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H. C.

Andersen

á muitos, muitíssimos anos atrás, o imperador da China habitava


um esplêndido palácio que tinha fama de ser o mais belo do mun-
do: pisos de cristal, portas de ouro, paredes de fragilíssima por-
celana.
E o que dizer do jardim? Tão imenso era que, para percorrê-lo, era pre-
ciso caminhar mil- dias e mil noites seguidos.
Por entre plantas, havia lagos azuis e, mais ao longe, estendia-se a flo-
resta. Lá no fundo, o mar; um mar límpido e manso, que jamais se agas-
tava, para não erguer ondas altas e resmungonas que pudessem espantar
os passarinhos que moravam nas árvores da floresta imperial.
Um desses passarinhos enchia de orgulho a quanto chinês o ouvisse
cantar. Era um rouxinol: um rou-
xinol como tantos. Mas tinha gor-
jeios tão puros e melodiosos que
era como se na garganta escondes-
se uma orquestra de anjos.
Quando cantava, os peixes do
mar subiam à flor dágua. Os pes-
cadores, embevecidos, esqueciam-
se de lançar suas redes e a lua des-
cia até tocar o cimo da árvore on-
de fizera seu ninho.
Os forasteiros que iam à Chi-
na, diante do palácio imperial, des-
faziam-se em elogios. Diante do
jardim, extasiavam-se. Diante do
rouxinol, porém, não diziam pala-
vra. Possuídos de admiração, ou-
viam-no boquiabertos. E é sabido
que, de boca aberta, ninguém fala.
De volta a suas terras, levavam a vida suspirando. E a quem lhes per-
guntasse a causa de tamanha tristeza, respondiam:
— Consome-nos o desejo de tornar a ouvi o canto do rouxinol da flo-
resta do imperador da China.
Um poeta japonês chegou a dedicar ao pássaro de garganta de ouro
uma poesia que dizia mais ou menos assim:
"Muitas,e belíssimas coisas vi na China
Mas a todas elas supera o canto do rouxinol".
Um belo dia, seus versos foram cair nas mãos do imperador. Ao lê-
los, foi-se fazendo pensativo o soberano e, sisudo e descontente pensava:
"Ora vejam, os estrangeiros sabem que na minha floresta vive um pássaro
portentoso e eu, imperador, não sei de nada!"
Tomou de uma campainha de ouro cravejada de brilhantes e a sacudiu
com impertinência, como fazia todas as vezes que alguma mosca mais ousa-
da viesse pousar-lhe no imperial nariz.
Imediatamente, de todas as partes, acudiram servidores, cavalheiros e
damas: uns munidos de espanador, outros, não tendo encontrado nada me-
lhor, carregando vassouras. E as damazinhas da corte vieram cada qual
com seu leque.
Rodearam todos o trono do imperador em busca da mosca atrevida. Co-
mo não a encontrassem, saíram a procurá-la, primeiro, debaixo das poltro-
nas, depois, entre as pregas do baldaquino, e, por fim, nos angulozinhos
mais escuros e ocultos.
De repente, nesse vaivém alvoroçado, ouviu-se o vozeirão do impe-
rador:
— Ó súditos infiéis, não é por aí a fora que devem procurar, mas den-
tro de suas consciências!
Os cortesãos e as damazinhas presentes emudeceram, abaixaram a ca-
beça e, contritos, levaram a mão ao peito.
— Vocês são traidores, continuou o soberano. Se me fossem fiéis, me
teriam dito que no parque de meu palácio gorjeia um pássaro
1

de voz maviosa e que, no


inundo inteiro, se fala ne-
le. Portanto, se até à me-
ia-noite de hoje, não me
trouxerem esse rouxinol,
nenhum de vocês terá mais
o direito de pousar os olhos
em minha imperial pessoa.
Condenação, realmen-
te, das mais graves.
Ora, ministros, pa-
jens, cavalheiros e damas,
residentes na corte, ti-
nham os pés doloridos, de-
vido ao uso dos sapatos
justos demais. Essa a ra-
zão pela qual jamais se ti-
nham embrenhado na flo-
resta onde cantava o rou-
xinol. Conseqiientemente,
não sabiam de sua exis-
tência.
Um dos cavalheiros,
arriscou uma objeção:
— Magnífico sire, essa
poesia foi, por certo, escrita por alguém que, invejoso de nossa posição, pre-
tendeu colocar-nos em apuros. Nem mesmo os lenhadores e os jardineiros
jamais ouviram um pássaro da floresta cantar de maneira a se destacar dos
demais.
O imperador, porém, foi irremovível. E assim falou ao cavalheiro que
tivera a petulância de contradizê-lo:
— Ou você me traz o rouxinol antes da meia-noite, ou será condenado a
viver empoleirado nos ramos de uma árvore até que tenha aprendido a dis-
tinguir o canto dos pássaros.
O pobre cavalheiro sentiu-se sucumbir. Recobrou-se, porém, e, sem per-
da de tempo, correu a montar seu cavalo e saiu a percorrer a galope a flp-
resta. Ia apressado, mas sem destino, sem saber exatamente para onde de-
via ir. E nem se deu conta de que passava junto à árvore onde se empolei-
rava o rouxinol. Este, alvoroçado por aquele movimento insólito, buscou re-
fúgio nos galhos mais altos.
Foi quando se ouviu a voz da coruja, que dava início a seu monótono
estridor. Eram dez horas da noite.
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"E agora, o que hei de
fazer ?" pensava o cava-
lheiro; "nas duas horas
que me faltam, não vou
ter tempo de descobrir
aquele malfadado rouxi-
nol".
Acabrunhado, voltou
lentamente ao palácio e
foi sentar-se num banco
apartado do jardim, para
dar largas à mágoa de seu
coração.
— Belo cavalheiro, eu
sei porque chora!
Ouvindo falar assim,
o jovem ergueu a cabeça
e deu de cara com uma
ajudantezinha da cozinha
imperial.
— Se conhece a razão
do meu desespero, deve
compreender que estou
perdido: não há no mundo
o que me possa valer! Não
me atormente, vá embora!
— Mas eu posso ajudá-lo! disse a moça. Todas as noites, indo para ca-
sa levar as sobras da cozinha, ouço o canto do passarinho que procura. Co-
nheço o seu paradeiro: é lá nos ramos da árvore mais alta do bosque.
O cavalheiro ergueu-se, reanimado e estendeu as mãos para a emprega-
dinha, exclamando:
— Você é a minha salvação! Se, por seu intermédio, eu puder encontrar
o rouxinol de voz de ouro, farei com que lhe dêem um lugar de primeira co-
zinheira e terá permissão para espiar pelo buraco da fechadura e olhar o
imperador enquanto come.
— Muito bem, disse a rapariga; acompanhe-me.
Os pajens, que estavam deitados entre as plantas do jardim, tendo ou-
vido a conversa do cavalheiro e da empregadinha, de um salto puseram-se
de pé e saíram atrás dos dois.
Ao longo do caminho, a eles veio juntar-se uma fileira de nobres chi-
neses, desejosos de ajudar o pobre cavalheiro.
De repente, ouviu-se um mugido.
— Silêncio! ordenou o cavalheiro. Deve ser essa a voz do rouxinol.
A empregadinha riu-se, divertida.
— Qual nada! Isso é vaca mugindo.
Estranhando a presença de toda aquela gente, os auimaizinhos do bos-
que calavam-se e, espichando a cabeça para fora de seus ninhos, curiosos, fi-
cavam a espreitá-los.
Por fim, eis erguer-se no silêncio da noite plácida, um gorjeio melodio-
so que parecia vindo do céu. E tudo o mais se calou. Até o sussurro das fo-
lhas movidas pela brisa.
Os cavalheiros e os nobres chineses, a alma em suspenso, ouviam, enle-
vados e sem palavras. Só quando o canto terminou, expressaram sua ad-
miração.
— Lá está ele! exclamou a rapariga, apontando para um passarinho
cinzento, que descera para o ramo mais baixo de uma árvore idosa.
— Não é possível que um pássaro tão pequeno possa cantar com voz tão
forte! disse um pajem.
— É que ele se encolhe diante de nós, acanhado, porque somos pessoas
de importância, comentou o cavalheiro.
Foi então que a rapariga se dirigiu ao passarinho:
— Meu pequeno rouxinol, o imperador deseja ouvir tua voz: quer ir até
ele?
— De boa vontade, respondeu o passarinho e, a voar, seguiu-os.
Os relógios imperiais davam meia-noite, quando o cavalheiro e seu sé-
quito faziam sua entrada triunfal no palácio. Milhares de lâmpadas de ou-
ro foram acesas e os cristais e as porcelanas resplandeciam: o salão de con-
certos parecia um pedaço do céu.
Junto ao trono, onde se assentava o soberano, fora colocada uma esplên-
dida coluna, que era onde o rouxinol devia empoleirar-se. Mas, ofuscado
por aquele brilho todo, olhava ao seu redor e se calava.
Vamos, cante! rogava o cavalheiro.
— Não posso! Estou acostumado a cantar na penumbra da floresta, ro-
deado pelos meus amigos do bosque!
Apagaram-se as luzes, abriram-se de par em par as janelas e logo um ba-
ter de asas e um zumbir de insetos anunciaram a presença de convidados
que não se fizeram esperar.
Novamente, o silêncio voltou à grande sala.
O cavalheiro estava sobre brasas: ai dele se o rouxinol não cantasse!
Subitamente, um canto celestial ergueu-se: canto que era harmonia, era
ternura, era sonho e punha na alma de quem o ouvia desejos de ser bom.
O rouxinol cantava e cantava...
Foram-se enchendo de lágrimas os olhos do imperador, lágrimas de co-
moção que lhe rolavam, mansas e silenciosas pelo rosto, pelo corpo abaixo,
até irem-lhe umedecer os pés. Sentia-se deslumbrado. E, como sinal de sua
admiração, quis presentear o grande cantor com algo de muito precioso:
sua chinela de ouro. entremeada de fios de prata.
Mas o pássaro recusou.
•— Para mim, sire, suas lá-
grimas valem mais do que
qualquer tesouro.
O encantamento era ge-
ral; o pássaro subjugara-os a
todos: cavalheiros, pajens, ser-
vidores.
A empregadinha, agora
nomeada primeira cozinheira,
ouvia-o cantar de mãos pos-
tas, toda recolhida, como se re-
zasse.
O rouxinol passou a viver
na corte. Deram-lhe belíssima
gaiola e teve permissão para
um voozinho ao ar livre duas
vezes ao dia e uma vez à noi-
te. Mas não era feliz. Quando
saía, era com uma escolta de
doze guardas, segurando cada
qual bem firme a ponta de um
barbante que lhe atava a pati-
nha.
Na cidade, os prodígios do
rouxinol eram assunto do dia.
Não se falava noutra coisa-,
tanto assim que a sua fama lo-
go atravessou fronteiras.
Certo dia, o imperador da
China recebeu do imperador
do Japão uma grande caixa
em cuja tampa se lia: ROU-
XINOL.
O imperador ordenou ime-
diatamente a seu secretário
que olhasse, a ver o que conti-
nha a estranha caixa.
E, ó surpresa! A caixa
continha um rouxinol mecâni-
co, todo feito de ouro, crave-
jado de brilhante e pedras pre-
ciosas. Era só dar-lhe corda e
ele cantava uma das melodias
que o rouxinol verdadeiro can-
tava e estremecia e abanava a
cauda.
Na caixa, vinha também
um cartão, que dizia assim:
"O rouxinol da China é
uma insignificância, compara-
do ao rouxinol do Japão."
O imperador da China
ofendeu-se e pensou logo em
declarar guerra ao imperador
do Japão, por ter tido a ousa-
dia de qualificar de bagatela
o seu precioso rouxinol.
Os ministros trataram de
acalmar o soberano, fazendo-
lhe ver que, afinal de contas,
o rouxinol de ouro era uma jó-
ia, era presente digno de um
rei. E, tomando o cartão ofen-
sivo, fizeram-no em pedaci-
nhos minúsculos, que foram
atirados aos peixes vermelhos
do aquário.
Após uma sessão, que du-
rou dez horas, ficou decidido
que seria enviada ao impera-
dor do Japão uma resposta
\por carta. De um lado do pa-
lpei, foi escrito o seguinte:
"Nosso magnífico sobera-
no agradece a homenagem."

Do outro lado, em letrinhas microscópicas, foram acrescentadas as se-


guintes palavras:
"Mas o nosso rouxinol é superior ao de vocês!"
E ficou estabelecido que seriam postos a cantar juntos os dois rouxi-
nóis.
Na noite do concerto, os cortesãos acomodaram-se no salão do trono e
os súditos apinharam-se no jardim.
Os passarinhos começaram a cantar. Porém, como cada qual o fizesse a
seu modo, não houve possibilidade de harmonizar os cantos.
Então, o imperador disse:
— Vamos fazê-los cantar um de cada vez I
O rouxinol mecânico cantou primeiro e recebeu uma chuva de aplausos.
À luz estonteante das grandes lâmpadas, reluzia como os braceletes e os
anéis das grandes damas. Ao fim de cada trecho, fazia uma reverência, in-
clinando a cabecinha.
Por fim, o imperador ordenou que o pássaro verdadeiro cantasse.
Procura daqui, procura dali, não houve meio de encontrá-lo. Voara pa-
ra a floresta onde nascera. Fugira desapercebido pela janela aberta.
* '~^\-M ,. * ><*,*, "^ -'
«K, SÍ-K ^ ^#-
Diante disso, os cortesãos crivaram-no de injúrias: era feio, era ingrato
e, ainda por cima não sabia cantar.
E o rouxinol mecânico foi delirantemente aplaudido e teve de cantar
trinta e quatro vezes seguidas.
O maestro da orquestra imperial era quem de modo particular o exalta-
va. Afirmava que era incomparavelmente superior ao verdadeiro, tanto pe-
la aparência como pelo mecanismo interior, que era de uma precisão extre-
ma. Pediu permissão — que lhe foi concedida — para fazê-lo cantar perante
o povo, a fim de que, pela avaliação popular, imparcial e espontânea, ficas-
se definitivamente julgado o caso.

E o povo, aglomerado di-


ante do palácio imperial, emi-
tiu sua opinião em massa: o
rouxinol de ouro cantava de
maneira insuperável. Só a em-
pregadinha e os pescadores
nada disseram, por não con-
cordarem com o resto. Para
eles, o rouxinol verdadeiro era
único e incomparável.
O pássaro do bosque foi
banido da cidade e do próprio
império, enquanto que o arti-
ficial foi colocado ao lado da
cama do imperador, sobre uma
almofada de seda e recebeu o
título de "Grande Cantor Im-
perial".
Passou-se assim um ano
inteiro e os chineses haviam
aprendido de cor a melodia do
rouxinol. O próprio impera-
dor estava o dia todo a asso-
biá-la.
Certa noite, porém, esten-
dido na cama, mais uma vez
se embevecia com o canto de
seu pássaro de ouro, quando
dentro dele qualquer coisa es-
talou: trac! As rodas do me-
canismo puseram-se a girar
desordenadamente até que, de
improviso, se imobilizaram.
O relojoeiro da corte, cha-
mado às pressas, procedeu
imediatamente ao exame mi-
nucioso das peças. Por fim,
declarou que as lâminas e as
engrenagens estavam gastas e
— o que era pior — não po-
diam ser substituídas. Toda-
via, fez o que pôde para reco-
locar em movimento o meca-
nismo. Mas ficou decidido que
o rouxinol cantaria Uma única
vez por ano: tinha de ser pou-
pado.

O pessoal da corte chorou durante uma semana inteirinha, mas o regen-


te da orquestra imperial dirigiu ao povo brilhantíssimo discurso, dizendo
que tudo estava bem. De fato, tudo voltou à normalidade e mais cinco anos
se passaram até que, certo dia, os súditos foram surpreendidos com a notí-
cia de que o soberano estava à morte.
Apinharam-se os chineses ao redor do palácio imperial, ansiando por sa-
ber da saúde do soberano que tanto amavam. Entretanto, haviam já de-
signado o herdeiro do trono e todos os dias iam prestar-lhe homenagem.
O pobre imperador respirava cada vez com maior dificuldade até que um
dia caiu em completa imobilidade, a ponto de fazer crer que estivesse morto.
Os gentis-homens da corte saíram do quarto para fumar seus cachimbos,
as mucamas se reuniram no salão de festas para uma xícara de chá.
Mas o imperador não estava morto. Estava era oprimido por um peso
enorme. Abriu os olhos e viu a Morte ali em cima dele, sentada em seu peito:
na cabeça, trazia sua coroa de imperador, numa das mãos segurava a espa-
da e na outra sustinha uma belíssima bandeira.
Figuras estranhas asso-
mavam por entre as pregas
dos ricos cortinados de velu-
do: horrendas, umas; outras,
belas. Eram as más e as boas
ações cometidas pelo impera-
dor durante sua vida. Agora
que a Morte lhe oprimia o co-
ração, apareciam-lhe e lhe fa-
lavam.
— Vamos leva-] o conosco,
porque você foi mau, diziam
as primeiras.
E as outras diziam:
— Não tema: nós o salva-
remos porque você foi bom.
O imperador suava frio. <
De repente, ouviram-no
murmurar;
— Música! Música! Não
quero mais ouvir as ameaças
de minhas ações más, não que-
ro que me levem com elas!

Os gentis-homens e as mu-
camas, porérn, não o ouviam,
entretidos que estavam, uns
em fumar, outras em beber.
— Música! Quero música!
repetia o imperador. Rouxi-
nol de ouro, eu o cumulei de
dons, cheguei até a lhe pen-
durar ao pescoço a minha chi-
nela de ouro: contente-me ago-
ra, deixe-me ouvir a sua voz!
O passarinho permanecia
mudo: não havia quem lhe des-
se corda.
Inesperadamente, lá de
fora, pela janela aberta, *veio
chegando um suave cantar. O
rouxinol verdadeiro soubera
do sofrimento do imperador e
viera trazer-lhe o bálsamo de
sua voz. Ao som de seus gor-
jeios, foram-se desvanecendo
as assustadoras visões.
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A Morte quedou-se extasiada, a escutar a melodia dulcíssima e supli-
cava:
— Continue, rouxinol: faz-me ouvir ainda uma vez a sua voz!
— E o que você me dará em troca, se eu continuar cantando*? É capaz
de me dar essa espada fulgurante*? É capaz de me entregar essa bandeira?
É capaz de me devolver essa coroa?
Assim, para cada canção, a morte foi cedendo, um a um, os tesouros que
roubara, enquanto que o sangue voltava a circular nas veias do imperador,
O rouxinol cantava, cantava, e o seu canto descrevia o tranquilo cemi-
tério, onde as rosas floresciam aos milhares e os lilases exalavam seu doce
perfume, or.de reinavam o silêncio e a paz.
E a Morte, anelando por rever o seu jardim, voou para bem longe.
O imperador, agora completamente restabelecido, saltou da cama para
beijar na fronte o generoso pássaro, dizendo-lhe:
— Muito agradecidoí Muito agradecido! Eu o ofendi, expulsando-o dos
meus domínios e você, em troca, me salvou da Morte. Como poderei recom-
pensá-lo?
— As lágrimas que escorreram dos seus olhos a primeira vez que can-
tei para você já me recompensaram largamente de tudo. As criaturas sim-
ples como eu encontram a felicidade em presentes assim. Durma, agora, se
quiser ser de novo forte e sereno. Eu velarei, cantando, o seu sono.
O imperador deixou-se cair em doce torpor e, quando acordou, um raio
de sol o envolvia como que num abraço.
O rouxinol cantava e cantava, sempre.
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— Vou despedaçar o rouxinol mecânico e você ficará comigo.
— Não deve destruí-lo. Afinal, ele fez o que estava ao seu alcance, E
eu jamais poderia fazer meu ninho no seu palácio: seria morrer de tristeza.
Virei ter com você toda a vez que quiser. Pousarei nos galhos da árvore
mais próxima à sua janela e cantarei alguma coisa que lhe alegre o coração
e, ao mesmo tempo, o faça pensar. Hei de falar dos que sofrem e dos que
vivem felizes; hei de relatar o bem e o mal que se anda fazendo em seu rei-
no e que você, daqui, não pode ver. Eu sou livre de pousar aqui ou ali, em
casa do rico, em casa do pobre. Sou capaz de ajudá-lo a fazer justiça, a go-
vernar com amor. Quero, porém, que me prometa urna coisa!
— Ê só falar e já está concedido o que pedir! Há de ser sempre bem
pouco, comparado ao muito que fez e que eu gostaria de retribuir.
— Guardará segredo a respeito de seu informante. A ninguém dirá que
é um passarinho quem lhe comunica o que vai por ai a fora.
E, assim dizendo, saiu voando.
Entrementes, no aposento vizinho, o costureiro da corte provava o man-
to imperial que talhara para o herdeiro do trono.
Os camareiros, convencidos de que o imperador estivesse morto, entra-
ram no quarto para levá-lo dali.
Qual morto, qual nada! Estava era bem teso e orgulhoso, com a coroa
na cabeça e os saudou a todos alegremente:
— Bom dia, meus filhos.. .
01 U U
N
H ií N
H -i
Q 3 ú
(antiga fábula popular chinesa)
21

-
este mundo sempre houve muita coisa bonita para se ver. Dentre
elas, destacava-se a corrida de barcos-dragão que se realizava em
Su-Chian, no quinto dia da quinta lua.
Cada embarcação levava esculpido no lenho um dragão de escamas ver-
des e douradas; as balaustradas tinham enfeites de flores laqueadas e es-
tandartes de seda bordados. Da popa saía uma espécie de trampolim de ma-
deira, onde ia sentado um rapazote perito em acrobacias. Exibia-se em belos
movimentos rítmicos, chegando, por vezes, a dobrar a tábua até fazê-la to-
car a água, dando a impressão, a cada instante, de que ia mergulhar.
Esses rapazes eram treinados desde crianças e alguns deles, por sua pe-
rícia, eram disputados a peso de ouro pelos diversos proprietários dos bar-
cos-dragão.
Dentre os melhores, o rnais hábil era, sem dúvida, A-Tuan, belíssimo
rapagão órfão de pai.
Aconteceu que, durante uma daquelas festas, A-Tuan perdeu de fato o
equilíbrio e foi cair no rio que o tragou, fechando sobre ele suas águas. Ime-
diatamente, os nadadores mais destros mergulharam em sua busca. Mas,
por mais fundo que mergulhassem, nem sequer o avistaram. Voltaram à
tona resfolegantes e desiludidos: não fora possível salvá-lo.
-" Era preciso avisar a velha Chiang, mãe de A-Tuan, do ocorrido. Aca-
brunhados, os proprietários dos barcos-dragão foram em comitiva procurá-
la. A pobre mulher chorou muito. Só o que trazia consolo ao seu coração
aflito era a dor sincera que demonstravam todos e o pensamento de que seu
filho fora amado por muitos.
A-Tuan, porém, não morrera: no instante em que cairá nágua (e não sa-
beria explicar como lhe tivesse acontecido, perdera o equilíbrio, excelente
acrobata que era) sentira-se agarrado por duas mãor* que o puxavam para
o fundo. A água se erguera ao redor dele, alta como uma muralha, e ele
percebeu que podia respirar perfeitamente.
Recobrando uma certa serenidade, A-Tuan pôde ver um castelo. No
centro de um salão imenso, um homem com um elmo na cabeça estava sen-
tado num trono.
— Este é o Príncipe Dragão, anunciou uma voz às costas de A-Tuan;
ajoelhe-se diante dele.
O olhar do príncipe, pousado em A-Tuan, irradiava benevolência.
— Você é um rapaz de rara habilidade: pode entrar a fazer parte do
grupo "Ramos de Salgueiro".
Foi tudo o que lhe disse. Depois, A-Tuan sentiu-se transportado por seu
acompanhante invisível para longe do palácio, até um recinto cercado de
amplos pavilhões. Ali chegados, seu acompanhante fê-lo subir à varanda do
pavilhão leste, de onde saiu, toda sorridente, uma velha senhora.
— Esta é a Senhora Sie, disse a voz de sempre, e vai ser sua mestra.
A senhora sentou-se na varanda e chamou por alguém. A-Tuan viu apa-
recerem lá de dentro diversos rapazolas que não teriam mais de treze ou
quatorze anos. Cumprimentaram A-Tuan e foram muito amáveis com ele.
— Agora vamos mostrar a A-Tuan a "dança do relâmpago" e a "dança
do vento", disse a senhora Sie.
Logo se ouviu o rufar de tambores e o bimbalhar de pratos de cobre e
a dança começou. Era algo de indescritível, digna dos génios.
Quando se restabeleceu o silêncio, a senhora Sie chamou para perto de
si A-Tuan, com a intenção de lhe ensinar os passos da dança. Ele, porém,
não a deixou falar.
— Mande recomeçar a música e eu lhe darei uma amostra do que sei.
Assim que a primeira nota ecoou na esplanada, A-Tuan começou a dan-
çar. Todos o fitavam atónitos, prendendo a respiração, e a velha senhora
Sie explodiu em frenético bater de palmas.
— Magistral! exclamou, possuída de entusiasmo. A sua perícia iguala
à de Flor de Verão!
Não sabendo quem era Flor de Verão, A-Tuan não estava em condições
de apreciar plenamente o elogio. Compreendeu, porém, que a velha senho-
ra lhe admirava a arte e deu-se por satisfeito.
No dia seguinte, o Príncipe Dragão recrutou, para serem examinados,
os vários grupos de bailarinos, que foram reunidos ao pé de uma escada-
ria, num pátio muito grande.
Os primeiros a serem examinados foram os duendes. Tinham rosto de
menino e corpo de peixe; e dançavam batendo com força num prato de co-
24
^T

>
bre, que produzia ruído de trovão. A ca-
da bater de prato, pulavam tão alto que
saíam da água e chegavam a tocar a abó-
bada celeste, de onde faziam cair um chu-
visco de estrelas.
A seguir, foi a vez das "Passarinhas".
Eram todas donzelas formosas e elegantes
que dançavam acompanhando-se numa es-
pécie de flauta.
Pouco a pouco, ao redor delas, foi-se
aplacando o fragor das ondas, foram-se en-
regelando as águas até que tudo se trans-
formou num mundo de cristal translúcido.
Finda a dança as águas voltaram a mo-
ver-se com o ruído de sempre, enquanto
as donzelas iam colocar-se eretas e imó-
veis ao pé da escadaria.
Veio depois o grupo das "Andori-
nhas", raparigas muito jovens, que dan-
çavam agitando as mangas compridas de
suas vestes. Na cabeça, traziam uma guir-
landa de flores perfumadas. Vestiam uma
roupagem azul e preta, de duas caudas,
lembrando andorinhas.
Uma, entre as demais, esvoaçava como
se tivesse asas. De suas vestes despren-
diam-se, ondulando ao vento e sobre as on-
das, botões de flores multicores que, va-
gando daqui para acolá, acabaram por co-
brir todo o pátio.
Terminada a dança, foi-se juntar às
companheiras ao pé da escada.
A-Tuan, que estava ali perto, tomou-
se de encantos por ela. Quis saber quem
era e os de seu grupo, admirando-se de que
ainda não a conhecesse, exclamaram:
— Quem havia de ser senão Flor de
Verão!
-.
v:

A-Tuan não teve tempo de retrucar,


pois, nesse ínterim, o Príncipe Dragão cha-
mara o grupo dos "Ramos de Salgueiro'
e era chegada a sua vez de dançar.
A dança foi tão perfeitamente execu-
tada quanto as outras. O príncipe elogiou
A-Tuan por sua diligência em aprender e
por sua destreza em executar o que apren-
dera. Deu-lhe de presente uma faixa toda
de escamas de ouro para prender o cabelo.
Nela estava incrustada, bem no centro,
uma esplêndida pérola que, à luz do luar,
tinha o fulgor de uma estrela.
A-Tuan agradeceu o presente e apres-
sou-se em juntar-se aos companheiros,
junto à escadaria. Erguendo os olhos, viu
posto nele o olhar meigo de Flor de Ve-
rão; mas, intimidado, não fez um gesto
nem disse uma palavra.
A um sinal do Príncipe Dragão, todos
os grupos puseram-se a desfilar em boa or-
dem, voltando, cada qual, ao seu próprio
pavilhão. A-Tuan e Flor de Verão mal ti-
veram tempo de trocar um olhar de despe-
dida e depois perderam-se de vista.
A-Tuan não esquecia a linda dança-
rina. De tanto pensar nela, de tanto sen-
tir a sua falta, acabou adoecendo. Perdeu
o apetite e o sono. Em vão a velha senho-
ra Sie fazia-o beber poções milagrosas.
A-Tuan estava cada dia mais magro e de-
finhava. Os olhos encovados e tristes, per-
deram o brilho. Só a pérola que resplan-
decia em sua fronte lhe iluminava o sem-
blante opaco.

27

_
Ninguém atinava com a causa do mal que o oprimia. A velha senhora
afligia-se por estarem às vésperas de uma festa da mais alta importância
em que todos os grupos iriam exibir-se.
— Está-se aproximando a festa do Príncipe dos Rios e A-Tuan conti-
nua dessa maneira. O que havemos de fazer com ele?
Nesse pé estavam as coisas, quando, certa noite, um rapaz pertencente
ao grupo dos duendes foi visitar A-Tuan. Sentou-se na beira da cama e pu-
seram-se os dois a conversar disto e daquilo.
— Será possível que ninguém descobre o motivo da tua doença? per-
guntou, a certa altura, o visitante, com um sorriso matreiro.
— Ninguém entende nada, respondeu A-Tuan, com um fio de voz.
— Flor de Verão não teria, por acaso, algo a ver com tudo isto?
— O que te faz pensar assim?
— O fato de Flor de Verão padecer do mesmo mal, retrucou o duende
a rir. Quem me contou foi uma rapariga do grupo das andorinhas.
A essas palavras, A-Tuan ergueu-se na cama.
— Meu amigo, não haveria um jeito de eu me encontrar com Flor de
Verão?
— Talvez haja.
— Ó, por favor, você que sabe tudo a meu respeito, diga-me o que de-
vo fazer.
O duende fitou-o, pensativo; depois acrescentou:
— Não vai ser fácil: teremos de percorrer um longo caminho e, no fim,
nem é certo que cheguemos a encontrá-la.
— Mas por que é que é tão difícil assim ver Flor de Verão? pergun-
tou A-Tuan.
— O Príncipe Dragão a mantém sob estrita vigilância. Como viu, é uma
dançarina incomparável e ele tem medo de perdê-la.
— E como havia de perdê-la?
— Alguém poderia raptá-la e levá-la de volta à terra. De fato, ela tem
muitas saudades da terra, apesar de ser tão querida aqui.
— Pois eu sinto o mesmo e gostaria de poder dizer o que sinto à Flor
de Verão.
A-Tuan insistiu tanto, rogou tanto que o duende, por fim, se rendeu.
Decidiu-se a agir e perguntou logo:
— Pode andar?
— Com algum esforço, posso.
Auxiliado pelo rapazinho, A-Tuan saiu do quarto. Percorreram diver-
sas galerias que pareciam entalhadas em cristal até chegarem a uma porta.
O duende abriu-a e passaram os dois por ela. Depois de mil e uma viravol-
tas, encontraram outra porta, que o duende abriu, também.
A-Tuan viu, com estupor, que se encontravam num bosque todo de ár-
vores de magnólia, tão altas que era impossível ver até onde chegavam. As
folhas eram grandes como esteiras e as flores eram como gigantescos cha-
péus de sol. As pétalas caídas jamais haviam sido removidas e formavam,
no chão, uma camada fofa e macia, da espessura de dez colchões sobrepos-
tos.
O duende mandou que A-Tuan se sentasse.
— Descanse enquanto espera, que eu já volto.
— A-Tuan obedeceu e ficou à espera. Estava ansioso, tinha a sensação
de que o duende se demorava eternamente.
29
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Entretanto, não eram decorridos mais que alguns instantes, quando,
mudo de surpresa, viu, surgir, ali onde o duende desaparecera, uma donzela
de rara beleza, que o fitava, sorrindo com timidez. Era Flor de Verão! Foi
dos mais felizes o encontro dos dois: confiaram um ao outro toda a história
de suas vidas. Flor de Verão contou que, certo dia, quando navegava pelo
rio, na embarcação de seu pai, curvando-se sobre as águas frescas e cantan-
do, sentira que a puxavam para o fundo. Fora coisa de segundos: logo após,
estava na presença do Príncipe Dragão.
— Todo o mundo me trata muito bem; são todos bondosos comigo, disse
ela a suspirar, mas eu tenho saudades de minha família e só penso em vol-
tar para a terra.
— Eu também, disse A-Tuan com lágrimas nos olhos; eu também penso
em minha mãe e na dor que há de ter sofrido por me crer morto. Mas não
tenho esperança de fugir daqui.
— Nem eu tampouco, disse Flor de Verão chorosa. Muito menos agora,
às vésperas de uma festa tão importante: redobraram a vigilância. Receio
não poder rnais vê-lo antes do dia das danças.
Com efeito, assim foi. Os ensaios mantinham atarefadíssimos todos os
grupos de dançarinos.
Na verdade, porém, desde o dia em que se haviam encontrado, tanto
Flor de Verão como A-Tuan recobravam as forças. E puderam dançar de
novo. Era preciso, porém, recuperar o tempo perdido e disso se encarregou
a senhora Sie. Infatigável, fazia-os exercitarem-se dia e noite e os manti-
nha sob tão rigorosa vigilância que não lhes deixou um minuto sequer
para novo encontro.
Chegou o dia da festa. Conduzidos pelo Príncipe Dragão, todos os gru*
pôs se encaminharam para a grande esplanada onde teriam lugar as danças
em honra do Príncipe dos Rios, O espetáculo foi deslumbrante. O Prínci-
pe dos Rios ficara impressionado com a prestigiosa habilidade de A-Tuan:
porém, a graça indizível de Flor de Verão fora o que o subjugara.
Findas as festividades, os dois príncipes trocaram gentilezas e dádivas,
Depois, todos voltaram a seus pavilhões.
Todos, exceto Flor de Verão e mais outra bailarina do grupo das "Pas-
sarinhas", que foram destacadas para morar no palácio do Príncipe dos
Rios, onde iriam ensinar dança às damas da corte.
Imensa foi a dor de A-Tuan. Suspirara tanto por aquele dia, na espe-
rança de ter uns momentos de folga! Esteve a ponto de adoecer de novo. Fez
de tudo para convencer a velha senhora Sie a mandá-lo também para o palá-
cio do Príncipe dos Rios, mas ela sacudia a cabeça, sem nem ao menos uma
resposta.
Passarani-se, assim, alguns meses. Certo dia, uma infausta notícia espa-
lhou-se pelos pavilhões.
— Sabem da novidade? Flor de Verão subiu para a grande terraça do
castelo do Príncipe dos Rios e se afogou!
A coisa parecia inacreditável. Como poderia alguém, vivendo no fundo
do rio, afogar-se?
A-Tuan atormentava-se com a ideia do desaparecimento da moça.

f
— Estamos tão habituados a viver no fundo dágua que a água é o nosso
elemento. No entanto, Flor de Verão subiu à terraça superior do palácio e
se afogou! Não posso acreditar!
— A verdade, repetiam-lhe os amigos, é que ninguém mais a viu.
A-Tuan, no auge do desespero, arrancou da cabeça a faixa de escamas
de ouro e a fez em pedaços: foi buscar suas vestes mais ricas e as reduziu a
frangalhos.
Depois, para acalmar a dor de seu coração, quis voltar para o meio das
flores de magnólia, onde ele e Flor de Verão se haviam encontrado.
33
Seguiu pelas galerias, atravessou
a primeira porta, foi adiante, até en-
contrar a segunda. Abriu-a e ei-lo no
bosque.
Pareceu-lhe que seu coração pa-
rasse de bater, tão viva era a lembran-
ça de seu primeiro e último encontro
com Flor de Verão.
Depois de muito caminhar, de re-
pente, se viu às fraldas de u'a muralha
altíssima, à qual estava apoiada uma
escada que parecia não ter fim.
A-Tuan comprovou, com estupor,
que a muralha era formada pelas águas
do rio, de tal maneira solidificadas que
jamais algném poderia atravessá-la.
Trepou rápido escada acima. Chegou
a alcançar a altura das magnólias e foi
subindo, subindo, até ultrapassá-las...
"Sabe-se lá onde vai ter esta es-
cada!" dizia consigo. "Estou exausto,
não aguento mais! Se esta subida não
tem fim, vou rolar lá para baixo de
cansaço."
Subitamente, a escada terminou.
E, um pouco mais acima, terminava a
muralha também. A-Tuan trepou al-
guns metros mais, até galgar o muro
e, de lá, atirou-se do outro lado.
Ao voltar a si da vertigem provocada
pela queda, tentou nadar. Viu, com sur-
presa indizível, que o sol resplandecia
sobre sua cabeça e que as águas do rio se
estendiam em volta dele. Estava livre!
Estava de novo na terral
Louco de alegria, deixou-se levar pela
correnteza e, ora nadando, ora boiando,
chegou à margem.
— Ei, você aí, gritou-lhe um pescador
que lançava a sua rede; de onde vem?
— A minha jangada naufragou e não
sei exatamente onde estou.
— De que aldeia és?
— De Su-Chian.
— Pode julgar-se um rapaz de sorte:
não está longe. Só tem que chegar à cur-
va do rio, que atravessa o vale.

A-Tuan agradeceu e- saiu correndo na


direção indicada. Não tinha a mínima ideia
do tempo que estivera ausente. Parecia-
lhe que a estação do ano era a mesma de
quando caíra no lago.
De repente, descortinou sua aldeia na-
tal. Com passo mais compassado, refrean-
do a emoção, chegou à casinhola onde nas-
cera e se criara.
Estava já quase a entrar, quando ou-
viu, lá de dentro, uma voz jubilosa que
dizia:
— Senhora Chiang, seu filho está aqui!
A-Tuan estacou. Aquela voz, embora
só uma vez a tivesse ouvido, ficara-lhe pa-
ra sempre no coração. Não, não era pos-
sível que se enganasse!
35
De fato, lá estava, para recebê-lo à soleira da porta, junto a sua velha
mãe, Flor de Verão, que lhe sorria com olhos brilhantes de alegria.
Contou-lhe que, lá no palácio do Príncipe dos Rios, sentia-se morrer de
melancolia. Pensara, então, que, talvez, subindo ao telhado mais alto, pu-
desse avistar o pavilhão onde vivia A-Tuan e saudá-lo de longe. Às escon-
didas, fora à terraça, mas, ao espichar o pescoço para enxergar mais longe,
perdera o equilíbrio e caíra. Mas, tal como acontecera com A-Tuan, a que-
da, em lugar de arrastá-la para o fundo, fizera-a boiar nas águas do rio.
Fora recolhida por uma jangada que passava e, tendo sabido que sua
família perecera num naufrágio, dera o nome da mãe de A-Tuan, para cuja
casa a haviam acompanhado,.
A velha senhora Chiang chorara de comoção, ao saber que o filho vivia.
Depois, derramara novas lágrimas ao pensar que jamais o tornaria a ver.
Flor de Verão, porém, tinha muita esperança. E os fatos vieram-lhe dar
razão.
Casaram-se em meio à alegria geral. Dançaram para o encantamento
de todos os presentes que se desfizeram em elogios.
Só o Príncipe Dragão, tendo perdido seus melhores dançarinos, por
muito tempo viveu acabrunhado e inconsolável.
"-

Fabula dos Irmãos Grimm


rã uma vez uma rainha...
Certo dia, em pleno inverno, sentara-se ela a costurar diante du-
ma janela de grades de ébano. De repente, a agulha picou-lhe o
dedo. O sangue rubro formava tão belo contraste com a alvura de sua pe-
le que ela pensou:
"Como eu gostaria de ter uma filha de brancura de neve, faces rubras
como sangue e cabelos negros como o ébano desta janela..."
Tempos depois, nascia-lhe uma criança alva como a neve, de faces ru-
bras como sangue e cabelos negros como ébano, tal como a quisera. Cha-
mou-lhe Branca de Neve.
Desgraçadamente, porém, a pequena nascera havia apenas alguns dias,
quando a bondosa rainha morreu. E o rei, para não deixar sem os carinhos
de mãe a princesinha, um ano mais tarde, voltou a casar-se.
A nova rainha era mulher de rara beleza, mas tão cheia de orgulho e
vaidade que não suportava a ideia de que pudesse haver no reino formosu-
ra que superasse a sua. Possuía um espelho mágico que tinha o poder de
responder a qualquer pergunta se lhe fizesse. E, todas as manhas, o consul-
tava:
— Espelhinho, espelhinho, diga-me:
Quem no meu reino é a mais bela?
E o espelho respondia:
— Em todo o seu reino você é a mais bela!
A rainha se alegrava, pois sabia que o espelho não mentia. Passavam-se
assim os anos. Branca de Neve ia crescendo em idade e em formosura. E
chegou a hora em que, ao interrogar o espelho:
— Espelhinho, espelhinho, diga-me:
Quem no meu reino é a mais bela ?
o espelho respondeu:
— Senhora Rainha, era você a mais bela
Mas Branca de Neve tem, agora, esplendor de estrela.
Encheu-se de raiva e despeito o coração da rainha. Desde então, passou
* a odiar Branca de Neve, com ódio tão forte que era obcessão.
Certo dia, mandou vir à sua presença um dos caçadores da corte e lhe
ordenou o seguinte:
— Leve a menina para a floresta: não quero mais vê-la. Desejo que a
mate e, como prova de que, realmente, foi cumprida a minha ordem, deve
trazer-me o seu coração.
O caçador levou Branca de Neve para o bosque. Ao erguer, porém, o fa-
cão para matá-la, ela aos prantos implorou-lhe:
— Caçador, querido caçador, tenha clemência! Fugirei para o lado mais
selvagem da floresta e nunca mais voltarei para casa.
O caçador, que era bondoso, se enterneceu.
— Pois bem, vá, pobre menina.
Em seu intimo, porém, pensava com tristeza: "Desgraçadamente, será
devorada pelos lobos ou por qualquer outro animal feroz".
Precisamente naquele instante, por ali passava um ursinho. O caçador
seguiu-o, matou-o e se apoderou de seu coração, que foi entregar à rainha
como prova de que executara suas ordens.
E Branca de Neve ficou sozinha na floresta imensa, temerosa de tudo,
até do farfalhar das folhas, sacudidas pelo vento. Deitou a correr, mas tro-
peçava nas pedras pontudas. Sentia-se presa pelo vestido aos gaíhos mais
baixos e aos espinhos. Todavia, os animais ferozes deixavam-na «m paz.
Vagou, vagou sem rumo até quando
seus pés puderam levá-la. Finalmente, ao
cair da noite, avistou uma casa surpreenden-
temente pequena. Como estivesse exausta,
entrou.
Lá dentro, todas as coisas eram peque-
ninas, mas de muito gosto e cuidadosamente
arrumadas. A mesa, minúscula, estava pos-
ta para sete pessoas. Sobre a toalha muito
branca havia sete pratinhos, cada qual com
seus talheres ao lado e seu copinho à frente.
Contra a parede, enfileiravam-se sete
caminhas, cobertas com suas colchas bran-
cas como a neve.
Branca de Neve tinha fome e tinha se-
de. Comeu um bocadinho da comida de ca-
da prato e um nacozinho de cada um dos se-
te pães. E, de cada copo, serviu um gole
de vinho. Depois, sentindo-se cansadíssima,
quis deitar-se, mas não cabia em nenhuma
das caminhas: estreita demais era uma, cur-
ta demais era a outra... Por sorte, parecia
que a sétima era menos incómoda. Acomo-
dou-se nela e, por fim, pôde deitar-se. Fez
suas orações e adormeceu.
Já era noite, quando chegaram os donos
da casa pequenina: eram sete anões que, to-
dos os dias, pacientemente, com suas ferra-
mentas, cavavam a terra e extraiam o miné-
rio da montanha.
Acenderam suas sete lanterninhas e, as-
sim que a casa se iluminou, perceberam que
alguém estivera ali, porque as coisas já não
estavam arrumadinhas como as haviam dei-
xado pela manhã, ao sair para o trabalho.
Disse o primeiro anãozinho:
— Quem esteve sentado na minha cadeira?
E o segundo disse:
— Quem andou comendo do meu prato?
E o terceiro:
— Quem tirou um pedaço do meu pãozinho?
E o quarto:
— Quem tocou na minha carne?
E o quinto:
— Quem pegou no meu garfo?
O sexto resmungou:
— Quem cortou com a minha faca?
E o sétimo disse:
— Quem bebeu do meu copo?

a o primeiro, olhando ao redor descobria outras novidades.


— Quem se deitou na minha cama? perguntou, ao ver as cobertas em
desordem. -
Ao ouvi-lo, os outros se aproximaram e exclamaram, em coro:
— Alguém esteve deitado em nossas camas!
O sétimo anãozinho, correndo a examinar a sua, deu com Branca de
Neve adormecida. Chamou os companheiros.
— Ó que menina mais linda! foi a voz geral.
Tão comovidos estavam com sua presença, que não a quiseram incomo-
dar: deixaram-na ficar deitadinha e o sétimo anão acomodou-se como pôde
ora numa cama, ora noutra. 41
Na manhã seguinte, Branca de Neve teve um grande susto, ao desper-
tar, quando viu os anõezinhos. Eles, porém, usaram da máxima delicadeza
com ela; quiseram logo saber quem fosse.
— Como se chama?
— Eu me chamo Branca de Neve.
- E como chegou até aqui?
Ela contou-lhes tudo o que acontecera: a madrasta dera ordem ao ca-
çador que a matasse; mas ele, bondoso, poupara a sua vida e ela caminhara
o dia todo antes de ir ter a casinhola.
Os anõezinhos propuseram-lhe:
— Quer ficar morando conosco para sempre? Nada de mal lhe aconte-
ceria aqui. Ficaria encarregada de manter a nossa casa limpinha e sempre
em ordem.

— Como não! concordou logo Branca de !Neve. Uom muito gosto fica-
rei aqui.
E assim foi. Passou a morar com os anõezinhos. Arrumava a casa en-
quanto eles iam à mina em busca de ouro e pedras preciosas. À noite,
quando voltavam, fazia-os encontrar o jantar pronto. Como ficasse o dia to-
do sozinha em casa, haviam-na prevenido:
— Deve desconfiar de sua madrasta, que não tardará em saber onde
você está. Não deixe entrar ninguém sob nenhum pretexto.
A rainha acreditara que o coração do ursinho fosse, realmente, o de
Branca de Neve. Estava pois, segura de que era a mulher mais formosa do
reino. Um belo dia, porém, querendo certificar-se mais uma vez, interrogou o
espelho.
— Espelhinho, espelhinho diga-me:
Quem, no meu reino, é a, mais bela?
E o espelho respondeu:
-r

'Í'"
— Aqui no castelo, ó rainha, você é sempre a mais bela. Mas Branca de
Neve na casinha dos anões, lá ao longe, para além das montanhas, é mil ve-
zes mais bela e tem esplendor de estrela.
Qual não foi o espanto da rainha! Sabendo que o espelho não mentia,
sentiu-se ludibriada, traída. O caçador a enganara! Branca de Neve conti-
nuava viva e, o que era pior, continuava linda! Pôs-se a matutar, dando
tratos à imaginação. Mil planos arquitetou e acabou por resolver o seguin-
te: Disfarçada em velha vendedora ambulante, atravessou as montanhas e
foi bater à porta dos sete anões, apregoando:
— Trago bela mercadoria.. . trago bela mercadoria para vender.. .
Branca de Neve debruçou-se à janela e, curiosa, quis saber:
— Bom dia, boa senhora, o que tem para vender?
44
— Bela mercadoria: cintos, corpetes
e fitas de todas as cores, disse ela, mos-
trando alguns artigos.
"Ora, essa velhinha bem que eu po-
dia deixar entrar" pensou Branca de Ne-
ve, incauta.
E, querendo escolher umas fitas pa-
ra o corpete, abriu a porta.
— Nem pode crer como a enfeitam!
exclamou a velha, enquanto Branca de
Neve as enfiava nos ilhoses. Venha, dei-
xe que as amarre...
Branca de Neve, confiante, deixou-
a apertar os laços. Mas a velha apertou
tão depressa e com tamanha força que
a fez perder o fôlego e cair por terra,
como morta.
"Agora, pensou a velha, retirando-
se às pressas, realmente sou a mais
bela!"
À noite, os anõezinhos assustaram-se muito, quando, ao voltarem, encon-
traram Branca de Neve estendida no chão, imóvel e sem respiração. Com o
maior cuidado, ergueram-na e, ao ver o corpete apertado demais, cortaram
logo as fitas...
Branca de Neve voltou a respirai e, aos poucos, foi-se recobrando.
Ao terem notícia do que se passara, os anõezinhos não hesitaram.
— A vendedora ambulante outra não era senão a tua madrasta! Mulher
malvada! Tenha cuidado, menina, não torne a deixar entrar alguém quan-
do estiver só.
Nesse ínterim, a rainha estava de volta ao palácio. Fora correndo ao
^spelho, com a pergunta de sempre:
— Espelhinho, espelhinho, diga-me:
Quem, no meu reino, é-a mais bela?
E o espelho respondeu:
Aqui, no castelo, você é sempre a mais
bela. Mas Branca de Neve, na casinha dos
anões, lá ao longe, para além das montanhas,
é mil vezes mais bela e tem esplendor de es-
trela.
45
De raiva, a rainha empalideceu.
"Mas,- desta vez, pensou, hei de inventar alguma coisa que não falhe:
não descansarei enquanto não a vir morta!"
Envenenou um pente e, de novo, rumou para as montanhas, disfarçada
em velhinha. Bateu à-porta e gritou:
— Trago boa mercadoria...
Branca de Neve espiou por uma fresta e disse:
— Não posso deixá-la entrar: retire-se!
— Mas pode sempre dar uma olhadela, insistiu a velhinha, erguendo o
pente envenenado para que o visse.
Branca de Neve achou-o tão lindo, tão lindo, que não pôde resistir ao
desejo de comprá-lo. E abriu a porta.
A velha propôs:
— Deixe que eu a penteie!
Branca de Neve consentiu, mas, nem bem o pente passara por seus ca-
belos caiu, sem sentidos.
— Desta vez, você não escapa! exclamou, triunfante, a rainha má.
E fugiu.
Afortunadamente, naquele dia os anões voltaram mais cedo para casa.
Assim que viram Branca de Neve, suspeitaram que se tratava de novo male-
fício de sua madrasta. Descobriram o pente, arrancaram-no dos cabelos da
menina e ela logo voltou a si. E contou-lhes o que acontecera.
Novamente, com toda a paciência, seus amigos fizeram-lhe ver os riscos
sérios que corria por ser imprudente. Não voltasse a abrir a porta a nin-
guém, fosse quem fosse!
Já no palácio, a primeira coisa que fez a rainha foi consultar o espelho:
— Espelhinho, espelhinho, diga-me:
Quem, no meu reino, é a mais bela?
E o espelho, mais uma vez, respondeu:

— Aqui, no castelo, você é sempre a mais bela. Mas Branca de Neve,


na casinha dos anões, lá ao longe, para além das montanhas, é mil vezes mais
bela e tem esplendor de estrela.
Desvairada, jurou que Branca de Neve havia de morrer, nem que, para
isso, tivesse ela própria que pagar com a vida. Dirigiu-se para um quarto
secreto do palácio e ali preparou unia maçã embebida em veneno poderosís-
simo. Para se ver, era linda a fruta: de um colorido vermelho de dar água na
boca. Mas, ai de quem provasse um só bocadinho: teria morte instantânea!
Assim que a maçã ficou pronta, vestiu-se de camponesa e, novamente,
foi a casa dos anões. Bateu à porta e Branca de Neve assomou à janela.
Como das outras vezes, disse:
— Tenho ordem para não deixar entrar ninguém: os anoezinhos me
proibiram.
— Pois é uma pena, disse a falsa camponesa: assim não vou poder ven-
der as minhas maçãs tão lindas. Mas aqui está uma que lhe quero iar de
presente.
— Não, defendeu-se Branca de Neve. Não posso aceitá-la.
— Comovi Tem medo de que esteja envenenada? Olha, vou parti-la ao
meio: a parte mais branca para mim, a vermelha para você.
A maçã, na realidade, só estava envenenada na parte vermelha.
Branca de Neve, ao ver que a camponesa comia a fruta, estendeu a mão
para apanhar a outra metade.
Mal a provou, caiu por terra, morta.
A rainha fitou-a com olhos carregados de ódio e, escarnecendo, mur-
murou:
— Alva como a neve, rubra como sangue, negra como ébano! Desta vez
seus amigos anões não a farão voltar à vida!
De volta ao palácio, foi, sôfrega, ao espelho:
— Espelhinho, espelhinho, diga-me:
Quem, no meu reino, é a mais bela?
E, naquele dia, ele respondeu:
— Em todo o seu reino, é você a mais bela.
4'8
Ao voltarem à noite, os anões deram
com Branca de Neve estirada no chão. Pa-
recia que de seu corpo a vida tivesse fugido.
Ergueram-na, procurando reanimá-la.
Desataram-lhe o corpete, soltaram-lhe os ca-
belos. Mas foi tudo em vão. Vendo balda-
dos os seus esforços, convenceram-se, com
profunda mágoa, de que estava morta.
Estenderam-na numa das caminhas e,
por três dias a fio, choraram a sua perda.
Queriam enterrá-la, mas como, por seu as-
pecto fresco, parecia que ainda vivesse, con-
cluíram entre si:
— Não podemos enterrá-la debaixo des-
sa terra tão preta!
Construíram um esquife de cristal, a fim
de que Branca de Neve, rosada e linda, pu-
desse ser vista. Sobre o cristal, escreveram
com letras de ouro: Filha do Eei. Depois,
transportaram o esquife para uma rocha nas
proximidades, mas não a deixaram sozinha.
Um de cada vez, alternadamente, montava
guarda junto ao seu corpo.
Por muito tempo, Branca de Neve ali
permaneceu, imóvel e tranquila. Parecia
dormir. Tinha sempre a pele alva como ne-
ve, as faces rubras como sangue e os cabelos
negros como ébano.
Certo dia, passou por ali um príncipe.
Através do cristal, viu aquele semblante tão
lindo e apaixonou-se pela princesinha morta.
— Dêem-me esse caixão, propôs aos
anões, e eu lhes pagarei o preço que pedi-
rem.
Mas eles responderam:
— Nem por todo o ouro do mundo ven-
dê-lo-íamos.
— Façam-me então, presente dele, dis-
se o príncipe, porque sem Branca de Neve já não posso viver. Levando-a
comigo, todos os dias de minha vida hei de protegê-la e prestar-lhe home-
nagem.
Percebendo-lhe a sinceridade e o amor por Branca de Neve, os anões
compadeceram-se dele e lhe fizeram presente do esquife de cristal.
O príncipe ordenou aos homens de seu séquito que o carregassem às cos-
tas. Imediatamente, foi obedecido; porém, como o terreno fosse escorrega-
dio e acidentado, tropeçaram na raiz de uma árvore. Com o choque, o pedaço
de maçã que Branca de Neve tinha entalado na garganta pulou-lhe da bo-
ca e ela, aos poucos, foi abrindo os olhos. Ergueu-se e disse, assustada:

— Para onde me leva? Quem é você?


Com o coração aos pulos, jubiloso, o príncipe desceu do cavalo e chegou-
se para perto dela.
— Comigo você está a salvo. Vou levá-la ao castelo de meu pai e será
minha esposa.
-— Consinto em ser sua esposa, respondeu ela ao príncipe, mas com uma
condição: a de visitar frequentemente os meus amiguinhos que tanto bem
me quiseram.
O príncipe acedeu prazeroso ao seu pedido.
Celebraram-se as núpcias sem demora, com grande esplendor e magni-
ficência. Reis e príncipes dos reinos vizinhos foram convidados e, entre eles,
a madrasta de Branca de Neve.
50
A rainha vestiu seu traje mais suntuoso e, como sempre, dirigiu-se ao
fiel espelho:
— Espelhinho, espelhinho, diga-me:
Quem, no meu reino, é a mais bela?
E ele respondeu:
— No castelo, ó rainha, você é sempre a mais bela.
Hoje, porém, a noiva tem esplendor de estrela.
Enfureceu-se a rainha. Já não sabia o que fazer. Seu primeiro impul-
so foi não ir à festa; venceu-a, porém, a curiosidade de ver quem seria a jo-
vem princesa, cuja formosura superava a sua.
Chegando ao castelo, reconheceu imediatamente Branca de Neve e tal
choque sofreu que, por um instante, quedou sem palavras e sem movimen-
to. Ao recobrar-se, tentou fugir, mas a multidão reclamava do rei que lhe
desse o castigo merecido.
Coberta de trapos, apagada e esquecida, viveu por muitos anos num ca-
labouço escuro. Só Branca de Neve ia visitá-la.
Os que são bons desconhecem o ódio e o ressentimento: esquecem o mal
de que são vitimas.
arbosOj ia um soldado a marchar pela estrada: um, dois, um,
dois! Vinha da guerra; trazia a espada à cintura e um saco às cos-
tas. Pelo caminho, encontrou uma velha bruxa, de boca enorme.
— Boa tarde, soldado, saudou-o. Que bela espada tem e como é grande
esse seu saco! Tem ar de valente, de verdadeiro soldado, por isso, quero f a-
zê-lo possuidor de todo o dinheiro que deseja.
— Obrigado, velha bruxa, disse o soldado.
— Yê essa árvore grande? pergun-
tou ela, apontando para uma árvore ali
perto. Está completamente oca por den-
tro. Trepe até o cimo e, de lá verá um
buraco fundo, por onde deverá descer
até chegar à raiz. Vou amarrá-lo a uma
corda e, quando quiser, puxá-lo-ei de vol-
ta para cima.
— E o que hei de fazer, lá dentro
da árvore?
— Procurará o dinheiro. Chegando
ao fundo do buraco, encontrará um cor-
redor de três portas, levando cada uma
a um aposento diferente. O primeiro en-
cerra moedas de cobre, o segundo, moe-
das de prata e o terceiro, moedas de
ouro.
Montando guarda diante dos' três
cofres de dinheiro, estão três cachorros:
um, de olhos grandes como xícaras; ou-
tro, de olhos grandes como rodas de moi-
nho; e o último, de olhos grandes como
torres. Não tema. Agarre os cães, me-
ta-os no avental que lhe darei para esse
fim, abra os cofres e tome quanto di-
nheiro quiser.
— Obrigado., . Mas você, em troca
de tudo isso, que A^ai querer?
— N"em um níquel sequer. Em com-
pensação, quero o candeeiro que esqueci
lá embaixo.
O soldado obedeceu. Descendo ár-
vore abaixo, encontrou-se realmente de
fronte à primeira porta, que abriu: lá
estava o cão de olhos grandes como xíca-
ras. Colocou-o no avental da bruxa,
abriu o cofre, encheu os bolsos de moe-
das de cobre e, sem perda de tempo, pas-
sou ao segundo aposento.
— Se me olha demais é capaz de machucar a vista, disse o
soldado ao segundo cachorro, que tinha olhos do tamanho de
rodas de moinho. E meteu-o, também, dentro do avental da
bruxa. Depois, vendo o cofre repleto de moedas de prata, des-
fez-se do dinheiro de cobre e encheu de prata o saco e os bolsos.
Dali passou ao terceiro aposento. Ó horror! O cachorro ti-
nha olhos do tamanho de uma torre, a girar-lhe na cabeça com
o se fossem duas rodas.
— Boa noite, disse o soldado, saudando-o à militar, pois que
nunca" vira um cão como aquele. Aproximou-se, agarrou-o e lhe
deu o mesmo destino dos outros dois. Depois, abriu o cofre e,
com grande satisfação viu que havia ali ouro a granel, o sufici-
ente para comprar toda a cidade de Copenhagen, todas as balas
e todos os doces das confeitarias, todos os soldadinhos de chum-
bo, todos os cavalinhos de pau, todos os brinquedos deste mun-
do! Bem depressa, esvaziou o saco das moedas de prata e car-
regou-se de ouro: no saco, nos bolsos, nas botas, a ponto de mal
poder caminhar. Estava rico! Voltou a colocar o cachorro
em cima do cofre, fechou a porta e gri-
tou pelo oco do tronco acima:
— Puxe-me agora daqui, velha
bruxa.
— Tem o candeeiro? perguntou ela.
— Ora demónios, não 'é que me es-
queci dele?
— Pois então volte, procure-o que
depois eu o ergo cá para cima, intimou-
o a bruxa.
Vasculhou por toda a parte até en-
contrá-lo. Só então a bruxa o fez subir.
Ei-lo de novo na estrada, com os bolsos,
o saco,, as botas e o chapéu regurgitan-
tes de ouro.
— O que vai fazer com este cande-
eiro? indagou da bruxa.
— Não é da sua conta. Conseguiu o
dinheiro; dê-me agora o que é meu.
— Deixe de conversa! Diga-me lo-
go o que pretende fazer com ele, ou de-
sembainho a espada e aqui mesmo dou
cabo de você, ameaçou ele.
A bruxa assustou-se e deitou a cor-
rer pela estrada a fora, deixando com o
soldado o candeeiro.
Ele, então, despejou o dinheiro todo no avental da bruxa, amarrou-o
bem, carregou-o às costas. Pôs no bolso o candeeiro e seguiu, todo alegre,
rumo à cidade vizinha.
Ao longo do caminho, ia a cismar, pensando em todas as coisas com que
sempre sonhara sem poder tê-las. "Finalmente, vou viver sem .medir gas-
tos", dizia consigo.
Chegando à cidade, entrou no melhor hotel, pediu o mais belo aposen-
to e as iguarias suas preferidas. Era tão rico! Suas roupas, na verdade, es-
tavam bem surradas, tanto que o empregado a quem as entregou para que
-as limpasse não pôde deixar de se admirar: aquilo não eram roupas de grão-
senhor! Faltara-lhe tempo para substituí-las por outras novas, coisa que fez
logo no dia seguinte.
E assim, ei-lo agora transformado em grão-senhor autêntico! Indica-
ram-lhe tudo o que havia na cidade de bonito para se ver, e não deixaram
de lhe falar no rei e na princesa, sua filha, esplendidamente linda.
— Pode-se vê-la? indagou logo o soldado.
— É bem difícil: ela mora num grande castelo de cobre, cercado de mu-
ralhas e de torres.
— E por que foi fechar-se naquele castelo? perguntou ele ainda.
— Foi o rei que a fechou lá, para impedir que se realize uma profecia
feita à princesa há muitos anos, quando era menina,
— Que profecia foi essa? quis saber o soldado.
— Predisseram-lhe que se casaria com um simples soldado e o rei, pa-
ra que isso não aconteça, não permite a ninguém que se aproxime da bela
princesa. Só ele pode entrar no castelo de cobre e conversar com ela.
"Pois eu queria vê-la" pensou o soldado, instantaneamente. "Mas, co-
mo hei de obter consentimento para isso?"
E enquanto não a via, levava vida despreocupada: de teatro a teatro à
noite; e, durante o dia, em passeios de carruagens pelos jardins do rei. E,
como soubesse o quanto é penoso viver sem dinheiro, era generoso com o
seu.
Agora que era rico e trajava com elegância, tinha amigos por toda a
parte, gente que vivia a elogiá-lo, estimulando-lhe a vaidade. Mas, à for-
ça de gastar sem medida, como não tivesse outras entradas, um belo dia,
viu-se possuidor de duas moedas apenas. Foi forçado a abandonar o apo-
sento luxuoso onde se hospedava para se abrigar no sótão dç uma espelunca.
Engraxava ele próprio as botas e chegou ao ponto de tê-las de remendar
com uma agulha grossa e comprida. Nenhum de seus amigos vinha vê-lo:
havia muita escada para subir!...
Certa noite muito escura, não tendo
tido a possibilidade de comprar uma ve-
la, lembrou-se do candeeiro da bruxa,
onde deixara ficar um toco. Foi buscá-
lo e . . . ó surpresa! no instante em que, .
do resto de vela, jorrou a luz, a porta
se abriu de repente e por ela entrou o •*,
cachorro de olhos grandes como duas xí-
caras, dizendo-lhe:
— O que ordena, meu senhor?
— Que novidade será esta?! excla-
mou o soldado, estupefacto. Então esse
candeeiro tem o poder de me dar tudo
o que desejo? Vá logo, traga-me di-
nheiro !

O animal saiu e dali a instantes es-


tava de volta, trazendo na boca um sa-
co cheio de moedas.
O soldado aprendeu logo a avaliar
a preciosidade que tinha. Acendendo
uma vez o candeeiro, era o cachorro do
cofre das moedas de cobre que aparecia.
Acendendo duas, era o do cofre de moe-
das de p£frta e, acendendo três, era o do
cofre das moedas de ouro.
Voltou a morar em seu quarto sun-
tuoso e a vestir-se com elegância. E os
amigos não tardaram em procurá-lo...
Certo dia, o pensamento da bela
princesa prisioneira voltou a ocupar-lhe
a mente. "Não deixa de ser estranho is-
so da gente não conseguir ver a prince-
sa! De que lhe serve ser tão bela. encer-
rada numa prisão de cobre? Não have-
rá mesmo meio de se poder vê-la? Onde
está o meu candeeiro?"
Acendeu-o e logo apareceu o cachor-
ro dos olhos grandes como xícaras.
— Desculpe, sei que é muito tarde. Mas eu queria ver a princesa, nem
que fosse por um instante só.
O cachorro retirou-se. Mas, num abrir e fechar de olhos, estava de vol-
ta, trazendo na garupa a princesa. Tão formosa era e tão gentil que basta-
va deitar-lhe um olhar para perceber que era de estirpe real.
O soldado ardia em desejos de lhe falar, mas, como dissera ao cachorro
que só o que queria era vê-la, este não lhe deixou tempo para mais nada:
assim como aparecera, desapareceu, levando-a consigo.
Na manha seguinte, a princesa contou ao rei e à rainha o estranho so-
nho que tivera: montara na garupa de um cachorro de olhos grandes como
xícaras, que a levara até à casa de um soldado.
Nessa mesma noite, a rainha designou uma velha dama da corte para
vigiar a princesa. Sabia-se lá se era sonho ou realidade aquela estranha es-
capadela noturna!
O soldado passou o dia obcecado pela ideia de rever a princesa. E, à noi-
te, voltou a chamar o cão, que foi de novo ao palácio, fê-la montar em seu
lombo e, com ela às costas, fugiu em desabalada corrida, rumo ao quarto de
seu amo. Mas a velha dama saiu-lhes ao encalço. Correu até ver a casa onde
o cachorro entrou. "Agora já conheço o endereço", pensou. E, tomando um
pedaço de giz, marcou com ele a porta. Feito isto, voltou para o palácio, sa-
tisfeita pela missão cumprida, e foi deitar-se tranquila.
Logo após, o cachorro saía com a
princesa. Vendo marcada a porta, dese-
nhou uma cruz idêntica nas portas de to-
das as casas da cidade. Ideia genial para
confundir os que viessem procurar a porta
do soldado.
De fato, na manhã seguinte, o rei, a
-rainha, a velha dama de honra e todos os
oficiais do reino sairam a ver onde estive-
ra a princesa durante a noite.
— É ali, disse o rei, ao dar com a pri-
meira porta assinalada.
— Não; é aqui, meu caro, replicou a
rainha, diante da segunda porta que tra-
zia, também, a marca da cruz!
— Aqui está outra! E lá adiante mais
outra! diziam todos, apontando para as
cruzes idênticas em todas as portas.
Compreenderam que era inútil conti-
nuar a busca e regressaram ao palácio.
A rainha porém, era mulher inteligen-
te e arguta, capaz de outras coisas além
de passeios e festas. Apanhou suas tesou-
ras de ouro, cortou um pedaço de seda e
costurou um saquinho. Encheu-o de fari-
nha da mais fina; depois, com uma agu-
lha, fez nele um furinho imperceptível e
foi pregá-lo no ombro do vestido da prin-
cesa. A farinha se espalharia ao longo do
percurso e assim, ela, a rainha, acompa-
nhando o rasto deixado, iria ter facilmen-
te à casa do soldado misterioso que todas
as noites mandava raptar a princesa. E
o impediria categoricamente de voltar a
vê-la.
'

À noite, o cachorro repetiu a façanha e conduziu a princesa à presença


do soldado, que sonhava em ser príncipe para poder desposá-la, tão apaixo-
nado estava.
Os planos da rainha não falharam: a farinha estendera-se, realmente, ao
CD do caminho, do castelo à casa do soldado, sem que o cão se desse conta.
63
E assim foi que, no dia seguinte, o rei, a rainha e toda a
corte, descobriram, por fim, quem é que a princesa estivera vi-
sitando.
O rei, indignado, ordenou aos guardas que prendessem o
soldado e o levassem para a prisão.
E lá se foi ele, feito prisioneiro. Mas ia altivo, confiante
no poder mágico que possuía para livrá-lo de apertos. Porém,
ao revistar os bolsos, teve a triste surpresa de constatar que
esquecera no quarto seu precioso candeeiro. Desalentado, pas-
sou uma noite tremenda. Ficara sabendo que o rei dera ordens
para que o enforcassem logo ao raiar do dia.
Tinha, pois, que reaver o candeeiro antes que nascesse o
sol. Mas, por mais tratos que desse à imaginação, estava sem
saber a quem recorrer.
Amanheceu. Através das grades da janela, podia ver o
povo, deixando a cidade para ir à periferia assistir ao seu en-
forcamento. Iam todos a correr. Houve até um aprendiz de
sapateiro que, na afobação, perdeu, sem se dar conta, uma das
chinelas, que foi bater contra a parede da prisão, debaixo da
janela do soldado.
— Ei, ei, bom homem! gritou-lhe o condenado, que espia-
va através das grades da cela, à espera de alguém que pas-
sasse,
Mas o outro, sem lhe prestar atenção, prosseguiu em sua
carreira.
— A sua chinela! gritou-lhe de novo o soldado.
Desta vez, foi ouvido. O outro voltou-se e veio em busca
da chinela perdida.
— Muito obrigado, disse, ao enfiá-la, já disposto a sair
3orrendo.
— Não se apresse dessa forma, acrescentou o soldado.
— Se não me apresso, interrompeu-o o sapateiro, não al-
canço o enforcamento.
— Detenha-se um instante, sem mim, o espetáculo não co-
meça.
— E por que? indagou o outro.
— Porque sou eu o condenado à forca.
Diante dessa declaração, emudeceu o sapateiro.
— Tenho um favor a pedir-lhe, prosseguiu o soldado. Vá
correndo até o meu hotel, apanhe no quarto o meu candeeiro
e traga-o logo até aqui.
O sapateiro, feliz em poder satisfazer ao último desejo
de alguém prestes a morrer enforcado, saiu na disparada.
Mas, por mais que procurasse ser rápido, só a muito custo
conseguia abrir caminho por entre a multidão que vinha em
sentido contrário.
O soldado, vendo aproximar-se o momento de sua execu-
ção, esperava com ansiedade crescente a volta do sapateiro.
Finalmente, avistou-o, com o candeeiro na mão, e deu
um suspiro de alívio.
— Muito obrigado, bom homem, salvou-me a vida!
O sapateiro estranhou aquelas palavras. Mas, julgou que,
transtornado pela emoção, o soldado estivesse a dizer coi-
sas sem nexo. Cumprimentou-o e seguiu seu caminho.
Nesse ínterim, fora erguida, nos arredores da cidade, uma
grande forca. Cercavam-na os soldados do rei e mais de cem
mil pessoas. O rei e a rainha estavam acomodados em magní-

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