da guerra em 1881 (NODARI, 1999, p. 21).
Com o acordo definitivo assinado em 1895, era necessário ao Brasil
a ocupação efetiva dessas terras, para impedir que a Argentina tornasse
a reivindicá-las. Isso principiou com um decreto que deu “privilégios e

205
Desmatamento e migração no Alto Vale do Rio do Peixe

garantias de juros e terras devolutas para a construção de uma estrada


de ferro” (PIAZZA, 1988, p. 250) que, partindo de Itararé, na província de
São Paulo, terminaria em Santa Maria da Boca do Monte, na província
do Rio Grande do Sul. O privilégio para a construção foi concedido ao
engenheiro João Teixeira Soares, que, ainda em 1890, constituiu a Com-
pagnie Chemins de Fer Sud Ouest Brésiliens, com capital europeu, para
a qual passou a concessão da Estrada de Ferro São Pulo - Rio Grande
(EFSPRG).
A 20 de junho de 1891, pelo decreto nº 397, a União autorizou a transferência
da construção da maior parte da linha para a Companhia União Industrial
dos Estados do Brasil, ou seja, todo o trecho de Itararé a Cruz Alta (RS), com
exceção do trecho de Santa Maria a Cruz Alta, que ficou concessionado para a
Chemins de Fer Sud Ouest Brésiliens (THOMÉ, 1983, p. 45).

Posteriormente, essa concessão foi repassada, com autorização do


governo brasileiro, à empresa norte-americana Brazil Railway Co. O tre-
cho catarinense foi iniciado em 1908. A maior parte da área do Alto Vale
do Rio do Peixe por onde passaria a ferrovia era dividida em grandes
fazendas, cujos proprietários haviam requerido suas posses na segunda
metade do século XIX, muitas delas antes de 1889, quando Teixeira Soa-
res assinou o contrato de construção da EFSPRG.
A nona cláusula do decreto nº 10.432, de 09 de novembro de 1889,
fixava em 90 anos o prazo do privilégio para a exploração da ferrovia e
estabelecia a cessão gratuita de terrenos devolutos e nacionais, inclusive os
compreendidos em sesmarias e posses, numa zona máxima de 30 km para cada
lado das linhas, desde que a área total cedida e demarcada não viesse a exce-
der a média uma faixa de nove quilômetros para cada lado da extensão total,
a serem utilizados em colonização dentro de 50 anos (THOMÉ, 1983, p. 42).

A renovação do decreto, feita pelo governo da república em 07 de


abril de 1890, reduziu a concessão de 30 para 15 quilômetros ao longo
dos trilhos no máximo, sem levar em conta qualquer posse anterior. Uma
nova alteração, de 07 de junho de 1890, estipulava em 30 anos a garantia
de juros livres de quaisquer impostos (THOMÉ, 1983, p. 42).
Quando da criação da Brazil Lumber and Colonization Company,
subsidiária da Brazil Railway Company, em Portland, EUA, autorizada
a funcionar no Brasil em 13 de março de 1912, com os objetivos específi-
cos de demarcar as terras e dividi-las em lotes para colonização, grande

206
Susana Cesco

parte das terras estava ocupada por fazendas e posseiros. As escritu-


ras de muitas das fazendas anteriormente citadas, cujas posses foram
adquiridas antes da assinatura do decreto nº 10.432, foram respeitadas
(THOMÉ, 1983, p. 42), mesmo estando na área que, por direito, perten-
cia a Brazil Development Colonization Company, empresa de colonização
ligada à Brazil Railway Company. Os posseiros foram desalojados. Para
compensar essas áreas que não foram desapropriadas, a companhia co-
lonizadora adquiriu terras fora da zona limite, em locais distantes e de
difícil acesso para as vias de comunicação.
As etapas que se sucederam para culminar na ocupação do Alto
Vale do Rio do Peixe tiveram início com a consequente criação de várias
empresas colonizadoras de menor porte que se encarregaram de fazer
propaganda da região e “arrebanhar” pessoas para povoar o local. Essas
companhias adquiriram as terras da Brazil Development Colonization
Co. Entre elas, estão as empresas Irmãos Coelho de Souza Ltda, Empre-
sa Rio Caçador Ltda, Alberto Schmitt e Kurudz e Bortolon.
O novo desenho da região no que se refere a crescimento e progresso
deveu-se sobremaneira à EFSPRG, obra que veio na esteira das grandes
ferrovias do Brasil. A grande expansão capitalista do final do século XIX
e início do XX foi calcada na exportação de capitais, especialmente por
meio da infraestrutura e do financiamento, de modo a ligar novos mer-
cados (NODARI, 1999). “E um dos instrumentos utilizados para essa ex-
pansão foi a construção de ferrovias. Aparentemente destinadas a levar
o desenvolvimento às regiões mais atrasadas, essas obras serviram para
garantir a exportação de mercadorias das indústrias siderúrgica e carbo-
nífera, bem como garantia retorno sob a forma de juros sobre os capitais
emprestados” (NODARI, 1999, p, 32). No tocante à Santa Catarina, “a
preocupação com o progresso baseado na disponibilização de infra-estru-
tura por parte do Estado passou a ser uma característica marcante do
pensamento político catarinense” (NODARI, 1999, p. 54). Isso se reflete
nas falas dos governantes do estado, como, por exemplo, na mensagem do
Coronel Gustavo Richard, vice-governador, em 29 de setembro de 1891:

207
Desmatamento e migração no Alto Vale do Rio do Peixe

A indústria e a lavoura ressentem-se extraordinariamente da falta de comuni-


cações. Diversos municípios quase que se acham impossibilitados de comuni-
car-se com a capital por falta de estradas, impedindo assim de dar uma saída
aos seus produtos. Enquanto não estiverem os municípios dotados de boas
e numerosas vias de comunicação, muito sofrerão o comércio e a lavoura do
Estado que só podem desenvolver-se com excelentes estradas que ponham em
rápido contato o produtor e o consumidor (NODARI, 1999, p. 54).

Muitas ferrovias foram construídas neste afã de levar o progresso


aos sertões do Brasil. Em Santa Catarina, até a década de 1930, exis-
tiam trilhos que ligavam Imbituba a Araranguá, Blumenau a Rio do Sul,
Porto de São Francisco do Sul a Porto União e a EFSPRG, cujos trilhos
atravessavam o estado de Porto União à divisa com Marcelino Ramos, no
Rio Grande do Sul. No Alto Vale do Rio do Peixe, a estrada cortava o ter-
ritório da então vila de Caçador, que pertencia ao município de Campos
Novos e Santelmo, território do município de Porto União, como já citado
anteriormente.
Esse forte e, relativamente, rápido crescimento do município deve-
-se, em parte, à estrada de ferro, que serviu, desde o princípio, como elo
de ligação da região com o restante do país. É sabido que
a concessão dada pelo Império em 1889 a Teixeira Soares não previa somen-
te a construção e exploração da ferrovia entre Itararé e Santa Maria, como
também, implicitamente, o estabelecimento de núcleos coloniais ao longo dos
trilhos. Por esta razão é que lhes foram cedidos, entre outros privilégios, os
terrenos marginais à estrada (THOMÉ, 1983, p. 177).

Que a construção do trecho catarinense da EFSPRG foi um grande


impulso para a colonização do Oeste de Santa Catarina é fato amplamen-
te analisado, entretanto, essa obra implementou o desenvolvimento das
áreas em torno dos trilhos ainda durante sua construção. O engenheiro
Achilles Stengel, responsável pelo trecho catarinense da EFSPRG, ainda
em 1909, “providenciou a construção de 12 grandes armazéns, arren-
dados a particulares, para fornecimento aos trabalhadores, ao longo da
extensão, junto às estações inauguradas, em construção ou a construir”
(THOMÉ, 1983, p. 95). A criação dessas casas comerciais na região foi
bem-sucedida, assim como a colonização das áreas marginais aos trilhos
da estrada de ferro. Isso se deveu, em muito, aos incentivos e obrigatorie-
dades impostos pelo governo, para que se cumprisse o prazo estipulado
para a colonização, que era de 50 anos a começar em 1890, quando da

208
Susana Cesco

assinatura do acordo entre Teixeira Soares e o governo federal. O mesmo


incentivo ao progresso local estava presente na organização dos núcleos
coloniais que, segundo Thomé, se pretendia que se dessem a partir da
divisão em um número de cinco a cada 100 quilômetros, sendo que
[...] cada núcleo deveria ter no mínimo 100 lotes rurais, que seriam vendi-
dos aos imigrantes mediante pagamento à vista ou a prazo, em preços que
dependeriam de aprovação do governo. Nestes núcleos, a companhia deveria
proporcionar aos imigrantes todos os meios ao seu alcance para o melhor be-
neficiamento dos produtos, animando a criação e o incremento de pequenas
indústrias, promovendo o estabelecimento de escolas de instrução primária e
profissional gratuita, de campos de experimentação e demonstração, e cons-
truindo templos religiosos para os cultos professados (THOMÉ, 1983, p. 179).

Apesar de a companhia da EFSPRG não aceitar todas essas cláusu-


las e contestá-las, muitas delas foram postas em prática no decorrer da
colonização; entre elas, a abertura de estradas partindo das estações fér-
reas em direção ao interior e a instalação de sedes ao longo dessas linhas.
A representação de regiões desconhecidas como de grande fertilidade
e de clima extremamente saudável inscreve-se nas produções simbólicas
de maior efeito no imaginário humano (ARRUDA, 2000, p. 122). Fazendo
uso desse poder simbólico, o papel dessas colonizadoras era, por meio de
seus agentes, ir até as colônias mais antigas do Rio Grande do Sul (co-
nhecidas como colônias velhas) e expor aos imigrantes europeus e seus
descendentes ali instalados as vantagens das novas terras. Facilitando
esse trabalho estavam os fatos de que as famílias de colonos instalados
no Rio Grande do Sul já estavam em suas segunda ou terceira gerações,
e o primitivo lote de terras que lhes fora concedido não comportava mais
tantas pessoas e seu sustento, bem como de seus descendentes.
Essa realidade é percebida ao analisar-se a política de distribuição
de lotes para colonos. Antes da Lei de Terras de 1850, ocorria a doação
de terras com área até superior a 70 hectares a imigrantes europeus.
Com a lei, a terra passou a ser um bem limitado, uma mercadoria a ser
adquirida pelo colono e paga em prazos determinados pelas companhias
colonizadoras, que passaram a atuar com força no Sul do Brasil. Nesse
período, os lotes foram reduzidos a 48,4 hectares e, após a Proclamação
da República, a 25 hectares por família, forçando as gerações seguintes
a deslocarem-se (WOORTMANN, 1995, p. 100). Essa divisão da terra,
aliada às propostas animadoras dos agentes colonizadores, foi responsá-

209
Desmatamento e migração no Alto Vale do Rio do Peixe

vel pelas primeiras leva de migrantes que se instalaram no Alto Vale do


Rio do Peixe.
A propaganda feita aos colonos do Rio Grande do Sul valia-se dos
mais diversos artifícios. Panfletos e pequenos livros traziam fotografias
de estradas e benfeitorias nos supostos locais destinados à instalação dos
colonos. Para facilitar o contato com os colonos instalados no Rio Grande
do Sul, muitas dessas propagandas eram redigidas em alemão ou italia-
no, línguas de origem de muitos desses imigrantes.
Uma dessas propagandas foi publicada no jornal Staffetta Riogran-
dense, da cidade de Garibaldi, no Rio Grande do Sul, em 19 de dezembro
de 1934, e refere-se à colônia com o sugestivo nome de Benito Mussolini,
de propriedade de José Petry e Formigheri e Cia. O texto destaca a curta
distância da colônia em relação a Estação Perdizes – atual município de
Videira ‒, apenas 25 km, o que facilitaria o escoamento da produção das
propriedades agrícolas. Os lotes da colônia Benito Mussolini estavam re-
servados apenas a colonos italianos, e o local era descrito como a melhor
zona de vinho, trigo e milho da região (RADIN, 2001, p. 4). Já a colônia
alemã Marschall Hindemburg, também na região, apenas um ano e meio
após sua fundação,
[...] contava com uma serraria, duas casas comerciais, moinho para trigo e
milho, hotel, dentista, parteira e enfermeira diplomadas, carpinteiros, sapa-
teiros, uma escola pública e uma particular, uma comunidade católica e outra
protestante, uma atafona, oficina hidro-elétrica [sic] para força e luz em cons-
trução, uma fábrica para destilar milho e centeio [...], além de possuir áreas
com mata branca e extraordinárias zonas de pinhais (RADIN, 2001, p. 4).

Quanto aos preços, uma colônia de 10 alqueires em Marschall Hin-


demburg variava de 3:000$000 (três mil réis) à 3:500$000 (três mil e qui-
nhentos réis), e na Colônia Benito Mussolini, com 40 lotes demarcados,
vendia-se a 1:500$000 (mil e quinhentos réis) a unidade. Os interessados
que chegassem à região deveriam se hospedar em uma pensão indicada
nos folhetos de propaganda, lá obtendo desconto na hospedagem e es-
tabelecendo o primeiro contato com o responsável pela venda dos lotes.
Essa forma de propaganda, publicada em jornais que circulavam nas
ditas colônias velhas do Rio Grande do Sul, obteve bons resultados, ten-
do em vista a grande ocupação da região por migrantes vindos do estado
vizinho do Sul.

210
Susana Cesco

Não apenas no Rio Grande do Sul, mas também na Europa, chega-


ram folhetos referentes às colônias Marschall Hindemburg, Schwoben-
land e New-Bresigheim, de propriedade de José Petry; a propaganda
destaca a distância de 21 km das colônias em ralação à Estação Perdizes
e o fato de serem interligadas por boas estradas e formadas por boas
terras, que, além do que foi descrito anteriormente, eram apresentadas
como planas, no máximo com outeiros, e, de modo geral, totalmente ará-
veis. Curiosamente, o colonizador garantia não haver incidência de febre
amarela/malária, pragas de insetos, formigas, etc.; fator que tinha muito
peso na escolha de terras para a compra. Somam-se a isso a abundância
de água, o fácil acesso a ela, a proximidade da EFSPRG e, em função
do forte movimento e trânsito de pessoas, a facilidade para a instalação
de comerciantes e industriais de todos os ramos, o que tornava a região
muito atraente.36
Os valores da colônia Marschall Hindemburg variavam de acordo
com a quantidade de lotes que o investidor adquirisse:
Uma colônia com 242.000 m2 (242 ha) é vendida por 3.500 milréis. 5 a 10 co-
lônias por 3.300 milréis. 10 a 20 colônias por 3.100 milréis. 20 a 30 colônias
= 2.900 milréis. 30 a 50 colônias = 2.750 milréis. 50 a 100 colônias = 2.500
milréis. 100 ou mais colônias por 2.200 milréis por cada colônia. Condições de
pagamento: 10 a 20% no ato da assinatura do contrato; 30% entre 60 a 90 dias
e o restante 50% em dois anos com juros de 8% no último ano. Essa taxa, no
entanto, ainda pode ser negociada. Compradores que saldarem suas dívidas,
quitando-os entre 60 – 90 dias, terão abatimento de 10% sobre os preços acima
anunciados. Lotes/terrenos urbanos serão vendidos a 700 réis/m2. Chácaras
entre 10 – 50 mil m2, ao lado da cidade, serão vendidas entre 50 a 100 réis/
m2.37

A posição da colônia em relação à EFSPRG, considerada pelo colo-


nizador a mais importante do Brasil, é constantemente ressaltada na
propaganda, o que facilitaria uma lucrativa indústria madeireira, já
que ainda existiam áreas cobertas de mata de pinho de primeira classe.
Além da madeira, as grandes e férteis terras de Marschall Hindemburg
possibilitavam os mais variados tipos de exploração agrícola e pastoril.
Também são explicados, na propaganda, os procedimentos pelos quais os

36
Folheto de propaganda em língua alemã, acervo de Evangelischer Zentralarchiv, Berlin, [192?].
Tradução de João Klug.
37
Folheto de propaganda em língua alemã, acervo de Evangelischer Zentralarchiv, Berlin, [192?].
Tradução de João Klug. Grifos do autor.

211
Desmatamento e migração no Alto Vale do Rio do Peixe

interessados ali chegariam sem problemas. Orientações sobre o desem-


barque no porto de São Francisco do Sul, para os imigrantes europeus,
passando pela viagem de Perdizes a Marschall Hindemburg, pela hospe-
dagem e por possibilidades de moradia, não deixavam dúvidas quanto à
eficiência do colonizador José Petry no que se refere a sua companhia.38
Esses textos eram em sua maioria grandiloquentes, apesar de des-
creverem com veracidade lotes com solos férteis, entusiasmavam os imi-
grantes com a existência de estradas que permitiam o acesso a outras vi-
las e cidades, benfeitorias e, com especial destaque, à densa floresta que
cobria toda a região. Apesar dessa riqueza em madeiras nobres poder
reverter-se em lucro imediato, pois existia grande interesse por parte das
serrarias, especialmente a Southern Brazil Lumber Cia., proprietária de
uma grande serraria em Três Barras e de uma filial em Calmon, no norte
de Santa Catarina, não ficavam claras as enormes dificuldades para ex-
plorar e converter esse potencial em lucro real. A importância da floresta
que cobria os lotes coloniais era tão grande que, em alguns contratos,
a Lumber estipulava cláusulas específicas sobre como o colono poderia
dispor da mata, como, por exemplo, o processo de compra de terras por
Bertholdo Mendes de Queiroz, com área de 3.630.000 m2, no distrito de
Ouro Verde, em 1928:
a outorgante reserva para si:
a madeira de qualquer espécie existente na aludida parte de terras, ficando
o outorgado obrigado a evitar que lhe sejam danificadas por fogo ou outras
causas sob pena de responder por seu valor; o direito de retirar as madei-
ras reservadas em qualquer tempo e de construir, na mencionada parte de
terras, estrada de ferro ou de rodagem, trafegando-as enquanto lhe convier,
sem obrigação de indenizar qualquer dannos que resultem dos serviços a seu
cargo; o outorgado entretanto poderá utilizar-se, para suas necessidades, de
dois pinheiros ou de duas árvores de madeira de lei por alqueire, no maximo,
prestando autorização escripta do fiscal da outorgante [...].39

O resultado da venda de lotes foi extremamente satisfatório. Muitos


migrantes instalaram-se na região; uns vieram com suas famílias, outros
sozinhos, com a intenção de constituir família na região. Esse processo
iniciou-se logo após a criação da Brazil Development e Colonization Co.,

38
Folheto de propaganda em língua alemã, acervo de Evangelischer Zentralarchiv, Berlin, [192?].
Tradução de João Klug. Grifos do autor.
39
Processo de venda de terras da Lumber a Bertholdo Mendes de Queirós, Comarca de Porto
União, 16 de outubro de 1928.

212
Susana Cesco

em 1908, porém, consolidou-se e tornou-se intenso nos anos posteriores a


Guerra do Contestado,40 especialmente a partir de 1917, quando da cria-
ção dos primeiros municípios na região e da anexação definitiva desse
território ao estado de Santa Catarina.
Nas duas primeiras décadas do século XX, essa política ligada ao
estímulo à colonização europeia não levou em conta muitas posses dos
pequenos agricultores e caboclos que habitam a região e não tinham dis-
positivos, como demarcação de terras e registro em cartórios, para re-
gularizar o que eram suas propriedades. Essa expropriação contribuiu
muito para a instabilidade na região.41 Somam-se a isso o grande número
de pessoas que ficaram na região sem trabalho após a conclusão da EFS-
PRG e o início da “tomada da área” por parte da Lumber, com a conse-
quente derrubada da mata (incluindo os ervais) e a escassez das fontes
de subsistência dos habitantes locais; esses fatores foram determinantes
para que houvesse um início de resistência organizada contra a nova
realidade local.42
A região tinha quase que a totalidade de seu território coberta por
uma densa floresta, como cita o relatório do colonizador Alberto Schmitt
apresentado à Diretoria de Terras e Colonização, em 1934. O relatório
refere-se a duas colônias sob direção da empresa colonizadora Alberto
Schmitt: a colônia 15 de Novembro, pertencente ao município de Porto
União, e a área de São Bento e Rio Bonito (parte do atual município de
Videira). A colonização nessas áreas iniciou em 1918, e o relatório, após
fazer referência à divisão dos lotes, a preços e a produção, atém-se às
“condições geraes naturaes” e a “solo e cultura”. O autor destaca que

40
Iniciada em outubro de 1912, na região sul do país, foi um conflito armado que opôs forças do
governo (federal e estadual) e sertanejos que viviam na região disputada, área entre os estados
de Santa Catarina e do Paraná. Estendeu-se por 4 anos, até 1916, e estima-se que tenha dei-
xado mais de 10 mil mortos. Guerra do Contestado – 100 anos (1912/16 - 2012). Disponível em:
<https://cpdoc.fgv.br/contestado/abertura>. Acesso em: 11 jan. 2019.
41
Sobre o tema, ver As tropas da moderação, de Alcir Lenharo (1993), e “Pobres rurais e
desflorestamento no interior fluminense na segunda metade do século XIX”, Ailton Fernandes da
Rosa Junior e Susana Cesco (2013).
42
Sobre o tema, ver Lideranças do Contestado: a formação e atuação das chefias caboclas (1912-
1916), de Paulo Pinheiro Machado (2004).

213
Desmatamento e migração no Alto Vale do Rio do Peixe

a hydrografia é exelente, sendo que as terras são cortadas por muitos rios e
arroios, afluentes do Rio do Peixe, de modo que cada lote é banhado por águas
correntes; mata virgem, não existe campo [...]. A qualidade geral do solo é
humoso; a cor do solo é escura (tosca); na qualidade das matas predomina a
de mato branco, encontrando-se pinheiros ralos e ainda alguma mancha de
pinheiro fechado e de grande porte, sendo as demais madeiras de lei, como:
angico, sedro [sic], louro, cabriúva, etc.43

Os espaços apresentados pelo colonizador nessa área eram os se-


guintes: “a) na venda avulsa de 180$ - 200$000 por hectares; b) em maior
quantidade menos 15 - 20%; c) nos casos de ‘a’ e ‘b’ de 30%; d) juros de
6% ao anno e prazo ate dois annos; e) 10% de desconto sendo a vista”.44
A colônia 15 de Novembro, demarcada e dividida em lotes para coloniza-
ção em 1918, quando pertencia ao município de Porto União, englobava
terras dos distritos de Santelmo e Taquara Verde, com área de 5.800
hectares. A área de São Bento e Rio Bonito era de 4.500 hectares. De
acordo com o que consta no processo de legitimação de posse adquirido
por Alberto Schmitt,
estão escrituradas cerca de 460 lotes; os lotes vendidos e não escriturados
são somente alguns; os lotes vendidos e não pagas são de numero 190; exis-
tem oito povoações; os lotes escriturados passa o numero de 400; não existem
lotes pagos e não escriturados; area vendida e não paga 190 lotes; pelo ulti-
mo recenseamento feito havia cerca de 60 intrusos nas minhas terra, porem,
hoje esse numero deva ser bastante acrescido chegando para o menos de 100,
continuando a invasão; (vae uma lista do nome dos intrusos hora conhecidos
em separado) A existencia desse elemento muito me tenham prejudicado na
minha colonização, apezar de serem convitados [sic] por diversas vezes, para
adquirir as terras por eles ocupadas por preço comodo, nem tampouco entram
num acordo para me vender os seus ranchos também por preço razoável, con-
tinuando fazendo estragos por toda a sorte, fazendo derrubadas em grandes
extensões inutilizando as terras como também as condições meteorológicas
pela devastação, soltando a criação por todos os terrenos, enfim, já se tor-
navam uma praga. Caso o governo não achará um meio, para terminar esse
assunto por um meio administrativo, dando terras devolutas a esse elemento,
serei obrigado a incresar [sic] em juizo, requerendo o despejo, pois, já não
desponho mais de terra livre onde colocar os colonos em vista que os intrusos
tomaram conta por todo o terreno, não admitindo entrada de colonos e, ainda
estabelecendo-se algum, este não fara colheta, pois os animais soltos, estra-
gam as plantações.45

43
Processo de terras. Legitimação de posse requerida por Alberto Schmidt no ano de 1935 ao
Governo de Santa Catarina.
44
Processo de terras. Legitimação de posse requerida por Alberto Schmidt no ano de 1935 ao
Governo de Santa Catarina.
45
Processos de terras. Legitimação de posse requerida por Alberto Schmitt no ano de 1935 ao
Governo de Santa Catarina.

214
Susana Cesco

Em 1934, foram emancipados dois novos municípios na região, os de


Concórdia e Caçador, com terras dos municípios de Porto União, Cruzei-
ro/Joaçaba e Campos Novos. O município de Caçador recebeu esse nome
devido à grande quantidade de caça que havia na região, ainda quando
fazia parte do distrito de Rio das Antas, município de Campos Novos. Em
25 de março de 1934, foi instalado o novo município com a posse do seu
primeiro prefeito, senhor Leônidas Coelho de Souza (FERREIRA, 1959,
p. 49).
De acordo com documento da prefeitura municipal de Caçador, de 11
de abril de 1935, o município já contava, um ano depois de sua emancipa-
ção, com uma população de 17.000 habitantes, distribuídos pelos distri-
tos de Rio das Antas (atual município de mesmo nome), Rio Preto (atual
localidade de Rio das Antas), Victória (atual Videira), São Luis (atual
Iomerê), Taquara Verde e a sede Caçador. Todos esses distritos possuíam
casas comerciais, serrarias, escolas estaduais ou municipais, igreja e, al-
guns, agência do correio e hotéis.46
Era também por meio da estrada de ferro que Caçador escoava seu
produto mais valioso e em maior quantidade: a madeira. A floresta om-
brófila mista que cobria a região era a matéria-prima das muitas serra-
rias do local. Dos grandes aos pequenos, estabelecimentos como as ser-
rarias Duat e Busatto instalaram seus barracões ao longo dos trilhos da
estrada de ferro e, em poucos anos, foram os responsáveis pela mudança
da paisagem local.

Imagens da região
O início do século XX, em especial as décadas de 1930 e 1940, vi-
vencia também uma nova ferramenta para estimular a imigração e a
colonização da região do Alto Vale do Rio do Peixe, qual seja, a fotogra-
fia. Se, de acordo com Vania Carneiro Carvalho, “a pintura se detém na
representação da natureza selvagem e da vida no campo, o fenômeno da
urbanização é amplamente registrado pela fotografia” (1998, p. 225 apud
ARRUDA, 2000, p. 82). A natureza urbanizada, adaptada ao desenho das

46
Texto datilografado da prefeitura de Caçador, de 11 de abril de 1935. Acervo da Biblioteca Muni-
cipal de Caçador.

215
Desmatamento e migração no Alto Vale do Rio do Peixe

cidades, é amplamente observada nas fotografias tiradas na primeira


metade do século XX e divulgada em jornais e propaganda de empresas
colonizadoras.
Essas imagens demonstram um novo interesse pela natureza; há
um redimensionamento de valores. A natureza passava a figurar como
símbolo de progresso, desde que dominada e domesticada, e “a fotografia
era usada como forma de dar visibilidade, tornar públicas as formas de
dominar a natureza e de organizar os espaços sociais e os tempos distin-
tos de vida” (MACIEL, 1998, p. 192 apud ARRUDA, 2000, p. 125). Esse
recurso foi empregado também pelas companhias colonizadoras na im-
pressão de programas e manuais de colonização destinados às colônias
de imigrantes europeus instalados no Rio Grande do Sul. A integração
entre discursos textual e visual reforçou a ideia de homem vencendo a
natureza.
Essas fotografias são, muitas vezes, vistas como resíduos do pas-
sado, porém, antes de tudo, são construções de uma ideia de beleza ou
prosperidade.
Como outras imagens, elas também pressupõem um jogo de inclusão e exclu-
são. É escolha e, como tal, não apenas constitui uma representação do real,
como também integra um sistema simbólico pautado por códigos oriundos da
cultura que os produz (BORGES, 2003, p. 83).

Aplicado às fotografias do Alto Vale do Rio do Peixe da primeira


metade do século XX analisadas neste estudo, significa que o primeiro
ponto a ser abordado não é a imagem fotografada, mas quem a fotografou
e o que a fotografia devia mostrar. “Sob quaisquer pontos de vista, angu-
lação, enquadramento, proximidade ou distância, a fotografia é sempre
um feixe de indicadores de posição ideológica, consciente ou inconsciente,
ocupada pelo fotógrafo em relação àquilo que é fotografado” (SANTAE-
LLA; NÖTH, 2001, p. 120).
[...] o testemunho de imagens parece ser mais confiável nos pequenos deta-
lhes. Ele é particularmente valioso como evidência da arrumação dos objetos e
de seus usos sociais, não tanto a lança, ou garfo, ou livro em si, mas a maneira
como empunhá-los. Em outras palavras, imagens nos permitem reinserir ve-
lhos artefatos no contexto social original (BURKE, 2004, p, 125).

Tendo como exemplo a fotografia apresentada a seguir, que repre-


senta a vila de Caçador em 1926, nota-se que o observador/fotógrafo está

216
Susana Cesco

posicionado em uma elevação desmatada e “limpa” para fazer a captura


da vila. De seu ponto de vista, a civilização ‒ representada pelas casas,
ruas e pela estrada de ferro ‒ está localizada à frente, e o selvagem ‒
representado pela floresta não desbravada ‒ está ao fundo. Essa visão
mostrando o progresso sobrepondo-se à natureza, que figura como pano
de fundo, prestes a ser alcançada, objetiva mostrar ao colono candidato
à compra de um lote na região que ali a natureza já estava domada, que
já existia uma infraestrutura adequada com estradas e via férrea para o
escoamento das futuras colheitas, além de igreja, escola e um florescente
comércio. A floresta que ainda não havia sido desbravada poderia ser
uma fonte de lucro, quando o lote era comprado com cobertura vegetal,
o que poderia ser vendido para uma das várias serrarias já instaladas
na região. Se o lote fosse comprado sem cobertura vegetal, também não
constituiria problema para o colono, pois a colonizadora que o vendia se
encarregaria de “limpar” a área mediante as cláusulas contratuais esta-
belecidas no ato de compra da propriedade.

Figura 1 – Vista da cidade de Caçador, 1926

Fonte: acervo da Biblioteca Pública Municipal de Caçador.

Não se pode argumentar quanto a outra forma possível de uso dos


recursos locais que tenha se efetivado, porém a paisagem seria entendi-
da de forma diversa, se o observador/fotógrafo estivesse do lado oposto
da imagem, em meio à mata, que assim apareceria em primeiro plano,
transformando a progressista vila de Caçador em um pequeno aglomera-
do de casas em meio a uma grande floresta.

217
Desmatamento e migração no Alto Vale do Rio do Peixe

Essas imagens adquirem força e poder de convencimento ao apre-


sentar um local, como a recente cidade de Caçador, com grandes possi-
bilidades de progresso, evidenciadas pelo cenário de uma densa floresta
ao fundo sendo “invadida” pela civilização; civilização que transforma
as árvores de um sertão bravio em casas, estabelecimentos comerciais,
igrejas e dinheiro em forma de pilhas de madeira ao longo dos trilhos do
trem, esperando para serem exportadas.
O conceito de progresso que encara como recurso o ambiente ou,
“em última análise, a noção biogeográfica de ambiente não designa mais
do que a natureza do substrato material, oferecido de qualquer modo, a
priori, a potenciais seres vivos” (BLANC-PAMARD; RAISON, 1986, p.
138). Essa representação de progresso foi largamente reproduzida pelos
jornais locais durante toda a primeira metade do século XX, como desta-
cado anteriormente. Esta análise “não pode dispensar a contextualização
da produção do documento, da mesma maneira que deve estar atenta
aos diferentes sentidos que lhe vão sendo atribuídos ao longo do tempo”
(BORGES, 2003, p. 82). Nessa direção, indagações ‒ como, quem pro-
duziu tal documento?; a quem é dirigida a mensagem?; o que o produtor
pretende com a mensagem que está passando? ‒ são fundamentais para
compreender os objetivos por trás das imagens.
Nesse sentido, “quando se trabalha com imagens, sejam elas tex-
tuais, sonoras ou visuais, a ênfase da narrativa histórica se desloca do
fato para as versões do fato. Em muitas situações, essas versões podem
produzir outros fatos” (BORGES, 2003, p. 81). Isso, aplicado às imagens
produzidas do Alto Vale do Rio do Peixe no período em questão, permite
perceber o destaque e o valor que adquirem as grandes toras de madeira
“limpas” e já serradas em tamanho ideal para o transporte. As imagens
também dão aparência de simplicidade ao complicado processo de sele-
ção, corte, remoção dos galhos e retirada da tora da área de origem, ou
seja, em meio à mata ou em uma área explorada recentemente e cheia
de tocos, raízes e outras formações vegetacionais. As carroças e estradas
retratadas parecem desmentir a realidade vigente no período, que era de
péssimas vias para transporte de madeira, o que provocava o constante
encalhe das carroças, devido ao peso do material transportado, ocasio-
nando atrasos e dificuldades aos trabalhadores envolvidos na ação.
Na mesma perspectiva de análise, em que a fotografia busca apre-
sentar um produto a um possível comprador, a imagem a seguir é uma
verdadeira vitrine da cidade de Caçador.

218
Susana Cesco

Figura 2 – Vista parcial de Caçador, 04 de dezembro de 1936

Fonte: acervo da Biblioteca Pública Municipal de Caçador.

Seguindo uma característica comum aos recém-criados postais do


final do século XIX, em que a burguesia elegeu como pitorescas vistas de
paisagens, cenas de vidas rural e urbana (BORGES, 2003, p. 59), a Fi-
gura 2 é uma tomada em que o observador/fotógrafo posiciona-se em um
ponto que permite o enquadramento do que “a cidade tem de melhor”,
segundo a ideia vigente de progresso. Essas imagens em que o objeto da
fotografia aparece em primeiro plano, visto de cima, são semelhantes ao
ângulo que um espectador tem de um palco. A imagem em questão dá a
dimensão grandiosa alcançada pela produção madeireira na década de
1930. A sensação é de que a região se desenvolve, exclusivamente, em
torno dos trilhos da EFSPRG e da extração de madeira. Certamente es-
ses foram os motes da colonização local, porém, atividades importantes,
como a agricultura ou a pecuária, foram registradas em menor número
pelos fotógrafos, evidenciando que o enfoque ou o atrativo para a migra-
ção não eram essas ocupações a princípio, apesar de serem atividades
para implantação nos lotes coloniais depois da exploração da floresta.
Os lotes coloniais vendidos aos imigrantes tinham dimensões em
torno de 25 hectares e eram estruturados de forma semelhante. A ima-
gem de progresso vendida pelas companhias colonizadoras incluía a des-

219
Desmatamento e migração no Alto Vale do Rio do Peixe

crição das casas coloniais construídas com a própria madeira encontrada


nos lotes adquiridos. Essa discussão remete à necessidade de interpretar
as imagens além das ideias positivista, que crê que essas imagens vei-
culam informações confiáveis sobre o mundo exterior, ou estruturalista,
que focaliza a atenção somente na imagem e nas relações entre suas
partes, desconsiderando a realidade que existe além dela (BURKE, 2004,
p. 232). Essa interpretação mais profunda da imagem permite um en-
tendimento mais claro das “formas pelas quais ela opera para persuadir
ou obrigar os espectadores a fazer determinadas interpretações, estimu-
lando-os a identificar-se com o herói ou com a vítima” (BURKE, 2004,
p. 227). Tais formas variadas de interpretação das imagens procuram
mitigar, com legendas ou destacando alguns pontos em detrimento de ou-
tros, fazendo uso de cores ou tamanhos diferenciados, o que enfraquece
a “noção de senso comum” (BURKE, 2004, p. 229) e chama atenção para
“as diferenças, algumas vezes agudas, entre intenções e efeitos, entre
a mensagem como é difundida [...] e a mensagem como é recebida por
diferentes grupos de espectadores, leitores ou ouvintes” (BURKE, 2004,
p. 229).
Isso dá a dimensão do quanto as imagens analisadas neste estudo
foram produzidas para cumprir uma função ou uma variedade delas e
tiveram, indiscutivelmente, um papel na “construção cultural” (BURKE,
2004, p. 234) da sociedade do Alto Vale do Rio do Peixe. O fato de dis-
cuti-las e de olhar para elas como “testemunhos do passado” (BURKE,
2004, p. 234) corrobora a ideia de que são “maneiras de ver e pensar o
passado” (BURKE, 2004, p. 234). Mais do que nunca o ponto de vista de
Peter Burke sobre as imagens cabe como enfoque adequado à análise
empregada:
As imagens não são nem um reflexo da realidade social nem um sistema de
signos sem relação com a realidade social, mas ocupam uma variedade de
posições entre esses extremos. Elas são testemunhas dos estereótipos, mas
também das mudanças graduais, pelas quais indivíduos ou grupos veem o
mundo social, incluindo o mundo de sua imaginação (BURKE, 2004, p. 232).

220
Susana Cesco

Considerações finais
Revelar o valor real da floresta e a relação mantida entre o homem
e o meio natural foi o que se procurou apresentar neste trabalho. Con-
siderada por seu valor muito além do econômico, a floresta do Alto Vale
do Rio do Peixe foi parte das causas e consequências da colonização, foi
personagem importante dos processos de ocupação e transformação da
região no início do século XX.
Considerando novos ângulos, observam-se melhor a floresta que co-
bria o “oeste selvagem” de Santa Catarina e as relações sociais existentes
em torno dela e dos usos que lhe foram atribuídos. Observando as pri-
meiras tentativas de povoamento, as propagandas para venda de terras
e instalação de imigrantes de origem europeia vindos do Rio Grande do
Sul, percebe-se que o corte indiscriminado da floresta, na primeira me-
tade do século XX, não era motivo de preocupação, pois o recurso natural
era visto somente sob seu aspecto econômico, como uma “reserva” de di-
nheiro a ser administrado.
Tendo por base, além dos conhecidos textos sobre a região, entre-
vistas e fotografias, foi possível ver a colonização sob aspectos variados:
como as fotografias foram manipuladas ou construídas para passar a
imagem de progresso e desenvolvimento, como os novos habitantes locais
relacionaram-se com a mata que cobria suas terras recém-adquiridas e
como as descreviam em contratos e processos de legitimação. Toda a pes-
quisa, que passou desde o trabalho em arquivos e museus até as entre-
vistas feitas, serviu para mostrar o quanto a construção da história do
oeste catarinense é interessante e complexa.
Mais do que encerrar o debate, a intenção deste estudo foi mostrar
que a história do Alto Vale do Rio do Peixe e “outras histórias” careceram,
durante muito tempo, de um personagem: a floresta, e de uma análise
das relações dos antigos e novos habitantes da região com essa floresta.

221
Desmatamento e migração no Alto Vale do Rio do Peixe

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WOORTMANN, Ellen F. Herdeiros, parentes e compadres. São Paulo, Brasília:
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222
Leandro Mayer | Maikel Gustavo Schneider

“Atrair para povoar”:


as propagandas do
projeto de colonização
Porto Novo nas décadas
de 1920 e 1930
Leandro Mayer
Maikel Gustavo Schneider

Introdução

E
ste estudo trata da propaganda empregada para a comercialização
de lotes de terras na colônia Porto Novo, projeto implantado pela
Volksverein em 1926, no Oeste de Santa Catarina. A colonização
foi planejada, organizada e promovida pela Volksverein für die Deuts-
chen Katholiken in Rio Grande do Sul (Sociedade União Popular para
Alemães Católicos no Rio Grande do Sul), destinada prioritariamente a
colonos de etnia alemã e católicos.
As campanhas publicitárias enfatizavam que as terras da colônia
Porto Novo eram muito férteis, sem “intrigas” ou “confusões”, ideais para
as famílias criarem os filhos dentro dos preceitos religiosos. Com esse
discurso, a colônia recebeu milhares de (i)migrantes nos primeiros anos

223
“Atrair para povoar”: as propagandas do projeto de colonização Porto Novo nas...

de fundação, oriundos em sua maioria das colônias velhas do Rio Grande


do Sul, formando uma organização coletiva teuto-católica.
Vista como colônia próspera, Porto Novo significou a idealização de
um sonho, o de formar uma comunidade que possibilitasse a reprodução
étnico-confessional. Em maio de 1929, passou a ser denominada Itapi-
ranga, por sugestão do presidente de estado de Santa Catarina na época
Adolpho Konder, em visita à colônia. Dessa maneira, neste estudo, os
nomes Porto Novo e Itapiranga poderão ser empregados em diferentes
momentos e situações históricas de contextualização, sem prejuízo ao
contexto em que se inserem.

Porto Novo: aspectos gerais da formação e da


colonização
A Colônia de Porto Novo foi parte do sonho da construção tópica de uma
sociedade e de uma igreja etnicamente organizada e religiosamente unida
na mesma fé, ritos e normas (OUDESTE, 2012, p. 95).

A colonização na região Oeste de Santa Catarina está ligada, inicial-


mente, com o fim da guerra do Contestado (1916) e com as possibilidades
econômicas da região. Essa área “tornou-se o principal pólo de coloni-
zação de uma região onde atuaram muitas empresas particulares – al-
gumas empenhadas em formar núcleos etnicamente homogêneos – que
demarcaram e venderam as terras para imigrantes e colonos” (SEYFER-
TH, 2004, p. 138-139). O deslocamento migratório interno, a escassez de
terras e os elevados preços praticados no Rio Grande do Sul esgotaram as
possibilidades de se estabelecer no Planalto Rio-Grandense uma colônia
da Volksverein. “Com isso, os colonos e os próprios empreendimentos de
colonização atravessaram o Rio Uruguai e passaram a colonizar o Oeste
catarinense” (NEUMANN, 2013, p. 171).
Dessa forma, em 28 de janeiro de 1926, em uma reunião da qual
participaram Jacoob Becker e o padre Johannes Rick SJ, como repre-
sentantes da Sociedade União Popular, e o pastor luterano Hermann
Faulhaber, na época diretor da empresa Chapecó-Peperi Limitada, foi
celebrado contrato de compra e venda da gleba de terras entre os rios das
Antas, Peperi-Guaçu e Uruguai, no estado de Santa Catarina, totalizan-

224
Leandro Mayer | Maikel Gustavo Schneider

do uma área inicial de 382.057.816 m2, que seria destinada à formação


de uma colonização homogênea (PIAZZA, 1982). Nascia, assim, o projeto
Porto Novo, e concretizava-se o sonho jesuítico: formar cristãos novos em
comunidades orantes e socialmente perfeitas (EIDT; SILVA, 2011).
A colonização foi planejada, organizada e promovida pela Volksve-
rein für die Deutschen Katholiken in Rio Grande do Sul, fundada em
1912 por jesuítas alemães de São Leopoldo, RS (WERLE, 2011, p. 169).
Entre os colonos, era conhecida simplesmente como Volksverein (Socie-
dade União Popular). É possível entender que o foco era formar uma
colonização homogênea em termos linguísticos e religiosos. A colonização
Porto Novo foi idealizada sob os seguintes preceitos:
A colonização de Porto Novo não é um empreendimento comercial. Não visa
a especulação financeira e segue unicamente o programa de colonização. A
Volksverein persegue objetivos colonizatórios, econômicos e culturais. A servi-
ço da religião e da boa identidade do povo, visa colonizar as terras com agri-
cultores católicos e de fala alemã (MIDDELDORF, 1932, p. 07 apud WERLE,
2011, p. 175).

Dessa forma, com o início da venda dos lotes, privilegiaram-se os


descendentes de alemães de religião católica, e dificultou-se o acesso à
terra para colonos que não fossem dessa confissão e que não falassem
esse idioma. Com essa triagem, objetivava-se a formação de uma comu-
nidade étnica e religiosamente homogênea.
O projeto Porto Novo demostrava um início surpreendente. Após a
aquisição da área inicial, a diretoria da Sociedade União Popular foi au-
torizada, pela reunião de delegados, a comprar mais 300 lotes, que foram
comercializados em pouco tempo.
E as compras dos lotes da empresa Chapecó-Peperi não cessaram.
Em novembro de 1926, a Sociedade União Popular adquiriu mais 693
lotes para serem vendidos aos alemães católicos. A partir dessas negocia-
ções, os diretores já tinham planos de gerenciar todas as terras compre-
endidas entre o Rio Macuco e o Rio Peperi-Guaçu, fato que se concretizou
em 03 de março de 1928, em Serro Azul, na reunião de delegados da So-
ciedade União Popular, quando concluiu-se por dar carta branca à comis-
são de colonização e à diretoria para adquirir tais lotes, ante a situação
financeira que se encontrava a empresa Chapecó-Peperi e a ameaça de
que a área poderia ser adquirida por italianos (NUNES, 2015).

225
“Atrair para povoar”: as propagandas do projeto de colonização Porto Novo nas...

Com a aquisição das terras e a demarcação dos lotes, a Sociedade


União Popular intensificou as propagandas para divulgação do empreen-
dimento, por meio de reuniões realizadas nas colônias rio-grandenses, de
artigos, de brochuras e de anúncios na imprensa.
Os artigos sobre Porto Novo, publicados no DV [Deutsches Volksblatt] e no
SPB [Skt. Paulusblatt], são de teor variado. Uns, relatam impressões de via-
gem. Outros, aventuras no Rio Uruguai ou excursões pelo interior da selva
nativa. Há, porém, um outro tipo de artigo, onde se apresenta estudos sobre a
potencialidade de uma colonização bem-sucedida no lugar. Nesta última espé-
cie incluímos estudos e análises (solo, clima, relevo, condições de colocação da
produção no mercado, estatísticas do número de habitantes, número e espécie
de animais domésticos, número de veículos, etc.) A partir de 1927, também já
apareceram no DV cartas enviadas pelos moradores de Porto Novo. As car-
tas relatam atividades de rotina dos pioneiros e acontecimento relacionados
à agricultura (chuvas, secas, pragas, etc.), à sociedade (chegada de novos pio-
neiros, visitas ilustres, mortes, etc.) e ao desenvolvimento geral (instalação de
serrarias, olarias, escolas, igrejas, etc.) (NUNES, 2015, p. 122-123).

Paralelo às propagandas, o esgotamento de terras no estado do Rio


Grande do Sul estava colocando em xeque o trabalho e a existência de
numerosas famílias que não encontravam mais lotes disponíveis para
compra.
Dessa forma, diante das diversas estratégias de propaganda da So-
ciedade União Popular tentando mostrar que a melhor alternativa seria
Porto Novo, a colônia dos alemães católicos, famílias inteiras atraves-
saram o Rio Uruguai, de maneira não muito diferente da de seus ante-
passados quando saíram da Europa atravessando o Oceano Atlântico, e
instalaram-se nas matas virgens da colônia Porto Novo.
Portanto, é imperioso destacar que o processo de imigração para o
estado de Santa Catarina, em especial, para a colônia de Porto Novo, é
fruto de dois fatores primordiais: colonização confessional e etnicamente
fechada e preço acessível para compra de terras.
No decorrer do ano de 1930, o progresso continuou a pairar sobre o
empreendimento da Sociedade União Popular. Estima-se que o número
de habitantes atingiu nesse ano o patamar de 1.200 pessoas, e 360 co-
lônias já estavam ocupadas das 800 que haviam sido demarcadas pelos
agrimensores (ROHDE, 2012, p. 148).
Nas palavras de Maria Rohde (2012, p. 148),

226
Leandro Mayer | Maikel Gustavo Schneider

[...] a vinda de novos colonizadores era constante e assegurada. Mesmo duran-


te os dias da revolução daquele ano [1930], chegava novas famílias de Santa
Cruz e de Colônia Selbach. Além das 52 famílias que imigraram nos primeiros
meses do ano, chegaram, também, várias famílias teuto-romenas da Bessará-
bia, destacando-se como agricultores muito progressistas. Profissões e ofícios
diversos já tinham seus representantes em nosso meio. Hotéis, olarias, serra-
rias e moinhos eram em número suficiente para atenderem à demanda.

Diante desse relato, é possível observar que “não eram imigrantes


vindos diretamente da Europa os primeiros colonos a se instalar nas ter-
ras de Porto Novo, mas os descendentes daqueles que durante o século
XIX haviam migrado ao Rio Grande do Sul” (WERLE, 2001, p. 136).
Conforme a comunidade crescia, o desejo de constituir uma comu-
nidade cristã se realizava. A colônia era um espaço fechado e organizado
pelos padres jesuítas, em meio à mata virgem, numa ausência quase
total do Estado e de suas instituições. Isso dava plenos poderes aos reli-
giosos para a organização social na colonização.
Porto Novo passou a significar, nessa época, a opção mais concre-
ta para compradores de terras, tanto para gerações mais jovens quan-
to para pais e filhos que formavam numerosas famílias, “assim como
também ganhava fama na pátria além-mar dos antepassados” (ROHDE,
2012, p. 166).

A intensificação de propagandas e a ocupação


de Porto Novo
Num mês venderam mais lotes em Porto Novo do que nos quatro primeiros
anos em Serro Azul (RAMBO, 2011, p. 286).
Colono católico, que é candidato a mudar-se para colônias novas, pode migrar
seguramente a Porto Novo, mesmo que antes ali ainda não tenha estado, e
fazê-lo sem mais com os seus trapos e farrapos (RABUSKE; RAMBO, 2004,
p. 178).

Uma vez adquirida a terra, a campanha publicitária sobre Porto


Novo foi desencadeada, “sendo que o Katolikentag – Congresso dos Ale-
mães Católicos do Rio Grande do Sul, realizado em Novo Hamburgo de
14 a 16 de março de 1926, foi o momento escolhido para o lançamento
publicitário do projeto” (JUNGBLUT, 2000, p. 75). A entidade Volksve-

227
“Atrair para povoar”: as propagandas do projeto de colonização Porto Novo nas...

rein inicia a veiculação de propagandas sobre o novo empreendimento


colonizador. Para isso, faz uso de seu principal meio de comunicação com
os associados: a revista Skt. Paulusblatt. Os anúncios do empreendimen-
to eram inicialmente convites para interessados conhecerem o projeto:
Viagem para conhecer as terras de Porto Novo e Porto Feliz. Depois da Páscoa
realizarei uma viagem, como guia autorizado de um grupo numeroso de colo-
nos católicos e evangélicos interessados em comprar terras nas áreas de Porto
Novo e Porto Feliz, respectivamente. Aqueles que ainda querem se integrar ao
grupo, deverão estar no Hotel Müller, em Santa Maria, o mais tardar sábado,
dia 10 de abril. A longa viagem será iniciada na manhã seguinte. Trazer o
poncho. C. F. Rohde – Estrela (apud ROHDE, 2012, p. 30).

No anúncio publicado, percebe-se que, menos de três meses depois


da consolidação da negociação das terras pela Volksverein, as primeiras
comitivas de compradores alemães visitavam Porto Novo, cujas terras
eram prometidas como muito férteis. É necessário frisar que a primeira
comitiva a chegar em Porto Novo partiu de Serro Azul em 05 de abril
de 1926.1 Conforme Jaeger (1998, p. 13), “a caravana era composta por
26 moradores de Serro Azul (hoje Cerro Largo), Santo Cristo e Selbach.
Acompanharam a expedição: o presidente da SUP, Sr. Jacob Becker, e o
Sr. José Aloísio Franzen, este escolhido para primeiro diretor da nova
colonização”. Ainda segundo o autor, em Porto Feliz (hoje Mondaí), so-
maram-se ao grupo, dois guias, conhecedores do caminho até Porto Novo,
totalizando 30 pessoas, cuja chegada a Porto Novo ocorreu num sábado à
tarde, dia 10 de abril de 1926. Sobre a fundação, escreve:
No dia seguinte, 2º domingo de Páscoa, 11 de abril de 1926, o Pe. Max celebrou
a primeira missa, às 8h, em terras de Porto Novo, com a assistência da comi-
tiva. Sabe-se que foi cantado em língua alemã, especialmente cantos pascais,
acompanhados, poeticamente, pelo murmúrio das águas do Rio Uruguai. Con-
sidera-se esse dia como o marco inicial de fundação de Porto Novo (JAEGER,
1998, p. 14).

Nas reminiscências de padre Max Von Lassberg, leem-se o depoi-


mento sobre a viagem de reconhecimento a Porto Novo, em abril de 1926,
assim como a impressão do local e a celebração da primeira missa, mar-
cando oficialmente a fundação do núcleo colonial:

1
Localizada no Noroeste do Rio Grande do Sul, a colônia Serro Azul foi fundada em 04 de outu-
bro de 1902, portanto, considerada colônia nova. Contudo, para os migrantes oriundos daquela
colônia, as terras vermelhas e as formigas motivaram a migração para Porto Novo.

228
Leandro Mayer | Maikel Gustavo Schneider

A colônia de São Canísio


A nossa Sociedade União Popular decidira adquirir e povoar uma gleba maior
nas margens do Uruguai. Não participei ou participei apenas de longe do re-
conhecimento inicial da área e dos trabalhos preparatórios. A providência de
Deus escolheu-me para a concretização do assentamento. Na segunda-feira de
Páscoa de 1926, de manhã cedo, parti de automóvel de Serro Azul, em compa-
nhia do sr. Franzen, primeiro diretor nomeado da colônia, e de seu filho. Além
de nós seguiu em três caminhões lotados uma numerosa caravana vinda de
Serro Azul, Santo Cristo e Selbach, para examinar as terras. Depois de errar
algumas vezes o caminho, alcançamos Porto Feliz na quinta-feira. Na sexta-
-feira embarcamos numa gasolina para descer o rio até Porto Novo. Alguns
preferiram o caminho por terra. O nível do rio estava muito baixo, o que nos
causou grandes dificuldades na passagem pelas corredeiras. Em não poucas
delas fomos obrigados a desembarcar para dentro da água e puxar e empurrar
com os braços. Desta forma chegamos em Porto Novo apenas no sábado. Não
havia nem casa, nem cabana, nem barraca, mas um bonito pomar de laranjei-
ras. Nele acampamos, mais do que trinta pessoas, e acendemos vários fogos.
Perto da noite começamos a armar, entre duas árvores, o altar para a missa
da outra manhã. Como pano de fundo estendemos entre as árvores uma capa
de chuva limpa e fixamos nela um crucifixo. A mesa foi armada com varas
e folhas e depois ornamentada. As velas foram amarradas em duas estacas
fincadas no chão. Depois de cuidar das coisas de Deus, cuidamos também de
nós. Para comer tínhamos o suficiente e cada qual arrumou a sua cama onde
e como lhe agradou. Dormimos bem. O misterioso rumor do grande rio mistu-
rou-se com os nossos sonhos. A santa missa começou pelas 8 horas da manhã.
Os homens rodeavam o altar numa atitude solene e piedosa. Na magnífica
catedral de Deus, pelo Santo Sacrifício, imploravam a bênção para a nova colô-
nia. Na missa alguns comungaram. Em comum, cantou-se, rezou-se e ouviu-se
o sermão. Até o prato das ofertas circulou. Também desta forma todos deve-
riam demonstrar a sua participação no verdadeiro sacrifício e fora combinado
que aquela santa missa seria para os fundadores da colônia presentes e o que
sobrasse deveria destinar-se a missas pelo bom êxito e o progresso da colônia.
O saldo foi considerável. Esta foi a primeira missa e a fundação da colônia e
escolhemos São Pedro Canísio como seu patrono. Acontecido no domingo de
páscoa, 11 de abril de 1926 (LASSBERG, 2002, p. 124-125, grifos nossos).

229
“Atrair para povoar”: as propagandas do projeto de colonização Porto Novo nas...

Figura 1 – Monumento dos Imigrantes, Praça do Imigrante, Itapiranga

Fonte: autores.

No monumento erguido em homenagem aos pioneiros na Praça do


Imigrante, na cidade de Itapiranga, encontram-se esculpidos os seguin-
tes dizeres:
À Lembrança dos Pósteros da primeira santa missa celebrada em 11.4.1926
neste local pelo Rev. Sr. Padre Max Von Lassberg S.J. com assistência dos
seguintes fiéis: Jakob Becker; José Aloísio Franzen; Pedro Reinhard Franzen;
Carlos Zwirtes; Pedro Tenroller; Oskar Angst; Bruno Nitsche; João Sausen;
Vendelino Heinzmann; Carlos Kliemann Fº; José P. Finkler; Nicolau Both Fº;
João Krein; Mathias Hansen; Franz Heck; Carlos F. Angst; Felippe Scherf;
Frederico H. Knapp; Antonio F. Kieling; João C. Geneway; Otto Zimmer; Ma-
noel Klauck; Franz Junges; Leopoldo Werle; Nicolau Knob; Pedro Agnes Fº;
João Ten Caten; Mathias Agnes; Gustavo Stangler; Hubert Koelln; Pe. Max
Von Lassberg.

Nos meses subsequentes, os anúncios na revista Skt. Paulusblatt e


no jornal Deutsches Volksblatt (Folha Popular Alemã) se intensificaram,
e Rohde destaca uma dessas propagandas:

230
Leandro Mayer | Maikel Gustavo Schneider

Colônia alemã Porto Novo da Sociedade União Popular.


A “Volksverein” é proprietária legítima da Colônia Porto Novo. Deste modo, a
Sociedade União Popular pode expedir diretamente a escritura pública para
os compradores que pagaram e arrotearem a terra, nela construíram e mo-
ram. O valor atual do lote de 25 hectares é de Rs2:500$000. A partir de 1º de
janeiro de 1928, o valor do lote de 25 hectares será elevado para Rs3:300$000.
Deste valor devem ser pagos, no mínimo, Rs1.000$000 de entrada. O restante
pode ser parcelado em acordo a ser firmado com a Administração da Socieda-
de, representada em Porto Alegre pelo senhor Albano Volkmer, ou em Porto
Novo, com o senhor José Aloísio Franzen, na direção da Colônia.
Mediante pagamento à vista, atualmente há um desconto de 5%, sendo que
a partir de 1º de janeiro de 1928, após o reajuste do preço, o desconto será de
10%. Associados da “Volksverein”, além disso, tem um desconto de Rs25$000
na compra do primeiro lote – e de Rs5$000 em cada novo lote adquirido.
Plano de viagem: quem quer visitar Porto Novo, deve viajar até a cidade de
Neu Würtenberg, de onde constantemente partem caminhões para Porto Feliz
e, consequentemente, Porto Novo. Em Neu Würtenberg, a Empresa Xapecó,
Pepery Ltda. fornece todo o tipo de esclarecimento e informação necessários.
Viajantes que vierem por Santa Maria, encontrarão hospedagem e informa-
ções sobre como continuar a viagem no Hotel Müller. Janeiro de 1927 (apud
ROHDE, 2012, p. 32-33, grifos nossos).

Esse fragmento possibilita analisar o histórico dos preços praticados


por lotes. Em 1926, o lote unitário era comercializado a Rs1:100$000. Em
1927, era vendido a Rs2:500$000 e, em janeiro de 1928, o valor foi eleva-
do para Rs3:300$000, praticamente o dobro a cada ano.
Em 1928, padre Rick, conhecido como “pai dos colonos” entre os teu-
tos, responsável direto pela implantação do projeto Porto Novo, publicou
um artigo na edição 26 do jornal Deutsches Volksblatt, sob o título “Fünf
Monate in Porto Novo” (Cinco meses em Porto Novo), em que aponta al-
gumas razões para os colonos adquirirem lotes em Porto Novo:
Para uma colônia nova, devem considerar-se os seguintes aspectos: qualidade
do solo, condições de água, clima, elemento humano colonizador, possível colo-
cação dos produtos, e atendimento religioso e escolar.
Tem o vale do Uruguai terras cultiváveis de primeira classe sendo elas em
geral de húmus profundo e de acidentes pouco montanhosos.
Todo o vale do Uruguai tem, segundo a estatística meteorológica, precipitações
de chuva tão freqüentes ou maiores do que as de todo o Rio Grande do Sul; daí
os numerosos arroios e a facilidade de encontrar água de poço, isto é, potável.
[...]
O material humano dos colonos é o de uma só casta ou espécie: compõe-se ele
de católicos alemães do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Prova noto-
riamente a experiência que apenas tais colônias dão certo, e isso para longos

231
“Atrair para povoar”: as propagandas do projeto de colonização Porto Novo nas...

tempos. Se uma colônia qualquer se acha mesclada de etnias e de crenças


religiosas, então torna a migrar mais tarde uma parte dos colonos, e assim a
unidade inicialmente negligenciada se vem a recompor à custa dos emigrados.
Quem conhece a “Serra” gaúcha, sabe como isso sucede. Somente há continui-
dade numa colônia uniforme.
[...]
Porto Novo se apresenta rico em questão de moços jovens e enérgicos, mas é
pobre quanto a moças jovens e aptas para o casamento. Por isso de momento
deve recomendar-se seriamente Porto Novo a famílias cheias de moças (casa-
douras).
[...]
Lá na novel colônia somente existe terra nova, abundante e barata, enquanto
aqui (no RS) apenas há pouca e cara (apud RABUSKE; RAMBO, 2004, p. 173-178,
grifos nossos).

Percebe-se uma propaganda direta, dirigida aos colonos em prol da


recém-criada colônia Porto Novo. Como um todo, as propagandas se in-
tensificaram nas colônias velhas do Rio Grande do Sul, onde as terras es-
tavam escassas e subdivididas. Em seu estudo, Roche (1969) revela que
os primeiros lotes coloniais destinados aos colonos imigrantes mediam
cerca de 77 hectares. Posteriormente, no município de Estrela, por exem-
plo, “as primeiras propriedades, vendidas a partir de 1853, mediam, em
média, 48 hectares. Em 1920, a divisão estava já muito avançada, por-
quanto a superfície média era de apenas 24,2 hectares. Em 1950, des-
ceu para 15,7 hectares, nem mesmo o terço da primitiva área” (ROCHE,
1969, p. 325-326). Nessas condições,
[...] o rápido crescimento demográfico se constituiu num outro problema. O
fato de cada mil famílias em média gerarem duzentos excedentes ao ano, dei-
xava evidente uma questão. A maioria desses 200 excedentes obrigava-se a
procurar terra para cultivar fora da propriedade paterna. No início do século,
essa questão transformara-se num dos grandes desafios a serem enfrentados.
O avanço normal e sem maior planejamento sobre áreas disponíveis em ter-
ras públicas ou particulares já não atendia à demanda. Era preciso encontrar
uma solução de longo prazo (RAMBO, 2011, p. 175).

Complementa-se que:
É notória a elevada taxa de natalidade entre os imigrantes da época. Ao mes-
mo tempo a alimentação relativamente farta e equilibrada, somada aos há-
bitos e condições de higiene de bom nível, fizeram com que a mortalidade
infantil se situasse num limite aceitável. O resultado da soma desses fatores
levou a um permanente estado de saturação populacional nas comunidades
coloniais (RAMBO, 2011, p. 255).

232
Leandro Mayer | Maikel Gustavo Schneider

Com o problemático crescimento demográfico, a alternativa das fa-


mílias era a subdivisão das propriedades, embora subdividi-las uma ou
mais vezes significasse “condenar à miséria as famílias que delas de-
pendiam” (RAMBO, 2011, p. 175). Esses fatores impulsionaram os des-
cendentes de imigrantes a buscar novas regiões de colonização, fazendo
com que muitos colonos, a maioria jovens, optassem pela nova colônia
em formação, que tinha a promessa de ser uma terra muito promissora
para o desenvolvimento da agricultura. As propagandas eram o principal
chamariz dos colonos, e muitos eram convencidos pelos anúncios. A ima-
gem a seguir é uma publicidade das terras de Porto Novo que circulou
na revista Skt. Paulusblatt, em janeiro de 1929, expondo dez razões para
aquisição de terras na colônia.
Figura 2 – Propaganda de terras de Porto Novo, 1929

Fonte: Skt. Paulusblatt, janeiro de 1929, p. 13.2

2
Disponível em: <historialocalportonovo.blogspot.com>. Acesso em: 14 nov. 2015.

233
“Atrair para povoar”: as propagandas do projeto de colonização Porto Novo nas...

Entre as razões apresentadas para adquirir terras em Porto Novo,


o anúncio revela:
1. Porque a terra é muito boa, e todas as frutas (mesmo o café)
crescem e se desenvolvem bem;
2. Porque não tem confusões, e nunca poderão acontecer assim
como acontecem nos demais lugares de Santa Catarina;
3. Porque por traz existe uma sociedade forte “Vollksverein” que se
preocupa com o futuro;
4. Porque não tem especulador de terra no meio;
5. Porque tudo está organizado: Igreja, Escola, 2 clérigos (padres)
e porque já tem bastante gente morando;
6. Porque a colônia encosta no Rio Grande do Sul;
7. Porque tem melhor despacho comercial sobre a água que leva os
produtos para a Campanha e Estados do Laplata, e o comércio
já está consolidado, e os preços são melhores do que em Porto
Alegre;
8. Porque o trilho do trem uma vez construído, facilitará e encur-
tará o caminho para Porto Alegre e São Paulo;
9. Porque não tem formigas [...];
10. Porque quero criar bem meus filhos dando-lhes uma boa educa-
ção corporal e espiritual (tradução de João Inácio Wenzel, grifos
nossos).
O anúncio oferta um lote de 25 hectares ao preço médio de Rs.
3:000$000. Quanto às razões apresentadas para encorajar os compra-
dores, chamam atenção a fertilidade do solo e a ausência de formigas,
que proporcionariam colheitas férteis, comercializadas a bons preços. A
vida comunitária é apresentada como harmoniosa, possibilitando uma
boa educação aos filhos, um povoado sem intrigas entre os moradores
e assistido religiosamente por dois padres. Encostada no estado do Rio
Grande do Sul, a colônia Porto Novo é apresentada como já habitada por
muitos moradores estabelecidos e conta com a organização da Volksve-
rein, “que se preocupa com o futuro”. Para muitos, Porto Novo represen-
tava, além de uma nova frente de colonização, uma alternativa para um
futuro melhor. Ademais da promessa de encontrar terras férteis para a
agricultura, o preço dos lotes era um atrativo à parte, se comparado aos
valores praticados no Rio Grande do Sul no mesmo período:

234
Leandro Mayer | Maikel Gustavo Schneider

As terras em Tupandi eram bastante caras e o dinheiro era escasso. Além


disso, as terras estavam bastante desgastadas e eram pouco férteis. Já a pro-
paganda em relação às terras de Porto Novo era muito atraente. E o preço das
terras era bem menor. Foi por isso que Inácio fez uma visita de reconhecimen-
to a Porto Novo (JORNAL EXPRESSÃO, 2010a, p. 13).

O depoimento do colono expressa, entre outras características, o


desgaste e o elevado preço das terras nas colônias velhas, além de a pro-
paganda de Porto Novo oferecer lotes a preços mais atrativos. O relato a
seguir evidencia o problema da escassez de terras no Rio Grande do Sul:
Wilibaldo nasceu no município de Montenegro, numa região que mais tarde
se tornou distrito e atualmente é o município de Harmonia, RS [...] em 25 de
abril de 1915 [...]. Em Montenegro sua família se dedicava à criação de gado,
ovelhas e cavalos. Quando ele e seus irmãos alcançaram a idade de formar
suas próprias famílias, as terras nas colônias velhas estavam escassas e uma
alternativa encontrada pelos pais era comprar lotes nas colônias novas. Foi
assim que, após se casar com Maria Irma Burg em 02 de junho de 1938, seu
sogro Jacob Burg comprou 33 hectares de terra em Linha Macuco onde o jo-
vem casal veio se instalar em 1939 (JORNAL EXPRESSÃO, 2012, p. 22, grifos
nossos).

Nodari (2009, p. 42) aponta ainda que, além desses fatores, havia o
emprego da técnica do assédio e da persuasão por parte de agentes ven-
dedores a determinados membros da família, influenciando o processo
migratório:
[...] as famílias numerosas eram alvo das colonizadoras e podem ser aponta-
das, até certo ponto, como uma das causas da migração das colônias velhas do
Rio Grande do Sul para as novas terras em Santa Catarina. No Oeste, ainda
era possível a compra de glebas de terras contíguas, o que permitia que as
famílias permanecessem unidas, o que já não estava ocorrendo mais no Rio
Grande do Sul, onde as famílias tinham que se separar por causa da falta de
áreas perto dos pais.

A pioneira Maria W. Rohde, esposa de Carlos F. Rohde, um dos admi-


nistradores da colônia, relata que, em julho de 1927, Porto Novo tornou-
-se paróquia (São Pedro Canísio). Desse feito resultaram outros anúncios
publicados no Skt. Paulusblatt em forma de propaganda. A intenção era
encorajar compradores ainda indecisos em relação à promessa de suces-
so do empreendimento de colonização da Volksverein: “Porto Novo já é
elevado a Paróquia, por isso conta com a presença permanente de um
sacerdote, uma felicidade inestimável para os católicos” (apud ROHDE,
2012, p. 33). É evidente nessa passagem o quão explorado é o sentimento

235
“Atrair para povoar”: as propagandas do projeto de colonização Porto Novo nas...

religioso entre os colonizadores da região. Afirmar que a presença diária


de um sacerdote representa felicidade inestimável é a comprovação do
quanto o projeto foi alicerçado à religiosidade. Os primeiros padres a se
estabelecerem em Porto Novo eram da Congregação da Sagrada Família.
Os jesuítas, por sua vez, assumiram a paróquia apenas em 1931, porém,
é importante destacar a influência deles na colônia desde seu início, visto
que ela era um espaço fechado e organizado pelos jesuítas, por meio da
Volksverein ‒ trabalhos coordenados por eles ‒, em meio à mata virgem,
numa ausência quase total do Estado. Isso dava plenos poderes aos reli-
giosos em quase todos os aspectos, especialmente na organização social
da colonização. O que deve estar claro é que a Volksverein era quem
coordenava, a partir da caixa rural, o projeto de colonização Porto Novo.
Em tese, a luta era para o sucesso do empreendimento, que certamente,
antes de tudo, era um negócio que visava a lucros. Sobre a criação da Pa-
róquia: “em dezembro de 1926 o bispo de Florianópolis criou a paróquia
de Porto Novo, Itapiranga, confiada aos Padres da Sagrada Família. A
paróquia não teve suas divisas demarcadas, por falta de mapas do Oes-
te” (HEINEN, 1997, p. 41). A passagem da paróquia São Pedro Canísio
dos padres da Sagrada Família aos jesuítas está assim relatada no Livro
Tombo da Paróquia:
O anno de 1931 tem sido para esta parochia um ano de grandes mudanças,
pois em abril deste anno passou essa parochia das mãos dos PP. da Sagrada
Família para a dos Jesuítas. O primeiro vigário Jesuíta foi o R. P. Theodoro
Treis que aos 11 de abril tomou posse da parochia e começou a trabalhar nella.3

Intensas propagandas sobre a colônia Porto Novo foram feitas nos


anos subsequentes – década de 1930 – por meio de impressos especiais,
como é o caso do manual intitulado Porto Novo: Urwaldsiedlung deuts-
cher katoliken in Südbrasilien (Porto Novo: colônia de alemães católicos
no Sul do Brasil), publicado em 1933 pela Volksverein. Esses manuais
eram, na realidade, guias de viagem e estavam entre os meios de divul-
gação das terras.

3
Livro Tombo, 1931, p. 6, Arquivo histórico da paróquia São Pedro Canísio, Itapiranga, SC.

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Leandro Mayer | Maikel Gustavo Schneider

Figura 3 – Capa do livro Porto Novo: Urwaldsiedlung deutscher katoliken in Südbrasilien, 19334

Fonte: Memorial Jesuíta Unisinos.

O manual contém dezenas de páginas descrevendo a colônia, a es-


trutura e as terras existentes, além de recomendações sobre “como che-
gar” e “o que levar”. Foi um livro de propagandas que buscava convencer
as pessoas a comprar lotes nessa nova colônia, informando sobre o clima,
o relevo e o solo que o comprador encontraria em Porto Novo, além de
enfatizar quanto à necessidade de o comprador ser praticante da religião
católica e falar a língua alemã. O mapa apresentado na Figura 4, com a
divisão da colônia em linhas, integra a publicação:

4
A imagem da capa procura evidenciar duas finalidades principais. A primeira é a questão geográ-
fica. O mapa tem por objetivo situar a colônia Porto Novo, destacando as duas pátrias separadas
pelo oceano. A segunda é mostrar o que era a colônia Porto Novo: uma terra que ainda preci-
sava ser preparada para a agricultura, a começar pela derrubada da mata. Derrubar a floresta e
depois cultivar eram sinônimos de terra fértil. Dessa forma, a imagem da capa é importante em
ambos os aspectos citados, influenciando diretamente na comercialização dos lotes.

237
“Atrair para povoar”: as propagandas do projeto de colonização Porto Novo nas...

Figura 4 – Mapa da colonização de Porto Novo, 19335

Fonte: Memorial Jesuíta Unisinos.

Segundo Rambo (2011, p. 16), nas áreas de colonização, o termo li-


nhas era empregado
[...] para designar a unidade geográfico comunal. Essa designação remonta
ao fato de as propriedades, as moradias e as benfeitorias complementares ha-
verem-se arranjado ao longo das estradas que tomaram o lugar das trilhas
precárias da primeira penetração na mata [...]. O significado sociocultural de
uma “linha” coincide com o da “picada”. Em algumas áreas de colonização, em-
pregava-se o termo “lajeado” com o mesmo significado da “linha” e da “picada”.

Algumas das informações presentes no manual são bastante curio-


sas: “Giftige Schlange kommen in Porto Novo nicht vor” (em Porto Novo
não há cobras venenosas); “Was soll der Einwanderer aus Übersee mi-

5
Uma análise dos nomes dados às comunidades em formação da colônia Porto Novo revela que,
apesar da influência direta dos jesuítas na colonização, poucos são os associados à igreja ou,
até mesmo, à ordem dos jesuítas. Entre os nomes que remetem ao sentido religioso, estão Linha
Glória, Linha Santa Isabel, Linha Santa Thereza, Linha Santa Fé, Linha São Miguel, Linha São
Pedro, Linha São Paulo e Linha Capella. Nomes diversos são atribuídos às linhas, como Linha
Ipê, Linha Rickia, Linha Macaco Branco, Linha Hervalzinho, Linha Cotovelo, entre outros, o que,
de certa forma, mostra que os jesuítas perderam a luta simbólica relacionada aos nomes das
linhas, se é que tinham essa intenção.

238
Leandro Mayer | Maikel Gustavo Schneider

tbringen” (o que o imigrante deveria trazer do além-mar) e “Wer soll aus


Übersee zuwandern” (o perfil do migrante) (RAMBO, 2011, p. 16). Além
dessas recomendações, o livro contém dezenas de ilustrações de Porto
Novo, principalmente das lavouras produtivas, das casas construídas e
em construção, das estradas já abertas, das pontes construídas, da extra-
ção de madeiras para comercialização, entre outras, no intuito de passar
uma imagem atrativa e convincente sobre como o investimento em terras
em Porto Novo seria um negócio promissor. É importante frisar que esse
material impresso, além de circular nas colônias velhas do Rio Grande do
Sul, também circulou em diversas regiões da Alemanha.
Na Europa, o período entre guerras foi um dos mais difíceis e com-
plicados vividos na Alemanha. Muitas pessoas residentes nas cidades,
conhecedoras de um ofício, estavam desempregadas. Por intermédio da
Volksverein e da intensificação de propagandas sobre Porto Novo, a par-
tir de 1931, foi promovida a vinda de inúmeros Reichdeutsche para a
colônia. Muitos se instalaram na linha Presidente Becker,6 que, geografi-
camente, se localizava próxima à fronteira com a Argentina.
Ainda sobre a circulação desses materiais de propaganda, é impor-
tante perceber que esses livros, revistas, jornais e outros impressos eram
editados e impressos em língua alemã, o que fazia com que a informação
circulasse principalmente entre os colonos alemães, buscando, assim, a
vinda restrita desses para Porto Novo. Sobre o fluxo geral das informa-
ções sobre a região, elas
[...] chegavam até as pessoas através de agentes das companhias colonizado-
ras, de cartas de familiares e de amigos que já haviam migrado, de notícias e
propagandas publicadas nos jornais, de anúncios nos rádios, livros, manuais,
panfletos, almanaques e de pregações de padres e pastores (NODARI, 2009,
p. 33).

As propagandas sobre Porto Novo nas colônias velhas foram essen-


ciais para a migração de colonos, o que pode ser comprovado nos relatos
de pioneiros apresentados a seguir:

6
Isso justifica a formação e a atual conjuntura da Linha Presidente Becker, nome dado à co-
munidade em homenagem ao primeiro presidente da Volksverein, Jacob Becker. As famílias
residentes na comunidade atualmente, em sua grande maioria, são descendentes de imigrantes
vindos da Alemanha. Foi nessa comunidade que, em 1978, surgiu a Oktoberfest, festa que dá ao
município de Itapiranga o título de Berço Nacional da Oktoberfest.

239
“Atrair para povoar”: as propagandas do projeto de colonização Porto Novo nas...

Foi então que no final da década de 1920, após ouvirem falar bastante sobre
o Projeto de Colonização Porto Novo, decidiram se migrar para essa região,
trazendo na bagagem alguns poucos pertences e as crianças nascidas em Ro-
lante. A viagem foi realizada de caminhão até o município de Mondaí, donde
os imigrantes seguiram de lancha sobre o Rio Uruguai até chegarem à casa do
Imigrante, que se localizava no local onde hoje funciona o Açougue Berwan-
ger, junto ao trevo em Itapiranga (JORNAL EXPRESSÃO, 2009, p. 10, grifos
nossos).
De Santa Cruz do Sul a Porto Novo – [...] Pedro nasceu em Santa Cruz do Sul
[...]. Como tantas outras famílias da época, também a família Wink foi atraída
para Porto Novo em função da propaganda que existia em relação a quali-
dade da terra disponível em nossa região. Em Santa Cruz do Sul as terras
já estavam desgastadas e havia poucos recursos para fertilização (JORNAL
EXPRESSÃO, 2010b, p. 17, grifos nossos).
Elvira Otília Luft por sua vez, nasceu em Poço das Antas, Boa Vista, no Rio
Grande do Sul [...]. Sua família se mudou para Itapiranga em 1948 quando
Elvira já tinha 19 anos. Em Poço das Antas a família se dedicava à agricultura
de subsistência e foi atraída para Itapiranga pela propaganda que existia em
relação a grande fertilidade da terra (JORNAL EXPRESSÃO, 2010b, p. 17,
grifos nossos).
Apesar da vida tranquila perto dos familiares, Bruno e Rosa sentiam de que
o solo da propriedade em que moravam já apresentava graves problemas de
fertilidade, devido às intensas colheitas feitas já há muitos anos pelos colo-
nizadores das velhas colônias do Rio Grande do Sul. Era preciso buscar um
solo fértil para continuar a construir a família. Nesse sentido constantemente
ouvia-se nas rodas de conversas e nas reuniões comunitárias a propaganda
de uma nova terra, uma nova colônia que estava de portas abertas para rece-
ber agricultores interessados em cultivar um solo fértil e construir os valores
familiares e comunitários nos velhos e bons costumes cristãos (JORNAL EX-
PRESSÃO, 2011, p. 37, grifos nossos).

Nos depoimentos descritos, percebe-se que o emprego da propagan-


da ressaltando a terra fértil e os bons costumes cristãos de Porto Novo
foi um fator que impulsionou e encorajou os colonos a migrarem para a
colônia. A escassez de terra, os elevados preços e a baixa fertilidade do
solo nas colônias velhas passaram a ser decisivos para a migração.

Considerações finais
Em linhas gerais, a colonização de Porto Novo teve características
de relativas homogeneidades étnica e religiosa. Executada pela Volksve-
rein e desenvolvendo-se em meio a uma região de matas, cujos limites
geográficos são o estado do Rio Grande do Sul e a República Argentina,

240
Leandro Mayer | Maikel Gustavo Schneider

a colônia atraiu milhares de colonos a partir de 1926, oriundos principal-


mente das colônias velhas do Rio Grande do Sul, graças às propagandas
estampadas com frequência em periódicos. Pelas características abor-
dadas ao longo deste estudo, pode-se seguramente concluir que Porto
Novo se diferenciava dos demais modelos de colonização da época, jus-
tamente por ter direcionado a venda de seus lotes a indivíduos que se
enquadravam no perfil desejado: ser católico e alemão ou descendente.
Todo processo foi articulado pelos padres jesuítas, que estavam à frente
da Volksverein, ou seja, eram os mentores da organização coletiva teu-
to-católica, exercendo o controle social da colônia diante da ausência do
Estado durante os primeiros anos de existência do povoado.
Prometida como uma colonização com “terras cultiváveis de primei-
ra classe”, Porto Novo significou para muitos uma alternativa de futuro
melhor numa nova fronteira de colonização.

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242
João Carlos Tedesco | Rosane Marcia Neumann

Políticas indigenistas
e colonização:
fragmentos históricos
para compreensão dos
atuais conflitos entre
indígenas e agricultores
no Sul do Brasil1
João Carlos Tedesco
Rosane Marcia Neumann
Introdução

O
s objetivos deste estudo são lançar um olhar panorâmico sobre
e auxiliar na compreensão de alguns elementos históricos que,
entendemos, estão presentes nos atuais conflitos de luta pela
terra entre indígenas e agricultores, sejam estes pequenos ou grandes
produtores, no centro-norte do Rio Grande do Sul. É um conflito que, em

1
O estudo é fruto do projeto de pesquisa Bases Históricas dos Conflitos Agrários Contemporâne-
os no Norte do Rio Grande do Sul e Oeste de Santa Catarina: indígenas, quilombolas e peque-
nos agricultores, com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior,
Edital nº 12/2015 – Memórias Brasileiras: conflitos sociais.

243
Políticas indigenistas e colonização: fragmentos históricos para compreensão dos...

alguns casos, já se estende por quase três dezenas de anos sem nenhuma
solução definitiva até o momento.
Partimos dos pressupostos de que ambos os grupos envolvidos são
portadores de direitos e de que, uns mais, outros menos, são vítimas
de um processo histórico marcado por mudanças políticas e territoriais
implementadas entre meados do século XIX e meados do século XX, em
nível de deliberações das esferas públicas nacional e estadual.
Entendemos que esses sujeitos sociais (indígenas e pequenos agri-
cultores, em particular) compõem um quadro de coletividades subalter-
nizadas na história brasileira, vítimas de processos históricos mal consti-
tuídos no passado e mal resolvidos no presente; são sujeitos sociais alija-
dos ou inclusos marginalmente nas dinâmicas econômicas, nas políticas
de desenvolvimento e de permanência como trabalhadores e moradores
na terra (produtores rurais ou não), extrativistas, sujeitos de amplas di-
mensões culturais, antropológicas e sociais.
As atuais demandas indígenas pela retomada da terra, seja pela
ampliação da área já existente, seja pela reivindicação de nova área,
atingem mais de duas dezenas de grupos sociais. A área reivindicada
pelos grupos indígenas no centro-norte do estado abarca mais de 100
mil hectares e atinge mais de 3 mil agricultores, na sua grande maioria,
pequenas unidades familiares com média de 15 a 25 hectares de terras.
Isso demonstra ser um cenário de intensos conflitos agrários e de tensões
sociais (TEDESCO, 2017).
A Constituição federal de 1988, em seu Capítulo VIII, Artigo 231, dá
base jurídica às demandas de indígenas, uma vez que enfatiza horizon-
tes e dimensões ligados a tradição, preservação de culturas e ocupação
da terra. No referido artigo, menciona-se que
[...] são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas
em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as im-
prescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-
-estar e às necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos,
costumes e tradições (BRASIL, 2016, p. 133).

Nesse horizonte, estão presentes decisões constitucionais com a


intenção de promover reformas a título de compensações e/ou medidas
reparatórias de cunho histórico-cultural. Os beneficiados seriam as co-
munidades tradicionais que sofreram esbulho (coerção e expulsão de ter-

244
João Carlos Tedesco | Rosane Marcia Neumann

ritórios constituídos pela vivência num espaço determinado), extinção e/


ou redução de áreas demarcadas.
É importante também enfatizar que os atuais conflitos estão, de um
modo ou de outro, mesmo com outros objetivos e intenções, correlacio-
nados aos demais conflitos agrários que envolveram, historicamente, o
latifúndio e os pequenos agricultores, os grandes projetos de barragens e
os seus atingidos, as lutas indígenas do passado frente à usurpação das
terras por colonizadoras, madeireiras e o latifúndio pastoril. O pano de
fundo são sempre as questões da terra, da propriedade privada, das suas
formas de uso e mercantilização, das políticas progressistas/produtivis-
tas do meio rural/agrícola de governos nacionais e estaduais. A terra re-
vela ser muito importante para a reprodução das vidas econômica, social
e cultural dos grupos sociais em disputa por ela.
Há sempre, nessa longa história de embates, dois sujeitos sociais
que querem se apropriar de um único e mesmo espaço. Em razão disso,
num determinado período, os grupos em disputas lançavam mão de ex-
pedientes de força física e das armas, portanto, do temor e da coerção;
em outros momentos, da mediação da esfera pública e do direito, ou seja,
da legitimidade, do melhor argumento, da pressão social (movimentos e
ações sociais) e da mediação política (entidades de representação). Essa
última é a que é acionada pelos atuais conflitos, porém, não são só os
grupos diretamente envolvidos que estão no campo em disputa; há um
amplo horizonte de representações, mediações, posições sociais e inter-
pretações históricas sobre fatos passados que os envolve.
Portanto, é um campo elástico de ações social e política, fato esse
que revela ser um conflito estabelecido e uma grande dificuldade não só
em relação aos processos e estratégias entre os grupos, mas também na
própria definição do que seja terra indígena, legitimidade da apropria-
ção da terra, identidade indígena, desenvolvimentos econômico e social,
definições temporais e critérios que possam contemplar as demandas dos
grupos que tentam reaver o que consideram “suas terras”; isso sem falar
nos inúmeros percalços produzidos por realocações e/ou reterritorializa-
ções compulsórias.
Além dessas indefinições e problemáticas, há outras no âmbito co-
tidiano dos grupos sociais. Uma delas são os acampamentos em beira de
estradas e/ou sedes de comunidades rurais onde se vive em condições

245
Políticas indigenistas e colonização: fragmentos históricos para compreensão dos...

precárias de habitação, subsistência econômica e reprodução sociocultu-


ral, além de reproduzir preconceitos (discriminação e violências de múl-
tiplos âmbitos); outra, além de sofrimentos em razão do sentimento de
inoperância da esfera pública em encontrar soluções que atendam aos
grupos envolvidos, é a iminência de perder terras e não ser indenizado,
ficar sem ter para onde ir, sem entender a dimensão jurídica da escritura
da terra e, também, sem ter sido o sujeito produtor da expropriação indí-
gena do território no passado.
Tendo presente todas essas questões que produzem as tensões e os
conflitos, o presente texto, de uma forma simples e panorâmica, propõe-
-se a evidenciar alguns elementos históricos que auxiliam na compreen-
são dessa realidade contemporânea que se revela problemática. Damos
ênfase à importância da terra para os grupos sociais em disputas, a po-
líticas implementadas pelas esferas pública do Império e de governos
regionais, a algumas das estratégias dos indígenas para fazer frente aos
aldeamentos e esbulhos das terras, a conflitos e interesses dos grupos
sociais, bem como a processos que intencionavam regulamentar as terras
para viabilizar a colonização e a (i)migração na região e a alguns de seus
sujeitos centrais.

Políticas de aldeamento e de controle social


– meados do século XIX
Ao contextualizarmos historicamente a propriedade (privada) da
terra no Brasil, vemos que ela sempre foi o ponto central dos grandes
embates sociais e políticos. Desde meados do século XIX, com a Lei de
Terras (1850), com os processos que aconteceram na Europa e no Bra-
sil – as políticas imigratórias e suas intenções e contextos, as pressões
abolicionistas, suas regulamentações e interesses regionais, o papel da
esfera pública e dos grupos que compunham o poder político, os sujeitos
envolvidos e os grupos sociais priorizados –, com as colonizações públicas
e privadas, as ações de governo de aldear indígenas, de definir e redefinir
suas áreas, reduzindo ou, então, extinguindo-as com os programas de
modernização agrícola, entre uma série de outros processos, em seu con-
junto, acabaram por produzir, no decorrer da História, muitos conflitos.

246
João Carlos Tedesco | Rosane Marcia Neumann

Parcialidades indígenas, principalmente kaingang, habitavam a


ampla região do centro-norte da província sulina, em razão da abundân-
cia de matas, de araucária, em particular, dos campos de criação e de rios
que poderiam interligar regiões e comunidades indígenas. Nas décadas
de 1830 e 1840, cresceu o interesse pela região tanto pelos seus ervais
quanto pelos campos, dos quais já se tinha suficiente notícia. O governo
da província decidiu, então, abrir estradas como uma forma de penetrar
nos territórios ocupados pelos kaingang.
De todas as empresas desta Ordem, a que me parece dever reclamar a vos-
sa immediata attenção, he a abertura da estrada que conduz ao Registro de
Santa Victória: são guaridas de bugres as matas denominadas Portuguez e
Castelhano: soffrem nas suas fazendas os viandantes; correm iminentes riscos
as suas vidas, e o dispêndio de seis contos de reis em que orçou a obra, quantia
de que bem depressa seria indemnisada a nação com os direitos que cessa de
perceber pelas hostilidades do gentio garante tantos males.2

A necessidade de colonização na região em meados do século XIX


imprimiu uma série de ações do Império, principalmente no sentido de
controlar os indígenas, permitir o espaço livre e seguro para as investi-
das de desbravadores, viajantes, tropeiros, comerciantes e estancieiros; a
intenção era conhecer, dominar e habitar a região. O governo provincial
não relutou em utilizar vários meios de coerção e cooptação nos grupos
indígenas, para viabilizar o domínio territorial e produzir terras devolu-
tas passíveis de colonização.
Frentes de povoamento e de colonização foram se processando nos
territórios indígenas; colônias militares e companhias de pedestres, no
centro-norte e meio oeste da província catarinense, foram instaladas com
as intenções de controlar o espaço e transformá-lo em território produti-
vo e da lógica mercantil. Nesse sentido, em 1845, logo após a retomada
da imigração europeia para o Brasil, foi encampada a política de aldea-
mento de indígenas, que primava pela conservação da integridade das
zonas coloniais e pela abertura de outras nos territórios que, a partir de
então, seriam “liberados” da presença indígena. Na região entre Passo
Fundo e Lagoa Vermelha, de 1858 a 1878, constituiu-se a Colônia Mi-
litar de Caseros, justamente com a intenção de abrir vias de acesso na

2
Relatório apresentado por Manuel Antônio Galvão ao Conselho Geral, Rio Grande do Sul, em 1º
de dezembro de 1832, p. 11. Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1055/000001.html>.
Acesso em: 16 jan. 2017.

247
Políticas indigenistas e colonização: fragmentos históricos para compreensão dos...

região, aldear e apaziguar indígenas e possibilitar a aquisição de terras


e povoamento.
A política dos aldeamentos foi instaurada por meio do Decreto nº
426, de 24 de julho de 1845, denominado Regulamento das missões (CO-
LEÇÃO..., 1846, p. 86), pelo qual ficavam acordados os termos da regu-
lamentação das missões de catequese e de civilização dos indígenas em
todo o território nacional. Concebido como resolução acertada para pôr
fim aos enfrentamentos entre parcialidades indígenas e colonos nos inte-
riores do Brasil, o regulamento previa que fossem os indígenas estabele-
cidos em aldeias ou em seus já existentes toldos,3 para assim receberem
assistência e instrução acerca da fé católica e dos meios de se produzir
riquezas (FRANCISCO, 2013).
O projeto de aldeamento era condição sine qua non para a viabili-
zação do empreendimento colonizador, pois nessas condições haveria as
possibilidades de abertura de estradas, de vias de navegação e de inter-
ligação regional e de desenvolvimento das indústrias madeireira e extra-
tivista da erva-mate, imprescindíveis ao desenvolvimento da província.
Conforme Laroque (2007), a partir da década de 1840, é perceptível uma
determinada alteração nos modos e práticas dos kaingang de se relacio-
nar com a figura cada vez mais permanente do intruso de seus territó-
rios. É nesse período que começam a operar importantes alianças entre
os povos nativos e as frentes de ocupação do território, bem como com o
governo provincial; essa atitude, perpetrada por parcialidades kaingang,
à primeira vista, pode ser entendida como a derradeira submissão, o êxi-
to de políticas de sujeição impostas pelas vias do combate; todavia, se-
gundo Laroque (2007), talvez a adoção dessas políticas de aliança tenha
se configurado como uma estratégia kaingang de assegurar vantagens
frente à constatação de que os combates que visaram à expulsão dos in-
trusos de seus territórios já não se mostravam eficazes como outrora.
Nesse contexto de esbulho pela esfera pública e de grupos de es-
tancieiros, alianças, coerções, cooptação, conflitos entre parcialidades
indígenas, desenha-se um cenário de grandes tensões na região em ques-
tão. Em meados do século XIX, esse processo foi bem intenso. Havia um
grande domínio kaingang no norte da província sul-rio-grandense, em

3
Local de ocupação tradicional de determinada etnia indígena.

248
João Carlos Tedesco | Rosane Marcia Neumann

particular nas proximidades dos grandes rios, entre eles o Uruguai, e,


mais especificamente, na região Goio-En (hoje Nonoai e divisa com Cha-
pecó, SC). Caciques como Vitorino Condá, Nonoai e João Gongue, com
suas parcialidades indígenas, exerceram grande influência nesse espaço.
A dominação kaingang na região está evidenciada em vasta docu-
mentação.
San Martin traça um excelente mapa etnográfico [...] onde se verifica a exis-
tência de uma linha do Ijuí até o Alto Jacuí, estabelecendo ao norte dessa li-
nha a possessão dos guaianás. Isso daria o território passofundense, ao tempo
das primeiras entradas jesuíticas, como ocupado pelos guaianás (CAFRUNI,
1966, p. 40).

Cafruni (1966, p. 627), descrevendo o início do século XIX, enfatiza a


intensa presença de parcialidades kaingang na região de Passo Fundo e
por todo o território ligado à Vacaria dos Pinhais, no Mato Português: “o
Passo Fundo, apesar de atravessado a todo comprimento por essa estra-
da, não pode ser povoado senão com demora de alguns anos, devido aos
terríveis coroados”.
Os ervais eram a grande riqueza e a cobiça dos não indígenas que
passavam pelo norte da província, principalmente nas direções norte e
nordeste.
Toda a região de Passo Fundo, Soledade, Lagoa Vermelha, Erechim, Sarandi,
Carazinho, etc., oferecia vastos e excelentes ervais, por onde os ervateiros [...]
se introduziam, preferentemente nos lugares acessíveis às carretas e devida-
mente rondados pelos guardas armados de sua Redução, prevenidos contra
qualquer ataque de surpresa, principalmente dos índios bugres ou caingangs,
e também das onças carniceiras que infestavam essas paragens (CAFRUNI,
1966, p. 522).

Aventureiros, viajantes, comerciantes, estancieiros relatavam os


encontros com os índios, enfatizavam a necessidade de aldeá-los ou inte-
grá-los às dinâmicas social e econômica que se desenhavam a partir de
meados do século XIX. Catequese, colônias militares, inserção da mão de
obra indígena e sua remuneração nas atividades extrativistas, pastoris
e tropeira foram algumas das estratégias para viabilizar essas inten-
ções. No final da década de 1850, o governo provincial enviou o padre
Antonio Leite Penteado (de Passo Fundo) para fazer um levantamento
dos índios da região Goio-En; consta que ele contabilizou mais de 4 mil

249
Políticas indigenistas e colonização: fragmentos históricos para compreensão dos...

índios (NONNENMACHER, 2000, p. 32). Em razão disso, intensificou-se


a catequese. O padre Parès também exerceu um papel muito importante
correlacionado com as intenções dos colonizadores e da esfera pública.
O grande aldeamento de Nonoai deu-se nesse contexto de influência
religiosa na região; a intenção era concentrar ali, em um único aldea-
mento, toda a população kaingang do norte-nordeste do Rio Grande do
Sul. Os grupos de indígenas da localidade estabeleciam-se sob o comando
do cacique Nonoai, liderança, à época, já centenária que teria guiado o
estabelecimento dos kaingang na região após a travessia do rio Uruguai
na primeira década do século XIX, em ritmo migratório, devido às pres-
sões sofridas pelo avanço português (SIMONIAN, 1981).
O papel dos caciques Doble, Braga, Fongue, Nicafin, entre outros,
nessa empreitada é por demais documentado na literatura.4 Outros al-
deamentos foram efetivados no período, em particular, o de Guarita,
o de Erexim e o do Campo do Meio. Sobre este escreve Mabilde (1983,
p. 60-61),
Quando, em 1850, consegui que o cacique Braga, com suas tribos de 304 pes-
soas, saísse das matas e se aldeasse no Campo do Meio, ficou ainda na mata
uma pequena tribo dissidente composta de 23 indivíduos [...]. O chefe dessa
pequena tribo, o cacique Nicuó, [...] uma vez aldeados os coroados das tribos do
cacique Braga, ficou senhor das matas, desde o Mato Castelhano até a Serra
da Beira Mar. Ficou conhecido nos campos de Vacaria e de Cima da Serra pelo
nome de João Grande (ave das pernas compridas).

Os conflitos entre os grupos dos caciques Braga e Doble,5 levando


este a aceitar o processo de aldeamento desde que distante daquele, são
por demais conhecidos. A aceitação do aldeamento e até a cooperação
com a política imperial não significavam necessariamente uma lógica
de subordinação, mas, na maioria das vezes, uma estratégia de sobrevi-
vência frente às disputas internas e, principalmente, à modificação do
habitat que os tornava dependentes das benesses do Estado (LAROQUE,
2000, 2007).

4
Ver Laroque (2000; 2007), Nonnenmacher (2000), D’Angelis e Veiga (2013), Silveira (1979),
Mabilde (1983) e Roderjan (1991).
5
Laroque (2000, 2007) estuda as relações de poder dos kaingang, destacando o papel cumprido
pelos pay-bang (caciques gerais), que agregavam em torno de si um conjunto pays (caciques
subordinados). O autor demonstra que eram comuns as disputas entre essas lideranças pelo
poder político e pelo domínio de territórios. Tudo indica que o ocorrido entre o pay-bang Braga e
o pay-Doble tenha sido uma insubordinação de Doble em busca de maior poder político.

250
João Carlos Tedesco | Rosane Marcia Neumann

As políticas imperiais conseguiram, gradativamente, atingir o obje-


tivo de retirar os kaingang da mata, por meio da violência e/ou da fragi-
lização das condições de vida, constituindo diversas aldeias; entre elas,
destacam-se Nonoai, Pontão, Campo do Meio, Caseiros (Santa Isabel),
Cacique Doble, Água Santa (Carreteiro) e Ligeiro.

Figura 1 – Mapa da Estrada das Missões ligando os campos da Vacaria e territórios contíguos, 1843

Fonte: Arquivo Histórico do Exército, RJ, código: MH-7/Santa Catarina, Carta: 013, Loc.: M6 G4 C30.

Enfrentamentos bélicos com mortes, perseguições entre fazendeiros


e indígenas, sequestros, assassinatos e fuga dos aldeamentos deram o
tom dos conflitos do período da tentativa da política indigenista de con-
trolar e aldear os indígenas no século XIX.

Aldear para liberar a terra ao processo produtivo de


excedentes – início do século XX
A intenção do governo do estado do Rio Grande do Sul para a popu-
lação, especialmente da região centro-norte, estava calcada numa políti-
ca imigratória destinada à formação de colônias. No caso dos indígenas,
eram os aldeamentos, ou seja, as demarcações de áreas indígenas. O po-

251
Políticas indigenistas e colonização: fragmentos históricos para compreensão dos...

sitivismo, em seu período de governança no Rio Grande do Sul (1889-


1930), sempre teve um papel de gerenciamento da população. Com base
nisso, além dos descendentes de imigrantes europeus e dos grupos que
já viviam na região, por exemplo, caboclos e indígenas, essa prática de
governo (o positivismo) buscou incorporar esses grupos na sociedade con-
siderada moderna na época.
Nas primeiras décadas do século XX, novas investidas da esfera pú-
blica se fizeram sentir com a intenção de realmente aldear as parciali-
dades ainda existentes por toda a região em questão. O governo estadu-
al imprimiu uma grande empreitada nesse sentido. Políticas de aliança
aliavam-se com o esbulho e a coerção (FRANCISCO, 2013; LAROQUE,
2007). Vários dispositivos de cooptação foram lançados para convencer
indígenas a se aldear; muitos aceitaram sem maiores resistências, em
razão de não haver muito o que fazer, pois a correlação de forças era
muito desproporcional. É bom ressaltar que as lideranças indígenas de
várias regiões do Alto Uruguai faziam alianças com os não indígenas
por meio do mecanismo de trocas de valores e de conhecimentos. Sendo
assim, “[...] as relações entre fazendeiros e poderes públicos parecem ter
favorecido invasões e demandas contra os índios. O resultado foi a neces-
sidade de uma redefinição de limites para as aldeias kaingang na virada
do século [XIX para o XX]” (VEIGA, 1998, p. 40).
O avanço das frentes de colonização e a sua correlata pressão pela
terra, o uso desmesurado da força belicosa, em meio a promessas de res-
guardo e proteção pública no interior dos aldeamentos, não deram muita
margem de manobra e de enfrentamento para grande parte das parcia-
lidades indígenas.
Por meio do Decreto nº 8.072, de 20 de junho de 1910, o governo
republicano criou o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e a Localização
dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN), que tinham por objetivos tanto
a proteção de integração dos indígenas quanto a criação de colônias agrí-
colas para alocação dos trabalhadores nacionais. Já em 1918, o SPI foi
desmembrado da Localização de Trabalhadores Nacionais (Decreto-Lei
nº 3.454, de 06 de janeiro de 1918), com a intenção de atuar especifica-
mente com índios para integrá-los ao sistema de vida dos não índios.
Em 1910, sob o comando do engenheiro civil Carlos Torres Gonçal-
ves, responsável pela política de colonização, povoamento e aldeamentos,

252
João Carlos Tedesco | Rosane Marcia Neumann

foi realizado um levantamento dos toldos indígenas pré-definidos que


ainda não haviam sido demarcados, e chegou-se à constatação censitária
de que havia em torno de 2.940 indígenas nos 12 possíveis toldos indíge-
nas (TEDESCO, 2017). Pautadas nesses dados, foram criadas 11 áreas
indígenas no Norte do Rio Grande do Sul entre 1910 e 1918. O intuito era
de que, uma vez aldeado o indígena, se abrisse espaço para a colonização
de novos imigrantes ou de descendentes dos colonos das Colônias Velhas,
além do fato de o governo positivista do Estado mostrar-se preocupado
com a questão indígena e com os possíveis e iminentes conflitos que po-
deriam ocorrer na região, caso o problema da falta de terras não fosse
sanado.
As 11 áreas indígenas demarcadas entre 1910 e 1918, com o seu
respectivo território, constam no quadro seguinte.

Quadro 1 – Os 11 toldos indígenas demarcados no início do século XX


Ano de Área demarcada
Área indígena Município atual (2016)
demarcação em hectares (ha)
Faxinal 1910 5.676,33 ha Cacique Doble
Carreteiro 1911 600,72 ha Água Santa
Monte Caseiros 1911 1.003,74 ha Ibiraiaras e Muliterno
Inhacorá 1911 5.859,00 ha São Valério do Sul
Ligeiro 1911 4.517,86 ha Charrua
Nonohay 1911 34.907,61 ha Nonoai, Rio dos Índios, Gramado
dos Loureiros e Planalto
Serrinha 1911 11.950,00 ha Constantina, Engenho Velho,
Ronda Alta e Três Palmeiras
Ventara 1911 753, 25 ha Erebango
Guarita 1917 23.183,00 ha Tenente Portela, Miraguaí e
Redentora
Votouro Kaingang 1918 3.100,00 ha São Valentim
Votouro Guarani 1918 741,00 ha Benjamin Constant do Sul
Fonte: Relatório e conclusões do Grupo de Trabalho criado pelo Decreto nº 37.118, de 30 de dezembro de 1996, “Sub-
sídios ao Governo do Estado relativamente à questão indígena no Rio Grande do Sul”, para analisar questões
indígenas no Rio Grande do Sul, 1997.

Com uma elevada leva de descendentes de imigrantes oriundos das


Colônias Velhas para a região do planalto-norte sul-rio-grandense, ou
seja, na busca pela última fronteira agrícola passível de ocupação, o en-
trechoque cultural entre indígenas e colonos aflorou-se. Até então os in-

253
Políticas indigenistas e colonização: fragmentos históricos para compreensão dos...

dígenas conseguiam, de uma forma mais restrita, manter seus costumes


de habitação na região em questão, subdivididos em territórios.
Quando do término das demarcações, em 1918, a consequente posse
da terra pelo governo do estado às comunidades indígenas que a habi-
tavam passou a ser reconhecida como exemplo no tratamento aos indí-
genas. A assistência aos nativos provida pelo estado por meio de seus
órgãos de administração fundiária (Secretaria de Terras, Diretoria de
Terras e Colonização) tornara-se visível em nível nacional, desenvolvida,
sobretudo, nos governos do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR),
bastião dos ideais do positivismo no estado e principal responsável pelo
incentivo de políticas de modernização técnica da produção agrícola e
racionalização do uso das terras disponíveis pelos projetos de colonização
(KUJAWA, 2014; TEDESCO, 2017; TEDESCO; KUJAWA, 2013).

Figura 2 – Indígenas reunidos próximos ao moinho e à usina elétrica da Povoação Indígena de Passo
Fundo, 1928

Fonte: Museu do Índio.

Intrusar, reduzir e extinguir áreas indígenas


– 1930-1960
Um terceiro período que consideramos importante no processo his-
tórico que define as políticas indigenistas e suas relações com a coloniza-
ção e a produção agrícola se dá entre as décadas de 1930 e 1960. Nesse
período, os problemas ligados à “questão indígena” continuaram, entre

254
João Carlos Tedesco | Rosane Marcia Neumann

eles, as intrusões de agricultores no interior das reservas, a redução das


áreas indígenas e a extinção de reservas. Na realidade, havia as inten-
ções de realizar a reforma agrária nas terras indígenas e integrar o índio
na sociedade pelos vieses produtivo e cultural.
Esse período foi muito fértil, porque aglutinou um conjunto de pro-
cessos históricos que foram desenvolvidos no Rio Grande do Sul a partir
de políticas públicas. Entre esses elementos, estão a(s) colonização(ões)
privada e/ou pública, a migração de agricultores e a apropriação privada
da terra por esses indivíduos, os modelos de desenvolvimento e produção
agrícolas, as políticas nacionais de reforma agrária, principalmente no
início dos anos 1960 e a extinção de algumas reservas indígenas.
A intrusão em terras demarcadas como sendo indígenas ocorreu,
na maioria das vezes, com relativo consentimento de lideranças indíge-
nas, que, em alguma medida, obtinham pequenas vantagens, como, por
exemplo, valores, mesmo que irrisórios, de arrendamento ou venda do
direito de se “arranchar” e fazer roçados (CARINI, 2005). Há fortes indí-
cios de que o SPI, que deveria ser o órgão protetor dos territórios indíge-
nas, desenvolvia políticas que estimulavam e praticavam diretamente a
exploração das riquezas existentes nessas áreas. A título de ilustração,
mencionamos dois exemplos: o primeiro é dado por Carini (2005), que, ao
analisar o processo de intrusão no Aldeamento de Serrinha, demonstra
uma efetiva participação dos representantes do Estado.
Os acertos com os guardas florestais, responsáveis pelo posto de fiscalização,
ou com os próprios diretores de terras públicas, visando à abertura de roças, a
retirada de madeira e arranchamento definitivo, eram frequentes e envolviam
o pagamento de propinas, promessas, parcerias e arrendamentos (CARINI,
2005, p. 152).

Das áreas anteriormente relacionadas para a criação de reser-


vas florestais em seu interior, Nonoai, Guarita e Serrinha, a subtração
fundiária, na década de 1940, processou-se apenas em Nonoai e Serrinha,
tendo havido a homologação dessas áreas de proteção apenas em 1949.6
Com base nos cálculos citados, a Diretoria de Terras e Colonização, sob a
responsabilidade de Torres Gonçalves, promoveu as demarcações: a área
de Nonoai, de 39.908 ha, passou para 14.910; e a de Serrinha, de 11.950
ha, passou para 6.623 ha.

6
Decreto nº 658 10/03/1949 do Governador Walter de Sá Jobim.

255
Políticas indigenistas e colonização: fragmentos históricos para compreensão dos...

Em Nonoai, a área destinada à reserva florestal passou a ser sev-


eramente ocupada por colonos sem-terra. Essa área, mormente para
proteção ambiental, não sendo mais de posse da comunidade indígena,
entrou para a classificação de terra devoluta, retornando a posse ao es-
tado do Rio Grande do Sul; a ocupação dessas áreas figurava, à época,
como alternativa ao esgotamento da fronteira agrícola no estado, situ-
ação que se acentuava e disseminava a tensão social em torno da questão
fundiária, tornando-se válvula de escape para os colonos sem-terra, mes-
mo que passando para a ilegalidade, sob o status de intrusos.
Posteriormente, o governo do estado, ciente das tensões que se
propagavam no campo, encontrou, nos apelos e ações dos intrusos nas
reservas florestais, a solução a curto prazo para amenizar o problema da
indisponibilidade de terras. Grande parte da área da Reserva Florestal
de Nonoai passou a ser destinada ao loteamento para a colonização pelos
intrusos na área. Realizado, primeiramente, em Nonoai o loteamento pelo
governo do estado, foi criada a 4ª Sessão Planalto de Colonização, por
meio da qual pequenas extensões de terra foram vendidas aos colonos.
Desse modo, ao fim e ao cabo, a situação das áreas indígenas nos
anos 1940 atingiu um patamar de intensa instabilidade. As ações do
governo estadual e do SPI externaram, no período, suas contradições e
seus alinhamentos, revelando os múltiplos interesses que concentravam
no entorno das terras pertencentes às comunidades indígenas, atrativas
para o desenvolvimento tanto da extração da madeira quanto da colo-
nização, ambas produzindo efeitos e alijando os indígenas que, contra-
ditoriamente, eram os que deveriam ser os principais assistidos pelas
legislações indígenas estadual e federal.
Motivado pelas razões de uma lógica integracionista, que entendia
que o número de indígenas estava gradativamente diminuindo e que, em
mais ou menos tempo, a população indígena iria ser completamente ab-
sorvida e integrada à sociedade nacional, o estado do Rio Grande do Sul
adotou várias medidas administrativas, as quais resultaram na redução
e/ou na extinção das áreas indígenas, realocando e criando, no território,
reservas florestais e áreas de colonização, loteadas e vendidas para as
famílias de agricultores. Com essa política, a grande maioria das áreas
indígenas foi reduzida ou até extinta, como foi o caso de Serrinha, Casei-
ros e Ventara, ambas no norte do estado.

256
João Carlos Tedesco | Rosane Marcia Neumann

Nesse cenário conflituoso, estão as ações dos governadores Mene-


ghetti (1955-1959 e 1963-1966) e Brizola (1959-1963), principalmente
em razão da intensa intrusão de agricultores no interior das reservas
indígenas. Devido a vários conflitos daí decorrentes, instalou-se na As-
sembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul uma comissão par-
lamentar de inquérito (CPI), em 1967, para averiguar essas questões
(TEDESCO, 2017).
Das 11 áreas demarcadas no início do século XX, entre os anos de
1910 e 1918, apenas três não sofreram alterações; essas alterações eram
a redução das áreas indígenas em prol de uma política estadual de cria-
ção de florestas nacionais e assentamento de sem-terra. Entre essas
áreas, estão: Ligeiro, Carreteiro e Guarita. As demais se tornaram caso
emblemático de constante redução das terras indígenas. Conforme Ca-
rini (2005), a área de Cacique Doble teve 22% de área reduzida; Inhaco-
rá, 82%; Votouro Kaingang, 33%; Votouro Guarani, 62%; e Nonoai, 57%.
Como vimos, as áreas de Monte Caseiros, Serrinha e Ventarra foram
extintas. Esse processo de redução aconteceu entre as décadas de 1940 e
1960 (KUJAWA, 2014).
Nas décadas de 1950 e 1960, além de não haver mais terras dis-
poníveis para a colonização, o ramo das madeireiras estava perdendo
espaço. Essas questões fizeram com que as intrusões nas áreas indíge-
nas e nas reservas florestais se tornassem cada vez mais abundantes.
As madeireiras que não migraram para os estados de Santa Catarina e
Paraná, permaneceram em solo sul-rio-grandense, assim, manteve-se o
empreendimento, aproveitou-se a mão de obra dos colonos sem-terra, e a
matéria-prima foi retirada, em grande parte, das áreas indígenas e das
reservas florestais. A economia da madeira e a presença da triticultura
no horizonte, por meio dos processos de modernização do campo, fizeram
com que as áreas indígenas ficassem à mercê de colonos em busca de
terra.
As intrusões nas áreas indígenas foram o estopim para o desenca-
deamento de vários outros focos de conflito pela região. Os movimentos
sociais se organizaram principalmente na década de 1970, e os confli-
tos fundiários envolvendo pequenos proprietários, latifundiários, colo-
nos sem-terra aconteceram por quase toda a década de 1980. O conflito
em Nonoai entre indígenas e agricultores intrusos, por exemplo, ocorreu

257
Políticas indigenistas e colonização: fragmentos históricos para compreensão dos...

a partir de alguns grupos mediadores que aderiram à luta indígena. A


Igreja Católica foi um deles em razão de sua dimensão de ação social,
sensibilizada com o que vinha ocorrendo no interior das reservas, princi-
palmente suicídios, doenças e prostituição.
O conflito em Nonoai ocorreu somente em 1978; entretanto, em
1967, uma CPI foi constituída para tentar apurar questões de expropria-
ção de terras indígenas no Norte do Rio Grande do Sul e, em particular,
em Nonoai. A CPI tentou encontrar explicações frente ao esbulho das
terras indígenas, ao roubo de madeiras e ao iminente conflito entre os
indígenas e os colonos sem-terra.
A CPI indígena de 1967 foi um dos pontos fundamentais da luta pela
retomada das terras por parte dos indígenas – pelos menos em Nonoai –,
porque ela mostrava que a área de Nonoai estava “intrusada” por colonos
sem título de propriedade, ou seja, na condição de posseiros intrusos.
Essa CPI foi um marco na onda do esbulho das áreas indígenas. Por mais
que ela não concluiu plenamente em favor das territorialidades indíge-
nas, especialmente de Nonoai, foi a primeira ação governamental para
tentar frear as tentativas de redução das áreas indígenas.
A partir do conflito instaurado na área indígena de Nonoai, várias
frentes de disputa por propriedades acirraram-se na região. O conflito
de Nonoai pode ser um marco na história da região norte em relação aos
conflitos pela terra. A luta pelos direitos indígenas das décadas de 1970
e 1980, por meio do Conselho Indigenista Missionário, de intelectuais
ligados à academia e de organizações não governamentais, fez com que
a causa indígena ganhasse força na Assembleia Constituinte do Brasil e
na própria Constituição de 1988.
Os direitos conquistados na Carta Magna serviram de grande im-
pulso para que os indígenas no Rio Grande do Sul retomassem o debate
e o questionamento sobre a ilegitimidade e a ilegalidade dos atos que
reduziram suas áreas historicamente demarcadas, apoiados pela Fun-
dação Nacional do Índio (Funai) e pelo Ministério Público. Em 1991, a
União realizou a redemarcação das terras indígenas no estado e iniciou,
por intermédio da Funai, o ajuizamento, junto com o Supremo Tribu-
nal Federal, de ações de inconstitucionalidade, buscando anular todos
os atos que, entre as décadas de 1940 e 1960, efetivaram a redução das
terras indígenas demarcadas. Após longo período de debates e tensões

258
João Carlos Tedesco | Rosane Marcia Neumann

sociais, foram restituídos os limites originários das 11 áreas demarcadas


no início do século XX, restando um imenso problema econômico para o
estado – indenizar o conjunto de agricultores – e, obviamente, um custo
muito grande para as famílias que compraram as terras e, após algumas
décadas, se viram obrigadas a se retirar.

Enfim...
Vimos que, em alguns períodos históricos, houve maior expressão de
ações, em geral, motivadas pela esfera pública, para alterar a realidade
territorial indígena. Políticas de aldeamento deram a tônica das ações. A
intenção delas era permitir a livre circulação de grupos sociais e a ven-
da das terras. A livre presença indígena nos territórios tornava-se um
empecilho ao empreendimento público. Havia necessidade de delimitar
territórios e enclausurar os agrupamentos indígenas, controlá-los pela
catequese, por ações integrativas e de assimilação sociocultural.
As parcialidades indígenas no Norte do Rio Grande do Sul resisti-
ram aos aldeamentos enquanto puderam, com as armas e estratégias
possíveis; para isso, produziram-se alianças, contrapartidas, coerções,
promessas, proteção e uso da força. Conflitos foram produzidos entre
indígenas e o Estado, bem como com estancieiros e entre parcialidades
comandadas por determinados caciques.
A presença de padres, a instalação de colônias militares, de coloni-
zações pública e particular, a abertura de estradas, a permissão de en-
trada de colonos no interior das terras indígenas demarcadas, entre uma
série de outras ações, intencionavam controlar, assimilar e apaziguar os
indígenas. O empreendimento colonizador e as consequentes mercanti-
lização das terras e produção agrícola de excedentes pressupunham isso
tudo.
Os atuais conflitos expressam esses fatos históricos e remontam a
eles. No caso específico da Colônia Militar de Caseros (1858-1878), há
cinco acampamentos de indígenas nas suas proximidades reivindicando
terras e tendo-as como referência histórica, principalmente em torno da
constituição de um grande aldeamento (Santa Izabel) no seu interior e ao
seu entorno no período, sob o comando do cacique Doble. Com a extinção

259
Políticas indigenistas e colonização: fragmentos históricos para compreensão dos...

da colônia militar e o avanço da propriedade privada da terra, a área


ocupada pelo aldeamento foi esbulhada por não indígenas, com o aval do
Estado, e os indígenas remanescentes foram dispersados.
Para entendermos as demandas atuais, os argumentos históricos,
as adequações com o que está na Constituição de 1988 (artigos 231 e
232), precisamos nos remeter a fatos do passado, situarmos as intenções
e o que era central naquele momento, bem como as ações desenvolvidas.
Portanto, os atuais conflitos sociais entre indígenas e agricultores
estão inseridos num contexto de crise e indefinição de políticas indige-
nistas pela esfera pública, de grande tensão e de conflito no interior das
reservas indígenas, de alto valor e importâncias social, cultural e econô-
mica da terra para os dois grupos, da forte densidade demográfica tanto
no interior das reservas quanto na ocupação e na apropriação da terra.
Somam-se a isso os inúmeros decretos e portarias na esfera federal, que
se revelam, até então, pouco eficazes e acabam colaborando ainda mais
para o alongamento dos processos administrativos, disputas judiciais,
aumentando, com isso, as tensões sociais. A referida luta social necessita
ser enfrentada em suas raízes históricas, seus referenciais de memória,
de cultura e de direitos, sem polarizar os dois sujeitos mais diretamente
envolvidos (indígenas e agricultores).

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260
João Carlos Tedesco | Rosane Marcia Neumann

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1998.

261
Apontamentos para uma história do Campo do Meio

Apontamentos para uma


história do Campo do Meio
Ney Eduardo Possapp d’Avila

Apresentação

N
o presente estudo, buscar-se-á sinalizar alguns temas julgados
pertinentes à pesquisa e à escrita de uma história do Campo do
Meio. O intuito é socializar, com os estudiosos da história do Cam-
po do Meio, os conhecimentos acumulados durante 70 anos de vivências
em Passo Fundo, ao longo dos quais se ouviram relatos e “causos” a res-
peito daquele distrito e de seu entorno. Convivemos com gente moradora
ou originária daquela terra. A esse conhecimento empírico, acrescenta-
mos 30 anos de estudos e pesquisas sobre o município de Passo Fundo,
desde seus primórdios, área onde se situou o Campo do Meio.
Primeiramente, é preciso definir o que deve ser entendido por Cam-
po do Meio. As citações mais antigas referem Campo do Meio ou Campos
do Meio à faixa de campos “sujos” (isto é, entremeados com outro tipo de
vegetação além de gramíneas) que separava os matos. Outra definição
dada para Campo do Meio foi área do tipo “campos neutrais”, uma “ter-
ra de ninguém”, com o Mato Português a Leste e o Mato Castelhano a
Oeste. Nesses dois casos, era o território que se estendia desde um pouco
além dos atuais limites a ocidente do município de Passo Fundo até pró-
ximo do atual município de Lagoa Vermelha. No mapa a seguir, pode-se
observar a localização de Campo do Meio como segundo distrito de Passo
Fundo.

262
Ney Eduardo Possapp d’Avila

Figura 1 – Mapa geográfico do município de Passo Fundo em 1929, elaborado por Antonino Xavier e
Oliveira

Fonte: Arquivo Histórico Regional de Passo Fundo.

O território, o distrito, a vila:


Campo do Meio
Campo do Meio, em 1847, era o 7º quarteirão da freguesia de Passo
Fundo, então 4º distrito de Cruz Alta. Em 1858, o 2º distrito de Passo
Fundo, distrito de Ciríaco. De acordo com Hemetério Silveira (1997, p.
295), “em 1866, mais ou menos, fundaram no Campo do Meio, três qui-
lômetros além da extremidade Leste da estrada que corta o Mato Caste-
lhano, a povoação que ainda existe”, atual Vila do Campo do Meio.
Essas situações territoriais, referidas sob o nome genérico de Cam-
po do Meio, variaram muito em extensão e objeto. Dessarte, é necessário
assinalar ou se o objeto é o território e qual é o território, ou se o foco é o
núcleo urbano, quase tão antigo como a cidade de Passo Fundo, fundada
em 1827. Existe, entre os moradores do Campo do Meio, um mito, ou len-
da, persistente afirmando que o lugar é mais antigo do que Passo Fun-
do. Cabe, entrementes, dizer que, excluída Passo Fundo, a atual Vila do
Campo do Meio, como núcleo urbano, é um dos mais antigos territórios
do município de Passo Fundo, emancipado em 1857.

263
Apontamentos para uma história do Campo do Meio

Figura 2 – Localização do Campo do Meio, atual município de Gentil

Fonte: Wikipédia.7

Campo do Meio, tal como Passo Fundo, pode ser designado “terra
de passagem”, pela importância que as rotas terrestres tiveram em seu
surgimento e progresso. É preciso notar que a construção da rodovia BR-
285 provocou a involução da localidade do Campo do Meio, que deixou de
ser “terra de passagem”.
A expressão “terra de passagem” tem caráter geográfico, mais do
que histórico; caracteriza um meio favorável ao trânsito de contingentes
humanos e, consequentemente, à abertura de vias terrestres. “Terra de
passagem” tem sido empregada para designar uma área desocupada, de-
sabitada, devoluta, quando dela se apossaram os ascendentes dos atuais
proprietários. Nada mais falso. Essas áreas de trânsito e seus entornos
já eram habitadas por parcialidades indígenas desde tempos imemoriais.
No caso específico da região de Passo Fundo, da qual o Campo do Meio
faz parte, as antigas trilhas indígenas foram convertidas em estradas,
das quais as atuais rodovias federais e estaduais são as expressões mais
modernas (D’AVILA, 1993, 1996, 2014, 2015).
De acordo com Cafruni, no amplo estudo intitulado Passo Fundo das
Missões (1966), os padres jesuítas espanhóis, nos relatos produzidos na
década de 1630, designavam o extenso pedaço de terras que ia desde a
Redução de Santa Tereza até a Vacaria dos Pinhais pelo nome indígena
de Cariroí: “Era habitado pelos [índios] carijós ou ibiaçaguaras, também

7
Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Gentil_(Rio_Grande_do_Sul)#/media/File:RioGran-
dedoSul_Municip_Gentil.svg>. Acesso em: 17 mar. 2016.

264
Ney Eduardo Possapp d’Avila

ibiangaras” (CAFRUNI, 1966, p. 39). Há a indicação de que “ficava em


frente a Santa Teresa” (CAFRUNI, 1966, p. 118).
Há divergências a propósito do significado do termo indígena “Ca-
riroí”. Contudo, o mais provável é que se refira à abundância da Ilex pa-
raguariensis (erveira, erva-mate) e da Araucaria angustifolia (pinheiro
brasileiro).
Essa área primitiva do Campo do Meio fez parte do território mis-
sioneiro. Os Padres da Companhia de Jesus, baseados na Redução de
Santa Tereza d’Avila, de 1632 a 1637, atuaram direta e indiretamente no
Cariroí (depois denominado Campo do Meio). Decorrido meio século, em
1687, os jesuítas retornaram à região estabelecendo uma guarda guara-
nítica subordinada ao Povo de São Luiz. A guarda ficou aquartelada na
entrada do Mondecaá ou Mondeca (mato das armadilhas), sua missão
era vigiar “los hondos de la baqueria de los piñales”. No lugar que mais
tarde ficou conhecido por Guarda Velha, também foi edificada uma cape-
la cujo orago era Santa Tereza, a grande devoção feminina dos jesuítas.
Os “fundos da vacaria dos pinhais” (D’AVILA, 1996, p. 33-35) estendiam-
-se pelo Cariroí, também denominados “potreiro grande”.
Em decorrência do Tratado de Santo Ildefonso (1777), deu-se, na
década seguinte, a demarcação de limites entre Portugal e Espanha no
atual Planalto Médio. Em 16 de novembro de 1787, José de Saldanha,
bacharel em Filosofia, geógrafo e astrônomo, formado em Matemática,
iniciou seus trabalhos no Passo do Jacuí chefiando a 5ª Campanha da
Demarcação; em 28 de janeiro de 1788, empreendeu a travessia de um
campestre grande, chamado também Campo do Meio; ao cabo de quase
três horas de viagem, chegaram “até a ponta de um capão de onde con-
tinua outro caminho usado por alguns contrabandistas [...] com mais 50
minutos através do Campo do Meio, que estava bastante áspero e incul-
to, acamparam à margem de um pequeno arroio” (DOMINGUES, 1993,
p. 52). O levantamento de Saldanha iniciou em Passo Fundo e terminou
nas “estâncias portuguesas da Vacaria”. Entre o Mato Castelhano e o
Mato Português, citou o Campo do Meio, naquela época uma zona de
campo (BRANCO, 1993, p. 61).
Evaristo Afonso de Castro desenhou e incluiu no livro de sua autoria
Notícia descritiva da região Missioneira na Província de São Pedro do
Rio Grande do Sul, publicado em Cruz Alta, em 1887, o Mappa da Re-

265
Apontamentos para uma história do Campo do Meio

gião Missioneira, no qual, para um entendimento melhor dos seus leito-


res, sinaliza, além dos acidentes geográficos, cidades, vilas e localidades
existentes na época. No mapa, consta a localidade do Campo do Meio
(TEDESCO; NEUMANN, 2015, p. 12 e 15). No Mappa do Territorio das
Missões Orientaes no Rio Grande do Sul, organizado pelo agrônomo Leo-
vegido Velloso da Silveira, 1904, também consta a localidade de Campo
do Meio (SILVEIRA, 1997, p. 546 e 547).
O geólogo Pércio de Moraes Branco, em agosto de 1993, traçou o
roteiro seguido por José de Saldanha entre 1787 e 1788. No trecho Passo
Fundo-Lagoa Vermelha, traçou, como linha de referência, a rodovia BR-
285. Nota-se que tanto o roteiro como a rodovia federal passam ao largo
do ponto que assinala a localidade de Campo do Meio. No relatório de
Saldanha, Campo do Meio figura como área percorrida (BRANCO, 1993,
p. 62).
Em 1816, obedecendo ordens superiores, o alferes de milícias Atana-
gildo Pinto Martins, da cavalaria de Curitiba, comandou uma expedição,
guiada pelo índio Jonjong e composta de soldados índios, que percorreu o
trajeto do Campo do Meio a São Borja (D’AVILA, 1996, p. 38).
Em 1846, foi criada a Capela do Campo do Meio, para atender os
moradores que tinham se estabelecido ali em função da estrada, manda-
da abrir pelo presidente da província e comandante de armas, Luiz Alves
de Lima e Silva, Conde de Caxias (GEHM, [1983], p. 101).
No Mappa Geographico do Município de Passo Fundo, organizado e
desenhado por Antonino Xavier e publicado pela Intendência Municipal
em 1929, Campo do Meio é assinado como sede distrital.
Em obra publicada em 1981, Fidélis Dalcin Barbosa (1981, p. 30-31)
assim refere o Campo do Meio:
Atravessando o Mato Português, os tropeiros, soltando profundo suspiro de
alívio, defrontavam-se outra vez com o campo, o qual, por se situar entre o
Mato Português e o Mato Castelhano, foi batizado com o nome de Campo do
Meio. Os indígenas chamavam-no de Cariroí e os missionários Jesuítas, de
Potreiro Grande, porque nele pastavam seus rebanhos.
“Campo do Meio – diz Afonso Evaristo de Castro [...] – tem a extensão de seis
e meia léguas [39 km], que formam vastas e verdes campinas, cortadas por
mansos ribeiros, sombreadas aqui e ali por redondos e majestosos capões. Co-
locado assim entre um círculo, formado por espessa mata virgem, torna-se ba-
luarte inexpugnável, fazendo lembrar as remotas praças fortes dos romanos”.

266
Ney Eduardo Possapp d’Avila

No Campo do Meio, existem hoje vários povoados, como Ametista, Cruzalti-


nha, Santa Cecília, Água Santa, Tapejara, Muliterno...
O Mato Castelhano, que se dilatava até as proximidades onde mais tarde sur-
giu a cidade de Passo Fundo, constituía outra gravíssima preocupação para
os tropeiros e viajantes, diante da dificuldade de atravessá-lo e da ameaça de
novos ataques dos gentios. Atualmente, como sucedeu com o Mato Português,
o Mato Castelhano encontra-se inteiramente transformado em fértil região
agrícola, mediante a colonização por famílias de origem italiana, que funda-
ram ali florescentes povoados.
O nome desses dois matos remonta ao tempo das Reduções Jesuíticas e das
investidas dos bandeirantes, sendo, pois, anterior às guerras entre portugue-
ses e castelhanos. O nome surgiu na década de 1630, quando os Jesuítas fun-
daram aqui a Redução de Santa Teresa, e os portugueses preadores de índios
percorriam a região.

Relativamente à guarda do Mato Castelhano, ainda hoje existe um capão com


o nome de Capão da Guarda. O avô do Cel. João Fagundes de Sousa era pro-
prietário de uma fazenda no Campo do Meio que levava o nome de Fazenda
da Guarda Velha.

Em obra de 1978, descreve-o da seguinte forma:


[...] foi em 1819 que o tropeiro paulista João de Barros abriu o caminho entre
Cruz Alta e Vacaria, cruzando pela região dos Campos de Passo Fundo, Mato
Castelhano, Campo do Meio e Mato Português. A nova estrada proporcionou
a fixação de novos colonizadores na região da atual Lagoa Vermelha (BARBO-
SA, 1978, p. 17).

Campo do Meio: distrito de Passo Fundo


Apesar de o Campo do Meio haver sido, em 1847, constituído em
quarteirão, o 7º da freguesia de Passo Fundo, 4º distrito de Cruz Alta,
apenas em 1849 foi desligado do termo de Vacaria e integrado ao distrito
de Passo Fundo. Antonino Xavier refere que, “em 1849, foi incorporado
ao distrito [de Passo Fundo] o território do Campo do Meio que, até en-
tão, pertencera a Vacaria” (OLIVEIRA, 1990, v. 2, p. 78).
Em decorrência da emancipação político-administrativa de Passo
Fundo, ocorrida em 1857, a Câmara de Vereadores (resolução de 23 de
outubro de 1857) subdividiu o município em sete distritos, sendo Cam-
po do Meio o 2º distrito. No ano de 1858, realizado o censo demográfico
municipal, constatou-se, no distrito do Campo do Meio, um total de 665
habitantes, sendo 505 livres, 13 libertos e 147 escravos. Isso significa

267
Apontamentos para uma história do Campo do Meio

que cerca de 30% da população do Campo do Meio era constituída por


afrodescendentes. Os indígenas não eram contados (D’AVILA, 1996, p.
99 e 101). O censo de 1863, no item Comércio, Indústrias e Profissões,
registrou no 2° distrito, Campo do Meio: 1 loja de fazendas, 1 negócio de
molhados (gêneros alimentícios e outros), 1 engenho de erva, 2 olarias,
1 sapataria, 4 carretas, 5 carros, 2 alfaiates, 3 carpinteiros, 1 ourives
(OLIVEIRA, 1990, v. 2, p. 91).
No relatório da Câmara Municipal de Passo Fundo enviado à As-
sembleia Provincial, em 15 de fevereiro de 1874, é solicitada a criação
de uma aula8 para meninos no 2º distrito, Campo do Meio (OLIVEIRA,
1990, v. 2, p. 123-124; GEHM, 1982, p. 28).
Em 1877, ocorreram alterações administrativo-territoriais no mu-
nicípio. Foi criado o distrito do Alto Uruguai, Butiá: “terá a leste com o
Campo do Meio as mesmas divisas antigas do 1º distrito até a entrada do
Mato Castelhano [...]. O distrito do Campo do Meio continuará a ter os
mesmos limites atuais” (OLIVEIRA, 1990, v. 2, p. 133). A Lei Provincial
nº 1.091, de 02 de maio de 1877, confirmou o Campo do Meio como 2º dis-
trito e seus limites (FORTES; WAGNER, 1963, p. 313).
O engenheiro e matemático prussiano Max Beschoren (1989, p. 36-37),
que viveu em Passo Fundo de 1880 a 1882 e se dedicou a serviços de de-
marcação de terras e levantamentos geográficos, assim descreve o Cam-
po do Meio, em texto em alemão, publicado em Berlim em 1889, traduzi-
do e publicado no Brasil 100 anos depois:
Duas léguas [12 km] a nordeste de Passo Fundo, diante do Mato Castelha-
no, localiza-se a terceira e pequena vila, chamada “Povinho” e finalmente na
saída do Mato Castelhano está a pequena “Povo do Campo do Meio”. O Povo
do Campo do Meio agradece sua formação ao elemento alemão, que aqui são
compradores de pedra. É o lugar onde foram encontradas as mais valiosas
Ágatas e Calcedônias. Desde 1870 formou-se, aos poucos, o “Povo” que conta
atualmente com 36 casas e uma pequena e bonita capela. No ano de 1881, en-
contravam-se entre os alemães: um sapateiro, um negociante, um proprietário
e uma serraria. A população tende aumentar, com a vinda dos compradores de
pedras. Neste lugar, foi aberta uma picada que leva ao rio Taquari, e será de
grande importância.

8
Classes multisséries, sob a responsabilidade de um professor, que podiam ser particulares ou
subvencionadas pelo Poder Público.

268
Ney Eduardo Possapp d’Avila

Cabe observar que, no mapa da parte norte da província, 1886, de-


senhado por Beschoren, o povoado do Campo do Meio é assinalado com o
termo “povinho” e o número 720 (altitude). Todavia, no Mato Castelhano,
também está inscrito “povinho”. No traçado Strasse von Campo do meio
[sic] nachdem Passo de São Xavier, Rio Uruguay (Ost-West) – Estrada do
Campo do meio [sic] ao Passo de São Xavier, Rio Uruguai (Este-Oeste) –,
está anotado “Povo, Campo do Meio”.
Ainda ano de 1877, uma grande seca assolou a região; a Câmara
de Vereadores de Passo Fundo, no dia 14 de agosto, nomeou comissões
distritais de socorros públicos, colocando ao dispor de cada um a verba
para auxílios. A comissão de Campo do Meio foi constituída pelo capitão
Salvador Alves Resende (presidente), pelo tenente Porfírio José Duarte e
por Elias José de Oliveira. A verba foi de 250$000 (duzentos e cinquenta
mil réis) (OLIVEIRA, 1990, v. 2, p. 134-135).
No início do ano de 1879, funcionavam no município de Passo Fundo
cinco aulas públicas, sendo uma no Campo do Meio. Decorridos dez anos,
em janeiro de 1889, essa aula pública contava com 44 alunos, todos do
sexo masculino (OLIVEIRA, 1990, v. 2, p. 137 e 167).
Em 1880, o aldeamento dos índios coroados do Campo do Meio con-
tava com 95 indivíduos (OLIVEIRA, 1990, v. 2, p. 141).
Em 11 de outubro de 1884, a Câmara de Vereadores de Passo Fundo
constituiu comissões abolicionistas municipais. A do 2º distrito, Campo
do Meio, foi formada pelo tenente Porfírio José Duarte, por Joaquim An-
tônio de Mattos e por Ildefonso José de Oliveira (OLIVEIRA, 1990, v. 2,
p. 148).
Pela lei orçamentária aprovada na Assembleia Provincial, em 1888,
a Câmara Municipal de Passo Fundo ficou autorizada a contratar um ar-
ruador (demarcador de ruas) para o povoado do Campo do Meio ao custo
de 40$000 (quarenta mil réis) e a gastar 200$000 (duzentos mil réis) com
os serviços de fiscalização no distrito (OLIVEIRA, 1990, v. 2, p. 320).
Na época da Proclamação da República, possivelmente eram mili-
tantes republicanos no Campo do Meio: Ildefonso José de Oliveira e seus
filhos José Antônio, Alexandre, Diogo e Hemetério de Oliveira Penteado,
Ramon Rico, Leoncio Amando Ozana Rico, Sebastião Guerrico, Ovídio,
Policarpo, Atanázio José de Oliveira e Marcos de Oliveira Fortes (OLI-
VEIRA, 1990, v. 2, p. 398; GEHM, p. 118).

269
Apontamentos para uma história do Campo do Meio

No folheto preparado por Antonino Xavier e distribuído na exposi-


ção nacional realizada no Rio de Janeiro em 1908, sob o título Descrição
do município (OLIVEIRA, 1990, v. 1, p. 63-112), o 2º distrito, Campo do
Meio, figura com os seguintes dados:
Altitude na Coxilha Geral (Coxilha Grande do Albardão) no povinho de Cam-
po do Meio: 826 m.
A Coxilha Geral possui ramificações, a do povinho de Campo do Meio em dire-
ção ao município de Guaporé, separando as bacias dos rios Carreiro e Taquari
(Capingui).
População: 5.000 habitantes.
Aldeamento de índios no Ligeiro (seção do distrito, atualmente no município
de Tapejara).
Subdividido em 18 secções, cada secção era administrada por um Comissário
subordinado ao Subintendente distrital.
2º Distrito Policial ao encargo de um Subdelegado rural.
Uma aula pública de 1ª Entrância, para meninos, vaga (não houve matrículas
em 1907).
Eleitores: 331.
Estrada de rodagem dando acesso à cidade de Passo Fundo.
Estrada de rodagem dando acesso a Lagoa Vermelha.
Em breve, estrada de rodagem dando acesso à Colônia Guaporé (em constru-
ção pelo governo do Estado).

A povoação sede distrital é assim descrita:


Esta futurosa povoação está situada à orla oriental do Mato Castelhano, a 45
quilômetros a leste da cidade de Passo Fundo, em uma pitoresca eminência a
816 metros sobre o nível do mar.
Sua posição astronômica é aos 28º30’ de latitude austral de 8º40’ de longitude
oeste do meridiano do Rio de Janeiro.
Dispõe de um comércio ativo, sustentado principalmente pela exportação do
gado, erva-mate e pedras preciosas.
É sede do 2º distrito administrativo.
Sua população deve orçar por umas 500 almas.

No capítulo vinte, que trata do município de Passo Fundo, da obra


As missões orientais e seus antigos domínios, publicada em 1909 e escrita
por juiz de direito da comarca de Cruz Alta que visitou Passo Fundo em
1861 e 1865, o distrito do Campo do Meio é descrito:

270
Ney Eduardo Possapp d’Avila

Contém, com a cordilheira, que por todos os lados o circunda, 342 quilômetros
quadrados, mais ou menos, sendo seus limites: o rio Uruguai, desde a conflu-
ência do Forquilha, subindo por este até o Mato Português, pela contraverten-
te, que deságua no rio Ligeiro, ao Sul pelo Mato Castelhano, a Leste e Oeste
pelas duas cordilheiras, que nesses dois rumos unem os dois matos Castelha-
no e Português, formando um polígono irregular.
Esse campo era precisamente o caminho por onde deveriam transitar os tro-
peiros e viandantes em viagem de São Paulo ou de Vacaria em direção a Passo
Fundo e mais terras missioneiras, ou, vice- versa, destas para outros pontos.
Em 1866, mais ou menos, fundaram no Campo do Meio, três quilômetros além
da extremidade Leste da estrada que corta o Mato Castelhano, a povoação que
ainda existe.
A estrada, que pelo meio corta-a, ficou sendo a rua principal e a frente das
casas que se construíram nas margens Norte e Sul.
Tomou parte nessa fundação o Major Theodoro da Rocha Ribeiro que, com o
concurso dos fiéis, fez edificar uma capela dedicada a Nossa Senhora da Con-
ceição Aparecida [sic], mas confiou a execução a um intitulado mestre de obras
e este fez um trabalho tal, que logo desabou.
Os proprietários das casas que se construíram tais como: Manoel de Quadros,
Antônio Alves de Rezende, Januário Nunes de Camargo, Manuel de Albu-
querque, e o velho João Paz incumbiram a Antônio de Paula Matos a constru-
ção da nova capela e esta (que ainda perdura) ficou ao Sul da estrada.
Prosperou consideravelmente a nova povoação, mas, apesar de elevada a paró-
quia por lei de 16 de outubro de 1880, nunca conseguiu provimento canônico.
Durante a última guerra civil [Revolução Federalista, 1893-1895], houve um
abandono quase geral da povoação. Ultimamente reencentou [sic] o seu pro-
gresso e conta 52 casas habitadas sendo 6 comerciais, e é de crer não seja
entorpecido esse desenvolvimento por causas, como as que infelizmente de-
ram-se.
A população do distrito de Campo do Meio atinge a 4.000 almas e destas uma
sétima parte [570] será a da povoação.
Quem estiver na cidade de Passo Fundo e quiser, através desse distrito chegar
até Lagoa Vermelha, chamada pelos tropeiros Birivas, Passo Fundo de Cá, ob-
servará precisamente o itinerário seguinte: - o arroio Passo Fundo, os campos
de Dona Rosa, o Lageado, o lugarejo chamado A Entrada, o Mato Castelhano a
capela e povoado de Nossa Senhora da Conceição, as estâncias de Ramon Rico,
de Manoel Machado de Albuquerque, dos herdeiros de Francisco de Oliveira,
o Mato Português, as terras da extinta colônia Caceros e a Lagoa Vermelha,
que, sendo fundada em 1848, pouco ou nada excede a povoação de Campo do
Meio (SILVEIRA, 1997, p. 294-296).

Cabe notar que, segundo Silveira (1997), no início do século XX, épo-
ca da redação final da obra As missões orientais e seus antigos domínios,
o número de habitantes do povoado de Campo do Meio era aproximada-
mente o mesmo da população da vila de Lagoa Vermelha.

271
Apontamentos para uma história do Campo do Meio

No Dicionário geográfico do município de Passo Fundo, consta a se-


guinte definição:
Campo do Meio – Povoação no município de Passo Fundo sede do 2º Distrito
municipal. Foi fundada no ano de 1866 e conta atualmente uns 80 prédios e
400 habitantes. Está situada à beira da estrada geral, sobre um plateau a 733
m de altitude. Conta com uma Igreja, dedicada a Nossa Senhora Aparecida.
Campo do Meio – Planalto no município de Passo Fundo (1914 apud GEHM,
[1983], p. 142).

O jornal passo-fundense O gaúcho, na edição de 1º de abril de 1916,


publicou a lista dos professores estaduais encarregados das aulas públi-
cas no município, em que consta: “2º distrito – Campo do Meio – Zeferino
Guisti” (GEHM, 1978, p. 85).
Em ofício datado de 23 de junho de 1917, dirigido ao intendente
municipal tenente-coronel Pedro Lopes de Oliveira, Francisco Antonino
Xavier de Oliveira presta contas da propaganda agrícola por ele reali-
zada, de acordo com encargo oficial, nos distritos. Em vários trechos, há
referências ao Campo do Meio:
Indo depois ao 2º distrito, fiz-me ouvir em Campo do Meio, sua sede, em reu-
nião bastante concorrida, formada por moradores de vários pontos da circuns-
crição, lançando também a propaganda no Mato Castelhano, onde já existe
bom número de colonos com florescente agricultura.
Como resultado da propaganda, estão já constituídos dois sindicatos para essa
cultura [trigo], sendo um em Campo do Meio e outro em Marau.9

Em maio de 1926, Antonino Xavier foi encarregado pela intendência


de mais uma campanha agrícola, desta vez focada na cultura do trigo,
percorrendo os distritos (GEHM, 1978, p. 122). Não foi encontrado rela-
tório dessa campanha, que naturalmente incluiu o Campo do Meio.
Em dezembro de 1922, quando no município os maragatos e dissi-
dentes do Partido Republicano Rio-grandense, liderados pelo deputado
estadual federalista Arthur Caetano e pelo chimango dissidente coronel
Lolico, preparavam a guerra civil, deflagrada em 24 de janeiro 1923, con-
tra a permanência de Borges de Medeiros por mais um mandato, distin-
guiram-se pela adesão à revolta libertadora de Carazinho (4º distrito),
Coxilha (3º distrito) e Campo do Meio (2º distrito) (GEHM, 1978, p. 101).
9
Ofício enviado por Francisco Antonino Xavier de Oliveira ao Intendente Municipal Tenente-co-
ronel Pedro Lopes de Oliveira. Passo Fundo, 23 de junho de 1917. Ver: Oliveira (1990, v. 1,
p. 151-166).

272
Ney Eduardo Possapp d’Avila

No rol das capelas atendidas pela paróquia de Nossa Senhora da


Conceição de Passo Fundo, no ano de 1925, consta a Capela de Nossa
Senhora da Conceição do Campo do Meio (GEHM, [1983], p. 172).
Na reunião de organização do diretório municipal da Aliança Liber-
tadora de Passo Fundo, realizada em 12 de fevereiro de 1928, os oposicio-
nistas do Campo do Meio foram representados pelo coronel Quim Cesar,
um dos comandantes rebeldes em 1923. Em 03 outubro de 1930, Quim
Cesar comandou o 2o grupo do contingente revolucionário que ocupou
a cidade e cercou o quartel da Terceira Região Militar/8º Regimento de
Infantaria. À noite foi pessoalmente apresentar ao coronel Estevão Lei-
tão de Carvalho as exigências dos revolucionários. Depois seguiu para a
frente de combate em São Paulo. Boa parte do grupamento comandado
pelo coronel Quim Cesar era gente do Campo do Meio.
No opúsculo publicado em junho de 1934, sob o título Passo Fundo
físico, Antonino destaca o Campo do Meio em vários aspetos, principal-
mente em três âmbitos:
No aspecto mineralógico, porém, graças principalmente às duas exposições
estadual de 1901, realizada em Porto Alegre, e nacional de 1908, no Rio de
Janeiro, já algo apresenta que autoriza a conclusão de talvez poder o seu solo
de futuro, vir a concorrer com elementos da espécie para a economia comunal,
conforme em velho tempo aconteceu com a pedra ágata de Campo do meio,
então objeto de animada exportação para a Alemanha e que era e é tão abun-
dante naquele distrito, que em certos pontos deste se mostra a descoberto ao
olhar do viajante que passa. É certo que hoje se explora lá, mas em escala
que muito pouco atua no giro mercantil da própria circunscrição. Segundo
informação contemporânea, a queda assim operada e que se verificou ainda no
império, teve por causa da descoberta de grandes jazidas da espécie na África,
naturalmente muito mais próxima do mercado alemão [...]. [Rio] Carreiro. É
divisa do Município [de Passo Fundo] com o de Lagoa Vermelha, no 2º distri-
to. [...] dignos de referência os [saltos] do Cachoeirão, do Carreiro, do Quaraí
[Quatipi], do Santo Antônio e da Vespeira, no 2º distrito (OLIVEIRA, 1990,
v. 1, p. 199-221).

Em 1938, o povoado do Campo do Meio tornou-se a Vila de Campo


do Meio. O Decreto no 7.199, de 31 de março de 1938, em cumprimento
ao Decreto-Lei nº 311, de 02 de março de 1938, estabeleceu as divisões
administrativa e judiciária do Rio Grande do Sul. As sedes municipais
com categoria de vila foram elevadas à categoria de cidade. E os povoa-
dos sedes-distritais foram elevados à categoria de vila.

273
Apontamentos para uma história do Campo do Meio

A sede distrital contou com cartório de notas e registro de imóveis.


Na legislatura 1951-1955, o distrito do Campo do Meio esteve represen-
tado na Câmara Municipal de Vereadores pelo agropecuarista João Jac-
ques. Ele era fazendeiro no distrito, natural de André da Rocha, casado
com Alcídia Fernandes, de família de proprietários no Campo do Meio.
João Jacques também foi presidente do Sindicato Rural de Passo Fundo.

Ametista ou ametistas?
“O Decreto-Lei no 720, de 29 de dezembro de 1944, altera o nome da
sede do 2º distrito de Campo do Meio para Vila Ametistas” (FORTES;
WAGNER, 1963, p. 315). O Decreto-Lei n° 720 foi assinado pelo prefeito
Arthur Ferreira Filho e alterou os nomes de Sede Teixeira para Tapejara
e de Campo do Meio para Ametista.
Em 07 de junho de 1966, a Lei Municipal nº 1.214, assinada pelo
prefeito Mário Menegaz, remodelou a divisão administrativa do municí-
pio e reverteu a denominação do 2º distrito de Ametista para Campo do
Meio e, por consequência, a da vila sede distrital.
Houve desencontro de nomenclatura. Na mesma página 315, os au-
tores, ao relacionarem “Distritos atuais” (1963), repetem “Ametistas”
como 2o Distrito de Passo Fundo. Porém, o coronel Mário Calvet Fagun-
des, em Passo Fundo: Estudo Geográfico do Município – publicado em
1962, reprodução de separata do Boletim Geográfico do Rio Grande do
Sul, no 12, julho a dezembro de 1961 –, ao tratar dos distritos, cita “Ame-
tista” (páginas 22 e 23), mas, ao referir-se às altitudes, cita o “Campo
do Meio” (página 17). No mapa localizado na página 8 – desenhado por
Gilberto P. Fagundes, da Secção de Geografia, 1962, e reproduzido a par-
tir do Trecho da Carta da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul,
1868 –, consta “Campos do Meio” (FAGUNDES, 1962).
Antonino Xavier, em publicações posteriores ao Decreto-Lei no 720,
reeditadas em 1957, ora refere “Ametistas”, ora “Campo do Meio”, ora
“Campo do Meio, hoje Ametistas” (OLIVEIRA, 1990, v. 1).
No Relatório dos Exercícios 1952-1954, do prefeito Daniel Dipp, à
Câmara Municipal de Vereadores, em três itens, na página 10, Distrito de
Ametista, ou simplesmente Ametista, é citado duas vezes em cada item.

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Ney Eduardo Possapp d’Avila

No mapa oficial do município de Passo Fundo, durante a gestão


de Wolmar Salton, 1957, desenhado pelo agrimensor Caio Moogen Ma-
chado, consta “Ametista” (categoria vila). Não obstante, na legenda do
mapa, consta “Distâncias da cidade de Passo Fundo às sedes dos distri-
tos – Passo Fundo a Campo do Meio 42 km”. No mesmo mapa, o distrito,
além de “Ametista”, localidade sinalizada com o símbolo de vila (sede
distrital), figura com a indicação de povoado, “Mato Castelhano”, e de
núcleo colonial, “Tijuco Preto”, “Campina”, “Cruzaltinha”, “S. Sebastião
do Quaraim”, “S. Salvador”, “S. João Bosco”.
No mapa do estado do Rio Grande do Sul, em “Atlas Geográfico”,
entre as cidades de Passo Fundo e Lagoa Vermelha, consta “Ametista”
e “Caseiros”, assinalados como vilas ao longo da estrada de rodagem
(PAUWELS, 1966, p. 76).
Em Censos do RS: 1803-1950, publicados em 1981 pela Fundação
de Economia e Estatística, no item “Municípios existentes e respectivos
distritos”, ano 1900, página 102, consta: “Passo Fundo – 2º Campo do
Meio”; ano 1920, página 119: “Passo Fundo – 2º Campo do Meio”; ano
1940, página 140: “Passo Fundo – Campo do Meio”; ano 1950, página
168: “Passo Fundo – Ametistas” (FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTA-
TÍSTICA, 1981).
Em publicação de novembro de 1974, da Fundação de Economia e
Estatística (FEE), sobre o município de Passo Fundo na lista de distritos,
consta “Campo do Meio”. Segundo dados do censo demográfico de 1970
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, sob o título “Aspectos
demográficos”, Campo do Meio (distrito) consta com população total de
4.560: urbana, 240; e rural, 4.320 (FEE, 1974).
Em obra publicada em 1981, Fidélis Dalcin Barbosa (1981, p. 30)
registra o seguinte: “No Campo do Meio, existem hoje vários povoados,
como Ametista [...]”.
Atualmente, segundo informação de morador, na vila, os Correios e
a empresa rodoviária ainda usam Ametista.

275
Apontamentos para uma história do Campo do Meio

A economia de Campo do Meio


Em meados do século XIX, a economia do município de Passo Fundo
baseava-se no tripé: erva-mate, mulas e pedras. No relatório da câmara
de 1874, citado anteriormente, consta o comércio de exportação de mua-
res para a feira de Sorocaba, de erva-mate para os mercados do Uruguai
e Rio da Prata e da pedra ágata para as fábricas da Alemanha. A base
econômica do distrito Campo do Meio também era a erva, as mulas e as
pedras. Cabe assinalar que quase a totalidade das pedras exportadas por
Passo Fundo provinha daquele distrito. No relatório, lê-se:
[...] o município, quase todo ele, é uma vasta jazida de pedras ágatas [...]. As
pedras desta espécie, listradas, até agora encontradas no Campo do Meio, são
muito estimadas na Alemanha, e preferidas nas fábricas, onde a matéria-pri-
ma se transforma pela indústria humana em delicados artefatos (OLIVEIRA,
1990, v. 2, p. 124-127).

No opúsculo O elemento estrangeiro no povoamento de Passo Fundo,


coletânea de artigos publicados em O nacional, de 25 de setembro a 11
de novembro de 1931, editada em 1949 e reeditada em 1957, Antonino
Xavier refere: “a exploração da pedra ágata e seu comércio, feito com
a Alemanha foi causa de se dirigirem a Campo do Meio, no período da
guerra do Paraguai e depois vários elementos alemães que lá estaciona-
ram, uns temporária, outros definitivamente” (OLIVEIRA, 1990, v. 2,
p. 251-285). Acrescenta-se em nota de pé de página: “perdeu este comér-
cio a animação que teve, devido à exploração do gênero na África, de onde
chegava mais barato à Alemanha”.
Cita-se haver ali permanecido: Jorge Heinemann (que teve casa co-
mercial também na sede do distrito, onde faleceu em 1920, com 101 anos
de idade), João Felipe Dreher, Carlos Dreher, Guilherme Leyser e seu
irmão Adolfo Leyser, ambos sobrinhos de Jacob Culmann. Estiveram ali
estabelecidos por algum tempo: Jacob Culmann e seus primos, os irmãos
João Pedro Culmann e Julio Culmann, Frederico Dihl, Carlos Ludwig,
Carlos Mohr, Guilherme Fetzer e Carlos Becker (que residia em Porto
Alegre), representado pelo preposto Peter Lorenz. Além desses alemães,
lidaram com pedra, no distrito, os irmãos portugueses Alfredo Aguilar
e Roberto Aguilar, o italiano José Muliterno (fazendeiro no Ligeiro), o
espanhol Felix Cantalício de Luvara e o argentino Ramon Rico (OLI-

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Ney Eduardo Possapp d’Avila

VEIRA, 1990, v. 2, p. 278-280). Do rol, não consta o alemão, pedrista no


Campo do Meio, Jacob Kurtz, que fixou moradia na entrada do Mato
Castelhano, irmão do intendente municipal Frederico Guilherme Kurtz
(1891-1893). Antonino Xavier (OLIVEIRA, 1990) não se ocupou dos que
arrancavam e carregavam as pedras.
Do folheto para a Exposição Nacional de 1908, sob o título Catálogo
de produtos, constam os seguintes itens, os quais podem dar uma ideia
a respeito da economia do 2º distrito, Campo do Meio, no início do século
XX:
Minerais, Expositores:
Dona Camila Duarte Fagundes
3 amostras de minério de ferro,
(classificado como limonito na Exposição Estadual 1901).
Produtos Industriais, Expositores:
Carlos Dreher
Expõe as seguintes amostras de preparados de carne:
1 de salame; 1 de gelatina; 1 de filé; 1 de presunto; 1 de mortadela.
Adolpho Leitzer & Cia.
1 vaqueta. 2 couros, curtidos.
Ciências e Artes, Expositores:
Fortunato José Ferreira
Vistas fotográficas:
1.Passagem do Bispo D. João Pimenta pela povoação do Campo do Meio.
2.Grupos de índios coroados.
Elias Nunes Vieira
1 vista da fazenda de criar, de Geraldo Nunes Vieira.
Dr. Constantino Piescheck
1 vista de seu estabelecimento agrícola (OLIVEIRA, 1990, v. 1, p. 116-145).

No período em pauta (início do século XX), a extração de pedra per-


deu, conforme assinalado, importância econômica não apenas pelo mo-
tivo apontado por Antonino, a concorrência com as pedras provenientes
da África, mas principalmente pela forma predatória de sua extração e
por não haver sido criada uma indústria que agregasse valor ao produto
primário, exportado em bruto. A erva-mate também decaiu, os principais
motivos foram o descrédito do produto, causado pela “ambição desvaira-
da que de tudo abusa, lançando mão da fraude, falsificou a manipulação
desta indústria [ervateira] [...]. Campeia altiva a especulação. O macha-
do destruidor e o fogo trabalham na extinção da árvore preciosa, que
cada vez se torna mais rara e distante” (OLIVEIRA, 1990, v. 2, p. 125).
Assim denunciaram os vereadores passo-fundenses no relatório de 1874.

277
Apontamentos para uma história do Campo do Meio

Restou a pecuária, em especial, com a expansão das fazendas de criar


de gado bovino. As atividades ligadas à pecuária de bovinos, equinos e
muares eram favorecidas pela antiga estrada tropeira que atravessava o
povoado e o distrito. Conforme registro da Intendência Municipal, em 31
de março de 1902, estavam arroladas no 2º distrito, Campo do Meio, para
pagamento do imposto pecuário, 4.535 cabeças de gado vacum, cavalar e
muar (GEHM, 1978, p. 63).

Ferrovia em Campo do Meio


Poucos sabem deste projeto que, se tivesse sido efetivado, teria mo-
dificado radicalmente a vida socioeconômica e política do Campo do Meio.
Na década de 1920, levando em conta que o Ministério da Viação e
o governo estadual pretendiam construir vários ramais férreos, a Inten-
dência Municipal de Passo Fundo encomendou a Antonino Xavier o pro-
jeto de via férrea ligando Iraí a Porto Alegre. No opúsculo À Margem de
um Problema Ferroviário, publicado em 1932, Antonino aborda o tema
com detalhes importantes (OLIVEIRA, 1990, v. 1, p. 169-194).
O ramal proposto iniciava em Iraí, passava pelo Campo do Meio, es-
tendia-se até Garibaldi, onde atingia os ramais que, de Bento Gonçalves
e de Caxias do Sul, seguiam a Porto Alegre. Em Passo Fundo, esse ramal
fazia conexão com a ferrovia que ligava o estado a São Paulo. No trajeto,
surgiriam três novas estações: Iraí, Campo do Meio e Guaporé. Dessarte,
a vila do Campo do Meio disporia de estação ferroviária.

A questão indígena: “Nunca vimos índios aqui”


É recorrente encontrar pessoas idosas na região, pessoas com mais
de 70 anos de idade, com afirmações do tipo: “Nunca vimos índios aqui”.
É compreensível que “Nunca vimos índios aqui”, pois, quando nossos
avós chegaram na região, alguns índios haviam sido assassinados, e
outros, fugido para longe. O genocídio já tinha acontecido. O etnocídio
estava acontecendo. Para completar o “trabalho” de apagar a presença
ancestral, recentemente, no final do século XX e início do século XXI,
sojicultores lavraram terras de forma a esconder e destruir os sinais da

278
Ney Eduardo Possapp d’Avila

cultura material indígena que ainda persistia na região.


Todo o atual estado do Rio Grande do Sul esteve povoado por dife-
rentes parcialidades indígenas desde milênios. Os ascendentes dos atu-
ais kaingang (denominação genérica, tal qual pinarés, coroados, bugres,
dada ao conjunto de diversas parcialidades Jê) chegaram aos matos e
ao Campo do Meio em data mais recente, talvez há 500 anos. No início
da década de 1630, padres jesuítas espanhóis realizaram incursões pelo
Norte do Rio Grande do Sul com o fito de catequisar os indígenas. Em
razão de forte oposição dos Jê (representados pelos atuais kaingang),
os jesuítas só conseguiram fundar uma missão catequética na área do
cacique Guaraé, com índios guaranizados. A redução de Santa Tereza
d’Avila (também conhecida como Curiti, Piñales y Yerbazales e Pinhais)
nas nascentes do Ygaí (Rio Jacuí), divisa dos atuais municípios de Passo
Fundo e Mato Castelhano, foi instalada oficialmente no Natal de 1632.
Em março de 1633, foi transferida para a jusante do rio Jacuí, lugar
conhecido atualmente como Pessegueiro, distrito do Pulador. No Natal
de 1637, um grupamento de bandeirantes, comandado por André Fer-
nandes, expulsou os padres da Companhia de Jesus e ali estabeleceu o
Arraial do Ygaí, entreposto bandeirante por cerca de 30 anos (D’AVILA,
1996, p. 28-33).
Os kaingang pertencem ao grupo Jê ou Tapuia. A língua que falam
é diferente das faladas pelos tupis-guaranis. No Sul do Brasil, a denomi-
nação “bugre” foi aplicada genericamente ao indígena não guarani, par-
ticularmente ao kaingang, talvez pela sua maior resistência em aceitar a
dominação do homem branco. Bugre é uma designação muito pejorativa.
Entre os cristãos da Europa ocidental, foi usada para designar aqueles
que seguiam outros preceitos religiosos. Búlgaro e Bulgária, possivel-
mente, têm a mesma origem (D’AVILA, 1996, p. 28).
Em conferência pronunciada em 07 de agosto de 1923, no Clube
União Comercial de Passo Fundo, Antonino Xavier destacou a atuação
dos kaingang, referidos como coroados, no período pós-jesuítico na re-
gião:

279
Apontamentos para uma história do Campo do Meio

Já nesse tempo [século XVII] os coroados, cujos descendentes remotos se en-


contram ainda hoje [1923] nos nossos aldeamentos do [rio] Ligeiro [Apuaê] e
do Carreteiro, faziam incursões nesta parte das Missões, dada a circunstância
de que os guaranis dos velhos povos, situavam-se na parte ocidental das mes-
mas, como se vê na História, tinham pronunciado pavor dos tupis, etnologia
[sic] em que são classificados aqueles derradeiros representantes da terrível
nação que tanto sobressaltou os primeiros dias [a partir de 1827] do povoa-
mento de Passo Fundo pela corrente brasileira civilizada. [...] a parte oriental
do território missioneiro transformada em domínio dos referidos coroados que
a partir da destruição dos povos jesuíticos, ocorrida na citada guerra [“guara-
nítica”, 1753-1756] que Portugal e Espanha moveram a estes, ‒ começaram
a estender pelas florestas do antigo Tape, expelindo os guaranis que, nesta e
outras partes orientais do mesmo, retinham ainda a velha posse oriunda de
seus ancestrais” (OLIVEIRA, 1990, v. 2, p. 191-192).

Por volta do ano de 1828, estabeleceu-se, à entrada do Mato Cas-


telhano, o paulista José Domingos Nunes de Oliveira, casado com uma
índia kaingang. Conhecido como bugreiro, foi guia, vaqueano e protetor
das caravanas que transitavam pelo Campo Meio em ambos os sentidos.
Por causa dessa “proteção”, os caravaneiros não eram atacados pelos ín-
dios (OLIVEIRA, 1990, v. 2, p. 217-218 e 362):
José Domingos [estabeleceu-se] à entrada do Mato Castelhano, onde travou
relações amistosas com os índios selvagens e tornou-se o protetor dos viandan-
tes, que indo com ele escapavam de serem mortos. Devido a influência desse
velho, puderam estabelecer-se em Campo do Meio os cidadãos: Manoel José de
Quadros, Antônio Alves de Rezende, Isaias Pacheco de Quadros (ourives), um
velho Rosa que faleceu com mais de cem anos [...] (SILVEIRA, 1997, p. 291).

Sob o título “A ferocidade dos índios coroados”, Delma Rosendo


Gehm (1978, p. 16) refere:
[...] valeu muito, nessa fase [1835] da vida passo-fundense, a intervenção do
bugreiro (branco amigo dos índios e que servia, de guia, aos que necessitassem
atravessar as matas do Mato Castelhano e Campo do Meio), José Domingos
Nunes de Oliveira (morador da estrada [sic] do Mato Castelhano) e José de
Quadros (Campo do Meio).

Em “Passo Fundo na Revolução de 1835”, publicação de 1943, An-


tonino Xavier relata que, no 4º distrito de Cruz Alta, Passo Fundo, deve-
riam existir, quando do início da guerra civil, segundo recenseamento do
ano anterior,

280
Ney Eduardo Possapp d’Avila

[...] cerca de 140 fogões (residências unifamiliares) sem dúvida, circunscritos,


aos campos, de vez que as matas eram infestadas por índios coroados, mais
conhecidos como bugres, e que, bravios e nutrindo implacável ódio à gente
civilizada, naturalmente constituiriam sério obstáculo a que essa se estabele-
cesse nelas (OLIVEIRA, 1990, v. 2, p. 337-338).

Conforme relatado, em 1835, o Campo do Meio estava subordinado


a Vacaria, apenas em 1849 integrou o distrito do Passo Fundo.
No folheto, já citado, distribuído na Exposição Nacional de 1908,
realizada na capital federal da época, Rio de Janeiro, Antonino Xavier
é bem mais explícito em relação aos indígenas. Transparece a intenção,
certamente determinada pela intendência municipal quando encomen-
dou o trabalho, de tranquilizar os empresários, com intuito de estabele-
cer relações ou negócios em Passo Fundo.
De então [1835] a 1856, [o distrito de Passo Fundo] prosperou bastante, a
despeito das graves perturbações que o assaltaram nesse período, promovidas
pelos índios coroados que, de tempos em tempos, dando pasto [ou lugar] ao seu
intenso ódio à raça branca, acometiam, traiçoeiramente, os moradores e via-
jantes, fazendo horríveis carnificinas em represália das quais as autoridades
e mesmo os particulares organizavam escoltas numerosas e iam batê-los nas
brenhas, exterminando, às vezes, tribos inteiras. Afinal esses índios já muito
reduzidos em número, submeteram-se ao governo provincial, sendo aldeados
em Nonoai e na ex-colônia Caseiros, do Mato Português (OLIVEIRA, 1990,
v. 1, p. 63-64).

Depois de informar que a população municipal era constituída por


85% nacionais e 15% estrangeiros (com predominância de alemães e ita-
lianos), acrescenta:
A raça americana (1% [sic] da população) é representada pelos índios coroa-
dos, descendentes dos antigos dominadores do território. Conquanto ainda vi-
vam pelas selvas, conservando uma grande parte de seus primitivos costumes,
acham-se em contato com a civilização e não cometem atentados contra esta.
Em sua maior parte vivem da caça e frutos silvestres, sendo diminuto o núme-
ro dos que têm domicílio constante, cuidam regularmente da agricultura, cujo
viver sedentário não se coaduna com os hábitos errantes deles.
Sua indústria consiste no preparo de arcos e flechas, cordas, chapéus balaios
e outros artefatos feitos de embira, imbu [o correto é imbé, ou goimbé, Philo-
dendron imbe], taquara e outras fibras, artigos estes que saem a vender pelos
lugares povoados.
A bigamia não existe entre eles.
Em sua maioria, são batizados e casados na religião católica.
O analfabetismo é geral entre eles.

281
Apontamentos para uma história do Campo do Meio

Seus principais aldeamentos são localizados no Campo do Meio, no Ligeiro,


em Erechim e em Votoro.
Os chefes dos mesmos usam o posto de major, tenente-coronel e coronel, e têm
auxiliares que também são tratados por postos militares.
A intendência municipal tem várias vezes feito distribuir entre eles ferramen-
tas e sementes para o trabalho agrícola e mesmo procurado aldeá-los em um
só ponto, a fim de prover a sua instrução intelectual e profissional, para o que
obteve do governo do Estado uma zona de excelentes terras na confluência dos
rios do Peixe e Ligeiro.
A medida, porém, foi improfícua, em vista das grandes divergências que rei-
nam entre os diferentes grupos.
Excluída esta insignificante parcela do seu todo, a população do município é
digna cultora das tradições cavalheirescas do Rio Grande do Sul (OLIVEIRA,
1990, v. 1, p. 78-79).

Antonino Xavier, referindo episódio que teria acontecido no povoado


do Passo Fundo, na segunda metade da década de 1830, uma mal inven-
tada lenda recolhida da tradição oral de antigos moradores, escreve:
Os índios coroados – os bugres, como eram e são ainda hoje [1923] chamados
esses pobres selvícolas que a própria civilização compeliu a serem maus na-
queles tempos, visto que os perseguiu, dizimou e escravizou nos sertões de São
Paulo, obrigando-os assim a buscarem refúgio nas brenhas remotas do Rio
Grande do Sul – tinham vindo, favorecidos pelo espesso mato da serra geral,
colocar-se de alcatéia no ponto referido [redondezas da atual Praça Marechal
Floriano], aguardando momento próprio que lhes seria delatado por comparsa
posto de vigia em alto pinheiro – para assalto à povoação [situada então ao
longo da atual Av. Brasil entre as ruas XV de Novembro e 10 de Abril e ar-
redores da atual Praça Tamandaré]. Assim preparado o golpe, em que, como
era praxe de tais índios, teria parte saliente na chacina o tremendo cacete de
quatro quinas [espécie de tacape], falquejado depois de competente sapeca,
para que mais rijo se tornasse, e que manejado por um fiel de embira [espécie
de corda] que se prendia à mão hercúlea do índio [...] (OLIVEIRA, 1990, v. 2,
p. 209-210).

Esse “causo”, intitulado Aritmética, tem um prosseguimento e final


esdrúxulo, preconceituoso em relação à inteligência do indígena. Está
repetido com algumas modificações em Gehm (1978, p. 16).
O engenheiro, agrimensor e antropólogo Alphonse Mabilde, encar-
regado da abertura de estradas nas matas do planalto rio-grandense, faz
muitas referências aos kaingang em seus “Apontamentos. 1836-1866”.

282
Ney Eduardo Possapp d’Avila

Em uma excursão que fizemos nas matas que ficam ao sul do Mato Caste-
lhano, encontramos em 16 de fevereiro de 1836, um campo no meio daquele
sertão [...] havia sete túmulos de selvagens [...] que estavam todos cobertos
de relva. Era aquele lugar um antigo cemitério de uma tribo de indígenas
selvagens.
Nhucoré, conhecido como “Chico sem nariz” (esse no Campo do Meio) [...] tem
permanecido com sua tribo a maior parte do tempo nos Campos do Meio, nos
fundos da Fazenda de Diogo José de Oliveira.
Nas matas compreendidas entre os campos de Passo Fundo e os de Vacaria
– matas essas que abrangem o Mato Castelhano, foi o ponto em que se con-
centravam os Coroados – existia uma grande tribo da Nação Coroada, da qual
era cacique principal o Coroado Braga [...]. Ao saírem das matas, em maio
de 1850, o cacique Braga e 304 selvagens aldearam-se, provisoriamente, nos
fundos dos Campos de Vacaria, na estância do Sr. Manoel de Vargas, num
rincão sobre a margem esquerda do rio Turvo, donde, no fim de dois meses,
foram removidos para os Campos do Meio onde se aldearam definitivamente
(TEDESCO, 2014, p. 168-171).

“Em 1880, o aldeamento dos índios coroados [atuais kaingang]


do Campo do Meio contava com 95 indivíduos” (OLIVEIRA, 1990, v. 2,
p. 141). Em suas Memórias, o corsário italiano Giuseppe Garibaldi, um
dos generais da Revolução Farroupilha, relata que os kaingang, que re-
fere por bugres, armaram ao general legalista – o mercenário francês
Pedro Labatut, que tentava atravessar os matos (final de 1840) – em-
boscadas, montaram armadilhas e alçapões, causando muitos prejuízos.
Contrariamente, quando passaram pelos matos os rebeldes farroupilhas,
estes receberam o apoio dos kaingang. Garibaldi acrescenta: “enquanto a
nós não nos causaram a mais pequena inquietação e ainda que houvesse
no caminho muitos d’esses alçapões, que os índios colocam na passagem
dos seus inimigos, rodos se achavam descobertos em lugar de estarem
disfarçados com ramos de arvores, segundo o costume” (DUMAS, 1907,
p. 134-135).
A afirmação de Gehm ([1983], p. 101), em 1846, “[...] a construção da
estrada mandada abrir [na verdade, alargar] pelo Conde de Caxias [Pre-
sidente da Província e Comandante de Armas] [...]”, refere a estrada que
pelo Campo do Meio ligava Passo Fundo a Lagoa Vermelha. No relatório
à Assembleia Provincial, datado de 1o de março de 1846, ao justificar os
recursos despendidos, informa-se:

283
Apontamentos para uma história do Campo do Meio

Para afugentar os bugres selvagens que atacam os viajantes nas picadas dos
matos Português e Castelhano ordenei ao Ten. Cel. Antônio Maia, comandan-
te do 2º Batalhão de Caçadores e da guarnição de Cruz Alta, que mandasse
alargar com mais 20 braças as duas picadas na extensão de 2 léguas e meia
[15 km] pelo Mato Português e de meia légua [3 km] pelo Mato Castelhano,
empregando nesse serviço para maior economia 100 praças do dito batalhão,
vencendo a gratificação de 200 réis diários e autorizando-o a chamar paisanos
habilitados a esse trabalho (ZARTH, 1986, p. 34-35).

Os “paisanos habilitados” eram índios kaingang e caboclos habitan-


tes das redondezas.
Em 1º de outubro de 1852, o vice-presidente da Província, Oliveira
Bello, no exercício da presidência, em relatório à assembleia provincial,
apontava os dois sistemas da “política indigenista” provincial, ambos
sem os resultados esperados:
O sistema de força e o de persuasão, empregados separadamente para tirar
dos matos os nossos indígenas, têm sido ambos improfícuos. Até aqui nos te-
mos limitado: 1º, A atrair os índios por meio de algumas roupas e ferramentas
distribuídas nas aldeias de Nonoai e Guarita, e a conservá-los ali pelos esfor-
ços dos padres jesuítas: de catequização propriamente dita pouco se tem feito,
sem dúvida porque aqueles padres ignoram a língua, em que deveriam dirigir
as palavras de conversão. 2º, Abater os índios, persegui-los e matá-los, quan-
do eles têm feito alguma agressão e a colocar guardas por algum tempo nos
lugares por onde eles têm agredido. Pela simples enunciação se vê que estes
dois sistemas são incompletos; e a experiência os têm condenado. Os índios re-
cebem roupas e ferramentas e voltam às matas. Batidos e perseguidos depois
da agressão, reaparecem mais hostis em outros lugares, não sendo possível
colocar guardas em todos aqueles por onde eles fazem os seus assaltos [...]
(apud ZARTH, 1986, p. 34).

Em abril de 1854, o diretor-geral dos índios, coronel Andrade Neves,


em manuscrito aos seus superiores no Ministério do Império, solicita:
Mandar para ali [na aldeia] um mestre ferreiro para efeito de ensinar aos
índios este ofício e encarregar-se de compostura de ferramentas [...]. É indis-
pensável também um professor de primeiras letras e outro de música com
instrumentos próprios, por serem os mesmos [índios] muito apaixonados por
música e por este meio habilitá-los para as danças que sobremodo contribuirá
para a sua reunião e permanência no aldeamento (apud ZARTH, 1986, p. 35).

O baiano Ângelo Dourado, coronel médico do exército federalista,


em “Voluntários do Martírio”, ao descrever o trajeto entre o rio Pelotas e
Passo Fundo, refere que as matas eram habitadas por selvícolas. Nessa
marcha, ocorrida nos meses de maio e junho de 1894, Dourado destaca a

284
Ney Eduardo Possapp d’Avila

amizade e o apoio recebidos de parte dos indígenas, o respeito a Prestes


Guimarães, a quem se referiam como papa e Pretin. Relata ainda a aju-
da dos bugres no transporte de munições e outros materiais pesados até
a saída dos matos, onde o pessoal de Prestes aguardava com carretas.
Na coluna, havia italianos. Dourado lhes narra a história de Garibal-
di: “Aqui perto está o Campo do meio [sic] onde com os seus ele passou
9 mezes, e onde comeu até as caronas dos arreios” (DOURADO, 1997,
p. 233-241).

Grilagem de terras indígenas


Outra afirmação recorrente é a propósito de escrituras com proba-
bilidade de 100, 180 e até 200 anos. Via de regra, trata-se da soma da
sequência de várias escrituras, podendo apresentar várias transmissões
entre diferentes adquirentes. É comum a escritura ser original (às vezes
uma ou duas que lhe seguem), de transferência de “direitos de posse” ou
de “legitimação de posse”. Apenas depois de decorridos alguns ou muitos
anos, aparece a primeira escritura de compra e venda.
Não obstante, no Campo do Meio, é preciso de imediato descartar
sequência de escrituras somando mais de 180 anos. Com base em docu-
mentação histórica, sabe-se que o primeiro homem branco a ter posse na
área do Campo do Meio foi José Domingos Nunes de Oliveira, morador
na entrada do Mato Castelhano, a partir de 1828. Deve-se, inclusive,
descartar escrituras com mais de 170 anos, pois, na região, são desco-
nhecidas escrituras de terras anteriores a 1850, isto é, anteriores à Lei
de Terras.
De qualquer maneira, nessas origens pouco claras, reside a famosa
grilagem de terra. Isso não significa que o(s) adquirente(s) que figura(m)
a partir da segunda ou da terceira escrituras tenha(m) agido de má fé,
muito pelo contrário.
Um sucinto histórico das referidas escrituras seria o seguinte:
A partir da quarta década do século XIX, os paulistas tropeiros e
ervateiros estabelecidos no planalto rio-grandense, após se instalarem
nas áreas de campo, iniciam o avanço sobre as áreas florestais. Conco-
mitantemente, nos vales próximos à capital da província e na serra gaú-

285
Apontamentos para uma história do Campo do Meio

cha, tem início a colonização com alemães, italianos, poloneses e outros


europeus que abandonam suas aldeias na Europa em busca de pão, paz
e terra na América. A ocupação dos territórios há milênios habitados por
parcialidades indígenas é feita, literalmente, a “ferro e fogo”. Conforme
Antonino Xavier, “autoridades e mesmo particulares organizavam escol-
tas numerosas e iam batê-los [os indígenas] nas brenhas, exterminando,
às vezes, tribos inteiras” (OLIVEIRA, 1990, p. 63). Não foi diferente a
sorte de caboclos que, desde o século XVII, habitavam campos e matos
num sistema de seminomadismo.
O passo seguinte foi a tomada de posse das terras “desabitadas”,
“devolutas”. Concessionários que haviam recebido glebas de terras alar-
garam suas posses. Muitos dos que não haviam recebido concessões, em
geral por não preencherem os requisitos que privilegiavam apenas deter-
minadas camadas socioeconômicas, aproveitaram para tomar posse por
conta e risco. Com a promulgação, em 18 de setembro de 1850, da Lei nº
601, conhecida como a lei de terras de 1850, teve início uma burocracia
cartorial, a fim de comprovar a propriedade da terra. No Rio Grande
do Sul, apenas em 30 de janeiro de 1864 foi posta em execução, porém,
sucessivas prorrogações e moratórias adiaram a implementação efetiva
por mais de 20 anos. A Lei nº 601 estabelecia que o único modo de acesso
à terra se daria pela compra, mas as terras já ocupadas poderiam ser
regularizadas como propriedade privada. A transmissão da proprieda-
de, além da compra e venda, poderia ocorrer por doação ou herança do
proprietário. Os concessionários e aqueles que simplesmente haviam se
apossado deveriam providenciar a “legitimação de posse” ou o “reconhe-
cimento de posse”. Seguia-se a escritura de propriedade da terra, lavrada
em cartório. Todavia, tais processos custavam caro e não estavam ao al-
cance de pequenos posseiros.
Como regra, a legitimação de posse dava-se por processo judicial
e envolvia grandes extensões, e o reconhecimento de posse era obtido
administrativamente em algum órgão público encarregado de assuntos
fundiários. É interessante notar que muitos processos de legitimação e
atos de reconhecimento deram-se em lugares fora, e até distantes, da
comarca onde se localizava a posse. É nesses trâmites intermediários
que se dá a grilagem. Especialistas na tramitação desses documentos
fizeram disso um negócio. Um dos métodos, bastante usado, era arran-

286
Ney Eduardo Possapp d’Avila

jar um ou mais caboclos, que eram apresentados como posseiros (ver-


dadeiros ou fictícios) dispostos a vender o “direito de posse”. O próprio
grileiro apresentava-se como comprador dos “direitos”, ou arranjava um
interessado na compra. Lavrada a escritura de transferência de direitos,
o adquirente podia, posteriormente, alienar o bem em todo ou em parte
por compra e venda.
Nessa fase em que já existe a escritura de transferência de direitos
ou a escritura de compra e venda, entram em cena colonos vindos das
“colônias velhas”, em geral filhos ou netos dos colonos assentados nas
primeiras áreas de colonização. Esses veem em busca de “terras novas”,
honestamente adquirem uma gleba de “papel passado”. A maioria é anal-
fabeta e fala mal o idioma nacional, uma vez que na colônia usam-se
os dialetos dos pais ou avós. Aquele papel timbrado e selado, emitido
em cartório, não podia levantar dúvidas. Muitas dessas escrituras, por
razões diversas (inclusive da grilagem), eram imprecisas quanto às ver-
dadeiras medidas da área adquirida e da localização, por isso, mais tar-
de, tiveram que passar por processos de demarcação e retificação. Era
comum esse primeiro comprador parcelar a área adquirida entre paren-
tes, amigos, vizinhos da colônia ou outros interessados, gerando outras
tantas escrituras de compra e venda.
Max Beschoren (1989, p. 25), o engenheiro prussiano citado ante-
riormente, tendo trabalhado, de 1869 a 1874, com demarcações em vários
municípios da província, inclusive em Passo Fundo, observou que “Rei-
nava uma grande confusão a respeito das terras, havendo desavenças”.
Na segunda década do século XX, e posteriormente, foram realiza-
das demarcações para regularizar os parcelamentos anteriores e os que
vinham ocorrendo. Esse é, em resumo, o contexto histórico de escrituras
centenárias.

Considerações finais
Conforme explicitado anteroirmente, esses apontamentos buscam
fornecer elementos para futuras pesquisas. São transcrições diretas e
indiretas de trechos que referem o Campo do Meio, encontrados na lite-
ratura, em especial a historiadora, relativa à região em que se insere o

287
Apontamentos para uma história do Campo do Meio

objeto desta revisão bibliográfica. Cabe sinalizar que a bibliografia con-


sultada não é exaustiva, há mais a ser pesquisado. Também são referidos
alguns mapas em que se encontra sinalizado o Campo do Meio. Todas
as transcrições têm a fonte referenciada, a fim de permitir a verificação
e/ou o desdobramento da pesquisa. Não foram realizados nem a crítica
historiográfica, nem o julgamento do mérito.
Na primeira parte, foram apenas transcritos, direta ou indireta-
mente, trechos que permitem acompanhar como diferentes autores, em
diferentes momentos, relataram o Campo do Meio sob diversos aspectos.
Na segunda parte, seguem as transcrições diretas e indiretas, sempre
com a fonte de referência, abordando duas questões específicas de grande
atualidade não apenas no Campo do Meio, mas também em toda região:
a questão indígena e o apossamento das terras pelo dito “homem branco”,
incluindo nesse rol os luso-brasileiros e os descendentes de imigrantes
europeus. Também expressam-se alguns pontos de vista pessoais funda-
mentados na própria experiência de vida e em muitos anos de pesquisas
e estudos. Não obstante, são pontos de vista sujeitos ao debate, podendo
ser contestados, desde que com a devida fundamentação.

Referências
D’AVILA, Ney Eduardo Possapp. O Historiador Passo-Fundense Antonino Xa-
vier. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Santa Cata-
rina, 1993. (Mimeografado).
D’AVILA, Ney Eduardo Possapp. Passo Fundo. Terra de Passagem. Passo Fun-
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Passo Fundo, 2015.
BARBOSA, Fidélis Dalcin. Nova História de Lagoa Vermelha. Porto Alegre: EST,
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meografado).

289
Estudos comparados na imigração: Brasil e Chile como possibilidade investigativa

Sobre os autores

Alba Cristina Couto dos Santos Salatino – Doutora em História pela


Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Técnica em Assuntos
Educacionais (IFRS – Campus Rio Grande).

Federica Bertagna – Dottore di ricerca in Storia della società europea.


Professore associato di Storia contemporanea all’Università degli Studi
di Verona.

Giovani Balbinot – Doutor em História pela Universidade de Passo


Fundo (UPF). Pesquisador do Núcleo de Estudos de História da Imigra-
ção (NEHI) da UPF.

Ironita A. Policarpo Machado – Doutora em História pela Pontifícia


Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com estágio de
pós-doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora
do Programa de Pós-Graduação em História da UPF.

João Carlos Tedesco – Doutor em Ciências Sociais pela Universidade


Estadual de Campinas (Unicamp), com estágio de pós-doutorado e de
professor visitante na Universidade de Verona (Itália) e estágio de pós-
-doutorado na Universidade de Milão (Itália). Professor do Programa de
Pós-Graduação em História da UPF. Pesquisador do NEHI/UPF.

Leandro Mayer – Doutorando em História pelo Programa de Pós-Gra-


duação em História da UPF. Bolsista do Fundo de Apoio à Manutenção
e ao Desenvolvimento da Educação Superior (Fumdes). Pesquisador do
NEHI/UPF.

290
João Carlos Tedesco | Rosane Marcia Neumann (Org.)

Maikel Gustavo Schneider – Mestre em História pela UPF. Pesqui­


sador do NEHI/UPF.

Marcos Antônio Witt – Doutor em História pela PUCRS. Professor do


Programa de Pós-Graduação em História da Unisinos. Coordenador do
Centro de Estudos Internacionais de História das Mobilidades, Diáspo-
ras e Migrações (Cemidi) da Unisinos. Pesquisador do NEHI/UPF.

Ney Eduardo Possapp d’Avila – Mestre em História pela Universida-


de Federal de Santa Catarina (UFSC).

Rhuan Targino Zaleski Trindade – Doutorando em História no Pro-


grama de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Para-
ná (UFPR) e bolsista da Capes. Pesquisador do NEHI/UPF.

Rosane Marcia Neumann – Doutora em História pela PUCRS, com


estágio de pós-doutorado na Freie Universität de Berlin (Alemanha).
Professora do Programa de Pós-Graduação em História da UPF. Coorde-
nadora e pesquisadora do NEHI/UPF.

Susana Cesco – Doutora em História pela Universidade Federal do Rio


de Janeiro (UFRJ). Professora do Departamento de História da UFF,
Campos dos Goytacazes, e colaboradora no Programa de Pós-Graduação
em Políticas Públicas da Universidade Federal do Pampa (Unipampa),
Campus São Borja.

Tiago Weizenmann – Doutor em História pela PUCRS. Professor na


Universidade do Vale do Taquari (Univates). Pesquisador do NEHI/UPF.

291
COLONOS, COLÔNIAS
E COLONIZADORAS
aspectos da territorialização
agrária no sul do Brasil

A coletânea Colonos, colônias e colonizadoras aborda os espaços


e sujeitos envolvidos no processo de territorialização agrária no sul do
Brasil, de meados do século XIX a meados do século XX. Discute o
processo de e/imigração e colonização, na perspectiva dos desloca-
mentos populacionais e suas redes sociais, atravessado pelas políticas
públicas – ou por sua ausência –, planejadas e executadas pelo Estado
nas diferentes instâncias de poder. No horizonte dos artigos que com-
põem o presente volume estão os colonos, as colônias e as colonizado-
ras, atrelados à propriedade da terra, às interconexões com o outro,
bem como à sua relação com o Estado. O avanço dos estudos no sul do
Brasil permitiu, neste momento, extrapolar esse recorte e propor traba-
lhos de história comparada, analisando a problemática no espectro da
América Latina, possibilitando novas/outras leituras e interpretações.

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