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Pietro Ubaldi

INTRODUÇÃO À I OBRA I – PARTE

II – PARTE III – PARTE


GRANDES MENSAGENS

I. MENSAGEM DO NATAL (NATAL DE 1931) ................................................................................................................................................. 1


II. MENSAGEM DA RESSURREIÇÃO (PÁSCOA DE 1932) ........................................................................................................................... 2
III. MENSAGEM DO PERDÃO ............................................................................................................................................................................ 3
IV. MENSAGEM AOS CRISTÃOS....................................................................................................................................................................... 6
V. MENSAGEM AOS HOMENS DE BOA VONTADE ...................................................................................................................................... 6
VI. MENSAGEM DA PAZ ..................................................................................................................................................................................... 7
VII. MENSAGEM DA NOVA ERA (NATAL DE 1953) ...................................................................................................................................... 8

A GRANDE SÍNTESE

I. CIÊNCIA E RAZÃO ......................................................................................................................................................................................... 11


II. INTUIÇÃO ........................................................................................................................................................................................................ 12
III. AS PROVAS .................................................................................................................................................................................................... 12
IV. CONSCIÊNCIA E MEDIUNIDADE ............................................................................................................................................................. 13
V. NECESSIDADE DE UMA REVELAÇÃO ..................................................................................................................................................... 14
VI. MONISMO ...................................................................................................................................................................................................... 15
VII. ASPECTOS ESTÁTICO, DINÂMICO E MECÂNICO DO UNIVERSO ............................................................................................... 16
VIII. A LEI ............................................................................................................................................................................................................. 17
IX. A GRANDE EQUAÇÃO DA SUBSTÂNCIA ............................................................................................................................................... 18

X. ESTUDO DA FASE MATÉRIA (). A DESINTEGRAÇÃO ATÔMICA................................................................................................... 18


XI. UNIDADE DE PRINCÍPIO NO FUNCIONAMENTO DO UNIVERSO .................................................................................................. 19
XII. CONSTITUIÇÃO DA MATÉRIA. UNIDADES MÚLTIPLAS. .............................................................................................................. 20
XIII. NASCIMENTO E MORTE DA MATÉRIA. CONCENTRAÇÃO DINÂMICA E DESAGREGAÇÃO ATÔMICA ....................... 20
XIV. DO ÉTER AOS CORPOS RADIOATIVOS .............................................................................................................................................. 21
XV. A EVOLUÇÃO DA MATÉRIA POR INDIVIDUALIDADES QUÍMICAS. O HIDROGÊNIO E AS NEBULOSAS........................ 21
XVI. A SÉRIE DAS INDIVIDUAÇÕES QUÍMICAS DO H AO U, POR PESO ATÔMICO E ISOVALÊNCIAS PERIÓDICAS.......... 22
XVII. A ESTEQUIOGÊNESE E AS ESPÉCIES QUÍMICAS DESCONHECIDAS ...................................................................................... 24
XVIII. O ÉTER, A RADIOATIVIDADE E A DESAGREGAÇÃO DA MATÉRIA ( ........................................................................... 25
XIX. AS FORMAS EVOLUTIVAS FÍSICAS, DINÂMICAS E PSÍQUICAS................................................................................................. 26
XX. A FILOSOFIA DA CIÊNCIA ....................................................................................................................................................................... 27
XXI. A LEI DO DEVENIR ................................................................................................................................................................................... 27
XXII. ASPECTO MECÂNICO DO UNIVERSO. FENOMENOGENIA ......................................................................................................... 28
XXIII. FÓRMULA DA PROGRESSÃO EVOLUTIVA. ANÁLISE DA PROGRESSÃO EM SEUS PERÍODOS ...................................... 29
XXIV. DERIVAÇÕES DA ESPIRAL POR CURVATURA DO SISTEMA ................................................................................................... 30
XXV. SÍNTESE LINEAR E SÍNTESE POR SUPERFÍCIE .............................................................................................................................. 30
XXVI. ESTUDO DA TRAJETÓRIA TÍPICA DOS MOVIMENTOS FENOMÊNICOS .............................................................................. 31
XXVII. SÍNTESE CÍCLICA. LEI DAS UNIDADES COLETIVAS E LEI DOS CICLOS MÚLTIPLOS .................................................... 33
XXVIII. O PROCESSO GENÉTICO DO COSMOS ......................................................................................................................................... 34
XXIX. O UNIVERSO COMO ORGANISMO, MOVIMENTO E PRINCÍPIO ............................................................................................. 35
XXX. PALINGENESIA (ETERNO RETORNO) ............................................................................................................................................... 37
XXXI. SIGNIFICADO TELEOLÓGICO DO TRATADO. PESQUISA POR INTUIÇÃO .......................................................................... 38
XXXII. GÊNESE DO UNIVERSO ESTELAR. AS NEBULOSAS – ASTROQUÍMICA E ESPECTROSCOPIA ..................................... 39
XXXIII. LIMITES ESPACIAIS E LIMITES EVOLUTIVOS DO UNIVERSO ............................................................................................ 40
XXXIV. QUARTA DIMENSÃO E RELATIVIDADE ....................................................................................................................................... 41
XXXV. A EVOLUÇÃO DAS DIMENSÕES E A LEI DOS LIMITES DIMENSIONAIS.............................................................................. 42
XXXVI. GÊNESE DO ESPAÇO E DO TEMPO ................................................................................................................................................ 42
XXXVII. CONSCIÊNCIA E SUPERCONSCIÊNCIA. SUCESSÃO DOS SISTEMAS TRIDIMENSIONAIS ........................................... 43
XXXVIII. GÊNESE DA GRAVITAÇÃO ............................................................................................................................................................ 44
XXXIX. PRINCÍPIO DE TRINDADE E DE DUALIDADE .............................................................................................................................. 46
XL. ASPECTOS MENORES DA LEI ................................................................................................................................................................. 48
XLI. INTERREGNO ............................................................................................................................................................................................. 50
XLII. NOSSA META. A NOVA LEI ................................................................................................................................................................... 50
XLIII. OS NOVOS CAMINHOS DA CIÊNCIA ................................................................................................................................................. 51
XLIV. SUPERAÇÕES BIOLÓGICAS ................................................................................................................................................................ 52
XLV. A GÊNESE ................................................................................................................................................................................................... 53
XLVI. ESTUDO DA FASE  – ENERGIA .......................................................................................................................................................... 54
XLVII. A DEGRADAÇÃO DA ENERGIA ......................................................................................................................................................... 56
XLVIII. SÉRIE EVOLUTIVA DAS ESPÉCIES DINÂMICAS ....................................................................................................................... 57
XLIX. DA MATÉRIA À VIDA............................................................................................................................................................................. 58
L. NAS FONTES DA VIDA .................................................................................................................................................................................. 59
LI. CONCEITO SUBSTANCIAL DOS FENÔMENOS BIOLÓGICOS ......................................................................................................... 60
LII. DESENVOLVIMENTO DO PRINCÍPIO CINÉTICO DA SUBSTÂNCIA ............................................................................................ 61
LIII. GÊNESE DOS MOVIMENTOS VORTICOSOS ...................................................................................................................................... 62
LIV. A TEORIA CINÉTICA DA GÊNESE DA VIDA E OS PESOS ATÔMICOS ....................................................................................... 63
LV. TEORIA DOS MOVIMENTOS VORTICOSOS ........................................................................................................................................ 64
LVI. PARALELOS EM QUÍMICA ORGÂNICA .............................................................................................................................................. 65
LVII. MOVIMENTOS VORTICOSOS E CARACTERES BIOLÓGICOS.................................................................................................... 66
LVIII. A ELETRICIDADE GLOBULAR E A VIDA ......................................................................................................................................... 67
LIX. TELEOLOGIA DOS FENÔMENOS BIOLÓGICOS ............................................................................................................................... 70
LX. A LEI BIOLÓGICA DA RENOVAÇÃO ..................................................................................................................................................... 72
LXI. EVOLUÇÃO DAS LEIS DA VIDA ............................................................................................................................................................. 74
LXII. AS ORIGENS DO PSIQUISMO ................................................................................................................................................................ 75
LXIII. CONCEITO DE CRIAÇÃO ..................................................................................................................................................................... 76
LXIV. TÉCNICA EVOLUTIVA DO PSIQUISMO E GÊNESE DO ESPÍRITO ............................................................................................ 77
LXV. INSTINTO E CONSCIÊNCIA. TÉCNICA DOS AUTOMATISMOS .................................................................................................. 78
LXVI. RUMO ÀS SUPREMAS ASCENSÕES BIOLÓGICAS ........................................................................................................................ 79
LXVII. A ORAÇÃO DO VIANDANTE............................................................................................................................................................... 81
LXVIII. A GRANDE SINFONIA DA VIDA ....................................................................................................................................................... 82
LXIX. A SABEDORIA DO PSIQUISMO ........................................................................................................................................................... 84
LXX. AS BASES PSÍQUICAS DO FENÔMENO BIOLÓGICO ..................................................................................................................... 86
LXXI. O FATOR PSÍQUICO NA TERAPIA ..................................................................................................................................................... 87
LXXII. A FUNÇÃO BIOLÓGICA DO PATOLÓGICO .................................................................................................................................... 88
LXXIII. FISIOLOGIA SUPRANORMAL. HEREDITARIEDADE FISIOLÓGICA E HEREDITARIEDADE PSÍQUICA ..................... 88
LXXIV. O CICLO DA EVOLUÇÃO E DA MORTE E SUA EVOLUÇÃO ................................................................................................... 90
LXXV. O HOMEM ................................................................................................................................................................................................ 92
LXXVI. CÁLCULO DE RESPONSABILIDADES ............................................................................................................................................ 93
LXXVII. DESTINO. O DIREITO DE PUNIR .................................................................................................................................................... 95
LXXVIII. OS CAMINHOS DA EVOLUÇÃO HUMANA ................................................................................................................................. 96
LXXIX. A LEI DO TRABALHO ......................................................................................................................................................................... 97
LXXX. O PROBLEMA DA RENÚNCIA ............................................................................................................................................................ 98
LXXXI. A FUNÇÃO DA DOR ........................................................................................................................................................................... 100
LXXXII. A EVOLUÇÃO DO AMOR................................................................................................................................................................ 102
LXXXIII. O SUPER-HOMEM........................................................................................................................................................................... 103
LXXXIV. GÊNIO E NEUROSE ........................................................................................................................................................................ 104
LXXXV. PSIQUISMO E DEGRADAÇÃO BIOLÓGICA ............................................................................................................................... 106
LXXXVI. CONCLUSÕES. EQUILÍBRIOS E VIRTUDES SOCIAIS .......................................................................................................... 107
LXXXVII. A DIVINA PROVIDÊNCIA ............................................................................................................................................................ 109
LXXXVIII. FORÇA E JUSTIÇA. A GÊNESE DO DIREITO ....................................................................................................................... 110
LXXXIX. EVOLUÇÃO DO EGOÍSMO ........................................................................................................................................................... 112
XC. A GUERRA. A ÉTICA INTERNACIONAL ............................................................................................................................................. 113
XCI. A LEI SOCIAL DO EVANGELHO ......................................................................................................................................................... 115
XCII. O PROBLEMA ECONÔMICO............................................................................................................................................................... 116
XCIII. A DISTRIBUIÇÃO DA RIQUEZA ....................................................................................................................................................... 118
XCIV. DA FASE HEDONÍSTICA À FASE COLABORACIONISTA .......................................................................................................... 119
XCV. A EVOLUÇÃO DA LUTA ....................................................................................................................................................................... 120
XCVI. CONCEPÇÃO BIOLÓGICA DO PODER ........................................................................................................................................... 121
XCVII. O ESTADO E SUA EVOLUÇÃO ......................................................................................................................................................... 123
XCVIII. O ESTADO E SUAS FUNÇÕES ......................................................................................................................................................... 125
XCIX. O CHEFE ................................................................................................................................................................................................. 126
C. A ARTE ........................................................................................................................................................................................................... 127
DESPEDIDA ........................................................................................................................................................................................................ 129

AS NOÚRES

I. PREMISSAS ..................................................................................................................................................................................................... 133


II. O FENÔMENO .............................................................................................................................................................................................. 137
III. O SUJEITO ................................................................................................................................................................................................... 147
IV. OS GRANDES INSPIRADOS...................................................................................................................................................................... 151
V. TÉCNICA DAS NOÚRES ............................................................................................................................................................................. 166
VI. CONCLUSÕES ............................................................................................................................................................................................. 176

ASCESE MÍSTICA
PRIMEIRA PARTE – O FENÔMENO ....................................................................................................................................................... 181
I. SITUAÇÃO DO PROBLEMA ........................................................................................................................................................................ 181
II. EVOLUÇÃO DA MEDIUNIDADE .............................................................................................................................................................. 181
III. MEDIUNIDADE – METAFANIA – MISTICISMO .................................................................................................................................. 182
IV. A CATARSE MÍSTICA E O PROBLEMA DO CONHECIMENTO ..................................................................................................... 183
V. OBJETIVISMO E SUBJETIVISMO ............................................................................................................................................................ 184
VI. O MÉTODO DA UNIFICAÇÃO ................................................................................................................................................................. 185
VII. ESTRUTURA DO FENÔMENO MÍSTICO ............................................................................................................................................. 187
VIII. COROLÁRIOS - FÉ E RAZÃO ............................................................................................................................................................... 188
IX. DIAGRAMA DA ASCENSÃO ESPIRITUAL ............................................................................................................................................ 190
X. PRIMEIRO ASPECTO – PLANOS DE CONSCIÊNCIA .......................................................................................................................... 191
XI. SEGUNDO ASPECTO – EXPANSÃO DE CONSCIÊNCIA .................................................................................................................... 192
XII. TERCEIRO ASPECTO – CONSCIÊNCIAS COLETIVAS .................................................................................................................... 193
XIII. EGO SUM QUI SUM ................................................................................................................................................................................. 194
XIV. DA TERRA AO CÉU ................................................................................................................................................................................. 195
XV. METODOLOGIA MÍSTICA ...................................................................................................................................................................... 197
XVI. A NOITE DOS SENTIDOS ....................................................................................................................................................................... 198
XVII. A UNIFICAÇÃO ...................................................................................................................................................................................... 200
XVIII. INCOMPREENSÃO MODERNA ......................................................................................................................................................... 202
XIX. O SUBCONSCIENTE ................................................................................................................................................................................ 202
XX. O SUPERCONSCIENTE ............................................................................................................................................................................ 203

SEGUNDA PARTE – A EXPERIÊNCIA ....................................................................................................................................................... 205


I. EM MARCHA .................................................................................................................................................................................................. 205
II. NAS PROFUNDEZAS.................................................................................................................................................................................... 206
III. DOR ................................................................................................................................................................................................................ 208
IV. RESSURREIÇÃO ......................................................................................................................................................................................... 209
V. A EXPANSÃO ................................................................................................................................................................................................. 211
VI. A HARMONIZAÇÃO ................................................................................................................................................................................... 212
VII. A UNIFICAÇÃO .......................................................................................................................................................................................... 213
VIII. A SENSAÇÃO DE DEUS .......................................................................................................................................................................... 215
IX. CRISTO .......................................................................................................................................................................................................... 216
X. AMOR .............................................................................................................................................................................................................. 217
XI. A REDENÇÃO .............................................................................................................................................................................................. 218
XII. ASCESE DA ALMA .................................................................................................................................................................................... 220
XIII. MINHA POSIÇÃO ..................................................................................................................................................................................... 221
XIV. MOMENTOS PSICOLÓGICOS .............................................................................................................................................................. 224
XV. IRMÃO FRANCISCO ................................................................................................................................................................................. 225
XVI. VISÃO DA CATEDRAL GÓTICA ........................................................................................................................................................... 226
XVII. PROFETISMO .......................................................................................................................................................................................... 226
XVIII. OS ASSALTOS ........................................................................................................................................................................................ 227
XIX. TENTAÇÃO................................................................................................................................................................................................ 229
XX. INFERNO ..................................................................................................................................................................................................... 230
XXI. QUEDA DA ALMA .................................................................................................................................................................................... 230
XXII. MEA CULPA............................................................................................................................................................................................. 231
XXIII. CÂNTICO DA UNIFICAÇÃO ............................................................................................................................................................... 231
XXIV. BEM-AVENTURANÇAS........................................................................................................................................................................ 231
XXV. CÂNTICO DA MORTE E DO AMOR ................................................................................................................................................... 232
XXVI. PAIXÃO. ASSIS, QUINTA-FEIRA SANTA, 1937. .............................................................................................................................. 232

Vida e Obra de Pietro Ubaldi (Sinopse)...........................................................................................................página de fundo


Pietro Ubaldi GRANDES MENSAGENS 1
se ainda mais, se tanto já conseguiu em poucos anos! Não mais
GRANDES MENSAGENS existirão, na verdade, distâncias; os diferentes povos de tal modo
se comunicarão, que haverá uma sociedade única.
A mente humana, porém, troca de direção de quando em
I. MENSAGEM DO NATAL (NATAL DE 1931) quando, vive ciclos, períodos, e, nessas várias fases, deve de-
frontar diferentes problemas. O futuro contém não só continu-
No silêncio da Noite Santa, escuta-me. Põe de lado todo o ações, mas transformações; consequências de um processo na-
saber e tuas recordações; põe-te de parte e esquece tudo. Aban- tural de saturação. O vosso progresso científico tende a tor-
dona-te à minha voz; inerte, vazio, no nada; no mais completo nar-se e tornar-se-á tão hipertrófico – porque não contrabalan-
silêncio do espaço e do tempo. Neste vazio, ouve minha voz çado por um paralelo progresso moral – que o equilíbrio não
que te diz – ergue-te e fala: Sou eu. poderá ser mantido nos acontecimentos históricos. Tem cres-
Exulta pela minha presença; grande bem ela é para ti; gran- cido e, sem precedentes na história, crescerá cada vez mais o
de prêmio que duramente mereceste. É aquele sinal que tanto domínio humano sobre as forças da natureza. Um imenso po-
invocaste deste mundo maior em que vivo e em que tu creste. der terá o homem, mas ele, para isso, não está preparado mo-
Não perguntes meu nome; não procures individuar-me. Não ralmente, porque a vossa psicologia, infelizmente, é, em subs-
poderias; ninguém o poderia. Não tentes uma inútil hipótese. tância, a mesma da tenebrosa Idade Média. É um poder dema-
Sabes que sou sempre o mesmo. siadamente grande e novo para vossas mãos inexperientes.
Minha voz, que para teus ouvidos é terna, como é amiga O homem será dominado por uma tão alargada sensação
para todos os pequeninos que sofrem na sombra, sabe tam- de orgulho e de força, que se trairá. A desproporção entre o
bém ser vibrante e tonante, como jamais a sentiste. Não te vosso poder e a altura ética de vossa vida far-se-á cada dia
preocupes; escreve. Minha palavra dirige-se às profundezas mais acentuada, porque cada dia que passa é irresistivelmen-
da consciência e toca, no mais íntimo, a alma de quem a es- te para vós, que vos lançastes nessa direção, um dia de pro-
cuta. Será somente ouvida por quem se tornou capaz de ouvi- gresso material.
la. Para os outros, perder-se-á no vozear imenso da vida. Não As ideias são lançadas no tempo com massa que lhes é
importa, porém; ela deve ser dita. própria, como os bólidos no espaço. Eu percebo um aumen-
Falo hoje a todos os justos da Terra e os chamo de todas as tar de tensão, lento porém constante, que preludia o inevitá-
partes do mundo, a fim de unificarem suas aspirações e preces vel explodir do raio. Essa explosão é a última consequência,
numa oblata que se eleve ao Céu. Que nenhuma barreira de re- mesmo de acordo com a vossa lógica, de todo o movimento.
ligião, de nacionalidade ou de raça os divida, porque não está Desproporção e desequilíbrio não podem durar; a Lei quer
longe o dia em que somente uma será a divisão entre os ho- que se resolvam num novo equilíbrio. Assim como a última
mens: justos e injustos. molécula de gelo faz desmoronar o iceberg gigantesco, as-
A divisão está no íntimo da consciência, e não no vosso as- sim também de uma centelha qualquer surgirá o incêndio.
pecto exterior, visível. Todos os que sinceramente querem Antigamente os cataclismos históricos, por viverem isolados
compreender o compreendem. Cada um, intimamente, se co- os povos, podiam manter-se circunscritos; agora não. Muitos
nhece, sem que o próprio vizinho possa percebê-lo. que estão nascendo vê-los-ão.
Minha palavra é universal, mas também é um apelo íntimo, A destruição, porém, é necessária. Haverá destruição so-
pessoal, a cada um. Muitos a reconhecerão. mente do que é forma, incrustação, cristalização, de tudo o que
Uma grande transformação se aproxima para a vida do deve desaparecer, para que permaneça apenas a ideia, que sinte-
mundo. Minha voz é singular, porém outras se elevarão, muito tiza o valor das coisas. Um grande batismo de dor é necessário,
em breve, sempre mais fortes, fixando-se em todas as partes do a fim de que a humanidade recupere o equilíbrio livremente vi-
mundo, para que o conselho a ninguém falte. olado; grande mal, condição de um bem maior.
Não temas; escreve e olha. Contempla a trajetória dos Depois disso, a humanidade, purificada, mais leve, mais se-
acontecimentos humanos; ela se estende pelo futuro. Quem lecionada por haver perdido seus piores elementos, reunir-se-á
não está preso nas vossas férreas jaulas de espaço e tempo, em torno dos desconhecidos que hoje sofrem e semeiam em si-
vê naturalmente o futuro. Isso que te exponho à vista é tam- lêncio, retomando, renovada, o caminho da ascensão. Uma nova
bém coerente segundo vossa lógica humana e, portanto, vos era começará; o espírito terá o domínio, e não mais a matéria,
é compreensível. que será reduzida ao cativeiro. Então, aprendereis a ver-nos e a
Os povos, tanto quanto os indivíduos, têm uma responsabi- escutar-nos; desceremos em multidão e conhecereis a Verdade.
lidade nas transformações históricas, que seguem um curso ló- Basta por agora; vai e repousa. Voltarei; porém recorda
gico; existe um encadeamento de causas históricas que, se são que minha palavra é feita de bondade, e somente um objeti-
livres nas premissas, são necessárias nas consequências. vo de bondade pode atrair-me. Onde existir apenas a curio-
A lei da justiça, aspecto do equilíbrio universal, sob cujo sidade, desejo de emoção, leviandade ou ainda céptica pes-
governo tudo se realiza, inclusive em vosso mundo, quer que o quisa científica, aí não estarei. Somente a bondade, o amor,
equilíbrio seja restaurado e que as culpas e os erros sejam cor- a dor, me atraem.
rigidos pela dor. O que chamais de mal, de injustiça, é a natu- Eu presido ao progresso espiritual do vosso planeta, e, para
ral e justa reação que neutraliza os efeitos de vossos atos. Tudo o progresso espiritual, um ato de bondade tem mais valor que
é desejado, tudo é merecido, embora não estejais preparados uma descoberta científica. Não invoqueis a prova do prodígio,
para recordar o “como” e o “quando”. De dor está cheio o vos- quando podeis possuir a da razão e da fé. É vossa baixeza que
so mundo, porque é um mundo selvagem, lugar de sofrimento vos leva a admirar, como sinal de verdade e poder, a exceção
e de provas. Mas não temais a dor, que é a única coisa verda- que viola a ordem divina. Se isso pode assombrar-vos e con-
deiramente grande que possuís. É o instrumento que tendes pa- vencer-vos, a vós, anarquistas e rebeldes, para nós, no Alto, ela
ra a conquista de vossa redenção e de vossa libertação. Bem- constitui a mais estridente e ofensiva dissonância; é a mais re-
aventurados os que sofrem, Cristo vos disse. pugnante violação da ordem suprema em que repousamos e em
O progresso científico, principal fruto de vossa época, ainda cuja harmonia vibramos felizes. Não procureis semelhante
avançará no campo material. Está, entretanto, acumulando ener- prova; reconhecei-a, antes, na qualidade da minha palavra.
gias, riquezas, instrumentos para uma nova e grande explosão.
Imaginai a que ponto chegará o progresso mecânico, ampliando- A todos digo: Paz!
2 GRANDES MENSAGENS Pietro Ubaldi
II. MENSAGEM DA RESSURREIÇÃO alegria, e a alegria lhe voltará. Da outra margem da vida, outras
(PÁSCOA DE 1932) forças velam por ti e te estendem os braços, mais do que tu an-
siosas pela tua felicidade.
De além do tempo e do espaço chega minha voz. É uma voz Falei com o coração ao homem de coração. Falarei agora à
universal que fala ao mundo inteiro e verdadeira permanece inteligência.
através dos tempos. A verdade não pode sofrer mudanças se Tendes, ó homens, a liberdade de vossas ações, nunca a de
olhada por esta ou aquela nação, se observada por uma raça ou suas consequências. Sois senhores de semear alegria ou dor em
outra, porque a alma humana é sempre a mesma em toda parte, vosso caminho, e não o sois de alterar a ordem da vida. Podeis
se examinada em sua profundeza. abusar, porém, se abusardes, a dor reprimirá o abuso. De cada
Venho a vós, na Páscoa, acima de tudo para iluminar e con- um de vossos males, fostes vós mesmos que semeastes as causas.
fortar, pois vos achais imersos numa vaga de dores. Crise a de- O maior erro de vossos tempos é a ignorância da realidade
nominais e a imaginais crise econômica. Eu, porém, vos digo moral, íntima orientação da personalidade, que é o fundamento
que se trata de uma crise universal, crise de todos os vossos va- da vida social.
lores morais, de todas as vossas grandezas. É o desmoronar-se O homem moderno se aproxima de seu semelhante para to-
de todo um mundo milenário. Digo-vos que a crise se encontra mar-lhe alguma coisa, nunca para beneficiá-lo. A vossa civiliza-
sobretudo em vossas almas; crise de fé, de orientação, de espe- ção, que é econômica, está baseado no princípio “do ut des”, que
ranças. É o vertiginoso momento de grandes mutações. é a psicologia do egoísmo. É a força econômica sempre a reger o
Trago-vos esperança, orientação, paz. A cada um falo hoje a mundo. A psicologia coletiva não é senão a soma orgânica dessas
palavra da verdade e do amor, palavra que não mais conheceis. psicologias individuais. A riqueza se acumula onde a força a
Quero reconduzir-vos às origens milenárias da fé com o intelecto atrai, e não onde a necessidade ou superiores exigências a recla-
novo, nascido de vossa ciência. No dia da ressurreição, repito- mam; não constitui instrumento de uma vida de justiça e de bem,
vos a palavra da ressurreição, a fim de que possais compreender mas sim máquina de poder, representando em si mesma um obje-
a dor e ultrapasseis as estreitas fronteiras de vossa vida. Comovi- tivo. A lei de equilíbrio é constantemente violada e impõe rea-
do, falo a cada um no sagrado silêncio de sua consciência. ções. Não dominais a riqueza, conduzindo-a a fins mais eleva-
Ó tu que lês, afasta-te por um momento dos inúteis ruídos dos; é a riqueza que vos domina.
do mundo e escuta! Minha voz não te atingirá através dos sen- Trabalhai, mas que o escopo do vosso trabalho não se reduza
tidos, mas, através desta leitura, senti-la-ás aflorar dentro de ti apenas a proveitos isolados e egoístas, e sim a frutificar no orga-
na linguagem de tua personalidade. Minha voz não chega, co- nismo social; somente então se formará aquela psicologia coleti-
mo todas as coisas, do exterior, contudo surgirá em ti, por ca- va, que é a única base estável da sociedade humana.
minhos desconhecidos, como coisa tua, da divina profundeza Fazei o bem, todavia lembrai-vos de que o pobre não deseja
que em ti existe e na qual também estou. propriamente o supérfluo de vossas riquezas, mas que desçais
O universo é infinito, e de longe venho, atraído pela tua dor. até ele, que partilheis de sua dor e, até, que a tomeis para vós,
Nada me atrai tanto como a dor, porque somente nela o homem em seu lugar.
se torna grande, se purifica e se redime, dirigindo-se para desti- Venerai o pobre; ele será o rico de amanhã. Apiedai-vos
nos mais elevados. É triste serdes assim golpeados, mas, so- do rico, que amanhã será o pobre. Todas as posições tendem
mente sofrendo, podeis compreender a realidade da vida. Exul- a inverter-se, a fim de que o equilíbrio permaneça constante.
ta, porque este é o esforço da tua ressurreição! A riqueza tende para a pobreza, e a pobreza para a riqueza.
A quem sofre eu digo: “Coragem! És um decaído que na Ai daqueles que gozam! Bem-aventurados os que sofrem!
sombra reconquista a grandeza perdida”. Esta é a Lei.
É a justa reação da Lei, que livremente transgredistes e que Não confieis no mundo, que rirá convosco enquanto tiver-
exige o retorno ao equilíbrio; instrumento de ascensão, a dor vos des força e bem-estar; confiai, antes, em mim, que venho quan-
aponta o caminho de que fugistes; impõe-vos reabrirdes vossa do sofreis e vos trago auxílio e conforto. Já vedes, hoje, que a
alma, fechada pelas alegrias fáceis que infelizmente vos cegam, dor realmente existe e que nem o ceticismo nem qualquer poder
para que alcanceis júbilos mais altos e verdadeiros. A dor é uma humano conseguem afastá-la.
força que vos constrange a refletir e a buscar em vós mesmos a Uma radical mudança verificar-se-á na sociedade huma-
verdade esquecida. É imposição de um novo progresso. na, a fim de que a vida não seja um ato de conquista, onde
Abraça com alegria esse grande trabalho que te chama a triunfe o mais forte ou o mais astuto, mas sim um ato de
realizações mais amplas. Se não fosse a dor, quem te forçaria a bondade e de sabedoria, em que seja vitorioso o mais justo.
evolver para formas de vida e de felicidade mais completas? Investigando-as com vossa ciência, achareis no íntimo das
Não te rebeles; pelo contrário, ama a dor. Ela não é uma coisas essa suprema lei de equilíbrio que vos governa;
vingança de Deus, e sim o esforço que vos é imposto para mais aprendereis que a bravura da vida não está em violar essa
uma conquista vossa. lei, semeando para vós mesmos reações de dor, porém em
Não a amaldiçoes, mas apressa-te a pagar o débito contraído segui-la, semeando efeitos de bem. Deveis também aprender
pelo abuso da liberdade que Deus te deu para que fosses consci- que o vencedor não é o mais forte – esse é um violador – e
ente. Abençoa essa força salutar, que, superando as barreiras hu- sim quem segue conscientemente o curso das leis e, sem vio-
manas, sem distinção, transpõe todas as portas, penetra o que é lência, se equilibra no seio das forças da vida. As religiões já
secreto, e fere, e comanda, e dispõe, e por todos se faz compre- o revelaram, entretanto não acreditastes; a ciência o demons-
ender. Abraça a dor, ama-a, e ela perderá sua força. Aceita a in- trará, todavia não desejareis ver. O momento é decisivo. Ai
dispensável escola das ascensões. Se te revoltares, tua força nada de vós se, nesta vitória de civilização material em que vi-
conseguirá contra um inimigo invisível, e a violência, em retor- veis, desejardes ainda perseverar no nível do bruto.
no, mais impetuosamente cairá sobre ti. Está maduro o mundo, mas, ao mesmo tempo, cansado de
Coragem! Ama, perdoa e ressuscita! Não procures nos ou- tentativas e experiências, do irresolúvel emaranhado de vossos
tros a origem de tua dor, mas sim em ti mesmo, e arrepende-te. expedientes; cansado de viver no momento, em face de um
Lembra-te de que a dor não é eterna, porém uma prova que du- amanhã repleto de incógnitas; e quer seriamente prever e resol-
ra até que se esgote a causa que a gerou. Tua dor é avaliada e ver os grandes problemas da vida, quer francamente olhar o fu-
não irá jamais além de tuas forças. O mundo foi criado para a turo, ainda que isso reclame uma grande coragem.
Pietro Ubaldi GRANDES MENSAGENS 3
O mundo tem necessidade da palavra simples e forte da mesmo, pela cobiça, que nunca descansa. Quantos esforços
verdade, e não de novas astúcias a rolarem por velhos cami- empregados para vos envenenar a vida!
nhos. O mundo espera essa palavra com ansiedade, como tam- Ama o trabalho, mas com espírito novo; ama-o, não pelo
bém a aguarda o momento histórico. que ele é propriamente, porém como um ato de adoração a
A psicologia coletiva tem o pressentimento, embora con- Deus, como manifestação de tua alma, nunca como febre de ri-
fuso, de uma grande mudança de direção; sente que o pensa- queza ou domínio. Não prendas tua alma aos seus resultados,
mento humano, não mais infantil, apresta-se para tomar as ré- que pertencem à matéria e, portanto, estão sujeitos à caducida-
deas da vida planetária e que o homem vai substituir o equilí- de; ama, porém, o ato, somente o ato de trabalhar. Não seja a
brio instintivo e cego das leis biológicas por outro equilíbrio, posse, o triunfo, a tua recompensa, mas sim a satisfação íntima
consciente e desejado. Por isso está buscando a luz, para que de haveres cumprido, cada dia, o teu dever, colaborando assim
seu poder não naufrague no caos. no funcionamento do grande organismo coletivo.
Não está longe de desaparecer vossa psicologia experimen- Esta é a única recompensa verdadeira, indestrutível, solida-
tal, que será substituída pela psicologia intuitiva; esta a muito mente tua; as demais depressa se dissipam e se perdem. Ainda
longe conduzirá vossa ciência. Novos homens divulgarão a que nenhum resultado positivo obtivesses, uma recompensa fi-
verdade; não mais serão mártires cobertos de sangue, nem se caria contigo para sempre: a paz do coração, paz que o mundo
assemelharão aos anacoretas de outrora, porém homens de inte- perdeu por prender-se às coisas concretas, julgando-as seguras.
ligência e de fé, que difundirão seus pensamentos utilizando-se Desapega-te de tudo, inclusive do fruto de teu trabalho, se
de moderníssimos recursos, homens que servirão de exemplo queres entrar na posse da paz. Ocupa-te das coisas da Terra,
no meio do turbilhão de vossa vida. mas apenas o suficiente para aprenderes a desapegar-te delas.
Despedaçai a férrea jaula que o passado para vós construiu, Toda construção deve localizar-se no teu espírito, deve ser
onde já não vos resta espaço. Ousai abandonar os velhos cami- construção de qualidades e disposições da personalidade, e
nhos, mas não ouseis loucamente, onde não há razão para ousa- não edificação na matéria, que é um remoinho de areia que
dias; ousai na direção do alto e nunca ousareis demasiadamen- nenhum sinal pode conservar.
te. Do grande mar de forças latentes, que não percebeis, imensa Tudo o que quiserdes vos seja unido eternamente deve ser
vaga levantará o mundo. unido por qualidades e merecimento, deve ser enlaçado pela
Até lá, guardai a fé! A vossa crise, se é profunda e dolorosa, força sutil da Lei, por vós movimentada, nunca por vossa força
fará, no entanto, nascer o homem novo do Terceiro Milênio1. exterior, ou por vínculos das convenções sociais ou ainda por
Para resolvê-la, recordai que ela é mal de substância, que não se liames da matéria. Só nesse sentido se pode realmente possuir;
debela corrigindo a forma, como procurais fazer. Para solucio- de outro modo, não obtereis senão a tristeza depois da ilusão e a
ná-la, é necessário considereis o problema em sua substância; e consciência posterior da inutilidade de vossos esforços.
sua substância é o homem, sua psicologia, sua alma, onde se Outro grande problema que vos diz respeito é o amor. Ele-
encontra a motivação de suas ações, a fonte original dos acon- vai-vos em amor, como deveis elevar-vos em todas as coisas,
tecimentos humanos. Eis aí a chave do futuro. se quereis encontrar profundas alegrias. Martelai vossa alma,
Vosso multimilenário ciclo de civilização está a esgotar-se; num íntimo trabalho de cada dia, que vos leva à conquista de
deveis retomá-lo em nível mais elevado, vivê-lo mais profun- amores sempre mais extensos, únicos que têm a resistência
damente, não somente crendo, mas também “vendo”. das coisas eternas.
Ai de vós se, depois de haverdes atingido o domínio do pla- Sabes que o amor se eleva do humano ao divino e que nes-
neta, não dominardes a máquina, a riqueza e as vossas paixões sa ascensão ele não se destrói, mas se fortalece, aperfeiçoando
com um espírito puro. e multiplicando-se. Segue-me e, então, poderás entoar o cânti-
Sois livres e podeis também retroceder. No período que resta co do amor:
deste século se decidirá do Terceiro Milênio. Ou vencer, ou mor- “Meu corpo tem fome, e eu canto; meu corpo sofre, e eu
rer; e a morte, desta vez, é a morte pior, porque é morte de espíri- canto; minha vida é deserta, e eu canto; não há carícias para
to. A todos eu digo: “Ressuscitai com a minha ressurreição”. mim, porém todas as criaturas vêm a mim. Meu irmão de mim
se aproxima como inimigo, para prejudicar-me, e eu lhe abro
III. MENSAGEM DO PERDÃO os braços em sinal de amor. Eu vos bendigo a todos vós que
Dia do “Perdão da Porciúncula” de São Francisco me trazei dor, porque com ela me trazeis a purificação, que
(2 de Agosto de 1932) me abre as portas do Céu. Minha dor é um cântico que me faz
subir, louvado sejas, ó Senhor, pelo que é a maior maravilha
Filho meu, minha voz não despreza tuas pequeninas coisas da vida; que as pobres intenções malignas de meu próximo se-
de cada dia, mas delas se eleva para as grandes coisas de todos jam para mim a Tua bênção”.
os tempos. Estes meus ensinamentos são dirigidos mais à vossa intui-
Ama o trabalho, inclusive o trabalho material. ção que ao vosso intelecto. Tem um sentido mais amplo o que
Coisa elevada e santa, o trabalho, presentemente, foi vos tenho dito; a felicidade dos outros é vossa única felicidade
transformado em febre. De que não se tem abusado entre verdadeira e firme. Significa extinção dos egoísmos num am-
vós? Que coisa ainda não foi desvirtuada pelo homem? Em plexo universal de altruísmo. Tudo isso pode ser de fácil com-
tudo vos excedeis e, por isso, ignorais o labor equilibrado, preensão, mas é difícil senti-lo. Não procuro vossa razão, que
que tão elevado conteúdo moral encerra; se busca o necessá- discute, antes busco essa visão interior que em vós opera, que
rio ao corpo, ao mesmo tempo contenta o espírito. E, no en- sente por imediata concepção, que enxerga com absoluta clare-
tanto, transformastes esse dom divino, com o qual poderíeis za e lealmente se entrega à ação.
plasmar o mundo à vossa imagem, em tormento insaciável Peço-vos o ímpeto que somente nasce do calor da fé e que
de posse. Substituístes a beleza do ato criador, completo em si nunca vem pelos tortuosos caminhos do raciocínio. Não desejo
1 erudição, pesquisas e vitórias do intelecto; quero, antes, que ve-
O argumento do “homem novo do Terceiro Milênio”, produto bioló-
gico da evolução e tipo normal da super-humanidade do futuro, é am- jais num ato sintético de fé e que imediatamente vivais vossa vi-
plamente desenvolvido em A Nova Civilização do Terceiro Milênio. A são, e personifiqueis a ideia avistada, e resplendais em vós mes-
Grande Síntese também se refere ao homem espiritual do próximo mi- mos seu esplendor. Somente então a ideia viverá na Terra e, per-
lênio, nos Caps. 78, 83, 84, 85 etc. sonificado em vós, existirá um momento da concepção divina.
4 GRANDES MENSAGENS Pietro Ubaldi
Não estou apelando para vossos conhecimentos nem para Não discutais, mas dai o exemplo de virtude na dor, amai vos-
vosso intelecto, que não são patrimônios de todos, mas venho so próximo; aprendei a estar sempre prontos para prestar um
até junto de vós por caminhos inabituais e em vós penetro como auxílio, em qualquer parte onde haja um padecimento a alivi-
um raio que desce às profundezas e dissipa as trevas, que cintila ar, uma carícia a oferecer. Vossas eruditas investigações tor-
e vos arrasta através de novas vias, com forças novas, que le- naram tão ásperas vossas almas, que não vos permitiram
vantarão o mundo como num turbilhão. avançar um só passo para o céu.
Também falarei, para ser entendido, a linguagem fria e cor- Não venho para agredir, mas para ajudar; não para dividir,
tante da razão e da ciência, porém usarei, acima de tudo, da lin- mas unir; não demolir, mas edificar. Minha palavra busca a
guagem ardente e direta da fé. Minha palavra será ora o brado bondade, antes que a sabedoria. Minha voz a todos se dirige.
de comando, ora a ternura de um beijo de mãe. Ela é ampla como o universo, solene como o infinito. Descerá
Para ser por todos compreendida, minha palavra percorrerá aos vossos corações, às vezes com a doçura de um carinho, ou-
os extremos de sabedoria e de singeleza, de força e de bondade. tras vezes arrastadora como o tufão.
Será pranto de amargura e remoinho de paixão; será nostálgico ◘ ◘ ◘
lamento, suspirando por uma grande pátria distante, como será Do alto e de muito longe venho até vós. Não podeis perce-
também ímpeto de ação para até ela conduzir-vos. Minha pala- ber quão longo é o caminho que nós, puro pensamento, deve-
vra rolará, por vezes, como regato sussurrante em verde campi- mos percorrer, a fim de superar a imensa distância espiritual
na, a vos trazer o frescor das coisas puras; outras vezes troveja- que nos separa de vós, imersos na terra lodosa. Vossas distân-
rá como os elementos enfurecidos na fúria da tempestade. cias psicológicas são maiores e mais difíceis de serem vencidas
Ao seio de cada alma quero descer e adaptar-me, a fim de que as distâncias de espaço e tempo. Por isso, às vezes, chego
ser compreendido; para cada uma devo encontrar uma palavra fatigado. Minha fadiga, porém, não é cansaço físico; provém
que a penetre no mais íntimo, que a abale, que a inflame e a apenas do desalento que me nasce de vossa incompreensão. E,
arroje para o alto, onde eu estou, que até junto de mim a con- no entanto, minha palavra tem a doçura da eternidade e do infi-
duza, onde eu a espero. nito. Tem a tonalidade tão ampla como jamais possuiu a voz
Almas, almas eu peço, para conquistá-las vim das profunde- humana; deveríeis, por isso, reconhecer-me.
zas do infinito, onde não existe espaço nem tempo, vim ofere- Venho a vós cheio de amor e de bondade, e me repelis. Eu,
cer-vos meu abraço, vim de novo dizer-vos a palavra da ressur- que vejo os limites da história de vosso planeta; eu, que num
reição, para vos elevar até mim, para vos indicar um caminho rápido olhar vejo sem esforço toda a laboriosa ascensão desta
mais elevado, onde encontrareis as alegrias puras. humanidade cujo pai sou; eu me faço pequenino hoje, limito-
Vós vos identificastes de tal modo com a vida física, que já me e me encerro num átimo de vosso momento histórico, para
não podeis sentir senão uma vida limitada como a do vosso que possais compreender-me.
corpo. Pobre vida, rápida e cheia de incertezas, enclausurada Se vos falasse com minha voz potente, não me entenderíeis.
nas limitações de vossos pobres sentidos. Pobre vida, encerrada Meu olhar contempla a Terra quando o homem ainda não a ha-
num ataúde, na sepultura que é o corpo a que tanto vos agarrais. bitava, e também a vê no futuro distante, morta, a navegar no
Minha voz encerrará todos os extremos de vossas diferentes espaço como um ataúde de todas as vossas grandezas. Vejo
psicologias. Escutai-me! vosso sol moribundo, depois morto e, em seguida, chamado a
Não vos ensino a gozar das coisas terrenas, porque são ilu- uma nova vida. Vejo, além desse átomo que é o vosso planeta,
sórias; indico-vos as alegrias do céu, porque somente estas são uma poeira de astros a revolutearem sem cessar pelos espaços
verdadeiras. Minha verdade não é a fácil verdade do mundo; infinitos, e todos eles transportando consigo humanidades que
não vos prometo alegrias sem esforços, mas minha promessa lutam, sofrem, vencem e se elevam; tudo vejo, tudo leio nos
não vos ilude. Meu caminho é caminho de dor, porém eu vos vossos corações, como nos corações de todos os seres.
digo que somente ele vos conduzirá à libertação e à redenção. Além do vosso universo físico, vejo um maior universo
Minha estrada é de luta e de espinhos, mas vos fará ressurgir moral, onde as almas, na sua laboriosa ascensão, cumprindo
em mim, que vos saciarei para sempre. Não vos digo: “Gozai, seu diuturno esforço de purificação para o Alto, cantam o
gozai”, como o mundo vos fala. O mundo, porém, vos engana, mais glorioso hino à Divindade. Esplendorosa luz existe no
eu não vos enganaria nunca. centro moral do universo, luz que atrai todos os seres por
Minha verdade é áspera e nua, contudo é a verdade. Peço o uma força de gravitação moral mais poderosa do que aquela
vosso esforço, mas dou a felicidade. Digo-vos: “Sofrei”, mas que mantém associadas no espaço as grandes massas planetá-
junto de vós estarei no momento da dor; com piedade maternal rias e estelares. Tudo vejo, mas nada falo, para não vos per-
velarei por vós; medindo todo o vosso esforço, proporcionarei turbar. Tudo vejo, e minha mão possante firma o destino dos
as provas segundo vossa capacidade; finalmente, farei o que o mundos. Poderia mudar o curso dos astros, mas nós somos
mundo não faz: enxugarei vossas lágrimas. lei, ordem e equilíbrio e não aprovamos violações. Empunho
O mundo parece espargir rosas, mas, na verdade, distri- o destino dos povos e, no entanto, venho humildemente até
bui espinhos; eu vos ofereço espinhos, porém vos ajudarei a vós, para entre vós colher o perfume que se desprenda de
colher rosas. uma alma simples. Esse é meu único conforto quando desço
Segui-me, que o exemplo já vos dei. Levantai-vos, ó ho- ao vosso mundo, às camadas profundas e obscuras de matéria
mens, é chegado o momento. Não venho para trazer guerra, densa, formadas de coisas baixas e repugnantes. Aquele per-
mas sim paz. Não venho trazer dissensão às vossas ideias nem fume parece perder-se na vossa atmosfera carregada de ema-
às vossas crenças, venho fecundá-las com meu espírito, unificá- nações perniciosas, como que vencido pelas forças envolven-
las na minha luz. tes do mal. No entanto eu o percebo, elegendo-o, e o recolho
Não venho para destruir, e sim para edificar. O que é inú- como se fosse uma joia humilde e gentil, desabrochada na
til morrerá por si mesmo, sem que eu vos dê exemplo de lama, para guardá-lo em meu coração, onde ele repousará. É
agressividade. o único carinho que encontro em vosso mundo, o único hino
Desejaríeis sempre agredir, até mesmo em nome de Deus. puro e singelo que me faz descansar. Como a criancinha re-
Com que grande avidez ansiais por discussões e lutas contra pousa aos cânticos de sua mãe, que lhe parecem os mais be-
vossos próprios irmãos, prontos a profanar, assim, minha pura los, assim me acalento, invadido por infinita doçura, no seio
palavra de bondade. Repito-vos: “Amai-vos uns aos outros”. dessas vozes humildes dispersas em vosso mundo.
Pietro Ubaldi GRANDES MENSAGENS 5
Essa é a única trégua em meio ao trabalho de iluminar e Minha voz conduzirá vosso coração a um êxtase que ne-
guiar-vos, ó homens rebeldes, que acreditais dominar, e sois nhuma vitória material nem qualquer grandeza do mundo ja-
dominados, que pensais subir, mas, na verdade, desceis. Eu mais vos poderá dar.
poderia, contudo, atemorizar-vos por meio de prodígios, ater- Como um clarão intuitivo, minha luz espargirá sobre vós
rorizar-vos com cataclismos. Convencer-vos-ia, no entanto? uma compreensão a que os laboriosos processos de vossa razão
Minha mão se levanta sobre vós, que sois maus, como uma não chegarão jamais. A razão, filha do raciocínio, discute e cal-
bênção, nunca para vinganças. cula, mas eu sou o clarão que em vós se acende e pode, num
Escutai com atenção esta grande palavra: desejo que o equilí- átimo, transformar-vos em heróis. Aceitai, suplico-vos, este su-
brio, violado pela vossa maldade, se restabeleça pelos caminhos premo dom que vos ofereço e pelo qual vim de tão longe até
do amor, e não pelo castigo. Compreendeis a grande diferença? junto de vós; aceitai esta dádiva esplêndida, que é a minha paz.
Eis as razões da minha intervenção, da minha presença É a bem-aventurança do Céu que vos trago de mãos cheias; é a
entre vós. felicidade que coisa alguma terrena jamais vos poderá dar. Re-
A Lei quer o equilíbrio. É a Lei. Vós a desrespeitastes com conhecei a minha paz! Para recebê-la, abri todas as portas de
vossas culpas, ultrajando assim a Divindade. O equilíbrio “de- vossa alma! Dela saciai-vos, com ela inebriai-vos! É um dom
ve” restabelecer-se, a reação “deve” verificar-se, o efeito “de- imenso que vos trago do seio de Deus, é uma graça com que o
ve” acompanhar a causa por vós livremente buscada. meu imenso amor recompensa a vossa ingratidão.
Deus vos quer livres, já o sabeis. Pois bem, eu venho para Até vós eu venho, trazendo os mais lindos dons, para der-
que o equilíbrio se restabeleça pelos caminhos do amor e da ramar sobre vossas almas a verdadeira felicidade. Venho para
compreensão; venho para incitar-vos, com palavras de fogo, ao suavizar a justiça divina. Fiz longa e fatigante viagem, do meu
entendimento, estimular-vos a retomar livremente a via da re- céu radioso às vossas trevas. Vim espontaneamente, pelo
denção; finalmente, venho ensinar-vos a fazer de vossa liberda- amor que vos consagro. Não renoveis as torturas do Getsêma-
de um uso que vos eleve e salve, e não que vos rebaixe e con- ne, as angústias da incompreensão humana, os tormentos de
dene. Venho tornar-vos conscientes dessa lei que vos guia e da um imenso amor repelido.
maneira de restaurardes a ordem violada, a fim de que essa vio- Quem sou eu, perguntais-me.
lação não venha a recair sobre vós, como tremendo choque de Sou o calor do sol matinal que vela o desabotoar da florzi-
retorno, que destruirá vossa civilização. nha que ninguém vê; sou o equilíbrio que, na variação alternada
Venho para vos salvar, para salvar o que de melhor possuís, dos elementos, a todos garante a vida. Sou o pranto da alma
o que fatigosamente os séculos têm acumulado, ao preço de quebrantada, em que desabrocha a primeira visão do divino.
muitas dores e de muito sangue. Sou o equilíbrio que, nas mudanças dos acontecimentos morais,
Entre a necessidade férrea da Lei, que, inexoravelmente, a todos promete salvação. Sou o rei do mundo físico de vossa
volve ao equilíbrio, interponho hoje o meu amor e a minha luz, ciência; sou o rei do mundo moral que não vedes.
como já interpus a minha dor e o meu martírio! Sempre me procurais em toda a parte. Sempre mais profun-
Homens, tremei! É supremo o momento. É por motivos su- damente vos escapo, de fibra em fibra nas vossas mesas de ana-
premos que do Alto desço até vós. Escutai-me: o mundo será tomia, de molécula em molécula nos vossos laboratórios. Vós
dividido entre aqueles que me compreendem e me seguem e me procurais, dilacerando e dissecando a pobre matéria, mas eu
aqueles que não me compreendem e não me seguem. Ai destes sou espírito e animo todas as coisas. Não com os olhos e os ins-
últimos! Os primeiros encontrarão asilo seguro em meu coração trumentos materiais, mas somente com os olhos e os instrumen-
e serão salvos; sobre os outros a Lei, não mais compensada pe- tos do espírito podereis encontrar-me.
lo meu amor, descerá inelutavelmente, e eles serão arrastados Sou o sorriso da criança e a carícia materna; sou o gemido
por um vendaval sem nome para trevas indescritíveis. daquele que corre implorando salvação; sou o calor do primeiro
Não vos iludais, reconhecei a minha voz. Reconhecei-a pe- raio de sol da primavera, que traz a vida; sou o vendaval que
la sua imensa tonalidade, pela sua bondade sem fronteiras. traz a morte; sou a beleza evanescente do momento que foge;
Algum homem, porventura, já falou assim? Falo-vos de coisas sou a eterna harmonia do universo.
singelas e elevadas, de coisas boas e terríveis. Sou a síntese de Sou amor, sou força, sou ideia, sou espírito, que tudo vivifi-
todas as verdades. ca e está sempre presente. Sou a lei que governa o organismo
Não me oponhais barreiras de vossas almas, mas escutai, do universo com maravilhoso equilíbrio. Sou a força irresistível
ponderai, deixai que este raio de luz que vem de Deus desça à que impulsiona todos os seres para a ascensão. Sou o cântico
vossa consciência e a ilumine. Eu vo-lo rogo, humilhando-me imenso que a criação entoa ao Criador.
em vossa presença; humildemente, para vossa salvação, eu vos Tudo sou e tudo compreendo, até o mal, porquanto o envol-
suplico: escutai a minha voz! vo e o limito aos fins do bem. Meu dedo escreve, na eternidade
Que sobre vós desça a paz. A paz! A paz, que não mais e no infinito, a história de miríades de mundos e vidas, traçando
conheceis, venha sobre vossas almas! Entre vós e a divina jus- o caminho ascensional dos seres que para mim se voltam, seres
tiça está minha oração: “Deus, perdoa-lhes, porque não sabem que atraio com meu amor e que recolherei na minha luz.
o que fazem”. Muitos mundos já vi antes do vosso, muitos verei depois de-
Pobres seres perdidos na escuridão das paixões; pobres se- le. Vossas grandes visões apocalípticas, para mim, são peque-
res que tomais por luz verdadeira o ouropel fascinador das coi- ninas encrespaduras nas dimensões do tempo. Virei, entre raios
sas falsas da Terra! Pobres seres, maus e perversos! E, no en- de tempestade, para dobrar os orgulhosos e elevar os humildes.
tanto, sois meus filhos e por amor de vós de novo subiria à cruz Virei vitorioso na minha glória e no meu poder, triunfante do
para vos salvar. Pobres seres que, numa vitória efêmera de ma- mal, que será rechaçado para as trevas.
téria, que chamais civilização, haveis perdido completamente o Tremei, porque quando eu já não for o amor que perdoa e
único repouso do coração – a minha paz. vos protege, serei o turbilhão que tempestua, serei o desencade-
Escutai-me. Falo-vos com amor, imenso amor. Fui por vós ar dos elementos sem peias, serei a Lei, que, não mais domina-
insultado e crucificado, e vos perdoei; perdoo-vos ainda e ainda da pela minha vontade, trazendo consigo a ruína, inexoravel-
vos amo. Trago-vos a paz. Até junto de vós retorno para vos fa- mente explodirá sobre vós.
lar de uma ciência que a vossa não conhece, para vos pronunci- Tudo é conexo no universo: causas físicas e efeitos morais,
ar a palavra que nenhum homem sabe falar, palavra que vos sa- causas morais e efeitos físicos. Um organismo aglutinador vos
ciará para sempre. Escutai-me. envolve e nele estais presos em cada ato vosso.
6 GRANDES MENSAGENS Pietro Ubaldi
Minha poderosa mão firma o destino dos mundos e, no en- Em vez disso, que triste espetáculo! A palavra de unidade sub-
tanto, sabe descer até à mais humilde criancinha para lhe suster dividiu-se, o rebanho está desunido, os filhos de Cristo já não
carinhosamente o pranto. Essa é minha verdadeira grandeza. são irmãos, mas inimigos!
Ó vós que me admirais, tímidos, no ímpeto da tempestade, É chegada a hora de despertardes à luz de uma consciência
admirai-me, antes, no poder que tenho de fazer-me humilde pa- maior. O tempo maturou o momento de grandes abalos, inclu-
ra vós, no saber descer do meu elevado reino à vossa treva; ad- sive no campo do espírito. E, no momento decisivo, eu venho
mirai-me nessa força imensa que possuo de constranger meu lançar no mundo a ideia decisiva. Venho vos reunir todos, ó
poder a uma fraqueza que me torna semelhante a vós. cristãos do mundo, a fim de que, acima da forma que vos divi-
Não vos peço que compreendais meu poder, que me situa de, vos aconchegueis em torno da figura de Cristo e encontreis
longe de vós; rogo-vos que compreendais o meu amor, que de novo uma unidade substancial.
me assemelha a vós e me coloca ao vosso lado. Meu poder Isso vos digo em Seu nome, quando se completam deze-
poderá desalentar-vos e atemorizar-vos, dando-vos de mim nove séculos de Sua morte e a história se encaminha para o
uma ideia não justa, de um senhor vingativo e despótico. Não Terceiro Milênio. Digo-vos que deveis abraçar-vos novamen-
quero vossa obediência por temor. Agora deve despontar uma te em face da ameaça do iminente momento histórico, a fim
nova aurora de consciência e de amor. Deveis elevar-vos a de que vossa união constitua uma barreira contra o mal, que
uma lei mais alta, e eu retorno hoje para anunciar-vos a boa se prepara para desencadear um tremendo ataque. As grandes
nova. Não sou um senhor vingativo e tirânico, como outrora, lutas exigem grandes unificações.
por necessidade, me supuseram os povos antigos; sou o vosso Não toco em vossas divisões de forma, mas enfatizo a subs-
amigo, e é com palavras de bondade que me dirijo ao vosso tância da ideia de Cristo, de que todas vossas crenças nasceram.
coração e à vossa razão. Quero que se vivifique a fé, desfalecente em vossas almas; que
Não mais deveis temer, mas sim compreender. Vossa razão se reanime a fé nas coisas eternas, já escritas com tanta simpli-
infantil já acordou, e nela venho lançar minha luz. Sou síntese cidade; que de novo viva o singelo espírito do Evangelho e vos
de verdade, e em toda a parte ela surgirá, atingindo a luz da torne todos irmãos. É somente disso que o mundo precisa, e es-
vossa inteligência. sa é a solução para todas as crises. Não são necessários novos
Não trago combates, mas paz. Não trago divisões de consci- sistemas; é preciso que surja o homem novo.
ência, e sim união de pensamentos e de espíritos. Eu venho para unir, não para dividir; trago paz, e não
A humanidade terrestre aproxima-se de sua unificação, numa guerra. Não toco em vossas organizações humanas, mas vos
digo: amai-vos em nome do Cristo, e vossas organizações se
nova consciência espiritual. Não vos insulteis, pois; antes, com-
tornarão perfeitas.
preendei-vos uns aos outros. Que cada um concorra com o seu
Antes do início do novo milênio, todos os valores humanos
grãozinho para a grande fé, e que esta vos torne todos irmãos.
sofrerão uma grande revisão e a fé se enriquecerá com a contri-
Que a religião, que é revelação minha, e a ciência, que é
buição da razão e da ciência. Na iminência dos tempos, que to-
o vosso esforço, e todas as vossas intuições pessoais se
da a cristandade volva seu olhar para o farol de Cristo.
unam estreitamente numa grande síntese, e seja esta uma
Vinde todos vós, ó homens que vos iludis pensando possuir
síntese de verdade.
uma verdade diferente. Deus é a verdade única, substancial-
Porque eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. mente idêntica em todas as religiões, na ciência como na fé.
Se os caminhos, as aproximações são diferentes, o princí-
IV. MENSAGEM AOS CRISTÃOS pio e a meta são a mesma ideia pura e simples do amor frater-
(No XIX Centenário da Morte de Cristo) nal, ideia tanto dominante no Evangelho como no universo.
Os profetas afirmaram com variação de poder e aspectos o
Ó cristãos do mundo inteiro, que tendes feito, em deze- mesmo princípio.
nove séculos de trabalho, pela realização, na Terra, do Reino A humanidade se encaminha para as grandes unidades polí-
dos Céus? ticas e espirituais. Que não surjam novas religiões, e sim que as
Ao lado da criação de uma civilização, da direção milenária existentes se unifiquem numa fusão de fé que envolverá o
dada ao pensamento humano, de obras colossais da arte, de mundo. O progresso se encontra no amor recíproco, que une, e
uma multidão de mártires, gênios e santos, ao lado de todo bem nunca na rivalidade, que divide.
que o cristianismo tem trazido por força da divina centelha que Paz, união e amor sejam convosco na minha bênção.
o anima, quanto mal proveniente da fraqueza humana, em cujo
meio tem operado! Quanta resistência tendes oposto a esse di-
V. MENSAGEM AOS HOMENS DE BOA VONTADE
vino impulso que anseia por elevar-nos! Quanta tenacidade
vossa para permanecerdes substancialmente pagãos! Quantas (No XIX Centenário da Morte de Cristo)
tempestades não tem o homem desencadeado, com suas pai-
xões, em torno da nave da Igreja de Roma! Do alto da cruz vos contemplo, homens de boa vontade, de
A dura necessidade de comprimir o incoercível pensamento todas as raças e crenças. Estas vos dividem; a minha palavra
na forma, em regras disciplinares, e de cobrir a verdade res- vos unifica.
plandecente com um véu de mistério, foi imposta por vosso ins- Não falo somente aos cristãos, porém a todos os meus fi-
tinto de rebeldia, que, de outro modo, teria levado o princípio lhos, que são os justos da Terra, qualquer que seja sua raça ou
original a fragmentar-se no caos. fé. Falo a todos, não considerando vossas diferenciações huma-
Algumas elevadas verdades que o cristianismo contém não nas. Minha palavra é universal como a luz do sol. A Divindade
puderam exercer ação senão por motivo de imaturidade dos não se pode isolar numa igreja particular. Eu vos digo o que é
homens; certas liberdades não podem ser concedidas àqueles verdadeiro e justo, e o que vos falo perdura a quem quer que se-
que estão sempre prontos a abusar de tudo. Que imenso esfor- ja dito. A mentira que me desfigura passa, eu permaneço. Não
ço, que longo caminho deve percorrer a ideia divina até poder importa que a bondade seja explorada pelos maldosos; o Bem
concretizar-se na Terra! acaba triunfando. Eu amo a todos.
Nunca vos interrogastes que imensa força moral representa- Vós, homens, buscais bandeiras limpas para transformá-las
ríeis no mundo se fôsseis verdadeiramente cristãos? Nunca a em mantos brilhantes. E quem pode impedir que, em vosso
vós mesmos perguntastes que paraíso seria a Terra se houvés- mundo de hipocrisias, os maus se escondam à sombra das coi-
seis compreendido e praticado a boa nova do amor evangélico? sas puras e que os falsos se acobertem sob os luzentes mantos de
Pietro Ubaldi GRANDES MENSAGENS 7
que se apossam? Então, as crenças e as religiões deixam de ser Tende fé, e a fé vos fará superar todas as provas. Deus as
uma ideia, um princípio, para se tornarem um aglomerado de permite para que aprendais a usar de vossa liberdade, e não
interesses, uma organização de castas. para vossa destruição. Não vos desgarreis no caos, que é só
Assim, formastes hierarquias, seitas, ordens e grandezas que aparente. Imersos como estais no pormenor, na aflição, na fa-
não têm correspondência no Céu. Vossas classificações são ab- diga, não enxergais e não compreendeis o bem que existe
solutamente humanas, fictícias, de acordo com as aparências da além da aparência do mal.
Terra, e não com os valores intrínsecos do espírito. Por isso fi- Deus, no entanto, invisível e onipresente, está ao vosso la-
carão aí em vosso mundo e nunca se elevarão além da Terra. do, caminha convosco, acompanha os vossos passos e vos guia;
Minha discriminação é diferente. Os escolhidos são aque- sempre vos provê, além da aparente desordem, com a ordem
les que seguem meu caminho de dor e de renúncia, de humil- imensa e eterna de Suas sábias leis. Sua mão se inclina para o
dade e de amor. Vinde a mim, vós que sofreis. Sois os gran- humilde, para o fraco, para o vencido, a fim de erguê-lo de no-
des, os eleitos do Céu. Esta é a minha diferenciação. As que vo. Que vos conforte esta afirmação de uma divina lei de justi-
são feitas pelos homens não têm valor. Não importa o manto, ça acima da lei humana da força.
mas o homem que a veste. Somente no caminho da dor e do Diante de dois caminhos vos deixei, e fizestes a escolha. O
amor encontrareis os que são grandes no meu Reino. Eis onde, mundo tem a prova que livremente desejou.
na luta absurda entre tantas vozes e organismos contrários, Desde que vos deixei, o mundo tem percorrido velozmente
achareis o bem, a justiça e a verdade. o caminho da história. O mais profundo caminho e a mais pro-
Em toda parte, nos vossos agrupamentos, se encontram veitosa lição se encontram na dor, escola e sanção de Deus.
os bons e os maus; estes últimos, quase sempre, preocupados Repousareis. Assim é necessário, a fim de que os resultados
em tornar objeto de discussão uma verdade que não possu- do esforço desçam em profundidade e sejam assimilados. Não
em. A verdade está no coração e nos atos, e não nas formas e vos detenhais, no entanto, nos pormenores do momento ou do
nas posições humanas. caso particular, que não constituem toda a vida. Esta se encon-
Procurai o bem; procurai, onde quer que esteja, o ho- tra nas grandes trajetórias de desenvolvimento da Lei, em que
mem, nunca o estandarte. Fazei questão do homem, da nua e se exprime o pensamento de Deus.
intrínseca realidade de seus valores íntimos, e não dos sinais Somente se vos elevardes, encontrareis a verdade universal,
que o marquem exteriormente. Estes se podem falsificar, não imóvel no movimento, a justiça perfeita. Somente se vos trans-
o homem. A bandeira pode reduzir-se a um índice de inte- portardes acima das contingências do momento e do lugar,
resses coletivos; o homem, porém, segue sozinho pelo cami- achareis a completa liberdade, a tranquilidade do absoluto, a
nho de seu destino. paz que está acima da vitória ou da derrota, a verdadeira paz,
Justos e injustos se encontram sobre a Terra, uns ao lado tão distante das coisas humanas.
dos outros, para provações recíprocas; achá-los-eis juntos, Elevar-se é a grande meta da vida – elevar-se pelos ca-
usando todos o mesmo nome da verdade. Somente eu, que leio minhos do espírito – e esse trabalho, sempre possível e livre,
nos corações, os diferencio, como também pode fazê-lo a voz pode ser seguido e levado a termo em qualquer época ou lu-
da vossa consciência, em que penetro e falo. gar. Ninguém, em nenhum caso, pode tolher a liberdade de
Os meus filhos estão, por isso, em toda a parte, contudo não vos construirdes a vós mesmos, avançando assim em quali-
os sabeis enxergar. Só eu os vejo. A dor e a morte, que matam dade e poder. E esta ascese é o que mais importa; é para
os outros, os elevam. A minha maneira de diferenciar está aci- atingi-la que sofreis as provas da vida.
ma de todas as categorias humanas. Após cada curva da história, obtém-se seu sumo, sua verda-
O meu reino não é da Terra. O meu reino não tem corpo deira colheita, que é a ascensão.
físico. Os seus grandes nada possuem no mundo, mas sofrem As verdadeiras riquezas não se encontram fora de vós: estão
e amam. em vosso íntimo e são elas que vos fazem mais poderosos e fe-
Minha religião mais profunda não tem forma terrena, não lizes. São os vossos bons predicados, que nunca se perderão, e
possui nenhuma dessas exterioridades próprias da matéria e não vossas posses materiais, que hão de desaparecer.
da imperfeição humana, que sempre foram a base de todos Qualquer que seja o turno de vencedores ou vencidos, suce-
os abusos. der-se-ão, como vaga após vaga, as multidões dos que sofrem e
O meu altar é a dor, a minha oração é o amor, a minha reli- dos que gozam; e o triunfo pode ser instrumento de perdição e a
gião é a união com Deus no pensamento e nos atos. desventura, de ressurreição. Nenhuma vida, como nenhuma
Acima de todas as formas que vos dividem, ó homens da força, pode ser anulada; tudo sobrevive, transformando-se.
Terra, eu sou o princípio que vos une ao meu amor. Substancialmente, a guerra a ninguém destrói.
Minha palavra, repetindo a lei de Deus, que rege a vida e es-
tá acima do mundo e de suas lutas, diz: ai de quem, possuindo
VI. MENSAGEM DA PAZ
apenas a superioridade da força, dela abusa, esquecendo a justi-
Escrita na Noite de Quinta-feira Santa, no Monte de Santo ça. Tudo é compensado na Lei e se paga com longas reações
Sepulcro, diante de Verna (Páscoa de 1943) sucessivas de ódios e vinganças.
A palavra do equilíbrio ensina ao vencedor que não é lícito
Minha última mensagem, pela Páscoa de 1933, XIX Cente- abusar da vitória, pois, por isso, se paga; e indica ao vencido os
nário da morte de Cristo, dirigida, em dois momentos, aos Cris- caminhos do espírito, em cuja liberdade é possível restaurar as
tãos e aos homens de boa vontade, foi minha derradeira palavra próprias forças em face de qualquer escravidão exterior. O pri-
naquele ciclo de preparação e esperança. meiro acomete as fronteiras naturais da força; o segundo, nas
Já se encontram amadurecidos muitos acontecimentos ali privações, encontra a liberdade.
preanunciados. O sol voltará a brilhar e a vida florescerá de novo, após a
Até junto de vós retorno nesta Páscoa de 1943, após dez tempestade. É lei de equilíbrio. O que importa, sobretudo, é que
anos, na violenta constrição de uma dor que parecia impossível aprendais a lição. Recordai: que cada um guarde, na profundeza
e, no entanto, se tornou realidade. Venho trazer conforto aos do espírito, com o poder de uma convicção, de uma qualidade
homens e aos justos, àqueles que creem. Venho dizer, no seio adquirida, o fruto de tantas provações. E que a nova floração da
tumultuoso da destruição universal, a equilibrada palavra de vida não irrompa numa algazarra louca de carne satisfeita, nu-
paz. É esta, por isso, a mensagem da paz. ma orgia de matéria triunfante.
8 GRANDES MENSAGENS Pietro Ubaldi
O escopo da guerra e o conteúdo da vitória não se acham Tendes hoje diante dos olhos um sistema completo, que,
no triunfo material, mas num triunfo no espírito, numa nova com um princípio unitário, soluciona todos os problemas e traz
civilização. resposta a todas as perguntas. Tendes hoje a orientação que vos
Ai de vós, se não houverdes aprendido a dura lição e não mu- fornece a chave para explicar os enigmas do universo. Podeis
dardes de roteiro. Se, em vez de subirdes pelos caminhos do espí- usá-la, desde já, também pessoalmente, para continuar a pes-
rito, voltardes a palmilhar as velhas estradas, haveis de recair sob quisa ao infinito no particular analítico. As gerações passarão,
as mesmas dolorosas consequências, cada vez mais graves. contemplando a ciclópica construção de pensamento elevada
Minha voz é universal e se desvia das dissensões humanas. para o Alto na hora do destino do mundo.
Tem às vezes, no entanto, necessidade de descer. Diz-se, então, Do vértice da pirâmide uma luz resplandecerá para iluminar
com escândalo: Deus é parcial. Mas existe uma balança, um re- o mundo: esta luz se chama Cristo.
flexo de justiça, uma ordem também na história, e nela devem E as gerações caminharão, caminharão pela interminável es-
atuar. A imparcialidade absoluta seria indiferença e ausência de trada do tempo e verão de longe o farol que lhes indica o rotei-
Deus. A justiça e a ordem, que são os princípios do ser, devem ro. E uns aos outros o indicarão, dizendo: “Coragem!”. Áspera
descer também à Terra e aí operar, pesando sobre o mal e ven- é a dor e longa a estrada da evolução, mas temos um condutor.
cendo-o no choque das forças. Do Alto, o Cristo nos olha e nos fala. Não estamos sozinhos.
De outro modo, Deus estaria somente no Céu, e não presente Ele está conosco. A Seus pés, como pedestal, está a pirâmide
e ativo também no mundo, entre vós, no meio de vossas lutas. do conhecimento, feita de pensamento, que é a Sua luz.
Estas são guiadas por Ele, a afim de que não se reduzam à abso- À fase mais elementar da fé sucedeu a fase mais avançada
luta destruição e caos, mas sejam instrumento de construção e de do conhecimento, com que se completa o amor. E, com o co-
bem. Ele os guia para que as provas e as dores do mundo redun- nhecimento, Cristo retorna à Terra para realizar o Seu Reino, há
dem no fruto que é a ascensão de espírito, objetivo de vida. vinte séculos fundado.
Deixo-vos, por isso, para conforto dos justos, estas verda- O ritmo das mensagens teve início no Natal de 1931, conti-
des: o vosso esforço, mesmo que não possa ser senão individual nuou no de 1932 e terminou na Páscoa de 1933 (XIX Centenário
e isolado, quando é puro e sincero e se dirige ao supremo esco- da morte de Cristo), só reaparecendo depois em ritmo decenal.
po da elevação espiritual, também se encontra na trajetória da A primeira mensagem apareceu no final de 1931, como o
vida. É, por isso, protegido e encorajado, porque essa é a traje- corpo de Cristo foi sepultado na tarde da Sexta-feira Santa.
tória ordenada pela lei de Deus. Por essa mesma lei, segundo a As mensagens continuaram a aparecer em 1932, como o
qual o universo está construído e que lhe regula o funcionamen- corpo de Cristo continuou a jazer no sepulcro no Sábado
to orgânico, as forças do mal, embora todas as dificuldades e
Santo. Terminaram com a última mensagem, na Páscoa de
resistências, jamais poderão prevalecer sobre as forças do bem.
1933, centenário de Sua morte, como seu corpo ressuscitou
É fatal, pois, o triunfo final do espírito, e no espírito vence-
na alvorada do 3 o dia. Retornaram depois em um ritmo de
reis. Essa vitória vale a imensa dor que é seu preço.
dez anos e agora completam vinte anos, equivalentes aos
Amplamente já está sendo executado o plano divino da vida.
vinte séculos transcorridos desde então.
Indico-vos estas harmonias, para fazer-vos compreender sua
VII. MENSAGEM DA NOVA ERA (NATAL DE 1953)
significação. Meu instrumento as ignorava e não as poderia ter
projetado, pois o Alto não lhas havia dado a conhecer. O que é
No silêncio da noite santa, como te falei pela primeira vez
harmônico desce do Alto, o que é dissonância provém de baixo.
para iniciar a obra, volto a falar-te agora, após tantos anos.
Retorno em meu ritmo decenal, iniciado na Páscoa de 1933 Esta mensagem de hoje corresponde ao fim do II Milênio e
com a “Mensagem aos Homens de Boa Vontade” e a “Mensa- vos lança nos braços do terceiro, da nova civilização. Isso corres-
gem aos Cristãos” e prosseguindo na Páscoa de 1943 com a ponde ao terceiro dia, na aurora do qual se deu a ressurreição.
“Mensagem da Paz”. Que esta imprevisível concordância de ritmos, que esta mu-
Desta vez, dez anos depois, neste 1953, volto a falar-vos, po- sicalidade também na forma da gênese da obra, constituam para
rém no Natal, porque este é dia de nascimento e esta é a mensa- vós uma prova da verdade.
gem nova; no Natal, como aconteceu em 1931, porque, após to- Esta mensagem vos lança nos braços do III Milênio; por is-
das as outras mensagens pascais, esta é a que conclui a série. so é ela a “Mensagem da Nova Era”. O mundo materialista está
Venho trazer-vos a palavra da esperança, porque no caos do freneticamente lutando pela sua autodestruição. O dragão será
mundo estão despontando as novas e primeiras luzes da alvora- morto pelo seu próprio veneno.
da. O tempo caminha, e já entrastes na segunda metade do sé- A vida, que jamais morre, está a preparar-se para substituir
culo, quando se realizará o que foi predito em minha primeira o mundo velho pelo novo: o reino do espírito, em cuja realiza-
mensagem, no Natal de 1931. ção Cristo triunfará. A humanidade tem esperado dois mil anos
Haveis entrado, assim, na fase de preparação ativa da nova pela Boa Nova, mas finalmente chegou a hora de sua realiza-
civilização. ção. A vida se utilizará das tempestades que as forças do mal se
Venho falar-vos na hora assinalada pelo ritmo que preside preparam para desencadear, a fim de purificar-se. Aproveitar-
ao desenvolvimento ordenado dos acontecimentos, de acordo se-á da destruição para reconstruir em nível mais alto.
com a vontade do Alto. Repito, assim, a palavra da primeira Mensagem do Natal de
O trabalho avançou, firme e constante, nestes vinte anos que 1931: “A destruição é necessária (...) Um grande batismo de
estão terminando, através de tempestades que destruíram na- dor é necessário, a fim de que a humanidade recupere o equilí-
ções e modificaram o mapa político do mundo; avançou, a tudo brio, livremente violado; grande mal, condição de um bem
resistindo, constante e firme, como sucede com as coisas dese- maior. Depois disso, a humanidade, purificada, mais leve, mais
jadas pelo Alto. O trabalho prosseguiu, escondido no silêncio, selecionada por haver perdido seus piores elementos, reunir-se-
protegido pela sombra da indiferença geral, aparentemente con- á em torno dos desconhecidos que hoje sofrem e semeiam em
fiado a um homem pobre e sozinho, com mínimos recursos silêncio, e retomará, renovada, o caminho da ascensão. Uma
humanos, vencendo apenas com as forças da sinceridade e da nova era começará; o espírito terá o domínio, e não mais a ma-
verdade, da maneira mais humilde e simples, enquanto as vos- téria, que será reduzida ao cativeiro (...)”.
sas maiores organizações humanas se desmoronavam. Hoje o Encontrais, assim, as mesmas palavras, no princípio como no
milagre se cumpriu. Esta é para nós a prova de verdade. fim. Hoje, porém, estais vinte anos mais avançados no tempo, is-
Pietro Ubaldi GRANDES MENSAGENS 9
to é, na maturação dos acontecimentos. Hoje vos encontrais na Agora, que vos conduzo até aqui, às portas do novo milênio,
plenitude dos tempos. Aquela ideia, desenvolvida através das tri- com esta mensagem o ciclo das mensagens está concluído. Esse
logias da obra, se encaminha para tornar-se realidade. ciclo precedeu e acompanhou a Obra, que agora continua no
A luciferiana revolta do ateísmo materialista está para des- hemisfério oposto àquele em que se iniciou, desenvolvendo-se
fechar contra Deus sua última batalha desesperada pelo triunfo nas praias das novas terras onde nascerão as novas grandes ci-
absoluto, supremo esforço que redundará em sua ruína total. E vilizações do futuro.
Deus fará ver à humanidade aterrorizada, para o bem dos ho- A pirâmide aí está. Sua última pedra já foi colocada. Enquan-
mens, que Ele somente é o senhor absoluto. to o mundo caminha, sempre mais, para o cumprimento, já agora
Estais ainda imersos em cerradas neblinas. Mas além de- fatal, do seu desejado destino, sobre aquela pedra pousarão os
las já brilha o sol que está para despontar e inundar o mundo pés e se elevará a figura de Cristo, que, flamejante, iluminará
de luz e calor. A outra margem do novo reino está próxima, qual farol a estrada dos viandantes em busca de luz, para orientá-
e a humanidade se prepara para nela desembarcar. O novo los através do longo caminho das ascensões humanas.
continente já aparece aos olhos do navegante experimentado, Tende fé, tende certeza. A Nova Era vos aguarda. Na imen-
e a humanidade, após a grande viagem de dois milênios, po- sa luta, Cristo é o mais forte, e Ele estará convosco e com todos
de gritar – “terra, terra!”. aqueles que nele creem.
Por isso, esta se pôde chamar a “Mensagem da Nova Era”,
porque não mais vem anunciar a Boa Nova, mas a sua realização.
Como tudo, até aqui, se cumpriu em ritmo inexorável, FIM
igualmente tudo continuará a cumprir-se. Com esta segunda
mensagem decenal, é coberto o período do II Milênio, encer-
rou-se o ritmo preparatório do terceiro dia da ressurreição,
quanto do III Milênio.
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 11
va, à base da observação e experiência, não vos pode levar além
A GRANDE SÍNTESE de certos resultados. Cada meio pode fornecer certo rendimento
e nada mais, e a razão é um meio. A análise não poderia chegar
Síntese e Solução dos Problemas da Ciência e do Espírito.
à grande síntese, grande aspiração que ferve no fundo de todas
as almas, senão por meio de um tempo infinito, de que não dis-
I. CIÊNCIA E RAZÃO pondes. Vossa ciência arrisca-se a não concluir jamais, e o “ig-
norabimus” quer dizer falência. A tarefa da ciência não pode ser
Em outro lugar e de outra forma1, falei especialmente ao co- apenas a de multiplicar vossas comodidades. Não estranguleis,
ração, usando linguagem simples, adaptada aos humildes e aos não sufoqueis a luz de vosso espírito, única alegria e centelha da
justos, que sabem chorar e crer. Aqui falo à inteligência, à razão vida, até ao ponto de tornar a ciência, que nasce do vosso inte-
cética, à ciência sem fé, a fim de vencê-la, superando-a com suas lecto, uma fábrica de comodidades. Esta é prostituição do espíri-
próprias armas. A palavra doce, que atrai e arrasta porque como- to, é vergonhosa venda de vós mesmos à matéria.
ve, foi dita. Indico-vos agora a mesma meta, mas por outros ca- A ciência pela ciência não tem valor, vale apenas como
minhos, feitos de ousadia e potência de pensamento, pois quem meio de ascensão da vida. Vossa ciência tem um pecado ori-
pede isso não saberia ver de outra forma, seja por faltar-lhe fé, ginal: dirigir-se apenas à conquista do bem-estar material. A
seja por incapacidade de orientação para compreender. verdadeira ciência deve ter como finalidade tornar melhores
O pensamento humano avança. Cada século, cada povo se- os homens. Eis a nova estrada que precisa ser palmilhada.
gue um conceito de acordo com um desenvolvimento que obe- Essa é a minha ciência 2.
dece a leis a que estais submetidos. Em qualquer campo, a nova ◘ ◘ ◘
ideia vem sempre do Alto e é intuída pelo gênio. Depois, dela Não falo para ostentar sabedoria ou para satisfazer a curiosida-
de humana, vou direto ao objetivo, para melhorar-vos moral-
vos apoderais, a observais, a decompondes, a viveis, passando-
mente, pois venho para fazer-vos o bem. Não me vereis des-
a então à vossa vida e às leis. Assim desce a ideia e, quando se
pender qualquer esforço para adaptar e enquadrar meu pensa-
fixa na matéria, já esgotou seu ciclo, já aproveitastes todo seu
mento ao pensamento filosófico humano, ao qual me referirei o
suco e a jogais fora, para absorverdes em vossa alma individual
menos possível. Ao contrário, ver-me-eis permanecer continu-
e coletiva novo sopro divino.
amente em contato com a fenomenologia do universo. Importa
Vosso século possuiu e desenvolveu uma ideia toda própria,
escutar verdadeiramente essa voz, que contém o pensamento de
que os séculos precedentes não viam, pois estavam atentos em
Deus. Compreendei-me, vós que não acreditais, vós céticos,
receber e desenvolver outras. Vossa ideia foi a ciência, com que
que julgais sabedoria a ignorância das coisas do espírito e, no
acreditastes descobrir o absoluto, embora essa também seja
entanto, admirais o esforço de conquista que o homem, diaria-
uma ideia relativa, que, esgotado seu ciclo, passa; eu venho fa-
mente, exerce sobre as forças da natureza. Ensinar-vos-ei a
lar-vos exatamente porque ela está passando.
vencer a morte, a superar a dor, a viver na grandiosidade imen-
Vossa ciência lançou-se num beco escuro, sem saída, onde
sa de vossa vida eterna. Não acorrereis com entusiasmo ao es-
vossa mente não tem amanhã. Que vos deu o último século?
forço necessário para obter tão grandes resultados? Vamos, en-
Máquinas como jamais o mundo as teve (mas que, no entanto,
tão, homens de boa vontade, ouvi-me! Primeiro compreendei-
são apenas máquinas) e que, em compensação, ressecaram vos-
me com o intelecto, pois, quando este ficar iluminado e virdes
sa alma. Essa ciência passou como um furacão destruidor de
claramente a nova estrada que vos traço, palpitará também vos-
toda a fé e vos impõe, com a máscara do ceticismo, um rosto so coração, e nele se acenderá a chama da paixão, para que a
sem alma. Sorris despreocupados, mas vosso espírito morre de luz se transmude em vida e o conceito em ação.
tédio, e ouvem-se gritos dilacerantes. Até vossa própria ciência O momento é crítico, mas é mister avançar. E então (coisa
é uma espécie de desespero metódico, fatal, sem mais esperan- incrível para a construção psicológica que o último século im-
ças. Terá ela resolvido o problema da dor? Que uso sabe fazer primiu em vós) nova verdade vos é comunicada por meios que
dos poderosos meios que lhe deram os segredos arrancados da desconheceis, para que possais descobrir o novo caminho. O
natureza? Em vossas mãos, o saber e a força transformam-se Alto, que vos é invisível, nunca deixou de intervir nos momen-
sempre em meios de destruição. tos culminantes da história. Que sabeis do amanhã, que sabeis
Para que serve, então, o saber, se, ao invés de impulsionar- da razão por que vos falo? Que podeis imaginar daquilo que o
vos para o Alto, tornando-vos melhores, para vós se torna ins- tempo vos prepara, vós, que estais imersos no átimo fugidio?
trumento de perdição? Não riais, ó céticos, que julgais ter re- Indispensável avançar, mais que isso não vos seria possível. As
solvido tudo, porque sufocastes o grito de vossa alma, que an- vias da arte, da literatura, da ciência, da vida social estão fecha-
seia por subir! A dor vos persegue e vos encontrará em qual- das, sem amanhã. Não tendes mais o alimento do espírito e re-
quer lugar. Sois crianças que julgais evitar o perigo escondendo mastigais coisas velhas que já são produtos de refugo e devem
a cabeça e fechando os olhos, mas existe uma lei, invisível para ser expelidas da vida. Falarei do espírito e vos reabrirei aquela
vós, todavia mais forte que a rocha, mais poderosa que o fura- estrada para o infinito, que a razão e a ciência vos fecharam.
cão, que caminha inexorável, movimentando tudo, animando Ouvi-me, pois. A razão que utilizais é um instrumento que
tudo; essa lei é Deus. Ela está dentro de vós, vossa vida é uma possuís para prover os misteres, as necessidades mais externas
exteriorização dela, e derramará sobre vós alegria ou dor, de da vida: conservação do indivíduo e da espécie. Quando lançais
acordo com a justiça, como o merecerdes. Eis a síntese que este instrumento no grande mar do conhecimento, ele se perde,
vossa ciência, perdida nos infinitos pormenores da análise, ja- porque, neste campo, os sentidos (que muito servem para vos-
mais poderá reconstituir. Eis a visão unitária, a concepção apo- sas necessidades imediatas) somente esfloram a superfície das
calíptica que venho trazer-vos. coisas, e sua incapacidade absoluta de penetrar a essência vós a
Para que me possa fazer compreender, é mister que fale de sentis. A observação e a experiência, de fato, deram-vos apenas
acordo com vossa mentalidade e me coloque no momento psico- resultados exteriores de índole prática, mas a realidade profunda
lógico que vosso século está vivendo. É indispensável que eu vos escapa, porque o uso dos sentidos como instrumento de pes-
parta justamente dos postulados da vossa ciência, para dar-lhe
uma direção totalmente nova. Vosso sistema de pesquisa objeti- 2
Para compreender esse estilo incomum, é necessário conhecer a téc-
nica da gênese deste pensamento, mediante a leitura de outros volu-
1
Ver o volume Grandes Mensagens. mes, os primeiros, pertencentes à Obra.
12 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
quisa, embora ajudado por meios adequados, vos fará permane- tente, que tende a vir à tona e a revelar-se. Os dois polos do
cer sempre na superfície, fechando-vos o caminho do progresso. ser – consciência exterior clara e consciência interior latente –
Para avançar ainda, é preciso despertar, educar, desenvol- tendem a fundir-se. A consciência clara experimenta, assimila,
ver uma faculdade mais profunda: a intuição. Aqui entram em imerge na latente os produtos assimilados através do movimen-
função elementos complementares novos para vós. Algum ci- to da vida – destilação de valores, automatismos que constitui-
entista jamais pensou que, para compreender um fenômeno, rão os instintos do futuro. Assim expande-se a personalidade
fosse indispensável a própria purificação moral? Partindo da com essas incessantes trocas e se realiza o grande objetivo da
negação e da dúvida, a ciência colocou a priori uma barreira vida. Quando a consciência latente tiver-se tornado clara e o eu
intransponível entre o espírito do observador e o fenômeno. O tiver pleno conhecimento de si mesmo, o homem terá vencido a
eu que observa permanece sempre intimamente estranho ao morte. Aprofundarei mais adiante essa questão.
fenômeno, atingido apenas pela estrada estreita dos sentidos. O estudo das ciências psíquicas é o mais importante que po-
Jamais o cientista abriu sua alma para que o mistério encaras- deis hoje fazer. O novo instrumento de pesquisa que deveis de-
se o próprio mistério e se comunicassem e se compreendes- senvolver e se está desenvolvendo naturalmente, é a consciên-
sem. O cientista jamais pensou que, para isto, é preciso amar cia latente. Já olhastes bastante para fora de vós. Agora resolvei
o fenômeno, tornar-se o fenômeno observado, vivê-lo; é in- o problema de vós mesmos, e tereis resolvido todos os outros
dispensável transportar o próprio eu, com sua sensibilidade, problemas. Habituai aos poucos vosso pensamento a seguir esta
até ao centro do fenômeno, não apenas com uma comunhão, nova ordem de ideias. Se souberdes transferir o centro de vossa
mas com uma verdadeira transfusão de alma. personalidade para essas camadas profundas, sentireis revelar-
Compreendeis-me? Nem todos poderão compreender, pois se em vós novos sentidos, uma percepção anímica, uma facul-
ignoram o grande princípio do amor; ignoram que a matéria é, dade de visão direta; esta é a intuição da qual vos falei. Purifi-
em todas as suas formas (até nas menores), sustentada, guia- cai-vos moralmente e refinai a sensibilidade do instrumento de
da, organizada pelo espírito, que, em diversos graus de mani- pesquisa que sois vós, e só então podereis ver.
festação, existe por toda a parte. Para compreender a essência Aqueles que absolutamente não sentem essas coisas, os ima-
das coisas, tereis que abrir as portas de vossa alma e estabele- turos, ponham-se de lado; torneiem-se até chafurdarem-se na la-
cer, pelos caminhos do espírito, essa comunicação interior, ma de suas baixas aspirações e não peçam o conhecimento, pre-
entre espírito e espírito; deveis sentir a unidade da vida, que cioso prêmio concedido apenas a quem duramente o mereceu.
irmana todos os seres, desde o mineral até o homem, em trocas
de interdependências, numa lei comum; deveis sentir esse liame III. AS PROVAS
de amor com todas as outras formas da vida, porque tudo, desde
o fenômeno químico até o social, é vida, regida por um princí- Se vossa consciência já não vos faz mais admirar qualquer
pio espiritual. Para compreender, é necessário que possuais nova possibilidade, como podeis negar a priori uma forma de
uma alma pura e que um liame de simpatia vos una a todo o existência diferente daquela do vosso corpo físico? Deveis pelo
criado. A ciência ri de tudo isso e, por esse motivo, deve limi- menos alimentar a dúvida a respeito da sobrevivência que vosso
tar-se a produzir comodidades e nada mais. Nisto que vos estou eu interno vos sugere a cada momento e que inconscientemen-
a dizer reside exatamente a nova orientação que a personalidade
te, por instinto, sonhais em todas as vossas aspirações e obras.
humana deve conseguir, para poder avançar.
Como podeis acreditar que vossa pequenina Terra, a qual vedes
navegar pelo espaço como um grãozinho de areia no infinito,
II. INTUIÇÃO
contenha a única forma possível de vida no universo? Como
podeis acreditar que vossa vida de dores e alegrias fictícias e
Não vos espanteis com esta incompreensível intuição3. Co-
contraditórias possa representar toda a vida de um ser?
meçai por não negá-la, e ela aparecerá. O grande conceito que a
Então, não esperastes nem sonhastes nada mais alto na diu-
ciência afirmou (embora de forma incompleta e com conse-
turna fadiga de vossos sofrimentos e de vosso trabalho? Se eu
quências erradas), a evolução, não é uma quimera e estimula
vos oferecesse uma fuga desses sofrimentos, uma libertação e
vosso sistema nervoso para uma sensibilidade cada vez mais
uma superação; se eu vos abrisse o respiradouro de um grande
delicada, que constitui o prelúdio dessa intuição. Assim se ma-
nifestará e aparecerá em vós essa psique mais profunda por lei mundo novo, que ainda desconheceis, e vos permitisse con-
natural de evolução, por fatal maturação, que está próxima. templá-lo por dentro para vosso bem, não correríeis como cor-
Deixareis de lado, para uso da vida prática, vossa psique exteri- reis para ver as máquinas que devoram o espaço sulcando os
or e de superfície, a razão, pois só com a psique interior, que céus e ouvem as longínquas ondas elétricas? Vinde. Mostro-
está na profundeza de vosso ser, podereis compreender a reali- vos as grandes descobertas que fará a ciência, especialmente as
dade mais verdadeira, que se encontra na profundeza das coi- das vibrações psíquicas, por meio das quais nos é permitido, a
sas. Esta é a única estrada que conduz ao conhecimento do Ab- nós, espírito sem corpo, comunicar-nos com aquela parte de
soluto. Só entre semelhantes é possível a comunicação; para vós que é espírito, como nós. Segui-me. Não se trata de um
compreender o mistério que existe nas coisas, deveis saber lindo sonho nem de fantástica exploração do futuro o que estou
descer no mistério que está em vós. fazendo: é o vosso amanhã. Sede inteligentes à altura de vossa
Não ignorais isto totalmente; olhais admirados tantas coi- ciência; sede modernos, ultramodernos, e vislumbrareis o espí-
sas que afloram de vossa consciência mais profunda sem po- rito, que é a realidade do amanhã, e o tocareis com o raciocí-
derdes descobrir as origens: instintos, tendências, atrações, nio, com o refinamento de vossos órgãos nervosos, com o pro-
repulsas, intuições. Daí nascem irresistíveis todas as maiores gresso de vossos instrumentos científicos. O espírito está aí, à
afirmações de vossa personalidade. Aí está o vosso verdadeiro espera, e fará vibrar as civilizações futuras.
e eterno eu. Não o eu exterior, aquele que sentes mais quando As verdades filosóficas fundamentais, tão discutidas durante
estais no corpo, que é filho da matéria e que morre com ela. milênios, serão resolvidas racionalmente, por meio da simples
Esse eu exterior, essa consciência clara, expande-se no contí- razão, porque vossa inteligência terá progredido; o que dantes,
nuo evolver da vida, aprofunda-se para aquela consciência la- por outras forças intelectivas, tinha que ser forçosamente dogma
e mistério de fé, será questão de puro raciocínio, será demonstrá-
3
Desse especialíssimo método de pesquisa, aqui apenas delineado, os vel e, portanto, verdade obrigatória para todo o ser pensante.
volumes As Noúres e Ascese Mística tratam a fundo. ◘ ◘ ◘
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 13
Não sabeis que todas as descobertas humanas nasceram da é apreciável pelos sentidos, portanto é sempre discutível para
profundidade do espírito que contatou com o além? De onde quem queira negá-lo; antes, é íntimo, intrínseco.
vem o lampejo do gênio, a criação da arte, a luz que guia os líde- A verdadeira prova é apenas uma. É a mão de Deus que vos
res dos povos, senão deste mundo, de onde vos falo? As grandes alcança em vossas próprias casas, é a dor que, superando as
ideias que movem e fazem avançar o mundo, acaso as encontrais barreiras humanas, atinge-vos e vos sacode, é a crise do espíri-
no ambiente de vossas competições cotidianas, ou no mundo dos to, é a maturação do destino, é a tonitruante voz do mistério,
fenômenos que a ciência observa? Então, de onde vêm? que vos surpreende a cada esquina da vida e vos diz: basta! Eis
Não podeis negar o progresso: o próprio materialismo, que o caminho! Essa prova, vós a sentis; ela vos perturba, esmaga,
vos tornou céticos, teve de proferir a palavra evolução. Vós espanta, mas é irresistível, transforma-vos e vos convence. En-
mesmos que negais, estais todos ansiosos e ávidos de ascensão; tão vós, negadores irônicos, vos ajoelhais, tremeis e chorais.
não podeis negar que o intelecto progride e existem alguns ho- Chegou o grande momento. Deus vos tocou. Eis a prova!
mens mais adiantados do que outros. Portanto não pode ser im- Vossa vida está cheia dessas forças desconhecidas em
possível para a razão e para a ciência admitir que alguns dentre ação. São as maiores, das quais dependem vossas vicissitudes
vós tenham atingido, por evolução, tal sensibilidade nervosa de e o destino dos povos. Quantas já não estão prontas a mover-
sentir o que não conseguis perceber: as ondas psíquicas, que se no desconhecido amanhã, mesmo contra vós que me ledes?
nós, os espíritos, transmitimos. São eles os médiuns espirituais, Os inconscientes sacodem os ombros ao amanhã; só os cora-
verdadeiros instrumentos receptores de correntes e de conceitos josos ousam olhá-lo de frente, seja bom ou ruim. Eu falo, ó
que podemos transmitir. Esse é o mais alto grau de mediunida- homem, de vosso destino, de vossa vitória e de vossas dores
de (em alguns casos totalmente consciente), quando podem es- de amanhã, não apenas naquele longínquo futuro sobre o qual
não vos preocupais, mas de vosso futuro próximo. Minhas pa-
tabelecer-se relações de sintonia; disso nos servimos para o ele-
lavras dar-vos-ão novo e mais profundo sentido da vida e do
vado objetivo de transmitir-vos nosso pensamento.
destino, de vossa vida e de vosso destino.
Muitos médiuns ouvem com novo sentido de audição psí-
Já falei ao mundo e aos povos de seus grandes problemas co-
quica, não mais com o acústico. Ouvem-nos com seu cérebro.
letivos. Agora falo a vós, no silêncio de vosso recolhimento. Mi-
Sintonia quer dizer capacidade de ressonância. Espiritualmen-
nhas palavras são boas e sábias e visam a fazer de vós um ser
te, sintonia é simpatia, isto é, capacidade de sentir em unísso-
melhor, para vós mesmos, para vossa família, para vossa pátria.
no. Quer acústica, quer elétrica ou espiritualmente, o princípio
vibratório de correspondência é o mesmo, porque a Lei é una
IV. CONSCIÊNCIA E MEDIUNIDADE
em todos os campos4.
Naturalmente, quem não ouve nega; mas não poderá, não
Tendes meios para comunicar-vos com seres mais impor-
terá o direito de negar que os outros possam ouvir e que ou-
tantes que aqueles a quem chamais habitantes de Marte, mas
çam. Quem nega pede provas e só se dispõe a conceder seu
são meios de ordem psíquica, não instrumentos mecânicos;
consentimento depois de haver verificado esses fatos, necessá-
meios psíquicos que a ciência (que pesquisa de fora para den-
rios para sacudir esse seu tipo de mentalidade. Jamais pensastes
tro) e a vossa evolução (que se expande de dentro para fora) tra-
na relatividade de vossa psicologia, devida aos diversos graus
rão à luz. Pode chamar-se consciência latente, uma consciência
de evolução de cada um? Jamais pensastes naquilo que impres- mais profunda que a normal, onde se encontram as causas de
siona a mente de um, mas deixa a de outro indiferente, e como muitos fenômenos inexplicáveis para vós. O sistema de pesqui-
cada um exige a “sua” prova? Que número enorme de provas sa positiva, ao fazer-vos olhar mais profundamente as leis da
seria necessário para cada um sentir-se impressionado em sua natureza, também vos fez descobrir o modo de transformar as
própria sensibilidade particular! Para cada um, um fato pode in- ondas acústicas em elétricas, dando-vos um primeiro termo de
serir-se em sua vida, em sua concepção de vida, na orientação comparação sensível daquela materialização de meios que em-
dada a todos os seus atos. O próprio raciocínio não serve para pregamos. Já vos avizinhastes um pouco e hoje podeis, mesmo
todos, porque a demonstração, com frequência, torna-se discus- cientificamente, compreender melhor.
são, que, em lugar de convencer, transforma-se em desabafo Acompanhai-me, caminhando do exterior, onde estais
agressivo, exemplo de luta, que exacerba os ânimos. com vossas sensações e vossa psique, para o interior, onde
Restaria o prodígio. Mas as leis de Deus são imutáveis, estou eu como entidade e como pensamento. No mundo da
porque perfeitas; o que é perfeito não pode ser alterado nem matéria, temos primeiro os fenômenos; depois, vossa per-
corrigido. Acreditai: só em vossa psicologia, sedenta de viola- cepção sensória e, finalmente, por meio de vosso sistema
ções, pode existir esse pensamento atrasado de que uma vio- nervoso convergente para o sistema cerebral, vossa síntese
lação seja prova de força. Isso pode ter ocorrido em vosso psíquica: a consciência. Até aqui chegastes pela pesquisa ci-
passado de homens selvagens, imbuídos de luta e rebelião; pa- entífica e experiência cotidiana. Vosso materialismo não er-
ra nós, o poder está na ordem, no equilíbrio, na coordenação rou, quando viu nessa consciência uma alma filha da vida fí-
das forças, e não na revolta, na desordem, no caos. sica e destinada a morrer com ela. Mas é apenas uma psique
Além disso, um milagre vos convenceria? O Cristo fez de superfície, resultado do ambiente e da experiência, ser-
tantos! Acreditastes? Um milagre é sempre um fato exterior a vindo à satisfação de vossas necessidades imediatas; sua ta-
vós; podeis negá-lo todas as vezes que vos for cômodo, por- refa termina quando vos tenha guiado na luta pela vida. Esse
que perturba vossos interesses. instrumento, como já vos disse, não pode ultrapassar essa ta-
Conclusão: ou tendes pureza de ânimo e sinceridade de in- refa; lançado no grande mar do conhecimento, perde-se; tra-
tenções e então sentireis em minha palavra a verdade, sem ta-se da razão, do bom senso, da inteligência do homem
provas exteriores (eis a intuição), pelo seu tom e conteúdo; ou normal, que não vai além das necessidades da vida terrena.
estais de má fé e vos aproximais com duplo fim, para demolir Se descermos mais na profundidade, encontraremos a cons-
ou especular, porque, acima de qualquer discussão, já colocas- ciência latente, que está para a consciência exterior e clara, as-
tes o preconceito de vosso interesse ou vantagem. Então estais sim como as ondas elétricas estão para as ondas acústicas. A
armados para recusar qualquer prova. O fato não é externo, não essa consciência mais profunda pertence aquela intuição, é o
meio perceptivo, e a ele é necessário poder chegar, como vos
4
Para o desenvolvimento destes conceitos, vejam-se os volumes: As disse, para que vosso conhecimento possa progredir.
Noúres, Ascese Mística, A Nova Civilização do Terceiro Milênio e Vossa consciência latente é vossa verdadeira alma eterna,
Problemas do Futuro. existe antes do nascimento e sobrevive à morte corporal. Quando,
14 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
ao avançar, a ciência chegar até ela, ficará demonstrada a imorta- V. NECESSIDADE DE UMA REVELAÇÃO
lidade do espírito. Mas hoje não estais conscientes dessa profun-
didade, não sois sensíveis a esse nível e, não tendo em vós mes- Falei de vossa razão humana, com a qual construístes
mos nenhuma sensação, a negais. Vossa ciência corre atrás de vossa ciência, e afirmei a relatividade desse instrumento de
vossas sensações, sem suspeitar que elas podem ser superadas, e pesquisa e a sua insuficiência como meio para conquistar o
aí fica circunscrita como num cárcere. Essa parte de vós mesmos conhecimento do Absoluto.
está imersa em trevas, pelo menos assim é para a grande maioria Agora vos conduzo lentamente, cada vez mais próximo
dos homens, que, por conseguinte, nega e, sendo maioria, faz e do centro da questão. O estudo que vos exponho representa
impõe a lei, relegando a um campo comum de fora da normali- novo princípio para vossa ciência e filosofia, novo para vos-
dade e juntando em dolorosa condenação tanto o subnormal, isto so pensamento. O momento psicológico que a humanidade
é, o patológico ou involuído, como o supranormal, elemento su- atravessa hoje requer a ajuda dessa revelação. Não vos as-
perevoluído do amanhã. Neste campo muito errou o materialis- susteis com essa palavra; revelação não é apenas aquilo de
mo. Apenas alguns indivíduos excepcionais, precursores da evo- que nasceram as religiões, mas também qualquer contato da
lução, estão conscientes na consciência interior. Esses ouvem e alma humana com o pensamento íntimo que existe na cria-
dizem coisas maravilhosas, mas vós não os compreendeis senão ção, contato que revela ao homem um novo mistério do ser.
muito tarde, depois que os martirizastes. No entanto esse é o es- Como está hoje – vós o sabeis – a psicologia humana não
tado normal do super-homem do futuro. tem amanhã; ela o busca ansiosamente, mas, por si só, não
Acenei a essa consciência interior, porque é a base da mais sabe achá-lo. Espera algo, confusamente, sem saber o que
alta forma de vossa mediunidade, a mediunidade inspirativa, ati- poderá nascer, de onde e como; mas espera por necessidade
va e consciente; ela é justamente a manifestação da personalidade íntima, por imperioso instinto, porque este constitui a lei da
humana quando, por evolução, atinge esses estados profundos de vida; permanece na expectativa de ouvir algo e se limita a
consciência, que podem chamar-se intuição. avaliar as vozes, as verdadeiras e as falsas, a fim de escolher
Vossa consciência humana é o órgão exterior através do qual aquela que corresponderá a seu infalível instinto e, descendo
vossa verdadeira alma eterna e profunda se põe em contato com a das profundidades do infinito, será a única a fazê-la tremer.
realidade exterior do mundo da matéria. Por seu intermédio, ex- Esperam-na, sobretudo, os homens de pensamento, que estão
perimenta todas as vicissitudes da vida; destas experiências faz à frente do movimento intelectual; esperam-na os homens de
um tesouro, delas assimila o suco destilado, do qual ela se apode- ação, que estão à frente do movimento político e econômico
ra, tornando suas estas qualidades e capacidades, que mais tarde do mundo. A mente humana procura um conceito que a abale,
constituirão os instintos e as ideias inatas do futuro. Assim, a es- conceito profundo e mais poderosamente sentido, que a orien-
sência destilada da vida desce em profundidade no íntimo do ser; te para a iminente nova civilização do Terceiro Milênio.
fixa-se na eternidade como qualidades imperecíveis, e nada, de Alguns dos conceitos de que dispondes são insuficientes,
tudo o que viveis, lutais e sofreis, perder-se-á em sua substância. outros estão esgotados, outros se encontram tão cobertos de
Vedes que, com a repetição, todos os vossos atos tendem a fixar- incrustações humanas, que por estas ficam esmagados. A ci-
se em vós, como automatismos, que são os hábitos, isto é, uma ência, tão enceguecida de orgulho desde que nasceu, de-
monstrou-se impotente diante dos “últimos porquês” e, com
roupagem sobreposta à personalidade. Essa descida das experi-
a pretensão de generalizar, partindo de poucos princípios, os
ências da vida se estratifica em torno do núcleo central do eu,
mais baixos, prejudicou-vos, abaixando-vos, fazendo-vos re-
que, com isso, agiganta-se num processo de expansão contínua;
troceder para aquela matéria, a única que estudava. As filo-
assim, a realidade exterior (tanto mais relativa e inconsciente
sofias são produtos individuais, elevando a sistema aquela
quanto mais exterior) sobrevive àquela caducidade a que está
indiscutível premissa que é o próprio eu; embora sendo in-
condenada por aquele constante transformismo que a acompa-
tuições, são intuições parciais, visões pessoais que só inte-
nha, e transmite ao eterno aquilo que vale e sua existência pro-
ressam ao grupo dos afins. O bom senso é instrumento ime-
duz. Por isso nada morre no imenso turbilhão de todas as coisas;
diato para as finalidades materiais da vida e não pode supe-
todo ato de vossa vida tem valor eterno.
rá-las, então não pode bastar. As religiões, tantas e, erro im-
Quem consegue ser consciente também na consciência laten-
perdoável, todas lutando entre si, exclusivistas na posse da
te, encontra seu eu eterno e, na vasta complexidade das vicissitu- verdade, e isto em nome do próprio Deus, aplicam-se não a
des humanas, pode reencontrar o fio condutor ao longo do qual, procurar a ponte que as una, mas a cavar o abismo que as di-
logicamente, segundo uma lei de justiça e de equilíbrio, desen- vida. Anseiam invadir o mundo todo, ao invés de se coorde-
volve-se o próprio destino. Então vive sua vida maior na eterni- narem no nível que lhes compete, em relação à profundidade
dade e com isso vence a morte. Ele se comunica livremente, da revelação recebida. Infelizmente, recobriram de humani-
mesmo na Terra, por um processo de sintonia que implica afini- dade a originária centelha divina.
dade com as correntes de pensamento que existem além das di- Devo definir desde logo meu pensamento, para não ser
mensões do espaço e do tempo. Em outro lugar acenei à técnica mal interpretado e posto na mira dos ansiosos de destruição
dessa comunicação conceptual ou mediunidade inspirativa. e agressividade humana. Não venho para combater nenhuma
Tracei-vos, assim, o quadro da técnica de vossa ascensão es- religião, mas para coordená-las todas, como diferentes apro-
piritual, efeito e meta de vossa vida. Em minhas palavras vereis ximações da verdade, UNA, e não múltipla como quereríeis.
sempre pairar esta grande ideia da evolução, não no limitado No entanto coloco no mais alto posto da Terra a revelação e
conceito materialista de evolução de formas orgânicas, mas no a religião de Cristo, porque é a mais completa e perfeita den-
bem mais vasto conceito de evolução de formas espirituais, de tre todas. Esclarecido este conceito, prossigo e verifico o fa-
ascensão de almas. Este é o princípio central do universo, a gran- to inegável de que nenhuma de vossas crenças hoje levanta,
de força motriz de seu funcionamento orgânico. O universo infi- abala e verdadeiramente arrasta as massas.
nito palpita de vida, que, ao reconquistar sua consciência, retorna Diante das grandes paixões que outrora moviam os povos,
a Deus. É esse o grande quadro que vos mostrarei. Essa é a visão hoje o espírito se encontra adormecido no ceticismo; de tal
que, partindo de vossos conhecimentos científicos, indicar-vos- forma caiu no vazio, que não tem força para rebelar-se, nem
ei. Minha demonstração, lembrai-vos, embora se inicie com uma sombra de interesse, ainda que para negar; tornou-se um nada
investigação para uso dos céticos, é um lampejo de luz que lanço recoberto por sorridente máscara; desceu ao último degrau; es-
ao mundo, é imensa sinfonia que canto em louvor de Deus. tá na última fase de esgotamento: a indiferença. Esse é o quadro
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 15
de vosso mundo espiritual. Infelizmente, o que vos guia de fa- A isto podeis chamar de monismo. Atentai mais aos con-
to na vida real é bem outra coisa: é o egoísmo, são vossas bai- ceitos que às palavras. Por vezes a ciência acreditou ter
xas paixões, em que acreditais cegamente. Mas a isto não po- descoberto e criado um conceito novo, só porque inventou
deis chamar uma orientação, um princípio capaz de dirigir-vos uma palavra. E o conceito é este: como do politeísmo pas-
a objetivos mais elevados. Se isto constitui um princípio, tra- sastes ao monoteísmo, isto é, à fé num só Deus (mas sempre
ta-se de um princípio de desagregação e de ruína; para isso, antropomórfico, pois realiza uma criação fora de si), agora
com efeito, corre o mundo em grande velocidade. passais ao monismo, isto é, ao conceito de um Deus que é a
Então não é por acaso que vos chega minha palavra. Ela criação. Lede mais, antes de julgar. Farei que lampeje em
vem não para destruir as verdades que possuís, mas para re- vossas mentes um Deus ainda maior que tudo o que pudes-
peti-las de forma mais persuasiva, mais evidente, mais adap- tes conceber. Do politeísmo ao monoteísmo e ao monismo,
tada às novas necessidades da mente humana. Vossa psico- dilata-se vossa concepção de Divindade. Este tratado, pois,
logia não é a mesma de vossos pais, e as formas adequadas é o hino de Sua glória.
para eles não o são para vós; sois inteligências que saíram da Sinto já esta síntese suprema num lampejo de luz e de
menoridade; vossa mente habituou-se a olhar por si e hoje alegria. Quero conduzir-vos, a vós também, a essa meta, por
pode suportar visões mais vastas; pede, quer saber e tem di- meio do estudo do funcionamento orgânico do universo. Es-
reito de saber mais. Por vossa maturação, podeis hoje ver e te tratado vos aparecerá assim como uma progressão de con-
resolver diretamente problemas que mal eram suspeitados ceitos, uma ascensão contínua por aproximações graduais e
por vossos avós. Além disso, vossos problemas individuais e sucessivas. Poderá também parecer-vos uma viagem do espí-
coletivos se tornaram por demais complexos e delicados pa- rito; é verdadeiramente a grande viagem da alma que regres-
ra que possam ser suficientes os anunciados sumários das sa ao seu Princípio; da criatura que regressa a seu Criador.
verdades conhecidas. No atual período de grandes matura- Cada novo horizonte que a razão e a ciência vos mostraram
ções, vós, a cada momento, superais vossas ideias com uma era apenas uma janela aberta para um horizonte ainda mais
velocidade sem precedentes para vós. Pondo de parte os longínquo, sem jamais atingir o fim. Eu, porém, indicar-vos-
imaturos e mentirosos, existe grande número de honestos ei o último termo, que está no fundo de vós mesmos, onde a
que precisam saber mais e com maior precisão. Enfim, dis- alma repousa. Subiremos das ramificações dos últimos efei-
pondes hoje, com os meios mecânicos fornecidos pela ciên- tos, progredindo da periferia para o centro, ao tronco da cau-
cia, com os segredos que tendes sabido arrancar à natureza, sa primeira, que se multiplicou nesses efeitos.
de muito maior potência de ação do que no passado, potên- A realidade, em vosso mundo, está fracionada por barrei-
cia que requer de vós, que a manejais, uma sabedoria muito ras de espaço e de tempo; a unidade aparece como que pul-
maior, a fim de que essa potência não se torne, manejada verizada no particular; vemos o infinito fragmentar-se, divi-
com a mentalidade pueril e selvagem dos séculos passados, dir-se, corromper-se no finito, o eterno no caduco, o absolu-
em vossa destruição, mas sim em vosso engrandecimento. to no relativo. Mas percorreremos o caminho inverso a essa
Então, é chegada a hora de dizer minha palavra. descida e reencontraremos aquele infinito, que jamais a ra-
zão poderia dar-vos, porque a análise humana não pode per-
VI. MONISMO correr a série dos efeitos através de todo o espaço, por toda a
eternidade, e não dispõe daquele infinito pelo qual seria mis-
Aproximemo-nos ainda mais da questão a ser desenvol- ter multiplicar o finito para obter a visão do Absoluto.
vida. Eram indispensáveis essas premissas para vos conduzir A finalidade desta viagem é dar ao homem nova consci-
até aqui. Observai meu modo de proceder ao expor meu pen- ência cósmica. Uma consciência que o faça sentir-se não
samento. Avanço seguindo uma espiral que gradualmente apenas indestrutível e eterno membro de uma humanidade
aperta suas volutas concêntricas e, se passo de novo pela que abarca todos os seres do universo, mas também repre-
mesma ordem de ideias, toco o raio que parte do centro num sentante de uma força que desempenha um papel importante
ponto cada vez mais próximo dele. Guio vosso pensamento no funcionamento orgânico do próprio universo. Viveis para
para esse centro. Nesta exposição, parto da periferia e vou conquistar uma consciência cada vez mais ampla. O homem,
para o interior; da matéria, que é a realidade de vossos senti- rei da vida no planeta Terra, conquistou uma consciência in-
dos, para o espírito, que contém uma realidade mais verda- dividual própria, que constitui prêmio e vitória. Agora está
deira e mais elevada; vou da superfície ao âmago, da multi- construindo outra mais vasta: a consciência coletiva, que o
plicidade fenomênica ao princípio único que a rege. Por isso organiza em unidades nacionais e se fundirá numa unidade
denominei este tratado de A Grande Síntese. espiritual ainda mais vasta: a humanidade. Eu, porém, lanço
Estou no outro polo do ser, no extremo oposto àquele em a semente de uma consciência universal, a única que vos po-
que estais; vós, seres racionais, sois análise; eu, intuitivo de dar a visão de todos os vossos deveres e direitos e poderá,
(contemplação, visão), sou síntese. Mas desço agora à vossa perfeitamente, guiar todas as vossas ações, além de solucio-
psicologia racional de análise, tomo-a como ponto de parti- nar todos os vossos porquês. Partindo de vosso cognoscível
da, a fim de levar-vos à síntese como ponto de chegada. Par- científico humano, esse caminho também atingirá conclu-
to da forma para explicar-vos o impulso obscuro e palpitan- sões de ordem prática, individual e social. A exposição das
te, o motor que a anima, tenazmente aprofundando no misté- leis da vida tem como objetivo ensinar-vos normas mais
rio. Penetro, sintetizo e aperto num monismo absoluto os completas de comportamento. Sabendo olhar no abismo de
imensos pormenores do mundo fenomênico, incomensura- vosso destino, sabereis agir cada vez com mais elevação.
velmente vasto se o multiplicais pelo infinito do tempo e do Eis traçada a estrada que percorreremos. E a seguiremos não
espaço; canalizo a multiplicidade dos efeitos – dos quais a apenas para saber, mas também para agir depois. Quando se fi-
ciência, com imenso esforço, vislumbrou algumas leis – nos zer luz na mente, o coração se acenderá de paixão para marchar
caminhos convergentes que conduzem ao princípio único. seguindo a mente que viu.
Farei desse mundo, que pode parecer caótico a vossas men- Ascensão é a ideia dominante. Deus é o centro. Este tratado
tes, um organismo completo e perfeito. A complexidade que é mais que uma grande síntese científica e filosófica: é uma re-
vos desanima será reconduzida e reduzida a um conceito volução introduzida em vosso sistema de pesquisa, nova dire-
central único e simples, a uma lei única, que dirige tudo. ção dada ao pensamento humano, para, após este impulso, ca-
16 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
nalizá-lo em novo caminho de conquistas; é uma revolução Resumindo:
que não arrasa nem nega, implantando arbítrio e desordem, O aspecto estático mostra-nos o universo em sua estrutu-
mas afirma e cria, guiando-vos a uma ordem e equilíbrio ca- ra e forma; o aspecto dinâmico, em seu movimento e vir-a-
da vez mais completos e complexos, para uma lei cada vez ser; o aspecto mecânico, em seu princípio e em sua lei. Mas
mais forte e mais justa. Pois bem, para ajudar a nascer em esses são somente aspectos, pontos de vista diferentes do
vós esta nova consciência que está por surgir à luz, para es- mesmo fenômeno. Coexistem sempre, em toda parte, e os
timular esta vossa transformação que está iminente, imposta encontramos conexos.
pela evolução, da fase humana à fase super-humana, eu vos Do exame desses três aspectos surge a ideia gigantesca
ensino novo método de pesquisa, praticado por via da intui- que domina todo o universo. Quer o observemos como orga-
ção. Indico-vos a possibilidade de uma nova ciência, con- nismo, como devenir ou como lei, chegaremos ao mesmo
quistada com o sistema dos místicos, no qual os fenômenos conceito por três estradas diferentes, que se somam e refor-
são penetrados por meio de nova sensibilidade, abrindo as çam a conclusão. Ascendemos, assim, ao princípio único, à
portas da alma, além das dos sentidos, da alma da qual vos ideia central que governa o universo. Esse princípio, essa
terei ensinado todos os recursos insuspeitados e meios de ideia, é ordem. Imaginai, se a ordem não reinasse soberana,
percepção direta. Desse modo, os fenômenos não serão mais que choque tremendo sofreria um funcionamento tão comple-
vistos, ouvidos nem tocados por um eu qualquer, mas sentidos xo como é o da criação, um transformismo que jamais para!
por um ser que se transformou em delicadíssimo instrumento Somente esse princípio pode estabilizar um movimento de
de percepção, porque sensitivamente evoluído, nervosamente tamanha vastidão. Cada fenômeno, em cada campo, tem uma
refinado e, sobretudo, moralmente aperfeiçoado. Ciência no- trajetória própria de desenvolvimento, que é a sua lei, coorde-
va, conduzida pelos caminhos do amor e da elevação espiritu- nada à lei maior, e que não pode ser modificada; tem uma
al, é a ciência do super-homem, que está para nascer e fundará vontade de existir numa forma que o individualiza e de mo-
a nova civilização do Terceiro Milênio 5. ver-se para atingir uma meta exata, razão de sua existência; é
lançado com velocidade e massa que o distingue inconfundi-
VII. ASPECTOS ESTÁTICO, DINÂMICO velmente entre todos os demais fenômenos. Como poderia tu-
E MECÂNICO DO UNIVERSO do mover-se sem precipitar-se num cataclismo imediato e
universal, se cada trajetória não tivesse sido já traçada invio-
Chegando a este ponto, podemos estabelecer, em suas gran- lavelmente? Não podeis deixar de encontrar esse princípio de
des linhas, os conceitos fundamentais, que depois desenvolve- uma lei soberana, em toda parte e a qualquer momento. Não
remos analiticamente. vos falo apenas de fenômenos biológicos, astronômicos, físi-
Não vos digo: observemos os fenômenos e deduzamos de cos ou químicos. Vossa vida individual, vossa história de po-
suas consequências, os princípios que os regem, mas vos di- vos, vossa vida social têm suas leis. Vossas estatísticas, pelo
go: o quadro do universo é este, observai e vereis que os fe- princípio dos grandes números, colhem-nas e podem dizer-vos
nômenos aí se encaixam e a ele correspondem em sua totali- quantos nascimentos, mortes ou delitos acontecerão aproxi-
dade. O universo é a unidade que abarca tudo o que existe. madamente nos anos seguintes. Também o campo moral e es-
Essa unidade pode ser considerada sob três aspectos: estáti- piritual tem suas leis; embora sua complexidade vos faça per-
co, dinâmico e mecânico. der o rastro, a Lei subsiste também nesse campo, matemati-
Em seu aspecto estático, a unidade-todo é considerada camente exata. Se podeis mover-vos, agir e conseguir qual-
abstratamente seccionada em um átimo de seu eterno deve- quer resultado, é tudo em torno de vós se move com ordem,
nir, para que vossa atenção possa observar particularmente a de acordo com uma lei, e nessa lei tendes sempre confiança,
estrutura, mais que o movimento. Como estrutura, o univer- porque só ela vos garante a constância dos efeitos e das rea-
so é um organismo, ou seja, um todo composto de partes não ções. Lei não inexorável, nem insensível, mas complexa, ex-
reunidas ao acaso, mas com ordem e proporção recíproca, as traordinariamente complexa em todo o entrelaçamento de suas
quais, mesmo que momentânea e excepcionalmente possa repercussões; uma lei elástica, adaptável, compensadora,
ocorrer o contrário, sempre se correlacionam entre si, como construída com tão vasta amplitude, que abarca em seu âmbito
é necessário num organismo cujas partes, ao funcionarem, todas as possibilidades. Lei, sempre lei, exata nas consequên-
devem coordenar-se num objetivo único. cias de qualquer ato, férrea nas conclusões e sanções, podero-
Em seu aspecto dinâmico, a unidade-todo é considerada sa, imensa, matematicamente precisa em sua manifestação.
naquilo que verdadeiramente é: um eterno devenir. O universo Ela é ordem e, como ordem, mais ampla e poderosa que a
é um movimento contínuo. Movimento significa trajetória; desordem, portanto a engloba e a guia para suas metas; ela é
trajetória significa um objetivo a atingir. Na realidade, o as- equilíbrio, mais vasto que o desequilíbrio, o qual abarca e
pecto dinâmico se funde com o estático, isolamo-lo apenas limita num âmbito intransponível. Equilíbrio e ordem são,
para facilitar as observações. O movimento é orgânico, é fun- também, o Bem e a Alegria. Em todos os campos, uma só é a
cionamento de partes coordenadas. Assim, o conceito de sim- lei. A alegria é mais forte que a dor, que se torna instrumen-
ples movimento se define e se completa num vir-a-ser mais to de felicidade; o bem é mais poderoso que o mal, limitan-
complexo, que já não é só movimento físico, mas transfor- do-o e constringindo-o para os seus objetivos. Se existem
mismo fenomênico, e o conceito de trajetória amplia-se com o desordem, mal e dor, só existem como reação, como exce-
significado de progresso em direção a uma meta definida. ção, como condição, como contragolpe fechado dentro de
O aspecto mecânico é apenas o conceito de movimento diques invisíveis, determinados e invioláveis. Esta é a ver-
abstratamente isolado, a fim de poder analisá-lo melhor, co- dade, embora seja difícil demonstrá-la à vossa razão, que
lhendo o princípio e definindo sua lei por meio do estudo da observa a matéria. Esta, por estar à distância máxima do cen-
trajetória-tipo dos movimentos fenomênicos. É o estudo da tro da causa primeira, é o que há de menos apto para revelar-
Lei como forma e norma do devenir. vos essa causa; embora contendo em si todo o princípio, es-
conde-o mais secretamente em seu âmago.
5
Este conceito de nova civilização, várias vezes repetido nesta Não confundais a ordem e a presença da Lei com um auto-
obra, desenvolveu-se mais tarde, no volume A Nova Civilização do matismo mecânico e um fatalismo absurdo. A ordem, vo-lo dis-
Terceiro Milênio. se, não é rígida, mas apresenta espaços elásticos, contém subdi-
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 17
visões de desordem, imperfeição, complica-se em reações, Esses três modos de ser estão coligados por relações de deri-
mas permanece ordem e lei no conjunto, no absoluto. Um vação recíproca. Para tornar mais simples a exposição, reduzi-
exemplo: em oposição à vontade da Lei, tendes a vontade de remos esses conceitos a símbolos. A ideia pura, o primeiro mo-
vosso livre arbítrio, mas é vontade menor, marginalizada, cir- do de ser do universo, a que chamaremos espírito, pensamento,
cunscrita por aquela vontade maior; podeis agitar-vos a vosso Lei, e que representaremos com a letra  (alfa); condensa-se e se
bel prazer, como dentro de um recinto, não além dele. materializa, revestindo-se com a forma de vontade, concentran-
Essa movimentação vos é permitida porque necessária do-se em energia, exteriorizando-se no movimento, segundo
para que sejais livres e responsáveis no ambiente que vos modo de ser, que representaremos com a letra  (beta); num ter-
cerca e possais assim, com liberdade e responsabilidade, ceiro tempo, passamos (em virtude de mais profunda materiali-
conquistar vossa felicidade. Resolvi (assim de passagem) o zação, ou condensação, ou exteriorização) ao modo de ser que
conflito que para vós é insolúvel entre determinismo e livre- denominamos matéria, ação, forma, isto é, o mundo de vossa re-
arbítrio. Estes conceitos levar-vos-ão, posteriormente, a con- alidade exterior, que representaremos com a letra  (gama).
ceber uma exata moral científica. O universo resulta constituído por uma grande onda que
de , o espírito (puro pensamento, a Lei, que é Deus), cami-
VIII. A LEI nha num devenir contínuo, movimento feito de energia e
vontade (), para atingir seu último termo, , a matéria, a
A Lei. Eis a ideia central do universo, o sopro divino que forma. Dando ao sinal “” o sentido de “vai para”, podere-
o anima, governa e movimenta, tal como vossa alma, peque- mos dizer: .
na centelha dessa grande luz, governa vosso corpo. O uni- O espírito, , é o princípio, o ponto de partida dessa on-
verso de matéria estelar que vedes é como a casca, a mani- da; , a matéria, é o ponto de chegada. Mas compreendereis,
festação externa, o corpo daquele princípio que reside no qualquer movimento, se aplicado constantemente numa só
âmago, no centro. direção, deslocaria todo o universo (em sentido lato, não
Vossa ciência, que observa e experimenta, permanece na apenas espacial), com acúmulos de um lado e vazios de ou-
superfície e procura encontrar esse princípio através de suas tro, proporcionais e definitivos. Então é necessário, para
manifestações. manter o equilíbrio, que a grande onda de ida seja compen-
As poucas verdades particulares que aprendeu são apenas sada por outra onda equivalente de volta. Isso é também ló-
farrapos mal remendados da grande lei. A ciência observa, gico e se realiza em virtude de uma lei de complementarida-
supõe um princípio secundário, deduz uma hipótese, trabalha de, pela qual cada unidade é metade de outra unidade mais
completa. O movimento que existe no universo não é jamais
sobre ela, esperando uma confirmação da experiência, e daí
um deslocamento unilateral, efetivo e definitivo, mas é sem-
conclui uma teoria. Mas vislumbrou somente pequena rami-
pre a metade – inversa e complementar da sua contraparte –
ficação derradeira do conceito central, porque este se defen-
de um ciclo que, numa vibração de ida e volta, retorna ao
derá com o mistério, até que o homem seja menos malvado,
ponto de partida, após haver cumprido determinado devenir.
menos propenso a fazer mau uso do saber e mais digno de
A esse movimento descêntrico que vimos, de expansão e
olhar na face as coisas santas. Falo-vos de coisas eternas, e
exteriorização,  segue-se então um movimento
não vos choque esta linguagem, para vós anticientífica; ela
concêntrico inverso: . Há, pois, o movimento inver-
se mantém fora da psicologia que vosso atual momento his-
so, pelo qual a matéria se desmaterializa, desagrega-se e ex-
tórico vos proporciona. Minha ciência não é como a vossa,
pande-se em forma de energia, vontade, movimento; é um
ciência agnóstica, impotente para concluir; nem é ciência de tornar-se que, por meio das experiências de infinitas vidas,
um dia. Lembrai-vos de que a verdadeira ciência toca e mer- reconstrói a consciência ou espírito. Aqui, o ponto de partida
gulha nos braços do mistério: sagrado, santo e divino. A é , a matéria, e o ponto de chegada é , o espírito. Assim, a
verdadeira ciência é religião e prece, só pode ser verdadeira espiral que antes era aberta, agora se fecha; a pulsação de
se também for fé de apóstolo e heroísmo de mártir. regresso completa o ciclo iniciado pelo de ida.
A Lei é Deus. Ele é a grande alma que está no centro do Este é o conceito central do funcionamento orgânico do
universo. Não centro espacial, mas centro de irradiação e de universo. A primeira onda refere-se à criação, à origem da ma-
atração. Desse centro, Ele irradia e atrai, pois Ele é tudo: o téria, à condensação das nebulosas, à formação dos sistemas
princípio e suas manifestações. Eis como Ele pode – coisa planetários, do vosso sol, do vosso planeta, até à condensação
inconcebível para vós – ser realmente onipresente. máxima. A segunda onda, de regresso, é a que vos interessa e
É necessário esclarecer este conceito. Chegou o momento viveis agora, refere-se à evolução da matéria até às formas or-
de retomar a ideia de que partimos, dos três aspectos do univer- gânicas, à origem da vida; com a vida, tem-se a conquista de
so, para aprofundá-la. uma consciência cada vez mais ampla, até à visão do Absoluto.
A esses três aspectos correspondem três modos de ser do É a fase de regresso da matéria, que, por meio da ação, da luta,
universo. da dor, reencontra o espírito e volta à ideia pura, despojando-se,
A estrutura ou forma, o movimento ou vir-a-ser, o princípio pouco a pouco, de todas as cascas da forma.
ou lei, podem também denominar-se: Estas simples indicações já esboçam a solução de muitos
Matéria Energia Espírito problemas científicos, como o da constituição da matéria, ou
como o da possibilidade de, por desagregação, extrair dela,
ou também, movendo-se no sentido inverso: como de imenso reservatório, a energia, que não seria senão
Pensamento Vontade Ação. a passagem de . A energia atômica que procurais existe,
e a encontrareis 6.
Do primeiro modo de ser, que é: Estes apontamentos projetam a solução de muitos comple-
Espírito Pensamento Princípio ou Lei, xos problemas morais. Diante da grande caminhada que seguis
está escrita a palavra evolução, e a ciência não pôde deixar de
deriva o segundo, que é: vê-la, mas apenas a vislumbrou nas formas orgânicas, e não em
Energia Vontade Movimento ou vir-a-ser, toda sua imensa vastidão. Vosso ciclo poderia definir-se como
um físio-dínamo-psiquismo. A fórmula é: .
e do segundo, o terceiro, que é:
6
Matéria Ação Estrutura ou forma. Estas páginas foram escritas em 1932.
18 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
IX. A GRANDE EQUAÇÃO DA SUBSTÂNCIA Assim  é o todo, no particular e no conjunto, no átimo e na
eternidade; em seu aspecto dinâmico, é tornar-se, eterno no
Os dois movimentos,  e  coexistem, por- tempo, de  e de , sem princípio nem fim; mas o tor-
tanto, continuamente no universo, em um constante equilíbrio nar-se volta sobre si mesmo, é imobilidade em que (.
de compensação. Evolução e involução. A condensação das ne- Ele é o relativo e o absoluto, é o finito em que se pulveriza o in-
bulosas e a desagregação atômica são nascimento e morte numa finito, o infinito em que o finito se recompõe; é abstrato e con-
direção, morte e nascimento em outra. Nada se cria, nada se creto, é dinâmico e estático, é análise e síntese, é tudo.
destrói, mas tudo se transforma. O princípio é igual ao fim. A imensa respiração de  ... etc., também
Querendo exprimir essa coexistência, poderemos reunir as poderia representar-se com um triângulo, ou seja, como uma
fórmulas dos dois movimentos, semiciclos complementares, realidade fechada em três aspectos:
numa fórmula única que representa o ciclo completo:

Quando vossa ciência observa os fenômenos da criação,


apenas tenta descobrir novo artigo da Lei; mas em todo lugar
encontrou e encontrará, coexistindo, os três modos de ser de
Mas definamos, ainda melhor, o conceito orgânico do univer- . A cada novo pensamento revelado, a ciência realizará
so, não mais o considerando em seu aspecto dinâmico de movi- uma nova aproximação de vossa mente humana em direção à
mento, mas em seu aspecto estático, no qual, mais que o trans- ideia da Divindade. Também a ciência pode ser sagrada co-
formismo dos três termos, ressalta sua equivalência. Em seu as- mo uma oração, como uma religião, se for conduzida e com-
pecto estático, as fórmulas tornam-se uma só fórmula, que de- preendida com pureza de espírito.
nominaremos a “Grande Equação da Substância”, ou seja: Tudo o que vos disse é a máxima aproximação da Divinda-
de que vossa mente pode suportar hoje. É muito maior que as

precedentes, mas não é a última no tempo. Contentai-vos por
A letra  (ômega) representa o universo, o todo. enquanto. Ela vos diz que sois consciências que despertam, al-
Este é o conceito mais completo de Deus, ao qual só ago- mas que regressam a Deus. É a concepção bíblica do anjo deca-
ra chegamos: a grande alma do universo, centro de irradia- ído que reaparece; é a concepção evangélica do Pai, do Filho e
ção e de atração; Aquele que é tudo, o princípio e suas mani- do Espírito; é a concepção que coincide com todas as revela-
festações. Eis o novo monismo, que sucede ao politeísmo e ções do passado e também com vossa ciência e com vossa lógi-
ao monoteísmo das eras passadas. ca; é a concepção de Cristo, que vos redimiu pela dor. Muitas
Chamei àquela fórmula de a grande equação da substância coisas ainda existem, mas para vós, hoje, por enquanto, perma-
porque ela exprime as várias formas que a substância assume, necem no inconcebível. O universo é um infinito, e vossa razão
embora sempre permanecendo idêntica a si mesma. Poderemos não constitui a medida das coisas.
exprimir melhor o conceito com uma irradiação tríplice: Não ouseis olhar a Divindade mais de perto, nem definir
mais além, considerai-a antes como um resplendor ofuscante
que não podeis olhar. Considerai cada coisa que existe e vos
cerca como um raio de seu esplendor que vos toca. Não redu-
zais a Divindade a formas antropomórficas, não a restrinjais em
conceitos feitos à vossa imagem e semelhança. Não pronuncieis
Seu santo nome em vão. Seja Deus vossa mais alta aspiração,
tal como o é de toda a criação. Não vos dividais entre ciência e
fé, nas diversas religiões, cujo único intuito é encontrá-Lo. Ele
está, acima de tudo, dentro de vós. No profundo dos caminhos
do coração como nos do intelecto, Deus sempre vos espera, pa-
Dessas expressões ressalta um fato capital. Sendo   e  ra retribuir o amplexo que vós, mesmo sendo incrédulos, em
três modos de ser de , este se encontra em todos os termos, in- vossa agitação confusa e convulsiva, irresistivelmente lançais a
teiro, completo, perfeito, total, em todos os momentos. Tal é  Ele, através do maior instinto da vida.
em qualquer de seus modos de existência, assim o reencontra-
remos sempre em todo o seu infinito devenir. X. ESTUDO DA FASE MATÉRIA ().
Assim, a equação da substância sintetiza o conceito da A DESINTEGRAÇÃO ATÔMICA.
Trindade, isto é, da Divindade una e trina, que já vos foi reve-
lado sob o véu do mistério e encontrais nas religiões. Vimos que a respiração de  é: ...... sem
A Lei, de que falamos, é o pensamento da Divindade, seu limites de espaço, sem princípio nem fim.
modo de ser como espírito. O pensamento, concomitantemen- É essa imensa respiração do universo, cujo princípio enunci-
te vontade de ação, energia que realiza, transformação que amos, que agora observaremos analiticamente, sobretudo em sua
cria, constitui seu segundo modo de ser, onde a criação se pulsação de retorno,  que vosso mundo está vivendo.
manifesta, nascendo daquilo a que chamais nada. Uma forma Começaremos por , a fase matéria, de maior condensação
de matéria em ação é seu terceiro modo de ser, é a criação que da substância, a fim de atingir a fase , energia. Examinaremos
existe, o universo físico que vedes. Três modos de ser distin- posteriormente o período  o que mais vos interessa, pois
tos e, no entanto, identicamente os mesmos. compreende o trajeto de vossas vidas, cujo objetivo e meta é a re-
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 19
construção da consciência e a libertação do princípio , o espí- XI. UNIDADE DE PRINCÍPIO NO
rito. Para , essa suprema realidade do espírito, quero conduzir- FUNCIONAMENTO DO UNIVERSO
vos, não mais pelos caminhos da fé, mas pelas sendas da ciên-
cia. Deus, compreendido como espírito,  é o ponto de partida Torna-se difícil reduzir à forma linear de vosso pensa-
e de chegada do transformismo fenomênico, é a meta do ser. mento e de vossa palavra a unidade global do todo, que sinto
Depois das descobertas da desintegração do átomo, inexaurível como uma esfera instantaneamente completa, sem sucessivi-
fonte de energia, e da transformação da individualidade quími- dade. Levai em conta, pois, a forma na qual me devo expri-
ca pela explosão atômica, a descoberta da realidade do espírito mir, que restringe e diminui o conceito; somente aquela fa-
é a maior descoberta “científica” que vos aguarda e revolucio- culdade da alma, a intuição, de que vos falei, poderia tradu-
nará o mundo, iniciando uma nova era. zi-lo para vós sem distorções. Tende em conta que, embora
Chegareis, disse-vos, a produzir energia por desintegração minha exposição seja progressiva, o universo contém a todo
atômica, ou seja, a transformar matéria em energia. instante cada uma e todas as fases do transformismo. A cada
Conseguireis penetrar com vossa vontade na individuali- momento ele é o todo, completo e perfeito em todos os seus
dade atômica, produzindo alterações em seu sistema. Mas períodos de ida e volta. Não se tem  de um lado e,
lembrai-vos: o triunfo não será apenas o de um método indu- depois,  de outro; mas, em todos os lugares e a cada
tivo e experimental, nem trará somente repercussões de ordem momento, o todo existe concomitante numa fase dessa trans-
material; tampouco significará só vantagens imediatas e práti- formação, de modo que o absoluto não se divide, mas se en-
cas, mas será grande problema filosófico que resolvereis e que contra sempre todo a si mesmo no relativo. Deus está, as-
orientará de maneira totalmente nova vosso espírito científico. sim, onipresente em cada manifestação. Se assim não fora,
Até agora, a humanidade viveu num mundo de matéria. Tí- como vos seria possível a observação de tais fenômenos, que
nheis o vosso referencial de imobilidade. “Terra autem in ae- certamente não poderiam ter esperado na eternidade para
ternum stabit, quia Terra autem in aeternum stat” (“A Terra, existir e mostrar-se a vós exatamente no instante em que
porém, estará parada eternamente, porque a Terra está eter- também nascestes e se desenvolveram em vós os sentidos e
namente parada”). A verdade tinha que ser um absoluto. Com uma consciência que a eles se dirige? Grande diferença há
a nova civilização mundial que está por surgir, a humanidade entre o sujeito deste tratado, que observa o infinito, e vosso
viverá então num mundo dinâmico. olhar intelectivo, que só abarca o finito, isto é, um ou alguns
Vossa nova matéria – o ponto sólido em que baseareis vos- pormenores particulares sucessivamente, e jamais o todo ins-
sas construções materiais e conceptuais – será a energia. Vosso tantaneamente. Vossa razão só pode dar-vos um ponto de
elemento será o movimento, e sabereis encontrar nele o próprio vista do universo, porque sois relativos, ou seja, sois um
equilíbrio estável, que até agora não sabíeis encontrar senão na ponto que olha para todos os outros pontos. Mas os pontos
forma menos evoluída, a matéria. No campo do pensamento, são infinitos, e vós fazeis parte deles; vós olhais e sois olha-
também a verdade será um movimento, um relativo que evolui, dos; o universo olha para si mesmo de pontos infinitos.
uma verdade progressiva, e não o ponto fixo e inerte do absolu- Apenas o olho de Deus pode ter essa visão global, e tenho de
to; será a trajetória do ponto que avança, um conceito muito reduzi-la muitíssimo para levá-la à medida de vossa mente.
Vede: é exatamente esta que limita minha revelação.
mais vasto e proporcional ao novo grau de progresso que será
Um fato, porém, nos ajudará: o universo é regido por um
atingido por vosso pensamento.
princípio único. Já afirmei que o universo não é nem caos
Ao enfrentar o problema da desintegração atômica, tende nem acaso, mas suprema ordem: a Lei. Chegou agora o mo-
presente outro fato. Ao assaltardes o íntimo equilíbrio do siste- mento de afirmar que a Lei significa não apenas, como disse,
ma atômico para alterá-lo, vós vos encontrareis diante de uma ordem, equilíbrio e precisão de funcionamento, mas também e
individuação da matéria fortemente estabilizada durante incon- acima de tudo unidade de princípio. Por isso disse: monismo.
táveis períodos de evolução. Viveis num ponto relativamente O princípio da trindade da substância, que vos expus, é uni-
velho do universo, e vossa Terra representa o período  não no versal e único; poderá pulverizar-se numa série infinita de
início, em sua primeira condensação, ainda próximo da energia, efeitos e de casos particulares, mas ele permanece, e o encon-
mas no fim, ou seja, no princípio de sua fase oposta, a desagre- trareis em toda parte, em sua forma estática de individuação
gação, o regresso a . Estais, assim, diante da matéria que opõe   e  ou em sua forma dinâmica de transformismo, que se-
o máximo da resistência, porque está no grau máximo de esta- gue o caminho ...... Aqui, três exemplos:
bilidade e coesão. Os incomensuráveis períodos de tempo que a Primeiro – O microcosmo está construído como o macro-
trouxeram à sua atual individuação atômica, representam um cosmo. O átomo é um verdadeiro sistema planetário, com to-
impulso imenso, uma invencível vontade de continuar existindo dos os seus movimentos, em cujo centro está um sol, o núcleo
na forma adquirida, por um princípio universal de inércia que, central, de densidade máxima, em redor do qual giram, se-
na Lei, impõe a continuação de trajetórias iniciadas, constituin- guindo uma órbita semelhante à planetária, um ou mais elé-
do a garantia de estabilidade das formas e dos fenômenos. trons, segundo a natureza do sistema; é isso que define o áto-
Lembrai-vos de que estais querendo violar uma individuação da mo e lhe dá sua individuação química. Vosso sistema solar,
Lei, a qual sempre se manifesta por individuações inconfundí- com todos os seus planetas, poderia considerar-se o átomo de
veis, que assumem a mais enérgica e decidida vontade de não uma química astronômica, cujas combinações e reações pro-
deixar-se alterar. Para alcançardes êxito, não violeis a Lei, se- duzem essas nebulosas que vedes aparecer e desaparecer nos
gui-a. Seguindo a corrente, ser-vos-á fácil o caminho. Em vossa confins de vosso universo físico.
fase de evolução, a Lei vos abre o caminho através da passa- Quando, no espaço, um sol com seu cortejo planetário, assim
gem  e não de . Em outras palavras, o problema da como qualquer núcleo, encontra-se com outro sol ou núcleo e
desintegração atômica é solúvel para vós, não nas formas mais respectivo cortejo planetário, o resultado é sempre o mesmo: a
longínquas e menos acessíveis da condensação das nebulosas, formação de nova individuação, quer seja sistema cósmico ou
mas naquelas da desintegração das substâncias radioativas. Os químico. No primeiro caso se individuará novo vórtice, novo
raios  e os raios  e todos os fenômenos relativos ao rádio e “eu” astronômico, que se desenvolverá segundo uma linha, a
aos corpos radioativos, já os tendes espontaneamente debaixo espiral que – vê-lo-emos – é a trajetória típica de desenvolvimen-
dos olhos. O estudo que faremos da série estequiogenética vos to de todos os movimentos fenomênicos. No segundo caso nasce-
dará um conceito mais exato de tudo isto. rá, pelo choque dos núcleos e pela emissão de elétrons do sistema,
20 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
novo indivíduo atômico. Se isso ainda não apareceu em vosso ro desses elétrons que giram em torno do núcleo. Tendes, as-
relativo, vós o chamais de criação. sim, 92 espécies de átomos, desde o hidrogênio, que é o mais
Segundo – O princípio de que o universo se compõe, divi- simples, composto de um núcleo e de um só elétron que gira
dindo-se e reunindo-se, de duas metades inversas e complemen- em torno dele; o hélio (He), que o segue, composto de um nú-
tares é geral e único. Tudo o que existe tem seu inverso; sem is- cleo e de dois elétrons; o lítio (Li) com três, e assim por diante
to, é incompleto. O sinal “”, complementar do sinal “+”, pró- até ao urânio (U), com 92 elétrons. Sobre essa base, construi-
prio da energia elétrica, o encontrais não só no átomo, compos- remos uma série estequiogenética.
to pelo núcleo, estático e positivo, e pelos elétrons, dinâmicos e Tocamos, desde logo, um novo aspecto ou artigo da Lei, o
negativos, mas também na divisão sexual animal e em todas as das unidades múltiplas ou coletivas. Então, em cada uma das
manifestações da personalidade humana. manifestações da Lei, não há somente ordem e unidade de prin-
Terceiro – O homem é feito verdadeiramente à imagem e cípio, mas também individuação constante, segundo tipos bem
semelhança de Deus, no sentido em que compreende em si e definidos. É tendência constante, à proporção que a diferencia-
constitui, numa unidade, os três momentos:   . O homem é ção multiplica tipos (a pulverização do absoluto no relativo), o
um corpo, estrutura física, que se apoia numa armação esquelé- seu reagrupamento em unidades mais vastas, que reconstroem a
tica, que pertence ao reino mineral, , sobre a qual se eleva o unidade fragmentada no particular.
metabolismo rápido da vida, a troca (vida vegetativa, ainda não O impulso centrífugo equilibra-se, pois, invertendo-se
consciência) ou dinamismo, que é . O produto último da vida em tendência centrípeta. Na dispersão e concentração, no
é a consciência,  nascida daquele dinamismo e em contínuo multiplicar-se dividindo-se, no reagrupar-se reunindo-se, a
desenvolvimento, por meio de um trabalho contínuo e intenso substância se reencontra sempre, completa em si mesma. A
de provas e experiências, produzidas por choques não mais imensa respiração de  é também completa em si mesma,
cósmicos ou moleculares, mas psíquicos. voltando sobre si. Assim, o universo contempla seu próprio
Essa unidade de conceito é a mais evidente expressão do processo de autocriação.
monismo do universo e da presença universal da Divindade. Na Disse que os elétrons giram em redor do núcleo. Ora, nem
infinita variedade das formas sempre ressurge o mesmo princí- mesmo o núcleo é o último termo; em breve aprendereis a de-
pio idêntico, com nomes e em níveis diferentes. Assim, no nível compô-lo. Porém, por mais que procureis o último termo, ja-
 temos a gravitação; no nível  temos o que denominamos mais o encontrareis, porque ele não existe. Nesta pesquisa, diri-
simpatia; e no nível , amor. Eles constituem a mesma lei de gida para o âmago da matéria, acompanhais o caminho descen-
atração, que vincula as coisas e os seres e os sustenta como or- dente que  percorreu de , e tereis de encontrar , isto
ganismo, numa rede de contínuas relações e trocas, tanto no é, a energia da qual nasceu a matéria e à qual veremos esta re-
mundo da matéria quanto no da consciência. gressar em seu caminho ascensional, que a reconduz a .

XII. CONSTITUIÇÃO DA MATÉRIA. XIII. NASCIMENTO E MORTE DA MATÉRIA.


UNIDADES MÚLTIPLAS. CONCENTRAÇÃO DINÂMICA E
DESAGREGAÇÃO ATÔMICA
Comecemos, pois, por analisar o fenômeno matéria, , que
tomaremos como ponto de partida, relativo a vós. Observá-lo- Aprofundemos, pois, o problema do nascimento e da morte
emos de um ponto de vista estático, em suas características típi- da matéria, depois (entre esses dois extremos) o da evolução de
cas de determinada individuação da Substância, e também de suas individuações, isto é, o de sua vida.
um ponto de vista dinâmico, como o devenir da corrente do Pode definir-se a matéria como uma forma de energia, isto
transformismo da Substância, que, vindo da fase , regressa à é, um modo de ser da substância, que nasce da energia por con-
fase . Na realidade, os dois aspectos fundem-se. O contínuo densação ou por concentração e regressa à energia por desagre-
frêmito de movimento com o qual a Substância vibra, leva-a a gação, após haver percorrido uma série evolutiva de formas ca-
individuar-se diversamente. Este estudo vos mostrará sempre da vez mais complexas e diferenciadas, que reencontram a uni-
aspectos novos do princípio único, novos artigos da mesma lei. dade em reagrupamentos coletivos.
Sob o ponto de vista estático, apresenta-se-nos a matéria di- A matéria nasce, vive e morre, para renascer, reviver e tor-
versamente individuada, de acordo com a sua construção atô- nar a morrer, tal como o homem, eternamente descendo de  a 
mica. O estudo dessa construção vos revelou na Terra a presen- e voltando a  quando o vórtice interior, por ter atingido o má-
ça de 92 elementos ou corpos simples, que vão do hidrogênio ximo de condensação dinâmica, não mais pode suportá-la e se
(H) ao urânio (U). São indivíduos químicos decompostos em quebra. Assistimos, então, ao fenômeno da desagregação da
simples unidades atômicas, que formam toda a vossa matéria, matéria, a que chamais radioatividade, própria dos corpos ve-
reagrupando-se nas unidades moleculares, organismos ainda lhos, com peso atômico maior, seu máximo de condensação.
mais complexos, produzidos pela fusão de vários sistemas atô- Assim o átomo representa uma quantidade enorme, uma mina
micos (por exemplo, o sistema atômico H, na unidade molecu- de energia condensada, que podereis libertar, modificando o
lar H2O), e organizando-se afinal naquelas coletividades mole- equilíbrio interno do sistema núcleo-eletrônico do átomo.
culares, verdadeiras sociedades de moléculas, que são os cris- O significado da palavra condensação só pode ser com-
tais. Estes, embora reduzidos a massas de indivíduos cristalinos preendido se reduzirmos a energia à sua expressão mais
informes, como vos aparece nas estratificações geológicas, ou simples (isto também vale para a substância): o movimento.
nas rochas clásticas ou fragmentárias, conservam sempre a íntima Condensação de energia é expressão demasiadamente sensó-
orientação molecular e constituem a estrutura de vosso planeta e ria. É melhor dizer concentração de energia, pois isso signi-
dos planetas do sistema solar. É um crescendo no organizar-se fica aceleração de movimento, de velocidade. Veremos me-
em unidades coletivas cada vez mais vastas, semelhante ao de lhor essa essência do fenômeno no estudo do íntimo meca-
vossa consciência individual, que se coordena na mais vasta nismo do transformismo fenomênico.
consciência coletiva nacional e, depois, na mundial. Vemos, todavia, que toda a estrutura planetária do átomo
Procedendo no sentido inverso, o átomo é uma coletividade nos fala de energia e de velocidade. Logo que observamos em
decomponível em unidades menores. O átomo é composto de profundidade o fenômeno matéria, esta se dissolve em sua
um ou mais elétrons que giram em redor de um núcleo central; aparência exterior e se revela em sua substância: a energia. A
o que individualiza o átomo e o distingue é justamente o núme- ideia sensória de solidez e de concreto desaparece diante do con-
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 21
ceito de elétrons que, em espaços de dimensões ilimitadas em Vedes que, em realidade, nenhuma das três formas,   ,
relação a seu volume, giram velocíssimos ao redor de um nú- consegue isolar-se completamente; trazem em si sempre tra-
cleo incomensuravelmente menor. Assim a matéria, tal como ços de suas fases precedentes. Assim, vedes que o pensamento
a concebeis habitualmente, desvanece em vossas mãos, dei- apoia-se num suporte nervoso-cerebral, e que a matéria em si
xando-vos apenas sensações produzidas por algo que é apenas nos exprime sempre a ideia que a anima. A energia, na fase de
energia e determina um movimento que se estabiliza por sua ida ou na de retorno, é sempre o traço-de-união entre  e ;
altíssima velocidade. Eis a matéria reduzida à sua última ex- reveste todas as formas, tanto que, em vosso baixo mundo, o
pressão. Da mesma forma que o movimento é a essência da pensamento só sabe existir com o apoio da energia e a energia
substância , assim também o é de cada um de seus aspectos: permeia toda a matéria, agitando-a em infinitas formas, sobre-
  . Velocidade é energia, velocidade é matéria, velocida- tudo naquela fundamental, mãe de todas as outras, de energia
de é idêntica em sua substância, é o denominador comum que gravífica ou gravitação universal.
vos permite a passagem de uma a outra forma. O éter, que para vós é mais uma hipótese do que um cor-
Coloquemos lado a lado estas duas formas da substância, po bem estudado, escapa às vossas classificações porque
matéria e energia. Aquecendo um corpo, transmitimos energia à quereis reconduzi-lo às formas de matéria que conheceis,
matéria, isto é, outra modalidade de energia. Somamos energia. enquanto é uma forma de transição entre matéria e energia.
O calor significa aumento de velocidade nos sistemas atômico- O éter, forma de transição entre  e , é, por sua vez, pai do
moleculares. Quando dizemos que um corpo está mais quente, hidrogênio. É o filho das formas dinâmicas puras: calor, luz,
isto significa que seu movimento íntimo sofre um rápido au- eletricidade, gravitação, para a qual regressará a matéria por
mento de velocidade. Então o calor infunde na matéria, como desagregação e radioatividade. As nebulosas condensam-se
em todas as demais formas de vida, um ritmo mais intenso; é da fase éter, através das fases gás, líquido, sólido. Entre os
verdadeiro aumento de potência, um acréscimo de individuali- sólidos, existem os corpos de peso atômico máximo, os mais
dade que, no mundo da matéria, se expressa com a dilatação do radioativos, os mais velhos, como disse, aqueles que, por de-
volume. De imensa distância, o Sol acende essa dança dos áto- sagregação atômica, regressam à fase .
mos, e toda a matéria do planeta responde. A dança propaga-se
de corpo em corpo, tudo o que lhe está perto o sente, participa, XV. A EVOLUÇÃO DA MATÉRIA POR
exulta. Os corpos condutores de energia são aqueles cujas mo- INDIVIDUALIDADES QUÍMICAS.
léculas são mais ágeis a realizar a corrida. O movimento, es- O HIDROGÊNIO E AS NEBULOSAS.
sência do universo, vai de uma coisa a outra, ávido de comuni-
car-se, como as ondas do mar, ávido de expandir-se. Dá-se Agora, que observamos o fenômeno do nascimento, vida e
sempre, pelo universal princípio do amor; fecunda e se dispersa morte da matéria, vejamos  ainda mais de perto, na série das
depois de haver dado a vida, para reencontrar-se, recondensar- individuações que ela assume em vosso planeta, a fim de defi-
se ao longe, em todos os novos vórtices de criação. Os homens nir a gênese sucessiva de suas formas, de algumas até desco-
e as coisas, na Terra, arrebatam o mais que podem tudo que nhecidas de vós, e que vos indicarei, individuando-as em suas
chega do Sol e o dividem entre si. O homem transforma esse principais características, de modo que possais encontrá-las.
movimento em outras formas de energia (já que nada se cria e Estabelecemos que a fase  engloba as individuações que
nada se destrói, tudo se transforma, sempre): luz, som, eletrici- vão do hidrogênio ao urânio, dentre as quais vimos que co-
dade, para suas necessidades. Mas o fenômeno é irresistível, e a nheceis 92. Elas representam o ciclo que parte de  por con-
cada transformação há uma perda, um consumo, um desgaste, densação e volta a  por desagregação.
um atrito e um esforço para suprir isso (porque estais em fase Como ponto de partida, tomemos o hidrogênio, que repre-
de evoluçãodescentralização cinética). O fornecimento do Sol sentaremos, para abreviar, por H. Como vimos, é o corpo cujo
renova-se continuamente; ele dá o que tem e, em formas sem- átomo possui o sistema mais simples, com um só elétron. A is-
pre novas, reconquistará tudo o que dá. Isso porque o movi- so corresponde um peso atômico 1,008. O peso atômico vai
mento, substância do universo, é um ciclo que sempre volta e crescendo progressivamente, com o aumento proporcional do
está fechado e completo em si mesmo. número dos elétrons nos sistemas atômicos dos corpos, até ao
urânio, que representaremos por U, com peso atômico máximo
XIV. DO ÉTER AOS CORPOS RADIOATIVOS de 238,2 e correspondente a um sistema atômico de 92 elétrons.
H é o tipo fundamental, o protozoário monomolecular da
Assim, muitas nebulosas que vedes aparecer nos espaços química, assim como o carbono é o protozoário da química
sem um precedente visível, nascem por condensação de ener- orgânica ou da vida.
gia, a qual, após a imensa dispersão e difusão devida à contínua H é o corpo simples, quimicamente indecomponível; tem
irradiação de seus centros, concentra-se, seguindo correntes que peso atômico unitário; migra para o polo negativo (eletrólise);
guiam sua eterna circulação em determinados pontos do univer- está na base da teoria das valências. Por valência, a química de-
so. Aí, obedecendo ao impulso que lhe é imposto pela grande fine a capacidade dos átomos de um corpo em vincular deter-
lei do equilíbrio, instala-se, acumula-se, retorna e se dobra so- minado número de átomos de H, ou a capacidade de se substi-
bre si mesma, compensando e equilibrando o ciclo inverso, já tuírem, nos diferentes compostos, ao mesmo número desses
esgotado, da difusão que a guiara de uma coisa a outra, para átomos. Em química, o peso atômico é dado pela relação entre o
animar e mover tudo no universo. De todas as partes deste, as peso de um átomo de determinado corpo e o peso do átomo do
correntes trazem sempre nova energia, o movimento torna-se hidrogênio, que, por ser o menor de todos, foi tomado como uni-
cada vez mais intenso, o vórtice fecha-se em si mesmo, o turbi- dade de medida: H=1. O peso molecular dos corpos é também
lhão transforma-se em um verdadeiro núcleo de atração dinâ- dado, em química, em função do peso do átomo de hidrogênio.
mica. Quando ele não pode suportar mais em seu âmbito todo o Que significa essa constante referência ao hidrogênio
ímpeto da energia acumulada, chega a um momento de máxima como unidade de medida da matéria, esse seu peso atômico
saturação dinâmica, a um momento crítico em que a velocidade mínimo, esse seu inflexível negativismo? Todos esses fatos
torna-se massa, estabiliza-se nos infinitos sistemas planetários ín- convergem para o mesmo conceito: de que H é a matéria em
timos, do qual nascerá o núcleo, depois o átomo, a molécula, o sua mais simples expressão, é sua forma primitiva e originá-
cristal, o mineral, os amontoados solares, planetários, siderais. ria, da qual todas as outras se derivaram posteriormente,
Da imensa tempestade nasceu a matéria. Deus criou. pouco a pouco, por evolução.
22 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
A esse mesmo conceito podemos chegar pela observação das rentes combinações são tais que, permanecendo constante a
nebulosas. Os espaços estelares, já o disse, a cada momento vos quantidade de um dos componentes, as quantidades do outro va-
oferecem toda a série dos estados sucessivos que a matéria atra- riam segundo relações bem definidas, ou seja, essas quantidades
vessa, desde suas formas mais simples até às mais complexas. A são todas múltiplos exatos do mesmo número”.
composição química dos corpos celestes podeis conhecê-la com Ainda outro diz: “Todos os corpos simples, em suas rea-
exatidão, por meio da análise espectral. O espectroscópio vos diz ções, combinações, substituições recíprocas, agem segundo
que as nebulosas e as estrelas que emanam luz branca, isto é, os relações de peso representadas por números bem determina-
corpos celestes mais luminosos, mais quentes e mais jovens, são dos e constantes para cada corpo, ou por múltiplos exatos
compostos de poucos e simples elementos químicos. Seu espec- desses números”.
tro, mais extenso no ultravioleta, ou seja, mais quente, muitas ve- Assim a química pode individualizar com exatidão os cor-
zes indica exclusivamente o hidrogênio, sempre elementos de pe- pos, fixando seu peso atômico, a fórmula de sua valência, defi-
so atômico baixo. Esses corpos são muito luminosos, de luz nindo as reações próprias de cada corpo, estabelecendo o equi-
branca, incandescentes, desprovidos de condensações sólidas. Aí valente elétrico (+ ou ) e, com análise espectral, a luz equiva-
a matéria se apresenta em suas formas primordiais dinâmicas, lente. Em outras palavras, o equivalente dinâmico dos corpos.
ainda próximas de , e se encaminha para as formas propriamen- Portanto a química, com a chamada teoria atômica e com a
te físicas, que a caracterizam em sua fase de . Ao contrário, as teoria das valências, pode definir, com exatidão matemática, as
estrelas mais avançadas em idade apresentam emanações dinâ- relações entre um indivíduo e outro.
micas mais fracas, são vermelhas ou amarelas, como o vosso sol,
menos quentes, menos luminosas, menos jovens, compostas de XVI. A SÉRIE DAS INDIVIDUAÇÕES QUÍMICAS
elementos químicos mais complexos, de maior peso atômico. DO H AO U, POR PESO ATÔMICO E
Então, se a análise espectral dos corpos celestes vos indica ISOVALÊNCIAS PERIÓDICAS
que luz e calor (dado pelo comprimento do ultravioleta) estão
em razão inversa dos pesos atômicos e da complexidade dos Dessa forma, baseando-vos sobre essa individuação, podeis
elementos químicos componentes, em outras palavras, se os es- estabelecer uma gradação de complexidade que, partindo do H,
tados dinâmicos estão em razão inversa do peso atômico, medi- chegue até às fórmulas complexas dos produtos orgânicos. Po-
da do estado físico, isto significa inversão de estados dinâmicos deis estabelecer uma série química semelhante à escala zooló-
em estados físicos, ou seja, a matéria é inversão da energia e gica, em que aos protozoários correspondem os corpos quími-
vice-versa. Essa inversão é passagem do indistinto ao distinto, cos simples, indecomponíveis; uma série evolutiva que progri-
do simples ao complexo; em outras palavras, estais diante de de de forma em forma, de tipo em tipo, verdadeira árvore ge-
uma verdadeira e própria evolução. Esse aumento progressivo nealógica das espécies químicas, a cujo desenvolvimento po-
do peso atômico, paralelamente ao desaparecimento das formas deis aplicar os conceitos darwiniano de evolução, variabilidade
dinâmicas e à formação e diferenciação das espécies químicas, e até mesmo de hereditariedade e de adaptação. Gradações de
corresponde ao conceito de condensação, de substância- formas aparentadas entre si, derivadas uma das outras, sujeitas
movimento, de massa-velocidade, que já expusemos. É fácil à lei comum, que provêm da origem comum, da afinidade in-
compreender que, das formas primordiais, prevalentemente di- trínseca, do mesmo caminho, da mesma meta, da mesma lei de
nâmicas, até às mais densas concentrações de matéria – tal co- transformismo e de evolução. Cada corpo simples que faz parte
mo as observais estabilizadas em vosso sistema solar, já velho da série química não constitui um indivíduo isolado; são tipos
como a matéria, em que a fase  viveu e  existe agora em es- em redor dos quais oscilam diferentes variedades, que poderão
tado de  que vai para  – só se pode passar por evolução. reunir-se em grupos, por afinidade, tal como no mundo zooló-
O movimento dessa evolução vos aparece fixado em formas gico. Quando vossa consciência tiver encontrado meios para
bem definidas. Se a continuidade é novo aspecto da Lei (não agir, mais profundamente, na estrutura íntima da matéria, vereis
me cansarei de fazer que todos a observem a todo o momento), multiplicar-se o número das espécies químicas compreendidas
essa continuidade tem paredes e vértices, nos quais o transfor- na mesma classe e o número das variedades da mesma espécie.
mismo criou individuações nitidamente delineadas. A tendência Podereis, então, influir na formação das espécies químicas, co-
do transformismo fenomênico de caminhar por individuações é mo agora influís na formação de variedades biológicas vegetais
outra característica fundamental da Lei. Por isso os corpos e animais. Isto porque toda a matéria, mesmo aquela considera-
químicos têm, cada um deles, sua própria individualidade, rigo- da bruta e inerte, é viva e sente, pode plasmar-se e obedece,
rosamente definida. Um artigo da Lei diz: “Na constituição de quando atingida por um comando forte.
um corpo químico bem definido, os componentes entram sem- Estabeleçamos, pois, a Série Estequiogenética. No es-
pre em relação bem determinada e constante”. Diz-nos esse ar- quema que se segue, estão resumidos os conceitos que pas-
tigo que os corpos químicos possuem uma constituição indivi- sarei a analisar.
dual, perfeitamente determinada, proveniente dos elementos Tomando o peso atômico como índice do grau de conden-
componentes que estão entre si em relação constante. A isto se sação, podereis organizar um elenco dos corpos ainda inde-
poderia denominar a lei das espécies químicas. Sem essa indivi- componíveis, denominados simples, e obtereis uma escala
dualidade que nos permite isolar, classificar e reconhecer os cor- que oferece características especialíssimas. Se observarmos as
pos, não seria possível a química moderna. Pode-se falar, no propriedades químicas e físicas de cada corpo, veremos que
mundo da matéria, de indivíduos químicos, tal como na Zoologia elas estão em estreita relação com os pesos atômicos. Verifi-
e na Botânica fala-se de indivíduos orgânicos e, no mundo hu- caremos que à série dos pesos atômicos não corresponde ape-
mano, de “eu” e de consciência. Em seus vastos aspectos de   nas uma série de individualidades químicas bem definidas,
, a substância  segue sempre a mesma lei. Assim também, no mas que isso ocorre de acordo com um ritmo de retornos re-
mundo químico, temos algo como uma personalidade, que é in- gulares ao mesmo ponto de partida. Esse fato vos fará pensar
coercível vontade de existir em sua própria forma e reage a todos de imediato como, por trás da série dos pesos atômicos, ocul-
os agentes externos que pretendam alterá-la. A química delineia ta-se um conceito mais substancial e profundo.
exatamente o modo de comportar-se desses indivíduos químicos. Se observarmos em cada corpo a característica da valên-
Outro artigo da Lei diz: “Quando dois corpos, ao se combina- cia, isto é, a capacidade especial de cada átomo para unir-se a
rem entre si, podem dar origem a mais de um composto, as dife- um ou mais átomos de hidrogênio, veremos que essa valência
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 23
24 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
alinha-se com surpreendente regularidade, segundo ordens de dade, compressibilidade e dureza. A classificação em série é re-
sete graus, que se repetem ininterruptamente do primeiro ao sultado do comportamento dessas oitavas.
último elemento. A coluna das isovalências do quadro anexo Eis, portanto, traçado um sistema estequiogenético, ou ár-
vos mostra a repetição das mesmas valências à distância de vore genealógica das espécies químicas. Divisíveis em sete
sete períodos. Assim, têm as mesmas valências lítio e sódio, séries, a partir de S 1 até S7, são os sete períodos de formação
berílio e magnésio, boro e alumínio, carbono e silício, nitro- ou sucessiva condensação da matéria, também divisíveis em
gênio e fósforo, oxigênio e enxofre, flúor e cloro, corpos que sete grupos, verdadeiras famílias naturais de corpos semelhan-
são marcados com os mesmos números de valências. Mais tes, segundo as respectivas isovalências.
exatamente, a graduação dessas valências sobe de um a quatro
pela valência com o hidrogênio, depois diminui para um, no XVII. A ESTEQUIOGÊNESE E
número VII, e sobe progressivamente de um a sete para a va- AS ESPÉCIES QUÍMICAS DESCONHECIDAS
lência relativa ao oxigênio. Deste modo temos, respectiva-
mente, setenários compostos de monovalências, bivalências, Este estudo que vou desenvolvendo para atingir conclu-
trivalências, tetravalências e depois em sentido inverso: triva- sões de ordem filosófica e moral, de significado muito mais
lências, bivalências e monovalências; e setenários compostos alto, pode também ter importância prática para vossa ciência,
de monovalências, bivalências, trivalências, tetravalências, pois vos oferece a possibilidade de definir, a priori, elementos
pentavalências, hexavalências, heptavalências. que ainda desconheceis; e isso não empiricamente, por tenta-
Temos, pois, períodos I–IV–I, que se sobrepõem exata- tivas, mas sistematicamente, prevendo com exatidão a direção
mente nos períodos I–VII. O ritmo é evidente, expresso pela a dar a vossas pesquisas. O esquema vos revela que, em certos
coluna das isovalências periódicas. Assim como o ritmo se pontos, há corpos que descobrireis com as características indi-
repete, por exemplo, nos dias e nas estações, mas sempre num cadas pelo gráfico. Não importam os nomes. Os corpos estão
ponto diferente do espaço ocupado pelo planeta, também volta lá, já definidos e descritos. Procurai-os e os achareis. Dir-vos-
o ritmo da valência à distância de sete elementos, num ponto ei mais: pelo que já conheceis experimentalmente, sabendo-se
diferente. A cada sete elementos, temos uma repentina mu- que o universo é lei e organismo, podereis delinear o anda-
dança de propriedades, depois um retorno regular ao ponto- mento de um fenômeno pela simples aplicação analógica do
de-partida. O que disse para a série que começamos com o lí- conceito fundamental que o governa, isto é, da linha de seu
tio e com o sódio, repete-se nas outras séries que começam desenvolvimento, mesmo em seus períodos desconhecidos.
com o potássio, o cobre, a prata e assim por diante. Utilizai este conceito monístico que vos trago – da unidade
Esta conexão entre as características de um corpo e sua lo- de princípio de todo o universo – não apenas no campo moral,
calização na escala, permitiu que fosse dado a cada elemento mas também no científico; encontrai este princípio de analogia
um número próprio, para distingui-lo. Essa determinação, que existe em todas as coisas, e ele infalivelmente vos guiará,
mesmo de acordo com vossa ciência, não é empírica, já que o permitindo-vos determinar a priori, antes da observação e da
número atômico pode ser sempre experimentalmente determi- experiência, o desconhecido e defini-lo, descobri-lo e conhecê-
nado, examinando-se os espectros dos raios X emitidos pelos lo. Não foi assim que descobristes o escândio, o gálio, o ger-
diversos corpos, quando em presença dos raios catódicos. A mânio? O escândio está no grupo III, à distância exata de duas
frequência vibratória das linhas desses espectros é proporcio- oitavas do boro; o gálio está no mesmo grupo, um pouco mais
nal ao quadrado do número atômico. distante na escala e na mesma distância de duas oitavas do alu-
Baseado nesta exata determinação de lugar na escala, é mínio; o germânio está no grupo IV, na mesma distância de du-
possível estabelecer outras relações entre corpos, relações as oitavas do silício, que se encontra no mesmo grupo. Este
expressas pelas seguintes proporções: o boro está para o be- mesmo sistema vos guiou à descoberta dos gases nobres, qui-
rílio assim como o berílio está para o lítio; o lítio está para o micamente inertes, contidos no ar, isto é, o neônio, o criptônio,
sódio assim como o berílio está para o magnésio e como o o xenônio. Estes pertencem ao grupo “0”, ou seja, ao grupo do
boro está para o alumínio; o lítio está para o magnésio como argônio. Conseguistes preparar o radônio (emanação do rádio),
o berílio está para o alumínio e como o boro está para o silí- da mesma família “0”. De fato, no esquema, esse elemento está
cio. São respectivamente proporcionais as passagens das incluído no grupo do argônio (“0”, com valência zero) como
propriedades de um corpo para as do outro. todos os outros. Assim por diante também no campo astronô-
Dessa maneira, temos o retorno periódico das mesmas mico, onde o cálculo de uma lei exata vos permitiu individuali-
características, embora repetidas em nível atômico diferente. zar, em determinado ponto e instante, um corpo com caracterís-
Os volumes atômicos aumentam e diminuem, corresponden- ticas determinadas, até se encontrá-lo de fato. Já vedes como o
do às séries assinaladas na escala. As séries duplas são cau- edifício que a razão é capaz de construir pode antecipar a ob-
sadas justamente pelo aumento e pela diminuição dos volu- servação direta; essa é apenas a trivial caminhada de um pen-
mes atômicos, fato regularmente verificado. samento que sempre se apoia nos fatos. Imaginai a que desco-
A representação gráfica vos demonstrará melhor esses con- bertas podereis rapidamente chegar quando os problemas cien-
ceitos. Tomando os pesos atômicos por base, e por altura os vo- tíficos forem enfrentados por intuição, como vos disse. Aliás,
lumes atômicos, podeis traçar uma linha que representa sete as verdadeiras e grandes descobertas foram todas lampejos de
conchas, com seus máximos ou vértices relativos, que, por ana- intuição de gênio, o super-homem do futuro, que, saltando além
logia com todo o seu traçado, indica a localização dos elemen- das formas racionais de pesquisa, antecipa as formas intuitivas
tos cujo volume atômico ignorais. da humanidade futura. Os grandes saltos para frente dados pe-
O volume atômico, portanto, acompanha o andamento da es- lo homem, nunca foram realizados experimentalmente, nem
cala dos pesos atômicos. Ele cresce e decresce, correspondendo racionalmente, mas sim por intuição, verdadeiro e grande sis-
aos vários setenários dos elementos, isto é, a cada oitava. Aliás, tema de pesquisa do futuro. Enquanto a evolução não trouxer
compreende duas oitavas: uma ascendente e outra descendente. à luz essa nova maturação biológica, seja a vossa razão na
A oitava descendente inclui os corpos dúcteis; a ascendente, os pesquisa científica dirigida pela minha afirmativa de que o
corpos frágeis. Nos vértices estão os corpos de fácil fusão ou ga- universo é todo regido por conceitos harmônicos, analógicos,
ses; ao contrário, nos mínimos. As oitavas descendentes são ele- reduzíveis a princípios cada vez mais simples e sintéticos.
tropositivas; as oitavas ascendentes são eletronegativas. O mes- Uma vez compreendido o conceito gerador de um processo
mo podereis dizer de várias outras qualidades, como condutibili- fenomênico e seu ritmo, qualquer que seja sua altura na escala
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 25
das formas do ser, ampliai com segurança esse conceito e esse ralelamente ao processo de desintegração radioativa. Assim fica
ritmo, mesmo onde ainda falta o conhecimento objetivo. De  demonstrado o transformismo físico-dinâmico.
a  é idêntica a lei de evolução, é contínua a linha de desen- O estudo de grupo dos elementos radioativos nos mostra
volvimento, é único o princípio. Este conceito vos permitirá outro fato importante, ou seja, como ocorre a transformação
sempre individuar, a priori, as formas intermediárias que , a de um elemento em outro. Isto é, como se verificam os casos
substância, atravessa em seu contínuo transformar-se. de evolução química, que podeis considerar como exemplos
Resumindo, podemos, pois, dizer que observamos as formas de verdadeira e própria estequiogênese.
do estágio físico da substância (=matéria), que vão do H ao U, Se tomarmos em consideração a última oitava dos elemen-
segundo pesos atômicos crescentes, formas que reagrupamos tos da série estequiogenética (elementos radioativos), podemos
em VII grandes séries sucessivas de condensação e VII grandes estabelecer entre eles uma relação de filiação. Foi precisamente
famílias naturais de isovalências. Somente aparece pequena em vista dessa relação genética que pudemos estabelecer a série
anomalia, essa também periódica, de três corpos que interrom- S7, a família do urânio. Sabeis que os corpos radioativos emi-
pem a progressão das isovalências. Essa interrupção é como tem três espécies de raios:   . Quando um corpo radioati-
uma breve estase e de modo algum perturba o andamento do vo perde em cada átomo uma partícula , tem-se, em corres-
fenômeno, pois a estase é rítmica e reaparece em períodos regu- pondência, a perda de quatro unidades de peso atômico. Esse
lares. No esquema gráfico, as estases, nos fundos das conchas, elemento transforma-se em outro, que ocupa um lugar diferente
são obtidas pelos volumes atômicos mais baixos. na série. A emissão de raios , ao invés, produz uma transfor-
mação no sentido contrário. Uma transformação  pode ser
XVIII. O ÉTER, A RADIOATIVIDADE E compensada por duas transformações  em sentido contrário.
A DESAGREGAÇÃO DA MATÉRIA ( Conheceis a lei específica dessa transformação, que é expressa
 pela fórmula: constante de transformação =2,085x10-6/seg.
Nas duas extremidades da série, temos o H e o U. Esses dois Por meio dessa transformação realiza-se a passagem do urâ-
elementos individualizam as duas formas extremas da fase . nio a protactínio, rádio, radônio (emanação), polônio (rádio F),
Que outras individualizações encontramos além dessas? A es- chumbo (rádio G). Neste último elemento, a emanação dinâmica
cala evidentemente “deve” estender-se além das formas que vos não é mais apreciável e parece já esgotada. Cada elemento é o
mostra a evolução terrestre. Vimos que, antes do H, temos o produto da desintegração do elemento precedente. Estudando o
éter, forma da qual voltaremos a falar, intermediária entre  e . andamento desse processo de desintegração sucessiva dos termos
Vejamos agora a que formas tende a progressão evolutiva do U. da série, descobris que cada elemento tem um característico tem-
Vimos que o hidrogênio é o elemento constitutivo dos cor- po médio de transformação, que oscila, nos vários corpos, de fra-
pos jovens: nebulosas, estrelas brancas, quentes, de espectro ex- ções de segundo a milhares e milhares de milhões de anos. Esse
tenso ao ultravioleta, como Sírio e Alfa da Lira. O urânio, ao tempo médio de transformação é sua vida média, e cada elemen-
invés, é o elemento constitutivo dos corpos velhos, mais adian- to radioativo tem um período próprio de vida média.
tados na evolução e que, portanto, puderam produzir elementos Vossa ciência já fala de vida de elementos químicos e de-
mais densos (peso atômico maior) e mais diferenciados. O urâ- fine a duração desses períodos de vida. A radioatividade, fe-
nio se nos apresenta com características todas especiais. É o nômeno materialmente perceptível para vós apenas nos corpos
elemento que tem o peso atômico mais alto (238,2) e é o último que a apresentam destacadamente, é, não obstante, proprieda-
termo do último grupo da série estequiogenética. Este grupo é de universal da matéria. Isto significa que a matéria, toda e
precisamente o dos corpos radioativos. Entre eles, considerais o sempre, em maior ou menor grau, é susceptível de decompo-
urânio como a substância-mãe do rádio, tanto que a quantidade sição e transformável em formas dinâmicas, e que a pulsação
de rádio contida num mineral é dada pela quantidade de urânio de sua evolução, a estequiogênese, jamais para.
que o compõe. Nos corpos celestes mais velhos que a Terra, Resumo, ainda, e fecho este capítulo. Partindo do hidrogê-
agruparam-se, por evolução, formas de peso atômico maior e de nio – forma primitiva da matéria, derivada por condensação
radioatividade invulgar. De fato, a radioatividade é uma quali- (concentração) das formas dinâmicas, através da forma de
dade que só aparece nos elementos do último grupo. Pois bem, transição, o éter – estabelecemos uma escala em que os ele-
sabeis que essa é uma forma de desagregação da matéria, pelo mentos químicos, até ao U, encontraram seu lugar de acordo
que haveis de comprovar este estranho fenômeno: com o au- com a própria fase de evolução. A repetição periódica das
mento do peso atômico, ou seja, do grau de condensação da isovalências mostrou-nos que essa evolução – ao mesmo tem-
matéria, aumenta essa radioatividade, que, na matéria, é mais po condensação progressiva e estequiogênese – constitui um
relevante exatamente em sua última forma. Então a condensa- ritmo que é também expresso pelo progredir constante dos pe-
ção leva à radioatividade, isto é, à desagregação. Portanto a ma- sos atômicos. Essas grandes pulsações rítmicas da matéria são
téria (), derivada de  por concentração, atinge um máximo de sete, as quais apresentei em sete séries, de acordo com as le-
condensação em seu processo de descida involutiva até às for- tras S1, S2, S3, S4, S5, S6 e S7. Partindo da série S1 até S7, apa-
mas de peso atômico máximo, retorna sobre seu caminho, in- rece uma mudança alternada de fases periódicas que se suce-
vertendo a direção na forma de ascensão evolutiva, e tende a dem à maneira de notas musicais, a distâncias de oitavas. O
dissolver-se, regressando a . A radioatividade é exatamente a conjunto da série é apenas uma oitava maior, o que prenuncia
propriedade de emitir radiações especiais em forma de calor, outras oitavas que invadem as fases  e . Vimos a tendência
luz, eletricidade – ou seja, de energia. Esta, ao contrário das leis que assume a matéria ao chegar ao U – seu limite de máxima
que conheceis, não é tirada do ambiente, nem de outras formas descida, condensação, involução e, ao mesmo tempo, ponto de
dinâmicas, mas é produzida constantemente, e não podeis esta- retomada da ascensão evolutiva, o regresso à fase . Chegan-
belecer outra fonte a não ser a matéria em estado de dissocia- do ao U, a matéria se desagrega. Em vosso sistema planetá-
ção. Este fato derruba vosso dogma científico da indestrutibili- rio, a matéria é velha, ou melhor, está envelhecendo e vos
dade da matéria e revalida o da indestrutibilidade da substância. mostra todas as formas em que sua vida se fixou e criou. A fa-
A matéria, como matéria, apresenta fenômenos de decomposi- se vivida por vosso recanto de universo é a fase  isto é,
ção espontânea. Essa decomposição é acompanhada de desen- os fenômenos da vida e do espírito.
volvimento de energia. Vedes, portanto, que a matéria, como
tal, é destrutível, mas não como substância, já que essa destrui- 7
Não confundir com os símbolos adotados neste tratado =espírito;
ção é acompanhada pelo aparecimento de formas dinâmicas, pa- =energia; =matéria.
26 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
Mas, se quiserdes continuar a série evolutiva de suas formas psiquismo é mínimo, os cristais. Nestes, a matéria não soube ele-
conhecidas, recorrei ao citado princípio de analogia e continuai a var-se a organizações mais complexas que as de unidades quími-
série nas direções já iniciadas, ou seja, antes do H, com corpos de cas coletivas, que representam quanto a matéria possa conter de
peso atômico decrescente, e depois do U, com peso atômico e ra- : o psiquismo físico, que é o menor psiquismo da substância. Os
dioatividade cada vez mais acentuadas. Conservai a relação de cristais são sociedades moleculares, verdadeiros povos organiza-
progressão já anotada e encontrareis, para os elementos químicos dos e regidos por um princípio de orientação matematicamente
aquém do H e além do U, um salto no peso atômico de duas ou exato; nesse princípio reside o citado psiquismo. Vedes que a
quatro unidades, e o mesmo retorno periódico de isovalências. cristalografia vos oferece sete sistemas cristalinos, que são a gra-
Assim, o elemento que vier depois de U terá um peso atômico dação de um conceito cada vez mais complexo, de um psiquismo
240-242, com qualidades radioativas ainda mais fortes. Notai, cada vez mais evidente, que se revela de acordo com planos e ei-
porém, que os produtos mais densos e radioativos do que o U vos xos de simetria, regulados segundo critérios exatos.
escapam, pois ainda não “nasceram” em vosso planeta, e que os Do triclínico ao monométrico, através do monoclínico, do
corpos que precederam o H já desapareceram, fugindo, portanto, trimétrico, do trigonal, do dimétrico, do hexagonal, ou dos sis-
à vossa observação. Esse aumento de qualidades radioativas nos temas que, se têm nomes diferentes, são, no entanto, substanci-
corpos que devem nascer depois do U, significa para eles uma almente idênticos, subimos mais uma oitava, ao reino vegetal, e
tendência cada vez mais acentuada à desagregação espontânea, depois ao reino animal, com o expoente psíquico cada vez mais
ao regresso às formas dinâmicas. Esses corpos nascem para mor- profundo e evidente. Dos protozoários aos vertebrados, através
rer logo, e sua vida tem a função de transformar  em . A maté- das grandes classes dos celenterados, vermes, equinodermos,
ria de vosso sistema solar, com sua tendência a evoluir para moluscos e artrópodes, só existe mais uma oitava. Vossa zoolo-
formas de peso atômico cada vez maior e mais radioativas, pro- gia classifica os animais existentes em sete tipos. Chegamos as-
duzirá uma série de elementos químicos sempre mais comple- sim, através de repetições rítmicas de graduação fundamental e
xos, densos e instáveis. Esta matéria, cada vez mais velha e di- do retorno de períodos constantes da matéria, máxima conden-
ferenciada, tende à desagregação, prepara-se para atravessar sação da substância, às superiores formas de consciência hu-
verdadeiro período de dissolução, que, aumentando progressi- mana, para vós, a máxima espiritualização.
vamente, terminará em verdadeira explosão atômica, como ob- Agora, podeis ter a visão da unidade da Lei e do meu monis-
servais nas dissoluções dos universos estelares. Vosso recanto mo. Da zoologia chegamos ao mundo humano. Mas toda a vida,
de universo se dissolverá por explosão atômica, verdadeira mesmo a vegetal, tem um só significado: construção de consci-
morte da matéria. Isto acontecerá quando a matéria tiver esgo- ência, transformação de  em . Todas as formas de vida são ir-
tado sua função de apoio àquelas formas orgânicas que susten- mãs da vossa e lutam por subir para a mesma meta espiritual, que
tam vossa vida e operam aquela fase de evolução, vossa grande é o objetivo de vossa vida humana. A escala dos estados psíqui-
criação, ou seja, a construção, por meio de infinitas experiên- cos que a vida percorre até alcançar-vos, parte das primeiras
cias, de uma consciência,  a substância que regressa à sua fa- formas inconscientes de sensibilidade vegetal, percorre as fa-
se de espírito. Esse o grande e verdadeiro problema de que tra- ses de instinto, intuição inconsciente, raciocínio (a vossa atual
tarei e do qual esta é apenas singela preparação. fase), consciência, intuição consciente ou superconsciência.
Na outra extremidade da escala, além do H, sempre pelo Esta vos espera, e vo-la indiquei como novo sistema de pes-
mesmo princípio de analogia, encontrareis corpos de peso atô- quisa. Seguem as unidades coletivas em que as consciências
mico menor que o H, e assim por diante, do grupo e valência do se coordenam em mais vastos e complexos organismos psí-
oxigênio. Prosseguindo nessa direção, encontrareis o éter, ele- quicos, como a família, a nação, a raça, a humanidade e as
mento imponderável para vós, de densidade mínima, tanto que formas de consciência coletiva que lhes correspondem.
praticamente escapa às leis da gravitação, e não podereis apli- Assim nasce a síntese espiritual desse vertiginoso metabo-
car-lhe conceitos de gravitação e de compressibilidade, como lismo que é a vida, à qual se sujeita a matéria nos mais altos
não podeis fazê-lo à luz e à eletricidade. Ele escapa às vossas graus de evolução. Pensai: o sistema planetário do núcleo e
leis físicas e vos desorienta com sua rigidez, tão grande que lhe dos elétrons que giram vertiginosamente no seio do átomo,
permite transmitir a luz à velocidade de 300.000 km/s. No en- que na molécula se combina com outros sistemas planetários
tanto é de tão fraca resistência, que nada opõe ao curso dos cor- atômicos, coordenando-se num sistema orgânico mais com-
pos celestes. O erro consiste em querer considerá-lo com os cri- plexo, o qual, por sua vez, é envolto num turbilhão ainda mais
térios específicos da matéria, enquanto ele é uma forma de tran- profundo, produzido pelo intercâmbio orgânico na célula. Que
sição, como vos disse, entre matéria e energia. é a célula num organismo? Como é vertiginoso nascer, viver,
morrer! A vida é troca, e, a cada momento, mudais a matéria
XIX. AS FORMAS EVOLUTIVAS de que sois compostos. É uma corrente que jamais para. É ma-
FÍSICAS, DINÂMICAS E PSÍQUICAS ravilhoso turbilhão, do qual nasce o pensamento, a consciên-
cia, o espírito. Aí palpita a matéria toda, acesa em sua mais
Mas, afora os corpos que, aquém do H e além do U, prolon- íntima essência, com indômita febre de ascensão. Eis a nova,
gam a série de formas de , a escala, naturalmente, continua, tremenda grandeza divina que vos mostrarei.
mesmo onde a matéria não é mais matéria. Continua, na visão Entretanto esse imenso fenômeno não é apenas progressão
monística que vos exponho, nas formas dinâmicas, até às mais al- de formas que individuam as etapas do grande caminho ascen-
tas formas de consciência. Do urânio ao gênio, traçaremos uma sional (aspecto estático); não é só movimento do transformis-
linha que deverá ser contínua. Mesmo nas formas dinâmicas, te- mo evolutivo (aspecto dinâmico do universo), mas representa a
mos semelhante progressão de períodos: raios X; vibrações que exteriorização de um princípio único, uma lei que se encontra
desconheceis; raios luminosos, caloríficos e químicos; espectro em toda parte. Esse princípio, que define o andamento de qual-
visível e invisível, desde o infravermelho até ao ultravioleta; vi- quer fenômeno, pode exprimir-se graficamente na forma de
brações eletromagnéticas; outras vibrações que desconheceis e, uma espiral, em cujo âmbito cada pulsação rítmica é um ciclo,
finalmente, vibrações acústicas. A tendência da série estequioge- o qual, embora voltando ao ponto de partida, desloca-se, repe-
nética ao período setenário e à progressão por oitavas, repete-se tindo, num tom e num nível diferentes, o período precedente.
aqui. As formas acústicas dividem-se, por sua vez, numa oitava Isto explicarei com mais exatidão no estudo da trajetória típica
menor, assim como a luz no espectro. Das formas dinâmicas, dos movimentos fenomênicos (aspecto mecânico do universo).
passa-se às psíquicas, começando pelas mais baixas, em que o Este é também trino em seus aspectos.
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 27
XX. A FILOSOFIA DA CIÊNCIA cial dinâmico, até ao núcleo, bombardeando o sistema com
emanações-projéteis de alta velocidade, mas não vedes que a
Essa filosofia da ciência de que vos falei, tem a função de essência do fenômeno da transmutação dos átomos reside na lei
coordenar a grande quantidade de fenômenos que observais, de da unidade da matéria. Assim, também notastes que a matéria
reduzir a uma síntese unitária vossa ciência, a fim de não vos sideral nasce e morre, aparece e desaparece, volatiliza-se de um
perderdes no particular das análises; tem a função de vos dar a lado em radiações e, em outra parte, reaparece como matéria;
chave da grande máquina do universo. Vossa ciência possui ví- mas não colocastes lado a lado os dois fenômenos e não obser-
cios de base e defeitos orgânicos que venho sanar. Falta-lhe to- vastes o traço que os une e a linha comum cíclica do seu desen-
talmente unidade, e isto lhe impediu até agora de elevar-se a volvimento. Eu vos revelo os vínculos que unem os fenômenos
sistema filosófico, dando-vos uma concepção de vida. De um aparentemente mais díspares. Meu sistema não despreza a ciên-
lado, as filosofias instituídas, de outro, uma ciência puramente cia, como acontece com vossa intuição filosófica; toma-a como
objetiva, caminhando por estradas opostas e com metas diferen- base, completa-a, ergue-a ao grau de concepção sintética, dá-
tes, só podiam chegar a resultados incompletos. Mantendo se- lhe dignidade de filosofia e de religião, porque, no infinito
parados o abstrato do real, eram insuficientes para conseguir a pormenor da fenomenologia, reencontra o princípio unitário
síntese completa que vos dou, fundindo os dois extremos: intui- que, dando-vos a razão das coisas e respondendo aos últimos
ção e razão, revelação e ciência. Quando estiver completa nos- porquês, é capaz de vos guiar pela estrada de vossas vidas e de
sa viagem pelo cosmos, tornarei a descer, num tratado mais vos proporcionar um objetivo para vossas ações.
profundo, aos pormenores de vossa existência individual e co-
letiva, para que ela não seja mais guiada, como até agora, pe- XXI. A LEI DO DEVENIR
los instintos que emergem de uma lei que desconheceis, mas
possais, vós mesmos, com consciência e conhecimento – não Chegou agora o momento de aprofundar nosso estudo, en-
mais menores de idade – tomar as rédeas do funcionamento frentando problemas de complexidade maior. Até aqui me man-
complexo de vosso mundo. Outro defeito de vossa ciência é tive relativamente à superfície dos fenômenos, detendo-me em
de constituir-se em ciência de relações, ou seja, que se limita sua aparência exterior, que é a mais acessível ao vosso intelec-
a estabelecer, embora de forma matematicamente exata, as re- to. Procedamos agora ao exame, em sua íntima e profunda es-
lações entre os fenômenos; ciência que parte do relativo e se trutura, do processo genético do mundo fenomênico.
move apenas no relativo. Minha ciência é ciência do absoluto. Nas páginas anteriores, tracei-vos as características, a gê-
Eu não digo: “poderia ser”. Digo: “é”. Não discuto: afirmo. nese e o desenvolvimento da fase , e lançamos um olhar de
Não indago: exponho a verdade. Não apresento problemas, conjunto sobre as outras duas formas de , isto é, de  e .
nem levanto hipóteses: exprimo os resultados. Minha filosofia Mais tarde penetraremos no exame minucioso da fase dinâmi-
não se abstrai em construções ideológicas, mas permanece ca e psíquica, que merecem estudo profundo, porque se refe-
aderente aos fatos em que se baseia. rem ao que vos atinge mais de perto, ou seja, aos fenômenos
Vós multiplicais vossa perspicácia e o poder de vossos da vida e da consciência, e também de vossa vida e de vossa
meios de pesquisa, mas o ponto de partida é sensório. Assim consciência, tanto no campo individual quanto no social. Com
percebeis a matéria como solidez, e não como velocidade. isso, terminarei o tratado, e o edifício estará acabado, porque
Torna-se-vos difícil, mas só por vias indiretas chegais a ima- terei lançado nova luz ao vosso mundo; terei implantado as
ginar como a massa de um corpo exista em função de sua ve- bases de novo viver particular e coletivo, que se apoia ao
locidade; como a transmissão de uma nova energia signifique mesmo tempo na ciência e na revelação, novo viver que cons-
para ele um peso maior; como a velocidade modifique as leis tituirá a nova civilização do Terceiro Milênio.
de atração (giroscópio); como a continuidade da matéria se Mas, antes de prosseguir em extensão, expandindo-me nes-
deva à velocidade de deslocamento das unidades eletrônicas tes novos campos, procedamos em profundidade, para tomar-
que a compõem, tanto que, sem essa velocidade – dado seu mos conhecimento da essência dos fenômenos que observamos.
volume mínimo em relação ao espaço em que circulam – vos- Não era possível, antes deste momento, empreender este estu-
so olhar passaria através delas sem perceber nada; como sua do. Ele não mais se refere ao universo em seu aspecto estático
solidez, fundamental para vossas sensações, deva-se à veloci- nem dinâmico, já observados, mas considera-o sob novo ponto
dade de rotação dos elétrons, que lhes confere quase uma con- de vista: seu aspecto mecânico.
temporânea onipresença espacial; velocidade sem a qual toda O aspecto estático refere-se às formas do ser, e sua ex-
a imensa grandeza do universo físico se reduziria, em um áti- pressão é:
mo, ao que verdadeiramente é: um pouco de névoa de poeira 
impalpável. Eis a grande realidade da matéria que a ciência
deveria mostrar-vos: a energia. O aspecto dinâmico diz respeito ao devenir (evolução) das
Pelo método em que se baseia, vossa ciência é inapta para formas do ser, e sua expressão é:
descobrir as íntimas ligações que unem as coisas e delas reve-

lam a essência. Por exemplo: compreendestes o fenômeno que
demonstra a transformação que afirmei, de  em , e o retorno O aspecto mecânico considera a essência do devenir das
da fase matéria à fase energia, observada também na radioativi- formas do ser, e sua expressão é uma linha: a espiral.
dade do vosso planeta, ou seja, o fenômeno mediante o qual o Certamente notastes como as formas ou fases de , a
sol inunda de energia, à sua própria custa, desgastando-se em Substância, são três: matéria – , energia – , espírito – .
peso e volume, a família de seus planetas e o espaço, até exau- Assim seus aspectos são três, podendo ser considerados: 1 o)
rir seu ser. Mas a ciência para aqui e olha para aquele sol, que é Como formas; 2 o) Como fases; 3o) Como princípio ou lei.
vossa vida, como para um enigma; sol que vagará por bilhões Esses três aspectos são as três dimensões da trindade da
de séculos, exaurido de luz e de vida, apagado, frio, morto. Ao substância. Unidade trina, a três dimensões. Em uma pala-
invés, eu vos digo: ele obedeceu à lei universal de amor, que vra, o universo não é apenas uma grande organização de
impõe a doação gratuita e que, em todos os níveis, torna irmãos unidades e o funcionamento de um grande organismo de se-
todos os seres do universo. Assim, por exemplo, tentais a desin- res, é também vir-a-ser, o transformismo evolutivo desse or-
tegração atômica, procurando demolir o edifício atômico invio- ganismo e de suas unidades; é, enfim, o princípio – a Lei –
lado; tentais penetrar, entrando na zona eletrônica de alto poten- que rege esse transformismo.
28 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
O estudo desse princípio nos ocupará agora. Por fenômeno, entendo uma das infinitas formas individua-
O eterno devenir do ser é guiado por lei perfeita e matema- das da substância, o seu devenir e a lei do seu devenir. Por
ticamente exata; o transformismo evolutivo universal obedece a exemplo: um tipo de corpo químico, de energia, de consciência,
um princípio único. Eu vos exporei esse princípio, que encon- em seus três aspectos – estático, dinâmico e mecânico. Fenô-
trareis, na infinita multiplicidade das formas, idêntico e cons- meno é a palavra mais ampla possível, porque compreende tu-
tante, e vos traçarei a linha do seu devenir, a trajetória da evo- do, enquanto é e se transforma de acordo com sua lei. Em meu
lução, uma linha absolutamente típica, que se pode denominar conceito, ser jamais significa estase, mas eterno devenir.
matriz do transformismo universal; uma trajetória que todos os A fig. 1 é a expressão mais simples do curso do fenômeno
fenômenos, os mais díspares, seguem em seu processo de de- no tempo, isto é, da quantidade de sua progressão evolutiva em
senvolvimento. Princípio absoluto, trajetória inviolável. Cada relação à velocidade dessa progressão.
fenômeno tem uma lei, e essa lei é um ciclo. Cada fenômeno Esta e as expressões que a ela se seguirem têm um signifi-
existe enquanto se move de um ponto de partida para um ponto cado universal. Portanto, para passar ao caso especial, é neces-
de chegada. Existir significa mover-se segundo essa linha de sário levar em conta os graus particulares de evolução na indi-
desenvolvimento, que constitui a trajetória do ser. viduação fenomênica que examinarmos e sua velocidade parti-
cular de progressão. Levando isso em conta, a linha pode apli-
XXII. ASPECTO MECÂNICO DO UNIVERSO. car-se a todos os fenômenos, e as trajetórias que assinalarmos
FENOMENOGENIA são aplicáveis a todos eles. Entretanto, para simplificar e salien-
tar a evidência, tomo agora para exame, particularmente, um ti-
A trajetória típica dos movimentos fenomênicos, expressão po de fenômeno que é o maior que conheceis, o máximo, e
sintética do seu devenir, é a linha que já encontrais no mundo compreende todos os menores: o transformar-se da substância
físico, no nascimento da matéria; é a linha das formações este- em suas fases   . Isto com o objetivo de dar-vos uma ideia
lares (nebulosas) e planetárias, isto é, o vórtice, a espiral. Ela mais exata do processo genético do cosmos.
exprime a fenomenogenia, e seu estudo conduzir-vos-á a nova
concepção cosmogônica.
Procedamos à sua análise, começando pelos conceitos
mais elementares e caminhando com ordem, do simples ao
complexo. Para evidenciar melhor o conceito, espessá-lo-
emos também com diagramas.
A fig. 1 representa a lei do caminho ascensional da evolu-
ção em sua expressão mais simples. A abscissa horizontal in-
dica a progressão da unidade de tempo, e a vertical, a progres-
são dos graus de evolução. Isto nos aparece aqui em sua nota
fundamental e característica dominante de caminho ascensio-
nal linear contínuo (OX).

Figura 2
Análise da progressão em suas fases
evolutivas e involutivas.

A fig. 2 exprime um conceito mais complexo.


Dissemos que, na eterna respiração de , a fase evolutiva
é compensada por uma fase equivalente involutiva e que vos-
so atual caminho ascensional,  tinha sido precedido
por um caminho inverso de descida, . Desse modo,
Figura 1 para que a expressão fique completa, a linha traçada OX deve
Diagrama da progressão evolutiva ser precedida por uma linha oposta que, da mesma altura 
em sua mais simples expressão retilínea. torne a descer a O. Mas, quando expus a grande equação da
substância em seu aspecto dinâmico: ..., eu dis-
Algumas definições: se, sumariamente, que o devenir retornava sobre si mesmo. Is-
Por evolução, entendo o transformar-se da substância, desde a so porque, se o tivesse definido com mais precisão naquele
fase  até às fases   e além, como veremos, e a transformação momento, teriam surgido dúvidas e complicações que só ago-
que sofrem as formas individuais através dessas fases. ra podemos resolver, quando estamos observando o aspecto
Por tempo, entendo o ritmo, a medida do transformismo mecânico do fenômeno.
fenomênico, isto é, um tempo mais amplo e universal que o Certamente, compreendeis que o absoluto só pode ser in-
tempo no sentido restrito – medida de vosso universo físico finito em todas as direções; que só pode haver limites em
e dinâmico – e que desaparece no nível ; um tempo que vosso relativo; que, se tivéssemos que pôr limites ao absolu-
existe onde haja um fenômeno e subsiste em todos os níveis to, esses limites não estariam no absoluto, mas apenas traça-
possíveis do ser, tal como um passo que assinala o caminho dos pela insuficiência de vosso órgão de julgamento: a ra-
da eterna transmutação do todo. zão; e que o universo não só se estenderá infinito em todas as
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 29
direções possíveis, espaciais, temporais e conceptuais, mas transforma-se nesta outra:
que, em determinado ponto, ele desaparecerá de vossa visão
insuficiente e se desvanecerá, para vós, no inconcebível. As
fases    não podem esgotar todas as possibilidades do
ser. Elas são  o vosso universo, vosso concebível. Mas,
além delas, há outras fases e outros universos, contíguos,
comunicantes, que para vós são o nada, porque estão além
de vossas capacidades intelectivas. Essas fases estendem-se
além de , em progressão ascendente para um infinito posi-
tivo, e abaixo de , em progressão descendente para um infi-
nito de sinal oposto.
Por isso a fig. 2 assume um aspecto diferente da fig. 1. En-
quanto a linha do tempo se estende horizontalmente, de um a
um+ilimitada em ambas as direções, a linha da evolução es-
tende-se, no alto e em baixo, para +e . E às fases    se-
guirão, no alto, as fases evolutivas (que desconheceis) +x, +y, +z
etc., e prosseguirão, embaixo, as fases involutivas (que também
em que o ciclo do universo , dado por:
desconheceis) x, y, z, que constituem criações limítrofes
(mas não no sentido espacial) de . 
O sistema, embora de maior amplitude e complicação que
não está mais fechado em si mesmo, mas se abre, invertendo o
o de , equilibra-se igualmente, mas num equilíbrio mais vas-
caminho  em  e, assim, desenvolvendo os universos
to e complexo. Assim como o ciclo  não é a contíguos   etc.
medida máxima do ser, tampouco o é este ciclo maior. Ele é A fórmula do ciclo aberto estende-se também para o negati-
apenas uma parte de um ciclo ainda mais amplo, pois, repito, vo, que é dada pela seguinte expressão:
não há nem pode haver limite de maior ou menor, de simples
e complexo, mas tudo se estende sem princípio nem fim, nas 1o ciclo . . . y x  x
infinitas possibilidades do infinito. Vosso campo visual é li-
2o ciclo x   
mitado e só pode abarcar um trecho dessa trajetória maior, ao
longo da qual ocorrem as criações e se escalonam os univer- 3o ciclo  
sos. Isso, porém, não vos faça supor imperfeição, falta de 4o ciclo  +x 
equilíbrio e ausência de ordem, pois aí tudo se desenvolve se- 5o ciclo +x +y  +x . . .
gundo um princípio único e uma lei constante.
O diagrama da fig. 2 apresenta-nos esse mesmo conceito
XXIII. FÓRMULA DA PROGRESSÃO EVOLUTIVA. dos ciclos sucessivos com uma linha quebrada que sobe, al-
ANÁLISE DA PROGRESSÃO EM SEUS PERÍODOS ternando seu movimento ascensional com períodos de regres-
são involutiva. Unindo entre si os vértices e as bases da linha
Aprofundemos ainda mais. Compreendeis que o ser não quebrada, vemos reaparecer ali, no conjunto, a linha ascensio-
pode ficar fechado no ciclo de , o vosso universo, dado pe- nal OX em sua expressão mais simples. Encontramos, em ní-
las três formas,   ; que uma eterna volta sobre si mesmo vel mais alto, o mesmo princípio, de que agora analisamos o
seria trabalho ilógico e inútil; que seria absurdo caminhar íntimo ritmo e vemos a estrutura mais completa.
sem meta nesse eterno círculo . Vossa mente Observemos agora as características da fórmula do ciclo
compreende esta minha argumentação: qualquer limite que aberto. As fases da evolução, elementos que compõem as
se colocasse em , a razão saltaria por cima dele, procuran- fórmulas dos cinco ciclos sucessivos examinados, podem –
do outro mais afastado; é absurdo o ciclo fechado que se re- nas cinco fórmulas sobrepostas – dividir-se em quatro colu-
petisse infinitamente em si mesmo. Vossa mente sente a ne- nas. Veremos, assim, como se repete em nível diferente o
cessidade do ciclo aberto, ou seja, do ciclo que se abre para mesmo ciclo, com o mesmo princípio. A primeira coluna à
um ciclo maior, e que torna a fechar-se em si mesmo num esquerda indica o ponto de partida; a segunda, a fase sucessi-
ciclo menor, sem nenhuma limitação. Fica, assim, satisfeita va do caminho ascensional; a terceira coluna indica o vértice
vossa mente, porque foi atendida a necessidade e concedida do ciclo; deste se desce para a quarta e última coluna. Duas
a possibilidade para que o ser voltasse sobre si mesmo, so- fases de ida e uma de volta projetam a série dos vértices  
bretudo se estendesse fora de si, além de si, além da forma  +x... cada vez mais alto, segundo uma linha ascendente. A
conquistada que o constrange. diferença de nível entre os pontos de partida e os de chegada é
Essa fórmula do ciclo fechado, que já vos demos com a ex- a condição necessária à progressão do sistema. Esclarecemos
pressão sumária:  tem que ser substituída ago- mais adiante, com casos mais particulares, o significado e as
ra pela fórmula mais exata e complexa do ciclo aberto. De razões filosóficas desse deslocamento, pelo qual a linha não
acordo com esta nova fórmula, a expressão gráfica dada: volta ao nível precedente, mas a um mais alto.
O curso da linha quebrada no diagrama da fig.2 expressa de
forma evidente esses conceitos. As coordenadas são ilimitadas,
suspensas no espaço entre dois infinitos. As fases são represen-
tadas não por uma linha, porque não são um ponto, mas por
uma faixa, uma superfície, porque só um espaço pode, grafica-
mente, dar a ideia do deslocamento necessário para atravessar a
fase. Cada ciclo representa o que chamais de uma criação. Tais
criações se sucedem no diagrama com as letras a, b, c, d etc.
Tomamos a criação como unidade de medida do tempo, o ritmo
da transformação do fenômeno que examinamos.
30 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
Resumindo o que dissemos até agora, poderemos concluir: XXV. SÍNTESE LINEAR E SÍNTESE POR SUPERFÍCIE
o aspecto dinâmico do universo é regido por uma lei mais com-
plexa (aspecto mecânico) e sua expressão não é dada simples- Estudemos agora, o diagrama da fig. 4. Tomando uma
mente pela fórmula: unidade de medida de tempo menor que na fig. 3, ou seja, tor-
nando mais lento o curso do fenômeno, e colocando cada cri-
 ação numa distância maior, isto é, a 45 o ou a 90o etc., pode-
remos exprimir não mais (como na fig. 3) apenas o aspecto do
mas por esta outra:
fenômeno em seu conjunto, mas também o curso cíclico de
yxx desenvolvimento e retorno de cada uma das fases, no âmbito
x da própria criação. Assim, podemos observar melhor o fenô-
meno em seus pormenores, em nova figura de aspecto caracte-
em que  exprime, na série infinita, uma unidade coletiva mai- rístico. Aos segmentos ascendentes e descendentes da linha
or que , isto é, um organismo de universos. quebrada substitui-se, com expressão mais dinâmica, o movi-
mento do abrir-se e fechar-se da espiral.
XXIV. DERIVAÇÕES DA ESPIRAL POR A fig. 4 é construída dando-se a cada fase (   etc.) a
CURVATURA DO SISTEMA amplitude de um ângulo reto. É preferível essa amplitude, em
lugar de outros ângulos, porque vos exprime com evidência
No diagrama da fig. 3, encontramos uma expressão mais in- maior a lei do fenômeno, com superposições regulares de traje-
tuitiva da lei que rege o transformismo fenomênico. Minha fi- tória, como ocorre na realidade, em um conjunto mais equili-
nalidade agora é descrever à evidência as características do fe- brado no retorno dos períodos. Observemos o diagrama em su-
nômeno. Depois exporei o significado e as razões profundas de as características. Encontramos aqui, reproduzido em sua ex-
seu desenvolvimento. pressão cíclica, o mesmo conceito que, nos pormenores da fig.
3 e melhor nos da fig. 2, tem sua expressão retilínea. Comece-
mos a observação do fenômeno em sua fase –y e sigamo-lo em
sua ascensão através das fases –x e . Nesse ponto, o período
fenomênico, depois de haver tocado um vértice – que, nas figu-
ras 2, 3 e 4, assinalamos com a letra a e que resultou do com-
pleto perfazimento das três fases – torna a descer, volta-se so-
bre si mesmo e, tornando a fechar-se, percorre em sentido con-
trário as últimas duas fases do período progressivo. O primeiro
período fenomênico, que representa a criação, fica assim com-
pleto em seus dois momentos de ida e volta, evolutivo e involu-
tivo, dados pelo percurso –y–xe –x, que constitui a
primeira parte da fórmula . Uma vez finalizada a fase –x, o
período esgota-se e, para continuar, novamente se inverte, re-
tomando o movimento ascensional. Mas este, agora, não parte
mais de –y, e sim de um degrau mais alto, –x; percorre outras
três fases ascendentes, que desta vez são: –x,  ; toca o vérti-
Fig. 3 ce, para descer de  para , onde inicia um terceiro período, de
Curvatura do sistema. A espiral derivando da quebrada. novo retificando seu caminho. Assim, foi percorrido o trecho
x esta constitui a segunda parte da fórmula de  e
Na fig. 3, tomo como coordenada básica, que exprime a corresponde à criação b. O fenômeno continua a desenvolver-
medida de tempo, não uma linha reta horizontal, mas uma se, obedecendo a uma lei de progressão constante. As letras,
circunferência; faço mover-se a coordenada vertical, expri- vértices e períodos das espirais da fig. 4 correspondem aos da
mindo os graus de evolução, em redor do centro; noutras pa- linha quebrada das espirais da fig. 2 e 3. Assim como na linha
lavras, tomo como abscissas todos os possíveis raios do cír- quebrada, a trajetória continua a subir e a descer, ela também,
culo. A medida de tempo será dada em graus. Todo o siste- no diagrama da fig. 4, continua a abrir-se e fechar-se na espi-
ma da fig. 2 gira, assim, em torno de um centro. A expressão ral. Às criações a, b, c, d, que culminam, na linha quebrada,
mais simples do conceito de evolução (dada pela reta ascen- nos vértices a, b, c, d, correspondem, no desenrolar-se e en-
dente OX do diagrama da fig. 1) agora é representada pelo volver-se da espiral, os máximos progressivos a, b, c, d etc.,
abrir-se da espiral. Ao conceito de ascensão linear, substitui- daí se desenvolvendo a fórmula de .
se pelo de desenvolvimento cíclico; no pormenor, temos a O diagrama da fig. 4 exprime o fenômeno não apenas em
mesma linha quebrada, cujos vértices salientes são os máxi- sua síntese linear, mas também em sua síntese por superfície,
mos na progressão das sucessivas criações. A linha geral do que se torna ainda mais evidente. As três faixas circulares: –y, –
fenômeno (O–X) assume o curso de espiral, que é a linha da x e , representam, no sentido espacial, a amplitude das três fa-
gênese planetária, do vórtice sideral das nebulosas; espiral ses cobertas pelo desenvolvimento da criação a. Esta produz,
que, na fig. 4, veremos abrir-se e fechar-se até mesmo em como resultado máximo, a fase , isto é, a matéria, vosso mun-
seu interior, porque exprimiremos a linha quebrada com cur- do físico; o resultado final do percurso de cada período é a co-
vas e, assim, vê-la-emos afastar-se e reaproximar-se do cen- bertura de uma fase circular maior, que servirá, depois, de base
tro ao longo da coordenada raio, seguindo a curva do tempo a novos impulsos para ocupações de áreas maiores.
nas grandes pulsações evolutivas e involutivas, segundo a Agora, afastemo-nos dos aspectos particulares do fenô-
qual progride todo o sistema. A espiral é aqui a expressão meno, a fim de vê-lo cada vez mais em seu conjunto e ob-
mais intuitiva da reta, porque, sendo uma derivada da cir- servá-lo em linhas cada vez mais gerais. A lei de desenvol-
cunferência, exprime mais evidentemente o curso cíclico do vimento da trajetória típica dos movimentos fenomênicos es-
fenômeno e a trajetória típica do seu devenir, dados pelos tá expressa por esta espiral, sujeita a um ritmo de pulsações
desenvolvimentos e retornos periódicos. que se invertem continuamente, abrem-se e fecham-se, desen-
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 31
rolam-se e enrolam-se. É como uma respiração íntima. E o ca do fenômeno essa espiral maior, sua expressão mais sinté-
resultado final desse contínuo voltar sobre si mesmo é uma tica, veremos que o resultado final de seu desenrolar, que
progressão constante. Esse é o produto último desse profundo exprime a evolução, é o percurso da abscissa vertical, dado
trabalho íntimo de todo o sistema. Assim, em sua simplicida- pelo traço –z, –y, –x,   , +x, +y, +z, +n, sendo esta tra-
de aparente, a progressão constante da evolução é o resultado jetória apenas o resumo de todo o complexo movimento do
de uma elaboração complexa e profunda. Dessa forma, são qual resulta o abrir-se da espiral. Veremos que essa trajetória
sucessivamente cobertas as diferentes fases em cada criação: – síntese ainda maior, que resume todas as precedentes, pro-
surge o universo físico, depois o dinâmico, depois o psíquico, duzida pela continuação de tantos trechos contíguos, nos quais
e assim por diante; o produto último de cada criação perma- estão representadas as sucessivas fases de evolução – é tam-
nece, soma-se aos precedentes, totaliza-se numa cobertura ca- bém uma espiral, expressão de um fenômeno ainda mais am-
da vez maior da superfície produzida pelas faixas circulares plo, sem jamais atingir o fim. Assim, construiremos outro di-
concêntricas, e todo o sistema lentamente se dilata. agrama, que nos fornecerá a expressão máxima possível, por
síntese cíclica, da fenomenologia universal. Aí então, teremos
observado o universo em seu aspecto mecânico, e vos terei
revelado a grande lei que o rege.

XXVI. ESTUDO DA TRAJETÓRIA TÍPICA DOS


MOVIMENTOS FENOMÊNICOS

É indispensável, todavia, em primeiro lugar, aprofundar


ainda mais o estudo e passar da simples exposição descritiva
dos movimentos fenomênicos ao campo dos íntimos por-
quês. Cada fase, antes de estabilizar-se em definitiva assimi-
lação ao sistema, é percorrida três vezes progredindo e, de-
pois, duas vezes regredindo; isto significa ser vivida cinco
vezes, em direções opostas. A razão desse retorno cíclico,
de duas fases involutivas sobre três evolutivas, é dada pelo
fato de que o voltar a existir, três vezes repetidas, no nível
de cada fase, é a primeira condição para a sua assimilação
profunda no ser que em si mesmo a fixa. Trata-se de uma vi-
da tríplice, em três posições diferentes, que o ser tem de vi-
ver em cada degrau, a fim de poder dominá-la definitiva-
mente. Nas duas fases de regresso, o passado volta, o ser re-
sume, relembra e revive. Assim, o que é novo fundamenta-se
em bases novamente consolidadas. O conceito fundamental
que existe na ideia de trindade é um princípio de ordem e de
equilíbrio. Outro significado dessa descida: ela representa a
Fig. 4 desintegração do velho material de construção, para nova
Desenvolvimento da trajetória dos movimentos construção, germe de potencialidade maior, porque só esse
fenomênicos na evolução do cosmos. núcleo mais poderoso pode alcançar culminâncias mais al-
tas, exatamente como faríeis se quisésseis, em lugar de velha
Eis-nos chegados a uma síntese mais ampla do fenôme- casa de dois pavimentos, construir outra de seis. Só através
no, a síntese cíclica, expressa por uma espiral que se desen- desse processo de íntima destruição e reconstrução, o fenô-
volve em progressão constante. A expansão do sistema não é meno se elabora e amadurece; só através desse retorno sobre
constituída apenas por seu dilatar-se em superfície, mas si mesmo, dessa compressão pelo vórtice, dessa fase de con-
também pela linha ao longo da qual ocorre essa dilatação. centração, o impulso é fecundado para ascensões maiores.
Da mesma forma que, unindo os vértices a, b, c, d etc., da Esse refazer-se desde o início, voltando sobre o próprio ca-
linha quebrada do diagrama da fig. 3, obtém-se como ex- minho, é um concentrar-se do fenômeno sobre si mesmo, a
pressão sintética uma espiral (em que se reencontra a linha fim de explodir com maior força. Para avançar, primeiro é
Ox da fig. 1); assim também, unindo os correspondentes preciso retroceder, demolir o que está velho, depois recons-
máximos sucessivos de abertura a, b, c, d, e, f, g etc., no di- truir, sempre partindo do princípio, colocando em alicerces
agrama da fig. 4, se obtém igualmente uma espiral de abertu- mais sólidos as bases de um organismo novo, de maior po-
ra constante. Podemos, assim, nesta espiral, estabelecer uma tencialidade e destinado a um maior desenvolvimento. Pois,
linha maior do fenômeno, na qual se desprezam os pormeno- na Lei, tudo avança por continuidade (“natura non facit sal-
res dos retornos, tendo-se em conta apenas a progressão fi- tus” – “a natureza não dá saltos”), e cada progresso tem que
nal. Eis uma expressão mais alta da Lei. Assim, traçamos a ser profundamente amadurecido.
espiral que dissemos ser a trajetória típica dos movimentos Compreendereis ainda melhor ao passar dos conceitos
fenomênicos. Simplesmente afastando o olhar da fig. 4, ve- abstratos à exemplificação de casos concretos. Verificareis
remos essa linha maior mais visível, com a superposição dos como vossa realidade corresponde aos princípios expostos
três percursos de que ela é formada, porque cada fase, para acima. Essa necessidade de refazer-se desde o início, rea-
ser definitivamente superada e estavelmente fixada no sis- proximando-se das origens do fenômeno, é universal. Para
tema, tem de ser percorrida três vezes em direção progressi- reedificar, é preciso destruir. O ciclo proporcionado pela es-
va de evolução: a primeira como produto máximo do ciclo, a piral que se abre e se fecha, é a linha da transformação de
segunda como ponto médio, a terceira como produto míni- todas as formas do ser. Se, por vezes, não vos parece ocorrer
mo, ou seja, ponto-de-partida ou fase inicial do processo assim, é porque só tendes sob os olhos fragmentos de fenô-
evolutivo. Como se vê, o sistema é trino tanto em seu con- menos. A unidade de princípio nos permite descobrir exem-
ceito como em seu desenvolvimento. Tomando como linha úni- plos nos campos mais díspares.
32 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
No universo da matéria, , encontrais a linha da espiral no se percorrida, isto é, vivida, uma vez que completou a assi-
desenvolvimento das nebulosas. Aí, a matéria é um vórtice cen- milação, retorna à anterior, como fase ou germe de evolução
trífugo de expansão; projeta-se no espaço, numa poeira sideral, de novas fases sempre mais altas. Tudo sobe mediante con-
precisamente formando uma espiral, que apresenta sua própria tínuos retornos sobre si mesmo, do máximo ao mínimo. T u-
juventude, madureza e velhice, isto é, atinge um máximo de do funciona por germes.
abertura espacial, provocada pelo impulso que o vórtice, germe Olhai em torno de vós. Cada fato nasce por abertura de
do fenômeno, imprimiu-lhe, máximo que não pode superar. um ciclo: começa, expande-se até um máximo, depois retor-
Depois disso, retrocede. O ciclo torna a fechar-se sobre si na sobre si mesmo. Tudo procede assim. Qualquer coisa que
mesmo porque, enquanto a espiral se abre, partindo do nível , queirais fazer, tereis de abrir um ciclo que depois fechará. A
ocorre aquela íntima elaboração da matéria de que falamos na semente de vossos atos está no vosso pensamento; cada ação
série estequiogenética, pela qual a matéria se desagrega e  vol- vos proporciona uma semente mais complexa, capaz de pro-
ta a . Como vimos, a energia, por sua vez, canaliza-se em cor- duzir outra ação ainda mais complexa. Tal como a semente
rentes que determinam um vórtice centrípeto, concentração di- produz o fruto e o fruto produz a semente, o pensamento
nâmica (período involutivo do ciclo) em um núcleo (de novo ), produz a ação e a ação produz o pensamento. O princípio da
que constituirá o germe de um vórtice inverso centrífugo (perí- semente, como o encontrais na natureza, é o princípio uni-
odo evolutivo do ciclo), isto é, de nova expansão sideral. Mas, versal de expansão e contração dos ciclos.
desta vez, , novamente reconstituída, assumirá os mais altos Encontrais em vossa própria vida humana outro aspecto. Os
caminhos da vida e da consciência, enquanto, nos confins de primeiros anos de vossa existência resumem, primeiro organica-
vosso universo, onde  ainda não amadureceu, vê-la-eis dobrar- mente e depois psicologicamente (vede como a fase  sucede à
se sobre si mesma para , e assim por diante. fase ), todas as vossas vidas orgânicas e psíquicas do passado. A
No campo da vida, a abertura da espiral não é um vórtice cada nova retomada de um ciclo de vida, vosso ser tem que refa-
físico nem espacial: é dinâmico. Centro, expansão, limites e zer-se desde o início, ainda que reassumido num breve período, a
retornos são de caráter exclusivamente dinâmico. Nunca fim de levar o ciclo da nova evolução a um ponto máximo gradu-
perguntastes por que tudo tem de nascer de uma semente? almente mais adiantado. Assim , em sua fase mais alta – a fase
Por que o desenvolvimento subsequente não pode ultrapas- da vida humana – também é dada pelo abrir-se e fechar-se da es-
sar determinados limites? Por que a decadência da velhice, piral, através da qual progride todo o sistema.
que vai chegando a todas as coisas? Também a vida é um ci- Vosso atual nível de vida orgânica mais alto toca a fase , e
clo, com a sua fase evolutiva e involutiva, e o inexorável re- voa prepara para a criação do espírito. Assim vemos repetir-se a
torno ao ponto de partida. Que vem a ser esta mecânica que lei cíclica também no campo da consciência individual e coleti-
reconduz tudo ao estado de germe, esse processo da natureza va. No primeiro caso, o processo genético de vossa consciência
por meio de contínuos regressos ao estado de semente, se atua seguindo a mesma linha de desenvolvimento traçada no
não a expressão mais evidente da lei de evolução e involu- processo genético do cosmo, isto é, espiral dupla e inversa. Sua
ção cíclica? Na semente, o fenômeno da vida torna a fechar- abertura é a ação, que explode irresistível, como o maior instin-
se em si mesmo, num núcleo que é o centro de nova expan- to da vida e a manifestação mais evidente da Lei, nas consciên-
são. Assim, por pulsações alternadas da fase de germe à fase cias jovens, inexpertas, que tentam o desconhecido. A ação é o
de maturidade, procede ininterruptamente a vida. Essa ínti- primeiro grau de  contíguo a . Com efeito, está cheio de
ma lei do fenômeno, momento da lei universal, estabelece os energia e vazio de experiência e sabedoria. A vida humana é
limites da forma completa, depois a destrói e reconcentra to- uma série de provas, de tentativas, de experiências. Mas nem
da a sua potencialidade num germe. Este não produz, de mo- por isso digais: “vanitas vanitatum” ("vaidade das vaidades”).
do inexplicável, o mais vindo do menos, mas simplesmente Se nada se cria (em sentido absoluto), também nada se destrói.
restitui o que está nele incluso por involução. Sem este ine- Vossos atos, vossas experiências, vossas reações ao ambiente,
xorável retorno sobre si mesmo, que está na lei dos ciclos, a fixam-se em automatismos psíquicos, tornam-se hábitos e, de-
forma teria que progredir ao infinito ou então, decaindo, ja- pois, serão instintos e ideias inatas. Assim, a vida orgânica des-
mais ressurgiria para retomar, dentro de pouco tempo, em gasta-se, mas é construção de consciência; o ciclo dinâmico
direção oposta, o mesmo caminho. Se os limites podem des- exaure-se, mas de seu exaurir nasce e desenvolve-se a fase ,
locar-se e os máximos elevar-se, isto não diz respeito ao ci- até um máximo dado pela potencialidade da consciência, tal
clo inviolável das vidas individuais, mas ao desenvolvimen- como existia no início do ciclo. Mas, aqui, a expansão da espi-
to em que elas estão ocorrendo, do ciclo maior de evolução e ral e seus limites de desenvolvimento são de caráter psíquico.
involução da espécie, sujeito a essa mesma lei. Uma vez Mudam o nível e a matéria, mas tudo repete a mesma lei. Aqui
mais, o progresso só avança por meio de contínuos retornos o vórtice diz respeito ao universo espiritual da consciência, mas
a um ponto de partida que, gradualmente, desloca-se para o princípio de seu movimento é idêntico. Chegando ao seu má-
frente. Dessa forma, o progresso das espécies orgânicas não ximo, o ciclo se cansa e envelhece, volta a seu ponto de origem,
é retilíneo, tal como viu a mente de Darwin, mas alterna-se para , e a espiral se fecha. O ponto máximo de vossa vida psí-
em constantes retornos involutivos. Semelhante a esse caso quica custa a chegar e, por vezes, só aparece no fim, muito de-
que as leis da vida vos oferecem, toda a criação é feita e fun- pois da juventude do viço físico, última delicada flor da alma.
ciona por meio de germes, à qual se segue um desenvolvi- Depois a consciência dobra-se sobre si mesma, vem a reflexão,
mento, à semelhança de quem, para construir um edifício o fruto da experiência é absorvido e assimilado, chega a matu-
cada vez mais alto, tem que refazer os alicerces, a fim de es- ridade do espírito num corpo decadente. Poucos, só os evoluí-
tabelecer bases cada vez mais sólidas. Vedes que cada exis- dos, chegam rápido; muitos chegam tarde; alguns, os mais
tência é filha de uma semente, cada fenômeno está potencial- novos na vida psíquica, nunca chegam. Assim, o ciclo, esgo-
mente contido num germe. Reencontrais essa lei até mesmo tado seu impulso – que é proporcional à potência de explosão
na evolução e involução dos universos, que são por ela leva- concentrada no germe da personalidade – retorna sobre si
dos a refazerem-se sempre, desde sua fase inicial, que pode mesmo. A consciência refaz-se sobre o passado, reconcentra-
ser y, x,    etc., à fase germe, em que estão inclusas e se, reentra em si mesma, fecha-se à ação e à experiência: tudo
concentradas, por involução, todas as potencialidades que se de- assimilou. É o caminho da descida, que preludia novo impulso
senvolverão na evolução geradora das fases superiores. Cada fa- de ação em nova vida, novo aparecimento no mundo de provas,
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 33
mais ampla experiência, uma retomada do ciclo precedente, XXVII. SÍNTESE CÍCLICA. LEI DAS UNIDADES
mas em nível mais alto, porque seu ponto de partida foi mais COLETIVAS E LEI DOS CICLOS MÚLTIPLOS
alto. Com essa nova descida,  torna-se mais fecunda e, da fa-
se intermediária, torna-se base e semente do desenvolvimento Compreendido bem este conceito do retorno dos ciclos e
de mais vasta série de ciclos que, em virtude das construções sua razão, por meio dessa exemplificação, que vos demons-
espirituais realizadas, com as quais os germes tornam-se mais tra como a realidade corresponde ao princípio que vos ex-
potentes, atingirão a fase +x e seguintes. pus, podemos agora levantar o olhar para um horizonte ainda
No campo das consciências coletivas, encontrais nas leis cí- mais amplo. Antes de proceder a essa exemplificação de-
clicas a razão do desenvolvimento e da decadência periódica monstrativa, já acenávamos que o resultado final do abrir-se
das civilizações. Também aqui ocorre o mesmo fenômeno. Ca- e fechar-se da espiral podia ser expresso (fig. 4) por uma es-
da civilização, depois de uma juventude conquistadora e expan- piral maior, em constante expansão. Agora pode dar-se a es-
sionista, atinge um máximo de maturidade, que não pode ultra- sa expressão sintética do fenômeno uma expressão ainda
passar. Uma fatalidade que parece condenar os povos e, em da- mais resumida. Considerando o progredir dessa linha maior
do momento, diz: “Basta!”. É apenas a expressão da lei dos ci- ao longo da abscissa vertical, vemos que a cada quarto de gi-
clos. Cada civilização constitui um produto espiritual coletivo: ro ela cobre a altura de uma fase (fig. 4). Dessa forma, a co-
é a criação de uma alma mais vasta que a individual; deriva de ordenada das fases –y  +x resume, em seu traçado, todo o
um germe que potencialmente a continha toda e que a leva até movimento da espiral e eleva-se com a expansão desta. Po-
um máximo, além do qual não há expansão e a maturidade só demos, agora, construir o diagrama da fig. 5.
pode resultar em putrefação e decadência. Como todos os fe-
nômenos, também este se esgota, se cansa, envelhece, decai e
morre. Para avançar novamente, é indispensável percorrer o
ritmo involutivo, a fim de recomeçar desde o início, partindo de
um novo germe que sintetize o máximo anteriormente atingido;
novo ciclo de civilização, que poderá alcançar, por sua vez, um
máximo ainda mais elevado, e assim por diante. Todo o sistema
dos ciclos de civilizações, desse modo, caminha lentamente,
por máximos sucessivos, com alternativas de florescimentos,
decadências e mortes, renascimentos e recomeços. É nesse cur-
so cíclico do fenômeno que encontrais a razão da ascensão con-
tínua das classes mais baixas da sociedade. É o desenvolvi-
mento da linha da evolução que sempre impele para frente as
camadas inferiores dos povos. Sem este conceito, não poderíeis
explicar como elas constituem uma reserva inexaurível de valo-
res desconhecidos, de que tudo consegue nascer. O povo é a
semente das sociedades futuras; as aristocracias de toda espécie
são suas sentinelas avançadas, a flor que, terminado seu desen-
volvimento, deve curvar e morrer. As classes sociais inferiores
só têm uma única aspiração: subir, atingir o nível das mais al-
tas, para também imitar, por sua vez, seus vícios e erros, que,
no entanto, condenavam, e cair afinal na mesma conjurada es-
trada de cansaço e de ignomínia, logo que hajam superado a
maturidade do ciclo. Dessa forma, por turnos e por ciclos, su-
bindo ou descendo, como vencedores ou como vencidos, todos
Fig. 5
vivem a mesma lei: indivíduos, famílias, classes sociais, povos,
humanidade. Mas, a cada volta, o ciclo torna-se cada vez mais Síntese Cíclica
amplo, o organismo torna-se cada vez mais complexo. A histó-
ria vos mostra que a primeira e mais simples das emersões pro- A linha maior, em expansão constante, que exprime o pro-
gressivas foi dada pelos ciclos individuais, depois pelos ciclos gresso da evolução, está aqui traçada simplesmente, abandonan-
familiares, em seguida abrangeu classes sociais inteiras, esten- do as fases de retorno expressas no diagrama da fig. 4. Ela é vista
deu-se a povos e nações, até enfim, como agora, envolver toda na pequena espiral da esquerda. A abscissa vertical não é mais
a humanidade. O ciclo torna-se cada vez maior, e as grandes uma reta, mas uma curva, e faz parte de uma espiral maior, ao
massas fundem-se nele, até ao tempo presente, em que a huma- longo de cujo traçado escalonam-se as fases sucessivas –y, –x, 
nidade se torna um só povo e é chegada a hora de retomar o ci- etc. A síntese de todo o movimento evolutivo da primeira espiral
clo mais vasto de nova civilização. é dada, assim, não pelo prolongamento retilíneo da vertical, mas
Assim, em   , em qualquer parte, realiza-se o princí- pelo desenvolvimento de uma espiral maior, também de abertura
pio da lei que vos descrevi. Seguindo períodos inversos de constante. As fases sucessivas, segundo as quais ela avança, são
expansão e contração, a espiral abre-se e fecha-se, voltando de amplitude maior. Abarcarão, por exemplo, ao invés de uma
sempre pelo caminho percorrido para, através dessa concen- das fases    etc., uma criação inteira ou uma série de cria-
tração de forças, tomar impulso para maiores expansões. ções. Mas esta espiral maior ascende também segundo uma linha
Tudo é cíclico, tudo vai e vem, progride e regride, mas só re- que, igualmente aqui, será uma curva, que faz parte do traçado de
trocede para progredir mais. E, se repete, resume e repousa, uma espiral ainda maior, que progride também em abertura cons-
isto representa apenas uma retomada de forças, um deter-se tante. O percurso da espiral maior resume em si todo o movi-
para avançar mais para o alto. Esta é a evolução em seu ín- mento progressivo da espiral menor, que, por sua vez, é pro-
timo mecanismo; a evolução que contém o significado mais duto sintético do movimento de outra espiral menor, e assim
profundo do universo. A verdade de minhas palavras está por diante. Desse modo, o traçado maior se resume e é dado
escrita em vosso mais poderoso instinto e aspiração, que é o por todos os desenvolvimentos menores. O pequeno se orga-
de subir, sem medida; subir eternamente. niza no grande; o grande é constituído do pequeno. A série das
34 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
espirais, naturalmente, é ilimitada; cada movimento é decom- XXVIII. O PROCESSO GENÉTICO DO COSMOS
ponível e multiplicável ao infinito – propriedade de todos os
fenômenos – mesmo permanecendo idêntico seu princípio. Eis Ilustremos, agora, tudo isso com exemplos. Tal como fi-
a síntese máxima dos movimentos fenomênicos. O processo zemos antes com o conceito do retorno cíclico, que reconduz
avança por um movimento interno de íntima autoelaboração, a espiral a seu caminho, façamos agora com este conceito do
que liga e une, num modo indissolúvel e compacto, o infinito desenvolvimento da espiral maior, produzido pelo desenvol-
negativo ao infinito positivo. Um mecanismo de exatidão ma- vimento da espiral menor. Notemos que, se a linha da cria-
temática dirige toda a criação com a simplicidade de um prin- ção não é a reta, mas a espiral, isto é devido ao fato de que
cípio único, alcançando uma complicação que vos atordoa. esta é a linha de menor resistência e de maior rendimento.
Tudo se interpenetra, coexiste; tudo, a cada instante, equili- Tratando-se de realizar um complexo trabalho de destruição
bra-se; tudo, do mínimo fenômeno até à criação dos univer- e reconstrução, a espiral é a linha mais curta, no sentido de
sos, encontra em cada ponto sua justa expressão. que responde mais imediatamente à lei do mínimo esforço,
À série de unidades coletivas – na qual as unidades menores pela qual se obterá o máximo efeito com o mínimo trabalho.
se organizam em unidades maiores, compensando com uma or- No universo estelar, onde tudo acontece por atração, isso
ganização mais ampla a tendência à diferenciação que a evolução ocorre sempre por curvas. Até no nível físico vedes que a li-
possui, de modo que a autoelaboração não desagrega nem pulve- nha do menor esforço, lei universal, não é a reta, mas a cur-
riza, mas consolida a estrutura do cosmos – corresponde aqui a va, que responde a um equilíbrio mais complexo e é o cami-
série dos ciclos múltiplos. Cada individuação é um ciclo; se tudo nho mais curto no sentido mais completo, não o espacial, em
o que existe constitui uma individuação em seu aspecto estático, que vos isolais e limitais vossa concepção de reta.
por outro lado compõe um ciclo em seu aspecto dinâmico de No nível físico, vedes, nos movimentos estelares e planetá-
transformação. Na infinita variedade do caso particular, tudo rios, a coordenação dos ciclos menores com os maiores, expres-
reencontra sua unidade: o princípio único que irmana todos os são visível do princípio dos ciclos múltiplos. Também o encon-
seres do universo. Assim como cada individualidade maior é o tramos junto com o outro, o do retorno cíclico, nos fenômenos
produto orgânico das individualidades menores, o desenvol- mais próximos de vós. Observai o ciclo pelo qual as águas pas-
vimento de cada ciclo maior também é produzido pelo desen- sam do estado de chuva ao de rio e de mar e, por evaporação,
volvimento dos ciclos menores. A evolução do conjunto só voltam ao estado de nuvens e chuva; um ciclo contínuo, idênti-
pode obter-se por meio da evolução de suas partes componen- co, no entanto, a cada rotação, muda um pouco e vai amadure-
tes: processo de maturação íntimo e profundo. Em cada nível, cendo um ciclo maior, o da dispersão das águas por absorção na
a qualquer distância, o mesmo princípio, idêntica construção terra e difusão nos espaços; ciclo que caminha para a lenta mor-
orgânica, idêntico processo evolutivo, idêntica conexão funci- te do planeta. O ciclo volta sobre si mesmo, mas sempre com
onal. Como não existe individuação máxima nem mínima, as- pequeno deslocamento progressivo de todo o sistema.
sim também não há ciclo máximo nem mínimo, sem jamais
Observai, em vosso mundo químico, como os elementos
ter fim. O sistema prolonga-se, multiplicando-se e subdividin-
que constituem vosso organismo provêm da terra, introduzi-
do-se ao infinito. A constituição íntima do ser, a lei de sua
dos no ciclo pela nutrição, e voltam à terra através da morte.
transformação, é independente da fase de evolução e idêntica
Sempre o mesmo material e o mesmo ciclo, mas que se deslo-
no microcosmo tal como no macrocosmo.
ca lentamente ao longo da trajetória do ciclo maior, na trans-
A lei das unidades coletivas pode, assim, transportar-se de
formação da espécie. Observai o ciclo de vosso metabolismo
seu aspecto estático ao dinâmico. Diz ela: “Cada individualidade
orgânico e como ele constitui função de longa cadeia de ci-
é composta de individualidades menores, que são agregados de
clos. Vosso corpo é uma corrente de substâncias que tomais de
individualidades ainda menores, até ao infinito negativo; e é, por
outros seres plasmófagos (animais), que por sua vez as toma-
sua vez, elemento constitutivo de individualidades maiores, as
ram de seres plasmódomos (as plantas), os quais, finalmente,
quais são de outras ainda maiores, até ao infinito positivo”. Cada
organismo é composto de organismos menores e é componente operam a síntese orgânica das substâncias proteicas do mundo
de maiores. Esta lei, repetida em seu aspecto dinâmico na lei dos da química inorgânica da terra e do mundo dinâmico das radia-
ciclos múltiplos, reza: “Cada ciclo é determinado pelo desenvol- ções solares. Vosso pensamento é um ciclo mais alto, que se
vimento de ciclos menores, que são resultantes do desenvolvi- alimenta dessa cadeia, porque não poderia ele subsistir em vos-
mento de ciclos ainda menores, até ao infinito negativo; e é, por so cérebro sem restauração física e dinâmica. Vosso funciona-
sua vez, determinante do desenvolvimento de ciclos maiores, que mento psíquico está, assim, em relação com processos químicos
também o são de ciclos ainda maiores, até ao infinito positivo”. de vosso organismo, do organismo dos animais de que vos nu-
Cada individualidade, como cada ciclo, é produzida e definida tris, das plantas de que os animais se alimentam e dos processos
pela unidade que a precede, e forma e define a unidade superior. químicos da própria matéria, de que os processos de síntese vi-
A organização, o desenvolvimento e o equilíbrio maior são cons- tal das plantas são apenas uma consequência.
tituídos pela organização, pelo desenvolvimento e pelo equilíbrio Os ciclos têm de caminhar inexoravelmente, e basta que um
menor. Cada movimento constrói o seguinte, da mesma forma deles pare, para que toda a cadeia também pare e se quebre.
como foi construído pelo precedente. Cada ser equilibra-se num Todo o ciclo da energia mecânica e psíquica que se desenvolve
ponto da série, na hierarquia das esferas, que não tem limites. Is- no organismo humano, está em estreita relação com o ciclo da
to, do átomo à molécula, ao cristal, à célula, à planta, ao animal, energia química dos seus elementos componentes, dado pelas
ao seu instinto, ao homem, à sua consciência individual e coleti- suas reduções, hidrólises, oxidações, sínteses e processos afins.
va, à sua intuição, à raça, à humanidade, ao planeta, ao sistema Quando a molécula de um corpo químico, por assimilação, in-
solar, aos sistemas estelares, aos sistemas de universos, antes e troduz-se no organismo protoplasmático da célula, o ciclo do
além desses elementos de vosso concebível, antes e além das fa- fenômeno atômico entra, através do ciclo do fenômeno molecu-
ses   . Eis a que processo de íntima autoelaboração se deve a lar de que faz parte, no ciclo maior do fenômeno celular. No
evolução. Nenhuma força age nem intervém do exterior, mas tu- mundo das substâncias proteicas, a química do mundo inorgâ-
do existe no fenômeno e tudo caminha por síntese progressiva. nico acelera seu ritmo, dinamiza-se, adquirindo em velocidade
Progresso e decadência cósmica são efeitos da evolução e do es- o que perde como estabilidade de combinação. A individua-
gotamento atômico. Os extremos se tocam. A grande respiração ção fenomênica não mais assume o aspecto de estase, mas tor-
do universo é dada pela respiração do átomo. na-se, como veremos melhor depois, uma corrente que, em nova
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 35
química, instável e fragílima, de ciclo continuamente aberto, rização do todo se essa força de coesão não reorganizasse o
decompõe-se e recompõe-se no metabolismo celular, base do diferenciado em unidades cada vez maiores. Viveis, vós
recâmbio. Isso ocorre em seus dois momentos: anabólico, de mesmos, esse princípio quando, ao progredir na especializa-
assimilação, e catabólico, de desassimilação, quando atinge ção do trabalho, sentis a necessidade de reorganizá-lo; quan-
os vértices da fase , penetrando na fase , porque isso impli- do, paralelamente ao maior desenvolvimento das consciên-
ca e significa uma pequena consciência celular que preside às cias individuais, vedes nascer consciências coletivas cada vez
funções de escolha, base do recâmbio, e mantém na corrente mais amplas e mais compactas. Assim, todos os seres, à pro-
deste a individuação do fenômeno. porção que evoluem, tendem a reagrupar-se em unidades co-
A realidade vos mostra esta íntima transformação do ser, da letivas, em colônias, em sistemas sempre mais abrangentes.
fase  à  e desta à , e como isso ocorre por ciclos contíguos e Isso vos explica porque a matéria, que consideramos em sua
comunicantes. A assimilação é algo mais que simples filtragem estrutura e em seu devenir, apresenta-se a vós, na realidade
osmótica: é a ponte de passagem de um ciclo para outro, em das formas, não em suas unidades primordiais, mas amalga-
que a estrutura íntima do fenômeno sofre uma mutação. Atra- mada e comprimida em agregados compactos, organizada em
vés de quão complexa cadeia de ciclos tem de passar a matéria, unidades coletivas de indivíduos moleculares. É a trajetória
em sua íntima estrutura atômica, para chegar a poder produzir da espiral menor que se funde na espiral maior. Da molécula
efeitos de ordem orgânica e psíquica! De que número de mo- aos universos, a mesma tendência a reorganizar-se num sis-
vimentos cíclicos resulta o fenômeno da consciência humana! tema maior, a encontrar um equilíbrio mais completo em or-
Estes exemplos vos mostravam como, em realidade, exis- ganismos mais amplos. Por isso não encontrais moléculas
te o conceito da formação progressiva da trajetória dos ci- isoladas, mas cristais, verdadeiros organismos moleculares,
clos maiores através do desenvolvimento da trajetória dos amontoados geológicos; não encontrais células, mas tecidos,
ciclos menores. órgãos e corpos, que são sociedades de sociedades. Sempre
sociedades: moleculares, celulares, sociais, com subdivisões
XXIX. O UNIVERSO COMO ORGANISMO, de trabalho e especialização de atitudes e de funções.
MOVIMENTO E PRINCÍPIO Essa possibilidade de estabelecer contatos e ligações entre
os mais distantes fenômenos, que é possível por causa da uni-
Chegados a este ponto e realizada em grandes linhas a expo- versal unidade de princípio, permitir-nos-á mais tarde recons-
sição do sistema cosmográfico, podeis ter uma ideia aproximada truir uma ciência jurídico-social em bases biológicas. Por isso,
de sua incomensurável grandiosidade. Por simplicidade e clareza, também não encontrais planetas isolados, mas sistemas planetá-
tive que seguir uma exposição esquelética e esquemática. Obser- rios; não estrelas, mas sistemas estelares; não universos, mas
vamos o fenômeno reduzido à sua mais simples expressão de de- sistemas de universos. Em vosso universo, essa força que ci-
senvolvimento linear; mesmo assim, que complexidade de orga- menta e mantém unidos e compactos os organismos, vós a
nização e de funcionamento, que riqueza de pormenores, que chamais coesão no nível , atração no nível , amor no nível .
vastidão e profundidade de ritmo, que grandiosidade de conjun- Um princípio único que se manifesta diferentemente nos diver-
to! Acenei a uma síntese de superfície, mas esta é apenas a seção sos níveis e que assume diversas formas, adaptadas à substância
do dilatar-se de uma esfera; os ciclos, para corresponderem mais em que se revela. Encontrais essa força unificante manifestada
exatamente à realidade, teriam de ser esféricos, porque a evolu- na concentricidade de todas as volutas da espiral. Tudo se en-
ção, espacial em , dinâmica em , conceptual em  etc. – mu- trelaça em redor de um centro, o núcleo, o eu do fenômeno, em
dando de qualidade em cada fase – constitui verdadeira expansão cujo derredor gira a órbita de seu crescimento.
em todas as direções. Vós não possuís sequer as palavras próprias O princípio das unidades coletivas dispõe as individuações
que englobem exatamente todos estes conceitos ao mesmo tem- por hierarquia, escalona os seres em diferentes níveis, segun-
po. Passais dos símbolos e abstrações matemáticas, em que o as- do seu grau de desenvolvimento e suas capacidades intrínse-
pecto mecânico-conceptual do universo está isolado do dinâmico cas. Por isso o tipo superior domina naturalmente, sem esfor-
e estático bem como de outros aspectos que estão além de vossa ço, o inferior, que não tem possibilidade de rebelar-se, porque
inteligência, à realidade vestida de miríades de formas, compli- o mais está totalmente acima de sua compreensão e de sua ca-
cada de infinitas minúcias de ações e reações. Imaginai a miríade pacidade de ação. Estabelece-se, desse modo, um equilíbrio
de seres, movidos por incessante dinamismo, que exorbitam do espontâneo nos diversos níveis, devido simplesmente ao peso
universo de vosso concebível, atentos a esse grande esforço da específico de cada individuação. O diagrama das espirais for-
própria evolução, que consiste em conquista de perfeição, poder, nece o conceito das hierarquias. Agora, pensai apenas isto:
consciência e felicidade sempre maiores; impelidos pela Lei, que vós não sois somente membros de vossa família, de vossa na-
é o princípio de seu ser, pelo instinto irresistível, pela aspiração ção, de vossa humanidade, mas sois cidadãos deste grande
máxima; atraídos pela imensa luz que baixa do Alto, cada vez universo. São apenas os limites de vossa consciência atual que
mais alta à proporção que eles sobem. Imaginai os seres todos não permitem que vos “sintais” uma roda da imensa engrena-
escalonados, cada um em seu nível, de ciclo em ciclo, tal como gem, uma célula eterna, indestrutível, que, com seu trabalho,
concebeis os anjos organizados nas esferas celestes. Imaginai o concorre para o funcionamento do grande organismo. Esta é a
canto imenso que, da harmonia desse organismo, na ordem sobe- extraordinária realização que vos prepara a evolução às supe-
rana dominante, eleva-se de toda parte, e um pouco da grandiosa riores formas de consciência. Quando lá tiverdes chegado,
visão se abrirá diante de vossos olhos. olhareis com pena e desprezo vossas atuais fadigas ferozes.
Olhai. Cada fase é um degrau, um átimo no grande cami- Esta é a visão das esferas celestes, donde promana o hino
nho. As fases matéria, energia e espírito formam um universo. da vida. É imensa e, no entanto, é simples em comparação com
Outros universos seguem e precedem, organizando-se em sis- a visão de seu movimento. Os seres não se detêm nos diversos
tema maior, que é elemento de um sistema ainda mais amplo e níveis, mas se movem num íntimo movimento que os transfor-
complexo, sem jamais haver fim, nem no mais nem no menos. ma a todos. Em vosso universo físico-dinâmico-psíquico, não
O princípio das unidades coletivas (em seu aspecto estático) e apenas é a esfera física dominada pela energia, e esta, por sua
dos ciclos múltiplos (em seus aspectos dinâmico e mecânico) é vez, dominada pelo espírito, mas todas juntas constituem todo
a força de coesão que sustenta a estrutura dos universos. Como a um incessante movimento de ascensão das esferas inferiores às
evolução é palingenesia, que leva do simples ao complexo, do superiores. A matéria, o universo estelar, é uma ilha que emer-
indistinto ao distinto, e multiplica os tipos, isto levaria à pulve- giu do nível das águas do universo inferior. A segunda pulsa-
36 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
ção produziu uma emersão mais alta, a energia; a terceira, uma gresso, e atraída pela imensa luz que desce do Alto, fecundan-
emersão utilíssima para vós, o espírito. Desse modo, a subs- do e incentivando a subida, avança qual maré imensa que ar-
tância se muda de forma em forma, as individuações do ser rasta todas as coisas.
elevam-se de esfera em esfera; aparecem, provenientes do in- A lei que estudamos na trajetória típica dos movimentos fe-
finito, em vosso universo concebível; desaparecem imersas no nomênicos é a lei desta evolução; é o canal através do qual se
infinito. No alto, está a luz, o conhecimento, a liberdade, a jus- move a grande corrente; é o ritmo que organiza o grande mo-
tiça, o bem, a felicidade, o paraíso; é a grande luz que se proje- vimento. Os seres não sobem ao acaso.
ta e acende em vós aquilo que, como um pressentimento, está Para atingir  é indispensável atravessar  e, antes, passar
por cima de vossos ideais e de vossas aspirações já elevadas. por . Ninguém é admitido na fase mais alta a não ser pelo
Embaixo estão as trevas, a ignorância, a escravidão, a opres- amadurecimento, depois de ter vivido “toda” a fase precedente.
são, o mal, a dor, o inferno, vosso passado, que vos enche de Só se pode avançar por degraus sucessivos. Por isto as formas
terror no presente, que, por sua vez, será amanhã o passado mais evoluídas compreendem as menos evoluídas, mas não ao
que também vos encherá de terror. contrário. Só depois de haver alcançado a plenitude da perfei-
A evolução corresponde a um conceito de libertação dos ção, que advém do fato de ter atravessado todas as possibilida-
limites que sufocam, dos liames que estrangulam, é um concei- des de uma fase, pode-se passar para a fase sucessiva.
to de expansão cada vez mais amplo, do nível físico ao dinâmi- Assim avança a grande marcha. A estrada está traçada, e
co e ao conceptual. Por isso é subida, progresso e conquista. não é possível sair dela. A evolução não é um subir confuso,
Embaixo, nos graus subfísicos, o ser está apertado em limites desordenado, caótico, é um movimento perfeitamente discipli-
ainda mais angustiosos do que são o tempo e o espaço, que nado, sem possibilidade de enganos, nem de imposições. A Lei
atormentam vossa matéria; no alto, nos graus superpsíquicos, possui um ritmo próprio, absoluto, segundo o qual só se avança
não apenas caem as barreiras de espaço e de tempo – tal como por continuidade; é indispensável existir, viver, experimentar,
já ocorre em vosso pensamento – mas desaparecem também os amadurecer, semear e recolher, em estrita concatenação de cau-
limites conceptuais, que hoje circunscrevem vossa faculdade sas e efeitos. Pode parecer-vos caótico o mundo e os seres mis-
intelectiva. O horizonte do concebível será deslocado imensa- turados e abandonados ao acaso, mas não importa uma aparente
mente para mais longe, mas ainda constitui um limite para vós, confusão espacial, pois cada ser traz em si escrita a Lei, incon-
e só podeis superá-lo pela evolução. O universo psíquico já é fundivelmente, na própria natureza. Além disso, o caminho
muito mais vasto que os outros dois, o limite tempo-espacial já evolutivo não é um caminho espacial. O princípio vale mais
desapareceu completamente! Vossa mente – é inegável – perde- que o movimento; é o princípio que lhe traça o caminho. Eis o
se em tanta amplidão. Mas deveis compreender, certamente, aspecto conceptual (mecânico) do universo, que colocamos
que o absoluto só pode ser um infinito, porque só um infinito acima de seu aspecto dinâmico, o movimento, e além de seu
pode conter e esgotar todas as possibilidades do ser. Sois cida- aspecto estático, o organismo das partes. Organismo, movimen-
dãos do universo, no entanto deveis compreender que não sois to e princípio; vede como se encontra, mesmo na trindade de
o universo; sois órgãos, e não o organismo; sois um momento aspectos de vosso universo, este conceito de progresso; há uma
do grande todo, e não a medida das coisas. Infelizmente, vosso gradação de amplitude e de perfeição nesses aspectos. Só se
concebível se restringe aos limites de vossa consciência, que só passa aos superiores depois de completar e amadurecer os infe-
se comunica com o exterior pelas portas estreitas dos vossos riores, completando e amadurecendo o próprio princípio. Por
únicos cinco sentidos. O que pode acrescentar a isso a maioria meio de uma dilatação progressiva, a expansão evolutiva trans-
das pessoas? Muito pouco para conceber o absoluto. forma-se de física em dinâmica e em conceptual. Essa evolução
O limite sensório é restrito e, diante da realidade das coisas, é a íntima respiração em que vibra todo o universo. Os seres
mantém-vos num estado que poderia chamar-se de contínua existem como individuações; movem-se segundo a evolução,
alucinação. Essa é a base de vossa pesquisa científica. Suponde seguindo o princípio que os rege. O princípio contém, em em-
em vós outros sentidos diferentes, e o mundo mudará. A distân- brião, todas as formas possíveis; é o desenho que inclui todas as
cia que separa os seres não é distância espacial, é um modo di- linhas do edifício, mesmo antes que surja a primeira pedra para
ferente de vibrar em resposta às vibrações do ambiente. Cada manifestá-lo. A cada momento ocorre a criação, alguma coisa
ser é um relativo, fechado num limitado campo conceptual. A emerge de um nada relativo, surge em realização de algo que
série infinita dos seres sentirá o universo de infinitas maneiras, estava à espera no germe. Não existe um nada absoluto. O ser
inimagináveis para vós. O relativo vos submerge, a consciência toma uma forma nova, vestindo-a como uma roupa, um meio
que se apoia na síntese sensória é um horizonte circular fecha- para subir, como um veículo que depois abandonará. O concei-
do. Não há dúvida que, para vós, é difícil sair de vossa consci- to, o tipo, já estava fixado, à espera, no princípio que o próprio
ência, superando-a, impulsionando-vos até aos mais longínquos ser enfeixava em si e do qual é a manifestação.
horizontes, conquistando novos concebíveis. Mas é isto que vos Assim, as individuações atravessam a série das formas, cu-
ajudo a fazer, a isso vos leva a evolução. Quem vive satisfeito jos projetos contêm. Cada ser contém em si também aquilo que
com a pequena visão que domina, poderá saciar-se durante al- será, a forma que deverá atingir; contém em germe o esquema
gum tempo, mas corre o risco de encontrar grandes desilusões de todo o universo; não ocupa nem é o universo inteiro, mas ne-
logo que chegue a mudança da morte. le se transforma sucessivamente. Por isso o princípio, mesmo
É verdade que muitas coisas que vos estou a dizer não po- existindo nas formas, é algo acima e independente delas. Na
deis hoje verificar com vossos meios sensórios. Mas a conver- realidade, o tempo infinito permitiu que o ser ocupasse formas
gência de todos os fenômenos que conheceis para esses concei- infinitas; desse modo, o futuro, tal como o passado, está efeti-
tos, vos faz confiar que eles correspondem também às realida- vamente presente no todo. Não o está no relativo, onde a forma
des que atualmente não podeis controlar. Tudo está aqui sinteti- é isolada e aguarda novos desenvolvimentos. Mas ocorre o de-
zado num sistema orgânico completo e compacto. Por que o senvolvimento, e os universos futuros que atingireis e atraves-
desconhecido deveria mudar de caminho e fazer exceções num sareis são dados, existem, foram vividos, são o passado para
organismo tão perfeito? Quando eu tratar das normas de vossa outros seres, ou seja, são vistos de um ponto diferente, do qual
vida, esta massa enorme de pensamento que estou acumulando o todo olha para si mesmo. Essa relatividade de posições, de
constituirá um pedestal que não podereis mais derrubar. passado e de futuro, de criação e de nada, desaparece no abso-
Dessa forma, a evolução, acossada por baixo pela matu- luto, e todas as criações existem no infinito e na eternidade. Só
ração dos universos inferiores, ávidos de expansão e de pro- o relativo, que se transforma, possui tempo, isto é, ritmo evolu-
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 37
tivo. A Lei, sem limites, está à espera no eterno. O tipo preexis- ração evolutiva de cada unidade é dada pela respiração evo-
te ao ser que o atravessa, as coisas vão e vêm. lutiva de todas as unidades menores. O vórtice maior progri-
Aí está a visão bíblica da escada de Jacó. Os seres sobem e de por saturação dos vórtices menores que o constituem.
descem. Um chega, outro parte, outro se detém. Somente en- Pensai! O progresso de vossa consciência vive pelo con-
tre graus afins é possível a passagem por continuidade. Exis- curso e pelo progresso de todos os ciclos menores: eletrônico,
tem universos contíguos ao vosso, que o precedem ou o supe- atômico, molecular, celular. Antes de ser um vórtice psíquico,
ram; é apenas isso que torna possível a passagem ao longo da é um vórtice de metabolismo orgânico, elétrico, nervoso, ce-
cadeia. Contiguidade, mas não em sentido espacial, mas de rebral, psíquico e, finalmente, abstrato. Todo o passado está
afinidade, de semelhança de caracteres, de comunhão de qua- presente, indelevelmente fixado por todos os retornos involu-
lidades, de trabalho, de possibilidades na jornada evolutiva. tivos. Todo o futuro está presente, porque o presente o contém
Se, do ponto de vista estático, cada universo é um organismo todo, como causa, como princípio, como desenvolvimento,
completo em si mesmo, com a evolução todos os seres se co- concentrado em estado latente. Se esta derivação do mais de-
municam e se deslocam ao longo dele, de um infinito a outro. terminada pelo menos pode parecer-vos absurda, é apenas
Nas fases inferiores à vossa, isto é,  e , os seres sobem e porque não podeis sair das fases de vosso universo, que cons-
descem de acordo com o abrir-se e fechar-se da espiral, ou de titui todo o vosso concebível. O mais é apenas a explosão de
acordo com a linha quebrada do diagrama da fig. 2; isso acon- um mundo fechado em si mesmo, mas que já continha tudo
tece por um princípio de necessidade, que não admite escolha. em potencial. Evolução significa expansão de vórtices, que
Trata-se de uma maturação fatal, que o ser segue inconscien- são depósitos de latências, tal como seria um bloco de dinami-
temente. Mas, em vosso nível , aparece um “quid” novo, li- te. Não se trata de mais ou de menos substância; o absoluto,
berta-se um princípio mais amplo, que se chama livre- que não tem medida, não possui quantidade. Trata-se de trans-
arbítrio: a livre escolha, que paralelamente nasce quando sur- formação, de criação no relativo. É a autoelaboração que traz
ge a consciência. Podeis acompanhar a evolução ou não à luz  de  e  de . Nem por isso digais que o espírito é um
acompanhá-la, e fazê-la à velocidade que quiserdes. É a liber- produto da matéria. Dizei:  se eleva até , revelando o prin-
dade que preludia a fase +x, em que a consciência humana cípio que continha latente em sua profundidade.
atingirá novo vértice e conquistará nova visão do absoluto. Pensai! A respiração do átomo dada pela respiração do uni-
Desse modo, vosso mundo humano contém  e é atraves- verso; a respiração do universo dada pela respiração do átomo;
sado por seres que sobem e descem; seres que, provindos das uma criação sem fim, sem limites, em que tempo e espaço são
formas inferiores de vida, mais próximas de , avançam cus- apenas propriedades de uma fase, além da qual desaparecem;
tosamente, trabalhando na criação do próprio eu espiritual; ou onde o relativo limitado, imperfeito, mas em evolução e inexau-
então, seres que, tendo decaído das formas superiores de rível no infinito, forma e iguala ao absoluto. Dai a tudo isso
consciência, abandonam-se à ruína, abusando do poder con- uma concentricidade, uma coexistência, que não pode ser ex-
quistado. Uns retrocedem, outros avançam; uns acumulam va- pressa pela forma linear da palavra, e tereis uma imagem apro-
lores, outros os perdem. Existem ainda os que param, indolen- ximada do universo em sua complexidade orgânica, em sua po-
tes, preferindo o ócio, ao invés de se esforçarem com fadiga tência dinâmica, em sua vastidão conceptual.
pelo próprio progresso. Daí a grande variedade de tipos e de
raças no mundo. Essa é a substância de vossas vidas. Sois XXX. PALINGENESIA (ETERNO RETORNO)
sombras que caminham, consciências em construção ou em
demolição. Estais todos a caminho, cada um grita diferente- Que vem a ser, neste sistema, o vosso conceito de Divinda-
mente, com voz da própria alma, luta, agita-se, semeia e co- de? Compreendei que Deus não pode ser algo além e exterior à
lhe. Livremente, com as próprias ações, lança a semente da criação, ou distinto dela; que só o homem, que está no relativo,
qual nascerá aquilo que, mais tarde, constituirá seu inexorá- pode acrescentar a si, ou devenir além de si, não Deus, que é o
vel destino. Em vosso nível, é livre a escolha dos atos e dos absoluto. Vossa concepção de um Deus que cria fora e além de
caminhos; livre a colocação das causas; isso vos é concedido si, acrescentando algo a si mesmo, é absurda concepção antro-
por vossa maturidade de habitantes da fase . No entanto não pomórfica, é querer reduzir o absoluto ao relativo. Não pode
é livre a escolha da série de reações e dos efeitos, pois esta é haver criação no absoluto. Só no relativo pode haver nascimen-
inexoravelmente imposta pela Lei. Cada escolha vos prende to e transformação. O absoluto simplesmente “é”. Não queirais
ou liberta. O poder de escolher e de dominar aumenta com a restringir a Divindade aos limites de vossa razão; não vos ele-
capacidade e com o merecimento, que lhe garantem o bom veis a juízes e à medida do todo; não projeteis no infinito as pe-
uso. Dessa forma, o determinismo da matéria gradualmente queninas imagens de vosso finito; não ponhais limites ao abso-
evolui para o livre-arbítrio da consciência, à proporção que luto. Em sua essência, Deus está além do universo de vossa
esta se desenvolve. O livre-arbítrio não é, como em vossas fi- consciência, além dos limites de vosso concebível. É irreverên-
losofias, um fato constante e absoluto, em insolúvel conflito cia aviltar esse conceito para querer compreendê-Lo. Consti-
com o determinismo das leis da vida, mas é um fato progres- tuindo-vos em medida das coisas, colocais como sobrenatural e
sivo e relativo aos diversos níveis que cada um atingiu. Por is- miraculoso qualquer fato novo para vossas sensações, tudo o
so, apesar de vossa liberdade, o traçado da evolução permane- que exorbite do que sabeis e conheceis. Mas a natureza é ex-
ce inviolável. Essa liberdade é, como vós, relativa, e vossas pressão divina, e não pode haver nada acima dela, nenhum
ações só podem afetar o que se refere a vós mesmos. acréscimo, nenhuma exceção, nenhuma correção à Lei.
Eis, pois, em grandes linhas, o imenso quadro da criação. Sobrenatural e milagre são conceitos absurdos diante do ab-
Ciclo infinito, de fórmulas abertas e comunicantes, progre- soluto, aceitáveis apenas em vosso relativo, aptos a exprimir
dindo das unidades mínimas às máximas, mediante uma ela- vosso assombro diante do que é novo para vós e nada mais. Ne-
boração que opera, em todas as profundidades do ser, o pro- les está contida a ideia de limite e de seu superamento; concei-
gresso da espiral maior, que é movido pelo progresso de to- tos inaplicáveis à Divindade. Esta é superior a qualquer prodí-
das as espirais menores, até ao infinito. E, no âmbito de ca- gio e o exclui como exceção, como retorno ao que já está feito,
da ciclo, uma pulsante respiração evolutiva que se inverte e como retoque ou arrependimento e, sobretudo, como vontade
se equilibra num período involutivo, a fim de retomar dessa de desordem no equilíbrio da lei estabelecida. Limitai a vós
involução uma respiração mais ampla. Isso se dá desde o in- mesmos esses conceitos e não vos julgueis centro do universo.
finitamente simples até ao infinitamente complexo, e a respi- Guardai para vós os conceitos de tempo, de espaço, de quantida-
38 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
de, de medida, de movimento, de perfectibilidade. Não deveis concerto do universo; não mais – como em tantas filosofias –
medir a Divindade como medis a vós mesmos; não tenteis defi- uma ideia particular elevada a sistema. Como um verdadeiro edi-
ni-La, muito menos com aquilo que serve para definir-vos a vós fício erguido sobre fundamentos vastos como o infinito, o ho-
mesmos, por multiplicação e expansão de vosso concebível. Se mem é considerado em relação às leis da vida, e estas em relação
quereis somar ao infinito vossos superlativos, dizei ao infinito: à lei do todo. Uma vez completado o tratado, não será mais lícito,
isto ainda não é Deus. Seja Deus para vós uma direção, uma racionalmente, ao homem, isolar-se em seu egoísmo, indiferente
aspiração, uma tendência; seja para vós a meta. Se Deus está no ou agressivo, pois, se tudo é organismo, também a coletividade
infinito – inconcebível para vós em sua essência – nosso finito não pode ser senão um organismo. Até mesmo em sua forma, es-
se avizinha Dele por aproximações conceptuais progressivas. ta teleologia que estou desenvolvendo corresponde ao princípio
Vede como, na Terra, cada um adora a representação máxima orgânico e monístico do universo. Observai como é pouco o que
da Divindade que pode conceber e como, no tempo, essa apro- estou demolindo e como, ao invés, cada palavra tem sua função
ximação se dilata. Do politeísmo ao monoteísmo e ao monismo, construtiva; observai como é pouco o que nego, diante de tudo o
verificais o progresso de vossa concepção, que é proporcional à que afirmo. Evito agressões e destruições; fujo de vossas inúteis
vossa força intelectiva e progride com ela. A luz aparece mais divisões, como materialismo e espiritualismo, positivismo e idea-
intensa à proporção que o olhar se torna mais penetrante. O lismo, ciência e fé. Divergências transitórias vos atormentaram
mistério subsiste, mas empurrado cada vez para mais longín- nos últimos decênios, mas eram necessárias para vos preparar a
quos horizontes. Por mais que este se dilate, haverá sempre um maturação de hoje, que é o momento da fusão e da compreensão
horizonte mais afastado para atingir. Ao verificar vossa relati- entre uma ciência que se tornou menos dogmática e soberba,
vidade, que progride, eu não destruo o mistério, mas o enqua- mais sábia em sua atenuada pressa de conclusões e deduções, e
dro no todo e dele dou a justificação racional, torno-o um mis- uma fé mais iluminada e consciente. Eu sou tanto uma quanto a
tério relativo, que só existe pela limitação de vossas capacida- outra. Meu olhar é bastante amplo para compreender, ao mesmo
des intelectivas, que recua continuamente diante da luz, em fun- tempo, os dois extremos: o princípio da matéria e o princípio do
ção do caminho das verdades progressivas; um mistério fecha- espírito. Esta minha apologética da obra divina é novo benefí-
do dentro dos limites que a evolução ultrapassa dia a dia. Se a cio que vos chega do Alto. É uma demonstração que presume
Divindade é um princípio que exorbita vossos limites concep- que sois conscientes, adultos e maduros. Vossa responsabili-
tuais, ela está lá vos aguardando e, para revelar-se, espera vos- dade moral crescerá como nunca, se ainda quiserdes insistir
sa maturação. Hoje, que finalmente vossa mente está amadure- nas velhas sendas da ignorância ou da ferocidade. Eu sei! O
cendo, não é mais lícito, como no passado, “reduzir” aquele misoneísmo atávico de vossa orientação psicológica é imensa
conceito a proporções antropomórficas. Hoje, eu já trouxe ao barreira, massa negativa e passiva, que me resiste com sua
vosso relativo nova e maior aproximação; projetei em vossas inércia. Qualquer mente humana se despedaçaria, sem movê-
mentes a maior imagem que as humanidades futuras terão de la, contra essa muralha gigantesca. Mas meu pensamento é
Deus. Este é um canto mais alto de sua glória. Isto não é irreli- um fulgor que abalará as mentes. Se possuís toda a resistência
giosidade, mas, ao invés, pela maior exaltação de Deus, é reli- da matéria inerte, eu possuo todo o poder do pensamento di-
giosidade mais profunda. Não procureis Deus apenas fora de nâmico, que desce relampejando do Alto. Vossa psicologia é
vós, tornando-O concreto em imagens e expressões de matéria, um fenômeno com sua própria velocidade e massa, lançado ao
mas O “senti” sobretudo em sua forma de maior poder, dentro longo de uma trajetória que resiste a todo desvio. Mas eu re-
de vós, na ideia abstrata, estendendo os braços para o universo presento um princípio superior a esse fenômeno e intervenho
do espírito, que vos aguarda. no momento em que, por sua maturação, a Lei impõe uma
mudança de rota. Chegou o momento, e vós subireis.
XXXI. SIGNIFICADO TELEOLÓGICO DO TRATADO. Cada vez percebeis melhor que o centro deste pensamento
PESQUISA POR INTUIÇÃO que se vai desenvolvendo não é, nem pode ser, de vosso mundo;
é uma síntese tão ampla, poderosa e exaustiva, que jamais foi
Sob minha direção, recomeçai comigo vossa viagem, mais proferida na Terra. Toda essa massa conceptual que tendes sob os
que dantesca, através do universo. A estrada é longa, o pano- olhos, move-se no infinito – seu ponto de partida – e daí desce
rama é amplo, e vosso pensamento corre o risco de perder-se. até ao vosso concebível. Para quem a procura, esta é a prova ín-
Desejáveis provas e demonstrações; aqui as tendes em profu- tima, presente em cada página, da origem transcendente da obra,
são. Segui-me, e minha argumentação cerrada e a maravilhosa prova real, inerente ao tratado que a acompanha; prova mais sóli-
correspondência de toda a fenomenologia existente com o da que todas as exteriores que procurais nas qualidades do ins-
princípio único que vos expus, levar-vos-á por fim – logo que trumento e nas modalidades de transmissão e recepção. O ângulo
tivermos atingido as conclusões de ordem moral e social – a visual e a amplidão de perspectiva desta síntese estão absoluta-
enfrentar este dilema: ou admitir todo o sistema, ou nada. Se o mente acima de todas as sínteses humanas ao vosso alcance. No
sistema corresponde à verdade em tantos fenômenos conheci- entanto esforço-me num contínuo trabalho de adaptação, a fim de
dos, deve também corresponder aos fenômenos que não co- reduzir à vossa capacidade estes conceitos, próprios de planos
nheceis nem podeis controlar; admitir e seguir os princípios mais altos. Sem este trabalho, o tratado teria de desenvolver-se,
de uma moral superior – parte integrante do sistema – não se- em grande parte, fora de vosso concebível, por considerar reali-
rá mais questão de fé, mas de inteligência. dades superiores, inimagináveis para vós.
Depois disto, todo homem dotado de inteligência terá o dever Este tratado satisfaz plenamente à necessidade de vossa ci-
de honestidade e justiça. Diante da demonstração evidente que ência atual: reduzir a imensa variedade de fenômenos a um
coloca a questão moral na base do dilema: compreender ou não princípio único. Vedes todas as minhas argumentações conver-
compreender, não é mais lícito duvidar e fugir. O malvado só girem para esse monismo sintético, que vosso intelecto busca e
poderá ser inconsciente ou de má-fé. Não se poderá mais discutir tem necessidade. Minha afirmação diz: unidade de princípio em
uma ciência da vida que está baseada numa concepção teleológi- todo o universo, unidade na complexidade orgânica, unidade no
ca que corresponde aos fatos e que está em relação harmônica transformismo evolutivo. Em sua grandiosa simplicidade, esta
com o desenvolvimento de todos os fenômenos, e não mais em ideia é a mais poderosa afirmação de vosso século. Esta ideia,
construções do todo isolado do resto do mundo fenomênico, in- tremendamente dinâmica e fecunda, é suficiente para criar uma
demonstráveis, frequentemente uma nota dissonante no grande nova civilização. O conceito de lei, que cada palavra minha rea-
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 39
firma, é ordem, equilíbrio, afirmação; põe em fuga todos os nii- em suas linhas fundamentais, arriscaria perder sua unidade em
lismos, pessimismos e ateísmos, a ideia da cegueira do acaso, da infinitas ramificações colaterais. Cada conceito estende-se como
atrocidade do sofrimento, da desordem e da injustiça na criação; uma esfera, em todas as direções, enquanto vossa consciência só
ela vos torna melhores e vos eleva a cidadãos de um mundo mai- pode perceber um de cada vez. Por brevidade, temos que esco-
or, conscientes das leis que o dirigem. Todavia tal síntese não lher os principais. Minha consciência volumétrica – isto é, de ter-
podia ser alcançada por mentes imersas no relativo, mas apenas ceira dimensão – num plano superior à vossa, de superfície (se-
de um ponto de vista que, estando fora da humanidade, pudesse, gunda dimensão), como vos explicarei, vê por síntese, ao passo
numa visão de conjunto, contemplá-la toda, ou seja, não podia que vós vedes por análise. O finito, de que sois feitos, justifica
chegar a vós senão provindo de um plano mental superior. As esses retornos a que sois obrigados para examinar sucessivamen-
páginas que se seguem justificarão estas afirmações, dando-vos te a realidade em seus aspectos (que nós vemos em síntese), a fim
novas aproximações do superconcebível que vos ultrapassa. de penetrar, por degraus, além da forma que está na superfície e
Colocastes vossos pontos fixos na terra, quando, ao invés, recobre a essência que está na profundidade.
eles estão no céu. Os fatos de onde partis, o método da observa- O estudo do aspecto dinâmico da fase  vos mostrou, na es-
ção e o instrumento da razão vos fecham num círculo, sem pos- tequiogênese, o nascimento, a evolução e a morte da matéria.
sibilidade de saída. Jamais discutistes vós mesmos e nem pensas- Caiu, desse modo, vosso dogma científico da indestrutibilidade
tes que se devesse superar vosso instrumento – esta é a primeira da matéria. Compreendidos os conceitos de nascimento da ma-
coisa a fazer. Eu quebro os grilhões e escapo do círculo em que téria por concentração dinâmica; de sua evolução química; de
vos haviam trancado vossa ciência e vossa filosofia. Era preciso sua morte por desagregação atômica (radioatividade); vejamos,
quebrar de uma vez por todas esse anel: análise e síntese, síntese agora, como se comporta essa matéria na realidade do universo
e análise, e encontrar um ponto de partida fora de vosso relativo. astronômico, nos imensos amontoados de estrelas.
Um sistema filosófico ou científico pode ser uma concatenação e Um exemplo no campo físico poderia ser trazido como ilus-
uma construção perfeitas do ponto de vista lógico e matemático. tração do princípio do desenvolvimento cíclico dos fenômenos,
Mas o ponto fixo, a base de onde partis, está sempre lá, no relati- com a volta ao ponto de partida, mas com progressivo desloca-
vo; por isso vossas construções são em tão grande número e tão mento do sistema: é o que encontrais na trajetória traçada pelo
diferentes, todas prontas a ruir logo que sejam deslocadas desse caminho da Terra nos espaços. Girando em redor do Sol num
ponto. Muitas vezes, vos isolais numa unilateralidade de concep- plano com os outros planetas, em sua mesma direção – enquan-
ção, elevando-vos, vós mesmos, a sistema. to o Sol, por translação, afasta-se das regiões de Sírius para as
Muitas vezes sabeis pelo poder da mente, mas, depois, vosso de Vega da Lira e para a constelação de Hércules – a Terra des-
coração não segue junto. De que serve saber, se não sabeis amar? creve exatamente uma trajetória que, mesmo retornando sempre
Separais pesquisa e paixão, mas o homem é síntese feita de luz e sobre si mesma, jamais volta ao mesmo ponto de partida no es-
calor. Além disso, como pudestes crer possível chegar sozinhos – paço. Isso acontece porque o movimento solar de translação faz
por força de análises e hipóteses, esflorando os fenômenos com a elipse planetária desenvolver-se em espiral, de acordo com a
vossos sentidos limitados – a alguma coisa que ultrapassasse uma direção do deslocamento do Sol.
síntese parcial, isto é, à síntese máxima? O que tendes sob os Entretanto, observemos mais de perto um fenômeno muito
olhos? Como pode caber em vosso pequeno mundo terreno todo mais amplo: a construção de vosso universo estelar. Já ace-
o mundo fenomênico? Entretanto tudo isto eu resolvo, mas mu- namos a isso a propósito do desenvolvimento do vórtice das
dando de sistema; arraso o método indutivo, para substituí-lo pelo nebulosas. Esse simples aceno merece mais profundo exame,
método intuitivo8. Mas nem por isso deixo de dirigir-me e de fi- agora que completamos o estudo da espiral. Vosso universo
car aderente à realidade, verdadeira base de qualquer filosofia. estelar é constituído pela Via Láctea, que, no plano físico, é a
Eu vos digo: as realidades mais poderosas estão dentro de vós. exata expressão do princípio da espiral. Muitas dúvidas vos
Olhai o mundo não com os olhos do corpo, mas com os olhos da atormentaram, e muitas hipóteses aventastes para explicar a
alma. Os métodos dos quais tanto se ocupam certas filosofias, os construção e a origem dessa faixa estelar que envolve os dois
métodos clássicos de pesquisa que vos parecem inabaláveis, já hemisférios de vossa visão celeste. Não formulo hipóteses,
deram até agora todo o seu rendimento; são meios superados, que mas vos transmito, como o vejo, o estado dos fatos e vos indi-
não vos farão mais progredir um passo sequer. carei de que modo, em parte, podereis controlá-los.
A matéria, pela lei das unidades coletivas, se vos apre-
XXXII. GÊNESE DO UNIVERSO ESTELAR. senta em amontoados geológicos e siderais. Todo o vosso
AS NEBULOSAS – ASTROQUÍMICA E universo físico é constituído pela Via Láctea, um sistema
ESPECTROSCOPIA completo e limitado, a cujo diâmetro podeis dar o valor de
cerca de meio milhão de anos-luz. O Sol, com a corte de
Retomemos agora alguns conceitos já ventilados e conti- seus planetas, está situado no sistema. A Via Láctea é, exa-
nuemos seu desenvolvimento. Desse modo, completaremos a tamente, um vórtice sideral em evolução.
exposição sumária dos princípios e tornaremos a observá-los Demonstraremos esta afirmação. O grande vórtice da Via
na realidade fenomênica; observaremos os fatos sempre sob Láctea é dado no seu devenir – pela lei dos ciclos múltiplos –
novos aspectos. por vórtices siderais menores, que vedes e conheceis, e nos
Retomarei por um momento a fase  em seu aspecto estáti- quais podeis encontrar o caso maior. Os telescópios vos põem
co, descrevendo-vos a construção do universo físico; uma pau- sob os olhos várias nebulosas, as da Constelação da Balança, de
sa no campo astronômico, para daí tomar impulso para concei- Andrômeda, a nebulosa em espiral da Constelação do Cão, ne-
tos mais profundos. Dir-vos-ei coisas que não podia expor antes bulosa regular, em que a linha da espiral está claramente visí-
de amadurecer tantos conceitos. Esta minha exposição cíclica vel. O vórtice estelar é, por vezes, como neste caso, orientado
progressiva que adoto, corresponde à maturação de vossa psi- de maneira a apresentar-se de frente; às vezes, obliquamente,
que e à necessidade de vos expor gradualmente a grande visão, aparecendo como uma oval achatada, em perspectiva, como na
a fim de que a assimileis, ao invés de nela vos perderdes. Cada nebulosa de Andrômeda; às vezes, de perfil, em sua espessura –
conceito, se não for esboçado antes, numa primeira fase, apenas neste caso, assume o aspecto da seção de uma lente, e as espi-
rais, ao sobreporem-se, ficam ocultas ao olhar. Vosso sistema
8
Esse problema do método é aprofundado no volume Ascese Mística – solar foi uma nebulosa que agora chegou à maturidade; os pla-
Parte I: “O Fenômeno”. netas, cuja verdadeira órbita é uma espiral com deslocamentos
40 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
mínimos, recairiam no Sol se não se desagregassem pela radio- pois é exatamente nela que encontrais as estrelas em sua pri-
atividade. A Via Láctea é apenas imensa nebulosa espiralóide meira fase de evolução. As vermelhas, as mais velhas, encon-
em processo de maturação. Vosso sistema solar, como as cita- tram-se afastadas das regiões mais jovens da Via Láctea. Em
das nebulosas, faz parte dela. No âmbito da espiral maior de- outras palavras: existe um processo paralelo de maturação da
senvolvem-se as espirais siderais menores. Podeis representar a matéria e de afastamento do centro, porque as mutações quími-
Via Láctea como imenso vórtice, semelhante, embora maior, ao cas, o resfriamento, a condensação e o envelhecimento signifi-
da nebulosa da Constelação do Cão. O sistema solar está imerso cam evolução, esta corresponde a um processo de abertura do
na espessura do vórtice, que, portanto, só aparece visível em sistema, que vai do centro à periferia.
sua seção, mas que, como seção, vos envolve nos dois hemisfé- Acrescentemos outro fato: as velocidades siderais, partin-
rios e, por isso, aparece numa faixa em todo o redor. do de uma velocidade nula para as nebulosas irregulares, au-
Eis os fatos que vos demonstram essa afirmação: é no plano mentam gradualmente nas estrelas de hélio, de hidrogênio,
equatorial da Via Láctea que se comprimem os amontoados das amarelas, vermelhas, planetárias. Isso vos diz que as estrelas,
estrelas, enquanto nos polos a matéria está em estado de rarefa- durante o processo de evolução assinalado pelo tempo, proje-
ção; as estrelas multiplicam-se à proporção que vos avizinhais tam-se do centro para a periferia. Acrescentai a isto tudo o
da Via Láctea. O sistema solar está situado mais para o centro exemplo do tipo de desenvolvimento em espiral visível nas
da espiral, centro que lhe fica de lado, no plano de achatamento nebulosas menores, que reproduzem, em proporções mais re-
e do desenvolvimento do vórtice. A distribuição diferente das duzidas, o sistema maior, e tereis um acúmulo de fatos con-
massas siderais em vosso céu é causada exatamente pela visão vergentes para o mesmo princípio, que afirmei ser a base da
que conseguis, quer na maior seção horizontal, quer na menor construção orgânica de vosso universo estelar.
seção da direção vertical, do esferóide achatado que representa
o volume do sistema espiralóide galáctico. XXXIII. LIMITES ESPACIAIS E
Mas há fatos mais convincentes. A espectroscopia permite LIMITES EVOLUTIVOS DO UNIVERSO
estabelecer uma espécie de astroquímica, que vos informa a
respeito da composição das várias estrelas. Com a análise das Agora, que tendes um conceito da conformação de vosso
radiações estelares, também podeis estabelecer sua temperatura, universo e de seu processo evolutivo, ultrapassemos seus li-
porque, à proporção que esta aumenta, vedes aparecer no espec- mites, tanto em sentido espacial, permanecendo no plano fí-
tro as várias cores, do vermelho ao violeta, que é o último a sico, quanto no sentido evolutivo, isto é, relativamente às fa-
aparecer. O ultravioleta revela as temperaturas mais altas. ses já referidas, que precedem e superam esse plano. Aqui, a
Quanto mais o espectro se estende nessa área, mais quente é a astronomia atinge a metafísica. Pensai que este universo,
estrela observada. Então o espectro vos revela, concomitante- imenso e tão maravilhosamente complexo, é o mais simples,
mente, a constituição química e a temperatura. Baseando-vos enquanto pode ser perfeitamente concebível para vós, entre
nestes critérios, torna-se possível uma classificação das estrelas os universos nos quais este se transforma por evolução. É
quanto ao tipo, e uma graduação delas também em relação a fácil ultrapassá-lo no sentido espacial; mais difícil o é em
seu grau de condensação, daí sua idade no processo evolutivo. sentido evolutivo, porque aprofundar este estudo significa,
Uma primeira série de estrelas é composta de gases incandes- para vós, invadir o campo do inconcebível.
centes, como o hidrogênio, o hélio e o nebúlio (que ainda des- No sentido espacial, vosso universo estelar, considerado iso-
conheceis). Deste último são as estrelas mais quentes. A maté- ladamente, é um sistema finito; é imenso, mas pode ser medido;
ria está no estado gasoso, a massa estelar é uma nebulosa ainda e tudo que se pode medir é finito. Vossa mente o domina por
no seu início. Estas são as estrelas mais jovens, de cor prevalen- completo, porque, sendo ela de um plano superior, pode ultrapas-
temente azul, e representam a fase inicial da evolução sideral sar qualquer limite espacial. Se podeis, num corpo tão frágil e
do vórtice galáctico. Essas estrelas estão todas situadas nas vi- pequeno, voar assim conceptualmente, tanto que podeis compre-
zinhanças imediatas da Via Láctea. Continua a gradação e ender o universo físico, o qual jamais poderíeis percorrer todo
abrange estrelas de hélio, sempre quentes e jovens, sempre pró- materialmente, isso é devido ao fato de que existis numa fase
ximas da Via Láctea; depois as estrelas de hidrogênio, em que evolutiva superior. Verificais, aqui, como a diferença de nível dá
se acentua o hidrogênio e o hélio tende a desaparecer. Embora o poder de dominar e compreender o inferior, mas não o contrá-
nas proximidades da Via Láctea, elas começam a espalhar-se rio. Os limites de vosso concebível, todavia, são dados na direção
pelo céu. Menos jovens, mais avançadas evolutivamente que da evolução, isto é, pelas fases ou universos mais afastados ou
as precedentes, em via de condensação, emanam luz branca. A superiores do vosso. No sentido espacial, a lei das unidades cole-
essa série de estrelas brancas (a que pertence Sírius) segue-se tivas e a lei dos ciclos múltiplos indicam-vos a continuação do
a das estrelas de luz amarela, nas quais os metais substituem fenômeno com um conceito simples. Assim como a unidade do
os gases, mas sempre em temperaturas elevadíssimas, embora universo compõe-se de unidades menores, também ele constitui o
inferiores às precedentes. Estas estão espalhadas ainda mais componente de unidades maiores; assim como a espiral maior é
uniformemente pelo firmamento e se acham em processo de produzida pelas menores, também ela se torna a determinante de
solidificação. Entre elas situa-se vosso sol. Ele encontra-se espirais maiores, até ao infinito. Encontraremos um limite, mas
entre as estrelas que estão envelhecendo, esperando a morte no transformismo evolutivo, não no espaço. Fisicamente, o vórti-
por extinção. Suas manchas já as anunciam e tornar-se-ão ca- ce de vosso universo é apenas um da infinita série de vórtices ou
da vez mais extensas e estáveis, até ao fim. A última série é a nebulosas em processo de desenvolvimento ou de involução; eles
das estrelas vermelhas, com uma temperatura que chega a um se combinam com este num vórtice ainda maior, até ao infinito.
resfriamento avançado, nas quais os gases desaparecem para Não podeis vê-los todos, porque não têm a vibração da luz. Vos-
dar lugar aos metais; são as estrelas mais velhas, distribuídas so universo físico move-se todo em velocidade vertiginosa em
quase uniformemente pelo espaço. relação a outros longínquos universos semelhantes, a fim de fazer
Entretanto outros fatos há para observar e que se desenvol- parte, com eles, de sistemas ainda maiores. Que isto não vos sur-
vem paralelamente aos quatro já observados: constituição quí- preenda! Não encontrais o mesmo princípio no vórtice eletrôni-
mica, temperatura, condensação, idade. As estrelas afastam-se co? Não se trata senão de uma pequena matéria e uma grande
da Via Láctea à proporção que envelhecem. Bastaria isto, para matéria; do átomo ao universo e além dele, de um polo ao outro
demonstrar que na Via Láctea está o centro genético do sistema, do infinito, o princípio é idêntico.
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 41
Procuremos, todavia, ultrapassar os verdadeiros limites do do concebível. A essa altura, a ciência, que se tornara metafísi-
sistema, que não encontrareis mais no mesmo plano físico, em- ca, transforma-se em mística visão e, expandindo-se num cam-
bora vossa mente os supere ao infinito: os limites dados pelo po de completa abstração, presume não mais uma psicologia
transformismo evolutivo. Movendo-se sempre na mesma direção racional, mas uma psicologia de intuição. Falar-vos-ei, agora,
que o mundo físico, encontrareis sempre o mesmo princípio, sem do nascimento e da morte do tempo, do nascimento e da morte
mudanças. Para ultrapassá-lo e sair dele, é indispensável mover- do espaço, do aparecimento e desaparecimento – por evolução
se em outra direção: a da evolução. A abertura do vórtice sideral e involução – dessas diversas dimensões em vosso relativo. Tu-
é mais que um processo mecânico: é aquela maturação íntima da do o que está no relativo tem um princípio e um fim e, portanto,
matéria, que vimos na estequiogênese. O vórtice da nebulosa deve nascer e morrer. Esforçai-vos, agora, para superar esse re-
nasce e morre aí mesmo, onde a matéria nasce e morre, isto é, lativo e para elevar vossa concepção ao infinito.
começa e termina lá onde a Substância inicia e termina seu ciclo
de fase física. Em outras palavras: a matéria nasce no centro da XXXIV. QUARTA DIMENSÃO E RELATIVIDADE
Via Láctea e morre na periferia. Observai a correspondência com
os princípios expostos acima! Observai como o vórtice maior si- Inicio com a vossa bem recente teoria científica, à qual me li-
deral abre-se pelo desenvolvimento dos vórtices menores, plane- go como a um ponto de partida: a teoria da relatividade de Eins-
tário etc., até ao atômico. Observai que, da mesma forma que o tein. Presumo que a conheceis, assim como aos conceitos sobre a
centro genético espacial (aspecto estático da fase  é o núcleo quarta dimensão. Os critérios que adotastes para criar uma quarta
da nebulosa de vosso universo, assim também o centro genético dimensão do espaço, permanecendo no espaço, estão errados. A
fenomênico (aspecto dinâmico de ) é o hidrogênio, elemento- dimensão sucessiva à terceira espacial não está no espaço. O
base da série estequiogenética, o que constitui justamente as es- quarto termo sucessivo aos três da unidade trina só pode encon-
trelas jovens, quentes, gasosas, situadas na Via Láctea, e as trar-se na trindade sucessiva. Isto se dá em virtude da lei pela
grandes massas gasosas que formam a substância-mãe das es- qual o universo é individualizado por unidades tríplices, e não
trelas. Se imaginardes que esse processo significa o desenvol- quádruplas. Portanto é absurdo o conceito da continuação do de-
vimento de um princípio (aspecto mecânico ou conceptual do senvolvimento tridimensional do espaço – que vai do ponto adi-
universo), podereis “sentir” agora a fase  concomitante e uni- mensional à linha (primeira dimensão), à superfície (segunda di-
tariamente, na trindade de seus aspectos. mensão) e ao volume (terceira dimensão) – num hipervolume.
Vimos que as nebulosas nascem, como fase , pela con- Trata-se de um absurdo imaginoso essa construção ideal de uma
centração dinâmica da fase , e que o ponto máximo do fe- quadridimensão octaedróide e dos outros poliedróides do hipe-
nômeno não é dado apenas pelo máximo de abertura espacial respaço. Aumentar um volume significa permanecer no volume,
do vórtice provocado pelo impulso originário, mas ainda pela ainda que o multipliquemos por ele mesmo. Por isso não obtives-
evolução da matéria, pela qual esta, depois de atravessar toda tes resultado prático até agora, nem mesmo pela representação
a fase , desagrega-se e torna a assumir a forma de energia. hiperestereoscópica, nem pela conceptual. A pretensa geometria
Depois, dissemos como a energia se canaliza, por sua vez, em a quatro, cinco, n dimensões, que imaginastes, é uma extensão da
correntes que, de acordo com um vórtice centrípeto, a guiam análise algébrica, e não uma geometria propriamente dita. Trata-
de novo para o centro (fase inversa do ciclo, período de desci- se de uma pseudogeometria, mera construção abstrata, com for-
da involutiva), no qual, por concentração dinâmica, transfor- mas inimagináveis e inexprimíveis na realidade geométrica.
mando-se de novo em , formará o núcleo de novo vórtice Como todo universo é trifásico, é também tridimensional.
centrífugo, de nova nebulosa espiralóide galáctica. Chegados à terceira dimensão, é necessário, para progredir – em
Chegamos, pois, a este fato: o limite de abertura do vórtice virtude do princípio da unidade trina – iniciar nova série tridi-
sideral não é encontrado no plano físico, mas sim no ponto em mensional, pois o período precedente exauriu-se; é indispensável
que este toca – não no sentido espacial, mas em sentido evolutivo sair do ciclo precedente para começar outro novo. Chegaremos
– um outro plano, onde o vórtice físico se inverte num vórtice di- depois ao conceito da evolução das dimensões, dilatando a con-
nâmico de regresso. A espiral, como vimos no diagrama da fig.4, cepção einsteiniana da relatividade, quer estendendo-a a todos os
fecha-se, mas o retorno do vórtice sideral é de natureza dinâmi- fenômenos, quer aprofundando seu conceito.
ca; a reabsorção centrípeta, que contrabalança a precedente ex- A concepção tridimensional do espaço euclidiano esgota a
pansão, ocorre em fase evolutiva diferente. O que retorna ao primeira unidade trina e, com isso, exclui uma quarta dimensão
centro é a forma energia, e não a forma matéria, na qual se tinha no espaço. Mas a sucessão das dimensões já contém o conceito
afastado. As correntes siderais emanadas do núcleo gasoso são de sua evolução. Considero linha, superfície e volume como três
substituídas pelas correntes dinâmicas, que reconstituem aquele fases de evolução da dimensão espacial. Mas, para além, não
núcleo. Em outros termos: a matéria não pode ter um limite em bastam essas concepções matemáticas. Para mudar a dimensão, é
direção espacial (pois este se poderia, com efeito, sempre superar necessário iniciar um movimento em direção diferente e introdu-
logicamente), mas apenas em direção evolutiva; ou seja, esse li- zir elementos totalmente novos. Procurastes ultrapassar a con-
mite não pode ser situado em dado ponto do espaço, mas pode cepção euclidiana – concepção de um espaço elíptico, compre-
encontrar-se em qualquer ponto onde ocorra a transformação da endido como campo de forças finito, formado por linhas fechadas
matéria em sua fase superior de evolução. Somente estes concei- em si mesmas, correspondente ao meu conceito cíclico – e a con-
tos podem explicar-vos toda a complexa realidade do fenômeno. cepção de hiperespaços pluridimensionais. Para resolver esse
A condensação sideral é de natureza dinâmica; o vórtice que se problema, temos que tomar outra direção.
abre em forma física, fecha-se depois de uma transmutação que o Partamos do conceito de relatividade. Não tendes um
torna invisível aos telescópios; desaparece de vossos sentidos e tempo e um espaço em sentido absoluto, isto é, que existem
prossegue em direção inversa, numa forma que procurais em vão por si mesmos, independentes das unidades que os ocupam;
no plano físico. Muitos problemas de física e de astronomia vos mas eles são determinados por elas e a elas relativos. Portan-
parecem insolúveis exatamente porque vos mantendes sempre no to não existe um movimento absoluto no espaço e no tempo.
plano físico e não acompanhais os fenômenos onde eles, sob este Vossas medidas, então, não correspondem senão a um con-
aspecto, se esvanecem; não sabeis reencontrá-los enquanto “re- ceito total de relatividade. Assim, cada fenômeno tem um
nascem” num aspecto diferente. tempo próprio, que lhe mede o transformismo: não existe
Estas considerações vos encaminham para a visão de con- uma unidade universal de medida, nem uma dimensão absolu-
ceitos ainda mais profundos, que vos fazem chegar até ao limite ta idêntica, invariável para todos os fenômenos. Até mesmo na
42 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
ciência e na matemática estais imersos, sem possibilidade de Vosso conceito de um espaço e de um tempo absolutos,
saída, em vossa relatividade. Só podeis estabelecer relações universais, sempre iguais a si mesmos, corresponde a uma
com elas, nada mais: o absoluto vos escapa. orientação puramente metafísica, que, inconscientemente,
Já vos disse: vossa razão não é a medida das coisas; sois matemáticos e físicos introduziram em suas equações. Esse
parte de um grande organismo; até vossa consciência repre- ponto de partida, totalmente arbitrário, vos levou a conclu-
senta uma fase: é um fenômeno entre os fenômenos. Alguns sões erradas; colocou-vos diante de fenômenos que se trans-
conceitos estão além de vossa consciência, e só podeis alcan- formam em enigmas, perante contradições sem saída e con-
çá-los por maturação evolutiva de vosso eu. Modificando es- flitos insanáveis; de todos os lados, cerca-vos o mistério. Na
ses princípios fundamentais para a ciência, modifica-se também realidade, somente encontrais, como vos disse, um tempo e
toda a estrutura de vossos sistemas científicos; derrogam-se a um espaço relativos, cujo valor não ultrapassa o sistema a
física e a mecânica clássicas newtonianas. Mas os novos con- eles relativo. Mas há mais. Eles são apenas medidas de tran-
ceitos têm a vantagem de corresponder a uma realidade mais sição, em contínua transformação evolutiva.
completa e profunda. Assim, a mecânica racional transforma-se Esforçai-vos em acompanhar-me. Se vosso universo é fini-
em mecânica intuitiva mais avançada. Surge a possibilidade de to como vórtice sideral, o sistema de universos e o sistema de
solução de problemas que os velhos princípios não podem re- sistemas de universos é infinito. Se o espaço fosse um infini-
solver. A ciência que construístes, sem dúvida, vale algo, e tí- to, não teria limites em sua qualidade de espaço, no entanto
nheis que criá-la. Mas, hoje, chegastes a um ponto em que, para ele os tem, porém não os encontrareis no espaço, em direção
avançar, é preciso criar uma nova ciência. espacial, mas sim em direção evolutiva. Deste conceito, ao
qual já acenamos, chegamos agora à novíssima concepção: os
XXXV. A EVOLUÇÃO DAS DIMENSÕES E únicos limites do espaço são hiperespaciais, isto é, são no
A LEI DOS LIMITES DIMENSIONAIS sentido do desenvolvimento da progressão evolutiva e exata-
mente na dimensão sucessiva. Ou melhor: se quiserdes um li-
Minha tarefa agora é ampliar esses princípios, que já domi- mite para o espaço, só o encontrareis nas dimensões que o su-
nais em todos os campos, e aprofundar-lhes o significado. Uma cedem e o precedem. Pormenorizemos, ainda.
primeira ampliação do conceito de relatividade é dada pela lei da Cada universo tem uma medida de unidade própria, que
relatividade, que abarca todos os fenômenos com tanta força, que consiste em sua dimensão. Assim como, por evolução, se pas-
impressiona vossa percepção e todas as vossas concepções. Não sa de uma fase para outra, conforme vimos na transmutação
percebeis nem concebeis sua essência, mas sim as mudanças das das formas da substância, em que os universos aparecem e de-
coisas: a base é o contraste, condição indispensável. Por isso não saparecem, assim também, por evolução, passa-se de uma
percebeis um movimento se vos moveis com velocidade igual dimensão a outra, e as unidades de medida do relativo apare-
(por exemplo, o da Terra), mas apenas as diferenças; não repa- cem e desaparecem. Tudo o que é relativo – portanto também
rais, absolutamente, que correis, com tudo o que vos circunda na a dimensão que é sua medida – deve, como o relativo, nascer
superfície da Terra, com uma velocidade de quase meio quilôme- e morrer. Assim as dimensões evoluem com os universos,
tro por segundo, o que equivale a cerca de 1.800 quilômetros por acompanhando as fases que estudamos. Do conceito de di-
hora. Assim, duas forças constantemente equilibradas numa úni- mensão relativa, passamos ao de dimensão progressiva. Ora,
ca massa, para vós não existem. A estase e o equilíbrio não são passagem de fase significa também passagem dimensional.
percebidos por vós, mas somente a mudança. Nesta lei de relati- Do espaço ao tempo se passa por evolução, esta é paralela
vidade é que se encontra vossa fase de consciência. Aí está a ra- àquela que leva da fase  à fase .
zão pela qual vossa ciência é exclusivamente, como vos disse, Existe, pois, uma lei, a que chamaremos de “lei dos limi-
uma ciência de relações, de natureza totalmente diferente da mi- tes dimensionais”, que pode ser assim enunciada: “Os limi-
nha, que, provindo de um plano superior, é ciência de substância. tes de uma dimensão são dados pelos limites da fase de que
Ampliei o conceito de relatividade também à psicologia e à ela é a unidade de medida; eles encontram-se no ponto em
filosofia, ao falar-vos de verdades progressivas. Assim como o que, por evolução, passa-se de uma fase a outra, isto é, onde
conceito evolucionista, que Darwin só viu nas espécies orgâni- ocorre a transformação de uma fase e de sua dimensão na fa-
cas, também o conceito de relatividade, que Einstein limitou a se e dimensão sucessiva”.
alguns momentos matemáticos, tem que ser completado com
uma teoria de relatividade universal, que se estende a todo o XXXVI. GÊNESE DO ESPAÇO E DO TEMPO
universo. Isto representa uma conquista filosófica e científica,
uma concepção mais profunda, uma compreensão mais ampla, Agora podeis compreender o que é e como ocorre a gênese
uma harmonia e beleza superiores. Outra ampliação do conceito do espaço e do tempo e o seu término. Podeis atingir a explicação
de relatividade pode ser feita em profundidade: aquela que vos científica das palavras do Apocalipse: “Então o Anjo jurou por
levará a conceitos novos; não mais apenas o de relatividade das Aquele que vive nos séculos dos séculos, que agora não haveria
unidades de medida de vosso universo, mas aquele muito maior mais tempo” (Apoc. 10:6). Tudo o que nasce tem de morrer, isto
e profundo, o da evolução de suas dimensões. é, tudo o que teve princípio tem de ter fim. Como tudo, evoluin-
Se me perguntais onde termina o espaço, eu vos respondo: do, deixa os despojos da velha forma, também deixa, para assu-
num ponto em que o “onde” se torna “quando”, ou seja, em que mir outra mais elevada e mais adequada, a velha dimensão, que
a dimensão espaço, própria de , transforma-se na dimensão não lhe serve mais. Como são infinitas as fases evolutivas, infini-
tempo, própria de . Quando a matéria, quimicamente envelhe- tas também são as respectivas dimensões. Eis como nosso olhar
cida, resfriada, solidificada, atinge a periferia do vórtice sideral, pode superar o tempo e o espaço, que são apenas duas dimensões
desagrega-se pela radioatividade, transmudando-se em energia; contíguas, entre as infinitas dimensões sucessivas. Falaremos a
então a substância perde sua dimensão espacial e volta ao cen- respeito das mais próximas ao vosso concebível, correspondentes
tro como corrente dinâmica e com dimensão temporal. Na peri- às várias fases de evolução. Isto para chegar à conclusão, que an-
feria, a matéria não é mais matéria, mas energia. Como a subs- tecipo: também o devenir das dimensões é cíclico e segue a lei do
tância mudou de forma, deslocando seu ser de uma fase a outra, desenvolvimento expressa pela trajetória típica dos movimentos
assim muda sua dimensão, que não é mais espaço, e sim tempo. fenomênicos e pela lei das unidades coletivas, ou seja, cada di-
Expliquemos este conceito de dimensão e sua evolução. mensão é um período que se reagrupa em períodos maiores tri-
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 43
fásicos, os quais se reagrupam em períodos ainda maiores, até ao Em  aparece sua primeira manifestação: o tempo. O ponto
infinito. A dimensão infinita, que compreende todas as menores, movimentou-se, não mais em direção espacial, mas em nova di-
é precisamente a evolução. Como cada fase tem sua dimensão, reção, a conceptual, e nasce a reta, a primeira dimensão nova.
assim também o infinito tem a sua; a dimensão do infinito é a Ao deslocar-se no tempo, o fenômeno adquire, em , uma
evolução. Eis que superamos o limite e, também nesta direção, consciência própria, linear, a primeira dimensão conceptual. O
encontramos o infinito. fenômeno, que não é ainda vida, nem consciência, sabe apenas
Analisemos agora as dimensões contíguas ao espaço e ao o seu isolado progredir no tempo; não se expande além da linha
tempo, suas propriedades e sua gênese. Quando dizeis espaço a de seu devenir, não se eleva a julgamento como a consciência
três dimensões, confirmais estas afirmações, pois enunciais as humana, não sabe sequer dizer “eu”, porque ignora qualquer
três manifestações sucessivas dimensionais do espaço, que, como distinção, e a consciência do não-eu, aqui, é o inconcebível.
vedes, é uma unidade trifásica. Olhemos novamente o diagrama Compreendamos, também aqui, não um tempo universal, isto é,
da fig. 2. A fase , matéria, representa a dimensão espaço com- a medida do devenir fenomênico; mas a dimensão desta fase,
pleta. Eis a gênese progressiva. Na fase –z, temos a dimensão es- ou seja, a consciência (linear) do devenir. Entendido assim, es-
pacial nula: o ponto. Isso não significa que o universo –z seja se tempo só nasce em  como propriedade da energia. Com
puntiforme, mas sim que, naquela fase, o espaço só existia em efeito, apenas as forças tomam a iniciativa do movimento, ten-
germe, à espera do desenvolvimento (vórtice fechado), e que, em do como dominante a característica dinâmica, e dominam , a
vez dele, existia uma dimensão diferente, fora de vosso concebí- terceira dimensão espacial, característica da matéria, que não o
vel. Em –y aparece a primeira manifestação da dimensão espa- inicia, mas apenas sofre esse movimento. Nas fases inferiores
ço, isto é, a linha, aquela que denominais sua primeira dimen- só existe o tempo em sentido mais amplo, entendido como rit-
são: é a primeira e mais simples forma do espaço, em seu apa- mo do devenir, propriedade de todos os fenômenos; mas não
recimento. A segunda manifestação, mais completa, aparece na como consciência do transformismo, propriedade das forças.
fase seguinte, –x, e revela-se como superfície, a que denomi- Facilmente compreendeis que revolução trazem esses conceitos
nais segunda dimensão. A terceira e última manifestação, que em vossa ordem habitual de ideias.
completa a dimensão espacial, aparece em , na matéria, e reve- Em , estamos na fase subumana e humana de consciência
la-se como volume, é a terceira dimensão do espaço. Agora mais completa, e temos a segunda dimensão conceptual, corres-
compreendeis como nasceu o espaço, porque a matéria tem pondente, no sistema espacial, à superfície. Tal como da linha se
como dimensão um espaço a três dimensões, dado por três passa à superfície, com deslocamentos em novas direções extra-
momentos sucessivos. Também reencontrais este princípio ge- lineares, assim, por deslocamentos semelhantes, a consciência
ral: “a manifestação de uma dimensão é progressiva e ocorre humana invade o devenir de outros fenômenos, diferencia-se de-
em três graus contíguos”. A enunciação deste princípio vos les, aprende a dizer “eu”, a perceber a própria individualidade
demonstra o absurdo da procura de uma continuação quadridi- distinta das outras, dobra-se sobre o ambiente, projeta-se para fo-
mensional num sistema com três dimensões. A continuação vos ra (a nova dimensão), observa e julga. Os sentidos são os meios
obriga a sair das três dimensões. dessa projeção para fora, característica da segunda dimensão,
Prossigamos a progressão. O desenvolvimento da fase  re- meios que, na primeira, eram desconhecidos.
sultou na dimensão volume, dando-vos o espaço completo. Pelo Em +x aparece a terceira manifestação da dimensão con-
diagrama da fig. 2, vedes como cada criação cria uma fase nova e ceptual, que completa o sistema, correspondente ao volume. A
como, no caso particular, a criação b cria , a energia, que deriva, consciência, que na matéria não tem dimensão (o volume é a
pela radioatividade, de , a fase matéria. A maturação estequio- dimensão espacial completa, mas, diante do sistema sucessivo,
genética deixara  imóvel. Na criação b, a energia nasce pela é uma não-dimensão, o ponto), no campo das forças assume a
primeira vez. Em termos bíblicos dizeis: Deus criou o movimen- dimensão linear; no campo da vida alcança a dimensão superfí-
to, deu o impulso ao universo. O volume moveu-se. Aparece cie; no campo absolutamente abstrato do puro espírito adquire a
nova manifestação dimensional; algo se acrescenta ao espaço; dimensão de volume. As limitações de vosso concebível impe-
uma superelevação dimensional (a quarta dimensão que pro- de-me de lançar-me aos sistemas sucessivos, cada vez mais es-
curais), mas num sistema diferente: a trindade seguinte. Esta pirituais e rarefeitos, que se estendem ao infinito. Ao invés, ex-
nova dimensão, a primeira da série sucessiva, é o tempo. A pliquemos as características da segunda dimensão (consciência)
unidade máxima dimensional precedente é tomada, na passa- em relação às da terceira (superconsciência).
gem à seguinte, por novo e mais intenso movimento, mas Da mesma forma que a superfície absorve a linha, a cons-
sempre em direções novas e diferentes, cada uma própria de ciência absorve o tempo e o domina; enquanto as forças preci-
seu sistema (espacial, conceptual etc.), numa aceleração de sam do tempo, o pensamento o supera. Na passagem da fase 
ritmo, exatamente na qual consiste a evolução. Compreendeis à fase , a dimensão tempo tende a desvanecer-se, embora
agora como nasceu o tempo e como deve ele completar-se subsistindo, mas em tal aceleração de ritmo (onda), que vos
com duas outras manifestações sucessivas, isto é, ser a pri- pareceria quase desaparecer em nova dimensão. Com efeito,
meira manifestação de nova unidade com três dimensões. quanto mais baixa e material é a consciência, tanto mais é len-
ta e se assemelha a ; quanto mais concreto o pensamento,
XXXVII. CONSCIÊNCIA E SUPERCONSCIÊNCIA. mais denso é o ritmo e mais vagarosa a onda. O pensamento
SUCESSÃO DOS SISTEMAS TRIDIMENSIONAIS implica tempo somente enquanto e na medida em que ainda é
energia; quanto mais é cerebral, racional, analítico, tanto me-
Para compreender bem a passagem para as dimensões suces- nos é abstrato, intuitivo, sintético. Neste segundo sistema tri-
sivas deste segundo sistema, comparemo-lo ao primeiro. Enquan- dimensional, assistis a uma aceleração contínua de ritmo.
to este, em seu desenvolvimento, completa a dimensão espacial, Nessa aceleração, o tempo é gradualmente absorvido. Por sua
o sistema seguinte, superior, que é vossa fase no nível humano, vez, a superconsciência domina e absorve a consciência, tal
completa a dimensão conceptual, aquela cujas unidades de medi- como o volume o fez com a superfície.
da são as propriedades da consciência. Tal como ocorre nos uni- Explico: a consciência humana, derivada por evolução de
versos precedentes quanto à gênese progressiva do espaço, temos , através da profunda elaboração da vida, não é linear, isto
nesta unidade superior a gênese progressiva da dimensão con- é, não é limitada em si mesma nem a um fenômeno e pode
ceptual. Na fase , está completa a dimensão espacial, mas é nulo sair e mover-se em todas as linhas de superfície, em todas as
o desenvolvimento da dimensão conceptual: o ponto, um germe. direções, abraçando, como consequência, muitíssimos fenôme-
44 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
nos. Por isso é absolutamente hiperespacial. Mas, de qual- dade de vosso eu como um pressentimento: nada mais. Aí vos
quer forma, é sempre dimensão de superfície, à qual está espera a maior aproximação conceptual da Divindade. Eu estou
inexoravelmente ligada enquanto não evoluir. Isso significa neste plano mais alto, de consciência volumétrica, onde se domi-
que está presa ao relativo, que só pode mover-se no finito, na todo o tempo, até mesmo o futuro, porque estamos fora e aci-
que só sabe conceber por análise, isto é, por meio da obser- ma de vosso tempo; aqui, a concepção é visão global instantânea
vação e da experimentação, tal como vossa ciência. Domina de tudo o que só concebeis sucessivamente; aqui, tenho, por vi-
todas as linhas do devenir fenomênico, mas toda a sua vida são direta, a síntese que agora vos transmito. Destes planos mais
está na superfície e dela não pode sair. Jamais vos pergun- altos, descem as revelações que se comunicam a vós por sintoni-
tastes a razão dessa vossa insuperável relatividade, desses zação de ondas psíquicas, partindo de seres de outra esfera; cons-
limites que restringem vosso concebível, dessa vossa inca- ciências imateriais não perceptíveis aos vossos sentidos e que
pacidade de visão direta da essência das coisas? Eis a res- vossa razão não pode individualizar.
posta com expressão geométrica. Vossa consciência é se- Assim sucedem-se as três dimensões de  , +x. Tal como
gunda dimensão, de superfície, e, como superfície, é uma , matéria, vos deu o espaço, assim temos:
contínua impotência diante do volume, sua dimensão superi- 1o) O tempo, isto é, o ritmo, onda, unidade de medida da di-
or. Para atingir o volume, é indispensável que a superfície se mensão de  a fase energia.
mova em nova direção; para atingir a superconsciência é ne- 2o) A consciência, isto é, a percepção externa, razão, análise, fi-
cessário multiplicar a consciência por novo movimento. Dessa nito, relativo, dimensão de , a fase vida, que culmina no
forma, só por multiplicação de análise podeis aproximar-vos psiquismo humano.
da síntese. A superconsciência é dimensão conceptual volu- 3o) A superconsciência, isto é, a percepção interna, intuição,
métrica, que se obtém ao elevar uma perpendicular sobre o síntese, infinito, absoluto, dimensão de +x, a fase super-
plano da superfície da consciência, conquistando dessa manei- humana9.
ra um ponto de vista fora do plano: o único ponto que pode
Assim, as dimensões se sucedem por trindades sucessivas e
dominá-la totalmente. Por isso, só a superconsciência sobre-
contíguas na escala progressiva da evolução: desde o ponto, até
puja os limites de vosso concebível, domina o relativo na vi-
à linha, à superfície, ao volume, ao tempo, à consciência, à su-
são direta do absoluto, domina o finito, movendo-se no infini- perconsciência, numa contínua dilatação de princípio. Tudo
to; não mais concebe por análise, mas por síntese. evolui. E, com os universos, também suas dimensões. Agora
São esses conceitos que escapam à vossa consciência e, nes- podeis compreender como a abertura de uma espiral maior,
se nível, não podem ser alcançados. Somente assim se passa do produzida pela abertura de uma menor (cfr. diagrama fig. 5)
relativo ao absoluto, do finito ao infinito. Este não constitui não ocorre em sentido espacial, porque a dimensão muda a cada
uma sucessão nem uma soma de relativos, mas algo qualitati- abertura de ciclo, mas no sentido da evolução, que é, como dis-
vamente diferente: diferença de qualidade, de natureza, não de semos, a dimensão do infinito. O infinito + e o infinito 
quantidade, nem de medida. O verdadeiro infinito é isso, bem (+e), que no diagrama aparecem com expressão espacial,
diferente de tudo o que costumais chamar; é simplesmente um têm assim, na realidade, outro valor totalmente diferente. As
indefinido ou incomensurável. A superconsciência move-se dimensões aparecem e desaparecem ao progredirem. Assim,
numa esfera mais alta que a consciência humana, em contato morrerá o espaço com a matéria, o tempo com a energia, a re-
direto com os princípios que vós laboriosamente procurais, ten- latividade com a consciência; mas a Substância ressurgirá em
tando alcançá-los em sínteses parciais, e que só sentireis dire- formas e dimensões mais altas, assumindo sempre novas dire-
tamente por meio de vossa evolução. Como vedes, diferença ções. Cada dimensão é relativa e, na evolução, segue uma pre-
substancial. Não se trata de somar fatos, observações e desco- cedente, mas vem antes de uma seguinte, e existe sempre um
bertas, de multiplicar as conquistas de vossa ciência; trata-se de degrau mais alto para subir, uma fase superior aguardando-a. A
mudar-vos a vós mesmos. Não mais o lento e imperfeito meca- cada salto para frente, conquista-se o domínio da própria di-
nismo da razão, mas a intuição – rápida e profunda. Não mais mensão, que antes não era acessível senão sucessivamente. O
projeção da consciência para o exterior, por meios sensórios campo de ação e visão dilata-se: do alto se domina o que está
que apenas tocam a superfície das coisas, mas expansão em di- embaixo. Reencontramos ainda o princípio da trindade em toda
reção totalmente diversa, para o interior: percepção anímica di- a parte; nas três fases de vosso universo: matéria (), energia
reta, contato imediato com a essência das coisas. (), espírito (); em seus três aspectos: estático, dinâmico, con-
Eis a consciência maior que vos aguarda. Essa é a consciên- ceptual (ou mecânico); nos dois sistemas dimensionais obser-
cia que, no princípio, chamamos latente, a qual se dilata continu- vados: linha, superfície, volume (espaço); tempo, consciência
amente, aumentando com os produtos de vossa consciência. Em (relativo) e superconsciência (absoluto).
vós, a superconsciência está em estado de germe que espera o de-
senvolvimento para revelar-se. Agora compreendeis que valor XXXVIII. GÊNESE DA GRAVITAÇÃO
dar às palavras razão, análise, ciência, que vos parecem ser tudo.
Para progredir mais, tereis de sair do plano de vossa consciência, O desenvolvimento desses conceitos nos abre a porta para o
a que penosamente estais presos, e conquistar um ponto fora de- estudo de outro problema que nos aguarda, o da fase , a ener-
la. As intuições do gênio e as criações morais do santo são ape- gia. Indiquemos suas primeiras formas, para depois analisar as
nas perpendiculares levantadas no plano da superconsciência, por que delas derivam por evolução.
antecipação. Por isso vos disse que a intuição é a nova forma de Assim como o hidrogênio é o tipo do protozoário mono-
pesquisa da ciência futura; somente ela pode dar-vos não mais celular da química inorgânica, e o carbono o da química or-
ciência, mas sabedoria. Isto vos explica o inexorável relativismo gânica, assim também a gravitação é a protoforça típica do
de vossos conhecimentos, vossa limitação e relatividade de sínte- universo dinâmico. Quando , na última fase radioativa de
ses, a escravidão da análise, uma impotência apriorística de al- sua maturação evolutiva, chegou pela primeira vez à gênese
cançar o absoluto. A superfície jamais vos dará, ainda que per- de  (cfr. a entrada em  da criação b, fig. 2), o universo, à pro-
corrida em todos os sentidos, a síntese volumétrica. Razão e in-
tuição, análise e síntese, relativo e absoluto, finito e infinito são 9
Um estudo mais particularizado e profundo desta fase foi exp e-
dimensões diferentes, produzidas em planos diferentes. Absoluto rimentalmente continuado no volume Ascese Mística  “O Super-
e infinito estão em vós em estado de germe, tremem na profundi- consciente”.
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 45
porção que se desintegrava como matéria, foi invadido por te, toda a série das individuações dinâmicas, que se destilarão,
energia radiante. Involuindo (cfr. a descida da linha quebra- por fim, na criação superior da vida.
da de  a  na criação b, fig. 2), essa energia condensou-se, A individualidade desses novos seres “radiantes”, tão rápi-
por correntes dinâmicas centrípetas, no núcleo da nebulosa dos e dinâmicos diante das individuações de , é definida pelo
espiralóide (o qual, por representar a máxima concentração ritmo, pela onda. A unidade de medida das formas de  é a ve-
dinâmica, é justamente sua parte mais quente), de onde en- locidade de vibração na dimensão desta fase, o tempo.
tão nasceu o vórtice da Via Láctea (cfr. fig. 2, criação c e Eis-nos nas primeiras afirmações, novas para vosso mundo
subida de  para ). Enquanto a matéria torna a percorrer seu científico. A gravitação, mais exatamente a energia gravífica,
ciclo de maturação evolutiva, ela está toda vibrante com essa é a protoforma do universo dinâmico. Sendo energia, é radi-
energia em período de difusão. Quando novamente a matéria ante: transmite-se por ondas. Tem uma velocidade própria de
estiver velha, a energia que dela renascer mais madura não propagação superior à das ondas eletromagnéticas e à da luz
tenderá a reenvolver-se num novo núcleo-matéria, mas subi- (300.000 km por segundo) e que é a máxima no sistema. Aqui
rá para , entrando nos caminhos da vida e da consciência. são completados os conceitos da teoria de Einstein. A gravita-
A razão pela qual apareceu a vida em vosso planeta e nos do ção é relativa à velocidade de translação dos corpos. A mas-
sistema solar é justamente porque este sistema é velho, como sa varia e aumenta com o crescimento da velocidade, de que é
vimos. Aqui, a matéria está em sua última maturidade, está função (demonstrável experimentalmente). O peso aumenta
morrendo por desagregação radioativa, e a energia dirige-se por novas transmissões de energia e vice-versa. O conceito de
decididamente para a fase superior, . transmissão instantânea cai para todas as forças. A gravitação
A primeira gênese de , a gravitação, aparece, portanto, leva tempo para transmitir-se, embora mínimo; como todas as
como forma originária de energia, matriz da qual nascerão, formas dinâmicas, ela tem um típico comprimento de onda.
como filhas, todas as outras formas, por meio de distinção e Ela se compõe, já o dissemos, como outra qualquer unidade,
diferenciação no processo evolutivo. Particularizemos. Enten- de duas metades inversas e complementares: atração e repul-
do aqui, como gravitação, não a pequena gravitação de New- são, e move-se entre esses dois extremos: positivo e negativo.
ton – caso particular ao vosso planeta – mas uma gravitação A lei descoberta por Newton, baseada nos trabalhos de Ke-
de sentido mais amplo, que resulta do equilíbrio das forças in- pler, denominada lei de atração ou gravitação universal, diz
versas de atração e repulsão, opostas e complementares (lei de que “a matéria atrai a matéria na razão direta das massas e na
dualidade, que veremos agora); uma gravitação filha direta do razão inversa do quadrado das distâncias”. Mas, com isso, a
movimento, isto é, energia gravífica, filha da energia cinéti- mecânica newtoniana não pôde explicar nada da arquitetura
ca. Eis como ocorre a transformação: o movimento, primeiro dos mundos. Esse enunciado não é senão a comprovação do
produto da evolução físico-dinâmica, é força centrífuga e, por fato de que a atração decresce em razão do quadrado da dis-
isso, tende à difusão, à expansão, à desagregação da matéria. tância. Indica o princípio que mede a difusão da energia gra-
Expansão em todas as dimensões é, com efeito, a direção da vífica, é apenas um aspecto do princípio que regula a difusão
evolução. Mas, em determinado ponto, essa direção inverte- de qualquer forma de energia, e vos demonstra sua origem
se, por lei de equilíbrio, numa direção centrípeta, contraim- comum: o princípio da onda e de sua transmissão esférica.
pulso involutivo, e as forças de expansão completam-se com As radiações conservam todas as características fundamentais
as de atração. Assim, a primeira explosão cinética encontra de energia cinética de onde nasceram; essa comunhão de ori-
seu ritmo, e o princípio da Lei reorganiza a desordem, tão lo- gem estabelece entre elas a afinidade de parentesco. Outra
go ela se manifesta, em nova ordem; equilibra-se o movimen- prova do parentesco das formas dinâmicas está na qualidade
to num par de forças antagônicas. Dessa forma, a gravitação da luz, derivação próxima, por evolução, da energia gravífica.
vos aparece como energia cinética da matéria e, como nasceu Nesta forma de energia radiante luminosa, reencontrais, em
dela diretamente, está tão inerente e estreitamente ligada a ela, parte, as características da originária forma de energia radian-
que não vos é possível isolá-la. Assim a matéria atrai a maté- te gravífica. Einstein afirmou, com base em cálculo, tudo o
ria, e o universo, constituído de massas lançadas em todas as que as observações feitas durante os eclipses solares vos con-
direções e separadas por espaços imensos, está, não obstante, firmaram posteriormente, isto é, que os raios luminosos este-
todo “ligado” numa unidade indissolúvel. Permanece unido e, lares sofrem, na vizinhança do Sol, um desvio e, passando
no entanto, ao mesmo tempo, move-se por uma força que pro- rente a ele, são atraídos. Poder-se-ia dizer que a luz pesa, ou
voca seu movimento e sua respiração física. Com o surgimen- seja, a luz sofre o influxo dos impulsos atrativos e repulsivos
to, pois, da forma protodinâmica, o universo se move pela de ordem gravífica; existe uma pressão nas radiações lumino-
primeira vez; são gerados os movimentos siderais; a gravita- sas. Direi mais: todas as radiações exercem, ao propagar-se,
ção inicia seu papel de guia (a Lei onipotente, instantanea- uma pressão de natureza gravífica; apresentam fenômenos de
mente, disciplina todas as suas manifestações) de acordo com atração e repulsão em razão direta de sua proximidade gené-
o binário atração-repulsão, que são o binômio (+ e –, positivo tica, na sucessão evolutiva, de sua protoforma dinâmica, a
e negativo) constitutivo de toda a força e de toda manifestação gravitação. Dirigi vossas pesquisas neste sentido, analisai por
do ser. Em nova fase, a Substância adquire a forma de consci- meio de cálculos estes princípios, e a ciência realizará desco-
ência linear do devenir fenomênico, a primeira dimensão do bertas que a revolucionarão.
sistema trino que sucede ao espacial. Nasce o tempo. Propaga- Resumindo, temos: fase , em seu desenvolvimento estequi-
se a protoforma de . Com o movimento, nasce a direção, a ogenético, desde o H até aos corpos radioativos. Depois, in-
corrente, a vibração, o ritmo, a onda. Nasce o tempo, que me- gresso na fase , por gradações, desde a matéria envelhecida e
de a velocidade de transmissão. O universo fica todo invadido radioativa até à energia cinética, que logo se individualiza por
por nova palpitação e mais intenso e mais rápido devenir. E, ondas, na protoforma de energia gravífica. Desta nascem e de-
quando recondensada por concentração das correntes dinâmi- senvolvem-se todas as demais formas dinâmicas, como vere-
cas, a matéria reinicia seu ciclo ascensional, é toda tomada mos, numa distinção contínua (por vibração, ritmo, onda), nu-
por um vórtice dinâmico que a guia e a plasma na gênese este- ma ascensão evolutiva que culminará na vida.
lar, numa evolução diferente e superior à maturação íntima es- Mas, antes de entrar neste novo campo, é indispensável lan-
tequiogenética precedente; maturação de que nascerão não çar um último olhar ao aspecto conceptual ou mecânico do uni-
apenas miríades de novas criaturas mais ágeis e ativas, mas verso, perscrutando de mais perto o conteúdo da grande lei em
também a eletricidade, a luz, o calor, o som e, assim por dian- seus principais aspectos menores.
46 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
XXXIX. PRINCÍPIO DE TRINDADE E DE DUALIDADE resto. Não combato, mas a defino como fase superada, embora
necessária para alcançar o atual momento, em que ainda urge
Já dissemos tanto, descrevendo a grande lei, e ainda esta- avançar para as mais profundas realidades do espírito. Afirmo,
mos na superfície. Na Lei existe infinita profundidade, e quanto em complementação e em continuação da precedente, abando-
mais a mente a penetra, mais encontra aspectos íntimos e parti- nando os tristes e loucos antagonismos de outrora, uma nova
culares. A Lei possui uma infinidade de volumes, capítulos, ar- ciência, que, concordando com todas as crenças e todas as reli-
tigos, palavras e letras; subdivide-se ao infinito no particular, giões, vos leve imensamente mais adiante.
que mais vos golpeia, porque está mais próximo de vós, naque- Ao lado do princípio da trindade existe outro, que lembra-
le mundo de efeitos em que trabalhosamente procurais os prin- mos ao ilustrar o conceito monístico do universo para estudar a
cípios cada vez mais altos da síntese. Na exposição precedente, gênese e a constituição das formas dinâmicas. É dado pela “lei
contemplamos a Lei na grandiosidade de seu conjunto. Agora da dualidade”. Esta considera não o reordenar-se da unidade em
tentemos aproximar-nos do seu aspecto de pormenor, obser- sistemas coletivos superiores, mas sua íntima composição.
vando-lhe mais de perto outro capítulo. Acima da unidade está o três, em seu interior está o dois. Isto
Em sua universalidade, o princípio do todo é: organismo em no sentido de que a individuação não é jamais uma unidade
seu aspecto estático, evolução em seu aspecto dinâmico (deve- simples, mas sempre um dualismo que, em seu aspecto estático,
nir), monismo em seu aspecto conceptual. Assim poderia defi- divide a unidade em duas partes, do ser e do não-ser, em duas
nir-se o universo: uma unidade orgânica em evolução. Este metades inversas e complementares, contrárias e, no entanto,
princípio unitário, orgânico, evolutivo é a nota fundamental do recíprocas; antagônicas, mas necessárias. Em seu aspecto di-
monismo: a ordem. Esta é a característica dominante da Lei. nâmico, é um contraste entre dois impulsos opostos, que se
Esta unidade de princípio se diferencia em infinitos pormenores movem e se balanceiam em um equilíbrio instável, que conti-
de princípios. Num primeiro momento, é trindade e dualidade. nuamente se desloca e se renova. É um ciclo feito de semiciclos
Vimos como um dos princípios basilares da Lei, segundo o que se perseguem e se completam. É uma pulsação íntima, se-
qual as individuações reagrupam-se em unidades coletivas, é o gundo a qual a evolução avança. Este dualismo é o binário que
da “trindade” da Substância. Corresponde a um princípio de guia e canaliza o movimento sobre o qual avança a grande mar-
“equilíbrio” superior (ordem); é um sistema mais completo, em cha do transformismo evolutivo; tanto que, sob esse aspecto,
que o ser, que se diferencia por evolução e se distingue dos concebe-se uma cosmogonia dualista. O monismo é dualista em
afins, reorganiza-se, reencontrando a unidade. Vemos esse seu íntimo devenir. Esse é seu ritmo interior; essas as duas
princípio em toda a parte e muitas vezes tivemos que lhe notar margens da estrada ao longo da qual avança o fenômeno, não
a presença. Trina é a Divindade em Sua lei; trifásica é a criação retilíneo, mas sempre oscilando sobre si mesmo. Dupla é a res-
de qualquer universo; tríplice é seu aspecto; tridimensional é o piração de todo fenômeno: fase de inspiração e de expiração;
espaço e o sistema-consciência, e também os demais sistemas dupla sua pulsação: centrífuga e centrípeta; duplo seu movi-
dimensionais que os precedem e sucedem. Trino é o homem em mento no avançar e retroceder. A evolução é realizada por esta
seus princípios (isto é, um corpo físico, um dinamismo que o íntima oscilação e, por força dessa oscilação, progride. O deve-
move, uma inteligência que dirige e regula esse movimento); nir é conseguido por esse íntimo contraste. O movimento as-
um microcosmo feito à imagem e semelhança de Deus. O uni- censional é a resultante desse jogo de impulsos e contraimpul-
verso se individua por unidades trinas. Na série das unidades co- sos entre duas margens invioláveis, de onde o movimento volta
letivas, no processo de recomposição unitária com que o todo sempre sobre si mesmo. O fenômeno caminha pelo escorar-se
compensa e equilibra o processo separatista de diferenciação mútuo dessas duas forças-metades que o determinam. O movi-
evolutiva, o primeiro múltiplo verdadeiro de um é três; ao passo mento genético da evolução é constituído por essa íntima vibra-
que, como veremos, o submúltiplo de um está no dois, no sentido ção, que transmuda o ser em outra forma.
de que o uno é trino e constitui ao mesmo tempo uma dupla me- Essa lei de dualidade a encontrais em toda parte. Cada uni-
tade. A humanidade sentiu, por intuição, este princípio da trinda- dade é dupla e se move entre dois extremos, que são seus dois
de, e as revelações o transmitiram a ela; e o encontrais não ape- polos. Os sinais + e  estão em toda parte, e o binômio recons-
nas nos fenômenos, mas em toda parte do pensamento humano, trói a unidade, que sempre vos aparece como um par: dia e noi-
em suas religiões, como que impresso em seu espírito. Encontrais te, trabalho e repouso, branco e negro, alto e baixo, esquerdo e
esse princípio na trindade egípcia de Osíris, Ísis, Horus; na trin- direito, frente e atrás, direito e avesso, externo e interno, ativo e
dade indiana de Brahma, Avidya, Mahat; na trindade cristã de passivo, belo e feio, bom e mau, grande e pequeno, Norte e Sul,
Pai, Filho, Espírito. Também o encontrais na consciência religio- macho e fêmea, ação e reação, atração e repulsão, condensação
sa dos três estados da alma: inferno, purgatório, paraíso, tão per- e rarefação, criação e destruição, causa e efeito, liberdade e es-
feitamente interpretado em seu equilíbrio na visão dantesca. cravidão, riqueza e pobreza, saúde e doença, amor e ódio, paz e
Vedes como os conceitos desta minha revelação não são guerra, conhecimento e ignorância, alegria e dor, paraíso e in-
novos no mundo, como coincidem com os das revelações pre- ferno, bem e mal, luz e trevas, verdade e erro, análise e síntese,
cedentes, como aqui se completam e se amplificam. Apenas espírito e matéria, vida e morte, absoluto e relativo, princípio e
exponho à vossa maturidade intelectual, com demonstração fim. Cada adjetivo, cada coisa possui seu contrário; cada modo
evidente e exatidão científica, o que não podia ser dito a mentes de ser oscila entre duas qualidades opostas. Cada unidade é
primitivas senão na forma de imagens e sob o véu do mistério. uma balança entre esses dois extremos e equilibra-se neste seu
Dou-vos, desta forma, a fusão perfeita de fé e ciência, de intui- íntimo princípio de contradição. Os extremos se tocam e se re-
ção e razão. Com a ciência, demonstro e convalido o mistério; únem. As diferentes condições em que o princípio do dualismo
explico a nua afirmação das revelações e, com o conhecimento, se move, produziram todas as formas e combinações possíveis,
imponho-vos o dever de uma vida mais elevada. Realizo a fu- mas elas se equivalem como princípio único. A unidade é um
são das duas metades do pensamento humano, até agora dividi- par. O universo é monismo em seu conjunto, dualismo no parti-
das e inimigas, entre o oriente sintético, simbólico e sonhador, e cular: uma dualidade que, ao mesmo tempo, contém o princípio
o ocidente analítico e realista. Dou continuação à vossa ciência de contradição e de fusão; que divide e reúne e, a cada forma do
do último século, não me opondo a ela, mas completando-a ser, dá uma estrutura simétrica (princípio de simetria); dá ao
com o espiritualismo. Supero, sem destruí-la, essa ciência que, desenvolvimento de cada fenômeno uma perfeita correspon-
por ter-se dirigido exclusivamente à matéria, só podia ser visão dência de forças equilibradas. Também o dualismo correspon-
unilateral daquele pequeno campo, ignorando e negando todo o de a um princípio de “equilíbrio”, é o momento do princípio de
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 47
“ordem”, fundamental na Lei. O que define a unidade em sua essas unidades menores são logo retomadas em novo ciclo e re-
íntima estrutura é sua construção interior; o que garante a es- organizadas em novas unidades. O regresso involutivo expresso
tabilidade do devenir fenomênico e torna inviolável sua traje- pelo envolvimento da espiral, ou descida da linha quebrada, re-
tória não é apenas o princípio de inércia, mas esse desenvol- presenta o período de inércia, negativo, que se contrapõe ao pe-
vimento de forças antitéticas que, no entanto se atraem e ríodo de atividade, positivo, da criação. Na fase de inércia, o
mantém aquele devenir unido e compacto. É um ir-e-vir, mas fenômeno fecha-se em si mesmo, passivo; seu dinamismo de-
em campo fechado, cujos limites não se pode ultrapassar. Se tém-se, o esforço criativo diminui; a tensão da subida e o trans-
não fora o movimento equilibrado por esse contínuo retorno formismo, cansados, recaem sobre si mesmos. Cada fenômeno
sobre si mesmo, o universo se teria deslocado há muito, todo possui seu cansaço, exaustão do impulso concentrado no ger-
ele numa só direção, e teria perdido seu equilíbrio. Ao invés, me, em que o período precedente de atividade se inverte. O re-
a evolução é uma íntima autoelaboração, um amadurecimento gresso ao ponto de partida é indispensável: o efeito reúne-se à
devido a um movimento que, regressando sobre seus passos e causa, a forma ao seu germe. Atividade e inércia são o duplo
fechando-se sempre sobre si mesmo, como uma respiração, ritmo de períodos inversos, por meio do qual se desenvolve o
muda a forma e, externamente, permanece imóvel além dos fenômeno. Assim, o fenômeno oscila da semente ao fruto, do
limites dela; a cada movimento, um ritmo que muda o fenô- fruto à semente, que são dois extremos, positivo e negativo, de
meno, sem poder sair dele, invadindo e alterando os ritmos seu devenir. O + e o  são apenas posições do fenômeno. A
de outros fenômenos. Este princípio de antítese e de simetria, semente (+) é o estado de latência que contém tudo potencial-
que sem cessar divide e reúne, reúne e divide, podemos cha- mente; o fruto () é o resultado de exaustão do ciclo, a posição
má-lo monismo dualista e dualismo monista. O positivo vai + em que ocorreu a manifestação; o princípio contido no germe
e volta –; o negativo vai  e volta +, em constante inversão exteriorizou-se na definição da forma do ser.
de sinal e de valor. Combinai e multiplicai este princípio com Alguns atribuíram valor de lei máxima a essa dualidade e
o das unidades coletivas e vereis como o universo está todo nela viram o princípio genético dos fenômenos. E, generali-
unido num indissolúvel abraço. zando o conceito de acasalamento, viram no choque das mas-
Agora podeis compreender como o mais complexo princí- sas siderais o sistema “normal” de gênese estelar. Não é as-
pio e equilíbrio da trindade deriva desse simples princípio e sim. Na verdade, os sistemas planetários são constituídos por
equilíbrio da dualidade, porque a ida e volta dos dois sinais não um centro positivo, o sol, em redor do qual giram os planetas,
é estéril: do novo encontro nasce o novo termo, o terceiro da de sinal negativo; no átomo, o núcleo é positivo, em torno de-
trindade, termo que representa a continuação do fenômeno e le giram os elétrons negativos; essa tendência à inversão do
regressará, por sua vez, ao termo contrário, a fim de gerar novo sinal guia as correntes dinâmicas para a concentração no nú-
termo, assim por diante. Aqui reencontrais, nesses sinais opos- cleo das nebulosas. Mas a lei maior é a evolução, e em seu in-
tos, o conceito das subidas e descidas da linha quebrada do dia- terior se move a lei menor de dualidade. O choque é apenas
grama da fig. 2; as primeiras, positivas; as segundas, negativas. um sistema genético excepcional e particular, ao passo que o
Representam, diante da trajetória maior assinalada pela faixa sistema-tipo é a maturação evolutiva.
ascensional, limitada pelos vértices e mínimos das criações su- A criação vos parece, por causa desse princípio de dualida-
cessivas, o ritmo interior do fenômeno. Desse ritmo, nasce de, um cruzamento e uma contradição de termos alternados,
sempre novo termo; nova fase completa-se a cada oscilação po- orientada, ritmada e periódica. Mas esse princípio é a base de
sitivo-negativa, da qual toda criação se compõe; a fase máxima seu constante equilíbrio. Assim, explicais a distinção da força
torna-se, depois, fase média e, finalmente, fase mínima, isto é, de gravitação em suas direções de atração e repulsão, de acordo
o germe ou base do fenômeno; não mais ponto de chegada, mas com o sinal, bem como a simpatia universal entre os contrários
ponto de partida. Assim, no diagrama da fig. 4, os períodos po- e a antipatia entre os semelhantes. O todo é metade afirmação,
sitivos de desenvolvimento da espiral alternam-se com períodos metade negação. Nessa inversão contínua, renova-se sempre a
negativos de envolvimento; desta sua oscilação interna, positi- ação e a criação. A energia vital do ar é bipolar: nitrogênio e
vo-negativa, evolutiva-involutiva, forma-se e progride a maior oxigênio. Do mesmo modo, na decomposição da água (eletróli-
espiral da evolução do fenômeno. Assim, por exemplo, partin- se), o oxigênio migra para o polo positivo e o hidrogênio para o
do da ação e da experimentação (fase positiva de atividade), negativo. A reação representada pela equação 2H2O=O2+2H2
até à assimilação de valores (fase negativa de passividade), na fase análise, inverte-se na equação 2H2+O2=2H2O na fase
emerge aquela criação de qualidades e capacidades, da qual síntese. Em suas duas metades + e –, síntese e análise, o ciclo
nasce e se desenvolve, no campo da vida, a consciência. Por fica completo. A rotação das esferas celestes, a oscilação da
isso, a dor alterna-se com a alegria, mas é condição, como onda dinâmica por sucessão de duas semiondas, tudo é devido
elemento de experiência e de progresso, de uma alegria cada a essa alternância de períodos inversos. Esta é a íntima estru-
vez maior; a morte alterna-se com a vida como condição de tura da lei de equilíbrio, pela qual o mal se alterna com o bem,
desenvolvimento da consciência e, com isso, de uma vida a dor com a alegria, a pobreza com a riqueza, sobem e descem
mais alta; também as revelações das religiões instruem o ho- os homens e as civilizações, e tudo se condiciona reciproca-
mem, e o homem as analisa e assimila, amadurecendo para re- mente. Ouvi essa íntima música do universo, observai essa
ceber outras cada vez mais completas. Assim, por análise e constante polarização que dirige o ser e o orienta como uma
síntese, síntese e análise, progride a ciência. Fé e ciência, in- agulha imantada. Essa troca perpétua ressoa de harmonias,
tuição e razão, oriente e ocidente, completam-se, como termos como um cântico universal.
complementares, como duas metades do pensamento humano. Olhai: a matéria, derivada por involução da forma originá-
Vedes como sempre se completam os conceitos precedentes ria dinâmica, alcança, através de estados de sucessiva conden-
ao voltarmos a eles. Vedes como no princípio da dualidade es- sação, gasosos, líquidos e sólidos, um máximo de concentra-
tão o segredo e o mecanismo íntimo das novas criações. ção e de inércia num mínimo volume. A energia que daí re-
Nisto encontrais uma razão mais profunda da fase de invo- nasce vai para um máximo de expansão e de atividade; de fa-
lução, que representa a dissolução dos universos. Este é um to, difundir-se e mover-se são as primeiras características da
processo de neutralização da fase positiva da criação, um pro- energia. Assim, matéria e energia invertem seus sinais. Olhai
cesso de degradação do fenômeno, uma decomposição do or- ainda: as plantas decompõem o ácido carbônico composto pe-
ganismo em seus centros menores. Mas não é destruição, porque lo animal, assimilam seus produtos de refugo e, ao contrário, o-
48 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
corre com o oxigênio. Os órgãos vegetais são uma inversão Outro princípio que a lei de evolução implica, é o da rela-
dos órgãos animais e realizam uma respiração invertida. Deste tividade. Já que só o relativo pode evoluir, a evolução só é
princípio de equilíbrio nascem as maravilhosas figuras simé- possível num mundo sucessivo finito, progressivamente per-
tricas dos flocos de neve, como as das flores do campo; nas- fectível, como é o vosso.
cem as simetrias das formas dos cristais, das formas da vida, O princípio do mínimo esforço regula a economia da evolu-
dos corpos planetários estelares e de suas elipses. Por essa ção, evitando dispêndio inútil de forças.
mesma lei, a morte é condição de renascimento, e o nascimen- O princípio de causalidade garante a concatenação no
to é condição de morte. Não existe mais fecunda forja de vida desenvolvimento fenomênico, já que o efeito deriva da causa
que essa morte, de cujas ruínas a vida jamais cessa de ressur- (antecedente e consequente); ele liga em rígida conexão os
gir cada vez mais bela. O princípio condiciona o fim, mas o momentos sucessivos do devenir. Essa lei assinala o ritmo
fim gera o princípio. Eis o limite do finito, do relativo – de de vosso destino.
que sois feitos – constrangido a girar sempre sobre si mesmo, Paralelo ao princípio de causalidade está o da ação e rea-
a nascer e morrer; constrangido, para existir, a perseguir o in- ção. Observai esse dualismo ativo-reativo nos fenômenos so-
finito num movimento que jamais conhece o repouso. ciais, que não progridem em linha reta, mas por caminhos tor-
O universo é uma inexaurível vontade de amar, de criar, de tuosos de impulsos e contraimpulsos, recordando-vos o per-
afirmar, em luta com um princípio oposto de inércia, feito de curso dos rios. Não há dúvida de que eles avançam em corren-
ódio, de destruição, de negação. O primeiro é positivo e ativo, o teza que oscila entre as duas margens do bem e do mal. Cada
segundo é negativo e rebelde. Deus e Diabo são os dois sinais posição, cada conquista, cada afirmação é levada até às últi-
(+ e ) do dualismo. É luta, mas é equilíbrio; é antagonismo, mas consequências, até ao abuso; o homem, totalmente in-
mas é criação, porque, pelo choque e pelo contraste, nasce uma consciente, não sabe parar senão quando a lei de reação levan-
criação, um amor e uma afirmação cada vez mais vasta. O bem ta um dique. Mas a reação, depois, também chega ao abuso,
se serve do mal para progredir, compreende o mal e o constran- até onde a própria Lei constrói novo contradique e repele o
ge a seus fins. No bem está o futuro da evolução, e o mal é o impulso. O homem, absolutamente ignaro e passivo diante da
oposto, em que se apoia o bem para subir. A instabilidade das Lei, é totalmente incompetente para dirigir-se a si mesmo.
coisas não é uma condenação, mas uma escada de progresso. Acreditais que sejam os governos e os parlamentos que guiam
Não fujais do movimento no Nirvana, mas lançai-vos no vórti- os povos? Não. Eles constituem apenas um expoente. Mesmo
ce, para que ele vos leve cada vez mais alto. Cristo vos ensinou nos períodos de anarquia, a história caminha por si, sabiamen-
a vencer a morte e, transformando-a em instrumento de ascen- te guiadas pelas forças ocultas contidas na Lei. O homem é
são, a superar a dor. Lutai corajosamente, sabei sofrer e vencer; sempre “constrangido”, para sua salvação, num ritmo que ele
cada minuto vos levará mais para o alto, para Deus. não sabe compreender e, por isso, chama de fatalidade. Por
exemplo, a história da França desde Luís XIV até à Revolução
e Napoleão. Abuso não se corrige senão com outro abuso. Dis-
XL. ASPECTOS MENORES DA LEI
sestes que a riqueza é um furto, mas somente para roubá-la;
sois virtuosos apenas para perseguir os outros em nome da vir-
Por esses princípios de trindade e dualidade, o universo é tude. Assim recaís sempre sob o peso das consequências de
um trinômio e um binômio ao mesmo tempo. Esses, como vi- vossas ações e jamais quebrais o ciclo dos erros. De abuso em
mos, encontram unidade no monismo de suas equivalências. O abuso move-se a correnteza, e homem algum existe sem culpa;
todo é, concomitantemente, unidade, dualidade e trindade. mesmo onde acredita dominar e vencer, é apenas um autômato
Ao lado desses aspectos principais da Lei, temos outros me- no seio da Lei, que, a cada volta, lhe diz: basta! Esse o perigo
nores, em que a unidade ainda se subdivide e se diferencia. As que ameaça vossa civilização mecânica. Ai de vós, se abusardes
faces do poliedro são infinitas, a Lei é verdadeiramente inexau- de vosso poder, abandonando-vos aos instintos das épocas pas-
rível. Pensai que código deve guiar o funcionamento de um sadas. Se, dispondo de tais meios de destruição, não renovardes
universo tão vasto, tão complexo, regulado com tanta perfeição. vossa psicologia, estais perdidos.
Vimos o princípio das unidades coletivas, ao qual corres- Muitas vezes, no organismo das leis, algumas se tocam,
ponde, no aspecto dinâmico, o dos ciclos múltiplos e, no aspec- completam-se, e uma continua a outra, mutuamente. Por isso,
to conceptual, o das leis múltiplas: organismo de formas, orga- do princípio de causalidade passa-se ao de continuidade, pelo
nismos de forças, organismo de leis. Também em seu aspecto qual a derivação consequente está ainda mais estreitamente li-
conceptual, o universo é um organismo. A Lei, que, como vi- gada à sua causa, por continuidade: “natura nom facit saltus”.
mos, se decompõe em princípios menores, aqui se recompõe Contíguo é o princípio de analogia ou de afinidade, , que
em maiores. Princípio de divisibilidade e recomposição, que já notamos e aplicamos na estequiogênese, pelo qual todos os
reencontrais com evidência na possibilidade universal de análi- princípios se assemelham no fundo comum do monismo ou
se e síntese, desde a química até à filosofia. Princípio de reuni- unidade de princípio universal; também as coisas têm caracte-
ficação, no qual se equilibra o princípio da subdivisão. res em comum, que permitem o reagrupamento em unidades
Um princípio que guia a forma na ascensão evolutiva, coletivas. Só são possíveis contatos, permutas e fusão entre
oposto ao das unidades coletivas e da recomposição, é o da di- afins, e, neste caso, a afinidade corresponde ao princípio do
ferenciação, pelo qual a evolução ocorre passando do indistin- menor esforço. Vedes um exemplo na formação de vosso pen-
to ao distinto, do genérico ao específico, ao particular, do ho- samento: o desenvolvimento conceptual de menor resistência
mogêneo ao diferenciado. Essa tendência à multiplicação dos é o que procede por associação de ideias. O pensamento é vi-
tipos, à subdivisão da unidade, encontra seu contraimpulso bração e transmite-se por onda. Esta excita apenas as vibra-
compensador, com o qual se reconstrói o equilíbrio, na ten- ções das ondas afins. O que desperta uma ideia em vossa
dência à reorganização e reunificação, provocada pelo princí- consciência ou memória é precisamente a presença da onda da
pio das unidades coletivas. Essa reorganização implica uma ideia afim. Quando não conseguis recordar, a ideia está laten-
progressão constante em complexidade. Essas leis são forças- te, potencial, em vossa consciência: é simples capacidade,
tendências que constituem como que um instinto, uma neces- disposição para responder, tal como um instrumento musical
sidade do devenir, de ser segundo esse mesmo princípio. Mui- que ninguém toca. Nesse estado, a ideia está em repouso, não
tas vezes elas se acasalam pelos contrários, balanceando-se vibra, não a sentis, está fora daquele estado de vibração a que
assim em perfeito equilíbrio. chamais consciência. Uma vibração afim, por tipo e comprimen-
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 49
to de onda, desperta-a espontaneamente, ao passo que uma momentos são inseparáveis; que nenhum dos dois pode ser iso-
ideia diferente e longínqua, embora lógica e sistematicamente lado do seu inverso, que o completa.
próxima, não poderá jamais ressuscitá-la. Disto derivam, com férrea concatenação lógica, estas con-
O princípio geral de ordem diferencia-se segundo o prin- sequências: o que nasce tem de morrer, o que morre tem de
cípio de dualidade e torna-se lei de simetria, lei de compensa- renascer; é absurda, em qualquer caso, uma criação “ex no-
ção, lei de reciprocidade e, quando em movimento, torna-se vo”, mesmo na gênese da personalidade humana, pois esse fa-
ritmo. O universo funciona todo por meio de ritmos, desde os to derrubaria todo o ritmo semelhante ao que verificais nos
fenômenos astronômicos aos psíquicos, dos fenômenos quí- outros fenômenos; se existe um ciclo de vida e de morte em
micos aos sociais. Rítmico é o devenir, periódico é o trans- todos os fenômenos, sem que estes confundam a linha do pró-
formismo em todos os campos, e a evolução, que distingue as prio devenir e percam a própria individualidade, é absurdo
formas, é diferenciação também de ritmos. O princípio de or- acreditar que o fenômeno máximo em vosso mundo, o da per-
dem é princípio de equilíbrio. Vede como, no universo, não só sonalidade humana, deva fazer exceção nesse aspecto, con-
tudo está em seu lugar, mas se equilibra espontaneamente. fundindo-se e desaparecendo, só porque ele vos escapa no in-
Observai como, num mundo tão complexo, existe um lugar visível, ou, então, que tenha de tomar outra direção que não a
para vosso esforço, proporcional às vossas forças. O acaso do retorno cíclico, base da evolução. Não importa que não o
não pode produzir esses equilíbrios. E é essa proporcionalida- toqueis diretamente com vossas mãos. Impõem-vos essas con-
de que, se não vos garante o ócio, garante-vos a vida; se a vós clusões a lei de equilíbrio, o princípio de dualidade, de indes-
impõe um esforço adequado, assegura-vos o indispensável. As trutibilidade, de transformismo e de analogia, combinados em
posições que ocupais, belas ou feias, não são eternas, pois conjunto; eles existem como leis dos fenômenos e podem ser
também a duração do esforço e do repouso é medida e pro- objetivamente controlados. As outras leis concorrem e conva-
porcionada. Nessas leis, encontrareis a razão de tantos fenô- lidam, completando o conceito. Elas são um organismo, e, ao
menos que vos tocam tão de perto. tocardes uma, tocais mais ou menos todas, encontrando-as em
Outros princípios, como o da indestrutibilidade da Substân- toda parte ligadas entre si. Assim, a lei de causalidade mani-
cia e do transformismo universal, estão implicitamente conti- festa-se regulando os efeitos de vossas ações e concatenando-
dos na lei de evolução e são imediata consequência dela – já fa- as todas naquela linha progressiva bem definida de transfor-
lamos disso – como também o são o princípio de autoelabora- mismo, a que chamais vosso destino. Essa lei proporciona o
ção, o princípio do desenvolvimento cíclico, o princípio da ex- efeito à causa, excluindo qualquer possibilidade de derivação
trinsecação do latente, segundo a mecânica da semente e do daquilo que é eterno por obra de uma quantidade temporal. Aí
fruto, o princípio da inércia, que garante sua estabilidade (o está implícita a lei de continuidade, que, combinada com a
misoneísmo do fenômeno, resistência da trajetória a qualquer precedente, garante-vos que é absurdo o aparecimento brusco
desvio), o princípio de finalidade, que lhe estabelece a meta. de um fenômeno sem uma longa maturação, não importando
Outros representam aspectos secundários da grande lei, e cada se esta é subterrânea ou invisível. Um tão complexo organis-
palavra com que a descrevemos pode constituir um seu princí- mo de leis, como vo-las descrevi, arremessa imediatamente ao
absurdo qualquer violação dos princípios, eliminando-a por
pio particular. O princípio único pulveriza-se nos pormenores,
impossibilidade lógica. Só há lugar para desordem no particu-
nas condições mais diversas de atuação, em todas as combina-
lar, mas é desordem aparente, condição de uma ordem maior.
ções possíveis. Poder-se-ia acrescentar um princípio de adapta-
Na grande máquina do universo, nada pode escapar aos prin-
ção e de elasticidade, pelo qual o princípio sabe modelar-se em
cípios que lhe regulam o perfeito funcionamento. Sem dúvida
infinitos matizes nos casos particulares; e um princípio de difu-
que a vós, mergulhados no mundo dos efeitos, no imediato
são e repercussão, pelo qual cada vibração, assim como cada
contato com o relativo e o particular, o universo pode parecer
mudança, encontra um ouvido que a escuta, um eco que a repe-
confusão caótica e inextricável. No entanto vede que, entre
te, uma resposta que a completa. Até ao infinito, a série dos
tanta destruição, tudo sobrevive; que, apesar de tantos movi-
princípios é apenas a descrição dos infinitos momentos e aspec-
mentos em todas as direções e do diferenciar-se do princípio
tos do universo. Esses princípios surgirão espontaneamente à
único em tantos momentos diferentes, o ritmo é reconstruído
luz, à proporção que continuarmos.
perfeito, graças aos três grandes princípios: de unidade, de or-
A finalidade desta exposição de princípios não é apenas dem e de equilíbrio. Ensinei-vos o caminho da síntese, e, quan-
descritiva: possui um significado mais profundo, o de traçar to mais alto subirdes, mais evidente sentireis o monismo no to-
para vós as leis dos fenômenos. Fixado o princípio, estabele- do e, no processo genético, a estrutura de um conceito. No uni-
cido que, em muitos casos, ele corresponde à realidade, não verso, tudo se harmoniza num concerto imenso de todas as cria-
somente poderá ele ser estendido, pela lei de analogia, a to- turas, de todas as atividades, de todos os princípios.
dos os fenômenos, mas, mesmo quando só puderdes ver um Não vos isoleis em vosso pequeno eu, naquele separatis-
segmento de um fenômeno em seu transformismo, podereis mo que vos limita e vos aprisiona. Compreendei essa unida-
também completá-lo, defini-lo e descrevê-lo nos trechos em de, lançai-vos nessa unidade, fundi-vos nessa unidade, e vos
que escapa à observação direta. Individuando e agrupando os tornareis imensos. Acima do estridor do contraste e da luta,
fenômenos em leis e princípios, ser-vos-á muito mais fácil ouvireis cantar um imenso ritmo majestoso. Assim como a
segui-los em toda a sua extensão e assim escalar até ao des- força de gravitação liga indissoluvelmente as unidades físi-
conhecido. Por exemplo, se o princípio de dualidade vos diz cas que giram nos espaços, assim a unidade de conceito dire-
que cada unidade é um par de partes inversas e complementa- tivo liga todos os fenômenos numa indissolúvel solidarieda-
res, podeis facilmente deduzir daí – se esse princípio é en- de, tornando todos os seres irmãos entre si. Este universo,
contrado em toda parte – que vosso mundo, visível e sensó- tão instável e, no entanto, sempre equilibrado; tão diferenci-
rio, pode ser completado, em sua segunda metade, por um in- ado no particular e, contudo, tão compacto no conjunto; tão
verso mundo invisível, mesmo que este escape a vossos sen- rígido em seus princípios, mas elástico; tão resistente a
tidos. Se o princípio da indestrutibilidade da Substância e do qualquer desvio, mas sensibilíssimo, é uma grande harmonia
transformismo universal vos afirma que nada se cria e nada e uma grande sinfonia, onde miríades de notas diferentes,
se destrói em sentido absoluto, mas tudo se transforma no re- desde o roncar do trovão até aos cataclismos estelares, do
lativo, isto quer dizer que a criação é condição de destruição, turbilhão atômico ao canto da vida e da alma, harmonizam-
e a destruição é condição de criação; que, no binômio, os dois se num único hino que diz: Deus.
50 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
XLI. INTERREGNO alma, e lançar a este escrito um olhar simplesmente curioso, ou
apenas ávido de aprendizagem, não ficará nutrido.
Mais uma pausa em nossa longa caminhada; repouso para A pena que escreve e segue meu pensamento gostaria de
a áspera tensão de vosso pensamento e orientação no vasto precipitar-se para as conclusões. Mas o caminho tem de ser to-
mar de conhecimento que vos exponho, de maneira que vos- do percorrido; o edifício é vasto, e o trabalho tem de ser execu-
sa meta esteja sempre presente. tado por inteiro, para que a construção seja sólida e possa resis-
Não digais: felizes os que podem viver sem saber e sem tir aos golpes do tempo e dos céticos. Nesta pausa que vos con-
perguntar. Dizei antes: felizes aqueles cujo espírito jamais se cedo, deixo a alegria das antecipações, o pressentimento das
sacia de conhecimento e de bem, que lutam e sofrem por uma conclusões e o repouso da visão de conjunto. O próprio tratado
conquista cada vez mais alta. Lamentai os satisfeitos da vida, assim se valoriza, ilumina-se com uma luz mais alta que a pura
os inertes, os apagados; o tempo deles é apenas ritmo de vida erudição ou os fins utilitários; ilumina-se com um significado
física e transcorre sem criações. Eles recusam o esforço destas que, muitas vezes, a ciência não possui. Só com essa nobreza
elevadas compreensões que vos ofereço, e não existe luz no de objetivos e com essa pureza de intenções, tem-se o direito de
amanhã para o espírito que adormece. olhar de frente os maiores mistérios do ser e de enfrentar os
Meu olhar novamente pousa em vosso mundo, saturado de problemas que dizem respeito à vida e à morte.
inconsciência e de dor, de erudição e de agnosticismos, de lu-
ta e de loucura; turbilhões de paixões, provas tremendas, tor- XLII. NOSSA META. A NOVA LEI
mentos cobertos de sorrisos. Grande e trágico é o quadro de
vossos destinos, porque ouço aquele grito desesperado que O conceito científico de evolução, base deste tratado, des-
prorrompe da alma e que escondeis, porque, no fundo do riso pertar-nos-á para a visão de uma nova lei, imensamente mais
dos gozadores, ouço o respiro dos agonizantes em desespero. elevada que a lei da luta pela vida e da vitória do mais forte,
Alma, alma, centelha divina que nenhuma de vossas loucuras que vos dirige e impera no mundo animal. Diante desta lei da
jamais poderá destruir, sempre pronta a ressurgir cada vez mais força, contraponho a mais alta lei da justiça. Presente na estrada
bela de cada dor! Potência que jamais se cansa de ser e de criar, da evolução, que ressoa em minhas palavras, em cada fenôme-
só tu verdadeiramente vives. Nenhuma conquista de pensamento, no e em cada criatura do universo, esta nova lei é o degrau su-
nenhuma afirmação humana poderá jamais extinguir tua sede de cessivo àquele em que vos encontrais e vos espera como imi-
infinito. Vossa ciência, muitas vezes mera presunção de palavras nente superação daquela animalidade, donde deveis destacar-
eruditas, e vossa civilização exterior e mecânica esqueceram que vos para sempre. A “Nova Civilização do Terceiro Milênio” es-
ela é o centro da vida, a causa primária intrínseca dos fenômenos tá iminente, e urge lançar-lhe os fundamentos conceptuais10.
mais próximos de vós. A alma tem suas necessidades e seus di- Como vedes, minha meta é bem mais alta que o mero co-
reitos. Não se pode matá-la, não se pode atordoá-la para fazê-la nhecimento ou a solução de problemas com intuito intelec-
tual e, muito menos, utilitário. Esta minha palavra não é me-
calar. Não ouvis seu grito desesperado, que se ergue entre vossas
ra afirmação cultural, é apenas um meio. Não venho para
vicissitudes individuais e sociais? Sua vida, negligenciada, pesa
alardear sabedoria, mas para lançar um movimento mundial
em vosso destino e o arruína. Vossa alma sofre, e sequer sabeis
de renovação substancial de todos os princípios que hoje re-
encontrá-la novamente; certos abismos vos desanimam, e as
gem vossa vida e vossa psicologia.
águas se fecham tranquilamente num sorriso aparente por cima
Não mais guerra, mas paz; não mais antagonismos e ego-
do báratro tremendo. Que acontecerá lá embaixo, no mistério das
ísmos individuais e coletivos, destruidores de trabalho e de
causas profundas, que desejaríeis ignorar e afastar da consciên-
energias, mas colaboração; não mais ódios, mas amor. Cum-
cia? Alguma coisa palpita e treme nas trevas profundas. Cada ser
pra cada um o seu dever, e a necessidade de luta cairá por si.
esconde dentro de si uma sombra secreta que não ousa olhar, mas
Só a retidão produz equilíbrio estável nas construções hu-
que jamais poderá esconder de si mesmo: uma sombra sempre
manas, ao passo que a mentira representa um fundamental
pronta a ressurgir, logo que uma hora de paz diminua a tensão da
desequilíbrio, irremediável vício de origem, que destrói tu-
corrida louca com que quereis distrair-vos. A alma não se sacia do. A justiça suprimirá o gigantesco esforço da luta, que so-
embalando o corpo em comodidades supérfluas e dispendiosas, bre vós pesa como uma condenação. O amor, que só existe
ou acariciando os olhos com um brilho apenas externo. Na satis- no mundo em oásis fechados, isolado no deserto do egoísmo,
fação dos sentidos, alguma coisa sofre igualmente no íntimo e precisa sair do âmbito fechado desses círculos e invadir to-
agoniza numa angústia profunda. Resta um vazio dentro de vós, das as formas de manifestação humana. Muitas vezes, exa-
em que apenas uma voz, perdida e desconsolada, eleva-se inqui- tamente onde o homem trabalha, falta esse cimento que une,
eta para perguntar: e depois? essa potência de coesão que amortece os choques e ajuda o
Então vos falo. Falo num tom de paixão, para as almas esforço, impedindo que tanto trabalho se perca em agressi-
prontas e ardentes; em tom de sabedoria, para quem é mais vidades demolidoras. Num homem superiormente conscien-
apto a responder às vibrações intelectivas. A todos falo, por- te, os fins da seleção do melhor podem ser conseguidos, de
que quero sacudir e unir todos em uma fé mais alta, numa preferência aos caminhos da luta desapiedada, pelos cami-
verdade mais profunda. Aqui, dirigindo-me à mente, convoco nhos da compreensão. Existe uma nova virilidade mais po-
todos à colheita: químicos e filósofos, teólogos e médicos, as- derosa para o homem: a que supera a fraqueza da mentira, a
trônomos e matemáticos, juristas e sociólogos, economistas e maldade do egoísmo, a baixeza da luta agressiva.
pensadores, os sábios em todos os campos do cognoscível hu- A inversão de vossas atuais leis biológicas e sociais é
mano, a cada um falo sua própria linguagem; convoco à colhei- completa. A antítese é fundamental. O pressuposto da má-fé e
ta as mentes mais elevadas, que dirigem o pensamento humano, o sistema da desconfiança, hoje, invadem a substância de to-
para que compreendam esta Síntese e, finalmente, saibam al- dos os vossos atos. Esse princípio tem de ser derrubado. O
cançar com ela um pensamento unitário que resolva tudo e o sistema das leis formais e exteriores já deu todo o seu rendi-
diga à mente e ao coração, para os supremos fins da vida. mento. É necessário passar ao sistema das leis substanciais in-
Esta pausa é para vos dizer que, no fundo deste árido tratado teriores, que não funcionam por coação e repressão a posterio-
científico, arde uma paixão imensa de bem; esta paixão é a cen- ri, mas por convicção e prevenção; que agem não depois da ação,
telha que anima toda essa ciência que vos exponho. Quem não
10
sentir essa centelha, que se comunica diretamente de alma para Ver o volume: A Nova Civilização do Terceiro Milênio.
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 51
tarde demais no campo das consequências e dos fatos, mas an- condenações, que punirão eternamente a sociedade por suas
tes, na raiz da ação, no campo das causas e das motivações. próprias culpas. Pela mesma razão que houve uma vítima na
As leis substanciais interiores vão escritas nas almas, com a cruz, hoje a humanidade tem de saber oferecer-se a si mesma
educação que plasma o homem. para esta sua nova, profunda e definitiva redenção. Sem holo-
Em vosso século, a luta não é mais de corpos, mas de ner- causto, jamais haverá redenção. Aí, nesse mundo louco que se
vos e de inteligência. A luta também evolui e já atingiu formas arma, com perspectivas cada vez mais desastrosas contra si
mais espirituais. Os tempos são maduros, pelo desenvolvimento mesmo, com meios já tão tremendos em vista dos hodiernos
dos meios científicos e pelo desenvolvimento das inteligências. progressos científicos, que uma conflagração não deixará ho-
Profetas e pensadores foram obrigados, muitas vezes, a não di- mem nem civilização salvos sobre a Terra; aí, onde o homem
zer ou a velar a verdade diante da multidão, sempre pronta para age assim, só existe uma defesa extrema: o abandono de todas
adulterar tudo, para reduzir tudo aos termos da própria psicolo- as armas”. Mais tarde veremos como.
gia, impondo esta como norma coletiva. Mas o mundo, hoje, Dizeis-me: “Temos o dever da vida”.
em sua racionalidade, impôs-se como dever aceitar tudo o que Eu vos replico que, quando, com espírito puro, proferis “Em
se demonstra lógico e racional. Colocou-se na posição de quem nome de Deus”, a terra estremece, porque as forças do universo
pode e deve compreender. Por outro lado, os meios ofensivos se movimentam. Quando sois verdadeiramente justos e quando,
alcançaram uma potência jamais verificada na história e não se inocentes, sois atingidos pela violência, que usurpa a vitória de
podem guiar mais pela psicologia feroz e pueril do passado. A um momento, o infinito se precipita a vossos pés para vos gritar
humanidade está na encruzilhada, e não há mais possibilidade vitória e vos elevar para o alto como triunfadores, na eternida-
de fugas: ou compreender, ou exterminar-se. Este não constitui de, fora do ínfimo átimo do tempo em que o inimigo venceu.
um problema abstrato e teórico, mas concreto, social e indivi- Eis o que peço à alma do mundo. Sua alma coletiva, una e
dual; problema de vida ou de morte. livre como uma só alma, pode escolher de sua escolha depende-
Minha meta é a compreensão de uma lei mais alta, lei de rá o futuro. Um incêndio tem de alastrar-se, tão forte que derre-
amor e de colaboração, que a todos una num grande organismo, ta todo o gelo de ódio e de egoísmo que vos divide, vos torna
animado por nova consciência universal unitária. Realmente famintos, vos atormenta. O mundo, de um hemisfério ao outro,
não se trata de mais uma nova sabedoria, pois repito a Boa No- me escuta, e minha voz conclama todos os homens de boa von-
va, que já foi ditada há milênios aos homens de boa vontade; tade. O novo reino é o esperado Reino de Deus, uma construção
torno a repeti-la toda, idêntica na substância, porém mais am- imensa, que deve realizar-se não nas formas humanas, mas no
pliada, ajustada ao mais vasto alcance de vossa mente mais coração dos homens; criação antes de tudo interior, que se ope-
amadurecida, para que finalmente vos agite, vos inflame e vos ra ao vos tornar melhores. Se não compreenderdes, a marcha do
salve. Eis nossa meta: a palavra eterna, o alimento que sacia, a progresso do mundo demorará milênios.
solução de todos os problemas, a síntese máxima. Este repouso que desejei no meio da jornada, esta mudan-
Chegarei ao Evangelho de Cristo pelos caminhos da ciên- ça de argumento e de estilo, depois da fria análise científica,
cia, ou seja, chegarei ao Evangelho pelos caminhos do materi- esta explosão de paixão é para que eu seja compreendido e
alismo, a fim de fundir os dois pretensos inimigos: a ciência e “sentido” por todos. Desejei esta pausa para que este tratado –
a fé. Isto para vos mostrar que não existe caminho que não le- complexo para os simples e supérfluo para os puros de espíri-
ve ao Evangelho, para impô-lo a todos os seres racionais, tor- to, que já compreenderam – recorde à ciência que ela não nas-
nando-o obrigatório, como o é qualquer processo lógico. Ele é ceu somente para exibir-se orgulhosamente, mas que tem a
a nova lei super-humana, a superação biológica imposta pela responsabilidade moral de guiar as consciências; recorde à ci-
evolução da humanidade neste momento histórico, quando es- ência que dela falo e a supero com uma finalidade bem mais
tá para surgir a nova civilização do Terceiro Milênio. Chegou alta que a do simples conhecimento e utilidade que a impele.
a hora em que estes conceitos, esquecidos e não compreendi- Uma finalidade que a ciência ignorou muitas vezes: a ascen-
dos, pregados, mas não vividos, têm que explodir por potência são do homem para os mais altos destinos.
própria, no momento decisivo da vida do mundo, fora do âm-
bito fechado das religiões, na vida, em que o interesse luta, a XLIII. OS NOVOS CAMINHOS DA CIÊNCIA
dor sangra, a paixão transtorna.
O Evangelho não é um absurdo psicológico, social, cien- Não há dúvida que para vós, homens de razão e de ciência,
tífico. Não é negação, mas afirmação de humanidade mais em vosso tempo e de acordo com a vossa atual psicologia, tra-
elevada, no nível divino. ta-se de uma linguagem bastante estranha esta que unifica to-
A coisa simples e tremenda que o homem de hoje tem de dos os problemas: os do saber e os da bondade, e os coloca
fazer, na encruzilhada dos milênios, é colocar a alma nua di- lado a lado, fundindo ciência com Evangelho, acima de vossas
ante de Deus e examinar a si mesmo com grande sinceridade e distinções, numa mesma Síntese. Mas todos os vossos siste-
coragem. Se vós, almas sedentas de ação exterior, de movi- mas racionais e científicos são filhos da psicologia de hoje,
mento e de sensação, não sabeis ouvir no silêncio a voz das que não é a de ontem nem será a do amanhã; vossos métodos
grandes coisas que falam de Deus, e quereis expandir esta ín- e pontos fixos conceptuais passarão, como outros passaram, e
tima vida do espírito para vossa exterior realidade humana, e tudo será superado. O tempo vos modifica, ó filhos do tempo,
agir, gritar, conquistar e vencer, ainda que com o braço e a e vos impele cada vez mais para o alto. Assim como evolvem
ação, pois bem, eu vos digo: as formas de luta e as do sofrimento, também evoluem o pen-
“Levantai-vos e caminhai para vosso inimigo mais acerbo, samento e suas formas, porque a criação é contínua e o dina-
para aquele que mais vos traiu e maltratou, e, em nome de mismo divino está sempre presente.
Deus, perdoai-lhe e abraçai-o; ide àquele que mais vos roubou Àqueles que, no campo de todas religiões, perscrutam para
e perdoai-lhe a dívida e, mais ainda, dai-lhe tudo o que possu- encontrar erro e condenar eu digo que coloquem com sinceri-
ís; chegai àquele que vos insultou e dizei-lhe, em nome de dade sua alma diante de Deus e escutem a voz íntima que diz:
Deus: eu te amo como a mim mesmo, porque és meu irmão”. esta palavra é verdadeira. Onde existe, pergunto-vos, onde
Dir-me-eis: “Isto é absurdo, é loucura, é ruinoso. É im- existe na Terra uma força que verdadeiramente vos sacuda e
possível, na Terra, esta deposição de armas!”. arranque do cálculo contínuo de todos os interesses humanos?
Eu vos digo: “Sereis homens novos somente quando usardes E quem faz, na Terra, um esforço enérgico, heroico, decisivo,
métodos novos. De outra forma jamais saireis do ciclo das velhas para salvar os valores morais?
52 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
À ciência, que aplica o ouvido para ver resolvidos, com suas Doutra parte, não haveis certamente de presumir que o pre-
próprias palavras, problemas tão desusados para ela, eu digo: sente de vossa ciência contenha todo o saber possível. A experi-
chegou a hora de mudar de caminho, porque é inútil, é loucura, ência do passado vos ensina que tudo pode mudar, dos pés à ca-
acumular milhões de fatos sem jamais concluí-los. A síntese ur- beça, com resultados imprevisíveis, a cada momento. Sabeis, por
ge, e a ciência cala-se; olha suas colunas de fatos, colunas de um experiência, que as revoluções no campo do saber são normais
templo imenso, cheio de silêncio, e cala-se. O apriorismo sensó- em certas ocasiões. Não é lógico e consentâneo com vossas teo-
rio amarra na terra suas asas e limita-lhe as vias da pesquisa; rias materialistas evolucionistas, que a natureza, chegando a uma
apriorismo da dúvida, que, se olha para a objetividade, fecha ao nova maturação, toda estendida para o futuro, como tentáculo pa-
espírito os caminhos rápidos da intuição e da fé. Mente e cora- ra o porvir, em antecipação às formas evolutivas que esperam em
ção exigem uma resposta, e os últimos efeitos que tocais com embrião, lance um tipo de homem novo, que possa conceber tudo
vossos sentidos só podem dar-vos os últimos reflexos daquele diferentemente? Não é logicamente possível que, dessa forma,
incêndio que permeia o infinito. Não é acumulando fatos que toda a técnica mental humana possa mudar, tornando normal o
se pode dar uma resposta; o princípio vital que anima uma ár- que hoje é exceção, isto é, a intuição do gênio, a inspiração do ar-
vore jamais será encontrado pela observação e enumeração de tista, a super-humanidade do santo? As fases evolutivas próximas
suas folhas, pois ele é algo de íntimo, de profundo, de imen- de vós tocam, depois da fase orgânica, a fase psíquica. Como ve-
samente superior e de essencialmente diferente de qualquer des, as novas concepções desta Síntese, mesmo para a mentalida-
aparência sensória. Assim, na zoologia e na botânica, anato- de dos céticos e dos materialistas, apresentam-se com todos os
mizais cadáveres. Mas que podem dizer-vos as formas de vi- caracteres da racionalidade e terão de ser reconhecidas como
da, quando as matastes, expelindo-lhes o princípio substancial aceitáveis, pelo menos como hipótese de trabalho. Isto também
que as plasma e as rege, que tudo resume e determina, o único nas últimas conclusões de que vos falei. Não só não contradize-
que pode exprimir o significado do fenômeno? mos os princípios e postulados demonstrados pelos fatos e acei-
Que na ciência existe uma impotência apriorística para con- tos pela ciência, mas os fundimos organicamente numa unidade
cluir os fatos já demonstraram; por outro lado, o interesse e a universal. A ciência é aqui combatida, corrigida e elevada com
ambição – com frequência o único móvel secreto de todo traba- seus próprios métodos, com sua própria linguagem. O cético en-
lho – fecham à alma os caminhos da compreensão, levantando contra neste tratado não apenas os caracteres das possibilidades,
uma barreira entre o eu e o fenômeno. A atitude psicológica do mas os da maior logicidade. A razão fica satisfeita no íntimo des-
observador torna-se assim uma força negativa e destruidora. Co- te organismo, que harmonicamente dá a razão de tudo. Esta Sín-
mo podeis esperar que se vos abram as portas do mistério, se tese pode ser elevada a teoria, porque é o único sistema que dá
vós mesmos ergueis barreiras com vossa posição de desconfi- uma explicação completa e profunda de todos os fenômenos,
ança, se partis da negação, se está tão inquinada a primeira vi- mesmos daqueles que não podeis experimentalmente controlar.
bração de origem, segundo a qual tomam sua direção todas as Não importa se tudo o que digo não possa ser contido dentro de
formas de vosso pensamento? Deveis compreender que a dúvi- vossas categorias mentais; se não corresponde àquele arquiva-
da, o agnosticismo são uma atitude psicológica negativa, que mento de conceitos habitual de vossa forma psíquica. A limitação
desagrega o fenômeno, e é precisamente essa posição que vos de vossa razão e a cegueira de vossos sentidos vos levam, natu-
fecha as vias de sua compreensão. Os fenômenos mais sutis e ralmente, a negar tudo o que a eles escapa, mas isto não importa.
mais altos se apagam, automaticamente, quando deles vos avi- Eles são formas relativas, que superareis. Diante da imensa ver-
zinhais, por isso é interditado o ingresso da ciência nos campos dade, antes do que meios, eles são uma prisão que vos encerra e
mais altos. É indispensável a presença de um fator que a ciência vos limita. Mas bem depressa vosso ser se libertará, e a ciência,
ignora de propósito: o fator espiritual e o moral. São eles a con- quer queira quer não, superará sua posição atual.
dição fundamental de sintonização e de potência de vossa psi-
que, que é o instrumento de pesquisa. XLIV. SUPERAÇÕES BIOLÓGICAS
O futuro da ciência reside no mundo mais sutil do imponde-
rável. Se não levardes para a pesquisa científica esse estado de Tudo isto não constitui simples afirmação. Enquanto lenta-
espírito, que nasce apenas de uma grande paixão pura e desinte- mente construo em vossas mentes este edifício conceptual, gra-
ressada, jamais avançareis um passo. Esta atitude de vosso eu é dualmente o transmito ao mundo, para que a ele corresponda
fundamental, porque é lei que, onde faltam sinceridade de inten- uma compreensão gradativa; na atmosfera das forças do planeta,
ções e impulso de fé, as portas do conhecimento se fecham. O imperceptíveis a vós, amadurecem as causas de eventos decisivos
mistério tem suas defesas e suas resistências, e somente um esta- e tremendos, determinam-se movimentos, canalizam-se correntes
do de vibração intensa pode ter a força de superá-las. A verdade dinâmicas, acentuam-se atrações e repulsões, donde depois se ex-
só responde a um apelo desesperado de uma grande alma que in- teriorizarão os fenômenos, desde as convulsões físicas às morais,
voca a luz para o bem. Para quem olha ávido e curioso, o olhar se da morte à vida de povos e civilizações. Mesmo exteriormente,
embaça e as portas do conhecimento permanecem trancadas. A diante dos olhos do historiador e do pensador, apresenta-se o
Lei, mais sábia que vós, não admite no templo os incapazes e os mundo maduro para renovações profundas.
imaturos; o conhecimento, arma poderosíssima, só é concedido a No entanto poucas são as mentes, entre as que dirigem o
quem saiba fazer bom uso dele. Na Lei, nenhuma desordem é mundo nos campos mais diversos, que têm o pressentimento
permitida, e os inferiores, com sua inconsciência, não são ad- da iminência dos novos tempos. A ciência, mais esmagada
mitidos para trazer perturbação fora de seu campo. É lei, pois, que sustentada pela imensa massa de material de observação
que cada progresso seja merecido e a cada conquista corres- que acumulou, está sempre aguardando sínteses, perdida no
ponda um valor substancial; a verdadeira ciência não consiste dédalo infinito das análises. As religiões adormecem no indi-
num fato exterior, repartido com todos, acessível a todas as ferentismo. O mundo é navio que vaga sem timoneiro, sem
inteligências, mas é a última fase de uma íntima e profunda um princípio unificador que o dirija; as forças construtivas
maturação do ser. Na conquista do conhecimento, como em pulverizam-se em pormenores de interesses particulares e de
todas as maturações biológicas, não há atalhos possíveis, mas pequenos jogos egoísticos e, ao invés de coordenarem-se num
é indispensável desenvolver toda a trajetória do fenômeno. esforço orgânico, eliminam-se e anulam-se. A psicologia cor-
Deveis admitir que o universo existe perfeito e assim funciona rente contém o germe da desagregação.
há muito tempo, independente de vosso conhecimento, que A alma humana, entre uma ciência utilitária de comodidades
nada cria e nada desloca, senão vossa posição. e uma religião de conveniência, arrasta-se terra a terra numa at-
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 53
mosfera de apatia, perdida, sem meta. O presumido dinamismo O homem refará a grande descoberta de que um supremo
de vosso tempo é apenas uma corrida louca, toda exterior. Para pensamento desce do Alto. Na pesquisa fenomênica, a ciência,
onde correis, se ignorais os mais altos objetivos da vida? Para desalentada, verá entrar imponderável elemento novo, antes re-
que serve correr e chegar, se o homem dilacera-se a si mesmo na legado ao hipotético e ao absurdo, ou seja, bondade e retidão,
pessoa de seu irmão e faz tantas vezes da Terra, abençoada por os valores morais que fazem a pureza e a potência do instru-
Deus, um inferno ridículo e macabro? Ou correis apenas para mento psíquico, que se comunica por sintonia e afinidade. As-
atordoar-vos, para não vos sentirdes a vós mesmos, para fugirdes sim como, no templo, a música dos sons, ao saturar o ambiente
da voz de vossa alma sem paz, porque está sem meta? Não é esta, de harmonias acústicas, prepara o espírito para a comunicação
antes de tudo, a fuga do silêncio e da solidão, em que a alma fala espiritual da oração, também a harmonia dos sentimentos e dos
e indaga as grandes perguntas? É medo, medo de ficar sozinhos, conceitos, atraindo as harmonias mais vastas, tornará o espírito
de interrogar-vos, de sentir-vos sós diante dos últimos proble- apto às mais altas compreensões. A inspiração criadora substi-
mas que ninguém sabe resolver, mas que a alma, mesmo assim, tuirá, como meio normal, a lenta pesquisa racional. E a ciência
quer saber; medo dos grandes problemas do silêncio, onde se verá sua racionalidade posta de lado como meio menor, já insu-
ouvem gritar as culpas; medo do profundo, em que reside o de- ficiente diante dos novos problemas formidáveis, que só a visão
ver, a verdade, Deus. Ao som desta voz solene, preferis a para- direta pode enfrentar e resolver. Os componentes da super-
lisia psicológica e o tormento da agonia da alma. A cada mo- humanidade – do cientista ao artista, do mártir ao herói, do gê-
mento, renovais o esforço de lançar-vos para fora de vós mes- nio ao santo, até agora incompreendidos em sua função bioló-
mos no mundo, em busca do infinito, embora ele esteja aí, den- gica de seres ancorados num nível mais alto que o da normali-
tro de vós. Perdestes a simplicidade dos grandes pensamentos, dade medíocre – dar-se-ão as mãos, realizando sob mil aspectos
que confortam. O infinito, que está pleno deles, transbordante e enfrentando de mil lados o mesmo trabalho de iluminar e gui-
de alimento substancial, vos parece um báratro abissal, tenebro- ar o mundo. O super-homem, cidadão do tão esperado Reino de
so, sobre o qual temeis debruçar-vos. Deus, normalizará sua função coletiva, deixando à razão dos
O homem esqueceu, num dédalo de complicações, a beleza menores, dos atrasados, dos últimos a chegar no caminho evo-
e a paz das grandes verdades primordiais. No entanto o homem lutivo, o trabalho mecânico da análise das grandes visões intui-
as conhecia há muito tempo, por comunicação direta, através da tivas, para fixá-las e demonstrá-las à míope normalidade. A ma-
revelação, primeiro método intuitivo e sintético do saber huma- turação desta super-humanidade será a maior criação biológica
no, pai do método dedutivo. O princípio único, do qual se de- de vossa evolução e representa a passagem para uma lei de vida
duziam as verdades menores, descia do Alto. Depois, à força de superior, que vai da força à justiça, da violência à bondade, da
deduzir, o homem afastou-se de tal maneira da fonte primeira, ignorância à consciência, do egoísmo destruidor ao amor cons-
que lhe negou até a existência. A dedução, uma vez perdida a trutivo do Evangelho. Esta é a superação da fase animal e huma-
ligação com a fonte, não teve mais sentido. O homem recaiu na, a mais alta vivida em vosso planeta, em que culmina o esfor-
sobre a terra, sem asas e sem vista; na terra bateu sua cabeça ço preparado nos milhões de milênios, em que a evolução ascen-
para que o fenômeno lhe falasse e fornecesse a ele, última poei- de da matéria à energia, à vida, ao espírito e toca os mais altos
ra das centelhas caídas da luz única, com sua pequena luz, um
cimos, de onde vos lançareis ao encontro do infinito.
átimo da verdade infinita e eterna. E a ciência, lamentavelmen-
te, acumulou com paciência as mínimas luzes, acreditando que,
XLV. A GÊNESE
com a pequena concha da razão humana, poderia esvaziar o
oceano; acreditando que podia reconstruir o poder fulgurante
“No princípio Deus criou o céu e a terra.
do sol, somando e combinando vagas fosforescências. Mas as
...e as trevas estavam sobre a face do abismo...
portas permaneceram fechadas e ainda continuam fechadas.
E Deus disse: „Faça-se a luz‟. E a luz foi feita.
Mas a lei de Deus prossegue no mesmo passo, acima das
tempestades humanas e, nos grandes momentos, salva sozinha ...e separou as águas... e à massa de água chamou mar.
o equilíbrio. Hoje, como nos tempos antigos das primeiras reve- E disse: „A terra germine erva verde...‟
lações, segura de novo o homem pela mão e lhe mostra o cami- E a terra produziu erva verde...
nho. Diante dos acontecimentos supremos, os extremos da his- E depois Deus disse: „As águas produzam os répteis, animais e
tória se tocam, e a intuição reabre hoje, aos humildes, as portas viventes, as aves sobre a terra e na amplidão dos céus‟.
da verdade. Nos grandes momentos, só a mão de Deus vos guia E Deus criou os grandes peixes e todos os animais vivos...
a todos, e ela está hoje em ação, como no tempo das maiores produtos da água, segundo suas espécies...
criações. Felizes aqueles que sabem, rapidamente, pelas vias da E disse: „Façamos o homem à nossa imagem e semelhança...‟
fé, atingir a meta! O mais amplo saber é sempre coisa pobre di- E Deus criou o homem à sua semelhança...
ante do sincero e humilde ato de fé de uma alma pura. E a ciên- ...Formou o homem do pó da terra e soprou-lhe na face o so-
cia racional debate-se em vão para sair do claustro da racionali- pro da vida, e o homem foi feito alma viva.
dade por ela mesma construído, que agora a limita, porque toda Essas foram as origens do céu e da terra...”
a construção, como efeito, não pode superar em sua massa a po- (Pentateuco, A Gênese, Cap. I)
tência dos meios empregados. A ciência racional, que hoje se
debate impotente aos pés de um mistério cada vez mais vasto, Assim nos revelou a inspiração de Moisés.
encontra-se estupefata diante de uma revolução completa de Em sua intuição, ele traçava o caminho que nós segui-
métodos e de formas de pesquisa; vê-se permeada, sem ao me- mos: a evolução do ser, da matéria ao espírito. No irrefreá-
nos percebê-lo – ela que acreditava guiar, mas era guiada pelas vel transformismo evolutivo, primeiro aparece a matéria: a
forças da evolução espiritual do mundo – por um quid novo pa- terra. Depois se move a energia: a luz. Nas cálidas bacias
ra ela, super-racional, um fator que lhe escapa, porque supera das águas reunidas, a mais alta forma evolutiva dinâmica
seus meios lógicos, é mais sutil e, no entanto, mais poderoso concentra-se na potência ainda mais alta de um novo eu fe-
que seus meios objetivos; a racionalidade, único deus do mun- nomênico, e nasce o primeiro germe de vida em sua primor-
do durante um século, abate-se desanimada diante da explosão dial forma vegetal, que depois se alastrou sobre a terra e as-
estranha e envolvente da alma humana, que se modifica e pene- cendeu às formas animais, sempre ansiosa por subir. O im-
tra por novos caminhos os fenômenos e intui diretamente o in- pulso divino, sempre atuante, criou o homem do pó da terra,
finito como realidade imediata. feito de matéria (), que subiu até à fase de consciência (, o so-
54 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
pro da vida). E aparece o homem, que resume em si a obra XLVI. ESTUDO DA FASE  – ENERGIA
completa e a trindade divina de seu universo:   .
Essas foram as origens do céu e da terra. Ao observar o devenir das formas dinâmicas, vamos deline-
Observemos o nascimento da gravitação, a protoforça típica ar agora, também, as características das individuações típicas e,
do universo dinâmico. Retomemos agora o caminho interrom- no devenir, encontraremos o conceito e a lei que as governa. Os
pido. Em sua primeira forma gravífica, nasceu a energia. Na ín- três aspectos – estático, dinâmico e conceptual – da fase  po-
tima estrutura cinética da matéria ocorreu a mudança de ritmo e derão, dessa forma, fundir-se numa única exposição, e isso tor-
de direção no movimento. A matéria despertou de sua longa e nará nosso passo mais ágil e veloz.
silenciosa maturação e revive num nível mais alto, a fim de se A transformação da matéria em energia não é mais, para
preparar para sustentar a centelha da qual nascerá a vida. Em vós, apenas uma hipótese. Sabeis calcular a quantidade de
sua forma dinâmica, a Substância indestrutível assume um pas- energia atômica armazenada na matéria. A massa de um grama,
so de transformismo mais acelerado; o movimento de rotação considerada no zero absoluto, contém 22 bilhões de calorias.
planetária, fechado em si mesmo no íntimo da matéria, explode Sabeis que o Sol está em estado de completa desagregação
no ritmo ascendente da onda, que cria e multiplica os tipos di- atômica pela radioatividade, o que significa saída de elétrons
nâmicos. O movimento invade a grande máquina do universo; (energia, transformação de  em ); estes são lançados à Terra,
nova lei estabelece equilíbrio novo e mais complexo em sua es- junto com todas as demais formas de energia. Esses centros di-
tabilidade; o grande organismo não apenas existe, mas funciona nâmicos lançados pelo Sol ricocheteiam, penetram ou se
a fim de preparar-se para viver. combinam na atmosfera elétrica que circunda o vosso planeta,
Eis que nos espaços imensuráveis desenvolve-se uma rota- produzindo vários fenômenos, cujas causas não saberíeis ex-
ção, um caminhar sem limites; a matéria foi permeada de nova plicar de outra maneira, como, por exemplo, o da luz difusa
vibração, que a lança em elipses, em espirais, em vórtices; as no céu noturno. O feixe de radiações dinâmicas que o Sol vos
correntes dinâmicas canalizam-se, equilibram-se, precipitam-se envia é o mais volumoso, complexo e rico. O fato de que os
fulmíneas em todas as direções para mover e animar todas as raios solares, caindo numa superfície negra de um metro qua-
coisas. Logo que nasce,  se individualiza e se diferencia;  es- drado, exercem sobre esta uma pressão de quatro décimos de
tava exteriormente inerte, além da órbita de seu turbilhonar ín- miligrama, vos mostra, além de sua constituição eletrônica,
timo;  expande-se em todas as direções, preenche e une os es- que a radiação-luz se conjuga também com impulsos ativos-
paços numa rede de ações e reações. O funcionamento orgânico reativos de ordem gravífica. Verificais, nos fenômenos de ra-
do universo afirma-se e complica-se. A gravitação liga e une dioatividade, que a dissociação espontânea da matéria implica
suas partes, mantendo-as reunidas. O impulso centrífugo abre num enorme desenvolvimento de calor, devido justamente à
os vórtices e dilata o movimento. À estase solene da muda e emissão (a partir do sistema planetário atômico) das partículas
cega maturação da matéria, sucede a estase mais instável, mas periféricas. E calculastes em mv2/2 (onde m=massa e
igualmente perene, das forças em equilíbrio. As trevas tingem- v=velocidade) a energia cinética de cada partícula, cuja velo-
se de luz, o silêncio ecoa de sons, anima-se o universo. Este cidade média é de 1,78 x 10 9 cm/s.
tem calor e frio; respira, assimila; possui sua circulação, que o Para bem compreender a transmutação da matéria nas for-
nutre, seu metabolismo dinâmico e físico; tem sua própria saú- mas dinâmicas, é mister conhecer bem sua natureza cinética.
de, suas doenças, sua juventude, sua velhice; conhece a vida e a Isto não é fato novo para vós, porque o vórtice eletrônico vos
morte. Pelos espaços explodiu uma palpitação nova, vibração diz exatamente a mesma coisa. Sabeis que cada espécie de áto-
sem repouso de forças que fogem em busca de equilíbrio. mo caracteriza-se por um espectro de emissão produzido por
E, porque a Lei disciplina instantaneamente toda forma di- um comprimento de onda determinado com exatidão. Essa
nâmica logo em seu primeiro aparecimento, cada forma de  apa- emissão espectroscópica acompanha constantemente o átomo
rece exatamente individualizada por uma lei férrea individual – de cada elemento, como seu equivalente dinâmico, provando
seu modo de ser – e a ordem reina sempre soberanamente no sua regular e constante estrutura cinética. Somente esta pode
imenso turbilhão. O aspecto conceptual, nesta fase mais alta, é explicar-vos os movimentos brownianos, que tão bem conhe-
ainda mais transparente. Num universo tão vasto e complexo, ceis. Vimos que a matéria é um dinamismo incessante e que sua
quem, senão o pensamento divino da Lei, disciplinaria tão imen- rigidez é toda aparente, devida à extrema velocidade que a ani-
surável desenvolvimento de forças? Tudo parece ocorrer automa- ma por completo. Sabeis que a massa de um corpo aumenta
ticamente, porque a mão de Deus não é algo externo e visível, com sua velocidade no espaço. Um jato de água velocíssimo
mas é um conceito, é a alma das coisas. As rotações astronômi- oferece à penetração de um corpo a resistência de um sólido.
cas caminham com exatidão matemática. A gravitação, a luz, o Quando a massa de um gás, como o ar, multiplica-se pela velo-
calor, a eletricidade, o som e todas as formas dinâmicas sabem, cidade, ela adquire as propriedades da massa de um sólido. A
todas elas, o seu caminho, e, a cada momento, a cada manifesta- pista sólida que sustenta o avião, sólido suspenso num gás, é
ção, em sua própria consciência instintiva, fala a grande Lei. O sua velocidade em relação ao ar, e este, sozinho, se lançado
entrelaçamento dessas forças é, ainda hoje, a base de vossa vida; como ciclone, derruba casas. Trata-se de relação. Com efeito,
seu modo de ser e de agir, definido com exatidão e constâncias, quanto mais veloz é o avião, menores podem ser as suas asas.
dirige a palpitação regular que vos sustenta; proporciona as radi- Sabeis que esquentar um corpo significa transmitir-lhe nova
ações solares às necessidades do planeta; guia as correntes at- energia, isto é, imprimir-lhe nova velocidade íntima. A análise
mosféricas; regula as sínteses e as trocas das substâncias protei- espectral vos fornece a luz equivalente dos corpos tão exatamen-
cas, a assimilação nos organismos, o crescimento, a respiração, a te, que se torna possível, por meio dessa emanação dinâmica, a
circulação, a reprodução, os nascimentos, as mortes e todos os individuação à distância na astroquímica. É inútil correrdes atrás
fenômenos sociais. Os mais complexos fenômenos ocorrem com de vossos sentidos e da ilusão tátil da solidez, que, por ser a pri-
perfeição, indiferentes ao conhecimento que deles tendes e à vos- meira sensação básica da vida terrestre, é tão fundamental para
sa vontade, até mesmo aqueles que regulam vossa própria vida. vós. A solidez é apenas a soma de movimentos velocíssimos.
Se a vosso esforço só foi deixado o trabalho de vosso progresso, Que não vos iluda a constância das sensações, pois é devida ape-
as forças que vos guiam sabem, por si mesmas e melhor do que nas à constância dos processos íntimos fenomênicos no âmbito
vós, o caminho que deveis seguir. Desta consciência linear (de da lei eterna. Vossos sentidos não sabem perceber sensações di-
primeira dimensão) do universo dinâmico já falamos. ferentes que se sucedam com extrema rapidez.
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 55
A matéria é pura energia. Em sua íntima estrutura atômi- ondas esféricas. Isso é facilmente verificável por meio de
ca, ela é um edifício de forças. Matéria, no sentido de um qualquer fonte de luz e de som. Como vedes, a natureza cir-
corpo sólido, compacto, impenetrável, não existe. Trata-se cular dos dois movimentos é constante, própria tanto da uni-
apenas de resistências, de reações; o que chamais de solidez dade atômica quanto da transmissão dinâmica.
é somente a sensação que constantemente vos dá aquela for- Pormenorizemos com mais rigor. O movimento rotató-
ça que se opõe ao impulso e ao tato. É a velocidade que en- rio do sistema atômico não é simplesmente circular: mais
che as imensas extensões dos espaços vazios, em que se agi- precisamente, ele é espiralóide. Vimos, no estudo da traje-
tam as mínimas unidades. É a velocidade que forma a massa, tória típica dos movimentos fenomênicos (fig. 4 e fig. 5),
a estabilidade, a coesão da matéria. Observai como movi- que esta é a linha de seu devenir. Toda evolução contém
mentos rotatórios rapidíssimos conferem ao giroscópio, du- este princípio de dilatação, de desenvolvimento, de realiz a-
rante o movimento, um equilíbrio autônomo estável. Veloci- ção de um estado latente, na passagem da fase potencia l à
dade é esta força que se opõe ao destacar-se das partículas fase cinética; esta é uma tendência constante no universo.
da matéria e as mantém unidas, enquanto outra força contrá- Neste caso significa transformação do movimento de rota-
ria não a supere. Mesmo quando decompondes a matéria na- ção em movimento de translação.
queles que vos parecem os últimos elementos, ainda não vos Portanto, uma primeira afirmação, que vos explica a ínti-
encontrais diante de uma partícula sólida, compacta, indivi- ma gênese de  o sistema atômico é de natureza espiralóide
sível. O átomo é um vórtice, vórtice é o elétron e o núcleo; (compreendendo a espiral como secção de uma esfera em pro-
vórtices são os planetas e satélites contidos no sistema solar, cesso de dilatação). Por causa dessa forma e de sua íntima es-
assim até ao infinito. Quando imaginais a mínima partícula trutura, o átomo é o centro normal de emanações dinâmicas; é
animada de velocidade, ela não é nunca um corpo no sentido o germe natural (aquilo que a semente é na vida, devido ao
comum que imaginais, mas é sempre um vórtice imaterial de mesmo princípio de expansão) das formas de energia.
velocidade. A decomposição dos vórtices, em que giram uni- Segunda afirmação, mais complexa: disse-vos que o nú-
dades vorticosas menores, estende-se até ao infinito. De modo cleo, centro de rotação eletrônica, não é o último termo.
que, na substância, não existe matéria no sentido que lhe dais, Acrescento agora: o núcleo é um sistema planetário da mesma
mas só existe movimento. A diferença entre matéria e energia natureza e forma que o sistema atômico, interior a este, com-
é dada apenas pela direção diferente desse movimento: rotató- posto e decomponível até ao infinito em sistemas menores in-
rio, fechado em si mesmo, na matéria; ondulatório, com ciclo teriores semelhantes. Acrescento mais: o núcleo é a semente
aberto e lançado ao espaço, para a energia. ou germe da matéria. Das 92 espécies de átomos, o hidrogê-
No princípio havia o movimento, e o movimento concen- nio é o mais simples, por ser composto de um núcleo e de um
trou-se na matéria; da matéria nasceu a energia, e da energia só elétron, que lhe gira em torno. Ele é quimicamente inde-
emergirá o espírito. componível. Tirai aquele único elétron ao núcleo e tereis o
O movimento concêntrico do sistema planetário atômico éter, a substância-mãe do hidrogênio. Então o éter é composto
contém em germe a gênese e o desenvolvimento das formas apenas de núcleos sem elétrons; a passagem do éter ao H e,
de . Tanto quanto a química orgânica se diferencia da inor- sucessivamente, a todos os corpos da série estequiogenética
gânica por suas fórmulas abertas comunicantes em equilíbrio ocorre pela abertura progressiva do sistema espiralóide. No
instável (efeito e não causa da vida), assim também se passa princípio, na passagem do éter ao H, temos a abertura do sis-
da forma matéria à forma energia pela expansão do sistema tema do núcleo, com a saída de apenas um elétron; depois, de
cinético fechado de  para o sistema cinético aberto de . Isto dois, três, até 92. Tal como o Sol no sistema solar, o núcleo é
porque a substância da evolução é a extrinsecação de um mo- o pai prolífico de todos os seus satélites, nos quais se dá e se
vimento que se concentra por involução e se expande por evo- multiplica, por um princípio geral que encontrareis na repro-
lução, atingindo, através das duas fases dessa sua respiração, dução por cisão. Por esse princípio, cada organismo, seja nú-
uma extrinsecação cada vez maior. cleo ou átomo, quando cresce demais, enriquecendo-se em
Há dois fatos, portanto, a se ligar: o movimento circular seu desenvolvimento por evolução, cinde-se em dois. Assim,
íntimo do sistema atômico de  (matéria) e o movimento ondu- também a matéria produz filhos. As combinações químicas
latório próprio de  (energia). Para compreender o ponto de que produzis são, afinal, apenas combinações de sistemas,
passagem de  a  é indispensável reduzir as duas fases ao de trajetórias, de movimentos planetários. Então uma molé-
seu denominador comum ou unidade de medida: o movimen- cula é uma verdadeira família de indivíduos atômicos, uni-
to, cuja forma individua, diferentemente, a substância em seus dos pelas relações de ação e reação, por vínculos mais ou
vários estágios. Esses são, vistos em sua essência, os dois menos estáveis, que podem romper-se e diversamente reno-
termos que têm de ser conjugados. De um lado, o sistema var-se. Sabeis com que exatidão rigorosa essas combinações,
atômico, que, como vimos, é composto de um ou mais elé- essas parentelas, estreitam-se. Uma lei férrea e exata rege
trons que giram em torno de um núcleo central, sendo sua in- constantemente o equilíbrio das relações que vós represen-
dividuação atômica dada pelo número dos elétrons que giram tastes com as fórmulas químicas. Mas a verdadeira base da
em torno do núcleo, num espaço imenso em relação a seu vo- teoria atômica, cuja essência ainda não vos foi demonstrada,
lume, dado que o sistema atômico é de natureza esférica, pois, já vos disse agora, ou seja, a dos sistemas planetários atômi-
se a rotação fosse num plano, não teríamos o volume. De ou- cos que, reunindo-se nas moléculas dos corpos, combinam
tro lado, temos a característica fundamental própria de todas seus movimentos com toda a corte de seus satélites. Vedes
as formas de energia: a transmissão por ondas esféricas. Já que a verdadeira química, que se baseia toda na arquitetura
notamos, na gênese da gravitação, o princípio da transmissão íntima do átomo e deste deduz as propriedades dos corpos, é,
esférica da onda, demonstrado pelo decréscimo da ação em no fundo, geometria, aritmética e mecânica astronômica, e
razão do quadrado da distância. Esta lei é apenas uma conse- pode reduzir-se a um cálculo de forças. Daí nenhuma mara-
quência das propriedades geométricas dos corpos esféricos, vilha se de tal matéria toda constituída de movimento e de
sendo produzida pelo fato das superfícies de esferas concên- energia puder, depois, espontaneamente, nascer .
tricas serem proporcionais ao quadrado de seus raios. Todas as Assim como involução é concentração, a evolução é o
vezes, pois, que encontrais essa lei do quadrado da distância, processo inverso, de expansão. Chegando a matéria à sua úl-
podeis concluir com segurança que se trata de transmissão por tima forma, última da série estequiogenética (o urânio, com um
56 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
sistema planetário de 92 elétrons) dizeis: a matéria se desa- XLVII. A DEGRADAÇÃO DA ENERGIA
grega por radioatividade. À ordem de formação sucessiva
dos elementos vemos corresponder o aumento de peso atô- Antes de passar ao estudo da série das individuações de
mico. Esse aumento, que aqui atinge seu máximo, é produ- , a fim de traçar uma árvore genealógica das espécies di-
zido pela passagem da energia de sua forma potencial, co- nâmicas, semelhante e continuadora da série estequiogenéti-
mo está no núcleo, à sua forma cinética, como está nos di- ca, observemos um fenômeno constante nesse campo, carac-
versos sistemas atômicos cada vez mais complexos. A terístico das formas de energia e correspondente ao já obser-
emissão de cada novo elétron do núcleo implica sempre vado da desagregação da matéria ou desintegração atômica;
acréscimo de nova órbita, e esta, à proporção que nos apro- um fenômeno que é sua continuação e, no entanto, mesmo
ximamos da periferia, torna-se cada vez mais veloz. Como conhecendo-o, não lhe compreendestes o íntimo significado,
vedes, o peso atômico é mais que um simples índice do grau ou seja, a degradação da energia.
de condensação: prende-se à lei pela qual a massa de um Aproximo esses dois fenômenos por causa de sua caracte-
corpo é função de sua velocidade e ao fato de que solidez e rística comum, de exprimir precisamente o desaparecimento,
constituição da matéria estão todas em função da velocidade diante de vossa percepção sensória, das duas formas  e .
que anima suas partes componentes. Mas, na realidade, tanto a desintegração atômica quanto a de-
Já notastes que a desagregação pela radioatividade é de- gradação dinâmica, se significam “desaparecimento” para
sintegração atômica, isto é, novo deslocamento de equilíbrio vossos sentidos, não constituem nem desaparecimento nem
do edifício atômico; por isso, deste partem emanações de ca- fim, mas apenas mudanças de forma dentro do transformismo
ráter dinâmico. Chegando a esse ponto de sua evolução, o evolutivo. Tal como na desintegração da matéria nada de fato
sistema máximo de  apenas continua seu movimento de na- desaparece, porque a matéria renasce como energia, assim
tureza espiralóide, seguindo sempre uma direção expansio- também, na desintegração dinâmica, a anulação é relativa
nal, que encontramos em toda parte, desde o sistema espira- apenas aos vossos meios de percepção e diz respeito àquilo
lóide galáctico até à trajetória típica dos movimentos feno- que, para vós, constitui as possibilidades utilitárias da energia.
mênicos. Em outras palavras, a espiral continua abrindo-se Mas observemos o fenômeno. Está provado, mesmo pela
até ao ponto em que os elétrons não voltam mais a girar em observação, que todas as transformações da energia ocorrem
torno do núcleo como satélites, mas, como os cometas, lan- segundo uma lei constante de degradação, pela qual a ener-
çam-se aos espaços com trajetórias independentes. Chegan- gia, mesmo conservando-se integral (princípio de conserva-
do à máxima órbita periférica, em que é máxima a velocida- ção da energia) em sua quantidade, tende a se difundir, dis-
de de translação, aí se rompe o equilíbrio de atração- persando-se no espaço, nivelando num estado de equilíbrio
repulsão até agora estável, e os elétrons, não podendo mais as suas diferenças, quando passa do heterogêneo ao homo-
manter-se na órbita precedente, projetam-se como bólidos gêneo. Deteriora-se, assim, no sentido de que a soma dos
para fora do sistema, impelidos por impulsos dirigidos para efeitos úteis e a capacidade de trabalho está sempre dimi-
novos equilíbrios. Praticamente, cada elétron circula com nuindo (princípio da degradação da energia). Esses dois
velocidade angular uniforme em sua órbita, que pode consi- princípios opostos, de conservação e de degradação (perda
de energia útil), provam o perene transformismo e a indes-
derar-se como circular, pois, a abertura espiralóide apresenta
trutibilidade da Substância, mesmo em sua forma .
deslocamentos mínimos. No âmbito das forças da astrono-
Essas duas leis demonstram que o fenômeno do transfor-
mia atômica, para cada órbita há equilíbrio entre a atração
mismo da substância indestrutível tem uma direção exata e
do elétron pelo núcleo e a força centrífuga devida à massa
que essa direção é irreversível. Em outras palavras, é possível
do elétron e sua rotação, que tende a lançá-lo à periferia.
a transformação da energia, mas sempre passando para um ti-
Compreendeis: se a velocidade de rotação das partículas pe-
po de qualidade inferior, do ponto de vista de seu rendimento
riféricas for de tal ordem que o impulso centrífugo supere a
prático para o homem. Assim, a energia acumulada tende
força de atração que as mantém em órbita, tangencialmente,
sempre a se dispersar, e jamais ocorre o contrário. Todo sis-
elas fogem para o espaço. Quando digo elétron, não digo ma-
tema tende integralmente para um estado de difusão, de equi-
téria em vosso conceito sensório, mas entendo outro turbilhão
líbrio, de repouso, de igualdade, como consequência de uma
dinâmico (cuja massa é dada pela íntima velocidade do siste- série de transformações que constantemente operam nessa di-
ma) que assume características de matéria somente enquanto reção, e nunca na direção oposta. Tudo parece condenado a
está todo vibrante de íntima velocidade, em seu sistema circu- apagar-se, a anular-se, a desaparecer.
lar fechado. Chegando ao último grupo da série estequiogené- Que significa esse irreversível fenômeno de degradação?
tica, dos corpos radioativos,  inicia sua transformação em  Primeiro: o universo, em vossa fase, tende a um estado de
por progressiva expulsão de elétrons (cometas). É lógico que ordem e de ritmo, do caos ao equilíbrio, a um estado substan-
a isso corresponde uma perda de massa. As qualidades radioa- cialmente mais evoluído e perfeito. Em outros termos, a irre-
tivas, em outros termos, tornam-se cada vez mais evidentes, versibilidade demonstra a evolução.
com tendência sempre mais acentuada à desagregação espon- Segundo: se atualmente, em vosso universo, toda transforma-
tânea e à formação de individuações químicas sempre mais ção de energia leva à sua degradação e é inevitável uma perda
instáveis, isto é, cujo sistema de forças se desloca sempre (que a irreversibilidade impede de reparar), é necessário, todavia,
mais rapidamente em busca de novos equilíbrios. que, nas grandes linhas de um equilíbrio mais vasto, esse movi-
Expus-vos, assim, a íntima estrutura do fenômeno, a ra- mento encontre sua compensação. A irreversibilidade demonstra
zão do aparecimento da radioatividade no limite extremo da que viveis na fase da expansão dinâmica, em que  parece des-
série estequiogenética, e os motivos da instabilidade dos gastar-se e dispersar-se. Mas a lógica vos indica que a Lei con-
corpos radioativos e da desagregação da matéria. Lembrai- tém o período complementar de compensação, fase inversa, em
vos de que, neste momento decisivo do universo, quando ele que a irreversibilidade se desenvolve em sentido contrário; não
muda da fase  à fase , também muda sua dimensão, como mais o vosso atual , mas , o período precedente de in-
vimos, de espaço para tempo; a terceira dimensão espacial volução e concentração dinâmica, que já vimos. A marcha do
do volume completa-se, portanto, na nova dimensão tempo- universo no sentido oposto já aconteceu. Vosso período é evo-
ral, unidade característica de medida da nova forma de mo- lutivo, ascensional; degradação dinâmica significa, debaixo da
vimento, não mais circular, mas ondulatório. aparência de dispersão, uma transformação substancial para as
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 57
formas mais altas (). Assim como, na desintegração atômica, a Se observardes a frequência progressiva (por segundo) das
matéria dissocia-se para constituir as mais altas formas expres- vibrações de um corpo no espaço, verificareis o aparecimento
sas por , também a energia, ainda que pareça perder-se em sua das várias formas de energia. O fenômeno não é novo para vós,
degradação, na realidade amadurece para se transformar nas mas apenas a sua constatação. Partindo, para facilitar a obser-
mais altas formas que a evolução atingirá na fase . Então, ir- vação, do estado de repouso (para nós, ao contrário, é o ponto
reversibilidade e degradação confirmam tudo o que expusemos de chegada), vede que no nível de 32 vibrações por segundo
no estudo da gênese das criações sucessivas, tudo o que nos in- manifesta-se a forma que denominais som. O próprio ouvido
dica, já no citado diagrama da fig. 2, a linha quebrada que sobe, consegue, nas notas mais baixas, perceber o ritmo vibratório
ou na fig. 4, a espiral que se abre com contínuos retornos inver- lento e profundo. A frequência progressiva desenvolve-se su-
sos ao caminho percorrido. cessivamente, por oitavas, princípio que já encontramos na sé-
De tudo isso, podeis compreender como a característica rie estequiogenética, reencontramos na luz e depois nos siste-
da irreversibilidade seja, para a energia, relativa e fechada mas cristalinos e na zoologia. Perto das 10.000 vibrações por
no âmbito da fase  e como, no todo, uma irreversibili- segundo, os sons, tornados agudíssimos, perdem qualquer cará-
dade absoluta seja uma fonte absurda de desequilíbrio, que ter musical. Além das 32.000 vibrações, vosso poder de per-
está totalmente fora do conceito da Lei. Cada movimento cepção auditiva cessa, e elas não vos dão mais nenhuma sensa-
presume seu movimento contrário e equivalente; o movi- ção. Dessa frequência até ao bilhão de vibrações, nada existe
mento ondulatório, que nasce pela expansão do movimento para os vossos sentidos. Por volta do bilhão, tendes a zona das
espiralóide, presume, na fase inversa precedente, a concen- ondas elétricas (hertzianas). Somente neste nível entramos no
tração do movimento ondulatório numa espiral que restringe campo das verdadeiras formas dinâmicas, cuja onda propaga-se
cada vez mais suas volutas, até à formação daquele núcleo pelo éter. As ondas acústicas são apenas a última degradação,
que constitui o éter, que é o germe de toda a expansão este- em que a energia se extingue na atmosfera densa.
quiogenética de  e, depois, da expansão dinâmica de . À zona das ondas elétricas sucede, dos 34 bilhões até os 35
trilhões, outra zona também desconhecida a vossos sentidos e
XLVIII. SÉRIE EVOLUTIVA DAS instrumentos. Segue-se depois a região que vai dos 400 aos 750
ESPÉCIES DINÂMICAS trilhões de vibrações por segundo, em que está a luz, do verme-
lho ao violeta, em todas as cores do espectro solar e, mais exa-
Os elétrons lançados fora do sistema planetário atômico, tamente: vermelho (raio menos refratário), média de 450 tri-
que se desfaz pela abertura da espiral e pela ruptura do equilí- lhões de vibrações por segundo; laranja, 500; amarelo, 540;
brio atrativo-repulsivo do sistema – vórtices, também esses, de verde, 580; azul, 620; anil, 660; violeta (o mais refratário), 700.
velocidade – conservam na nova trajetória ondulatória a lem- Eis as sete notas desta nova oitava ótica, tudo quanto vossos
brança do movimento original circular. A dimensão espaço olhos percebem; vossa harmonia de cores não pode ultrapassar
multiplica-se pela nova dimensão tempo, e temos as novas uni- uma oitava de vibrações. Além destas, há outras “notas”, invi-
dades de medida da energia: comprimento de onda e velocidade síveis a vós: os raios infravermelhos, “notas” graves demais pa-
de vibração. De acordo com essas unidades, podemos estabele- ra vossa retina; as radiações ultravioletas, “notas” agudas de-
cer a série evolutiva das espécies dinâmicas. mais – regiões dinâmicas limítrofes ao espectro visível. As
Vimos a gênese da gravitação, protoforça típica do universo primeiras são sensíveis apenas como radiações caloríficas (es-
dinâmico, e algumas de suas características. Esta emanação di- curas), as segundas, por sua ação química e actínica (fotografá-
nâmica da matéria, nós a vemos acentuar-se em razão direta de veis, mas escuras para os olhos). Apenas num breve trecho
sua evolução (progressão constante no aumento dos pesos atô- inexplorado, aquém das notas mais baixas do infravermelho, es-
micos, no desenvolvimento da série estequiogenética), onde, no tão as notas mais agudas das radiações eletromagnéticas hertzia-
grupo dos corpos radioativos, nasce a segunda forma de ener-
nas. Se continuardes do lado oposto, além do ultravioleta, o exa-
gia: os raios X. A sucessão genética entre as duas formas é evi-
me do espectro químico (muitas vezes mais extenso que o espec-
dente. Assim, superado aquele traço de união que une matéria e
tro visível), atravessareis uma região desconhecida a vossos sen-
energia, entramos nas formas dinâmicas puras.
tidos e atingireis, aos 228 quatrilhões, uma zona que alcança os
Escalonando as formas dinâmicas de acordo com sua velo-
dois quintilhões de vibrações por segundo. Esta é a região da ra-
cidade vibratória, a gravitação atinge os máximos do sistema.
Vimos já que máxima é também sua velocidade de propagação, dioatividade, com os raios (  ) produzidos pela desintegra-
o que nos fez acreditar numa gravitação absoluta e instantânea, ção atômica radioativa (elétrons lançados em alta velocidade),
ao passo que ela é, como dissemos, relativa à massa dos corpos eles são análogos aos produzidos por descargas elétricas no vá-
e transmitida por ondas (tempo). cuo dos tubos de Crookes (raios X, ou de Röntgen). Se continu-
A máxima frequência vibratória que podeis apreciar, ao ardes ainda, encontrareis as emanações dinâmicas de ordem gra-
invés, é dada pelos raios X, que são a primeira forma dinâ- vífica. Aqui, a série evolutiva das espécies dinâmicas liga-se à
mica que conseguis observar isolada. Verificaremos, na su- das espécies químicas, da qual é a continuação.
cessão das formas dinâmicas, um constante decréscimo de Compreendamos, agora, o significado desses fatos. A sé-
frequência de vibração à proporção que nos afastamos das rie apresenta evidentes lacunas para vossa observação. Mas
origens, ou seja, subindo da gravitação à luz, eletricidade eu vos indiquei o andamento geral do fenômeno e o princí-
etc. É lógico que as primeiras emanações dinâmicas, como pio que o rege; podeis, pois, seguindo sua lei, defini-la a
gravitação e raios X, sejam as mais cinéticas, porque mais priori, em suas fases ignoradas, por analogia com as fases
próximas da fonte de seu movimento, o vórtice atômico. conhecidas, como vos disse a respeito dos elementos quími-
Com a evolução (por causa daquela lei de degradação que cos ignorados da série estequiogenética.
estudamos), a vibração tende ao repouso e a onda cada vez A ligação entre esta e a série dinâmica está justamente na fase
mais a alongar-se; isto significa a transformação do movi- das ondas gravíficas, já o vimos. Também observamos a região
mento de rotação original no de translação, final do período contígua das emanações radioativas. A escala evolutiva das
. Porém, como vos disse, não se trata de desgaste nem de formas dinâmicas, efetivamente, sobe destas fases de máxima
fim, mas de uma íntima maturação evolutiva, que preludia as frequência para as de menor frequência, em ordem inversa à
formas de : a vida e a consciência. Se as primeiras forças que, para simplificar a exposição, seguimos acima. Em outras
dinâmicas são mais rápidas e mais poderosas, as últimas são palavras, a evolução dinâmica implica num processo de degra-
as mais sutis e as mais evoluídas. dação de energia, até que esta se extinga (apenas como manifes-
58 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
tação dinâmica) em vibrações cada vez mais lentas, num meio gia. Nessa degradação, que não exprime perda nem fim, mas
cada vez mais denso (não mais o éter, mas atmosfera, líquidos e apenas transformação, que readquire em qualidade o que perde
sólidos). O que tem contato com as formas de  são os tipos di- em quantidade, está a substância da evolução.
nâmicos mais cinéticos, e isso, é lógico, pela natureza e trans- Permanecendo no campo das vibrações puras, ou seja, as do
formação do movimento. À proporção que se afastam de , ten- éter, e excluindo da série as últimas fases (vibrações dinâmicas)
dem a um estado de inércia e isso, também é lógico, por causa de degradação em meios mais densos, encontramos no ápice da
do exaurir-se (resistência do ambiente e processo de difusão) do escala a eletricidade como forma mais evoluída, de frequência
impulso original (degradação). Dessa maneira, a ordem evoluti- vibratória mínima e comprimento de onda máximo. A frequência
va das formas dinâmicas é a seguinte (tendo em conta somente de vibrações tornou-se mais lenta, a onda estendeu-se. A potência
as regiões que conheceis): cinética aqui se amorteceu numa zona mais tranquila. Chegadas a
1o) Gravitação. esse ponto, as formas dinâmicas criaram o substrato de novo im-
2o) Radioatividade. pulso poderoso, de novo modo de ser. A evolução, ao atingir o
3o) Radiações químicas (espectro invisível do ultravioleta). mais alto vértice da fase dinâmica, caminha para novas criações.
4 o) Luz (espectro visível). Passa desta sua última especialização, mediante a reorganização
5 o) Calor (radiações caloríficas escuras. Espectro invisível do das formas individuadas em unidades múltiplas coletivas, a uma
infravermelho). espécie de classe mais elevada. Sem esta retomada evolutiva, o
6 o) Eletricidade (ondas hertzianas, curtas, médias e longas). universo dinâmico tenderia, por degradação, ao nivelamento, à
7 o) Vibrações dinâmicas (ultrassons, sons). inércia, à morte11. Esse seria seu fim se, no momento da mais
Sete grandes fases também aqui, correspondentes às sete sé- avançada degradação da energia, nos primeiros sinais de velhice
ries de isovalências periódicas que, na escala estequiogenética, das formas dinâmicas, o íntimo e intenso trabalho realizado (que
desde S1 até S7, representam os períodos de formação e evolução na substância não é degradação, mas maturação evolutiva) não
da matéria. As zonas de frequências intermediárias (desconheci- fosse utilizado e as espécies dinâmicas, finalmente maduras e
das, como as que tendes também na série estequiogenética) são prontas, não se organizassem em individuações mais complexas.
as fases de transição entre um tipo e outro desses pontos culmi- Assim como, no último degrau da série estequiogenética, os
nantes. Ao subir, decrescem as qualidades cinéticas, o potencial corpos radioativos se transformam em energia, também, no úl-
sensível das formas, mas o que se perde em quantidade de ener- timo degrau da série dinâmica, a eletricidade transforma-se em
gia adquire-se em qualidade, isto é, perde-se cada vez mais as ca- vida. Tal como a energia significou, diante da matéria, o princí-
racterísticas da matéria, ponto de partida, e cada vez mais se ad- pio novo do movimento por onda e a nova dimensão tempo, as-
quire as da vida, ponto de chegada. Assim, a Substância percorre sim a vida, diante da energia, significará o princípio novo da
o caminho da fase , e da matéria chega à vida. unidade orgânica, da coordenação de forças, da transmissão di-
Observemos agora o conjunto do fenômeno mais de perto, nâmica elevada a entrelaçamento inteligente de contínuas tro-
em sua íntima estrutura cinética. Podem individuar-se essas cas, e o aparecimento da nova dimensão consciência.
formas não só pela frequência vibratória, mas também por com-
primento de onda. Veremos as relações entre esses dois fatos. XLIX. DA MATÉRIA À VIDA
Comprimento de onda é o espaço percorrido pela onda na dura-
ção de um período vibratório. Individuadas pelo comprimento Da mesma forma que a natureza cinética dá à energia sua
de onda, as formas dinâmicas apresentam-se com características característica fundamental de transmitir-se (dimensão espaço
próprias. Enquanto, subindo-se ao longo da série das espécies que ascende à dimensão tempo), o novo princípio da coorde-
dinâmicas, o número de vibrações diminui, a amplitude da onda nação das forças, num mais débil e transitório, porém mais
aumenta. Assim, por exemplo, no espectro do violeta ao verme- sutil, complexo e profundo, entrelaçamento cinético, dá à
lho, enquanto a frequência decresce dos 700 aos 450 trilhões de energia, elevada à vida, sua característica fundamental de
vibrações por segundo (decrescendo também o poder de refra- consciência (dimensão tempo que ascende à dimensão cons-
ção), o comprimento de onda aumenta respectivamente de 0,4 ciência). Individuam-se as formas de vida, tal como toda
(zona violeta) até 0,76 (vermelho). Esses são os limites dos forma de energia individuara-se num tipo bem definido, com
comprimentos de onda das radiações visíveis (a letra grega  fisionomia própria e com tendência a conservar-se em seu
significa mícron, isto é, um milésimo de milímetro). E continua modo de ser, como indivíduo que deseja afirmar-se e distin-
a aumentar na direção do infravermelho e das ondas elétricas, e guir-se de todos os afins, com movimento, forma, direção e,
a diminuir na direção do ultravioleta e raios X. portanto, com objetivo próprio: um eu que já possui os ele-
Se chegais aos 0,2 (ultravioleta) e ultrapassais o extre- mentos fundamentais da personalidade e, não obstante seu
mo ultravioleta, encontrareis os raios X. Ora, os raios X de contínuo devenir, conserva inalterado seu tipo. Nas formas
maior comprimento de onda são apenas raios ultravioletas e de vida, o princípio de individuação – depois que a Substân-
vice-versa. Estamos nos 0,0012. Continuando na outra ex- cia atingiu o mais alto grau de evolução e de diferenciação –
tremidade da série dos raios X, encontrais os raios , que são torna-se cada vez mais evidente. Na energia, as formas já
os mais duros e mais penetrantes, gerados pela desintegração conquistam uma existência própria independente de sua fon-
dos corpos radioativos. Alcançais, assim, o comprimento de te originária. A luz, uma vez lançada, destaca-se e existe
onda de 0,0005. progredindo de per si no espaço. Chega do infinito luz estelar
Na direção oposta, a onda aumenta. Além dos raios ver- emanada milhares de anos antes, sem que saibais se a estrela
melhos, a zona de radiações invisíveis do infravermelho vai que a originou sequer ainda existe. E o som continua, avan-
de um comprimento de 0,76 a 60 e além. Depois de uma ça e chega, quando a causa das vibrações já está em repouso.
zona inexplorada, aparecem radiações de comprimento ainda 11
maior, as ondas hertzianas, que vão de poucos milímetros Entropia, ou seja, nivelamento para o qual parece tenderem todos
os fenômenos. Assim compreende-se o que para os físicos é um
(milhares de ) a centenas e milhares de metros, como usais
enigma. Eles observaram o fenômeno e acreditam que continuará e
nas transmissões radiofônicas. terminará num nivelamento universal de todos os fenômenos, ao
Essa relação inversa, ou seja, tanto a decrescente rapidez passo que aqui vemos que sucede diversamente. (Isto foi aprofun-
vibratória como a progressiva extensão do comprimento de dado no volume A Nova Civilização do Terceiro Milênio, Cap.
onda, corresponde ao mesmo princípio de degradação de ener- XXV – “O Universal Dualismo Fenomênico”).
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 59
Se as formas de energia, uma vez geradas, sabem existir no cia assume novas formas; transforma-se lentamente em individu-
espaço pelo seu próprio princípio, na vida a autonomia é ações de grau mais alto. A dimensão espaço ascende à dimensão
completa. Assim como são parentes, pela comunidade de tempo. A matéria inicia uma transformação radical, doando todo
origem e pela afinidade de caracteres, as formas químicas e o seu movimento tipo  ao movimento tipo . O vórtice nuclear
depois as formas dinâmicas, de igual modo são parentes en- do éter desenvolveu na fase  o vórtice atômico da matéria. Che-
tre si as formas de vida, pela gênese e pelos caracteres, todas gando ao máximo da dilatação, esse vórtice continua a expandir-
fundidas com todos os seres existentes, orgânicos e inorgâ- se, desenvolvendo as formas dinâmicas, e nasce a energia. A
nicos, numa fraternidade universal. Irmandade substancial, Substância continua a evoluir, prosseguindo sua ascensão em .
constituída de igual matéria, idêntico modo de ser, do mes- A primeira emanação gravífica, de comprimento mínimo de on-
mo objetivo a atingir; fraternidade a que se deve a possibili- da, frequência vibratória e velocidade de propagação máximas no
dade da convivência, simbiose universal, e de todas as trocas sistema dinâmico, completa-se com a emanação radioativa da de-
da vida, que são sua condição. sintegração atômica. O processo de transformação dinâmica, que
Voltemos um olhar ao caminho percorrido.  concentrou tem suas raízes na evolução estequiogenética, isola-se, afirman-
seu íntimo movimento no núcleo, unidade constitutiva do éter. do-se decididamente. O vórtice atômico rompe-se, decompondo-
Neste ponto, o movimento de descida involutiva ou de concen- se por progressiva expulsão do sistema daqueles elétrons, que já
tração cinética, ou de condensação da Substância, inverte-se na nasceram para serem expulsos do sistema nuclear. Trata-se de
direção oposta, de subida evolutiva ou de descentralização ciné- um constante realizar-se daquilo que existia em potencialidade,
tica. O núcleo, síntese máxima de potencial dinâmico no ponto encerrado em germe por concentração de movimento. Nascem
 do transformismo fenomênico, restitui, por sucessiva novas espécies dinâmicas: depois da gravitação e da radioativi-
emissão de elétrons, a energia cinética concentrada. Percorra- dade, aparecem as radiações químicas, a luz, o calor, a eletricida-
mos a fase , assistindo ao desenvolvimento da série estequio- de, sempre em ordem de frequência vibratória decrescente e
genética. Se na química temos, como primeiro estágio, o hidro- comprimento de onda progressivo. A matéria, que viveu e não
gênio, na astronomia temos a nebulosa, isto é, matéria jovem e tem mais vida própria, responde ao impulso desse novo turbilhão
universo jovem – estado gasoso – estrelas quentes, fase ainda dinâmico que ela mesma gerou, sendo toda invadida e movimen-
de alta concentração dinâmica. Enquanto de um lado desenvol- tada por ele. Este é vosso atual universo: a matéria que está mor-
ve-se a árvore genealógica das espécies químicas, do outro evo- rendo, a energia em plena maturidade, a vida e a consciência jo-
lui a vida das estrelas, que envelhecem, resfriam-se, solidifi- vens, em vias de formação. Os cadáveres da matéria, já solidifi-
cam-se, assumindo constituição química, luz e espectro diferen- cada e sem vida própria, de formação química, lançados e susten-
tes, afastando-se do centro genético do sistema galáctico. Há tados nos espaços pela gravitação, inundados de radiações de toda
uma maturação paralela, integral, da substância e da forma. espécie, são apenas o sustentáculo de formas de existência mais
Noventa e dois elétrons são sucessivamente lançados fora da altas. Da eletricidade (a forma dinâmica mais madura), numa no-
órbita espiralóide nuclear, cada um deles continua a girar em va grande curva da evolução, nasce, e veremos como, a vida: ma-
sua órbita ligeiramente espiralóide; sucessivamente constroem- téria organizada como vida, ou seja, retomada num turbilhão ain-
se os edifícios atômicos, cada vez mais complexos, dos corpos
da mais alto. Vida, pequena centelha na origem, na qual continua
químicos indecompostos, segundo uma escala de pesos atômi-
a expansão evolucionista do princípio nuclear, atômico e dinâmi-
cos crescentes. Aqui se torna possível uma aproximação entre o
co (onda), numa forma cada vez mais complexa de coordenação
vórtice galáctico e o vórtice atômico. A gênese e o desenvol-
de partes, de especialização de funções, de organização de unida-
vimento do primeiro podem dar-vos um exemplo tangível da
des e de atividades; vida, cuja substância – significado, objetivo e
gênese e do desenvolvimento do segundo. Enquanto a energia
produto – é a criação da consciência: , o espírito. E da primeira
concentra-se no núcleo (éter) – centro genético das formas de 
célula se iniciará, através de miríades de formas, de tentativas, de
– paralelamente, o universo, na fase dinâmica, concentra-se na
fracassos e de vitórias, a lenta conquista que gradualmente triunfa-
nebulosa, mãe da expansão espiralóide galáctica. Inversamente,
rá no homem e dele, hoje, lança-se para as últimas fases do tercei-
as estrelas, durante o processo de sua evolução, projetam-se do
ro período de vossa evolução, que se resume na conquista da su-
centro à periferia, com velocidades progressivas à proporção
perconsciência e na realização biológica do Reino de Deus.
que envelhecem e se afastam desse centro. Isso ocorre com uma
técnica que coincide com a do desenvolvimento espiralóide do
átomo. Uma vez mais, os fenômenos confirmam a atuação da L. NAS FONTES DA VIDA
trajetória típica dos movimentos fenomênicos em seus dois
movimentos, involutivo e evolutivo. “...e o Espírito de Deus movia-se sobre as águas”.
Assim, do éter – último termo da descida de  – nasceu a ma- (Gênese – Cap. I)
téria, que, depois, por evolução atômica, atinge as espécies radio-
ativas. Primeiro os corpos de peso atômico menos elevado, de- Nova luz maravilhosa alvorece no horizonte do mundo fe-
pois os de peso atômico mais alto. Primeiro o magnésio, o silício, nomênico. No tépido regaço das águas, o planeta prepara-se
o cálcio; mais tarde aparecem os elementos mais sólidos, como para acolher o primeiro germe, princípio de novo modo de
prata, platina, ouro, menos jovens. Vós os encontrais no velho existir. O momento é solene. O universo assiste à gênese da
sistema solar, em sua parte mais solidificada e resfriada dele, os suprema maravilha, amadurecida em seu seio através de perí-
planetas. Os corpos simples, no estado gasoso, como hidrogênio, odos incomensuráveis de lenta preparação, quase consciente
oxigênio, nitrogênio, são mais raros em vosso globo. Aqui apare- do esforço titânico da Substância nascente, da qual brotará, no
ce a radioatividade, fenômeno tão difuso, que se configura como ponto culminante, a síntese máxima: a vida. Nasce a flor mais
uma função inerente à matéria, em vista do estágio em que se complexa e mais bela, em que mais límpido transparece o
encontra vosso planeta. Para o centro deste, onde a matéria man- conceito da Lei e o pensamento de Deus. Deus, sempre pre-
teve-se mais quente e está menos envelhecida, são mais raros os sente no âmago das coisas, aparece sempre mais evidente à
corpos radioativos, tanto que, apenas a 100 km de profundidade, proporção que se ascende; em sua progressiva manifestação,
a radioatividade quase desaparece. Depois de completada a ma- Deus aproxima-se de Sua criatura.
turação das formas de , ocorreu também uma expansão do vór- Ao eclodir da primeira centelha nos confins extremos do
tice galáctico, do centro à periferia, com o resfriamento e a soli- mundo dinâmico, saturado de passado e totalmente amadu-
dificação da matéria. Esta terminou o ciclo de vida, e a Substân- recido, o universo tremeu evocador e clarividente. A matéria
60 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
existira, a energia movimentara-se, mas somente a vida saberia telha espiritual que me anima integralmente? O homem Te
chorar ou alegrar-se, odiar ou amar, escolher e compreender, busca na Ciência, invoca-Te na dor, Te bendiz na alegria. Mas,
entender o universo e a Lei e pronunciar o nome de seu Pai: na grandiosidade de Tua potência, bem como na bondade de
Deus. Nasce a vida; não a forma que vedes, mas o princípio que Teu amor, estás sempre além, além de todo o pensamento hu-
por si criará aquela forma para si mesma, como veículo e meio mano, acima das formas e do devenir, um lampejo do infinito.
de ascensão. Naquele princípio, que animará a primeira massa “No ribombar da tempestade está Deus; na carícia do hu-
protoplasmática, existe o germe de todas as sucessivas e ilimi- milde está Deus; na evolução do turbilhão atômico, na arran-
tadas realizações da nova forma da Substância; para cima, su- cada das formas dinâmicas, na vitória da vida e do espírito, es-
bindo sempre, até às emoções e às paixões, permanece o germe tá Deus. Na alegria e na dor, na vida e na morte, no bem e no
do bem e do mal, de todo o vosso mundo ético e intelectual. A mal, está Deus; um Deus sem limites, que tudo abarca, estreita
fuga eletrônica de um raio de sol transformar-se-á em beleza e e domina, até mesmo as aparências dos contrários, que guia
alegria, sensação e consciência. para seus fins supremos.
Nosso caminho, alcançando a vida, atinge regiões cada vez “E o ser sobe, de forma em forma, ansioso por conhecer-Te,
mais altas. Desta exposição irrompe um hino de louvor ao Cria- buscando uma realização cada vez mais completa de Teu pen-
dor. Minha voz funde-se no canto imenso de toda a criação. Di- samento, tradução em ato de Tua essência.
ante do mistério que se realiza no momento supremo da gênese, a “Adoro-Te, supremo princípio do Todo, em Teu revestimen-
ciência torna-se mística expansão, a exposição árida incendeia-se to de matéria, em Tua manifestação de energia, no inexaurível
permeada pelo hálito do sublime; através da crua fenomenologia renovar-se de formas sempre novas e sempre belas; eu Te ado-
científica sopra o senso do divino. Diante das coisas supremas, ro, conceito sempre novo, bom e belo, inesgotável lei animado-
dos fenômenos decisivos, que somente aparecem nas grandes ra do universo. Adoro-Te grande Todo, ilimitado além de todos
curvas da evolução, os princípios racionais da ciência e os prin- os limites de meu ser.
cípios éticos das religiões fundem-se no mesmo lampejo de luz, “Nesta adoração, aniquilo-me e me alimento, humilho-me e
numa única verdade. Por que a verdade descoberta por vós, ra- me incendeio; fundo-me na Grande Unidade, coordeno-me na
cionalmente, deveria ser diferente da verdade que vos foi reve- grande lei, a fim de que minha ação seja sempre harmonia, as-
lada? Diante da última síntese, caem os antagonismos inúteis censão, oração, amor”.
do momento e de vosso espírito unilateral e cego. Cada verdade Orai assim, no silêncio das coisas, olhando sobretudo pa-
e concepção parcial tem que reentrar no todo: tanto a ciência ra o âmago que está dentro de vós. Orai com espírito puro,
quanto a fé, o que nasce do coração e da mente, a matemática com intenso arrebatamento, com poderosa fé, e a radiação
mais avançada e a mais alta aspiração mística, a matéria e o es- anímica, harmoniosamente sintonizada com grande vibração,
pírito; nenhuma realidade, por mais relativa que seja, pode ser invadirá os espaços. E ouvireis uma voz de conforto, que vos
excluída. Se a ciência é realidade substancial, como pode per- chegará do infinito.
manecer fora da síntese? Se o aspecto ético da vida é também
realidade substancial, como pode ser descuidado? Essas novas LI. CONCEITO SUBSTANCIAL DOS
concepções podem chocar vosso misoneísmo; tão grande salto FENÔMENOS BIOLÓGICOS
à frente talvez vos cause medo; esse conceito de Divindade po-
de encher-vos de desânimo, mais que de amor. Mas também A evolução das espécies dinâmicas trouxe-nos até à forma
tendes de admitir que, com isso, torna-se pequeno apenas o “eletricidade”, situada no mais alto nível, nas fronteiras da
conceito do homem em relação ao conceito de Deus, que se energia. Vimos que, substancialmente, a degradação dinâmica
agiganta além da medida. Isso poderá desagradar aos egoístas e não é senão evolução, isto é, passagem para as formas menos
aos soberbos, jamais às almas puras. poderosas e cinéticas, porém mais sutis, complexas e perfei-
No momento solene, volita nos espaços um hálito divino. tas. Vosso universo caminha visivelmente de um estado de
O pensamento, permeado pelo grande mistério, olha e reco- caos, que é apenas a fase de tensão da primeira explosão di-
lhe-se em oração. nâmica, para um estado final de ordem, ou seja, de equilíbrio
Orai assim: e coordenação de forças. Aquele é a fase de preparação, e este
“Adoro-te, recôndito eu do universo, alma do Todo, Meu o ambiente em que nasceu a vida. Em outras palavras, o fato
Pai e Pai de todas as coisas, minha respiração e respiração de de que a evolução dinâmica atingiu a forma eletricidade, sig-
todas as coisas. nifica formação de um ambiente mais equilibrado, onde é pos-
“Adoro-te, indestrutível essência, sempre presente no espa- sível aquela nova ordem (isto é, coordenação e organização
ço, no tempo e além, no infinito. superior de forças) a que denominais vida. Essa nova ordem
“Pai, amo-te, mesmo quando Tua respiração é dor, porque se aperfeiçoará cada vez mais, em prosseguimento ao cami-
Tua dor é amor; mesmo quando Tua Lei é esforço, porque o es- nho evolutivo já percorrido, para coordenações e organizações
forço que tua Lei impõe é o caminho das ascensões humanas. mais complexas e completas: orgânicas, psíquicas e sociais,
“Pai, mergulho em tua potência, nela repouso e me aban- pois, com a vida, inicia-se também a manifestação de suas leis
dono, peço à fonte o alimento que me sustente. e de seus equilíbrios superiores, que dirigirão, nos níveis mais
“Procuro-te no âmago, onde Tu estás e de onde me atrais. altos, também vossa existência individual e coletiva.
Sinto-Te no infinito, que não atinjo e donde me chamas. Não Como ocorre a transformação da eletricidade em vida?
Te vejo e, no entanto, ofuscas-me com Tua luz; não Te ouço, Compreende-se essa passagem pela redução do fenômeno, co-
mas sinto o tom de Tua Voz; não sei onde estais, mas encon- mo o fizemos para as formas de  à sua substância ou ínti-
tro-Te a cada passo; esqueço-Te e Te ignoro, no entanto ou- ma estrutura cinética. Desde as primeiras fases da vida, o ritmo
ço-Te em toda a minha palpitação. Não sei individuar-Te, dinâmico transforma-se em outros ritmos, que se fundem em
mas gravito em torno de Ti, como gravitam todas as coisas harmonias mais complexas, em verdadeira sinfonia de movi-
em busca de Ti, centro do universo. mentos. A matéria vos deu o princípio estático da forma; a
“Potência invisível que rege os mundos e as vidas, Tu estás, energia, o princípio dinâmico da trajetória e transmissão; a vida
em Tua essência, acima de toda a minha concepção. Que serás vos dará o princípio psíquico do organismo e da consciência.
Tu, que não sei descrever nem definir, se apenas o reflexo de Uma primeira observação fundamental: o modo pelo qual
Tuas obras me enceguece? Que serás Tu, se já me assombra a in- colocamos o problema do ser, com o transformismo 
comensurável complexidade desta Tua emanação, pequena cen- isto é, como um fisio-dínamo-psiquismo, nos leva a uma con-
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 61
cepção de vida diferente da vossa, muito mais substancial. Ge- LII. DESENVOLVIMENTO DO
ralmente, procurais a vida em seus efeitos, não em suas causas; PRINCÍPIO CINÉTICO DA SUBSTÂNCIA
na forma, não no princípio. Conheceis da vida as últimas con-
sequências e descurastes, a priori e de propósito, o centro gera- A vida é um impulso íntimo. Temos de estudar a gênese
dor. Tivestes até a ilusão de poder reproduzir a gênese dos pro- desse impulso. Precisamos nos referir ao que dissemos no estu-
cessos vitais, provocando os fenômenos últimos e mais afasta- do da cosmogonia atômica e dinâmica. Vimos lá que a substân-
dos da causa determinante. Ora, a verdadeira vida não é uma cia da evolução é a expansão de um princípio cinético que se
síntese de substâncias proteicas, mas consiste no princípio que dilata continuamente, do centro à periferia; uma extrinsecação
estabelece e dirige essa síntese; a vida não reside na evolução de movimento que passa do estado potencial ao estado atual;
das formas, mas na evolução do centro imaterial que as anima; uma causa que permanece idêntica a si mesma, embora produ-
a vida não está na química complexa do mundo orgânico, mas zindo seu efeito. As infinitas possibilidades concentradas num
no psiquismo que a guia. processo involutivo precedente manifestam-se nesse inverso e
Observai, agora, como nosso ingresso no mundo biológico compensador movimento centrífugo evolutivo. Vossas fases, 
ocorre precisamente por via das formas dinâmicas. Com a ele-  , são apenas três zonas contíguas desse processo de descen-
tricidade, situada no vértice destas, desembocamos não na for- tralização. Vossa evolução atual está suspensa entre centro e
ma, mas no princípio da vida, no motor genético das formas, e periferia: dois infinitos. Somente colocados assim, como subs-
isto porque caminhamos sempre aderentes à substância e per- tância cinética da evolução, reduzidos a seu último termo, os
manecemos no âmago dos fenômenos, onde está sua essência. fenômenos são compreensíveis e analisáveis. O movimento as-
Leva-nos este fato a uma colocação nova para vós do problema sume formas diferentes, e cada forma é um grau, uma fase da
da vida, conduzindo a uma completa compreensão de seu as- evolução, um modo de ser da Substância. No âmago existe o
pecto profundo e substancial (o lado psíquico e espiritual), e is- movimento, e, quando a Substância muda sua trajetória, exterio-
to desde o primeiro aparecimento dos mais elementares fenô- riza-se à vossa percepção uma correspondente mudança de
menos biológicos, em que já está presente, embora de forma forma: o movimento assume uma roupagem diferente. No fun-
rudimentar, aquele psiquismo. A nossa biologia é de substân- do, isso é apenas a expressão do pensamento de Deus.
cia, não de forma. Alcançamos não a veste orgânica mutável, Para que o impulso proveniente do centro possa atingir a pe-
mas o princípio que não morre; não a aparência exterior dos riferia e deslocar de uma fase o sistema dinâmico de vosso uni-
corpos físicos, mas a realidade que os anima; não o que sai, verso, é necessário que atravesse as fases intermediárias e se
mas o que fica; não o indivíduo nem as espécies em que as apresente ao limiar de novo período, como produto e última
formas se reagrupam e se encadeiam em desenvolvimentos or- elaboração cinética dessas fases. Tal como a energia, logo que
gânicos, mas a expansão do conceito dirigente do fenômeno do nasceu, dirigiu-se de imediato para a matéria, a fim de movê-la,
psiquismo que vos preside; não a evolução dos órgãos, mas a animá-la e fecundá-la com seu impulso dinâmico e elevá-la pa-
evolução do eu que os melhora e os plasma para si, como meios ra uma vida mais intensa, assim também a vida, filha da ener-
para a própria ascensão. Vista assim, em sua luz interior, a bio- gia, volta-se subitamente para trás, em direção à matéria, a fim
logia coincide, também na análise crua de suas forças motrizes, de arrastá-la para novo turbilhão de trocas químicas, antes igno-
com o mais alto espiritualismo das religiões. Isto se dá porque radas por ela. Isso para que a trindade das formas possa fundir-
as vicissitudes do princípio psíquico que evolui da ameba ao se numa unidade e seja profunda a maturação de cada fase. Por
homem são as mesmas que depois amadurecem na ascensão es- isso o movimento anterior é retomado pelo movimento da fase
piritual da consciência que se eleva a Deus pela fé. A pequena sucessiva, melhorado, aprofundado, aperfeiçoado, amadureci-
centelha, pois, se tornará incêndio; o primeiro vagido tímido se- do. É o novo impulso, máxima manifestação dinâmica, que se
rá o canto potente de todo o planeta. Aqui vedes, chegando à dobra sobre a estrutura atômica e se reveste dessa manifesta-
completa e harmônica fusão, os princípios das religiões e os ção. Esse conúbio é necessário para que a nova forma, , en-
métodos do materialismo; vedes reunida a aspiração, ainda que contre sua manifestação e os movimentos de  sejam levados a
cindida, do espírito humano. um grau maior de perfeição. Assim o psiquismo da vida se ma-
As três fases de vosso universo são   . A passagem nifesta por meio de combinações da química, elevada, porém,
ocorre da matéria () para a energia () e para o espírito (). As ao grau mais alto de química orgânica.
formas dinâmicas se abrem por evolução, não na vida como a A expansão cinética do impulso central significa, portanto,
entendeis, mas no psiquismo, que é a causa dessa vida. Assim, uma retomada de todos os movimentos precedentes, uma re-
o fenômeno da vida assume um conteúdo totalmente novo, um construção de todos os equilíbrios já constituídos. Tudo o que
significado imensamente mais alto, e, ao mesmo tempo, não fi- nasce tem que renascer cada vez mais profundamente. Em
ca isolado, mas se concatena com os fenômenos da matéria e nova manifestação desse princípio do psiquismo, a matéria
energia. Podemos investigar a gênese científica do princípio es- revive, fecundada por um poder de direção e de escolha que
piritual da vida sem minimizar com isso, de modo algum, a lhe penetra a íntima estrutura e a permeia toda com uma febre
grandeza e a profundidade divina do fenômeno. A energia é o de vida nova. A nova potência que nasceu de , compõe para
sopro divino que anima a matéria, elevando-a a nível mais alto. si, das formas já surgidas e elaboradas da matéria, um corpo
O Pentateuco, no capítulo II da Gênese, diz: de que ela é a alma e em cujo íntimo ela age. A matéria e a
“O Senhor Deus, então, formou o homem da lama da ter- energia tornam-se meios externos, dominados e guiados por
ra e soprou-lhe na face o sopro da vida, e o homem foi feito esse movimento de ordem superior. Só por esse caminho,
alma vivente”. através desse elaborado trabalho de íntima e profunda matura-
A lama da terra é a matéria inerte, os materiais químicos do ção da matéria e da energia, isto é, complexidade e aperfeiço-
mundo inorgânico. O grande hálito que move e vivifica a maté- amento dos movimentos e dos equilíbrios da Substância, o
ria cósmica – isto é: “”, alma, espírito, paixão, turbilhão princípio do psiquismo se expande e atua no mundo dos efei-
– não é apenas acrescentada a ela, mas funde-se com ela. Sa- tos e realizações, fixando sua marca na caminhada evolutiva.
bemos que Deus não é potência exterior, mas reside no íntimo Para que o princípio possa estabilizar-se nesta zona periféri-
das coisas e no íntimo opera profundamente, na essência. Não ca das manifestações, tem que se refazer nas zonas interme-
atribuais corpo e hálito à Divindade. Compreendei que naquelas diárias, fundir o próprio movimento nos seus movimentos,
palavras não pode existir mais do que uma humanização simbó- aperfeiçoá-los, arrastando, com o próprio impulso, as suas tra-
lica de uma realidade mais profunda. jetórias para novos tipos e novas direções. Assim, a matéria é
62 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
novamente trazida para a circulação e erguida como sustenta- Então, somente um trem de elétrons constituído de energia
ção de nova manifestação. É por meio desse amplexo e dessa elétrica extremamente degradada, isto é, somente  quando
fusão, é por intermédio dessa ajuda, pela qual o mais estende- chegou ao último limite evolutivo de suas espécies dinâmi-
se para o menos, que se avança. O movimento, fazendo-as cas, pode trazer mudanças radicais à íntima estrutura do
evoluir e aperfeiçoando-lhes o equilíbrio, jamais abandona as átomo; mudanças não casuais, desordenadas, caóticas, mas
construções já estabelecidas. A evolução é íntima, universal. produzidas por nova ordem de movimentos, mais complexa
Não admite armazenamento de materiais de refugo. Essa re- e profunda. Os deslocamentos cinéticos da Substância obe-
tomada sempre em circulação ascensional constitui a natureza decem constantemente a uma lei de equilíbrio e são resultan-
daquela maturação cinética da Substância, é a essência da tes de impulsos precedentes; constituem sempre uma ordem
evolução. Somente agora podeis alcançar a visão completa da perfeita, em que estão equilibradas ação e reação, causa e
estrutura cinética da Substância. efeito. Isto se verificou na projeção dos elétrons na desinte-
gração atômica radioativa (gênese da energia), e isto se veri-
LIII. GÊNESE DOS MOVIMENTOS VORTICOSOS fica, agora, nos deslocamentos interatômicos devidos à ação
dos novos elétrons que chegaram.
Exposta a questão em seus termos gerais, vejamos agora, Detenhamo-nos um momento nesta reaproximação entre ele-
mais particularmente, que mudanças assume o movimento no tricidade e vida, para compreender exatamente porque essa força
ponto de passagem de  a . Vimos, em , que, ao abrirem-se as está colocada no início da nova manifestação. Sabeis que o equi-
órbitas dos elétrons, estes escapolem delas, gerando . Vimos, líbrio interno do átomo e as órbitas de seu sistema planetário são
em , a onda extinguir-se com a progressiva extensão de seu regidos por atrações e repulsões de caráter elétrico; é o balance-
comprimento e diminuição da frequência vibratória. Na última amento entre esses impulsos e contraimpulsos que lhe mantém a
fase de degradação, a onda tenderia a tornar-se retilínea, porém, estrutura numa condição de estase exterior. Nada, pois, é tão
na natureza, qualquer reta é uma curva, assim como toda trajetó- apropriado para deslocar o equilíbrio do sistema e penetrar nesse
ria circular é uma espiral que se abre ou se fecha. Vejamos, ago- movimento quanto a intervenção de um novo impulso ou ação de
ra, como esta onda amortecida penetra no edifício atômico. natureza elétrica. Assim, a eletricidade enxerta-se na vida e a en-
O princípio cinético da vida é único em vosso universo, contrareis sempre presente, especialmente se a considerais, co-
constituído pela forma dinâmica (eletricidade) na última fase de mo vos disse, em seu íntimo dinamismo motor. Embora aperfei-
degradação. Em virtude da natureza da energia, que está em çoando-se, como tudo se aperfeiçoa por evolução, isto é, adqui-
contínua expansão no espaço, o princípio da vida difunde-se rindo em qualidade o que perde em quantidade – por uma degra-
por toda a parte, tal como a luz e as outras formas dinâmicas. dação paralela à dinâmica, que já vimos – ainda assim subsiste
Ele propaga-se como forma vibratória, até que encontre uma sempre na vida a fonte original de natureza elétrica. Ela origina
resistência numa aglomeração de massa. Assim, a energia que, todos os fenômenos nervosos que guiam e sustentam o funcio-
por sua natureza, espalhou-se nos espaços e, portanto, é onipre- namento orgânico. Precisamente na base da vida existe um sis-
sente, atinge qualquer condensação de matéria. Então, penetra tema elétrico de fundamental importância, que preside a tudo. A
na íntima estrutura planetária justamente porque é a direção re- eletricidade permanece sempre como centro animador e substân-
tilínea que possui o máximo poder de penetração. As trajetórias cia interior da vida, da qual ela assume sempre a função central
cinéticas apresentam respostas diferentes a essa penetração ele- diretora, a mais importante. Essa sobrevivência em posição tão
trônica, de acordo com seu tipo de natureza. O primeiro germe conspícua bastaria para demonstrar a parte substancial que a ele-
da vida, por isso, é universal e idêntico, sempre aguardando de- tricidade deve ter tido na gênese e no desenvolvimento da vida.
senvolvimento; um desenvolvimento que só chegará a realizar- E, ainda quando atinge as formas de magnetismo, vontade, pen-
se quando se verificarem circunstâncias favoráveis; um desen- samento e consciência, permanece o mesmo princípio, embora
volvimento que, embora partindo do mesmo princípio, manifes- alçado às fases de máxima complexidade. Trata-se, verdadeira-
tar-se-á diferentemente, de acordo com as diferentes condições mente, da continuação do mesmo processo de degradação, que se
do ambiente. Onde  toca em , esta exulta num novo girar ín- estende das formas dinâmicas até às formas psíquicas.
timo; onde  une-se a , nasce , a vida (princípio de dualidade Quando num sistema rotatório sobrevém nova força, esta se
e trindade). Conforme a natureza e reações da matéria, varia o introduz no sistema e tende a somar-se e a fundir-se no tipo de
fenômeno, e aparecem, enfim, as diferentes manifestações do movimento circular preexistente. Podeis imaginar que complica-
mesmo e único princípio universal. ções profundas ocorrem no entrelaçamento já complexo das for-
Que perturbação ocorre, então, no edifício atômico? Vi- ças atrativo-repulsivas. O simples movimento circular agiganta-
mos que, na desagregação da matéria, um trem de elétrons é se num movimento vorticoso mais complexo. Pela emissão de
sucessivamente lançado fora do sistema planetário atômico novos elétrons, o movimento não apenas complica sua estrutura,
em demolição, e isso constitui justamente a gênese das for- mas se reforça, alimentado por novos impulsos. Ao invés de um
mas dinâmicas. Quando esse trem de unidades que se impe- sistema planetário, tereis nova unidade, que vos recorda os rede-
lem mutuamente atinge, como uma flecha, o equilíbrio nor- moinhos de água, as trombas marinhas, os turbilhões e ciclones.
mal atômico, produzido pelo girar das órbitas eletrônicas em O princípio cinético de , assim, é retomado por , numa forma
redor do núcleo, o edifício atômico fica profundamente per- vorticosa muito mais complexa e poderosa. Nasce, dessa forma,
turbado. Esse fenômeno só pode verificar-se quando  tenha nova individuação da substância, desta vez verdadeiro organismo
atingido seu grau máximo de evolução, isto é, de degradação cinético, em que todas as criações, conquistas, ou seja, trajetórias
dinâmica (mínima frequência vibratória e máximo compri- e equilíbrios precedentemente constituídos, subsistem, mas coor-
mento de onda), porque os tipos dinâmicos, enquanto não denando-se. Veremos como o tipo dinâmico do vórtice contém,
assumem a forma vibratória ondulatória, não têm suficiente em embrião, todas as características fundamentais da individua-
potência de penetração, e deles não pode nascer a vida. En- ção orgânica e do eu pessoal. Nesta nova forma de movimento,
tão o momento da gênese é dado por um equilíbrio exato de organização de sistemas planetários e coordenação complexa de
forças. Pelas resultantes desse equilíbrio é dado o desenvol- forças, na própria instabilidade da nova construção, na rapidez
vimento da vida e de suas formas. Como vimos ser a química das contínuas trocas com o ambiente e em seu mais intenso de-
inorgânica reduzível a um cálculo matemático de mecânica venir de equilíbrios, que, mesmo mudando, sempre reencontram
astronômica, assim é a constituição íntima da vida, embora seu fio condutor, revela-se aquele psiquismo, o mais requintado
resultante de sistemas de forças extremamente mais complexos. dinamismo com que a energia surge na vida. Princípio novo, mas
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 63
filho dos precedentes; simples expansão de potências concentra- cado importante. A radiação eletrônica pode atacar todos os
das no estado de latência; novo modo de existir da Substância, átomos, mas os mais leves são mais rápidos a obedecer; essa
que atingiu a periferia das manifestações. capacidade receptiva vigora em razão inversa de seu peso
A primeira expressão de  assume, então, a forma do vórtice. atômico. Escalonando os corpos simples de acordo com o pe-
O tipo do movimento do átomo físico combina-se consigo mes- so atômico progressivo, como na série estequiogenética, veri-
mo em movimentos mais complexos, por obra da nova imissão ficais que é máxima para os pesos atômicos mínimos, e míni-
dinâmica. O termo sânscrito “Vivartha” significa exatamente es- ma para os pesos atômicos máximos, a capacidade desses
se processo, que, desde a concepção hindu até às mais modernas corpos simples de ficarem ligados em círculo. Ou seja, de se-
hipóteses científicas, exprime a substância dos fenômenos do rem transportados, através do turbilhão vital, numa vida bre-
universo12. Mas a essência de  não é o vórtice. Este é apenas ve, imensamente mais rápida e intensa do que sua própria vi-
sua manifestação, a forma exterior de que se reveste aquele prin- da, o que significa receber no próprio âmbito cinético a radia-
cípio imaterial. O espírito, , está na Substância, e esta é movi- ção eletrônica que lhe intensifica o ritmo.
mento (velocidade), é aquilo que movimenta, guia, anima e diri- Por que, então, o peso atômico é base da escolha dos mate-
ge o vórtice, sem o qual este perderia seu tipo, sua resistência e riais de sustentação da vida? Porque o trem eletrônico encon-
se extinguiria, reabsorvido no indiferenciado. Não o encontrais e, trará menor resistência para penetrar nos sistemas atômicos
portanto, não podeis observar senão fenômenos, isto é, efeitos, mais simples, com uns poucos elétrons, do que naqueles mais
manifestações. Somente podeis tocar a exteriorização do princí- complexos, com muitíssimas órbitas eletrônicas. Vimos que, do
pio e, apenas a partir dela, podeis penetrar o centro e encontrar a H ao U, o aumento de peso atômico significa progressiva saída
causa. Digo isto a fim de evitar dúvidas e mal-entendidos. Se  já do núcleo e estabilização nas órbitas de sempre novos elétrons,
o era,  é muito mais um princípio absolutamente imaterial, que até ao máximo de 92, além do qual o sistema atômico se desa-
permanece sempre distinto da matéria, embora a anime e a mova grega. É óbvio que as radiações de um sistema cinético mais
de seu centro. Aliás, já vos disse que a matéria é velocidade e que rudimentar sejam mais fracas do que a dos mais complexos, e
o átomo, como o elétron, é um sistema de forças; então não se que seja mais fácil transformar o equilíbrio dos movimentos no
pode entender por vórtice, mesmo no sentido mais material, se- primeiro caso do que no segundo. Os sistemas planetários mais
não um movimento que arrasta consigo outros movimentos. Por- simples, menos numerosos de satélites, deixar-se-ão plasmar
mais facilmente em novas trajetórias do que os sistemas den-
tanto vosso separatismo, que divide corpo e espírito, não tem
sos de elétrons, que turbilhonam em movimentos mais inten-
sentido, especialmente como antagonismo. Trata-se apenas de
sos. Quanto maior o número de elétrons, maiores serão a mas-
dois polos do ser, de dois extremos que se comunicam por cons-
sa e a inércia, isto é, a resistência a absorverem impulsos ex-
tantes trocas e contatos, de uma zona de trajetória em caminho.
ternos. Esses íntimos deslocamentos cinéticos constituem a
Vossos conceitos habituais não têm mais nenhum significado
substância do fenômeno da transmutação da matéria inorgânica
quando se olha no âmago das coisas. Se me perguntardes porque
em orgânica, reduzível em sua essência, como já dissemos, a
, o espírito, manifesta-se nesse momento do transformismo
um cálculo de forças. Essas concordâncias são uma prova de
evolutivo e que relações pode ter a origem dos movimentos
que o fenômeno “vida” é, substancialmente, a resultante de
vorticosos com o surgimento da consciência, dir-vos-ei que, se uma assimilação pelo sistema atômico de um movimento ele-
a fase  conquistou a dimensão tempo, agora a imersão do mo- trônico, justamente porque os elétrons do átomo oferecem uma
vimento de  no movimento de  representa a construção de resistência proporcional a seu número. Aí está uma confirma-
edifícios, verdadeiros organismos dinâmicos, que constituem as ção da teoria cinética da gênese da vida.
manifestações de novo princípio de coordenação e direção de Se observarmos como se comportam os corpos simples, não
movimentos. Isso significa a gênese da nova dimensão consci- mais – como já vimos – na química inorgânica, mas na química
ência. A consciência, que hoje é de superfície e análise, trans- orgânica, ou seja, a maneira como eles são admitidos e tolera-
formar-se-á num organismo ainda mais complexo de movimen- dos no organismo vivo, veremos que H, C, N e O (a que corres-
tos vorticosos, animando-se de nova potência: a dimensão su- pondem os pesos atômicos 1, 12, 14 e 16, os mais baixos da es-
perconsciência sintética de intuição, a dimensão volumétrica, cala) são os corpos fundamentais da vida, bem como são tam-
máxima de vosso sistema. Então a matéria se desmaterializará bém os mais largamente difusos na atmosfera, onde nasce a vi-
de sua forma atômica e o ser sobreviverá além do fim de vosso da em vosso planeta no período da gênese vital: hidrogênio,
universo físico e de suas dimensões. carbono, nitrogênio e oxigênio, no estado de vapor de água,
H2O; de gás carbônico, CO2; e no estado livre, N e O1.
LIV. A TEORIA CINÉTICA DA GÊNESE DA VIDA E Vêm depois os corpos sucedâneos dos fundamentais, que
OS PESOS ATÔMICOS podem substituí-los parcialmente e são aceitos em doses mode-
radas. Seu peso atômico não ultrapassa 60, e temos em ordem
Procuremos pesquisar na realidade dos fenômenos alguns de peso atômico: lítio2 (Li=7); boro5 (Bo=11); flúor (Fl=19);
efeitos desta íntima transformação de movimento, da qual nasce sódio (Na=23); magnésio (Mg=24); silício (Si=28); fósforo
a vida e se manifesta seu psiquismo: a transformação da quími- (P=31); enxofre (S=32); cloro (Cl=35,5); potássio (K=39); cál-
ca inorgânica em química orgânica. Neste campo existem fatos cio (Ca=40); alumínio3 (Al2=27,1); manganês4 (Mn=55); ferro4
que podem demonstrar-vos a realidade daquela que podeis to- (Fe=56); níquel5 (58,5); cobalto5 (Co=58,7).
mar como teoria cinética da gênese da vida, compreendida Seguem-se os corpos que, mesmo entrando para fazer
como manifestação devida a uma imissão de radiações dinâmi- parte da vida orgânica, não são aceitos senão em doses pe-
cas de composição eletrônica no sistema planetário atômico. queníssimas. Seu peso atômico não ultrapassa 137 e, de
Nem todos os átomos reagem igualmente ao mesmo impulso; acordo com seu peso, estão na seguinte ordem: cobre 7
nem todos estão igualmente prontos para serem arrastados no (Cu=63,5); zinco 7 (Zn=65,4); arsênico 10 (As=75); bromo 6
ciclo da vida. A resistência à penetração eletrônica não é (Br=80); rubídio 8 (Ru=85,5); estrôncio 9 (Sr=87,6); iodo 6
constante para os vários corpos simples, mas muda exatamen- (I=127); bário 9 (Ba=137,4).
te de acordo com o seu peso atômico. Este fato tem um signifi- Se continuarmos ainda a subir até aos mais altos graus na
escala dos pesos atômicos, verificaremos que os corpos que aí
12
Reveja a trajetória típica dos movimentos fenomênicos, no encontramos normalmente não se encontram nos organismos
Capítulo 26. e, se têm ingresso no ciclo vital, só são tolerados em doses míni-
64 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
mas (isto é fundamental também em seu uso terapêutico). Te- cadeia. Eis porque apenas a onda degradada pode gerar nos
mos: selênio (Se=79); prata (Ag=108); estanho (Sn=118); an- amontoados de átomos o vórtice genético da vida.
timônio (Sb=122); telúrio (Te=127); platina (Pt=195); ouro Ora, esse eixo do vórtice representará, na vida, a linha de
(Au=197); mercúrio (Hg=200); chumbo (Pb=207). metabolismo, função universal e fundamental do mundo orgâni-
Chegamos, enfim, aos pesos atômicos máximos, dos corpos co. A direção do contínuo processo de assimilação e desassimila-
radioativos, utilizáveis terapeuticamente pelo dinamismo de su- ção é a própria direção da onda, provocada por aquele impulso
as radiações, mas sem propriedades biológicas intrínsecas. A que vimos ser irreversível. Na vida, o metabolismo é a expressão
instabilidade de seu equilíbrio interior representa um sistema da linha irreversível da evolução. Vede como nenhuma caracte-
atômico em desfazimento, que foge para as formas dinâmicas e rística, mesmo a mais embrionária e longínqua, destrói-se; ao
é o menos apto para ser retomado nas coordenações cinéticas contrário, em cada uma delas está contido o germe dos grandes
de ordem mais complexa. A emanação eletrônica desses cor- desenvolvimentos. O mundo dinâmico de  contém, tal qual a
pos, embora possa excitar no átomo a aptidão para entrar no ci- semente, todo o desenvolvimento da vida, todas as notas funda-
clo vital, fica sempre por fora dele. Para poder penetrá-lo, tem mentais da grande sinfonia. Aquela simples trajetória ou direção
que primeiro atravessar toda a maturação das formas dinâmicas, se desenvolverá numa individualidade e personalidade, com um
até ao máximo de degradação. Temos, pois: polônio (Po=210); princípio diretor, objetivando o psiquismo. Notai também como a
rádio (Ra=226); tório (Th=232,4); urânio (U=238), ou seja, os imissão dinâmica corresponde à contínua reorganização das uni-
corpos de sistema atômico mais complexo, com órbitas mais dades menores em superiores unidades coletivas (lei das unida-
numerosas, os mais resistentes a qualquer penetração cinética, des múltiplas). Com efeito, temos aqui não mais amontoados ou
justamente porque essas órbitas são lançadas e abrem-se na pe- aglomerações, mas organismos de átomos. Notai como nesta re-
riferia, em direção exatamente contrária ao trem superveniente organização mais ampla acentua-se o desenvolvimento das notá-
de radiações elétricas de onda degradada. veis características embrionárias das formas inferiores. Aqui
também encontrais a linha dos ciclos múltiplos (cfr. fig. 5), que
LV. TEORIA DOS MOVIMENTOS VORTICOSOS vos ensina que o ciclo maior é apenas a resultante do desenvol-
vimento dos ciclos menores. Neste caso, a realização orgânica é
Vimos como o trem eletrônico da onda dinâmica degradada somente o produto do amadurecimento atômico (estequiogenéti-
atinge o edifício atômico, penetra-o e desloca-lhe o equilíbrio ca, ou seja, desenvolvimento dos sistemas planetários nucleares
íntimo, e como, por essa imissão dinâmica, o sistema planetário ou eletrônicos). Visto assim, em seu íntimo, o universo se vos
de forças se transforma num sistema vorticoso. Este é o germe apresenta, a cada passo, de divina grandiosidade.
da vida em sua estrutura cinética. Observemos-lhe a complexa
Individuado, o eixo do sistema vorticoso apresenta-se-vos
constituição e sua resposta à realidade dos fenômenos daquela
com características especiais. Podeis imaginar que potência ciné-
que, como vos disse, poderia ser tomada como teoria cinética
tica ele encerra, pois é uma cadeia de núcleos em redor dos quais
da vida, ou teoria dos movimentos vorticosos, colocando-a co-
continuam a gravitar e a girar os elétrons, a cujas atrações e re-
mo base da química orgânica (química cinética).
pulsões somaram-se as dos elétrons recém-chegados da onda de-
Antes de tudo, observai minha colocação do problema da
gradada de . Assim, o eixo do sistema tem duas extremidades,
vida, totalmente diferente da ciência. Esta procura, na evolu-
caracterizadas por qualidades diferentes: uma delas, polo positivo
ção, a origem das formas. Eu, ao invés, exponho a origem dos
princípios, a causa pela qual as formas são modeladas como ou de penetração ou de ataque (pelo qual se propaga o movi-
última consequência. Por aí se conclui que, enquanto a ciência mento), e a outra, polo negativo, final ou de separação (no qual
se move na multiplicidade dos efeitos e fica do lado de fora o movimento se extingue). A linha de propagação da energia, que
dos fenômenos, eu atinjo a unidade e penetro no âmago das se torna eletricidade, sinal + e –, está para tornar-se vida, o prin-
causas. É lógico que, alcançando a substância dos fenômenos, cípio do nascimento e da morte. Como vedes, sistema aberto e
a química deva transformar-se, até atingir a abstração filosófi- em contínuo movimento. Eis donde nascem a rapidez do metabo-
ca. Também é lógico que vossa ciência, evoluindo de sua atu- lismo e a instabilidade química, que são características funda-
al forma exterior e de superfície até à mais completa forma de mentais dos fenômenos da vida. Somente a infusão do princípio
ciência substancial e profunda, deva transformar-se em ciên- dinâmico de  no princípio estático de  podia produzir esse ter-
cia abstrata, aproximando-se daquela unidade fundamental em ceiro princípio psíquico de . A matéria  apenas conquistara a
que os conceitos da matemática, da filosofia, da química, da dimensão espaço, e  apenas a dimensão tempo; somente da fu-
biologia etc., são uma só coisa. Aprofundemos, pois, o pro- são das duas dimensões podia nascer a terceira: a consciência.
blema da gênese dos princípios da vida. Este é o primeiro sistema cinético atingido pela Substância que,
Sabeis que os vórtices giram em torno de um eixo e que é sendo aberto e em movimento, distingue o interno do externo, ou
em redor desse centro múltiplo que se desloca a série dos seja, contém o princípio da distinção entre o eu e o ambiente,
equilíbrios instáveis do sistema. Esses equilíbrios, funda- afirmando sua individualidade, e projeta-se para o exterior, para
mentalmente diferentes daqueles do sistema atômico, reno- fora de si, ato fundamental, base da percepção e do desenvolvi-
vam-se continuamente, a cada instante demolindo-se e re- mento da consciência. Nessa capacidade do sistema vorticoso de
construindo-se. O eixo é a alma do sistema atômico vital, projetar-se para fora de si e, portanto, de combinar os próprios
assim como o núcleo é a alma do sistema atômico inorgâni- movimentos com os de outros sistemas vizinhos e de sentir-lhes
co. Quando um trem eletrônico atinge um átomo depois do o influxo, nessa receptividade cinética, nessa possibilidade de as-
outro, não altera apenas a trajetória dos satélites do sistema, similação de impulsos externos, existe o germe daquele contínuo
mas atinge os núcleos, e estes, que até então eram centros de registro e assimilação de impressões, que está na base do desen-
sistemas separados, são agora fundidos em cadeia, num sis- volvimento da consciência. Veremos como esta se dilata conti-
tema cinético único. Já se começam a entrever as primeiras nuamente. Aquilo que desce ao âmago do eu e aí se fixa em au-
características do novo organismo de forças, as características tomatismos, que mais tarde serão os instintos, é apenas o impulso
fundamentais da vida. A penetração eletrônica quebrou os sis- de uma força que se fixa, absorvida nos equilíbrios do sistema
temas dinâmicos fechados dos átomos e combinou-os juntos cinético-dinâmico do vórtice vital. Este é instável e mutável, po-
num sistema dinâmico múltiplo aberto. A linha e a direção do rém tudo que tenha uma ação constante, nele penetra e também
eixo são geradas e governadas pela onda degradada que, pro- se fixa nessa instabilidade, que não é caos, mas apenas um equi-
pagando-se no espaço, encontra um aglomerado de átomos e líbrio mais complexo, resultante de miríades de equilíbrios me-
lhes arrasta os sistemas eletrônicos, equilibrando os núcleos em nores. É importante pesquisar nas formas inferiores os germes e a
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 65
primeira gênese também das mais altas formas de vosso psi- ros rudimentos daquele psiquismo (sua meta) que no homem
quismo, porque nesse fundamento científico e racional basearei atingirá sua autonomia, é dinamismo intenso, produzido por con-
minhas conclusões nos campos do mundo ético e social, que, tínuo e complexo decompor-se e recompor-se da matéria em
mesmo parecendo estar muito longe, encontram-se próximos combinações químicas fugacíssimas. Dentro desse dinamismo, as
daquelas. Vede que a íntima elaboração evolutiva, ou descen- substâncias são tomadas e levadas através do organismo, são ab-
tralização do princípio cinético da Substância, ou manifestação sorvidas, assimiladas, fundidas na palpitação vital e, depois de
da Divindade, desenvolve-se de uma simples trajetória dinâmi- haver demorado nele, são eliminadas. Sua passagem pelo ciclo
ca, dirigida de um polo + a um polo –, à linha do metabolismo orgânico é, para essas substâncias, uma espécie de febre, de cor-
orgânico, primeiro construtor de corpos, e depois à linha do rida insólita, da qual escapam para repousar em seu equilíbrio
metabolismo psíquico, construtor de almas. Nessa fusão de ex- químico inorgânico assim que se livram dessa imposição. Ora, é
tremos, sentis a verdade de meu monismo. esse exatamente o fenômeno que ocorre num turbilhão, que, em
seu movimento rotatório, prende sobretudo os corpos leves (peso
LVI. PARALELOS EM QUÍMICA ORGÂNICA atômico baixo, menor resistência ou inércia), arrasta-os no seu
vórtice e, finalmente, abandona-os. Acontece isso enquanto cons-
Procuraremos na química orgânica algum paralelo ou cor- tantemente muda o material constitutivo do turbilhão, embora
respondência ao princípio dos movimentos vorticosos. Depois conserve independente sua individualidade.
de havermos observado a gênese da vida em sua íntima e pro- Quem mantém intacto, num e noutro caso desses dois fe-
funda realidade, dispomo-nos agora a caminhar para o exterior, nômenos afins, esse equilíbrio superior, enquanto dentro de si
para aquela aparência mais sensória, portanto mais facilmente os edifícios atômicos passam rapidamente de um sistema de
compreensível para vós. Vários fenômenos da química orgâni- equilíbrio a outro? Quem dá a essa instabilidade o poder de
ca vos mostram que a estrutura do fenômeno vital corresponde manter-se indefinidamente, de retificar-se, de reconstituir-se, a
à dos movimentos vorticosos observados. força de resistir contra todos os impulsos contrários que ten-
Enquanto as principais reações da química mineral são ins- dem a trazer desvios? O fenômeno da vida não é fenômeno
tantâneas e totais, as da química orgânica são, geralmente, pro- transitório nem acidental. Seus equilíbrios instáveis não são
gressivas e lentas. A mecânica das reações vos indica que, só no meros acasos químicos, porque eles se fixaram substancial-
primeiro caso, o equilíbrio químico do sistema é quase imedia- mente no caminho da evolução. Onde se encontrará essa nova
tamente atingido, ao passo que, nas reações orgânicas, é necessá- capacidade de autonomia, absolutamente desconhecida no
rio muito tempo antes que se chegue a esse estado. Essas reações mundo da química inorgânica, senão na especial estrutura ci-
progressivas, mesmo simples em aparência, são em realidade nética dos movimentos vorticosos? Diante do insuperável de-
uma superposição de reações sucessivas, que determinam produ- terminismo da matéria, encontramo-nos aqui nos primeiros
tos intermediários muito efêmeros para serem percebidos. Essa passos daquela ascensão que levará, na fase de consciência, ao
mobilidade química aparentemente menor é devida, em substân- livre arbítrio, uma novíssima liberdade de movimentos, que,
cia, ao sistema vorticoso, que resiste (inércia) contra qualquer no entanto, não destrói o equilíbrio nem a estabilidade integral
ação que tenda a deslocar-lhe o equilíbrio, pois, sendo um siste- do sistema. Sem dúvida, o movimento vorticoso enfeixa o pro-
ma mais complexo, é mais poderoso e profundo que o sistema cesso típico de isolamento, no ambiente, de um sistema de for-
atômico simples. O entrelaçamento das linhas de força, que de- ças e, portanto, contém o princípio da individualidade. Um
vem ser diversamente dirigidas, é muito mais amplo, mas, em turbilhão de forças já é um eu distinto de tudo o que o circun-
compensação, pela mesma razão, o sistema está apto a conservar da, com o que entra em relação, mas não se funde ao longo do
por mais tempo os tipos de movimento uma vez imitidos e ab- devenir; tem direção e meta próprias, com uma troca e um
sorvidos (germe da hereditariedade). princípio diretor de funcionamento que dão, de imediato, a
Somente este dinamismo mais profundo, cuja estrutura ciné- imagem do organismo e da vida. Só o sistema cinético do vór-
tica estudamos, podia produzir a síntese química da vida a partir tice contém as características de elasticidade, de equilíbrio
da matéria inorgânica. A substância dos intercâmbios vitais con- móvel, tão distantes da rigidez inorgânica e que tanto lembram
siste num ciclo mediante o qual o íntimo dinamismo do sistema o estado coloidal, fundamental na vida, assegurando a estabili-
transporta a matéria inorgânica para combinações químicas ex- dade da estrutura dos protoplasmas vivos, ao mesmo tempo em
traordinárias e complicadíssimas, que esta jamais teria consegui- que neles favorece maravilhosamente o desenvolvimento das
do alcançar sozinha. A característica da química da vida é a ne- reações químicas. O vórtice recebe e reage; admite, em vista de
cessidade de uma contínua renovação íntima, com a qual se re- sua estrutura, uma muito maior variedade de reações do que o
constitui de uma rápida deterioração; um desfazer-se constante sistema atômico e, por isso, é a sede mais adequada para a evo-
de equilíbrios que, no entanto, reconstroem-se sempre, de modo lução das reações químicas. Sistema plástico, móvel e flexível,
que, no conjunto, o equilíbrio permanece, mas condicionado por tal como a vida; no entanto, resistente. Ele tem a faculdade de
intenso e íntimo trabalho. A estabilidade permanece através da assimilar os impulsos exteriores, de torná-los próprios sem
instabilidade de todos os seus momentos, à custa de ser uma cor- quebrá-los, de conservar-lhes traços no próprio movimento e de
renteza em movimento. A própria morte, que parece a destruição registrar a resultante de suas combinações (memória). Ele se
do edifício – porque determina o momento em que os elementos rende e se transforma; suporta, mas não esquece nada. Sua elas-
se apressam a descer os degraus dessa estrutura muito complexa, ticidade significa a capacidade de retomar o equilíbrio de acor-
a fim de retornarem ao seu estado primitivo mais simples – não do com a lei de seu movimento. Passivo e ativo ao mesmo tem-
representa incapacidade de se manter no mais alto equilíbrio da po, tangencia todas as características da vida.
vida, mas é efeito da rápida sucessão sempre ativa, que jamais Outra aproximação entre as características dos fenômenos vi-
para, do dinamismo do sistema. Morte é sinônimo de renovação. tais e a dos movimentos vorticosos: a admissão da matéria na cir-
Por isso a vida persiste perenemente no ritmo veloz de seu deve- culação da vida não ocorre ao acaso. Vimos que são preferidos os
nir. Fenômeno antiestático por excelência, a vida não é possível pesos atômicos baixos, mas não é só. O vórtice vital estabelece
sem renovação. O processo vital é a resultante evidente do mo- ligações entre átomo e átomo. Quando estes são tomados no mo-
vimento contínuo de introdução e expulsão, de associação e de vimento da vida, estabelecem-se entre eles vias de comunicação.
desassociação, de anabolismo (assimilação) e de catabolismo Enquanto na química inorgânica só temos os movimentos plane-
(desassimilação), que leva à regeneração constante das células. A tários dos sistemas atômicos fechados, simplesmente coordena-
vida, desde sua primitiva fase orgânica, que só contém os primei- dos em sistemas moleculares, em equilíbrio estável, na química
66 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
orgânica temos sistemas atômicos abertos e comunicantes, em química, embora mais desenvolvidos e elevados, e a passagem
equilíbrio instável. Os átomos estão reunidos em cadeia e tor- faz-se por uma maturação interior, que eleva a uma combinação
nam-se solidários dentro de um mesmo fluxo dinâmico, guiados mais alta os elementos preexistentes. O princípio dirigente que
pelo mesmo impulso e pela mesma vontade. Na matéria, ficam dormia no âmago das coisas despertou.
mutuamente estranhos em sua estrutura íntima, embora vizinhos Esse processo de individuação do vórtice atômico, que se dis-
e equilibrados. Na vida, apertam-se num abraço e movimentam- tingue no campo cinético do ambiente, corresponde à lei que já
se numa única direção. Esta é a base da unidade orgânica. Quan- vimos, pela qual os seres, ao evoluir, passam do indistinto ao dis-
do a unidade se dissolve, as passagens se fecham e os sistemas tinto, lei que, para que o todo não se pulverize no particular, se
tornam a se isolar, reciprocamente indiferentes. Junto com o vór- compensa com a lei dos reagrupamentos em unidades coletivas
tice, terminou aquela vontade coletiva que os irmanava. Essas (um indivíduo biológico é simplesmente um organismo de siste-
cadeias dinâmicas então são abertas. Os átomos tomados no tur- mas vorticosos ligados e comunicantes). Enquanto a matéria se
bilhão vital são modificados em seu movimento íntimo e arrasta- apresenta individuada em formas que se repetem idênticas, a vida
dos num movimento diferente. Nessa viagem, são elaborados e jamais apresentará duas exatamente iguais, e seu comportamento
sua constituição química é modificada. Terminado seu trajeto, terá sempre uma nota de individualidade. Em cada forma de vida
são abandonados, não mais vivos, mas inertes. Os átomos são as- existe uma distinção mais acentuada, ao mesmo tempo em que
sim alinhados em séries bipolares, e a viagem da vida realiza-se essa forma é uma unidade coletiva mais complexa em sua orga-
entre dois extremos: nascimento e morte. nicidade. Existe na vida uma individualidade de manifestações
Agora sabeis que somente as substâncias orgânicas constituí- que preludia o desenvolvimento da personalidade, e existe uma
das de cadeias abertas de átomos (ou grupo de átomos) são acei- independência de movimentos em que já se sente o início do pro-
tas pelos seres no âmbito da vida, enquanto as substâncias cícli- cesso de transformação do determinismo físico no livre arbítrio
cas, os compostos de cadeia fechada, não são tolerados. Tudo do psiquismo. Evolução, com efeito, à proporção em que é des-
isso coincide com a estrutura cinética do sistema vorticoso, aber- centralização cinética, é também expansão e liberação de movi-
to e pronto a admitir no próprio âmbito sempre novos impulsos. mento. Ora, essas características da vida nós a encontramos tam-
É óbvio que, num sistema cíclico, uma cadeia de átomos fechada bém nos movimentos vorticosos.
em si mesma não pode ser admitida, porque não oferece acesso. Um caso de movimentos vorticosos mais concreto e mais sus-
A linha das transformações químicas é dada pelo eixo do sistema ceptível de observação para vós, é encontrado nos turbilhões, ci-
vorticoso. Vimos que esse eixo era dado pela onda degradada de clones, sorvedouros, trombas marinhas e outros semelhantes. Um
. Assim, cada indivíduo biológico, se é físico no exterior, é turbilhão é uma unidade dinâmica distinta do ambiente, com ca-
sempre, embora em graus diferentes, psíquico em seu centro inte- racteres de individualidade, independente daquele em seus mo-
rior, justamente porque é de origem elétrica o eixo do sistema vimentos, com seu próprio ponto de origem (nascimento) e um
vorticoso. A eletricidade nos primeiros níveis e o psiquismo que ponto final (morte), quando sua energia e sua trajetória se esgo-
dela nascerá nos níveis mais elevados estão sempre no centro do tam. Ele resiste aos impulsos estranhos e, se admite forças em
fenômeno vital. Assim como o eixo atrai ao redor de si um sis- seu âmbito, modifica-as com um processo que relembra o con-
tema vorticoso, também o princípio psíquico atrai e sustenta em ceito de assimilação. Mais que uma forma estática, como no
torno de si uma vestimenta orgânica. Então, a linha do transfor- mundo físico, o turbilhão é essencialmente o desenvolvimento
mismo vital – seja cadeia de reações químicas, seja desenvolvi- de um dinamismo. Tal como na vida, sua essência está no de-
mento individual, seja evolução biológica – já estava traçada e venir, e mantém-se perfeitamente equilibrado numa transfor-
contida na linha da expansão dinâmica (onda). Vede como a evo- mação contínua. Há nisso algo do futuro psiquismo. Os materi-
lução da vida, em seu impulso interior, determinante das formas, ais constitutivos, mais do que causa determinante, são forma
está em linha de continuidade com a difusão de  e com a evolu- exterior e efeito, e, de fato, esses materiais mudam constante-
ção das espécies dinâmicas. mente, ao passo que a forma, apesar de sua mutação, permanece
idêntica a si mesma. O tipo da forma permanece, embora esta
LVII. MOVIMENTOS VORTICOSOS E se modifique e também o material constitutivo que a atravessa.
CARACTERES BIOLÓGICOS Este se transforma numa correnteza contínua, que já vos fala
daquele metabolismo, nota fundamental do mundo orgânico.
Outras características fundamentais, entretanto, possui o sis- Este se apresentará com sua característica fundamental de saber
tema cinético vorticoso, que o aproximam e o tornam similar aos absorver e utilizar as energias ambientais disponíveis.
fenômenos vitais. De tudo isso podeis tirar mais uma confirma- No turbilhão existe, portanto, uma troca, um poder de assimi-
ção de que, como vos disse, é vorticosa a íntima estrutura do fe- lação, e em sua capacidade de resistir aos impulsos externos
nômeno biológico, do qual esta teoria vos dá uma profunda ex- existe, em embrião, o que será o instinto de conservação. O vór-
plicação, que se harmoniza com a de todos os fenômenos exis- tice eletrônico é simplesmente um turbilhão. O que atravessa seu
tentes. O vórtice é apenas a expressão volumétrica daquela espi- sistema cinético são os átomos em constante substituição, na qual
ral que vimos ser a trajetória de todo fenômeno e que é a expres- se transmitem os caracteres essenciais, que não são os de suas
são gráfica do conceito que o dirige, espiral que, também aqui, propriedades físicas e químicas, mas aqueles que o sistema ciné-
no campo biológico, reaparece no organismo dinâmico do vórti- tico, em que esses átomos são presos, confere a seu íntimo mo-
ce. Este corresponde ao princípio da espiral que se abre e se fe- vimento. A natureza, já dada, daquele sistema é uma capacidade,
cha e, com isso, se expande à maneira de respiração que, dilatan- a priori, de entrar diversamente em combinação, segundo os vá-
do progressivamente a amplitude de seu ritmo, agiganta-se (cres- rios tipos de movimento que o ambiente oferece. Isto será a ca-
cimento orgânico e psíquico da vida). Já mostramos como a pacidade de escolher ou o poder de transformar diversamente,
constituição desse movimento vorticoso leva-o a uma diferencia- segundo o tipo orgânico, os próprios materiais do mundo exterior
ção do ambiente, isto é, uma individuação independente. Pode (a mesma substância formará tecidos e órgãos diferentes, de
parecer-vos que haja um abismo entre a vida e a matéria, e que a acordo com o organismo que os tiver tomado em circulação). O
vida represente no universo uma subversão fundamental de leis. princípio de inércia, que dirige não só este mas todos os outros
Não. Não há abismos na natureza, nem saltos, nem zonas de vá- sistemas cinéticos, contém o germe da resistência às variações
cuo: tudo é continuação do que foi preparado precedentemente, e do misoneísmo. Nesta absorção de materiais existe também
desenvolvimento do que já existia em estado de germe. Por isso projeção de forças e comunicação com o exterior por parte da
encontrais na biologia os mesmos princípios que despontam na individuação; o vórtice não é mais sistema cinético fechado, mas
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 67
aberto; esses caminhos abertos para o exterior serão os cami- sos modos, desde as formas vegetais, às animais e às humanas,
nhos da sensibilidade e da percepção, que permitirão, num nos diferentes tipos de homens mais ou menos adiantados, e
primeiro nível, simplesmente orgânico, a síntese proteica; de- além. Daí podemos dizer, desde logo, que a morte não é igual pa-
pois, a assimilação; num nível mais alto, o acréscimo contínuo ra todos, pois nem todos sobrevivem igualmente à morte física,
daquele núcleo psíquico, já que o turbilhão o contém em germe, mas com diferente poder de consciência, de acordo com o grau
até à maravilhosa dilatação de consciência que o homem alcan- de  que tenha atingido. Uma última afinidade é encontrada no
çou, e além disso. O turbilhão tem uma vontade de reação que poder de cisão ou desdobramento dos turbilhões e de fusão de
não é apenas resistência à deformação, mas é princípio ativo, dois em um, fenômenos que, nos sistemas vorticosos eletrônicos,
que projeta para o exterior e modifica o ambiente; eis o germe preludiam aquilo que será, mais tarde, a reprodução por cisão e a
da atividade humana, que, modificando-se de acordo com as reprodução sexual (os turbilhões podem fundir-se, desde que
circunstâncias, por sua vez as modifica; é o germe da adapta- seus movimentos elementares não apresentem diferenças incon-
ção, de papel tão importante na variedade das espécies. Na na- ciliáveis de constituição cinética).
tureza das formas dinâmicas (onda, direção, expansão) encon- Todas essas observações vos mostram como, no turbilhão,
trais o primeiro germe daquele impulso que se transformará em podeis comprovar a existência de todas as características da-
vontade. No turbilhão, como na vida, existe um contato contí- quele sistema cinético vorticoso, o primeiro centro de origem
nuo entre o interior e o exterior, estabelecendo uma permuta de eletrônica que gera a vida, e como ele já contém em germe as
ações e reações, um escorar-se de impulsos e contraimpulsos, notas fundamentais do mundo biológico. Esse fato indiscutível
que sustentam a caminhada da evolução. constitui uma prova que não podeis recusar da mesma natureza
Mas não basta. O turbilhão não possui apenas a capacidade e da contiguidade evolutiva dos dois fenômenos afins: movi-
de resistir às deformações e aos desvios com sua vontade de re- mentos vorticosos e vida. Torna-se por isso evidente, também
ação, mas também a capacidade de registrar os movimentos nesta prova, aquela íntima natureza cinética que lhe propicia a
que absorve e de conservar os mesmos em seu âmbito, embora explicação mais profunda, tal como ocorreu relativamente aos
transformados, para adaptá-los a si mesmo. Eis novos germes. fenômenos da matéria e da energia. Esta minha visão do pro-
Não apenas sensibilidade e percepção, mas a memória das im- blema biológico também vos mostra como ele será por mim co-
pressões e a capacidade de fixá-las na personalidade e nas ca- locado e desenvolvido, ou seja, não como classificação botâni-
racterísticas da espécie, quer em modificações orgânicas, quer ca nem zoológica, mas como estudo da manifestação da pro-
em capacidades psíquicas (automatismos, gênese dos instintos). gressiva expansão descentralizadora do princípio da vida.
Aliás, que são os automatismos senão movimentos introduzidos Meu pensamento caminha no âmago das coisas, aderente à
e estabilizados, por ação prolongada, no organismo cinético do substância dos fenômenos, e quero mostrar-vos não a série
vórtice? Capacidade de assimilação de impressões e, portanto, das formas visíveis, que já conheceis e sobre as quais, portan-
possibilidade de que aquela concentração cinética, em que a to, é inútil demorar-me, mas o porquê delas, suas causas, as
forma se reduz a semente, contenha a gênese de todas as caracte- metas e o desenvolvimento interior do princípio cinético da
rísticas adquiridas e a possibilidade de fazê-la, de novo, voltar a Substância. Este princípio, embora se transformando e ficando
realizar-se e desenvolver-se (a criança é vivaz porque está no pe- sempre idêntico a si mesmo, sabe tornar-se tudo no mundo
ríodo de descentralização cinética; o adulto é mais profundamen- dos últimos efeitos, acessível a vós. Somente desse modo se-
te vivaz, isto é, não física, mas psiquicamente, porque a descen- rão solúveis muitos problemas psíquicos e espirituais, já que
tralização cinética penetra nas camadas mais profundas). A essa sua forma externa, a única que observais, jamais será suficien-
capacidade de registrar e retomar movimentos que resumem to- te para vos dar a chave. Veremos, dessa maneira, pelo pro-
do o passado vivido, deve-se a possibilidade da evolução. gresso da evolução, pela maturação dos fenômenos, pelo de-
O turbilhão tem uma vontade própria de penetração, uma senvolvimento dos sistemas cinéticos da Substância, a forma
vontade de permanecer em sua forma e de progredir em sua traje- espiritualizar-se e libertar-se, e os envoltórios tornarem-se su-
tória, tal como o ser vivo, vontade que, assim como neste ou em tis e caírem. Os princípios de ascensão espiritual das religiões
qualquer transmissão dinâmica, também se esgota. O processo de serão demonstrados por um processo racional, com lógica ma-
degradação pelo qual as qualidades úteis da energia se transfor- terialista. As supremas realidades do espírito, que vos apro-
mam num refinamento de valores é constante na vida, desde seu ximam de Deus, serão atingidas por um caminho que vos pa-
início até às suas formas mais altas. O turbilhão nasce, vive e recia imensamente longínquo: o da ciência objetiva.
morre. Sabe contornar os obstáculos, conhece a lei do mínimo es-
forço, reconhece as resistências, luta com elas e desgasta-se. LVIII. A ELETRICIDADE GLOBULAR E A VIDA
Cansa-se no esforço e extingue-se. Simples princípios dinâmicos,
mas levados até às portas da vida. O turbilhão está saturado de Continuemos nosso caminho, que procede do interior para o
eletricidade, daquela eletricidade de que conheceis os poderes de exterior, e observemos a forma sensória com que o dinamismo
análise e de síntese, a forma máxima de  contígua a  a forma dos movimentos vorticosos se reveste. Encontraremos, no últi-
de energia que encontramos presente e fundamental nos fenôme- mo limite das espécies dinâmicas e no limiar do mundo bioló-
nos da vida. Ao morrer, o turbilhão restitui ao ambiente não ape- gico, uma primeira unidade orgânica que resume em si preci-
nas o material físico que o constitui, mas também sua energia in- samente as características que observamos, comuns aos siste-
terior, o motor do sistema, sua pequena alma rudimentar. A in- mas vorticosos e aos fenômenos biológicos. Essa primeira uni-
destrutibilidade da substância é universal. Como poderia, justa- dade vos é dada pela eletricidade globular. Nesta unidade, ten-
mente na morte do animal e do homem, anular-se o princípio des a primeira organização de um sistema de vórtices, com uma
animador? É absurdo, pois seria a anulação de todas as leis do primeira especialização embrionária de funções. Dela nascerá a
universo. Ao evoluir, o princípio vorticoso se reforçará de tal primeira célula, que englobará em si todos os movimentos vor-
modo, que não se perderá com a morte, sendo reabsorvido no ticosos determinantes e lhes conservará em germes as caracte-
campo dinâmico do ambiente, mas sobreviverá, não só como rísticas, verdadeira síntese dinâmica e síntese química, síntese
substância mas também como individualidade. Essa sobrevivên- de forças e síntese de elementos, em que sistemas atômicos se
cia será cada vez mais evidente e determinada à proporção que o combinam nos sistemas vorticosos e os átomos nas moléculas,
princípio evoluir, consolidar-se e espiritualizar-se, deslocando arrastadas pelo recâmbio protoplasmático. Pelo princípio das
seu centro cinético para o interior; sobrevivência que se reforça e unidades coletivas, à diferenciação sucederá paralelamente
se define cada vez mais, mediante infinitas gradações e de diver- uma reorganização em unidades mais amplas, com especializa-
68 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
ção progressiva de funções. As células formarão tecidos e ór- ma não desmorona pela intervenção de forças externas. Esta é a
gãos, e, como no vórtice primitivo, uma proporcionada psique construção cinética do raio globular. Mas, se por um lado ele é
ou princípio cinético diretor, de origem elétrica, presidirá o um organismo de forças, próximo das forças dinâmicas de que
funcionamento de cada unidade. Isso até que, na evolução, su- proveio, por outro lado excita a matéria, arrasta consigo os sis-
perada essa fase e fixada definitivamente no subconsciente a fa- temas atômicos e reveste-se de matéria como de um corpo.
se consciente de formação, a unidade ascenda à fase superior da Esses fenômenos de transmutação, reduzidos à sua natureza
consciência humana, que se sente a si mesma no âmbito de sua cinética substancial, são bem compreensíveis. Entramos, agora,
ação apenas enquanto esta é trabalho de construção. Já vimos na química. Os primeiros corpos encontrados pela onda elétrica
para que metas superiores ela se dirige. Mas, como sempre, o degradada em sua passagem são simples: os elementos da at-
que importa na vida é o princípio determinante das forças: é mosfera. Eles são elaborados pela penetração eletrônica; o sis-
acompanhar a evolução das causas, e não, como fazeis, a evo- tema cinético múltiplo do raio globular torna-se um centro de
lução dos efeitos (evolução darwiniana). elaboração química. Colidindo com a estrutura íntima do áto-
Vimos como a energia elétrica, isto é, a onda dinâmica mais mo, a energia pôde concentrar ao redor de seu impulso a maté-
degradada, constrói, ao penetrar no edifício atômico, o sistema ria encontrada; o impulso, ou sistema genético, ficará sendo a
vorticoso. Não se confunda esse processo com a normal introdu- força diretriz da vida, o psiquismo animador da forma; a maté-
ção de energia “não degradada” nos sistemas atômicos já consti- ria, arrastada num entrelaçamento de combinações químicas
tuídos, que assistis em qualquer transmissão dinâmica (raios sola- cada vez mais complexo, estabilizar-se-á em unidades cada vez
res etc.). O sistema vorticoso, aberto pela própria natureza, co- mais compactas, em formas cada vez mais estáveis e constituirá
municante com o exterior, com dois polos e todas as característi- o corpo. Assim, a vida formará o seu suporte, bastante estável
cas que já vimos, era o sistema mais apto para se unir, entrando para iniciar sua evolução. Com um processo contínuo diretivo,
em combinação cinética, com outros vórtices semelhantes. O de dentro para fora (direção tangível dos fenômenos vitais),
equilíbrio se estabilizou gradualmente, pelas próprias qualidades operará a sua transformação progressiva.
intrínsecas desse tipo de movimento, num sistema de vórtices Com isso, a eletricidade pôde condensar os elementos do ar.
comunicantes, e nasceu o primeiro organismo coletivo. Não ain- Ora, sabeis que o ar contém justamente os quatro corpos fun-
da célula, não ainda propriamente vida, essa unidade de natureza damentais – H, C, N, O – que encontrais na base dos fenôme-
ainda essencialmente dinâmica, organismo de forças, que se de- nos da vida. Eles apresentam a propriedade de existirem no es-
mora no limiar do novo mundo biológico, já contém todos os tado gasoso na atmosfera – o nitrogênio e o oxigênio em estado
germes do iminente desenvolvimento. Ele viveu em vosso plane- livre, e o hidrogênio e o carbono em estado ligado, no vapor de
ta como verdadeira forma de transição de  para  e, hoje, já es- água (H2O) e no gás carbônico (CO2) – prontos para encontrar
gotou sua função biológica. No entanto ainda dele sobrevivem toda a série de corpos secundários, que os ajudarão a formar o
traços, e podeis observá-los para deduzir as suas características. protoplasma definitivo. Ora, vimos que esses corpos, justamen-
Isso porque a natureza não esquece, não anula jamais definitiva- te por sua característica de possuir pesos atômicos baixos, são
mente suas formas, e a lembrança das tentativas ressurge, embora os primeiros a serem introduzidos no círculo vital. Portanto, as-
irregularmente. O raio globular é um organismo dinâmico, de sim, a série dos trens eletrônicos da onda dinâmica degradada,
constituição eletrônica, que, em alguns casos, podeis observar. ao chegar dos espaços, encontrou-se em primeiro lugar com os
Longínquo descendente dos tipos mais poderosos, dos quais nas- sistemas atômicos de estrutura cinética mais simples, ou seja,
ceu a célula, hoje ele possui, naturalmente, um equilíbrio instá- com menor número de órbitas eletrônicas, os mais fáceis de se-
vel, transitório, uma breve persistência de vida e uma tendência a rem penetrados e transformados em sistemas vorticosos, isto é,
desfazer-se. Embora organismo efêmero, que raramente reapare- em outros tantos germes de vida. Os átomos desses quatro cor-
ce por lembrança atávica, o aparecimento e o comportamento do pos, mais obedientes e flexíveis ao impulso da energia radiante
raio globular são fatos de vossa experiência. Podeis, então, com- que chegava, foram dessa forma mais facilmente encontrados e
provar quantas afinidades apresenta esse primeiro ser com os escolhidos, por isso constituem os elementos fundamentais da
movimentos vorticosos de que é filho, como também com os fe- vida. Verificais que é caráter essencial e comum a todos os
nômenos da vida, que ele já tem em germe. Colocado entre esses compostos orgânicos conter carbono como elemento mais im-
dois fenômenos, que ele liga por continuidade, o raio globular portante e, com ele, hidrogênio, nitrogênio e oxigênio. Toda a
naturalmente apresenta as mesmas características comuns a am- química orgânica está baseada nos compostos de carbono. Este
bos, como vimos. Com esse novo termo, fechamos a cadeia que possui as qualidades que o tornam particularmente apto às fun-
vai da eletricidade, última espécie dinâmica (onda degradada), ao ções da vida, como sejam: grande elasticidade química, isto é, a
vórtice eletrônico que ela determina na matéria, até ao primeiro faculdade de se combinar com os mais díspares elementos quí-
organismo de vórtices eletrônicos – o sistema elétrico fechado do micos, o que lhe confere excepcional fecundidade de composi-
raio globular – e, depois, à célula, com a qual entramos na vida. ções; inércia química, transmitida também para os corpos aos
O raio globular, então, é um sistema elétrico fechado, nova quais se une, funcionando como resistência nas reações, cons-
unidade coletiva, formada pela combinação e associação de trangendo-as a uma lentidão de movimentos que é usual no
sistemas vorticosos, gerados pela penetração eletrônica nos mundo da química orgânica. Por esta sua tendência a eliminar
sistemas cinéticos atômicos, mantidos ligados em unidades as transformações brutais – que nas substâncias minerais con-
pelas relações recíprocas ativo-reativas (até mesmo sua forma seguem instantaneamente a forma de equilíbrio mais estável –
é a de um sistema de forças fechado e equilibrado). Nesta o carbono pôde tornar-se o elemento mais apto para o fun-
condição, a onda dinâmica degradada assume novo modo de damento químico da vida. Através dele, pôde assim nascer
ser. Sua trajetória aprofundou-se com os trens eletrônicos nos uma química instável e progressiva, de cadeias dinâmicas
sistemas atômicos; fundiu-se com eles; seu movimento muda abertas, em que as capacidades do carbono são largamente
de forma: não mais se transmite, mas volta-se sobre si mesmo; utilizadas e onde as encontrais todas. Foi por essas razões ín-
o sistema cinético que preludia a vida está profundamente timas – isto é, pelas qualidades intrínsecas do material consti-
mudado e é essencialmente diferente. A trajetória da transmis- tutivo – que a vida terrestre assumiu a forma de metabolismo
são dinâmica muda de direção: a eletricidade não se projeta que lhe é fundamental. Imaginai outros aglomerados e centros
mais de um polo a outro, mas se fecha em si mesma, num cir- de matéria, em que os próprios elementos químicos estejam
cuito fechado, que se mantém enquanto a estabilidade do siste- diferentemente dispostos ou amadurecidos, e compreendereis as
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 69
infinitas formas nas quais o próprio onipresente princípio da vi- uma espécie de personalidade. A explicação de seus movimen-
da pode ter-se desenvolvido no universo. tos lentos, próximos do solo, que parecem evitar os obstáculos,
Por isso pôde nascer na Terra uma química nova; lenta, mas sem nenhuma tendência a se aproximar dos metais e dos corpos
essencialmente dinâmica, com deslocamentos contínuos de equi- condutores, não pode ser dada por nenhuma lei física. Ele se
líbrio, e que, mesmo estando sempre em movimento, jamais atin- desloca no ar por sua própria vibração periférica, a primeira
ge a estase definitiva. Sobre essa química mutável, especialíssi- extrinsecação cinética em que se manifesta a vida, a expressão
ma, puderam basear-se os processos da vida e de sua evolução. desse rudimentar psiquismo que a dirige. Há nele algo dos cí-
Vede como, nestes seus primeiros movimentos, encontrais lios vibráteis dos infusórios, num impulso que parece vontade,
o germe das características fundamentais que, mais tarde, como uma escolha, uma previdência, uma possibilidade de to-
acompanharão sempre todos os fenômenos biológicos e que mar conhecimento do mundo exterior e de dirigir-se conscien-
são as únicas que poderão permitir sua progressiva transfor- temente, quase com memória dele. É o alvorecer do psiquismo
mação ascensional. O impulso originário encontrou, dessa em suas qualidades essenciais.
maneira, os elementos aptos para permitir seu desenvolvimen- Agora que conheceis a íntima estrutura cinética do siste-
to e pôde, assim, desenvolver-se e vem desenvolvendo-se em ma – estrutura de movimentos vorticosos abertos e comuni-
vosso planeta. A química de equilíbrio estável da matéria cantes, em relações de ação e reação com as moléculas ex-
transformou-se, desse modo, na química de equilíbrio instável ternas a esse sistema – não vos parecerá absurdo pensar que
da vida; a ordem estática transformou-se em ordem dinâmica. a superfície do globo elétrico seja a sede de movimentos es-
Isto prova que a vida é uma fusão de dois mundos, pois, em- peciais e coordenados. Essas características da vida encon-
bora seja matéria, é, ao mesmo tempo, fecundação desta, por tramo-las todas existindo nos movimentos vorticosos, de que
obra de um princípio dinâmico superior: a energia. O corpo, está intimamente constituído o raio globular, e lógico será,
feito de barro, recebeu a alma do céu, o sopro divino. pois, que reencontremo-las também nele. Isto prova a cone-
Por sua maravilhosa plasticidade, o carbono é a protoforma xão entre sistema vorticoso, raio globular e primeira unidade
da química da vida. As condições da atmosfera primitiva, nas re- protoplasmática da vida. Encontrareis no raio globular tam-
lações da gênese da vida, eram ainda mais favoráveis que no pre- bém outras características dos movimentos vorticosos, como a
sente: muito mais rica de ácido carbônico, que era abundantíssi- capacidade de cindir-se em dois e de reunir-se, como ocorre
mo; mais densa, quente; carregada sobretudo de vapor de água; nos vórtices. Existe, portanto, a possibilidade de multiplicar-
oferecendo (juntamente com a elasticidade química de uma maté- se com sistemas que se aproximam da reprodução por cisão e
ria mais jovem e menos estabilizada) condições de todo favorá- da sexual. Muitas vezes ele ricocheteia, mostrando, ao mesmo
veis, não mais existentes agora, para a condensação e a gênese tempo, a íntima coesão unitária e a elasticidade, próprias tan-
das matérias protoplasmáticas. Assim, na primeira idade da Ter- to da vida quanto dos movimentos vorticosos.
ra, elementos minerais primitivos, água, gás carbônico, nitrogê-
O raio globular decompõe sua unidade, restituindo, como na
nio, são arrastados em combinações cada vez mais complicadas
morte biológica, sua energia interna. Apenas ocorre que sua
da química orgânica, e a matéria mineral do ambiente é progres-
morte é mais violenta, de forma explosiva, porque a restituição
sivamente conduzida até à estrutura protoplasmática. Hoje en-
da energia é mais rápida. É lógico que seja assim, porque esta
contrais o mesmo processo na assimilação que os vegetais ope-
se encontra ainda em suas primeiras e mais simples unidades
ram a partir dos elementos minerais primitivos, isto é, na síntese
orgânicas, portanto não é contida pelas tramas de uma comple-
das proteínas, realizada a partir das substâncias inorgânicas, na-
xa estrutura química. Na vida, o sistema de movimentos vorti-
queles laboratórios sintéticos que são as plantas. Com a circula-
cosos é mais complexo; existe tal entrelaçamento na estrutura
ção da água, que permite a utilização do nitrogênio nela dissolvi-
orgânica, que, de passagem em passagem, a energia tem de se-
do, e com a introdução do anidrido carbônico (utilização do car-
bono contido na atmosfera), são admitidos no movimento vital os guir mutações laboriosas antes de se desemaranhar e atingir o
quatro elementos fundamentais que vimos. ambiente externo. Por isso tendes aqui, na morte, uma restitui-
O primeiro organismo cinético em que se iniciou essa síntese ção de energia mais lenta e progressiva. Assim, por explosão,
química foi o raio globular. Os primeiros corpos introduzidos no extinguem-se essas criaturas efêmeras, último retorno das for-
novo sistema dissemos que foram os de peso atômico mais baixo, mas superadas das quais nasceu a vida.
que existiam em estado gasoso na atmosfera. Esse foi exatamente Mas, em condições elétricas e químicas mais adequadas,
o berço em que tudo estava pronto para o desenvolvimento do no mesmo momento em que, na evolução, a substância estava
novo organismo de origem elétrica a circuito fechado. Embora madura e pronta para sua transformação, as primeiras tentati-
hoje, devido às condições ambientais modificadas, ele não apare- vas de equilíbrio puderam estabilizar-se, e o raio globular pô-
ça senão como instável lembrança atávica, podeis verificar que de evoluir até à forma protoplasmática. Os casos esporádicos
sua densidade aproxima-se à do hidrogênio, como deveria ser, que hoje podeis observar são apenas esboços de reconstrução
por sua estrutura atômica, o primeiro elemento movido pela radi- daqueles proto-organismos, em que começaram a atração e a
ação elétrica. Com efeito, nos casos que podeis observar, veri- elaboração dos elementos para a química orgânica, verdadei-
ficais que esses globos elétricos “flutuam” no ar, o que prova ros laboratórios para a síntese da vida. Os casos mais estáveis,
ser a sua densidade menor ou quase igual à da atmosfera, exa- os organismos mais resistentes, os mais favorecidos pelas
tamente como se dá com o hidrogênio. O primeiro material condições do ambiente, sobreviveram. Com a mesma prodiga-
biológico foi, então, o hidrogênio, ao qual depois se acrescen- lidade com que a natureza multiplica e espalha hoje seus ger-
taram outros. Este o primeiro corpo de que se vestiu a energia: mes, para que só um pequeno número sobreviva, surgiram mi-
seu primeiro apoio na Terra. Um corpo leve, gasoso, à espera ríades desses globos leves, em que a vida começava a desper-
de condensação e de combinações. O raio globular é constitu- tar e nos quais estava latente o germe de suas leis. Eles ainda
ído de hidrogênio, a mais simples expressão da matéria, reno- vagavam à mercê das forças desencadeadas, numa atmosfera
vada por novo e poderosíssimo impulso dinâmico. densa, quente, carregada de vapores de água, de gás carbôni-
Doutro lado, o raio globular tem todas as características co; primeiras luzes incertas, mas contendo a potência da vida.
fundamentais de um ser vivo. Se observardes seu comporta- Era a hora indefinida, crepuscular, a hora das formações, em
mento, vereis que ele emite uma luz que lembra a fosforescên- que o mundo dinâmico, em plena eficiência, mas convulsio-
cia; possui uma individualidade própria, distinta do ambiente; nado pelos mais poderosos desequilíbrios, tentava novos ca-
uma persistência, embora hoje relativa, dessa individualidade: minhos, assomava desordenadamente às portas da vida.
70 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
Esses globos de fogo eram, então, os únicos habitantes do Neste campo do conhecimento, em que se movimentam
planeta; não excepcionais e instáveis como hoje, mas numerosís- forças tremendas, não se pode caminhar senão através de um
simos e estáveis. Nem todos explodiam (morte violenta aciden- exato equilíbrio entre causa e efeito. Acreditais, com demasi-
tal). O íntimo movimento vorticoso tornava-se cada vez mais ada simplicidade, na possibilidade da loucura do arbítrio nu-
compacto. A condensação de uma massa gasosa das dimensões ma ordem suprema, tão complexa e perfeita! Que garantia po-
de um dos raios globulares que, por vezes, ainda tornam a se de dar vossa moral, ainda tão atrasada, de uma sábia utiliza-
formar na Terra, vos permite avaliar a ordem de grandeza das ção dos imensos poderes que o domínio de semelhantes fe-
primeiras massas protoplasmáticas. Assim, mudou o peso especí- nômenos vos daria? Por isso os fenômenos fundamentais e os
fico, e o primeiro organismo não pôde mais flutuar no ar. A onda pontos estratégicos da evolução permanecem guardados e pro-
gravífica incorporou-se à matéria, que, lembrando-se, respondeu tegidos, zelosamente, contra vossa desastrosa intromissão,
ao apelo íntimo; a condensação foi atraída e caiu. Mais pesados porque vossa ignorância é vossa impotência.
em virtude da condensação, as miríades de germes da vida caí- Não vos parece absurdo que um organismo de leis tão pro-
ram; arrastados pelas chuvas, caíram nas cálidas e vaporosas fundas, perfeito na eternidade, possa estar tão incompleto e ser
águas dos oceanos. A protoforma da vida chegara a seu berço. A tão vulnerável, que deixe aberto o flanco à possibilidade de sub-
matéria recebera o sopro divino: agora tinha de viver. As águas, versões arbitrárias? Achareis natural, então, que, dentro de uma
sobre as quais se movera o espírito de Deus, tornaram-se a sede ordem suprema, em que o equilíbrio reina soberano, exista tam-
dos primeiros desenvolvimentos, que só mais tarde atingiram as bém um feixe de forças especializadas na função de proteger as
terras emersas. O íntimo sistema do primeiro germe se estabili- partes mais vitais do organismo, a fim de afastar qualquer viola-
zou cada vez mais, absorveu e fixou em seu ciclo novos elemen- ção, de anular qualquer causa de desordem, como exatamente se-
tos, complicou-se em seu íntimo metabolismo, agigantou-se, es- ria, neste caso, vossa psique ou vontade, totalmente deseducada
boçou suas primeiras formas, que foram vegetais, simples algas para o domínio consciente de semelhantes forças.
marinhas; diferenciou os primeiros traços característicos das vá- Do mesmo modo como vossa vida tem sua sensibilidade e
rias ramificações dos sistemas biológicos. Assim, da matéria, re- seus instintos tanto mais despertos quanto mais vital o ponto
tomada no turbilhão dinâmico, animada por novo impulso em que deve ser protegido, assim também o universo, pelo mesmo
forma de germe elétrico caído do céu, nasceu a vida. princípio de conservação e de ordem que vos sustenta, tem suas
Não ouseis pensar na possibilidade de poderdes refazer uma defesas sempre prontas e em ação.
síntese química da vida; de dominar este sagrado fenômeno, em
que as maiores forças da evolução foram empenhadas. Desses LIX. TELEOLOGIA DOS FENÔMENOS BIOLÓGICOS
tempos até hoje, a evolução realizou caminho incomensuravel-
mente longo, e sua linha é irreversível. Para vós, é absoluta-
A vida: panorama sem limites. Filha da energia onipresente, a
mente impossível reproduzir condições definitivamente ultra-
vida está em toda a parte no universo, nascida do mesmo princí-
passadas. A fase que a energia atravessava então, era um estado
pio universal e diferentemente desenvolvida, como resultante
substancialmente diferente do atual. A estrutura íntima da for-
exata do impulso determinante e das reações das forças ambien-
ma dinâmica, eletricidade, qual a observais, não possui mais
tais. Pambiose, não por transmissão de esporos ou de germes por
aquelas propriedades, nem mais as possui o ambiente de ação.
via interplanetária e interestelar, mas pela onipresença da grande
Hoje, a energia já viveu suas fases, como as viveu a matéria, e,
mãe: a energia – o princípio positivo e ativo que se une à matéria,
como esta, encontra-se estabilizada em suas formas definitivas.
princípio negativo e passivo. O germe do psiquismo desceu como
Esses desequilíbrios de transição, esses momentos intermediá-
raio do céu nas vísceras da matéria, que o estreitou em seu seio,
rios, essas fases de tentativas e de expectativas estão ultrapas-
num profundo amplexo, envolvendo-o em si, dando-lhe um cor-
sadas nesse campo. Esses tipos já estão realizados, e o trans-
po, uma veste, a forma de sua manifestação concreta.
formismo evolutivo ferve alhures. No presente, a hora é de cri-
ações espirituais; matéria e energia esgotaram seu ciclo; não Vós mesmos sois esse fenômeno, mas sabei que, das ilimi-
podeis mudar as trajetórias invioláveis dos desenvolvimentos tadas plagas do universo, a vida irmã, filha da mesma mãe, vos
fenomênicos. Pensai, além disso, que vós sois esse mesmo responde. Cada planeta, cada sistema planetário, cada estrela
princípio que quereis dominar, levado a um nível superior. A está plena dela, nas mais variadas formas, com meios e finali-
Lei, que também vós representais, não pode voltar-se sobre si dades diversíssimos. Abandonai vosso piedoso antropomorfis-
própria, para modificar-se a si mesma. Vós sois um momento mo, que vos considera centro do universo e únicos filhos de
do devenir do todo, desse momento não podeis sair. Deus; abri os braços de par em par a todas as criaturas irmãs,
Verdadeiramente, não imaginais o que quereis, nem o alcance afinai com elas vosso canto e vosso trabalho de ascensão. Su-
de tal fato, nem que imensa e absurda desordem constituiria isso. bir, subir – eis a grande paixão de toda a vida – para um poder e
Que significaria uma gênese artificial da vida hoje? O simples fa- uma consciência que não aceitam limitações. Mesmo em vossa
to de acreditá-la possível vos mostra que não tendes a mínima Terra, desde os primeiros micro-organismos, esta é a aspiração
ideia do funcionamento orgânico do universo. Essa gênese pre- constante, a vontade tenaz da vida.
sume todos os períodos de maturação, períodos igualmente am- Olhai em torno de vós. O panorama da vida terrestre, por si
plos de sucessivo desenvolvimento. Poder-se-ia hoje, sem prepa- só, é imenso. A profusão dos germes, a potencialidade das es-
ração, iniciar novo processo evolutivo, para conduzi-lo num pla- pécies é tão grande, que, sem a reação dos germes e espécies
neta que já começa a envelhecer? Os fenômenos são sempre diri- opostas ou concorrentes, uma só delas bastaria para invadir to-
gidos por uma causa determinante e com uma finalidade elevada do o planeta. A vida é tão frágil, tão vulnerável e, no entanto,
e longínqua a atingir. Infelizmente, fizestes da ciência um concei- tão poderosa, que é praticamente indestrutível. Observais, pro-
to utilitário, prático, e credes que com ela tudo seja acessível por fusos em suas formas, verdadeiros tesouros de sabedoria. Quan-
qualquer meio. Eu vos digo que, pelo contrário, o domínio destes ta perspicácia sutil, que requintes de astúcia, que resistência de
fenômenos e o poder de determiná-los corresponde a leis precisas meios, que complexidade de arquitetura na construção orgâni-
de maturação individual e coletiva, que não podem ser concedi- ca, que economia e exatidão na divisão do trabalho e, ao mes-
dos senão aos que atingiram um determinado grau de elevação mo tempo, que elasticidade! Vedes sintetizada na vida a mais
espiritual e de evolução da personalidade. Eu vos digo que, alta sabedoria da natureza. Como seria possível que fenômenos
mesmo na ciência, há zonas sagradas, das quais temos que nos reveladores de tão profunda inteligência e sabedoria, diante das
aproximar com senso de veneração e oração. quais a vossa se desorienta, tivessem acontecido assim, irracio-
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 71
nalmente, e fossem filhos do acaso? Como a ciência, lógica e cada fenômeno tem uma explicação natural. À mente humana,
racional, pôde ser tão vergonhosamente míope a ponto de não num mundo de fome espiritual e de perturbação geral, falta o
perceber o grande conceito que transborda de todos os fenôme- sentido das supremas finalidades; num momento de desorien-
nos da vida, de uma finalidade superior que tudo explica e diri- tação catastrófica, eu venho dizer a palavra da bondade e da
ge? Que desastre quando quiseram trazer essas aberrações para esperança. Não a digo apenas com os conceitos da fé, que des-
o campo ético e social! O materialismo, se, por um lado, auxili- truístes, mas digo-a também com os princípios da ciência, em
ou o despontar de uma pseudocivilização mecânica, atrasou de que vos habituastes a acreditar.
um século o progresso espiritual da humanidade. Aí, onde o mundo admira e venera o que vence por qual-
Olhai em torno de vós. Do protozoário ao homem, da célula quer meio, chamo a meu lado o homem mais sofrido e des-
ao mais complexo organismo, é sempre idêntica essa febre de venturado e lhe digo: “Amo-te, meu irmão; admiro-te, cria-
ascensão, essa indestrutível vontade de viver. Indestrutível por- tura eleita”. Onde o mundo apenas respeita a força e despre-
que sabe superar qualquer obstáculo, vencer qualquer inimigo, za o fraco que jaz derrotado, eu digo ao humilde e vencido:
triunfar de todas as mortes. Em toda parte, um supremo instinto “Tua dor é a maior grandeza da Terra, é o trabalho mais in-
de luta para sustentar o fenômeno máximo, na conservação do tenso, a criação mais poderosa; porque a dor faz o homem,
qual se despendem prodigamente todos os recursos e inteligên- martela e plasma sua alma, levantando-a e lançando-a para o
cias da vida. Em seu redor, a natureza, lentamente acumula to- Alto, para Deus. Que grande homem pode igualar-te? Que
das as suas conquistas e todas as suas defesas. Se existe uma triunfador das forças da Terra jamais realizou uma criação
lógica na natureza, como vo-lo demonstra cada fato, como seria verdadeiramente eterna como a tua?”.
possível que, diante da finalidade suprema, falhasse essa lógica, Não maldigas a dor. Não conheces suas longínquas raízes;
renegando-se, quando em todas as ocasiões mostrou-se presen- não sabes qual foi a última onda, impulsionada por uma infinita
te, com indomável vontade e assombrosa sabedoria? cadeia de ondas, que constituiu o teu presente. Num universo
Vós vos perdeis no pormenor; o particular vos afoga. Ob- tão complexo, no seio de um organismo de forças regido por
servais o átimo fugidio, não a totalidade do fenômeno no tem- uma lei tão sábia, que nunca falhou definitivamente, como po-
po. Desanima-vos o choque da dor, a falência de um caso. No des acreditar que teu destino esteja abandonado ao acaso e que
dédalo da grande complexidade fenomênica, vossa consciência o desequilíbrio momentâneo que te aflige e te parece injustiça
não sabe orientar-se; sente-se impotente diante da compreensão não seja condição de mais alto e mais perfeito equilíbrio? Deus
das grandes causas. Então dizeis: por que, por que viver? O é tudo: não apenas o bem. Não pode ter rivais nem inimigos; é
animal, como o homem inferior, cuja consciência não sabe ul- um bem maior que o mal, que ele compreende e constrange a
trapassar o nível da vida física, não faz essa tremenda pergunta. alcançar seus objetivos. Como podes acreditar, mesmo igno-
Mas ela assinala o primeiro despertar do espírito, sob o chicote rando as forças que agem em ti, que estejas abandonado ao aca-
da dor. Os choques atômicos e dinâmicos, neste nível, tornam- so? Não! Quer seja chamado Pai, com a palavra da fé, ou cálcu-
se paixão e dor. Com o mesmo cálculo exato de forças, deter- lo de forças, com a palavra da ciência, a substância é a mesma:
minam-se fenômenos e criações de ordem psíquica. Quando o estais vigiado por uma vontade e uma sabedoria superiores; um
ser indaga “por que?”, então surgiu na vida uma nova criatura: equilíbrio profundo te dirige. Lembra-te de que, no organismo
o espírito. Na dor, ele evoluirá gigantescamente. universal, as palavras “acaso” e “injustiça” constituem um ab-
Por que viver? Por que sofrer? Não! Não basta o círculo de surdo. Não pode haver erro nem imperfeição, senão como fase
vossas coisas humanas: paixões, ilusões, conquistas e dores, pa- de transição, como meio de criação. A lei da vida é a alegria e
ra dar uma resposta. A alma sente que, com essa pergunta, as- o bem, mesmo que para realizar-se integralmente seja necessá-
soma às pavorosas e abismais distâncias do infinito e treme. rio atravessar a dor e o mal. Repito: “Felizes os que sofrem. Os
As vossas filosofias, a ciência e as próprias religiões não últimos serão os primeiros”.
sabem dar-vos uma resposta convincente, não vos sabem dizer Deus vê os espíritos, mede substancialmente as culpas, pro-
o porquê de certos destinos obscuros, que parecem sem espe- porciona as provas às forças e, no momento exato, diz: basta,
rança, em seres puros e inocentes, destinos de condenação que repousa! Então, a terrível tempestade da dor transforma-se em
parecem acusar de inconsciência a criação e de injustiça a Di- serena paz, em que brilha a consciência alegre da conquista rea-
vindade. Não sabem dizer-vos o porquê de tantas disparidades e lizada; abrem-se, então, as portas do céu e a alma contempla
deficiências físicas e morais, de meios materiais e espirituais. extasiada; das tempestades emergem seres elevados a um grau
Então acusais loucamente. Revoltais-vos com a revolta cega do mais alto de evolução. Não maldigas. Se a natureza – tão eco-
homem cego que tateia nas trevas. Um triste abalo, e permane- nômica até em sua prodigalidade, tão equilibrada em seus es-
ce a dor, não vencida, individual e coletivamente. Assim desen- forços – permite essa derrota, como biologicamente é a morte, e
rola-se o fio de vosso destino, e vós não sabeis. A sorte dos in- uma tal falência de tuas aspirações, como a dor, isto somente
conscientes vos guia: subir ignorando as leis da vida. pode significar, na lógica do funcionamento universal, que es-
Levantai-vos! Eu vos digo. Ensino-vos nova luta, mais tes fenômenos não são nem perda nem derrota, mas que, ao in-
elevada que essa fútil e vil que diariamente vos subjuga e vos vés, incluem, escondida neles, uma função criadora.
atira inutilmente contra vosso semelhante. Ensino-vos a guer- A dor tem uma função fundamental na economia e no de-
ra santa do trabalho; do trabalho que cria a alma, uma cons- senvolvimento da vida, especialmente em seu psiquismo. Sem
trução eterna. Ofereço-vos como inimigo não vosso semelhan- sofrimento, o espírito não progrediria. Por isso a dor é a pri-
te e irmão, mas leis biológicas que tendes que superar; ensino- meira coisa de que vos falo ao ingressardes na vida. Ela é aí
vos a conquistar novos graus da evolução, para que se realize colocada como fato substancial, pois é o esforço da evolução, a
em vosso planeta uma lei super-humana, da qual estejam ba- nota fundamental do fenômeno biológico. A dor, produzida pe-
nidos vileza, traição, egoísmo, agressividade. Demonstro-vos lo choque das forças ambientais opostas ao eu, excita-lhe como
que vossa personalidade, pela própria lógica de todos os fe- reação todas as atividades e, com as atividades, o desenvolvi-
nômenos, é indestrutível; que, pelos princípios vigorantes em mento. Só a dor sabe descer ao âmago da alma e arrancar-lhe o
todo o universo, existis para o bem e a felicidade, que vos grito com o qual ela se reconhece a si mesma; só ela sabe des-
espera a todos no futuro, para cada um subir até ele, de acor- pertar-lhe toda a potência oculta e fazê-la encontrar, no fundo
do com seu trabalho. As tremendas respostas aos grandes do abismo íntimo, sua divina e profunda natureza.
“porquês” eu vos ofereço naquela atmosfera de límpida logici- O mal, representado por essa lei de luta, a lei de vosso
dade, em que nos movimentamos sempre neste escrito, no qual mundo biológico, lei desapiedada que pesa em vosso planeta
72 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
como uma condenação, transforma-se num bem. Olhai o LX. A LEI BIOLÓGICA DA RENOVAÇÃO
âmago das coisas e vereis que o mal sempre se transforma
no bem. O instinto de agressão excita no agredido, como re- Com a vida, o transformismo da estequiogênese e da evolu-
ação, o desenvolvimento da consciência, o progresso nos ção dinâmica acelera ainda mais seu ritmo. A trajetória daquele
caminhos da ascensão biológica e psíquica. devenir fenomênico que estudamos nas fases  e , torna-se a
Os seres aglomeram-se para invadir tudo, para se arrasa- linha de vosso destino. Matéria e energia não nascem e morrem
rem mutuamente. A necessidade de constante esforço para se tão rapidamente, não mudam com essa velocidade. A vida tem
defenderem significa a necessidade de contínuo trabalho de que nascer e morrer sem jamais deter-se, sem possibilidade de
ascensão. Assim, na série dos choques recíprocos e inevitá- parar esse movimento mais rápido, inexoravelmente marcado
veis, a natureza estabelece a técnica de sua autoelaboração. por um ritmo mais veloz de tempo. O equilíbrio da vida é o
Por isso, a lei brutal contém em si os meios para transformar- equilíbrio do voo, em que a estabilidade está condicionada à ve-
se a si mesma e, através de um intrínseco impulso, torna-se na locidade. A instabilidade das combinações químicas num meta-
lei superior de amor e de bondade do Evangelho. bolismo que se renova sempre é, como vimos, a característica
Duas fases de evolução biológica: animal-humana e su- fundamental do fenômeno biológico. Nascer e morrer, morrer e
per-humana. Duas leis em contraste no atual período de tran- nascer, essa é a trama da vida. A constituição cinética da Subs-
sição. Enquanto alvorece a nova civilização do Terceiro Mi- tância se exterioriza e aparece cada vez mais evidente, à pro-
lênio, na qual se realizará o tão esperado Reino de Deus, porção que a evolução ascende até sua forma mais alta: a vida.
embaixo ainda se desencadeia a louca ira bestial humana. A matéria é tomada num turbilhão cada vez mais veloz, que a
Mas a Lei contém em si os germes do futuro, os meios para permeia em sua essência mais íntima, para que possa responder
realização do seu transformismo. Jamais, na natureza, vedes aos novos impulsos do ser e tornar-se meio de desenvolvimento
as forças operarem de fora, e sim manifestarem-se de dentro, do novo princípio psíquico da vida: .
como expansão de um princípio oculto nas misteriosas pro- Parece-vos uma fraqueza da vida essa fragilidade, essa con-
fundezas do ser. E, no homem, que hoje se encontra numa tínua necessidade de reconstrução para suprir sua contínua dis-
acentuada curva de sua maturação biológica, quando esta persão e desgaste, mas essa é sua força. Parece-vos que ela não
atinge o nível psíquico, ocorrerá a transformação e se mani- sabe manter-se numa estabilidade constante, mas, ao contrário,
festará a nova lei, já anunciada há dois milênios na Boa- esse transformismo mais rápido é a primeira condição de suas
Nova do Evangelho de Cristo. capacidades ascensionais, um poder absolutamente novo no
Nosso tratado entra, agora, numa atmosfera mais humana caminho da evolução. Na vida, o espasmo da ascensão se torna
e mais cálida, mais palpitante de vossa vida, instintos e pai- mais intenso, rapidíssimo. O turbilhão psíquico nasce e se de-
xões. Os problemas que abordaremos estão próximos de vós; senvolve cada vez mais poderoso, de forma em forma; a veste
são vida de vossa vida, tormento de vosso tormento, e minha da matéria se torna cada vez mais sutil; o pensamento divino se
palavra exalta-se nesta iminente humanização. Aproximamo- torna cada vez mais transparente. É necessário reconstruir con-
nos das formas superiores da vida, em que estais; avizi- tinuamente vossos corpos, e só uma troca ou recâmbio constan-
nhamo-nos da meta de nosso caminho, que é a de vos traçar te pode sustentá-los. Esta, que parece vossa imperfeição, consti-
os caminhos do bem. Alongamo-nos bastante no estudo das tui vosso poder. Neste ritmo rápido tendes que viver: juventude
criaturas menores, irmãs do mundo físico e dinâmico, por- e velhice, sem jamais parar. Mas, nessa corrida, é indispensável
que elas contêm os germes dos problemas da vida e do psi- experimentar continuamente, provar, assimilar, avançar espiri-
quismo, e, sem elas, não seria possível a existência nem a tualmente; esta é a vida.
explicação destes fenômenos. Poder existir à custa de uma renovação contínua significa
Quanto mais ampla a abertura da mente, mais se aprofun- tão somente ter que marchar, cada dia, na grande estrada da
dam o estudo e o pensamento e mais se revela complexo o fun- evolução. Vós vos prendeis à forma; acreditais que sois maté-
cionamento do todo. Esta filosofia torna-se a filosofia do uni- ria; quereríeis paralisar esse maravilhoso movimento; para pro-
verso; não, como as outras, um sistema antropomórfico e ego- longar a ilusão de um dia, gostaríeis de parar a marcha estupen-
cêntrico, mas uma concepção que exorbita os limites do plane- da. Mas possuís, além da juventude do corpo, a inexaurível e
ta, aplicável onde quer que exista a vida. eterna juventude de uma vida maior, não a terrena. Naquela,
Neste sistema, a vossa ciência perde aquele seu caráter sois indestrutíveis, eternamente novos e progressistas; sois jo-
desconsolado de viandante que caminha sem esperança de ja- vens não no corpo caduco, mas no espírito eterno. Não deis im-
mais chegar à meta, demasiadamente afastada. Nele, a fé per- portância à alvorada e ao crepúsculo de um dia, pois cada cre-
de aquele caráter de irrealidade que aparenta diante da objeti- púsculo prepara nova aurora. É lógica simplicíssima, evidente
vidade do positivismo científico. Mas por que nunca se hão de lei de equilíbrio, esta pela qual, assim como tudo o que nasce
estender os braços os dois extremos do pensamento humano? morre, também tudo o que morre tem de renascer.
A ciência tornou-se gigante, e não é mais lícito ignorá-la no Não vos iludais a vós mesmos; não percais um tempo preci-
seio de uma fé que, se deixada aos primitivos enunciados da oso no esforço inútil de tentar parar a vida. A beleza da mulher
concepção mosaica, não pode mais ser suficiente para as deve servir à maternidade; a força do homem é feita para des-
complexas mentes modernas. Torna-se indispensável unir os gastar-se no trabalho. Só quando não tiverdes fraudado a Lei,
dois caminhos e as duas forças; reunir os dois aspectos dividi- mas houverdes criado de acordo com sua ordem, vosso tempo
dos da mesma verdade, para que a ciência não permaneça “não será passado” e não tereis lamentações. Se pedis o absur-
apenas um árido produto do intelecto – sem finalidade no céu, do, tereis que colher ilusões. Colocai-vos no movimento, não
sem resposta para a alma que sofre e pergunta – e a fé não ve- na imobilidade. Desembaraçai vosso pensamento do passado
nha a ser apenas um produto do coração, que não sabe dar as que vos prende. Superai-o. O passado morreu e contém o me-
razões profundas à mente que “quer” ver. nos. Interessa o futuro, que contém o mais. A sabedoria não
Estes conceitos poderão perturbar vossas classificações tradi- está no passado, mas no futuro. Só vossa ignorância pode fa-
cionais, mas respondem à inevitável necessidade de salvar a ci- zer que acrediteis na possibilidade de violar e fraudar a Lei, de
ência e a fé, pertencem ao futuro do pensamento humano e estão deter-lhe o caminho fatal. Se parais, o pensamento cristaliza-
acima de todos os vossos sistemas, tradições e resistências, como se, o tédio vos persegue. A satisfação de todas as necessidades,
estão todas as forças invencíveis da evolução. de todos os desejos, vos torna ineptos; ócio significa morte por
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 73
inanição. O repouso só é belo como pausa, como consequência transversas, com meios injustos? Trabalhai: procurai vossas
de um trabalho anterior e condição de novo trabalho. alegrias, conquistai-as com vosso trabalho. Vossa alma jamais
A necessidade de evoluir, imposta pela Lei, está gravada no se alegrará com as maiores conquistas se não forem vossas, se
mais profundo instinto de vossa alma: a insaciabilidade. A insa- não forem produto de vosso esforço, testemunho e medida de
tisfação que permanece no âmago de todas as vossas realiza- vossa capacidade. Mais que o resultado exterior, a alma quer a
ções, qualquer desejo satisfeito que vos faz debruçar para outro demonstração de seu íntimo poder, quer a prova de sua sabe-
horizonte mais amplo, o descontentamento que vos atormenta doria progressiva, quer o obstáculo para poder vencê-lo, quer a
logo que parais, o ilimitado poder de ambicionar, inato em vos- prova constante de seu valor íntimo e indestrutível.
so espírito, tudo vos diz que sois feitos para caminhar. Isso po- O resultado prático, concreto, na economia da vida é quase
de constituir ânsia e ilusão, mas é estrada de progresso, é o es- um produto secundário e de refugo, e, por isso, a Lei não lhe
forço da ascensão. A centelha que guia vossa vida sente a Lei, dá importância, abandonando-o logo que sai das mãos do ho-
mesmo sem o saberdes; segue-a com seu instinto profundo, in- mem, à mercê de forças de ordem inferior. Como é triste ver
delével, que jamais conseguireis fazer calar. Isso não é conde- vosso contínuo esforço inútil para vos realizar num mundo in-
nação nem ônus de ilusões. Moveis-vos de acordo com a Lei, grato e rebelde, para imprimirdes na matéria o sopro de vossa
criai substancialmente, e sentireis quanta alegria vos inundará o alma eterna! Que trágico espetáculo este inconciliável con-
espírito! Ao invés, que sutil tristeza vos prende quando vosso traste entre a vontade e os meios, entre o pensamento e sua re-
tempo é desperdiçado! Ocasiões perdidas, posições estacioná- alização! Por causa dessa correspondência inadequada, dessa
rias: o universo caminhou, e ficastes parados em vossa pregui- incurável impotência da matéria, as maiores almas, muitas ve-
ça. A alma o sente, entristece-se e chora. Então gritais: vanitas zes, abatem-se exaustas aos pés de seus ideais, altos como ro-
vanitatum. Mas vão sois vós; a vida não é vã. chas cujos cimos resplandecem fora da terra. Terra móvel e
Não desperdiceis vossas energias, não pareis à beira do ca- vã, que recolhe a ruína de todas as vossas grandezas humanas!
minho, não adormeçais enquanto a vida está desperta e cami- Como podeis ainda insistir nesse doloroso jogo e concluir tris-
nha. Se cada dia tiverdes sabido criar no espírito e na eternida- temente que nascestes apenas para colher ilusões?
de, se tiverdes dado a cada ato esse objetivo mais alto e mais Concebei a vida não mais na superfície, mas em sua reali-
substancial, tereis caminhado com o tempo e não direis: o tem- dade mais profunda, e se dissipará a condenação aparente;
po passou! Tereis renovado vossa juventude com vosso traba- construí no espírito, que mantém eternamente as impressões, e
lho e não tereis envelhecido tristemente. Então não direis mais vossas aspirações encontrarão eterna expressão.
da vida: vanitas vanitatum. Este ritmo mais rápido da vida, cuja essência e origem vi-
Realizai o trabalho oferecido por vosso destino e não invejeis mos no estudo dos movimentos vorticosos, manifesta-se nas
quem está no ócio. Vós, humildes, não invejeis os ricos e podero- formas orgânicas como uma permuta química contínua. Tal
sos, porque eles têm outros trabalhos a fazer, outros problemas a como a vida psíquica é um veículo em marcha, que avança de
resolver, outros pesos a suportar. Ninguém repousa verdadeira- curva em curva, de estação em estação, sem possibilidade de
mente. Não há parada para ninguém no caminho da vida. Mas parar, assim a vida orgânica é uma renovação contínua, e o
considerai-vos todos soldados do mesmo exército, encarregados material de que é constituída é uma corrente. Esse material,
de trabalhos diferentes, coordenados no mesmo objetivo. Não in- no entanto, no seu conjunto, é sempre o mesmo, move-se cir-
vejeis aqueles cuja aparência os apresenta felizes: a verdadeira culando de organismo em organismo. A vida é feita de unida-
alegria não se usurpa, não se herda. Aquilo que não se ganhou des comunicantes, ligadas em indissolúvel vínculo por contí-
não dá satisfação, não se aprecia, e se desperdiça. nuas permutas do material constitutivo. Como um rio, em que
A alma quer a sua alegria, sua propriedade, fruto de seu tra- sempre mudam as águas, assim o ser mantém, na mudança
balho; só isso é apreciado, só isso traz prazer. As vantagens dos seus elementos constitutivos, sua própria individualidade.
gratuitas não trazem satisfação. Acima de vossas partilhas hu- A lógica vos indica a presença de um princípio superior e
manas, a Lei distribui alegria e dores com profunda justiça. diferente de cada uma das partes componentes, porque o mesmo
Como poderíeis ser felizes se vossas vidas fossem mais subs- material é plasmado diferentemente, individualizado em dife-
tanciais! Por que acumular com qualquer meio, se tudo deverá rentes formas específicas, de acordo com a natureza do ser que
ser deixado? Considerai antes a vida como campo de adestra- dele se apropria. O organismo superior é uma verdadeira socie-
mento, onde estais para temperar vossas forças, para provar dade de células, com funções distintas, mas há uma coordena-
vossas capacidades, para aprender novos caminhos, para apro- ção de funções de cada uma das unidades menores diante das
fundar vossa consciência. Estais no mundo não para construir maiores; há uma subordinação do interesse individual ao cole-
na areia, mas para edificar-vos a vós mesmos. tivo. Os organismos superiores são agrupamentos associados,
Não busqueis o absurdo de querer prender-vos definitiva- semelhantes à sociedade humana, em que existe um poder cen-
mente a uma matéria instável e caduca, pois a troca a que a vida tral dirigente. As unidades componentes nascem e morrem nu-
a submete não permite que sua aparência resista um só instante. ma vida menor, englobada no âmbito da vida maior. Basta o fa-
Desprezai a miragem das formas. O que existe fica e sobrevive to de que a vida permanece constante para demonstrar a existên-
à renovação contínua dos meios, o que verdadeiramente impor- cia em vós de uma individualidade superior e independente. Ve-
ta, sois vós, vossa personalidade espiritual. Não façais do mun- de como à vida e ao seu desenvolvimento está subordinado todo
do um fim, pois é apenas um meio. Não invertais as posições e o transformismo dos materiais tomados na sua circulação; à vida
as funções. Não vos transformeis de senhores em servos. Cami- maior são oferecidas em holocausto, como a um interesse superi-
nhai. Lançai-vos à grande correnteza. A vida é feita para correr or, todas as vidas menores que a atravessam e nela se sustentam.
e avançar. Triste é o lamento do tempo perdido no sono, do Contínuos nascimentos e mortes menores, coordenados num or-
tempo que não trouxe nenhum progresso e vos deixou para trás, ganismo que, por sua vez, nasce, morre e se coordena em orga-
estacionários; triste é o choro da alma que se vê iludida em sua nismos coletivos mais amplos, que, por sua vez, nascem e mor-
maior necessidade, em que a Lei fala e exprime-se. Avançai, se rem, sejam espécies animais ou famílias, povos, civilizações,
não quiserdes que a correnteza vos ultrapasse e vos abandone. humanidades. A vida se organiza através da coordenação de suas
Sede insaciáveis, como Deus vos quer, trabalhando substanci- unidades, de acordo com o princípio das unidades coletivas.
almente, criando no bem, na eternidade. Embora a substância viva e morra continuamente, a vida
Como podeis ser tão ingênuos a ponto de acreditar que, num jamais se extingue. Renovar-se é sua condição. A vida e a mor-
universo tão perfeito, a felicidade possa ser usurpada por vias te são apenas fases dessa renovação, a vida e a morte da unidade
74 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
menor constituem a permuta da unidade maior de que ela é parte os mais diferentes estilos são empregados, contanto que se al-
orgânica. Nessa rede de leis, nas quais ocorrem os fenômenos e cance esse objetivo. Dever supremo a que não podeis escapar,
nas quais a matéria está presa, não há lugar para absurdos, como mesmo que quisésseis ficar ociosos; o instinto de conservação
seria o fim de qualquer unidade menor ou maior. Ao contrário, vos defende do suicídio, dando-vos o medo da morte.
tudo se reagrupa em unidades coletivas e coordena a própria evo- Compreendei, porém, que se a conservação é necessidade
lução na evolução de unidades superiores, das quais é o elemento inviolável, não pode, sozinha, constituir o fim último, porque é
constitutivo (lei dos ciclos múltiplos). absurdo um ciclo fechado e estacionário de finalidade, uma vi-
da que só tenha como meta a autoconservação. A vida não é
LXI. EVOLUÇÃO DAS LEIS DA VIDA fim em si mesma, mas meio para um objetivo mais alto: evolu-
ir. Evoluir significa progredir na alegria, no bem; significa li-
Essa evolução, cujo maravilhoso caminho estamos obser- bertação das formas inferiores de existência, realização pro-
vando, é produzida, em seu aspecto conceptual, por uma trans- gressiva do pensamento de Deus: meta suprema, que vos revela
formação de princípios e de leis. As formas do ser, como as en- por que o fenômeno da vida está tão ciosamente protegido por
contrais em todos os níveis (  ), são simplesmente a ex- leis sábias. Refleti que nela se quer, supremamente, vossa feli-
pressão desse pensamento em contínua ascensão. Na reconstru- cidade, e elevai um hino de gratidão ao Criador.
ção desse pensamento, que atingis mediante a análise e a obser- Eis o novo instinto universal e insuprimível: a necessidade
vação, está a síntese máxima que resume o mistério da criação. de progresso e a insaciabilidade do desejo. O próprio hábito da
Por isso, mais do que nos entretermos no estudo das formas or- satisfação, pela lei dos contrastes, base da percepção, ao dimi-
gânicas – fenômeno que conheceis, porque exterior e mais ime- nuir a alegria, acentua a insaciável necessidade de progresso. A
diatamente acessível – insistiremos na compreensão dos princí- Lei contém em si todos os elementos do desenvolvimento futu-
pios que as determinam e regem o transformismo, isto é, o es- ro. Longo caminho evolutivo reunirá os germes das leis bioló-
tudo das causas, mais do que dos efeitos. gicas contidas nos movimentos vorticosos, com as mais altas
Comecemos, pois, pelo que é prevalentemente o aspecto con- leis da ética e das religiões. As formas primordiais evoluem. O
ceptual dos fenômenos biológicos, o princípio diretor em sua as- princípio originário subsiste tenazmente, inviolável, superior a
censão, para depois observar o aspecto dinâmico do devenir das todas as infinitas resistências do ambiente, que sempre lhe cri-
formas em que se exprime a ascensão desse princípio. O aspecto am obstáculos, na superação dos quais ele se retempera. A lei
estático das individuações orgânicas está suficientemente ex- baixa e feroz requinta-se. Fome e amor – primeira expressão da
presso por vossas categorias botânicas e zoológicas e pelo princí- lei da luta pela conservação – mais tarde, através das duas for-
pio evolucionista darwiniano das formas, já conhecido. mas de atividades por elas impostas ao ser, trabalho e afetos,
Nesses três aspectos, tal como nas fases precedentes, esgota- tornar-se-ão duas qualidades elevadas e poderosas: inteligência
se o estudo da fase . Na realidade, estão fundidos juntos, pre- e coração, que governam, nos níveis humanos mais altos, a
sentes em qualquer gênero e a qualquer momento, como cada conservação individual e coletiva. A função cria o órgão tam-
pensamento está fundido na veste que o manifesta; assim vos bém no campo psíquico, ou seja, hábitos e qualidades. Surge
aparecem na história do desenvolvimento ontogenético e filoge- imperceptivelmente, com o exercício, a nova característica, que
nético (embriologia metamorfológica e genealogia da espécie). afinal se estabiliza com nitidez.
Só compreendereis isso se o considerardes mais como desenvol- Assim, a evolução fixa gradualmente suas conquistas; de-
vimento de princípio que de formas, de psiquismo que de órgãos. senvolvendo seus princípios, distinguindo-os e multiplicando-
Por tudo o que dissemos sobre a teoria dos movimentos vorti- os por diferenciação, opera no mundo dos efeitos uma verda-
cosos e sobre a lei biológica da renovação, o movimento ou prin- deira criação. Mas é sempre o absoluto que se manifesta no
cípio cinético da Substância torna-se cada vez mais intenso e relativo, a causa única que se multiplica em seus efeitos. Nas-
manifesto e nos guia às portas da terceira fase, , com um con- cerão, assim, órgãos e instintos, funções novas e novas capa-
ceito fundamental: o metabolismo. Já vimos a sua íntima estrutu- cidades. Do primordial funcionamento orgânico, do simples
ra. Metabolismo, fato desconhecido em  e em , fato novo, que princípio de permuta, subir-se-á até às mais complexas formas
significa ritmo acelerado de evolução. Vimos que os movimentos de psiquismo do espírito humano. Então aparecerá, por evolu-
vorticosos contêm em germe todas as leis biológicas. O princípio ção, como elemento substancial na economia da vida, aquele
básico da indestrutibilidade da substância torna-se, na vida, ins- absurdo biológico, o altruísmo. A lei que regula a vida assu-
tinto de conservação; o princípio de seu transformismo ascensio- me uma forma de expressão mais elevada ou mais baixa, de
nal torna-se lei de luta. A vida manifesta-se, desde seu primeiro acordo com o grau do ser, revelando-se na medida correspon-
aparecimento, com uma fundamental característica de atividade: dente à potencialidade conquistada por ele. A evolução torna
a da luta pela conservação. Esse princípio logo se divide em cada vez mais transparente, na vida, um pensamento cada vez
dois: conservação do indivíduo e conservação da espécie, que mais alto e transforma as leis biológicas.
presidem duas funções básicas: nutrição e reprodução. Jamais vos perguntastes o significado do contraste tão evi-
Há uma linguagem comum a todos os seres vivos, que to- dente entre a lei sem piedade da luta e a lei humana mais doce,
dos compreendem: a fome e o amor. Mesmo na reprodução da compaixão, bondade e altruísmo? O próprio animal conhece
por cissiparidade, há uma doação de si, há o germe de um al- a compaixão, mas só para si e para seus filhos. Afora esses ca-
truísmo a favor da espécie. A vida aparece imediatamente, sos, a luta é feroz, sem exceções. O esforço da evolução se rea-
desde suas primeiras formas, com a marca de ilimitado ego- liza mediante uma seleção implacável, e o triunfo cabe, incon-
ísmo, que somente cede lugar a um egoísmo diverso: o ego- dicionalmente, ao mais forte. No homem, os objetivos da sele-
ísmo individual apenas faz concessões ao egoísmo coletivo. ção são alcançados por outros meios, pelo trabalho, pela inteli-
Trata-se de leis férreas, ferozes em seus primórdios, mas sem- gência, pelos sentimentos. Só no homem surgem essas supera-
pre equilibradas em perfeita justiça. No íntimo do fenômeno ções e a percepção do contraste com a lei mais baixa.
existe, como vimos, o princípio de todos os futuros desenvol- O animal ignora essas formas superiores e é atroz, sem pi-
vimentos e das mais altas ascensões. O embate e o equilíbrio edade, indiferente à dor do vizinho, mas em perfeita inocên-
das forças do mundo dinâmico tornar-se-ão dor e justiça nos cia; não por maldade, mas em plena justiça, porque esse é seu
níveis mais elevados. Conservar-se é o mais premente e sempre nível e sua lei. O equilíbrio na consciência animal é mais me-
presente esforço da vida. Tesouros de sabedoria são dissipados, cânico, simples e primitivo; ressente-se mais fortemente das
todas as astúcias, os meios mais poderosos, todos os sistemas e origens e ainda aparece como uma resultante de forças, sendo
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 75
mais facilmente calculável em sua simplicidade do que na LXII. AS ORIGENS DO PSIQUISMO
complexidade do espírito humano.
Nas mesmas circunstâncias, o ser humano se comporta com
liberdade de escolha e independência pessoal, ignoradas no Vimos o aspecto conceptual da fase , a evolução do prin-
mundo animal, justamente porque em seu campo entram em cípio diretor da vida. Observemos, agora, o aspecto dinâmico
função elementos desconhecidos nos níveis inferiores. Observai preponderante do devenir em que se manifesta esse princípio.
em que rede de forças e de princípios se movem as formas; ob- Vimos transformar-se o princípio básico da luta. Vejamos, en-
servai que imensas criações pode produzir um mero desenvol- tão, como se exprime essa transformação nas formas de um
vimento de princípios. Só o homem olha para trás e, pela pri- psiquismo crescente. As três forças que sustentam as leis de
meira vez, percebe a distância que o separa do passado e deste conservação e evolução e se manifestam nos impulsos: fome,
se horroriza. O homem se encontra no limiar do mais alto psi- amor e insaciabilidade do desejo, acompanham a transformação
quismo, representando a forma de transição entre a animalidade dos princípios e modificam profundamente a natureza do ser,
e a super-humanidade, entre a ferocidade e a bondade, entre a tornando esta uma exata expressão daqueles.
força e a justiça. Duas leis contíguas e, no entanto, profunda- Se a finalidade da vida é a evolução, o objetivo da evolução
mente diferentes. O homem oscila entre dois mundos: o mundo – sua constante tendência e máxima realização na fase vida – é
animal, que impõe comer ou ser comido – agressão, força bruta, o psiquismo. Observemos como ele surge e se desenvolve até às
luta sem piedade, triunfo incondicional do mais forte – onde a formas superiores humanas. Um germe do psiquismo já existe,
força física sintetiza toda a vitória nesse nível; e o mundo supe- como vimos, na complexa estrutura cinética dos movimentos
rior, anunciado pelo Evangelho do Cristo, a Boa-Nova, a pri- vorticosos. Daqueles primeiros sintomas até ao espírito do ho-
meira centelha da maior revolução biológica em vosso planeta. mem, passa-se por gradações sucessivas de desenvolvimento,
Em meu conceito, os fenômenos psíquico e social são fe- através das formas vegetais e animais, cujos órgãos e formas
nômenos biológicos, sendo assim reconduzidos à sua substân- são meras manifestações de um psiquismo progressivo. Esse
cia, de lei da vida. Neste novo mundo, a força torna-se justiça. psiquismo crescente, que rege todas as formas de vida, é um
Somente o homem, finalmente amadurecido, pode compreender dos espetáculos mais maravilhosos apresentados por vosso uni-
esta antecipação de realizações biológicas, reveladas pelo céu. verso. Nele reside a substância da vida, e a essa substância man-
Jamais, desde o aparecimento da vida até ao homem, fora inici- temo-nos aderentes. Para nós, vida = , ao passo que suas for-
ada tão profunda transformação, pois a vida animal é apenas mas constituem apenas a veste exterior de um íntimo psiquismo.
uma vida vegetal mais acelerada e lhe conserva os princípios Evolução biológica é, para nós, evolução psíquica. Para compre-
fundamentais. A lei do amor e do perdão constitui tamanha re- ender a evolução dos efeitos, é mister compreender a evolução
volução substancial, que o animal inevitavelmente fica excluído das causas. Para nós, zoologia e botânica são ciências de vida,
dela; diante de tão grande desenvolvimento dos princípios da não um catálogo de cadáveres, e consideramos as formas apenas
vida, o ser inferior – ao qual tantas vezes o homem ainda se as- enquanto são a expressão do conceito que as plasmou. Não as li-
semelha – para, como diante de muralha insuperável. Esses gamos por parentela orgânica senão onde e enquanto esta é indi-
conceitos são verdadeiramente, nesse nível, um absurdo, uma cadora de uma parentela psíquica mais substancial. Botânica e
impossibilidade; direi mais, são uma impotência biológica. zoologia, vós as reduzistes a necrópoles, ao passo que são reinos
Veremos como ocorre, por um sistema de reações naturais e palpitantes de vida, de sensibilidade, de atividade, de beleza.
de registros destas na consciência, por progressiva aproxima- Assim consideramos, desde o princípio, o problema da vi-
ção e disciplina da força desordenada, a transformação da lei da e o desenvolveremos até o fim, porque só desse modo po-
do mais forte na lei do mais justo; da lei desapiedada da seleção dem ser resolvidos racionalmente todos os problemas biológi-
na lei do amor. A lei do Evangelho não é um absurdo em vosso cos, psíquicos e éticos. É absurdo conceber que as formas da
nível biológico; não é aquilo que, visto de níveis mais baixos, vida sejam objetivos em si mesmas e sua evolução não possua
pode parecer fraqueza e falência. Nesta fase mais alta de evolu- finalidade nem continuação justamente onde um eterno trans-
ção, o vencido da vida animal pode ser um vitorioso, porque formismo as precede nas fases  e . A continuação da evolu-
outras forças, ignoradas naquela vida, são atraídas e postas em ção orgânica só pode ocorrer a partir da evolução psíquica,
ação. Aparece o mundo moral, que supera, vence e submete o como de fato se realiza no homem. Este psiquismo é a meta
mundo orgânico, dominando-o e arrastando-o para esferas su- mais alta da vida. Seu desenvolvimento é o resultado final da
periores. Em qualquer caso, a inconcebível fraqueza da bonda- permuta, da seleção, da transformação da espécie, de tão
de, a deposição de todas as armas – base da luta pela vida – o grande sabedoria, de tamanha luta, de tão alta tensão. Esse
altruísmo para qualquer ser, sobretudo para com o inimigo, psiquismo se fixa nos órgãos, nas formas; plasma-as, anima-
transforma-se em novo princípio de convivência e de colabora- as em todos os níveis, delas faz um meio para evoluir ainda
ção, a lei do homem que se eleva a outra unidade coletiva mais mais. Nas formas da vida, o psiquismo se revela e se exprime;
alta, que se organiza em nações, sociedades, humanidades. Os a partir das formas, observando-as, podeis subir até ao princí-
homens que praticam (não os que apenas apregoam) esses prin- pio psíquico, à centelha que se agita em seu âmago. Tudo isso
cípios, ainda são poucos e incompreendidos. Mas aumentarão, e constitui um esforço, uma ascensão dolorosa, do protozoário
só a eles pertence o futuro. ao homem, sempre subindo, até aos mais altos cimos do psi-
Mais perfeita manifesta-se a Lei à proporção que as unidades quismo, onde se realiza a gênese do espírito, obra maravilhosa
menores se diferenciam e se organizam em unidades mais am- e progressiva, em que a Divindade, princípio infinito, está
plas. Cabe ao homem transformar a natureza. Direi melhor: ele sempre presente num ato constante de criação.
mesmo é a natureza, e nele a natureza se transforma. Compete ao No estudo dos movimentos vorticosos, vimos como eles con-
homem, mudando-se a si mesmo, realizar a transformação da lei têm, em germe, o desenvolvimento das leis biológicas e como a
biológica em seu planeta; realizar, fixando-as nas formas psíqui- íntima estrutura cinética da vida lhes permite, desde suas unida-
cas, estas criações superiores da evolução. des primordiais, admitir em sua órbita impulsos de fora e conser-
Cabem ao homem o dever e a glória de responder ao gran- var seus traços em suas subsequentes alterações cinéticas íntimas.
de apelo descido dos céus para que ele, o ser escolhido, pro- Um cálculo exato de forças existe, pois, como base dessa capaci-
duto mais elevado da vida terrestre, cumpra o trabalho de dade de conservação dinâmica, que se tornará recordação atávi-
transformar uma natureza que ignora a compaixão numa natu- ca, base sobre a qual se elevará a lei da hereditariedade. A onda
reza movida por uma lei superior de amor, de fusão, de cola- dinâmica degradada, ao investir a íntima estrutura atômica, ti-
boração, de compreensão, de fraternidade. nha gerado a vida, e o ambiente externo, em que continuava a
76 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
existir a matéria e a energia, ainda não elevadas à vida, represen-
que não pode existir senão na ignorância humana. Não tomeis
tando um campo de intensa atividade cinética, saturado de impul- justamente essa concessão à vossa fraqueza como base apolo-
sos, continha e representava uma riqueza inexaurível de forças gética das religiões, porque, com esse contrassenso, ao invés
aptas a introduzir-se e combinar-se no vórtice vital. de reforçar, diminuís a fé.
Logo que surgiu, estabeleceu-se uma rede de ações e reações Vede que tudo o que existe provém de um princípio que
entre a nova individuação e as forças do ambiente, desenvolven- age sempre, não de fora para dentro, mas de dentro para fora,
do-se aquela cadeia de fenômenos em que se apoia e progride a princípio oculto no íntimo mistério do ser, que aparece como
evolução, que são agrupados sob os nomes de assimilação, adap- sua manifestação e expressão. Igualmente antropomórfica é a
tação, hereditariedade, seleção. A vida, com seu mais intenso di- ideia do nada, inadmissível no Absoluto. Como poderão exis-
namismo, respondeu a todas as impressões dinâmicas provenien- tir zonas externas ou zonas de vazio, senão no relativo? O fato
tes do mundo exterior. Estabeleceu-se uma permuta de impulsos da indestrutibilidade e da eternidade da Substância, que veri-
e respostas. A vida adaptava-se e assimilava, mas, sobretudo, re- ficais, demonstra-vos o absurdo desse nada, que é apenas uma
cordava, diferenciava-se e selecionava. O íntimo princípio cinéti-pseudoideia. Deus é o Absoluto e, como tal, não pode ter con-
co enriquecia-se e complicava-se, aumentava sua capacidade de trários nem pontos externos, nem qualquer das características
assimilação. Não se trata do nascimento automático do mais do relativo. Suas manifestações não podem ter princípio nem
complexo provindo do menos complexo, mas sim, apenas, que os fim. No relativo, podeis colocar uma fase de evolução, mas
entrelaçamentos cinéticos mais complexos permitiam a manifes- não o eterno devenir da Substância; no finito, podeis colocar-
tação do princípio cinético anteriormente concentrado em sua fa- vos a vós mesmos e os fenômenos de vosso concebível, mas
se potencial. Direção, escolha, memória foram as primeiras mani- não a Divindade e suas manifestações. Podereis chamar cria-
festações daquele dinamismo, que já agora assume os caracteres ção a um período do devenir e só então falar de princípio e de
de psiquismo. Nasce a possibilidade de uma construção ideoplás- fim. Neste sentido falam as revelações.
tica de órgãos. O princípio cinético, emanado do vórtice íntimo, Compreendei-me, pois, e não vos escandalizeis deste concei-
plasma para si os meios específicos para receber as impressões to religiosíssimo da gênese do espírito. Este não é princípio infu-
ambientais, isto é, os infinitos sentidos, que progridem da plantaso de fora (esta foi a fórmula necessária à tradição mosaica, para
ao homem, meios para alimentar a sensibilidade acrescida, devi- que os povos primitivos pudessem compreender), mas é princípio
da à mais veloz íntima mobilidade do ser. que se desenvolve de dentro, exteriorizando-se daquele centro
profundo, no qual deveis comprovar que está a essência das coi-
LXIII. CONCEITO DE CRIAÇÃO sas e o porquê dos fenômenos. Deus é a grande força, conceito
que age no íntimo das coisas. Desse íntimo expande-se nos perí-
Compreendei bem meu pensamento quando vos falo de de- odos do relativo, num aperfeiçoamento progressivo, gradativa-
senvolvimento do psiquismo até à gênese do espírito, e isto sem mente manifestando sua perfeição. O universo permanece sem-
intervenção de uma força exterior, mas por um processo auto- pre Sua obra maravilhosa; todas as criaturas são sempre filhas
mático. No meu sistema, a Substância, mesmo em suas formas Suas; tudo continua sempre efeito da Causa Suprema. Não pode
inferiores  e , inclui, em estado potencial e latente, todas as haver blasfêmia nesta concepção; se não corresponde à letra das
infinitas possibilidades de um desenvolvimento ilimitado. Escrituras, agiganta-lhes o conceito, eleva-as e lhes vivifica o es-
Compreendei que uma criação exterior e antropomórfica é ab- pírito até uma racionalidade de que o homem tem hoje absoluta
surda. Não interpreteis mal meu pensamento, nem tenteis re- necessidade, para que sua fé não se destrua.
conduzi-lo, à força, ao materialismo, porque, se lhe conserva a Dizer que o universo contém sua própria criação, como mo-
forma, dele se afasta enormemente na substância, chegando a mento de seu eterno devenir, é apenas demonstrar e tornar com-
coincidir, nas conclusões, com o mais alto espiritualismo. Não preensível a onipresença divina. Tudo tem de reentrar na Divin-
digais: então a matéria pensa. Dizei que, na vida, a matéria, dade, caso contrário esta constituiria uma “parte” e, portanto, se-
elevada a um grau mais alto de evolução, é veículo capaz, pela ria incompleta. Se existem forças antagônicas, isto só pode ocor-
íntima elaboração sofrida, de manifestar em maior medida o rer em Seu seio, no âmbito de Sua vontade, como parte do meca-
potencial nela incluído. É incomparavelmente mais científico, nismo do Seu querer, do esquema do todo. Em verdade, a obra
mais lógico e mais correspondente à realidade este conceito da humana também é manifestação e expressão em que se realiza e
Divindade sempre presente e continuamente operando no âma- se exterioriza, como na criação, um pensamento interior. Isto jus-
go das coisas, precisamente na essência delas, do que o de uma tifica a concepção antropomórfica, mas não leveis o paralelismo
Divindade que, num ato único, num momento determinado no até conceber uma cisão, uma duplicidade absoluta entre Divinda-
tempo, à maneira de um ser humano, age fora de si, de forma de e criação. Isto não pode ocorrer neste meu monismo.
imperfeita e, ao mesmo tempo, definitiva. Não limiteis o conceito de Divindade a um ou a outro as-
O Absoluto divino só existe no infinito. Sua manifestação pecto, pois esse conceito tem de ter a máxima extensão do
(existirmanifestar-se) não pode ter tido um início. Em sua concebível e muito mais. Não tenhais medo de diminuir-lhe a
essência, que abrange o todo, ele não age no tempo, a não ser grandeza, dizendo que Deus é também o universo físico, por-
no sentido de um átimo de seu eterno devenir, no sentido de que este é apenas um átimo de seu eterno devenir, em que Ele
uma particular descida Sua no relativo, e neste sentido devem se manifesta. Onde vossa concepção é mais particular e relati-
ser entendidas, e só assim são compreensíveis, as Escrituras. va, a minha tende a manter compacto o todo numa visão uni-
Além disso, o fato de que verificais um transformismo inces- tária, fazendo ressaltar os vínculos profundos que ligam prin-
sante e uma progressiva suscetibilidade de aperfeiçoamento cípio e forma. No caminhar das verdades progressivas, esta
em todas as coisas, vos fala claramente de uma criação pro- concepção continua, aperfeiçoa e eleva a vossa.
gressiva, entendida como progressiva manifestação do concei- Deus é um infinito, e a essência de Sua manifestação vós a
to divino no mundo concreto e sensório dos efeitos. O concei- percebereis cada vez mais real, à medida que vossa capacidade
to de prodígio, com o fito de correção e de retoque, é inerente perceptiva e conceptual souber penetrar o âmago das coisas.
apenas à fraqueza e à relatividade humanas e não se pode Deus é o princípio e a sua manifestação, ambos fundidos numa
aplicá-lo ao Absoluto e à Divindade. unidade indissolúvel; é o absoluto, o infinito, o eterno, que ve-
Não se pode alterar a perfeição da Lei, para proporcionar des apenas pulverizado no relativo, no finito, no progressivo.
espetáculo humano. O milagre, compreendido como violação Deus é conceito e matéria, princípio e forma, causa e efeito, li-
e refazimento de leis, não é prova de poder, mas um absurdo gados, indivisíveis, como a realidade fenomênica vo-los apre-
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 77
senta, como a lógica vo-los demonstra, como dois momentos e Enquanto a vida é o efeito de um dinamismo íntimo organizador,
dois extremos entre os quais se agita o universo. constitui ao mesmo tempo o campo em que esse dinamismo se
Que maior profundidade ética e, ao mesmo tempo, verdade exercita e se desenvolve. Se a modelação das formas não provi-
biológica (extremos que jamais soubestes unir) existem nesta esse de um princípio interno, não veríeis esse crescimento provir
concepção, segundo a qual o corpo é o órgão da alma; não é o sempre de dentro, indo da reprodução dos tecidos, por vezes de
cérebro que pensa, mas o espírito, por meio do cérebro; o corpo órgãos inteiros, até à formação dos organismos adultos.
é a veste caduca que a alma eterna constrói para si, para as ne- Em sua íntima estrutura cinética, a vida conserva a memória
cessidades de sua ascensão! Que maior elevação espiritual do das ações e reações dinâmicas anteriores, concentra em si os
que esta na qual cada forma existente, numa perfeita fusão de traços marcantes e pode realizá-los todos. Assim é possível a
pensamento e de ação, é manifestação divina, expressão daque- concentração de toda a arquitetura de um organismo em um
le supremo princípio, centelha animadora cuja ausência desa- germe, e sua reconstrução completa a partir da semente até à
gregaria repentinamente qualquer organismo? forma adulta. Toda a evolução vos apresenta o espetáculo desse
A matéria subsiste, e como poderia ser destruída? Ela está processo de centralização e descentralização cinética que, no
fundida com o espírito num complexo poderoso e, como serva caso da semente, é como se o tocásseis com a mão. Nela, o mo-
fiel, ajuda-lhe o desenvolvimento e lhe recebe a gênese em seu vimento conserva todas as características de seu tipo; o germe
seio materno. Depois, completada a criação, inclina-se diante conserva em seu âmago uma estrutura indelével – a lembrança
do fruto de sua elaboração, tornando-se sua serva, pois, ainda do passado vivido – que terá de reproduzir intacta ao novo or-
que, no todo, o baixo esteja ligado com o alto em fraternidade ganismo, o qual, na maturidade, terá a capacidade de modificá-
de origem e de trabalho, cada individuação não pode ultrapas- la, mas somente em escala mínima, e, uma vez assimilada essa
sar seu nível. Assim, a matéria, na vida, permanece no grau in- modificação, a transmitirá ao novo germe.
termediário e jamais o ultrapassa. Os resultados da experiência da vida, em qualquer nível,
Deveis, ainda, compreender que matéria, energia, vida e gravitam para o interior, onde são destilados os valores, resu-
consciência, toda essa florescência incessante que do âmago se midos os totais e processada a síntese da ação. Para lá descem,
projeta para fora, não se deve a uma absurda gênese pela qual em camadas sucessivas, os produtos da vida. O psiquismo fica
do menos se possa desenvolver o mais, ou do nada se possa au- em crescimento constante, porque em redor do primeiro núcleo
tomaticamente criar o ser. Tudo isso é forma, aparência externa, depositam-se, por superposição progressiva, os valores, os to-
é a manifestação sensível daquele devenir contínuo em que o tais e as sínteses da vida. Assim, a consciência, embora em
Absoluto divino se realiza, projetando-se no relativo. Não pen- graus muito diferentes, é um fato universal em biologia, e seu
seis que os movimentos vorticosos, em que se transformou o desenvolvimento, por adição dos resultados de experiências
complexo atômico na vida, contenham e desenvolvam o espíri- (variações cinéticas introduzidas na unidade vorticosa), é o re-
to e o vosso pensamento, mas pensai que eles formam uma sultado do fenômeno da vida. De um a outro extremo da vida, a
mais complexa disciplina, à qual a matéria se submete, para consciência – embora só apareça com intensidade nos organis-
poder manifestar o princípio que a anima e corresponder ao im- mos superiores, onde, para divisão do trabalho, ela constrói pa-
pulso interior que a solicita sempre a evoluir. ra si órgãos específicos – ainda assim está sempre presente, e,
desde a consciência elementar dos proto-organismos até ao es-
LXIV. TÉCNICA EVOLUTIVA DO PSIQUISMO E pírito humano, o sistema de seu desenvolvimento é idêntico e
GÊNESE DO ESPÍRITO constante. O centro enriquece-se em qualidade e em potência e,
com isso, adquire a capacidade de construir para si órgãos cada
Após termos enfrentado o problema da gênese da vida, en- vez mais adequados para exprimir sua mais complexa estrutura.
contramo-nos, agora, diante de um ainda mais formidável, o da Assim, princípio e forma, mutuamente ativos e passivos, sob o
gênese do espírito. É um fato que, a partir das primeiras unida- aguilhão dos choques das forças ambientais e estimulados pelo
des protoplasmáticas – filhas do raio globular – em diante, pro- impulso íntimo que, por lei de evolução, forceja por exteriori-
toplasma e célula possuem uma sensibilidade e uma capacidade zar-se, evoluem gradualmente, e, pela tensão desse contraste,
de registrar impressões, devido à íntima estrutura da permuta desponta, do mistério do ser à luz, do polo consciência ao polo
química, pois, desde suas primeiras manifestações, a vida devia forma, a manifestação da vida.
produzir fenômenos de psiquismo, embora muitíssimo rudi- Desde a primeira forma protoplasmática, a vida tinha de pos-
mentares. A mobilidade, ainda que estável e elástica, do siste- suir uma consciência orgânica própria, embora rudimentar. Sem
ma atômico da vida era o meio mais adequado ao desenvolvi- isso, não poderia subsistir aquela primitiva permuta. Se vida
mento e à progressiva expressão desse psiquismo. equivale a permuta e permuta corresponde a psiquismo, então a
Indagais, sem certeza, se a função cria o órgão ou se o órgão vida é igual a psiquismo. Essa primordial consciência orgânica,
cria a função, porque ignorais o princípio da vida e não sabeis em que já estão presentes as leis fundamentais da vida, está em
como interpretar-lhe os fenômenos. Nem um caso, nem outro. toda a parte, em qualquer organismo. Desenvolvida na complexa
O organismo é uma construção ideoplástica, que ocorre assim estrutura cinética dos movimentos vorticosos, já era integrante da
que a maturação evolutiva do meio – a matéria – permita a ma- vida em seu primeiro nascer, como substrato fundamental de to-
nifestação do princípio latente, que se manifesta diversamente, dos os crescimentos futuros. Essa consciência orgânica tornar-se-
de acordo com as circunstâncias do ambiente, onde e como o á inteligência orgânica e instinto e, finalmente, ascenderá à cons-
meio lhe permitir o desenvolvimento desta manifestação. Órgão ciência psíquica e abstrata no homem.
e função, pois, surgem juntos, e seu progresso é recíproco devi- Desde as primeiras formas, a matéria possui as propriedades
do a um apoio mútuo: do órgão sobre a função, que o desenvol- psíquicas fundamentais, os elementos dessa consciência, inse-
ve, e da função sobre o órgão, que a aperfeiçoa. Assim, a cons- parável da vida, porque é a essência e a condição dela. A ameba
ciência não cria a vida, nem a vida cria a consciência, mas ambas já possui todas as propriedades biológicas básicas: metabolis-
trabalham e ajudam-se mutuamente a vir à luz – o princípio, mo, movimento, respiração, digestão, secreção, sensibilidade,
plasmando e desenvolvendo para si uma forma cada vez mais reprodução e psiquismo. A técnica da vida já lançou suas bases,
adequada à sua manifestação, e a vida, fixando esse impulso e e as grandes linhas arquitetônicas estão traçadas. O desenvol-
organizando-se para maior perfeição. O princípio move a maté- vimento se produz em todos os níveis, obedecendo à mesma
ria, torna-a cada vez mais aderente à sua expressão; nesse tra- técnica: a transmissão ao centro psíquico já constituído e o
balho, ele se reforça, expande-se e se manifesta mais poderoso. crescimento desse núcleo pela estratificação em torno dele das
78 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
capacidades sucessivamente adquiridas. A repetição de uma re- todo o seu rendimento. Apenas é eliminado da zona da cons-
ação, como resposta a uma ação exterior constante, tende a fi- ciência, porque agora já pode funcionar sozinho, deixando o
xar-se na trajetória íntima como nova forma. eu em repouso. A qualidade assimilada e transmitida ao sub-
A vida, ansiosa por expandir-se e evoluir, mantém seus bra- consciente cessa de ser fadiga e se torna necessidade, instinto.
ços abertos às forças ambientais, que são introduzidas em gran- O impulso impresso na matéria fica e, quando reaparece, ex-
de quantidade; as reações multiplicam-se, e a consciência, ávi- prime-se como vontade autônoma de continuar na sua direção,
da de sensações, enriquece-se e aperfeiçoa-se. Complica-se sua como criatura psíquica independente, criada por obra vossa,
estrutura; nada se perde, nem um ato, nem uma prova passam mas que, agora, quer viver sua vida. Dessa maneira, a consci-
sem deixar sua marca. Transforma-se a consciência primordial, ência representa apenas aquela zona da personalidade em que
a forma que a reveste, o ambiente que a circunda, num processo ocorre o esforço da construção do eu e de sua ulterior dilata-
lento de ajustamentos contínuos. O ser, por ter vivido e acumu- ção. Em outros termos: limita-se unicamente à zona de traba-
lado experiências, torna-se cada vez mais sábio, especializando lho, o que é lógico. O consciente compreende somente a fase
sua capacidade. Nasce o instinto – uma consciência mais com- ativa, única que sentis e conheceis, porque é a fase em que vi-
plexa, que lembra, sabe e prevê. veis e na qual trabalha a evolução13.
Subamos, ainda, até ao homem. Os substratos precedentes Agora podeis compreender algumas características inexpli-
subsistem: a consciência orgânica, obscura, automática, mas pre- cáveis do instinto, assim como sua maravilhosa perfeição. No
sente, porque em funcionamento, embora abandonada na profun- instinto, a assimilação está terminada. Então o fenômeno não
deza do ser; o instinto vivo, presente e, como nos animais, sábio está em formação, mas já atingiu sua última fase de perfeição.
e memorioso. Mas acrescenta-se nova estratificação: a razão, a Por isso o instinto é tenaz e sábio; existe por hereditariedade e
inteligência, aquele feixe de faculdades psíquicas que formam a sem aprendizado, justamente porque esse já ocorreu; age sem
consciência propriamente dita. Assim como o germe sintetiza to- reflexão (tanto no animal como no homem), exatamente porque
do o organismo que produzirá, também a vida sempre se refaz já refletiu bastante. Foi superada a fase de formação; o ato re-
para recomeçar de novo, repetindo em cada forma o ciclo percor- flexivo torna-se inútil e é eliminado; a repetição constante cris-
rido em toda a evolução precedente – como fenômeno orgânico e talizou o automatismo numa forma que corresponde perfeita-
como fenômeno psíquico – e também o homem resume em si to- mente ao modo de atuação contínuo das forças ambientais.
das as consciências inferiores: cada célula possui sua pequena Cálculo de forças, adaptações, ações e reações, sensibilida-
consciência, que preside ao seu metabolismo em cada tecido, e de e registro, concorrem para o transformismo. No crisol das
cada órgão tem uma consciência coletiva mais alta, que lhe dirige formações estavam misturadas, em ebulição, forças reguladas,
o funcionamento, sendo todo o organismo dirigido pelos instin- cada uma por um inato princípio-lei próprio, perfeito, e, portan-
tos, que regem e conservam a vida animal. to, perfeito e exato tinha de ser o resultado. O princípio diretor,
que garantia a constância das ações e condições ambientais,
LXV. INSTINTO E CONSCIÊNCIA. permitiu a estabilização de reações constantes no instinto e,
TÉCNICA DOS AUTOMATISMOS portanto, a correspondência deste com o ambiente.
Compreendeis agora a estupenda presciência do instinto
Não vos admireis disto, pois conheceis somente uma pe- e de que infinita série de experiências, incertezas e tentativas
quena parte de vós mesmos. O funcionamento orgânico não seja ela o resultado. O indivíduo deve ter aprendido alguma
ocorre fora de vossa consciência, confiado a unidades de cons- vez essa ciência, porque do nada, nada nasce; deve ter expe-
ciências inferiores, situadas fora dela? A economia que a lei do rimentado a constância, por ela pressuposta, das leis ambien-
menor esforço impõe, limita a consciência humana ao âmbito tais, a que correspondem seus órgãos e para as quais ele é
em que se realiza o trabalho útil das construções. O que foi vi- feito e proporcionado. Sem uma série infinita de contatos, de
vido e definitivamente assimilado é abandonado aos substratos experiências e adaptações no período de formações, não se
da consciência, zona que podeis chamar de subconsciente. Por explica uma tão perfeita correspondência de órgãos e instin-
isso o processo de assimilação, base do desenvolvimento da tos, antecipados à ação, dentro de uma natureza que avança
consciência, realiza-se justamente por transmissão ao subcons- por tentativas, tampouco se explica sua hereditariedade. No
ciente, em que tudo permanece, mesmo se esquecido, pronto instinto, a sabedoria já está conquistada; foi superada a fase
para ressurgir se um impulso o excitar ou um fato o exigir. de tentativas e vencida a necessidade de submeter-se a uma
O subconsciente é exatamente a zona dos instintos, das linha lógica, que, oferecendo várias soluções, demonstra a
ideias inatas, das qualidades adquiridas; é o passado superado, fase insegura e incerta dos atos raciocinados, onde o instinto
inferior, mas adquirido (misoneísmo). Aí se depositam todos os conhece um só caminho: o melhor.
produtos substanciais da vida; nessa zona encontrais o que fos- A razão cobre um campo muito mais extenso que o limitado
tes e o que fizestes; reencontrais o caminho seguido na constru- pelo instinto (nisto o homem supera o animal, dominando zonas
ção de vós mesmos, tal como nas estratificações geológicas re- que ele ignora). Entretanto, em seu pequeno campo, o instinto
encontrais a vida vivida pelo planeta. A transmissão ao sub- atingiu um grau de amadurecimento mais adiantado, expresso
consciente ocorre justamente através da repetição constante. pela segurança dos atos, e um grau de perfeição ainda não al-
Então dizeis que o hábito transforma um ato consciente num cançado por nenhuma razão humana. Esta, nas tentativas, reve-
ato inconsciente, com ele formando uma segunda natureza. Este la as características evidentes da fase de formação. Da mesma
é o método da educação. Palavras comuns que exprimem exa- forma que o animal raciocinou rudimentarmente no período da
tamente a substância do fenômeno. Podeis, assim, com a edu- construção de seu instinto, assim a razão humana, terminada a
cação, o estudo, o hábito, construir-vos a vós mesmos. Logo formação, alcançará um instinto complexo e maravilhoso, que
que um ato é assimilado, a economia da natureza o deixa fora revelará sabedoria muito mais profunda.
da consciência, porque, para subsistir, não mais precisa que ela No homem conserva-se todo o instinto animal, de que a razão
o dirija. Logo que uma qualidade é apreendida, também é é mera continuação. Agora podeis compreender que instinto e ra-
abandonada aos automatismos, em forma de instinto, de cará-
ter que se fixou na personalidade. 13
Para um estudo mais particular do problema, ver Ascese Mística,
Não se trata de extinção nem de perda, porque tudo, indu- Cap. XIX, “O Subconsciente” e Cap. XX, “O Superconsciente”. Veja
bitavelmente, ainda que não na consciência, subsiste e está também os últimos capítulos sobre a “Personalidade Humana”, em A
presente e ativo no funcionamento da vida e continua a produzir Nova Civilização do Terceiro Milênio.
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 79
zão são simplesmente duas fases de consciência, a primeira já diversíssimas capacidades inatas, às quais tanto deve a vida, e
superada e, portanto, funcionando automaticamente; a segunda, que, doutra forma, não teriam explicação. Se a repetição de inu-
em vias de formação. Não coloqueis os dois momentos do mes- meráveis atos de defesa deu ao animal o instinto da defesa, o agir
mo processo evolutivo em antagonismo. No homem, não apenas moralmente conferirá ao homem hábitos morais. O pensamento
sobrevive todo o instinto do animal como também não cessa a desenvolve e enriquece a inteligência. Tendes, assim, um meio
formação de novos instintos, tal como ocorreu para aquele e com para poderdes retificar, continuamente, a substância de vossa
o mesmo sistema, embora muito mais rapidamente, em vista da personalidade; vós mesmos podeis plasmá-la para o bem ou para
potência psíquica do homem, e num nível muito mais alto, em o mal. Assim, vosso destino, produzido pelas qualidades que as-
virtude da complexidade de seu psiquismo. Da mesma forma similastes, constituído e cercado pelas forças que movestes, pode
que, no homem, a fase instinto é inconsciente e a fase razão é sempre sofrer retoques por vossas próprias mãos. Assim, o férreo
consciente, assim também, no animal, além do instinto inconsci- determinismo imposto pela lei de causalidade, abre-se na zona
ente, existe uma pequena zona de formação do consciente e do das formações estendidas para o futuro, num campo em que do-
racional, ainda que em suas formas primitivas. Se observardes, mina unicamente vosso livre-arbítrio, senhor da escolha, que
vereis que nem todos os atos dos animais estão cristalizados no mais tarde, salvo ulteriores correções, vos prenderá, por sua vez,
instinto, existe sempre uma porta aberta para novas aquisições na mesma lei de causalidade.
(aprendizado, domesticação etc.).
Entre a planta, o animal e o homem só existe a diferença LXVI. RUMO ÀS SUPREMAS
devida ao caminho maior ou menor que foi percorrido. Obser- ASCENSÕES BIOLÓGICAS
vai quão grande parte de vós mesmos está confiada aos automa-
tismos; como a racionalidade humana também tende a cristali- Eis a técnica do desenvolvimento do psiquismo, que culmi-
zar-se em atitudes instintivas e como passa a ser instinto tudo o na na gênese do espírito. Escavando no subconsciente, achareis
que foi profundamente conquistado. todo o vosso passado, que ressurge nos instintos, nas tendên-
Existe, pois, uma zona obscura do subconsciente e uma zo- cias, nas simpatias e antipatias. Quem vos poderia ter construí-
na lúcida do consciente. Além disso, há uma terceira zona, a do do repletos de conhecimentos gratuitos instintivos, senão “vos-
superconsciente, em que tudo são expectativas e na qual se pre- so” passado? Como poderia contê-los o germe da vida e depois,
param as conquistas do amanhã; fase possuída apenas como a um dado momento, desenvolvê-los prescientes e proporcio-
pressentimento e contida, em germe, nas causas que atuam no nados ao ambiente, senão por uma restituição? Que processo de
presente, de que ela representa o desenvolvimento. São zonas descentralização cinética seria esse se não tivesse sido precedi-
cujas amplitude e posição são relativas ao ser, de acordo com do, em razão de uma lei de equilíbrio, por um processo corres-
seu grau de desenvolvimento. Os limites do consciente, assim, pondente e proporcional de concentração cinética das qualida-
variam grandemente, mesmo para o homem, conforme sua evo- des adquiridas através de vidas e experiências? Existirá um úni-
lução pessoal. Aquilo que é consciente ou superconsciente para co fenômeno no universo que vos autorize a acreditar ser possí-
alguns, pode ser subconsciente (ou seja, caminho percorrido e vel algo diferente disso e que vos autorize a negar a lei de cau-
experiências adquiridas) para outros mais adiantados. Esses li- salidade, de proporção, de equilíbrio, de justiça? Olhai para vós
mites variam, também, durante a vida de um mesmo indivíduo, mesmos e encontrareis um abismo. Existem aí zonas mais pro-
pois a vida é justamente o período das aquisições e transforma- fundas, as dos instintos mais estáveis, onde se agitam os impul-
ções de consciência. A idade mais adequada a essas aquisições sos fundamentais da vida, tal como ela se definiu em suas fases
– em outras palavras, mais susceptível de educação – é a juven- mais distantes. Sobrevivências abissais, obscuras, da vida pri-
tude. A consciência, refeita pelo repouso, é mais propensa à as- mordial protoplasmática, que ainda se agitam nas fibras íntimas
similação, ao estabelecimento de novos automatismos, que de- de vosso organismo; instintos como a conservação, a defesa, a
pois se fixarão indelevelmente no caráter, sendo mais profun- reprodução, que, por vezes, explodem de inopino em vossa cons-
dos e mais resistentes os primeiros a se formarem. ciência, provindos de uma zona de mistério que desconheceis, re-
Resumindo rapidamente todo o caminho percorrido pela sultado da maturação de um ciclo, lei e vontade autônoma, que
evolução, a zona da consciência tende sempre a subir, deslo- progride independentemente de seu conhecimento ou vontade
cando-se para o superconsciente; educação, bons e maus hábi- (por exemplo: o instinto do amor, que explode na juventude).
tos, tudo se fixa em automatismos transmitidos ao subconscien- Porque tudo o que existe traz escrita em si a sua lei, desde antes
te. A fase lúcida do trabalho construtivo se transfere para cam- de nascer; cada fenômeno está completo em seu princípio, mes-
pos mais elevados e mais profundos, para o âmago do ser, na mo antes de sua manifestação. Há zonas de trevas que vos desa-
assimilação de qualidades espirituais. lentam e para as quais preferiríeis nem olhar, no entanto vos atra-
Assim nada se perde de todas as dores e lutas da vida, de em e em vão as interrogais. É o vosso passado.
todo bem e mal praticados. Não se perde fora de vós, pelo prin- Mas tudo sempre pode ser consertado. No superconsciente
cípio de causa e efeito; não se perde dentro de vós, pelo princí- há luz para todos; a febre da evolução, a insaciabilidade de vos-
pio de transmissão ao subconsciente. A herança de vossas cul- sa alma são forças irresistíveis e universais, que impelem cada
pas e de vossos merecimentos, o resultado de todas as vossas vez mais para o alto. A lei do progresso exige a contínua dilata-
fraquezas ou esforços, vós os carregais sempre convosco, de ção do psiquismo. A evolução é irresistivelmente lançada para
acordo com o que quisestes. A assimilação por automatismos e o superconsciente; dirige-se para o supersensível. Recordai que
a transmissão ao subconsciente é o meio de transmissão para a vossa consciência é apenas a dimensão de vossa fase de evolu-
eternidade das qualidades adquiridas, fruto de vosso trabalho. ção ; vosso inexorável caminho, deslocando-vos de fase em
Cada ato tem um eco e deixa uma marca. A técnica dos auto- fase, vos leva de dimensão em dimensão para o superconsciente
matismos reside em vossa experiência cotidiana, na aquisição intuitivo e sintético, de que já falamos. Nas fases inferiores que
de cada habilidade mecânica ou psíquica. A objeção de que se percorrestes,  e , o ser existe, normalmente, sem consciência,
perde um hábito por falta de uso, a qual poderíeis levantar con- qualidade aí ignorada, assim como agora ignorais a dimensão do
tra a teoria da assimilação por automatismos das experiências superconsciente. O estado de consciência é fenômeno em contí-
vividas, não é válida, porque o que se transmite ao subconsci- nua elaboração construtiva ou destrutiva, conforme o trabalho li-
ente é a aptidão, e não o conhecimento. Vede que aquela per- vre que executardes, de construção ou destruição no caminho
manece, mesmo quando o conhecimento esvanece pelo desuso, e da evolução, que, em vosso nível , é progresso moral e psíqui-
sabe reconstruir rapidamente o que parece destruído. Daí todas as co. Quem fica ocioso para. Quem pratica o mal desce e arruína o
80 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
próprio eu, destrói a luz de sua compreensão. Quem trabalha no latente, mergulhada nas trevas, fora da consciência, emerge, sa-
bem sobe e dilata-se a si mesmo, cria a própria riqueza de con- cudido pelo choque das forças ambientais, impulsionado pela lei
cepção e potência da alma. Punição e prêmio automáticos e ine- da evolução, o germe de nova necessidade, que, no centro psí-
xoráveis. Assim, a dor, excitando as reações do espírito, é agente quico, assume a forma de desejo, ou seja, força-tendência, que
de ascensão para as fases e dimensões superiores. conduz à realização. Do desejo surge a tentativa, a ação, orienta-
Passarão as formas materiais da vida; passarão povos, civi- da para a realização. Entramos na fase do consciente, isto é, do
lizações, humanidades e planetas. Mas um herdeiro recolherá trabalho, da atividade, da conquista. Desponta a realização, for-
o suco de tanto trabalho, que não foi inútil: a alma. A insaciá- ma-se e reforça-se sua função, que, por sua vez, define sempre
vel e eterna mutação das coisas produzirá um resultado que mais o órgão, enquanto este, mediante uma série de contínuas
não será perdido. Já que o campo dominado no âmbito do experiências, equilíbrios e ajustamentos, adapta-se tanto às resis-
consciente avança continuamente, também progressivamente tências ambientais quanto ao impulso interior, entre os quais
desloca-se o limite sensório: o super-humano torna-se huma- constitui o traço de união. A progressiva atividade funcional
no; o superconsciente, consciente; o inconcebível, concebível. plasma para si mesma o instrumento orgânico, como sua expres-
A consciência adquire, então, nova dimensão, e o meio mate- são cada vez mais legítima. A definitiva constituição do órgão es-
rial requinta-se e sutiliza- se até atingir sua desmaterialização, tabiliza a função e estabelece uma série de experiências, de cuja
até que o princípio espiritual se destaque dele e aporte em ou- repetição constante nascem aqueles automatismos que vimos as-
tras praias, levando consigo o suco destilado de todo o passa- sinalarem a fase de assimilação terminada e de dilatação do psi-
do vivido, em sua construção terminada. quismo do ser. Automatismo significa qualidade adquirida, nova
Observai como já se inicia, desde vossa fase, esse processo capacidade inerente na natureza do indivíduo, novo instinto, nova
de separação e desmaterialização. Na exteriorização dos meios experiência. A evolução está realizada. O resultado se deposita,
da vida, o animal fica preso ao utensílio, que permanece parte definitivamente assimilado, como nova camada em torno do nú-
indivisível de seu organismo. A história natural do homem é cleo precedente do psiquismo, e é deixado fora da zona de traba-
apenas a repetição do mesmo processo de projeção de órgãos, lho, a zona da consciência.
mas em um nível mais alto. Por isso as formas, os sistemas, as Assim avança a evolução, e o ultraconsciente é conquistado,
perspicácias assemelham-se, mas com uma diferença substanci- passando através da fase consciência, que, depois de completada
al: no homem realiza-se a separação entre o organismo e o a assimilação, passa ao subconsciente. Pela evolução, ocorre um
utensílio. Tal como o orgânico, também o utensílio mecânico é deslocamento contínuo da zona do consciente, que vai do sub-
a expressão da íntima vontade de ação. Mas, no animal, o meio consciente para o superconsciente. Assim, a zona móvel de tra-
está organicamente fundido no corpo; no homem, o meio não balho, progredindo em seu caminho, cobre uma zona cada vez
lhe é mais parte integrante e destaca-se dele. O homem constrói mais ampla de subconsciente, a zona das aquisições definitivas,
para si um só utensílio, aquele que pode fabricar utensílios de do armazenamento do indestrutível na eternidade. Por intermédio
toda espécie: a mão guiada pela inteligência. do constante esforço psíquico da vida, ocorre um contínuo cres-
À proporção que o centro psíquico se agiganta, os meios de cimento do núcleo subconsciente e uma proporcional assimilação
sua expressão transformam-se, multiplicam-se e requintam-se; os do superconsciente, através de um processo de crescimento, he-
órgãos tornam-se meios de expressão de vida psíquica, as fun- reditariedade e reconcentração cinética na fase de germe, que en-
ções físicas inferiores são confiadas aos utensílios mecânicos. Os contrais na vida das formas orgânicas. Assim, também o campo
órgãos animais, não mais utilizados, tendem a se atrofiar; a in- de trabalho ascende cada vez mais alto, ao mesmo tempo em que
dústria, entretanto, cria outros continuamente e neles continuará a se amplia e se torna mais rico e poderoso.
desenvolver-se a evolução do utensílio orgânico, expressão cada Paralelamente, a matéria, expressão de tudo isso, experimenta
vez mais complexa de um mais complexo psiquismo. O próprio mudanças profundas. Vimos que o trem eletrônico da onda di-
desejo intenso que criou o órgão encontra agora formas múltiplas nâmica degradada começa investindo as unidades atômicas de es-
de manifestação, proporcionadas ao novo poder do psiquismo trutura planetária mais simples (no círculo da vida, são introduzi-
motor. A função desenvolve as qualidades e os órgãos cerebrais; dos de preferência os corpos simples, de peso atômico baixo).
no homem manifesta-se de preferência a evolução psíquica, co- Ora, esse fenômeno constitui apenas o início do processo da
mo prosseguimento da evolução orgânica, que passa para segun- desmaterialização da matéria. Quando o vosso novo turbilhão
do plano, suplantada pela evolução dos produtos da inteligência. vital tiver investido toda a matéria, até aos pesos atômicos máxi-
Assim, o homem afasta-se cada vez mais da forma animal, numa mos, isto é, quando o trem eletrônico tiver transformado os mo-
contínua desmaterialização de funções, que leva a uma progres- vimentos planetários atômicos em movimentos vorticosos, até às
siva desmaterialização de órgãos. A vida do homem concentra- formas planetárias mais complexas, deslocando e reconstruindo,
se cada vez mais na função psíquica diretora, que ele assume em equilíbrios mais complexos, todas as órbitas até às de 92 elé-
como sua nova natural especialização. trons do U, então , o psiquismo, terá penetrado e permeado toda
Eis a íntima e maravilhosa técnica pela qual a evolução a matéria, e esta se desmaterializará, ou seja, não existirá mais
produz a transformação da matéria na fase vida. Quando pen- como matéria. A energia, sua filha, tê-la-á arrastado mais para
sais em sua íntima estrutura cinética, essas transmutações já frente, para uma fase evolutiva superior, e todo o movimento da
não vos parecem absurdas. Os movimentos vorticosos já então Substância continuará de forma imaterial, sem que nada da maté-
transformaram a estrutura atômica num sistema mais sensível ria, em sentido absoluto, tenha sido criado ou destruído. Terá
e susceptível de infinitas modelagens. A maleabilidade do ma- ocorrido apenas uma transmutação íntima, que leva a Substância
terial protoplasmático permite inexaurível e profundo trans- a novo modo de ser, supermaterial e superdinâmico, superespaci-
formismo e lhe dá a possibilidade de chegar já plasmado às al e supertemporal, no limiar de novas dimensões.
mais variadas formas de tecidos e órgãos. Assim, a evolução volta atrás e faz elevar-se consigo os ins-
Num sistema tão sensível, o desejo intenso, uma vontade de- trumentos de seu trabalho. Por isso desmaterializa a matéria por
cidida, proveniente do íntimo, é fator psíquico que tem força cri- meio do fenômeno da vida, até ao espírito. O princípio dinâmi-
ativa. Pensai nos fenômenos causados pelas impressões maternas co veste-se de formas cada vez menos densas. A evolução as
e no poder ideoplástico que as funções psíquicas da mãe têm so- requinta, sensibiliza-as, desmaterializa-as. Os órgãos, utensílios
bre o feto. Cedo ou tarde, a forma acaba obedecendo ao impulso da vida, destacam-se, e o organismo se sutiliza. De tudo, fica o
íntimo e expressando-o. Aí está a técnica evolutiva desse fenô- profundo, imenso trabalho da vida, uma central psíquica pode-
meno da construção de órgãos por projeção ideoplástica. Da zona rosa, na direção de um mundo dominado e obediente, orientado
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 81
para as fases superiores de consciência e de evolução, para vós tão estabilizados no determinismo. O livre-arbítrio, novo equilí-
ainda ocultas no inconcebível. brio mais ágil e instável, para manter-se, presume a direção de
Chega, assim, a evolução aos mais altos níveis de vosso uma nova consciência superior para regê-lo, não necessária no
universo. Agora podeis compreender-lhe todo o significado. animal, mas indispensável ao homem.
Em seu conceito mais profundo, a evolução é a libertação do Não há perigo maior que uma liberdade sem controle, por-
princípio cinético da Substância. Isto ocorre mediante uma pro- que pode cair em toda sorte de abusos, que, doutra forma, seri-
funda respiração, em que se invertem e se apoiam mutuamente, am impossíveis. Embaixo está o determinismo, e, por isso, as
para ascender, duas fases: a da concentração cinética das expe- consciências mais presas à matéria são menos livres do que
riências da vida no germe, e a da descentralização cinética do aquelas que, ao evoluir, emanciparam-se de suas leis fatais. É
germe na vida. Por isso a evolução se exprime com uma cons- justo que somente a uma sabedoria maior possa corresponder
tante superação de limites, como observais no progresso das maior liberdade, e a esta, maior responsabilidade (gravidade de
dimensões. Com a evolução, o ser se subtrai cada vez mais aos perigos e de consequências). Assim o livre-arbítrio é relativo,
limites do determinismo físico, que, no nível da matéria, é geo- gradual, e evolui com a consciência. A responsabilidade das
métrico, inflexível e idêntico em todos os lugares. A vida co- próprias ações é relativa e progressiva. Na matéria existe es-
meça a se libertar dos aspectos desse absolutismo; seu crescente cravidão; no espírito estão os caminhos da libertação.
psiquismo é nova causa que se sobrepõe à decorrente das leis
físicas. O animal já adquire uma liberdade desconhecida no LXVII. A ORAÇÃO DO VIANDANTE
mundo físico. Chega-se assim ao reino humano do espírito e
além, onde o livre-arbítrio afirma-se definitivamente. Alma cansada, abatida à margem da estrada, para um ins-
A lei do baixo mundo da matéria é determinismo; a lei do es- tante na eterna trajetória da vida, larga o fardo de tuas exp i-
pírito é liberdade. Pela evolução realiza-se a passagem do de- ações e repousa.
terminismo ao livre-arbítrio, que é a expressão de uma amplitude Ouve como está plena de harmonias a obra de Deus! O rit-
maior na possibilidade de movimento, determinada por gradual mo dos fenômenos irradia doce e grandiosa música. Por meio
reabsorção do determinismo, correspondente a uma progressiva das formas exteriores, os dois mistérios, da alma e das coisas,
manifestação do princípio cinético. Matéria, energia, vida, espíri- se observam e se sentem. Das profundezas, o teu espírito ouve e
to, são apenas a expressão da mudança desse movimento, de compreende. A visão das obras de Deus produz paz e esqueci-
forma cada vez mais evidente e mais livre, numa lei mais com- mento; diante da divina beleza da criação, aquieta-se a tempes-
plexa, em que é possível fazer-se e desfazer-se os equilíbrios, ca- tade do coração, paixão e dor adormecem em lento e doce canto
da vez mais instáveis, em combinações mais frágeis e renová- sem fim. Parece que a mão de Deus, através das harmonias do
veis, num dinamismo crescente, em que desaparece a estase do universo, acalenta, qual brisa confortadora, tua fronte prostrada
determinismo. Isto é uma progressiva liberação dos limites dos pela fadiga e aí se detém como uma carícia. Beleza, repouso da
sistemas cinéticos fechados, é uma dilatação de possibilidades, alma, contato com o divino! Então, o viandante deprimido se
de combinações e de escolhas. A contínua renovação permite reanima, com renovado pressentimento de sua meta. Não mais
atingir o equilíbrio por um número sempre maior de caminhos. parece tão longa a jornada, tão comprida, quando se para um
Agora podeis compreender como o homem, em seu caminho instante para dessedentar-se numa fonte. Então, a alma contem-
evolutivo, traslada-se da matéria ao espírito, levando consigo os pla, antecipa e se alivia na caminhada. Com o olhar fixo para o
dois extremos: determinismo e livre-arbítrio. Podeis agora expli- Alto, é mais fácil retomar em seguida o caminho cansativo.
car o incompreensível conúbio e resolver filosófica e cientifica- Na estrada dolorosa, para, enxuga tua lágrima e ouve. O can-
mente uma questão que sempre vos pareceu insolúvel antago- to é imenso, e as harmonias chegam do infinito para beijar-te a
nismo. Para compreender esses dois termos, é necessário não fronte, ó cansado viandante da vida. Ao lado do trovão das vozes
mais opor um ao outro, como sempre fizestes, como dois casos titânicas do universo, murmuram, num sussurro de beleza, as de-
extremos, imóveis e absolutos, mas sim coordená-los no relativo, licadas vozes das humildes criaturas irmãs: “Também eu, eu
em que se movimentam, como duas fases sucessivas, dois pontos também sou filha de Deus, luto e sofro, carrego o meu peso e
de uma escala, e uni-los com o conceito de evolução. busco minha vitória. Também eu sou vida, na grande vida do to-
O homem é determinismo enquanto matéria. Essa é sua lei do”. E tudo, desde o fragor da tempestade até ao canto matutino
enquanto se movimenta nesse campo de absoluta e férrea neces- do sol, do sorriso do recém nascido ao grito dilacerante da alma,
sidade. Mas, quando o homem age como espírito, nesse campo tudo, com sua voz, revela-se a si mesmo e sintoniza com as vozes
sente-se e é perfeitamente livre. No mundo psíquico desaparecem irmãs; tudo exprime seu mistério íntimo; cada ser manifesta o
as leis físicas, portanto aí também desaparece o determinismo pensamento de Deus. Quando a dor atinge as mais íntimas fibras
destas leis. Assim, o homem só é livre, tudo dominando e supe- de teu coração, ouves uma voz que te diz: Deus; quando a carícia
rando, no campo das motivações, em seu espírito, a única potên- do crepúsculo te adormece no sono silencioso das coisas, uma
cia que emerge livre num mundo de fatalidade. Mas não é igual- voz te diz: Deus; quando ruge a tempestade e a terra treme, uma
mente livre no campo das realizações, porque, aí, seu caminho é voz te diz Deus. Essa estupenda visão supera qualquer dor.
sempre restringido pelo inviolável determinismo físico, a que ca- Para, escuta e ora. Abre os braços à criação e repete com
da ato seu, mais ou menos, está submetido, não podendo ser tor- ela: “Deus, eu te amo!”. Tua oração, não mais admiração ame-
cido, mas apenas secundado e guiado para seus fins. drontada pelo poder divino, agora é mais elevada: é amor. Ora-
Prosseguindo nosso caminho racional, as vias da biologia de- ção doce, que brota como um canto que a alma repete, ecoa de
sembocam na ética. Só existe responsabilidade onde há liberda- fraga em fraga por toda a Terra, de onda em onda pelos mares,
de. A libertação do princípio cinético, que se tornara evolução de de estrela em estrela pelos espaços infinitos. É a palavra subli-
liberdade, transforma-se em progressão de responsabilidade. me do amor, que as unidades colossais do universo repetem
Responsabilidade relativa, estritamente ligada ao grau de evolu- contigo, em uníssono com o mais humilde inseto, que timida-
ção e, portanto, ao nível psíquico e ao grau de conhecimento do mente esconde-se entre a grama e cuja voz parece perdida, no
indivíduo. Por isso o animal não peca. Movendo-se num jogo entanto Deus também a conhece, recolhe-a e a ama. No infinito
mecânico de instintos, apertados num determinismo exato, não do espaço e do tempo, somente esta força, essa imensa onda de
pode e não sabe abusar, como faz o homem. Liberdade, escolha, amor, mantém tudo compacto em harmônico desenvolvimento
responsabilidade só existem na fase superior da consciência e de de forças. A visão suprema das últimas coisas, da ordem em
suas formações, não na fase do instinto, em que os equilíbrios es- que caminham todas as criaturas, dar-te-á sozinha um sentido de
82 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
paz, de verdadeira paz, de paz profunda, de alma saciada, por- cantes como uma correnteza, como um patrimônio comum, de
que percebe sua mais elevada meta. onde cada ser o recolhe para construir a forma mais adequada à
Assim Deus Se afigura-te ainda maior do que em seu poder expressão e ao desenvolvimento do seu próprio psiquismo.
de Criador, revelando-Se na potência de Seu amor. Explode, ó A máquina apropriada e especializada para a construção
alma! Não temas! O novo Deus da Boa-Nova do Cristo é bonda- desse material, por meio dos quatro elementos, é a planta.
de. Não mais os raios vingativos de Júpiter, mas a verdade que Vimos como ela surgiu no seio das águas. As primeiras plan-
convence, o carinho que ama e perdoa. O abismo infinito que tas, gelatinosas, boiando nos mares, começaram a realizar, a
olhas assustado não está para te engolir nas trevas do mistério, partir do mundo inorgânico, a síntese dos materiais orgânicos.
mas abre-se cheio de luz e, em seu âmago, canta incessantemente O maravilhoso quimismo das folhas verdes iniciou a trans-
o hino da vida. Lança-te sem receio, porque nesse abismo reside formação da matéria morta em matéria viva, captando e, ao
o amor. Não digas: “Não sei”, dize antes: “Eu amo!”. mesmo tempo, armazenando a energia que vinha da grande
Ora! Ora diante das imensas obras de Deus, diante da terra, fonte solar. Iniciada a construção da matéria viva, esta aumen-
do mar, do céu. Pede-lhes que te falem de Deus, pede aos efei- tava continuamente e se acumulava, enriquecendo o patrimô-
tos a voz da causa, pede às formas o pensamento e o princípio nio coletivo, que, depois, entraria em circulação nas permutas
que a todas anima. Todas as formas então se aglomerarão em inversas entre vida vegetal e vida animal.
redor de ti, estender-te-ão seus braços fraternos, olhar-te-ão Observai o maravilhoso equilíbrio. Enquanto as plantas pos-
com mil olhos, feitos de luz, e o eterno sorriso da vida te envol- suem poderes construtivos e dedicam-se à função de aumentar a
verá como uma carícia. Essas mil vozes dirão: “Vem, irmão, massa dos produtos orgânicos do planeta, os animais vivem da
sacia teu olhar interior, busca força na visão sublime. A vida é destruição desses produtos, utilizando para sua vida a energia
grande e bela; mesmo na dor mais atroz e tenaz, é sempre digna solar fixada pelas plantas no material orgânico construído por
de ser vivida”. Tomar-te-ão pelo braço, gritando: “Vem, atra- elas. A planta produz, o animal consome. São duas máquinas
vessa o limiar e desvenda o mistério. Vê: não podes morrer ja- com funções opostas e inversas. A planta constrói a matéria or-
mais, jamais poderás morrer. Tua dor passa, com ela sobes, e gânica; o animal, com um processo de lenta combustão, destrói
fica o resultado. Não temas a morte nem a dor: não são o fim esta construção, restituindo o material às condições primitivas.
nem o mal, são o ritmo da renovação e os caminhos de tuas as- O primeiro processo de síntese se equilibra no segundo proces-
censões. A vida é um canto sem fim. Canta conosco, canta com so complementar de decomposição.
toda a criação, o canto infinito do amor”. Cabe, pois, à planta a glória de ter sabido cumprir o esfor-
Ora assim, ó alma cansada: “Senhor, bendito sejas, sobretu- ço da primeira construção orgânica; sem ela, a superior vida
do pela irmã dor, porque ela me aproxima de Ti. Prostro-me di- animal não teria podido formar-se e subsistir. Hoje, também
ante de Tua imensa obra, mesmo se nela minha parte é esforço. deveis vossa vida ao trabalho construtivo das plantas. No es-
Nada posso pedir-Te, porque tudo já é perfeito e justo em Tua tado natural, os elementos químicos básicos da vida acham-se
criação, mesmo meu sofrimento, mesmo minha imperfeição combinados entre si, ou seja, carbono e hidrogênio unidos
transitória. Aguardo no posto de meu dever a minha maturação. com oxigênio, sob a forma de anidrido carbônico (CO 2) e
Repouso em Tua contemplação”. água (H2O). A planta é a máquina que realiza a separação do
Responde, ó alma, ao imenso amplexo e, verdadeiramente, carbono e hidrogênio, do oxigênio. Na molécula de anidrido
sentirás Deus. Se a inteligência dos grandes, ao aproximar-se do carbônico, composta de um átomo de carbono e dois de oxi-
Divino pelas cansadas vias da mente, se prostra e venera, cur- gênio, a planta libera no ar o oxigênio e assimila o carbono.
vando-se diante do poder do conceito e de sua realização, o cora- Na molécula da água, construída com dois átomos de hidro-
ção dos humildes atinge a Deus pelos caminhos da dor e do gênio combinados com um átomo de oxigênio, o processo é
amor, Sentindo-O pelas estradas dessa mais profunda sabedoria. igual: libera no ar o oxigênio e assimila o hidrogênio.
Ora assim, ó alma cansada. Descansa a cabeça em Seu No animal ocorre o processo inverso. Na respiração, ele re-
peito e repousa. combina o oxigênio com o carbono e o hidrogênio e, assim
combinados, os restitui sob a forma de anidrido carbônico e
LXVIII. A GRANDE SINFONIA DA VIDA água. Assim, animais e plantas realizam sua inversa respiração,
e, na contínua compensação das funções invertidas, mantém-se
Olhemos novamente as harmonias da vida em seu mais pro- o equilíbrio. Essa inversão de funções entre vegetais e animais
fundo aspecto científico. Também isto constitui sempre uma permite que a vida possa perdurar indefinidamente. Também na
contemplação da beleza divina. A visão estética alimenta e ele- vida nada se cria e nada se destrói, mas tudo se transforma. Eis
va como a visão conceptual, que vos dá a chave daquela beleza. a nova confirmação do princípio geral pelo qual cada fenômeno
De fato, fé, arte e ciência são um canto único no seio da mesma jamais se move numa direção única, retilínea, mas sim de ma-
harmonia. O mundo biológico é todo um edifício de maravilho- neira cíclica, com inversões e retornos sobre si mesmo. Mesmo
sa arquitetura, um organismo de correspondências e permutas, na química da vida, o que nasce morre, e o que morre renasce.
uma sinfonia de harmonias e equilíbrios perfeitos. Imaginai em que imensa usina de construções vitais se
Vimos que os elementos com os quais a vida constitui sua transformou a Terra, com a progressiva expansão de plantas
roupagem orgânica – ao mesmo tempo expressão e elaboração do sobre os continentes emersos. Mares ilimitados de substân-
psiquismo – são hidrogênio, carbono, nitrogênio e oxigênio, cia verde trabalham sem repouso na construção da matéria
existentes em grande abundância na atmosfera, no momento da prima, de que depois se formará cada ser vivo. Miríades de
gênese. Esses são os corpos que encontrais como elementos or- folhas estendem-se ao sol, ávidas para surpreender e agarrar
ganógenos na estrutura plasmática, nestas proporções: carbono cada átomo de carbono e cada raio de luz. O ar que circula
53%, oxigênio 23%, nitrogênio 17%, hidrogênio 7%. São encon- entre elas fornece o anidrido carbônico e, sob a ação da luz,
trados no corpo humano aproximadamente nas mesmas propor- a clorofila absorve-lhe a vida, alimentando-se de carbono.
ções (tipo médio): oxigênio 44 Kg, carbono 22 kg, hidrogênio 7 Não se perde um único átomo dele, o imenso mar de folhas
kg, nitrogênio 1 kg etc. Todos os compostos orgânicos são cons- aspira cada molécula do alimento gasoso. Nem um só raio de
truídos com esses elementos, que, na grande mobilidade dos edi- sol cai inútil. A torrente de luz, onde quer que desça, fecunda
fícios químicos da vida, circulam em permutas incessantes. O uma vida. A química orgânica, em sua instabilidade, mantém
material orgânico é coletivo, circulando por organismos comuni- escancaradas as portas e transforma a substância da energia em
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 83
vida. Debaixo de vossos olhos, pelos campos intermináveis, No ápice de todo o grande trabalho, o termo mais alto na
realiza-se a cada instante a transformação de  em . E o pro- escala evolutiva de vosso universo, a máquina mais comple-
dígio dessa transformação é realizado a cada dia pelas plantas, xa e delicada, é vossa psique. Nos órgãos sensórios ocorre
criaturas menores, irmãs vossas, verdadeiras máquinas sinteti- continuamente essa elevação de vibrações ambientais em vi-
zadoras de ação solar. Se não houvesse quem, nos primeiros brações de ordem superior; pelo ouvido, o som torna-se mú-
degraus da vida, realizasse este primeiro trabalho de transfor- sica; pelos olhos, a luz torna-se beleza; pelos sentidos, o
mação, nem mesmo seria possível o trabalho mais elevado choque das forças ambientais torna-se instinto e consciência.
que realizais no campo orgânico e psíquico. A energia é transformada, por meio do mecanismo da vida,
O equilíbrio vegetal-animal completa-se aqui em equilí- de suas formas inferiores nas mais altas formas nervosas de
brio mais amplo, porque essa permuta contínua de combina- sensação, sentimento e pensamento. As individuações bioló-
ções químicas comunicantes inclui no fundo uma permuta gicas constituem centros de elaboração da substância, em
dinâmica em que, por meio de contínuas transformações, a que atua o transformismo evolutivo da fase  para a fase .
energia se transmite e circula de forma em forma, de ser em Assim, da florescência da vida, realizada por meio das radi-
ser. Tudo deriva da grande fonte de energia que é o Sol. ações solares, ascende-se ao desabrochar da consciência.
Observai como são perceptíveis, no seio do sistema solar, Assim como a energia universal espalhou por toda a parte a
todas as fases do transformismo . No Sol ocorre a vida, também esta, por profunda elaboração, gera em toda
primeira transformação físico-dinâmica: a matéria dissolve- parte o psiquismo. O grande rio da energia, que tinha sido
se em radiações que, interceptadas pela Terra, aí se trans- matéria, transforma-se no mar imenso da vida, e esta, por
formam em vida. No transformismo da matéria nada se des- sua vez, transforma-se em consciência. O universo, que ca-
trói. As plantas fixam a energia solar e dela se alimentam minhara até à vida, finalmente sente e olha para si mesmo.
para as finalidades da vida. O Sol desagrega seus materiais, Na comunidade do material orgânico entre todos os seres
suas radiações chegam à Terra, e a vida cresce sem cessar. vivos, reside a origem da lei básica da vida: a luta. Aquilo que
Tudo provém, por espontânea doação, do centro do sistema. vos devia tornar irmãos, vos faz também, inevitavelmente, ri-
Os compostos químicos, pelo irrefreável impulso profundo vais. O patrimônio comum, obtido por longas e laboriosas
da evolução, combinam-se em fórmulas cada vez mais transformações, é limitado; a substância que constitui um or-
complexas. As máquinas vivas acumulam energia solar, ganismo é ótimo material de nutrição para outro. Daí a luta, o
transformando-a em compostos de estrutura química cada recíproco dilacerar-se, a rivalidade orgânica de tantos apare-
vez mais complexa. O animal, por sua vez, se destrói gran- lhos digestivos, mais ou menos complexos e evoluídos, arma-
des quantidades de material orgânico fornecido pelas plan- dos com todos os instrumentos de ataque e defesa da vida. Es-
tas, reconstrói como qualidade o que se destruiu como ta é, indiscutivelmente, a lei do planeta no nível animal; mas o
quantidade (o potencial da substância indestrutível perma- homem, com o evoluir de seu psiquismo, começa a elevar-se
nece sempre idêntico), realizando operações químicas e fa- acima dela e, então, percebe a diferença. O horror que o ho-
bricando materiais ainda mais complexos. Complexidade mem experimenta pelas formas ferozes e agressivas da vida é
progressiva, expressão e meio de construção de um íntimo proporcional a seu grau de evolução. Os homens inferiores,
psiquismo progressivo, diretor do fenômeno. ainda não emergidos espiritualmente da fase animal, podem
Se, nas plantas, temos o primeiro degrau da transforma- agitar-se felizes numa forma de vida brutal e atroz, que, para
ção da energia em vida e da constituição do material orgâni- eles, é a expressão normal da própria natureza. Mas os seres
co, no animal subimos a um degrau mais alto: a transforma- mais evoluídos, embora fisicamente vestidos com um corpo
ção da vida em psiquismo. A destruição do produto da vida humano organicamente semelhante, não podem deixar de sen-
das plantas significa construção de um material ainda mais tir ser absolutamente inadmissível esse sistema de vida e, en-
perfeito: o espírito. Divisão de trabalho, especialização de tão, encontram-se numa encruzilhada: ou aceitar uma vida
funções, transformações contínuas e infinitesimais desloca- bestial, ou lutar para civilizar a humanidade. Esta é a nova
mentos progressivos. Só no animal começa verdadeiramente forma de luta que os primeiros, imersos como estão na luta do
a função específica da constituição daquele psiquismo cuja nível animal, ainda não apreciam ou nem sequer enxergam,
gênese observamos e que se tornará, à medida que sobe, ca- condenando-a nos outros, dos quais se encontram separados
da vez mais, a nota fundamental dos fenômenos vitais. Vede por abismos de incompreensão. No entanto estes outros são os
como da matéria solar chega-se, por sucessivas transforma- únicos verdadeiramente ativos e produtores, são os grandes
ções, aos fenômenos do espírito; em cada uma dessas trans- que arrastam o mundo: são as antenas da evolução.
formações podeis descobrir sempre a mesma substância, A inteligência e a ciência, dominando as forças naturais,
que, embora mudando de forma, nada aumenta e nada des- submetem a natureza ao homem, provendo as necessidades
trói de si mesma, mas se refina em seu modo de ser, com materiais e eliminando, assim, a necessidade da luta em suas
qualidades cada vez mais sutis, complexas e perfeitas. formas brutais inferiores, a qual se sutiliza, transformando-se
O físio-dínamo-psiquismo de minha síntese monista o ve- em luta nervosa e psíquica, dirigida para conquistas superio-
des aqui tangível, fato objetivo, realidade vossa cotidiana, e res. Não mais luta de músculos, mas de nervos; não mais de
não é possível negá-lo. paixões, mas de inteligência. Doutro lado, os princípios éticos
Esse transformismo é um ciclo compacto, inalterável, das religiões e da sociedade educam o homem para as virtudes
em que estão presos e amarrados todos os fenômenos. A morais e cívicas superiores, preparando-o para saber viver
experiência e a lógica não vos permitem fugir dele. A ener- com uma psicologia de colaboração evangélica, no ambiente
gia solar, assimilada e transformada pelas plantas, torna -se, mais elevado que a ciência terá preparado.
no animal, calor, movimento e, como última transformação O homem é o agente desta transformação, último anel de
do dinamismo vital, energia nervosa. Esta, no homem, tor- todas as transformações precedentes. Assim, governada por
na-se função psíquica e espiritual. Eis traçada a linha que, uma humanidade mais sábia, a Terra tornar-se-á um jardim.
através das espécies físicas, dinâmicas e psíquicas, une a Esta é a transformação biológica que vos espera. Na ascen-
matéria ao gênio. Eis onde, depois de tantas transformações, são humana espiritual que se realiza nestes milênios e se in-
culmina a energia das radiações solares. Das torrentes ilimi- tensifica no momento atual, numa fase decisiva, culmina o
tadas só encontrais um riacho, mas em sua potência e per- esforço de toda a ilimitada evolução que a preparou, que a
feição nada foi perdido da substância. sustenta e que hoje a impõe.
84 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
LXIX. A SABEDORIA DO PSIQUISMO las sociais tendem a manter-se na senda dos equilíbrios está-
veis, conhecidos e seguros, mas fechados no passado. Outras
Se olhardes em torno de vós, vereis que as formas de vida re- células personificam as tendências opostas, destroem e reedifi-
velam sabedoria profunda. Mesmo nas individuações da matéria, cam, tentando sempre caminhos novos, em incessante dina-
o ser mineral é filho de um germe cristalino, de um impulso que mismo; representam o princípio da revolução diante do princí-
emana do infinito, caracterizando-se em sua forma típica de cris- pio da conservação. São os pioneiros que vivem perigosamente,
tal, como o ser vivo o é em sua forma anatômica, e, quando muti- que dão tudo de si e arriscam tudo, que assaltam e atormentam,
lado, sabe igualmente reparar sua mutilação. Mas, em qualquer mas são os únicos que criam. O mundo dormiu por milênios na
campo, cada fenômeno é uma afirmação, uma resistência às per- estase de um ritmo monótono, que voltava sempre sobre si
turbações, uma vontade de ser em sua forma, uma diferenciação mesmo, nos mesmos pontos, que pareciam fixos (princípio de
do ambiente, para poder dizer: “eu”. Nos altos níveis da vida, à conservação), no entanto um lento trabalho subterrâneo de
sabedoria química do íntimo metabolismo celular acrescentam-se amadurecimento e de assimilação, que ignorais, ocorria no
a sabedoria técnica da construção de órgãos e a sabedoria que di- mundo psíquico-social, fazendo com que o equilíbrio estável e
rige seu funcionamento, para uso dos objetivos internos e exter- fechado se precipitasse um dia na revolução. O segundo impul-
nos da vida. O complexo edifício é um transformismo dirigido so, oposto, o das inovações, tomou hoje a primazia, e a alma do
para a luminosidade do psiquismo. mundo tenta, nas pegadas dos grandes pioneiros que falaram
Há uma necessidade de beleza nas formas da vida. Aquele sozinhos há muito tempo, as criações futuras: criações psíqui-
material orgânico comum que os seres roubam uns dos outros, cas, biológicas. No resto deste século, vosso trabalho individual
comendo-se mutuamente, tende a se plasmar numa forma que e de massa decide a respeito dos futuros milênios.
exprime a íntima aspiração estética. A própria célula já é um Naquelas fases primordiais das formações orgânicas, a ma-
pequeno ser vivo, que concentra todas as potencialidades da leabilidade do plasma dobrou-se à pressão do explosivo psi-
vida e as qualidades do organismo, porque se move, respira, quismo interior, ávido de expressar-se, modelando as formas.
nutre-se (assimila e desassimila), cresce, segrega, reproduz-se, Ao lado da formação de órgãos internos cada vez mais comple-
nasce e morre, sente o ambiente e reage a ele. Desde sua pri- xos, houve uma florescência exterior de todos os meios de ata-
meira unidade, a vida muda continuamente, quer exprimir-se que e defesa, que a luta contínua impunha. A planta estende su-
sempre em suas formas mais altas e complexas. Há sempre as gavinhas como órgão preênsil para agarrar; produz no espi-
grande necessidade de subir e de revelar em si mesma essa as- nho a primeira garra para ofender; inventa a astúcia de econo-
censão; ao mesmo tempo, vê-se uma necessidade de prudên- mizar movimento, lançando sementes aladas ao vento, ou pre-
cia, que teme aventurar-se ao perigo de tentativas dirigidas a gando-a nos animais que passam; a arte de envolver as semen-
equilíbrios muito avançados, afastados da segura estabilidade tes de saboroso fruto, não para alegria do homem, mas porque
dos equilíbrios já experimentados. Assim, a vida oscila entre este, ao comê-lo, leva involuntariamente para longe as semen-
os velhos e seguros caminhos – já conhecidos e percorridos tes; a arte dos perfumes e a estética das cores e das formas,
nas primeiras e mais simples estabilizações do movimento, as porque também a beleza atrai e é grande necessidade no baixo
mais resistentes aos choques ambientais – da necessidade de mundo biológico. A beleza, ao lado da luta, é necessidade uni-
conservar-se e proteger-se, mantendo-se na linha do passado versal e protege como um dom sagrado e divino que dá alegria,
(misoneísmo), e a necessidade de absorver em sua estrutura diante do qual o agressor para, quase reverente, detido pelo medo
cinética e de tornar suas, assimilando-as, novas linhas de for- de perturbar a harmonia divina. Todos os segredos da mecânica,
ça, obedecendo ao irresistível impulso ascensional da evolu- da química, da eletricidade são utilizados: nascem patas, asas, an-
ção (inovar-se, revolucionar-se). A vida se equilibra, assim tenas, chifres, tenazes, bicos, presas, ferrões; a arte sutil dos ve-
(até mesmo no campo intelectual e social), entre as tendências nenos, da fosforescência, do hipnotismo, das ondas elétricas; o
conservadoras e as criadoras, e segue adiante na luta entre du- psiquismo retifica no olho as imagens visíveis; a arte dos senti-
as forças opostas: a da hereditariedade e a da evolução (varia- dos, sempre de atalaia, desenvolve outros cada vez mais refina-
ções da espécie). A natureza avança, mas com muita prudên- dos e complexos; não há descoberta humana que antes não tenha
cia. As grandes florescências orgânicas só acontecem em pe- sido encontrada e utilizada pela natureza.
ríodos particulares, como aqueles a vós revelados pelas des- Todos esses sábios meios são utilizados com sabedoria
cobertas paleontológicas; períodos de transição rápida, em ainda maior. Os tecidos são regidos por uma força racional
que os edifícios dinâmicos, muito saturados dos novos impul- que lhes guia as funções, por isso o tubo digestivo, que digere
sos assimilados, precipitam-se em tentativas de formas novís- o alimento, não digere a si mesmo; as glândulas que segregam
simas, em que a vida, depois de longas fases de incubação si- o veneno, não envenenam a si mesmas. Há ainda o mimetis-
lenciosa, explode numa inopinada febre de criação. Tentativas mo, a arte da mentira e o talento da fuga para os fracos. Falta
nem todas sobreviventes; períodos de construções apressadas somente uma: a arte da compaixão. Por que? Porque esta é
e monstruosas, mas que lançaram as bases de novos órgãos, conquista mais alta, a que só o homem saberá chegar e, como
de novas espécies, de novos instintos. Hoje, a fase das forma- verdadeiro rei, só ele saberá conceber, dominando toda a vida
ções biológicas tornou-se um passado superado. Os seres que no planeta. No uso dos órgãos e instrumentos de ataque e de
vedes, animais ou plantas, são tipos sobreviventes da evolu- defesa, a vida manifesta mais evidente seu psiquismo. É ciên-
ção, vitoriosos na grande luta da vida. Não podeis observar a cia sem piedade, mas é ciência. A natureza assegura a sobre-
evolução, mas apenas suas consequências. A elaboração pre- vivência das espécies construindo organismos em grandes sé-
sente acha-se em outro nível. ries, lançando germes no campo da vida com a máxima prodi-
Período semelhante, de apressadas e monstruosas criações galidade. A fonte primária que brota no âmago da substância
paleontológicas, viveis hoje, mas não como unidades orgânicas, aparece-vos com um poder ilimitado e inexaurível; o que lhe
e sim como unidades psíquicas, com a mesma febre de criação delimita a expansão, a força que freia a multiplicação dos se-
(paixões), com a mesma monstruosidade de formas espirituais res, reside sobretudo na limitação dos meios ambientais, limi-
(erros e mentiras), com a mesma incerteza e instabilidade. tação da qual nasce a luta, cuja função principal é a seleção
Também no campo psíquico e social, a Lei continua no mesmo do melhor. Sem a rivalidade do vizinho, que modera sua ex-
ritmo. O equilíbrio espiritual do mundo tem oscilado sempre pansão, cada espécie sozinha invadiria todo o planeta. A Lei
entre o impulso de conservação e o de revolução. Algumas célu- é sábia e alcança seus objetivos. Aparece, assim, a vida como
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 85
desenfreada concorrência de apetites, em que tudo é obtido recebida das impressões e experiências vividas. Ele precede o
com a força ou com a astúcia. Este é o nível do animal, que nascimento e sobrevive à morte, mesmo nos animais, o que é
não tem horror a seu estado, porque sua sensibilidade é pro- justo, pois também eles são pequenos fragmentos de imortali-
porcional a ele. O animal é feroz com toda a inocência e nem dades e de eternidade. Ele renasce continuamente, enrique-
por isso é imoral, mas simplesmente amoral. Nesse nível, a cendo-se com a experiência de cada existência. Vós mesmos
vida é contínua guerra, é um constante atirar-se a ataques, a podeis verificar, com a domesticação e adestramento, que, nos
que apenas os mais fortes resistem, esse é o estado normal. animais, as portas do instinto não estão fechadas, ou seja, ele
Aí, a bondade é fraqueza e falência. Uma flor mais delicada tem ainda, sob vossos olhos, a capacidade de se enriquecer
que a sabedoria é a bondade, que só desabrocha depois, muito com qualidades, de assimilar coisas novas. Há sempre uma
mais no alto, na escala da evolução. Mas aquela sabedoria, no possibilidade de progresso no raciocínio cristalizado do ins-
nível animal, já é profunda. O instinto conhece química, ana- tinto. As qualidades, mesmo no homem, nutrem-se permanen-
tomia e, em alguns casos, sabe até anestesiar o inimigo, com temente com seu exercício cotidiano. O psiquismo se plasma
injeções nos gânglios nervosos, no ponto estratégico que para- num processo de constante elaboração. No campo orgânico,
lisa os movimentos. Uma espécie de himenópteros, necessita- assim como no psíquico, da mesma forma que a atividade cria
dos de provisões imóveis, mas vivas, conhecia anatomia e órgãos e aptidões, a falta de uso atrofia e destrói (daí a neces-
anestesia antes do homem. O instinto tem previdências incrí- sidade biológica do trabalho).
veis, sobretudo em seres primitivos. Falei de um inseto, mas os casos são infinitos. Sem esses
Um exemplo entre os coleópteros: a larva lignívora do conceitos, o fenômeno do instinto, de sua formação, de sua
capricórnio (cerambix miles) nascida cega, surda, sem olfa- presciência e os próprios fenômenos da hereditariedade perma-
to, com apenas um pouco de paladar e de tato  rudimento neceriam no mistério insolúvel.
de sensibilidade que nenhuma aquisição psíquica pode obter A presença de um psiquismo diretor torna-se evidente no
no ambiente (no caso, um tronco de carvalho, onde vive per- fenômeno da histólise do inseto. Aí não encontrais mais uma
furando e digerindo) – esse pobre tubo digestivo possui uma sabedoria funcional, de órgãos internos ou externos, nem a
sabedoria imensamente superior à sua organização e a seus sabedoria que dirige as ações do animal, mas uma sabedoria
meios, comporta-se com uma racionalidade e presciência ex- que se revela mais profunda: aquela que sabe criar um orga-
traordinárias. Prepara, com antecipação, um caminho de saí- nismo novo a partir de um organismo desfeito. Nesse fenô-
da do tronco, que não poderia furar no seu estado final de in- meno ocorrem metamorfoses profundas, que revelam a pre-
seto; constrói, perto da saída, uma cavidade para sua matu- sença de um psiquismo de maneira ainda mais evidente que
ração de ninfa; fecha-se dentro dela, com o corpo orientado nas reparações orgânicas que já observamos. No estado de
para a saída, pois, sem essa precaução, o inseto adulto, todo crisálida, acontece, em vários insetos (lepidópteros) que se fe-
encouraçado, não poderia dobrar-se para sair. Quantas coisas cham no invólucro protetor, um fenômeno misterioso, no qual
sabe por antecipação! Donde lhe vem essa ciência? Não sa- órgãos e tecidos se desagregam, perdendo seus caracteres dis-
beis responder. Mas pensai que, se a forma visível é um ver- tintivos assim como a estrutura celular anterior, transforman-
me, ele sintetiza em seu psiquismo o princípio que resume to- do-se numa pasta uniforme, amorfa, em que não se percebem
das as formas que o inseto assume e que, em sua vida, adotou sobrevivências da organização demolida. A essa espécie de
há milênios; pensai que esse verme traz em seu psiquismo a desmaterialização orgânica segue-se nova reconstrução, ver-
recordação integral de todas as experiências vividas como in- dadeira histogênese, em que novo organismo ressurge, tão di-
seto; em outros termos, o fenômeno está sempre potencial- ferente na constituição orgânica, que não se pode considerá-lo
mente completo, mesmo na fase de transição que vedes, por- ligado ao precedente mediante relações diretas de derivação.
que, se a forma mutável se transforma, o psiquismo animador O psiquismo diretor do dinamismo fisiológico, mesmo que,
está sempre todo presente a cada momento de suas sucessivas como na reparação orgânica, completamente ativo no comple-
manifestações. Então, no psiquismo estão os recursos dessa xo quimismo da vida, emerge aqui, a partir da forma, em toda
ciência superior às aparências da forma. Chamastes a isso de a sua independência e mostra seu completo domínio sobre es-
instinto e não sabeis explicar a existência no instinto de uma ta, porque dela se destaca, desfazendo-a e reconstruindo-a di-
racionalidade tão previdente. O instinto não é inferior à razão ferentemente, sem continuidade fisiológica, exorbitando todas
humana, a não ser pelo campo mais limitado que domina e pe- as potencialidades construtivas do organismo. É necessário
lo fato de que, estando, ao longo da evolução, mais próximo substituir o conceito absurdo de funções – efeito de uma natu-
do determinismo da matéria, é fenômeno mais simples e me- reza específica de células e tecidos, ou seja, uma localização
cânico; enquanto o espírito, por evolução, distanciou-se mais funcional em estreita dependência de uma especialização na
da matéria e conquistou aquela complexidade e riqueza de estrutura de órgãos e funções – pelo conceito de um psiquis-
caminhos que denominais de livre-arbítrio, característica, co- mo superior, independente e diretivo, de que as formas são
mo vimos, da fase das criações. apenas a manifestação. Ele as plasma, dirigindo-lhe o íntimo e
Cada ser, tanto quanto o homem, traz consigo esse sutil incessante metabolismo, e, quando este tem que enfrentar de
psiquismo que lhe dirige as funções orgânicas; que lhe man- salto as maiores distâncias, em metamorfoses profundas, que
tém constantemente a identidade, apesar da contínua e com- implicam solução de continuidade no desenvolvimento fisio-
pleta renovação dos materiais que constituem o organismo; lógico, então o psiquismo se mantém como único fio condutor
que lhe prepara e dirige o desenvolvimento e as ações com do fenômeno, que permanece único e contínuo, embora, de
uma precognição que somente possui quem viveu e recorda. modo inexplicável, pareça quebrado. Não há aí, portanto, uma
Sem esse psiquismo, não se explica como os sempre novos substância orgânica que, de acordo com a conformação dife-
materiais da vida voltam exatamente a seu posto de funcio- rente e com a estrutura celular alcançada por evolução, dê lu-
namento; não se explica como a corrente de tantos elementos gar a funções específicas, cuja causa seja perceptível apenas
heterogêneos esteja ligada em continuidade; como, de todas as na especialização do material orgânico, mas existe um psi-
impressões transmitidas pelo ambiente, só algumas sejam as- quismo diretor que modela a forma, para que esta possa ex-
similadas, outras corrigidas, outras repelidas. Esse princípio primir a função, de acordo com o impulso recebido. A solução
verdadeiramente resume a hereditariedade das características dos mais profundos problemas biológicos reside somente nes-
adquiridas, implanta-se no germe e lhe dá novamente a marca ta ultrafisiologia do psiquismo.
86 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
LXX. AS BASES PSÍQUICAS DO da vida, está na hora de descer mais fundo no campo das cau-
FENÔMENO BIOLÓGICO sas. Mais do que da paciência do coletor de observações, a ci-
ência precisa agora da síntese da intuição; além de gabinetes, de
A causa, o princípio das coisas, reside no seu próprio ínti- microscópios e telescópios, precisa, acima de tudo, de grandes
mo. Os efeitos estão no seu exterior. Cada fenômeno tem um almas que, das profundezas de seu próprio íntimo, saibam en-
tempo próprio relativo, que lhe estabelece e mede o ritmo de xergar o âmago dos fenômenos e sentir, através das formas, a
transformação; tem sua velocidade do devenir. A sucessão que, misteriosa substância que nelas se oculta.
no tempo, passa de causa a efeito, é também uma sucessão de Não é mais tempo de negar um princípio tão evidente. Vi-
desenvolvimento, que vai do âmago à superfície; é uma dilata- mos que toda a evolução, da estequiogênese para cima, dirige-
ção do princípio em sua manifestação. Assim é o psiquismo. se para as formas do psiquismo, pois para ele se orienta o pro-
Vedes esse íntimo impulso manifestar-se em toda parte: pri- gresso fenomênico do universo, qual meta racional de todo o
meiro, na direção da química da vida, mediante a formação do caminho. Na massa de fatos coletados e acumulados há um im-
plasma, por seu crescimento, reprodução e evolução; depois, pulso que não se pode deter, uma direção que não se pode mu-
na construção dos órgãos internos, que, com seu funcionamen- dar. No psiquismo sobrevive o princípio elétrico da vida. Com
to orgânico, mantêm vivas as unidades superiores e os órgãos efeito, tudo o que vive atrai ou repele; traz um sinal de amor ou
externos, os quais asseguram a nutrição, a defesa da vida e a de ódio; quer e tende irresistivelmente a fundir-se ou a destruir.
evolução; por fim, na direção geral, impresso em toda essa Em cada forma há um quid psíquico, um motor: é a substância da
máquina, sob o impulso do instinto e da razão. Aqui transpare- vida, é a vontade de viver que a sustenta, uma tensão que plasma
ce evidente o psiquismo. Em vossas classificações zoológicas, e guia, um poder que dirige e arrasta a vida. Tirai esse princípio,
reunis os seres por afinidade morfológica. A anatomia compa- e ela logo cai. Além da aparência da forma, vos indico essa subs-
rada indica-vos órgãos homólogos. Essa homologia vos dá a tância, que lhe é a causa; desloco e aprofundo o conceito da evo-
perceber os parentescos, e, com base nessas semelhanças, lução darwiniana. Vós parais nela, diante da realidade exterior,
agrupais plantas e animais em ordens, gêneros, séries e espé- da evolução das formas, do último efeito estampado na matéria.
cies. Não podeis agir doutra maneira, porque partis do exterior Eu penetro na realidade, partindo da concatenação evolutiva dos
e da forma. Isso está certo, porque parentesco de formas signi- efeitos até à concatenação evolutiva das causas. Para mim, não é
fica parentesco de conceito genético, afinidade morfológica e essencial observar as formas que evoluem, a não ser para seguir
afinidade do princípio animador do psiquismo. Mas não basta. as causas que evoluem. Passo do conceito de evolução das for-
Esses agrupamentos seriam mais compreensíveis se concebi- mas biológicas ao de evolução das suas forças determinantes;
dos em sua causa, em seu impulso íntimo determinante, mais passo do estudo da evolução dos tipos orgânicos mortos, ao estu-
do que apenas como forma exterior. É preciso introduzir o fa- do da evolução dos tipos psíquicos vivos e atuantes. Assim, o
tor psíquico na interpretação de todos os fenômenos biológi- conceito darwiniano completa-se, indo da série de organismos
cos, aprofundando a química orgânica no campo superorgânico para uma “sucessão lógica de unidades dinâmicas”.
De agora em diante, a ciência deve dirigir-se para esse
do psiquismo diretor; é mister criar uma ultra zoologia e botâ-
centro, sem o qual a máquina da vida não se movimenta, não
nica, que estude o conceito e os parentescos entre os conceitos,
possui meta e, num instante, se arruína, caindo à mercê de
as afinidades psíquicas, mais do que as orgânicas, e a evolução
princípios menos elevados. Como pudestes crer que um orga-
do pensamento animador das formas.
nismo perfeito e complexo, qual o corpo humano, pudesse
Há três tipos de natureza:
manter-se e funcionar sem um psiquismo central regulador?
 O reino físico (mineral, geológico, astronômico), que
Não basta dizer qual a química da respiração, da assimilação e
compreende a matéria.
da circulação, nem verificar o perfeito entrosamento de todas
 O reino dinâmico (as forças), que compreende as formas
as engrenagens que presidem a essas três funções básicas. Nas
de energia.
profundidades do metabolismo celular existe a presciência do
 O reino biológico psíquico (vegetal, animal, humano, es- instinto, que age por si, sem intervenção da ciência, o que es-
piritual), que compreende os fenômenos da vida e do psi- ta, por vezes, custa a compreender. Há não apenas maravilho-
quismo. so ritmo de equilíbrios, mas também uma resistência destes a
Esta é a trindade das formas de vosso universo. As clas- qualquer desvio; há uma autodefesa orgânica, feita da sabedo-
sificações zoológicas e botânicas não devem ser classifica- ria imersa nas profundidades do subconsciente; há uma medi-
ções de unidades orgânicas, mas de unidades psíquicas. É cina mais profunda que a humana, porque sabe vencer, muitas
preciso enfrentar objetivamente o psiquismo da vida, a parte vezes, apesar dos ataques desta. A elevação térmica do pro-
mais ignorada e negligenciada por vós, tomando-o como cri- cesso febril, a fagocitose, o equilíbrio bacteriológico mantido
tério nas classificações e fio condutor da evolução da espé- entre amigos e inimigos, num ambiente saturado de micróbios
cie, observando-a não mais na construção e funcionamento patogênicos, a contínua reconstrução química dos tecidos e
dos órgãos particulares, mas no movimento que o psiquismo mil outros fenômenos, fazem pensar numa vontade sábia, que
imprime a toda a máquina, coordenando todos os seus atos conhece e quer essa ordem. Quanto mais alto está na escala
para metas exatas, que revelam uma vontade exata, com evolutiva, mais delicado e vulnerável é o organismo e mais di-
proporções de meios ao fim, com lógica e presciência pro- fícil torna-se, por sua complexidade, sua sobrevivência, efeito
fundas. É unicamente neste campo que reside a solução do este compensado pelo psiquismo, através de um paralelo pro-
mistério dos instintos, a explicação da técnica da hereditari- gresso na perfeição das defesas.
edade, da sobrevivência e da evolução. A função cria o órgão, e o órgão cria a função. O sistema
Essa é uma direção inteiramente nova que deveis dar à bio- nervoso criou o funcionamento orgânico e o dirige; o funcio-
logia, à fisiologia e à patologia; uma orientação de acordo com namento orgânico reforça, desenvolve e aperfeiçoa o sistema
um mais amplo conceito unitário, sem o qual todos os fenôme- nervoso. O psiquismo caminha paralelo à evolução dos orga-
nos, vistos por um único aspecto incompleto, vos parecerão nismos. Existe uma evidente evolução nas formas de luta e de
mutilados e inexplicáveis. Sempre que o efeito se aproxima do seleção, que se tornam cada vez mais psíquicas e poderosas. Há
psiquismo animador, vos encontrais detidos diante da muralha transformações no funcionamento orgânico, metamorfoses quí-
do incompreensível. Agora que as classificações estão feitas, a micas, que vos escapam e caminham dirigidas apenas pelo fio
anatomia vos é conhecida e conhecido é o mecanismo químico condutor desse psiquismo. Na assimilação do intestino, as subs-
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 87
tâncias desaparecem de um lado, para reaparecerem do outro, homem, porque a reação gerada pelo assalto é a base de sua re-
completamente transformadas. Para explicar isto, não basta o sistência orgânica. Deslocar o ritmo compensado das relações e
mecanismo da osmose. O alimento digerido todo junto, depois permutas que se estabeleceram nos milênios, significa o nasci-
de haver atravessado a grande sala das desinfecções que é o es- mento de novas doenças; é transformação, e não solução, do
tômago, em contato com as vilosidades do intestino no tubo di- problema. Em vista das concepções limitadas de uma ciência uti-
gestivo, passa através das paredes deste para os vasos sanguí- litária, que disso fez seu objetivo principal, nasceu a ilusão de
neos. Nesse processo de diálise, a substância absorvida muda que é possível suprimir a luta, isso em todos os campos, inclusive
sua natureza química. O processo é tão delicado e em relação no moral (a dor), como se o esforço da vida fosse uma imperfei-
tão direta com o sistema nervoso e psíquico central, que uma ção que deve ser superada, e não um fator fecundo, necessário,
impressão o altera. Isso é fato da experiência comum. Depois substancialmente colocado no funcionamento orgânico do uni-
há a viagem do sangue para a distribuição do alimento absorvi- verso. Só uma coisa pode justificar tudo isso: a transferência do
do, ligando todas as partes num banho de vida. Com a respira- campo de luta para um plano mais alto. A supressão de um esfor-
ção, o ar cede ao organismo seu oxigênio e, com ele, a potência ço e sua respectiva conquista só são justificados pela sua substi-
de um raio de sol; o sangue, então, o absorve para levá-lo a tuição por um esforço mais elevado, dirigido a conquistas superi-
queimar-se e consumir-se lá nas profundidades do dinamismo ores. De fato, assim ocorre. A luta física e orgânica está se trans-
celular dos tecidos e dos órgãos, para depois ressurgir em seu formando em luta nervosa e psíquica.
psiquismo. Que laboratório químico! Nele, a cada instante res- A medicina devia ter em grande consideração o fator psíqui-
tabelece-se o equilíbrio. Por sístoles e diástoles, vai e volta o co, não apenas no campo específico da psicoterapia, mas como
impulso da vida, circula o suco energético reconstrutor; a cada fator de importância decisiva em todos os casos e em todos os
instante, ferve o trabalho reparador da permuta; multidões de momentos. O materialismo imperante, absorvido apenas pela vi-
esquizomicetos viajam e param, aninham-se e acorrem, fazem são do lado material da vida, não podia vê-la em seu aspecto
paz ou guerra, levando saúde ou ruína. mais profundo: o espiritual. Ele, sem dúvida, produziu e criou,
Por meio desse refinamento evolutivo, que culmina no espíri- mas agora é necessário ultrapassar esse tipo de ciência. No entan-
to, ao lado da progressiva desmaterialização das formas, o futuro to ainda subsiste aquela psicologia, que, por inércia dos centros
conduz à preponderância transbordante do psiquismo e vos pre- de cultura, influencia o pensamento oficial que fala das cátedras
para um banquete energético extraído de um raio de sol. Sem luta do mundo civil. Está na hora de continuar o caminho percorrido
nem assassinatos, repousareis saciados de eflúvios solares, ab- até aqui pela ciência materialista, mas com uma ciência espiritua-
sorvendo diretamente seu dinamismo. Isto acontece em planetas lista. O espírito, como vedes, não é fenômeno abstrato, isolado
mais evoluídos que o vosso, mas, para vós, constitui um futuro ou isolável, relegável ao campo da ética e da fé, mas invade to-
ainda distante. Estômago e sangue formaram-se em vós, como dos os fenômenos biológicos e, por isso, é fundamental em fisio-
são agora, através de idades incalculáveis e, portanto, oferecem logia, patologia e terapia. O vibrante dinamismo vital está todo
uma resistência proporcional para se manter em sua linha atávica permeado dele. Menos anatomismo, pois, e mais psiquismo, e es-
de funcionamento. Nem mesmo a venenosa síntese artificial das te não apenas invocado no estudo das neuroses, mas mantido
substâncias alimentares é própria para vos libertar do animalesco sempre presente em toda a disciplina médica. O fator moral é
circuito da química intestinal. Tampouco a introdução direta dos importante e, se descuidado, pode, mais do que a falta de cui-
princípios nutritivos no sangue é trabalho adequado para vossa dados materiais, deixar morrer o doente. Aos hospitais destes
medicina de superfície, grosseira e violenta. ar, luz, higiene, limpeza. No entanto sua frieza provoca calafri-
os. Pensai que, nesses lugares de dor, não há apenas o corpo de
LXXI. O FATOR PSÍQUICO NA TERAPIA um animal, mas, sobretudo, a alma de um homem. Há mais ne-
cessidade de flores, de música, de palavras sinceras e afetuosas
Este quadro de equilíbrios íntimos nos abre a porta para al- e, sobretudo, de bondade do que de análises microscópicas e
gumas observações de caráter terapêutico, antes de tudo no radioscópicas, de esterilizantes e de ostentação de ciência. O es-
campo bacteriológico. Vós exagerais na antissepsia, no sentido tado de alma, sobre o qual repousa o segredo do metabolismo e,
profilático. O organismo humano é formado e sempre viveu portanto, da cura, é desprezado. Mesmo em matéria de infec-
num mar de micro-organismos patogênicos, tanto que a assep- ção, o espírito influi, muitas vezes, mais do que a esterilização
sia, ou estado asséptico, na natureza, é condição anormal. Ora, do ambiente. Vede que o equilíbrio orgânico é mera conse-
a imunidade é produzida pelo equilíbrio obtido pelas resistên- quência do equilíbrio psíquico, com o qual mantém estreita re-
cias orgânicas. Em intermináveis períodos de evolução, estabi- lação, pois é o estado nervoso que determina e guia as correntes
lizou-se esse equilíbrio entre ataque e defesa. Ao matar o mi- elétricas, as quais presidem à contínua reconstrução química e
cróbio, perturbais o equilíbrio da vida, em que também o inimi- energética do organismo. Se elas tomam uma direção diferente,
go tem sua tarefa, colocando-vos em condições anormais; cabe- na qual a corrente positiva, ativa e benéfica, inverte-se numa
vos, e deveis defender e manter tal equilíbrio. Sabeis que a fun- corrente negativa, passiva e maléfica, substituindo um estado
ção cria a capacidade. Ao suprimir a luta, suprimis também psíquico de confiança e de bondade por outro de depressão e
aquele contínuo excitador de reações que é o assalto dos micró- má vontade, então, em lugar de saúde, o impulso gerará doença;
bios; ganhais uma saúde no presente, levantada a crédito sobre em lugar de desenvolvimento, regresso; em lugar de alimento,
a saúde do futuro, uma vitória fictícia, obtida à custa da resis- intoxicação; em lugar de vida, morte.
tência orgânica, porque, por lei natural, o organismo perderá, Essa alma misteriosa, que permeia tudo, emergirá futura-
por falta de uso, suas capacidades defensivas, tornando-se im- mente da sombra como um gigante; a ciência determinará sua
potente para defender sua vida. É evidente que a proteção arti- anatomia, seu funcionamento, sua evolução. A nova medicina
ficial, atrofiando a capacidade de defesa, age em prejuízo da se- levará para os primeiros planos o fator psíquico e não mais,
leção. Já foi verificado que, quanto mais se dá remédios, quer como agora, enfrentará o estado patológico com meios coativos
às plantas, quer aos animais, mais cresce o número de suas en- mais ou menos violentos. A correção do estado anormal, a reti-
fermidades (saprofitismo). A luta forma e mantém a resistência ficação do funcionamento arrítmico não são conseguidas ape-
orgânica, prêmio de infinitas quedas e esforços. Os equilíbrios nas agindo do exterior, tentando adentrar pelo organismo com
da natureza são profundos, e perturbá-los produz novos dese- meios físico-químicos, mas sim procurando penetrar em seu
quilíbrios. No choque constante dos contrários produz-se uma íntimo transformismo, secundando as vias naturais do psiquis-
estabilidade, um acordo, uma espécie de simbiose, útil, no fim mo, dominador das funções. Esta correção, então, não será mais
das contas, a ambas as partes. O inimigo torna-se necessário ao um choque brutal devido à introdução de compostos químicos,
88 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
muitas vezes de reações antivitais, mas sim uma corrente que se Permanecendo ainda no campo orgânico, também vimos
fundirá na correnteza da vida; será dinamismo benéfico, que re- que cada assalto patogênico superado produz, como reação, a
tificará o dinamismo desviado. Administrando substâncias, não capacidade de resistência, fortalecendo toda a estrutura das
podeis saber que condições químicas antitéticas elas possam defesas orgânicas. Neste caso, a doença tem função imuniza-
encontrar, que reações diferentes possam excitar nas tão diver- dora e, em contraste e por compensação, traz em si as condi-
sas condições orgânicas dos indivíduos. Há atrações e repul- ções de vitória e de autoeliminação do patológico. Neste sen-
sões, limites de tolerância totalmente pessoais. Prudência com tido, a doença é condição de saúde, pois que excita a constru-
essa química violenta e igual para todos! ção de todas as resistências orgânicas. Estas, que vos defen-
Um caminho mais pacífico para penetrar na corrente vital é dem sem o saberdes, são o resultado de inúmeras vitórias e lu-
o caminho psíquico. O funcionamento orgânico obedece àquela tas superadas; são o fruto de vosso esforço, duramente con-
instintiva sabedoria que, em longuíssimas experiências, fixou- quistado ao longo do caminho da evolução.
se no subconsciente. Este se fraciona em várias almas menores, Mas existem outras compensações do patológico em outros
instintivas, que executam, sem o saberdes, o trabalho específico campos, porque tudo está interligado no universo. Sempre por
de cada órgão. A consciência pode, por via sugestiva, dar-lhes motivo de compensação, uma imperfeição e um sofrimento fí-
ordens, e elas serão executadas, como por um animal domesti- sico podem ter uma repercussão criadora no campo moral, de-
cado. O caso do trauma psíquico vos demonstra a realidade terminando um estado de tensão e excitando uma reação que se
dessas influências. Aí está como, pelas vias psíquicas, podem manifesta como explosão de força no nível psíquico. Aqui rea-
ser abertas ou fechadas as portas aos assaltos patogênicos, ati- parece a função criadora da dor. Sua ação tenaz e penetrante
vando ou paralisando as defesas orgânicas. Assim, não se ma- não pode deixar de despertar ressonâncias no âmago daquele
tam os micróbios, mas se reforçam as resistências, e são obtidos psiquismo, sempre comunicante com as formas orgânicas, onde
resultados que superam os da mais escrupulosa assepsia, pois a grava marcas indeléveis. Portanto, se a dor, muitas vezes, não é
patogênese não depende tanto das condições ambientais quanto bastante para, de inopino, construir a grandeza de uma alma,
da vulnerabilidade específica individual, que predispõe à doen- quase sempre a faz acordar, revelando e potencializando ao
ça e na qual influi largamente o estado psíquico. máximo todos os seus valores, e se torna, depois de muito tem-
po, escola de ascensão. Se, nas almas fracas, por vezes, a dor se
LXXII. A FUNÇÃO BIOLÓGICA DO PATOLÓGICO resolve numa adaptação passiva, muitas vezes acende lumino-
sidades novas no espírito; então, pode-se falar verdadeiramente
A visão desses equilíbrios maravilhosos nos leva ao concei- de função criadora do patológico. Grande ciência esta de saber
to da função biológica do patológico. Pergunta-se: a doença é, sofrer, que só possuem os homens e os povos que viveram mui-
de fato, um estado anormal e sempre uma queda orgânica, ou to, pois significa uma resistência às adversidades que os jovens
compensa-se no equilíbrio universal e assume uma função bio- não possuem. Observai o fenômeno do patológico até às suas
lógica não apenas protetora, mas realmente criadora? últimas repercussões e o vereis, às vezes, arrancar das almas
Inegavelmente, em muitos casos, o patológico pode, com a humanas os gritos mais sublimes e as maiores criações. Muitas
adaptação, tornar-se um estado habitual do organismo, que vezes, um defeito físico, ao fechar para a alma o contato com o
acaba com ele convivendo normalmente. De fato, o estado or- mundo exterior, preparou-lhe os caminhos da profunda intros-
gânico perfeito é uma abstração inexistente na realidade. Na pecção de si mesma, mantendo sempre desperto o espírito,
natureza não existe um tipo orgânico perfeito, uma verdade submetendo-o a uma ginástica que o torna gigante. Muitas al-
orgânica igual para todos, uma normalidade que seja termo de mas saíram purificadas da maceração de um corpo doente. Um
referência do valor fisiológico individual; antes, cada um tem mal físico pode ser a prova imposta pelo destino no caminho
seu tipo, possui uma verdade orgânica própria e, desde que das grandes ascensões humanas. Convido a ciência a explicar
saiba lutar e vencer, supera todos os outros. Na natureza, a como uma doença, uma deficiência orgânica, pode dar tanta
perfeição é uma tendência jamais alcançada; a saúde é um es- força ao espírito, tanta fecundidade ao pensamento, tanta saúde
tado que se deve conquistar a cada momento, um equilíbrio e potencialidade à personalidade; como, em outras palavras, o
que se mantém à custa de um trabalho contínuo. Em realidade, patológico pode, muitas vezes, conter o supranormal.
cada organismo tem seu ponto fraco, de maior vulnerabilidade
e de menor resistência. Assim, o patológico acabou equili- LXXIII. FISIOLOGIA SUPRANORMAL.
brando-se como um fato mais ou menos constante na norma- HEREDITARIEDADE FISIOLÓGICA E
lidade do mundo orgânico, que nem por isso se abate, mas le- HEREDITARIEDADE PSÍQUICA
va consigo, como força já aceita em seu equilíbrio, um seu la-
do de sombra. Com o número, a natureza compensa-se das di- Somente estes conceitos de vida psíquica podem guiar a ci-
ferenças, completa suas imperfeições misturando sempre os ência até às portas de uma ultrafisiologia, ou fisiologia do su-
seus tipos, que, quanto mais diversos forem, melhor contraba- pranormal, como a vedes despontar nos fenômenos mediúnicos.
lançarão qualidades e defeitos na reprodução. Estais aqui di- Aqui, as relações entre matéria e espírito são imediatas; o psi-
ante da mesma lei pela qual o mal condiciona o bem e a dor quismo modela uma matéria protoplasmática mais evoluída e
condiciona a alegria; do mesmo claro-escuro de contrastes en- sutil: o ectoplasma. A nova construção – antecipação evolutiva
tre os quais se move e equilibra o mundo orgânico, bem como – não possui, naturalmente, a resistência das formas que se es-
o mundo ético, o sensório e o psíquico. tabilizaram por uma vida longa, e seu desfazimento é rápido.
Mas existe outro fato ainda. O mundo orgânico não se habi- As estradas novas e de exceção ainda são anormais e inseguras.
tuou a apenas arrastar normalmente o peso de sua imperfeição, Os produtos da fisiologia supranormal que emergem dos cami-
nem somente nisto se constitui a lei de equilíbrio. Essa lei opõe, nhos habituais da evolução necessitam fixar-se, por tentativas e
por espontânea compensação, a cada ponto de maior fraqueza um prolongadas repetições, na forma estável. Tudo isso vos lembra
ponto de maior força; a cada vulnerabilidade específica, uma re- o raio globular, retorno atávico de um passado superado. O ec-
sistência própria. A natureza sente o ponto ameaçado e o cerca, toplasma, ao invés, é um pressentimento do futuro, corresponde
reforçando-o com todos os seus outros recursos, desenvolvendo àquele processo de desmaterialização da matéria de que falamos.
órgãos e sentidos em proporção maior que a média. Então, não A matéria química do ectoplasma corresponde a uma avançada
vos alarmeis de qualquer ponto fraco, porque ele pode, por com- desmobilização dos sistemas atômicos em movimentos vorti-
pensação, representar uma força. cosos, ao longo da escala de elementos, na direção dos pesos a-
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 89
tômicos máximos. O fósforo (peso atômico 31), corpo sucedâ- pelo menos? Os caracteres distintivos da personalidade exorbi-
neo, aceito apenas em doses moderadas no círculo da vida orgâ- tam de cada hereditariedade, à qual vedes que estão confiadas
nica, é tomado aqui, no avançado movimento vorticoso, como mais as afinidades orgânicas que as psíquicas. Vimos a gênese
corpo fundamental, ao lado do H (1), C (12), N (14) e O (16). A do psiquismo, a formação do instinto e da consciência, proble-
plástica da matéria orgânica, por obra do psiquismo central dire- mas insolúveis de outra forma. Por que essas profundas desi-
tor, torna-se cada vez mais imediata e evidente. Tudo isso vos gualdades, inatas e indestrutíveis no indivíduo, qualidades pró-
explica a estrutura falha de muitas materializações espíritas, que prias indelevelmente estampadas em sua face psíquica interior?
suprem a incompleta formação de partes com massas uniformes Não vos revelam elas todo um caminho percorrido? Um passa-
de substância ectoplasmática, com aparência de panos ou véus. do vivido, que não se pode anular nem calar, ressurge e grita:
Tudo revela a tentativa, o esforço, a imperfeição do que é novo. tal qual fui, tal sou. De tudo isso depende um destino de alegria
Isso vos faz compreender como o desenvolvimento do organismo ou dor, que demonstra um direito ou uma condenação. Uma
até à forma adulta, seja apenas uma construção ideoplástica, rea- criação nova, a partir do nada, teria que formar, por justiça di-
lizada pelo psiquismo central através dos velhos e seguros cami- vina, almas e destinos iguais. Não permitais que tantas conde-
nhos tradicionais percorridos pela evolução. nações dolorosas – permitidas por Deus conforme a justiça,
A rede de fatos e concomitâncias restringe-se cada vez mais pois desejadas pelo ser livre e responsável – recaiam sobre a
em torno deste inegável psiquismo. Só ele vos dá a chave do Divindade, como acusação de injustiça ou de inconsciência.
fenômeno da hereditariedade14. Fenômeno inexplicável se Quantos absurdos éticos diante de uma alma, à qual, ao invés,
olhado apenas em seu aspecto orgânico, como o faz a ciência. deveria ensinar-se a subir moralmente!
Para ser compreendido, tem que completar-se com o conceito Não estabeleçais, para o homem, exceção na lei cíclica que
de uma hereditariedade psíquica. Como podem os órgãos, su- rege todos os fenômenos. Um rio não pode criar-se sem a fonte,
jeitos a contínua renovação, até um final e definitivo desfazi- e, se esta não fosse sempre realimentada pelo mar, por meio da
mento, conservar indefinidamente características estruturais e evaporação e das chuvas, não haveria bastante água para formar
transmitir aptidões pré-natais a outros organismos? Os registros seu eterno fluxo. Não crieis desproporções entre um átimo, qual
no instinto – sobretudo os mais importantes – ocorrem depois do vossa vida, e uma eternidade de consequências. Sabeis acaso o
período juvenil da reprodução, no indivíduo adulto e, por vezes, que é uma eternidade? É absurda, inconcebível, uma tão des-
justamente na velhice (a máxima maturidade psíquica). Como comunal desproporção entre causa e efeito. Só não pode morrer
poderiam, numa natureza tão previdente e econômica, ser perdi- o que não nasceu; só pode sobreviver na eternidade o que não
das justamente as melhores ocasiões? Não indicaria tudo isto que teve princípio. Se admitirdes um ponto de partida, tereis que
a hereditariedade segue outros caminhos, os psíquicos, pelos aceitar um equivalente ponto de chegada; se a alma nasce com
quais o produto recolhido é confiado à sobrevivência do princípio o corpo, tem que morrer com o corpo. Esta lógica nos leva ao
espiritual, em preferência aos dos caminhos orgânicos da repro- mais desesperador materialismo.
dução? Não vimos que esse era o nó que amarrava, numa expli- Não acrediteis, como tantas vezes o fazeis em vossas ilu-
cação única, todos os fenômenos do instinto, da consciência, da sões, que prêmio ou castigo, alegria ou dor, na eternidade da
evolução psíquica? Quem, senão o espírito imortal, pode manter divina justiça, possam ser usurpados, como é de costume em
o fio condutor que, através de um contínuo nascer e morrer de vosso mundo. Tudo obedece a uma lei fatal de causalidade,
formas, dirige o desenvolvimento da evolução? Que fio, senão uma lei íntima, invisível e inviolável, contra a qual nada pode a
esse, saberia atingir as superiores construções da ética? astúcia nem a prepotência. É lei matemática, exato cálculo de
Esse conceito de hereditariedade psíquica conduz à conclu- forças. Não há possibilidade de violação em tão férrea engrena-
são inevitável, já agora preparada por muitos fatos para poder gem de fenômenos. Ninguém escapa às consequências de suas
ser negada, da sobrevivência de um princípio psíquico depois ações; o bem ou o mal que se pratica, para si mesmo é pratica-
da morte, isso tanto no homem como, de forma diferente, nos do. Antes da hereditariedade orgânica existe a hereditariedade
seres inferiores, que, embora irmãos menores, não foram deser- psíquica. Esta comanda aquela, resume todas as vossas obras e
dados pela justiça divina dos direitos da sobrevivência. Se o determina vosso destino. Deus é justo, sempre. Não podeis cul-
psiquismo já foi demonstrado como parte integrante dos fe- par ninguém. Em qualquer caso, é absurdo amaldiçoar. Em ca-
nômenos biológicos – como princípio ao qual são confiados da átimo, é feito o balanço exato entre o dever e o haver, como
os últimos produtos da vida e a continuidade do transformis- culpas e méritos, castigos e alegrias; a dor é sempre uma bên-
mo evolutivo, e como unidade diretora de todas as suas for- ção de Deus, porque, se não resgata, não purifica ou não paga o
mas sucessivas – é óbvio admitir que ele, tal como sobrevive débito, sempre constrói, pois acumula crédito. É a lei da vida,
à morte orgânica, deva preexistir ao nascimento. Esse equilí- oculta, inatingível, sempre presente e sábia.
brio de momentos contrários é necessário na harmonia de to- Caem vossas barreiras e as defesas que ergueis em favor da
dos os fenômenos. Na indestrutibilidade da substância, já de- injustiça. A justiça é a lei profunda que vos acompanha e sem-
monstrada em todos os campos, tudo é continuação e retorno pre vos encontra na eternidade. Quantos dramas nestas pala-
cíclico. O universo não pode ser arrítmico em nenhum ponto, vras! Acima do parentesco de corpos, há um parentesco mais
em nenhum momento. Resulta, pois, absurdo o conceito de profundo com o vosso passado e com vossas obras, que ressur-
uma Divindade submetida à dependência de dois seres, cuja gem em redor de vós, vos assediam, vos erguem ou vos abatem.
união deva aguardar para ser obrigada, quando eles o queiram, Sois exatamente como vos construís; possuís, aparentemente
ao trabalho da criação de uma alma. Não se pode conceder à concedidas pela natureza, as armas que vós mesmos fabricastes
criatura tal poder de decisão. No tempo ilimitado, que acúmu- para vós; com elas enfrentais a vida e, com elas, tereis de ven-
lo de unidades espirituais através da vida! Onde se completa- cer. Movimentastes as causas que agora agem dentro e fora de
ria o ciclo e se restabeleceria o equilíbrio? vós. O presente é filho do passado; o futuro é filho do presente.
A própria hereditariedade vos oferece fenômenos doutro Não culpeis ninguém. A gênese de uma vida não pode ser o
modo inexplicáveis. Sem este conceito, tudo se torna incom- efeito de um egoísmo a dois, que agem em dano de um terceiro,
preensível e ilógico; com ele, tudo fica claro, justo, natural. impossibilitado de dar opinião. Como podeis acreditar que uma
Por vezes, os filhos superam os pais; os gênios nascem quase vida de alegria ou dor, da qual dependeria a fixação de um es-
sempre de ancestrais medíocres. Como poderia o mais ser gerado tado definitivo por toda a eternidade, fosse deixada à mercê de
um fato acidental, realizado sem consciência de suas conse-
14 quências? Um fato tão substancial como é a vida e a dor de um
O problema da hereditariedade foi desenvolvido no volume A Nova
Civilização do Terceiro Milênio (Cap. 27 e 28). homem, num organismo universal em que tudo é tão exato e jus-
90 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
tamente determinado e previsto, como pode ser abandonado lhosas formas de beleza e, depois, as deixa murchar e morrer,
assim, fora da Lei, no momento decisivo de sua gênese, que porque logo sabe refazê-las e refaz outras mais belas ainda,
tem efeitos colossais? Não vedes o absurdo desse conceito? numa infinita prodigalidade de germes.
Como podeis crer que na imensa ordem soberana possa haver A morte absolutamente não prejudica o princípio da vida,
lugar para a loucura e a maldição, para a inconsciência e para que permanece intacto e até continuamente rejuvenescido com
a usurpação, e possam ser semeadas, assim ao acaso, por ir- esse renovar-se constante através dela. Se a natureza não teme
responsáveis as causas da dor? nem evita a morte, é porque esta é condição de vida, e, com is-
Não sentis que vossa personalidade grita “eu”, acima de so, nada se desperdiça da essência de sua economia. A natureza
qualquer vínculo e afinidade? A hereditariedade é, acima de tudo, sabe que a substância é indestrutível; que nada jamais pode se
psíquica; é de vós mesmos, individual, preparada por vós e assim perder, nem como quantidade, nem como qualidade. Sabe que
desejada. A hereditariedade fisiológica é uma hereditariedade se- tudo ressurge da morte: ressurge o corpo no ciclo das trocas or-
cundária, dependente daquela, de consequências limitadas, por- gânicas, ressurge o espírito no psiquismo diretor.
que inerentes a um organismo que, para vós, é apenas o veículo Que é, afinal, a morte? Que é essa estanha evaporação de
da viagem terrena, que amanhã abandonareis. O parentesco fami- consciência, pela qual, num átimo, o organismo passa do movi-
liar é parentesco orgânico, de formas, de tipos; nesse vaso desceu mento à imobilidade, da sensibilidade à passividade inerte?
vosso espírito, não por acaso, mas por lei de afinidade. A fusão é Olhais assustados aquele corpo morto e em vão lhe pedis que
completa numa unidade que, mesmo conservando os caracteres torne a dar à vossa sensação a centelha da vida apagada. No en-
da raça e da família, muitas vezes os transcende, inconfundivel- tanto, no primeiro momento, a matéria está toda ali, ainda intacta;
mente, como personalidade psíquica. Vêm daí as semelhanças e, lá estão todos os órgãos, os tecidos, a forma; a máquina repousa
ao mesmo tempo, tantas diferenças. Os genitores vos dão o ger- completa. Falta-lhe apenas a vontade do conjunto, o psiquismo
me da vida física; protegem-lhe o desenvolvimento, paralelamen- diretor; falta-lhe o poder central; e a sociedade, então, apressa-se
te ao da vida psíquica, descida do céu e confiada a eles. Respeitai a dissolver-se, como um exército que perdeu o chefe, onde cada
e amai seu grande trabalho. Nas horas frágeis da juventude, vossa soldado pensa somente em si mesmo, buscando reunir-se a outros
alma eterna está em suas mãos. E tremei vós se sois os genitores, exércitos, onde quer que os encontre. O esplêndido edifício desa-
ao refletir que sois escolhidos como colaboradores no trabalho ba, e outros construtores vizinhos, pouco importa se menos há-
divino da construção de almas. beis, correm para recolher material para seus edifícios. Tudo é
Se a vida psíquica não é filha direta dos pais, tem parentesco logo retomado em novo circuito, reutilizado, e revive ao sol. Na-
com eles pelas vias da afinidade, que a chama e atrai para deter- da jamais pode morrer. Apenas a unidade coletiva se dissolve nas
minado ambiente. Nada é confiado ao acaso. Muitas vezes, a al- unidades menores componentes.
ma escolhe o lugar e o tempo, prevendo as provas que tem que Ocorre, portanto, a separação do psiquismo, e o estado da
vencer, mas, quando ainda não atingiu essa consciência e ainda matéria sofre uma profunda mudança. Acontece nesse fenô-
não sabe ser livre, então seu peso específico – que resulta do grau meno algo que vos relembra outras mudanças de estado mais
de sua destilação espiritual – as atrações e repulsões pelas coisas simples, como a passagem da matéria do estado gasoso ao es-
da Terra e a natureza do tipo que constituiu guiam-na, automati- tado líquido e depois ao sólido. Existe perda de mobilidade e
camente, para um espontâneo equilíbrio de forças em seu ele- liberação de energia. Nada se destrói na natureza, e também a
mento, único no qual pode viver e trabalhar, do mesmo modo morte “deve”, por lei universal, restituir intacto o psiquismo
que tudo se equilibra no universo, do átomo às estrelas. que, naquele corpo, já agora inutilmente procurais encontrar.
Não importa que o fenômeno se oculte no imponderável, es-
LXXIV. O CICLO DA EVOLUÇÃO E DA MORTE capando diante de vossos sentidos e meios de observação.
E SUA EVOLUÇÃO Não há mais ali o psiquismo animador que havia antes. Todo
o universo, obedecendo constantemente à sua lei, vos grita:
Essa hereditariedade psíquica é a base, com significado e aquele psiquismo não pode ter sido destruído. A cada mo-
função fundamentais, do alternado ciclo da vida e da morte. Na mento, vedes renascer esse princípio, como do mar renascem
evolução darwiniana, vistes apenas a progressão das formas or- as chuvas que aí caíram; renasce cheio de instintos, proporci-
gânicas. Inevitavelmente esbarraríeis neste último efeito do onado ao ambiente, individuado como era quando o corpo
psiquismo, mas ele, como íntima causa determinante, permane- morreu. Na morte, o vedes desaparecer; no nascimento, reapa-
ceu na sombra para vós. Dessa maneira, escapou-vos o fio con- recer. Como seria possível que o ciclo, como acontece em to-
dutor de todo o processo: o acúmulo dos valores psíquicos, e, das as coisas, não se fechasse, unindo seus extremos? Assim
assim, a manutenção em linha de continuidade de tantos fenô- como o que não morre não pode ter nascido, também o que
menos constantemente interrompidos pela morte tornou-se um existia antes do nascimento não pode morrer. O que não nas-
mistério para vós. Não são as formas que evoluem, mas sim o ceu com a vida, não morre com a morte.
princípio espiritual, que as plasma, delas é a causa e possui o A lógica do universo, a voz de todos os fenômenos, unani-
poder indestrutível de reconstruí-las sempre. memente vos leva a esta conclusão: se, como foi demonstrado,
Se a natureza conserva uma indiferença suprema diante da apesar de mudar de forma, a substância é indestrutível e se a
morte, é porque esta nada destrói substancialmente, tanto as- existência de um princípio psíquico é evidente, este tem de ser
sim que, apesar das contínuas mortes, a vida prossegue triun- imortal, e imortalidade só pode ser eternidade, equilíbrio entre
fante: nada é destruído, nem como matéria nem como espírito. passado e futuro, ou seja, reencarnação. Se tudo o que existe é
A matéria abandonada torna a descer a um nível inferior e é eterno, vós, que existis, sois eternos. Nenhuma coisa pode jamais
retomada num ciclo mais baixo de vida; o psiquismo reassu- ser anulada. Não há lei ou autoridade humana que possa destruir
me seu dinamismo, reúne os valores espirituais e sobe, imate- a lógica e a evidência dos fenômenos. Sobrevivência do espírito é
rial e invisível, para equilibrar-se em seu próprio nível, de sinônimo de reencarnação. Ou se renuncia a compreender o uni-
acordo com seu peso específico. Assim como a natureza pinta verso, como faz o materialismo, ou se admite um plano, uma or-
os mais maravilhosos quadros com luz e cores harmoniosas e dem e um equilíbrio, como vos afirmam todos os fatos, sendo en-
depois, despreocupadamente, deixa-os desvanecer-se, pois, tão necessário acompanhar-lhe a lógica até às últimas conse-
sendo rica de beleza, sabe reconstruí-los mais belos ainda, as- quências (não é possível parar na metade). Vida e morte são dois
sim também a vida, com a química do plasma, com suas forças contrários que se compensam, dois impulsos que garantem o
íntimas, com a sabedoria do psiquismo, modela as mais maravi- equilíbrio, duas fases complementares do mesmo ciclo.
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 91
Desaparecerá o espírito na indistinção de um grande reser- das a sorte e o porvir de vosso futuro estado pessoal, é, portan-
vatório anímico amorfo? Absurdo. Vedes que esse princípio to, fenômeno biológico e torna-se fenômeno que toca direta-
não reaparece amorfo, mas com qualidades já prontas, porque mente à ciência e ao interesse individual e social.
se desenvolvem rapidamente, isto é, as mesmas qualidades de A morte se reduz, assim, a um “momento” da permuta
instinto, consciência e personalidade com que o vistes desapa- orgânica da vida, e o problema da sobrevivência, enquadra-
recer. A unidade reconstruída assemelha-se demais à unidade do dessa maneira, na perspectiva do funcionamento orgânico
destruída para que alguém possa dizer que não é a mesma. Só do universo, não pode apresentar outra solução senão em
assim podeis explicar a presciência do instinto, a gratuidade de sentido afirmativo.
seu conhecimento, aquele surgir de capacidades inatas, sem Observai o íntimo dinamismo do fenômeno. A vida represen-
uma aparente formação precedente. Como poderiam os instin- ta a fase de atividade do transformismo dinâmico-psíquico; a
tos, o destino, a personalidade nascerem do nada, tão diferentes morte, a fase de repouso. Vimos o complexo mecanismo que,
e definidos, fora da lei universal de causalidade? Eles são o através da vida, ocorre nessa passagem da fase  à fase . Pri-
passado, que, em virtude dessa mesma lei, renasce sempre e meiro, a gênese dos movimentos vorticosos no sistema planetário
jamais poderá ser destruído por morte nenhuma. É absurdo e atômico, por ação do trem eletrônico da onda dinâmica degrada-
impossível um contínuo construir-se e desintegrar-se de perso- da, e, com isso, a formação da máquina vital em seu complexo
nalidades, uma passagem do ser ao não-ser, em que se quebra- quimismo. É a gênese do plasma, a matéria viva. Depois, vimos
ria a cadeia de causalidades que prepara tudo e tudo conserva. seu desenvolvimento da planta ao homem; sua organização em
Além disso, tudo está individuado, tudo grita “eu” no universo. formas cada vez mais complexas. Definimos o circuito da ener-
Não existem esses mares de inércia, essas zonas de vazio; en- gia, através das contínuas permutas de material orgânico, desde a
fim, a evolução não retrocede, não aniquila jamais e defende, matéria solar e suas radiações à planta plasmódoma (assimilação
como a coisa mais preciosa, os produtos de tantos esforços do carbono), ao animal plasmófago, até ao alto psiquismo huma-
seus. Uma unidade coletiva tão complexa, como é a individua- no. Finalmente, vimos, como resultado último de todo esse com-
lidade humana, constitui o produto mais alto da vida e resume plexo funcionamento de materiais químicos e de energia através
os resultados do maior trabalho da evolução. Seria possível que da máquina da vida, o desenvolvimento do psiquismo em suas
esta, em sua rigorosa economia, permitisse a dispersão de seus fases de instinto, consciência e superconsciência.
maiores valores? Ademais, por que o testemunho de vossos Assim o espírito se constrói através da vida. Na morte,
sentidos falazes deveriam ter mais força que vosso instinto, que esse trabalho se interrompe, para ser retomado mais tarde e
diz: “eu sou imortal”? As religiões, os fenômenos mediúnicos, continuado. A vida produziu o psiquismo por meio de uma
a lógica dos fatos, a voz concorde de toda a humanidade e de corrente de metabolismo químico. Naquele processo de
todos os tempos vos dizem: “Sois imortais”. desmaterialização a que aludimos, o vórtice eletrônico se in-
O psiquismo individual sobrevive nas plantas, nos animais, troduziu cada vez mais profundamente na matéria, deslocan-
no homem. O desenvolvimento embriológico, que repete e re- do o equilíbrio íntimo de suas trajetórias e sua figura cinéti-
sume todo o passado vivido, demonstra que, na vida, o princí- ca; a energia, degradada ao máximo, sem destruir-se, passou
pio é sempre o mesmo na continuação de sua obra. Essa sobre- através de todas essas mudanças, e, de passagem em passa-
vivência indestrutível do passado no presente, que garante a gem, a encontrais em seu último termo na escala da evolu-
continuidade da evolução, vos demonstra também uma identi- ção: o psiquismo. Aqui,  torna-se .
dade constante do princípio de ação. O psiquismo sobrevive e o Na morte, então, ocorre o isolamento, a separação do prin-
faz com o grau de consciência já conquistado, que pode subsis- cípio mais alto de todos os princípios componentes subjacentes;
tir no estado imaterial incorpóreo. aquele princípio separa-se dos princípios inferiores que ele ha-
A morte não é igual para todos. É sim, no corpo, mas não via chamado para colaborar com seu trabalho de evolução. A
no espírito. Nos seres inferiores – incluindo o homem nos pri- química mais alta da vida é deixada descer para formas mais
meiros degraus de sua evolução – o centro perde a consciência simples; a energia não elaborada em psiquismo é restituída às
e apressa-se a reencontrá-la, arrastado pela corrente das forças correntes ambientais; os instrumentos de trabalho, tomados por
da vida, em novos organismos. O grande mar tem suas marés e, empréstimo aos planos inferiores da matéria e da energia, são
ininterruptamente, impele os princípios nas ondas do tempo, no jogados fora para que outrem os recolha. Completada a síntese
alternado ciclo de vida e de morte, porque esse é o caminho pa- da obra, o resultado e o valor da vida concentram-se no âmago
ra subir. A evolução é uma força premente. Na natureza do di- dos movimentos vorticosos, na íntima estrutura cinética da
namismo daquele princípio animador está a aspiração a sempre substância, que os memoriza, conservando cada traço, e os res-
novas expressões e mais elevadas realizações. Essa perda tem- tituirá no futuro. O ser volta-se sobre si mesmo, e tudo sobrevi-
porária de consciência, nos seres inferiores, pode dar-lhes a ve no vórtice mais íntimo; eis a técnica do germe. Depois, a fa-
sensação daquele fim que o materialismo defende: sensação, se de concentração se inverterá na de descentralização, que é o
não realidade. Mas, nos homens mais evoluídos, que entra- processo da vida. Assim, oscilando alternadamente da periferia
ram na fase  propriamente dita, a do espírito, a consciência ao centro, da ação à experiência, da matéria ao espírito, o ser
não se extingue, mas lembra, observa, prevê e, depois, escolhe percorre a dupla respiração de que se nutre a evolução: subi-
as provas com conhecimento. A consciência é conquista, é da, descida; reconstrução, dissolução. Na morte, o anjo se des-
prêmio aos imensos esforços. No ambiente imaterial pode taca de seu pedestal e está livre. Voltará depois a apoiar-se na
subsistir no homem tudo o que nele é imaterial: aquela parte Terra, a engolfar-se nos ciclos densos da matéria, únicos que
que foi pensamento elevado, sentimento não preso às formas. propiciam resistência e luta (prova), para adquirir nova experi-
Tudo o que é baixo é trevas; no alto estão a luz e a liberdade. ência, para retemperar as próprias energias, para aprofundar o
Mas, por meio de sua luta diuturna para refinar a matéria, de íntimo movimento para o centro e, por meio das provas, tornar
maneira que possa expressar cada vez mais transparentemente mais complexa sua íntima estrutura cinética. Mas, a cada sepa-
o espírito, a evolução vos eleva cada vez mais acima daquela ração, o caminho percorrido é mais longo, e mais evoluída é a
morte que mais vos espanta, a treva da consciência, e vai matéria plasmada. A consciência, finalmente, ficará, para to-
transformando-a numa passagem na qual a personalidade cada dos, mais lúcida além da morte; a separação de uma matéria
vez menos se abala, até reduzi-la a uma mudança de forma em mais sutil não será violenta; a cisão da morte e a reunião do
que o “eu” permanece desperto e tranquilo. nascimento realizar-se-ão sem perturbações, num espírito per-
Então, o homem terá vencido a morte e viverá consciente na manentemente consciente e desperto. Então,  terá superado a
eternidade. O progresso espiritual e moral, ao qual estão confia- fase vida, e, no limiar de nova dimensão, não haverá mais maté-
92 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
ria, nem corpo, nem morte. Pois a evolução traz libertação, feli- mesmo e vencer o mundo; a cada passo, um abismo tenebroso
cidade, consciência, luz. que engole tudo, um obscuro poder de destruição que nivela tu-
Como navega nos espaços esse produto-síntese da vida? Essa do na morte e no esquecimento. Na eterna fuga, sempre nova
unidade psíquica é o último produto destilado da evolução em onda sobrevém e submerge o passado, apaga e recomeça a vida.
suas fases   , e aproxima-se da fase sucessiva +x, cujas di- A corrida prossegue sem repouso, à luz incerta das miragens
mensões exorbitam do vosso concebível, estando fora do espaço ilusórias. Nesta atmosfera densa e escura, o homem luta e san-
e do tempo. Síntese da evolução completa, é o germe das evolu- gra, buscando sua luz.
ções futuras. É uma individuação imaterial de altíssimo grau de Quanta dor! É um mar sem limites, donde emerge apenas o
concentração cinética, escondida, para vós, no imponderável. braço de um homem que agita um facho de luz: é o gênio. No
Para entrar em contato com vossos sentidos, ela tem que assumir fundo triste e lamacento, rastejam os piores, satisfeitos em seu
as formas mais densas de vossa vida, percorrer de novo em des- elemento, sorrindo felizes e inconscientes. O gênio – seja artis-
cida o caminho ascensional da evolução, isto é, revestir-se pri- ta, místico, pensador, santo, herói ou caudilho – é sempre um
meiro de energia e, depois, de matéria. Assim como a matéria, pioneiro na antecipação da evolução, que o rebanho ignaro
por desagregação atômica, gera energia, e a energia, no processo acompanha, por lei da vida. Seu destino é titânico; um abismo
inverso, pode produzir a matéria, assim também, mais no alto, a por onde passam zonas de paixão e de laceração, tempestades e
energia forma o psiquismo, e o espírito pode emanar energia. visões nas quais está a voz de Deus. O gênio alça-se, angusti-
As fases são sempre comunicantes, subindo ou descendo, e ando-se, do leito de sua dor e da dor do mundo; com gesto su-
as entidades, em suas materializações, devem percorrer de novo premo e tremendo, fixa o infinito com firmeza, mergulha no co-
a direção inversa da que percorreis. Trata-se de uma inversão ração do mistério e rasga-lhe o véu, para que a vida caminhe. A
dos processos cinéticos, de uma restituição, por parte do vórtice massa inerte da grande alma coletiva experimenta súbita dilata-
eletrônico, da onda dinâmica, seguida de uma redução do mo- ção e vê, acompanha e sobe.
vimento à forma mais simples do sistema planetário atômico. O Por vezes, no inferno terrestre cai uma estrela do céu, só pa-
último produto, isto é, a unidade do psiquismo, decompõe sua ra chorar e amar; chora e ama durante uma vida inteira, cantan-
síntese e torna a desenvolver, no estado atual, o potencial inclu- do na dor própria e alheia um canto divino inebriado de amor.
so em estado latente. Esta a técnica das materializações mediú- A dor vergasta, e a alma canta. Aquele canto tem estranha ma-
nicas, das desmaterializações, dos transportes e fenômenos se- gia: amansa a fera humana, faz florescerem as rosas entre os
melhantes. Fenômenos de exceção, porque a substância existe espinhos, e os lírios na lama; a fera retrai suas garras; a dor
integral em movimento nas suas próprias fases. O espírito va- suspende o seu assalto; o destino alivia seu aperto; o homem
gueia depois da morte, além do espaço e do tempo, em outras perdoa sua ofensa. A todos vence a magia da bondade; a tudo
dimensões. O universo lhe oferece todas as possibilidades e encanta a harmonia do amor, e com ele dilata-se canta e ressoa
condições possíveis para reconstituir um corpo na matéria. Ca- toda a criação. Naquele canto amargurado há tanta fé, tanta es-
da gota do infinito oceano estelar apresenta um apoio à vida, perança, que a dor transforma-se em paixão de bem e de ascen-
nas condições mais diversas, para enfrentar as provas e as expe- são. Aquele canto humilde e bom chega de muito longe, cheio
riências mais adequadas a cada tipo de diferenciação e a cada das coisas de Deus; é novo perfume em que vibra o infinito; é
nível de existência. Este oceano é incomensurável. O universo é secreto sussurrar de paixão que fala à alma e revela, pelas vias
todo palpitante de vida e de consciência e incessantemente res- do coração, mais que qualquer ciência, o mistério do ser; é uma
soa no férvido trabalho da evolução. carícia que adormece a dor. Tudo se encarniça na Terra contra o
mais simples e inerme que fala de Deus, para fazê-lo calar. Mas
LXXV. O HOMEM a palavra doce ressurge sempre, expande-se, triunfa. Porque é
lei que a Boa Nova do Cristo se realize, o mal seja vencido e
Vimos a fase  em seu aspecto conceptual, ao observarmos venha o Reino de Deus. A dor golpeará sem piedade, mas a al-
a evolução das leis da vida; em seu aspecto dinâmico, ao ob- ma humana emergirá de suas provas, e a vida iniciará novo ci-
servarmos a gênese e a ascensão do psiquismo; em seu aspecto clo, pois o momento está maduro e é lei que a besta se trans-
estático, ao observarmos as manifestações desse psiquismo nos forme em anjo, da desordem surja nova harmonia e o hino da
órgãos internos e externos, em seu funcionamento, na direção vida seja cantado mais alto.
da máquina orgânica. Com isto, nossa longa caminhada de  O materialismo fez do homem um ser mau, dedicado a
para  está terminada. Chegamos ao homem, à sua alma. oprimir o próprio semelhante, homo homini lupus (o homem é o
Antes de vos deixar, concentremos a atenção neste ponto lobo do homem). Dele faremos um ser justo e bom, dedicado a
culminante da evolução, nessa obra altíssima, preparada por tão beneficiar seus irmãos. A ciência o fez perverso, nós, por meio
longa caminhada e tão grande trabalho. Olhemos o homem co- da própria ciência, fá-lo-emos melhor. O homem é o artífice de
mo indivíduo e como coletividade, em suas leis, em seu pro- seu destino e tem que assumir o esforço de criar a si mesmo;
gresso; olhemos o futuro que o espera no momento decisivo de deve esculpir a grande obra do espírito na tosca matéria da vi-
sua mais elevada maturação biológica atual. da. Seu deve ser o esforço da superação biológica para se liber-
O homem, o Prometeu de rosto luminoso, dominador no tar da lei mais baixa do mundo animal; seu será o triunfo da as-
gesto, é, em seu organismo, todo ele, a expressão prepotente de censão espiritual no campo de todos os valores humanos. Cada
um psiquismo interior. No olhar profundo, a potência de um rei prova, cada dor e cada vitória serão um traço de cinzel que de-
que enfrenta o infinito; no punho fechado, o poder do vencedor finirá e embelezará ao sol a obra divina.
da vida em seu planeta. No entanto está preso à rocha; suas vís- As conclusões estão iminentes. As questões científicas estão
ceras, dilaceradas pela águia; a seus pés, um mar de sangue. superadas e, por estarem situadas longe de vós, podem vos ter
Aquele rosto é a única luz nas trevas profundas, cheias de som- deixado indiferentes. No entanto as conclusões vos atingem de
bras e de terrores, de dores e de delitos. Entre lívidos fulgores perto em vossa vida, em vossa felicidade, em vosso futuro indi-
de exércitos, intermináveis fileiras de cruzes, enganadora cinti- vidual e coletivo. Se sois racionais, não podereis mais agora re-
lação de ouro, de vaidades e de prazeres, ecoa, sobretudo, um cusá-las, em nome de vossa própria razão e de vossa própria ci-
grito estridente de dor, que clama por Deus. ência. Há quem compreenda porque sente. Meu esforço teria
Quanto esforço para reencontrar Deus! Grandeza de espíri- sido muito menor se tivesse de falar apenas a quem já sente e
to, potência de vontade e de ação, agudeza de sabedoria, por to- compreende. Este livro foi escrito para quem precisa de de-
da parte um esforço titânico, jamais domado, de superar-se a si monstração para compreender; para eles foi feito este esforço de
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 93
racionalidade, que, doutra forma, não teria sido necessário. Po- dade, a riqueza e a concepção do Estado e do seu funcionamento,
dereis tê-lo lido por curiosidade, mas cada palavra foi dita, cada não são conceitos isolados, mas são “funções” da Lei, isto é, in-
conceito colocado em seu lugar, para que agissem como impulso terligam-se logicamente e não podem ser compreendidos senão
convergente para essas conclusões. Todos os conceitos até aqui quando enquadrados no funcionamento orgânico do universo.
expostos são forças que, como ondas, repassam por todo o infini- Sendo esta síntese uma filosofia da ciência, estão aqui lan-
to e convergem para esta passagem, de onde vos é dado conhecer çadas as bases, jamais antes colocadas, de uma filosofia cientí-
as normas de vida individual e social, que não podeis mais repe- fica do direito. No campo moral cai qualquer empirismo, por-
lir. Não tratei convosco questões de fé, porque dela aprendestes a que cada ato, cada pensamento, cada motivação tem sua meta,
fugir; levantei as questões de razão e de ciência e, com essas seu peso e, por cálculo matemático de forças, marca o destino
mesmas armas, com as quais tentastes demolir Deus e o mundo de quem o executa. Pela primeira vez na história do homem,
do espírito, eu vos obriguei, progressivamente, numa férrea con- ouve-se falar numa ética científica, racional, exata. O mundo
catenação, a voltardes a Deus e ao espírito. da ética não é mais, então, um campo de fé ou de abstrações,
Minha palavra, eu disse, é verdadeira: realizou-se e realizar- mas um cálculo exato de forças. Se estas, muitas vezes, não são
se-á. A semente está lançada e brotará. Ao mundo indico a via percebidas pela justiça humana, porque sutis demais, outro
do espírito, a única via das ascensões humanas na arte, na lite- equilíbrio mais profundo, a justiça divina, registra-as em vosso
ratura, na ciência. Abro-vos esta porta para o infinito, que a ra- destino, as pesa e vos impõe a resultante, em forma de alegria
zão e a ciência haviam fechado. Por esta estrada de conquistas, ou de dor. Sois livres e podeis, sorrindo, negar tudo isto. Mas,
guiarei os fortes que me quiserem seguir. se violardes um só desses equilíbrios, violareis a ordem de todo
Disse-vos que estais numa grande encruzilhada da vida do o universo, e ele se levantará contra vós para vos esmagar. Esta
mundo. A Lei, que amadureceu por dois milênios, impõe hoje minha voz é a voz da justiça e de vossa consciência, onde tro-
esta revolução biológica. Os fatos, que sabem fazer-se ouvir, veja a voz de Deus, e não podeis fazê-la calar.
constranger-vos-ão. Trata-se de movimentos mundiais de Dei-vos um conceito da vida que supera todos os limites
massa e de espíritos, de povos e de conceitos, movimentos no tempo e no qual nada se perde, nenhuma dor é vã; onde
profundos de que ninguém escapará. Mas, antes que falem os cada átimo é construtivo e é possível acumular e possuir uma
fatos e se desencadeiem as forças mais baixas da vida, tinha riqueza verdadeira, que não se destrói. Ensino-vos a valorizar
de falar o pensamento, tinha de ser dado o aviso, para que, as- e utilizar a dor. Olhamos juntos o âmago das coisas, não inu-
sim, quem possa o compreenda. tilmente, porque dele extraímos um otimismo consciente e
Falais sempre de força; falo-vos apenas de equilíbrios e triunfante até na adversidade. Só os inconscientes podem pe-
ordem. Mostrei-vos, para além da aparência das coisas, uma dir o absurdo de uma felicidade fácil, não conquistada; eu vos
realidade muito mais profunda e verdadeira; além da injustiça falei de luta e esforço, para que a vitória, medida de vosso va-
humana, uma justiça substancial. Em cada pensamento meu, lor, seja vossa. Realizamos juntos a longa e cansativa cami-
vedes palpitar a presença de uma lei suprema, que é Deus. É nhada da ascensão do ser para que conheçais vosso amanhã e
lei de bondade e de justiça, mas, justamente porque é lei de vos prepareis para ele, porque, através de uma cortina de pro-
justiça, é também lei de reação, que sabe explodir tempestuo- vas decisivas em vosso amontoar-se desordenado de forma-
samente no destino individual como no coletivo. Ignorando ções psíquicas, já resplandece a luminosidade do futuro, no
esse equilíbrio, usurpais cada vez mais ao destino inexorável, fundo imenso da evolução trifásica de vosso universo.
excitando um furacão de reações. A cadeia transmite-se de ge-
ração em geração, o déficit acumula-se e vos submerge. En- LXXVI. CÁLCULO DE RESPONSABILIDADES
tão, sob um negro céu de tempestades, aparecem os profetas
bíblicos, conclamando à penitência; então, irrompem os cata- O homem é responsável. Não basta dizê-lo; é necessário
clismos, que são batismos de dor. A humanidade sai deles pu- demonstrá-lo. É preciso vincular a lei de equilíbrio que impera
rificada, como se só pela dor conquistasse seus direitos; de- no campo moral, coativa em suas reações, à lei de equilíbrio
pois do reequilíbrio, reencontra a possibilidade de retomar o sempre presente em todos os fenômenos. Não é suficiente esta-
caminho interrompido da sua evolução. belecer os princípios da ética no seio de um sistema abstrato e
Falei-vos de ideais e de princípios, com palavras de paz, que isolado; é indispensável saber vinculá-los com a ordem de to-
podem fazer sorrir o sapiente ceticismo moderno. Em vosso dos os fenômenos de qualquer tipo, no âmago de um funciona-
mundo, ao invés de se colocar no alto os princípios, por eles lu- mento orgânico, universal, único. É preciso descobrir na eterni-
tando, são colocados os interesses, e sobre eles constroem-se dade o inexorável aparecimento dos efeitos das ações humanas.
princípios fictícios. Existem os ideais e as crenças oficiais, mas Sem uma compreensão de toda a fenomenologia universal, sem
nas profundezas da alma humana existe a mentira. Desprezais o a visão unitária de uma síntese global, é absurdo pretender a so-
vencido, mesmo se é um justo; enalteceis o vencedor, embora lução de qualquer problema isolado. Para poder equacionar o
seja desonesto. Acreditais só na matéria; confiais apenas na ri- problema da responsabilidade, é necessário primeiro ter pene-
queza e na força, mas estas vos trairão. trado o princípio da evolução, que, no campo humano, significa
Deveis compreender que, num regime de ordem universal, evolução espiritual. Filosofias e religiões o afirmaram; uma
como vos mostrei, num campo infinito de forças conexas e pode- multidão de místicos o sentiu e viveu; mas, se tirarmos deste
rosíssimas, embora imponderáveis e ultrasensórias, agir com bai- princípio as bases que, como demonstração racional, o susten-
xeza e leviandade significa expor-se a reações tremendas. A his- tam e o conectam com toda a evolução física, dinâmica e bioló-
tória está cheia delas. A Lei está sempre presente e a todos co- gica, o mesmo ficará incompreensível e discutível. É necessá-
manda, dirigentes ou dependentes; cada um tem sua responsabi- rio, antes, ter compreendido o vínculo que existe entre todos os
lidade em seu posto de combate. Ao conceito superficial de uma fenômenos; ter afirmado a indestrutibilidade da substância,
fácil negação de qualquer disciplina moral – como o materialis- apesar do contínuo transformismo universal; ter demonstrado a
mo científico difundiu no último século – opõe-se hoje o concei- gênese biológica do psiquismo, sua eternidade, a técnica de seu
to inverso: o homem é responsável. Ele não vive isolado, mas crescimento, a meta superbiológica da vida, o princípio de cau-
em sociedade, que “deve” ser um organismo, onde cada indiví- salidade e a férrea lei de suas reações, a lógica do destino e de
duo tem um trabalho a realizar. A vida não é ócio, mas esforço suas vicissitudes, o significado das provas e da dor.
de conquista. Acima de todos os interesses materiais há um in- Indispensável é ter compreendido o valor espiritual da vida,
teresse ideal igualmente urgente e importante, que atinge todos. em estreita relação com vossa moderna visão científica do
Todas as instituições sociais e jurídicas, o trabalho, a proprie- mundo, em perfeita união com a realidade fenomênica, sem es-
94 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
paços intermediários de coisas desconhecidas e de incompreen- do destino. Falo de desenvolvimento lógico porque, reconstruí-
sões. Era lógico que o espírito, antes de empreender seu impul- do o passado, vereis que ele, pelo princípio universal de causa-
so para as regiões superiores do futuro, se inclinasse para trás, a lidade, pesa como uma força, no estado presente e no futuro,
fim de reencontrar suas origens no passado, e fizesse justiça ao fazendo da personalidade uma massa com trajetória própria,
trabalho realizado para sua preparação pelas menores criaturas que, por inércia, tende a manter-se constante, ainda que a von-
irmãs. Só agora, que está completa nossa viagem através dos tade e a liberdade individual possam lutar para modificá-la.
mundos inferiores da matéria e da energia, é compreensível este Na evolução, que é desmaterialização da substância em busca
último mundo das ascensões espirituais do homem. de formas psíquicas, a personalidade transforma seu “peso espe-
Em todos os níveis, os fenômenos da ascensão moral, que cífico”, coloca-se, por natural lei de equilíbrio, em determinada
culminam no misticismo do santo (super-homem antecipado altura, seu ambiente natural, ao qual sempre volta espontanea-
dos mais altos graus da evolução), podem reduzir-se, em termos mente. Também este é um cálculo de forças que se deve levar em
científicos, conforme tudo o que dissemos na teoria dos movi- conta no cálculo das responsabilidades. Quantas coisas teria de
mentos vorticosos, àquele fenômeno de assimilação cinética considerar o presumível direito social de punir se, ao invés de ser
que vimos ter sido a base da formação e do desenvolvimento do apenas uma medida para defesa individual ou de classe, quisesse
psiquismo. Para quem compreendeu a técnica da evolução psí- ser princípio de justiça! Aliás, prêmios e castigos substanciais
quica, o fenômeno da ascensão espiritual é simples e está logi- não são os que os homens distribuem – exterioridades que não
camente colocado como continuação da evolução das formas correspondem à substância – mas aqueles que, embora por meio
inferiores. Em termos científicos, aquele fenômeno significa in- deles, a Lei impõe, em sua sabedoria, acima das leis humanas,
troduzir nas íntimas trajetórias dos movimentos vorticosos, de baseada em equilíbrios aos quais, compreendendo-os ou não, to-
que é constituído o psiquismo humano na fase , novos impul- dos obedecem – juízes e réus, dirigentes e dependentes – por
sos provenientes de fora (o mundo da vida e das provas), para ação de um comando ao qual não é possível escapar.
que sejam fundidos no âmbito daquelas forças e modifiquem Os homens vivem misturados, juntos, mas suas leis não se
aquelas trajetórias. Trata-se de enxertar no metabolismo do es- misturam; o que esmaga mortalmente um indivíduo, para outro
pírito, sempre escancarado para fora (ambiente), os elementos pode ser incompreensível, porque nunca o experimentou. Todos
da química sutil do psiquismo. Na prática, vós os conheceis e são vizinhos e irmãos; no entanto, diante do encadeamento das
os chamais pensamentos e obras de bem ou de mal. Escapa-vos próprias obras e suas consequências, cada um está sozinho. So-
hoje o cálculo dessa química imponderável, mas um dia pene- zinho com sua responsabilidade e seu destino, tal como ele
trareis na constituição vorticosa do psiquismo, pesareis seus mesmo o quis. Os caminhos estão traçados, e a ação humana
impulsos sutis, internos e externos, e este conhecimento, uma exterior não os vê nem os modifica; os valores substanciais não
vez colocado em termos exatos, vos fará compreender que é correspondem às categorias e posições sociais. Além da justiça
possível o cálculo das forças constitutivas e modificadoras do humana aparente existe outra justiça, diferente, divina, substan-
edifício cinético da personalidade humana, e que é possível, cial, invisível e tremenda, da qual não se escapa na eternidade,
também, uma vez definido seu tipo específico de individuação e que não tem pressa, mas atua inexoravelmente. No enredo dos
e sua história passada – que sua presente conformação continua destinos e dos objetivos de todos há uma linha individual, inde-
e resume em sua forma – estabelecer a direção da evolução ini- pendente. Em qualquer ambiente se pode avançar ou retroceder
ciada e fixar a natureza e o valor das forças que deverão ser in- na própria caminhada. Cada vida contém as provas necessárias,
troduzidas para que essa evolução avance proveitosamente e as e as melhores, mesmo que não sejam grandes nem espetacula-
notas fundamentais dessa personalidade se desenvolvam. Con- res, mas sempre as mais adequadas e proporcionais.
quanto, hoje, estes fenômenos ainda ocorram por tentativas, já Vimos como o ser, na evolução, ao subir da matéria ao es-
significa isto assumir a direção dos fenômenos biológicos no pírito, passa também da lei da matéria, o determinismo, à lei
seu campo mais decisivo: a formação da personalidade. do espírito, a livre escolha. Enquanto a ação é a resultante dos
Sendo indispensável evoluir e insuprimível, para essa for- impulsos e da capacidade individual de reagir, a responsabili-
mação de consciência, o trabalho da vida individual e coletiva, dade é relativa ao grau de evolução, pois é assumida em fun-
que enorme economia de energias significará o saber realizá- ção da maior ou menor extensão da zona de determinismo ou
lo! Se a humanidade tende biologicamente, como vimos, a criar livre-arbítrio que predomina na personalidade. Embora no
um tipo de super-homem, vosso trabalho presente é buscar essa mesmo ambiente e submetido aos mesmos agentes psíquicos,
meta. A vida contém e pode produzir valores eternos. Sua fina- cada indivíduo reagirá de modo diferente, e, ainda que o ato
lidade é enriquecer-se deles cada vez mais. A vida tem um ob- seja o mesmo, seu valor e significado serão muito diversos, de
jetivo, e vós, depois de haverdes aprendido a produzir e ente- acordo com os vários tipos humanos, e, por isso, diferente
sourar nas formas caducas da Terra, tereis de aprender agora a também será a responsabilidade. Responsabilidade relativa,
produzir e entesourar na substância, na eternidade. Para educar, estritamente vinculada ao nível evolutivo, ou seja, de conhe-
é indispensável repetir, a fim de que certos conceitos mais ele- cimento e liberdade, proporcionalmente aos quais nascem os
vados sejam assimilados e gravados no íntimo turbilhão do psi- deveres e se restringe o campo do que é lícito.
quismo. Este é o objetivo da vida, esta é sua função mais alta, Falo de responsabilidade substancial, e não daquela aparente,
pela qual se mede o valor daquela central dínamo-psíquica do que os homens se impõem mutuamente, por necessidade de defe-
organismo social, o Estado moderno. sa e conveniência. Falo de culpa, isto é, mal consciente, introdu-
Para o espírito ardente de fé, que sente por intuição essas ção de impulsos antievolutivos, que só excitam reação de dor. No
verdades, é duro ter de falar assim, nos termos de uma moral campo humano, mal é involução, bem é ascensão, pois a grande
científica exata, mas isto me é imposto por vosso nível, ainda lei é evolução. Culpa é a violação dessa lei de progresso, é rebe-
não intuitivo, mas apenas racional. O cálculo da responsabili- lião ao impulso que leva a Deus, à ordem; é qualquer ato de
dade moral é possível, quando se conhece o fenômeno da evo- anarquia. Dor é o efeito da reação da Lei violada, que se mani-
lução psíquica. Se este se dá pela interação dos impulsos ínti- festa em sua vontade de reconstrução da ordem, que tudo quer
mos com os impulsos do ambiente e as resultantes de suas reconduzir a Deus; reação a que chamais punição. Quanto mais
combinações, aquele se reduz, então, a um cálculo de reações. progredísseis, mais poderíeis cair, devido à maior liberdade, se o
Tudo isto é apenas um momento da análise mais ampla que estado mais adiantado de progresso não fosse protegido por um
pesquisa a linha das reencarnações e o desenvolvimento lógico proporcional aumento de conhecimento.
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 95
LXXVII. DESTINO. O DIREITO DE PUNIR dades coletivas cada vez mais vastas, do indivíduo à família, à
classe, à nação, à humanidade. Em sua evolução, o direito pe-
Outro fator complica o cálculo das responsabilidades: o de- nal circunscreve cada vez mais, até à eliminação, suas zonas
terminismo das causas introduzidas no passado, com as próprias indefesas, tornando mais difícil escapar à sua sanção (extradi-
ações, na trajetória do próprio destino; impulsos assimilados, por ção), até cobrir todo o planeta; ao mesmo tempo, atinge e dis-
livre e responsável escolha, no edifício cinético do próprio psi- ciplina cada vez mais numerosas formas de atividades huma-
quismo. Essas causas são forças colocadas em movimento pelo nas. Paralelamente, quanto mais se estende o direito, mais
próprio “eu” e, uma vez lançadas, são autônomas, até se exauri- diminui sua ferocidade, mais racional e inteligente torna-se;
rem. Vossos atos prosseguem em seus efeitos, irresistivelmente, quanto mais se torna proteção da ordem pública, menos atua
por leis de causalidade. Seu impulso é medido pela potência que pela reivindicação da ofensa sofrida pelo particular; é sempre
a esses atos imprimistes, em proporção e de mesma natureza, be- menos “força” e sempre mais “justiça”. À medida que o ho-
néfica ou maléfica, do impulso que destes. Assim o bem ou o mal mem se afasta das necessidades da vida animal, manifesta-se
dirigido aos outros é feito, sobretudo, a si mesmo; é regido pelas uma contínua circunscrição do arbítrio na defesa, que se torna
reações da Lei e recai sobre o autor como uma chuva de alegrias cada vez mais equilíbrio jurídico; ficando menos incompleta a
ou de dores. O destino implica, pois, uma responsabilidade com- justiça. À proporção que o juiz evolui, torna-se digno de con-
posta, que é resultante do passado e do presente. quistar o direito de julgar.
Cada ato é sempre livre em sua origem, mas não depois, Assim, o fenômeno não apenas se projeta da fase individu-
porque então já pertence ao determinismo da lei de causalida- al à fase social, não só tende a estabelecer mais profunda or-
de, que lhe impõe as reações e as consequências. O destino, dem, tornando-se mais substancial, mas se desenvolve sempre
como efeito do passado, contém, pois, zonas de absoluto de- mais, abrangendo o fator moral e harmonizando-se em siste-
terminismo, mas a ele sobrepõe-se a cada momento a liberdade ma ético. O conceito originário de prejuízo, ressarcimento,
do presente, que vai chegando continuamente e tem o poder de ofensa, eleva-se à reconstrução de equilíbrios mais altos, enri-
introduzir sempre novos impulsos e, neste sentido, de corrigir quecidos dos novos valores que a evolução terá desenvolvido;
os precedentes. O impulso do destino pode ser comparado à a balança da justiça se fará muito mais precisa, até ao cálculo
inércia de uma determinada massa lançada, que tende a prosse- das responsabilidades específicas, isto é, até às diferentíssi-
guir na direção iniciada, mas que pode, no entanto, sofrer atra- mas responsabilidades individuais. A primitiva e grosseira
ções e desvios colaterais; portanto este impulso pode ser corri- justiça do direito de defender-se, evoluirá para justiça que
gido. Determinismo e liberdade, dessa maneira, contrabalan- dá o direito de julgar e de punir; cada vez mais, a balança
çam-se, e o caminho é a resultante dada pela inércia do passado do direito substituirá a espada da vingança; cada vez mais,
e pela constante ação corretora do presente. Nesses equilíbrios pesará a responsabilidade moral do culpado e sempre menos
íntimos de forças reside o cálculo das responsabilidades. O pre- a própria tutela egoística. Em sua evolução, o jus de punir
sente pode corrigir o passado, numa vida de redenção; pode penetrará sempre mais a substância das motivações. A as-
somar-se a ele nas estradas do bem, tanto quanto nas do mal. censão moral e psíquica do legislador o autorizará a fazer
Diante do determinismo da Lei, que impõe a cada causa seu uma sindicância moral sempre mais profunda, porque só um
efeito, está o livre-arbítrio, que tem o poder de corrigir a traje- juiz mais sensível e perfeito poderá ousar, sem tornar tirania
tória dos efeitos com a introdução de novos impulsos. Destino de pensamento, aproximar-se da justiça substancial que vem
não é fatalismo, não é cega “Ánánke” (necessidade, determi- da mão de Deus. Esta é a meta das formas humanas. Quanto
nismo, inevitabilidade), mas sim a base de criações e destrui- mais a evolução elevar o legislador, fazendo-o curvar-se em
ções contínuas. O que a cada momento está em ação no destino um ato de bondade e de compreensão para com o culpado,
é a resultante de todas essas forças. mais enriquecerá de funções preventivas e educativas a fun-
Responsabilidade progressiva, função de progressivos ção social da defesa, porque o dever dos dirigentes é ajudar
conhecimento e liberdade, cálculo complexo de forças; evo- o homem involuído a subir.
lução que é, ao mesmo tempo, libertação do determinismo Assim, as duas ferocidades, da culpa e do castigo, abran-
das causas (destino), bem como do determinismo da maté- dam-se; aproximam-se os extremos, harmoniza-se seu embate.
ria. Eis a realidade mais profunda do fenômeno. Uma ética Em vez de investir contra uma alma que só sabe ser má, porque
racional, tornada ciência exata, que não seja mera arma de é involuída, passa-se a ajudá-la a evoluir, demolindo-se os fo-
defesa, deve levar em conta todos esses fatores complexos; cos de infecções morais onde nascem essas flores maléficas.
deve saber pesar essas forças e calcular-lhes a resultante; Absurdo enfurecer-se contra os efeitos, se as causas forem dei-
deve saber avaliar as motivações; reconstruir na personali- xadas intactas. Não se resolve o problema apenas com o egoís-
dade seu passado biológico e orientar-se na vasta rede de mo da autodefesa, com a repressão sem a prevenção. Justo,
causas e efeitos, de impulsos e contraimpulsos, que constitu- muitas vezes, é considerado só o que protege a si mesmo, con-
em o destino e sua correção. Para cada indivíduo, o ponto de ceito que deve ampliar-se até proteger a todos. Na balança soci-
partida é muito diferente, e não há maior absurdo, num al há um tributo anual de expulsos, segundo uma lei expressa
mundo de substanciais desigualdades, do que uma lei huma- pelas estatísticas. É preciso compreender essa lei e cortá-la pela
na a posteriori, externa, igual para todos. Esta poderá satis- raiz. Há deserdados cujo crime é o de serem marcados no nas-
fazer às funções sociais defensivas, mas não pode chamar-se cimento por uma tara hereditária. Outros são falidos na luta pe-
justiça. Somente esta pode, pelas sanções morais e penais, la vida, mas possuem a mesma psicologia e valor moral dos
constituir a base do direito de punir. vencedores. Indispensável saber ler e trabalhar na alma; saber
Este direito está estritamente vinculado ao cálculo das res- fazer o cálculo das responsabilidades; ultrapassar a desastrosa
ponsabilidades, sem o qual não pode ser estabelecido. Tendo- psicologia materialista da antropologia criminal. Delinquência é
se estabilizado por meio da força, como todos os direitos – na fenômeno de involução. É necessário alimentar todos os fatores
origem, mera reação e necessidade de defesa – transforma-se, de evolução e demolir os seus opostos, se quiserdes que no de-
por evolução, progredindo da fase de vingança pessoal até à curso da doença haja melhora e a sociedade possa alijar seu
fase de proteção coletiva. A normalização jurídica da força – fardo. O trabalho deve ser o de penetrar o espírito, de educar,
assim como no mais amplo processo da evolução da força em corrigir, ajudar e, sobretudo – caso se pretenda guiar e punir em
direito, com a legalização da defesa – dirige-se à conservação nome de uma justiça divina – de recordar a máxima evangélica:
de um grupo sempre mais extenso, à proporção que surgem uni- “Quem estiver sem pecado, atire a primeira pedra”.
96 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
LXXVIII. OS CAMINHOS DA EVOLUÇÃO HUMANA como meio de opressão, colocando-o em estado de renúncia,
para com isso obter vosso domínio e vantagem na luta pela vi-
Os caminhos da evolução humana nos diversos planos da; que o esforço da virtude seja, acima de tudo, daquele que
podem ser considerados tanto de um ponto de vista individu- prega, como também daí venha sua vantagem.
al como coletivo. Minha concepção implica uma ética progressiva, por isso
Se o princípio central da Lei é evolução – tanto que evoluir vos mostra como modelo os tipos super-humanos cada vez mais
é sinônimo de ser, e só é possível existir como movimento de perfeitos. Concepção aristocrática e dinâmica, antípoda da vos-
progresso (superior a qualquer regresso) – evolução deve ser o sa, que eleva ao tipo ideal a mediocridade da maioria. A psico-
conceito basilar da tábua de valores éticos. Os conceitos de logia comum só pode dar a codificação dos instintos atrasados
bem e de mal, de virtude e de vício, de dever e de culpa, embo- da humanidade. Elevar a modelo a mediocridade, só porque ela
ra relativos e progressivos (aliás, justamente por isso) só podem se impõe pela quantidade, e não pelo valor, significa erguer um
ser concebidos em função da evolução. Vimos esse fenômeno monumento à inferioridade. O individualismo, porém, que
funcionar e triunfar em todas as dimensões que conheceis. Se a emerge do quadro de fundo difuso da maioria, é sagrado, desde
vossa fase atual é construção e ascensão de consciência, é des- que lute sempre para elevar-se, pois esta é a lei da vida, e a as-
materialização de formas, é superação biológica e espiritualiza- censão coletiva só pode ser resultante de todas as ascensões in-
ção de personalidade, esses conceitos resumem, com referência dividuais. Emergir do mar da mediocridade para as vias do
às posições relativas de cada um, o bem, a virtude, o dever. Os bem. Que as massas sejam enquadradas, para que os poderes
conceitos opostos significam posições também opostas: mal, dirigentes possam impor melhor o trabalho da evolução, mas
vício, culpa, que são involução e descida. que não sejam elevadas a modelo, nem o número suplante o va-
Nesse regime de equilíbrio que governa o universo, inclusi- lor. Lá de cima, alta e longínqua, está a luz dos espíritos gigan-
ve no campo das forças morais, realiza-se constantemente a tes, que superaram e submeteram ao espírito as forças biológi-
soma dos impulsos e contraimpulsos, do dever e do haver. Por cas. Deles estão cheios os séculos, e cada um aí encontrará o ti-
isso a dor existe como fato substancial e insuprimível na ordem po que representa o aperfeiçoamento das próprias qualidades. O
universal, pois tem exatamente a função necessária de estabili- sensitivo encontrará no poeta e no santo o gênio da arte e da fé;
zadora de equilíbrios, que são constantemente reconstituídos o volitivo encontrará o gênio da racionalidade e da intuição no
logo que violados pela liberdade do ser. Daí o conceito de re- herói, no pensador e no cientista. Cada tipo ergueu bem alto o
denção por meio da dor. Por isso vos disse que ela é sempre um facho da vontade, da mente ou do coração, tendo aperfeiçoado
bem, enquanto retifica a trajetória dos destinos. Mal transitó- uma qualidade da natureza humana. Cada tipo é um pioneiro
rio, imprescindível em vista da necessidade da liberdade indivi- que vos mostra o caminho da evolução.
dual (base da responsabilidade e do merecimento). Ameniza O tipo humano comum move-se em outros níveis. O mais
sempre o débito, acumula o crédito e transforma-se num meio baixo vive e só concebe viver no nível vegetativo; move-se
de bem. Conceito evidente, já que o princípio de equilíbrio é num campo físico, no qual a ideação é concreta, quase muscu-
universal e infalivelmente invade também o campo ético. lar. O mundo sensório é toda a sua realidade, e nenhuma abs-
Colocadas essas bases racionais, é fácil a construção do edi- tração ou conceito sintético o superam; os instintos primordiais
fício ético, que coincide com aquele posto em prática há milê- (fome e amor) dominam a sua satisfação, são a única necessi-
nios pelas religiões, filosofias e leis sociais, ditado pelas revela- dade, alegria e aspiração. Psiquismo rudimentar, que só se
ções e sentido pela intuição, mas sem esse fundamento de raci- exercita no campo passional de atrações e repulsões violentas e
onalidade, que hoje é necessário para ser aceito pela psicologia primitivas. Qualquer superação permanece no inconcebível; as
moderna. Um cortejo de mártires e de escolhidos o compreen- trevas dominam quase toda a consciência. É o selvagem e, nos
deram e o puseram em prática de um lado ao outro do mundo, países civilizados, o homem das classes inferiores, onde ele re-
com sistemas diferentes, de acordo com a própria posição, mas nasce por seu peso específico.
sempre idênticos na aspiração constante para o alto. Os místi- Mas a civilização criou um tipo mais elevado, com o psi-
cos, embora não se exprimissem de maneira científica, conhe- quismo mais desperto, que chega até à racionalidade. A ex-
ciam as leis da evolução das dimensões na fase ; realizavam, plosão das paixões é controlada, pelo menos nas aparências.
num regime de constante educação, a transformação biológica Os instintos primordiais, ainda que sendo os mesmos, compli-
do homem em super-homem e pregavam o desapego da maté- cam-se, revestem-se de um trabalho reflexivo controlado; su-
ria, sua desmaterialização progressiva, com a renúncia e a supe- tilizam-se, tornam-se mais nervosos e psíquicos. Adora-se a
ração da animalidade. Verdadeira técnica construtiva do psi- riqueza até cultuá-la; impera a ambição, e esta incentiva a lu-
quismo, assimilação por transmissão ao subconsciente de qua- ta, a qual se torna cada vez mais nervosa e astuta; ultrapassa-
lidades novas, estabilização da virtude no estado definitivo de se as metas do indispensável. Embora sensória, a realidade se
instinto e, portanto, de necessidade. enriquece. A zona do concebível dilata-se um pouco, mas fica
O demônio, eterno inimigo, personifica as forças negativas sempre por fora dos fenômenos e é impotente diante de uma
e involuídas da animalidade, que sobrevive e ressurge das mais síntese substancial. Os princípios gerais são repetidos, mas
baixas camadas da personalidade. Os instintos inferiores, as não sentidos; há uma incapacidade de consciência quando se
paixões tempestuosas, são o antagonista na grande luta interior. vai além do interesse do “eu”, suprema exigência. O altruísmo
As grandes renúncias – pobreza, castidade, obediência – são os não se expande além do círculo familiar. É o moderno homem
embates decisivos de onde a animalidade sai desfalecida; mas, civilizado, educado com verniz de informações culturais, voli-
recordemo-lo, só poderão valer quando se saiba concomitante- tivo, dinâmico, sem escrúpulos, egoísta, habituado a mentir,
mente reconstruir, compensando com qualidades mais eleva- vazio de qualquer convicção e aspiração substancial. Sua im-
das, com amores, domínios e paixões mais espirituais, a fim de potência intuitiva e sintética denomina-se razão, objetividade,
não desencaminhar o ser para outros lados, no vazio de uma as- ciência, que são meios utilitários.
fixia infrutífera. Se impuserdes ao ser uma morte no nível ani- Existe um tipo ainda mais elevado de homem, dificilmente
mal, tendes de oferecer-lhe um renascimento no nível espiritu- reconhecível por fora por quem ainda não tenha chegado a esse
al. As paixões são grandes forças, que não devem ser destruí- nível. Muitas vezes é um solitário, um mártir, cuja grandeza
das, mas utilizadas e elevadas, já que, na evolução, tudo cami- não é reconhecida senão depois da morte. Isso é natural. Só o
nha por continuidade. Não deveis impor a virtude ao próximo medíocre pode ser logo compreendido e aclamado pela maioria
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 97
dos iguais. Glória fácil e rápida significa pouco valor. Neste ti- lização mecânica, que vos prepara um amanhã bem triste, se
po, o concebível dilatou-se até à síntese máxima, a consciência não “completar-se” pelos caminhos do espírito. Não é inútil,
atingiu a dimensão superior da intuição. Está muito distante da mesmo praticamente, conhecer o universo, sua lei, a linha do
média, porque viu e compreendeu as altas metas da vida e só destino, as forças do bem e do mal que nele agem, corrigi-las,
pode passar pela Terra em missão, amando e fazendo o bem. dominar a dor e as provas, para a própria felicidade numa vida
Com frequência, está alheio e desprezado no mundo, mas seu sem limites. Aceitai o trabalho e a ciência, mas colocai-os na
gesto abraça toda a criação. Ele superou os instintos da anima- função que lhes compete, que é a de apenas arar o campo em
lidade, ou luta para superá-los. Não tem inimigos na Terra, a que deverá florescer um jardim. Mesmo o tipo médio terá que
não ser as leis biológicas inferiores, que procura esmagar. Acei- se dedicar à sua ascensão e preparar-se para as superconstru-
ta a dor e considera sua a dor do mundo. Sabe e sente tudo o ções sutis do espírito. Vosso dinamismo violento exprime
que, para seus semelhantes, se perde no inconcebível. Seus vosso tipo dominante; vosso trabalho de criação nos níveis
triunfos são muito amplos e distantes para serem vistos, porque mais baixos da vida humana é apenas a base do grande edifí-
ele se move, no pensamento e na ação, aderindo à substância cio cujo vértice se perde no céu.
das coisas, em harmonia com o infinito. Este é o tipo da super- Se o trabalho, tal como o entendeis, transforma a Terra,
humanidade do futuro, em que a animalidade egoísta e feroz es- não modifica, porém, o homem. O homem é o valor máximo,
tará vencida e o espírito triunfará. o centro dinâmico que sempre retorna; é a fase de consciência
Essas gradações não são absolutas, nem como nível, nem alcançada, a matriz de todas as construções futuras. Não basta
como tipo; cada um oscila entre uma e outra. Mas a evolução criar o ambiente, é indispensável agir também no âmago e cri-
é universal e constante, realizando a ascensão de um tipo ao ar o homem. Vossa atividade humana iluminar-se-á, então,
outro. Ascensão do selvagem para a civilização, ascensão das com luz interior; valorizar-se-á com significado imensamente
classes inferiores para o bem-estar da burguesia; velha histó- mais alto. Vossa mentalidade utilitária fez do trabalho uma
ria das mais baixas ascensões humanas, impulso determinante condenação; transformastes o dom divino de plasmar o mundo
das revoluções sociais. Mas, hoje, a persistência e a extensão à vossa imagem num tormento insaciável de posse. A lei “do
da civilização amadureceram e difundiram o segundo tipo ut des” (“dou para que tu dês”), que impera no mundo econô-
humano, e, visto que é preciso evoluir, quando este for maio- mico, fez do trabalho uma forma de luta e uma tentativa de
ria, por ter elevado e assimilado o tipo inferior, sua revolução furto. É uma dor que pesa sobre vós, mas isso é justo e cabí-
só poderá dirigir-se para o terceiro tipo: o super-homem. Em- vel, porque exprime exatamente o que sois e o que mereceis.
baixo agitam-se confusamente as aspirações das classes soci- Todos os vossos males são devidos à vossa imperfeição social
ais inferiores, dispostas a submeter o egoísmo de raça para e à vossa impotência de saber fazer melhor.
impor o interesse de classe, se a zona superior não souber de- Daí tantos males – como a guerra, por exemplo – que são
fender sua função dirigente. O segundo tipo tende, por impul- ocasionados pelo que sois e que, por isso, perdurarão inevitá-
so evolutivo idêntico, a elevar-se ao nível do super-homem; veis enquanto não vos transformardes. O trabalho não é uma
esta é verdadeiramente a grande e nova transformação bioló- necessidade econômica, mas uma necessidade moral. O con-
gica, em massa, dos séculos futuros. ceito de trabalho econômico deve ser substituído pelo de tra-
Minhas perspectivas futuras não são utopia, mas estão li- balho função-social. Direi mais: função biológica construto-
gadas aos fatos e à evolução histórica normal. O fenômeno ra, pois tem a função de criar novos órgãos exteriores (a má-
foi, no passado, um produto esporádico, isolado. No futuro, quina), expressão do psiquismo; de fixar, com a repetição
tornar-se-á um produto de classe. A santa obra da educação do constante, os automatismos (sempre escola construtora de ap-
povo trará isto, em massa, ao nível médio, e, quando esta for a tidões), e de coordenar o indivíduo no funcionamento orgâni-
zona de maior extensão, nenhuma revolução poderá mais co da sociedade. Do conceito limitadíssimo, egoísta e social-
emergir de baixo. O progresso científico prepara inevitavel- mente danoso de trabalho-lucro, é necessário passar ao con-
mente, apesar de seus perigos, um ambiente de menos áspera ceito de trabalho-dever e de trabalho-missão. Isto é um en-
escravidão econômica e de mais intensa intelectualidade. A caminhamento ao altruísmo, não um altruísmo sentimental e
civilização estabilizará rapidamente o nível médio da vida no desordenado, mas prático e ponderado, cujas vantagens são
segundo grau da evolução humana, que então desejará subir calculadas. Dado o tipo humano dominante, o altruísmo só
para o terceiro. Isto poderá parecer distante hoje, quando ain- pode nascer como utilidade coletiva. Utilidade que, pela lei do
da ressoa entre vós o eco das lutas nos mais baixos níveis; menor esforço, coloca-o, inexoravelmente, na linha da evolu-
mas o tempo está maduro pela elaboração dos milênios, e este ção. Limitar o trabalho, ainda que material, à exclusiva finali-
é o futuro do mundo. Não vos falo do presente, que conheceis, dade egoísta do lucro é diminuir a si próprio, abdicando da
mas do futuro, que vos aguarda; não vos exponho apenas as consciência do próprio valor, do qual o trabalho é prova e
dificuldades desta hora, mas também os problemas e as cons- confirmação; é uma automutilação, uma renúncia à função de
truções para as quais é necessário preparar-vos. célula social, de construtor que, por menor que seja, tem seu
lugar no funcionamento orgânico do universo.
LXXIX. A LEI DO TRABALHO Concebei o trabalho como instrumento de construção
eterna, mas cujo fruto vos pertence em forma de capacidade
Os caminhos da evolução no nível humano são ciência e conquistada para a eternidade, e não como lucro de vanta-
trabalho. Para preparar o reino do espírito, é indispensável, an- gens imediatas e transitórias. A verdadeira recompensa está
tes, transformar a Terra, para que, em continuidade, as constru- em vosso valor, que o trabalho cria e mantém e que não vos
ções superiores tenham suas bases. É necessário, antes de pen- pode ser roubado. Amai o trabalho como disciplina do espí-
sar no progresso futuro, amadurecer o progresso presente. Ma- rito, como escola de ascensões, como absoluta necessidade
ravilhoso é vosso dinamismo trabalhador e criador; não o to- da vida, correspondente aos imperativos supremos da Lei,
meis, todavia, como meta absoluta, como tipo definitivo e que impõe vosso progresso mediante vosso esforço. Ele dará
completo de vida, mas apenas como meio para atingir um esta- um sentido de seriedade, de dever, de responsabilidade pe-
do mais distante e algo superior. Aprendei a ver seus pontos rante a vida, fazendo dela um campo de exercícios, em vez
fracos e a querer superá-los, porque neles também estão as de um carnaval de gozadores; evitará o espetáculo de tantas
culpas, os males e as dores que vos afligem. Admirai e, acima leviandades que insultam o pobre; dará ao dinheiro o alto
de tudo, aperfeiçoai, mas não tomeis a sério demais vossa civi- valor do esforço realizado, que é o único honesto.
98 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
Assim, o trabalho não é uma condenação social dos deser- para isso. A beleza do futuro será, sobretudo, o funcionamen-
dados, mas um dever de todos, a que não é lícito fugir. Na to harmônico de vosso mundo; vosso progresso será uma con-
minha ética, é imoral quem se subtrai à própria função social quista de ordem, que vos harmonizará com a ordem reinante
de colaborar no organismo coletivo, em que cada um tem de no universo. Assim como a matéria, ao completar seu ciclo de
estar em seu posto de combate. O ócio não é lícito, mesmo se vida, atingiu o estado de ordem no universo astronômico,
permitido pelas condições econômicas. Esta é a moral mais também o espírito – hoje, para vós, ainda no período das pri-
baixa “do ut des”, moral selvagem, que deveis ultrapassar. meiras formações caóticas – quanto mais avançar no ciclo da
Assim, não só por dever social mas também por dever para vida, tanto mais realizará a fase de ordem.
consigo mesmo, para não morrer, o espírito deve nutrir-se de Esperam-vos, assim, ascensão e dilatação do concebível,
atividades a cada dia e, a cada dia, reconstruir-se, realizando- transformações de consciência para dimensões superiores e
se no mundo da ação. Parar além do repouso indispensável é contatos com os mais inexplorados ângulos do universo e cam-
culpa de lesa-evolução. Quem vadia rouba à sociedade e a si pos do conhecimento. Deus se aproximará de vós, em vossa
mesmo. O novo mandamento é: trabalhar. concepção, e o sentireis cada vez mais presente, cósmico, sur-
Estas são as bases do mundo econômico do futuro, em que preendente. Vós, fundidos em Sua ordem, sereis muito mais fe-
urge introduzir os conceitos morais de função e de coordenação lizes que hoje. Esse será o prêmio de vosso esforço.
de atividades. Numa sociedade consciente, orgânica e decidida a
progredir, não se pode, em nenhum campo, ser agnóstico, amo- LXXX. O PROBLEMA DA RENÚNCIA
ral, espiritualmente ausente. Só assim se eliminará tanto atrito
inútil de classes, tantos antagonismos de indivíduos e de povos. É Prossigamos nos caminhos da evolução, que agora atingirá
necessário formar esta nova consciência de trabalho, porque só problemas mais substanciais, penetrando as camadas mais pro-
então ele se elevará a uma função social, como coordenação soli- fundas da personalidade. Enfrentemos as mais altas fases da as-
dária (colaboracionismo) de forças sociais. Os conceitos do velho censão, mostrando o trabalho adequado para os tipos humanos
mundo econômico são absolutamente insuficientes. Temos que mais elevados. Nossas construções são todas na consciência, a
purificar a propriedade, tornando-a filha do trabalho. É necessá- única a armazenar valores indestrutíveis. É em função dessas
rio consolidar, e não demolir essa instituição, reforçando-a nas construções que concebo qualquer forma de atividade humana.
bases, no momento da formação, que deve corresponder de modo Não vos abandoneis à inconsciência do carpe diem (aproveite o
absoluto a um princípio de equidade. dia). Indispensável é preparar-se o futuro. Não se pode dizer:
Em minha ética, rouba aquele que, por vias transversas, pou- “gozemos, não há amanhã”, porque o amanhã chegará e vos en-
co importa se legais, acumula rapidamente, enriquecendo repen- contrará despreparados. A inconsciência não evita as reações. É
tinamente; rouba quem vive de bens hereditários, no ócio; rouba preciso enfrentar com seriedade e coragem muitos problemas
quem não dá à sociedade todo o rendimento de sua capacidade. individuais e sociais que vossos ancestrais talvez não sentissem
Para evitar esses males, temos que cortar o mal pela raiz, que está coletivamente, mas que, sem dúvida, não resolveram. É neces-
na alma humana. Este é hoje o primeiro passo a ser dado no sário compreender tudo e, dos alicerces, tudo refazer, especial-
campo das ascensões humanas: fazer um homem que saiba quem mente o homem, que é apenas uma criança. Tendes diante de
ele é, qual é o seu dever, qual é a sua meta na Terra e na eterni- vós imenso trabalho, e apenas o começastes. Deveis realizar,
dade; um homem que se mova não no círculo estreito de um se- acima de tudo, uma maravilhosa construção moral, e é com o
paratismo egoísta, mas num mundo de colaborações sociais e fim de vos preparar para isso que executei tão longa viagem,
universais; um homem mais evoluído, que saiba acrescentar às desde os movimentos primordiais da matéria até ao espírito.
suas aspirações materiais outras mais poderosas, de caráter espi- A lei futura está, não há dúvida, no Evangelho do Cristo e
ritual; que faça do trabalho não uma condenação, mas um ato de se realizará no esperado Reino de Deus. Mas esta lei vos apare-
valor e de conquista. Se o trabalho, quanto mais retrocedemos no ce hoje como um caso limite, de que só é possível avizinhar-se
passado, tanto mais representa a posição de vencido e de escravo, por aproximações sucessivas, por meio do uso inteligente das
ao contrário, quanto mais progredirmos no futuro, mais se tornará forças biológicas. As verdadeiras soluções partem do indivíduo
ato nobre de domínio e de elevação. e de seu coração e atingem a substância, mudando primeiro a
Eis o que vos aguarda no futuro. O progresso científico e conformação da alma individual. Não se trata de experiências
mecânico iniciou novo ciclo de civilização. As forças naturais coletivas exteriores, de sistemas reorganizados; trata-se, isto
serão dominadas e submetidas, e o homem, tornando-se verda- sim, de maturação biológica, que não pode ser negada, porque é
deiramente rei do planeta, aí assumirá a direção das forças da irresistível; trata-se de compreendê-la e de secundá-la.
matéria e da vida. As civilizações futuras vos imporão um re- O problema pode ser considerado como religioso, político,
gime de coordenação e de consciência no qual se valorizará econômico, jurídico, artístico, científico; atinge o homem in-
grandemente o tão depreciado valor moral e psíquico, fator tegralmente e, portanto, todas as suas manifestações. Não se
fundamental para um ser que, em plena responsabilidade e co- trata de destruir, mas de sublimar os caracteres fundamentais
nhecimento das consequências, terá que assumir a função de da personalidade: vontade cada vez mais viril, inteligência
central psíquica, em torno da qual girarão não mais o presente mais aguda, coração sempre mais sensível e aberto. Do ho-
estado de luta e de anarquia, mas todas as forças do planeta, em mem deve nascer o anjo. É a redenção de Cristo. O Evangelho
perfeito funcionamento orgânico. é o seu código, a virtude é sua norma, a vida dos santos é a
A luta presente é viva, porque é ativo o esforço que tende experiência. É a fé que anima todas as religiões, cada uma em
à construção das novas harmonias. A ciência se espiritualiza- seu nível. Corpo e espírito são posições vizinhas, duas fases,
rá. Exaurida sua função utilitária, ultrapassará este seu caráter, dois mundos, duas leis. A evolução tem que realizar a ascen-
adquirindo valor moral e metas espirituais. A sutilização dos são . O primeiro já está feito. A evolução continua e é
meios de pesquisa levar-vos-á, inevitavelmente, ao contato necessário fazer evoluir o segundo, consolidar e elevar vossas
com essa mais profunda realidade do imponderável. A ética tentativas de formações psíquicas (paixões, embriões de inte-
será um fato demonstrável e, portanto, obrigatória para qual- lectualidade, esboços de alma coletiva). O homem conquistou
quer ser racional. Não será mais lícita a inconsciência do ego- o poder fora de si, o domínio da Terra. Agora tem que con-
ísmo, do vício, do mal, que tantas dores semeia em vossa vi- quistar o poder dentro de si, o domínio do espírito.
da. A evolução vos aperta e vos constrange fatalmente, de to- Num mundo em que ninguém pensa no semelhante como
dos os lados; vosso irrequieto dinamismo já trabalha vivamente seu irmão, como se a sorte do próximo pudesse ficar isolada e
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 99
não recaísse sobre todos; num mundo em que ninguém tem em com tenacidade e sem mentira, o máximo de transformismo su-
si a medida da própria expansão, limitada apenas pela reação portável na forma individual, seguindo cada um sua própria linha
dos outros, que igualmente quereriam expandir-se sozinhos, típica de especialização. As grandes ascensões não são fáceis
acima de todos; nesse mundo, a aparente utopia evangélica é o aventuras espirituais, mas verdadeiras transformações de consci-
único cimento coordenador de atividades e construtor do orga- ência, transportada perigosamente, além da vida, no supranormal.
nismo social. Todos aguardam sistemas exteriores, contanto Não basta dizer: Senhor, Senhor! É indispensável a maceração de
que não mudem a si mesmos. Nas mais diferentes experiências corpo e espírito, em que vale, sobretudo, a tenacidade plasmado-
sociais, todos ficam sempre idênticos, mas o progresso social só ra das marteladas. Trabalho de purificação total, que vai da atitu-
pode verificar-se através dos progressos individuais somados; a de do espírito, da escolha das obras, à purificação celular obtida
melhoria do organismo virá da melhoria de cada uma de suas por meio de um regime dietético que exclui a introdução de ali-
células. Assim se realiza a grandiosa ascensão humana, que, mentos inadequados no circuito orgânico. Trabalho de pondera-
partindo do inferno da animalidade (o mundo da fera), através ção e resistência, cálculo complexo de forças, em que é mister
do purgatório da prova que ensina ou da dor que redime (lei de não esquecer que a evolução não se força nem se usurpa, porque
equilíbrio), chega ao paraíso das realizações do divino (o mun- se trata de um amadurecimento biológico, que só se pode obter
do super-humano). Assim, as vias da evolução são também as por meio de um longo e constante trabalho, mas cuja realização
vias da libertação das trevas, do mal, da dor. pode ser facilitada e acelerada, escolhendo-se o caminho, ao in-
É necessário demolir e reconstruir; sufocar a animalidade vés de lançar-se em tentativas, à mercê do acaso.
individual e social e qualquer expressão dela, substituindo-lhe Estas palavras de equilíbrio, eu as digo ao tipo comum,
por manifestações de ordem superior. Para reedificar, é preciso inepto diante das grandes realizações do espírito, pois sua me-
também destruir; depois, substituir e reconstruir. Se a renúncia diocridade é dominante. Tais realizações representam elevados
é necessária como demolição, é indispensável substituir o velho ideais, que, como faróis, iluminam o mundo. Entretanto a maio-
com novas paixões, impulsos e criações, para que o ritmo da ria humana está apenas nas primeiras aproximações.
vida não pare e o espírito não se torne árido. É necessário que o Falando ao tipo comum, devemos indicar a renúncia não em
alegre esforço de renascer mais alto supere e absorva o tormen- seu mais elevado grau, na forma completa de perfeição moral,
to da morte mais embaixo. Evitai as loucuras da renúncia pela mas como máxima aproximação suportável. Isso constitui sem-
renúncia: isso provoca perigosas zonas de vazio, em que a alma pre uma escola de disciplina moral, proporcionada às forças e à
se atrofia. Em lugar disso, seja vossa luta tempestuosa e heroi- compreensão individual. Disciplina dos sentidos, controle das
ca, como a dos conquistadores que avançam seguros; seja de paixões, educação diária, que não deixa escapar ocasiões para
ímpeto de paixão, que sabe vencer tudo; seja em cada átimo elevar os impulsos existentes. Cada um, na porfia das ascen-
cheia de alegria, de uma juventude renovada. Formar-se-á, en- sões, escalonar-se-á ao nível de sua capacidade; o que ele sou-
tão, entre corpo e espírito, uma rivalidade, uma guerra, que os ber conquistar dará testemunho de seu íntimo valor.
místicos bem conheceram e descreveram. Por isso, não direi ao homem moderno: destrói a riqueza,
Ao subirmos aos mais altos níveis, parece que a velha forma sê pobre. Mas lhe direi que se encaminhe gradativamente,
biológica, que se atrofia, não pode mais suportar o psiquismo porque só aos poucos poderá conquistar a perfeição. Comece
hipertrofiado, e surgem desequilíbrios aparentes, que a ciência, a livrar-se da escravidão do supérfluo, do moderno frenesi da
não sabendo compreendê-los, define como patológicos, classi- riqueza, que frequentemente conduz a complicações antivitais
ficando-os como formas de neurose. A matéria é pertinaz, mas e que, quando não custa muito esforço, custa em desonestida-
é filha do passado, que vai sendo superado; o espírito sofre, de, jamais pagando o que exige. É uma arma de dois gumes
mas o futuro lhe pertence. Passado e futuro significam força e que, se facilita a vida, constitui também uma cadeia que a
justiça, dor e alegria, escravidão e liberdade, mal e bem; extre- oprime. A sociedade moderna está esmagada pelo peso de há-
mos entre os quais oscila a alma humana para a sua ascensão. bitos custosos e supérfluos; há uma corrida à multiplicação ar-
Para os seres evoluídos, essas realidades do espírito – in- tificial das necessidades, escravidão real, alegria efêmera,
concebíveis para os tipos inferiores – podem ser irresistíveis. porque se desvaloriza com o costume.
Então a luta assume proporções tremendas, entre um espírito Simplificai. Há uma pobreza econômica que pode ser
que busca com toda a força sua afirmação e exige para si toda amplamente compensada por uma grande riqueza moral, as-
a vida, e uma natureza inferior que não quer ceder o campo e sim como existe uma miséria moral que nenhuma riqueza
não quer morrer. O passado resiste sólido, por impulsos de poderá jamais atenuar. Esse é vosso tempo. O deus utilitário
milênios, cristalizados nas formas, e ao incêndio do espírito de vossa civilização moderna impõe um esforço cada dia
opõe a inércia das grandes massas, prendendo-se como con- maior do que aquele exigido pelo deus da renúncia. A maté-
trapeso ao frêmito do anjo alado que anseia voar. O espírito ria é negativa, inerte, pobre, insaciável, egoísta; absorve e
vê, guia, apreende; é o centro dinâmico. A matéria é massa es- acumula. Cega e muda, só pode viver se plasmada pela po-
tabilizada, que fixou e conserva as conquistas feitas. O espíri- tência do espírito em seu amplexo vivificante. O espírito é
to está à testa, arrisca novos equilíbrios, destacando-se dos positivo, ativo, rico, generoso; sua necessidade é o dar, o al-
caminhos conhecidos, expondo-se a perigos; o esforço é todo truísmo, o sacrifício; não tem garras para segurar e entesou-
seu. O organismo humano está construído para prover, com um rar, mas é potencial inexaurível de criação. Ai de quem se
mínimo de esforço psíquico, a sua vida vegetativa, a fim de fecha no circuito da matéria, pois obstrui para si os cami-
atender ao metabolismo, e não para suportar as tempestades da nhos que alcançam as mais ativas fontes dinâmicas, que es-
alma. Mas, para esses seres, cada átimo de vida é um átimo de tão na direção das forças espirituais. Felizes os pobres de
transformismo evolutivo; a grande caminhada não pode deter- espírito. Se obtiverdes a riqueza, que vosso coração esteja
se, e a vida desloca seu centro. Tudo se transforma no ser: pai- desapegado dela. Muitos pobres são apenas ricos frustrados,
xões e aspirações, numa realização cada vez mais intensa do igualmente ávidos e culpados. Eles terão ainda de sofrer e
divino. Drama laborioso e fecundo, que só os grandes souberam superar a prova da riqueza, para aprender a sublime lição do
viver, que a grande arte do futuro saberá compreender e repre- desapego. O pobre que inveja o rico tão somente para exce-
sentar. Lutas e vitórias de titãs. Impô-las a quem não está ma- der-lhe naquilo que condena, obterá a riqueza como punição,
duro significa dar a morte sem restituir a vida. para experimentar-lhe o enorme peso e o valor efêmero. Seja
A alegria da vida está na expansão; o sofrimento, na limita- a riqueza um meio, e não um fim; seja dirigida para metas
ção. É inútil tentar ascensões altas demais e renúncias vazias, que mais elevadas, as únicas que poderão justificar um pouco o
nada trariam além de sofrimento. Mas é necessário introduzir, triste ídolo, em cujo nome tanto mal foi cometido.
100 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
LXXXI. A FUNÇÃO DA DOR da de débitos, que circula por todos, passa de geração em ge-
ração e permanece sempre a mesma, porque ninguém a ab-
Outra força que o homem moderno teria de compreender sorve. Cristo, que morreu na cruz, redimindo a humanidade
é a dor. A atitude de vossa mentalidade diante do fenômeno com sua paixão, é o grandioso símbolo que resume e conva-
da dor é de defesa e rebelião. A ciência fez faiscar em vossas lida esses conceitos.
mentes a ilusão de uma possibilidade de paraíso imediato na Que diremos ao homem comum que sofre, mesmo igno-
Terra e desencadeou uma guerra contra a dor, mesmo à custa rando? É bem triste, por vezes, o quadro das reações naturais
de qualquer prostituição moral, num paroxismo de terror que a que denominais castigo divino. Inútil negá-lo: todos so-
revela como, nas próprias dobras de sua audácia, esconde-se, frem, mais ou menos; todos se debatem entre as garras do
numa zona cinzenta de fraqueza, uma alma cega diante dos monstro. Pobre ser, o homem! Não só permaneceu pagão,
objetivos supremos. Mas essa atitude de espírito não alcançou mas bestial na substância, rebaixando tudo ao seu nível: re-
sua meta, e jamais, mesmo no estrondo de tão grande progres- ligião, estado, sociedade, ética. Para adaptá-los à sua condi-
so, a dor assanhou-se tanto mais aguda e profunda, nunca se ção, realiza uma contínua redução de todos os valores mo-
viu maior vazio no espírito, nunca faltou tanta coragem de lu- rais; preso ainda aos instintos primordiais do furto e da guer-
tar e saber sofrer. A ciência não compreendeu que a dor tem ra, precisa atravessar dores ingentes, porque só elas poderão
uma função fundamental de equilíbrio na economia da vida e, fazer-se entendidas, abalando sua inconsciência. A alma
como tal, não pode ser eliminada; ela é íntima função de or- humana, que hoje amontoou sobre si um emaranhado fardo
dem, função biológica construtiva, como excitante de ativida- de inútil cerebralismo, não vê esses equilíbrios espontâneos
des conscientes. O tão criticado estado de alma de resignação e simples e, no paroxismo de um dinamismo frenético, é al-
paciente é uma virtude de adaptação, de resistência e de defe- ma fraca e primitiva. O que poderia fazê-la soerguer-se, sem
sa, que os povos modernos estão perdendo. A ciência movi- restringir-lhe a liberdade, senão a imensurável massa de do-
mentou-se para eliminar as causas próximas da dor; ela, po- res? O homem está equilibrado em seu nível, oprimido por
rém, corresponde a uma lei de ampla causalidade, cujos pri- uma áspera luta e por uma realidade de dores. Iludido, insen-
meiros e distantes impulsos é necessário pesquisar. Essas cau- sível, inconsciente, resiste a qualquer melhoria substancial,
sas estão na substância dos atos humanos, na natureza indivi- corre atrás dos sentidos, ambiciona a ascensão exterior, eco-
dual. Enquanto o homem for o que é e não souber realizar o nômica, ávido para abusar de tudo, imerso no egoísmo do
esforço de superar-se a si mesmo, a dor será parte integrante momento, ignorante do amanhã, fechado em seu horizonte. Se
de sua vida, com funções evolutivas fundamentais, e, portan- o gênio não se abaixar até ele, este certamente nada saberá fa-
to, substancial e irredutível fator que a evolução impõe. Sei zer para alçar-se até ao gênio. As verdades são ditas, mas a
muito bem como é o homem moderno e não lhe peço a perfei- exploração dos ideais é tão velha quanto o homem, e a socie-
ção imediata. Digo-lhe, entretanto, que, se não for capaz de dade habituou-se a considerá-los mentira. Cada um sabe, por
melhorar-se e enquanto não modificar-se, todas as dores que instinto, nascido de experiências seculares, que, por trás de
lhe sobrevierem serão justas e bem merecidas. tantas ostentações de coisas elevadas, existe a própria miséria
Pobre ciência, emudecida diante dos problemas substan- moral e material; que aquelas são retórica, e esta a realidade;
ciais! Pobres crianças que odiais a dor que vós mesmos qui- acredita nas verdades em que todos creem: a festa do próprio
sestes e que semeastes; que tendes a ilusão de vencê-la ca- ventre e a vitória por qualquer meio. A última palavra cabe à
lando-a e escondendo-a, ao invés de compreendê-la. Os pro- dor, única formadora eterna de destinos e forjadora de almas.
blemas só se resolvem quando são enfrentados com lealdade Ela ficará enxertada no esforço da vida, num gotejar cotidiano
e coragem. No meio de tanto progresso, cada um caminha e em grandes e periódicas lufadas coletivas, para atingir as
mudo dentro de si mesmo, a sorrir numa máscara de cortesia almas e deixar nelas suas marcas.
que esconde seu fardo de males secretos. A cada dia, novos Para chegar à solução do problema, é indispensável o aperfei-
excessos em todos os setores, excitando novas reações de so- çoamento moral; é necessário o amadurecimento biológico do
frimentos futuros. Se o homem tem de ser livre e, no entan- super-homem; é preciso subir com Cristo à cruz e refazer a vida
to, ignora as consequências de suas ações, uma dor atroz que individual e coletiva nas bases do amor; é necessário saber reen-
o flagele é, para seu bem, a reação necessária e proporcional contrar na dor uma força amiga, da qual se compreendem as cau-
à sua sensibilidade. Isto é inevitável, pois, quando a orienta- sas e a função, e utilizá-la para a própria ascensão. A dor contém
ção da vida está toda errada, nem por isso a lei das coisas se o germe de uma felicidade cada vez mais alta, que o homem “de-
modifica, mas reage a cada momento para se fazer compre- ve” conquistar; é o esforço necessário da evolução, que é a es-
endida. Em sua ingenuidade, o homem pretenderia violar e sência e a razão da existência. Esses equilíbrios são insuprimíveis
modificar a Lei, torcendo-a a seu favor; tem a ilusão de po- e indispensáveis à respiração do universo.
der e saber tudo, fraudando a todos; ri-se das reações e con- Se a dor faz a evolução, a evolução anula progressivamente
sidera o irmão caído como um falido, ao invés de estender- a dor. Esta, reabsorvendo a reação e eliminando o débito, ope-
lhe a mão, a fim de que a encontre estendida para si quando rando a gradativa harmonização e atuação da Lei no eu, elimi-
for sua vez de cair. Deveria, ao contrário, compreender que, na-se a si mesma, enquanto faz progredir o ser. Isso demonstra
num mundo em que nada se cria e nada se destrói, mesmo no a justiça e a bondade da Lei, que não é lei de mal, nem de dor,
campo das qualidades morais sutis, só se neutraliza um efei- mas lei de bem e de felicidade. Por isso é necessário seguir um
to ao reconduzi-lo invertido para a sua causa, a fim de aí en- caminho de gradual redenção em várias etapas: primeiro, reab-
contrar sua compensação. Não se anula uma quantidade de sorver as reações livremente excitadas no passado, sofrer paci-
caráter consciente e moral, se não for absorvida pela vida. A entemente as consequências das próprias culpas; depois, re-
mentalidade moderna míope limita-se ao jogo da defesa constituído o equilíbrio, manter-se em estado de harmonia com
imediata contra uma força que volta sempre. Emprega nisso a Lei, evitando qualquer nova violação e reação. É indispensá-
um constante esforço, procurando expulsá-la, ao invés de vel conceber o universo não como um meio para a realização
absorver-lhe a potência e exauri-la, e, para não ver, atordoa- do próprio eu, centrado neste, mas como um universo regulado
se nos prazeres, aumentando-a com novos erros, que voltam por uma lei suprema, dentro do qual só é possível realizar o
sempre em forma de novas dores. Assim, homens, classes próprio eu quando em harmonia com tudo o que existe. É ne-
sociais e nações transferem uns aos outros essa massa satura- cessário conceber a dor não como um mal devido ao acaso, mas
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 101
como uma forma de justiça, como uma função de equilíbrio mais profundas, e o choque da dor obriga a seguir os caminhos
que, mesmo respeitando-lhe a liberdade, ensina ao homem os da libertação. Um novo mundo se revela a cada golpe que pare-
verdadeiros caminhos da vida e o “constrange”, após tentativas ce trazer ruína, algo se agita e nasce do âmago do eu; a cada
e erros, pelo único caminho possível: o do próprio progresso. A golpe da dor, que parece mutilar a vida, algo se reconquista que
dor não pode desaparecer, se não for pago o débito à lei de jus- a faz crescer e a eleva. A dor destaca e liberta de um invólucro
tiça, que, seja no campo moral, social, histórico, econômico, fí- denso de desejos e de sensações a alma, que a cada pedaço de
sico ou químico, é sempre a mesma lei, a mesma vontade, o animalidade arrancado, dilata-se em mais amplo poder de per-
mesmo Deus. Não se frauda nem se escapa no tempo à sua cepção, em forma mais intensa de vida, em realidade mais pro-
ação. Rebelar-se contra a Lei excita um maior choque de rea- funda. Imaginai a mais titânica das lutas, o mais tremendo dos
ções, que a sua elasticidade (divina misericórdia), tão grande esforços, a mais formidável tempestade. Há um dilaceramento
que pode conter todo o livre-arbítrio humano, terminará sempre silencioso no âmago das leis biológicas; uma disputa palmo a
por devolver-vos, como fato inexorável. palmo no campo da vida; um encarniçamento de retornos atávi-
A anulação da dor é feita corajosamente através da dor, cos para baixo, uma atração irresistível para o alto. Espírito e
que, por isso, pode ser colocada no caminho das ascensões hu- animalidade lutam, vinculados e inimigos, como na hora da al-
manas. Abandonai a utopia que o materialismo vos pôs na men- vorada lutam a luz e as trevas, para que surja o dia. Na fase su-
te e percebei esta solene verdade da vida. Em meio ao ímpeto per-humana, a dor não é mais apenas expiação, que se conforta
frenético de vossos tempos em busca de todas as felicidades, com a esperança: é o ímpeto frenético das grandes criações es-
entre a série lastimável de todas as experiências humanas, dian- pirituais. No meio da luta pela libertação, a sensação dominante
te da desilusão que apaga nas pupilas o sonho vão da felicidade é juventude, na expansão das energias é ressurreição; enfraqueci-
não atingida, tenha o homem a coragem de olhar esta realidade das as paixões e dominadas as prepotências da natureza inferior,
mais profunda e abrace fraternalmente sua dor. Que ele aprenda a sensação do espírito vitorioso é o doce repouso de quem aporta
e progrida na arte de saber sofrer. Talvez julgueis este tom pre- num oásis de paz. O espírito olha então com mais calma dentro
valentemente negativo, mas ele o é apenas sob vosso ponto de de si. A dor e a luta sutilizaram seu ouvido, e ele pode ouvir. En-
vista humano, não no das reconstruções super-humanas, onde tão irrompe o canto do infinito. Então, lentamente, do âmago da
se fundamenta minha maior afirmação. Na tábua relativa de alma, ecoa a grande sinfonia do universo. As notas que aí cantam
vossos valores éticos, estais sempre embaixo, e vossas virtudes são as estrelas e os mundos, as flores e as almas, as harmonias da
violentas e guerreiras, necessárias ao vosso estado atual, não Lei e o pensamento de Deus.
mais serão virtudes amanhã e estarão superadas. Tudo é pro- Levanta-te ó alma, tua dor está vencida! Morta, entre as coi-
porcional ao próprio nível e o exprime. Há muitas formas de sas mortas, está tua dor, lá em baixo, inútil instrumento jogado
dor, e esta é tanto mais grave quanto mais baixo estiver o ser. A fora, lá embaixo, na margem deserta de um caminho triste. No
medida do contragolpe doloroso que recai sobre quem movi- infinito, o universo canta: levanta-te, tua dor está vencida. Todas
mentou a causa – obtida pelo cálculo de responsabilidade, co- as coisas transformaram-se diante do olhar de Deus; o canto tem
mo já vimos – modifica-se com o grau de evolução, que sutiliza tal profundidade de doçura, que a alma se desorienta. Para alegria
a cadeia férrea das reações. da mente, caem os véus do mistério; para alegria do coração, ca-
Observai como o castigo quase se volatiliza no processo da em as barreiras do amor. Abre-se o universo. Uma vibração oni-
espiritualização progressiva. No mundo subumano, a dor é der- presente de amor transporta o espírito para fora de si, de visão em
rota sem compaixão; o ser sofre nas trevas, cheio apenas de ira, visão, de felicidade em felicidade. Ele não luta mais: abandona-
num estado de miséria absoluta, sem luzes espirituais compen- se e esquece-se em Deus. As forças da vida o sustentam e o ar-
sadoras. É a dor do condenado, cego, sem esperança. E o ho- rastam, lançam-no para o alto, onde está o novo equilíbrio. Rom-
mem tem liberdade de retroceder para esse inferno, se não qui- pidas as correntes, ele está verdadeiramente livre e pode subir,
ser aceitar o esforço de sua libertação. No mundo humano, a mas o passado persegue, e é necessário percorrer até ao cume os
consciência desperta, pesa e reflete; o espírito tem o pressenti- caminhos do bem, assim como, para os maus, é necessário sub-
mento de uma justiça, de uma compensação e de uma liberta- mergir até ao fundo nos caminhos do mal. Então, o ser não per-
ção, e espera. É a dor tranquila de quem sabe e resgata; é o pur- tence mais à terra de dor; emerge cada vez mais na luz do Cristo
gatório confortado por uma fé; o castigo para nas portas da al- e aí se aniquila num incêndio de amor.
ma, que tem seu refúgio na paz. A mente analisa a dor, desco- Estas não são rarefações utopistas da respiração da vida,
bre-lhe as causas e a lei, aceita-a livremente, como ato de justi- mas apenas enquanto não haja sido deslocado o centro da per-
ça que trará alegria; de um tormento faz um trabalho fecundo, sonalidade para o mundo super-humano. O conceito de dor-
um instrumento de redenção. Quanto já perdeu a dor de sua vi- prejuízo e de dor-mal evolui, desse modo, por gradações, para o
rulência! Muito diferente é o sofrer esperando e bendizendo, de dor-redenção, dor-trabalho, dor-utilidade, dor-alegria, dor-
pois o golpe contra a alma assim encouraçada é menos amargo bem, dor-paixão, dor-amor. Há como que uma transumaniza-
e, no espírito defendido por essa profunda consciência, tem ção da dor na lei santa do sacrifício. Nesse paraíso, o milagre
menor força de penetração. A visão substancial das coisas dá a da superação da dor através da dor está realizado. O mal é tran-
cada caso a sensação da justiça, uma grande fé e um absoluto sitório; o estridor das violações, o choque violento entre a livre
otimismo; entre as dissonâncias do ambiente forma-se na alma ação e a Lei esgotam-se em suas funções; a dor existe para en-
um oásis de harmonia. Chega-se, assim, por graus, ao mundo golir-se a si mesma; finda o desacordo à proporção que se al-
super-humano, em que a dor perde seu caráter negativo e malé- cança a harmonia. Por meio desse sábio mecanismo, pelo qual a
fico e transforma-se numa afirmação criadora, em poder de re- liberdade é obrigada a canalizar-se para o progresso, chega-se à
generação, numa corrida à vida. Ergue-se, então, o hino da re- unificação do eu com a Lei. Então, desaparece qualquer possi-
denção: felizes os que choram. bilidade de violação e de reação, e a dor se anula em sua causa.
A dor, obrigando o espírito a dobrar-se sobre si mesmo, Então, a alma brada: “Senhor, agradeço-Te por esta que é a
prepara o caminho para as profundas introspecções e penetra- maior maravilha da vida: a minha dor, que é Tua bênção!”.
ções; desperta e desenvolve suas qualidades até então latentes; Mesmo por outros caminhos, inferiores e coletivos, a dor
multiplica-lhe todas as potencialidades. Sobretudo para as tende a anular-se. Ela é o último elo da cadeia: involução, igno-
grandes almas, a dor é uma força de valorização e criação. A rância, egoísmo, força, luta, seleção. Mas o ímpeto evolutivo
expansão da vida, constrangida para o interior, atinge realidades transforma a fase da força em justiça, o mal em bem. Demolindo
102 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
as mais baixas condições de vida, opera a transformação da dor. LXXXII. A EVOLUÇÃO DO AMOR
Tal como a força, coletivamente – por um jogo de reações cole-
tivas, através de uma progressiva aproximação e segundo a lei Amor, impulso fundamental da vida, força de coesão que
do mínimo esforço – tende, com o uso, à autoeliminação, como rege o universo, potência divina de eterna reconstrução! En-
que reabsorvendo-se em si mesma para ressurgir em forma de contrá-lo-emos sempre indestrutível, em formas infinitas, em
justiça, assim também a dor, coletivamente, tende a anular-se todos os níveis do ser. Com este, o amor subirá, sublimando-
como fator transitório inerente às mais baixas fases de evolu- se até ao paraíso dos santos. O amor, como a dor, tem uma
ção. Absurdos seriam um mal e uma dor incondicionais e defi- função fundamental de conservação, coesão e renovação e
nitivos. O maior ímpeto da vida, a evolução, leva, necessaria- faz parte integrante do funcionamento orgânico do universo;
mente, o mal ao bem, a dor à felicidade. seu impulso não pode ser destruído, mas deve ser reforçado
Mostro-vos todas as gradações da verdade, para que cada e elevado; seu desejo não pode ser eliminado, mas deve ser
um escolha a mais elevada em seu concebível. Dizei-me como guiado para uma contínua elevação. Evolução de instintos,
sabeis sofrer e vos direi quem sois. Cada um sofre diferente- evolução de paixões, aperfeiçoamento constante da persona-
mente, de acordo com seu nível: uns amaldiçoando, outros lidade (teoria evolutiva do psiquismo).
resgatando, outros abençoando e criando! Das três cruzes Também aqui observaremos o amor nos diferentes níveis e
iguais sobre o Gólgota partiram três gritos diferentes. Só jus- em sua ascensão. Assim, traçaremos novo aspecto das vias da
tiça e amor é a reação dos grandes. Cabe a vós saberdes extra- evolução. O amor, que no mundo animal é função prevalente-
ir do esforço da vida a maior ascensão do espírito, utilizando a mente orgânica, adquire no homem funções de ordem nervosa e
dor ao invés de combatê-la, transportando cada vez mais para psíquica; complica-se, dilata seu campo de ação, sutiliza-se e
o alto o centro de vossa vida. sensibiliza-se (se souber evitar o perigo de uma degradação
Certamente que, nestes níveis, não estamos na ordem co- neurótica) para um superamor espiritual. Se não é possível des-
mum das coisas humanas atuais, e tudo isso pode parecer fuga e
truir as paixões, mas sim fazê-las evoluir, justamente por isso é
demolição de virtudes positivas; mas já vos disse que é fuga pa-
indispensável dominá-las e guiá-las, orientando-as para a fase
ra uma afirmação mais elevada. Isso pode parecer mutilação de
espiritual. Tudo o que acentua o elemento nervoso e sutil – fas-
aspirações e de vontades, supressão de energias sadias, produti-
cínio, simpatia de alma, graça, arte, música, vibrações, psi-
vas, mas essas aspirações jamais vos farão sair dos níveis infe-
quismo – tudo que é perfume e poesia do amor, tudo enfim que
riores do ciclo da vida, nos quais cada vitória tem que contraba-
desmaterializa e espiritualiza é evolução, que vos guia para a
lançar-se com uma derrota, cada juventude com uma velhice.
superação das formas do amor humano. Estais à porta de novo
Aí, cada grandeza precipita-se sempre em sua destruição. O que
reino: o amor místico e divino. Êxtase supremo experimentado
vos indico, porém, é sublimação da vida, numa forma de ação
pelos santos, que não é digressão agradável de sentimentalismo
mais alta, dirigida às únicas conquistas eternas; ação mais enér-
romântico, e sim a mais tempestuosa das conquistas, a mais alta
gica e civilizada, e não o desperdício inútil da agressão comum,
tensão do domínio sobre as forças biológicas, uma luta viril
que desorganiza; ação mais produtiva, porque consciente das
forças naturais, em meio das quais se realiza. contra a animalidade, onde se empenham todas as forças da vi-
Não vos indico como supremo ideal humano a figura primiti- da. Falo de um misticismo ativo, que renuncia para criar, e não
va do herói da força, que violenta e vence, mas – ainda que as daquele vão misticismo moderno, neurótico e sensual, enervan-
massas não nos entendam – mostro-vos o super-homem, em que te e doentio, que, entre artificiais complicações de sutilezas, só
a vontade do dominador, a inteligência do gênio, a hipersensibi- existe no espírito ocioso e desolado.
lidade do artista e a bondade do santo fundem-se; o lutador so- No alto, como ponto limite da evolução humana, está o amor
bre-humano, que perdoa e ajuda a seu semelhante, que só ataca divino. Ao homem mediano só podemos pedir a maior aproxi-
as forças biológicas, para submetê-las; ser de uma nova raça, lu- mação admissível por suas capacidades de concepção e suportá-
tador da justiça, senhor de si mesmo, para o bem coletivo. vel por suas forças. Nas gradações infinitas das aproximações da
A santidade não morreu nem foi superada, apenas começou. perfeição, cada um, em seu nível, procurará embelezar e elevar
Uma nova santidade deve subsistir no mundo moderno; culta, ao máximo os instintos e as paixões. Seja vossa meta aquele su-
consciente, científica, que ressurja das velhas formas no cora- peramor alcançado pelos grandes; eleve-se o humano para o di-
ção de vossa vida turbilhonante; que volte a lutar pelo bem e, vino em sucessivas destilações, que derrubam embaixo e recons-
com vossa psicologia objetiva, enfrente heroicamente o choque troem cada vez mais alto. Ascensão das paixões, que faz parte da
de vossa rebelde alma nova. Se hoje o lema é força, que seja a elevação de toda a personalidade, de uma transfiguração do eu.
superior força do espírito; seja uma beleza espiritual que ouse Por isso o vínculo substancial de qualquer união de amor deve
mostrar-se viva no mundo, como um desafio, para que este, se ser o próprio amor; sem este, tudo é nulo, reduzindo-se a uma
não compreender, dilacere-a e, dilacerando-a, aprenda. O santo, forma de prostituição, ainda que ratificada por todas as sanções
nesse sentido amplíssimo, passa em missão e só é grande por religiosas e civis. A forma não pode criar a substância, da qual
inclinar-se a educar e erguer para essas superações da dor. dependem a felicidade dos filhos e o futuro da raça.
Muito lento é o caminho das massas inconscientes embai- As formas de amor elevam-se gradualmente, e cada ser, do
xo. Esperam elas a fecundação da parte desse ser, ponto cul- animal ao selvagem, ao homem inculto, ao intelectual, ao gê-
minante para o qual converge todo o transformismo fenomê- nio, ao santo, ama diferentemente, de acordo com as qualidades
nico, sustentado e objetivado por todas as forças da evolução, e o grau de perfeição que tenha atingido. Com a ascensão do ti-
fenômeno resultante da transformação biológica. No último po transforma-se a expressão do amor: a maior força do univer-
produto do grande esforço da vida, a criação dobra-se sobre si so. Sempre presente em qualquer nível, suas funções – desde a
mesma, para retomar no movimento evolutivo as camadas mais mais simples nos seres inferiores, para multiplicar a espécie –
baixas. O impulso torna a descer para elevar e para aliviar a enriquecem-se e complicam-se com o acréscimo de novas tare-
dor; estende a mão ao homem que caminha sob o peso de sua fas, desenvolvendo-se na amplitude de ações. A fêmea trans-
ascensão e carrega sobre si a dor do mundo. Esta retomada as- forma-se em mulher; o macho, em homem. A atração sexual se
censional, que já estudamos como característica fundamental no engrandece no amor materno, se diferencia e enriquece nas
desenvolvimento da trajetória típica dos movimentos fenomêni- formas de amor paterno, filial, familiar, nacional, humanitário,
cos, aqui se torna inerente ao impulso da evolução e nela repre- até ao altruísmo, à abnegação, ao martírio. A mulher transfor-
senta ainda uma tendência à eliminação da dor. ma-se em anjo; o homem, em santo.
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 103
Nessa ascensão do amor há uma contínua reabsorção do im- endem. Descido dos céus, é um exilado na Terra, em resgate ou
pulso socialmente desagregante do egoísmo, uma emanação que em missão, e sonha com sua pátria distante. Ele não anda pelas
o substitui pelas forças socialmente construtivas do altruísmo. A trilhas já batidas; sabe estabelecer entre fatos e ideias relações
função do amor é criar, conservar, proteger. Seu desenvolvimen- que os outros não veem; é um supersensitivo, que percebe as
to exterioriza e intensifica todas as defesas de uma vida cada vez verdades de imediato, por intuição; nada tem a aprender, apenas
mais complexa. Essas ascensões não são sonho estéril, pois con- recorda e revela. Essa emersão da consciência normal numa
têm a gênese das forças de coesão do organismo unitário da futu- atmosfera rarefeita, essa antecipação da evolução, muitas vezes,
ra sociedade humana. Altruísmo necessário num mundo mais só tardiamente são compreendidas.
evoluído, mesmo que hoje possa parecer utopia, quando, por ve- Em vosso mundo impera a mediocridade, que, distanciadís-
zes, sua simples extensão apenas ao restrito círculo familiar já sima dos cumes, é a medida das coisas e estabelece sua ética e
constitui um esforço. Reabsorção do egoísmo pelo amor, inver- sua tábua de valores. Só uma verdade medíocre, próxima da na-
são de impulsos, que é somente um momento do processo de in- tureza animal, pode ter rápido sucesso, porque é acessível. Em
versão das forças do mal em bem, da dor em felicidade. O ego- vosso mundo, onde o triunfo é condicionado pelo número dos
ísmo é restrito, seu separatismo o isola e limita-lhe o gozo. A as- que são capazes de compreender, cada êxito, para ser rápido,
censão do amor transforma-o, por expansão contínua, numa tem que conter afirmações medíocres: o aplauso das multidões
sempre maior capacidade alegria. Há nos gozos ligados ao denso é amplo e rápido em razão inversa do valor. Por isso, é da Lei
meio da matéria alguma coisa que, pelos atritos, cansa e desgasta que o caminho do gênio seja de solidão e de martírio e não haja
mais rapidamente do que nas alegrias livres do espírito. Este es- compensação humana alguma para quem realiza os maiores
cancara os braços ao infinito e tudo possui sem nada pedir. trabalhos da vida. O cérebro da mediocridade tem suas medidas
Que novo espaço darão à vida as mais altas paixões! Quanta e as impõe a todos, tudo nivelando; o que nele não cabe não é
sutileza e profundidade de gozos possuirá o homem futuro, que, aceito, sendo condenado tudo que represente um deslocamento
sem dúvida, olhará com náusea as brutais festas dos sentidos evolutivo para o qual não esteja preparado; é negado todo des-
como as concebeis hoje! Que música será então a vida, fundida locamento de equilíbrios que ele não tenha poder de estabilizar;
na harmonia do universo! A paixão desmaterializar-se-á até ao quando uma verdade nova não aparece enxertada no passado,
superamor do santo, gozo real e altíssimo; fenômeno não asse- dando-lhe continuidade, quando não tem sua base no conhecido e
xual, mas supersexual, dirigido para seu termo complementar, no aceito, quando contém um percentual de novidade que supera
que está além da vida, no seio das forças cósmicas. Na solidão os limites que possa suportar, até o gênio é repelido. Isto porque
dos silêncios imensos, o santo ama, com a alma hipersensível a ascensão caminha por continuidade. Mas, no equilíbrio univer-
estendida e aberta a todas as vibrações do infinito, num impulso sal, a evolução lenta das massas está sempre fecundada por essa
impetuoso e frenético para a vida de todas as criaturas irmãs. centelha superior que, no momento mais adequado, acende-se na
Ainda que vos pareça sozinho, ele está com o Invisível, ao qual Terra, fecunda e agita a inércia, abaixando-se para erguer. Existe
estende os braços no êxtase de um supremo e amplíssimo am- nas coisas um equilíbrio que, cedo ou tarde, impõe as compensa-
plexo. Alguma coisa lhe responde do imponderável, inflama-o ções. Seria inútil revelar-vos altas verdades, muito distantes de
e o sacia. Num incêndio que tornaria cinza qualquer ser co- vós, porque se perderiam em vosso inconcebível; a compreensão
mum, arde o amor que abraça o universo. Num mistério de so- não é obra de cultura nem de raciocínio, mas um amadurecimen-
bre-humana paixão, Cristo abre dolorosamente os braços na to que se alcança por evolução.
cruz, e São Francisco, no Verna, abre os braços a Cristo. Nestas funções fecundantes, o gênio é um fenômeno de im-
portância coletiva; seu aparecimento e manifestação correspon-
LXXXIII. O SUPER-HOMEM dem aos íntimos equilíbrios que dirigem o progresso humano.
Existe um processo normal de assimilação das grandes verda-
Acompanhamos o homem nas suas ascensões, pelos cami- des por parte das massas humanas. A concepção superior em
nhos do trabalho, da renúncia, da dor, do amor, todos conver- qualquer campo, seja arte, ciência, ética, política, se for verda-
gentes para sua maturação biológica e sua transformação em deiramente grande, permanece sempre solitária no início, situa-
super-homem. No ápice da evolução, que estamos seguindo da no incompreensível. Entretanto emerge da mediocridade,
desde os mais baixos estados da matéria, este é o novo ser que que, por um instinto secreto e um vago pressentimento, perce-
o amanhã gerará. Sua criação é hoje a mais alta tensão da vida, bendo ser esta a forma de vida no futuro, olha e apura o ouvido,
é vossa fase . Finalmente chegamos ao ápice de vosso conce- é atraída, escuta e lança seus ataques demolidores. Estes têm
bível. Quem é o super-homem? Suas sensações e seus instintos duas finalidades: de um lado, experimentar a resistência das
apresentam, já no estado de aquisição concluída, as qualidades novas verdades, porque só o que tem valor resiste e se torna
que no homem ainda estão no estado de formação. As virtudes ainda mais belo na luta, pois se liberta do supérfluo e se con-
mostradas pelos ideais e os superconceitos no campo moral e densa no substancial; doutro lado, a alma coletiva, nessa luta,
intelectual, para cuja conquista a normalidade trabalha com es- toma contato e assimila a novidade, preparando-se assim para
forço, estão definitivamente assimilados, tendo alcançado a zo- acompanhar os passos do gênio e compreender suas intuições.
na de estabilização no instinto. O super-homem – seja ele poe- O gênio está sozinho em seus amplíssimos horizontes. Suas
ta, artista, músico, filósofo, cientista, herói, chefe, santo, ou, relações sociais não são de compreensão, mas sim relações de
principalmente, um intelectual que desenvolve as forças do esforço e, muitas vezes, de perseguição. Interiormente, ele che-
pensamento, um dinâmico da vontade e da ação, ou um místico gou e o sabe. Seu olhar penetra a íntima causalidade fenomêni-
que, no ímpeto de sua fecundidade, cria no campo do sentimen- ca; o fracionamento da realidade entre as barreiras de espaço e
to ou do amor – é sempre um tipo de superconsciência e, na su- de tempo é ultrapassado na estase suprema do espírito, que re-
blimação de sua personalidade, um gênio. Ele é o supertipo do pousa na visão global do todo. Arrebatamento sublime, aonde
futuro, uma antecipação das metas humanas. Sua zona de vida, não chega o tormentoso turbilhão das ilusões humanas; onde o
onde reside seu trabalho de construção, está situada no incon- repouso é absoluto e o poder, imenso; onde a sensibilidade, que
cebível. Os normais podem passar a vida sem jamais mencionar se multiplica com a nova percepção anímica, corre engrandeci-
o espírito; para o gênio, essa é a mais intensa realidade da vida. da ao encontro do infinito; onde é total a alegria da sua alma,
Resultado de imenso trabalho no tempo, ele sintetiza os mais que aceita o beijo do divino, estendida para ele num lampejo de
altos produtos da evolução e da raça, mas está sozinho e o sabe. amor. O centro de sua vida desloca-se; sua consciência tem a vi-
Move-se numa dimensão conceptual que só seus iguais compre- são da Lei e a sensação do seu funcionamento; mergulha na sua
104 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
corrente, respira a música que emana das harmonias da criação dade do todo, nesta luz de espírito, como numa atmosfera pró-
e dessa respiração se nutre. No gênio, vemos o psiquismo atingir pria e vivificante; toda essa saciedade de alma e de equilíbrio
o vértice de suas manifestações. A conquista da verdade está moral é a mais intensa felicidade do super-homem.
concluída: a consciência move-se em plena luz. Não mais peque- Este é o paraíso, no ápice das ascensões humanas; esta é a
nas verdades, relativas e fracionadas, incompletas e em luta entre máxima perfeição e felicidade que vosso concebível pode hoje
si, mas uma verdade universal que, superando-as, admite e com- conter. Com isso, completa-se o caminho da evolução individual
preende todos os pontos de vista de cada indivíduo, dos povos e na Terra, para continuar mais tarde, ao emigrar para novas di-
dos tempos. A consciência nada mais nega, porque conhece tudo. mensões. É bom mostrar isso em todos os campos e incitar essas
Não há mais, dentro ou fora de si, ângulos obscuros, inexplora- ascensões. Nossa viagem não foi realizada inutilmente. Será um
dos, aquelas zonas em que o mistério se esconde. A Lei está toda impulso, e alguns refletirão e apressarão o passo. Retomaremos,
evidente, e a luz chega até às últimas causas. mais adiante, o estudo do fenômeno sob um ponto de vista social,
Paralelamente, possui uma sensibilidade mais profunda. Ele a fim de que nossas conclusões atinjam e resolvam, numa con-
tem seus amores e seus pudores e, quando sua alma se abre di- cepção mais ampla, também os problemas da coletividade.
ante do infinito, quer ficar sozinho. Sua visão é sagrada e es-
conde-se aos olhos dos estranhos, como diante de uma profana- LXXXIV. GÊNIO E NEUROSE
ção. Algo de sagrado verdadeiramente existe nessa comunhão
da alma com o divino. Só ao pulsar de um grande amor abre-se Concluiremos a exposição da teoria do super-homem,
e revela-se o mistério, que só responde a quem sabe bater à sua observando como ele se manifesta na revolução biológica,
porta. Muitas vezes é necessária uma coragem louca, uma von- em forma de gênio, procurando compreender, em seguida, as
tade desesperada, o ímpeto frenético de uma imensa dor, um afinidades que, por conclusões erradas, foram ressaltadas en-
impulso de fé que não mede as profundidades do abismo. Só tre seu tipo e a degradação neurótica, e, finalmente, buscan-
então caem as barreiras, e as fronteiras do concebível subita- do definir o fenômeno da degradação biológica no processo
mente dilatam-se. Uma sensibilidade apurada protege especi- genético do psiquismo.
almente esses fenômenos de comunhão profunda, que se detêm Enquanto a mediocridade, com sua inércia, permanece esta-
diante da violência do ignaro, a quem as forças protetoras do cionária em sua fase, em perfeito equilíbrio, levantam-se todos
mistério permitem apenas a destruição das coisas exteriores que os assaltos das forças biológicas contra quem tenta novos cami-
ele pode perceber, nada além disso. Riqueza de alma que não se nhos. O misoneísmo, como garantia de estabilidade, é impulso
furta nem se usurpa, o gênio é conquista individual, merecida de nivelamento, e a vida põe asperamente à prova as antecipa-
com esforço, e somente quem a alcançou pode gozá-la, porque é ções e as criações. Se o gênio passa por sobre a Terra como um
sua. Um feixe de sentidos novos, fundidos na síntese de uma per- turbilhão, a massa a ele se agarra para mantê-lo embaixo. No ti-
cepção anímica, permite-lhe o gozo de belezas sutis, hoje super- po comum, os instintos são proporcionais às condições ambien-
sensórias; uma estética mais profunda nasce não das formas, mas tais; existe uma correspondência, já estabelecida antes do nasci-
da arte divina do bem, que realiza a íntima e mais alta beleza do mento do indivíduo, entre este e a coletividade, de forma que esta
espírito, quer seja criação do homem ou da natureza. Mais do que já o espera com as condições prontas para o seu trabalho e sua sa-
contemplação, é realização em si de uma perfeição superior e de tisfação. A compreensão é automaticamente perfeita. O gênio, ao
uma harmonia universal, conquista de valores imperecíveis, cria- contrário, monstruosa hipertrofia de psiquismo, situado numa po-
ção de um organismo espiritual de eterna beleza. sição biológica supernormal, encontra-se defasado em tudo e por
Esta nova capacidade de penetração psíquica revela, sem tudo; é impossível estabelecer uma correspondência entre seu
sombras, o mistério da alma. O organismo espiritual de qual- instinto, que normaliza o supernormal, e o ambiente, que exprime
quer ser transparece desnudado, e não é possível a mentira. Ao outra fase e oferece outros choques. A diferença de nível produz
lado de uma diferente concepção da vida, um novo estado de uma desproporção; nem ao menos se esboça uma compreensão; o
alma diante das coisas, uma harmonização completa, uma uni- desequilíbrio entre sua alma e o mundo é insanável; impossível é
ão com Deus. O espírito repousa em grande calma interior: a a conciliação entre sua natureza e a vida.
paz de quem conhece a meta. O super-homem é consciente de E o gênio passa, solitário e dolorido, mas cônscio do pró-
toda a sua personalidade, da gênese de qualquer de seus instin- prio destino; incompreendido e gigantesco, repugnando os
tos, que descobre no eterno passado; conhece sua história, uma ídolos da multidão, aturdido pelo estrépito da vida, desatento
longa história tecida de férrea logicidade, em que nada morre, e inepto, porque sua alma é toda ouvidos para um canto sem
nenhum valor se perde jamais, e, nessas bases, antecipa seu fu- fim que lhe sai do íntimo e voa ao encontro do infinito. Estra-
turo, prepara-o e o quer. Daí o domínio de todas as forças do nho sonhador, preso no sagrado tormento da criação, absorvi-
próprio eu; daí o saber conduzir-se com pleno controle em meio do nos ócios fecundos em que amadurece o invisível trabalho
aos impulsos da vida. Ele compreendeu a dor ao remontar à interior, sofre com uma paixão a que responde não o homem,
fonte desta no mal e não se agita mais numa tormenta de rebe- mas o universo. A imensidão do infinito está próxima, e ele
lião, de ira, de inveja; só tem uma reação: a reconstrução silen- não vê a Terra, que atrai todos os olhares e todas as paixões.
ciosa e consciente, assumindo sozinho, sem passar para outros, Vive de lutas titânicas. Pede à vida a realização do ideal, sem
todo o trabalho do próprio dever. Ele sabe que a dor conquista, possibilidade de concórdia com a mediocridade, aspirado co-
e seu esforço na vida é fecundado de conquistas espirituais. mo por um turbilhão pela ânsia da evolução. Conhece o medo
Então, o espírito, vivendo em relação com os mais distantes de quem se debruça sobre o abismo dos grandes mistérios, a
momentos do grande esquema do próprio progresso, supera o vertigem das grandes altitudes, a amargurada solidão da alma
tempo e a dor; sua vida se desenrola como um cântico de grati- diante da inconsciência humana; conhece a luta atroz contra a
dão na mais profunda música da alma. Harmonia interior é sua animalidade a querer ressurgir, as imensas fadigas e os peri-
grande festa, é a alegria de sentir-se sempre relacionado e de gos que aguardam os que querem alçar-se ao voo. Os cegos
acordo com o funcionamento orgânico do universo, nele ser dizem: é louco! Sente-se esmagado pelo inútil peso do núme-
eterno e, embora pequeno, sentir-se parte integrante e em ação. ro; compreende a baixeza de quem não o compreende. Mesmo
A consciência de encontrar-se na posição que a Lei lhe deter- a ciência, filha da mentalidade utilitária da mediocridade in-
minou para seu próprio bem, de se mover sempre no seio da competente, mas ávida de julgar, sentencia: neurose!
divina justiça; o cântico no coração da voz grata da consciência, Mas o gênio não pode descer; sente seu eu gritar e não po-
que conforta e aprova; o viver nesta visão da logicidade e bon- de calar. Ele não é um corpo apenas, como os outros; é, acima
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 105
de tudo, uma alma. O espírito, que dormita em tantos e deve na improvisada dilatação de suas potencialidades. Se hoje apa-
nascer, aparece nele como um gigante, evidente, troveja e se rece como fraco, acumula em si, no entanto, qualidades e pode-
impõe; quem poderá compreender suas lutas titânicas? A hu- res espirituais que, um dia, admiti-lo-ão entre os futuros domi-
manidade caminha lentamente, debaixo do esforço da própria nadores do mundo, ao passo que aos normais, aos equilibrados
evolução; ele está à frente e carrega toda a responsabilidade, no ciclo das funções animais, restará, por seleção natural, a
arrastando o peso de todos. função de servos. Se o gênio apresenta uma tendência à neuro-
A massa diz: anormal; a ciência fala: neurose. Mas conhece se, é porque seu temperamento de vanguarda, que assume o ris-
a ciência as relações entre dor e ascensão espiritual? Entre do- co da preparação das verdades futuras, executa uma grande
ença e gênio? Conhece os profundos equilíbrios em que se es- função no equilíbrio da vida. Se em sua própria emotividade e
conde a função biológica do patológico? Conhece por quais leis afetividade extremamente intensas, na exaltação da inteligência
de compensação física e moral funcionam as íntimas harmonias e da sensibilidade aprimoradas e na elevada moral existe algo
da vida? Mas, se ela ignora todos os fenômenos sutis da alma, de ultrarrefinado – como de raça aristocrática que, por estar
até mesmo negando-a totalmente, que pode entender essa ciên- madura demais, agoniza e morre – socialmente ele é um fer-
cia fragmentária, incapaz de sínteses, sobre a complexidade de mento precioso de sensibilidade e atividade, uma centelha de
leis superiores, de cuja existência ela sequer suspeita? Como se vida em meio à massa de medíocres, onde a inércia predomina
pode confinar o supranormal, a antecipação biológica, nos limi- e a vida não sabe senão manter-se e reproduzir-se, fechada no
tes do tipo médio? Por que aquele que representa o valor mais ciclo de suas funções animais.
medíocre deve ser escolhido como modelo humano? Que signi- Esses seres delicados foram e são constrangidos a viver
fica esse nivelamento, essa redução de altitude em categorias num mundo de todos. Que terrível choque para eles pode re-
preconcebidas, esse apriorismo que emborca a visão do fenô- servar a brutal luta conduzida pelo tipo comum, vazio de es-
meno, exaltando no gênio apenas o lado pseudopatológico da crúpulos e de sensibilidade! São generosos e honestos, não
neurose? Não é patológico o cansaço proveniente de enorme sabem prostituir a alma todos os dias para obter vantagem
trabalho, o desequilíbrio inevitável provocado pelas antecipa- imediata, vivem daquilo que o mundo verá somente daqui a
ções evolutivas, o tormento e o esforço das mais elevadas matu- milênios e pagam caro sua superioridade. A dor, caminho das
rações, a inconciliabilidade inevitável entre o conquistado su- grandes ascensões, é a sua mais íntima companhia. Neles, a
perpsiquismo e o organismo animal. natureza humana, que morre para dar vida ao psiquismo su-
Esses caminhos de aperfeiçoamento moral prosseguem em per-humano, sofre o tormento da agonia e, com uma afetuosi-
exata continuação da evolução orgânica darwiniana, e a ciência, dade intensa, incompreensível aos normais, implora desespe-
que compreendeu uma, deveria, por coerência, compreender a radamente ajuda para não morrer. O mundo ri, mas já foi se-
outra. É lei de equilíbrio natural que qualquer hipertrofia, bem lado pela palavra do Grande entre os grandes: “Pai, perdoa-
como qualquer atrofia, seja compensada. Assim como, no cam- lhes, porque não sabem o que fazem”. O homem julgado in-
po orgânico, cada indivíduo tem normalmente um ponto de consciente! Triste herança a normalidade! Quanto maior é o
menor resistência e maior vulnerabilidade, que é compensado espírito, mais fortemente pela dor é premido para sua ascen-
por um reforço proporcional em outros pontos estratégicos, são. É lei da natureza que as grandes criações sejam filhas das
também no campo psíquico verifica-se um desenvolvimento de grandes dores; que o processo das criações biológicas mais
qualidades que a média sequer suspeita. Não se pode julgar um fecundas seja mais trabalhoso, mais cheio de esforços. Existe
tipo psíquico de exceção com os critérios e unidades de medi- trabalho mais forte que o de vencer a inércia biológica e supe-
das comuns, para relegá-lo sumariamente ao anormal e patoló- rar o impulso de forças milenares condensadas no atavismo?
gico. Insisto nisto porque, de outra forma, inverte-se a aprecia- É bem grave, para quem vive neste mundo e com esses la-
ção desse novo tipo de homem, cuja criação é justamente fun- bores, ter de acrescentar à luta exterior de todos a tensão dessas
ção dos tempos modernos. grandes guerras interiores e conter, no centro de si mesmo, não
Querer levar para o anormal tudo o que exorbita da maio- um cérebro aliado e amigo que ajude na conquista material,
ria medíocre é sufocar a evolução, fazendo do tipo humano mas um cérebro com objetivos diferentes, que não acompanha,
mais comum, de valor duvidoso, o tipo ideal; é crime este mas sim agride a vida, transforma-lhe o trabalho, complica-lhe
querer esmagar embaixo o que não se compreende, este ni- os obstáculos, aumenta o sofrimento e acrescenta às dificulda-
velar e confundir, colocando igualmente fora da lei o sub- des do mundo exterior o enorme peso do drama interior, que,
normal e o supernormal, fenômenos que estão simplesmente por si só, já é suficiente para esmagar o homem. Que tremendo
nos antípodas um do outro. problema se tornará uma vida assim traçada, suspensa entre a
Sem mencionar as injustiças históricas, delineia-se ainda ho- luta exterior e a interior, ambas sem tréguas? O deslocamento
je, por vezes, o tipo humano que tende ao supernormal: é o ter- das aspirações humanas e o emborcamento dos valores comuns
ceiro tipo de homem, como vimos. É um tipo de personalidade isolam e vergastam; a realidade sensória insulta o sacrifício; o
que apresenta, por maturidade de instintos, refinamento moral e presente não quer morrer pelo amanhã, nem o corpo pelo espíri-
intelectualidade superior, que exprime a assimilação dos mais al- to, nem o tangível pelo imponderável. A construção de uma
tos valores espirituais, a aquisição das qualidades mais úteis à alma nova exige um grande esforço no deslocamento do eixo
convivência social, constitutivas do edifício das virtudes, a for- da vida e na revalorização de si mesmo num nível mais alto.
mação completa do tipo para o qual tende a humanidade em seu A este ser a ciência chama psicopata. Sem dúvida, existe
desenvolvimento. Inteligência, dinamismo, excepcional sensibi- uma neurose patológica de síndrome clínica mais ou menos
lidade e percepção do belo e do bem; uma retidão em que se fixa- evidente, em que se encontra, de fato, exaltado o tom da dor e
ram os mais altos ideais de honestidade e altruísmo, que são o ín- da sensibilidade. Mas, com muita frequência, a ciência quis nis-
dice do grau de evolução; uma superior aptidão, que cimenta o to incluir uma grande quantidade de fenômenos que pertencem
conjunto social e funciona no organismo coletivo. Sinais esses, ao supernormal e algumas maravilhosas compensações da natu-
todos, de nobreza de raça, de aristocracia de espírito. reza, que sublimam o espírito e provocam um crescimento gi-
Mas, ao mesmo tempo, existe uma sensibilização dolorosa, gantesco de manifestações intelectuais no coração de uma psi-
que revela o esforço para novas adaptações, o tormento de um ser que tormentosa. Desvalorizou desse modo um tipo humano que
que geme sob o peso de violentos deslocamentos biológicos, a podia ter uma função na economia da vida social. Com essa in-
rebelião de um funcionamento orgânico não habituado a sub- compreensão, a ciência inverteu sua tarefa, que é valorizar as
meter-se às exigências que um psiquismo preponderante impõe forças da vida. Grande responsabilidade constituem, para quem
106 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
fala com autoridade de cátedra, o não saber ver essas mais altas ção assoma às portas de novas dimensões, no limiar de novo uni-
fases da evolução biológica – que, não obstante, é tão corajo- verso trifásico15, hoje inconcebíveis pela normalidade.
samente defendida – e o ter compreendido neste fragmento da Trata-se de fenômeno comum, de contínua verificação, este
verdade apenas um meio para rebaixar o espírito ao nível do da degradação biológica, de uma progressiva fadiga no fenô-
corpo, e não para elevar o homem à dignidade espiritual. meno da vida, um envelhecimento no indivíduo, na raça e nas
Está na hora desse organismo de intelectuais e de conheci- civilizações, um esgotamento profundo do ciclo de cada unida-
mento denominado ciência – se quer ser ciência – assumir a di- de. Cada um tem sua jornada, aurora e crepúsculo; cada ser vi-
reção consciente deste grande fenômeno: a evolução; assumir a ve apenas à custa de envelhecer. A vida só pode existir à custa
direção da seleção humana, ao invés de perder-se em estéreis de uma degradação dinâmica contínua. Nas espécies, quanto
rivalidades de domínio; educar o homem para uma consciência mais o indivíduo é simples, mais rápido é o ritmo de sua repro-
eugenética, criando a qualidade antes da quantidade; elevar-se dução, assim como no indivíduo, quanto mais jovem é a vida,
na direção inteligente das forças naturais, onde reside a premis- mais ativo é o seu metabolismo orgânico. Em poucas horas, os
sa da felicidade do indivíduo e da raça. bacilos produzem centenas e centenas de gerações de indiví-
Aprendei a compreender a vida como uma imigração espi- duos; quanto mais a vida está próxima das origens, mais próxi-
ritual que vem do além. Purgando o ambiente espiritual, a ma do nível de suas estruturas primordiais, tanto mais frágil é
Terra se tornará automaticamente inabitável para os seres in- em suas construções e proporcionalmente veloz em sua permu-
voluídos; os destinos mais atrozes permanecerão espontanea- ta de vida e de morte. Mas não é morte nem fraqueza essa fragi-
mente nos mundos inferiores. Indispensável se faz uma profi- lidade de construções, ao contrário, é uma agilidade toda juve-
laxia moral contra tudo o que é coletivamente antivital. So- nil, uma flexibilidade e poder de adaptação, um frescor de for-
mente uma consciência das distantes vantagens da raça e um ças que defendem e garantem a sobrevivência. Com a evolução
altruísmo ponderado e consciente poderão atenuar progressi- biológica, porém, torna-se mais complexa a estrutura orgânica e
vamente a patogênese, que nenhuma terapêutica a posteriori mais complexas se tornam as exigências da vida; mais difícil é
poderá corrigir. Se a dor pode ser redenção, nem por isso se sua defesa e menores seriam as possibilidades de sobrevivência
devem semear suas causas. individual se, paralelamente ao processo vital, não se desenvol-
Que a ciência conquiste o conceito científico de virtude, vesse uma sabedoria protetora, um psiquismo dominador dos
embeleze-se com ele e, ao mesmo tempo, dele trace sua figura objetivos sempre mais complexos a alcançar. A evolução não
racional. E, quando o supertipo biológico aparecer esporadi- poderia alcançar uma forma de estrutura orgânica mais comple-
camente, não o considere elemento antivital, mas lhe ajude o xa se não tivesse antes realizado – e só enquanto o realizou –
transformismo; estenda a mão benévola aos seres que sofrem um psiquismo mais profundo que rege essa estrutura.
e lutam sozinhos para a criação de uma raça nova; valorize es- Há como que uma libertação progressiva da rapidez e
ses recursos, que podem ser da maior importância para a pro- transitoriedade do ritmo de vida e da morte; uma formação de
gressiva domesticação da besta humana, quando não mais equilíbrios cada vez mais complexos e, ao mesmo tempo,
bastarem as religiões e leis para arrancar-lhe a ferocidade. A mais estáveis. A vicissitude da alternância nascimento e morte
classe daqueles que pensam, em todos os campos, tem o dever retarda seu ritmo, alarga-se o passo da onda da vida entre as
de guiar o mundo, o dever de executar a própria função de amplitudes máxima e mínima; há uma progressiva tendência à
central psíquica do organismo coletivo; o dever de tornar-se extinção da forma, exatamente como em  vimos extinguir-se
intérprete da Lei e de indicar o caminho, para que a sociedade a onda por progressiva extensão de comprimento e diminuição
e seus dirigentes saibam e sigam. Se não for secundada a ex- da frequência vibratória. Também na vida, a onda tende a
plosão das paixões que trazem o bem, a fé e a coragem; se não amortecer-se: degradação universal, inerente ao processo evo-
for compreendido o que guia o homem no áspero caminho de lutivo, que pode dar-vos a razão íntima de muitos fenômenos.
suas ascensões; se não for aceito tudo o que cimenta a convi- Tal como a energia envelhece para tipos de vibração mais len-
vência social, que fareis em nome da civilização e do progres- ta e comprimento de onda mais amplo, assim também, no fe-
so para que os ideais não sejam sonhos? nômeno biológico, o mesmo processo de degradação leva a
um amortecimento de potência vital. São retornos paralelos
LXXXV. PSIQUISMO E DEGRADAÇÃO BIOLÓGICA no vértice de cada fase; momentos de degradação inerentes ao
desenvolvimento do fenômeno evolutivo.
A figura do super-homem representa o ponto de chegada da Idêntico processo de amortecimento da onda vital ocorre no
evolução do universo trifásico compreendido pelo vosso conce- indivíduo. Tudo é exuberância de forças vitais em sua juventu-
bível. A vida completou seu produto mais alto, a potência que de, quando apresenta evidentes capacidades reconstrutivas do
sintetiza todo o passado. Mas a ciência, em suas aproximações metabolismo, maior maleabilidade e adaptabilidade ao ambien-
entre gênio e neurose, já tinha tido o pressentimento de uma lei te, sendo ativíssimo todo o dinamismo orgânico, que se revela
profunda, que ressurge neste limite extremo, manifestando-se num desencadear-se indisciplinado e violento de forças primor-
como um cansaço da vida, uma tendência a decair após ter exau- diais. Depois, tudo se vai esgotando pelo choque das provas;
rido sua função criadora. Observemos o fenômeno. Falamos de extingue-se como dinamismo vital e ressurge como um dina-
renúncia, de superação da animalidade, que condicionam a afir- mismo mais sutil, de caráter psíquico. Dessa explosão sobrevi-
mação do psiquismo; de uma espécie de complementaridade en- ve uma consciência, uma potência diferente de julgamento, que
tre o impulso destruidor da natureza humana inferior e o impulso antes não existia e que só os maduros possuem.
construtor dos instintos espirituais do super-homem; de uma es- Então nada se destrói, nem para o indivíduo nem para a ra-
pécie de inversão na passagem do primeiro ao segundo momento ça, mas tudo, na substância, se transforma e ressurge em rou-
de evolução: fase animal e fase psíquica. Expliquemos cientifi- pagem diferente. Tal como, na desintegração atômica, a matéria
camente esses fenômenos de caráter místico. não morre, mas renasce como energia, e, na degradação dinâ-
Tal como na desintegração atômica, no ápice da fase  existe mica, a energia não morre, mas se prepara para a gênese da vi-
uma dissolução da matéria e na degradação dinâmica, no ápice da, assim também, na degradação biológica, a vida não morre
percurso da fase  existe uma dissolução da energia, também as- como vida, porque seu desgaste condiciona a gênese do psiquis-
sim, na evolução da vida, existe uma paralela degradação bioló-
gica, pela qual a vida, como tal, dissolve-se, e se opera a gênese 15
Para análise dos primeiros planos deste universo trifásico, ver o vo-
de seu produto: . Atingida essa criação de consciência, a evolu- lume Ascese Mística.
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 107
mo. Em qualquer lugar e sempre, a substância renasce de forma que mais tarde voltam à Terra amadurecidos, aptos a retomar o
diferente. Trata-se sempre do mesmo fenômeno, que, se parece mesmo ciclo de civilização para levá-lo mais ao alto, sobrevive
destruição e desaparecimento da forma aos vossos sentidos e também em vosso mundo uma potência de conceito, sem a qual
meios de pesquisa, na realidade nem desapareceu nem acabou, a força criadora dos jovens jamais seria fecundada e eles, em
mas apenas mudou de forma, anulando-se, como sempre, ape- consequência, vagariam na incerteza.
nas no relativo. Portanto o fenômeno da degradação biológica O produto de tanto trabalho de experimentação é destilado
não é extinção. Nada envelhece substancialmente, jamais, seja em poucos princípios, que têm a força de erguer uma nova civi-
na senilidade do homem, da raça ou da espécie. Simplesmente a lização. O passado jamais morre, ressurgindo sempre indestru-
substância transforma-se na fase , o espírito, e realiza sua tível. Todas as conquistas espirituais realizadas permanecem no
mais alta criação em vosso universo. A morte de uma forma, mundo como força real e ativa, base para novos impulsos, eter-
como sempre, condiciona, também aqui, o nascimento de outra no testemunho e índice da evolução realizada. Assim, o enve-
mais elevada. Degradação biológica, portanto, não é demoli- lhecimento individual, se souber reviver, renascendo continua-
ção, mas sim ascensão. mente, no espírito, não será decadência. Cansaço e velhice são
Aí está o significado daquela necessidade de demolição da momentos normais no metabolismo da vida, onde se revela o
natureza animal inferior, que é condição para a ascensão espiritu- amadurecimento do fenômeno biológico, sem nenhum desgaste
al. Só nesse enquadramento universal de conceitos pode-se defi- ou deterioração dinâmica da substância.
nir o significado científico da virtude: norma evolutiva, caminho Só assim é possível compreender profundamente o fenômeno
das ascensões biológicas para o vértice do psiquismo; pode-se fa- pelo qual a vida produz consciência. Não bastava ter explicado o
lar de uma ética racional que esteja em relação com toda a fe- mecanismo da formação dos instintos e da estratificação das ex-
nomenologia universal. Nesta ética, quem vive a virtude é bom e periências. A degradação biológica é parte integrante do fenôme-
louvável, porque segue a direção do transformismo, que constitui no evolutivo e existe como condição do processo genético do
a essência do universo. Já dissemos: bem=evolução, ou seja, di- psiquismo. Tal como a evolução dinâmica impõe um processo de
reção positiva ascensional; mal=involução, isto é, inversão do degradação da energia, também assim a evolução biológica im-
movimento e dos valores. plica um processo de degradação do fenômeno da vida. Nesses
Nada se destrói. O que se perde em quantidade de energia, fenômenos age o mesmo princípio do esgotamento do impulso
ganha-se em qualidade; perdem-se as características da vida, originário, um decréscimo das qualidades cinéticas, do potencial
mas apenas para adquirir as do psiquismo. O ambiente impõe sensível das formas. O processo evolutivo, nesse sentido, impli-
ao princípio dinâmico da vida uma constante dispersão de for- ca uma degradação progressiva de potencial. A razão profunda
ças, mas, com isso, elabora o princípio, que absorve do ambi- desses fenômenos está na natureza do transformismo evolutivo.
ente e torna suas todas as experiências. Se a vida, à força de O mesmo gradual amortecimento cinético da fase energia para
progressivos aumentos no deslocamento do equilíbrio do meta- a fase vida, como da vida para o espírito, é apenas a constante e
bolismo, acaba por ser vencida, há, contudo, uma paralela e substancial característica do fenômeno evolutivo. Isto acontece
contínua reconstrução mais no alto. Esse renascimento é pro- porque, reduzida à sua fundamental substância, a evolução é
gressivo e proporcional à sutilização orgânica (superação da vi- movimento, isto é, um processo de descentralização cinética,
da animal, renúncia, virtude), que a prepara e a condiciona, uma expansão do princípio cinético, que se dilata do centro à
funcionando como dois fenômenos inversos e complementares. periferia, uma realização que opera através do esgotamento de
A degradação da vida, portanto, não é uma doença senil indivi- um impulso, originado de um precedente e inverso impulso in-
dual ou da espécie, mas é um processo evolutivo normal, que volutivo de concentração cinética e condensação dinâmica, de
possui uma verdadeira função biológica criativa. O fruto senil concentração de potencial da substância, a que agora se contra-
do psiquismo, a sutilização do sentimento até à pseudoneurose põe o processo inverso de subida.
do super-homem, não é produto de decadência, mesmo que as- Assim, a energia tende agora à difusão, justamente porque
sim possa parecer aos povos jovens, fecundos e combativos. O vosso universo está em período evolutivo, enquanto no perío-
equilíbrio biológico seletivo obtido entre a mulher, que gera, e do inverso precedente tendia e dirigia-se à concentração (con-
o homem, que guerreia e mata para vencer, é ultrapassado por densação das nebulosas). A evolução ou sua inversão para o
formas mais perfeitas de vida, cuja realização é a maior aspira- negativo (involução) é caminho inviolável, porque é a direção
ção dos povos jovens, para a qual tendem, assim como toda ju- do devenir da substância, que se manifesta no relativo. Por is-
ventude tende para a velhice, fatalmente. so todo o fenômeno é irreversível.
Desse elevado ponto de vista, os fenômenos de senilidade do
indivíduo, assim como o das civilizações, assumem significado LXXXVI. CONCLUSÕES.
totalmente diferente. A degradação das formas biológicas tem a EQUILÍBRIOS E VIRTUDES SOCIAIS
função específica de amadurecer o aparecimento das formas
psíquicas, e há sempre uma proporção inversa entre umas e ou- No campo das conclusões, em que agora nos movimenta-
tras: onde é máxima a potência vital, a potência psíquica é míni- mos, podeis avaliar o valor de meu sistema ético, não apenas
ma, em seus primeiros albores. Com a evolução, a potência vital sob um ponto de vista científico e racional, mas também sob
tende a enfraquecer-se, mas a potência psíquica torna-se cada vez um ponto de vista prático e utilitário.
mais ampla e evidente, tornando, assim, tanto o indivíduo quanto A concepção da dor-redenção é de grande ajuda moral. Sua
a raça muito mais valiosos como qualidade, embora seu ritmo re- transformação de instrumento de castigo em meio construtivo,
produtor enfraqueça e a quantidade diminua. É lei da natureza para utilização em conquistas morais, tem a vantagem de revalo-
que os povos civilizados se reproduzam menos. rizar o que é repudiado e, direi mais, considerado um prejuízo
Portanto não é decadência o pressuposto enfraquecimento que a civilização não soube evitar. Sistema ético encorajador,
das civilizações maduras. Naturalmente, cada valor maior tem otimista ainda nos casos mais dolorosos, construtivo mesmo nos
de ser pago. Na degradação das civilizações, se os povos enve- casos mais desesperados. A concepção de trabalho-dever e de
lhecem, suas almas amadurecem por meio das experiências trabalho-missão, de trabalho função biológica construtiva e
da vida coletiva. Quando uma civilização cai, nada morre em função social – substituindo a concepção vigorante de trabalho
sentido absoluto. Podeis ver, assim, que ela produziu uma flor condenação dos deserdados e de trabalho lucro – muito mais uma
delicada e esplêndida, que é colhida e será, então, o germe das necessidade moral do que econômica, tem enorme poder de coe-
civilizações futuras. Em paralelo à sobrevivência dos indivíduos, são social. Todas as minhas afirmações a respeito do significado
108 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
da renúncia, da evolução das paixões e do amor, além de repre- Mas não há quem não perceba que neste sistema se encaixam
sentarem um fermento de elevação do nível individual, formam espontaneamente todas as concepções políticas sãs, produtivas,
a base das virtudes reconhecidas e resolvem todos os tão difí- sinceras, todos os regimes de ordem em que os povos retomam
ceis problemas da convivência, constituindo, assim, também ci- o caminho da subida e reencontram a consciência da vida. Des-
ência de relações sociais. Significam a formação de consciência ses sistemas políticos sãos e produtivos, esta síntese é a base
coletiva, estimulando o funcionamento e a constituição de um natural, o fundamento mais sólido e mais amplo, a única con-
organismo cada vez mais compacto da sociedade humana. Por cepção necessária para que eles não fiquem isolados no tempo,
isso interessam de perto ao direito público e privado e podem mas se religuem, como funcionamento de uma sociedade, ao
ser tomados como base de uma substancial filosofia do direito. funcionamento orgânico do universo.
Coloquei no meu sistema um princípio de justiça com base ci- Minha ética racional e científica traçou as grandes rotas da
entífica, de acordo com o funcionamento do universo. Isto, no vida individual e, agora, traçará as do campo social. Não impõe.
campo social, significa ordem, respeito às autoridades, somente Não obriga. É racional. Ou seja, presume estar falando a seres
às quais compete, com plena responsabilidade, a própria função racionais, como pretendem ser os homens modernos. Não invoca
dirigente; e, no campo moral, significa honestidade, retidão de os raios de Júpiter nem as iras de um Deus vingativo; simples-
motivos e de ações. A desigualdade das riquezas e posições so- mente indica as reações naturais e inevitáveis de uma lei íntima,
ciais não é injustiça, mas simplesmente distribuição de traba- inviolável, perfeita, supremamente justa. O homem, que se move
lhos diferentes por especialização de tipos individuais. Toda dentro dela, é livre para, com sua baixeza, tornar absurdo e ina-
sociedade humana, queiram ou não, é um organismo em forma- plicável o Evangelho de Cristo, mas não tem poder para afastar
ção, no qual todos, indistintamente, obedecem a uma determi- de si toda a herança de dores que esse seu baixo nível de vida
nada função, única que justifica a vida. As virtudes podem implica e impõe. Tenho vos dado a chave de todos os mistérios.
constituir esforço, mas é esforço de assimilação, que as trans- Se agora quiserdes ser maus (e o podeis, porque a liberdade é sa-
formará em instinto e, portanto, em necessidade. Essa será a ca- grada), serão vossas, inexoravelmente, as consequências, porque
racterística do super-homem do futuro. a lei de causalidade (responsabilidade) é inviolável.
Falo a quem medita e falo em tempos de grande miséria mo- Todo resultado prático desta síntese poder-se-ia condensar
ral, não obstante já esteja acesa a tocha da ressurreição. A nature- nestas palavras: se evolução significa conquista de consciên-
za deste escrito sintético não me permite descer a pormenores. cia, de liberdade, de felicidade, e involução representa o con-
Mas delineei todo o organismo lógico dos princípios, e nele estão trário, na baixeza de vossa natureza humana está a causa de
contidas todas as consequências, sendo a dedução automática. Na todos os males e, na ascensão espiritual, todo o remédio. A
vastidão da visão universal, coloquei no alto a meta do super- aspiração à alegria é justa, e a felicidade pode existir, só é
homem, sem deixar, contudo, de levar em conta as condições de preciso dedicar-se ao trabalho de conquistá-la. O Evangelho é
fato impostas pela psicologia dominante do tipo comum, ao qual um caminho espinhoso, mas só por ele se pode seriamente al-
só pedi as primeiras aproximações. Defini sua posição e, portan- cançar o paraíso, mesmo na Terra.
to, seu trabalho no caminho evolutivo, indicando aos mais evolu- Toda a hodierna concepção da vida encontra-se aqui modifi-
ídos os trabalhos mais elevados, para que cada um encontre seu cada, e sois obrigados por vossa ciência, cuja linguagem sempre
caminho e sua norma na direção das ascensões humanas. utilizei, a compreender e, por coerência, cumprir essa mudança.
No alto, como farol luminoso, coloquei o espírito do Evange- Sempre tive presente o tipo de homem predominante e a inutili-
lho, a mais alta expressão da Lei em vosso concebível, cuja com- dade de fazer, em muitos casos, apelo aos sentimentos de fé e de
preensão significará a realização do Reino de Deus, do qual se bondade. Por isso realizei o trabalho ingrato de restringir a gran-
aproxima cada vez mais o homem, através da luta no diuturno es- diosa beleza do universo em termos de estrita racionalidade. De-
forço da vida. Religião sintética do futuro, feita de força de espí- veis agora conceber a vida e suas vicissitudes não como efeito
rito e de bondade, meu sistema aceita fraternalmente qualquer imediato de forças movidas por vossa vontade presente, mas co-
crença, desde que sejam fé, e não condena nenhuma, contanto mo uma sucessão lógica e inteligente de impulsos vinculados no
que seja sincera e esteja em seu lugar. A ciência, toda ela, foi tempo e no espaço com todo o funcionamento orgânico do uni-
chamada para dar seu apoio, e dela me servi amplamente para verso. Não há zonas caóticas de usurpação. Cada vida traz consi-
comprovar as afirmações do espírito. Superamos todos os pre- go um impulso; o destino possui um método racional na aplica-
conceitos exclusivistas que provêm de interesses de casta, de na- ção de suas provas, e, para compreendê-lo, deveis habituar-vos a
ção ou de raça. Meu sistema tem suas raízes na eternidade e deve conceber os efeitos a longo prazo, em vossa vida eterna, e não no
ser universal, para sobreviver no tempo e não ter limites no espa- átimo presente, em que vedes aparecerem, doutro lado, inexpli-
ço. Portanto é verdadeiro em qualquer lugar. Falo a todos os po- cáveis efeitos de causas desconhecidas.
vos, a todas as nações, de todos os tempos, para que cada um en- Há destinos de alegria e destinos de dor; destinos indecisos e
contre no meu sistema sua posição e seu caminho de evolução. destinos titânicos; há ofensas profundas à Lei, marcadas no tem-
Eu sou espírito, não sou matéria; sou substância, não forma. En- po, que pesam inexoravelmente e arrebatam uma vida. Demons-
tão estas conclusões não tendem a concretizar-se em nenhuma trei-vos que é inútil investir contra as causas próximas e que é
forma própria de organização humana, mas a enxertar-se para fe- preciso colher e carregar o próprio fardo. São inúteis a rebelião, a
cundá-las e enriquecê-las nas formas existentes, a fim de reerguer raiva, a inveja de outras posições sociais, o ódio de classe; cada
as que estão descendo pelos caminhos do mal e fazer resplande- posição é sempre a justa, é a melhor para o próprio progresso.
cer as que, no campo político, religioso, científico e artístico, es- Demonstrei-vos a presença de uma justiça substancial, apesar de
tão laboriosamente ascendendo à luz do bem. todas as injustiças humanas, que são exteriores e aparentes. Cada
Peço apenas uma grande sinceridade de alma, um profundo um deve, então, aceitar com boa vontade seu estado e esforçar-se
sentido de retidão e uma decidida vontade de melhorar-se. A por trabalhar nas condições em que o destino o colocou. O esta-
sociedade só pode sentir-se beneficiada por essas afirmações, belecimento de uma vida, que, para vós, ocorre fora da vontade
indiscutivelmente fecundas para o progresso individual e cole- e da consciência do indivíduo, é realizado pelas forças da Lei. Se
tivo. Aqui não se parte do apriorismo de um ou de outro siste- assim não fora, quem vos obrigaria, sem possibilidade de fuga, a
ma político, para antepô-lo ou impô-lo. Uma visão universal suportar as provas necessárias ao vosso progresso? Quem igno-
não pode descer no campo das competições humanas; uma ver- ra não pode influir no substancial.
dade universal não pode restringir-se nos limites de verdades Então, ao invés de injuriar o rico, só por não poderdes imitar-
menores, relativas a um povo e a um momento de sua evolução. lhe as culpas, ao invés de desperdiçar a vida em inútil agressivi-
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 109
dade desorganizadora, deveis alcançar a força de coesão social mento dos destinos individuais, vereis ressaltar do resultado uma
representada pela ideia de uma lei suprema que, com justiça, dis- lei em que aparece evidente a intervenção de uma força superior
tribui a dor e o trabalho a todos, em todas as posições, de diferen- à vontade e ao conhecimento dos indivíduos. Mas o homem se
tes formas! Que reconfortadora fraternidade será então a vida! Is- comporta como se estivesse sozinho, isolado no espaço e no
to não significa passividade, mas consciência; não é a resignação tempo. Sua ignorância da grande lei que tudo governa, fá-lo crer
de suportar tudo sem reagir, mas a virtude de saber suportar uma que vive num caos de impulsos desordenados, abandonado ape-
dor merecida, para aprender, acima de tudo, a não semear de no- nas às próprias forças, sendo estas sua única lei e amparo. Seu
vo as mesmas causas. Desloca-se o centro de vosso julgamento a egoísmo é um “salve-se quem puder” de todos contra todos. O
respeito das posições humanas. Ai de quem se acha à vontade no homem fica só, qual átomo perdido no grande mar dos fenôme-
ambiente terrestre! Isso significa que aí se encontra o equilíbrio nos, sob o terror de ficar torturado por forças gigantescas, agitan-
de seu peso específico espiritual. Felizes os que aí sofrem, que do seus pobres braços para defender-se, pequena luz em meio às
têm fome de bondade e de justiça, porque subirão, reencontrando trevas. Refugia-se, então, na inconsciência do carpe diem, que é
mais no alto o seu equilíbrio. Alegre-se quem sofre, pois será li- a filosofia do desespero, cegueira intelectual e moral, que uma
bertado; lastime-se, porém, quem goza, porque voltará muitas ciência que nada conclui deixou intacta.
vezes ao ciclo das misérias humanas. Cegueira, inconsciência, porque, num universo em que tudo
Repitamos com o Evangelho: “Bem aventurados os perse- brada causalidade, ordem, indestrutibilidade; em que tudo é fun-
guidos! Ai de vós que sois aplaudidos pelos homens! Bem ção, equilíbrio automático e justiça; onde tudo está ligado por
aventurados os que choram, porque serão consolados! Ai de uma rede de reações, vinculado ao funcionamento do grande or-
vós que agora rides, um dia lamentareis e chorareis!”. ganismo; em que tudo tem uma razão de ser e uma consciência
Estes conceitos trazem um sentido de ordem ao insolúvel en- lógica, e onde é absurda qualquer anulação, tanto no campo físi-
redo dos destinos humanos, acalmam os dissídios sociais, cimen- co quanto no moral, é loucura acreditar numa possibilidade de
tam a convivência, representam a força criadora das unidades co- violência, de usurpação, de injustiça, só porque assim quer o ho-
letivas superiores, que são a sociedade e as nações. Esta é a mais mem, como também é loucura pensar que ele, apenas um ponto
alta criação da evolução, e dela nos ocupamos justamente no ápi- no infinito, possa impor sua vontade, modificando a lei universal.
ce do tratado, como conclusão máxima. Estas normas, que for- Com a demonstração científica da ordem soberana, coloquei-
mam a tábua das virtudes individuais (os mais altos valores), vos, agora, em uma encruzilhada: ou negar, aceitando a inconsci-
porque determinam a evolução da consciência de cada um, repre- ência, criando em torno de vós um mundo caótico, onde estais
sentam também as virtudes coletivas (os mais altos valores), pois, sozinhos com vossas forças contra todos os fenômenos, ridicu-
se a virtude é sempre a norma que mais impulsiona pelo caminho lamente rebeldes, tristemente perdidos no mar de trevas, ou então
da evolução (portanto a coisa mais preciosa, porque corresponde compreender e prosseguir em frente, enquadrados no grande mo-
ao interesse máximo), ela representa o impulso construtor da or- vimento, como soldados de um grande exército em marcha. A
ganização social e da consciência coletiva. Há, então, não apenas presença de uma ordem suprema resulta aqui já demonstrada: o
o super-homem, mas a super-humanidade; não só a festa espiri- homem só pode existir imerso na grande lei divina. Isso faz com
tual da superação biológica no indivíduo, mas uma sabedoria prá- que qualquer culpa, qualquer baixeza, seja absurda e torna alta-
tica, construtora de vida social. Os caminhos que tracei da ascen- mente utilitário o caminho da virtude. Tudo o que existe nasce
são individual têm justamente a função de preparar o homem pa- com sua lei, é a expressão de uma lei, só pode existir como de-
ra saber viver em sociedade, em nações, em estados. Isso porque senvolvimento de um princípio e obedecendo a uma lei. Em
essas unidades superiores só poderão existir quando ocorrer a qualquer forma, sempre encontrareis uma lei como sua alma, sua
formação completa da célula componente. Nesta função coletiva, substância, única realidade constante através de todas as trans-
a consciência do indivíduo se enriquece com uma ciência de re- formações da ilusão exterior. A forma acompanha sempre essa
lações, em uma nova ordem de virtudes, que impulsionam a evo- lei, que a guia e a modifica, para realizar-se em ato. Cada mo-
lução coletiva. Esta, exatamente, a característica basilar do con- mento resume o passado e contém a linha do futuro, tanto nos
ceito de virtude, do ponto de vista social. organismos físicos quanto no vosso organismo psíquico. O equi-
líbrio vos sustentou até aqui, no presente, através da viagem pela
LXXXVII. A DIVINA PROVIDÊNCIA eternidade, e agora vos sustenta e guia para o futuro, sabendo e
querendo antes de vós, à revelia de vossa vontade e consciência.
Nessa ordem de ideias pode haver lugar para a inconsciên- É necessário substituir o conceito limitadíssimo de uma for-
cia individual, mas não para a inconsciência do Criador. Em ça vossa, individual, que dirige os acontecimentos, pelo concei-
qualquer caso, mesmo no mais atroz destino, podeis crer na ig- to vastíssimo de uma justiça que impõe seu equilíbrio e suas
norância e maldade dos homens, mas jamais podeis acreditar na compensações ao destino. Dentro dela, violência e usurpação
insipiência ou maldade de Deus. Também é inútil criticar como são absurdas antecipações de um átimo, que, mais tarde, terão
causa aquele que apenas personifica a reação da dor. Trata-se, que ser pagas com exatidão matemática. Dentro dela, está pre-
frequentemente, de instrumentos ignaros e, portanto, irrespon- sente e age a Divina Providência. Não uma providência no sen-
sáveis, movidos por distantes e profundas causas por vós mes- tido de um guia pessoal por parte da Divindade, de uma ajuda
mos lançadas. A vida é uma gigantesca batalha de forças, que arbitrária que se possa solicitar sem merecê-la e que vos permi-
temos de compreender, analisar e calcular. Ninguém pode in- ta escapar dos esforços obrigatórios da vida, mas uma provi-
vadir o destino alheio; só se pode semear loucamente alegrias e dência que é um momento da grande lei, permeada de equilí-
dores no próprio destino. Uma vida tão substancialmente per- brio, aderente ao merecimento, mantida por contínuas compen-
feita não pode existir à mercê de um capricho, nem estar sujeita sações, que levantam quem cai, se merece subir, e esmagam
à louca alegria de uma atormentação recíproca. Assim, não tem quem sobe, se merece descer. Trata-se de um princípio de or-
sentido o maldizer nem o rebelar-se, tanto mais que isso em nada dem, uma força de equilíbrio, que ajuda o fraco e se sobrepõe
atenua, ao contrário agrava o mal. É melhor orar e compreen- aos impulsos da prepotência humana, substituindo-a por uma
der, porque a dor só cessará depois de termos aprendido a lição força muito mais sutil, real e poderosa: a justiça.
que lhe justifica a presença. A providência divina representa esta força maior de justiça
Nessas ideias situa-se também, logicamente, o conceito de em ação, não só para levantar, como para abater. Por uma es-
uma Divina Providência, como fato objetivo e cientificamente pontânea lei de equilíbrio, podereis vê-la dosar as provas, para
demonstrável. Se registrardes em grandes séries o desenvolvi- que não ultrapassem as forças; levantar-se, gigantesca, para pro-
110 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
teger o humilde indefeso e honesto que a opressão humana de- No mundo do subumano, a fera e o homem inferior trazem
sejaria arruinar; dar a quem merece e tirar de quem abusa; pre- escritos em seus instintos ferozes os artigos desta lei. Neste nível,
miar e punir, distribuindo acima das partilhas humanas. cada ser só sabe existir como uma arma, como um assalto contí-
Tremei vós, vencedores pela força humana, diante desse nuo, uma ameaça incessante para todos os semelhantes; as célu-
poder da justiça, que impulsiona todo o universo; e não las da futura unidade ainda não se conhecem, não encontraram os
acrediteis vós, fracos, que a providência seja inércia ou fata- entrosamentos de trocas e fusões; os círculos das liberdades ten-
lismo, amiga dos preguiçosos; não espereis que essa força dem a expandir-se em torno do centro do egoísmo até ao infinito,
vos poupe do sagrado esforço de vossa evolução. Conceito ignorando limites de contato com outros círculos semelhantes. A
de justiça e de trabalho, conceito científico do mundo feno- força, então, é tensão necessária de vida e domina soberana, um
mênico, ela não é uma base para um afastamento gratuito fardo insuprimível, que, não obstante sua baixeza, é esforço de
das sanções dolorosas; significa direito ao mínimo indispen- ascensão. Cada vida é imposição forçada a todas as outras; cada
sável às forças humanas para ascender pelo cansativo cami- direito uma extorsão. O mundo social é um choque caótico de
nho da vida; significa merecidos e necessários repousos, não forças, ainda em busca dos superiores equilíbrios do direito. Es-
ócios gratuitos e perenes, como quereríeis. ta é a fase involuída das sociedades biológicas, em que os indiví-
Nada mais falso que a identificação da providência com duos ainda não estão organizados em simbiose. Estado de agres-
um estado de inércia e expectativa passiva. Isto é invenção de sividade e violência, de incerteza e de luta, em que a natureza,
indolentes iludidos, é exploração dos princípios divinos. Ela expandindo seus impulsos interiores, prepara a ascensão suces-
está presente para reerguer o homem que, na luta, perde suas siva no amadurecimento da unidade coletiva, de que a socieda-
forças, e pronta para abater o rebelde, mesmo se gigante; mas de humana é apenas um caso. A lei universal de justiça nesses
é ativa sobretudo para o justo, que quer o bem e com seu es- mundos inferiores, justamente pelo baixo nível dos seres, só
forço o impõe. Então o inerme, sem forças humanas, sem pode alcançar o equilíbrio por meio da força bruta. Aí, o melhor
apoio, sem meios, apertará no punho fechado as forças mais é o mais forte, não o mais justo. A densidade dessa baixa at-
altas da vida; as tempestades do mundo acalmar-se-ão e os mosfera não permite à Lei maiores transparências que essas; o
grandes dobrar-se-ão, porque ele personifica a Lei e sua or- princípio da justiça não pode realizar expressão mais elevada
dem. E, enquanto permaneceis sozinhos na luta, abandonados que essa forma de seleção natural. Justiça existe sempre, mas é
apenas às vossas pobres forças, ele, situado na profunda orga- proporcional, em sua manifestação, às capacidades de expres-
nicidade do real, recolhe-as de todo o infinito. Se parecer são do meio ambiente. O ser, então, denomina justiça ao equilí-
abandonado e derrotado, uma voz lhe dirá: tu não estás sozi- brio transitório e relativo do seu nível, e injustiça a toda fase
nho. O inerme pode então dizer a grande palavra que ribomba que tenha sido ultrapassada.
em todo o universo: falo-vos em nome de Deus. As forças postas em movimento partem do centro do indiví-
duo; a vida é uma expansão de egoísmos, que, somente dilatan-
LXXXVIII. FORÇA E JUSTIÇA. do-se, se coordenarão com os egoísmos limítrofes, para que
A GÊNESE DO DIREITO possam fundir-se. Há um ciclo de ignorância, egoísmo, força,
luta, dor, mal, do qual o indivíduo tenta sair. Em suas aspira-
Temos falado da evolução das leis da vida, em que o princí- ções de ascensão individual, como já vimos, cada um descobre
pio da força transforma-se, na coletividade, em princípios de di- objetivos cada vez mais altos e tenta melhor alcançá-los na co-
reito e de justiça. Assim como a evolução transforma a dor e o letividade, e aquele ciclo tende a quebrar-se. Gradualmente,
amor, amplia a liberdade e a felicidade e, transformando o indi- pela lei do menor esforço e do maior rendimento, esse princípio
viduo, transforma a sua lei, ela também significa, no campo soci- rudimentar de justiça, representado pela lei do mais forte, trans-
al, ascensão da coletividade e da lei que a governa. A passagem forma-se, alcançando com isso o mundo humano, em que des-
da animalidade à super-humanidade significa, igualmente, pro- ponta a consciência de uma lei moral. Um princípio utilitário de
fundo amadurecimento do fenômeno social em todas as suas ma- vantagem coletiva conduz a um abrandamento nas formas de
nifestações. Ao fazerem o indivíduo evoluir, as normas que, para luta, levando à supressão das guerras. Nesse nível, a força, que
seu aprimoramento, a humanidade se impõe pela educação, de- antes era de justiça, agora se torna violação e injustiça.
nominando-as virtudes, também o tornam cada vez mais apto à No primeiro albor da ética, matar e roubar eram lícitos; num
convivência em unidades sempre mais amplas e orgânicas. Tal mundo ainda não moral como o da fera, os conceitos de bem e
como, individualmente, a meta da evolução é o super-homem, de mal ainda dormiam latentes no estado de germe. Mas, nos
coletivamente sua meta é a construção do organismo social até ao choques da convivência social, a reciprocidade das relações,
limite da super-humanidade. Só numa coletividade pode o super- avizinhando os semelhantes, obrigou o indivíduo a sentir a re-
homem alcançar sua completa realização. versibilidade do prejuízo, levou-o à compreensão utilitária e à
Paralelamente à marcha do indivíduo dá-se, portanto, a as- assimilação do conceito do “ama teu próximo como a ti mes-
censão dessa individualidade mais ampla, que, combinando mo”. A ideia do mal já não mais se ligava tanto à vantagem ob-
seus elementos e elaborando suas células, conquista ela tam- tida, mas sim ao dano sofrido com a reação.
bém, com seu esforço, tal como o indivíduo, a sua consciên- É um processo de progressiva harmonização, em que se
cia, construindo assim seu psiquismo, ou seja, sua alma cole- disciplina cada vez mais perfeitamente o funcionamento dos
tiva. Esgotados os problemas do indivíduo, observemos agora impulsos da vida. Desta vez é a coletividade que ascende aos
os mais complexos da evolução social. equilíbrios superiores da ordem divina. Mesmo coletivamente,
Com a evolução realizada pelo homem individualmente, re- vedes uma sucessão, por graus, de formas de vida e de leis, em
aliza-se também a evolução da coletividade, da qual ele é a que sempre e mais evidente se realiza o pensamento de Deus.
primeira e mais sólida base. A unidade social tem uma sensibi- Não fazemos mais que aplicar, sempre e em toda parte, o mes-
lidade própria, com a qual se observa e sente a si mesma em to- mo princípio universal da evolução, que, sozinho, repetido em
dos os seus pontos e elementos constitutivos. O princípio do todos os casos particulares, contém todas as conclusões. O uni-
egoísmo e da força, que é dominante no tipo primitivo, é o que verso é organismo monístico que funciona num princípio único.
há de mais degradante e anticonstrutivo nas estruturas sociais. Trata-se de uma ascensão completa de todas as qualidades hu-
Mas a evolução, que impele tanto a coletividade quanto o indi- manas, até aqui consideradas separadamente, mas que avançam
víduo, possui em si impulsos de autoeliminação do egoísmo e conexas e paralelas, no indivíduo e na sociedade. Como sem-
da força. Assim, com a ascensão de cada tipo individualmente, pre, em qualquer campo, minhas concepções não são estáticas;
também se transformam os mundos e suas leis nenhum conceito é definido em sua imobilidade, mas como uma
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 111
trajetória, um devenir, uma evolução. Não trabalho com vossa pulso egoísta individual, circunscrevendo-o e marginalizando-o,
comum rigidez de conceitos, mas com conceitos fluidos de uma sem destruí-lo, mas canalizando-o para metas coletivas. A evolu-
filosofia progressiva, inclusive no campo do direito. Não ob- ção da força para o direito e a justiça é também evolução de ego-
servo os fenômenos do lado de fora, mas coloco-me, por sinto- ísmo em altruísmo. Presenciais assim o espetáculo em que esses
nia, no âmago de seu devenir. Só com novo método de pensar impulsos primordiais, por meio da própria manifestação, tendem
se pode alcançar o absoluto. a eliminar-se a si mesmos. Princípio universal de autoelimina-
A lei ascende, e, amanhã, vossa atual justiça formal, exteri- ção das formas inferiores do mal, quase uma autodeterioração
or e coativa, será violação e injustiça; vossa hodierna moral se- da dor por meio da dor, da força pela força, do egoísmo através
rá imoral, porque tereis descoberto equilíbrios mais profundos e do egoísmo. A Lei evolui na consciência de cada um, conforme
neles sabereis viver. Se a Lei é harmonização, a humanidade, o próprio grau de ascensão: os indivíduos no seio do povo e os
por meio de suas guerras, tende à unificação. A guerra, no en- povos no seio da humanidade, equilibrando-se cada um em seu
tanto, é o estado de equilíbrio atual, não o do futuro; é um mal nível. Posições de progresso e regresso relativos – mobilidade
hoje necessário, em vista de vosso grau de evolução, mas dele contínua de todas as posições da vida, sucessão de leis e de
vos libertareis. O único fato que pode torná-la justa é que ela mundos que progridem um dentro do outro, sem se destruírem
representa o esforço para alcançar um nível mais perfeito, em – que os seres formam de acordo com o grau de consciência al-
que será possível sua supressão. Entretanto, esse mal de transi- cançado; verdade relativa e progressiva, absoluta apenas no
ção já se inverte num florescimento de bem, porque ensinou o âmbito do momento que exprime e sustenta.
homem feroz a matar também por uma ideia, a dilatar o próprio Por isso assistis hoje a uma concomitante duplicidade de
egoísmo até à coletividade. O desabafo guerreiro assume, as- leis, mesmo no campo social, fenômeno que só é possível num
sim, a função biológica de fazer evoluir os instintos humanos regime de evolução e que a comprova. Só uma passagem de fa-
de sua primitiva forma egoísta e feroz até ao heroísmo de quem se, o crepúsculo de um período que desaparece na aurora de ou-
se sacrifica pela pátria. tro, pode produzir esses contrastes próprios da transição, co-
Por meio da evolução passa-se da força ao direito, do ego- nhecidos do homem e insuspeitados pelos animais, tranquilos
ísmo ao altruísmo, da guerra à paz. A reação dos egoísmos li- na plenitude de sua fase. O homem oscila hoje na passagem en-
mítrofes já é uma tentativa de equilíbrio, já contém o germe de tre duas leis. Essa mudança exprime sua maturação biológica
uma justiça. No princípio, somente a defesa e o ataque garan- no campo social. Trata-se de uma demolição progressiva do
tem ao indivíduo o que lhe cabe. É necessário disciplinar esses passado e da reconstrução em seu lugar, com os mesmos mate-
impulsos. Trata-se de encontrar um princípio de coordenação que riais, de formas mais elevadas. Elaboração da substância é evo-
os supere todos, uma expressão de psiquismo coletivo que realize lução: o mal é o passado (involução), o bem é o futuro (evolu-
mais profundamente a ordem divina. Eis como, porque e de onde ção); bem e mal relativos, em conflito, que repetem, no campo
nasce o direito: do grande impulso da evolução, como momento social, a luta que vimos no campo individual entre corpo e espí-
da harmonização progressiva do psiquismo individual no seio da rito. Culpa é qualquer retrocesso voluntário, que a lei corrige,
unidade psíquica coletiva. Gênese científica do direito esta, redu- reconstruindo o equilíbrio por meio da reação da dor; virtude é
zida a um cálculo de forças dos dinamismos individuais, que se tudo o que acelera o avanço, sendo, portanto, premiada.
harmonizam nos contatos; direito, primeira centelha de coorde- É um mundo imenso de conceitos e de leis que evoluem e,
nação de forças sociais, partindo do centro para a periferia, do como tudo, não pode parar no universo. A necessidade da convi-
indivíduo para a coletividade, em suas expressões cada vez mais vência impõe um mínimo de ética cada vez mais elevada no di-
amplas de direito privado, público, internacional. reito. Algumas virtudes são obrigatórias por necessidade social, e
Luta trabalhosa esta, pela qual a sociedade humana reali- a educação civil impõe sua assimilação, porém, com o tempo, ul-
zou a transformação da força em direito. Em meu sistema, es- trapassareis as atuais, para descobrir outras ainda mais perfeitas.
tas são apenas duas fases sucessivas de evolução, dois mun- Hoje, o conflito é evidente em qualquer forma social. Como na
dos limítrofes, duas leis, dois reinos: o da fera e o do homem. luta entre corpo e espírito, o passado sobrevive em qualquer ins-
A força teve, não se pode negar, sua função construtiva na tituição e costume, formando-lhes o substrato fundamental, que
economia da vida, também representando uma técnica evolu- resiste por inércia, freia o progresso e faz ressurgir a força no di-
tiva, em que a justiça divina manifestava-se igualmente, em- reito. Em períodos de decadência espiritual aparece uma degra-
bora de forma menos evidente. Os povos jovens são esponta- dação dos institutos jurídicos, que os reconduz às origens, rebai-
neamente violentos, sem escrúpulos, porque também são con- xando o mínimo ético e reforçando o elemento violência. Hoje,
quistadores. Em algumas condições de ambiente, a prepotência em direito, os dois elementos procuram equilibrar-se: justiça e
é justiça; é seleção de raça, submetida a prova cruenta e inexo- sanção. A balança não sabe ser equânime sem a espada. Força e
rável; é explosão de energias produtivas; é o primeiro esboço justiça dosarão diferentemente suas proporções, e o direito conte-
grosseiro, mas decidido, em grandes linhas, da alma coletiva. O rá mais ou menos uma ou outra, de acordo com o seu grau de
retoque só poderá chegar depois, com a proporcional sensibili- evolução. Na relação entre a importância dos dois impulsos,
zação dessa alma coletiva. Então, os povos civilizam-se e, de- qualquer valorização de uma para dominar a outra será índice
pois de terem conquistado seu lugar pelos mais ferozes meios, exato do grau da evolução de um povo. Tal como a propriedade
criam o direito; percebem uma ideia mais exata de justiça; cri- conserva traços do furto originário, cada forma também é filha de
am virtudes mais evoluídas, correspondentes às mais evoluídas outras mais baixas, das quais vos afasta a evolução a cada dia, re-
necessidades; substituem pelas virtudes civis da colaboração as alizando um trabalho de contínua purificação.
virtudes guerreiras da opressão. Eterna história que se repete na Em cada ato, em cada manifestação humana, está, de um la-
vida de todas as unidades coletivas. do, o ideal visto pela mente e, do outro, a utilidade imposta pela
Então, o homem percebe que, se a força criou muito, também necessidade. Toda vida social agita-se no conflito entre uma
muito destruiu; percebe que um mundo apenas de força acaba equidade, consagrada oficialmente por todas as leis religiosas e
destruindo-se a si mesmo, coisas que antes escapavam à sua per- civis, e a força, premiada pelo bom êxito em suas ações e muito
cepção mais rude. Paralelamente, o indivíduo, que, apesar de ter estimada reservadamente. O misoneísmo, síntese dos equilíbrios
gozado das vantagens da força, muitas vezes também sofreu seus atávicos mais estáveis, desconfia dessas superconstruções ideais,
prejuízos, recorda isso em seu instinto, reagindo para eliminar as não consolidadas ainda pela assimilação realizada. Dela descon-
causas. Surge então a ideia de uma utilidade coletiva para supri- fia o instinto da mulher, que escolhe o homem guerreiro e prepo-
mir o abuso individual; inicia-se a eliminação progressiva da de- tente; desconfia a política internacional, que só acredita na ver-
sordem mediante um processo de isolamento e limitação do im- dade dos exércitos. Assim, no esforço de suas conquistas, vossa
112 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
fase move-se entre dois caminhos opostos: um teórico e outro to mais o homem é evoluído, mais fortemente sente a Lei, que
prático. Um modo de dizer e um modo de fazer; uma mentira lhe impõe olhar para trás e doar-se para auxiliar a caminhada dos
muito cômoda e uma realidade muito árdua para praticar; um menos evoluídos, para que a evolução caminhe compacta.
tormento criativo do espírito, de uma parte, e uma degradação de Já vimos (“Evolução do princípio cinético da substância”)
princípios e exploração de ideais, de outra. Nos indivíduos en- que a Lei guia a energia para inclinar-se sobre a matéria, a fim
contram-se todos os diferentes graus, suas apreciações e as mais de animá-la com seu impulso e elevá-la ao nível da vida, e,
diversas verdades, constituindo os pontos de vista com que cada depois, impõe à vida, filha da energia, a elaboração da matéria
um, fazendo-se seu centro, pretende tudo compreender e julgar o até ao psiquismo. Essa mesma lei de coesão, que obriga a uma
mundo. Nesse ambiente, em parte ainda mergulhado no passado retomada de movimentos inferiores para que revivam em oi-
e em parte já estendido para o futuro, vibram todas as oscilações tavas mais altas, faz que o alto se dobre para o baixo, para que
das afirmações humanas. Oscilações que são evolução, normas e este seja sempre retomado no ciclo evolutivo e nada fique
imperativos compreendidos como absolutos, mas que são apenas abandonado fora do circuito, apodrecendo no fundo, fora da
aproximações progressivas. A codificação, por isso, é sempre grande caminhada. Essa lei que assim quer, é a mesma que
substancialmente uma tendência, as formas mudam, e a letra está impõe ao super-homem (santo, herói, gênio) que se sacrifique
sempre pronta para morrer. O direito é uma formação constante. pelos irmãos menores: é o motor de seu irresistível instinto de
O regulamento jurídico das futuras sociedades humanas será ba- altruísmo e de martírio. Incompreensíveis dedicações em vos-
seado em princípios científicos deduzidos das grandes leis cós- so mundo, em que não se realiza um esforço sem pagamento,
micas e, dentro dessa ordem suprema, harmonizar-se-á como or- onde manda o mais forte, onde o mal é evitado apenas por
dem menor, em admirável harmonia entre a necessária liberdade medo do castigo e o egoísmo triunfa. Pequeno círculo este,
de dinamismo individualista e a sua coordenação nos fins coleti- que não tem portas para a compreensão da grande lei. No en-
vos. A suprema sanção não pertencerá à pobre razão humana, da tanto aqueles são altruísmos lógicos, verdades simples, forças
qual é possível escapar, mas a uma lei sempre presente e ativa racionalmente vinculadas de um extremo ao outro das fases de
que, no tempo e no espaço, jamais permite escapatória. vosso universo e de vosso concebível.
Paralela à formação e desenvolvimento do psiquismo, ocorre
LXXXIX. EVOLUÇÃO DO EGOÍSMO também esta dilatação do egoísmo, que, sentindo-se uno com to-
dos, a todos acaba abraçando no próprio cálculo hedonístico. É
Assim como, no direito, a força evolui para justiça, também uma expansão da compreensão, até atingir um amplexo a todas
o egoísmo evolui para altruísmo. À proporção que a vida eleva as criaturas irmãs. A amplitude do abraço indica a amplitude da
os indivíduos para mais altas especializações, reorganiza-os, compreensão; processo de autoeliminação das formas inferiores,
pelo princípio das unidades coletivas, em unidades sociais cada como vimos na evolução. Não é um altruísmo abstrato, sentimen-
vez mais complexas e compactas. A diferenciação dos tipos e tal, irracional e sem utilidade, mas um altruísmo sólido e resisten-
das aptidões levaria ao afastamento das criaturas e ao desre- te, porque utilitário. A Lei não se manifesta como princípio abs-
gramento social, se outra necessidade não os aproximasse e ou- trato, mas aparece continuamente como manifestação concreta,
tra força não os reorganizasse em formas de convivência em personificada nos seres, que, em suas formas de vida, represen-
que a atividade de cada um obtém maior rendimento. A evolu- tam os seus artigos. O egoísmo é a expressão de uma insuprimí-
ção opera, então, a demolição progressiva do egoísmo, assim vel força centralizadora e protetora das individuações. A luta
como o fez com a força, porque precisa de novo instinto coleti- contra tudo aquilo que não é o “eu” é a primeira expressão e a
vo de altruísmo, que constitui o cimento precioso que amalga- prova da formação de determinado tipo de consciência, que, tão
ma os impulsos egocêntricos e exclusivistas das criaturas. Na logo surge na vida, tem que defender-se. Consciência e egoísmo
evolução social, o egoísmo tem de sofrer profundas modifica- do indivíduo, da família, do grupo, do povo, da raça, cada vez
ções. Como todos os impulsos da evolução, ele domina enquan- mais amplos; consciência de uma distinção absoluta entre o “eu”
to o progresso o exige, depois é superado e se transforma diante e o “não-eu”. A fim de conservar a estabilidade dos equilíbrios, a
de novo progresso. Assim se explica como puderam nascer, dilatação só pode ocorrer quando estiver realizada a estabilização
num mundo de necessidades ferozes, os princípios de altruísmo do tipo de consciência e de egoísmo inferior.
e de bondade, tão mortais para o eu, tão antivitais no sentido Altruísmo, por isso, não é renúncia, mas expansão de domí-
restrito, num momento em que se inicia uma ordem de vida que nio; não perda, mas conquista de progresso, de compreensão e
revoluciona todas as precedentes. de ascensão da vida. Reunir em torno de si, como seus seme-
Não basta dizer que são duas leis sucessivas. É indispensá- lhantes, um número cada vez maior de seres é multiplicação de
vel dizer que a mais elevada é sempre mais útil do que a menos poder, é reencontrar-se e reviver neles uma vida centuplicada.
elevada. A natureza, extremamente econômica e conservadora, Mas, se estes casos máximos de altruísmo são patrimônio do
não comete prodigalidades gratuitas e, se alguma realiza, assim super-homem, o homem atual, que raramente sabe estender o
o faz visando utilidades coletivas de longo prazo. Assim nas- altruísmo além do círculo familiar, tomá-los-á, hoje, como ca-
cem os altruísmos do amor, a abnegação materna, os heroísmos sos extremos e, para aproximar-se deles, lutará em sucessivas
em defesa de um povo, de uma ideia. Portanto o altruísmo é aproximações, ampliando as fronteiras do eu, até abranger
apenas um egoísmo mais amplo, e tanto mais amplo quanto mais um dia a humanidade terrestre e outras humanidades do univer-
expandidos estiverem a consciência individual e o campo que so, que conhecerá. Quando o herói morre por sua nação, quan-
ela abarca. O primitivo vê somente seu pequeno eu e se isola no do o mártir se sacrifica pela humanidade ou quando o gênio se
momento; não se sente viver nos tempos e na humanidade. Em desgasta pela ciência, seus egoísmos são tão amplos, que não
sua miopia psíquica, fecha-se em seu próprio pequeno bem, iso- mais podeis concebê-los. Nesse momento, eles podem dizer:
lando-se do bem coletivo. É absolutamente inepto para viver “eu sou a nação, sou a humanidade, sou a ciência”, porque sua
num regime de colaboração, em que a consciência mais evoluí- consciência unificou-se com elas.
da tem necessidade de multiplicar-se. Também o animal – cuja evolução social se realizou em for-
Essa consciência coletiva é uma força, a força do homem ci- mas mais simples, porém, em sua simplicidade, mais evoluídas e
vilizado. Por isso o selvagem, embora isoladamente mais forte e estabilizadas – percorreu esse caminho e, atravessando a fase de
belicoso, torna-se inferior na luta, porque não sabe organizar-se assimilação, fixou nos instintos esses altruísmos, que são apenas
nem manter-se organizado em amplas unidades coletivas, que egoísmos coletivos. Ele vos dá exemplos de altruísmos que ain-
formam a potência de meios e de resistência do civilizado. Quan- da deveis conquistar. A abelha morre picando, em defesa da col-
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 113
meia, mas não pica se está sozinha; produz o mel que, depois dos, hoje são utopia como realização, embora neles já brilhe o
de sua breve vida, será o alimento das operárias irmãs, que ela ideal das aspirações humanas, e constituem uma tendência e um
não conhecerá, pois ainda estão por nascer; não sobrevive iso- objetivo, para cuja realização tanto se luta.
lada, mesmo se tiver todo o necessário, porque, nela, a virtude Hoje, os armamentos são uma dura necessidade, o que atesta,
de sentir-se célula do organismo coletivo se tornou instinto e com demasiada evidência, o estado selvagem do homem atual.
necessidade; caso haja falta, morre de fome ao deixar o seu Tendo em vista a fase atual de inconsciência coletiva da humani-
próprio mel para a rainha, a fim de que ela sobreviva, porque dade, esse mal é necessário. Uma vez que a arma do vizinho,
representa a raça. Altruísmos heroicos para vós que estais na guiada por uma psicologia de estrito egoísmo, está erguida e
fase das formações coletivas; grandes virtudes que fixam os pronta a golpear, não é possível depor as armas, pois constituem
instintos do futuro; equilíbrios já agora espontâneos e estáveis, indispensável condição de vida. É necessário aos povos se co-
porque utilitários, ou seja, correspondentes à lei do menor es- nhecerem para que – como acontece com os indivíduos na for-
forço; instintos assimilados, não mais virtudes (fase de forma- mação do direito privado – os círculos das liberdades individuais,
ção), nas sociedades animais já constituídas. tocando-se, aprendam a respeitar-se, a fim de coexistirem e aderi-
Quando a abelha se sacrifica por sua família, não é ela que rem na unidade coletiva da humanidade, aprendendo a ceder aos
realiza um ato de altruísmo, mas é a família que, tendo conquis- direitos alheios, a fim de que seja concedido lugar aos próprios,
tado o instinto de um egoísmo coletivo mais amplo, egoistica- num estado de consciência coletiva superior. Não existe hoje um
mente utiliza, para seu próprio bem, a célula abelha e a sacrifi- verdadeiro e próprio direito internacional, e as relações entre na-
ca. O homem julga heroico esse ato porque aplica à abelha ções ainda se encontram em estado caótico.
aquele conceito de altruísmo que, em circunstâncias semelhan- Também aqui, o equilíbrio tende a se estabelecer pela lei
tes, aplicaria a si mesmo, sem compreender que sua natureza é do menor esforço, não em um pacifismo inerte e teórico, mas
totalmente diferente, porque ele se encontra em outra fase. No numa ordem internacional que representará tão grande vanta-
homem, o instinto coletivo está em formação; na abelha, já está gem social, que a consciência coletiva, assim que conseguir
fixado, maduro, completo. No homem, esse ato não é a expres- compreendê-la, pô-la-á em prática. Hoje, a humanidade vive
são de uma necessidade imposta por um instinto definitivamen- uma fase de transição em que se compreende a utilidade da
te assimilado, mas está na fase de formação (virtude), em que, paz, mas ainda não se sabe superar a necessidade da guerra.
como já vimos, o ato requer esforço e é sentido pela consciên- Entre essas duas leis ela oscila, fazendo prevalecer uma ou
cia. Se, na abelha, esse ato se estabilizou na fase instintiva, sub- outra, de acordo com a maior ou menor força moral de que
consciente, espontânea, no homem só atingiu a fase inicial de disponha. Entretanto surgirão sólidos institutos jurídicos in-
formação, fase heroica, virtuosa, trabalhosa, consciente. Tam- ternacionais, hoje utópicos, que garantirão a vida e o trabalho
bém para vós, a necessidade de trabalho imporá a colaboração dos indivíduos coletivos, os Estados, da mesma forma que as
como uma vantagem. A necessidade de alcançar metas cada vez instituições privadas terão disciplinado a garantia do ser indi-
mais altas, coisa de outro modo irrealizável, estreitará num vidual. Em cada forma jurídica, a zona de justiça conquistada
grande amplexo as velhas e novas gerações, que hoje mal se e a da força ainda a ser superada serão mais ou menos exten-
conhecem. Um princípio de coordenação política mundial se sas conforme o grau de evolução atingido, e constantemente
imporá como grande poupança de energias, que serão canaliza- se deslocarão, exprimindo o seu nível na própria forma.
das para uma utilidade mais elevada que a luta recíproca entre Todavia a força dos armamentos, mesmo subsistindo como
os povos. A supressão da forma cruenta de luta e o surgimento necessidade e preparação contra eventuais conflitos, deve sofrer
da colaboração compõem o caminho da ascensão social. As es- uma limitação contínua que lhe discipline o emprego, não lhe
tradas do altruísmo são paralelas às da evolução moral. permitindo nenhuma outra razão para existir exceto a de consti-
tuir defesa da justiça. O primeiro dique que se ergue é a grande
XC. A GUERRA. A ÉTICA INTERNACIONAL responsabilidade moral de um estado que provoca uma guerra
sem necessidade que a justifique. Dessa necessidade tem de
Entendemos a guerra como um momento do fenômeno da prestar contas ao mundo, que o observa. Eis um primeiro rudi-
evolução da força para a justiça, por meio do direito; como fase mento de ética jurídica: o sentido da responsabilidade e o peso
de ascensão coletiva. Disse-vos mais atrás que, num mundo que das consequências recaem sobre quem tem o poder de lançar a
se arma todo contra si mesmo, só existe uma defesa extrema: o infernal máquina da guerra. Até há pouco tempo, os homens se
abandono de todas as armas. Essa frase pode parecer um absur- matavam diariamente, como fato normal. Quão mais difícil, po-
do, e é mister explicá-la. Mostrei-vos, então, o mais elevado rém, é hoje movimentar a máquina dos exércitos, que se tornou
grau a ser atingido pelo homem por graduais aproximações. complexa e gigantesca, em proporção às grandes unidades esta-
Mas o esforço para alcançá-lo precisa ser total, como nos cami- tais! As armas permanecem, mas seu uso torna-se tão mais dis-
nhos da evolução individual, introduzindo na vida dos povos o ciplinado e excepcional, que, muitas vezes, sobrevivem somen-
máximo de disciplina suportável. Infelizmente, nas coletivida- te como símbolo decorativo. A guerra requer cada vez menos
des mais involuídas, o uso da força pode constituir uma neces- ferocidade e mais inteligência, afastando-se do instinto sangui-
sidade, especialmente de defesa, a fim de impedir a explosão do nário do selvagem. A disciplina é uma conquista biológica que,
mal. Nos primeiros níveis, as civilizações não podem surgir se- do estado original de anárquica rebelião contra tudo e contra
não cercadas por uma barreira de violência que as proteja da todos, eleva o homem a um estado de coordenação de esforços
própria violência, e uma defesa ampla e previdente pode impli- e de organização de trabalho.
car também em uma ofensiva. Hoje, porém, o mundo possui vá- Assim é introduzido o elemento justiça no elemento força,
rios focos acesos de civilização, e a zona de barbarismo cada que, cada vez mais reduzido, fica limitado apenas a uma fase de
vez menos impõe e cada vez menos ainda justifica um regime transição, o que permite sua gradual libertação do mal, tornan-
de violência. Assim como, no direito interno, as forças da vida do-o meio de evolução e construção do bem. Cada vez mais se
conduzem a um progresso da força à justiça, estas mesmas for- sente a necessidade de refrear a expressão da força por meio de
ças, atuantes no direito internacional, também trazem um pro- um conceito mais elevado, com uma alma mais nobre, que lhe
gresso da guerra para a paz: disciplina de forças e coordenação proporcione uma justificação para existir. Vê-se sempre mais a
de energias. Assim a evolução produz, mesmo neste caso parti- necessidade moral e racional de tornar o uso da força aderente a
cular da força, um progressivo cerceamento da guerra, tenden- um princípio de justiça, porque se percebe que é justamente
do a eliminá-la. Os absolutismos pacifistas, idealizados e isola- nesse imponderável que reside seu poder maior, num mais pro-
114 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
fundo e elevado equilíbrio, que domina e governa os mais su- ro mais radioso. Para dar um conteúdo de justiça à guerra, não
perficiais e baixos equilíbrios da força material. Esta, por isso, basta uma superprodução populacional concentrada em estrei-
procura espontaneamente sua única justificação, que só pode tos limites de alguma parte do globo terrestre. Isto é apenas
estar numa finalidade de paz. choque de forças demográficas. É preciso dar à guerra um con-
Assim como a dor e o mal contêm em si os impulsos para teúdo ideal de civilização, e, assim, transformando-a em instru-
sua autoeliminação, também a guerra existe para engolir-se a si mento de bem, tornar suportável esse mal. Desta forma, a guerra
mesma. O progressivo caráter mortífero dos meios bélicos, pre- se nobilita com heroísmos, anima-se pela espiritualidade, ideali-
parado pelo progresso científico, torná-los-á sempre mais de- za-se pelos martírios. Elevada a guerra a esse nível, a ferocidade
sastrosos; seu maior poder destrutivo eliminará a guerra, porque do sangue derramado transforma-se em apoteose de sacrifício,
a crescente sensibilidade humana e sua mais profunda consci- porque, então, já não mais se luta pelo egoísmo ou pelos despo-
ência senti-las-ão com horror e medo cada vez maiores. Os or- jos, mas por uma fé que paira no alto. A guerra, assim, atinge sua
ganismos sociais obedecem sempre menos aos impulsos irrefle- mais alta meta de formação da alma coletiva, torna-se imolação
tidos do momento, e a ordem futura se prepara com visão de si mesma no altar da pátria e é denominada santa.
abrangente e de longo prazo. Além disso, existe a Lei, que in- O homem pensa que manda, no entanto obedece sempre,
tervém, impondo a dor como reação a cada violação, obrigando constrangido pelo instinto à vontade da Lei. Instituições, leis,
assim, inapelavelmente, o homem a seguir a via da justiça: todas as manifestações sociais não são substância, são forma,
“Quem usar da espada pela espada perecerá”. Acima da força são a veste exterior de forças biológicas. Os verdadeiros res-
dos exércitos, transparece cada vez mais evidente esta outra, ponsáveis, mais ou menos iludidos ou guiados, são os povos,
mais sutil, de uma vontade suprema que conduz tudo para a or- que, com justiça, suportam o peso da própria involução. Os
dem e, assim, esmaga o mais forte. Existe esta força mais alta, à chefes apenas transmitem comandos, que não seriam compre-
qual a outra obedece. Quando, então, aparece a mão de Deus, endidos nem obedecidos se não correspondessem a uma ordem
os mais poderosos exércitos se precipitam, e as forças da vida mais profunda, que a todos domina. Eles são escolhidos e ele-
se insurgem para dominar o rebelde. A história também está re- vados a seus postos tão-somente enquanto sentem os instintos
gulada por esses equilíbrios mais profundos, que se erguem e se da coletividade, exprimem-nos e a eles obedecem. Os grandes
impõem com força mais poderosa que todas as forças humanas. líderes foram meramente expoentes que personificaram a ver-
De nada vale o poder material se, em sua base, estiver macula- dade do momento e executaram essa função coletiva, pois a Lei
do por essa fraqueza substancial. O arbítrio humano do mal é não abandona jamais os destinos dos povos ao arbítrio de um
cerceado pela Lei dentro dos limites inexoráveis do bem. Mes- homem. Não confundais a forma com a substância, que deveis
mo na fase atual, a força, para obter seu rendimento, tem que habituar-vos a ver nos fenômenos históricos; em cada manifes-
harmonizar-se com esses impulsos maiores de justiça, somente tação, pesquisai sempre a ação sutil e substancial dos impulsos
podendo produzir resultados estáveis quando empregada como biológicos, que fazem de povos e de chefes um organismo úni-
meio para reconstrução de ordem. co, dirigido para metas idênticas.
Como observais, não falo de formas nem de métodos, vou Entretanto, à proporção que a evolução ergue o homem para
sempre à raiz dos fenômenos. Falo de maturação de forças bio- cada vez mais longe de suas origens animais, também se eleva a
lógicas. Não considero os homens, mas as leis que os movimen- forma da luta. Aos três tipos de homens que estudamos, corres-
tam; penetro nas causas, não nos efeitos. Ao mesmo tempo, pondem os três métodos de combater, que lembram os três níveis
também levo em conta a natureza humana tal como ela é atual- da substância:   . Assim temos: luta material, ou seja, su-
mente, bem como a lei que impera neste seu nível. Se a guerra premacia brutal do mais forte, mesmo que ilícita e injusta. Luta
existe no mundo, ela corresponde ao instinto da maioria, porque nervosa e volitiva, supremacia do poder da vontade, dos meios
esta é a forma atual da seleção biológica, porquanto correspon- mecânicos, econômicos, mesmo que isto não constitua convicção
de a funções automáticas de equilíbrios demográficos. O ho- nem vontade. Luta espiritual, em que o dinamismo físico-
mem normal é feito para a guerra (seleção); a mulher, para a muscular, como o volitivo-nervoso, é dominado por uma supre-
maternidade (conservação). Enquanto vos moverdes neste ciclo macia espiritual e conceptual, propriedade do super-homem. Sua
e a guerra persistir na alma egoísta do mundo, as relações inter- luta é fundamentada na justiça e mobiliza o dinamismo das for-
nacionais serão baseadas na força e a quantidade será necessá- ças cósmicas. Neste sentido, ele é o mais poderoso, embora hu-
ria como meio de vida e de grandeza. Lembrai-vos, porém, que manamente inerme. Lembrai-vos, porém, que, no alto, o arbítrio
a quantidade jamais poderá criar a qualidade; o valor supremo se anula e a desordem é rechaçada para baixo. Ah! Se soubésseis
do homem não consiste em abandonar-se irresponsavelmente à quanta harmonia reina nos planos mais elevados!
função animal de procriar, mas sim em enfrentar, de forma Sei muito bem que o homem de hoje só se eleva até ao
consciente e responsável, a função moral de educar. Não sendo segundo tipo de luta, sendo arriscado pedir-lhe antecipações
assim, a quantidade degrada a raça. Será possível, então, existir imaturas e precipitadas do futuro. Existe uma lei de estabi-
sempre o mesmo círculo vicioso: aumentar o número para guer- lidade no desenvolvimento do que é novo, e é mister ajudá-la.
rear e depois destruir-se? Será possível que as duas grandes Para se abandonar o velho, é preciso antes ter criado o novo.
forças, da virilidade e da maternidade, fiquem sempre fechadas Depor os instintos de luta, mesmo na sua forma mais baixa, po-
num ciclo de autodestruição? de significar, para os povos de hoje, fraqueza e decadência. É
Ao contrário, esse ciclo abre-se em ascensões graduais, necessário, antes, ensinar-lhes a superar a atual fase evolutiva e
progredindo para a sublimação desses instintos. Num nível a conquistar instintos mais altos. Como sempre, é preciso trans-
mais alto, o homem é feito para o trabalho, para a criação ma- formar o homem antes dos sistemas, a substância antes da for-
terial e espiritual, para o domínio sobre a natureza e sobre si ma, começando por alcançar a consciência da responsabilidade
mesmo, e a mulher é feita para o sacrifício e a formação de que o uso da força implica. O progresso não reside na renúncia
almas. Esta é a meta substancial. à força – que pode ser fraqueza de impotentes – mas no domí-
Embora, em vosso nível humano, a guerra seja um meio nio da força, que constitui consciência dos poderosos.
proporcional à vossa baixa forma de evolução e sua abolição Deduz-se de tudo isso o quanto é impraticável, apesar das
constitua uma utopia, ela só pode ser aceita como um mal afirmativas dos idealismos teóricos, um programa imediato de
transitório, ainda que hoje necessário; como um meio que leva paz universal, se antes não se souber determinar as condições
a um bem mais elevado; como holocausto do bárbaro presen- biológicas necessárias à sua manutenção. A paz universal será
te, que se enfraquece pelo atrito, para a construção de um futu- obtida, mas pensai de que edifício imenso ela representa a cons-
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 115
trução. Para atingir o triunfo mais elevado, é indispensável, an- prendem a reconhecer, de todas as partes, o direito que qual-
tes, amadurecer todas as conquistas que o condicionam. Só en- quer povo tem à vida, direito não apenas de sobreviver, do-
tão essa paz não será utopia, porque o mundo e sua alma esta- minado e oprimido, mas sim de viver coordenando-se na uni-
rão transformados e maduros. Os atuais idealismos pacifistas, dade maior para a qual todos convergem: a humanidade.
que exprimem esta grande aspiração e indicam o seu caminho, O instinto das massas transformar-se-á em dinamismos
são, biologicamente, conceitos recém-nascidos, pouco solidifica- igualmente viris, porém mais elevados, de produtividades mais
dos nos instintos, constituindo equilíbrios menos estabilizados e, benéficas e morais. Outras batalhas incruentas aguardam o ho-
portanto, prestes a cair ao primeiro choque. Todas as construções mem: coalizões pela defesa das conquistas do espírito contra
ideais, ainda que codificadas, estão expostas a esse perigo de quaisquer atentados de degradação da estrutura social. Outras
uma degradação que, à primeira sacudidela, reconduz os novos lutas, não de armas nem de povos, serão as do amanhã: lutas de
equilíbrios, por demais delicados, para níveis mais baixos, onde ideias, a guerra santa do trabalho, a virilidade do dever, o esfor-
as estabilidades são mais simples, porém mais resistentes. Sem- ço da construção de consciências. Os grandes inimigos serão o
pre pronto a ressurgir, logo que desabe a superestrutura, está o desconhecido, as forças da natureza, os baixos instintos a serem
substrato biológico das necessidades animais, para onde retroce- superados. O grande trabalho consistirá na direção das leis da
de o equilíbrio muito arriscado, a fim de garantir a vida. vida e da ascensão humana. Somente então, emergindo da eli-
A escada da ascensão não se sobe senão degrau por degrau, minação da desordem, o homem conquistará nova potenciali-
solidificando antes as bases. Nada de fáceis voos pindáricos dade na ordem. Então, os mais fortes, os melhores, serão os
nem barulheiras retóricas. Para que a paz não seja utopia, mas mais justos. Da soma de tantos impulsos produtivos emergirão
sim um trabalho de aproximação áspero, tenaz e prático, é ne- povos supremamente fortes e vitoriosos.
cessário, antes, o amadurecimento das condições biológicas e
psíquicas. Já é muito ter o homem visto e compreendido, pela XCI. A LEI SOCIAL DO EVANGELHO
primeira vez na história do mundo, o absurdo lógico, moral e
utilitário da guerra. Esse absurdo torna-se cada vez mais evi- Permanecemos, até agora, nos campos subumano e huma-
dente, e a necessidade de repará-lo, cada vez mais urgente. no das mais baixas criações biológicas, para focalizar melhor
Concomitantemente, o progressivo aumento do morticínio cau- os pormenores de vossa atual fase. Porém, subindo ainda
sado pelos armamentos e o crescente peso econômico desperta- mais, veremos que, tal como a evolução individual alcança o
rão o interesse coletivo, que se rebelará contra tantos desperdí- nível do super-homem, também a evolução coletiva atinge a
cios. O mundo, aterrorizado pela possibilidade de destruições lei social do Evangelho. Esta lei, hoje, representa uma com-
incalculáveis, armar-se-á concordemente apenas contra quem pleta inversão dos sistemas humanos, um absurdo aparente-
queira perturbar a ordem, arriscando a destruição da civilização. mente irrealizável, mas é a meta suprema e a realidade do
Então a força sobreviverá somente como instrumento de justi- amanhã. Nela, todos os problemas da convivência são radi-
ça; não mais de desordem, e sim de ordem. calmente resolvidos por um conceito simples: “Ama teu pró-
Esse mesmo reconhecimento de direitos e deveres a que se ximo como a ti mesmo”. É a perfeição; é a lei de quem che-
chegou nas relações entre cidadãos terá de ser alcançado, tam- gou e o sonho de quem está a caminho para chegar. Mas o
bém, nas relações entre povos. O direito internacional está ain- caminho é longo e difícil, e, se o temos visto, em sua realida-
da em seus primeiros alicerces. Como podem ser lícitos o ho- de, como uma conquista efetuada através de áspero esforço, é
micídio e o furto na guerra, quando, dentro do país, é proibido porque, mais do que um fácil sonho para quem ignora as re-
pelas leis? Isto demonstra que as relações entre povos ainda es- sistências da vida, trata-se verdadeiramente de uma lenta rea-
peram um direito que as discipline, pois ainda estão no estado lização. No Evangelho, todas as divergências se harmonizam,
caótico da violência, na fase sublegal. A ética internacional é
todos os estridores abrandam-se numa paz substancial, num
apenas recém-nascida. Este eu maior coletivo, que é a consci-
equilíbrio mais estável, que aprofunda suas raízes no coração
ência nacional, ainda se encontra na fase embrionária e deve
do homem. Eis a meta da evolução coletiva, o reino do super-
conquistar sua moral, que venha a exprimir a lei das coordena-
homem, a ética universal em que a humanidade encontrará a
ções nacionais. Com pouco tempo de existência, os organismos
coordenação de todas as suas energias: o Evangelho, que co-
estatais estão apenas formados e ainda não sabem reordenar-se
locamos no ápice da evolução das leis da vida.
como células componentes de um mais amplo organismo: a hu-
manidade. Assim como o indivíduo no estado de bárbaro, as na- A distância que separa vossa atual vida desse vértice é
ções têm apenas a força, e não a lei, para defender suas vidas. As imensa. Todos os vossos atos e pensamentos estão permeados
nações são indivíduos isolados que, no máximo, buscam agrupar- de luta e vos fazem perceber o quanto o Evangelho está dis-
se em alianças, a fim de formar maiorias e, assim, obter proteção tante, mas, justamente por serem luta, são também caminho de
e equilíbrio de forças. Os povos vivem fora da lei e fora da ética; conquista. Dessa maneira, são demolição da própria luta e
o trabalho das gerações futuras será de criá-las. aproximação progressiva do Evangelho, que é um nível dife-
Com o progresso, as forças da ordem unir-se-ão contra as rente e significa um completo deslocamento do ponto de vista
forças da desordem; os povos rebeldes serão cercados e iso- das coisas. Os próprios fatos humanos, quando observados de
lados, tal como dentro do país se cerca e isola o delinquente, planos diferentes, assumem diferentes valores. É a visão lon-
que representa perigo social. Do embate de tantas guerras gínqua e global da alma que conquistou a bondade e o conhe-
nascerá uma nova ética internacional; a dor e o sangue ensi- cimento. Essas normas, que correspondem a uma amplitude
narão a gerá-la através de aperfeiçoamentos contínuos, pois a muito mais vasta do ângulo de visão, vos parecem irrealizá-
finalidade da luta e seu único resultado duradouro é a evolu- veis. Ao Evangelho, porém, só se pode chegar por sucessivas
ção dos conceitos diretores e a conquista de uma consciência aproximações. Devido à sua elevação, ele fica inacessível se
coletiva mundial. Se já custou tanto esforço e tanta dor a for apresentado de súbito ao homem atual, que, por certo, não
construção do instinto da convivência social entre indivíduos, o compreende nem o pratica. Mas olhai para mais longe, apro-
quanto maior esforço e dor não custará a construção desse fundai-vos na essência da vida, penetrai mais fundo na ciên-
instinto, muito mais complexo, de convivência internacional? cia, segui em frente, e o Evangelho surgirá por si mesmo.
Por isso nenhuma guerra acontece em vão; os povos se cho- Vosso mundo é aquele visto da Terra; o Evangelho é o mun-
cam para se conhecer e se compreender; agridem-se, mas, do olhado do céu. O absurdo reside em vossa involução. No
através dos choques alternados entre vencedores e vencidos, a- Evangelho movem-se as forças do infinito; a justiça é automáti-
116 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
ca, perfeita, substancial; a coordenação social é completa; o ho- ma, do amor evangélico; dizei que o homem é uma fera en-
mem move-se em paz com a harmonia do universo. Aí, não é vernizada de civilização, e então tereis as bases reais do fe-
mais necessário ser forte, basta ser justo. Força, luta e egoísmo nômeno econômico. Reconhecei, também, que a ciência que
eliminaram-se a si mesmos no diuturno esforço das ascensões estuda este fenômeno é a codificação do egoísmo, isto é, do
humanas. Aí, finalmente, vos movereis no seio da grande lei; as instinto mais desagregador do complexo social.
reações da dor terão sido reabsorvidas e o mal estará vencido. É o A premissa hedonística é princípio anticolaboracionista
reino do homem transformado em anjo e santo. por excelência; é um princípio desagregante que o edifício
Então, é possível a lei do perdão, porque o espírito sente e econômico carrega consigo, como insanável vício de origem,
movimenta outras forças, diferentes daquela proporcionada sempre reaparecendo nos momentos de crise. Egoísmo de ca-
pelos vossos pobres braços. Essas forças acodem em defesa pital, egoísmo de trabalho, egoísmo de produtor, egoísmo de
do justo, ainda que inerme. É a lei da justiça, que fala em vos- consumidor; egoísmo individual, de classe, de nação (sistema
sa consciência, que se exprime através dos movimentos da protecionista); coalizão de egoísmos, organização de egoís-
alma humana. Então, aquele que parece vencido pela vida tor- mos, sempre egoísmo! Lançam-se então no livre regime de
na-se um gigante. Lei simples, mas substancial, que constrói o trocas as mercadorias, a riqueza e o trabalho, que são atraídos
homem, governa-lhe os atos em suas motivações, resolvendo ou subjugados por essa grande força, embora ela seja ilógica e
tudo onde vossos confusos sistemas de controle e de sanções contraste com as supremas exigências das ascensões humanas.
nada resolvem. No Evangelho, o caminho das virtudes está No entanto ascender é a meta inderrogável, elevada ética a
todo traçado; sua lógica sublime leva a uma seleção de super- que todas as funções sociais devem subordinar-se para o obje-
homens, enquanto a lógica de vossa luta cotidiana conduz a tivo único da evolução. Ao contrário, egoísmo é luta, atrito,
uma seleção de prepotentes. Os princípios do Evangelho or- dispersão, germe de destruição; é o ponto fraco do mecanis-
ganizam o mundo e criam as civilizações; os princípios que mo, um enorme fardo a ser arrastado, que o torna imperfeito e
viveis desagregam tudo num desperdício de atritos inúteis. ameaça-lhe o funcionamento, fazendo-o avançar qual cego en-
Por onde passa o Evangelho e seu amor, nasce uma flor; por tre choques e reações. Para quantas dores haveria fácil remé-
onde passais vós, toda flor morre e nasce um espinho. O dio, se cada um amasse ao próximo como a si mesmo!
Evangelho é lei paradisíaca transplantada para o inferno ter- O fenômeno econômico, apesar de ser expressão da lei do
restre; só os anjos no exílio sabem viver, aí embaixo, a lei di- menor esforço, assume sempre a forma de coação. O equilí-
vina ditada pelo Cristo sobre a cruz. brio entre oferta e procura é resultante de uma luta; a oferta de
Em vosso mundo, quem renuncia à agressão em sua defe- uma mercadoria é apenas a exigência de um preço; tudo é
sa e oferece a outra face, quem renuncia a enfiar as garras na movido pela própria necessidade, e não pela consciência das
carne alheia para tirar vantagens para si e não quer, por prin- necessidades recíprocas; um sistema cheio de atritos, sobre-
cípio, colher à força todos os infinitos gozos da vida, fica carregado pelo peso do egoísmo e apoiado num frágil equilí-
oprimido, é um vencido e fora da lei, um expulso, um desva- brio de forças antagônicas que intentam eliminar-se. Não era
lorizado que se anula. Olhado pelo reino da força, é um possível deixar de deparar, mesmo neste campo, com uma
inerme, indefeso, ridículo. No entanto, nessa derrota, nessa manifestação da lei universal e reencontrar seus equilíbrios.
fraqueza aparente, reside o mistério de uma força maior, que Mas, diante do princípio do “do ut des”, da procura e da ofer-
chega troando de longe, despertando nas profundezas da alma ta, o egoísmo caminha triunfante, seguindo a lei do menor es-
o pressentimento de realizações mais amplas. O vencedor, no forço, em direção a equilíbrios móveis, porém matematica-
exato momento da vitória, tem a sensação de uma derrota. O mente exatos, que podeis calcular, mas que conservam sempre
vencido olha do alto, como um vencedor, e, de fato, a vitória a marca da premissa original: o egoísmo demolidor. O instinto
é sua, pois descobriu e viveu formas mais altas de vida. hedonista, em sua inconsciência de todos os outros valores
O homem emudece e se desorienta diante desse estranho ser sociais, caminha pisando em todos eles, contanto que se reali-
que, sem armas, proclama uma nova e extraordinária lei e pare- ze a si mesmo. Força primitiva, brutal, que, se em vosso nível
ce ser de outro mundo. Sente que, apesar de ter razão em seu é impulso de criação, também constitui princípio de destrui-
ambiente, existe outro mundo, em que tudo se inverte, onde o ção, pelo qual sofreis infinitas crises e reveses.
vencido da Terra pode ser um vencedor e o vencedor da Terra, Mas a evolução, fenômeno universal, tinha que funcionar
um vencido. Um abismo o separa deste ser superior, que perdoa também neste campo, com a gradual eliminação do princípio he-
a quem o agride, é um justo e sabe sofrer. Ele aí está para vos donístico, por cerceamento, limitações e elevações progressivas,
mostrar com sua própria vida o objetivo atingido, para vos indi- até abranger em seu âmbito os interesses de ordem geral. Encon-
car o caminho, a fim de que o sigais rumo à realização da mais tramos por toda a parte o mesmo processo ascensional, pelo qual
alta e fecunda lei social: o amor evangélico. a força tende à justiça, o egoísmo ao altruísmo, a guerra à paz, o
mal ao bem. Na evolução não se pode isolar um campo do outro.
XCII. O PROBLEMA ECONÔMICO Todos os fenômenos sociais devem ser concebidos e fundidos
numa ética superior. O conceito hedonístico, colocado como base
Vossa ciência econômica acredita justificar-se – como se das ciências econômicas, é filho do agnosticismo de outros tem-
partisse de um originário princípio de justiça – afirmando, com pos, já agora superados. Se, num primeiro momento, o perfeito
sua premissa hedonística, a presença de um tipo abstrato de equilíbrio da balança – do ut des – é o máximo de justiça que a
homo economicus, como se, na realidade, um aspecto pudesse psicologia das permutas pode conter, nos momentos superiores o
ser isolado de outro e cada fenômeno não estivesse vinculado a progresso impõe a introdução do fator moral no fenômeno eco-
todos os fenômenos na lei universal. Vossas ciências sociais se nômico, em proporção cada vez maior. Para este resultado, tal
baseiam facilmente em qualquer confortável mentira. Melhor como na evolução do egoísmo, sereis conduzidos pelo mesmo
seria dizerdes a verdade: dizer que quase sempre o homem, cálculo utilitário em que se exprime a lei do menor esforço, pois
não apenas como uma hipótese econômica mas também na rea- a luta é cheia de atritos que implicam enorme dispersão de ener-
lidade, é um perfeito hedonista, consequência da aplicação da gia, sendo, portanto, vantagem suprimi-los.
sua natureza egoísta no campo dos negócios; que o do ut des Em vosso mundo atual, raramente a riqueza segue a estrada
não é um equilíbrio de direitos, mas uma avaliação de forças do bem; não é um meio para conquistas mais altas, mas um
para um mútuo estrangulamento. Declarai a impotência da fim para gozos que premiam as aptidões mais rapaces e antis-
maioria para compreender uma aproximação, ainda que míni- sociais. Atenção, porém, porque essa psicologia é supremamen-
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 117
te demolidora, mesmo no campo do utilitarismo individual (in- mo consequência direta da premissa hedonística. O princípio do
consciência coletiva), oposto ao do colaboracionismo (consci- “do ut des” gera uma luta para tirar o máximo e dar o mínimo.
ência coletiva). Quando um fenômeno nasce envenenado por Ele não só é o precedente da luta, mas implica toda a psicologia
impulsos negativos, estes, indestrutíveis como todas as forças, do furto, macula todo o mundo econômico, fazendo nele brilhar o
acompanham-no e o corroem até à sua destruição. Quando um egoísmo em lugar da justiça. Se o ponto de partida é a motivação
ato, no momento decisivo do nascimento, está infeccionado pe- hedonística, a vontade estará toda voltada para a exclusiva vanta-
lo germe da desonestidade, ele se arrastará corroído por dentro, gem individual, à qual só se renuncia quando constrangido pela
como um enfermo, até que a desagregação interna o resolva vontade alheia, que está voltada para outra vantagem individual.
com a morte. Eis porque o vosso mundo econômico, apoiado Vossa oferta é apenas um desejo de dinheiro, oculto totalmente
sobre esses equilíbrios instáveis e fictícios, está cheio de crises pela mentira; não visa o interesse do consumidor, mas ao egoís-
inevitáveis, sem remédio. A solução não se encontra na criação mo do produtor. Por isso vosso edifício econômico é torturado e
de uma grei de irresponsáveis que nada possuam, sustentados desgastado por esse constante atrito de exploração, que destrói a
pelo Estado, mas na criação de uma sociedade de responsáveis, segurança e a confiança, que são as bases desse edifício. Por isso
que saiba manejar conscientemente a grande força econômica. o mundo econômico não é um organismo de justiça, mas um
Não proponho uma mutilação, mas um aumento de consciência, campo de impiedosas competições.
de poder, de liberdade, de confiança, de responsabilidade. O Não existe proporção entre valor e preço. Este, o mais das
homem não deve anular, mas aprender a manejar as forças da vezes, não corresponde ao custo da produção, mas à maior ou
vida; deve correr livremente o risco de errar para que, ao sofrer menor capacidade que apresenta de suportar o peso da explora-
as consequências, possa corrigir-se; deve bater a cabeça para ção. É verdade, porém, que o esfaimado poder da procura gera
aprender a não batê-la mais. À força de crises, de derrocadas, imediatamente a superprodução e equilibra-se com a oferta,
de desastres financeiros, aprenderá que o negócio mais estável, mas esse equilíbrio espontâneo é, com frequência, ultrapassado
mais sábio, mais lucrativo é a honestidade; que a posição mais pelo desequilíbrio originário do egoísmo, sempre voltado para
utilitária é a que leva em conta o interesse de todos, fundindo- reassumir a vantagem logo que possa. Além disso, não há quem
se no organismo coletivo econômico, e não se isolando dele. não veja que o aumento de preço, pelo simples fato de que a
Estas são leis da vida, e não utopias. procura é intensa e a oferta escassa, esteja distante da justiça,
Na direção desta renovação só pode estar o órgão máximo especialmente quando o consumidor se acha em condição de
da consciência coletiva: o Estado. No fenômeno econômico necessidade e a penúria seja causada pela açambarcação.
compete à autoridade central do Estado, como personificação Os bens, na Terra, não buscam o caminho da necessidade; a
integral da ética humana, inoculações cada vez mais enérgicas riqueza é atraída pela riqueza e foge da pobreza. Ao invés de
de fator moral, constrições e correções que purifiquem a ativi- constituir uma ajuda, é frequentemente um mal na vida social.
dade econômica e a riqueza, canalizando-as para objetivos mais A psicologia hedonística carreia o dinheiro para onde este não
elevados. Compete ao Estado intervir e corrigir, introduzindo serve, afastando-o de onde poderia aliviar uma dor ou proteger
um mínimo ético cada vez mais alto no fenômeno econômico, uma vida. Todos fogem do fraco e do vencido, e, tão logo sua
dirigindo, interna e externamente, o árduo equilíbrio das per- fraqueza se manifesta, tudo ocorre para agravá-la, empurrando-
mutas para um regime de colaboração, que não é apenas com- o para o abismo da ruína. Para vós, a necessidade do próprio
pensação, mas unificação de egoísmos; não apenas coordena- semelhante constitui um valor econômico nulo, ao passo que
ção, mas fusão num organismo econômico universal. Uma ci- tem valor a confiança inspirada por uma sólida riqueza. Por is-
ência econômica que tenha consciência da Lei – diferente da so, dificilmente ela executa a função que, para ela, deveria ser a
atual, que apenas a suporta – deve se erguer sobre bases cola- principal, ou seja, um meio de vida e de melhoria, para trans-
boracionistas, e não hedonísticas. Numa sociedade mais adi- formar-se, por vezes, até em meio de opressão, absorvendo e
antada, a fase ética e utilitária é cooperação, sendo esta a re- destruindo em lugar de fecundar e soerguer a vida. Essa hiper-
volução econômica fundamental que, neste campo, vossa atu- trofia do egoísmo constitui o mal que onera vosso mundo eco-
al maturação biológica exige. Contudo os sistemas que hodi- nômico e o ameaça. É ilógica e prejudicial essa canalização da
ernamente dominam no mundo levam a uma seleção às aves- riqueza para a riqueza, ao invés de sê-lo para a pobreza; essa
sas, onde vence o mais astuto e desonesto, e não o honesto, ânsia levada ao ponto de agigantar desigualdades, que são a ba-
que é eliminado. A sociedade não exalta o homem que dá, se dos desequilíbrios sociais e morais; essa tendência à concen-
porque esse fica pobre, mas o homem que se apodera e acu- tração, quando a saúde está na descentralização.
mula, porque esse fica rico. No entanto o primeiro dá aos ou- Em vosso mundo não existe acordo entre capital e trabalho.
tros o que é seu, e o segundo tira dos outros para si. Este só Esses dois extremos do campo econômico deveriam estender-se
poderá justificar-se realizando sua função de conservar e fe- as mãos como irmãos. Torna-se inútil a imposição de leis e sis-
cundar a riqueza com seu trabalho. temas, pois o capital está contaminado em suas origens pela
Em vosso mundo, os melhores estão ocultos, porque são desonestidade, que o tornará infecundo; cada remédio e cada
sensíveis, modestos, endereçados a outras metas, e não têm as controle ficam apenas na superfície, pois na alma não existe a
qualidades agressivas que condicionam o sucesso, enquanto consciência da função social dessa destilação do produto do tra-
que os ambiciosos, ao invés, ávidos e sem escrúpulos, sabem balho, que é o capital, e este se torna, então, um meio de opres-
pisotear tudo para consegui-lo. O que brilha em vosso mundo são. Para superar os conflitos que oneram a humanidade neste
raramente coincide com os valores intrínsecos; o triunfo eco- campo, é necessário também superar a inconsciência egoísta,
nômico muito rápido só pode significar ausência de honestida- elevando-a até à consciência colaboracionista. Os dois polos,
de. Ainda vos moveis no nível da força econômica (princípio capital e trabalho – como todos os contrários – são complementa-
hedonístico), e não no da justiça econômica (colaboracionis- res, feitos para completar-se, porque cada um deles, sozinho, não
mo). Qualquer crise no regime hedonístico tem que descer até se sustenta; são feitos para unir-se e fecundar-se mutuamente,
ao fundo; só pode parar por saturação; só pode reerguer-se por numa corrente de permutas contínuas, que devem ser também
uma reação natural do próprio fenômeno, depois de haver sido amplexos de espíritos. Somente na união das duas forças podem
esgotado o impulso, pois não possui as capacidades compensa- combinar-se praticamente os impulsos da balança econômica. O
tivas do regime colaboracionista. único fato substancial que justifica vossas lutas é que elas consti-
Em vosso mundo não há proporção entre trabalho e lucro; o tuem um meio para chegar à compreensão, já que neste campo,
furto é autorizado na especulação; parasitismos são inevitáveis co- assim como em qualquer outro, a evolução é irrefreável.
118 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
XCIII. A DISTRIBUIÇÃO DA RIQUEZA há muito tempo. Considerais as altas posições sociais como as
melhores, mas vosso espírito de igualdade é muitas vezes in-
Diante destas minhas concepções, vereis o absurdo que repre- veja que deseja apoderar-se do bem-estar alheio. Compreen-
sentam vossas utopias de nivelamentos econômicos. A distribui- dei, no entanto, que o equilíbrio de uma posição econômica e
ção dos bens na Terra não é, como acreditais, efeito das leis, ins- social é, como na física, tanto mais estável quanto mais baixo
tituições ou sistemas, mas é consequência de um fato primordial estiver, quanto mais próximo estiver do nível mínimo da soci-
indestrutível: o tipo individual e a linha de seu destino. Os equilí- edade em que se situa. É contra os cumes que as tempestades
brios da vida são feitos de desigualdades que, em vista das natu- investem. Não invejeis esses grandes perigos de quedas maio-
rezas diversas, correspondem à justiça, mesmo que as posições res. Quanto mais se eleva uma posição social, mais insegura e
sejam diferentes. É absurdo um nivelamento de unidades subs- vulnerável ela se torna, mais difícil é defendê-la, mais facil-
tancialmente desiguais. Ainda que imposto à força, a natureza mente tende a cair, exigindo a presença de um valor intrínseco
dos indivíduos o destruiria em pouco tempo. Só existe um comu- que a sustente com esforço contínuo.
nismo substancial: o que une todos os fenômenos, vincula todas Observai como a Lei, na sua tendência de reconduzir para o
as ações, vos irmana a todos e a todos arrasta dentro da mesma centro as posições extremas, já possui o princípio do nivela-
lei, na mesma correnteza, sem possibilidade de isolamento. Co- mento econômico. Trata-se de lei de nivelamento automático de
munidade substancial de deveres, de trabalho, de responsabilida- todas as aristocracias, fato evidente na história. Como sempre,
des, apesar das inevitáveis diferenças de nível, que exprimem as mesmo no mundo econômico e social, no âmago age uma lei
diferenças de tipos e de valores. Liames férreos que vos encadei- que, além das aparências, dirige o equilíbrio dos fenômenos. Há
am a todos igualmente, ainda que, por vontade vossa, sejam de sempre uma justiça substancial da qual não se escapa: individu-
rivalidades e de ódio, em vez de serem de bondade e de amor. al, exata, inviolável, automática, que não se alcança cobrindo-
Os princípios da vida são mais sábios que vossos sistemas se a natureza das coisas com grandes capas de legalidade, mas
mecânicos de nivelamento social; conseguem o equilíbrio por sim através de um espontâneo equilíbrio da Lei. Acima da in-
meio da desigualdade, porque não tendem à equiparação num justiça de forma há sempre uma justiça de substância na distri-
tipo único, mas à diferenciação, para depois reorganizar as di- buição de alegrias humanas, e nenhuma lei poderá determiná-
versas especializações em organismos coletivos. A diferença de la, senão a lei do próprio destino.
posições sociais é simplesmente divisão de trabalho conforme Não invejeis os ricos, porque essa riqueza pode ser uma
as diferentes capacidades, e esta diferenciação é tanto mais prova, uma condenação, uma condição de ruína. Observai co-
acentuada – portanto mais heterogêneas as posições – quanto mo, por uma lei psicológica, tudo o que foi ganho sem esforço
mais complexo e evoluído for o organismo social. Numa cole- é, por isso mesmo, destinado à dispersão; não é apreciado nem
tividade adiantada, cada indivíduo e cada classe permanece defendido, como o é aquilo que custou esforço. A hereditarie-
tranquilamente em seu lugar, sem coações, tal como as células dade da riqueza é uma fábrica de ineptos, constituindo na ver-
e os órgãos num corpo animal. As irrequietudes são caracterís- dade um processo de autoeliminação. Tudo o que é herdado,
ticas das sociedades inferiores em formação. mesmo se protegido pelas leis, tende automaticamente à disso-
Não é lícito ignorar, na construção dos coletivismos huma- lução, decadência da riqueza que nenhuma barreira social ou
nos, que a natureza não constrói os homens por meio de máqui- legal pode jamais impedir. As leis da vida, embora trabalhando
na e que não se podem dividir as falanges humanas por tipos subterraneamente e em silêncio, atuam constantemente e, por
em série. Ao contrário, a natureza cria tipos complementares, isso, quebram qualquer defesa social que seja peso morto, su-
reciprocamente necessários. As diferenças são feitas para que perposição inerte, não movida por impulso íntimo que a faça
eles se compreendam e se compensem, unindo-se, a fim de se viver e agir, em todos os instantes, para fins determinados. En-
completarem em seus pontos fracos e se combinarem organi- quanto isso, em derredor debruçam-se outros esfaimados, muito
camente. Assim, por complementaridade e balanceamento de mais bem treinados para o trabalho; sem as ilusões sobre a adu-
opostos, pela via lógica e utilitária do menor esforço, a Lei guia lação que a riqueza atrai; não paralisados pela educação mais
irresistivelmente à fraternidade humana. O nivelamento poderá refinada; tornados astutos e ativos pelo desejo jamais saciado;
forjar um rebanho, jamais uma sociedade. O erro fundamental impulsionados, com todas as forças, pela necessidade à con-
consiste em acreditar que todos os homens são iguais como va- quista e, portanto, destinados a vencer na luta desigual.
lor e destino; em não se ter compreendido o mistério de sua Assim, substituo o vosso conceito de propriedade, meramen-
personalidade e a finalidade da vida; em permanecer no exteri- te jurídico e de superfície, pelo conceito mais profundo de pro-
or, acreditando que só possa haver justiça na igualdade de su- priedade substancial. Esta é a única que se estabelece como di-
perfície, quando a vida alcança uma justiça mais complexa e reito no próprio destino. Se vos colocais na realidade dos fenô-
profunda na desigualdade. O princípio da equiparação poderá ser menos, que é sempre um devenir, vereis que não é possível pos-
um programa de enriquecimento por meio da espoliação execu- suir as coisas em sentido estático, mas apenas na trajetória de seu
tada pelas classes menos favorecidas, ou até mesmo, se for transformismo. Elas, como vós mesmos, constituem um devenir,
adaptado e moderado, um programa sadio de ascensão econô- e esse contato duradouro, denominado posse, só é possível pela
mica. Mas, como princípio, constitui sempre um absurdo, pois ação de uma força constante que mantenha vinculados os dois
não corresponde à realidade biológica. A igualdade, quando transformismos. Nesse oceano de dinamismos, a propriedade é,
não seja meramente exterior e forçada, é absurda num universo no máximo, um usufruto, que a morte ou qualquer reviravolta
livre, em que não existem duas formas idênticas. Uma vez que pode sempre interromper. Por isso não é possível propriedade
a evolução criou valores absolutamente diferentes e que dife- nem posse em sentido jurídico, mediante construção de defesas e
rentes são os caminhos percorridos e os esforços executados, barreiras legais; só é possível possuir a causa desse mecanismo
constitui evidente justiça que as posições sociais exprimam de efeitos, isto é, o poder do domínio sobre as coisas. Este não é
exatamente o valor e a natureza do ser. dado pelos reconhecimentos jurídicos exteriores, mas pela aqui-
Compreendei a essência da vida e vereis uma realidade sição de qualidades, de merecimentos e de direitos inerentes à
mais profunda, onde tudo é sempre justo. Não confundais própria personalidade. Além de vossas formas sociais, o que as
igualdade com justiça e não acrediteis que a vida deva esperar justifica e, sobretudo, as mantém vivas é a ação constante des-
os vossos nivelamentos exteriores para realizar na eternidade se impulso dado por uma capacidade intrínseca, preparada
seus justos equilíbrios. Tudo é justo, compensado e equilibrado e fixada no destino, única base do direito. Com efeito, no jus-
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 119
to equilíbrio da Lei, tão logo cesse o impulso dessa causa, ces- XCIV. DA FASE HEDONÍSTICA
sa também o direito, rui o edifício dos efeitos e, apesar de to- À FASE COLABORACIONISTA
das as defesas, pulveriza-se a construção jurídica. Essa proprie-
dade substancial, a única que corresponde a uma característica Como vedes, enfrento todos os problemas econômicos subin-
da personalidade, está escrita no destino, como impulso enxer- do até às suas fontes, que estão na alma humana. A solução é ra-
tado no equilíbrio de suas forças, e só poderá resistir e manter- dical, substancial e, acima de tudo, muito simples. Mesmo no
se enquanto esse impulso resistir e se mantiver. campo econômico, olhamos nas profundezas, além da forma,
O princípio hedonístico vos enclausura num estado de miopia atingindo a substância. Substituí a premissa hedonística pela
psíquica que vos faz acreditar no absurdo da possibilidade de premissa colaboracionista, elevando o mínimo ético das ciências
conseguir riquezas por atalhos que excluam o esforço do traba- econômicas, dando-lhes um conteúdo moral. Elevei, pois, o fe-
lho. Ora, olhando de frente as mais profundas leis do mundo nômeno econômico a um nível imensamente mais alto; mostrei-
econômico, encontrareis um princípio de equilíbrio que impõe vos, sobretudo, sua evolução e sua forma futura. Indiquei-vos o
uma relação férrea entre esforço e prazer. Assim, apesar de to- caminho para ultrapassar a velha economia hedonística, lancei as
das as tentativas de fraudar a Lei, a verdadeira alegria só é prê- bases de nova economia colaboracionista, a partir de teoremas
mio do trabalho honesto. A riqueza traz consigo, como uma na- apresentados de maneira totalmente diversa, que deveis desen-
tureza própria, a marca indelével das características com que foi volver. Enquanto a base hedonística mergulha suas raízes na in-
gerada e desejada, as quais irão acompanhá-la sempre, como um volução subumana, a fase colaboracionista é decidida aproxima-
impulso, uma trajetória, uma direção exata, sustentando-a e gui- ção da perfeição evangélica. Como em todos os campos que já
ando-a em todos os passos como um ser vivo. Também ela é um percorremos, não podíamos deixar de encontrar, também no
feixe de impulsos causais que contêm seus efeitos inexoráveis, os campo econômico, as duas leis consecutivas entre as quais oscila
quais, cedo ou tarde, manifestar-se-ão em atos. A riqueza, se nas- a maturação biológica humana. Duas leis sucessivas que, em
cida do mal, traz o mal e, se nascida do bem, traz o bem. qualquer campo, provam a evolução: evolução no trabalho, na
Acreditais que a riqueza seja uma qualidade homogênea, renúncia, na dor, no amor – da força ao direito, do egoísmo ao al-
igual em toda parte. É preciso, no entanto, completar esse concei- truísmo, da guerra à paz, da concorrência ao colaboracionismo,
to econômico com outros fatores, que sempre estão nele incluí- da fera ao homem e ao super-homem, da desordem à ordem e à
dos. Ela é uma força em movimento, que se manifestará na forma justiça do Evangelho, do mal ao bem.
em que tiver sido definida no momento de sua gênese. Há dife- Vossa supercultura torna o fenômeno econômico um pro-
rença entre riqueza e riqueza. O lucro obtido no mal não trará blema complexo, acessível apenas aos técnicos, que nada re-
vantagens, mas prejuízos. Há dinheiro que não pode trazer satis- solvem; as crises se sucedem, verdadeiros furacões econômi-
fação. Possuí-lo não é lucro, mas perda; não é riqueza, mas po- cos que varrem tudo à sua passagem. Falo-vos simplesmente
breza, pois foi substancialmente impregnado de qualidades nega- da Lei, da ordem universal, de uma ordem ética com a qual é
tivas, tornando-se uma força de destruição. O vício de origem mister harmonizar esta ordem econômica menor. Esta sabeis
dessa riqueza não se apaga e irá levá-la à ruína, até que ele mes- avaliar com exatidão matemática, o que vos revela toda a fisi-
mo desapareça por esgotamento da causa, pois o mal é negação onomia do fenômeno, a face interior de seu ser e de seu deve-
e, antes de tudo, nega a si mesmo, até à sua total autoeliminação. nir, porém, mesmo assim, permanece isolado e, em sua sensi-
Há o dinheiro maldito, que só traz maldição a quem o possui: o bilidade, sofre repercussões provenientes de impulsos morais
dinheiro com o qual foi pago o campo de Haceldama. e psicológicos que vos escapam. Reconduzo tudo a uma atitu-
Esses meus pontos de vista interiores iluminam diferente- de de espírito e chego às raízes, que se encontram no campo
mente todo o fenômeno econômico e, mostrando-vos realidades das motivações. Mas o que pretendeis conseguir no mundo
mais profundas, relegam ao absurdo vossos conceitos mais co- econômico, se em sua base reside um princípio de destruição: o
muns neste campo, que aceitais por ignorardes as leis substan- egoísmo? Se todas as ações estão permeadas de um egoísmo
ciais da vida. Assim, na ingenuidade de vossa época, acreditais que as acompanha como mal de origem, minando todo o edifí-
que seja supérfluo atentar tanto para as sutilezas do modo de cio econômico nos alicerces? Experimentam-se todos os mais
acumular riqueza, considerando que qualquer meio seja válido. complexos sistemas, tenta-se mudar tudo, mas o egoísmo hu-
Dessa maneira, levianamente, semeiam-se germes de destruição mano fica intacto, e, com ele, permanece intacta a substância
do capital em seu próprio âmago. Falo nos termos de uma mo- das coisas. Não é possível construir com semelhantes materiais.
ral científica, exata, utilitária e, portanto, necessária até para o Enquanto o homem for o que é, incapaz de passar da fase hedo-
ladrão, cuja ingenuidade o faz pensar que o furto possa trazer nística para a fase colaboracionista, será inútil cogitar sistemas
utilidade. Ora, é pueril o esforço de fraudar a pobre lei humana, distributivos. É indispensável formar o homem antes dos pro-
porquanto não é possível alterar a íntima lei dos fenômenos, ne- gramas sociais, e fazê-los apenas para formar o homem. É pre-
les inata, que misteriosa e poderosamente vigia e ressurge a to- ciso transformar o problema econômico em problema ético.
do o momento. Pelos atalhos da usurpação só se pode obter Se o “do ut des” é uma necessidade psicológica do mundo
como resultado a reação da Lei. Alegrem-se os sedentos de jus- humano, se a necessidade é o único meio para obter trabalho
tiça que sofrem diante das injustiças humanas, pois há um equi- de um indivíduo, se a inconsciência ignora a função social da
líbrio profundo do qual o malvado, embora triunfe momentane- atividade econômica, se a grande máquina só pode mover-se
amente, jamais conseguirá escapar. Mas tremei vós, a quem a por meio da mola hedonística, então contentai-vos com os re-
injustiça de um instante haja favorecido, porque chorareis um sultados que obtendes e que esse sistema pode proporcionar.
dia, esmagados pelas consequências de vossas ações, que ne- Podeis dizer que são inúteis minhas palavras, porém eu vos di-
nhum tempo poderá destruir e vos acompanharão por toda par- go que não é inútil vosso sofrimento, porque vossa psicologia,
te. O imponderável, embora não o percebais, vos alcançará para tornando-se mais sensível, um dia compreenderá a enorme van-
golpear-vos. O dinheiro mal ganho é um prego envenenado que tagem de se libertar desse contínuo esforço coletivo de recípro-
se cravará em vossas mãos. Nada rende tanto quanto a explora- cas demolições e reagirá, refreando o egoísmo até superá-lo,
ção do sangue humano; o mundo está cheio do dinheiro de Ju- transmudando-o em fraterna colaboração. Contentai-vos hoje
das, repleto de traições, verdadeiro esterco do diabo, que vos com a realização da máxima justiça permitida pelo sistema: o
sufocará, abrindo a terra sob vossos pés para vos tragar. É con- equilíbrio da balança do egoísmo através da compensação entre
tra esse dinheiro que se levanta a maldição de Deus, e não con- o dar e o receber. Mas é fato que isso só pode produzir traba-
tra aquele que é justa recompensa do trabalho. lhos de ordem inferior e que, tão logo entreis no campo da utili-
120 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
zação de préstimos, em que a função coletiva é substancial, o tudo se reduz à criação de novas necessidades. Mas a alma é
sistema não se sustenta. O mínimo ético do mundo econômico é uma mina de desejos, e, se, para sua insaciabilidade, a alegria
demasiado baixo para sustentá-lo. constitui sempre uma miragem, a progressão das miragens
Existem na sociedade humana funções supereconômicas constrói a estrada do progresso e constitui o impulso que vos
que, de fato, se inserem no campo econômico hedonístico e faz progredir. Tudo se reduz não a uma ilusão perpétua, mas a
são substancialmente compreendidas apenas neste aspecto, uma contínua expansão e realização de desejos. Mesmo perma-
embora devesse ser preponderante seu conteúdo moral. Ima- necendo sempre idêntico, o esforço se transforma em elevação
ginai que degradação sofre o princípio da função social, contínua do trabalho de conquista.
quando reduzido às estreitas limitações da psicologia hedonís- Eis o mecanismo secreto da Lei: o psiquismo animador das
tica. Há funções econômicas de conteúdo moral, verdadeiras formas, sede da concentração dinâmico-cinética da substância
funções sociais, que sofrem constante processo de degrada- no nível , exprimindo no instinto fundamental da vida – a in-
ção, porque limitadas apenas à lei da oferta e da procura. É saciabilidade de desejos – o irresistível impulso à descentrali-
indispensável que essas formas de atividade sejam atribuídas zação. O desejo que nasce dos íntimos movimentos da alma
ao Estado, o único organismo ético que tem a tarefa de elevá- cria a função, a função cria o órgão, o qual, por sua vez, conso-
las à condição de função, impondo o fator moral. lida a função. Tudo no universo clama a paixão de exprimir seu
Falo-vos do problema da distribuição da riqueza como de um poder interior, a paixão do eu, que luta para sair à luz e revelar-
problema de destinos; reduzo as tentativas violentas de nivela- se. É o esforço cotidiano da evolução que fixa nos órgãos a ex-
mento econômico a uma mentira do pobre, que desejaria usurpar pressão de um desejo tenaz e vitorioso, neles refletindo o psi-
a posição do rico, e a ele digo: se a riqueza pode ter sido um fur- quismo motor, que, uma vez estabilizados seus meios, deles se
to, isto não é razão para roubá-la de novo. Resolvo o problema serve para exprimir-se cada vez ainda mais longe, aperfeiçoan-
não dando razão ao pobre que agride, mas dizendo ao rico: ai de do-os e multiplicando-os. Sob forma de desejo, esse impulso,
ti se não cumprires o primordial dever de levar em conta o inte- indomável necessidade da alma, está sempre criando o órgão e
resse de todos no usufruto dos bens que te foram concedidos; ai jamais se deterá com a evolução, porque esta não tem limites.
de ti se não souberes descer até ao pobre e dar-lhe o que te sobra. No campo psíquico do homem, os órgãos são as aptidões, e o
Ai de quem hoje goza, porque certamente não lucrará na eterni- princípio é idêntico. Diante de vós há sempre um novo trecho
dade: “É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha aberto da evolução, que vos aguarda, vos atrai e para o qual vos
do que um rico salvar-se”. Isto porque o equilíbrio não é alcan- precipitais, para que absorva vosso eterno instinto de subir e vos
çado mediante usurpações recíprocas, mas sim pela compreensão eleve a maiores alturas. Toda forma de luta cai tão logo se esgote
das mútuas necessidades. O progresso reside na concórdia e na sua função criadora, para ceder lugar a outra luta, destinada a cri-
cooperação. Ai de quem se torna instrumento de involução! A ri- ações mais elevadas. Estais presos num mecanismo sem fim; es-
queza é uma corrente que deve circular, passando pelas mãos de tais lançados num jogo de forças cujo substancial resultado, de
todos, para o bem de todos. A beneficência deve ser uma doação ilusão em ilusão, é a vossa ascensão. Só isso importa. Ilusão vos
de alma, que eleva; um ato de bondade, que irmana os espíritos, e parece toda satisfação alcançada, todo passado conquistado. O
não uma exibição, que cava abismos de ódio; deve ser enfim uma sonho reside eternamente no amanhã, pois assim que se trans-
doação moral, que enriquece de bens eternos. forma em saciedade, um novo sonho sempre ressurge. Assim,
Mostrando-vos a essência da Lei, destruí a ideia pueril de desloca-se continuamente vossa posição na linha do progresso.
que a riqueza constitua seguramente felicidade. Como se a pos- Pode parecer-vos uma condenação essa zona de esforço,
se de bens pudesse mudar o destino humano! Como se a igual- eternamente ressurgindo diante de vós, mas essa é a base das
dade das riquezas pudesse gerar igualdade de destinos! Como criações na eternidade, só esse constante trabalho em perma-
se a justiça divina pudesse ser corrigida por sistemas distributi- nente expectativa pode garantir-vos, num regime de equilíbrio,
vos! Estes, com efeito, só levam a ilusões e a novos furtos. A a constância da expansão e do progresso que vos aguardam.
felicidade é um equilíbrio interior de forças eternas, enquanto a O ciclo criativo tem, portanto, suas fases de descida e de re-
riqueza é uma superposição externa e momentânea, que, não pouso (cfr. “A trajetória dos movimentos fenomênicos”). O es-
sendo uma qualidade de alma, é absolutamente incapaz de fe- forço só subsiste na zona de consciência, porque o que foi as-
char as portas à dor. Demonstro-vos que a riqueza não é, como similado torna-se instinto e necessidade. Este esforço expande-
vos parece, um privilégio, mas sim uma prova e, até por vezes, se cada vez mais e abarca uma riqueza própria cada vez mai-
um castigo; porém é sempre um dever e uma responsabilidade. or. Tendes um resultado substancial que progride em sutileza,
O hábito de se satisfazer enfraquece a satisfação; a inércia favo- em poder, em concepção. A luta cria, e sem luta não se pode
rece a atrofia e abre as portas ao desmoronamento. Mesmo nes- construir. É a evolução que avança, e com ela o seu esforço. A
te campo, impera a lei do equilíbrio, porque os primeiros serão insaciabilidade do desejo vos fala da verdade destes conceitos.
os últimos, e os últimos serão os primeiros. A satisfação é sempre proporcional ao trabalho realizado, de-
pois se aniquila na saciedade e no tédio, nos quais a alma se
XCV. A EVOLUÇÃO DA LUTA asfixia, até que reaja para emergir de novo na ação. Não podeis
parar. A insatisfação do mais fundamental instinto entre todos,
Mostrei-vos, também no campo econômico, o caminho das pai de todos os outros, o de evoluir, vos obriga a mover-vos ao
ascensões humanas. Se uma máquina econômica que funciona encontro de sempre novas e mais altas alegrias.
em torno de um fulcro hedonístico é vossa presente lei, ela aí Tal como a dor, a força, o egoísmo e todos os aspectos do
está para demonstrar qual é o atual nível humano: luta para a mal se anulam a si mesmos com o exercício, também assim lu-
conquista dos bens, em quantidades limitadas e inferiores à ne- tais não para vencer e satisfazer-vos de imediato, mas para eli-
cessidade; luta sempre, em todos os campos, esforço necessário minar a luta mais baixa e elevá-la a formas mais altas; esforçai-
para evoluir, condição de conquistas e superações, construção vos por superar o esforço mais pesado, em busca de atividades
de mais perfeitas estruturas econômicas. Também aqui, a luta mais produtivas, porque o poder de conquista por unidade de
tende para psiquismos mais evidentes e, embora possa parecer trabalho é progressivo. Eis a única direção na qual vosso esfor-
torturante e tormentosa, se existe, é justa, como tudo o que ço não se neutraliza entre impulsos contrários, mas, ao contrá-
existe. Ela exprime o homem, sendo o máximo de justiça que rio, cria constantemente. Reduzo ao estado de miragem, neces-
ele pode hoje realizar, porém vos impele para frente. Se, com o sário ao progresso, todas as vossas concepções sociais, que hoje
hábito, cada nova alegria alcançada tende a extinguir-se, é au- são metas a atingir e, amanhã, passado superado. Que coisa
tomática, então, a demolição de toda conquista de felicidade, pois mais, senão um jogo de espelhos, pode induzir a inconsciência
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 121
humana, ignara de seus altos objetivos, a avançar no caminho da gão psíquico promotor e coadjutor das maturações biológicas
evolução? A realidade profunda vos escapa, e vos moveis como individuais e sociais, que já vimos. Sua função é de formar o
autômatos, impulsionados pela Lei, que age sobre vós por meio homem, de estimular as ascensões humanas. Sua meta mais alta
dos instintos que acreditais serem vossos, mas que são apenas o é criar no campo do espírito. Toda a sua multíplice atividade,
seu comando. Hoje, ainda não constituís uma sociedade, sois jurídica, econômica e social, deve ser destilada nessas criações,
apenas um rebanho, sois um desencadeamento de forças psíqui- únicas que fixam na eternidade todos os valores. Esta função
cas primordiais, explodindo confusamente, mas a explosão é gui- justifica o monopólio da força, a obediência imposta ao cida-
ada e deve canalizar-se para o progresso. A Lei não vos pede para dão. As posições supremas implicam supremos deveres; ai dos
ser compreendida, mas impõe que seja obedecida. órgãos dirigentes que não executam suas funções.
Os choques entre indivíduos e entre povos sucedem para Minha concepção de Estado apoia-se em bases estritamente
que se conheçam e se combinem em unidades mais amplas e biológicas. Elevei a ciência até ao ponto de poder concluir em
compactas. A luta é feroz porque sois selvagens, e somente todos os campos, até mesmo no filosófico-jurídico-político-
deixará de sê-lo quando o homem não mais for assim. Na or- social; lancei as bases de uma ética científica, de uma nova filo-
dem da Lei, o progresso justifica a desordem e o mal presentes, sofia científica do direito. Minha concepção é racional e har-
vossa luta e seu esforço. Riscai do universo as palavras injusto moniza-se com todos os fenômenos da natureza, sendo, portan-
e inútil. Dizei que tudo é proporcional aos valores dos seres. Se a to, universal. É uma concepção progressiva, segundo a qual,
luta outrora foi física, hoje é econômica e nervosa; amanhã será assim como toda religião encontra sua posição no campo ético,
espiritual e ideal, muito mais digna de ser combatida. É a luta que cada nação também pode, no campo político, escalonar-se no
hoje realizo por antecipação, a fim de elevar o homem até à lei seu nível, de acordo com sua maturidade e compreensão. Assim
social do Evangelho. Não acrediteis que a luta possa ser suprimi- como, em meu sistema, os fenômenos da vida são fenômenos
da. De que outro modo poderia ser realizado o objetivo da sele- psíquicos, também os fenômenos sociais são fenômenos bioló-
ção e evitado o abastardamento do homem? Mas a luta se trans- gicos. A sociedade humana é um organismo, bem como orga-
forma, e vedes como eu também luto, e quão denodadamente o nismos são as sociedades animais, todas igualmente sustentadas
faço, embora em campo muito diferente, acima de qualquer for- por leis e equilíbrios exatos. Na criação, tudo é conexo e repete
ma humana de agressividade. Também vós, hoje, lutais para os mesmos princípios. O corpo animal, em seus equilíbrios e
atingir essa meta ainda tão distante, trabalhando e sofrendo no intercâmbios entre centro e periferia, cérebro e órgãos, na dis-
campo social, econômico, político, artístico e científico, para tribuição e especialização entre funções centrais e periféricas,
formar o homem digno de compreendê-la e capaz de vivê-la. vos dá o exemplo realizado do princípio das unidades coletivas,
que caminha para a sua realização na sociedade humana.
XCVI. CONCEPÇÃO BIOLÓGICA DO PODER Em minha concepção, os fenômenos sociais aparecem despi-
dos de todas as incrustações exteriores, nus em sua substância,
Nestas conclusões sociais, está contido tudo o que é preciso como um feixe de forças em ação. Regidos por uma lei exata e
para refazer o mundo sobre princípios biológicos estritamente profunda, são a fisionomia externa de um conceito que se desen-
científicos, vinculados com o funcionamento orgânico do uni- volve com uma lógica própria, cujo andamento é expresso pelos
verso fenomênico. Não insisto em pormenores, porque, em meu diagramas estatísticos, permitindo-vos, desse modo, a previsão
sistema, tudo é orgânico; uma vez fornecida a chave dos fenô- de seu desenvolvimento futuro. Doutra forma, não poderíeis es-
menos e exposto o princípio que os governa, é fácil concluir tabelecer o cálculo das probabilidades. Estudamos esses anda-
também nas mínimas particularidades. Basta haver definido o mentos no desenvolvimento da trajetória típica dos movimentos
edifício do universo em suas linhas maiores. Estas conclusões fenomênicos (Cap. 25), observando a lei de variação (evolução
poderão parecer irrealizáveis por estarem distantes da involução em função do tempo) primeiro em coordenadas ortogonais (fig.
atual, mas não são utópicas, pois se movem e moveram-se 1: tempo no eixo horizontal, das abscissas; evolução no eixo ver-
constantemente numa atmosfera de racionalidade. Ainda que tical, das ordenadas) e, depois, em coordenadas polares (fig. 3) e
possa vos parecer utópica, esta filosofia, embora se abstenha de por interpolação parabólica (fig. 4). A linha determinada pela re-
unir-se e enquadrar-se no pensamento filosófico humano, liga- lação entre as ordenadas e as abscissas descreve a lei com ex-
se e enxerta-se, com perfeita aderência, no quadro da fenome- pressões de cálculo algébrico, em forma de problema de geome-
nologia do universo. Ela não é uma filosofia superficial, pois, tria, com as correspondentes equações.
desde a série estequiogenética em diante, todos os fenômenos O objetivo do método estatístico é justamente chegar, por
da matéria, da energia, da vida e do psiquismo a sustentam. Isto meio da observação em massa – na qual se compensam e de-
tudo não é mera sucessão de ideias, mas representa uma concate- saparecem as exceções individuais – à lei oculta do fenômeno, à
nação lógica, pela qual as conclusões estão condicionadas des- indução da verdadeira relação constitutiva. Por isso o funda-
de as primeiras afirmações e reforçam-se a cada passo deste tra- mento do método estatístico reside na lei dos grandes números,
tado. Percebei, além disso, que meu pensamento não se move porque a aproximação ao princípio, ou causa constante, não
no âmbito estreito das concepções humanas, mas se expande cresce em razão direta, mas em proporção à raiz quadrada do
amplamente por horizontes vastíssimos e, por isso, coloca as número de observações. Com essa relação chega-se, assim, à
metas fundamentais a grande distância, para onde os milênios expressão da efetiva constituição do fenômeno. Operando com
caminham com grande esforço. Estabeleci dois limites máxi- grandes números, desaparecem as diferenças unitárias e surge
mos ao vosso concebível, como metas da evolução humana: o uma fisionomia diversa, uma ordem nova, coletiva, que expri-
super-homem para o indivíduo, e o Evangelho para a coletivi- me um conceito da Lei. A expressão estatística, então, corres-
dade, constituindo, em substância, uma única realização. Mas o ponderá à causa; será fixa e constante, se esta for constante; será
pensamento não tem limitações. dada pela regularidade nas variações, se a causa for, como fre-
Temos observado a evolução das mais poderosas forças so- quentemente o é, um conceito em evolução. Isto, desde a este-
ciais que operam nas massas humanas para a formação de sua quiogênese até aos fenômenos sociais. Tudo é ordem. Todo fe-
alma coletiva. Observemos agora essas forças convergindo para nômeno é expressão da Lei. Ao pesquisar as causas, guiados pe-
a nova expressão daquela alma, ainda jovem, verdadeira central lo princípio de causalidade, vos aproximais do pensamento de
psíquica e volitiva: o Estado. Situado no centro do organismo Deus, para aí descobrir sempre uma lógica exata. Se muitos fe-
social, ele concentra o poder dirigente de todas as funções de nômenos sociais vos parecem atípicos, é porque a causa, com-
um povo. Compreendido dessa maneira, como poder, ele é o ór- plexa demais, vos escapa, havendo a influência de inumeráveis
122 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
fatores, todos interdependentes, que participam do cálculo. Mas, de um substancial poder individual de governo. A direção su-
dominadas as causas e compreendida a lei do fenômeno, é possí- prema estará aberta a quem quer que saiba superar a prova de fo-
vel, em qualquer campo, estabelecer a priori seu futuro, por meio go, garantia única de valor intrínseco. Superá-la para conquistar a
de progressões exatas. Então, o futuro não é mais um mistério. posição, e superá-la diariamente para manter-se nela.
A relação de causalidade impõe, na evolução dos fenôme- Acima de todos os emaranhados legais, a substância e a
nos sociais, um determinismo histórico inviolável. Há um des- garantia máxima residem nas forças biológicas, que não ga-
tino do povo, como há um destino do indivíduo; há um cálculo rantem o homem, mas a função, abatendo-o tão logo ele deixe
exato de responsabilidades em que se equilibra a liberdade co- de lhe corresponder. Ao conceito de direção-poder e prerroga-
letiva, da mesma forma que se equilibra a liberdade individual, tiva, substitui-se o conceito de direção-trabalho e função. As-
como já vimos. A ignorância do materialismo pode não ter vis- sim, superando as construções legais, a história sempre chama
to nada disso, mas nem por isso a Lei deixa de estar presente. seus homens, desperta-os, levanta-os e os utiliza, porém rejeita-
Insisto nas bases científicas do fenômeno histórico, que só pode os sem compaixão, assim que cesse a função ou, então, logo
ser compreendido como um momento da fenomenologia uni- que caiam no abuso ou na fraqueza. A prova é grande, o risco é
versal, com as mesmas leis de relação e de cálculo de equilí- tremendo, e só quem tem raça vence e sobrevive. Só quem pos-
brios que regem o mundo físico e o dinâmico. Há uma continui- sui uma substância de valores intrínsecos sabe distinguir-se e
dade psicológica no desenvolvimento dos fenômenos sociais, valorizar-se, sabe compreender e dominar as forças que o ro-
uma concatenação férrea de causalidades, ainda que os atores co- deiam, ao invés de ser por elas arrastado.
locados no palco, homens e povos, nem sempre o compreendam. Em meu sistema, o comando supremo é apenas o trabalho
A Lei age por meio do instrumento humano, movendo o meca- da função suprema – a capacidade psíquica e volitiva, a res-
nismo dos instintos individuais e coletivos, levando de roldão os ponsabilidade, o perigo e o peso máximos. Em meu conceito, a
que se rebelam, impondo por toda parte, em cada movimento, posição de mando só é tal enquanto é posição de dever, posição
seu imperativo categórico. Essas forças interiores e profundas de obediência aos princípios dirigentes da Lei. As hierarquias
sobem e explodem acima da consciência dos povos. Elas fazem a humanas são apenas uma pequena zona de uma estrutura que se
história. Não é necessário, para isso, compreendê-las. A compre- prolonga além da Terra, além dos limites mínimos e máximos
ensão é posterior aos acontecimentos, a consciência é o resulta- humanos. Toda posição é relativa, e sempre existe uma superi-
do da história. Não obstante os estrondos externos dos choques or, embora esteja no imponderável das forças da vida, que pre-
desordenados, no âmago está sempre a ordem. mia e pune a quem deve prestar contas das próprias obras. O
Este princípio guia os impulsos desordenados dos instintos comando supremo é simplesmente a suprema obediência, cuja
individuais e coordena-os para um objetivo único. Doutro mo- alegria só é confiada a quem subiu tanto espiritualmente, que
do, tal emaranhado de forças só produziria o caos. Vedes, no compreende e sabe executar a ordem divina. É função e missão,
entanto, que a história segue uma linha exata de progressos e como o são todas, mesmo as mais humildes atividades sociais.
regressos, de maturações e revoluções, de ciclos criativos e des- Esta é a base biológica da atribuição dos poderes, o alicer-
trutivos. Se cai, é para levantar-se; se destrói, é para reconstruir ce único que garante a correspondência do valor à posição e a
mais alto. Cada momento histórico é um movimento coordena- seu rendimento, base que, mantendo-se maleável (adaptação)
do para um fim. Concebei a história não como uma sucessão de aos fins da evolução, torna-se resistente, mas sem cair na rigi-
acontecimentos exteriores, sem nexo, mas sim, sobretudo em dez. Mesmo no campo político, o fator moral tem que ser pre-
suas causas e finalidades, como um amadurecimento biológico, ponderante, como em todos os campos. Esses equilíbrios e
uma realização progressiva de metas, um funcionamento orgâ- proporções entre valor e posição social fazem parte integrante
nico. A história vos mostra a técnica evolutiva do psiquismo de minha ética científica exata. Nela não há escapatória da po-
coletivo. Olhai, para além dos fatos, o fio sutil da lei que os re- sição de responsabilidade e de dever, a não ser na posição de
ge e os une. Há o ciclo do nascimento e da morte das civiliza- obediência, porque tudo tem de ser balanceado. Quem depen-
ções. Nas revoluções há um ritmo de desenvolvimento na or- de tem de carregar o peso da obediência; quem dirige tem de
dem como na desordem, através do qual a qualquer potência carregar o peso do mando. Em minha ética, nenhuma posição
social, numa curva do caminho, a Lei diz: basta! Todos os de- pode ser de vantagem, mas somente de igual esforço, em pro-
sequilíbrios se recompõem num equilíbrio mais amplo, no porção às forças individuais, no mesmo caminho evolutivo.
qual se compensam, para a grande onda progressiva do bem. Também no campo político, tudo é divisão de trabalho e es-
Não compreendereis a história se não observardes, por trás dela, treita cooperação. Não só colaboracionismo econômico, mas
a Lei. Somente ela, a Lei, verdadeiramente comanda, impondo também social, no seu sentido mais amplo.
ciclos de maturação e esgotamento e determinando o ciclo dos Quem assume, em qualquer campo e nível, uma função diri-
renascimentos às civilizações e aos indivíduos. gente sem as correspondentes capacidade e responsabilidade,
O destino confia uma função ora a uma célula social, ora a frauda a Lei e se expõe à sua reação, que armará contra ele os
outra, e a retira tão logo se esgote. Na tempestade das revolu- acontecimentos humanos. Assim, Luís XV tornou merecida a re-
ções, como no trabalho dentro da ordem, o homem é sempre volução para a monarquia francesa. Luís XVI era um justo, mas
uma força, é substancialmente um espírito que executa sua mis- nenhum exército nem habilidade política poderia salvá-lo. Estava
são. Assim, muda totalmente o conceito de “governantes e go- sozinho contra um destino de classe, sozinho entre forças contrá-
vernados”, que é reconduzido àquele que já afirmamos para o rias, que se acumularam durante um século. Nenhuma construção
indivíduo, de “vida-missão”. É a história que utiliza os homens social pode resistir, por mais que seja baseada na legalidade,
para seus fins quando os coloca em evidência, e não os homens quando não estiver dirigida por um princípio mais alto, por um
que a conquistam para si e se impõem a ela. A ideia de conquis- impulso da Lei, a cujas reações fica submetida nestas condições.
ta e vantagem pode ser um mecanismo necessário para movi- Assim, como mero instrumento de uma guerra difusora de novas
mentar as mentalidades inferiores. A massa contém sempre uma ideias, nasce Napoleão, que, tão logo esgota sua função, é jogado
reserva de grandes homens para todas as necessidades da vida, fora como um trapo, exatamente como o último rei da França, de
que, tão logo surge a necessidade, coloca em ação os valores de quem rira. Assim, a Lei domina soberana os acontecimentos hu-
suas reservas, chamando ora um, ora outro, de acordo com sua manos. Eis a história: um entrelaçamento de causas e forças em
especialização, para que sua personalidade renda o máximo. O movimento, uma reação que restabelece o equilíbrio; Danton, su-
conceito medieval de poder hereditário é substituído hoje pelo focado pelo sangue do terror, e Robespierre, pelo sangue de Dan-
conceito de poder conquistado por seleção biológica, expressão ton – a revolução que devora seus filhos.
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 123
XCVII. O ESTADO E SUA EVOLUÇÃO to a um órgão central numa vasta coletividade, este não podia,
por sucessão natural de impulsos, deixar de logo elaborar o
Assim, a Lei reconstrói na história os equilíbrios violados e conceito de Estado na evolução das monarquias, que, nessa ela-
guia os acontecimentos acima da vontade dos dirigentes e diri- boração, esgotavam sua função histórica. O Estado tornou-se,
gidos. A história caminha sem jamais parar. Cada século pro- por seu mérito, sempre mais orgânico, progressivo em profun-
duz, elabora, assimila um conceito e o entrega realizado – pa- didade, não para limitar o indivíduo, mas para valorizá-lo e ele-
trimônio hereditário que se acumula – ao século seguinte, que var-lhe a consciência; tornou-se cada vez mais rico de funções e
se preparará para novas criações. Cada época tem a sua própria de deveres, até à hodierna concepção de Estado.
função criativa, enquanto os outros aspectos da vida calam-se e Hoje, o Estado não é mais apenas um poder central super-
esperam. Dessa forma, a Idade Média, entre violências e pai- posto a um povo. Esse era o Estado embrionário, filho da mo-
xões, terrores satânicos e visões místicas, se entregava à cons- narquia. Não mais se admitem essas superposições. Portanto o
trução da sua consciência do bem e do mal: um tormento de Estado não é mais apenas um poder central dominador, mas é o
alma, para reencontrar a voz de Deus; um esforço acompanhado cérebro de seu povo e só pode ser a expressão de uma consci-
do tormento de uma dor coletiva opressora, a fim de realizar o ência nacional, de uma unidade de espíritos, baseada numa
sonho da libertação individual. Titânica ebulição de almas, a Ida- unidade ética. Se as unidades primordiais da matéria já atingi-
de Média, no campo da arte, da política, da ciência, lançava a ram tão perfeita e maravilhosa organização ao se aglomerarem
semente das maiores construções espirituais. Vosso século es- nas unidades coletivas dos cristais (orientação molecular, gêne-
queceu o espírito, a fim de criar ciência, mecânica e velocidade, se e acréscimo proveniente de um germe cristalino, reparação
que fundamentaram vossa psicologia. Depressa, essas coisas es- das zonas mutiladas e reconstrução exata da forma individual);
tarão conquistadas, e, mesmo utilizando-as, a consciência dirigir- se tanto psiquismo já explode na matéria, fundindo as molécu-
se-á, por meios mais poderosos, para construções mais elevadas las em unidades orgânicas, imaginai a perfeição que terá de
de espírito em todos os campos. As leis da vida, adormecidas por atingir o mesmo princípio, que maravilhosa complexidade de
milênios num ritmo uniforme, sofreram uma sacudidela e hoje formas o mesmo psiquismo terá de produzir, elevado, depois de
estão despertas para vos lançar à civilização do Terceiro Milênio. tão longo caminho evolutivo, à consciência social, ao expandir
Da mesma forma que a Revolução Francesa, momento críti- finalmente seu impulso na criação das superiores unidades co-
co e longamente preparado nos séculos, trouxe à luz da existên- letivas humanas. Por esse caminho, o Estado prosseguirá em
cia histórica a subida da burguesia produtiva, também assim a sua evolução, não apenas representando mas absorvendo e or-
futura revolução maior da humanidade, filha de uma maturação ganizando um povo inteiro, num progressivo processo de des-
substancial biológica, trará à luz a subida política da intelectua- centralização e concentração, de contatos cada vez mais inten-
lidade consciente. Não entendo como intelectualidade aquela sos entre periferia e centro. Com isso, a autoridade não se pul-
miscelânea de acúmulo mental da cultura moderna, fato externo, veriza, mas o povo funde-se nela, numa corrente de fluxos e re-
que não proporciona virtude à personalidade, mas sim como um fluxos que o torna cada vez mais um organismo em funciona-
amadurecimento de raça, construtor de instintos mais altos, que mento, consciente e compacto.
tornem o homem um ser escolhido pela seleção para a função so- Nossa concepção biológica dos fenômenos sociais e nossa
cial do comando. A esta função de governo estará ligada, por in- concepção evolucionista do Estado nos levaram, naturalmente,
confundíveis qualidades de raça, e não por superposição de cultu- a esta visão atual de um Estado cada vez mais unitário, que fi-
ra e de títulos, uma elite insubstituível, tal como, na natureza, ne- ca, assim, logicamente colocado no quadro da fenomenologia
nhuma célula de tecido muscular pode substituir outra à qual te- universal, no caminho da evolução coletiva para o ápice da fase
nham sido confiadas funções nervosas cerebrais. . Solicitei à realidade biológica que me indicasse as linhas do
A base biológica da divisão do trabalho por especialização ideal social, e essa realidade vos reafirma, em toda a parte e
de capacidade é a única que pode justificar o conceito do futuro sempre, que o princípio e a vontade da Lei são: o trabalho-
estado orgânico, diferenciado na fusão compacta de suas unida- função e a divisão, especialização e reorganização de capacida-
des, expressão viva do organismo biológico coletivo. Estado des e de atividades. Observai que ao conceito de Estado foram
em sentido colaboracionista, em que, além das funções econô- dados aqui fundamentos universais. Nenhum sistema político
micas e produtivas, acrescentam-se todas as funções sociais e jamais soube justificar-se mediante uma filosofia científica que
éticas. A esta substância biológica temos sempre que nos referir remontasse à gênese da matéria, da energia e da vida. Conclu-
todas as vezes que quisermos compreender o fenômeno políti- sões espontâneas, estreitadas num encadeamento férreo de raci-
co; não às construções ideológicas, mas à realidade da vida em onalidade, necessárias num organismo de conceitos e de fatos,
suas mais profundas raízes, que se enxertam na fenomenologia tal como são o universo e esta Síntese, que o descreve.
universal, seu fundamento indestrutível. Hoje, já está nascido o Estado. Não podiam denominar-se as-
Se a Idade Média, em suas condições sociais involuídas, só sim os velhos organismos políticos, baseados na superposição de
podia oferecer ao homem um sonho de libertação individual pe- classes, até ao absurdo inadmissível de um domínio estrangeiro.
los caminhos da renúncia mística, hoje nasceu o Estado, e a soci- Hoje, um povo não é um domínio, mas um organismo cuja alma
edade se constituiu em forma orgânica, em cujo seio o indivíduo é o Estado. Esta é a etapa hodierna das unificações dos indiví-
pode atingir sua completa realização. Se a Idade Média atendeu duos em coletividades, que progridem da família à classe, à na-
às construções prevalentemente individuais, retoma-se hoje o ci- ção, à humanidade. Para se atingir a condição de saber viver co-
clo das construções e conquistas coletivas. Não é mais concebí- mo unidade coletiva superior, é necessário passar pelas unifica-
vel o indivíduo isolado, ainda que santo, numa fuga mística da ções componentes menores, vivendo-as através de uma matura-
convivência humana, mas sim o indivíduo fundido neste consór- ção gradativa e consciente. Portanto são absurdos os internacio-
cio em colaboração fecunda. Podemos, então, definir mais exa- nalismos abstratos, quando o mundo ainda trabalha para encon-
tamente o poder como a central psíquica e volitiva de uma nação, trar suas unidades étnicas menores, sua atual criação, antes igno-
estendendo o conceito de Estado a todo o organismo nacional. rada. A formação progride por continuidade, pois uma unidade
Em sua evolução, o conceito de Estado nasceu do poder coletiva não é um mero agregado regido por coerções de leis ex-
monárquico absoluto, tipo Luís XIV. Na longa luta feudal, uma ternas; para resistir ao choque do tempo, tem de ser um organis-
família vencera, primeiro submetendo as outras, depois as as- mo regido por uma consciência coletiva, fusão de almas, que só
similando. Realizado o esforço da concentração do poder, antes pode operar após longa maturação. Uma unidade só se mantém
espalhado sem coesão, em mil ramificações, e dando surgimen- na medida em que se tenha formado e enquanto a ela correspon-
124 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
da outra íntima unidade psíquica que a mantenha coesa. Uma todas essas mudanças: a consciência coletiva, a formação do
nação é simplesmente a veste externa de um psiquismo coletivo, eu da unidade social. Só nesse sentido, isto é, de ser o seu
a forma biológica desta unidade espiritual superior. exercício um instrumento de formação de consciência, o po-
Hoje, o Estado só pode ser povo, e povo só pode existir der representativo não podia ser um absurdo em seu alvorecer,
organizado em Estado. A progressão das unidades e consci- pois presume uma consciência coletiva, que então estava jus-
ências dirigentes continuará a dilatar-se na evolução, até tamente sendo formada, como efeito do trabalho do Estado, e
atingir uma unidade e consciência que abarquem toda a hu- não como causa de sua construção. Mas, como vimos, função
manidade, e daí a uma unidade e consciência cósmica que e órgão apoiam-se numa recíproca criação. Aconteceu, então,
compreenda todo o universo. A luta é esforço de transição, que, pelo mesmo princípio de correção do abuso, pelo qual o
que cessa ao se atingir a meta: a unificação mais elevada. sistema representativo tinha corrigido o poder monárquico ab-
Esta é a tendência constante, o significado das grandes tenta- soluto, um novo poder centralizador corrigiu os abusos do po-
tivas históricas de formação de impérios. Política, científica der representativo. A infertilidade da descentralização levou
e espiritualmente, o ser busca a unidade. novamente à centralização. Assim, oligarquias e democracias
Também o campo político é constituído de verdades relati- se alternam e se compensam mutuamente.
vas e progressivas; o conceito de Estado está em constante pro- Mas essa oscilação entre os dois extremos não tem apenas a
gresso, assim como um povo é uma unidade em contínua evo- função de restabelecer o equilíbrio da Lei; é a técnica evolutiva
lução. Cada geração vive um momento do gradativo desenvol- na qual é elaborado o homem como material político constitu-
vimento da verdade política do próprio povo, como vive tam- tivo. Esse alternar-se de sistemas não é simples compensação
bém, por momentos sucessivos, sua verdade artística, científica, de contrários, mas um escorar-se de impulsos e contraimpul-
ética e religiosa. Só hoje se pode falar em Estado. Para chegar sos; é um jogo de forças de cujo contraste surge um progresso
aí, a jornada foi longa. Trata-se de uma maturação biológica íntimo. A eliminação do arbítrio é obtida não só por controles
longamente elaborada, mesmo quando explode em revoluções. externos, mas sobretudo por amadurecimento de consciências.
A unidade coletiva expressou-se desde as origens, em seu poder Quão mais moderada pode ser a oligarquia depois de um sécu-
central, pelo método da seleção biológica. Então, criado esse lo de experiência democrática! Quanto aprendizado ao execu-
centro, progressivamente disciplinou-lhe os poderes. Primeira- tar civilizadamente as revoluções, ao inclinar-se para o povo,
mente, por coação, ou seja, o arbítrio de um vencedor; depois, ao reencontrar na elevação deste a justificação da própria fun-
por convenção, ou seja, o arbítrio das maiorias; finalmente, ho- ção! Com quanta maturidade se poderá voltar à democracia,
je, pela função coletiva, isto é, a justiça. Essas são as etapas quando a oligarquia tiver cumprido sua função de formar a
evolutivas do princípio da atribuição de poderes. consciência de um povo! A que distância se encontrará esse
Mais detalhadamente, temos, no princípio, um poder abso- povo daquele que, com a Revolução Francesa, começava sua
luto subdividido, como no feudalismo; depois, um poder abso- vida política! Quão mais civilizado e fecundo será o contra-
luto concentrado nas mãos do mais forte (monarquia), vencedor golpe num povo que, como resultado de um poder centraliza-
de uma classe inteira, mais tarde disciplinada e convertida nas do, foi educado para saber eleger e governar, para saber evolu-
cortes (classe aristocrática). O centro, então, ainda se ressente ir nas concepções sociais! Essa é a evolução política da unida-
das origens familiares: o chefe é um dominador de consanguí- de coletiva, paralela à evolução em todos os campos.
neos, e o poder é hereditário. Isto demonstra que o poder nas- Detenhamo-nos na concepção do Estado futuro, depois de
ceu na família, nas mãos do seu chefe, e que a família é o insti- tê-lo orientado assim no tempo e em seu transformismo ascen-
tuto basilar da sociedade humana. Neste estágio, o poder é con- sional. Concepção nova e ousada, base, no campo social, da
quista: a função dirigente atravessa a fase de luta, própria dos pe- nova civilização do Terceiro Milênio. Estado democrático e
ríodos de formação, correspondente àquela da força ainda não aristocrático ao mesmo tempo, ele representará a fusão dos dois
elevada a direito e justiça. Estamos na perfeição da monarquia princípios: centralização e descentralização, ambos necessários.
absoluta, do “Roi Soleil”, que dizia: “L’État c’est moi” (O Estado Em sua função unitária, criará uma coletividade mais compacta,
sou eu). Meio século de abusos com Luís XV, e, com Luís XVI, em cujo seio o indivíduo não mais será um membro inconscien-
o sistema desaba. Como todos os fenômenos, também o político te de um rebanho desordenado, mas será o soldado de um exér-
procede por amadurecimento de ciclos. A revolução reage com o cito em marcha, e nele vibrará a alma do chefe. Pela primeira
poder absoluto confiado às maiorias. O rei era o povo. Foi cha- vez na história, o Estado fará do povo um organismo, em cujo
mado de poder representativo, democrático; passava do máximo centro, fundido com ele, dar-se-á a síntese de vontades e de po-
de centralização ao máximo de descentralização. deres. No Estado futuro, o povo não será mais um rebanho go-
Assim caminhava a evolução do mando, por entre excessos e vernado que só deve dar e obedecer, mas será o corpo do cére-
extremas reações corretivas, com tendência constante ao abuso, bro central (o governo), o organismo da alma diretora, que por
porque o homem ainda não evoluíra além disso. A causa não se toda parte irá penetrá-lo e vivificá-lo com seus tentáculos e ra-
aperfeiçoara; avançava por uma série de enérgicos contragolpes, mificações nervosas. Não mais um chefe, nem uma classe, nem
porque a lei de equilíbrio impunha a necessidade de uma corre- uma maioria que comande por si só, mas uma dedicação no
ção contínua. Num estado de inconsciência que gerava abuso e cumprimento de deveres e uma doação na cooperação, uma fu-
excesso, a evolução não podia caminhar senão oscilando entre são completa num trabalho e num objetivo comuns. É certo
impulsos e contraimpulsos. O conceito de soberania popular nas- que, historicamente, já se fixou na alma das massas, por hábito
cia como reação ao abuso da soberania de um só. Mas, substan- milenar, uma indiferença pelo poder central, mutável e ausente,
cialmente, ao arbítrio de um só sucedeu o arbítrio das multidões. mas invariavelmente senhor, diante do qual o povo teve de ficar
Acredita-se somente nas mudanças de sistemas, e não se sempre igualmente inclinado na posição de servo. Formou-se,
vê que a substância que decide é a maturação do homem. A assim, um instinto de aquiescência passiva, de tolerância e de-
revolução francesa iniciou o povo na difícil arte do mando, sinteresse, como uma coisa que não lhe diz respeito, que só age
mas, desde os primeiros momentos, o povo demonstrou-se in- para pesar sobre o povo, educado apenas para a virtude de su-
competente e inconsciente, excedendo-se nos piores abusos. O portar e calar. O Estado moderno deve começar pelo trabalho
poder requer a mais alta maturidade de consciência; é uma de demolição desta psicologia de absenteísmo político que se
grande força, perigosa nas mãos de uma criança. Mas, deste fixou na alma coletiva. Ponderai que toda concepção ou reali-
momento em diante, o povo começou a estudar a nova arte e a zação política não constitui jamais a última meta, definitiva-
resolver o novo problema. Assim, abuso e reação se amorte- mente alcançada, mas sim o germe de um futuro ilimitado, pois
cem gradativamente e é conquistada a substância, conteúdo de é a síntese de todo o passado.
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 125
XCVIII. O ESTADO E SUAS FUNÇÕES nhecimento de sua ordem divina. A ciência deve demonstrá-la
para que, nessa ordem, o Estado encontre suas bases racio-
Que multidão de funções terá de abarcar, quantos problemas nais. Concepção imensa de uma fé social e científica, de que
novos terá de enfrentar e resolver, que complexas realizações participarão em paz todas as religiões. Este é o Estado da no-
executará o novo Estado futuro! Por suas bases biológicas, está va civilização do Terceiro Milênio.
fundamentalmente vinculado ao fenômeno basilar do ser: a Neste novo Estado, o indivíduo realiza seu amadurecimen-
evolução. Sua primeira função é a de ser instrumento das as- to biológico em direção à fase de super-homem. Todas as for-
censões humanas. Educar é a sua primeira tarefa substancial; ças sociais tornam-se disciplinadas, objetivando a elevação
ter formado o homem é o resultado eterno de todo o seu traba- coletiva. Os instintos inferiores se atrofiarão pelo não-uso; os
lho. Todo o resto torna-se meio diante desse objetivo supremo. elementos mais involuídos serão domesticados, porque absor-
Pela altura e intensidade com que tiver sabido educar, mede-se vidos na correnteza que os orientará para metas espirituais su-
o valor de um governo. A pedra de toque de uma religião, filo- periores. A potência de um novo Estado, de alto conteúdo éti-
sofia ou sistema político é determinada pela quantidade de luz co, é uma força que fecunda todas as atividades, é um esplen-
que tiverem sabido fixar na alma humana; reside na medida em dor de luz que desperta qualquer alma. Valoriza-se a aptidão
que tenham conseguido tornar melhor o homem. que responde aos impulsos mais nobres, e o homem mediano,
Em meu sistema, o Estado é o órgão base das ascensões hu- incapaz de orientar-se e guiar-se, feito para obedecer, aceita e
manas. Nessa atmosfera de alta ética, que deve tudo vivificar e se eleva. Todas as energias sociais não mais se rivalizam em
animar, movem-se todos os trabalhos em qualquer campo, todos hipertrofia de funções, nem se manifestam num desencadea-
reduzíveis em sua síntese a uma criação espiritual. Nas atividades mento cego e destruidor, mas tornam-se uma expansão ilumi-
individuais e sociais realiza-se o princípio da Lei, que diz: ordem. nada e produtiva do pensamento do Estado; não se perdem na
Tudo se move, pois, ao longo de um caminho de coordenações e vã tentativa de reencontrar-se, nem se desgastam no atrito,
harmonizações que eliminam os atritos, aumentam o rendimento como um amontoado de engrenagens dessincronizadas, mas
e, seguindo a lei do menor esforço, conduzem à superação de to- coordenam-se, a fim de convergir para as metas eternas de
das as formas inferiores do mal, da dor, do egoísmo, da luta. Por evolução. Assim, um povo realiza lentamente as grandes as-
essa via de harmonizações, o centro atinge a periferia, a periferia similações espirituais e avança coeso, como um exército em
volta ao centro, que se reforça pela coesão do indivíduo; este se marcha, para a difícil conquista dos ideais. Move-se com efi-
valoriza na coletividade, acentuando seu rendimento. O Estado ciência progressiva a massa pesada e lenta da grande alma co-
entoa a música da cooperação: prevê e coliga no espaço e no letiva, que começa a ver e a compreender.
tempo, antecipa e provê, garante e protege. Só ele pode criar uma O trabalho, iluminado por finalidades superiores, não cons-
atmosfera ética em que possam florescer as delicadas produções titui mais uma condenação, mas é triunfo cotidiano sobre a ma-
do espírito; só ele pode estimular as atividades intelectuais supe- téria, vitória da vontade e do espírito, ato viril de domínio. O
riores, que, doutro modo, escapam à consciência coletiva e são Estado, na elaboração de seus órgãos, reunirá os cidadãos num
condenadas à extinção pelo princípio hedonístico. O Estado agirá fecundo abraço produtivo. Os indivíduos que não se organiza-
em profundidade, fazendo evoluir a luta para formas mais altas, rem para valorizar-se neste novo poder coletivo estarão destina-
que implicam união de pensamento e de energias, correspondente dos à eliminação. Se as velhas unidades econômicas, pequenas e
também a um princípio de utilidade coletiva. Imaginai a força de isoladas, tinham a vantagem da independência recíproca, que cir-
um povo que haja se tornado organismo! cunscrevia as crises, hoje o progresso já organizou as necessárias
Os indivíduos, cujas funções são todas nobres, não se tornarão relações e permutas mundiais, que, se tornam o organismo eco-
iguais por nivelamentos externos, mas equilibrar-se-ão na justi- nômico mais perfeito e compensado, também o deixam mais
ça da hierarquia, porque a diferença de posições corresponde a vulnerável. Essa vulnerabilidade impõe um regime de colabo-
uma diferença de valores, de funções e de deveres, equivalente ração. Em sentido mais amplo, a moderna capacidade de especia-
à diferenciação individual de aptidões hereditárias. Nesta justiça lização de funções dá ao indivíduo involuído e isolado probabili-
de divisão de trabalho, os homens serão inevitavelmente irmãos, dades cada vez menores de sobrevivência. Quanto mais perfeito e
porque necessários uns aos outros no organismo. Neste, o signifi- diferenciado é o indivíduo, mais vulnerável se torna, porém me-
cado e o valor da vida de cada um elevar-se-ão, e não será possí- lhor sabe e mais necessita viver em coletividade. Essa sua fra-
vel a ninguém agredir ou demolir sem demolir a si mesmo. Neste queza diante do homem primitivo, essa sua perda de adaptação, é
organismo, obedecer não é servir, mas valorizar-se; não é dimi- a força que mantém coesas as unidades coletivas, que, por isso,
nuição, mas conquista; é a tomada de posição tal como célula no não estão dispostas a desagregarem-se.
organismo coletivo, e não mais apenas como um número; um or- Nesse novo Estado, as anarquias econômicas terão que ser
ganismo em que o indivíduo crescerá quando fizer parte dele. O eliminadas, e o individualismo, caso constitua desordem, não se-
novo conceito não constitui rebelião do individualismo em preju- rá admitido. O homem futuro que esse Estado deverá construir
ízo da coletividade, mas é fusão do individualismo no coletivis- não será uma simples máquina para fabricar dinheiro, ou apenas
mo, um individualismo de ordem, que se valoriza na ordem cole- uma hipertrofia volitiva, mas um homem completo também em
tiva. Ai do Estado que anula o indivíduo, mas ai dos indivíduos seu campo espiritual, no desenvolvimento harmônico de todas as
que se sobrepõem ao Estado. suas faculdades. O Estado que realiza o princípio colaboracio-
O novo Estado tem que possuir o monopólio da força. nista está situado num nível superior ao do Estado que permane-
Ainda que esta seja uma necessidade de vossa vida involuída, ce na fase do princípio hedonístico. O valor e o nível evolutivo
já constituirá um progresso se o indivíduo dela for privado, de um Estado medem-se pelo grau atingido na realização dos
porque o seu desuso enfraquecerá os instintos antissociais. Es- princípios; pelo grau em que tiver sabido formar a consciência
se Estado não pode ser agnóstico; precisa ter uma concepção colaboracionista; pela capacidade de infundir no trabalho a ideia
ampla da vida e fazê-la compreendida, para que o indivíduo a de função e, na vida, a de missão; pela medida em que tiver con-
coloque em prática; deve ter resolvido os maiores problemas seguido transformar a força em direito, o egoísmo em altruísmo,
do conhecimento. Tem que saber compreender o homem, seus a desordem em ordem, a guerra em paz, atenuando as formas de
instintos, seu destino; penetrar o mistério de sua personalida- luta, educando-as no caminho da evolução.
de, a fim de poder colocá-lo em seu lugar e dele obter o máxi- O Estado aspira e emana, concentra e descentraliza, é o cora-
mo rendimento. No princípio, o centro realizará um mero en- ção que a cada instante lança todo o seu sangue para circular em
quadramento de massas, mas no futuro ocorrerá a fusão de seu organismo. Em seu seio, o Estado eleva todos os seus cida-
almas. Nesse Estado, Deus é imprescindível, assim como o co- dãos, econômica e moralmente; coordena-os todos nas diferentes
126 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
funções, realizando a justiça mediante a subdivisão do trabalho XCIX. O CHEFE
em correspondência com os valores individuais. Enquanto o Es-
tado não tiver ligado a si todo o povo, como função integrante de Quem será o chefe desse novo organismo para o qual se di-
sua unidade, o povo permanecerá estranho, indiferente, podendo rige toda a vida? Como a história o escolherá e o evidenciará?
até ser amanhã um inimigo; enquanto todos os cidadãos não se Há momentos em que a história atravessa curvas decisivas,
sentirem vivendo no Estado, enquanto houver um só homem que em que se prepara a fase decisiva de uma civilização milenar.
não se sinta, ainda que minimamente, parte dele, esse homem se- Imensas maturações sociais estão iminentes na aurora de no-
rá sempre uma ameaça de dissídio e germe de desordem. vas civilizações. A humanidade parece, então, perder-se em
Um dos grandes erros do século foi o de ver e colocar em crises e conflitos, e todo o passado parece ruir. Então, as for-
evidência o lado involuído da sociedade humana. A incompre- ças da vida conclamam o gênio, para que interprete e crie, e os
ensão entre capital e trabalho e a luta de classes manifestavam equilíbrios da Lei o trazem à luz, valorizando-o em plena efi-
no campo econômico a visão universal materialista imperante. ciência. As forças do imponderável convergem a sustentá-lo,
O Estado não deve manifestar essa luta, mas sim dominar todas para que ele construa e levante. Então, o homem que muito
as atividades econômicas; deve ser o organismo ético que ab- realizou, com seu trabalho íntimo, sua maturação biológica, é
sorve todas essas atividades, dando-lhes conteúdo moral e soci- chamado por atração, por meio da linha de sua maior especia-
al, elevando-as a função. lização, para dar todo o seu rendimento à obra coletiva, que
A introdução do fator moral na vida social, supremamente lhe é confiada e se torna sua. A vida do chefe é suprema mis-
construtivo, inverte a posição do problema. Para maior rendimen- são. Esses fenômenos não são mistério para nós, pois sempre
to utilitário de todos, os grupos sociais têm que evitar o desperdí- nos movemos ligados à substância, no imponderável.
cio dinâmico da luta relativa ao período caótico, a fim de vive- Nesse desencadear-se de forças titânicas, é pueril buscar a ra-
rem coordenados, e não em oposição; para cooperarem, e não pa- zão das coisas nas velhas fórmulas de legalidade humana. A
ra eliminarem-se. É contrária à lei do menor esforço uma cadeia grande lei que, no âmago, sustenta todas as coisas, amadurece
de opressões e reações, portanto, pela lei da evolução, isto tem de tudo com perfeita harmonia para metas jamais aleatórias. A vida
acabar. A luta de classe pode ser considerada uma doença social dos povos possui seus equilíbrios profundos, tal como a vida
do período involuído, um fato patológico que precisa ser supera- inorgânica e orgânica. Da mesma forma como estas, no momen-
do. O sonho de arrasar o capital para proporcionar a subida do to da maturação evolutiva, produzem a molécula ou célula ade-
proletariado, sumamente inadaptado em sua inconsciência para quada, a vida dos povos, no momento decisivo da evolução bio-
qualquer função dirigente, significa secar a fonte da riqueza para lógica, também produz o seu personagem, a sua célula superior,
todos. Opressão e violência, a exploração da ignorância popular trazida à luz pela tensão de todas as forças da vida. Essas forças
por egoísmos políticos, a greve e o “lockout” não resolvem o explodem em triunfo após secular esforço oculto, a fim de que
problema da produção, nem da riqueza. Tudo isso é filosofia essa célula realize, por leis de coordenação, sua função de cére-
econômica de transição, mecanismo de destruição. bro e de vontade, de direção e de comando, porque essa é sua
Nas leis da vida fundamenta-se a ascensão até à fusão e à capacidade natural, sua diferenciação e sua função biológica.
solidariedade de todas as forças de produção, sem opressões Assim, o chefe será caracterizado por sua grandeza, mas
nem supressões, dando lugar a todos, para que todos deem sua também pelo seu senso dever; por sua satisfação, assim como
contribuição. No colaboracionismo, todas as classes encontram pelo seu esforço; por sua vitória e, ao mesmo tempo, pelo seu
reconhecimento e proteção, o trabalhador do pensamento e o perigo. Nesta função e neste perigo residem a justiça da su-
lavrador da terra, o soldado e o operário. Colaboração, não luta prema lei de Deus e a base, antes divina que humana, de uma
de classes. A propriedade é base natural do edifício econômico, investidura sagrada, que é missão na vida; residem seu direito
tal como a família o é do edifício social, e, como ela, é lei da de comando e o dever dos povos de obedecer-lhe, unidos todos
natureza, própria também do mundo animal. Destruir essas diante de Deus, operários diferenciados no mesmo trabalho.
unidades primordiais insubstituíveis é demolir a natureza hu- A novíssima afirmação é que o chefe, nos momentos de ex-
mana. A instituição da propriedade, criada pelos vencedores da ceção, é escolhido por seleção biológica; no momento decisivo,
luta econômica para própria defesa, e agredida pelos derrota- a Lei intervém diretamente, superando as convenções sociais.
dos, sempre existiu e existirá, apesar de todas as tentativas de Manifesta-se uma lei mais verdadeira que as outras. Os povos
demolição, porque corresponde à necessidade fundamental de procuram, por instinto, a célula que realize a função coletiva
defender uma posição, que todos, embora alternadamente, aca- necessária de comando. Reconhecem-na, sentem-na, respeitam-
bam ocupando. Isto significa elevar tudo, nada destruir e tudo lhe a função, não por coação nem por convenção, mas esponta-
criar. Às revoluções destruidoras sucede uma revolução constru- neamente, por uma lei que reside em seus instintos. Quando um
tiva, que enquadra todas as forças e delas faz uma unidade; às re- povo encontra seu chefe, aquele que sente e manifesta sua alma,
voluções que saem debaixo para demolir, sucedem as que des- coordena suas atividades, realiza a função biológica de defensor
cem do alto para construir; descida das aristocracias do pensa- e unificador material e espiritual do novo organismo, então re-
mento, para elevar os humildes; ascensão dos humildes para a pousa contente, com seu instinto satisfeito, do mesmo modo
compreensão. A tarefa das classes não é eliminarem-se, mas que repousa o instinto do corpo bem alimentado, ou o da mãe
compartilhar os frutos da mesma civilização, encaminhando-se que teve seu filho, porque está assegurado o futuro de sua vida.
para a compreensão recíproca. A tarefa da classe dirigente não é Os tumultos da vida política são, como os da fome e do amor,
dominar, mas educar a plebe tumultuada – velho instrumento de os profundos tumultos da vida que “deve” avançar.
vinganças, chamariz dos astutos, muitas vezes vítima das repres- Na história, nenhum sistema de atribuições de poder oferece
sões, sempre massa ignara, amorfa e cega – para transformá-la garantias deste, que é substancial, íntimo, e não formal ou visí-
num povo que sobe para uma consciência coletiva mais alta. vel. Um chefe assim, de raça, surge como produto da vida de
Todos esses conceitos fazem parte, naturalmente, de um um povo, mas só de um povo que saiba produzi-lo. As leis bio-
mundo mais evoluído, sendo próprios de um tipo humano bio- lógicas não fornecem chefes nos séculos de repouso, nem a
logicamente mais avançado. O tipo atual não sabe superar es- povos impotentes, estéreis, que estão condenados. O super-
sas formas de lutas primitivas e selvagens, que revelam sua homem não se improvisa, não emerge por meio de sistemas
fase, mas que, no entanto, são necessárias hoje para realiza- eletivos, por meio de convenções ou coações sociais. A raça é
rem a própria seleção em seu plano. O homem de amanhã o raça; é natureza íntima que se construiu na eternidade; é subs-
julgará um involuído. tância de alma; é capacidade única; é um destino, um amadure-
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 127
recimento de grandes forças biológicas. O chefe, assim, de ra- teriores, a eterna evolução social, amadurecendo o passado e
ça, não é escolhido pelo voto, mas no choque de forças soci- antecipando o futuro. Abebera-se em sua própria fonte; a ativi-
ais; é filho não dos cálculos das urnas, mas das tempestades dade social transforma-se, acompanhando sua visão, que se fi-
em que os povos se debatem pela vida; não é escolhido por xará na evolução jurídica. Educa, cria a consciência coletiva,
consenso dos homens, mas por consenso das leis ocultas da pois sabe que essa criação interior antecede a compreensão e a
vida. Ele se impõe, levando de roldão o passado, como um fu- base da vida das instituições, que a seguir a exprimem. Inde-
racão, no turbilhão da revolução. Qual terá sido a onda que, pendente da ciência humana, sua visão guia seu braço estendi-
nascida do mistério, jogou-o para o alto o homem não sabe, do em ato de comando em direção ao futuro. É força num tur-
mas todos se inclinam, porque uma lei mais profunda que as bilhão de forças, indo ao encalço de novas civilizações. Sua
humanas o ordena. E o chefe lá está, por direito divino; é o di- vontade, guiada pela intuição exata das correntes de pensamen-
reito que lhe dá seu destino, sua raça, sua capacidade, selecio- to e da vida do mundo, ativamente se introduz na lei cósmica
nado no sangue da luta, que não tolera ineptos. da evolução. Criando novas instituições sociais, enquadra em
Lá está e lá permanece. Só por valor intrínseco pode ele resis- formas novas os valores morais dos séculos.
tir numa posição que, por sua altura, está exposta a todos os rai- No quadro de sua concepção, o chefe está organicamente
os. Esses são os reais controles do poder, as verdadeiras garantias colocado, como ideia e ação ao mesmo tempo. Situado no cen-
do valor e do rendimento do homem, porque o assalto é tenaz a tro de seu Estado, ele é sua própria ideia, que em torno dele
cada minuto, a guerra é sem tréguas; aí não existem muletas para próprio palpita como uma auréola sua, como vida que emana
os fracos, não há possibilidade de mentir perante as leis da vida. da sua vida. Ele é um pensamento e uma vontade única, cen-
Eis o direito substancial, o direito do valor, do merecimento, da tral, responsável, instantânea; não como nas formas representa-
função, da missão, não apenas aquele da legalidade formal. O tivas, pensamento e vontade múltiplos, divididos, que lenta-
chefe lá está porque é o órgão máximo de uma vida coletiva mai- mente se reencontram. O Estado é o organismo do qual o chefe
or, e lá permanece, invulnerável, pelas mesmas invioláveis leis é o cérebro e os cidadãos as inúmeras células, também elas in-
biológicas, até que sua função social se esgote. vestidas de funções menores, em harmônica coordenação de
Substituo o conceito da legalidade humana pelo da justiça funções que convergem para o alto. Da periferia ao centro, dos
divina, que sanciona os valores íntimos. Ponho como base dos membros ao cérebro, ao coração, existe uma contínua corrente
fenômenos sociais as leis eternas da vida. No âmago do pro- solidária de permutas; uma descida de pensamento, de força,
blema jurídico, vejo sempre o problema biológico, sua alma. de consciência, de ajuda; uma ascensão de contribuições vitais
Somente se as posições do segundo forem sólidas, serão sólidas para se reencontrarem no centro e de lá descerem fecundas. O
também as do primeiro, sua expressão. Essa é a base substanci- Estado, assim, é também centro de irradiação moral, é alma, fé,
al da legalidade. Os movimentos das forças políticas, jurídicas, religião. Cada célula aí se sente mais forte. Pela primeira vez na
sociais, só são compreensíveis se reduzidas à sua substância bi- historia, ao conceito de Estado absoluto ou representativo substi-
ológica. Que sistema mais substancial de escolha e de garantia tuiu-se o de Estado biológico orgânico. Os valores morais, os
pode encontrar um povo, do que esta filtragem, bem mais rigo- produtos das civilizações do mundo, realizam seu ingresso
rosa, realizada pelas leis da vida? Que lei é mais profunda que a triunfal no Estado, não mais divididos em estéreis antago-
lei biológica, onde cada fibra é testada? É absurdo pensar que o nismos de classes e de princípios, de ciência e de fé, de Estado e
poder tenha de ser escolhido de baixo, ser determinado pelos de Igreja, de rico e de pobre, mas fundidos numa unidade impos-
níveis biologicamente menos evoluídos. O sistema representa- ta pela nova civilização no campo do pensamento e da ação.
tivo constitui um método para escolher os melhores. As massas, O novo Estado é gigantesco organismo integral, imensa ofi-
porém, podem aceitar e suportar o super-homem, mas não cina de colaborações, em que máquina, trabalho, produção, ri-
compreendê-lo por antecipação. É a evolução que coloca à fren- queza, ciência, religião, tudo se funde e age organicamente.
te o ser avançado, a fim de arrastar e plasmar os outros, involu- Esta alta concepção de vida coletiva é introduzida na circula-
ídos, que só sabem receber e obedecer. O conceito tradicional, ção do sangue dos povos e opera a valorização das massas.
assim, é invertido; a escolha não vem da quantidade medíocre, Essa é a criação biológica confiada ao chefe pela Lei. A no-
mas do alto, das forças da vida; o número é quantidade, incom- va alma coletiva está por desenvolver-se e afirmar-se. Ele su-
petente, portanto, para decidir a respeito da qualidade. Se sua pervisiona os primeiros movimentos dessa sua filha ainda cri-
missão é educar, o chefe tem que ser um senhor espiritual que, ança, guia-a, educando-a. Do conceito de Estado-rei ao de Es-
do alto de sua fase superior, desça e saiba dar, e não um medío- tado-classe social e ao de Estado-povo, assim como do poder
cre que sobe e pede. Confio mais nesta legalidade, mais pro- absoluto ao poder representativo e ao poder-função, à medida
funda que a humana. Em meu conceito, é na capacidade que re- que a consciência coletiva ascende e se dilata, o poder desce e
side a base do direito. O chefe comanda pelo mesmo direito se descentraliza. É a ascensão do espírito, que, progressiva-
com que a águia voa. Ele é testado em cada instante por todas mente, purifica o princípio de sua escória. Nos equilíbrios bio-
as resistências, que lhe garantem a capacidade e a função, por- lógicos, a medida do comando é dada pelo grau de consciên-
que são as forças biológicas, que conferem o poder, as mesmas cia atingido. Os povos precisam mais de mestres que de liber-
que o tiram logo que cesse a função. dade; de guia antes que de mando, até que amadureçam. O
O poder que vem do alto possui um conteúdo muito diferen- chefe olha: seu povo é seu corpo, é sua aquela alma, aqueles
te daquele concedido de baixo. É dever, não direito; não é con- tormentos são seus, aquelas esperanças, aquelas vitórias. Chefe
quista, mas função; é ordem, não arbítrio; é sacrifício e missão. e povo: unidade indissolúvel. O mundo está em marcha. A rea-
A investidura envolve o super-homem, que vê o infinito e não lidade biológica impõe: ou evolução ou morte.
admite abusos; entrelaça-se indissoluvelmente em seu destino;
seu prêmio é eterno, além da vida. Guia-o a mão de Deus, e ele, C. A ARTE
sob seu próprio comando, obedece, só buscando dar para reali-
zar-se a si mesmo. Cérebro de um povo, é a superelevação que Ao focalizar os problemas da fase , com minúcia, coloco
guia e ilumina a revolução biológica e impele a vida para suas no ápice deles a arte, como expressão suprema da alma huma-
fases supremas. Ele engasta seu trabalho na série das criações na. Nada espelha melhor a ideia dominante de uma época. Por
históricas dos milênios, porque nos milênios os homens esco- vezes, é graça e suavidade; doutras vezes, simplicidade e po-
lhidos trabalham em cadeia. Realiza em sua fase, em perfeita tência; algumas vezes é profundidade de espírito puro; outras
correspondência com os momentos históricos precedentes e pos- vezes, ouropel vazio de forma. Exprime sempre o pensamento
128 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
humano, que ascende ou decai, aproximando-se mais ou menos side em manifestar, com evidência cada vez mais límpida e com
da grande ordem divina. O pensamento que ora ousa, ora re- maior profundidade, a beleza do pensamento divino na lei que
pousa, ora é jovem, ora cansado, é primeiramente retilíneo e governa o universo. A ascensão da arte é um processo substanci-
cortante como a força, depois arredondamento de linhas, um es- al de harmonização, isto é, a expressão, na forma intuitiva do be-
forço em declínio, um inútil escoramento do vazio na grandio- lo, da evolução de todas as coisas que observamos. O belo é uni-
sidade das formas. Estilo tranquilo ou audacioso, límpido ou versal, e pode haver um belo lógico, como um belo mecânico,
confuso, cansado ou poderoso, representa sempre a face exterior uma estética grega de formas, como uma muito mais elevada es-
da alma humana, do mistério do infinito que nela se agita. Assim tética moral da obra cristã. Em todas as alturas, na lógica dos
como tudo o que existe tem um rosto que é expressão da alma, meios, existe uma arte de acordo com a gradação das finalidades.
uma revelação do pensamento divino, em que o universo fala in- Quando existe um objetivo a atingir, o estilo nasce por si mesmo,
cessantemente, também arte é revelação de espírito e tanto mais na forma mais simples, mais transparente, mais harmoniosa, co-
valerá quanto mais transparente e simples for a forma. Quanto mo o encontra e o exige a lei do menor esforço. Em todos os
menos se fizer sentir a si mesma, tanto mais a ideia será substan- campos, os mais reproduzidos, desejados e requintados estilos
cial e poderosa na eternidade, vinculada à Lei, impondo-se à são apenas roupagens nas quais em vão procurais um corpo. Não
forma. Fenômeno estreitamente ligado às fases de ascensão ou de é a escola nem a análise que plasmam o artista, mas um tormento
queda do espírito, a arte apaga-se quando o espírito adormece, de alma, um palpitar de tempestades e de visões.
porque só nele reside sua inspiração. A arte é espírito, e a matéria Entendo por arte a expressão dos princípios que estão na
a mata. O materialismo a matou, e agora ela tem de renascer. harmonia da Lei e são verdadeiros em todos os campos, seja li-
Começareis de novo, com meios novos, mas, acima de tu- teratura, pintura, escultura, arquitetura ou música. A música
do, com uma ideia nova. O segredo de uma grande arte con- atual, como tudo o mais, evolui em profundidade. Sua atual
siste em saber realizar o milagre da revelação do mistério das evolução representa a passagem de sua dimensão linear de me-
coisas; em saber exprimi-lo à luz dos sentidos, após íntima e lodia, para sua dimensão volumétrica de sinfonia. A simples
profunda comunhão com o mistério que palpita na alma do ar- sucessão de sons da música melódica, à proporção que ascende
tista. Este tem de ser um vidente, normal no supernormal, on- à fase superior, em que conquista o espaço e o volume, dilata-se
de tudo é espírito e vossa concepção de vida comum não che- em extensão e profundidade de sentimentos, passando da ex-
ga. A nova grande arte deve ser integral, por isto presume o pressão das paixões mais elementares (amor, vingança) às pro-
artista completo, o super-homem que realizou sua maturação duzidas por uma sensibilidade mais complexa, aprendendo a
biológica; não o agnóstico, o meramente técnico, mas o espíri- descrever todas as harmonias e belezas da criação. A música
to completo sob todos os aspectos. É indispensável que o ho- volumétrica sinfônica deveria inspirar-se cada vez mais numa es-
mem tenha englobado em si a visão do universo e, nela, tenha trutura de perspectiva em que o desenvolvimento dos vários mo-
atingido as mais profundas concepções de vida. tivos, mesmo harmonizando-se com a concepção única do qua-
A valorização apenas da técnica é dos períodos de decadên- dro, permanecesse distanciado nos diversos planos. Daí resultaria
cia; a arte cujo valor tenha passado da substância à forma, torna- na sinfonia grande profundidade de perspectiva, em que o motivo
se adornada, preciosa e decadente. Quem tem algo de substancial ou motivos do primeiro plano se distanciariam dos desenvolvi-
para dizer, o faz na forma mais simples. Mas é preciso ter algo a mentos sinfônicos do fundo; profundidade e distanciamento não
dizer, uma grande visão e uma grande paixão na alma, para que a apenas em sentido sinfônico, mas também conceptual e emotivo.
forma não assuma a primazia. É necessário dominar esse reves- O motivo só pode ser a expressão de uma forma-pensamento que
timento do pensamento; estar prevenido defensivamente contra nasce, desenvolve-se e morre, dominando ou subordinando-se,
as hipertrofias do meio, que sufocam o fim; impedir que a técni- que se aproxima ou se afasta, toca e influencia as outras, passa,
ca, serva humilde do conceito quando este era grande em suas volta, sobrevive na recordação e apaga-se. O motivo é a voz de
origens, queira agora agigantar-se para sufocá-lo na maturidade uma vida que quer revelar-se toda e pode fazê-lo, porque a músi-
de sua perfeição. A forma emerge da decadência, quando a ideia ca, mais que a beleza da linha do desenho e a riqueza dos tons
se cansou; surge então a luta entre a vestimenta e a substância, e, que dão cor à pintura, possui o dom supremo do movimento, em
se esta cede, a outra cresce, invade e domina. que se exprime o devenir da vida.
Trata-se da substituição pelos valores inferiores, quando os Em sua evolução, a música, além do movimento no tempo,
mais altos decaem. É a degradação do fenômeno artístico, que conquistará cada vez mais profundidade no espaço, nova dimen-
também tem seus ciclos, aqueles do fenômeno psíquico. Na são em que se expandirão as vozes de tantas vidas, porque tudo é
evolução da arte, há uma espécie de inversão de relações. vida e tem voz própria. O futuro consistirá em continuar a tornar
Quanta riqueza de conceitos na pobreza da forma nas origens, cada vez mais ampla a estrutura sinfônica e a estender sempre a
quanta riqueza da forma e pobreza de conceitos na decadência! novos sentimentos sua potência descritiva, purificando-os e espi-
Uma relação transforma-se gradualmente na outra. O ciclo evo- ritualizando-os, até que a música se torne a voz do infinito, a lin-
lutivo da técnica, nascido mais tarde e mais jovem que o ciclo guagem da intuição, revelando as harmonias do universo e o as-
evolutivo da ideia, sobrevive-lhe e o substitui; mas sua maturi- pecto de beleza dos grandes conceitos da Lei. Em todos os seus
dade constitui declínio do princípio animador da arte. campos, a arte busca a unificação, e as diferentes artes, como
A grande arte é simples. Sua grandeza é proporcional à po- formas convergentes, fundir-se-ão no único esforço de exprimir o
tência do pensamento e à simplicidade da forma. Vossa atual espírito. Na atmosfera artística dos templos seculares, entre os
fase artística é de destruição, de libertação da forma. Estais na muros antigos, saturados de vibrações místicas dos povos, a mú-
última fase de descida, em que já aparece a aurora da nova espi- sica será meio de harmonização de ambiente e de sintonização
ritualidade, cujo primeiro ato é o abandono das técnicas supe- receptiva na oração; será vibração criadora de bondade. Todas as
radas. Tende uma alma e sede simples. As complicações orna- artes se fundirão numa só música, criadora suprema; uma música
mentais exprimem vacuidade, a riqueza de minúcias enfraquece imensa que vos falará da vida do homem e de todas as criaturas.
a ideia central. Belo é tudo o que corresponde à própria finali- Todas as artes serão uma oração, um anelo do espírito que se ele-
dade; a beleza está na linha que corresponde ao fim pelo cami- va para chegar a Deus.
nho do menor esforço. Ela é a expressão da correspondência, do Vossa arte futura será sadia, educadora, descida de Deus pa-
equilíbrio, da harmonia, dos princípios da Lei. A suprema beleza ra elevar a Deus. Se assim não for, será veneno. A arte que per-
reside no conceito de Deus. O artista tem que sentir e seguir esse manece na terra não é verdadeira arte; ela deve elevar-se ao céu,
conceito nas formas em que se manifesta. O progresso da arte re- ser instrumento de ascensão espiritual. Deveis beber nas fontes da
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 129
verdade, e eu vos escancarei suas portas. A arte tem de ilumi- los, é necessário mudar a perspectiva, com uma nova psicolo-
nar-se com a luz do espírito, e eu o fiz reviver entre vós. Dei- gia. Vosso julgamento está viciado por uma visão imediatista,
vos, tanto no campo científico e social quanto no campo artísti- mas os anos passarão, e, quando tiverdes visto o futuro, com-
co, uma ideia imensa para exprimirdes: da harmonia de todos preendereis esta Síntese em profundidade e a enquadrareis na
os fenômenos, da ascensão de todas as criaturas, de vosso ama- história do mundo. Para alguns, esses conceitos ainda estarão
durecimento biológico. A arte apodera-se da ciência. É verdade fora do concebível. Outros se recusarão ao trabalho de compre-
que não soubestes dar a esta um conteúdo espiritual; dai-lhe, ensão, porque não desfrutam dele vantagem imediata. Outros
contudo, uma fé, e ela se tornará arte. Que mundo grande, no- procurarão afastar a verdade, porque ela perturba o ciclo anima-
vo, inexplorado, que sinfonia de concepções cósmicas para ex- lesco de suas vidas, e continuarão a dormir. A esses falará a
primir! O futuro da arte está na expressão do imponderável. dor. O cerco aperta-se, e amanhã será muito tarde.
Que riqueza de inspiração pode descer sobre a Terra, vinda do A convicção não é tanto filha de cálculos lógicos e racio-
alto, por intermédio do artista sensitivo! Que oásis de paz, para nais, mas um estado de amadurecimento interior, que só se con-
refúgio da alma, nessas visões do infinito! segue por meio de provações, lutando e sofrendo. Inútil, pois,
A verdade universal desta síntese pode exprimir-se em to- falar a respeito desta Síntese para demonstrar erudição, se não
das as formas do pensamento: matemática, científica, filosófi- for “sentida” como orientação, se não for assimilada como vi-
ca, social e também artística. Esta obra pode também tornar-se da. É verdade que a alma coletiva dos povos sente mais por in-
uma grande tragédia, em que palpita toda a dor e explode a tuição do que pela razão. A filosofia, o sistema político e a
paixão das ascensões humanas. Que drama maior que o esfor- forma social que mais convenham para realização dos fins da
ço da superação biológica, da luta do espírito para sua evolu- própria evolução varrem tudo o que não corresponda ao traba-
ção, de suas quedas e de suas ascensões, da felicidade e da lho que o momento histórico exige. Porém, mesmo sendo inútil
dor, de um destino que progride através da cadeia de renasci- esperar que sejam compreendidos os sistemas lógicos criados
mentos, de uma lei divina que tudo vincula à sua ordem! Esta quando estes ainda são incompatíveis com o momento históri-
irmanação de fenômenos, de seres, esta unificação de meios co, minha concepção é uma visão fecunda que antecipa a reali-
de expressão diante da ideia única, este monismo científico, zação, é síntese não apenas do que pode ser conhecido, mas
filosófico, social, basta para dar alma a uma nova arte, como a também das aspirações que irrompem da alma humana.
uma ciência, filosofia e sociologia novas. Falei ao mundo, a todos os povos. Disse a verdade univer-
Vossos palcos ignoram estas imensas tragédias, porque es- sal, verdadeira em todos os lugares e em todos os tempos. Valo-
tes conceitos exatos faltavam antes ao mundo. Era vaga a intui- rizei o homem e a vida, deles fazendo uma construção eterna;
ção dos grandes problemas, incerta a reconstrução do destino através de todos os campos, até os mais díspares, tudo fiz con-
humano. Há sempre uma zona de nebulosidade em que se ani- vergir para a unidade; de todo vosso disperso conhecimento
nha a dúvida e o mistério. Está na hora de ultrapassar o ciclo humano, fiz um estreito monismo. Nesta síntese, ciência, filo-
restrito das baixas paixões de fundo animal. O teatro não deve sofia e fé são uma só coisa. Tornei a dar-vos a paixão do bem e
ser palco de involução, explorando as multidões, mas de evo- do infinito. A tudo o que vossa vida possa abraçar, dei uma
lução, educando-as. Então ele não pode ser problema econômi- meta: arte, direito, ética, luta, conhecimento, dor; tudo canalizei
co, mas função do Estado. A arte deve superar os loucos futu- e fundi no mesmo caminho das ascensões humanas.
rismos e tomar como fundo o infinito e a eternidade, tendo por Vós vos moveis no infinito. A vida é uma viagem, e nela só
ator o espírito, que, numa vida sem limites, debatendo-se entre possuís vossas obras. A cada hora se morre, a cada hora se re-
luz e trevas, conquista sua libertação. No céu e na terra ressoa a nasce, mas sempre como filhos de vós mesmos. A evolução,
imensa tempestade que as forças do mal desencadearam. Apre- pulsando segundo o ritmo do tempo, não pode parar. Vedes
sentai o drama apocalíptico sem símbolos, em sua nua potência através de falsa perspectiva psíquica. É preciso conceber não as
dinâmica de conflito de forças, em qualquer forma de arte que o coisas, mas a trajetória de seu transformismo; não os fenôme-
queirais exprimir, suspenso nas dimensões do tempo, entre a nos, mas os períodos fenomênicos; tendes de colocar-vos dina-
revelação bíblica e o ideal científico. micamente na fluidez do movimento; realizar-vos neste mundo
Eis a grande arte futura. É mister que nasça o gênio que a de coisas transitórias, como seres indestrutíveis, num tempo
sinta e a manifeste; que a sinta acima da realidade sensória e que só pode levar a uma continuação, lançados para um futuro
nela a encerre e exprima. Chegado ao ápice dos valores espiri- eterno, que as portas da evolução vos abre.
tuais, ele combate e conclui o drama da unificação e da liberta- Após milênios e milênios, não sereis mais as crianças de ho-
ção. É necessário que uma alma superior viva o fenômeno e, em je e alcançareis formas de consciência que nem sequer sabeis
seu tormento, liquide o passado, lançando os espíritos num vór- imaginar. Mostrei-vos o destino e o tormento dos grandes que
tice de paixões mais altas e dinâmicas. É necessário um ser que, vos precederam na jornada. Eles vos dizem o que será o homem
num martírio de fé, macerando-se e queimando-se por sua arte, amanhã. Não podeis parar. Vimos o funcionamento orgânico
dela faça missão e a ela se dê todo. A arte será então o altar das da grande máquina do universo em seus aspectos, nas fases de
ascensões humanas, onde o espírito se oferece em holocausto sua manifestação. É um movimento imenso, e tendes que fun-
de dor e paixão em sua elevação para Deus; será a oração que cionar como parte do grande organismo.
une a criatura ao Criador, a síntese de todas as aspirações da Uma grande atração governa o universo por inteiro: Amor.
alma, de todas as esperanças e ideais humanos. Ele canta na arquitetura das linhas, na sinfonia das forças, nas
correspondências dos conceitos, sempre presente. Chama-se
DESPEDIDA atração e coesão no nível da matéria; impulso e transmissão no
nível energia; impulso de vida e de ascensão no nível espírito.
Nossa longa viagem está terminada. Tudo já foi demonstra- É a harmonia na ordem cinética, em que reside nossa respiração
do, tudo está concluído até às últimas consequências. A semen- e a respiração do universo. Ousamos desvendar o mistério e
te está lançada no tempo, para que germine e frutifique. Dei olhar sem véus a Lei, que é o pensamento de Deus. Em todos os
meu verdadeiro testemunho, minha obra está completa. O pen- campos, vimos os momentos desse conceito que governa tudo.
samento desceu, imobilizou-se na palavra escrita: não podereis Que os bons não tenham medo de conhecer a verdade.
mais destruí-lo. Está demais antecipado para ser todo imedia- O quadro está ultimado, e a visão, completa. Dei-vos um
tamente compreendido. Nem todos os séculos são capazes de conceito da Divindade muito menos antropomórfico, muito mais
compreender totalmente uma ideia; para vê-la sob novos ângu- transparente em sua íntima essência, muito mais purificado das
130 A GRANDE SÍNTESE Pietro Ubaldi
reduções feitas pela representação humana; um conceito mais se alastre por todo o mundo. Falei aos povos e aos chefes,
luminoso, adequado à vossa alma moderna mais amadurecida. religiosos e civis, em público e em particular. Depois da
Assim, o mistério pode emergir em termos de ciência e de razão, conciliação política entre Estado e Igreja, na Itália, urge esta
saindo dos véus do símbolo. Caminhamos do mineral ao gênio, conciliação maior, espiritual, entre ciência e fé no mundo.
para contemplar a vitória do homem; choramos e ansiamos com Se um princípio coordenador não organizar a sociedade hu-
ele na cansativa conquista do bem contra o mal, no caminho de mana, esta se desagregará no choque dos egoísmos.
sua ascensão. Ouvimos uma sinfonia grandiosa, em que, da maté- Falei num momento crítico, numa curva da história, na au-
ria ao espírito, tudo canta o hino da vida. Oramos em sintonia rora de nova civilização. Podereis não ouvir e não compreen-
com todas as criaturas irmãs. A concepção move-se no infinito. der, mas não podereis mudar a Lei. Se a civilização, agora,
Os únicos limites que vos dei são os impostos pelo vosso conce- tem bases muito mais amplas que nos tempos do império ro-
bível. Nosso estudo foi a adoração da Divindade. mano e não é mais um simples foco num mundo desconheci-
Dei-vos uma verdade universal e progressiva, em que po- do, ainda existem enormes desníveis de civilidade, de cultura
dem coordenar-se todas as verdades relativas. Dei-vos conclu- e de riqueza. A Lei leva ao nivelamento e à compensação.
sões que não se podem negar sem negar toda a ciência, todo o Enquanto houver um só bárbaro na Terra, ele tenderá a rebai-
universo. A premissa é gigantesca; não pode ser abalada. Ca- xar a civilização ao seu próprio nível, invadir e destruir para
da palavra é um apelo à vossa racionalidade, e não podeis ne- dominar. As raças inferiores depressa desfarão a sua impres-
gá-la. Sempre afirmei, muito mais do que neguei. O ponto de são sobre a superioridade técnica europeia e dela se apossarão
partida desse organismo conceptual não é egocêntrico nem an- para pular à garganta do velho patrão.
tropomórfico, antes implica, em sua gênese, numa transposi- A todas as crenças digo: o que é divino permanecerá; o que
ção para fora de vosso plano de concepção. Conclamei-vos às é humano cairá; qualquer afirmação temporal é uma perda espi-
grandes verdades do espírito; recompletei vossa vida dividida ritual; cada vitória na terra é uma derrota no céu. Evitai os ab-
ao meio pelo materialismo; restituí-vos como cidadãos eternos solutismos e preferi o caminho da bondade. A imposição não se
ao infinito. A ciência tem uma grande responsabilidade: haver aplica ao pensamento; a força não o atinge e produz afastamen-
destruído a fé sem saber reedificá-la. Com seus próprios mei- to. Dai o exemplo de desapego das coisas da Terra. Vossas ver-
os, ergui-vos até à Síntese; dei-vos uma ética racional, basea- dades relativas são apenas pontos de vista progressivos e dife-
da em vastíssima base científica. Dei ao supersensório um pe- rentes do mesmo princípio único. O futuro não consistirá na ex-
so real objetivo. Mostrei-vos a realidade que está além da ilu- clusão recíproca, mas na coordenação de vossas aproximações
são, a substância que reside no transitório, o absoluto que da verdade. Não discutais; a convicção não se impõe com ame-
existe nas modificações do relativo. Ergui a ciência até à de- aças, mas difunde-se com o exemplo e com o amor.
monstração das verdades metafísicas. Reuni os extremos in- À ciência digo que, enquanto não for fecundada pelo amor
conciliáveis, a matéria e o espírito, equilibrando e fundindo, evangélico, será uma ciência de inferno. Inútil é o progresso
num só plano de trabalho, a terra e o céu. Encaminhei o ho- mecânico que faz da Terra um jardim, se nesse jardim morar
mem à sua futura consciência cósmica. No âmago de meu uma fera. A Terra é um inferno porque vós sois demônios. Tor-
pensamento, sempre se moveu a visão da lei de Deus. nai-vos anjos, e a Terra será um paraíso.
Não podeis negar neste escrito, em que se agitam todas as Não temam os justos e os aflitos, que olham aflitos a alga-
esperanças e todas as dores humanas, uma palpitação de vida zarra humana em busca de glória, riqueza e prazer, porque se
substancial; não podeis deixar de sentir, por trás da demons- esta, por um momento, vence e goza, a Lei está vigilante: “Fe-
tração objetiva, uma paixão pelo bem, uma sinceridade abso- lizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados”.
luta, uma potência de espírito que vivifica tudo. Este escrito Digo-vos: jamais agridais, não sejais vós os agentes de vossa
possui uma alma que lhe dá vitalidade. Podereis negar ou dis- justiça, mas a Divindade; perdoai. Fazei sempre o bem e o fa-
cutir nele o supranormal. Mas este é normal em todas as ou- reis a vós mesmos; deixai a reação à Lei, não vos prendais ao
tras criações do pensamento; normal nelas é a inspiração e a ofensor com a vingança. Não espalheis jamais pensamentos,
intuição super-racional, sem o que não se atingem as verdades palavras, atos de destruição; não movimenteis as forças negati-
eternas. Normal é o abismo de mistério na consciência, da vas da demolição, pois, de retorno, elas cairão sobre vós mes-
qual nada sabeis. Cada alma vibrará e responderá de acordo mos. Sede sempre construtivos. Em qualquer campo, seja vossa
com sua capacidade de vibrar e responder. preocupação apenas criar, e jamais demolir; nada possui tanta
Aqui fala também o coração, exortando-vos a subir. Aqui força demolidora quanto um organismo completo em função. O
reside imenso amor pelos homens, como Cristo sentiu na cruz; velho cai por si, sem lutas de reação, porque todas as correntes
há um desejo violento de beneficiar, iluminando. Este livro da vida se precipitam para as novas formas.
quer ser um ato de bondade e de bem, num plano vastíssimo. Não vos rebeleis, mas aceitai todo o trabalho que vosso des-
Na férrea racionalidade, está contido o ímpeto de uma alma que tino vos oferece. Este já é perfeito e contém todas as provas
vê o futuro e sabe que a tempestade vos espera. Compreender é adequadas, mesmo se pequenas. Se é assim, não procureis alhu-
simples e natural na fase intuitiva. Só aceitei a ciência, as pes- res grandiosos heroísmos. Os pequenos pesos que se suportam
quisas e a racionalidade como um meio que vossa psicologia por muito tempo, representam muitas vezes um esforço, uma
me impôs. A quem queira atacar esta doutrina para demoli-la, paciência, uma utilidade maior. As provas implicam no traba-
vou a seu encontro de braços abertos, para dizer-lhes: és meu lho lento de sua assimilação; a construção do espírito tem de ser
irmão, só isto importa de verdade. Sei que estes conceitos en- executada em cada minúcia; a vida é toda vivida momento a
contram-se tão afastados do mundo, feito de mentira e de des- momento; a cada instante há um ato e um fato que se liga à
confiança, que vos parecem inaceitáveis e inconcebíveis. Mas eternidade. Lembrai-vos de que o destino não é malvado, mas
minha linguagem precisa ser substancialmente diferente. sempre justo, mesmo se as provas são pesadas. Lembrai-vos de
Este constitui um apelo desesperado de sabedoria para o que jamais se sofre em vão, pois a dor esculpe a alma. A lei do
mundo. No coração dos homens e de seus sistemas dominam próprio destino obedece a equilíbrios profundos, e é inútil rebe-
o egoísmo e a violência; não o bem, mas o mal. A civiliza- lar-se. Há dores que parecem matar, mas jamais se apresentam
ção moderna lança as sementes com grande velocidade e sem esperança; nunca sereis onerados acima de vossas forças.
aguarda a produção intensiva de sua dor futura. Será a dor de A reação das inexauríveis potências da alma é proporcional ao
todos. Poderá tornar-se maré demolidora que destruirá a ci- assalto. Tende fé, ainda que o céu esteja negro, o horizonte
vilização. Os meios estão prontos para que hoje um incêndio fechado e tudo pareça acabado, porque lá sempre está à espera
Pietro Ubaldi A GRANDE SÍNTESE 131
uma força que vos fará ressurgir. O abandono e sua sensação não pode morrer e ressurgirá alhures, fora delas. Ai dos dirigen-
fazem parte da prova, porque só assim podereis aprender a voar tes que não obedecerem ao Alto e não atenderem à voz da justi-
com as próprias asas. Mesmo quando dormis ou ignorais, o des- ça, que reside na própria consciência! Ai de quem desperdiçar
tino vela e sabe; é uma força sempre ativa na preparação de seu tempo e não fizer de sua vida uma missão!
vosso amanhã, que contém as mais ilimitadas possibilidades. Um julgamento final vos aguarda a todos, não por obra de
Esses ideais foram ensinados na Terra. Mártires morreram um Deus exterior a vós, a quem se possa enganar ou enternecer.
por eles. Mas o que não foi explorado pela hipocrisia do ho- Ele é uma lei onipresente no espaço e no tempo, cuja reação
mem? Às vezes, os ideais, para serem divulgados, utilizam não há distância nem prazo que possa deter, a que não se esca-
exatamente esta sua capacidade de sofrer a exploração, tal pa, porque está dentro de vós e de todas as coisas. Pode-se evi-
como o fruto que se deixa devorar para que a semente seja le- tar ou enganar a lei da gravidade? Assim não se evita nem se
vada para longe. Há a classe dos construtores e há a classe dos engana a reação da Lei, a justiça divina.
demolidores; há os parasitas que, pela mentira, operam uma Deixo-vos. Minha última palavra é para quem sofre. Esse é
contínua degradação de todos os valores espirituais. Há quem grande na Terra, porque regressa a Deus. Destruí a dor e destru-
construa à custa de tormentosos esforços, e há quem tudo uti- ireis a vós mesmos: “Felizes os que choram, porque serão con-
lize para si, agarrando-se a tudo como um lastro, para baixar solados”. Não temais a morte, que vos liberta. Vós e vossas
tudo ao próprio nível. Um é espírito que vivifica, outro é maté- obras, tudo é indestrutível por toda a eternidade. Minha última
ria que sufoca. O princípio puro, então, infecciona-se, adquire palavra é de amor, de paz, de perdão, para todos.
sabor de mentira: processo de degradação de ideais. Ai dos cul- Minha obra está terminada. Se, daqui a anos e anos, uma
pados, dos demolidores do esforço dos mártires! Ai de quem humanidade diferente, muito maior e melhor, olhando para trás,
faz da missão uma profissão e coloca o espírito como base de pesquisar esta semente lançada com muita antecipação para ser
poder humano! Ai de quem mente e induz a mentir; de quem, logo fecundada e compreendida, admirando-se como tenha sido
com o abuso, induza ao abuso; de quem, dando exemplo de in- possível adiantar-se assim aos tempos, tenha ela um pensamen-
justiça bem sucedida, proponha-a como uma norma de vida! to de gratidão para o ser humano que, sozinho e ignorado, reali-
Realizada uma ação, não podeis mais anulá-la, até que se esgo- zou este trabalho, através de seu amor e de seu martírio.
tem e sejam reabsorvidos seus efeitos. Ai da sociedade que dei- A sinfonia está escrita. O cântico emudece, para ressurgir
xa esquecidos seus melhores elementos, não os colocando em em outras formas, noutros lugares. A voz se extingue. O pen-
posição de rendimento correspondente aos seus méritos, e samento se afasta de sua manifestação exterior, na profundeza,
abandona seus mais elevados valores à apatia e à incompreen- para seu centro, no infinito.
são. São inúteis os reconhecimentos póstumos e tardio o remor-
so por um tesouro perdido. Ai das religiões que não cumprirem FIM
sua tarefa de salvar os valores espirituais do mundo! O espírito
Pietro Ubaldi AS NOÚRES 133
manifestações acústicas, óticas e táteis. Ao passo que tudo isso
AS NOÚRES é deixado à experimentação científica – que, de resto, já há de-
cênios se move sempre no mesmo círculo, do qual parece não
Técnica e Recepção das Correntes de Pensamento sabe sair nem para concluir nem para progredir – a mente hu-
mana pede um alimento mais substancial, um contato mais
“Não sabemos senão em razão da nossa elevado, uma nutrição conceptual que a sustente diretamente.
faculdade de recepção”. E eis-nos em plena ultrafania.
PITÁGORAS Cada um sente, mais ou menos distintamente, em meio à
transtornante explosão de uma nova sensibilidade nervosa e es-
I. PREMISSAS piritual, entre ímpetos de nervosismo e irritabilidade (erronea-
mente considerados patológicos, e que, ao invés, são um novo
Cada século tem uma característica dominante que lhe é pró- modo de sentir, que já não suporta as velhas formas da vida,
pria, especializando-se numa criação particular que parece a ra- mas impõe novas), cada um sente revelar-se em si o fenômeno,
zão de ser desse tempo; e é justamente o produto dessa criação que é substancial, em meio àquelas escórias e desvios; é uma
que sobrevive, transmitido aos séculos porvindouros. O nosso é nova capacidade de sentir o pensamento, de perceber à distân-
o século dos nervos. Parece até que nossos pais não os possuí- cia. E tudo isso já não se perde no fantástico, mas aparece como
am; pelo menos, assim nos aparecem em sua vida sem agitações, intuição, pressentimento de um real estado futuro, estado do ser
em sua calma, que nós já não conhecemos nem quando repou- humano hipersensível, que transmite e registra correntes de
samos, tanto que, frequentemente, nos acreditamos enfermos; pensamento, noúres2, e o faz relacionando-se com seres que pa-
mas, então, todos estamos doentes. Os nervos, porém, não são recem irreais porque imateriais, mas que estão vivos e presen-
apenas irritabilidade, inquietude, insaciabilidade; não têm, fe- tes, porque sabem dar de si manifestações aos nossos mais sen-
lizmente, só o aspecto visto pela ciência – o pseudopatológico sibilizados e aperfeiçoados meios perceptivos.
da neurose – mas possuem uma face ainda não percebida, o as- O tema que vou desenvolver, se pode parecer avançado para
pecto evolutivo de uma nova criação biológica: o psiquismo. os nossos dias, amanhã será de domínio científico, e é também
Em nossa época atual, o tipo humano está deslocando sua de interesse atual para a grande maioria que apenas começa a
funcionalidade do campo muscular para o campo nervoso e agitar-se. E começa, porque é inegável a necessidade de um re-
psíquico. Algures, desenvolvi este tema, mas devo agora a ele torno ao espírito. Não é somente retorno de reação ao materia-
voltar, porque, se representa o terreno sobre o qual se apoia lismo, não é apenas um reflexo de cansaço em face de uma ori-
nossa vida, em que se agita nossa luta e nossa conquista se rea- entação que se mostrou impotente, com seus meios e métodos,
liza, é também o cenário em que se enquadra e se justifica o para chegar a uma conclusão. É uma retomada, em cheio, como
problema presente neste volume de ultrafania 1. Não se trata, jamais arrostada na história, com as armas de uma ciência
portanto, de um fenômeno casual: é momento substancial e lo- aguerrida de experiências; é uma revolução que avança, trove-
gicamente situado no curso da evolução biológica e das ascen- jando, das profundezas do espírito, que quer saber e deliberar, a
sões espirituais humanas. No caso específico da mediunidade, fim de guiar-se conscientemente na vida. E esta palavra – espí-
não poderia deixar de influir a repercussão daquele caso geral, rito – transporta-se das igrejas e das religiões e aparece franca-
que condiz com o momento de acelerado transformismo que mente no grande ambiente social e vibra na política, nas insti-
em nosso planeta atravessa hoje a evolução biológica, em sua tuições, nas leis, nas crenças e nas obras do mundo.
mais alta fase humana, evolução que, em torno de sua mais ex- Paralelamente, o fenômeno ultrafânico se aprimora e se vi-
celsa criação, febrilmente se afana. goriza. Este período pós-bélico (embora seja difícil o juízo para
E a mediunidade se modificou com o transformar-se de to- quem está imerso nessa própria época) é indubitavelmente gran-
das as coisas; devia, primeiramente, transformar-se na mais de na história por uma febre de criações universais que, embora
evidente manifestação da alma humana. Apresentou-se a me- resistências e lutas, se preparam para lançar as bases de uma no-
diunidade, no cenário do mundo atual, através da observação va civilização. Nesta nossa época, surge a ultrafania, como ma-
cientifica, sob a forma de mediunidade física, de efeitos mate- nifestações de força espiritual, agindo em colaboração com as
riais, com características musculares, tais como eram as mani- forças superiores que guiam o mundo em sua atual laboriosa as-
festações predominantes do espírito humano nas grandes mas- censão. Parece que, nesta agitação geral, que é fragmentação e
sas, até o nosso século; hoje, no entanto, tornou-se ultrafania, restauração de pensamento, também as correntes de pensamento
isto é, uma mediunidade superior, evolutivamente mais desen- que circundam o ambiente humano intervêm, ativas e operosas,
volvida – mediunidade de efeitos psíquicos. Uma vez que tudo para guiar e iluminar. É natural que uma deslocação de forças
evolve, e a evolução nunca se processou tão vertiginosamente psíquicas excite outras deslocações, porquanto nada é isolado no
como hoje, também a mediunidade deve conhecer sua ascen- universo, e os fenômenos das forças psíquicas obedecem às
são. De quanto isso é verdadeiro, também por minha íntima e mesmas leis de coordenação e de equilíbrio a que obedecem
profunda experiência, direi mais adiante. também as leis da matéria e das forças inferiores. E a vida, que
Desse modo, até hoje, tem a mediunidade evolvido, em jamais pode extinguir-se (isso seria um absurdo lógico e cientí-
muitos casos, desde a forma física de manifestações materiais fico), é natural que se comova e desperte, até nas suas formas
até à forma psíquica de manifestações intelectuais. E tanto, que imateriais, se percutida pelo eco das vicissitudes humanas, que
a primeira forma se apresenta aos nossos olhos, agora mais ex- naquela imaterialidade se continuam e se completam.
perimentados e mais habituados a examinar o mistério, como E, então, pela convergência de duas forças, isto é, a sensibi-
qualquer coisa cada vez menos assombrosa e menos probató- lização da consciência humana, a superar os últimos diafrag-
ria. Cada vez mais se dissipa a mania do maravilhoso; nossa mas, e a atração dos altos centros de pensamento, que se voltam
crescente sensibilidade analítica vai tendo sempre menos ne- para a Terra pela lei de equilíbrio, de bondade e de missão – en-
cessidade do choque que o prodigioso provoca; sempre e me- tão, a ultrafania assume o poder de grande inspiração, ativa e
nos nos abala o espetáculo das levitações, dos “apports”, das consciente. O fenômeno mediúnico eleva-se ainda mais. Deixa-
1 2
Ultrafania: de ultra, lat. “além”, e fania (faneia), grego: “luz”. Ultra- Noúres – neologismo formado de dois elementos gregos: nous (pen-
fania: luz do além, do plano espiritual superior, produzida pelas noúres samento, espírito, inteligência) e rhéo (correr, fluir). significando, pois,
(correntes de pensamento) (N. do T.). “correntes de pensamento” (N. do T.).
134 AS NOÚRES Pietro Ubaldi
mos atrás a mediunidade física. Superamos a mediunidade de Se aqueles escritos têm uma história própria, exterior e visí-
efeitos intelectuais que se manifestam na inconsciência do mé- vel, que facilmente pode ser encontrada na imprensa e que não
dium, cujo “eu” é adormecido e momentaneamente eliminado. é oportuno repetir, existe toda uma história interior, que eu vivi
Falarei, neste volume, de um tipo de mediunidade intelectual no silêncio e na solidão, a história da maturação do meu espíri-
ainda mais elevado, uma mediunidade inspirativa consciente, to, para que pudesse atingir este momento – talvez esperado e
operando em plena luz interior, em que o sujeito receptor co- preparado há milênios – momento de sua maior realização.
nhece a fonte, analisa-lhe os pensamentos, com ela sintoniza e a É útil conhecer esta história interior, tanto quanto a exterior,
ela se assemelha, buscando-a pelos caminhos da afinidade; me- para que se possa enquadrar o fenômeno da recepção inspirati-
diunidade ativa, operante, fundida no temperamento do indiví- va e das “noúres”, de que nos ocuparemos agora: fenômeno
duo, emanação normal na sua personalidade; mediunidade a tal complexo, em que intervêm elementos morais, espirituais e bio-
ponto límpida no seu funcionamento, na consciência deixada lógicos, cuja solução implica a dos mais vastos problemas do
em seu estado normal, que é possível, através de um exame in- universo, fenômeno que não se pode, por isso, isolar de todos
trospectivo, realizado racionalmente, com os critérios científi- os fatores e elementos concomitantes. É um fenômeno concre-
cos da análise e da experimentação, reconstituir a técnica do fe- to, inseparável do fato qual eu o vivi, e não se pode reduzi-lo,
nômeno inspirativo, tendo por base fatos e estados vividos, de- sem mutilação, à estrutura linear de uma simples hipótese vi-
duzidos diretamente da observação. bratória de transmissão e recepção de ondas.
Com esta definição realista do problema, a hipótese e a Este é o meu caso; dele não posso prescindir, portanto. Se
afirmação gratuita de que o pensamento registrado pela mediu- é particular (e do particular ascenderemos, através dos fatos,
nidade inspirativa provém do subconsciente humano são auto- ao geral), é também real, isto é, pertence em grande parte à
maticamente excluídas, porquanto todos os fatos que tenho vi- categoria dos fenômenos controláveis pelo método objetivo da
vido em mim e objetivamente notado como observador impar- observação. Creio que seja meu primeiro dever ater-me a essa
cial, falam em sentido completamente diverso. Aquela hipótese realidade objetiva.
excluída não merece, portanto, uma refutação explícita. E todo Objetividade, fria análise científica, mas profundidade de
o desenvolvimento da técnica do fenômeno será seguido preci- introspecção simultaneamente, para penetrar e solucionar este
samente com referência a uma fonte por completo distinta da mistério do supranormal que tenho vivido. Estas confissões,
consciência do médium receptor. que devo fazer porque vão permitir a compreensão daqueles es-
O mundo do além aparecerá tão vivo através da descrição critos, aclaram o fenômeno e podem, portanto, ser úteis a essa
de minhas sensações, que adquirirá o caráter duma realidade ci- nascente ciência da alma, que, eu o sinto, é a ciência do futuro.
entífica. Como vê o leitor, não estou aqui a expor baseando-me Estudo imposto pelo dever, embora possa parecer autopromo-
em indagações teóricas, nem me refiro a opiniões ou interpreta- ção; estudo difícil, porquanto o supranormal foi mal compreen-
ções alheias, nem me interessa alardear erudição. Toco o fenô- dido pela ciência, que o quer relegar ao patológico, confundin-
meno com as mãos e relato quanto me disseram minhas sensa- do-o com o subnormal; estudo não bem interpretado pelo públi-
ções e minha experiência direta. co, que, no vórtice totalmente exterior da vida moderna, ignora
◘ ◘ ◘ completa ou quase completamente esta segunda vida do espíri-
Saio, cheio de impressões ainda recentes, duma experiência to, não sabe ver bem e desfigura o problema, porque o enxerga
novíssima. A 23 de agosto de 1935, às 11 horas da noite, aca- de um plano de consciência diverso e inferior. Difícil estudo es-
bava de escrever A Grande Síntese, em Colle Umberto, Perusa, te, porque nenhum auxílio me pode chegar do mundo dos ho-
na torre de uma casa de campo, à mesma pequena mesa onde mens, porque o saber terrestre não sabe dar-me uma direção em
quatro anos antes, no Natal de 1931, noite alta, havia iniciado a meu caminho, nem me dizer algo que me dê a solução destes
primeira das mensagens de “Sua Voz”. problemas; mas difícil principalmente em si mesmo, porque o
Quatro anos de superprodução intelectual, de intenso drama supranormal, até nos momentos excepcionais em que se revela
interior, de hipertensão, de sublimação psíquica, de sublimação mais poderosamente, parece querer esconder-se nas vias de or-
espiritual, emergindo da cinzenta monotonia do magistério, es- dem natural, como se o esforço de exceção que supera o co-
forço diário que me é imposto no cumprimento do dever de to- mum fosse continuamente detido, refreado e encoberto pela lei
dos, de ganhar a vida com o próprio trabalho. universal, que quer parecer invariável.
Quem me sustentara no árduo trabalho de uma tão intensa Nada estou pedindo aos meus semelhantes. Sei que nada
produção? Uma fé profunda se assenhoreou de mim, arrastando- têm para me dar. Estou só e sozinho permaneci diante dos
me com uma febre de altíssima paixão. Este é o segredo da maiores mistérios, de que nem ao menos suspeitam. Tenho vi-
afirmação de um escrito3: havê-lo, antes de tudo, vivido profun- vido de ousadias, de prostrações, de lutas e de vitórias que, no
da e intensamente, de modo a fazer dele o espelho de uma fase espírito de meus semelhantes, que meu olhar tem examinado
da vida; haver nele, todo, lutado e sofrido, conceito por concei- por toda parte, quase nunca encontro. Sou feito de dor e não
to, e oferecê-lo vibrante como a alma, palpitante como foi o fe- aceito, não quero para mim, triunfos humanos, e, isso, não por
nômeno interior que o gerou. O leitor sente, embora inadverti- mérito meu, mas porque, espontaneamente, o centro de minhas
damente, esta sinceridade e alegra-se em poder satisfazer o ins- paixões se encontra distante das coisas terrenas. Tenho amado,
tinto humano de mergulhar nas profundezas do mistério de outra estremecido e sofrido sozinho, diante do infinito, numa sensa-
alma. Naqueles escritos, não ofereci o produto de estudos exte- ção titânica de Deus. Tenho agarrado pela garganta as inferio-
riores à minha personalidade e dela separáveis; pelo contrário, res leis biológicas da animalidade, para estrangulá-las e supe-
dei-me totalmente, qual hoje sou, na fase de maturação que atin- rá-las. Tenho vivido minhas afirmações como realização bio-
gi no meu caminho evolutivo. E, expondo aqui, sem disfarce, as lógica, antes de formulá-las em palavras.
profundas vicissitudes de uma alma, substancialmente relato a Sob as aparências de uma vida simples e uniforme, tenho
história do espírito humano, na qual o leitor se achará mais ou vivido as grandes tempestades do espírito humano e já me habi-
menos a si mesmo. Narro o eterno drama das ascensões huma- tuei a olhar, sem tremer, nas profundezas vertiginosas do infini-
nas. Anatomizo, refletido no meu caso particular, mas concreto to. É por isso que posso empreender o estudo do fenômeno ins-
e vivido, o fenômeno cósmico, que é de todos. pirativo, sem profundos sinais de cultura preexistente, sem pre-
conceitos ou referências, com a alma solitária e nua diante do
3
O autor se refere a A Grande Síntese, escrita de 1932 a 1935, durante fenômeno, livre e independente de qualquer ideia humana,
os breves períodos de férias escolares do Prof. Ubaldi (N. do T.). tranquilo e virgem de espírito, como na aurora da vida.
Pietro Ubaldi AS NOÚRES 135
Bem sei que o mistério científico é protegido pelas forças imprensa, superar como força a inércia psíquica do ambiente,
da Lei e, algures, já o disse por que 4. Estou, porém, acostu- enxertar-se nas correntes espirituais do mundo. Uma vez, po-
mado a violar essas proteções; direi melhor, acho-me em par- rém, desfechada a centelha do pensamento, a ideia é uma for-
ticularíssimas condições, em minha fase evolutiva, de extrema ça lançada e, como o som e a luz, caminhará sozinha, ten-
sensibilização perceptiva, que me possibilitam sentir além do dendo a difundir-se na proporção da potência do centro gené-
limite dado e não superável pelo método racional e objetivo tico, a multiplicar-se por ressonâncias infinitas no coração
da ciência moderna. Conheço esse método, conheço a sufo- dos homens. A lei de todas as coisas marca o ritmo também
cante psicologia dos chamados intelectuais de profissão, da deste fenômeno, que deve ter o seu tempo.
cultura que repete eternamente o passado, que comenta e ana- Estava sozinho naquela noite, em face do fato consumado,
lisa, que nada cria, que pesa e mata o espírito. da obra7 a que me havia dado totalmente, a que havia dado meu
Estou nos antípodas. Detesto a bagagem embaraçante dos “eu” maior, qual sou na eternidade. Tremia diante de uma visão
conhecimentos elementares e considero um crime desperdiçar imensa, completa finalmente agora, diante de um pensamento ti-
energias psíquicas para armazenar e conservar o que deve ser tânico que me havia redemoinhado durante quatro anos, numa
confiado às bibliotecas. Sou livre e devo sê-lo para poder vo- tempestade sobre-humana, não percebida exteriormente. Exulta-
ar, leve, rápido, destilando intelectualidade, não como esma- va na satisfação perfeita de um profundo instinto biológico, pre-
gadora mole de sabedoria, mas num sentido de orientação, parado em minha eterna evolução, instinto inconsciente e abso-
que possa cingir todos os conhecimentos humanos, como a luto como o de uma mãe que dá a vida a seu filho. Sentia haver
vista domina as coisas. tocado, finalmente, um vértice de minhas ascensões, sentia ha-
Do Natal de 1931 5 até agosto de 1935 6, decorreram quatro ver obedecido e triunfado ao mesmo tempo, cumprindo minha
anos em que ao meu espírito afloraram, progressiva e metodi- missão e função de cidadão do universo, inclinando-me ao co-
camente, profundos estados psíquicos, após lenta incubação, mando da grande lei de Deus. A flor, fecundada por uma vida de
culminando na maturação de minha personalidade eterna. Ex- sofrimentos, havia nascido; eu não vivera, portanto, e não sofre-
porei, porque é necessário à compreensão do fenômeno inspi- ra tanto, em vão. Minha vida, tão difícil, havia dado um fruto
rativo por mim vivido, os estados psíquicos que precederam que a valorizava, minha paixão incompreendida pudera explo-
este período e que constituíram sua preparação; exporei, em dir-se na criação de uma obra de bem. Ao meu coração, que ha-
seguida, a maturação em mim, em forma clara e ativa, de uma via suplicado simpatia e compreensão, a que o mundo não quise-
nova psicologia e a produção que a continuou, explicando co- ra responder, respondeu uma voz do infinito. Essa voz me to-
mo, sem qualquer preparação volitiva e consciente, abando- mou pela mão, guiando-me pelos caminhos do mistério, ajudan-
nando-me a esses estados de espírito até então desconhecidos do-me a ascender a novas fases de consciência. Deu-me a visão
meus, pude eu desenvolver um trabalho intelectual correspon- deslumbrante da Divindade. Inebriou-me com o cântico das
dente a um plano lógico de desenvolvimento, ao qual não se grandes leis da vida. Fez-me sentir o princípio das coisas. Mara-
pode negar uma ideia diretiva, uma proporção de partes e mei- vilhou-me com a sensação do choque das forças cósmicas. Ani-
os em face de um alvo conhecido e desejado, mas desde o quilou minha natureza humana e me fez renascer numa natureza
princípio estranho à minha consciência habitual. superior, numa vida mais alta, em que eu chorava, cantava e
É científico colocar o fenômeno no seu ambiente. É neces- amava, em harmonia com todas as criaturas irmãs.
sário fazer preceder esta parte descritiva à outra, em que me Despertei de um sonho maravilhoso, potente e dulcíssimo,
aproximarei da substância do fenômeno, para explicar-lhe a es- de um êxtase profundo cuja recordação não se apaga, para des-
sência e o funcionamento, até que desponte a compreensão do cer novamente à triste realidade humana. Minha visão seria,
típico fenômeno inspirativo. mais tarde, compreendida e sentida por outros. Mas eu a vivera,
Naquela noite de agosto, uma fase de minha vida se en- primeiramente, na forma do contato mais imediato, por sensa-
cerrava. A vida é verdadeiramente um caminho, e, nas vicis- ção direta, sem leitura e sem palavras, sozinho, com aquela voz,
situdes de cada dia, a alma elabora o seu destino. A vida é disperso numa magnificência única de beleza, sob um poder de
uma deslocação contínua do ser no tempo. Não se entenda conceito esmagador, num ímpeto de paixão arrasador, arrebata-
este, no entanto, como ritmo de movimentos astronômicos, do a um grau supremo de sublimação de todo o meu ser. Eu ha-
redutíveis há anos, dias etc.; isso não é senão a medida exte- via vivido todo aquele escrito, como concepção e como drama,
rior do ritmo, convencional e cômoda. A substância do tem- como sensação e como paixão. Cada palavra, cada pensamento
po é o transformismo fenomênico, que, no mundo humano, é havia transformado uma gota de meu sangue, havia arrancado
evolução da vida e do espírito. Percebo que deve soar estra- um pedaço de minha alma. Naquela noite, olhava para mim
nhamente a expressão desta minha psicologia interior neste mesmo estupefato, corpo exânime, mas revigorado de eterna
nosso mundo hodierno, todo projetado para o exterior, em mocidade no espírito. Exultante e prostrado, olhava aquele li-
que as criaturas tendem a olhar para as outras, e não para si vro, saído de minha pena, não sei de que resplandecente fonte,
mesmas. Hoje, esse meu tempo está cumprido. Aqueles es- através de minha alma extasiada; aquele livro escrito sem pre-
critos se espalharam pelo mundo. meditação e sem preparação, tão estranhamente desejado pelo
destino. E perguntava a mim mesmo se ainda estava sonhando
Naquela noite de agosto, eu me encontrava só. Distante, a
ou estava louco; a mim mesmo perguntava que significavam
família vozeava em torno da mesa de jantar. Minha filha me
essas coisas maravilhosas para minha vida e para a vida do
chamava do terraço: “Papai, vem brincar!”. Mais longe ainda, o
mundo. Olhava a obra concluída, à qual fora loucamente lança-
imenso silêncio do campo adormecido. O mundo não via e não
do por um impulso mais forte do que eu, e que havia levado a
compreendia. Eu estava só.
termo sem saber e sem desejar, porque um centro, diverso da
A ideia tem seu ritmo de divulgação, deve vencer obstá-
minha consciência normal, sabia e desejava por mim.
culos psicológicos e práticos, canalizar-se pelos caminhos da
Naquela noite, eu senti, transfundido em mim, o poder de
4 quem comprimiu o universo num monismo absoluto, de quem
Ver A Grande Síntese, Cap. XLIII, “As novas sendas da ciência”
encontrou o caminho das causas no dédalo dos efeitos. A es-
(N. do T.).
5
Data da 1 a das Mensagens Espirituais (N. do A.). finge que mata quem revela o mistério me haveria aniquilado?
6
Fim da composição de A Grande Síntese. Sua 1a edição foi publi- Não. Eu havia obedecido, e por mim velava a suprema autori-
cada em fascículos pela revista Ali dei Pensiero de Milão, de janeiro
7
de 1933 a setembro de 1937 (N. do A.). A Grande Síntese (N. do A.).
136 AS NOÚRES Pietro Ubaldi
dade da Lei. Eu não havia violado, mas respondido; havia se- finito, em que eu tenho vivido, a serviço do finito, dos peque-
cundado, sem rebeldia, o novo equilíbrio dos tempos madu- nos propósitos humanos.
ros. Naquela noite, a cabeça em chamas, achava-me no paro- Por isso não tenho sentido este novo escrito senão como um
xismo da minha festa de espírito. novo dever. Proponho-me, pois, fornecer os dados, o mais pos-
O meu ser estava todo imerso numa onda de pensamen- sível objetivos, para o estudo do fenômeno deste meu particular
tos, ressonante de vibrações, que por tanto tempo me haviam tipo de mediunidade e particular sistema de conceber e escre-
alimentado. ver, o que será, pelo menos, um exemplo interessante para os
A vida continuava a mesma, supremamente indiferente anais biopsíquicos. A obra aí está, como fato concreto, analisá-
em torno de mim, no seu curso milenário, obedecendo à sua vel como construção de pensamento e produto do fenômeno.
eterna lei. Aquém, no entanto, desse resultado, processou-se toda uma
Cantavam os grilos pelos campos, dormiam as plantas, e as transformação e maturação de minha personalidade, e existe
estrelas cintilavam. Pelo espaço, os mesmos silêncios das anti- um imenso mundo meu, cuja descrição é necessária para escla-
gas noites egípcias; no coração dos homens, as mesmas paixões recer a origem e fazer compreender a íntima natureza do es-
pré-históricas. No entanto algo de extraordinário acontecera: crito, não acessível, certamente, à primeira vista; e tanto mais
em minha alma, a eterna evolução rejubilava-se pela maturação que, de um modo geral, ele será acareado justamente com a
de uma sua fase mais alta. E dos longes do universo eu percebia psicologia chamada normal, que está muitíssimo longe de pos-
ressonâncias, em resposta a esse secreto júbilo. Júbilo de meu suir os meios de intuição necessários para penetrar a substân-
ser, que mais se avizinhara da lei de Deus, júbilo da lei de cia fenomênica ou descer a profundidades.
Deus, que se tornara mais real em mim. Será também esta a história de uma alma, e o leitor vê-la-á
Passou o tempo. Tranquilizou-se depois minha alma, e agitar-se, palpitante de novas paixões; será espectador de um
tornei a descer do meu paraíso ao inferno da psicologia hu- intenso drama espiritual em que se movem, vivas, as forças e os
mana corrente. Aquele estado de hipertensão psíquica sere- princípios das leis cósmicas.
nou, e voltei a ser o homem comum e normal que se movi- Procurarei comunicar a “minha” sensação do fenômeno, fa-
menta na vida, ensinando na escola, onde a normalidade psí- zendo sentir como vibraram em mim essas forças do espírito,
quica e nervosa é posta seriamente à prova, cada dia. Sei mui- que tão frequentemente escapam à percepção comum e que
tíssimo bem o que é essa normalidade que a ciência quer ne- muitos negam porque não sabem senti-las.
gar aos hipersensitivos da minha espécie e sei bem usá-la em Procurarei fazer viver esta nova vida muito maior que eu te-
minha defesa, onde esta me é imposta. Simplicíssimo! Basta nho vivido, este rapto dos sentidos que me tem dado a sensação
descer biologicamente aos instintos primordiais, reduzir-se do paraíso e que me permitiu, demoradamente, ausentar-me da
psíquica e espiritualmente, manifestando-se nas formas menos pesada atmosfera terrestre. Existe também, em tudo isso, algo
evolvidas de vida física e passional, e a criatura se torna nor- de supremamente fantástico e aventuroso, embora conduzido
mal, compreendida e admitida entre os semelhantes. com seriedade científica.
Estou escrevendo à distância de um ano daquela noite de Aqui está todo um ser que se movimenta, coração e inteli-
máxima tensão e do mais intenso êxtase. Quero retornar ao fe- gência, num espasmo de humanidade e de super-humanidade,
nômeno com a mente fria do positivismo científico, com a psi- que não pode deixar de despertar ressonâncias noutras almas. E
cologia demolidora da dúvida, com a inteligência normal e ob- aqui são postos de frente os mais graves problemas da psique e
jetiva da maioria dos leitores. Volto normal: quero usar a forma do espírito, e dessa superdelicada ciência do futuro, em que se
mental dos meus semelhantes. Regresso ao fenômeno com a fala de ondas-pensamento, de ressonâncias intelectivas, de cap-
desconfiança de que, parece, a ciência deve estar sempre arma- tação de correntes psíquicas, de atrações e simpatias entre os
da para sua garantia e seriedade. Desconfiança de mim mesmo, mais distantes centros vibratórios do universo.
natural agora que me movo no mundo sensório e ilusório da Aqui se defronta um novo método de pesquisa científica por
normalidade, agora quando raciocino e controlo; mas absurda intuição e uma nova técnica de pensamento, que circunda os
quando navegava seguro nos braços da inspiração. E vou ser problemas por espiras concêntricas, comprime-os em ângulos
normal, isto é, duvidoso e incerto, avançando às apalpadelas, visuais progressivos, afronta-os por visões de concepção polié-
por hipóteses, enquanto puder, porque, a um dado momento, se drica, aproximando-se sempre, cada vez mais, de sua íntima es-
quisermos resolver este problema das noúres, terei que abando- trutura, até desnudá-los em sua essência.
nar estes métodos de cegos e surdos, para lançar-me ao coração Problemas científicos profundos, do futuro, que eu antecipo
do problema com o método intuitivo. Estou colocando minha e investigo para resolvê-los. Existe no fenômeno complexidade,
alma, novo holocausto de mim mesmo, na mesa anatômica da riqueza de aspectos e, simultaneamente, um frescor de verdade;
ciência, para que o bisturi desapiedado da observação lhe sonde e por ser apresentado como realidade vivida, interessa não só ao
o interior, não importa quais sejam as conclusões. Depois, e cientista, mas também ao filósofo e ao artista. No momento das
melhor do que eu, outros se darão ao esforço da análise e toma- conclusões, eu saberei ascender em minha psique de intuição e
rão a responsabilidade de um juízo. com ela arrojar-me ao mistério, que não poderá resistir-me.
Considero, porém, após a compilação dos escritos 8, dever No fenômeno há também um lado místico e religioso,
meu este de narrar, de descrever sinceramente o que senti e porque ele se realizou numa atmosfera de fé intensa e de gra-
vivi, ainda que me enganasse, mas eu mesmo é que devo fazê- ça espiritual; existe nele um amor todo dirigido para o Alto,
lo – embora este meu novo esforço possa parecer objetivar como no misticismo, e que pode recordar (embora muito de
outros fins – porque só eu posso saber e dizer com exatidão longe e que se me perdoe a recordação) o amor como São
muitas coisas que os outros não poderão jamais deduzir senão Francisco o sentiu na Verna.
através de minhas declarações. Para compreender-me, seria necessário saber como vivo,
O leitor, porém, compreende o absurdo de qualquer menti- como penso, como sofro, como amo.
ra para atingir mesquinhos objetivos humanos, porquanto mi- É absurdo estudar os fenômenos abstratamente, separados
nhas palavras revelam, à evidência, em que mundo distante do da atmosfera em que nasceram e se desenvolveram. A reali-
humano eu me agito; o leitor compreende como a sinceridade dade nos apresenta casos concretos, que, para serem verda-
é necessária em meu trabalho e como seria absurdo usar o in- deiros, devem ser particulares. Se queremos tocar com a mão
uma realidade, devemos deter-nos no particular. É, porém, no
8
A Grande Síntese (N. do T.). particular do meu caso que irei encontrar as leis gerais do fe-
Pietro Ubaldi AS NOÚRES 137
nômeno inspirativo, comuns a muitos outros casos que ob- ses da pesquisa, remontando dos efeitos às causas, do particular
servarei ao lado do meu. ao geral, do relativo ao princípio das coisas. Quando este méto-
O mundo tem necessidade destas revelações íntimas. Pelo do não mais for suficiente para resolver os problemas, eu me
menos, a literatura se enriquecerá de algo verdadeiro, vivido, transporei, num voo, ao método da intuição, de modo que o lei-
substancial, e isso já é muito. O mundo precisa destas afirma- tor possa vê-lo, aqui, não só descrito, mas operante na solução
ções de espiritualidade, necessita de quem grite, em tempos de das questões mais complexas.
materialismo e egoísmo desenfreados, a grande palavra da al- O tipo de inspiração emotiva, em mim, é diferente do tipo
ma; de quem dê, em tempos de apatia e indiferença, exemplo de de inspiração intelectiva. Minha mediunidade, verdadeira fun-
fé vivida; de quem repita, em forma científica e moderna, as ção de vida, não é fenômeno de tipo imóvel, mas se transforma
grandes verdades esquecidas. E esta é vida, vida de espírito, a com a minha evolução. No primeiro caso, são mobilizados os
mais possante, a mais intensa que se possa imaginar. E, se, em centros nervosos afetivos do coração; no segundo, os centros
lugar de usar os termos vagos das religiões, precisarmos os nervosos intelectivos do cérebro. Atravessando estes dois tipos
problemas da alma, analisando-a e anatomizando-a, então a de- de inspiração, vivi em dois centros de vida distintos, nos quais
terminação em pormenores do aspecto de tais fenômenos não se condensavam todas as minhas sensações.
poderá senão reforçar os princípios, como atualmente a presen- Não insisto no primeiro caso, que é particularmente o dos
ça dos aparelhos radiofônicos não permitirá à maioria duvidar místicos, porque a produção que dele resulta, embora em lógico
da existência das ondas hertzianas. desenvolvimento, não é um verdadeiro organismo conceptual. Is-
Aqui prossigo em minha luta pela afirmação do espírito, a so pode deixar duvidosa a ciência, porquanto o “eu” se expressa
única coisa que me tem parecido digna de valorizar uma vida, nos vagos termos do sentimento, e poderiam os céticos achar fa-
luta que considero, doravante, como missão. cilmente um modo de introduzir, na interpretação, um despertar
Luto para que estas realidades mais profundas sejam vistas, de estados de subconsciência, com distorção e translação de ima-
para que estas concepções, altamente benéficas individual e gens psíquicas, concluindo, finalmente, com o patológico da neu-
socialmente, desçam à vida de cada dia e lhe comuniquem rose. Não me refiro, naturalmente, a quem crê, sente e raciocina.
aquela esperança, aquele sopro de fé, tão necessários, sobretu- Conheço bem, no entanto, o contrário – a mentalidade preconcei-
do nas penas do trabalho e da dor. Será este um romance de tuosa de certa ciência catedrática e oficial, e é a esta que aludo.
gênero novo, um drama superlativo em que se acossam as vi- Agora, quando nos achamos diante de um tratado em que o
cissitudes de minha alma. sentimento é relegado a plano secundário e se enfrentam e re-
Tenho vivido muito intensissimamente e ainda tenho muito solvem problemas que aquela ciência provou ser incapaz de re-
para dizer. Criei o hábito de quem tem pressa, isto é, de dizer solver, porquanto, por concepções arbitrárias, absurdamente os
tudo do modo mais simples, mais breve, mais sincero. situou, aquela ciência não poderá refugiar-se muito facilmente
Nestas páginas, nasceu em mim um fio de pensamento, que na hipótese do patológico; o fenômeno mediúnico inspirativo,
tomou uma direção e se desenvolve. Não sei aonde poderá che- revolucionando, como método de pesquisa, o passado, não po-
gar. Segui-lo-ei e convido o leitor a segui-lo comigo. E começo. derá senão resplandecer em toda a sua beleza. Se me abandono,
em certos momentos, ao meu lirismo, no ímpeto das impres-
II. O FENÔMENO sões, ele é sempre circunscrito e controlado por uma fria razão,
que é minha garantia, é sempre refreado por uma subversão de
Senti e observei em mim a marcha do fenômeno em seu psicologia, que em mim é rápida e instintiva e que me leva a
desenvolvimento interior e exterior, permanecendo ele, assim, ver de cada ideia o seu contrário, e a demolir o que não é bem
individuado no seu aspecto dinâmico – gênese, desenvolvi- firme, com a psicologia destruidora do ceticismo científico. A
mento e plenitude – até ao seu produto concreto: o pensamento fusão entre fé e ciência, tão auspiciada, já se completou em meu
fixado em escritos, que são o documento, sempre suscetível de espírito; visão única na substância, e de uma a outra eu passo
observação, último termo do fenômeno, o resultado definitivo unicamente por uma mudança de perspectiva visual ou de foca-
do processo terminado. lização de meus centros psíquicos.
Relatei esta cronistória pessoal, embora necessária à com- ◘ ◘ ◘
preensão do fenômeno, mas não me cabe repeti-la aqui. Agora Abaixemos, portanto, as luzes e entremos no templo do
vamos observar o fenômeno, não mais no seu desenvolvimento pensamento. Vamos penetrar num mundo de vibrações delica-
no tempo, mas em sua profundidade, para pesquisar-lhe e des- das, de formas fugidias, que o pensamento cria e destrói, mun-
cobrir-lhe a técnica, isolando-a num dos momentos culminantes do de fenômenos evanescentes e sutis e, no entanto, reais.
e mais intensos: a recepção da minha última obra. A insolubilidade de muitos problemas talvez seja motivada
Minha tarefa e meu método são objetivos; anatomizo por justamente pela maneira errônea de situá-los: a solução é mui-
seções diversas, trabalhadas primeiro longitudinalmente, na tas vezes impedida pelo próprio preconceito, embora inconsci-
direção do tempo, e depois verticalmente, em profundidade. ente; a conclusão já é dada pela primeira posição do problema.
O leitor compreende que a recepção, que se estendeu por três Aproximamo-nos da gênese do pensamento. Talvez todo o
verões9, implica necessariamente na repetição de normas fenômeno do pensamento não seja senão um fenômeno mediú-
constantes, consuetudinárias, na formação de um verdadeiro nico de ressonância noúrica e ambos possam reluzir-se ao
método receptivo. mesmo princípio, de modo que muitas diferenciações precon-
É minha tarefa, agora, descrever as condições de ambiente cebidas, que prejudicam a visão substancial do fenômeno, não
e de espírito exigidas, os estados psíquicos vividos, o compor- terão sentido.
tamento de meu ser físico e psíquico, considerado como meio Virão à luz expressões audazes e desconcertantes, mas que-
do fenômeno, precisando todos os fatores que para o mesmo ro levar à superfície da consciência – onde tudo é claro, sensí-
possam ter concorrido. vel, racional – estes mistérios evanescentes das profundezas;
E isso, para individuar as características, definir o tipo e, fi- quero medir este, quase direi, singular pensamento radiofônico,
nalmente, encaminhar-nos ao descobrimento da lei daquele fe- que tão estranhamente emerge dos abismos.
nômeno. Operarei indutivamente, pelo menos nas primeiras fa- Desçamos às profundezas desse oceano que existe no íntimo
de nossa personalidade psíquica.
9
A Grande Síntese, iniciada em 1932, foi escrita nos três verões de Começo do exterior, da superfície, da descrição do a m-
1933, 1934 e 1935 (N. do A.). biente. Não posso escrever em qualquer lugar. Num ambiente
138 AS NOÚRES Pietro Ubaldi
de desmazelo, desordenado, desarmônico, não asseado, novo do humano desaparece, distanciando-se de minhas sensações.
para mim, não impregnado de minhas longas pausas no meu Basta a imersão nas noúres para poder absorver-lhe todo o ali-
estado de ânimo dominante, não harmonizado com a cor psí- mento energético e atingir o isolamento das correntes inferio-
quica de minha personalidade, não posso escrever senão mal e res. Isso constitui felicidade, êxtase, esquecimento de tudo, até
com esforço. Eis-me, ao contrário, em meu pequeno gabinete, o momento de despertar na consciência normal, em que há uma
ambiente de paz, onde os objetos expressam minha própria espécie de penosa turvação de potência perceptiva.
pessoa, onde a atmosfera é ressonante de minhas vibrações e Antes, porém, de estabilizar-me nessa como estratosfera de
tudo, por comunhão de vida, está sintonizado com meu tem- evolução, enquanto atravesso as camadas inferiores, permaneço
peramento. Por aí me deter longamente para pensar e escre- vacilante na minha hipersensibilidade, desproporcionada à vio-
ver, saturei as paredes, a mobília e os objetos de um particular lência do assalto, muito vulneravelmente exposto ao choque de
tipo de vibração, que agora a mim retorna como uma música forças misteriosas. Sinto essas forças vagarem em torno de
que harmoniza o meu pensamento. mim. Sinto, como sentem todas as formas da vida, o terror, a
Este é o primeiro problema: harmonização, que me permite ameaça de um perigo desconhecido nas sombras.
a seleção de correntes e a imersão nelas; esses delicadíssimos Se, no alto, sou forte, porque sustentado pela corrente, sou
estados de consciência não posso atingir senão num oásis de humanamente débil cá em baixo, e devo, timidamente e sozi-
paz, através de um processo inicial de isolamento vibratório do nho, dar os primeiros passos dessa grande viagem, que implica
violento ruído do mundo. numa transformação de consciência. Procuro conseguir isso,
Antes de lançar-me à exploração do supranormal, tenho ne- auxiliando-me com um processo de progressiva harmonização,
cessidade de encerrar-me, para minha ajuda e proteção, nesse que se opera do exterior para o interior. É com a harmonia, co-
invólucro de vibrações simpáticas, harmônicas, leves, como meçando do campo acústico musical, que consigo vencer as
num veículo que me permita flutuar no oceano das vibrações dissonâncias dilacerantes das correntes barônticas 10 do mal; uti-
comuns da vida humana, que são densas, sufocantes, cegas. lizo a música como primeiro degrau no caminho do bem e da
É noite, aproximadamente dez horas. É ótima hora, em que ascensão do espírito. Isso estabelece relações, ainda não suspei-
minha capacidade receptiva se intensifica, até cerca de 1 h da tadas, entre música, prece e evolução da alma para o bem.
madrugada, em que diminui, então, por cansaço. Existe um an- Harmonizar-me é o meu problema, porque subir significa
tagonismo entre meu pensamento e a forte radiação solar; pare- encontrar a unificação; porque, ascendendo, minha sensibilida-
ce que a luz embaraça minhas funções inspirativas, neutralizan- de aumenta e mais sofro por qualquer dissonância.
do as correntes psíquicas que me circundam. Amo as luzes tê- Um dos tormentos de minha vida é a convivência no tortu-
nues, difusas, coloridas, que deixam vaguear os objetos nos rante estrépito psíquico humano, que só a insensibilidade dos
contornos indefinidos da penumbra. involuídos pode suportar. Assim, uso a música como outro
Li que quando Chopin improvisava, fazia baixar as luzes e meio inicial de sintonização de ambiente, a fim de que me aju-
procurava a “nota azul”, que devia ser a nota de sintonização de a saltar da harmonização nesse primeiro plano sensório exte-
entre sua alma e a do público. rior para a minha harmonização nos mais altos planos supersen-
sórios; essa música obtenho através do rádio e do radio-
No meu caso, o público está materialmente distante, mas
fonógrafo, especialmente a melhor música sinfônica, tipo Wag-
espiritualmente está presente e próximo, e eu o sinto, imenso,
ner, Beethoven, Bach, Chopin e outros.
estrondeando mil vozes: é a alma do mundo.
Então, lentamente, a percepção sensória do mundo é subs-
Minha solidão está cheia dessas vozes; é um oceano sem
tituída por uma diferente, interior, anímica, que tudo sente
limites que sobe em marés, ruge na tempestade, submerge-me e
diversamente.
levanta-me em seus vagalhões. Depois se aquieta e escuta, ven-
As harmonias musicais da audição se transformam nas mais
cido por essa potência de pensamento que me arrasta.
profundas harmonias dos conceitos. Música suave e, em torno,
Em minha sensibilidade, o pensamento adquire o poder do
silêncio completo. Luzes moderadas, em tom menor; em torno,
raio, as correntes espirituais do mundo são tangíveis, essas for-
tudo escuro. Minha alma é uma chama que arde na noite.
ças sutis são reais, e entre elas vou avançando e navegando Percebo sua luz e seu cântico, solitários, e eles surgem as-
com destreza. sim, logo que adormece a consciência do dia. Lentamente, as
A princípio, sinto-me extraviado, sozinho no vácuo, e im- coisas perdem o seu perfil sensório; então, vejo vibrar seu espí-
ploro apoio moral, consentimento, confiança. Peço às menores rito. E ouço a voz das coisas, que cantam. Minha consciência
harmonizações de ambiente o primeiro auxílio para o impulso; adormece para o exterior, meu “eu” morre para as coisas do dia,
peço um encaminhamento a uma cadeia de simpatias humanas, mas ressuscita numa realidade mais profunda.
que funcionem como círculo mediúnico, embora espiritual e É noite avançada. A vida humana repousa em silêncio. São
longínquo: uma espécie de caixa de harmonia das minhas res- antagônicas as duas vidas: a do pensamento desperta, enquanto
sonâncias espirituais. a outra adormece.
Vou subir a uma atmosfera rarefeita, e minha humanidade E, quanto mais adormecido, mais me torno inconsciente da
tem necessidade de um invólucro de simpatia que a aqueça e realidade exterior, volitivamente consumido, ausente do mundo
proteja, que a auxilie a lançar-se além da zona humana das tem- de todos, e mais a visão se faz nítida e profunda e mais consci-
pestades, onde minha alma se encontra exposta ao embate de ente ressurjo nessa lucidez interior.
forças titânicas. Não se pode imaginar o poder de harmonização A sonolência é, portanto, superficial e condiciona o desper-
que emana de um ato de bondade; a bondade é uma música que tar num outro estado de consciência, diferente, mais profunda,
eu respiro e que docemente me impele à corrente. Esta vibra mas sempre minha, ativa, lúcida. Processa-se uma como con-
muito mais pela bondade que pela sabedoria: é perfeição moral. traversão no funcionamento psíquico humano, à medida que se
Para conquistar o conhecimento, devo alcançar um estado de distanciam os estados de atenção volitiva que o caracterizam;
purificação, que é leveza espiritual. Apresentam-se, desde agora, dá-se uma inversão de consciência, uma conquista de potência
as necessárias relações entre evolução e ascensão de um lado, e na passividade, tanto que desaparece toda sensação de trabalho
mediunidade inspirativa de outro; esboça-se a afirmação de que e esforço e se produz num estado de abandono.
a verdadeira ciência não pode ser senão missão e sacerdócio.
Atingido o indispensável estado de tensão nervosa para 10
Neologismo formado de elementos gregos: “barós”, pesado, denso,
submergir-me na corrente, esta me arrasta; o próprio estado de e “ontos”, ser, entidade. Barônticas; provenientes de espíritos de cons-
tensão me protege do choque das vibrações inferiores, e o mun- tituição densa (entidades inferiores) (N. do T.).
Pietro Ubaldi AS NOÚRES 139
A vontade, no comum sentido humano, encerrada num cír- essa sonolência e esse acordar referem-se à minha consciência
culo de conquistas terrenas, é verdadeiramente para mim um normal, porquanto, em face da minha outra consciência, os ter-
estado de vibração involuído e violento, que perturba os mais mos simplesmente se invertem. Para que uma possa despertar, é
sutis estados vibratórios do pensamento. Os volitivos comuns, necessário que a outra adormeça. Evidentemente, a volta ao es-
se são aptos para dominar, são impotentes em face dessas de- tado normal dá-me vivíssima sensação de enfraquecimento inte-
licadas percepções. lectivo, de redução da personalidade, de queda em dimensões
Lentamente, então, vou perdendo a sensação física do corpo, mais involuídas, em que tudo está comprimido entre barreiras e
embalado por complexos ritmos sinfônicos de uma vasta orques- encerrado em limitações: há uma sensação de gigante abatido.
tração, e adormeço num estado de tranquilidade confiante. Torno a cair, então, na realidade cotidiana, onde os outros
Atravessada essa primeira fase de negação sensória, desper- têm razão, e não eu. A visão desfaz-se, o céu se fecha. Estou
to além da vida normal, numa outra consciência. Adormentados sozinho. Novamente encontro o trabalho e o cansaço da vida e
os sentidos, desaparecido de minha percepção o mundo concre- retomo o peso da minha luta de cada dia.
to que me circunda, posso abismar-me na vertigem da abstra- Tenho, pois, a sensação de que existem em mim duas cons-
ção. Não estou morto, nem passivo, nem inconsciente, porque ciências, colocadas e operantes em planos visuais distintos.
todas as sensações da vida retornam, mas com uma potenciali- Elas se excluem mutuamente e me disputam o campo da perso-
zação nova e maravilhosa de todas as faculdades de minha per- nalidade, que não podem possuir plenamente, senão cada uma
sonalidade, com um vigor e uma profundeza de percepção e por sua vez. É necessário, antes, que eu adormeça, como num
ainda com um lirismo de afetividade que antes desconhecia; pa- sonho, e é nesse sonho que o meu eu pode transferir-se à cons-
rece que, somente agora, despida a alma de sua veste corpórea, ciência mais profunda.
ela poderia revelar-se inteiramente. Estudaremos melhor, a seguir, o significado dessas diferen-
O pensamento regressa, mas com uma sensação de potência tes focalizações e deslocamentos de centro de consciência, por-
titânica, com uma profunda lucidez de visão, com uma rapidez que aí se encontra a chave de minha técnica receptiva.
vertiginosa de concepção; percebo-o despojado de palavras, em ◘ ◘ ◘
sua essência. Sou possuído de uma sensação de leveza e de li- A rápida descrição dessas minhas sensações, esta narrativa
bertação de véus e limitações; sinto dotada minha consciência do meu caso interior, que anteponho para enquadrar o fenôme-
do poder da intuição e do domínio de uma nova dimensão con- no, já basta para fazer nascer na mente do leitor um bom núme-
ceptual. Despertou-se-me um olhar mais penetrante, que vê o ro de interrogações. A elas daremos gradualmente respostas.
interior, e não mais somente a superfície que registra nas coisas Tive que descrever o fenômeno no seu lirismo, na intensi-
não só reflexos óticos, mas também psíquicos; esse novo olhar dade com que o senti e vivi, e isso para ser verdadeiro e objeti-
já não é interceptado pela forma, mas penetra diretamente na vo, tendo por fim apresentar fotograficamente o fato interior.
substância, buscando o conceito genético, o princípio que ani- Agora, vou deixar de lado meus entusiasmos e encarar o fenô-
ma e governa as coisas. Vejo, então, o que se encontra além da meno com a diferente psicologia analítica.
realidade sensória do mundo exterior, isto é, as forças que o Embora esses meus mobilíssimos estados de ânimo, porque
movimentam e lhe mantêm o funcionamento orgânico. Essas incontroláveis pela observação exterior (embora me sejam ne-
forças tornam-se vivas, os fenômenos me aparecem com uma cessários), possam reduzir-se a um acontecimento pessoal de
vontade própria de existência, uma potência de individualidade relativa importância e também ser discutidos e negados, todavia
que investe sobre mim e grita: “eu sou”. resta sempre, tangível e indestrutível, o seu produto: o volume
Cada forma se reveste de um hálito divino de conceito, que foi escrito, com seu conteúdo filosófico e científico, com a
que eu respiro; é então que sinto, verdadeiramente, que o uni- solução dos problemas defrontados, com sua técnica de pensa-
verso é um grande organismo dirigido pelo pensamento de mento, elementos largamente suscetíveis de observação.
Deus. Tudo possui, então, uma voz e me fala; todas as forças, O fenômeno completo, embora encerrado em sua imobili-
todos os fenômenos, toda a vida, desde o mineral, todas as dade, é uma afirmação realizada, que aí está como testemunho;
criaturas de Deus irradiam um cântico, que eu escuto e perce- e os sutis processos de combinações psíquicas que lhe deram
bo harmonizar-se na sinfonia imensa da criação. Desenvolve- origem podem ser reconstituídos.
se um colóquio íntimo, que registro; despertaram todas as cri- Os estados psicológicos acima descritos não foram inúteis,
aturas irmãs, que me olham, dizendo: “Quem és tu que ouves? porquanto geraram um efeito, que deve ter uma causa; embora
Escuta-nos, nós te falamos”. possam parecer de exaltação, produziram um organismo con-
O colóquio torna-se, então, um imenso amplexo, um perder- ceptual lógico e profundo. Se o efeito revela a natureza da cau-
se de aniquilamento no seio de uma luz resplandecente. A ciên- sa, se ele é uma construção racional, precisa, completa, não é
cia é um cântico e uma oração. Abre-se o abismo do mistério, e justo atribuir sua origem ao acaso ou a uma anormalidade psi-
contemplo: é uma visão, um êxtase. Mais não sei dizer. cológica ou patológica; se o escrito supera a potência cultural e
Não há palavra que possa descrever a vertigem desses esta- intelectiva do escritor, deve existir em algum lugar uma fonte
dos de consciência, a potencialidade desses clarões interiores, o que a tudo isso deu origem.
júbilo dessa paixão maior que a vida e a morte, a festa desse li- Conservar-se cético, negar uma causa ao efeito, não perce-
bertar-se do corpo e desse evadir-se da Terra, a sensação de ber um liame de proporções entre os dois termos, não é racio-
força e de eterna juventude que emana desses triunfos do espíri- nal nem científico.
to. Assim imagino o meu paraíso. Esses meus estados psicológicos ainda representam mais:
Relato essas coisas para inflamar os ânimos, induzindo-os a significam uma nova técnica de pensamento, que pode revoluci-
essas altas paixões, porque desejo que todos encontrem essa vi- onar os processos psicológicos até agora habitualmente usados.
da de perene mocidade e o dinamismo incansável que existe na Este exame que aqui estou fazendo não tem somente a im-
substância vibrante do espírito. Esse vórtice de sensações faz portância de um estudo sobre um particular tipo de mediuni-
perceber, do modo mais palpável, que o espírito existe e que dade, mas é o estudo do grande problema da gênese do pen-
sua potência suprema não pode morrer. samento, de uma sua novíssima técnica, de um novo método
Terminada a visão e a registração, o processo se inverte nu- de pesquisa filosófica e científica. Essa técnica e esse método
ma descida: é o retorno à consciência humana. Assim como o eu os usei largamente e aqui apresento seu primeiro resultado.
transe lúcido e consciente é preparado por uma fase de ador- Denomino-o método da intuição e, como já o tenho adota-
mecimento, do mesmo modo termina por uma fase de despertar; do, proponho-o, por ser mais poderoso que o método indutivo-
140 AS NOÚRES Pietro Ubaldi
experimental. Este último, creio, já deu seu máximo rendi- se desloca, na plenitude de suas forças. É, portanto, mediunidade
mento; também creio ser necessário mudar de sistema, se a ci- de tipo mais elevado, e chego quase a duvidar que em tais níveis
ência deseja progredir em profundidade, se quer encontrar sua possa ainda subsistir toda a estrutura da concepção espírita co-
unidade (agora que está em perigo de pulverizar-se no particu- mum, ou que a tudo isso se possa chamar ainda mediunidade,
lar e na especialização), se quer descobrir os princípios cen- porquanto ela coincide e se confunde com o fenômeno da inspi-
trais e obter uma conclusão, após tantos anos de inúteis tenta- ração artística, do êxtase místico, da concepção heroica, da abs-
tivas. Urge devolver à ciência, que descambou em utilitaris- tração filosófica e científica, fenômenos todos que possuem um
mo, a dignidade que lhe é própria, levando-a a descobrir no fundo comum e que se reduzem, não obstante as diferenças par-
campo do espírito, guiando-a ao caminho justo da verdade, ticulares, ao mesmo fenômeno de visão da verdade no absoluto
que o mundo espera e pede há tanto tempo, em vão. Urge ele- divino. Nesses momentos, que são chamados, justamente, de
var a ciência ao nível da fé, para que se funda com esta e se inspiração – diz Allan Kardec no seu “Livro dos Médiuns” (pág.
unifique o pensamento humano. Também esse é o objetivo da 245) – as ideias abundam, se seguem e se encadeiam por si
obra que recentemente concluí. mesmas, sob um impulso involuntário e quase febril; parece-nos
Ainda que abstraindo seu conteúdo, que pode ser conside- que uma inteligência superior vem ajudar-nos e que nosso espí-
rado como revelação, o referido escrito permanece íntegro no rito se haja desembaraçado de um fardo. Os homens de gênio, de
campo científico, como realização completa do novo método todas as classes, artistas, cientistas, literatos, são indubitavel-
de pesquisa. Com este método, sem profunda e especializada mente espíritos adiantados, capazes de compreender e conceber,
preparação cultural, com rapidez e trabalho relativamente mí- por si mesmos, grandes coisas; ora, é precisamente porque os
nimo, pude resolver problemas que os outros métodos não julgam capazes que os espíritos, quando desejam executar de-
conseguiram solucionar 11. terminados trabalhos, lhes sugerem as ideias necessárias, e, as-
O método da intuição é o método da síntese, dos princípios, sim, na maioria dos casos, eles são médiuns sem o saberem.
do absoluto, é o método interior da visão e da revelação; o mé- Concebo, desse modo, estes meus estados e qualidades co-
todo indutivo-experimental é o método da análise, do relativo, é mo uma sublimação normal de todo o meu ser psíquico, atin-
o método exterior da observação. O segundo é prático, utilitá- gida por minha natural maturação biológica, que figuro como
rio, mas desperdiça o conhecimento; o primeiro é abstrato, teó- uma continuação, no campo psíquico, da evolução orgânica
rico, mas toca a verdade absoluta, atinge os princípios univer- darwiniana. Foi desse ponto de observação, a mim oferecido
sais diretivos dos desenvolvimentos fenomênicos. por estados de consciência supranormais em face da mediana
Há a considerar também a questão da entidade, ou seja, do evolução biológica, mas normais para a fase por mim atingida,
transmissor, questão árdua, para cuja solução teremos, mais que eu pude contemplar a síntese do cosmos. E é por isso que,
adiante, melhores elementos de juízo. Por enquanto, devo ob- desse nível biológico, me inspira o maior desagrado a mediu-
servar que, conforme suas próprias declarações, a fonte afirma nidade física, que percebo como algo de violento, sufocante,
não ser uma personalidade no sentido humano. Em sua primei- involuído. Deixo a esse mais áspero trabalho do espiritismo o
ra comunicação, Sua Voz enuncia, realmente, como primeiro valor probatório para a hodierna ciência da matéria, para os
fato, estas já citadas palavras: “Não perguntes meu nome, não cegos do espírito, mas permaneço em minha sensação de re-
procures individuar-me. Não poderias, ninguém o poderia; não pugnância e de desagrado.
tentes inúteis hipóteses”. Além disso, tenho lido na imprensa A minha paixão é, ao contrário, subir, sutilizar-me espiritu-
espírita, repetidamente, que essa impessoalidade do centro almente, aperfeiçoar-me sempre como percepção. E esta é a
transmissor é mais séria e mais verdadeira do que seu exato condição de minha mediunidade. Fujo, por isso, do que é terre-
definir-se numa assinatura, embora esse nome seja dos grandes no, das formas de vida humana, de todas as manifestações barô-
da história. E é intuitivo que, embora sobrevivendo, a persona- nticas, que arrastam meu espírito para baixo e, ao invés de abri-
lidade humana deva experimentar mutações que lhe fazem lo para a compreensão e a luz, o sufocam num cárcere de trevas.
perder seus atributos humanos, seus sinais de identificação Minha paixão é evadir-me das baixas camadas da animali-
psíquica e as características que lhe eram próprias no ambiente dade humana, e essa é minha meta e o significado de minha
terrestre. E isso deve ser mais intensamente positivo quando se mediunidade. Quando esta, embora vagando no além, permane-
trata de entidades que jamais viveram na Terra, ou também ce em nível humano ou subumano, não tem mais razão de exis-
que sejam tão elevadas que vivam normalmente em dimensões tir para mim, porquanto não mais significa evasão e libertação.
conceptuais e planos de consciência superiores. Observar o mundo dos vivos ou o mundo dos mortos é para
E, se a virtude destes meus estados psíquicos particulares é mim problema secundário em face do de minha evolução. Sou
de me fazer atingir conscientemente esses planos, deverei achar um exilado na Terra e busco desesperadamente a minha gente e
suficiente falar não de espíritos no sentido comum, mas somen- a minha pátria distante. Meu esforço objetiva reencontrar algo
te de centros emanantes de correntes psíquicas, as noúres, em de grande que eu já senti ou vivi, um conhecimento, uma bon-
que justamente se processa minha imersão, correntes que eu dade, um poder que se abalou, não sei como, neste mundo. Meu
percebo, vibrações que registro em minha hiperestesia psíquica. esforço é para subir, subir moralmente sempre mais, para
Reconhecer-se-á lógica a necessidade de alteração de perspec- aprender sempre melhor a manter-me em equilíbrio estável ao
tivas, quando se pensar que longa e estranha viagem seja neces- nível de consciência representado por essas noúres que eu capto
sário realizar até atingir o outro limite da comunicação. e registro. Procuro simplesmente tornar normal para meus pul-
Por isso meu caso é bem diferente dos tipos comuns de me- mões a respiração, que é difícil para um ser humano, naquela
diunidade. Não é mediunidade física, de efeitos materiais, que atmosfera rarefeita, mas puríssima e esplêndida.
lança mão de centros humanos e subumanos, de caráter barônti- Toquei de leve, neste momento, uma corrente que me de-
co. Não é mediunidade intelectual inconsciente, em que o mé- lineia uma interpretação do fenômeno. Sinto desse modo,
dium funciona como simples instrumento e cuja consciência se muitas vezes, nascerem em mim os mais inopinados concei-
afasta no momento da recepção. É, porém, mediunidade intelec- tos. Minhas capacidades consistem, portanto, no saber eu mo-
tual consciente no plano superior em que trabalha e para o qual ver-me, em plena consciência, de um plano conceptual huma-
no a um plano conceptual sobre-humano; no saber efetuar,
11
Atualmente, em 1950, as últimas teorias do grande físico e matemá- com a sonda de minha superconsciência, reconhecimentos nas
tico Albert Einstein vêm confirmando plenamente as intuições de há profundezas do plano superior e trazer os resultados da in-
18 anos, de A Grande Síntese (N. do A.). vestigação à consciência normal, para poder, através desta e em
Pietro Ubaldi AS NOÚRES 141
terminologia desta consciência, fazer a comunicação dos a observação”, em que não se procede por verificações exterio-
mesmos, isto é, pô-los em forma racional, compreensível aos res e superficiais com meios sensórios e instrumentos apenas,
meus semelhantes. Eis o conceito de que falei: a linha que mas se usa a consciência do observador, que é elevada a instru-
percorro e ao longo da qual me elevo e desço é a dimensão mento de pesquisa. Procede-se, aqui, por sintonização entre o
evolução (confronte A Grande Síntese, Cap. “Teoria da evolu- psiquismo do observador e o psiquismo diretivo do fenômeno; é
ção das dimensões”), e tudo isso pode acontecer porque me necessário, em outros termos, que a alma do observador se dilate
encontro numa fase de transição e transformação entre consci- e expanda do exterior para o interior e entre em contato com a
ência e superconsciência, que ainda me permite oscilar entre substância, o princípio animador do fenômeno, e não somente
as duas fases contíguas de evolução psíquica. com sua forma externa e com o aspecto exterior de seu desen-
Em face de tudo isso, pode-se ver como se deve abandonar, volvimento. É o estado de espírito do poeta e do místico, de
caso se queira compreender a fundo o problema, o simplismo simpatia por todas as criaturas, de paixão de conhecimento para
da ideia de uma entidade que fala mais ou menos materialmente o bem, de visão estética do artista, não mais vagas, mas dirigidas
aos ouvidos do médium. E daí também se compreende a extra- com exatidão científica no campo das concepções abstratas.
ordinária importância que tem para esta minha qualidade de re- Nestas formas de pensamento, sinto que se dilatam os hori-
cepção inspirativa – para completá-la, mantê-la, aperfeiçoá-la – zontes novíssimos da ciência do futuro, sinto que nestes concei-
o fator moral; compreende-se que importantíssima função pos- tos que aqui estou expondo está a semente de uma profunda re-
sui, em face dessa minha mediunidade, o fator dor, que refina, volução na orientação do pensamento humano, sinto que este
educa, purifica; compreende-se como fazem parte integrante do assunto é o problema fundamental, o mais importante a que
fenômeno e como é necessário dar-lhes um verdadeiro peso ci- possa dirigir-se hoje a mente humana. Aquém deste estudo, que
entífico, fatores de caráter religioso, ético, espiritual, que a ci- parece apenas de um caso pessoal, se agita o grave problema do
ência acreditou até agora poder ignorar como um não-valor. conhecimento humano e dos novos métodos para atingi-lo. Tu-
No meu caso, por isso, a recepção se realiza por sintoniza- do isso demonstra que a verdadeira ciência, a profunda ciência
ção, isto é, capacidade de vibrar em uníssono, que se pode que toca a verdade, só é atingida pelas vias interiores, através
chamar simpatia, envolvendo o conceito de afinidade de natu- de um processo de harmonização da consciência com as leis da
reza. Devo, então, submeter minha natureza humana ao martírio vida e com o divino princípio que tudo rege; demonstra que os
de viver num nível que não é o dela, entregando-se em holo- caminhos do conhecimento não podem ser senão os caminhos
causto de uma lenta morte; devo saber continuamente realizar, do bem, que o saber é um equilíbrio de espírito, que a revelação
entre as cargas de minha vida humana diária, o esforço de er- do mistério não se verifica senão quando se alcança a fase de
guer-me, como consciência, a um nível sobre-humano e nele perfeição moral; demonstra que a ciência agnóstica, amoral, é a
manter-me através de uma tensão nervosa esgotante, em que ciência do mal, que se destrói a si mesma, e que é absurdo, por-
muitas vezes me abato, caindo humanamente desfalecido. É tanto, ignorar certos imponderáveis substanciais e prescindir do
através de um sofrimento contínuo que eu posso declarar-me fator ético na pesquisa; demonstra, finalmente, que a ciência
uma antena lançada no céu dos antecipadores da evolução. Só a não deve ser senão uma ascensão cultural e espiritual tendente à
dor pode permitir perdoar a audácia destas afirmações. unificação de tudo – arte, filosofia, religião, saber – em Deus.
Referi-me, assim, às notas fundamentais do fenômeno tal Porque a lei de evolução é também lei de unificação.
como eu o vivo. Pode ele definir-se como um estado de acentu- Com este método, escrevi uma obra que foi publicada como
ada hiperestesia psíquica, que me permite a captação consciente ditado mediúnico, e isso, se corresponde à verdade, não basta
de correntes conceptuais emanantes de centros psíquicos que para fazer compreender todo o fenômeno. Vê-se agora como
existem em formas biologicamente superiores e dificilmente esse escrito foi gerado num plano de consciência supranormal e
individualizáveis para o homem, em face de suas limitações que eu tinha que possuir as qualidades necessárias para saber
sensórias e conceptuais. Esses estados podem ser chamados transferir-me àquele plano e, assim, poder perceber aqueles
medianímicos e são, no meu caso, conscientes, lúcidos, utilizá- conceitos. Meu esforço não foi, na verdade, o esforço cultural
veis pela minha possibilidade de retroceder biologicamente aos do estudioso, mas um trabalho completamente diverso. Nada de
estados de consciência normal e traduzi-los em forma humana livros, de resto inexistentes em tais campos inexplorados e so-
de pensamento; possibilidade, para mim, de oscilar entre essas bre tais novíssimas concepções; nenhuma preparação cultural
duas consciências, que são duas fases de evolução biológica no particular, nenhuma coletânea de materiais, nenhuma pesquisa,
nível psíquico. São capacidades supranormais em face do nível no passado, do pensamento alheio, mas um contato imediato
médio, mas normais para mim, porque atingidas por normal com o problema e com o fenômeno, com uma nova e diferente
processo evolutivo; capacidades abertas a todos e às quais a focalização de consciência. A libertação do estorvo cultural foi,
humanidade chegará por via normal de evolução no tempo. Fe- pelo contrário, a primeira condição que me permitiu a leveza
nômeno de sintonização entre os dois centros comunicantes, o necessária ao voo, numa espécie de virgindade de espírito, livre
que implica afinidade e, de minha parte, a tensão para manter- de todos os preconceitos de precedentes interpretações alheias.
me num alto nível biológico, expresso neste campo psíquico A dificuldade da composição não se assentou no estudo de li-
por leis morais. Tudo isso eu adoto praticamente como um no- vros, mas na busca do estado de espírito. O fenômeno e sua lei
vo método sintético, por intuição, de pesquisa filosófico- me falaram diretamente, sem véus; a verdade me tocou como
científica; tenho-o utilizado, ofereço-o e também seus resulta- um lampejo de concepção instantânea; nenhuma incerteza, ja-
dos à ciência, para seus objetivos. No fundo, não é senão o an- mais a tentativa da hipótese. Prendia, num voo, o princípio, sem
tiquíssimo método dedutivo da revelação, que a ciência, atual- perder-me nunca no dédalo do particular e da análise. Jamais
mente, trocou pelo método indutivo; é o retorno às fontes da oscilei na dúvida em que a ciência se debate. Nenhum registro
verdade, ao outro extremo visual do conhecimento. necessário, multiplicado pela observação prolixa e paciente;
Com este método se introduzem na pesquisa científica fato- não mais o comportamento lento e incerto do cego que, para
res delicadíssimos. Considero absurdo falar, no presente caso, de certificar-se da segurança, deve tocar tudo de todos os lados,
gabinetes e experimentações num sentido materialista, porque a mas um senso da verdade, uma registração rápida de totais,
primeira coisa a fazer não é tanto induzir o cientista a estudar o uma potência de síntese que imediatamente conclui. Não mais
fenômeno com sua psicologia, mas reconstruir, desde os funda- um mesquinho contato com o fenômeno apenas pela estreita via
mentos, a psicologia do cientista. Meu fenômeno não pode ser dos sentidos, mas uma comunhão aberta de par em par, uma
apenas objeto de observação, mas é um método científico “para transposição completa do meu centro consciente ao centro do fe-
142 AS NOÚRES Pietro Ubaldi
nômeno, seja ele o menor ou o máximo do universo. Os dois escrito produzido, até ao ponto de considerar que, quando esse
termos que devem compreender-se, observador e fenômeno, eu contraste falta, o fenômeno deve ser julgado suspeito. E se es-
os ponho à mesma altura; não me canso em mudar os casos e as candalizam por eu abolir, abertamente, no meu caso, essa pre-
condições do fenômeno, mas mudo o observador e suas quali- sunção de completa ignorância como elemento probatório e por
dades perceptivas; restituo sua alma ao fenômeno e o compre- diminuir essa distância entre as capacidades culturais do mé-
endo. Na transmutação da consciência, sintonizo os íntimos dium e o produto intelectual. Já falei, porém, sobre sintonização.
movimentos vorticosos do meu psiquismo com aqueles que É evidente, pois, que o centro receptor, para poder entrar em
constituem a essência do fenômeno; reduzimo-nos ambos (eu e ressonância, deve saber elevar-se até atingir um estado de afini-
o fenômeno, elementos que devem tocar-se) à última e mais dade qualitativa com o centro transmissor, que tanto pode ser
simples expressão cinética. Reduzidos, assim, ao mesmo de- uma noúre, como a alma do fenômeno em sua própria expres-
nominador, as duas expressões podem comunicar-se, minha são. E, nos assuntos mais modestos, como a compilação de um
consciência pode sobrepor-se e coincidir com a consciência do quadro, de um diagrama, a execução de um desenho, o controle
fenômeno. Este método de pesquisa por sintonização fenomê- de um cálculo ou de uma fórmula, o desenvolvimento de concei-
nica atinge também fenômenos longínquos ou não mais repro- tos mais simples, o próprio, mas raro, retoque da forma etc., é
duzíveis, não suscetíveis, portanto, de observação, como, por natural e justo que esse trabalho menor de contorno, serviço se-
exemplo, as origens da vida, as dimensões conceptuais etc., fe- cundário, seja confiado à psique menor, para deixar, evitando
nômenos que não podem ser arrostados senão com esses meios inútil desgaste de energias, o trabalho central de direção à psique
de pesquisa, pois a ciência não os possui. superior, que se reserva à função mais elevada de lançar os pla-
Nestes estados, não sou apenas consciente, mas também nos da obra e iluminar a essência dos fenômenos. Tudo isso cor-
ativo centro investigador, e não me limito à percepção de noú- responde a um plano lógico de divisão de trabalho.
res ou correntes de pensamento emanantes de centros psíqui- Ouçamos o que, sobre o assunto, diz Allan Kardec no seu
cos distintos de mim, mas sinto diretamente a grande voz das Livro dos Médiuns: “É possível reconhecer-se o pensamento
coisas, vejo o princípio que as anima, percebo as correntes sugerido, por não ser jamais preconcebido; nasce à medida que
que delas emanam. É natural que, transferindo-me eu a um se escreve e é frequentemente contrário à ideia que anterior-
plano de consciência mais avançado em evolução, tudo na- mente se formara (exatíssimo); pode, além disso, ser superior
quele nível se manifeste em forma de vibração psíquica, por- aos conhecimentos e capacidades do médium (...) Este último,
quanto, nas fases superiores, todo o universo se torna espírito. para transmitir o pensamento, deve compreendê-lo e, de certo
E tudo abarco porque, se adormeço na consciência normal, na modo, apropriar-se dele, a fim de traduzi-lo fielmente, e, no en-
outra desperto, e esta é muito mais elevada e potente; nesta tanto, esse pensamento não é seu...” (pág. 243). “Todo aquele
adquiro uma nova amplitude de visão e de discernimento, vi- que, seja no estado normal, seja no de êxtase, receba, pelo pen-
são minha, livre e autônoma. Também na percepção e capta- samento, comunicações estranhas às suas ideias preconcebidas,
ção de noúres permaneço consciente, examino, exercito um pode ser colocado na categoria dos médiuns inspirados. Esta é
poder de juízo e de escolha. Daí se pode compreender a que uma variedade de mediunidade intuitiva, com a diferença que a
grau de consciência atinge minha mediunidade e como eu intervenção dum poder oculto é aí muito menos sensível, tor-
domino completamente o fenômeno em toda a sua extensão, nando-se ao inspirado muito mais difícil distinguir o pensamen-
permanecendo senhor de suas possibilidades. to próprio daquele que lhe é sugerido. O que caracteriza este úl-
Apresenta-se agora uma delicada questão: saber se o seu timo é, sobretudo, a espontaneidade” (pág. 244).
produto é absolutamente meu; em outros termos, a quem cabe a Leio mais adiante, no mesmo volume (pág. 308 e seguin-
paternidade da minha produção, chamada mediúnica. A questão tes), uma comunicação de um espírito, que diz: “Quando en-
é sutil, justamente porque, em tais níveis de consciência, não só contramos em um médium o cérebro dotado de conhecimentos
conquisto um particular poder de visão no absoluto, não só per- adquiridos em sua vida atual e o seu espírito rico de conheci-
cebo o pensamento de outros centros, como também, naquele mentos anteriores, latentes, próprios a facilitar-nos as comuni-
nível, a distinção individualista humana, própria do separatismo cações, dele nos servimos de preferência, porquanto, com ele, o
imperante nos planos mais baixos de evolução, se anula na uni- fenômeno da comunicação é muito mais fácil do que com um
ficação, própria dos planos superiores. Já afirmei que a lei de médium de inteligência limitada e cujos conhecimentos anterio-
evolução é também lei de unificação. Subindo a superiores di- res sejam insuficientes... Nossos pensamentos não necessitam
mensões conceptuais, é natural, portanto, que a individualidade da vestimenta das palavras... Um determinado pensamento po-
se reabsorva na unidade. Atingindo aqueles planos, eu sinto, na de ser compreendido por tais ou quais espíritos segundo seu
verdade, apagar-se a distinção entre o eu e o não-eu, sinto-me adiantamento, ao passo que, para outros, esse pensamento, não
anulado, fundindo-me e ressurgindo numa unidade mais alta e despertando nenhuma lembrança, nenhum conhecimento que se
poderosa, sinto atuar-se a unificação entre mim e o princípio abrigue em seu coração ou em seu cérebro, não lhes é perceptí-
animador dos fenômenos, não apenas entre mim e as noúres, vel... ”. “Com um médium cuja inteligência atual ou anterior se
mas ainda entre mim e os centros de pensamento que as emitem. ache desenvolvida, nosso pensamento se comunica instantane-
Ascendendo-se, atinge-se a unificação com o princípio univer- amente, de espírito a espírito. Neste caso, encontramos no cére-
sal, em que a individualidade se aniquila. Meu ser se harmoniza, bro do médium os elementos apropriados a vestir nosso pensa-
então, de tal modo com o funcionamento orgânico do universo, mento com a palavra correspondente ao mesmo. Eis porque os
que dele não se sente mais separado, unificando-se, fundindo-se ensinamentos assim obtidos conservam um cunho de forma e
e perdendo-se no grande incêndio de luz da Divindade. colorido pessoais do médium. Se bem que os ensinamentos não
É para mim difícil reduzir a grandiosidade de sensações des- provenham de modo algum deste, ele influi sempre em sua
te fenômeno aos termos do vocabulário mediúnico. Muito mais forma, tanto pelas qualidades quanto pelas propriedades ineren-
difícil porque devo ainda, por amor à verdade, acrescentar que, tes à sua pessoa... ”. “Quando somos obrigados a nos servir de
também nos estratos inferiores de minha consciência, quando o médiuns pouco adiantados, nosso trabalho se torna muito mais
trabalho lhes era apropriado, este lhes era confiado em colabora- longo e penoso, porque somos coagidos a recorrer a formas in-
ção harmônica, pela lei do meio mínimo. Alguns, ao julgar-me, completas, o que é para nós uma complicação. Sentimo-nos fe-
procuraram a evidência do fenômeno mediúnico na ausência, lizes, por isso, quando podemos encontrar médiuns aptos, bem
em mim, de uma adequada preparação cultural e viram a prova aparelhados, munidos de materiais prontos a serem utilizados.
disso no contraste entre minha cultura, amplamente inferior, e o É por essas razões que nos dirigimos de preferência às classes
Pietro Ubaldi AS NOÚRES 143
cultas e instruídas... e deixamos aos espíritos galhofeiros e pou- um ponto em que me julguei extraviado, não podendo resistir à
co adiantados o exercício das comunicações tangíveis, de pan- tensão; rompera-se-me o fio do pensamento; a visão se apagara
cadas e transporte...”. Uma importante “observação” encerra, aos meus olhos; estava desanimado e havia perdido o senso da
no citado volume (pág. 312), essa comunicação: “Disso deriva, verdade. A consciência comum nada me sabia dizer, era cega.
como princípio, que o espírito colhe não as suas ideias, porém Foi então que, passeando, numa hora tardia duma noite estival,
os materiais necessários para exprimi-las, no cérebro do mé- num terraço, à luz das estrelas, orando e suplicando, vi toda a
dium e que, quanto mais rico é esse cérebro em materiais, mais teoria num lampejo, um esplendor de conceitos sobre o fundo
fácil se torna a comunicação...”. Compreende-se que os espíri- cintilante do firmamento. Foi um átimo, porque a visão concep-
tos devem preferir os instrumentos de uso mais fácil ou, como tual está verdadeiramente além da dimensão tempo.
dizem, os médiuns bem aparelhados, do ponto de vista deles. A intervenção, pois, do fator supranormal é evidente. É pre-
No meu caso, portanto, a cultura não somente não deve ser ciso somente compreender a complexa estrutura dessa interven-
excluída, mas é um instrumento precioso fornecido ao centro ção e evitar o simplismo que reduz tudo à ação de um espírito
transmissor, como igualmente podem ser a elevação de senti- sobre os centros psíquicos passivos do médium. Isso justifica a
mentos e a afinidade moral, que é condição de unificação. Mi- qualificação mediúnica dada ao escrito desde o princípio. As-
nha mediunidade é, portanto, um caso de verdadeira colaboração sim como a compreensão da transmissão radiofônica, embora
consciente e ativa; não é, assim, absurdo que sejam chamados a muito simples para comparação, presume o conhecimento da
cooperar e a dar todo o seu rendimento os melhores recursos que eletrotécnica, igualmente, para entender este meu fenômeno, é
minha personalidade pode oferecer. Certamente é difícil precisar preciso haver assimilado toda a obra que produzi, como inter-
a distinção entre o meu e o não-meu, como também já não sinto pretação da fenomenologia universal, para poder também situar
a que existe entre o eu e o não-eu. Se eu sou o pedreiro, terei este caso harmonicamente no seio do funcionamento orgânico
ofertado algum tijolo, tendo sido confiada a mim também a do todo. Atrás destas minhas palavras, como explicação e base,
construção de alguma parede e o mecânico trabalho cultural que exponho aquele quadro completo, quando falo de minhas duas
preenche os interstícios, mas não poderei jamais igualar-me ao consciências e da minha oscilação entre elas, ao longo da di-
arquiteto que concebeu o plano da obra, que lhe traçou as linhas, mensão da evolução, referindo-me à teoria da evolução das di-
que por ela sempre velou e ainda assinalou, entre os limites que mensões conceptuais e à fase humana da evolução espiritual. É
quis, o meu trabalho menor. Tudo é questão de gradação e de racional e científico – científico também no sentido da velha
medida. Eu só tive um escopo: o de completar a obra e a ela me escola materialista – falar de níveis e planos de consciência. Es-
dei totalmente com a máxima tensão. Era nessa identidade de tes não são mais que os graus sucessivos, as fases da evolução
metas que se processava a unificação entre mim e o centro supe- afirmada por Darwin no campo orgânico e continuadas, logi-
rior; e aquele eu, que consagrei inteiramente à minha obra, foi camente, no único campo onde uma continuação pode e tem de
conduzido por essa atração do Alto a tal grau de sublimação, existir, isto é, no campo psíquico. Tudo isso corresponde aos
que nele não mais encontro o meu pequeno eu normal. Em su- conceitos das religiões e aí se encontra traduzido em diversas
ma: aquela concepção passou, qual novo Pentecostes, como um palavras, que exprimem substancialmente estes níveis, como
incêndio através de meu espírito, e todas estas palavras demons- “hierarquias angelicais”, ou vários céus, ou “esferas celestes”.
tram quanto, não obstante meu desejo de discernimento, me é É esta unidade fundamental, na profundeza em que tudo se uni-
difícil reencontrar-me a mim mesmo naquele incêndio. fica e a que permaneço aderente, que me permite, muitas vezes,
Durante o desenvolvimento do texto, oscilava eu entre minha mudar de forma e estilo, passando equivalentemente da ciência
consciência humana e a outra, superior, que também seria minha à fé e vice-versa, reduzindo assim os grandes inimigos a ques-
naqueles momentos, conforme as necessidades da compilação tões de palavras, e não de substância.
impunham; aterrava e decolava quando era preciso, porquanto o O fenômeno apresenta, portanto, duas faces e resulta justa-
objetivo era produzir, e não estabelecer distinções. Recordo-me mente de sua conjunção: o lado humano, em que se encontra
muitíssimo bem como, ao engolfar-me como de hábito, sem o minha preparação cultural, as qualidades de meu temperamen-
saber, na angústia de difíceis soluções e sem saída visível, a ins- to, o meu grau de evolução e a minha capacidade de transferên-
piração me tomava a mão e me guiava, ela só, através do vazio cia a um superior plano de consciência; e, no outro extremo, o
em que sentia perder-me. Uma direção superior, embora inad- lado super-humano, que desce, se adapta a mim e, ao mesmo
vertida e latente, devia estar sempre presente, pois era meu hábi- tempo, me adapta a si, guiando-me e atraindo-me para o alto.
to arrojar-me, sem preparação, sobre os argumentos mais difí- Existem, pois, não somente dois centros: um radiante, transmis-
ceis, ignorando aonde chegaria; e não obstante isso, atingia um sor, e um registrador, receptor; existem também duas atividades,
bom porto, sempre guiado por um misterioso senso da verdade. em que ambos os centros, laboriosamente, se acham estendidos
Todas as teorias e desenvolvimentos conceptuais por mim se- um para o outro, a fim de atingir a unificação, pois a identifica-
guidos não foram, na verdade, meditados; não os compreendi in- ção é a fase da comunhão perfeita. Só através da tensão deste
teiramente senão depois de escritos; eu não conheço um proble- trabalho de recíproca aproximação pode estabelecer-se a comu-
ma senão depois de completamente exposto, porque, durante o nicação; por isso, de minha parte, como centro registrador e re-
seu desenvolvimento, se processa em minha mente um continuo ceptor, dou todo o meu esforço e conheço toda a minha fadiga
projetar-se de luzes, um multiplicar-se de perspectivas inespera- para alcançar a altitude evolutiva do transmissor e nela me
das, um surpreendente pulular de imprevistos. Isso sucede quase manter. A estação receptora não é, portanto, necessariamente
sempre, de modo que eu não sei se dito ou escuto, se escrevo ou passiva, como um aparelho radiofônico, mas sim consciente-
leio. Só sei que de mim sai esse fio de pensamento contínuo. In- mente ativa; sabe, investiga, escolhe, lança-se com todas as suas
dubitavelmente um controle e um consenso superiores se mani- forças para conseguir a captação das noúres, multiplica suas
festam em cada palavra, porque uma dolorosa dissonância feriria energias, dá-se completamente, aniquila-se em face da criação
logo minha hipersensibilidade, apenas me afastasse da linha de nascitura. É nesse sentido que em minha obra se encontra todo o
harmonização. A execução inferior me foi confiada, e eu sigo meu eu, toda a minha fé, minha paixão, minha pobre cultura; ali
tranquilo enquanto são suficientes os recursos da consciência está meu pequeno eu multiplicado pelo infinito, que, com sua
humana; muitas vezes, porém, numa curva inesperada, numa atração, me arrebatou para o alto e fecundou meu esforço, cen-
passagem difícil, sinto-me atemorizado como uma criança per- tuplicando-lhe o rendimento. Ali está meu pequeno eu, porque
dida e, então, me uno novamente ao guia. Recordo-me de que no aquela concepção, embora muito longínqua, também se encon-
desenvolvimento da teoria da evolução das dimensões, cheguei a tra na linha de minha evolução, e eu a senti, palpitante, como um
144 AS NOÚRES Pietro Ubaldi
sonho, inatingível hoje, de uma perfeição a cujos pés me humi- a tarefa de me libertar dessa estorvante psique racional de su-
lho, porque não me encontro amadurecido e careço de forças. perfície, que para os outros é tão fundamental. Não mais vejo,
Essas noúres superiores estão no meu futuro e me atraem. então, o fenômeno no seu aspecto exterior, mas sinto o princí-
Encontram-se na outra extremidade, no segundo termo da co- pio que o movimenta; não vejo, por exemplo, a semente em
municação. Devemos entender-nos, desde agora, a respeito do seus caracteres morfológicos, mas a enxergo na íntima estrutura
conceito de noúres, que é muito vasto e complexo e que apro- de seu ser, como vontade de desenvolvimento, como presciên-
fundaremos no estudo da técnica do fenômeno. cia do ambiente (instinto) e da meta a atingir; vejo, mais pro-
As noúres não são somente correntes psíquicas, uma espécie fundamente, o ritmo das infinitas formas do passado e a vonta-
de pensamento radiante, apenas vestido da onda dinâmica mais de de desenvolvê-las e, mais longe, sinto o grande princípio da
degradada e evolvida, como seu único suporte sensório; são cor- vida que, naquele tipo, palpita e se exprime.
rentes conscientes, que conservam, como as inferiores formas Quando, no silêncio da noite, completo o processo de ador-
dinâmicas, as qualidades típicas, e nesse caso conscientes, do mecimento da minha psique sensória, na harmonia e nos tons
centro genético. Essas correntes não são senão a expansão da- menores das luzes, no fundo da penumbra, ao ritmo submisso
quele centro e conservam sua consciência e conhecimento. Con- das orquestrações sinfônicas, as coisas perdem seu perfil concre-
ceitos abismais, porque não sabemos imaginar ondas que possu- to, o mundo se torna irreal, isto é, ressurge numa realidade dife-
am tais qualidades. Porém há mais ainda. Do lado transmissor, rente, e eu sinto o equivalente psíquico e espiritual das formas.
não devemos enxergar apenas os centros superevoluídos, mais Há uma correspondência entre os vários planos de evolução,
ou menos individualizáveis como personalidade no sentido hu- porque a essência das coisas que destila dos planos mais altos se
mano, mas devemos ver também, como já mostrei, a alma dos projeta como uma sombra nos planos inferiores. E isso é lógico,
fenômenos, alma que se manifesta a si mesma, isto é, o psiquis- porque toda unidade está ligada à superior na linha da evolução.
mo que existe em todos os fenômenos, o princípio e conceito Ora, minha ascensão de dimensões conceptuais me permi-
animador que os assinala e dirige o transformismo contínuo, o te subir da projeção concreta à substância espiritual. É por
eterno tornar-se. Ainda aqui, é preciso haver compreendido o essa correspondência entre os diversos planos que se pode fa-
espírito de meus escritos. Uma pedra também é viva, e existe ne- lar por parábolas, que o simbolismo pode exprimir os princí-
la um psiquismo animador, concedido pelo conceito divino que, pios abstratos e as realidades mais dificilmente imagináveis
a cada instante, nela se realiza, exteriorizando-se. Por isso, tam- para os incultos, traduzindo-as em sua sombra mais densa ou
bém uma pedra, ou o mais simples fenômeno químico ou físico, projeção concreta, que também as ficam possuindo, embora
emana noúres e é perceptível como noúres, no meu mais eleva- veladamente. Assim se conseguiu dar expressão, sensorial-
do nível de consciência. Neste plano, todo o universo se trans- mente acessível, à realidade abstrata do superconcebível, tra-
forma em noúres. Desse meu estado psíquico e dimensão con- zendo-a para o nosso mundo ao revesti-la de um invólucro
ceptual que, na profundeza, sente a essência além da forma das que a torna tangível. Eu destruo essa redução, subindo a cor-
coisas, percebo efetivamente o universo em sua superior dimen- rente em direção oposta, e esse esforço visa a lançar por terra
são psíquica, que lhe é própria na escada das fases evolutivas. os véus e superar os símbolos, para restituir à luz da compre-
Basta esta minha mutação de consciência para alterar e deslocar ensão a verdade, que neles teve de ocultar-se por exigência
toda a gama de minhas ressonâncias interiores, para me fazer da psicologia humana involuída. Vimos, desse modo, o con-
perceber o universo qual é em sua fase superior. A evolução, teúdo científico do conceito da Trindade.
que passa do plano físico ao dinâmico e ao psíquico, transforma No mundo dos fenômenos histórico-sociais, enxergo,
todo o universo num psiquismo, e em psiquismo ele se torna, atrás dos acontecimentos, a sutil trama em que se tece a
como sua real e nova forma de ser, desde que nessa nova dimen- causalidade projetada na direção do efeito, vejo o progredir
são eu saiba apresentar-me conscientemente. Eis então o que de um conceito até à meta, vejo o fio que sustém como um
significa dizer que todo o universo se transforma em noúres. É colar a série dos episódios e o desenvolvimento lógico que
que, realmente, então, tudo que existe exala pensamento, e assim guia o curso do fenômeno histórico.
eu sinto o universo nestes meus estados medianímicos, como um No mundo da matéria inorgânica, sinto o redemoinhar inte-
possante organismo conceptual. A verdadeira grande noúre a rior dos átomos, suas atrações e repulsões, seus amplexos por
que me aferro e que registro é a emanação harmônica e orgânica afinidade, o dinamismo de suas correntes elétricas, a combina-
do pensamento infinito de Deus. ção e a união de seus movimentos planetários em fusões que
Cai, então, naturalmente, o véu dos mistérios, e tudo ex- originam os diversos tipos das individuações químicas.
pressa a substância de seu ser numa espontânea revelação. Nes- Não adquiro conhecimento dos fenômenos por aquisições
sas minhas superelevações de dimensão de consciência, tenho a culturais particulares e numerosas, através do método comum,
visão, nas profundezas de um abismo infinito, desse centro que repete o saber dos outros; mas possuo um senso único de
conceptual. As dimensões gigantescas do fenômeno, a grandio- orientação que me abre o caminho da compreensão de todos os
sidade esmagadora do segundo termo comunicante, dariam uma fenômenos. Não compreendo como a ciência possa imaginar
sensação de vertigem a quem não houvesse atingido esses esta- que, por exemplo, contando cuidadosamente o número das fo-
dos, como eu, através de longos e lentos exercícios e de matu- lhas, observando-as e descrevendo-as, se possa chegar ao en-
ração biológica não se sabe quantas vezes milenária. É necessá- tendimento do princípio da vida das plantas; sinto a absoluta
rio, aqui, um equilíbrio mental não comum, porque posto a dura impotência sintética do método da observação. E, no entanto,
prova; e a objetividade e a minuciosa segurança com que me qualquer fenômeno, sem multiplicação de casos, traz escrito em
analiso demonstram quanto estamos, no caso, distanciados da si mesmo a sua lei; basta escutá-la.
consumação neurótica, tão frequentemente invocada pela ciên- O método experimental me dá a impressão da cegueira, que
cia como explicação de semelhantes fatos. precisa recorrer ao tato. Na profundeza das coisas existe, indis-
Sou, assim, lançado num mundo maravilhoso. Possuo, en- cutivelmente, um princípio que as governa; não busco esse
tão, uma nova vista, um feixe de sentidos novos e, sem órgãos princípio penosamente, pelos longos e laboriosos caminhos da
físicos, um poder de percepção anímica direta, supersensória. análise e da hipótese, mas o alcanço por percepção direta, atra-
Assim se explica a necessidade daquela espécie de transe que vés de um meu sentido da verdade, um novo sentido de orien-
me livra da presença ativa dos sentidos físicos, a fim de que tação conceptual, que sintetiza e supera todos os outros. Avan-
eles não me tornem a chamar à realidade sensória exterior, que ço, assim, por instinto, por contínua registração de totais, sem
não sabe falar-me senão da forma. Devo realizar, antes de tudo, distrair-me no particular; alcanço o conhecimento por deduções,
Pietro Ubaldi AS NOÚRES 145
descendo ao particular, desde os princípios que anteriormente Aludi, no início deste capítulo, às ótimas condições habitu-
havia percebido e que o contém por inteiro. Jamais tento a lon- ais de minha registração mediúnica. Isso não me impede de
ga via que sobe lentamente em direção oposta. Nunca vejo um sentir e registrar também em outros ambientes além de meu ga-
problema, ainda que mínimo, isolado, mas sempre relacionado binete, embora sua escolha tenha sempre importância capital,
com a organização de toda a fenomenologia universal e resol- porque meu ser recebe as vibrações de tudo que o circunda. Às
vido em relação a ela. Somente com este método se podia fazer vezes, aquele lampejar de conceitos explode imprevistamente,
uma síntese e encontrar a unidade. ou, também em meio ao estrépito psíquico, já tormentoso para
O uso deste método, a princípio intuitivo e depois dedutivo, mim, oferecido pela presença de pessoas heterogêneas, uma
é necessário hoje, como método sintético e unitário, para contra- inesperada e inadvertida sensação pode excitar a visão interior.
balançar a dispersão do conhecimento, a que chega logicamente, Minha psique já se habituou a essa audição pela qual afloram à
por sua natureza, o método indutivo. Se, com uma mudança ra- minha consciência concepções imprevistas, que me pareciam
dical de direção intelectual, não se reagir contra essa tendência, desconhecidas. E, mesmo agora, enquanto escrevo, surpreendo-
acentuar-se-á sempre mais o isolamento do saber humano na es- me com conceitos que me nascem inopinadamente, de modo
pecialização e na desorientação, em face das causas primeiras. que não conheço completamente determinado argumento senão
quando terminado o trabalho.
Este meu estudo encara os males congênitos da ciência mo-
Em ambientes inadaptados, a audição só pode ser desorde-
derna e se propõe saná-los. Já disse que evolução é unificação;
nada e fragmentária. Ambientes bem sintonizados são a mon-
e, se o tempo é o ritmo de uma evolução necessária, deve ele
tanha, o campo tranquilo e, sobretudo, a solidão dos bosques.
trazer necessariamente unificação. Não pode haver outra meta
As grandes árvores têm, no lento fluir de sua vida, algo de
nem outro futuro. É natural que, elevando-me eu evolutivamente tanta sabedoria e de tanto pensamento, que me guiam a uma
a superiores dimensões conceptuais, haja súbita e espontanea- atmosfera de meditação. A vida vegetal, talvez pela sua natu-
mente encontrado a unidade. O método da intuição é, portanto, o reza complementar da nossa vida animal, oferece uma sensa-
método unitário e sintético que deve dar um amanhã à ciência e ção de repouso e de pureza; a vida humana, principalmente
ao pensamento humano. Só assim se pode encontrar a unidade, nas grandes e rumorosas aglomerações, traz uma sensação de
aprendendo as relações entre os fenômenos aparentemente mais asfixia. Um ser da minha sensibilidade não pode deixar de
distanciados, mas que, apesar disso, se sentem e se influenciam sentir todas as emanações de cada ambiente. Cada coisa, cada
reciprocamente. O saber moderno se tornou tão gigantesco e ser tem uma voz que lhe é própria.
confuso, que há necessidade de uma reordenação, de um desfo- Sendo o fenômeno inspirativo de natureza vibratória, nele a
lhamento; a ideia múltipla do particular precisa ser reduzida à harmonização vibratória do ambiente é fundamental. Já expli-
ideia simples, central e sintética, que tudo diz mais brevemente; quei como preparo a interior harmonização conceptual, partin-
após haver criado tantas disciplinas, urge saber encontrar os li- do de uma primeira harmonização exterior, ótica e acústica, do
ames que as unam, agora que elas tendem a separar-se, a fim de ambiente, quando trabalho no meu gabinete.
fundi-las em uma verdade, que deve ser simples e única. São pe- No campo, tudo já é naturalmente harmônico, as formas, as
rigosas essas especializações, hoje tão em moda, mas que não cores, os sons; as luzes do dia se harmonizam no céu e na vege-
correspondem à realidade dos fenômenos, que nunca existem tação, e harmônico é o pensamento da vida, que, embora na lu-
isolados; são posições falsas essas, em que a mente do estudioso ta, é equilibrado pela convivência.
se afasta para uma ramificação última do mundo fenomênico e Todas essas harmonias são para mim caminhos musicais
do saber humano. Esse separatismo, se é utilitário, acaba fazen- que me elevam à prece e conduzem à concepção do bem. Por
do desaparecer também a visão exata do campo particular da es- isso nas igrejas há música e canto. Assim como nos teatros se
pecialização. É preciso permanecer sempre aderente ao tronco e faz caso das qualidades harmônicas de ressonância acústica, do
ver sempre tudo em função das grandes linhas centrais do orga- mesmo modo, nos ambientes de oração, que é fenômeno subs-
nismo universal. E pensar que estas linhas centrais, que servem tancialmente mediúnico, as qualidades de ressonância espiritual
de base ao conhecimento, a ciência ainda as procura e ainda pre- deveriam merecer cuidado, como de fundamental importância,
cisa encontrá-las! Em seu monismo, meu método sintético com- caso se deseje que o templo satisfaça sua função de elevar as
bate esta corrida hodierna para a dispersão conceptual. almas. Há igrejas espiritualmente mudas e, do ponto de vista da
De tudo se percebe como racionalmente eu controlo e domi- vibração psíquica, surdas e desarmônicas; e outras que, apesar
no meu transe. O acontecimento novo no mundo mediúnico do de humildes e despidas de adornos, têm suas paredes saturadas
das vibrações de fé que, durante séculos, as gerações entre elas
presente e do passado, creio que seja justamente este, de haver
geraram e projetaram. Minha audição psíquica sente imediata-
conduzido o transe a um estado de exatidão científica. No meu
mente essas ressonâncias, e minha alma responde a essas ema-
estado de imersão nas noúres, minha consciência permanece
nações que as antigas paredes me restituem, nelas infundidas
sempre presente; antes, duplamente presente, como mais pro-
pela alma das gerações que, junto delas, oraram durante sécu-
funda consciência, que implica uma capacidade de juízo superi-
los. E, nesses ambientes, consigo muitíssimo bem minha sinto-
or à normal. Estamos no extremo oposto da comum mediunida- nização mediúnica. Um dia a ciência registrará essas absorções
de intelectual passiva e inconsciente. No meu caso há uma in- vibratórias, essas emanações de estados de ânimo, essas corren-
tensificação de lucidez e potência conceptual, uma dinamização tes noúricas, que as paredes podem restituir e de que alguns
de atividade intelectiva, sendo assim que se deve e somente as- ambientes se acham saturados. Então, uma restauração artística
sim que se pode entender minha mediunidade. De outro modo, mais consciente evitará, embora conforme os critérios do olhar
não poderia nem sequer escrever estas páginas, porquanto nor- e do estilo, certas demolições irreparáveis, que destruam a at-
malmente recorro, oscilando entre os dois centros, a esta minha mosfera psíquica dos séculos, que pode ser vivíssima, inclusive
psique superior, que me permite atingir maior altura, apenas a em ambiente estilisticamente destoante. Essa atmosfera é a flor
dificuldade do problema me faça sentir a necessidade disso. mais delicada da fé, a mais evanescente, a beleza mais sutil de
Disse, de início, que minha mediunidade é progressiva. Sua um templo, seu maior valor espiritual.
evolução vai da forma menos consciente, qual era nas primeiras O problema das noúres é fundamental também nessas con-
Mensagens, à forma sempre mais consciente, qual se manifesta cepções de arte. E de outro modo não saberia explicar-me a mo-
na Síntese, que, por sua própria profundeza conceptual, implica derna e inconsciente idolatria pelo “300”12, como uma instintiva
um mais severo controle mental.
◘ ◘ ◘ 12
O “Trecento”, isto é o século XIV, a arte desse século (N. do T.).
146 AS NOÚRES Pietro Ubaldi
busca da alma faminta que pede às velhas paredes as vibrações de definir; e, um dia, a ciência as individuará em suas classifi-
de uma fé outrora poderosa e que hoje parece perdida para sem- cações morais, com registros e medidas exatas.
pre. De tudo isso se compreende que vacuidade espiritual repre- Em face de tudo isso, pode-se compreender quão tormento-
senta a mentira de certas modernas reconstruções em estilo. sos esforços a sociedade impõe a esses sensitivos, que, no en-
Em lugar algum a sinfonia é tão cacofônica como nas gran- tanto, devem dar gratuitamente, para que não se torne suspeito
des cidades modernas. Aqui, de perto ou longe, não pode aju- o fruto de suas vidas. Têm de permanecer no mundo de todos,
dar-me senão o círculo de simpatias, que, à semelhança do me- onde se deve ganhar com o trabalho o direito de viver; têm de
diúnico, estreita em torno de mim o anel da compreensão. No sofrer os choques proporcionados à sensibilidade normal, que
campo, a beleza da natureza representa uma harmonia imensa e são para eles esmagadores. Médium: ser sensibilíssimo e, por
espontânea, que guia à sensação direta do pensamento de Deus. isso, vulnerabilíssimo, o que quer dizer desgraçadíssimo. E este
Que ambiente mais harmônico que o da natureza, que em tudo é o verdadeiro e lento martírio que deve completar seu aposto-
está sintonizado com o pensamento divino? Que convite mais lado. É natural que a eles, que vivem projetados no futuro e que
doce e poderoso que a vibração em que se organiza o universo? veem quanto há ainda que progredir, o mundo humano apareça
Quando do íntimo dos seres e das coisas se eleva semelhante bárbaro, feroz, às vezes pavorosamente inconsciente.
emanação, a sintonização é fácil. Nas cidades, tudo isso é des- Entretanto, se o dever que nossa época impõe é o de ir ao
viado por mil barreiras, e a atmosfera espiritual que se despren- encontro do povo, este é também o seu primeiro dever, porque
de das massas humanas é baixa e suja, nela dominando senti- eles se encontram mais no alto. É preciso indicar e abrir os ca-
mentos de violência, avidez, egoísmo, depressão, sempre desa- minhos ativos da ascensão ao povo, porque este não sabe e se
gregantes, que roubam energia e impedem o fenômeno. A psi- atira por caminhos que encontra abertos.
que do sensitivo é, aí, mais intensamente prejudicada, porque se Não se pode imaginar que tenacidade de resistência, que
trata de vibrações de tipo humano, mais próximas, por sua natu- massa de inércia represente o homem médio, justamente o que
reza, do sujeito e, assim, mais tendentes a uma interferência que impõe as normas da vida social. É de se quebrar a cabeça a ba-
as outras dissonâncias da natureza, evolutivamente mais distan- ter contra essa massa bruta de psiquismo humano, tanto mais
tes, que são, de resto, absorvidas pela potência da ordem uni- tenaz quanto mais ignorante. Apesar disso, os tempos impõem
versal. Nas cidades, a presença de grosseiríssimas ondas- um nivelamento, que deve ser não por ascensão dos piores, mas
pensamento é imediata, invasiva; é um assalto de vibrações por descida dos melhores. Se essa imisção em massa nos direi-
ofensivas, de caráter inferior, equivalentes, quanto aos efeitos tos da vida é a grande obra de civilização moderna dos tempos,
na registração, aos distúrbios, aos ruídos parasitas e às distor-
desenvolvida em número mais que aprofundada em qualidade,
ções da audição radiofônica.
a favor de uma só classe aristocrática, compreende-se a espécie
A recepção inspirativa, para resultar pura, exige uma pureza
de holocausto, sobre o altar do número, que ela representa para
de ambiente, de ânimo, de objetivos. Eis porque é nela funda-
os tipos de exceção, que lutam sozinhos pela preparação de um
mental a purificação do médium, problema de que trataremos
distantíssimo futuro. Se a exceção não é levada em conta, pode
separadamente mais adiante. Toda vibração que fuja do estado
ter, no entanto, uma fundamental função biológica, espiritual e
de equilíbrio e de elevação moral age como perturbação, apare-
social. O sensitivo luta por cumpri-la no seio de uma atmosfera
cendo como mancha na registração e provocando distorção das
surda, luta por não se banalizar; por não descer, adaptando-se
imagens conceptuais. Elevando-se a natureza espiritual do mé-
por repouso; por não se mutilar no nivelamento. E, no entanto,
dium, torna-se mais difícil sua ressonância às vibrações baixas,
deve descer para promover a elevação do homem médio, a as-
tendentes a inquinar o fenômeno.
censão das classes espiritualmente mais baixas, embora ricas,
A presença de certas pessoas espiritualmente fétidas pode
representar para o sensitivo um intenso sofrimento. Quando, porque essa é a sua missão. É lei que o alto se incline para o
por necessidade social, ele é obrigado a viver em tais ambien- baixo. A fim de que o inferior se eleve, é preciso que o superior
tes, então sua alma não pode permanecer senão fechada em si desça, pelo mesmo princípio unificador de fraternidade, através
mesma, nunca se abrindo, só ocupada em defender-se. Não se do qual chegam ao sensitivo luzes e auxílios espirituais do Alto.
pode imaginar que condenação seja para ele o ser constrangido, Heroísmo trágico é esta descida, por que subverte as mais sa-
às vezes, a viver no seio de certas imundícies espirituais, onde gradas forças da alma, mas é simultaneamente ascensão, porque
ele sufoca, ao passo que outros respiram a plenos pulmões. Tu- envolve o auxílio das forças superiores. Contra essas descidas o
do é relativo e é questão de sensibilidade. espírito se rebela, entretanto deve ele abaixar-se para dar-se,
No caso de minha mediunidade, a natureza da onda psíquica deve esquecer a grande paixão do céu, para fundir-se na paixão
das noúres que me vêm ao encontro é de tal delicadeza, que se humana, feita de lama e de sangue, oferecendo ao homem igno-
ressente de todos os estados psíquicos do ambiente, ou, em ou- rante e sofredor uma centelha roubada ao céu na visão. Por isso,
tros termos, uma fonte de emanações psíquicas de caráter mo- embora seja julgado misantropo, orgulhoso ou louco, tem o di-
ralmente baixo tem o poder de deformar a própria onda. É pos- reito à solidão, para encontrar de novo o céu, para dele receber
sível obter-se o isolamento, mas à custa de reações, isto é, esta- novas forças, para reunir-se às hierarquias dos seres superiores
belecendo um estado reativo que representa para o médium um que descem em cooperação.
grande dispêndio de energias, com prejuízo para a registração A delicadeza íntima do fenômeno inspirativo, a presença
que delas necessita Qualquer ruído, qualquer desequilíbrio de ativa nele (ambiente e sujeito) de fatores que, como a moral,
sintonização, a mínima perturbação de qualquer natureza, so- que a ciência sistematicamente ignora, a característica do fe-
bretudo se imprevista e repentina, faz precipitar a tensão nervo- nômeno consciente (como médium ou noúres), de fenômeno
sa, às vezes dolorosamente, destruindo a visão com o imediato progressivo, como superior fase de evolução biológica, em cuja
reaparecimento do mundo sensório. elaboração colaboram fatores como espiritualidade e dor, tudo
Estas afirmações têm uma importância mais ampla que a re- isso define o fenômeno como um tipo a que não são aplicáveis
ferente ao fenômeno que estudamos, porquanto nos abrem hori- os habituais critérios de observação e experimentação, que po-
zontes novos no campo da ética, dando-nos dela não mais so- dem ser ótimos para outros fenômenos. Não se pode sujeitar
mente uma concepção filosófica ou religiosa, mas uma concep- aos preconceitos da ciência um fenômeno que, nos seus resul-
ção científica, isto é, de quantidades avaliáveis como um estado tados, a domina. Ele não responde ao comando da vontade hu-
cinético-vibratório da psique humana, que o médium sente qual mana que objetive uma experiência. Em face de uma imposição
centro constantemente irradiante de noúres, de correntes que po- exterior, ele se fecha e se desfaz.
Pietro Ubaldi AS NOÚRES 147
O fenômeno está em relação com impulsos e fatores deter- médium. Trata-se de uma nova e sutilíssima química do futuro,
minantes completamente diferentes, tais como uma missão de em que se combinarão em novas harmonias ou dissonâncias os
bem ou uma excepcional necessidade do momento histórico, elementos de novíssimas e progressivas sinfonias fenomênicas.
que justifique a intervenção de forças no caminho evolutivo da Se a ciência não souber evoluir e transformar seus métodos,
humanidade, porquanto não se determina à vontade o tipo que a premissas e conceito diretivo, jamais atingirá tais fenômenos.
evolução lança à ribalta da vida. O fenômeno supera, em seus Destrui-los-á, contorcê-los-á, sem compreendê-los. Essa per-
elementos determinantes e em suas finalidades, toda a psicolo- cepção inspirativa deve ser entendida como uma prece, pois
gia da observação e da experimentação, toda a forma mental implica uma elevação espiritual, que segue a linha das forças
oferecida pela psicologia científica dos tempos atuais. Nesses boas do universo, isto é, positivas e criativas.
fenômenos, a mentalidade da desconfiança, da dúvida precon- A visão da verdade é uma ascensão do espírito para a uni-
cebida, que é a base da seriedade científica, pode ter poderes dade. A pesquisa científica, nesse nível, é oração, é religião, é
inibitórios sobre o fenômeno e estorvar sua verificação. santidade e não pode prosseguir a não ser sintonizando-se com
O fenômeno baseia-se na sintonização psíquica, e a mente a harmonia do universo; e isso porque, a certo ponto, a verdade
do observador, se não afasta com suas emanações um objeto do e o bem se identificam e, sem o bem, a verdade não acede ao
microscópio nem influencia um fenômeno físico ou químico, conhecimento, escondendo-se à investigação humana.
pode paralisar, todavia, o funcionamento de um fenômeno psí-
quico. O fenômeno tem suas defesas e se retira em face da III. O SUJEITO
ameaça à sua vitalidade, e a ciência, então, não consegue a ob-
servação, mas sim sua destruição. Já observamos as características fundamentais do fenôme-
Um mínimo choque pode desagregar esses fenômenos deli- no inspirativo, movimentando-se em seu ambiente tal qual eu o
cados, de um psiquismo que, abandonando os velhos caminhos vivi. Dado que coisa alguma sucede na natureza de modo abs-
tradicionais, se aventura, num voo, por rotas supersensórias. E, trato, mas sempre individuada num caso particular da realidade
no entanto, devem realizar-se no mundo psíquico humano, que concreta, não se pode prescindir do sujeito, entendido como
muitas vezes pode ser a mais rebelde e imprópria atmosfera. organismo físico e psíquico, instrumento através do qual o fe-
Basta o estado de ânimo da dúvida para determinar uma corren- nômeno se verifica.
te negativa demolidora, ao passo que a fé, qualidade antiobjeti- De início, importa particularizar para não fugir à verdade.
va por excelência, tem a máxima força criadora. Donde se con- Somente depois poderemos generalizar. É por isso que não iso-
clui que a psicologia de desconfiança, que a ciência emprega lo o fenômeno, separando-o da forma concreta de seu ambiente.
por sentido de objetividade, como maior garantia de seriedade, E esse conhecimento tenho o dever de oferecê-lo, eu, que mais
possui, pelo menos sobre os fenômenos que estudamos, poderes imediatamente o sinto e possuo, pois os outros só poderão obtê-
destrutivos. O observador se encontra no ambiente e também lo por vias mais remotas e indiretas.
ele é gerador de noúres. E importa que se encontre num estado Falei a respeito de ciência. Ora, a verdadeira ciência não po-
de confiança, de fé, que atraia, que abra o caminho, aquecendo de ser um fato exterior, mecânico, adaptável a todos, como habi-
o ambiente, dando oxigênio ao invés de absorvê-lo. É necessá- tualmente acontece hoje; é, pelo contrário, uma qualidade interi-
ria essa vibração positiva de simpatia, sintonizada, modulada or, um profundo estado de pensamento, em que se deve trans-
em uníssono, apta a ser fundida e somada, fator de crescimento formar toda a personalidade. Ela deve mudar a concepção e o
em aliança com as correntes do fenômeno, e não a vibração dis- regime de vida, o modo de sentir e de agir. É algo imensamente
sonante da dúvida, da má-fé, que subtrai energia ao fenômeno e diverso do verniz cultural que, atualmente, com universidades e
o lança contra uma corrente deformadora. láureas, se pode aplicar sobre a epiderme de todos e que nada
Importa que o observador faça um severo exame de suas vale, pois, substancialmente, nada modifica; se um indivíduo é
qualidades psíquicas, porque estas pesam sobre o fenômeno. É um selvagem, continua perfeitamente um selvagem. É um me-
indispensável, coisa inaudita, que ele limpe moralmente sua canismo exterior utilitário. A verdadeira ciência, porém, é uma
alma e a do ambiente, como tem cuidado em manter limpa a realidade profunda, completa, uma reviravolta de alma, uma re-
mesa das experiências químicas, a fim de que uma substância ligião e uma fé, em face da qual ninguém pode sorrir com ceti-
estranha, entremetida em suas combinações químicas, não lhes cismo nem permanecer agnóstico. A verdadeira ciência é apos-
altere o desenvolvimento. No campo psíquico, um estado de tolado e martírio e não pode nascer da psicologia do lucro.
ânimo presente no ambiente é um elemento que se introduz na Tudo isso tive eu de viver para levar a bom termo minha
combinação que se estuda e, por isso, tem ele importância. E, obra. Se não realizei o esforço de uma preparação cultural no
assim como uma operação cirúrgica pode representar graves pe- sentido comum, tive de realizar outro, muito maior, de mudar
rigos, se realizada em ambiente contaminado por micróbios pa- minha própria personalidade espiritualmente, até ao ponto de
togênicos, do mesmo modo é necessária, em nosso campo, a es- poder atingir e tocar as fontes do pensamento. Os cursos cultu-
terilização psíquica do ambiente. O mundo psíquico tem seus rais eu os realizei dentro de mim mesmo, sozinho, face a face
parasitas, seus micróbios patogênicos, suas correntes de vida ou com o mistério, guiado pelas leis biológicas, sustentado pelas
de morte, às quais está exposto plenamente o sensitivo quando, gigantescas forças do imponderável. Não creio nas verificações
alijados os invólucros, se abandona à inspiração, com a alma humanas. Creio num outro tipo de saber, em que é preciso ser,
desnuda. Ele é um organismo vivo, vulnerabilíssimo em sua de- mais que parecer, e que serve para a eternidade. Creio numa ou-
licadeza, e o mínimo choque psíquico, de que o mundo está tra sabedoria, em que se movimentam as forças da vida e que
cheio, constitui para ele uma ameaça e um perigo. Na vida nunca pode mentir, porque foi conquistada, a sangrar, na dor. A
normal, sua sensibilidade é protegida por um manto voluntário força do conhecimento só é dada a quem muito tem sofrido di-
de indiferença, mas, nesses momentos, a flor, para assenhorear- ante de Deus. Certas expressões de fé absoluta, certas frases
se da luz, deve abrir-se até às mais íntimas corolas. audazes que arrastam, é preciso haver conquistado em face da
Quem não sabe avaliar esses fatores e manejar com prudên- eternidade o direito de pronunciá-las. Só quem segue o cami-
cia essas realísticas forças imponderáveis, quem não se encon- nho da cruz adquire o direito de julgar.
tra provido de adequada sensibilidade e não possui a finura Atrás de minha produção ultrafânica, como certamente
psíquica apropriada, deve abster-se de intervir nesses fenôme- acontece com outros hipersensitivos, se desenvolve toda a his-
nos, porquanto não só os deforma ou destrói, como ainda pode tória de minha vida eterna, que explode nesta culminância; aí
vibrar dolorosos e prejudiciais golpes contra a sensibilidade do se desenrola todo um drama apocalíptico, em que todas as forças
148 AS NOÚRES Pietro Ubaldi
do bem e do mal se desencadearam em torno de mim, lançan- cer. Foi uma exaustiva guerra de trincheira. Ao mesmo tempo
do-se sobre minha alma para dilacerá-la e sublimá-la. Atraves- em que me abandonava ao êxtase dos místicos para a ascensão,
sei sozinho o ilimitado deserto da desesperação, sem a compre- controlava as posições racionalmente, com objetividade cientí-
ensão de ninguém; na louca dança dos egoísmos, ninguém ja- fica, para consolidar as bases. Não se consegue o voo senão
mais soube oferecer um gesto de amor ao meu ser quebrantado. através de longas experiências, em que se deve conquistar uma
Agora, porém, já venci. Não mais necessito da compreensão da complexa técnica. Relatei, em termos científicos, os caminhos
Terra, porque já me chegou a do Céu. Deixo aqui a expressão das ascensões espirituais dos místicos. E tudo isso não foi senão
de orgulho, tal como me escapou, humanamente, no primeiro um dos aspectos do meu sofrimento.
ímpeto, a fim de que minha alma apareça nua, inclusive em sua Sobre todas essas coisas devo falar porque esclarece minha
imperfeição. E agora me inclino, humilhado por tanta felicida- inspiração, porque esse doloroso esforço de desprendimento da
de; inclino-me ante meus irmãos da Terra, porque todos deve- natureza humana inferior, que fui deixando atrás de mim, san-
mos iniciar e percorrer o longo caminho. grando, aos pedaços, ao longo do caminho de minha vida, foi a
Eis aqui o sujeito. Minha produção intelectual é a explosão condição daquela inspiração, preparou-a e explica-a. Assim, de-
da minha paixão de bem, constrangida num organismo científi- fino seu tipo como um estado de hiperestesia nervosa e super-
co, a fim de que se impusesse, assim, à racionalidade humana. psiquismo intelectual, atingidos através das vias normais que
Fazer o bem é a mais difícil das tarefas, e eu a desejei em continuam a evolução orgânica darwiniana. Foi através desse
grande escala, um bem nascido de meu tormento e que agora esforço de triunfos biológicos que consegui a transformação de
caminhará por si mesmo. Esta é a reação de meu sofrimento: o minha consciência numa superior dimensão conceptual, que me
perdão de Cristo. É esta a ideia gigantesca que, na minha permite a visão, o uso do novo método de pesquisa por intuição
obra, se vestiu de fórmulas e conceitos; esta a paixão que se e a captação de noúres, que estão no centro deste estudo.
prendeu numa vestidura racional, da qual se rompe, todavia, Expus as relações entre o desenvolvimento espiritual, a as-
dando asas ao escrito. Eis em que se transforma a necessidade censão moral e meu tipo de mediunidade num meu artigo:
de amar quando a alma se identifica com as correntes espiri- “Selbsbeobachtete Medialitat – Geistige Entwicklung und sittli-
tuais da inspiração. cher Aufstieg ais Faktoren einer hohen Medialitat”13. Apareceu
Falei a respeito de sofrimento. De que espécie? Físico e mo- na “Zeitschrift fúr Metapsychische Forschung”14, dirigida por
ral, simultaneamente. Para compreender minha personalidade, Schroder, de Berlim.
importa haver assimilado os conceitos expostos em A Grande Ora, esta chamada mediunidade não é senão a progressiva
Síntese como conclusões no campo da evolução individual e realização de meu desenvolvimento intelectual, alcançado não
especialmente os seguintes: “As sendas da evolução humana”, por vias culturais exteriores, mas por sensibilização, obtida
“A lei do trabalho”, “O problema da renuncia”, “A função da através da purificação moral e orgânica de todo o meu ser físico
dor”, “A evolução do amor”, “Psiquismo e degradação biológi- e psíquico. Se, como já disse, qualquer emanação barôntica in-
ca”. Não os repito. Esses conceitos eu os vivi todos. O ponto de quinasse o fenômeno, eu tinha, antes de tudo, de eliminar em
vista com o qual a ciência materialista lança ao patológico esses meu organismo a gênese de tais vibrações; devia distanciar-me
tipos de personalidade foi por mim destruído completamente. O evolutivamente delas, evitando correspondência, isto é, não en-
sofrimento me vem do esforço de realizar minha evolução espi- trando em ressonância com tais ondas, mas, pelo contrário, es-
ritual, fundido como me encontro num organismo animal que tabelecendo ressonância com ondas moral e conceitualmente
me arrasta para baixo, constrangido a um trabalho que me in- superiores. Como se vê, chego à conclusão, coisa que a ciência
clina para baixo, localizado numa atmosfera humana que me ignora, de que a verdadeira cultura é um fato também de caráter
atrai para baixo. Verdadeiramente, o espírito possui uma força moral; que as portas do conhecimento só se abrem a quem se
titânica para poder realizar seu trabalho em tais condições. No haja tornado digno dele, dando garantias do bom uso que dele
meu esforço, conheci horas turvas e horas de derrota. Os impul- fará. Portanto, como essas vitórias biológicas da ascensão mo-
sos biológicos do passado são forças reais, que reagem e se lan- ral não se conseguem senão através dum combate titânico con-
çam contra quem queira esmagá-las. Em mim, o espírito, prin- tra as resistências do misoneísmo atávico, senão quando o espí-
cípio positivo, ativo, que sempre dá gratuitamente, viril na luta, rito, num incêndio, se empenha na luta contra as atuais leis bio-
escolheu o maior inimigo – as forças da vida – das quais os lógicas, o fenômeno da inspiração está intimamente condicio-
homens não são senão os executores inconscientes (instintos), e nado àquele doloroso esforço de libertação. Eis porque tive ne-
quis impor-se à matéria, ao passado sobrevivente na animalida- cessidade de falar sobre dor. É justo, é lógico e cientificamente
de, o princípio negativo, passivo, que sempre requer uma com- equilibrado que a maior potência e felicidade que a evolução
pensação utilitária. Não pode pretender ensinar aos outros quem confira, deva ser ganha e compensada pelo esforço da conquis-
nem ao menos experimentou primeiramente quão difícil é cons- ta. Tive de falar sobre o sofrimento porque ele é condição de
truir-se a si mesmo. Esse esforço, realizado nas profundezas de ascensão espiritual, condição da inspiração, que para mim não
minha natureza humana, nas raízes dos instintos primordiais, foi dom gratuito. Por isso este livro sobre as noúres, como
torna indispensável uma tenacidade, um equilíbrio, uma lucidez qualquer arrazoado meu sobre mediunidade, deve ser também o
que se mantêm somente à custa de uma tensão e uma presença livro e o discurso da ascensão moral, da purificação espiritual.
de espírito intensos e constantes. Imagina o leitor que significa Se algures15 coloquei a dor como base da evolução (reden-
ter por antagonista as forças biológicas? Quem vive de instintos ção), aqui devo acrescentar que a dor também está posta como
e não discute a própria natureza humana, quem vive de acordo base da mediunidade inspirativa. Quantos novos fatores, es-
com os impulsos milenários e se deixa arrastar pela corrente, tranhos e sutis, devemos considerar, fatores do destino, que
não pode imaginá-lo. Eu sou, porém, um revolucionário e um não se determinam à vontade, que não existem nos gabinetes
rebelde, e todas as forças atávicas se encarniçam em torno do de experimentação!
violador que quer superá-las. Tenho vivido dias de tempestades Para poder avançar na investigação científica e ver no ín-
em que todos os vendavais do universo pareciam agredir-me. O timo das coisas, é indispensável a sutilização do instrumento de
bem e o mal são forças reais, e, na minha hipersensibilidade,
pude medir-lhes todo o ímpeto. Agonizei em poder de correntes 13
“Auto-observação da Mediunidade” – Desenvolvimento espiritual e as-
barônticas que desejavam estrangular-me. Disputei e defendi, censão moral como fatores de uma mediunidade mais elevada (N. do T.).
palmo a palmo, minha estrada, calculando o assalto e a resis- 14
Revista de Pesquisas Metapsíquicas (N. do T.).
15
tência, com a estratégia consciente de quem quer dominar e ven- A Grande Síntese, Cap. 81, “A função da dor” (N. do T.).
Pietro Ubaldi AS NOÚRES 149
pesquisa: a consciência. É necessário, portanto, introduzir na o seu combate. Ele tem o conhecimento e se move num oceano
ciência, se quisermos avançar, não mais apenas microscópios e de luz. Embora a agressividade humana estampe em sua alma a
telescópios, raios e instrumentos, mas bondade de vida e retidão derrota de uma hora, ele sente e atrai as forças do universo, tem
de intenções, como correntes positivas que pesam sobre o fe- o poder da sinceridade, da verdade, da justiça, luta por um prin-
nômeno. No meu caso, a relação entre o fator lucidez inspirati- cípio, por um ideal, e aquelas forças se insurgem como por uma
va e o fator pureza moral é tão íntima, que eu poderia traçar um violação de si mesmas e do principio divino que as governa,
diagrama para assinalar-lhe o desenvolvimento paralelo; um re- quando quem fala em nome do bem é esmagado. Quem atirou
trocesso moral é imediatamente seguido de uma turvação de vi- para longe de si as armas da luta humana, apodera-se de outras,
são intelectual. Profundidade de visão e pureza de registração mais sutis e poderosas, para uma luta mais digna.
não se obtém senão impulsionando sempre mais para as pro- Meu sofrimento provém do fato de o espírito, atingido cer-
fundezas do ser o processo de purificação, justamente para ou- to nível, não saber e não poder mais adaptar-se a viver no cár-
torgar-lhe a capacidade de ressonância e de sintonização, por cere sensório do organismo corporal. Quer evadir-se a cada
afinidade, com as noúres mais puras, mais profundas e, por is- instante de sua prisão, a prisão do ambiente terrestre. É trágico
so, mais poderosas, mais próximas do centro espiritual do uni- ouvir o cântico da grande pátria distante, invocá-la da terra do
verso. Por isso falei, com referência ao meu caso, de mediuni- exílio e não poder atingi-la. É um contraste maravilhoso e sá-
dade progressiva, sujeita a um normal processo evolutivo. Po- bio de forças, em que o espírito é constrangido a curvar sua
deria usar a terminologia mística e religiosa, que para mim é potência sobre a matéria para sacudi-la, animá-la, atraí-la con-
equivalente à científica; esta, porém, é mais apropriada a preci- sigo para o alto, já que não pode desprender-se dela e abando-
sar e melhor corresponde à mentalidade hodierna. Somente ná-la. Só esse ambiente denso oferece a resistência necessária
agora, após estas últimas observações, é possível compreender para fazer dela um campo de exercícios. Eis porque se nasce
plenamente a história do meu caso, exposto de início. neste mundo, com um incêndio dentro da alma. Esta deve, en-
Esse sofrimento meu não é, portanto, patológico; sua nor- tão, aquietar seu impulso, estudar o ambiente, analisar-se, ca-
malidade é compreensível e justificada pelas condições parti- nalizar suas forças para uma produtividade real. E, nessa com-
culares que atravessa minha personalidade, não equilibrada pressão de impulso, o espírito se fortalece, se concentra, e a
como a da mediania num ambiente de forças proporcionadas, alma, repelida para dentro de si mesma por um exterior que
mas lançada numa fase em que esse equilíbrio sofre desvios não a sacia porque não lhe corresponde, parece encontrar nessa
violentos pela introdução, no campo dinâmico de minha vida, compressão a força para descer às profundezas, profundezas
de novos impulsos. estas cada vez maiores, e aí, nas grandes fontes da vida, adqui-
Para compreender meu caso, importa compreender a mim rir potência. Então, e só então, quando se é assim pela divina
e a esses problemas, o que não é, pois, uma questão ociosa. sabedoria introduzido nesse encaixe, retoma-se à força, com a
Desequilíbrio, portanto? – perguntar-se-á. Mas ele é o primei- energia do desespero, o caminho da própria evolução biológica
ro desequilíbrio do voo que já se equilibrou num equilíbrio e continua-se a via das ascensões espirituais.
mais dinâmico e mais ágil; é ele um desequilíbrio que, ainda A sabedoria que criou no passado novos órgãos e organis-
no período de formação, foi por mim guiado, a fim de condu- mos, novos instintos e novas disposições psíquicas, obedeceu a
zi-lo a estes resultados, e cerceado nos limites de uma intensa essa mesma lei de necessidade de expansão pela compressão,
produtividade. Sempre dominei esse desencadear de forças, necessidade de vida ou de morte. A evolução é uma força irre-
para que não me desorientasse, e a pseudoneurose caiu sub- freável, e, quando se chega a uma encruzilhada – na época pale-
missa a meus pés; isso significa um equilíbrio e uma potência ontológica ou, como atualmente, na fase da evolução psíquica –
mais que normais. E, daquela destruição de animalidade, que é indispensável escolher: ou avançar ou morrer. Eu tive de avan-
decepa egoísmos, voracidades e paixões, renasci numa vida çar. Muitos, quando chegar sua hora, deverão fazer o mesmo.
maior, numa juventude de espírito que jamais perece. Essa foi Tudo isso serve para fazer compreender porque, como base
minha conquista maior, minha redenção, como Cristo nos in- da minha mediunidade, eu coloco, na condição de fundamentais,
dicou, atingida na cruz, através da dor. E Ele, primeiramente, o caráter de normalidade, enquanto é fenômeno biológico, e o de
obedeceu à Lei, para nos mostrar que, até para Ele, há neces- progressividade, enquanto é evolução moral. A desarmonia entre
sidade de segui-la e como ela é sentida tanto mais inviolável o hipertrófico desenvolvimento psíquico e o funcionamento or-
quanto mais alto se sobe na harmonia da ordem divina. Estes gânico, necessariamente levado à atrofia por progressivas redu-
conceitos a ciência não pode compreender, mas se encontram, ções, traz consigo um contínuo e sutil sofrimento nervoso, não
não obstante, nas bases da evolução humana. localizado, difuso, mas intenso e incessante, como uma verda-
“Se ascendemos aos mais altos níveis – diz uma registração deira sensação da vida. Por isso a alegria de viver se transferiu
minha – parece que a velha forma biológica que se atrofia não inteiramente para o centro psíquico do espírito. O processo de
mais pode suportar o psiquismo hipertrófico, e surgem desequi- purificação é tão completo e profundo, que atinge também as ín-
líbrios aparentes, que a ciência, não sabendo compreendê-los, timas camadas do metabolismo orgânico. Esse processo de re-
classifica de patológicos, fazendo-os ingressar nas formas da novação interior, que cria funções novas, dá uma sensação de
neurose”. Fixemos nossa atenção, pois, a fim de não nos enga- agonia à vida no nível físico, porque se realiza nas profundezas
narmos, observando superficialmente e baseando-nos em ape- do ser; trata-se de uma mudança substancial de formas e de exis-
nas qualquer sintoma; não confundamos, tão levianamente, o tência; desce até tocar os íntimos movimentos eletrônicos dos
patológico com o supranormal, colocando ambos igualmente átomos e os motos vorticosos que os unem na química celular; é
fora da lei que, só porque é da maioria, é considerada verdadei- verdadeiramente uma transmutação de órgãos e substâncias em
ra. Não elevemos, com essa adoração do tipo médio, um mo- outras, de diversa composição química e diferente orientação
numento à mediocridade humana; aprendamos, finalmente, a atômica. A substância muda de forma no curso da evolução; é
vibrar numa paixão mais elevada, que não seja a do eterno co- atingida até a alma de sua estrutura cinética. Esta não é apenas
mer e reproduzir-se, orgulhar-se e enriquecer; quebremos de purificação e esforço moral, mas também purificação e esforço
uma vez o ciclo em que se repete sempre a animalidade huma- orgânico, que penetra no campo da medicina.
na! Outra, porém, é a realidade. Cada forma de vida elabora, Nesses hipersensitivos, a vida orgânica não mais tolera o
apenas nascida, suas defesas; e quem abandonou, no caminho grosseiro e violento ciclo vegetativo da vida dos antepassados;
do perdão e do amor, nas pegadas de Cristo, seus ataques e de- paralela a essa hipertrofia de psiquismo, verifica-se uma inadap-
fesas não está por isso desarmado e sabe, igualmente, combater tabilidade, não só moral, aos sentimentos dos instintos animais
150 AS NOÚRES Pietro Ubaldi
humanos, senão também física, a um funcionamento vital indo- em especial o alimento, diretamente em circulação. Uma subs-
lente, dificultoso, absorvente de muita energia, qual o da assimi- tância dissonante continua emitindo sua voz, sua radiação caco-
lação intestinal, o da respiração, o da circulação sanguínea. fônica, enquanto dela permanecerem traços no organismo.
A certo momento da evolução, tudo isso pesa demasiada- Como já falei, quanto à verificação do fenômeno, a respeito
mente, tornando-se não mais um veículo de vida, mas uma es- de esterilização psíquica do ambiente, aqui estou falando sobre
torvante massa que o espírito assaz sutilizado não mais pode ar- purificação celular. E esta deve ser não um fato momentâneo,
rastar, a cujo nível ele não mais sabe descer. mas um método dietético constante, um verdadeiro regime de
A evolução sempre forneceu exemplos da criação de fun- vida. Chega-se, assim, por esta via, a tal grau de sintonização
ções novas. Por que deveria deter-se agora? Pode algo estaci- com a harmonia universal, que já não é lícito violá-la senão à
onar no universo? E, se evolução é ascensão, onde poderá ha- custa de graves sofrimentos, inclusive no campo moral, feito de
ver criação agora, senão no campo psíquico? Isso é absoluta- sutis vibrações e atitudes de espírito. Sente-se, então, a culpa
mente científico, é a continuação, que importa ver, da ciência não como vantagem, mas como dor.
que todos aceitam. Pureza! Eis ampliado até ao campo da medicina o sistema
A medicina fala de atrofias deste e daquele órgão, desen- dos místicos. O alimento jamais foi considerado um amigo dos
volvidos nos antepassados e que agora tendem a desaparecer, místicos, que viviam sempre entre jejuns. A quantidade pesa. O
porque, não mais alimentados pelo uso, lentamente foram pos- cérebro deve servir a outras funções, atraindo para si a circula-
tos fora do ciclo do metabolismo orgânico. A função se desloca ção e a nutrição do sangue. O sistema nervoso não mais pode
ao longo da linha da evolução, à medida que o ser progride, descer ao serviço de uma laboriosa digestão acumuladora de
abandonando a forma de expressão do passado e plasmando gorduras. O místico é magro e desejaria ser transparente. E, no
novas. Para compreender isso, porém, importa haver entendido entanto, é dinâmico, é um contínuo lampejo de energia. Isso
que a evolução orgânica darwiniana não é senão o último efeito mostra que é cem vezes mais vivo e mais jovem. O longo e si-
sensível de uma evolução do psiquismo da vida, que, em pro- nuoso caminho intestinal, em que o alimento permanece até à
gressivas formas orgânicas, se tem expressado e se exprime. E putrefação, lhe traz inevitavelmente uma nota venenosa à sen-
ao se falar que, um dia, novos órgãos poderão atrofiar-se, isso sação orgânica da vida. Vencida a quantidade, importa atender
sucederá porque a atrofia terá primeiramente atingido o centro à qualidade, a fim de que o grosseiro sistema de reabastecimen-
psíquico, interrompendo, desse modo, a alimentação energética to dinâmico a que está ligado o psiquismo, dê o maior rendi-
do órgão interessado através das vias nervosas. A evolução or- mento com o menor prejuízo possível. Tóxico se torna, então,
gânica será sempre a forma exterior de uma evolução psíquica tudo que contêm álcool, as drogas, o fumo, os caldos, a carne
mais profunda, que dirige aquela, e qualquer desvio que esta (especialmente a que não é branca), tudo que é gostoso e exci-
determine nos órgãos só se verificará quando já houver realiza- tante ao paladar e não seja simples e puro produto da natureza.
do e estabilizado suas conquistas em planos mais elevados. As frutas, as verduras, o peixe, o leite fermentam menos. E, de-
Tudo isso devo afirmar porque faço de minha inspiração um pois, a vida ao ar livre, em contato direto com o sol e o ar, com
caso de evolução também orgânica. Não posso prescindir, no as grandes correntes da vida. É ao ar livre que se realiza a sin-
estudo do fenômeno da captação noúrica, do estudo do orga- tonização psíquica que registra as noúres, é aí que se processa
nismo em que o fenômeno se processa e das profundas muta- também a sintonização de todo o organismo com elas. Por isso
ções que nele, por isso, se verificam e devem verificar-se. Tudo o místico também deve ser um esportista ágil e dinâmico, seja
isso é e deve ser conexo; o meu método de intuição é uma supe- qual for a sua idade; resistente à neve, aos banhos, ao sol, ma-
relevação de consciência ao seu limite mais avançado, que se gro, bronzeado, sempre jovem de corpo e de espírito.
comunica com o outro extremo que, em mim, tende a desapare- A verdadeira saúde é um regime. A medicina hoje preponde-
cer, abandonado ao passado – a estrutura e o funcionamento do rante é um desvio de princípios por escopo utilitário. Acrescen-
meu organismo animal. Quanto mais avança o primeiro, mais tar ao recâmbio orgânico substâncias novas para corrigir exces-
reage sobre o segundo, modificando-o. O processo de sensibili- sos precedentes, adicionando uma ação violenta para corrigir a
zação espiritual tem ressonâncias nos mais baixos níveis do natural reação orgânica ao erro cometido anteriormente, é um
mundo orgânico, e a purificação moral, nos níveis elevados, se absurdo; seria necessário, ao invés disso, não fixar as causas ma-
completa, igualmente, pela imposição de uma purificação celu- léficas e, quando elas produzissem efeito, pelo menos não flage-
lar, isto é, de células e tecidos, à substância orgânica. É um fato lar ainda mais o organismo, e sim dar-lhe tempo para digeri-las.
que, com a alimentação, introduzimos substâncias químicas em É, porém, cômodo acreditar no milagre; além disso, os re-
nosso organismo, substâncias que depois o constituem. Para o médios se vendem, mas os conselhos sábios não se encontram
sensitivo, então, que tudo percebe como noúres, isto é, como à venda, e custa esforço segui-los. E desse modo se multipli-
correntes de emanação espiritual, certas substâncias, vistas em cam os prejuízos.
sua mais profunda essência, são instintivamente repelidas como Como principio geral, importa dar ao corpo o que lhe é ne-
intoleráveis. A grosseira estrutura normal resiste a muitos ve- cessário, bem como a uma máquina o seu alimento, o combus-
nenos, a que o sensitivo não pode resistir. Desloca-se a gama tível, e isso segundo o trabalho que se exige do organismo. Até
considerada média da tolerabilidade, e algumas substâncias do poucos anos, a maioria da humanidade só se ocupava em traba-
regime dietético comum se tornam superlativamente tóxicas. lhos físicos, por isso a carne lhe era necessária e as refeições
Tóxicas porque o organismo sensibilizado consegue perceber pantagruélicas à Luís XIV podiam ser seu sonho e sua necessi-
nas substâncias nutritivas emanações que, antes, não percebia; e dade fisiológica. A um tipo de homem, porém, que hoje se vai
quando ele houver introduzido em seu organismo aquelas subs- normalizando com funções preponderantemente nervosas e psí-
tâncias impróprias, será torturado por aquelas emanações, du- quicas, aquele sistema é tóxico e, no meu caso, insuportável.
rante seu longo ciclo, que não termina senão com sua elimina- Quando o trabalho da vida é quase exclusivamente psíquico, a
ção final, através do metabolismo orgânico. Daí a necessidade alimentação deve ser adequada. Isso é lógico. E direi mais. Dia
de observar atentamente os alimentos, pois, pelo mínimo erro, por dia, conforme o trabalho a realizar, físico ou psíquico, a
surge uma fonte de novos sofrimentos, além do perigo contínuo quantidade e a qualidade da alimentação devem mudar, propor-
de prejudicar-se a capacidade receptiva das noúres. O organis- cionalmente ao determinado trabalho. E se o trabalho é habitu-
mo do sensitivo é uma orquestra ressonante de correntes espi- almente sedentário e intelectual, o regime dietético deve ser
rituais, e, no concerto, nada se pode introduzir de heterogêneo, também habitualmente vegetariano.
Pietro Ubaldi AS NOÚRES 151
Assim, a espiritualidade se completa nos baixos níveis da da humana possibilidade de ascensão. Se a recepção noúrica é
evolução orgânica e sobre esta reage, dando também ao orga- fenômeno de elevação humana às altas esferas do superconcebí-
nismo físico suas qualidades de juventude perene. vel, a que tensão do ser, a que vertigem de altura, a que vértice
A causa da vida, o seu motor, é o espírito. Quanto mais se é de potência terá chegado a alma humana nesses casos! E como
espírito mais se domina a decadência senil e se sente que a se torna pequenina e inadequada a ciência, com sua análise, em
morte não mata. Envelhece-se, então, na direção de uma juven- face desses fenômenos que governam a história do mundo!
tude que é plena de força, porque é festa de espírito. Diante dos grandes inspirados, desses gigantes que se mo-
Envelheço e não morro, morrerei e viverei: sublime expe- veram numa atmosfera de pensamento titânico, em face da po-
riência! tência dessas forças vivas do espírito que descem à Terra para
fundir-se na história, para dar o sopro da vida às civilizações e
IV. OS GRANDES INSPIRADOS orientar o progresso do mundo, diante das revelações que, por
contato espiritual direto, atingiram a verdade das fontes primei-
Realizei o exame de meu caso em seus mais salientes parti- ras do pensamento de Deus, em que se transforma a ciência,
culares. É chegado o momento de sair deste caso individual pa- com seus métodos exteriores, com seus preconceitos inibitórios,
ra remontar a uma visão mais vasta do fenômeno, observando com a incerteza de suas dúvidas e de suas hipóteses? Em que se
os casos de mediunidade inspirativa que a história nos oferece. converte, em face desses fenômenos que superam completa-
Semelhanças e pontos de contato permitir-me-ão estabelecer a mente o homem, a pobre ciência humana, perdida nos tortuosos
lei do fenômeno melhor que a observação de um só caso. caminhos da análise e que, no entanto, tudo quer julgar e apri-
No precedente estudo de anatomia psíquica, realizei a vivis- sionar na pequenina técnica de sua experimentação? A ciência,
secção de minha alma. Era isso necessário para a compreensão com seu método, encerrou-se em limites que ela própria traçou,
de meus escritos mediúnicos, dos quais o presente é o comple- constringindo-se na incompetência, nestes casos em que no fe-
mento e a continuação lógica. O meu caso mediúnico, porém, nômeno atuam fatores transcendentais.
se desenvolve sobre a perspectiva grandiosa de muitos casos Nesses casos, as noúres conduziram o homem a uma tão
maiores. Embora distanciados grandemente por importância grande altura ao longo das hierarquias que se elevam e con-
histórica e potência e não obstante as naturais diferenças dadas vergem para a Divindade, que o fenômeno já não se pode re-
pelo temperamento do médium, pela natureza particular das duzir a um conceito científico, porque se realiza fora do mun-
circunstâncias e pelo ambiente imposto ao seu trabalho, todos do e de sua ciência.
esses casos têm um fundo único, possuem notas características As religiões, que significam uma orientação dada pelo Alto
comuns, que renasceram também no meu caso menor. Isso cor- ao espírito humano, para guiá-lo no caminho de suas ascensões,
robora minhas afirmações e interpretações do fenômeno com a
são uma descida do espírito divino através das revelações. No
presente teoria das noúres.
fundo delas existe uma única religião, que caminha e na qual,
Muitas palavras têm sido usadas para defini-las: inspira-
adaptando-se à psicologia dos povos nas formas do tempo, a
ção, visão, êxtase, rapto dos sentidos, intuição, mediunidade,
ideia de Deus avança. Avança da Atlântida à Índia, ao Egito, à
o demônio, as musas, o espírito, a subconsciência, a super-
Grécia, ao monoteísmo da intuição de Moisés, imposto ao povo
consciência, etc.
de Israel, a fim de que conservasse a ideia até Cristo, que deve-
O misticismo, as religiões, o espiritismo, a filosofia, a arte,
ria continuá-la e fecundá-la no Seu Evangelho de amor.
a psicologia, cada atitude do pensamento humano criou sua ex-
pressão e observou de um ponto de vista particular o mesmo Todos os grandes criadores do pensamento humano atingi-
fenômeno. O místico, o santo, o profeta, o poeta, o artista, o he- ram por inspiração a mesma fonte única, expressando-a pro-
rói, o cientista, o inventor, ou, numa palavra, o gênio em todas gressivamente sempre mais perfeita: Krishna, Zoroastro, Her-
as suas formas, têm vivido igualmente aquele fenômeno. mes, Moisés, Buda, Orfeu, Pitágoras, até Cristo, que supera to-
É um fenômeno próprio dos grandes avançados na evolu- dos. A verdade é uma só. As aproximações humanas é que são
ção, da qual o gênio não é senão o antecipador que agita o ar- diversas, sucessivas, proporcionadas ao progressivo desenvol-
chote do espírito no seio de uma triste normalidade. O fenôme- vimento da evolução psíquica do homem.
no é tão universal e antigo quanto o homem; mais ainda, foi Eis porque a ideia de Deus, em sua essência, é um super-
justamente na Antiguidade que ele foi mais reverenciado, concebível. O homem deve limitá-la para reduzi-la ao seu con-
quando o conhecimento se atingia diretamente por revelação e cebível, que é para ele a única medida que pode, em seu relati-
o método intuitivo e dedutivo, que a racionalidade moderna não vo, assinalar-lhe os limites. Esse relativo, porém, se dilata por
mais sabe usar, era muitas vezes o único método de pesquisa evolução do sujeito humano, e aquela ideia, portanto, se amplia
para a solução dos problemas e a conquista do saber. A alma paralelamente. Desse modo, a evolução da ideia de Deus é pa-
humana, então mais virgem, parecia mais próxima das origens, ralela à evolução humana. O Deus do poder e da vingança, de
podendo atingi-las diretamente. Hoje, o pensamento se encontra Moisés, torna-se o Deus cristão do amor e do perdão e tornar-
decaído, havendo-se precipitado profundamente na racionalida- se-á o Deus científico da sabedoria; o Deus terrível, que apare-
de, sem saber reencontrar os princípios. Desses grandes conta- ce entre raios no Sinai, inexorável e tremendo em sua justa vin-
tos espirituais nasceram as revelações. gança, completa-se e agiganta-se no gesto mais humano da
Entramos, agora, num mundo maravilhoso. O fenômeno bondade, aproxima-se da Terra e nela lança, com o Evangelho,
da registração inspirativa não se pode encerrar nos limites de a semente da paz de espírito e da convivência social. E, hoje, a
um fenômeno científico. Este caso está para a simples capta- rude potência da revelação mosaica e a profunda bondade da
ção noúrica como um raio para uma centelha elétrica, pois que revelação evangélica se continuam e se fundem na luz da racio-
o homem é levantado num turbilhão à face de Deus, centro nalidade científica moderna, que também nos tem ensinado a
conceptual do universo, que aparece e se revela para assinalar pensar e que hoje atinge a hora de sua compreensão. Há, desse
os destinos do mundo. modo, uma contínua proporção entre a descida das noúres, que
Se, no meu pobre caso, tive de falar em ascensão espiritual e revelam a Divindade, e a capacidade intelectiva humana. Há
purificação, quais condições de uma sintonização que não pode uma paralela ascensão do homem e de sua representação con-
realizar-se senão por afinidade, a que vórtice de potência se terá ceptual do Centro e uma descida progressiva da verdade, por
realizado a transumanização desses grandes inspirados que che- revelação; uma contínua purificação dos atributos humanos da-
garam a ler o pensamento de Deus! E aqui se toca o caso limite quele conceito, à medida que o próprio homem purifica os seus.
152 AS NOÚRES Pietro Ubaldi
Em pobres palavras: Deus, verdadeiro centro dinâmico e Esta é a necessidade dos tempos, a fim de que o Evange-
conceptual do universo, conta de Si, através da revelação confi- lho seja de novo sentido. Para que a moderna concepção do
ada a poucos escolhidos, aquele “quantum” que a criança hu- saber não se extravie, ela é chamada às origens, fundida com
mana pode compreender, à proporção que vai crescendo; dizer- as antiquíssimas intuições dos iniciados e utilizada, no mo-
lhe mais, sobre um conceito sem limites, seria inútil e perigoso. mento da maturidade espiritual atingida, como meio de di-
Devo falar a respeito de Deus porque é justamente desse vulgação dos mistérios, entre os quais já não é mais permiti-
Centro que desce a mais elevada noúre. Assim, a Divindade se do hoje esconder a verdade.
avizinha sempre mais do homem, sempre mais viva e sensivel- Unidade – diz hoje a grande noúre, unidade de religiões e de
mente se torna real em seu coração, despojando-se, pouco a ciência, descoberta de uma consciência unitária de humanidade
pouco, de todas as reduções impostas pela representação huma- em torno de um Deus único, ideia central, que deverá salvar e
na e fazendo-se sempre mais verdadeira, sempre mais transpa- dirigir o mundo na nova civilização do Terceiro Milênio. As-
rente, em sua essência, ao espírito humano. Tudo isso é também sim, a ciência é recuperada totalmente com a Síntese no ciclo
um engrandecimento seu, porque a visão se torna vertiginosa; evolutivo das revelações, para preparar no seio da humanidade
mas, justamente por isso, ela não é concedida senão gradativa- a maturação de uma nova consciência cósmica. O momento
mente. A ideia de Deus é necessária ao homem; deve estar-lhe histórico é grave, solene, rico de valores em decomposição e de
próxima para sua vida; deve, para ser útil, proporcionar-se à sua germens em frenético desenvolvimento, como nos tempos mes-
compreensão e necessidade de ação; deve, como representação, siânicos. Em meu estado de contínua percepção noúrica, sinto
manter-se a uma justa distância, que ilumine sem cegar, que se as correntes espirituais do mundo e tenho a sensação viva de
revele e se esconda, ao mesmo tempo. iminentes e novas orientações do pensamento humano, que aba-
Assim, o grande conceito desce ao mundo por sucessivas terão as resistências de todos os misoneísmos. E me entreguei
aproximações. Inspirados e revelações se encontram unidos em completamente às forças do Alto, a fim de lançar, entre muitos,
cadeia, na expressão progressiva de um pensamento único e uma semente que germinará.
contínuo que governa o mundo. Existe uma grande noúre que Observando os ciclos das revelações do passado que mais
desce contínua, através de diversos instrumentos, e é essa divi- proximamente se encontram da civilização europeia, vemos de
na unidade de princípio que mantém a continuidade de pensa- início um período heroico, que é sublimação de potência da
mento através dos ciclos das várias civilizações, ciclos que se vontade, explosão da corrente positiva e masculina da vida – o
rompem e se reatam. É essa unidade originária, ramificada no ciclo mosaico e do profetismo hebreu; depois, o período da
pensamento humano, que mantém uma linha verificável e evi- bondade, que é sublimação do amor, explosão do princípio
dente de desenvolvimento lógico através das vicissitudes histó- oposto da vida, da libertação pelo sacrifício, da redenção pela
ricas do mundo. Isso prova que é idêntico o centro irradiante e dor. Na primeira revelação, a voz de Deus, virilmente, diz: “Eu
animador dos vários instrumentos registradores, grandes e pe- sou”. Na segunda, a mesma voz redime a mulher e eleva a mis-
quenos, todos coordenados no tempo, sob o mesmo impulso, são criadora do amor. Hoje, a revelação reaparece, equilibran-
para a execução da mesma obra da revelação progressiva do do-se numa pulsação de retorno, para alimentar e impelir para o
pensamento divino. Cada um diz, frequentemente sem saber tu- alto o princípio masculino, que afirma e de novo diz “Eu sou”,
do, uma como que frase sua, e, da união de todas essas frases, mas não com o terror da força e do mistério, e sim na potência
sairá composto, depois, um discurso cheio de sabedoria. luminosa da sabedoria.
Assim, fundiram-se num só corpo as vozes dos profetas do Jamais na história do mundo, a inspiração se apresentou em
povo de Israel na ideia do Messias. Assim, em expressões proporções tão gigantescas como em Moisés, no momento da
mais vastas, reúne-se novamente a visão mosaica (que reduziu promulgação da lei no Sinai. A voz emerge de um fragor de ba-
ao monoteísmo a fragmentação da unidade divina do polite- talha, em meio a um terrível desencadear de forças naturais,
ísmo), através de todo o cristianismo, ao atual monismo, que como condutora de povos e dominadora de paixões; emerge do
nos apresenta a Divindade não só como única, justa e boa, caos das vicissitudes humanas num ímpeto de potência esma-
mas realmente palpitante, qual sensível psiquismo animador, gadora. A luta entre as forças do bem e do mal assume um as-
presente em todas as coisas. pecto concreto, desce até à alma dos fenômenos físicos; a terra
Moisés teve que imprimir com um ferrete de fogo, na alma treme, abrem-se as águas dos mares. Deus é força ante a qual
de seu povo, a ideia de um Deus terrível, que para nós é absur- vacilam céu e terra. Indubitavelmente, Moisés transferiu à reli-
da e repugnante, pois fomos acariciados pela piedade de Cristo. gião hebraica a sabedoria da iniciação egípcia, que consigo le-
Hoje, o terror é desaparecido, tão mitigada foi aquela vin- vava como esteio. Mas foi a grande voz interior da inspiração
gança, que não conhecia piedade, mas subsiste o mistério. Sem- que o sustentou e guiou nos grandes momentos. O pensamento
pre menos se pode impor uma fé aterrorizando a mente e muti- era, então, densamente revestido de ação e se expressava súbi-
lando o conhecimento, e a revelação da bondade é continuada na to, em ato nos acontecimentos; deveria, pois, possuir em suas
revelação dos mistérios. Hoje, não se eleva mais apenas o gesto origens a violenta potência energética que lhe permitisse pene-
do profeta que diz: “Penitência, para aplacar a ira de Deus”, nem trar as densas camadas da matéria e do espírito humano. A ver-
apenas o gesto de piedade que fala: “Bem-aventurados os que dade devia ser simples, precisa, mas lançada como um projétil e
sofrem”; dá-se, porém, em termos precisos de razão e de ciência, cortante como uma espada, para poder penetrar no duro coração
a explicação da inflexibilidade da justiça divina e da redenção do homem. O profeta tinha de ser um condutor de povos, e seu
cristã através da dor. Nada foi modificado do pensamento pre- pensamento deveria estar armado de potência humana e sobre-
cedente, pensamento perfeito. Mas ele foi continuado. O mesmo humana. A lei de um Deus único devia impor-se, por seu poder,
pensamento, após milênios, é novamente trazido à luz da cons- no seio da idolatria dos vários cultos; devia imprimir-se na
ciência humana, atualmente saída da menoridade, não mais ape- consciência de um povo, em meio à anarquia das nações. A so-
nas como ato de fé e estado de graça, mas como uma imprescin- litária e dolorida sublimação mística dos santos do cristianismo
dível necessidade racional, que aquela mesma doutrina “impõe” ainda não nascera; antes da sutilização na pureza, importava
para os caminhos novos, únicos que, em tempos de perda de fé, trovejasse a força, para desbastar o espírito humano.
permanecem ativos, isto é, os caminhos da racionalidade, que é A cosmogonia mosaica é uma rude e imensa construção ci-
justamente a forma mental do nosso momento. A noúre, em sua clópica, reduzida a linhas essenciais para que fosse compreen-
profundidade, traz de novo à luz, mas agora em forma de ciên- dida; permanece verdadeira até hoje, embora lhe faltem porme-
cia, o Evangelho, substancialmente esquecido. nores de desenho arquitetônico. O gesto criador de Deus é ma-
Pietro Ubaldi AS NOÚRES 153
terial como o gesto do homem, que projetava no Céu a multi- tempestades de nuvens a rugir, coruscantes de raios; as faldas
plicação infinita dos próprios atributos, não sabendo dizer de do monte enegrecidas de massas humanas, efervescentes de
Deus senão o que a própria evolução psíquica lhe permitia paixões, lançadas à conquista do próprio destino. Eis o quadro
compreender. Aquele gesto se espiritualiza hoje na voz que grandioso, o ambiente de sintonização em que se realizou o diá-
desce para iluminar e animar a ciência, e o pensamento da Gê- logo entre o profeta e a voz de Deus e entre o profeta e seu po-
nese retorna num mais elevado plano de conhecimento. vo. A vibração se mantinha na desnuda potência das coisas
A Gênese é o primeiro livro do Pentateuco, a que se se- primitivas. Era o primeiro grande choque cósmico das forças
guem: o Êxodo, o Levítico, os Números e o Deuteronômio, e espirituais e se converteu numa atmosfera de revolta e de san-
foi escrito sob a inspiração de Moisés, enquanto vagueava no gue, sob um céu negro de tempestade, com a matança dos re-
deserto com o povo de Israel. Começa com a criação, descreve beldes idólatras, desobedientes à lei, diante dos quais a ira do
depois o dilúvio (submersão da Atlântida), a torre de Babel, a profeta quebra as tábuas de pedra, convicto do direito absoluto
história dos patriarcas até José. da verdade, da comunhão com o Alto, da proteção das forças
O Êxodo é a saída do povo de Israel do Egito e a promulga- supremas. Sem essa presteza e prepotência de ação, jamais
ção da lei no Sinai. O espírito de Deus é presente a cada mo- Moisés teria imposto sua autoridade e a nova lei de Deus. A fe-
mento. No Cap. XIX do Êxodo, descreve-se um continuo coló- rocidade humana impunha os caminhos do terror.
quio entre Moisés e Deus: O contato com a divina fonte se estendeu continuamente, no
01.Ao terceiro mês da saída de Israel da terra do Egito, nesse seio do povo hebreu, através do profetismo.
mesmo dia, chegaram à solidão do Sinai. Este meu pobre estudo sobre o fenômeno inspirativo mani-
02. Por isso, partidos de Rafidim e chegados ao deserto do Sinai, festa-se, sem que eu o quisesse, com força interpretativa e de-
estabeleceram nesse lugar os alojamentos, e aí Israel esperou, dian- monstrativa deste grande fenômeno histórico e teológico, que
te do monte. foi considerado pelos apologistas, ao lado dos milagres, como a
03.E subiu Moisés a Deus, e o Senhor o chamou do alto do mon- coluna probatória da verdade do cristianismo. E aqui a ciência,
finalmente não mais inimiga, dá sua contribuição.
te, dizendo-lhe: Estas coisas dirás à casa de Jacó e anunciarás aos fi-
Se a arte divinatória é comum a todos os povos da Antigui-
lhos de Israel. (...)
dade, o profetismo, entre os hebreus, potencializando-se na
09.O Senhor lhe disse: Virei logo a ti na obscuridade de uma nu-
concepção monoteísta, se eleva a meio de comunicação direta
vem, a fim de que o povo me ouça a falar contigo e creia em ti perpe-
com a Divindade, prossegue e traduz o pensamento da eterni-
tuamente. Pois Moisés havia anunciado ao Senhor a palavra do povo.
dade na maturação do destino de um povo e, na espera do Mes-
10.Ele lhe disse: vai ao encontro do povo e faze com que todos se
sias, do destino do mundo.
purifiquem hoje e amanha e lavem suas vestes.
Após o Pentateuco, a Bíblia continua e, no livro de Josué,
11.E estejam preparados para o terceiro dia, porque no terceiro dia
escrito pelo mesmo Josué, sempre por divina inspiração, pros-
descerá o Senhor, aos olhos de todo o povo, sobre o monte Sinai. (...)
segue a história do povo de Deus. Moisés morreu, mas o divino
16.E, ao despontar o terceiro dia, à claridade da manhã, principia-
colóquio não cessa.
ram a ouvir-se trovões e resplandeceram relâmpagos; e uma densís- Nos quatro livros dos Reis falam Samuel e os profetas Gade
sima névoa cobriu o monte, e o vibrante sonido da trompa retumbava e Natã. Precisamente no terceiro desses livros, Cap. XIX, há
fortemente; e o povo, que se encontrava nas tendas, se atemorizou. uma referência ao profeta Elias, que, internando-se no deserto,
17.E havendo-os Moisés conduzido para fora dos alojamentos, ao desejava a morte e disse:
encontro de Deus, pararam ao pé do monte. “Basta, ó Senhor, toma minha alma”. E se lançou por terra e ador-
18.E todo o Monte Sinai fumegava, porque o Senhor aí descera meceu; mas eis que o anjo do Senhor o tocou e lhe disse: “levanta-te e
em meio ao fogo; e o fumo dele saía como de uma fornalha, e todo o come”. Voltou-se ele e viu, perto de sua cabeça, um pão cozido sob as
monte infundia terror. cinzas e um vaso de água. Então, comeu e bebeu. Fortificado com es-
19.E o sonido da trompa pouco a pouco se fazia mais forte e mais se alimento, caminhou quarenta dias e quarenta noites, até um monte
penetrante. Moisés falava e o Senhor lhe respondia. de Deus chamado Horebe. Lá chegando, abrigou-se numa caverna. E
20.E desceu o Senhor ao Monte Sinai, sobre o próprio cume do logo o Senhor lhe falou dizendo-lhe: “Que fazes tu aqui, Elias?...”.
monte, e chamou Moisés àquele cume. (...) E se desenvolve o colóquio. Mais adiante, ainda de Elias fa-
25.E Moisés desceu e contou todas as coisas ao povo. la o livro IV dos Reis17, Cap. II:
E assim nasceu o Decálogo, da palavra pronunciada por 11. E enquanto caminhavam e conversavam juntos, subitamente
Deus, Cap. XX: um carro de fogo, com cavalos de fogo, separou um do outro; e Elias
01.E o Senhor pronunciou todas estas palavras: (...) subiu ao céu num turbilhão.
02.Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da O primeiro livro de Esdras foi por este mesmo, que era
casa da escravidão. de linhagem sacerdotal e doutor da lei de Deus, escrito sob
03. Não terás outros deuses diante de mim. (...) inspiração.
18.E todo o povo percebia as vozes, e os raios, e o sonido da Também o livro de Judite, que se lhe segue, é considerado
trompa, e o monte que fumegava; e o povo, assustado e tomado de divinamente inspirado.
medo, pôs-se de longe. No livro de Jó, este frequentemente profetiza a respeito
Eis a narrativa do momento culminante da mais poderosa de Cristo.
recepção noúrica que o homem conhece. No livro dos Salmos, o rei Davi, instrumento do Espírito,
E o espetáculo é verdadeiramente de uma grandiosidade ter- profetiza sobre Cristo e escreve hinos maravilhosos, que são
rível. A mole imensa, severa e selvagem do Sinai, a recordar o poesia, profecia, sapiência, oração. Em Davi, o pressentimento
Brocken16 goethiano, a grande montanha de granito, nua e escu- do novo pensamento de Cristo é vivo. Ninguém, antes dele, ha-
ra, cujo cimo é o trono de Eloim, circundada de legendas pavo- via ousado falar de Deus com tanto amor e confiança, no seio
rosas, ecoando estrondos de trovões; os cumes escondidos nas do povo hebreu, que entendia a proteção divina como um do-
16 17
Brocken (ou Brock) – elevada e granítica montanha na Alemanha, O 4o Livro dos Reis corresponde à divisão da Bíblia Hebraica, de
onde, conforme as superstições medievais, imperava o chefe das for- que se serviu o autor. Nas edições grega e latina (a dos Setenta e a
ças do mal, o “Senhor Uriano” (Herr Urian) na versão do Fausto de Vulgata) o antigo livro de Samuel é dividido em dois e igualmente o
Goethe. Era o local da noite de Valburga (ou Walpurgis) – a “Wal- seguinte, o dos Reis. Assim, o texto citado encontra-se em nossas Bí-
purgisnacht” (N. do T.). blias atuais, no II livro dos Reis, Cap. II – vers. 11 (N. do T.).
154 AS NOÚRES Pietro Ubaldi
mínio severo, cheio de terríveis punições. Davi cantava com sas figuras pensativas de profetas prostrados diante do Infinito,
sua harpa não mais um Deus que subjugava pelo pavor de suas invocando luz e paz para a alma humana em tempestade, eu,
cóleras e vinganças, mas um Deus doce e bom que se aproxima que escrevi a demonstração científica da realidade dessas forças
do homem no esplendor de suas obras: tremendas e que as sinto agitarem-se em mim e no mundo, ou-
“Os Céus narram a gloria de Deus e o firmamento anuncia Suas ço estranhas ressonâncias nas profundezas de minha consciên-
obras. Um dia dirige a palavra a outro dia e a noite a outra noite a re- cia, e me sacode um calafrio de temor. A sabedoria moderna,
lata. Sem palavras, sem discursos, entende-se a sua voz, que se ex- que matou essa sensibilidade, poderá sorrir ceticamente. Mas,
pande por toda a terra e ressoa até aos confins do mundo”. nas lágrimas de Jeremias, no gesto solene de Ezequiel, que pro-
Inspirado é o livro dos Provérbios, ditado pela sabedoria de fetiza, nessa voz concorde que, desde Isaias até Malaquias, fala
Salomão, livro cheio de sentenças sublimes. de Cristo e prossegue até à voz de Joana D‟Arc, criando uma
Inspirado foi o livro da Sabedoria, ao mesmo Salomão mártir e salvando a França, sinto algo de tão terrivelmente po-
atribuído. deroso, que não encontro outra postura de espírito além da ora-
Inspirado também é o chamado Eclesiastes. ção. Tudo mais é inconsciência. Inconsciência num momento
E eis que surge, na Bíblia, Isaias, o primeiro dos grandes em que a Europa inteira se arma, embora trema diante do espec-
profetas, majestoso nas suas predições referentes ao Messias. tro de uma guerra que sente seria o fim de sua civilização 18.
Após, fala Jeremias, profeta desde os 15 anos, até depois da Cada gesto profético é dirigido pela mão de Deus. E a Europa
destruição do templo e da cidade de Jerusalém, quando, pros- será dividida, ao longo de uma frente mediana, em duas partes,
trado sobre as ruínas da Cidade Santa, deixou rebentar sua dor a da ordem e a da desordem, em que lutarão objetivamente as
nas Lamentações. Vem a seguir seu discípulo Baruque, tam- forças cósmicas do bem e do mal. Se as forças desagregantes
bém profeta. Ezequiel começou a profetizar no quinto ano de do mal chegarem a vencer as forças construtivas do bem, então
seu cativeiro na Babilônia; foi o inspirado misterioso, taciturno as portas da Europa desorganizada se abrirão de par em par di-
e terrível, que viu a destruição de Jerusalém, a dispersão dos ante da ameaça imensa da Ásia, do dragão gigantesco e terrível,
hebreus e, após, sua volta, a reconstrução da cidade e do tem- que já levanta a cabeça, mirando a presa suculenta. Enceguece-
plo e o Reino do Messias. o, porém, uma luz que se irradia de Roma, centro espiritual do
Profecias relativas ao Messias contém o livro de Daniel, mundo. Na Terra e no Céu irrompe uma vastíssima tempestade
por ele mesmo escrito na corte dos reis caldeus. Seguem os de pensamento que, em grandes correntes, luta e se lança à
profetas menores: Oséias, Joel, Amós (talvez também mártir), conquista da unidade espiritual do planeta.
Obadias; Jonas, o náufrago vomitado pela baleia; Miquéias, a ◘ ◘ ◘
quem se deve a célebre profecia sobre Belém-Efrata, onde de- A principal ideia desenvolvida pelo profetismo hebreu, num
veria nascer o Messias; Naum, que predisse a destruição de ascensional movimento de evidência e poder, foi a ideia da cen-
Nínive e viu sobre os montes “os pés Daquele que anuncia a tralidade espiritual de Jerusalém e da vinda do Salvador do
boa nova”; Habacuque, que, conforme se crê, foi transportado mundo. Sempre mais nítida se faz essa visão, descendo a por-
por um anjo até Babilônia para dar alimento a Daniel, prisio- menores, e nela, na contemplação da doce figura do Cristo, se
neiro na cova dos leões; Sofonias; Ageu, também profeta do acalmam as tempestades angustiosas do espírito. Alimentada
Messias; Zacarias, em quem a profecia da vinda do Cristo se pela vibrante palavra dos profetas, a imagem messiânica se
faz sempre mais clara, precisando seu ingresso em Jerusalém, grava e se agiganta na consciência, até aos últimos tempos, em
sua morte, os trinta dinheiros como preço da traição, a destrui- que se sentia, por toda parte, vaga, mas seguramente próxima, a
ção de Jerusalém e a perseguição; finalmente, Malaquias, que realização tão esperada e predita.
anuncia claramente a vinda do supremo Mestre. A história, na plenitude da hora romana, continha os germes
Por oito séculos, a ideia viva de Deus assim resplandece na do desfazimento e da ressurreição, como hoje. Os deuses pa-
alma de um povo, e a mesma luz desce sempre ao mundo, colo- gãos vacilavam, e o equilíbrio do mundo se deslocava para um
rindo-se diversamente, através de personalidades diversas, mas novo eixo. Algo abala a civilização até aos fundamentos, e
nunca deixa de ser a voz com que Deus clama, chamando os também o mundo pagão desperta ao primeiro choque, que é
homens extraviados. sempre de almas, e o manso Virgílio vê:
A inspiração se faz auditiva ou visual conforme as disposi- Ultima Cumoei venit jam carminis actas,
ções do ambiente, mas a corrente é uma só, embora assuma di- Magnus ab integro soeclorum nascitur ordo,
ferentes formas de vibração. Existe um pensamento constante, Jam redit et Virgo, redeunt Saturnia, regra;
desenvolvido através de recursos diversos e fragmentado no Jam nova progenies coelo demittitur alto.
tempo, mas, apesar disso, coerente e contínuo, testemunhando Tu modo nascenti puero, quo ferrea primum
sua origem de uma fonte única. Essa unidade de ideia manteve Desinet, ac toto surget gens aurca mundo,
coeso um povo, trabalhado pelas mais venturosas vicissitudes, Casta, fave, Lucina; tuns jam regnat Apollo.
até ao surgimento de sua flor magnífica – Cristo, após o que ... Aspice, convexo nutantem pondere mundum,
este povo se dispersa. Terrasque, tractusque maris, coelumque, profundum;
A Bíblia é o mais vasto documento de recepção noúrica Aspice venturo laetantur ut omnia soeclo19
mundial, atingindo as mais elevadas fontes. O povo hebreu nos (VIRGILIO, Écloga, IV)
dá o exemplo de um fenômeno inspirativo gigantesco, prolon-
gando-se por séculos e séculos, funcionando como preparação 18
Este livro – As Noúres – foi escrito no verão de 1936 e publicado,
do evento que daria origem à civilização destinada a governar o em 1a edição, por U. Hoepli, de Milão, em 1937 (N. do T.).
19
mundo. Não é possível a dúvida nem a negação em face de fa- “A última idade da predição de Cumas já chegou;
tos históricos de tal importância. E o cristianismo foi esperado e a grande ordem dos séculos nasce de novo.
preparado por essa elevadíssima mediunidade inspirativa, que Já volta a Virgem e os reinos de Satumo.
agora estudamos, e desses contatos superiores continuamente se Uma nova progênie desce já do mais alto Céu.
Casta Lucina, ampara; teu Apolo já reina.
tem alimentado e fortalecido no seu exaustivo caminhar. ... Vê como estão de acordo o mundo de pesada abóbada
Em face da narrativa bíblica das visões dos profetas, como a E as terras todas, e a extensão do mar, e o céu profundo.
de Isaias, que vê Babilônia destruída, recordando as de São Jo- Vê como tudo se alegra com os séculos por vir”.
ão; em face das visões terrificantes de Ezequiel, bem como ou- (Vírgilio, Écloga IV)
tras, feitas de luz e de bondade, todas grandiosas; em face des- Tradução de Ruth Maria Chaves Martins.
Pietro Ubaldi AS NOÚRES 155
Com Cristo surge, em sua plenitude, um conceito que parece Senhor, perdido nos silêncios da contemplação, penetrava o
preparado, de há muito, no passado de toda a evolução espiritual pensamento profundo de Cristo por um estado de graça que lhe
da humanidade. Esta já está amadurecida para subir mais um dava o amor. E, até muito depois, até São Francisco, nenhuma
degrau em sua ascensão espiritual, e a revelação inicia um novo força aproximou tanto de Cristo o homem, abrindo de par em
ciclo. O conceito de bem e de virtude adquire um novo valor, e a par as portas de seu coração, quanto o amor.
dor se sublima na cruz como meio de redenção. É anunciada a O Apocalipse do apóstolo João foi por ele escrito depois de
boa nova de um novo Reino dos Céus, que está, antes de tudo, seu Evangelho, pelo ano 96 de nossa era, no seu exílio da ilha
no coração dos homens. Atinge-se um novo poder, que Moisés de Patmos. O nome grego “Apocalipse” significa “revelação”.
não possuía: o poder do amor. “Não penseis que vim abolir a Lei Esta, que havia tomado o homem pela mão, desde o princípio,
ou os Profetas; não vim aboli-los, mas completá-los”, disse Cris- para acompanhá-lo até ao nascimento de Cristo, agora continu-
to (Mateus, V, 17). A revelação continuava. ava predizendo os destinos da Igreja, desde seus primeiros
Seria absurdo querer reduzir a ideia de Cristo a um fenôme- combates na Terra até seu último triunfo no Céu. É uma visão
no inspirativo, de tanto que o transcende, de tão inadequados grandiosa, cheia de mistério:
que são os recursos da observação e da compreensão humanas, Cap. I
de tão profunda e completa que foi Sua unificação com o centro 01. Revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe concedeu, a fim de
conceptual do universo. Devido à fraqueza humana, temos ne- fazer conhecer aos seus servos as coisas que cedo devem aconte-
cessidade, para nossa compreensão, de fenômenos mais acessí- cer e que Ele, enviando-as por intermédio do Seu Anjo, significou ao
veis, mais mitigados de potência, menos transparentes de Di- seu servo João.
vindade, a fim de que não pareçam cegar. 02. O qual testificou a palavra de Deus e tudo quanto viu de Jesus
Tenho sentido, em meus profundos estados inspirativos, a Cristo. (...)
proximidade de Cristo, não o Cristo reduzido à imagem hu- 09. Eu, João, vosso irmão e companheiro na tribulação, no reino e
mana, mas um Cristo real, cósmico, um espírito radiante, cen- na paciência de Jesus Cristo, estive na ilha que se chama Patmos,
tro de atração espiritual, em torno do qual gravitam os mun- por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus.
dos; um Cristo que me inflamou e me tem dado força para vi- 10. Fui arrebatado em espírito num dia de domingo e ouvi por de-
ver e trabalhar e a Quem tudo devo. Ele me atrai da vertigem trás de mim uma forte voz, como de trombeta.
dos céus, para os quais me arrasta, de esfera em esfera, fusti- 11. Que dizia: escreve o que vês num livro.
gando minha carne para que eu possa aligeirar-me e subir, 12. E voltei-me para ver quem falava comigo, e voltado vi sete
numa visão de sabedoria e de bondade em que minha mente candelabros de ouro. (...)
se perde. Outra coisa não sei dizer de Cristo, outra coisa não 13. Escreve, pois, as coisas que viste, as que são e as que devem
sou digno de dizer e calo-me. acontecer depois destas.
Sinto que se aproximam para o mundo acontecimentos A percepção, a princípio auditiva, se transforma em visual.
enormes e terríveis, sinto um distante fragor de tempestade, um De quando em quando diz: “Eu vi”. A fonte da grande corrente
vagalhão que ameaça a grande civilização. E são pouquíssimos noúrica, porém, é a mesma, não importando em que forma de
os que veem e sabem. Tenho implorado para que se veja e sai- vibrações sensoriais se materialize para ferir os sentidos. Há um
ba. Neste ambiente pesado de ameaças em que louqueja o mun- comando explícito da voz: “Escreve”. Há um aturdimento de
do, meu espírito oprimido não repousa senão na doce visão do sentidos que faz João cair como morto, mas a voz lhe diz: “Não
Cristo, que acalma as águas enfurecidas e salva o barco que temas, sou eu, o primeiro e o último”.
ameaça naufragar. Cristo é verdadeiramente uma força real, ◘ ◘ ◘
sempre presente, a guiar os centros espirituais do mundo, irra- Passam-se os séculos. A voz que havia detido São Paulo na
diando Sua luz. Conforto-me com Suas palavras, citadas pelo estrada de Damasco repercute numa multidão de mártires. Os
Apóstolo João: “Tenho ainda muitas coisas para vos dizer, mas, primeiros séculos do cristianismo ecoam de vozes, mas, depois,
por enquanto, estão acima de vossa compreensão” (João, XVI, a tenebrosa Idade Média trabalha duramente para reencontrar as
12). “Tenho-vos dito estas coisas por comparações. Mas vem a fontes do espírito, e a tradição se quebra.
hora em que não vos falarei mais por parábolas, mas aberta- Como Sócrates tinha o seu gênio, a voz superior que ele
mente vos falarei acerca do Pai” (João, XVI, 25). Eram as pala- ouvia falar-lhe interiormente, dando nobilíssimos conselhos,
vras de adeus. Mas, antes, havia dito: “Eu rogarei ao Pai, e ele também tinha seu gênio o filósofo Filon. Porfírio e Plotino de-
vos dará outro Consolador, a fim de que permaneça para sem- claram possuir num espírito familiar sua fonte de inspiração.
pre convosco, o Espírito de verdade, que o mundo não pode re- Como Maomé ouve a voz do seu arcanjo, igualmente Alarico,
ceber, porque não o vê nem o conhece; vós, porém, o conhe- rei dos Visigodos, se dizia inspirado pela voz de um espírito
ceis, porque ele habitará convosco e estará em vós. Eu não vos que o excitava a marchar contra Roma. “Um gênio”, dizia,
deixarei órfãos; voltarei a vós” (João, XIV, 16, 17, 18). “sempre me guia: Avante! Avante! Destrói Roma!”. Esta últi-
Qual será o sinal dos tempos? O descobrimento completo ma voz talvez fosse barôntica, que não se eleva pela nobreza
dos mistérios, que a revelação dá à mente humana, já amadure- de objetivos morais e sociais nem pureza de inspiração, não
cida pela ciência. Porque, como já dissemos, a revelação é pro- merecendo, pois, atenção.
gressiva e proporcionada ao desenvolvimento da inteligência As vozes elevadas só se encontram no seio de uma grande
humana e o Cristo está com ela sempre presente. É chegada a fé, quando a inspiração é também missão, apostolado, muitas
hora em que a mudança da civilização impõe um passo à frente vezes martírio. Só estas são dignas e me interessam.
na lenta e progressiva realização do Reino de Deus na Terra, de Se o fio da revelação se rompera, talvez por razões profun-
que o Evangelho não foi senão o anúncio; impõe sua atuação das, ou talvez só aparentemente, a fé em Cristo não fora destru-
individual e coletiva na organização social humana, o advento ída. A ascensão espiritual, culminando nas figuras dos santos
de Cristo à sociedade, a descida do espírito da verdade, do amor que iluminam em multidão a Idade Média, era contínua e labo-
e da justiça às instituições e à vida dos povos. O Pentecostes, riosa. As correntes desciam sempre do Alto para os desposórios
outrora limitado aos escolhidos, se estende agora a todos os com a Terra, fecundando-a. E germinavam exemplos de holo-
dignos pela bondade e maduros pelas forças intelectivas. caustos no esforço por abraçá-las. A grande emanação do Cris-
O primeiro gigante da revelação cristã é o próprio São João. to jorrava ora aqui, ora acolá, como revelação não mais heroica
João, alma profunda, intuitiva e ardente, enamorada e triste, e guerreira, apocalíptica e tonante, mas apaixonada e gentil,
impetuosa e sonhadora; João, que inclinava a cabeça no seio do amansando a ferocidade dos tempos com a doçura do amor evan-
156 AS NOÚRES Pietro Ubaldi
gélico. E surgem almas novas, ardendo em paixões mais eleva- duzem uma alma do mundo a Deus, projetando-a na vertigem
das. A força se desmaterializa num perfume de sentimento. A da inspiração mística, têm raízes profundas, em que se encontra
voz não mais troveja o fragor das batalhas nem o terrível desti- a chave do mistério. Essas súbitas crises psicológicas não são
no dos povos, mas canta as harmonias da criação. senão o precipitar do equilíbrio biológico normal, em conse-
E desponta Francisco de Assis, qual diferente cantor de quência de impulsos amadurecidos no eterno. E, como sempre,
Deus, que já não é como o rude Moisés, nem o tempestuoso é necessário estudar e compreender o sujeito para entender o
Isaias ou o terrível Ezequiel, nem mesmo o apocalíptico João! fenômeno. Francisco se isolava no silêncio dos bosques e dos
Verdadeiramente, com o Cristo, o mundo do espírito se trans- montes para orar e para ouvir; essa necessidade de solidão, pró-
formara. A fé se dulcifica como o cântico de um poeta ou uma pria dos inspirados, foi para ele fundamental, especialmente nos
visão de artista, como se transmuda em beleza a própria verdade mais importantes momentos de sua missão.
que se eleva a um plano mais alto. A fé canta e sorri entre os do- “Vade igitur et repara illam mihi!”. Nas vizinhanças de S.
ces pintores das escolas umbra e toscana, gorgeante de crianças Damião, o céu e a terra, tudo sorri numa nova luz, como que
graciosas e perfumosas dos suaves semblantes das Madonas. E, impregnado da grande emanação espiritual do santo. A beleza
seja atingindo poetas, artistas ou santos, é sempre a mesma fonte natural parece brilhar em mais profunda beleza de alma. Toda a
inspirativa, que desce do Alto e faz do “Trecento” o século das criação em torno se vivifica no espírito e também ora num im-
mais puras criações espirituais. Que importa a forma com que pulso de fé, dobrando-se em sintonia para alimentar o fenômeno
essa inspiração se imprime na matéria? Grande inspirado foi de Francisco e de sua vibração de amor a Deus. Nos momentos
Dante, como foi Giotto e depois Rafael. Sempre, onde se mani- de sua grande inspiração, a natureza também é chamada a cola-
festa um pensamento novo, profundo e nobre, o Alto vibra e se borar, em harmonia de fé e amor, como uma realidade viva, ar-
dá. O “Trecento” parece uma descida de anjos para rasgar as dente, também enamorada de Deus, pois a grande recepção noú-
trevas de um milênio. Foi a primeira dulcificação de costumes rica é um concerto imenso em que toda a criação canta em Deus.
na fé cristã, a primeira grande onda de preparação do Reino dos A inspiração dulcíssima do amor de Cristo se verifica, aqui, não
Céus. Falo a respeito de forças reais, presentes e decisivas na mais entre as tempestades do Sinai, porque a nota de sintoniza-
evolução da civilização. Falo da minha mística Úmbria, onde, ção é completamente diversa, mas na musicalidade doce da pai-
com tanta suavidade, floresceu aquele sonho de fé! sagem úmbrica, que ainda hoje canta e sobe, simples e mansa,
A voz falou pela primeira vez a Francisco (1182 - 1226) em como por humildade, perdendo-se nos esplendores azuis do mis-
São Damião, em Assis. Assim relata o acontecimento o Pe. V. ticismo. Verdadeiramente, jamais encontrei mais apropriado
Vacchinetti em sua “Vida de São Francisco”: ambiente de sintonização espiritual que esta paisagem úmbrica.
“Existia então, como ainda hoje, no declive da montanha (o Francisco, entretanto, não havia compreendido bem. O
Subásio, próximo de Assis) uma capela dedicada a S. Damião. despertar de uma alma imersa na carne, embora seja ela forte,
São Francisco gostava de recolher-se na penumbra daquela não pode ser instantâneo. Seu olhar é, a princípio, exterior
igrejinha abandonada, a orar diante de um crucifixo. Um dia, também nos conceitos, está materializado pelas sensações e, só
estava ajoelhado diante daquela imagem do Redentor... e supli- mais tarde, atinge os profundos significados de espírito. Tam-
cava poder conhecer, finalmente, qual fosse a vontade divina a bém com Joana D‟Arc aconteceu o mesmo. Mas, depois, o
seu respeito. Eis que, então, ainda banhado em lágrimas e com ambiente se purifica, o contato se faz mais vivo, a percepção
o coração agitado pelo ardor da oração, tendo os olhos fitos no mais transparente. Aqui também, embora preso num turbilhão,
crucifixo, o vê avizinhar-se de si, e de seus lábios divinos per- o fenômeno é progressivo. Não era, pois, a restauração materi-
cebe sair uma voz que lhe diz: “Não vês que minha igreja está a al da igreja de S. Damião, obtida com o transporte de pedras,
desabar? Vai, pois, e restaura-a para mim!”. E por três vezes se mas a restauração espiritual de Sua Igreja o que Cristo indica-
repete o amargurado apelo, a divina oração: “Vade igitur et re- va. “Eu não vos deixarei; voltarei a vós”, Ele já havia dito.
para illam mihi!”20 (aquela imagem conserva-se ainda hoje na Voz universal, ativa e presente, infiltra-se no mundo através
Basílica de Santa Clara, em Assis). A essa voz, Francisco, tre- dos caminhos de quem sente, responde e fala, segundo o poder
mendo de espanto e comoção, respondeu com entusiasmo: “Fá- de cada um para ouvi-la. Que evidência deveria, pois, atingir
lo-ei de boa vontade, Senhor!” (“Liberter faciam, Domine”). E através de uma alma como a de Francisco!
logo se levantou, para iniciar o trabalho”. Tudo está em relação à capacidade individual, à sensibiliza-
Esta é a narrativa: ção espiritual, e esta se relaciona com o grau de purificação
A voz do Alto a descer para salvar os destinos da Igreja. O atingido. Aqui, ressalta em primeiro plano a relação, já notada,
impulso de Cristo volta a manifestar-se presente. Esses fenô- entre elevação moral e potência perceptiva da alma, pois impor-
menos de exceção não sucedem ao acaso, mas em momentos ta um estado de afinidade vibratória para poder obter-se a sin-
particulares, com objetivos excepcionais. As correntes puras tonização. Compreendem-se, assim, os três votos franciscanos
não descem ao nosso plano para curiosidade científica, mas – pobreza, castidade, obediência – que azorragam no corpo e
obedecem a equilíbrios profundos, que as guiam para alimentar nas paixões toda a animalidade humana.
os valores espirituais do mundo quando estes vacilam. Para sentir a palavra de Cristo, Francisco devia tornar-se
De há muito, Francisco procurava, mas ainda não se havia semelhante a Ele na dor e no amor, e tão intensamente os teve
encontrado a si mesmo. Esquecera-se, na quadra alegre da ju- unidos a Ele, que se imprimiram em seu corpo com os estig-
ventude, mas era momentâneo o esquecimento; ao primeiro mas, no incêndio espiritual da Verna.
choque, sua alma desperta, e do íntimo se elevam as realidades No espírito franciscano existe um conhecimento profundo
do espírito, para as quais estava amadurecida. Na prisão dos pe- dos caminhos desse laborioso esforço da ascensão espiritual.
rusinos e, depois, na enfermidade em Spoleto, as primeiras vi- Basta recordar o episódio da perfeita alegria, em que, diante
sões revelam a Francisco o seu verdadeiro ser. Creio que esses dos ataques mais cruéis e dos decepamentos mais radicais im-
primeiros contrastes interiores sejam o momento psicológico postos à natureza humana, Francisco conclui sempre com um
mais decisivo para a compreensão daquele tipo de personalida- crescendo impressionante de exemplos: “Ó Irmão Leão, escre-
de e de toda a fenomenologia supranormal que se lhe formou ve que nisso está a perfeita alegria” (“Florinhas”, VII). Mas
em torno. Esses deslocamentos de equilíbrio interior, que con- uma verdadeira técnica de ascensão espiritual, uma descrição
dos métodos usados pelo destino para impô-la ao homem, é
20
“Vai, pois, e restaura-a para mim! – como já está escrito, duas linhas descrita no Cap. XXV das “Fioretti”. Encontra-se aí narrada,
atrás, para o vernáculo (N. do T.). na forma simbólica da época, o esforço do processo evolutivo
Pietro Ubaldi AS NOÚRES 157
do psiquismo humano, que, em A Grande Síntese, é explicado ciam asas; mas, como antes, não esperou que elas crescessem per-
cientificamente; concordâncias que reciprocamente se ilumi- feitamente; pondo-se a voar, uma vez mais, antes do tempo: caiu ou-
nam. Um frade sonha que: tra vez sobre a ponte, e igualmente as penas. Percebendo que a
“... ele foi arrebatado e conduzido em espírito a um altíssimo mon- pressa de voar sem que houvesse chegado o tempo próprio era a
te, junto ao qual se via um precipício muito profundo; e, aqui e ali, pe- causa das quedas, começou a dizer a si mesmo: “Quando me nasce-
nhascos fendidos e lascados, rochas desiguais que se elevavam da rem asas pela terceira vez, esperarei até que sejam bastante gran-
massa de pedra; era pavoroso o aspecto do precipício E o Anjo, que des para que eu possa voar sem cair de novo”.
conduzia esse frade, empurrou-o, lançando-o precipício abaixo. E o E, estando assim a pensar, notou que lhe nasciam asas pela ter-
frade, bamboleando e ferindo-se de pedra em pedra, de calhau em ceira vez, mas esperou que elas crescessem suficientemente. Pare-
calhau, finalmente caiu no fundo do precipício, completamente des- ceu-lhe que, desde o primeiro surgimento das asas até ao terceiro,
membrado e despedaçado, conforme lhe parecera. E, jazendo, assim haviam decorrido bem cento e cinquenta anos. Finalmente, dessa
desacomodado, em terra, aquele que o conduzia disse: terceira vez, levantou voo com todas as suas forças e chegou até
– Levanta-te, que te é necessário fazer ainda uma viagem maior. onde estava o Anjo e, batendo à porta do palácio que atingira com
Respondeu o frade: seu voo, começou a olhar as paredes maravilhosas do palácio; e
– Pareces-me um homem imprudente e cruel; vês-me quase mor- eram estas tão transparentes, que ele claramente podia ver os coros
to pela queda que me despedaçou e ainda dizes que me levante! dos santos e tudo que lá dentro se fazia... E, logo que entrou, sentiu
O Anjo, porém, aproximou-se dele e, tocando-o, ligou com per- tanta doçura, que esqueceu todos os sofrimentos por que havia pas-
feição seus membros, curando-o completamente. E depois lhe mos- sado, como se jamais os tivesse sofrido”.
trou uma grande planície, coberta de pedras pontiagudas e cortan- Eis o caminho da sutilização espiritual, eis o gabinete de ex-
tes, de espinhos e sarças, e disse-lhe que seria necessário atraves- perimentação em que se prepararam os estados de ânimo para a
sá-la descalço, até ao fim, onde existia uma fornalha ardente, em recepção das mais elevadas correntes noúricas. Atrás da narrati-
que ele deveria entrar. va cheia de imagens, sente-se o esforço, a luta, o caso vivido, a
Tendo o frade transposto toda a planície, com grande angústia e percepção direta das forças espirituais da vida, ouve-se o eco das
pena, ouviu do Anjo: assustadoras provas da iniciação egípcia, realizadas nos grandes
– Entra nesta fornalha, porque assim te é necessário! templos de Tebas ou de Mênfis pelos sacerdotes de Osíris; há
Respondeu o frade: nela um senso difuso da ciência do bem e do mal, que a alma
– Pobre de mim! Que guia cruel me tens sido! Vês-me quase mor- dolorosamente aprende, como já narravam os mistérios de Elêu-
to por atravessar esta planície e agora por repouso me dizes para en- sis na queda da virgem Perséfone, por obra de Eros, no tenebro-
trar na fornalha ardente!... so reino de Plutão. E, verdadeiramente, a divina Perséfone, caída
E, olhando, o frade viu em torno da fornalha inúmeros demônios, no sofrimento do inferno, era o símbolo da alma humana, que
que seguravam forquilhas de ferro e com estas, porque ele demorava expia na vida e na luta pela sua redenção, que cai e se purifica
a entrar, o arrastaram subitamente para as chamas... das baixas paixões e reencontra a visão da verdade. Como já
... E o Anjo que o conduzia, impeliu-o para fora da fornalha, di-
disse e repito, o fenômeno noúrico que estamos estudando não é
zendo-lhe:
senão o fenômeno da evolução, o fenômeno da ascensão da al-
– Prepara-te para uma horrível viagem, que ainda tens de fazer!
ma humana. Que a ciência não o isole, mas compreenda que é
Recomendando-se, disse o frade:
fenômeno de imensa vastidão, em que se precipita o equilíbrio
– Ó duríssimo condutor, que nenhuma piedade tens de mim! Vês
biológico de todo um passado, estabilizando-se num mais eleva-
como me queimei na fornalha e ainda me queres levar a uma viagem
do equilíbrio de forças espirituais; compreenda que a alma não
perigosa e horrível!
atinge a percepção inspirativa senão através da dolorosa elabo-
O Anjo, porém, tocou-o, e ele se tornou são e forte. Conduziu-o,
ração dos milênios. Esse lampejo de intuição, que lhe permite
depois, a uma ponte, onde não se podia passar sem grande perigo,
sentar-se no Alto, diante do trono de Deus, finalmente digna de
porque era muito frágil e estreita, muito escorregadia e sem parapei-
tos; por baixo passava um rio terrível, cheio de serpentes, dragões e conhecer a verdade, está no ápice da escala da evolução huma-
escorpiões, que exalavam muito mau cheiro. E disse-lhe o Anjo: na. Concluo com as “Florinhas” de São Francisco:
– Passa esta ponte. De qualquer modo deverás atravessá-la. “A águia voa muito alto, mas, se ela tivesse ligado algum
– Como poderei transpô-la sem cair neste perigoso rio? peso às suas asas, não poderia voar muito alto”.
Respondeu-lhe o Anjo: A apoteose de Francisco é no Verna. A corrente divina des-
– Vem após mim e põe o pé onde eu puser o meu e assim pas- ce na nova forma de amor, desejada por Cristo, e a alma de
sarás bem. Francisco não a alcança completa senão na plenitude de sua
E o frade acompanhou o Anjo como este lhe havia ensinado e maturidade, no fim de seu caminho terrestre:
chegou até ao meio da ponte, quando, então, o Anjo ausentou-se “Na dura pedra, entre o Tibre e o Arno,
num voo e se postou no cume de um monte elevadíssimo, muito lon- Recebeu de Cristo o último sinal,
ge da ponte. Examinou bem o frade o lugar para onde voara o Anjo; Que seus membros por dois anos levaram.” 21
viu-se, assim, sem guia e, olhando para baixo, viu os terríveis ani- Eis, brevemente, a viva narrativa das “Fioretti”:
mais que, do seio das águas, levantavam suas cabeças e abriam as “... e São Francisco, de manhã bem cedo, antes do despontar do
bocas, como se preparando para devorá-lo, se ali ele caísse. Estava dia, se põe a orar diante da porta de sua cela, volvendo o rosto para o
tão amedrontado, que não sabia o que fazer ou dizer, porque não nascente... E, estando assim, inflamando-se nessa contemplação,
podia recuar nem avançar. Vendo-se em tão grande tribulação e que nessa mesma manhã, viu vir do céu um Serafim com seis asas res-
não teria outro refúgio senão somente Deus, inclinou-se e, abraçado plandecentes e flamejantes; e o Serafim, num voo veloz, aproximou-
à ponte, e de todo o coração e com lágrimas, suplicou a Deus que, se de São Francisco, tanto que este o pôde discernir, percebendo cla-
por Sua santíssima misericórdia, o socorresse. Feita a oração, pare- ramente que tinha diante de si a imagem de um homem crucificado...
ceu-lhe que lhe nasciam asas, e esperou com imensa alegria que E, estando assim admirado, foi-lhe revelado por aquele que lhe apa-
elas crescessem, a fim de poder voar até onde se encontrava o Anjo. recia que, pela divina providência, aquela visão lhe surgia de tal forma
Depois de algum tempo, pelo grande desejo que tinha de abandonar a fim de que ele compreendesse que, não por martírio corporal, mas
a ponte, pôs-se a voar. Como as asas, porém, não eram suficiente- por incêndio mental, teria ele de ser completamente transformado na
mente grandes para o voo, ele caiu sobre a ponte como também as positiva semelhança de Cristo crucificado.
penas. Novamente abraçou a ponte e, como já havia feito, recomen-
dou-se a Deus. Terminada a oração, de novo percebeu que lhe nas- 21
Divina Comédia, canto XI do Paraíso (N. do T.).
158 AS NOÚRES Pietro Ubaldi
“Nessa aparição admirável, todo o monte do Verna parecia arder Apareceu, pouco depois de Francisco, em Foligno, uma mu-
em brilhantíssimas chamas, que iluminavam todos os montes e vales lher admirável pela sua inspiração, tanto que foi chamada “ma-
em derredor, como se o Sol houvesse descido à Terra; e os pasto- gistra theologorum”22, embora desfavorecida de estudos: a
res, que velavam nessas redondezas, vendo o monte incendiado e bem-aventurada Ângela de Foligno (1249-1309). Diante de cer-
muita luz em torno dele, tiveram grande medo, conforme depois con- tas verdades elevadíssimas, muitas vezes é melhor sonhar, por-
taram aos frades, afirmando que aquelas chamas duraram sobre o que as descobre mais facilmente o poeta que o cientista, ou en-
monte do Verna por espaço de mais de uma hora. Igualmente, ao tão o cientista deve fazer-se poeta, para saber olhar o mundo
esplendor dessa luz, que atravessava as janelas das hospedarias da com a ingenuidade de uma criança.
região, alguns tropeiros que iam para Romagna se levantaram, cren- Há também na vida de Ângela um período preparatório de
do que já fosse dia, e carregaram seus animais, e, após iniciarem a maturação, feito de dúvidas e contrastes, da vida mundana
viagem, no caminho, viram cessar aquela luz e levantar-se o Sol. que, numa curva do destino, se modifica em vida de perfei-
... “Nessa aparição seráfica, Cristo, que se tornou visível, falou a ção moral. E, nesse momento, também uma voz fala, produz
São Francisco certas coisas elevadas e secretas, que jamais em vida um choque, e o ser se transforma. Existe sempre um momen-
o santo quis revelar a ninguém... Desaparecendo a admirável visão, to crítico na evolução das almas, em que os equilíbrios pre-
após falar durante muito tempo e em segredo, deixou no coração de cedentes se precipitam para se restabelecer novamente num
São Francisco um ilimitado ardor de amor divino e, na sua carne, plano mais alto. O despontar do estado inspirativo parece ser
deixou um maravilhoso sinal e imagem de paixão de Cristo...” a nota fundamental do fenômeno da gênese mística; sempre o
O fenômeno foi tão forte, que assumiu forma visual e au- encontramos ligado à aparição de estados morais de elevada
ditiva e atingiu efeitos físicos permanentes. O espírito do cris- perfeição. Reaparecem aquelas relações que já, de início, ob-
tianismo alcançou no Verna um dos mais elevados vértices de servamos. Ângela ouviu a voz da inspiração na igreja de São
sua realização. Francisco, em Foligno, a poucos passos de distância de seu
Atingido seu ápice espiritual, a vida de Francisco não mais palácio, enquanto orava. Aquela voz a inflamou de divino
tinha motivo de continuar sobre a Terra, e cede ao cansaço do amor e assinalou a mudança de sua existência para uma vida
corpo, esgotado pelo grande incêndio, e se extingue cantando as de pobreza e contemplação. A recordação de Francisco, fale-
harmonias da criação. cido há pouco, era próxima; próxima estava também sua Assis.
No “Cântico das Criaturas”, a unificação é atingida, a alma A vida mundana se transforma em vida de penitente, e, parale-
se harmonizou com a sinfonia do universo, tudo revive no es- lamente, explode a inspiração. Diz-se que se dirigia à famosa
pírito, e à grande corrente espiritual do amor de Cristo que basílica de Frei Elias em Giotto, realizando a pé um trajeto de
desce ao coração humano responde, em sintonia, o cântico de cerca de quinze quilômetros, sempre absorta em meditação.
toda a criação: Retornando certa vez a Assis, pouco além de Spello, onde a es-
“... Louvado sejas meu Senhor, com todas as tuas criaturas, es- trada começa a subir, ouve o espírito dizer-lhe: “Acompanhar-
pecialmente o senhor irmão Sol que nos dá o dia e nos ilumina... te-ei até São Francisco, falando contigo, fazendo-te provar di-
Louvado sejas meu Senhor, pela irmã Lua e pelas estrelas, que vinas alegrias... Eu sou aquele mesmo que falava aos apósto-
no céu formaste claras, preciosas e belas. los... sou eu, o espírito... não temas...”. Despertando de seu êx-
Louvado sejas meu Senhor, pelo irmão Vento e pelo ar, nubla- tase ao ingressar no templo, pôs-se a clamar em presença de
do ou sereno, e por todo tempo, pelo qual a todas as criaturas sus- todos sua sobrevinda visão. Depois concluía como São Paulo,
tentas. que, arrebatado ao terceiro Céu, confessava: “o olho não viu
Louvado sejas meu Senhor, pelo irmão Fogo, com que iluminas a nem o ouvido jamais ouviu as misteriosas palavras...” 23; o con-
noite. E ele é belo, alegre, robusto e forte. ceito expresso na tradicional terminologia religiosa permane-
Louvado sejas meu Senhor, por nossa irmã e mãe Terra... ceria verdadeiro, embora traduzido para a moderna nomencla-
Louvado sejas meu Senhor, por nossa irmã, a Morte corporal, da tura científica, demonstrativa e exata.
qual nenhum homem pode escapar...” Sempre mais purificada pelo sofrimento e pela renúncia,
Os laudes do Senhor por suas criaturas são o último canto Ângela se torna mulher famosa, como Rosa de Viterbo e Cata-
do grande inspirado, com que a voz interior se cala. A emana- rina Benincasa, filha de Jacó, tintureiro de Fontebranda (S. Ca-
ção radiante do divino centro do universo, as vibrações espiri- tarina de Siena). São inúmeros os casos de pessoas que, sem a
tuais cheias de reflexos do princípio animador de todas as cri- mínima preparação cultural, muitas vezes analfabetas, sabem
aturas e de todas as coisas se fundiram, numa harmonia única, argumentar acerca de altos problemas de teologia.
no espírito daquele que foi, a um só tempo, grande sensitivo, Novamente penso em S. Félix de Cantalice, em S. João de
artista, poeta e santo. E o encanto dessa harmonia, na qual to- Cruz; em Santa Brígida, que afirma haver recebido da voz do
da a criação canta em Deus, terá tido seu paraíso no Céu como Cristo as regras da ordem por ela fundada em S. Agostinho, que,
o fora na Terra. nas suas “Confissões”, assevera também a presença de uma voz
Falei sobre Francisco com a alma trêmula de veneração e que o guia. Penso em tantos, que é impossível enumerá-los.
amor, como quem olha um gigante que se encontra na vanguar- Certos caminhos que se abrem aos humildes parecem dever
da do caminho da vida, que se move nos cimos vertiginosos da estar fechados aos sábios. “Há verdades que se recusam a quem
perfeição que desejaríamos atingir, mas em face dos quais as as investiga, para se concederem a quem as sente”, disse Car-
pobres forças humanas caem prostradas. los Delcroix. A verdade não se conquista por violência de von-
◘ ◘ ◘ tade, mas por estados de sutil penetração de alma. Acrescenta
Falar sobre todos os inspirados desde a Idade Média até Schuré, em sua obra “Grands Initiés”, em uma nota à pág. 649:
nossos dias seria um enorme trabalho, que não poderia caber “Les annales mystiques de tous les temps démontrent que des vé-
nas breves páginas deste volume; seria um inútil alarde de eru- rites mora1es ou spirituelles d'un ordre supérieur ont été perçues par
dição, fácil de adquirir, de resto, nas páginas de uma enciclo- certaines âmes d'élite, sans raisonnement, par la contemplation inter-
pédia, além de que, seria ainda um tratado demasiadamente ne et sous forme de vision. Phénomêne psychique encore mal counu
denso para o leitor. Prefiro vaguear de braços dados às atra-
ções de minha simpatia, que me garante, aliás, minha compre- 22
Mestra de teólogos (N. do T.)
23
ensão, permitindo-me uma visão mais cálida e mais íntima. I Epístola de São Paulo aos Coríntios, 2:9 (N. do T.).
Pietro Ubaldi AS NOÚRES 159
de la science moderne, mais fait incontestabie. Catherine de Sienne, ca de um ambiente apropriado à percepção interior. Aos 16
filie d'un pauvre teinturier, eut, dès 1'âge de quatre ans, des visions anos, tomava ela o hábito de S. Domingos; iniciada uma vida
extrêmement remarquables24”. de sacrifício, a potência visual se apura, intensificando-se as
Esses seres excepcionais se elevam na graça divina, absor- místicas visões. Alimentada por estas, desce depois ao mundo
vem-lhe a essência e, depois, descem até junto dos homens para para fazer o bem. Começou-se, então, a compreender sua per-
dar-lhes a sabedoria e a felicidade de que se inundou seu ser. sonalidade, formando-se em torno dela uma coroa de compre-
Tudo isso foi chamado histerismo. Sabe, porém, a ciência o que ensão e de admiração, e ela se dá totalmente à obra de conforto
é histerismo? Se o soubesse, curá-lo-ia. Isso chamo de simplis- material e espiritual; ensina, defende, encoraja. Dilata-se, as-
mo. E, se desse suposto mal patológico provêm produtos tão sim, sua vida pública, e daí nasce um vasto epistolário, endere-
elevados, que se impõem à atenção e veneração do mundo e çado a papas, cardeais, reis, príncipes, capitães mercenários,
ofuscam a sabedoria humana, se tudo isso é desequilíbrio, ben- homens de estado, nobres, homens do povo, grandes damas e
dita seja então essa doença, bendito seja esse desequilíbrio, pois humildes religiosas. Não escreve, embora o houvesse aprendi-
são os caminhos daquela luz que não é atingida pelos sentidos do miraculosamente, mas dita, como era uso em seu tempo.
dos sãos e dos normais. Pelo contrário, veem-se aqui os sinais Nasce, desse modo, uma volumosa correspondência que, jun-
de verdadeira maturidade de espírito, que significa a conquista tamente com o “Diálogo”, todo escrito em êxtase, forma um
realizada dos mais elevados valores morais, individuais e soci- monumento, admirável pela pureza de linguagem, beleza de
ais, aqueles por cuja conquista a humanidade, ainda involuída, imaginação, profundeza de conceito, altitude de perfeição mo-
vive sofre e trabalha; tudo isso significa a evolução realizada ral. Propaga em torno de si o incêndio de sua elevada paixão e
nos mais altos níveis biológicos, que são os do espírito, de que induz, finalmente, o pontífice, exilado na França, a retornar a
o homem comum, ainda muitíssimo próximo da animalidade, Roma, realizando assim uma missão política que se assemelha
está imensamente distanciado. à de Joana D‟Arc, que a biosofia venera como sua patrona.
A alma de Ângela maturou-se não no estudo, mas na dor. Pronuncia Catarina, mais tarde, um discurso no Consistório,
Analfabeta, talvez, não deixou ela, diretamente, nenhum es- em presença do colégio dos cardeais, para salvar a Igreja do
crito. O evangelista do verbo de sua alta intelectualidade foi o cisma. Viveu uma vida de lutas e esforços imensos, em que era
irmão Arnaldo, franciscano de Foligno. Em estado de êxtase, sustentada pelos seus íntimos contatos com o Alto. Cristo é
ela lhe falava das coisas elevadas que ouvia e que a palavra sempre, como para Francisco, o grande animador dessas vidas
não lhe era suficiente para traduzir. Arnaldo escrevia, buscan- que se movimentam como uma emanação de sua força e de seu
do atingir-lhe o pensamento sem consegui-lo e, quando apre- pensamento. Dessa vez, a corrente de pensamento e de paixão
sentava a Ângela o escrito, esta se surpreendia, quase não o re- desce para salvar a Igreja em perigo. O fenômeno obedece
conhecendo, e dizia: “Disse eu isso? Não te disse isso. Não re- sempre a uma lei lógica de finalidade, a que se proporciona.
conheço haver pensado como está escrito”. Frequentemente, Histerismos, pois, também estes que tiveram uma missão soci-
ficava absorta, durante dias, em suas visões. Também neste ca- al, que inspiraram a arte, que forneceram uma produção literá-
so, Cristo é o centro de irradiação; Cristo, que foi precedido ria, que interessaram o mundo, que são venerados pelas multi-
por uma corrente que, no profetismo hebraico, o esperou, ago- dões nos altares entre as coisas santas?
ra, no Cristianismo, é seguido por uma corrente que o recorda Há um fato que ressalta evidente em todos estes casos, mas
e em que revive. Assim, essa insigne mulher da Itália alcan- especialmente neste: as correntes noúricas não se manifestam
çou, por elevação de conceito, os mais árduos campos especu- jamais através daqueles que parecem os mais preparados, isto é,
lativos; raciocinava, com engenho sutil e com tranquila subli- os poderosos e os sábios, mas preferem os simples e os humil-
midade, sobre a essência da Divindade e sobre Seus mistérios; des, escolhendo para instrumento os que parecem ser os últimos
dos mortais. Característica do fenômeno, que tem seu significa-
alcançava, no campo teológico, uma orientação que os sábios
do, porque a cultura é um preconceito e o poder, uma vontade
não possuíam; navegava, segura, num mar de abstrações con-
rebelde, que obstam ao livre fluir das correntes e sua aceitação.
ceptuais que estavam absolutamente acima de seus normais
Há uma necessidade de solidão para a busca da sintonização
poderes psíquicos. Voava, assim, por intuição, constituindo-se
receptiva; é a solidão dos anacoretas no deserto, dos eremitas
modelo vivo, ela que era mulher inculta, de teologia mística,
nos montes, dos monges nos claustros; necessidade de silêncios
de coisas transcendentais do espírito, tanto que foi chamada
do mundo, para que neles se possa ouvir a voz da alma. Vêm
“magistra theologorum”, isto é, considerada como grande
depois a dor, a renúncia, que distanciam o espírito da Terra, e,
exemplo de sabedoria mística. Em vida, muitos vinham de
frequentemente, uma progressão de potência receptiva e de cla-
longe para conferenciar com ela a respeito de difíceis proble-
reza perceptiva, proporcionais à purificação atingida através da
mas do espírito e da fé, e, depois de sua morte, recebeu a ho-
dor e da renúncia. Existe na alma um senso de missão que justi-
menagem da ciência e das letras da Itália e da Europa.
fica a dor, o esforço, a vida, que anima e sustém o árduo traba-
Outra grande mulher apareceu logo após, no cenário da vi- lho do apostolado, que tudo guia ao plano da ação.
da, para influir e impor-se à atenção do mundo: Catarina de Aparece, então, frequente e evidentemente, o momento crí-
Siena (1347-1380). Muitíssimo conhecida, não havendo neces- tico da crise espiritual em que a voz se faz ouvir, distinta, in-
sidade de se repetir sua história, faz pensar na coroa de delica- flamando a vida e jamais se calando. Verifica-se, simultanea-
das flores que a Idade Média soube produzir. Ávida de solidão mente, uma ascensão moral contínua, e, no fundo de tudo, a
desde criança, nela se refugiava para deliciar-se em suas vi- grande força animadora que fala, que vibra, que inflama é Cris-
sões. “O beata solitudo! O sola beatitudo!”, dela também se to. De Moisés aos nossos dias, temos visto, sempre idêntica, es-
poderia dizer. Mas esse isolamento não é vazio, é apenas a bus- sa potência de divino pensamento descendo e governando o
24
mundo. É uma realidade histórica que não se pode destruir. E
Os anais místicos de todos os tempos demonstram que verdades frequentemente há, em face dessa grande força, uma imolação
morais ou espirituais de uma ordem superior têm sido percebidas de todo o ser, um martírio breve ou demorado, de uma vida in-
por certas almas de elite, independentemente de raciocínio, pela
contemplação interna e sob a forma de visão. É fenômeno psíquico
teira. Sempre a mesma dor e a ciência de vencê-la num mundo
ainda mal conhecido da ciência moderna, mas constitui fato incon- mais elevado, que a mediania não vê. Só isso parece dar o direi-
testável. Catarina de Siena, filha de um pobre tintureiro, desde os to e a coragem suprema de falar em nome de Deus. Saberá,
quatro anos de idade, teve visões extremamente notáveis”. (Schuré, pois, a evolução, sozinha, resolver o grande problema e obter a
Os Grandes Iniciados) (N. do T.). vitória sobre a eterna inimiga do homem – a dor?
160 AS NOÚRES Pietro Ubaldi
É grande o número dos místicos, e, quando dizemos místi- cia. Lendo novamente, desse modo, a vida de Joana, nos planos
cos, dizemos inspirados; de Santa Clara a Santa Gertrudes, a mais elevados do espírito, podemos compreendê-la. Para enten-
Santa Teresa (a carmelita de Ávila, reformadora de ordens, der esses fenômenos, importa haver penetrado a personalidade e
célebre por suas visões místicas; 1515-1582), à extática de Pa- toda a vida espiritual do sujeito; é preciso, quando se afrontam
ray-le-Monial, que foi comparada ao extático de Patmos; o essas vidas de missão e de martírio, possuir uma alma sensível a
apóstolo da doçura, João, que havia repousado ao peito do esse mundo de sutis vibrações. De outro modo, seremos incom-
Cristo; a mística esposa Margarida Maria Alacoque (1647- petentes como um matemático que quisesse resolver problemas
1690). Nela, o colóquio com Cristo é contínuo, intenso, dori- sem possuir o senso da matemática. Tal foi Anatole France na
do e inefável de alegrias espirituais. Como os profetas e após- sua “Vie de Jeanne D’Arc”. Nesses casos, o pensamento perma-
tolos, Margarida Maria fala com Deus e recebe uma revela- nece negativo e não atinge senão a destruição. Reservamo-nos,
ção, que transmite à humanidade; mas tudo isso faz humilde- porém, para o trabalho mais difícil, que é o de afirmar e criar.
mente, silenciosamente, em afetuoso tom menor. Sua ascen- Encontramos novamente aqui, como já vimos em muitos
são se gradua por colóquios sucessivos, em que se revela o outros casos, os elementos do fenômeno inspirativo, que o pre-
plano de sua missão. Por inspiração, recebe mensagens e as param e o acompanham. Para compreendê-lo, eu o reduzo à sua
transmite, entre as quais uma para o Rei Sol, Luís XIV, que estrutura essencial, que é um cálculo de forças imponderáveis e
não a escuta. É uma característica desses séculos, especial- reais, provenientes de centros superiores de emanação noúrica,
mente na terra latina, essa florescência de mulheres místicas, que descem para unir-se e combinar-se com as correntes espiri-
às quais parece confiada a divulgação do novo sentido de tuais da história e do destino individual.
amor trazido por Cristo; a mulher, que não havia aparecido no A elevada origem dessas forças, sua proveniência dos mais
seio do severo e tempestuoso profetismo pré-cristão, pode altos planos espirituais, não padece dúvida no caso de Joana
agora fazer brotar sua flor de delicadíssima fragrância. O po- D‟Arc. Ela havia feito pintar em sua bandeira, de um lado, as
ema gentil de Francisco continua, e, através dos séculos, se palavras: “De la part de Dieu”, e do outro o moto “Jhesus-
estende uma sinfonia de almas harmonizadas em torno de um
Maria”25. Este moto ela escrevia em suas cartas, como fazia
pensamento único e de uma missão constante: fazer reviver o
Santa Catarina de Siena. Isso demonstra que, também aqui, o
Cristo na Terra, mantê-lo presente, a fim de que se realize sua
pensamento de Cristo era dominante no espírito de Joana. Ela
palavra: “Eu não vos deixarei órfãos; voltarei a vós” (João,
amava imensamente sua bandeira e a quis a seu lado na catedral
XIV, 18). É o novo cântico que continua o profetismo hebreu,
de Reims, na plenitude do cumprimento de sua missão política e
o cântico da realização, na Terra, do Reino dos Céus.
guerreira, quando da coroação de Carlos VII. Do seu estandarte
Assim, chegamos aos tempos modernos, em que o fenôme-
dizia: “Il avait été à la peine, c'était bien raison qu'il fut à l'hon-
no assume novos aspectos. Poderia referir-me a muitos outros,
como Catarina Emmerick, a grande vidente alemã do século neur”26 (Proc. 1, 187). A última palavra que Joana pronunciou,
XIX. E que dizer de Teresa Neumann, de Konnersreuth, a fa- na fogueira, em face da morte, quando já não se pode mentir,
mosa vidente bávara, a estigmatizada, que, nas suas visões, se- foi: Jesus. Além disso, aquele “Venho da parte de Deus” é a in-
gue a paixão de Cristo, revive-a no seu corpo, ouve e repete pa- vocação suprema que traz Deus como testemunha, é o juramento
lavras em grego, hebraico e aramaico, línguas que ela não co- que empenha toda uma vida até ao martírio. Um instintivo terror
nhece? Também neste caso, há paixão, amor e dor, sublimação impede de mentir, de falar em nome de Deus quando disso não
no espírito, o elemento moral elevado ao primeiro plano, a vir- se é digno. Joana, que era uma inspirada e deu sua vida para tes-
tude heroica do sacrifício para o bem dos outros. Existe um tão temunhar a verdade de suas vozes, não poderia deixar de sentir
profundo contato espiritual com Cristo, que constitui para Tere- quão tremenda é esta expressão: “Falo em nome de Deus”.
sa sua principal nutrição e substitui o alimento de que, por lei A Igreja, que jamais, nem sequer no momento de maior ce-
orgânica, todos têm absoluta necessidade de ingerir para viver. gueira, quando Joana foi condenada à fogueira (grande respon-
O fato, que é tendência geral dos místicos, de descuidar-se sabilidade moral para a Universidade de Paris), cogitou de
do alimento material, preferindo o espiritual, faz pensar que, qualquer mutilação das capacidades intelectivas humanas, re-
nos mais elevados graus de evolução, o ser possa conseguir correndo à tese de sugestão, histerismo ou neurose na interpre-
seu reabastecimento dinâmico diretamente de fontes imateri- tação do fenômeno de Joana, só teve uma preocupação, que foi
ais, sem ter de percorrer o longo caminho dos órgãos digesti- a de saber se as correntes provinham do Alto ou do baixo, de
vos. O estudo, porém, destes problemas colaterais nos levaria Deus ou de Satanás, se eram, pois, da verdade e do bem ou do
a grande distância. erro e do mal. Essa é a questão fundamental. E, se, num primei-
Omiti, para sobre ela falar agora, particularmente, pois que ro momento, no processo de condenação de 1431, o sereno jul-
se eleva como cimo solitário entre a multidão dos inspirados, gamento é ofuscado por ódios de facção, por interesses, por in-
quer pela potência da percepção, quer pela vastidão da missão vejas, por erros do clero local, que se impõe, enquanto o papa-
e tragédia do martírio, a grande inspirada, a heroína da França, do (Eugênio IV) está longe e não informado, a Igreja, em se-
Joana D‟Arc (1412-1431). Seu caso, que é inspirativo por ex- guida, talvez na própria impossibilidade de salvar Joana, se dis-
celência, se distingue sobre o mesmo fundo místico pelo cará- pôs à mais completa e explícita reparação no processo de reabi-
ter heroico que lhe confere a particular missão imposta pelos litação, empreendido quase imediatamente, em 1456. Esse pro-
tempos. Essa distinção nos é necessária para traçar, com cesso de revisão, iniciado quatro anos antes por vontade do
exemplos, as notas fundamentais do fenômeno, as mesmas que Pontífice Calixto III, do Rei Carlos VII e da mãe de Joana, é
nos darão a expressão de sua lei. encerrado com uma sentença de reabilitação, em que a inspira-
Observemos como, neste caso, as forças superiores organiza- da já aparece em sua linha de santidade, que a coloca nos ele-
ram a missão e dispuseram os elementos decisivos na estratégia vados níveis da inspiração cristã. Finalmente, a própria Igreja,
do destino de Joana. São estes, queiramos ou não, os elementos após a beatificação (1909), proclamou a canonização em 1920,
que individuam o fenômeno e lhe acompanham o desenvolvi- e Pio XI, em 1922, a declarou santa.
mento. É a uma consciência das causas, que são essas correntes
que iluminam, guiam e querem, que devemos juntar a lógica e 25
Assim mesmo, na ortografia da época (Jhesus) (N. do T.).
inegável concatenação dos efeitos. É a essa história interior que 26
“Estivera presente (como ela, Joana) nas horas de sofrimento, as-
eu vejo, a esse drama que se agita nas profundezas da trama his- sim, com mais forte razão, deveria estar presente no instante da glo-
tórica externa, que todos conhecem, que dou a maior importân- rificação” (N. do T.).
Pietro Ubaldi AS NOÚRES 161
No fenômeno inspirativo de Joana D‟Arc refulge logo, e Demonstrado este ponto da elevação inspirativa de Joana
sempre mais intensa, esta característica, que considerei funda- D‟Arc, da progressão de sua ascensão moral, fenômeno parale-
mental para a pureza da revelação: a altitude espiritual da fon- lo a uma intensificação de sua dor, depois de haver recordado,
te. Não nos admiremos da diferente compreensão daquele tem- também no presente caso, a relação já descrita anteriormente
po. Uma ideia não poderá ser compreendida no seu século se entre sofrimento e progresso espiritual, observemos agora como
este é surdo às ressonâncias que ela excita. Quando as almas se comportam as suas vozes, como agem quais forças conscien-
são surdas a esse gênero de vibrações, então a maioria nega, o tes. Qual seja a técnica científica de sua descida é outro pro-
fenômeno se refreia numa aparência de falsidade, desapare- blema, de que cuidaremos posteriormente.
cendo no silêncio, para levantar de novo sua voz mais tarde, No caso que estamos examinando, as correntes noúricas re-
quando as almas souberem responder. Nem todos os tempos velam uma consciência do momento histórico; sua intervenção
são capazes de compreender. Assim, Joana dormiu quatrocen- supranormal é justificada por uma necessidade excepcional e
tos anos e depois despertou; foi esquecida pela frivolidade do impelente; sua ação direta, que guia uma camponesinha, uma
século XVIII, negada pelo materialismo, mas despertou na re- criança quase analfabeta, é proporcionada aos eventos, oportu-
ligião e desperta na ciência, que já não pode negar. Quando os na, vitoriosa. A causa, portanto, é extremamente inteligente, de
tempos são surdos à compreensão, o fenômeno sabe esperar a uma potência volitiva e compreensiva superior aos homens, in-
época de sua ressonância, em que, finalmente, a vagarosa alma clusive o escol da época, que formam o fundo cinzento e baixo
coletiva haja sabido atingir sua altitude, condição necessária de vileza sobre o qual se move o destino radioso de Joana.
para o contato da compreensão. O momento histórico não poderia ser mais trágico para a
Esse lado moral, de que a ciência prescinde, é para mim França. Existem uma proporção e uma tempestividade entre ele
fundamental nesses fenômenos, porquanto é ele que define o e a obra de Joana, embora o quadro histórico completo de seu
timbre das vozes e estabelece o seu valor. A elevação moral da tempo ela não o pudesse ver, não só porque ignorante, mas
fonte encontra-se espelhada toda no sujeito, no gênero de vida também porque continha ele germens de longínquos desenvol-
que lhe é imposto pela inspiração; projeta-se, desse modo, tam- vimentos, para cuja compreensão seria necessário distanciar-se
bém em nosso mundo, em atos que são garantia de pureza noú- do momento contemporâneo e obter aquela visão de conjunto
rica, o sinal que nos garante estarmos longe daquelas horríveis que somente à distância de séculos se pode possuir. De fato, a
comunicações barônticas, de que tenho horror como de um in- missão histórica de Joana não foi compreendida senão muito
cubo. E a grandeza moral de Joana é triunfante em todos os mais tarde; os contemporâneos, atentos às coisas próximas, em
momentos. Sozinha contra todos, ela impõe à França sua salva- geral veem pouco ou nada desses destinos de vanguarda.
ção. É humilde e obediente às suas vozes. Jamais coisa alguma Naquela época, a civilização europeia, que é civilização
solicita para si, mas dá-se em abnegação completa à sua missão cristã, ameaçava ruína. Da Itália, da Alemanha, da Espanha na-
e, para não renegar sua verdade, afronta o martírio. As mesmas da se podia esperar. A Europa está confundida pelo cisma, por
forças do Alto a mantêm nesse caminho de pureza, mas, apenas contínuas guerras, e os infiéis ameaçam do Oriente. A França,
realizado o esforço da vitória e dominada a ameaça de um re- esgotada pela Guerra dos Cem Anos, entre heresias e pilhagens,
pouso entre glórias humanas, elas se ausentam de Joana, fazen- está material e espiritualmente prostrada. Importava restituir a
do-a cair numa prisão. A ascensão moral lampeja mais inten- paz à Europa, fazer cessar a invasão inglesa, que, submergindo
samente na última fase da missão de Joana, que, logo após a a França, ameaçava seu destino e sua missão de desenvolvi-
apoteose do triunfo heroico na Terra, é subitamente lançada à mento da civilização europeia. Essas coisas os contemporâneos
conquista da vitória espiritual no Céu. É lei das elevadas cor- não poderiam enxergar. As almas, prostradas por longuíssimas
rentes o dar sempre ao espírito, tudo negando ao corpo. No ní- e extenuantes lutas, encontravam-se abatidas, e a anarquia
vel humano, Joana, combatendo os ingleses, que eram a injusti- triunfava. Faltava a centelha que reacendesse a esperança e a
ça e a opressão, combatia pela legalidade, que era, então, a base coragem. Joana responde à necessidade impelente de arrastar
do poder e a forma que naquele tempo assumia a justiça e, por para o Alto a alma coletiva. A história não é feita pelo homem,
isso, faz consagrar Carlos VII em Reims. Só um rei assim coro- mas pelas forças imponderáveis que a guiam. E elas intervêm
ado poderia, conforme o conceito da época, governar legitima- de maneira evidente quando existe um grande motivo e, no caso
mente diante de Deus e dos homens. Joana usa e suporta a guer- que examinamos, urgia salvar uma civilização que, criada pelo
ra como um recurso indispensável e um mal inevitável em face Alto, pelo Alto foi sempre guiada e protegida.
da justiça de seus objetivos. Guerra pela salvação da pátria, pe- Olhemos mais de perto o momento histórico.
la glória de Cristo, pelo triunfo de um princípio de bem coleti- Desposada com Carlos VI, Isabel de Baviera, ávida, viciosa
vo. Joana não é uma partidária da guerra até ao extermínio; e traidora, tanto quanto louco era o rei, lhe impõe o tratado de
embora hábil estrategista, inovadora, rápida, inteligente coman- Troyes, que, em 1420, abre as portas da França aos ingleses. O
dante, não amava a guerra, mas a paz. Guerra justa e ofereci- rei é abandonado, e Carlos VII, seu filho, vem a ser o Delfim da
mentos de paz – é o seu sistema. Em suma, embora no inferno França em 1416. Basta olhar-lhe o retrato. Por amor à vida
guerreiro a que teve de descer para o bem de sua pátria, sua po- tranquila, faz-se rebocar, como um peso morto, pesadamente
sição moral encerra sempre o máximo de altitude que as condi- por Joana, pondo a perder o fruto das conquistas da heroína.
ções do trabalho imposto permitiam. Elevação que foi de todos Em 1415, Henrique V da Inglaterra pretende o trono da
os instantes, jamais desmentida, coerente e imutável, elevação França e se prepara para conquistá-lo, a fim de fazer dele um só
que avança até à paixão e ao martírio. Há também uma progres- reino com a Inglaterra. A alma da França está dividida por riva-
são ascensional no caminho espiritual de Joana, assinalada pela lidades e discórdias de partidos. Os ingleses avançam. Em
intensificação de sua dor. Sofrimento e desapego, também neste 1420, Carlos VI firma o tratado de Troyes, pelo qual a coroa da
caso, paralelizam com o avanço da perfeição espiritual. Sempre França passa ao Rei da Inglaterra. Em 1422 Carlos VI morre e
o mesmo processo de purificação, que é sublimação de espírito. Carlos VII torna-se rei, mas não ainda legitimado pela coroação
É sempre a dor que põe em relevo a intervenção do Alto, pro- de Reims, que será obra de Joana. Os pequenos senhores estão
porcionada, em sua intensidade, à altitude da fonte. Superando divididos, inconscientes do momento, ambiciosos, passivos di-
as quedas da fragilidade humana, a dor é a garantia indiscutível ante do perigo. Quem salvará a França, governada por um rei
do valor da inspiração, pois o espírito só se aformoseia se é fla- irresoluto, empobrecido, abandonado? Urgia uma ação guerrei-
gelado. A ascensão é o esforço de sua reação, a dor é a força ra e política, um impulso que mudasse o curso da história. Esse
que o desnuda, o purifica e lhe dá brilho como a um diamante. impulso não poderia provir de nenhum recanto da Terra.
162 AS NOÚRES Pietro Ubaldi
Joana nascera em 1412. Aos 13 anos, em 1425, ouve as cação espiritual da heroína. A dor atinge, pois, somente a se-
primeiras vozes. Por quase quatro anos, de 1425 a 1429, escu- gunda fase do desenvolvimento individual da missão, quando o
ta-as, amadurecendo a própria preparação espiritual. E, ao remate da obra política se deu.
despontar de 1429, a heroína de dezessete anos entra em ação. Aos treze anos, no verão de 1425, Joana ouve as vozes no
São quatro rápidas e progressivas etapas: encontro em Vau- jardim da casa de seu pai. Essas vozes são o “leitmotiv” da vida
couleurs com o capitão Roberto de Baudricourt, encontro em de Joana, sempre presentes, sobretudo nos momentos mais de-
Chinon com o Delfim, libertação da cidade de Orléans dos in- cisivos. Elas se encontram à retaguarda dos fatos, são o centro
gleses, coroação de Carlos VII em Reims. Foi em julho que se motor de toda a sua missão. Dos treze aos dezessete anos, do
deu essa consagração. Três anos e meio de incubação do fe- verão de 1425 ao fim de 1428, isto é, três anos e meio dura o
nômeno, cinco meses e meio para traduzir o pensamento em período de preparação do instrumento, três anos e meio para
realidade. O impulso, que não poderia originar-se da Terra, que a inspiração se apoderasse inteiramente daquela alma. O
desce do Céu. A centelha que faltava à consciência nacional fenômeno é progressivo. Antes que a luta se exteriorize na Ter-
Joana a encontra no espírito, grande força também nos even- ra, através de fatos concretos, deve ela completar-se no espírito,
tos políticos. Políticas e guerreiras eram as necessidades do tem de ser antes solidamente estabilizado o equilíbrio interior
momento, e essa é a forma que assume a inspiração. A fonte das forças motrizes do fenômeno. Eis como Joana descreve sua
das correntes inspirativas não é apenas moralmente elevada, primeira percepção das vozes:
senão também supremamente inteligente. “Losque j’avais 13 ans, j’ai eu une Voix de Dieu pour m'ai-
A obra de Joana, assim, é aqui sentida como força ativa que der à me gouverner; et la première fois, j'eus grand peur. Cette
intervém e atua na história. As noúres, que eram bondade e Voix, vint vers midi, en été, dans le jardin de mon père; je
justiça, pensamento e consciência, eram também vontade e n'avais pas jeuné la veille. J'ai entendu cette Voix sur la droite,
energia de ação. E o caso de Joana não é único. A história, du côté de l'église, et je l'entends rarement sans voir une clarté.
como todos os fenômenos, tem sua meta e se desenrola segun- Cette clarté est du côté oú la Voix se fajt entendre et elle est
do um princípio lógico de desenvolvimento. Vejo nesse desen- habituellement très vive”27 (Proc. 1,52).
volver-se de todos os fenômenos, inclusive no histórico, um O primeiro sentimento é de medo, e, também aqui, a primei-
último termo substancial, que é a força que os movimenta. ra advertência da voz é: “não temas” (“ne crains rien”). Mais
Existe uma lei de equilíbrio entre os impulsos de todos os fe- tarde, quando o costume já houver tranquilizado Joana, a voz se
nômenos, e todos são imateriais, conexos, obedientes a uma fará mais forte e segura, iniciando seus apelos de comando:
única lei central, que é Deus. Nos momentos de depressão nas “Va, va, fille de Dieu, va...”28 e acrescenta: “a missão vem de
forças diretivas dos acontecimentos humanos, o vazio do infe-
Deus” (“de la part de Dieu”)29.
rior na Terra atrai por equilíbrio uma corrente espiritual do
As vozes são diversas. A primeira é de São Miguel, o anjo
Céu, e esta desce por vias inspirativas. Os impulsos do mal
guerreiro, o santo das batalhas, que guia os exércitos. Chegam-
têm de ser equilibrados com os do bem. Esta é a lei que faz
lhe depois, em auxílio, como que para proporcionar-se melhor,
nascerem os heróis, os gênios, os santos, quando urge uma
ameigando-se à feminilidade de Joana, outras duas vozes: S.
missão redentora. No momento decisivo da crise que ameaça
Catarina e S. Margarida. Existem também aí razões de simpa-
os sagrados valores do espírito, que sintetizam uma civiliza-
tia, de atração e de afinidade de missão.
ção, alguma coisa “tem” de nascer. Por isso nasceu Joana.
Esta última santa era representada na capela de Domremy,
Cristo, a grande força que havia fundado a civilização cris-
tã, velava, sempre presente, pela sua conservação. Desperta, terra natal de Joana, por uma estátua que ela venerava. A voz
então, o destino e sacode as almas adormecidas. Carlos VII, guerreira de São Miguel desaparece depois, nos fossos de Me-
embora rei, substancialmente era um nada; Joana, não obstan- lun, ao término da missão guerreira da heroína, quando seu des-
te ser uma pastorinha, substancialmente era a força que ex- tino se eleva pelas vias místicas do martírio. Então, somente fa-
plodia a seu lado. lam as duas santas do sacrifício e da virgindade.
Na história, entra em ação, nos momentos decisivos, a reali- Joana vê também um resplendor na direção da voz. Ouve,
dade do valor, e não a aparência da posição social. E que dife- vê, tem até sensações táteis e olfativas; as correntes assumem as
rença de armas e de métodos! Joana caminha rápida, reta e segu- mais diversificadas formas de vibrações sensórias, mas, acima
ramente, porque maneja as forças do bem, da justiça e da verda- de tudo, ela ouve. O ambiente de sintonização está inundado de
de; o rei e seus cortesãos vão pelas estradas tortuosas da dúvida uma paz idílica, de singela musicalidade campestre, cheia de
e da traição, incertos, vazios, desunidos. O espírito e o bem tudo poesia. Nesse ambiente, as correntes espirituais saturam de suas
governam, e Joana os possuía ambos. Ela era uma chama viva; energias a alma de Joana, o veículo que devia, depois, comuni-
os outros, um archote apagado. Eis o segredo de seu triunfo. car a transfusão espiritual à alma da França.
A inteligência do centro inspirativo, neste caso de Joana, Os bosques deviam ser seu ambiente de sintonização prefe-
não é somente provada pela tempestividade da intervenção, pe- rido, porquanto, durante o processo, imersa em vibrações mais
la ação proporcional aos acontecimentos da época, mas também baixas e opacas, Joana despendeu maior esforço para ouvir e,
pelo desenvolvimento lógico inegável que aquele centro im- numa sessão, chegou a dizer: “Se fosse num bosque, ouviria
prime ao destino de Joana. A inspiração tinha uma finalidade minhas vozes”. Joana, naqueles três anos e meio de sua prepa-
exata e constante, um plano de ação complexo, que muda de ração espiritual, como camponesa que era, vivera no ambiente
natureza ao longo de seu desenvolvimento e tem um período de rural, entre bosques e igrejinhas de aldeias tranquilas, na mais
preparação para a formação gradual do instrumento. harmoniosa atmosfera vibratória. Nesse ambiente, ela assimila-
Observemos de perto como nasce e se desenvolve a inspira-
27
ção de Joana, qual o motor espiritual de toda a sua missão ativa. “Quando eu tinha treze anos, ouvi uma voz de Deus, que buscava di-
Reencontraremos muitos dos conceitos já observados. A forma rigir-me; da primeira vez, senti grande temor. Essa voz manifestou-se
imposta pelas circunstâncias ao desenvolvimento dessa missão, por volta do meio-dia, no verão, no jardim da casa de meu pai. Eu não
havia jejuado na véspera. Percebi essa voz à minha direita, do lado da
que é confiada a uma adolescente, não poderia permitir os lon- igreja, e raramente a ouço sem que perceba também uma claridade.
gos períodos de maturação através da dor, que achamos em ou- Essa luz é vista sempre do meu lado, de onde a voz se faz ouvir, e é
tros casos. A distribuição das fases é invertida, e o fator dor é habitualmente muito brilhante”. (Processo, I, 52) (N. do T.)
todo condensado no final. E isso porque o primeiro escopo, em 28
“Caminha, caminha filha de Deus, caminha...”. (N. do T.)
29
ordem de tempo, é a salvação da França; o segundo é a purifi- “Da parte de Deus”. (N. do T.)
Pietro Ubaldi AS NOÚRES 163
va as correntes, intensificando suas qualidades de ressonância, Se as duas vontades se põem de acordo, permanecem, to-
aperfeiçoando sua afinidade com as mesmas correntes, até fun- davia, distintas, como distintos são os trabalhos a realizar. A
dir-se e tornar-se, ela própria, o impulso que lhe foi transmitido. vontade mais alta e mais sábia permanece na direção e guia; a
A primeira voz se manifesta no jardim da casa paterna, con- outra a segue. No caso de Joana, as vozes não revelam todo o
tinuando-se o contato, prosseguindo a iniciação, não mais com plano, mas, embora demonstrando conhecê-lo completamente,
interrupções, e sim constantemente, várias vezes por semana, só lhe comunicam, nos momentos oportunos, a parte dele que
um pouco em toda parte: pelas colinas do Mosa, aonde Joana interessa à sua execução. O inspirado é, pois, sempre guiado
conduzia a pastar seu rebanho; sob a árvore chamada “das fa- pela mão, como uma criança. A missão é revelada aos poucos,
das”; pelos bosques que cobriam a região; junto das fontes, entre e a comunicação se limita ao mínimo necessário. Parece quase
o canto dos pássaros e o perfume das flores, ao som dos sinos, que as vozes amam esconder no silêncio o que a alma não teria
que Joana muito amava e que verdadeiramente, especialmente força para aceitar, guiando-a, docemente, com o menor dis-
se grandes, são dotados de uma extraordinária potência de har- pêndio possível de energias.
monização vibratória. Eram estas as doces vibrações que as cor- Observemos como as vozes se comportam na vida de Joa-
rentes espirituais seguiam como vias de descida, como fundo de na. Concluída a tarefa de preparação, Joana é lançada pelas
ressonância, constituindo o harmonioso motivo de matéria sobre vozes em sua missão e parte no momento justo. Ela não sabe
que se apoiava a sinfonia divina. O concerto devia ser perfeito, outra coisa senão isso: “Va, va, filie de Dieu, va...”. As vozes,
sem dissonâncias, até seus ecos longínquos no mundo físico. porém, sabem e precisam, imediatamente, quatro objetivos:
Assim descia a noúre ao espírito de Joana, através da voz Vaucouleurs, Chinon, Orléans e Reims, conexos entre si por
interior das coisas boas e doces que se lhe inclinavam em torno, uma proporção e lógica de desenvolvimento que ascende a
em coroa, oferecendo-se como canais de sintonia. Assim se es- uma única meta. Quando as vozes não têm de ser precisas,
condem na humildade as grandes coisas. não o são. Há um acordo entre a sabedoria do Céu e as exi-
O ambiente das vozes é, pois, quase sempre nos campos e gências dos acontecimentos.
em lugares distantes e solitários, onde Joana gostava de refugi- Elas sabem que Orléans é a chave de toda a posição e que,
ar-se. E a campina de Domremy, onde vivia Joana, é ainda hoje perdida esta, desabaria a missão, que é de salvar a França do
verdadeiramente sugestiva pela sua tranquilidade e silêncio. domínio inglês. Orléans está sitiada desde outubro de 1428. Ao
As vozes, entretanto, falam também na igreja, outro ambi- iniciar-se 1429, Joana já se acha em movimento. Reims é o ob-
ente místico excelente, isto é, na igrejinha de Domremy e no jetivo político que não se pode atingir senão numa segunda fa-
vizinho santuário de Nossa Senhora de Bermont. Na primeira se. Primeiro, a vitória que permita a legitimação; e, depois, a
havia a estátua de S. Margarida, e, diante dela, Joana orava. O legitimação que confirme a vitória.
santuário de Bermont, isolado em silêncios, entre árvores, era o A marcha heroica se desenvolve com uma segurança de guia
ambiente afastado ideal de suas inspirações. A solidão daqueles que os grandes chefes daquela época não possuíam. Tudo é pre-
silêncios era necessária a Joana, a fim de ouvir melhor, e ela a dito. Joana, no caos, segue reta como uma flecha. “Mau grado
buscava para sua preparação. Ocupada em seu profundo traba- os inimigos, o Delfim se tornará Rei, e sou eu quem o conduzirá
lho interior, sua alma tinha necessidade de paz no exterior. à consagração” (Proc. II, 450). Assim afirmou a pequena pasto-
Nesse ambiente, a camponesinha da Lorena teria feito sua pro- ra. Como podia uma tão humilde criatura afirmar isso sem ser
messa solene, aceitando sua missão e comprometendo-se com o louca e, se era louca, como acertar com tamanha precisão?
Céu a segui-la até ao fim. A história não assiste a essa íntima Em março Joana está em Chinon e reconhece o Delfim entre
cena, em que a alma de Joana deve ter falado e talvez também a multidão dos cortesãos... “par le conseil de ma voix, qui me le
lutado longamente com suas vozes. Certamente elas estavam révelait” (Proc. I, 56). “Quand j'ai vu le Roi pour la première
presentes como estiveram no Sinai, em Patmos, em S. Damião. fois il y avait là plus de 300 chevaliers et de 50 torches sans
Existe na capela de Bermont um Cristo dorido e amargurado, a compter la lumiêre celeste. E j'ai rarement des revelations sans
Cujos pés a jovenzinha deve ter pronunciado o seu sim, um vo- qu'il y ait de lumière” (Proc. 1, 75). “Je l’entends rarement sans
to solene recolhido pelo Cristo moribundo e do qual não mais voir une clarté...”30, já havia dito Joana a respeito de sua pri-
poderia afastar-se. Aquele voto era também de dor e de paixão. meira aparição. Ao falar com o Delfim, ela lê no íntimo de seu
A lei de Deus desce e se humilha perante o consentimento espírito, atingindo suas secretas dúvidas, isto é, se ele era filho
da alma, porque, respeitando a liberdade desta, respeita a si legítimo de Carlos VI e Isabel. E Joana lhe diz que, justamente
própria. Somente agora Joana, desenvolvida antes de tudo inte- por sê-lo, ela o fará consagrar em Reims.
riormente, poderia lançar-se pelos caminhos do mundo. O doce Outro sinal se acrescenta: o miraculoso encontro da espada
período das efusões espirituais está terminado. Iniciar-se-á ago- enterrada de S. Catarina, coisa que Joana não podia saber e que
ra a grande batalha da conquista e do martírio. lhe foi indicada pelas vozes31. Em Orléans, a inspiração sustenta
Disse “lutando com suas vozes”. Sim, porque Joana não a estratégia e a técnica militar com uma capacidade que Joana
aceita passivamente, mas discute e frequentemente resiste às su- não podia possuir e que superava a dos chefes de seu tempo. Em
as vozes. Ela lhes opõe os raciocínios do seu bom senso, que poucos dias, uma camponesa de 17 anos consegue o que não o
calcula as dificuldades tanto quanto as próprias forças. As vozes puderam fazer, em vários meses, os homens aguerridos da épo-
eram sempre distintas do seu eu, com o qual às vezes colidem, ca. Orléans é libertada. As vozes tiveram uma confirmação exa-
sem se confundirem jamais. Dá-se um encontro entre sua vonta-
de humana e a vontade superior, uma como progressiva tomada 30
“Pelo aviso da minha voz, que mo revelou (Processo, I, 50). Quan-
desta sobre aquela, mas não existe qualquer violência que anule do eu vi o Rei pela primeira vez, lá estavam mais de trezentos cava-
vontade e liberdade. Se Joana obedece, é porque anteriormente leiros, sob a luz de cinquenta archotes, sem contar a luz celeste. Ra-
discutiu, compreendeu, convenceu-se. Forma-se um pacto entre ramente recebo revelações sem que haja manifestação de alguma luz”
dois seres livres, conscientes e consencientes. As forças do Céu (Processo, I, 75). Também raramente ouço sem que perceba também
e da Terra são distintas, encontram-se e lentamente se fundem uma claridade... ”. (N. do A.)
31
É uma referência a um fato realmente notável. As vozes disseram a
numa força única. Para isso, foi necessário um longo período de Joana que ela deveria usar, na luta contra os ingleses, a mesma espada
incubação, muito mais longo que o da conquista guerreira e do de Carlos Martel, que em 732 (sete séculos antes!) expulsara os mu-
martírio; um período de preparação invisível, antes que o fenô- çulmanos invasores da França na batalha de Poitiers, entre Poitlers e
meno pudesse explodir em sua maturidade; um processo de pro- Tours. E as mesmas vozes lhe indicaram onde a encontraria, enterrada
gressivo desenvolvimento antes de ele atingir sua plenitude. e esquecida, sob o altar de uma igrejinha campestre. (N. do T.)
164 AS NOÚRES Pietro Ubaldi
ta. Joana, porém, sabia que era preciso tudo realizar rapidamente Somente quando a alma adquiriu a força de olhar face a face
e tem pressa de concluir sua missão guerreira. Importava consa- o martírio, é que as vozes falam mais claramente Quando Joana
grar no rei a vitória conseguida, completá-la num plano de direi- foi capaz de compreender o verdadeiro sentido da sua liberta-
to. E avança contra Reims. Na tarde de 16 de julho, Carlos VII ção, só então as vozes lhe disseram: “Encara tudo isso com
entra na cidade, como as vozes haviam predito. Imediatamente, bom ânimo. Não te preocupes com teu martírio. Entrarás, fi-
no dia seguinte, um domingo, é realizada a coroação. nalmente, no reino do Paraíso”. E isso porque o significado
“Gentil Rei” – diz-lhe Joana – “acaba de realizar-se a von- profundo do fenômeno que estamos estudando se acha na evo-
tade de Deus, que queria se levantasse o sítio de Orléans e vos lução do espírito, no trabalho de sua potencialização que lhe
conduzisse a esta sagrada cidade de Reims para receber a San- permita, como vimos nas “Florinhas” de Frei Francisco, levan-
ta Consagração, mostrando, desse modo, que sois o verdadeiro tar voo para superiores planos de vida.
rei a quem o reino da França deve pertencer” (Proc. IV, 186). Vejamos, porém, mais de perto os acontecimentos. Depois
A França estava salva. As vozes, que haviam atingido seu de Reims, a estratégia de Joana é deixada aos seus recursos hu-
primeiro objetivo, já não têm, por algum tempo, a precisão e a manos. Ela havia trabalhado no baixo mundo humano, e é lei
potência de Domremy. De fato, com que proveito, se seu obje- que esse mundo devesse reagir; ela havia triunfado demais e não
tivo é outro? A pucela havia despertado a alma nacional. O des- poderia deixar de excitar ciúme e inveja de muita gente. A gran-
forço francês por ela preparado avançará e libertará sua pátria. deza a isolava. Os níveis de consciência humana comuns são
Todas as suas profecias se cumprirão. O ânimo de Carlos VII baixos, e os homens não sabem aliar-se senão por interesse, ra-
ressurgirá, e, quatro lustros mais tarde, a França será livre. Era ramente por um ideal. É natural que o conhecimento limitado de
suficiente aquela centelha. As forças haviam limitado sua inter- Joana, não mais sustentado pelas forças superiores, tivesse logo
venção ao mínimo indispensável. de despedaçar-se de encontro às astúcias de gente dada a todas
Depois de Reims, é outro o objetivo das vozes, e para essa as insídias, e ela cai vítima da traição. Os homens eram cegos;
nova meta se dirigem e com ele se harmonizam. As vozes per- só enxergavam o interesse mesquinho, por ser próximo e indivi-
manecem em seu método de dizer, guiar, encorajar e promover dual. Somente as potências do Alto haviam demonstrado uma
acontecimentos, parceladamente. Aí começa um novo destino de superior consciência do momento histórico, dominando no espa-
Joana, mas elas não lho revelam; só falarão claramente na Pás- ço e no tempo. Os homens inferiores são, porém, os mais tena-
coa de 1430, em Melun. O seu destino sobe, lenta e inadverti- zes e armados de vontade, de astúcia, de mentiras. O plano lógi-
damente, dos triunfos humanos aos triunfos divinos; já não se co de Joana era de avançar logo sobre Paris e aí concluir a paz,
trata da salvação da França, mas da sublimação da alma de Joa- como vencedora. Carlos VII, por quem ela lutava, pessoalmente
na através da dor. E sua paixão começa. É uma vitória maior, lhe frustra os planos, preferindo um armistício com Paris e uma
que deve consolidar a primeira e fazer de Joana uma santa. Pro- paz acomodatícia. Todo o impulso moral dado à França por Joa-
gressão ascensional do fenômeno, que o conduz a um limite na é quebrado: ela é traída pelo seu próprio rei. No momento da
imensamente mais elevado, em que o sofrimento, como já vi- ação decisiva, que deveria recolher todos os esforços anteriores,
mos, é o fator fundamental. Para Joana era necessário consolidar o rei vadia e espera. Em setembro, Joana ataca Paris. Aí se dá a
e consagrar sua ideia no martírio, que continha algo de maior primeira traição. Vários comandantes, não desejando a vitória da
que a salvação da França e que, no testemunho da morte, devia empresa, retiram-se da luta. No dia seguinte anuncia-se que é
estender-se ao mundo inteiro. Para que Joana, entretanto, pudes- expressa vontade do rei que se abandone a ofensiva.
se realizar sua ascensão, era indispensável, para ela, a falência E a traição continua. A primeira derrota ofusca a auréola da
de seu triunfo humano; importava que sua grandeza terrena nau- heroína. O povo quer o triunfo, a esmagadora persuasão do fato
fragasse na traição e no abandono por parte dos ingratos, em fa- concreto, que tudo justifica, o delito ou o milagre. Em face da
vor de quem ela havia lutado. Não devia ser ela quem colhesse, derrota, a santa é transformada em feiticeira. Joana permanece
para si, glórias terrestres. Sua glória devia ser seu puríssimo sa- cada vez mais sozinha, contra todos. O rei não quer senão man-
crifício pela França. Recompensas e gozos humanos teriam dis- driar; não cuida de Joana; sonha a paz. Naqueles tempos, nin-
sipado completamente essa sutil fragrância do espírito. guém desconfiava das demolidoras hipóteses do materialismo.
Uma vez mais, vemos, no fundo de todas as missões, Cris- Hoje, Joana estaria entre os loucos. Mas, naquela época, só po-
to a resplandecer, Cristo que atrai a si, na renúncia e no martí- deria ser ou feiticeira ou santa. Para os franceses, enquanto lhe
rio, as almas eleitas. Há, pois, um desenvolvimento lógico no foi útil com suas vitórias, era naturalmente uma santa. Para os
intimo progredir do fenômeno; o primeiro cuidado das forças ingleses, por ser inimiga de seus interesses, era uma bruxa, tese
superiores foi, assim, despojar a pucela de todos os triunfos que lhes foi querida e que farão triunfar. As nações, como os
humanos, que naturalmente estavam para envolvê-la, amea- homens, acreditam que Deus esteja sempre de seu lado, que
çando seu triunfo maior. Importava avançar ainda mais. As imaginam ser sempre o lado do direito e da justiça. O pior foi
vozes, porém, guiam com delicadeza, sem esmagar o espírito que, por inveja, os franceses, desde a primeira derrota, começa-
com uma perspectiva imediata, demasiadamente vasta, que o ram a considerá-la feiticeira, apertando em torno dela um círcu-
desoriente, que excite revolta ou temor. Elas o encaminham lo total e fatal, que finalmente a estrangulará. Entretanto, se os
para a inevitável estrada, conservando-se sempre presentes, séculos se recordam daquele tempo e de todas aquelas persona-
embora, às vezes, pareçam ausentes, mas apenas usam a inte- gens insignificantes, é somente em virtude da heroína persegui-
ligente estratégia do silêncio. da que eles quiseram esmagar. Somente a dor, nunca a astúcia
Na vida eterna de Joana, era chegada a hora da grande vitó- ou a força, cria as coisas eternas.
ria, e importava afrontá-la com uma grande prova, porque é es- A hora, porém, da maior traição se precipita. O destino to-
ta a lei das almas maduras. Até o fim, as vozes usam a piedade mou resolutamente um novo caminho, e as vozes voltam a falar.
do mistério, fazem-na entrever a libertação, entendida, porém, Até então se haviam calado. Em face da derrota de Paris, silên-
num sentido espiritual, não lhe revelando que horrível morte a cio. “Quando caminhava para Paris, não tive revelações de mi-
esperava, justamente a que ela mais temia. Falam-lhe, mas sua- nhas vozes” (Proc. 1, 146); diz Joana: “não foi nem a favor nem
vizam os caminhos da dor. O Alto, diferentemente dos planos contra a ordem de minhas vozes” (Proc. 1, 169). As vozes dei-
inferiores, conhece essa piedade e, se não pode evitar o sofri- xaram, pois, que seu destino de mártir se cumprisse, permitindo
mento, é porque este é parte essencial e integrante da ascensão que a traição, que o condicionava, prosseguisse, assim como
que o mesmo Alto deseja, por ser o caminho da felicidade. também Cristo deixou que Judas o traísse por ocasião da Ceia.
Quantas coisas sutis e profundas nos ensina esse ponderado Existe, desse modo, um senso de fatalidade no destino, que, uma
avançar das vozes pelos caminhos do Senhor! vez fixado em suas causas, não mais se pode interromper.
Pietro Ubaldi AS NOÚRES 165
As vozes encontram de novo a potência de Domremy, numa salva. Eles acreditavam que aquela ilusão da forma pudesse
nova curva decisiva. “Na semana da Páscoa, quando me en- bastar para sustentar um fato que era mentira e hipocrisia. As
contrava nos fossos de Melun, foi-me anunciado pelas vozes, forças reais da vida, porém, depois se levantam e impõem a re-
isto é, por Santa Catarina e Santa Margarida, que eu cairia abilitação. Quando se compreenderão essas leis?
prisioneira antes da festa de São João e que assim deveria su- No caso presente, estamos vendo, no entanto, a que extremo
ceder; que eu não me surpreendesse, mas recebesse tudo de de injustiça pode chegar a justiça humana.
bom ânimo, porque Deus me ajudaria” (Proc. 1, 115-116). Es- As vozes, porém, falavam com Joana, e ela respondia a to-
távamos em abril de 1430. São um fato verificado esses perío- dos, simples e sublime. Esta é a grande força sem armas, a for-
dos de silêncio; parece que a voz se ausenta e se extingue; to- ça do justo e do verdadeiro. Quando são iniciados certos cami-
davia, no momento oportuno, ela ressurge vibrante; compreen- nhos, não mais se pode retroceder. Dois dramas se desenrolam
de-se, então, que ela esteve sempre presente, guiando tudo sem nesta última fase: o drama exterior, que é o do processo em que
que se revelasse. Silêncios necessários, que fazem parte do pla- a autoridade cega, cheia de ideias preconcebidas, de má-fé, se
no diretivo, da estratégia dos repousos e dos retornos, em que precipita de erro em erro, até bater a cabeça na fogueira, diante
amadurecem os impulsos mais elevados. Joana, pois, deveria da qual um dos juízes ingleses gritará: “Nós nos enganamos!
cair prisioneira: esta era a vontade de Deus. É requerida uma Queimamos uma santa!”. O bispo Cauchon, juiz no processo, a
nova aceitação, mas, ao mesmo tempo, se encoraja e se promete quem Joana havia admoestado mais de uma vez, chorará. Ao
um divino auxilio, que, depois de Orléans, vai operar o segundo lado de tudo isso se desenrola o drama interior de Joana, que
milagre da inabalável firmeza de Joana até à fogueira. resplandece sobre o fundo cinzento de tantas baixezas. Neste
De fato, Joana foi feita prisioneira em Compiègne, por uma drama se agiganta a grandeza do Céu, e Joana, destruída, fulgu-
nova traição. Entra na cidade sitiada, sem de nada suspeitar, ra replena da potência do infinito. Está sozinha, mas suas vozes
mas, ao fazer uma incursão pelas suas proximidades (o inimigo estão com ela. Isso lhe basta. A unificação se completou em
talvez estivesse mancomunado com os próprios chefes da cida- Vermont e não mais poderá romper-se, nem sequer na hora do
de), os ingleses lhe cortam a retirada. Nesse ínterim, Compièg- Getsêmane e do Gólgota. São liames que não se desatam no
ne levanta as pontes e fecha as portas. Joana teve que se render tempo e permanecem além da morte.
e foi aprisionada, em virtude da traição dos próprios franceses. As vozes são piedosas; amparam, não amedrontam. Prome-
Diz-se que a traição foi regiamente compensada. teram a libertação e não mentiram, porquanto se referiam à li-
Prisioneira! Assim, de mãos a mãos, ela passa aos ingleses, bertação maior. Não tiravam de Joana a esperança de uma liber-
vendida para eles, que pagam alto preço pela rica presa. Os tação humana, para não a afligirem antes do tempo, para lhe ofe-
acontecimentos se aceleram. Joana arrasta sua paixão, de cárcere recer uma oportunidade de compreender seu novo esforço e
em cárcere, até que se inicia seu processo. Nas mãos dos ingle- amadurecer, gradativamente, para a grande ideia do martírio.
ses, Joana deveria ser considerada uma feiticeira: esta a conclu- Busca a fuga, espera a salvação material, e essa interpretação lhe
são preposta a todo processo, porque deveria este servir ao inte-
é deixada como uma doce piedade que mitigue sua paixão. Mui-
resse de anular a consagração de Reims, reduzida, desse modo, a
tas vezes, é benéfica a ignorância das disposições do destino;
um sacrilégio, destruindo com isso a autoridade conferida a Car-
certas ilusões da alma são frequentemente necessárias para que
los VII por esse novo juízo de Deus. Na incerteza das vicissitu-
ela afronte situações que a amedrontariam. As vozes a encora-
des humanas, o povo havia percebido essa milagrosa interven-
jam a resistir até à libertação. Só mais tarde haveria de compre-
ção divina, que era garantia da legitimidade real. Entretanto os
ender. “Ne crains rien”, elas haviam dito desde o princípio.
trezentos homens do processo, tão aguerridos em sabedoria, não
Era necessária a prova suprema, para dar ao mundo o tes-
compreendiam esta verdade elementar: que todas as suas astú-
temunho da origem divina das vozes. O destino de Joana não
cias e violências, se podiam aniquilar Joana, o rei e a França,
tinha de atingir somente o alvo de salvar a França, de santificar
não tinham poder de violentar Deus, tampouco aqueles que por
Ele eram protegidos, isto é, ligados ao círculo das forças superi- sua alma, mas também de afirmar ao mundo a verdade do espí-
ores da Divindade. Os juízes, ao buscarem o ponto de contato rito. Joana deu a vida por essa afirmação. Jamais renegou suas
entre Joana e Satanás, assinalaram, ao contrário, o ponto de con- vozes e sempre repetiu seu moto: “De la part de Dieu” (venho
tato entre a santa e Deus. Contra ela foram utilizadas as palavras da parte de Deus). E repete no final: “Se eu dissesse que Deus
de São Paulo. Sua perseverança foi considerada pecado de orgu- não me enviou, eu me condenaria. Verdadeiramente, Deus me
lho. Melhor não se poderia mentir. Não obstante tanta dialética, mandou”. Somente na jornada do cemitério de Saint Ouen, tem
tanta pompa de encenação judiciária, tanta fúria de força e astú- um momento de fraqueza humana. Seu cansaço cedeu em face
cia, não puderam cancelar uma sílaba da simples e sublime ver- de tantas pressões e astúcias; talvez tivesse sido enganada com
dade de Joana. Para destruir o que representava a salvação da substituições de textos ou talvez se houvesse enganado, pen-
França, os juízes procuraram aniquilar a heroína e a santa, pon- sando que aquela fosse a esperada libertação. Vacilou um mo-
do em seu lugar a figura de uma feiticeira. Importava inverter a mento, vencida pela vontade tenaz de seus juízes, que, no en-
situação e substituir Deus por Satanás. Pobres míopes, que não tanto, não passava de uma força que desejava sua retratação,
viam que essa inversão de valores era justamente o pedestal da para condená-la de qualquer modo. São bem humanos esses
grandeza da santa, porque era a condição de seu martírio! Eles desânimos que obscurecem o senso de responsabilidade. Joana,
eram a força ignara que o Alto utilizava para a vitória de Joana! porém, apenas readquire alguma força, temeu em face de suas
Na Idade Média era fácil a acusação de feitiçaria. A atmos- vozes, por havê-las desmentido, embora por um momento, e
fera parecia estar saturada da ideia do demônio e, verdadeira- imediatamente recobrou ânimo. E seu último grito, o maior
mente, com todas aquelas mortes violentas e cruéis, com tantos lançado ao mundo, entre as chamas da fogueira de Ruão, foi:
ódios e vinganças, ela devia estar espiritualmente irrespirável, “Minhas vozes vinham de Deus”.
profundamente impregnada de emanações barônticas. Testemunho solene, feito em face da morte, quando não se
Joana está sozinha, oprimida, privada até do conforto da re- pode mentir; relâmpago de verdade eterna, descida como sem-
ligião; sozinha diante dos insultos dos carcereiros e dos ataques pre de uma cruz, verdade provada com o martírio.
à sua pureza; sozinha diante de uma terrível assembleia de juí- Que diz a ciência dessa espécie de provas? Na apoteose do
zes inteligentes e de má-fé, que tentavam, por todos os meios, sacrifício, Joana reafirma, dando por isso a própria vida, as su-
arrancar-lhe a renegação de suas vozes, para obter, assim, o premas verdades do espírito, testemunhando que elas existem e
meio legal de condená-la, a fim de que a forma da justiça fosse se atingem através da dor.
166 AS NOÚRES Pietro Ubaldi
No momento supremo, a Pucela de Orléans encontra o pon- volutivo ao mundo mais concreto das oscilações da matéria,
to de contato que a une a Cristo; novamente penetra e se fixa, vestindo a irradiação primitiva de um invólucro físico que lhe
como força palpitante de vida, no plano divino da Sua reden- permita estimular a reação sensível da psique imersa nos cen-
ção. E Cristo é seu derradeiro grito, que é de vitória. tros cerebrais. Recordemos, pois, que este estudo do fenômeno,
Jamais na história, como neste caso, as forças do espírito no seu menor aspecto técnico, o abrange apenas no plano hu-
desceram tão perto da Terra e, numa luta corpo a corpo, tão re- mano de chegada, e não no sobre-humano de partida. Neste es-
solutamente se impuseram aos acontecimentos humanos; ja- tudo, a fim de atingir a solução desses inexplorados problemas,
mais o contraste foi tão vivo, a intervenção tão evidente, nem para a qual não encontro no conhecimento humano elementos
os acontecimentos foram tão intensamente violentados pelos guiadores, servir-me-ei, quando não me bastarem cultura e ra-
impulsos do imponderável. Os dois mundos se defrontaram e zão, do método intuitivo e da pesquisa por captação de corren-
olharam face a face, desafiando-se. E o espírito venceu. tes noúricas. Neste momento, sinto que apenas possuo uma
ideia vaga e inicial do assunto, mas sei que, ao escrever, irei
V. TÉCNICA DAS NOÚRES tendo resposta a cada interrogação.
Ao estudar o fenômeno em seus casos grandes e pequenos, já
Quando, do estudo do meu pequeno caso, nos elevamos à delineei uma sua interpretação sumária. Nas características, que
interpretação dos gigantescos casos da inspiração, devíamos ter vimos retornarem com constância, revelando um significado,
percebido que a ciência, com suas concepções, é muitíssimo traçamos uma linha fundamental de sua figura. Entre essas ca-
pequena para contê-los, pois eles envolvem algo de sobre- racterísticas, vimos estar em primeiro lugar a progressividade,
humano, indispensável para sua compreensão, e fatores trans- pela qual defini o fenômeno inspirativo como um caso normal
cendentais que a ciência ignora. Existem no fenômeno elemen- de sensibilização por evolução biológica, continuada nos superi-
tos substanciais e determinantes, que encontramos em todos os ores estados de evolução psíquica e ascensão espiritual. O caso,
casos e que representam, portanto, suas características funda- como evolução, é normal, mas, como posição, em face da relati-
mentais; elementos não menos reais por serem imponderáveis, va mediania, é supranormal. Trata-se de um processo evolutivo
embora a ciência moderna, por suas premissas e orientações, se de desmaterialização do ser em planos superbiológicos, de um
houvesse tornado incompetente para apreciá-lo. processo de purificação psíquica e orgânica, cujos fatores são
Para trazer o fenômeno aos termos da psicologia científica dor, renúncia, regime de purificação passional e dietética. A esse
moderna, impõe-se uma redução, quase uma mutilação, do respeito já falei nos capítulos: “O Fenômeno” e “O Sujeito”.
próprio fenômeno, em seu aspecto técnico e mecânico, qual é o Encontramos esses elementos na história dos grandes inspi-
da psicologia. É este lado particular, técnico e científico, do rados. Suprimindo-se esses fatores determinantes, naturalmente
problema que vamos aprofundar neste capítulo. Buscaremos, o fenômeno se detêm ou retrocede. Estes conceitos, embora
simultaneamente, elevar a ciência, infantil neste campo, até à conduzam a um campo supercientifico, possuem bases científi-
compreensão destes fenômenos e das forças imponderáveis cas, pois representam a continuação da evolução biológica dar-
que os governam. winiana, evolução orgânica que, se deve continuar, como a ló-
Temo-nos movido, até agora, num campo supercientifico, gica impõe, já não pode ser senão psíquica e espiritual.
num mundo de sonhos, de emoções e de esperanças, o mundo Se a ciência materialista quiser continuar seu progresso, é
do espírito. Para quem o sente, tudo isso já é por si mesmo su- necessário que ela compreenda justamente este problema da
premamente persuasivo. Agora vou mudar a engrenagem do desmaterialização do organismo humano, obtida lentamente por
meu pensamento e falar a quem não sente, a quem, para con- progressiva atrofia de funções orgânicas e hipertrofia de fun-
vencer-se, tem necessidade de tocar, medir, experimentar. Im- ções psíquicas. Refiro-me a posições relativas ao momento evo-
porta, porém, considerar aqueles fatores espirituais – embora lutivo atual. Também isso é lógico, e sobre o assunto já falei.
exista quem os negue, por não possuí-los na própria consciên- Esses princípios gerais, como sempre sucede na natureza, pas-
cia – porquanto constituem fatores integrantes do fenômeno, sam por adaptações no caso particular, que é sempre o de um
fundamentais na definição de seu desenvolvimento. De resto, já tipo especializado, e permanecem verdadeiros, embora não apa-
afirmei que eles são produto de estados evolutivos que se eleva- reçam no breve âmbito de uma vida.
ram além da mediania. É óbvio, pois, que, somente através de Falei em progressividade de sensibilização. E que é a evolu-
uma descensão, eles se possam reduzir aos limites da psicologia ção senão um processo de sensibilização contínua? Num pri-
normal da realidade sensória. meiro plano, temos o mineral, que, sentindo a resistência do
Assim, pois, ao falarmos sobre vibrações e ondas, recorde- ambiente, também sabe modelar-se nas formações cristalinas;
mos que apenas tocamos a fase perceptiva humana do fenôme- depois a planta, com uma sensibilidade que abrange a vida ve-
no, a última e mais baixa zona da transmissão noúrica, seu ter- getativa; em seguida, o animal, que vê e ouve, no qual se deli-
mo inferior e seu momento final de chegada, que é o mais com- neia o mundo sensório; logo após, o homem, que, da síntese
preensível, por ser o mais próximo da fase sensória que chega sensória, se eleva a uma interpretação racional da vida; depois,
ao contato humano. A fase mais elevada é uma emanação abs- o super-homem, que, com a capacidade da intuição, supera os
trata, supersensória e superconceptual, que se verifica numa ou- limites da razão e sente diretamente o universo. E poderíamos
tra dimensão de consciência e num outro plano de evolução, fa- continuar com os seres incorpóreos, chamados anjos, através de
se que a ciência e a própria psique humana normal não podem toda a hierarquia de sua elevação.
perceber e conceber por falta de meios, a não ser que haja uma O mineral se orienta, a planta sente, o animal percebe, o
redução dimensional, que é justamente o que a recepção inspi- homem raciocina, o super-homem conhece por intuição: eis a
rativa opera nas correntes noúricas. evolução da sensibilidade.
Quando, na fonte, nos encontramos num nível evolutivo su- Se, com a civilização, diminui a ferocidade, é porque au-
pertemporal e superespacial, é absurdo pretender compreendê- menta a sensibilidade, à qual ela é inversamente proporcional.
lo inteiramente nos termos de uma pura questão técnica. No seu Como se cultivam as plantas, cultivam-se os espíritos e se do-
estado de emissão, a noúre ainda não é pensamento, qual nor- mesticam os animais. E a planta cultivada abandona os espi-
malmente o concebemos. Para falar nos termos da psique nor- nhos; o animal domesticado perde os instintos ferozes; os ho-
mal, eu mesmo tenho de operar uma redução da emanação ori- mens civilizados se enobrecem nos pensamentos e nos atos.
ginária e de minha percepção dela à dimensão pensamento, que Trata-se de um idêntico e universal processo de sensibilização,
é um estado vibratório muito mais denso; operar um regresso in- que absorve a ferocidade. Por isso a sensibilidade dolorífica dos
Pietro Ubaldi AS NOÚRES 167
animais e dos selvagens é muito menor que a do homem civili- a diferenciação individual que os separa, encontram sua unida-
zado. A reação investe sempre mais os estratos profundos. Os de na grande corrente central, que se chama DEUS.
limites do universo são dados unicamente pela capacidade per- Aprofundemos, pois, o aspecto técnico do fenômeno, foca-
ceptiva e se dilatam à medida que essa capacidade aumenta. lizando novamente nossa atenção. Qualquer fonte de emanação
Notamos também outra característica do fenômeno inspira- irradia em torno de si um impulso que se transmite. Chamemos
tivo, comum a certos inspirados, isto é, a crise espiritual em que essa fonte de centro transmissor. Verifica-se por lei geral, em
o fenômeno explode após uma longa e invisível maturação. Es- todos os planos de evolução, inclusive os superpsíquicos e, por-
sa explosão se liga a profundas deslocações nos equilíbrios evo- tanto, superespaciais, este fenômeno de expansão cinética, que
lutivos e a novas estabilizações em planos mais elevados. Vi- é um princípio de unidade e amor que coliga em suas partes e
mos, depois, o problema das melhores condições de ambiente e elementos todo o universo. Faltam-me palavras superespaciais,
a importância deste para a pureza da recepção. Existe sempre, supertemporais e superconceptuais que me permitam exprimir-
para todos os inspirativos, uma necessidade de solidão, que me, por isso evito qualquer referência às dimensões espaço e
funciona como isolante, e também de oração, que eleva o espí- tempo, que, no centro transmissor, não existem mais. Para en-
rito e põe a psique em estado de receptividade, o que significa tender também este aspecto técnico, importa haver compreen-
corrente elétrica negativa, necessária para fechar o circuito com dido o universo, escalonado como é em suas fases evolutivas,
a corrente das noúres, que é positiva e ativa. A prece pode ser que significam planos ou níveis de existência, de sensibilidade,
também um desejo que auxilia a elevação da tensão nervosa de concepção. As fases mais concebíveis e mais próximas de
necessária para atingir os planos superiores de consciência, nosso universo são matéria, energia e espírito; o universo físico
mais sutis, porém mais potentes, que representam, portanto, em evolve para universo dinâmico, que evolve para universo psí-
face das correntes nervosas no estado normal, correntes de alto quico; mais além, evoluciona para planos superpsíquicos, que,
potencial. Tudo que eleva o potencial nervoso facilita a recep- atual e normalmente, constituem para o homem um inconcebí-
ção noúrica, porquanto dinamiza; e, na evolução, a desmateria- vel. É preciso haver compreendido e ter presente a teoria da
lização é proporcionalmente compensada por esta sua inversão evolução das dimensões, como é desenvolvida em A Grande
dinâmica. A percepção noúrica, de fato, dá uma sensação de Síntese, pois a passagem, por evolução, de um plano a outro
alegria e de potência ao espírito, verificando-se em organismos provoca mudança de sua dimensão ou unidade de medida. Vol-
purificados da animalidade e representando, em si mesma, um vendo ao conceito inicial: aquele principio de irradiação lança,
raio de ação e sensibilização muito mais vasto que o normal. nas várias dimensões de evolução, emanações que, ao encontra-
Descrevi minhas progressivas posições até alcançar a sintoni- rem um centro sensível, podem ser registradas. Veremos, de-
zação com a emanação noúrica, no processo de adormecimento pois, se isto constitui uma recepção passiva ou uma captação
da consciência em seu potencial normal e de ativação da consci- ativa. Este segundo centro é o instrumento receptor.
ência em um alto potencial, que momentaneamente neutraliza e Estão assim determinados os dois termos do fenômeno, que
reabsorve o funcionamento da outra. Começam a delinear-se aqui é essencialmente um fenômeno de transmissão e recepção e tem
o significado e o porquê das condições do fenômeno. sua correspondência, no plano inferior do universo dinâmico,
na transmissão acústica e, num nível relativamente mais eleva-
Nesta primeira parte do capítulo, procurei eliminar os as-
do, na transmissão radiofônica por meio das ondas hertzianas,
pectos mais espirituais e menos técnicos da questão, a fim de
forma de energia mais evolvida das ondas acústicas.
sondar o fenômeno até seu aspecto mais simples e esquemático,
Trata-se sempre de oscilações no centro transmissor, comu-
mais facilmente analisável, portanto. Das outras características,
nicadas por vibrações do meio (ar ou éter) ao receptor (ouvido
sumariamente indicadas nos primeiros capítulos, como capta-
ou aparelho radiofônico). As variações ou modulações do im-
ção consciente e ativa das noúres, individualidade ou natureza
pulso originário são repetidas exatamente pelo órgão de chega-
de sua fonte, minha capacidade de oscilação entre consciência e
da, pois os dois centros distantes são aproximados pelo meio,
superconsciência, sintonização por afinidade entre centro que os torna realmente comunicantes e fundidos numa união de
transmissor e meu centro psíquico registrador, etc., falaremos movimento. O símile acústico ou radiofônico não prejudica a
no estudo técnico que se segue, que não poderia ser feito na espiritual imaterialidade do transmissor, porquanto, efetivamen-
primeira parte, preponderantemente descritiva, mas só agora, te, o universo, nos seus vários planos, responde a um princípio
que já expus e fixei os elementos de fato. único, que, embora no Alto seja um inconcebível, se reflete em
São dois momentos estes, que tinham de ser bem distintos: nosso universo físico, se bem que tornado rude pelo seu reves-
primeiro, a descrição e, depois, a interpretação dos fatos; ob- timento mais denso. No Alto, apesar de nos movermos em di-
servação exterior de conjunto, a princípio, e penetração do sig- mensões superespaciais, permanece, mesmo quando destilado
nificado, no final. Compreender-se-á, então, a necessidade de como pura emanação cinética, o princípio que, nos planos infe-
um ambiente bem sintonizado, como o dos bosques e monta- riores, é transmissão espacial por ondas esféricas. A analogia
nhas, de um templo ou do próprio gabinete saturado de emana- implica uma redução de potência e de pureza, mas é exata, con-
ções noúricas; a necessidade de estados de ânimo de paz e do siderando-se que a vibração ondulatória é a forma de chegada
afastamento de interferências de vibrações psíquicas baixas, (pensamento), e não a forma noúre, de partida. Por isso apenas
que perturbam a pureza da registração; compreender-se-á a ne- chamamos emanação, a fim de exprimir o mesmo princípio de
cessidade da purificação orgânica e psíquica, processo evoluti- difusão, recordando, entretanto, que estamos além do plano es-
vo que leva à afinidade com a fonte, possibilitando, portanto, a pacial, dinâmico e do próprio plano psíquico.
sintonização com ela do instrumento de ressonância, que é toda Existe, todavia, uma grande diferença entre o caso inspira-
a personalidade do médium; compreender-se-á o paralelismo tivo e o confrontado. Neste, transmissor e receptor se locali-
que existe entre ascensão espiritual e sensibilização receptiva. zam ambos no mesmo plano de evolução (dinâmico), ao passo
Compreender-se-á como o instrumento, à semelhança do que que, no caso inspirativo, os dois termos comunicantes estão si-
tem acontecido com alguns místicos, possa a princípio interpre- tuados em dois planos diversos de evolução e, portanto, em
tar mal, se ainda não se encontra bem maduro; compreender-se- duas dimensões diferentes. Na recepção radiofônica, o período
á, no meu caso, a transformação progressiva da minha mediu- final é acústico como o inicial; a vibração acústica originária é
nidade, de passiva e inconsciente, a princípio, a uma forma transformada em vibração elétrica para, finalmente, retornar à
sempre mais ativa e consciente em seguida. Compreender-se-á, forma acústica; e tanto melhor será a recepção quanto mais o
finalmente, como todos esses fenômenos noúricos, não obstante fenômeno final se identificar com o inicial. Houve apenas uma
168 AS NOÚRES Pietro Ubaldi
transformação da forma dinâmica menos evolvida e, portanto, samento, na inspiração, falar de vibrações é um absurdo, por-
mais lenta, menos ágil e veloz, porque mais aprisionada na ma- quanto a dimensão da zona psíquico-conceptual foi superada.
téria, o som, na forma elétrica, que, sendo mais evolvida, mais Direi mais exatamente: no fenômeno inspirativo, não encon-
rápida, mais livre da dimensão espacial, domina um campo es- tramos a forma vibratória da onda-pensamento senão na extre-
pacial muito mais amplo. E nisso consiste justamente a utilida- ma fase da recepção, no final da redução involutiva, qual últi-
de e o progresso da descoberta. mo derivado, por continuidade, da emanação original, traduzida
Na recepção ultrafânica, temos muito mais. Não existe ape- em termos do pensamento humano. Por tudo isso, compreende-
nas uma transformação temporária, com o objetivo único de se quanto estes fenômenos superam a psicologia experimental
transmissão, para voltar ao ponto de partida. Em radiofonia há de gabinete e como é necessário, para seu estudo, que a ciência
uma permanência no âmbito da dimensão espaço-tempo do se afine e faça seus esses elementos do transcendental.
mundo dinâmico. Em ultrafania atravessa-se uma mutação mui- As duas estações estão, pois, situadas, uma, na fase evolutiva
to mais substancial e profunda, que não é uma simples trans- do plano dinâmico (no caso de mediunidade à base de percep-
formação de ondas acústicas em elétricas e vice-versa, nem ções sensórias) ou psíquico (no caso de conceitos como na me-
uma simples transmissão espacial. A fonte inspirativa se locali- diunidade intelectual-inspirativa), isso, do lado humano; a outra,
za numa outra dimensão, e a transmissão não se dá num sentido do lado super-humano, está situada na dimensão superconsciên-
espacial, isto é, no campo da mesma dimensão espaço, porém cia, que supera a do psiquismo humano. Não me refiro à mediu-
através de diversas dimensões. nidade barôntica ou física, em que o transmissor pode encontrar-
Como já disse, aqui os conceitos científicos não bastam, e se no mesmo nível humano ou ainda inferior a este. E, se evolu-
é necessário que a ciência faça seus estes conceitos transcen- ção é desmaterialização e espiritualização, a comunicação entre
dentais, indispensáveis à compreensão também do aspecto o transmissor evolvido e o receptor humano relativamente invo-
técnico do fenômeno. luído não se pode realizar senão materializando a emanação, o
O centro genético das emanações noúricas não possui nem que significa redução de potência e revestimento do conceito
os caracteres do mundo dinâmico nem os conceptuais do mun- abstrato, sintético, instantâneo com a forma do pensamento ob-
do psíquico humano, mas está situado numa dimensão super- jetivo, analítico e progressivo na palavra, qual é o humano.
conceptual de caráter abstrato, onde se encontram os princípios Vejamos, agora, como se pode estabelecer a comunicação
universais. A fonte não vibra, não irradia vibrações no sentido entre os dois centros. Sendo o universo sempre todo presente
por nós conhecido, embora sejam elas de pensamento; não em suas várias fases evolutivas e dimensões, as quais os seres
transmite ondas-energia na dimensão espaço-tempo, mas emana atravessam no infinito, é evidente que o limite do perceptível
um quid absolutamente imaterial, um impulso, uma potência somente existe nos meios individuais de percepção, e não nos
que não se pode definir com os atributos das dimensões do nos- fenômenos. Assim, por exemplo, o ouvido humano não abarca
so universo. Dessa sua dimensão mais elevada, a emanação de- senão uma determinada faixa de frequência de vibrações dos
ve descer; essa potência deve precipitar-se sobre a dimensão sons, além da qual não há percepção. É óbvio também que,
conceptual do pensamento humano, e a chamada recepção não assim como, com a criação de novos instrumentos e recursos
pode realizar-se senão em virtude dessa descida. de pesquisa, se alcançou a revelação de um novo mundo, do
O fenômeno muito mais complexo da inspiração, e que a mesmo modo toda extensão de sensibilidade desloca o limite
distingue da radiofonia, é justamente este. Os dois termos do do cognoscível, que é justamente uma função daquela, um re-
circuito estão qualitativamente distantes, e, portanto, a comuni- lativo suscetível de contínua evolução. O perceptível, pois,
cação que determina a repetição do impulso originário no re- não tem fronteiras em si mesmo, mas apenas na relatividade
ceptor não se pode estabelecer senão através de um processo de de nossa posição evolutiva; se esta se eleva, automaticamente
transformação dimensional. Este processo noúrico poder-se-ia também se dilata o perceptível.
comparar ao de um transmissor que pensasse ou compusesse Já expliquei como evolução é progressividade de sensibili-
“diretamente” em ondas hertzianas, que, para serem percebidas zação. A percepção e a concepção do universo são, portanto,
no plano sensório, devem sofrer uma transformação involutiva relativas à sensibilidade individual e mudam, dilatando-se com
até se tornarem energia mecânica (vibração da membrana mi- o progredir desta. Amplia-se a visão do universo à medida que
crofônica) e, finalmente, sonora. a consciência evolve. Do mesmo modo, também, o concebível
Para unir os dois polos do circuito, é necessário realizar esta é progressivo, a visão da verdade é relativa à potência indivi-
inaudita operação, que é a passagem de um plano evolutivo a dual e não pode ser atingida senão por sucessivas aproxima-
outro, o que significa mudança de substância, de uma a outra ções. Se quisermos traduzir graficamente o conceito, podería-
forma sua. Noutros termos, para exprimir a emanação originá- mos graduar a sensibilidade progressiva do ser em evolução ao
ria como pensamento, dentro do concebível humano, importa longo de uma escala, nesta ordem: mineral, planta, animal,
operar uma redução de dimensão; essa descida à Terra significa homem, super-homem, capazes de responder a uma gama de
que aquela potência tem de percorrer um regresso involutivo; é radiações sempre mais vasta e profunda. Isso equivale ao pro-
esta a condição para que ela possa manifestar-se na dimensão cesso de exteriorização cinética, que é a substância da evolu-
humana do inteligível. Essa redução de dimensão e esse regres- ção, sendo simultaneamente dilatação de consciência ao longo
so involutivo são um processo de íntima transformação da subs- da linha da sensibilização psíquica e manifestação da Divinda-
tância cinética da forma radiante, que se realiza não no espaço, de, duplo processo de aproximação dos dois extremos, através
mas atravessando várias dimensões de diversas fases evoluti- do qual a criatura volta ao Criador.
vas, para chegar isolado ao termo de sua transformação, à nossa Pode-se, pois, estabelecer para todo indivíduo, conforme o
dimensão e fase de evolução. O caminho não é, pois, percorrido ponto mais elevado que alcançou na escala, uma amplitude de
em sentido espacial, mas sim em sentido evolutivo, isto é, ao capacidade perceptiva que compreende todas as menores, mas
percorrer a dimensão evolução, evolvendo, se ascende para o da qual se excluem as mais amplas. Para que dois seres, inclu-
transmissor, e, involvendo, se desce para o receptor. sive no mundo humano, possam comunicar-se, isto é, com-
Como vemos, não obstante a correspondência entre os vá- preender-se, é necessário que usem a mesma linguagem e ex-
rios planos, inevitável num universo orgânico regido por um pressem a mesma sensação do universo, o que significa que
princípio unitário, o fenômeno inspirativo é bem mais profundo sua sensibilidade deve abranger o mesmo campo de capacida-
e complexo que o fenômeno radiofônico. Se, por exemplo, em de perceptiva. A compreensão só é possível até onde o campo
telepatia se pode falar de ondas-pensamento, porque existe pen- se sobrepõe, até onde haja coincidência de amplitude. Assim, o
Pietro Ubaldi AS NOÚRES 169
mais pode compreender o menos, mas não o contrário. Expe- se possa estabelecer a comunicação, é necessária uma sintoni-
rimentemos explicar um conceito abstrato a um ignorante, e zação entre a consciência do médium e o centro de emanação,
ele não o compreenderá se não soubermos reduzir a ideia abs- um estado de simpatia que permita a atração, um estado com-
trata à sua dimensão conceptual de representação sensória. Es- plementar e de semelhança que estabeleça a fusão. As leis de
ta é a condição da comunicação. afinidade se encontram na base de todos os fenômenos de atra-
Tudo isso também pode ser dito doutro modo. Se, postos ção psíquica, inclusive daqueles comumente controláveis. Eis
dois diapasões vibrantes à mesma nota, percutirmos um deles, porque tanto tenho insistido sobre o paralelismo entre sofrimen-
fazendo-o vibrar, o outro também se porá em vibração, emitindo to e mediunidade inspirativa, justamente porque o primeiro é
o mesmo som. Este princípio de ressonância é universal e ver- instrumento de evolução, que é sensibilização conducente à afi-
dadeiro tanto no campo acústico ou elétrico quanto no psíquico nidade com os mais altos centros transmissores. A recepção
e superpsíquico. O contato da consciência com o mundo exterior noúrica, que é comunicação com centros superevoluídos, exige
pelos caminhos dos sentidos é devido justamente a um fenôme- a ascensão espiritual até àquele nível. Para que se possa estabe-
no de ressonância. Nisso se baseiam a radiofonia e a telepatia. lecer o contato com a fonte, é necessário que a consciência se
Muitas vezes, quando uma pessoa está para nos dizer uma coisa, sensibilize por evolução, até ao ponto de atingir uma amplitude
nós já a sentimos no próprio pensamento. “O fenômeno de res- de capacidade perceptiva que se sobreponha à da fonte; esta é a
sonância consiste no fato de que dois órgãos suscetíveis de osci- condição da compreensão; importa adquirir por ascensão de es-
lações, tendo a mesma característica ou frequência (no caso de pírito a capacidade que lhe permita responder às sutis emana-
um diapasão, o número de vibrações por segundo), podem influ- ções noúricas. “Para comunicar-se, o espírito desencarnado se
enciar-se reciprocamente, se um deles, mediante as próprias os- identifica com o espírito do médium, e esta identificação não se
cilações, produz ondas num meio que abranja ambos” (Eng. E. verifica senão quando existe entre eles simpatia, pode dizer-se
Montú, “Rádio”, pág. 31). Também o pensamento pode transmi- mesmo, afinidade”, diz Allan Kardec no seu Livro dos Mé-
tir-se por ressonância quando os centros cerebrais, nos movi- diuns, Cap XX: “A alma exerce sobre o espírito livre uma espé-
mentos atômicos de sua estrutura celular, sejam suscetíveis de cie de atração ou de repulsão, conforme o grau de semelhança
oscilações que possuam idênticas características. Então, os dois ou diferença entre eles; ora, os bons sentem afinidade pelos
centros psíquicos podem influenciar-se mutuamente, através de bons, e os maus, pelos maus, donde se segue que as qualidades
um meio comum que receba e transmita suas vibrações. É indu- morais do médium têm uma influência essencial sobre a nature-
bitável que o pensamento seja uma vibração, porém reduzida a za dos espíritos que se comunicam por seu intermédio. Se ele é
sutilíssima e evolvidíssima forma dinâmica, em vias de superar vicioso, em torno dele se agrupam espíritos inferiores, sempre
a dimensão espaço-tempo. Na verdade, a psique humana é um prontos a tomar o lugar dos bons espíritos que foram chamados.
órgão capaz de vibrar e de entrar em ressonância, de transmitir e As qualidades que atraem, de preferência, os bons espíritos são:
registrar normalmente correntes psíquicas, porquanto é assim a bondade, a benevolência, a simplicidade de coração, o amor ao
que se forma, se projeta, se comunica e se recebe o pensamento, próximo, o desprendimento das coisas materiais; os defeitos que
que, como a luz, circula por toda parte na atmosfera humana e os afastam são: o orgulho, o egoísmo, a inveja, o ciúme, o ódio,
além dela. Assim se transmitem estados de ânimo, sentimentos, a cupidez, a sensualidade e todas as paixões por meio das quais
além de conceitos. O segredo dos oradores, dos caudilhos que o homem se prende à matéria. Todas as imperfeições morais são
arrastam as massas, está em saber despertar essas ressonâncias. outras tantas portas abertas que dão acesso aos maus espíritos”.
O pensamento vibra no universo, repercute, reage, volve à fonte, Temos, portanto, dois centros, transmissor e receptor, situ-
une em sintonia os centros distantes, anula-se, acumula-se, so- ados em planos diversos de evolução. Comunicam-se pelo
ma-se, desintegra-se; nós irradiamos e recebemos irradiações do princípio de ressonância, que se dá somente quando exista ca-
ambiente humano, dos planos inferiores, do Alto, num mar de pacidade de vibração em uníssono, o que sucede, por sua vez,
noúres, de vibrações infinitas. Cada um entra em correspondên- apenas quando os dois centros se encontram no mesmo nível
cia como sabe e como pode, conforme sua capacidade; mas a evolutivo, isto é, de sensibilização, perfeição moral e potência
consciência do sensitivo é uma caixa harmônica fremente de to- perceptiva conceptual.
das as irradiações do universo. Kardec considera particularmente o lado moral da afinidade,
A telepatia outra coisa não é que um fenômeno de ressonân- mas evolução é ascensão de todo o ser e implica também uma
cia. Ressonância significa sintonização no mesmo estado vibra- sensibilização às ressonâncias mais sutis, uma expansão per-
tório, base da percepção sincrônica. Significa simpatia, afinida- ceptiva e uma potencialidade conceptual. O fenômeno da me-
de. E por ressonância não só se transmite, mas também funcio- diunidade intelectual inspirativa é, pois, um fenômeno de sinto-
na o pensamento, que é levado a mover-se por conexão de idei- nização, cuja condição é a afinidade. O problema da comunica-
as, que é sua forma de menor resistência. As ideias se atraem ção reside, portanto, na afinidade. Há uma distância qualitativa,
espontaneamente, por afinidade. Sua reaparição na consciência de capacidade de correspondência, entre os dois centros, e é
se deve à excitação de um estado vibratório que se propaga às preciso preenchê-la. Para sua união em sintonia, impõe-se então
formas semelhantes, capazes de ressonância. Os caminhos da uma transformação, e são dois os casos. Ou a transformação se
mnemônica são os caminhos dessa ressonância por conexão. As processa por obra do transmissor, que involve suas emanações
estradas reais da consciência coletiva são as da ressonância. A (os dois centros são ativos e conscientes) até ao nível percepti-
compreensão é um fenômeno de ressonância. O pensamento, vo sensório do receptor, e este é o caso das audições acústicas,
finalmente, tende, como todas as formas menores do mundo di- visões óticas e outras percepções sensórias de vários místicos,
nâmico, à difusão e, uma vez projetado, é indestrutível. cuja fonte, embora de efeitos físicos, se distingue sempre das
Tudo isso nos conduz às mesmas conclusões do início. Para produções barônticas pela elevação da proveniência demons-
que se efetue a comunicação entre os dois centros, é indispen- trada pelo tipo de aparição e pelo seu elevado conteúdo moral.
sável a mesma capacidade de ressonância, isto é, que eles sejam O encontro pode, assim, dar-se também no plano sensório hu-
suscetíveis de deslocamentos cinéticos dotados das mesmas ca- mano, se esta é a via de menor resistência, dadas as característi-
racterísticas. Ora, para obter isso, é necessário partir do mesmo cas do médium. Este pode ser um santo do sentimento e da
equilíbrio cinético, isto é, importa achar-se no mesmo grau de bondade, e não da intelectualidade, não especializado, portanto,
evolução e de sensibilização, abrangendo o mesmo campo de no lado psíquico, até à superconsciência. Ou então, no segundo
capacidade perceptiva ou conceptual. Só então pode realizar-se caso, a transformação se efetua por obra do receptor, que, pelo
a sintonização. A base desta, portanto, é a afinidade. Para que seu grau de evolução, sabe elevar-se por si mesmo até ao plano
170 AS NOÚRES Pietro Ubaldi
conceptual do transmissor. Este é o meu caso de mediunidade saberia exprimir-se e, se conseguisse expressar-se, seria julgado
intelectual inspirativa e consciente. Agora se começa a compre- um louco. Além de tudo isso, deve ele possuir também a memó-
ender sua estrutura e seu complexo funcionamento. ria precisa de seus complexos estados, para poder oferecê-los
Neste caso, sabendo a distância que o separa da fonte inspi- como elementos de observação; deve ter igualmente qualidades
rativa, a capacidade do médium consiste em ascender ele pró- de autoanálise e introspecção, que lhe permitam analisar e inter-
prio a escala evolutiva e alcançar a afinidade, que é base do fe- pretar o fenômeno e apresentar e usar o método intuitivo na pes-
nômeno da ressonância, e isso no campo particular (moral, inte- quisa sistemática científica do inexplorado.
lectual, artístico, heroico) que diz respeito à comunicação32. O No meu caso, a registração dos conceitos não é recepção
inspirado deve saber emergir ativa e conscientemente na dimen- passiva, mas captação ativa; não de sinal negativo, mas positi-
são conceptual própria do centro transmissor e, para atingi-lo, vo. Minha inspiração pode ser definida, então, como mediuni-
deve haver atravessado todo o tormento de sua purificação, por- dade intelectual (registração de conceitos), inspirativa (proveni-
que só esta pode sensibilizá-lo até à captação das noúres mais ente dos mais elevados planos de evolução), ativa (por capta-
elevadas. Se, atingida a imersão numa atmosfera rarefeita, a re- ção) e consciente (nos vários planos e dimensões). Tudo isso se
cepção é espontânea, agradável, dinamizante, o esforço, não só torna para mim um método normal de pesquisa por intuição,
da longa maturação evolutiva, mas também o imediato, de colo- uma verdadeira técnica de pensamento, um sistema intelectual e
cação em fase de alta sintonização e de atingir a necessária ten- cultural que domino perfeitamente.
são nervosa em alto potencial, é todo do médium. E ele tem de Já descrevi os meios com que o consigo e conservo. Se par-
manter-se, demorada e normalmente, em casos de registrações ticulares condições são requeridas, isso não tira o valor dos re-
volumosas, naquele estado de tensão; tem de suportar sozinho, sultados práticos que com ele obtenho e que constituem um fato.
sem conforto e sem compensações humanas, a exaustão orgâni- Nos descritos estados de adormecimento da consciência
ca subsequente e a tristeza na solidão que sucede ao esforço su- normal, eu realizo, por iniciativa e com esforço próprios, a
pranormal. Atingida a noúre, ele deve manter o contato em per- transformação acima descrita, que faz ascender meu eu consci-
feita consciência, relacionando tudo e conservando completa- ente a uma dimensão superior. E, quando a visão superespacial,
mente a própria lucidez e potência de análise. Finalmente, em- instantânea, abstrata, atravessa minha sensibilidade, devo saber
bora imergindo numa diversa localização em fase de consciên- descer novamente ao nível psicológico normal, realizando a
cia, o inspirado não deve fechar as pontes atrás de si, e sim dei- transformação em direção inversa, pois que, sem isso, não me
xar unidas sua superconsciência e sua consciência normal, a fim seria possível comunicar-me nem me fazer compreendido. De-
de que seja possível, após haver subido evolutivamente, descer vo, assim, saber oscilar ao longo da escala da evolução e da in-
involutivamente para transmitir à sua consciência comum, e com volução, com diferentes focalizações de consciência, que me
esta aos seus semelhantes, o conteúdo de sua visão. permitam exprimir, em termos racionais e de análise, a intuição
Indispensável é, pois, saber manter desperta a consciência sintética, que em sua forma originária é inexprimível.
nos diferentes planos, não só no alto, mas também nos planos O que descrevi é, sobretudo, a técnica funcional do meu fe-
inferiores, e saber sustentar as já referidas união e comunica- nômeno, que, melhor que ninguém, eu conheço. Assim, confi-
ção, para poder sempre surgir à superfície da consciência hu- ando-me, nos pontos mais salientes, à intuição, defini o proble-
mana normal. Continuamente se faz preciso o dinamismo des- ma, para mim também até agora incerto, de minha inspiração.
sas deslocações, que permitem a tradução das sensações e con- ◘ ◘ ◘
cepções de um a outro plano. O inspirado tem, pois, não só de Estabelecida, assim, a estrutura central do fenômeno, com-
dominar uma amplitude perceptiva amplíssima, em que sua pletemo-lhe a interpretação em outros aspectos seus.
sensibilidade é posta a dura prova; seu ouvido psíquico não de- O pensamento é, portanto, totalmente uma noúre e se comu-
ve captar somente uma gama musical imensamente mais ampla nica e ecoa de centro a centro; o universo está saturado de ema-
que a do concebível humano, mas também tem ele que possuir nações conceptuais, que são percebidas todas as vezes que o ser,
rapidez de mutação interior, agilidade de deslocação ao longo por evolução, haja alcançado o grau de sensibilização suficiente
da linha da evolução, presteza de adaptação às sucessivas foca- para entrar em ressonância. No plano dinâmico e psíquico, o
lizações das várias perspectivas de visão. Sem essas qualidades, universo aparece ao sensitivo como um oceano ilimitado de ir-
seu trabalho seria impossível. E essas deslocações ele tem de radiações de todo gênero. Essas emanações, cada uma em seu
efetuar sem descontinuidade, sem zonas de inconsciência, sem- nível, em formas diversíssimas, obedecem ao mesmo princípio
pre consciente. Deve movimentar-se comodamente de um a ou- universal de expansão, coligam o universo em todas as suas par-
tro extremo, seja na pequena consciência sensória e racional, tes e representam o órgão de sua sensibilidade física e psíquica.
apropriada aos conceitos analíticos e ligados à vida humana, seja Quanto mais se ascende evolutivamente, mais sutilmente se sen-
na consciência intuitiva, adequada aos grandes conceitos lon- te o universo, mais claramente se percebe e concebe a si mesmo.
gínquos, abstratos e sintéticos do absoluto. Somente neste caso A consciência altíssima, que conhece todo o funcionamento do
se pode falar de mediunidade inspirativa consciente, que domina grande organismo, é a ideia diretriz de Deus. É este o centro em
o fenômeno, sente, joeira e escolhe as correntes, controla seu direção ao qual ascendem os vários planos da evolução, a meta
pensamento, julga-o e o aceita. Quando o grau evolutivo do ul- longínqua a que tendem esses sobrepujamentos de consciência e
trafano é inferior ao da noúre captada, então a redução dimensi- de dimensões. Eis porque o conteúdo da mediunidade inspirati-
onal não pode efetuar-se em sua consciência e tem-se a mediu- va é a revelação, eis porque ela conduz à unidade e à verdade.
nidade mais comum, passiva e inconsciente, em que o sujeito é Isso nos faz compreender como, somente em nosso mundo
um mero instrumento que registra sem compreender. O verda- involuído, em que o pensamento é continuamente estorvado em
deiro ultrafano consciente tem de realizar, nas profundezas de sua circulação pelas resistências da matéria, possa ser ele con-
seu eu, um laborioso esforço, pois funciona como transformador cebido aprisionado, separado na forma da individualidade hu-
de emanações noúricas em vibrações-pensamento, como instru- mana. Somente nesses planos mais baixos, o pensamento pode
mento de redução do superconsciente inconcebível ao consci- permanecer diferenciado, entre barreiras pessoais; mais no alto,
ente concebível. Se não executasse essa descida psicológica, não ele circula livremente, fundindo com facilidade, na mesma res-
sonância, os centros hipersensíveis, que assim se unificam no
32
Estes esboços serão completados e esclarecidos no desenvolvimen- mesmo modo de ser, cujo timbre é definido pela corrente de seu
to de outros conceitos e teorias nos volumes da II e III trilogias do plano. Nesse nível, a forma do ser é psíquica, não mais física;
mesmo autor (N. A.). não é mais um corpo, mas um estado de consciência, e é defini-
Pietro Ubaldi AS NOÚRES 171
da pela irradiação naturalmente dominante naquele plano, em luído. No Alto, como realidade objetiva e científica que eu sinto,
que os seres automaticamente se equilibram, pelo seu peso es- se acha uma estrutura de hierarquias que gravitam, de esfera em
pecífico, na escala da evolução. Como estamos vendo, é possí- esfera, na grande luz de Deus, prolongando-se até aos planos in-
vel enfrentar e resolver problemas de alta teologia com os con- feriores, e a Terra recebe as irradiações do Alto e é guiada.
ceitos mais exatos da psicologia científica. Após tudo isso, compreende-se sempre melhor que o pro-
Pode-se, agora, melhor compreender o que já foi dito sobre blema para mim fundamental, como primeira condição para
o problema da individualidade do centro transmissor, como já minha captação noúrica, é o da ascensão espiritual; compreen-
foi por outrem percebido, isto é, que essa voz inspirativa “não de-se como, para mim, a questão da mediunidade e a do aper-
deve ser entendida como um ser invisível individual, mas como feiçoamento espiritual devem coincidir.
uma emanação de energias espirituais fundidas num feixe” Se a fonte da inspiração está no Alto, eu devo viver sempre
(Ferder, “O Ciclo Progressivo das Existências”). estirado para o Alto, para poder atingi-la. Sou uma antena sen-
Quando a inspiração toca certo nível, não mais se pode fa- sibilizada pela dor, que deve elevar-se o mais possível aos pla-
lar de uma entidade como centro psíquico, num sentido pesso- nos superiores, a fim de trazer deles ao nosso suas concepções.
al humano, não se pode definir nem limitar a fonte a um no- Quanto mais me purificar, mais alto poderei subir e mais se
me; pode-se apenas indicar a direção de proveniência e falar ampliará meu raio de sintonização e captação. Em ultrafania,
de planos de evolução e de correntes noúricas que os percor- vigora a lei de afinidade. É princípio geral que cada médium
rem e definem. não pode entrar em sintonia consciente senão com a noúre do
Foi nesse sentido que falei de Cristo como centro de emana- próprio nível evolutivo. Isso porque a recepção inspirativa não
ção, fonte de revelação, corrente de pensamento sempre presen- se deve a uma transmissão individual, mas é uma imersão mi-
te que governa o mundo. Somente esta concepção cósmica do nha numa corrente de pensamento ou atmosfera conceptual,
Cristo, muito superior à histórica e humana, pode dar-nos o em sintonia com a qual se determina a forma de minha consci-
sentido de Sua divindade e de Sua presença, atividade e função ência. Por isso, se eu descer moralmente, me dessensibilizo
histórico-social. A imprensa sul-americana, com muita precipi- também e perco a consciência daquele plano de noúres, densi-
tação e simplicidade, atribuiu, sem mais, a Cristo as Mensagens fico meu peso específico e perco a capacidade de mover-me
e A Grande Síntese, pelo seu sabor evangélico. É preciso, po- naquelas alturas. Devo afinar diariamente o delicado instru-
rém, compreender quão perigoso e anticientífico é definir, de mento da minha ressonância no sofrimento e no desapego, a
forma tão categórica, uma proveniência que reduz o Cristo à fim de poder facilmente superar, sem correspondência, o mar
comum concepção histórica humana; é preciso entender que o das noúres involuídas e barônticas que me circunda. Devo sen-
Cristo real não pode ter, em Sua essência, nenhuma forma em sibilizar cada dia o ambiente, para que, por diferença de sua
nosso concebível, que não o alcança nem o contém senão redu- natureza, permaneça surdo às vibrações mais baixas e se lance,
zidamente. No meu caso, pois, só se pode falar de direção da pelo contrário, para o alto, somente vibrando se percutido por
descida das noúres; pode-se dizer que, desde a direção, nin- emanações elevadas. Do mesmo modo que a onda elétrica, por
guém sabe quão longínqua e de qual vertiginosa altura, que tem ser mais evolvida, é também mais potente e mais livre que a
seu início em Cristo e na Divindade, procede uma noúre, atra- onda acústica, isto é, domina um raio de ação mais vasto, che-
vés não se sabe de quantos planos e sofrendo desconhecidas re- ga mais depressa e mais longe porque mais supera a dimensão
duções de adaptação, até ao plano em que minha mais alta espaço-tempo, também a emanação ultrafânica, captada pela
consciência inspirativa, ascendendo fatigosamente, pode captá- minha recepção, quanto mais no alto estiver situada evoluti-
la, para realizar o último e certamente o mais rápido caminho vamente, tanto mais poderosa e livre é e mais amplamente su-
que devia levá-la à forma da psicologia humana. pera os limites das dimensões inferiores, e tanto mais vasto é o
“A vós venho do Alto e de muito longe”, diz Sua Voz na campo conceptual que domina. De qualquer modo, quanto
Mensagem do Perdão. “Não podeis perceber quão longo é o mais elevada for, mais poderosa será. Quanto mais eu subir
caminho que nós, puro pensamento, devemos percorrer a fim evolutivamente, mais potente será a fonte que poderei atingir,
de superar a imensa distância espiritual que nos separa de vós, mais se dilatará, pois, o raio de minha captação conceptual,
imersos na terra lodosa. Vossas distâncias psicológicas são mais profunda será minha visão das verdades absolutas. O pro-
maiores e mais difíceis de ser vencidas que as distâncias de gresso e o fortalecimento de minha inspiração provém inteira-
espaço e de tempo”. mente de meu progresso espiritual, porquanto basta subir para
Isso significa distância conceptual da fonte e longo caminho saber. Eu não estudo em livros, mas leio na vida. “Há mais coi-
percorrido, isto é, redução dimensional efetuada para superar sas no livro de Deus que nos vossos” – dizia Joana D‟Arc – “e
aquela distância e descer daquela altura ao nosso plano de evo- eu sei ler num livro que vós não sabeis ler”. A sabedoria mais
lução; distâncias psicológicas, evolutivas, de dimensão concep- profunda é dada pela evolução, e não pela cultura. Isso poderá
tual. Só agora, que delineamos este estudo técnico sobre as noú- parecer absurdo em face da psicologia prática, mas os fenôme-
res, podemos compreender o processo de redução que essa des- nos têm uma lógica, e é preciso segui-la até às profundezas.
cida de correntes espirituais implica, a série de filtragens que é Compreende-se, deste modo, como eu situo o problema de
necessária, através de vários planos, para que a luz seja percep- minha mediunidade inspirativa e por que acredito que assim se
tível e a irradiação acessível, e quantos intermediários, de gra- deve orientar o estudo dos casos de ultrafania elevada. Ao pas-
dual transparência espiritual, devem colaborar para que a ce- so que a grande distinção da mediunidade comum é entre vida
gueira espiritual do intermediário possa alcançar o alto e a po- terrena e além, a minha diferenciação fundamental é entre in-
tência conceptual possa chegar límpida, sem ofuscar-se, ao pla- voluído e evoluído; meu problema mediúnico é problema éti-
no terreno. Nesse complexo processo, muitos auxílios são ne- co, é o problema da ascensão do universo e, enquanto imerge
cessários ao lado de meu esforço, e, não obstante minha forma suas raízes na mais baixa animalidade, expande suas ramifica-
de mediunidade inspirativa consciente, grande parte da trans- ções no céu das dimensões superconceptuais. No meu caso,
formação tem de se realizar fora de minha consciência, em pla- por isso, não tem sentido, deixando-me indiferente, a comuni-
nos superiores aos que me são acessíveis; um trabalho de prepa- cação com os espíritos de defuntos que, situados mais ou me-
ração, que ignoro, tem de realizar-se acima de mim, para trazer a nos no nosso nível, nada sabem, nada têm para nos dizer, repe-
noúre até ao plano de minha captação. O fenômeno é vasto, feito tindo as velhas e pobres coisas humanas.
de diversas colaborações, através de gradações de pureza e ele- A mim urge, ao contrário, superar este plano humano em
vação de que eu sou apenas o último termo, o mais baixo e invo- que vivos e mortos se agitam e em que se permanece sempre a-
172 AS NOÚRES Pietro Ubaldi
qui em baixo, na sombra. Hamlet dizia: “ser ou não ser”. Eu ele assistam senão através destas minhas descrições. Para estes,
digo: “subir para saber, eis o problema”. Estabelecida a pre- não existe senão a possibilidade de estudo das minhas declara-
missa, demonstrada em A Grande Síntese, da evolução das di- ções e da estrutura psicológica das registrações conceptuais por
mensões e da ascensão dos seres através de planos de sensibili- mim realizadas. Permanecerão de fora, contudo, aqueles que
dade, de perfeição moral e de potência conceptual; estabelecido não o puderem compreender, porquanto as mesmas leis do pen-
o monismo, também demonstrado em A Grande Síntese, isto é, samento, que também agora permanecem reais, não me permi-
um universo gerado por um princípio único – Deus – e, final- tem comunicar minhas sensações senão a quem é capaz de en-
mente, admitida esta teoria, já agora evidente, por mim realiza- trar em ressonância com tal ordem de vibrações. É natural, pois,
da, da percepção noúrica por sintonização, compreende-se co- que muitos neguem, porque não acham nenhuma correspon-
mo minha mediunidade não pode ser senão a forma da evolu- dência na própria sensibilidade. Nada posso fazer por eles. Não
ção psíquica e espiritual do homem, repetindo a aspiração de se pode fazer ouvir o som a um surdo, nem fazer ver a luz a um
todo o universo, a encaminhar-se para seu centro, Deus. cego. Os fatos, porém, continuam representando um enigma, e,
Minha mediunidade ora e adora e, por isso, é religião, colo- com a acusação de desequilíbrio neurótico, me será atribuída a
cando-se assim em face da ciência, porque possui e demonstra a paternidade absoluta de A Grande Síntese, o que esta desmente
verdade. O fenômeno da minha captação noúrica está aberto di- com toda a evidência. Para todos, permanece indestrutível o
ante da eternidade. Sinto que, através dele, de corrente em cor- produto do processo inspirativo, a verificação de que é difícil
rente, de esfera em esfera, eu me remonto àquele divino centro consegui-lo com os recursos culturais normais; permanece a ló-
de poder e de conceito. Sinto que Ele me chama das profunde- gica desta minha interpretação, uma construção conceptual que
zas do meu eu e das profundezas dos seres. Imergindo por meio se estende através de todo este volume só para sustentar uma
de minha mediunidade, nos estratos mais íntimos de minha inexplicável humildade que renuncia a fazer próprio um produ-
consciência, sinto que, através deles, subo aos vários planos to intelectual que eu tinha a meu alcance.
evolutivos e que meu espírito encontra a unidade, o principio, a Desçamos, agora, da altura da emanação noúrica ao nível
substância, o absoluto. Nas entranhas do relativo e além dele, humano, onde se detém a transmissão e se fixa a recepção. O
sinto a verdade imóvel, em torno da qual ele vai girando no último termo da transformação noúrica, o mais baixo do pro-
vórtice da evolução. Porque a direção das noúres está nas pro- cesso fenomênico, a zona de máxima involução, está no orga-
fundezas do nosso eu e das coisas, onde se encontra Deus. nismo nervoso-cerebral do médium. Já mostrei que importa
◘ ◘ ◘ elevar o potencial nervoso para atingir a percepção noúrica. É-
Dirijamos agora o olhar para o outro extremo, mais baixo e me necessário, por isso, um aumento de tensão elétrica que me
mais acessível, do fenômeno. É evidente que, em suas zonas su- permita entrar em ressonância com a corrente noúrica, assu-
periores, o fenômeno não pode ser atingido pela observação e mindo uma frequência maior (intuição) do que a racional nor-
que, além destas declarações, que só eu posso fazer, o fenômeno mal. O período de adormecimento da consciência normal, que
permanece, em sua fase de origem, cientificamente incontrolá- inicia a recepção, é o trabalho de colocação em fase com uma
vel. Pensemos na relatividade da nossa posição na escala da evo- frequência de percepção superior à normal, saindo da ordem de
lução intelectual dos seres e como nosso maior gênio representa vibrações comuns, para sintonizar com outra mais poderosa. A
uma redução de dimensão, um meio denso e material em relação vontade é uma irradiação mais involuída, proveniente de uma
a fases mais evolvidas e espirituais. Já nos espantam a instanta- frequência vibratória inferior e cuja presença tem um poder
neidade do pensamento e a profecia, que domina o futuro, e es- destrutivo sobre esses mais evolvidos e delicados estados vibra-
tas são apenas as primeiras vitórias sobre a dimensão temporal. tórios que permitem a sintonização com a noúre. Por isso o ins-
A ciência, produto da psique humana, não pode possuir os meios pirado é um sensitivo, e não, exceto raramente, um volitivo e
de observação do que supera a capacidade da própria psique. dominador, tipo apto para dirigir e que, diante de tais proble-
Em sua origem, a noúre elevada da revelação não é pensa- mas, por sua vez, é impotente.
mento, que se transmite esfericamente, por ondas, ainda que Tudo isso explica o trabalho de sintonização ambiental que
através dum meio sutilíssimo, aos últimos limites da dimensão auxilia minha registração, a necessidade que tenho de encami-
espacial; é, porém, emanação de um superior estado cinético da nhá-la a uma harmonização vibratória de meu próprio eu, a
substância que, transportado ao nosso concebível, constitui uma qual, quanto mais se eleva, mais tem de ser profunda. Explica-
realidade inimaginável, porque estendida numa gama de esta- se assim o fato de um afrouxamento de tensão de minha parte,
dos cinéticos com os quais a psique humana normal não sabe por cansaço ou por distúrbios no ambiente, poder produzir ver-
entrar em ressonância (compreensão). dadeiros fenômenos de esvanescimento, analogamente ao fe-
A noúre penetra na zona do perceptível normal somente em nômeno de evanescência (fading) das radiotransmissões. Em
sua fase de chegada, assumindo a forma vibratória de pensa- sua zona mais baixa, o fenômeno tem características elétricas,
mento só depois de concluído o processo de transformação in- pois é constituído, na verdade, no plasma cerebral, por disposi-
volutiva na consciência do médium. A ciência não possui, por ções de cinética atômica, e o átomo é um organismo elétrico.
isso, outro meio de pesquisa e não pode atingir o fenômeno se- Essa oscilação, pois, que meu ser psíquico tem de realizar
não através desse instrumento. Não existe nenhum veículo me- ao longo da escala de evolução e involução para ascender a
cânico que possibilite a alguém percorrer a dimensão evolução, uma dimensão superior e depois reduzi-la à normal, se reflete,
senão o próprio eu que evolve. Não existem meios para captar o em sua zona mais baixa, em mudanças de potencial, de tensão e
supersensório a não ser esse órgão ultrafânico que funciona de frequência vibratória no meu sistema nervoso e cerebral. A
como transformador noúrico ou redutor de dimensões. Não res- transformação de dimensão, iniciada pela emanação originária
ta, pois, à ciência senão uma observação indireta do fenômeno, por processos imateriais supersensórios, incontroláveis pela ob-
tal como aparece refletido na psique do médium inspirado. Por servação, à medida que desce involutivamente, vai-se tornando
isso, quis analisar o meu caso, porque só eu o tenho, completo e acessível aos métodos da ciência, porque se manifesta, final-
à mão, para as observações. Só reunindo na mesma pessoa a mente, em forma de onda-pensamento no meu cérebro e termi-
função da ciência que observa e a do ultrafano que sente e re- na através de movimentos musculares da mão sobre a ponta da
gistra, pode-se estudar intimamente o problema. Outra pessoa, pena. Esta é a fase final, a mais densa, da materialização da
embora mais sábia, não possui o contato direto com os fatos do noúre. O pensamento, que antes era móvel e fluido, solidifica-
meu mundo interior. Somente eu assisto ao processo de minha se agora na palavra, cristaliza-se numa forma imutável. O pen-
captação noúrica, e não me é permitido fazer com que outros a samento que antes eu sentia completo, instantâneo e contempo-
Pietro Ubaldi AS NOÚRES 173
râneo, justamente porque numa dimensão supertemporal, devo Korsakow, Mussorgsky, Glasunow, Albeniz, Palestrina, Debus-
transformá-lo, na redução, em consecutivo e filiforme como na sy e muitos outros, ao passo que Stravinsky, por exemplo, me
palavra: redução de dimensão volumétrica a linear. irrita, a potência de Beethoven, assim como a de Miguel Ânge-
O momento em que o fenômeno se torna tangível é o da co- lo, me esmaga, Mozart não sofre e não clama como eu deseja-
agulação da substância mobilíssima e evanescente, rapidíssima ria. Tenho necessidade de compositores cuja noúre se afine
para escapar, e que eu trago segura, num estado de extrema de- com a minha, para que sua música me ajude, fundindo-se em
licadeza perceptiva, que é também vulnerabilidade nervosa, que minha sintonização.
me faz estremecer a cada perturbação ou interrupção. Isso se
mostra lógico, desde que se pense no processo que se tem de
realizar em minha psique e no meu cérebro. Acompanho a cor-
rente noúrica como arrebatado em êxtase; devo enfrear e domi-
nar sua contemporaneidade na gênese filiforme do pensamento;
devo fazer transparecer na modulação racional e linguística a
modulação da emanação superconceptual originária; devo man-
ter, através da minha tensão, a percepção supersensória anímica
e abstrata como uma ligação delicadíssima que, ao mínimo
choque, se rompe. Medite-se em quanto a emanação de origem
está distante da registração final e, no entanto, elas devem estar
unidas em ressonância, e a modulação de chegada, embora re-
duzida, deve coincidir, sem distorções, com a modulação de
partida. A mínima vibração desarmônica (quanto mais alto se
sobe mais o estado harmônico é necessário, porque é um avizi-
nhar-se da unificação), qualquer choque heterogêneo, acústico
ou psíquico, que penetre o ambiente pode produzir distorções
por interferência. Nesse caso, eu sofro e me canso (e aí não de-
ve haver cansaço), pois que tenho de reconstituir a tensão.
Um conceito é um estado vibratório individuado e delica-
díssimo, que, uma vez perdido, não mais se acha nem com a
lógica e muito menos com a vontade, não retornando senão
quando excitado por conexão de ideias isto é, por uma nova
passagem próxima num estado vibratório afim. Por isso, eu es-
crevo rapidamente, deixando a forma aos automatismos; minha Resumindo, pois: quanto mais abstrato é o pensamento tan-
cultura me é necessária por esse motivo, pois certos conheci- to mais desmaterializada pela forma dinâmica é a onda de sua
mentos inferiores, para alcançarem mais depressa o objetivo, vibração. O conceito, em sua origem, nem sequer de palavra se
devem ser instintivos. Neste caso, as capacidades culturais re- reveste, não tem linguagem, involvendo-se, em descida cada
presentam a exercitação e o crisol do instrumento e são neces- vez maior, até à percepção sensória e à imobilização no escrito.
sárias pela lei do meio mínimo33. Quanto mais desce o fenômeno involutivamente, mais é
Se a tensão é igual e a sintonização aderente, sem perturba- apreciável na forma ondulatória das ondas hertzianas e do som,
ções e interferências, a registração se processa segura, perfeita da luz, etc., localizando-se também, especialmente, numa sede
no conceito e na forma. Por isso tomo as minhas precauções e física: o cérebro. Pode-se buscar aqui o órgão especifico da
escrevo à noite, quer pela ausência de ruídos quer pela seguran- inspiração ultrafânica: a epífise. A epífise pode definir-se: “o
ça de não ser interrompido, mas sobretudo pela tranquilidade órgão do cérebro, não ainda suficientemente conhecido, que é
que, com o sono, sobrevêm ao estado psíquico geral, que, du- indicado, ultrafanicamente, como o meio mecânico através do
rante o dia, pelas emanações violentas, me é verdadeiramente qual as noúres são recebidas pelos hipersensitivos” (Trespioli,
atordoante, e, finalmente, porque sinto que os próprios raios so- “Biosofia”, pág. 232). O órgão da sintonização noúrica se en-
lares têm um poder destruidor. contra no cérebro e é particularmente a glândula pineal. Disse
Sei que muitos escritores e artistas trabalhavam à noite (por – “particularmente”. Devemos entender-nos logo a respeito
exemplo, Debussy). Sinto até os distúrbios elétricos da atmos- dos princípios de fisiologia. A ciência materialista teve a ma-
fera. Tudo que perturba o rádio também me prejudica, embora nia da localização das funções cerebrais, dando-se à caça da
relativamente. Porque as descargas elétricas, se bem que pode- sede fisiológica das funções psíquicas através de experiências
rosas, provenientes de planos de evolução diferentes (dinâmi- de extrações localizadas. Tudo isso é resultado de sua orienta-
cos, e não psíquicos), sendo de natureza diversa, estão qualita- ção materialista e não poderia revelar-lhe senão relações e as-
tivamente mais distantes de mim, ao passo que um estado de sociações superficiais, nunca o princípio funcional do cérebro.
ânimo barôntico (involuído) dos meus semelhantes, que apre- Este é somente o órgão das funções psíquicas, e sua estrutura é
sentam maior afinidade com minha natureza humana, se intro- efeito, e não causa de funções. O pensamento não é uma secre-
duz mais facilmente em meu estado vibratório. Ferem-me, por ção do cérebro, mas sim o cérebro é, se podemos dizer assim,
isso, um impulso de ira que se dê nas vizinhanças, as emanações uma secreção do pensamento.
dos alcoolizados e de qualquer ambiente moralmente pouco O órgão cerebral é o produto mais elevado da evolução bio-
evolvido. Tudo isso, especialmente se inesperado, pode consti- lógica; é o órgão através do qual a química inorgânica do mun-
tuir para o meu sistema nervoso um choque que é agudo sofri- do pré-vital, internando-se, posteriormente, no complexo meta-
mento. Certas músicas, ao contrário, especialmente se de pro- bolismo da química orgânica, atinge um estado de superquími-
funda orquestração, têm para mim um poder sintonizante acen- ca, em que os íntimos movimentos planetários atômicos se des-
tuado, como Bach, Wagner, o piano de Chopin e Liszt, Rimsky, locam até à desmaterialização da matéria.
A ciência não admite nem possui os recursos de observação
33
O princípio do meio mínimo “regula a economia da evolução, evi- para conhecer as formas de vida invisíveis, mas reais, que a
tando inútil dispêndio de forças”. Sobre o assunto fala A Grande Sínte- evolução biológica produziu após o cérebro, isto é, a consciên-
se no seu Cap. XL (“Apectos Menores da Lei”) (N. do T.). cia. Encontra-se, pois, estudando o cérebro nas mesmas condi-
174 AS NOÚRES Pietro Ubaldi
ções de um selvagem que observasse um aparelho de rádio sem em contínua oscilação, funcionando constantemente como
conhecer-lhe o princípio. É inútil olhar exteriormente os fios, transmissor de vibrações-pensamento. Assim como o olho
lâminas e válvulas, se não se conhece o princípio das ondas sempre vibra à luz e o ouvido ao som, do mesmo modo vibra o
hertzianas. É inútil pesar o cérebro, medir-lhe o volume, se é a cérebro ao pensamento. Este princípio geral se aplica no caso
qualidade que importa, e não a quantidade; inútil estudar-lhe a da recepção noúrica, em que se destaca evidente a ressonância.
anatomia, contar-lhe as circunvoluções, localizar centros corti- Na percepção sensória, a ressonância se dá dirigida por um
cais, perseguir os circuitos elétricos centrífugos e centrípetos meio condutor; na noúrica, processa-se livre, mas sempre se
através do sistema nervoso. A ciência se achará sempre e uni- trata de vibração por sintonização. Isso é compreensível hoje,
camente em face dos fundamentos do edifício, não lhe enxer- quando também a telegrafia se tornou sem fios.
gando a superelevação evolutiva no mundo do imponderável, No meu caso, a epífise deve haver atingido um grau evolu-
outro organismo vivo, em funcionamento, palpitante de vibra- tivo de potencialidade (não volume, mas orientação cinética
ções, mas imaterial, cujo conhecimento anatômico é atingido atômica) e de sensibilização que a possibilita funcionar como
por outros caminhos e com outros instrumentos, porque situado antena na dimensão evolução e como transformador, isto é,
em dimensões hiperespaciais. O cérebro é o substrato material como redutor involutivo.
destas forças superbiológicas, seu ponto de contato com o or- O outro problema afim é o de saber como estes órgãos atin-
ganismo animal; é o órgão por meio do qual o organismo psí- gem esse grau evolutivo. O funcionamento e o desenvolvimen-
quico entra em contato com o mundo sensório da matéria. O cé- to evolutivo de um órgão é dado pela corrente nervosa que o
rebro, pois, que foi meio construtivo do psiquismo, é igualmen- mantém e lhe excita as trocas, fornecendo-lhe a alimentação di-
te seu invólucro exterior, seu apoio material e funcional, e está nâmica. Quando do centro não descem mais essas correntes
para a consciência como o esqueleto está para o organismo hu- nervosas, o órgão se atrofia e, quando as correntes se intensifi-
mano que sustenta, mas de que não poderá jamais revelar nem cam, ao contrário, desenvolve-se.
o princípio nem o complexo funcionamento. Para compreender
o órgão cerebral, não basta, portanto, olhar seu exterior com
simplismo pueril, mas importa penetrar na orientação cinética
dos movimentos planetários dos átomos de suas células, obser-
var as deslocações que as vibrações ondulatórias do pensamen-
to operam nessas disposições e as mudanças que aí operam as
emanações noúricas quando chegam, por redução involutiva, a
esse plano de oscilação dinâmica. A anatomia tem que descer à
análise da natureza magnética dessas correntes imponderáveis
que emanam de todas as coisas e que impressionam esses cen-
tros, nos quais a sensibilização é máxima, porque se encontram
no ápice da evolução biológica.
Compreender-se-á, então, como o cérebro, órgão normal da
consciência, em certos momentos e casos, não a possa conter
completamente, e ela dele extravase, superando as limitações
do meio com uma percepção anímica direta, supersensória. E
tanto a consciência supera o meio, que sobrevive à sua destrui-
ção, com o grau de sensibilidade que é dado, como vimos, pelo
plano de evolução espiritual alcançado em vida, isto é, propor-
cional ao grau de desmaterialização realizado.
Leio, num tratado, que, mesmo com a destruição de um he-
misfério cerebral completo, a consciência também pode persis-
tir. Isso demonstra a loucura da teoria das localizações e como
é absurdo pretender estabelecer o lóbulo central da consciência.
O cérebro não pode ser reduzido à função mecânica de um ór-
gão muscular. Pense-se que ele funciona não somente movido
por correntes elétricas nervosas internas, mas também percutido
por correntes ondulatórias que percorrem o espaço sem suporte
material, ao influxo das quais ele também vibra. Essas correntes não são mais que impulsos elétricos que
Tudo isso expus para demonstrar que a localização da re- modificam a orientação dos íntimos movimentos do átomo, que
cepção noúrica na glândula pineal é relativa e aproximativa, é um organismo elétrico, alterando, assim, toda a química da
sendo melhor dizer que nela o fenômeno é preponderante, pois troca, que pode, assim, encaminhar-se para a atrofia ou para su-
todo o cérebro vibra em ressonância, todo o sistema nervoso, periores formas de evolução.
todo o organismo. A glândula pineal é o órgão central, o con- O centro irradiante destas correntes está além do sistema
densador variável da sintonização e, também podemos dizer, o nervoso e do cérebro, que são dois meios intermediários mais
órgão de amplificação da registração noúrica. Mas todo o or- baixos; é a própria consciência que está à frente da marcha evo-
ganismo colabora mais ou menos diretamente, em conexão, lutiva e que, à medida que se vai elevando, retira as correntes
funcionando como caixa ressonante em que as radiações se re- do funcionamento nos níveis inferiores, centralizando-as num
percutem e se harmonizam. funcionamento evolutivamente mais alto. Desse modo, no ins-
Na epífise, a percepção noúrica se realiza por uma diversa pirado, o organismo tende ao emagrecimento muscular, as fun-
orientação impressa pelas vibrações da corrente noúrica, degra- ções digestivas não mais admitem labores pesados, tudo tende à
dada na forma de onda, nos movimentos planetários internos atrofia do que é físico para alimentar o que é psíquico. É absur-
dos átomos das moléculas, lançadas no metabolismo celular da do procurar no intelectual e no gênio um cérebro mais volumo-
substância glandular pineal. O último termo dos fenômenos está so, quando ele se acha justamente no caminho da desmateriali-
sempre na cinética atômica. Todo o cérebro, porém, é sempre zação. Estamos nos antípodas da ciência. No caso do órgão ce-
percutido e percorrido por correntes psíquicas, que o mantêm rebral, a desmaterialização progressiva de funções por evolução
Pietro Ubaldi AS NOÚRES 175
é, como já disse, problema de cinética atômica, e é neste senti- do-me indiretamente, também com seres e coisas de planos in-
do que aqui falei de funções espirituais. feriores. Eu, porém, não os aceito senão como elementos ambi-
A glândula pineal é, pois, o órgão central da ressonância psí- entais secundários de harmonização; poderiam eles ser úteis pa-
quica e da sintonização noúrica. No meu caso, essa glândula é o ra a inspiração artística e musical, mas não para a conceptual.
órgão principal da ressonância superconceptual e, simultanea- Existe também nas profundezas de minha psique o poder seleti-
mente, de transformação de dimensão, isto é, o órgão em que se vo, sem o qual se daria, como em alguns velhos rádios, uma
forma, por deslocações cinéticas na intima estrutura dos átomos, confusão de harmonias. Há em minha glândula pineal um órgão
a redução da emanação noúrica em forma de pensamento. de seleção, de que me utilizo, não para captar, mas para afastar,
As ressonâncias, porém, não são todas iguais nos diversos após havê-las reconhecido, as ressonâncias que se apartam de
ultrafanos. Alguns deles têm uma extensa gama de possibilida- minha registração conceptual e que me soam como dissonân-
des de sintonização, embora se mantendo num nível mais bai- cias barônticas, como distúrbios de que procuro isolar-me.
xo; e, entre todas, existe muitas vezes a sintonização preferida,
que é aquela de maior afinidade. O meu caso, pelo contrário,
poder-se-ia chamar de sintonização fixa, de ressonância única,
porque, por instinto de simpatia, eu me ligo ao contato de má-
xima elevação que minha evolução me permite e rejeito todos
os outros. Pelo fenômeno da ressonância, que é unificação de
vibrações, estabelece-se como que uma fusão do meu eu mais
elevado com o centro emissor, uma reabsorção de minha perso-
nalidade na noúre, pela qual, naquele nível, não mais existe dis-
tinção entre o eu e o não-eu, e tudo se torna a mesma força, o
mesmo pensamento, a mesma corrente.

Se a glândula pineal ou epífise, órgão da sintonização noú-


rica, não pode sobressair radioscopicamente, pela transparência
dos tecidos aos raios, todavia zonas de maior sombra na foto-
grafia positiva e maior luz na negativa, na zona craniana central
(nas fotos I e II, um pouco acima do centro, entre os olhos; nas
fotos III e IV, no centro da caixa craniana) indicam a sede da
A matéria separa, mas, quando nos elevamos e nos aproxi- função noúrica, no ponto central da esfera cerebral e craniana,
mamos da unificação, a evolução nos conduz ao centro divino. que funciona como invólucro exterior, protetivo e ressonante.
Naquele plano, não mais faço distinção entre a entidade Se, ao centro dessas zonas de maior densidade, se localizam o
inspiradora, a noúre captada e o meu eu mais profundo. É na- condensador variável da sintonização e também o órgão de am-
tural que o mais absorva o menos, que a pobre chamazinha de plificação da registração noúrica, a quase-esfera de matéria ce-
meu espírito se confunda no incêndio e que eu não mais saiba rebral, delineada pela quase-esférica caixa craniana, como teci-
dizer: “eu”. A distinção renasce, rápida, apenas quando, na re- do especializado, exerce sua função de caixa harmônica de res-
dução de dimensão, torno a descer, involutivamente, até minha sonância e segundo órgão de amplificação. A estrutura geomé-
personalidade humana. O meu caso é, pois, de ultrafania espe- trica desse primeiro ambiente fechado é apropriada à potencia-
cializada na captação conceptual, e esta é verdadeiramente a lização da onda transmissora e da onda captada, o que se verifi-
marca das minhas registrações. ca na emanação e na recepção noúricas. Sobretudo neste último
Tendo à ligação máxima porque esta me dá o conceito má- caso, da registração de emanações provenientes de dimensões
ximo. Isso não impede que a ressonância possa formar-se, ferin- superconceptuais, quando a corrente atinge por redução dimen-
176 AS NOÚRES Pietro Ubaldi
sional a fase dinâmica, assumindo a forma de onda que se cesso da racionalidade consciente e reflexa é como que suspen-
transmite por pulsações esféricas, então a caixa craniana, fe- so, para que, por construções superiores, um mecanismo mais
chada em si, multiplica e amplifica, por refração interna (no íntimo e complexo seja posto em movimento numa zona mais
ambiente cerebral particularmente apto a entrar em vibração, se profunda de nosso eu, a funcionar com métodos supervolitivos
excitado pela ação de tais ondas psíquicas), aquelas ondas, que, e super-racionais.
justamente na zona cerebral, realizam a última fase de sua re- Os inspirados sempre tiveram uma voz; os poetas, as musas;
dução dimensional, já iniciada antes, fora do espaço e depois no os musicistas, a inspiração.
espaço de emanação psíquica do sujeito. Assim transformadas e Wagner dizia no seu diário de vida veneziana, a propósito
potencializadas no cérebro, em que, por absorção, se revestem de uma passagem do seu Tristão: “Aquela passagem me apare-
de energia nervosa, ribombando, finalmente fechadas na caixa ceu clara; transcrevi-a rapidamente, como se de há muito já a
craniana, isolante e internamente quase-esférica, as ondas po- soubesse de memória”.
dem impressionar muito mais energicamente a epífise noúrica. Perosi diz que o compor é para ele uma necessidade impul-
Na radioscopia lateral, é visível, como em seção, à margem, siva do temperamento, que tem necessidade de produzir.
a caixa óssea, que funciona como invólucro isolante do ambien- Chopin compunha numa espécie de êxtase.
te amplificador cerebral. Esta massa se abre para uma zona de Na realidade, artistas e gênios são ultrafanos, registradores
maior transparência e menor densidade, que, na positiva, é uma de noúres.
zona de maior luminosidade, e isso na direção do alto, que é a É um fato que todas as mentes, sejam de artistas, sábios ou
direção das correntes noúricas. E esta seria, por razões de dire- santos, cada um em seu campo, todas as vezes que verdadeira-
ção e de menor resistência, como também de equilíbrio vibrató- mente se projetaram na direção do alto, para arrancar uma orla
rio, a zona normal de penetração noúrica, a porta aberta através do grande mistério das coisas – verdadeiros tentáculos que a
da qual a epífise pode comunicar-se externamente com as ondas evolução lança, antecipadamente, de encontro ao infinito – usa-
que, na fase dimensional mais próxima, são espaciais. E esta não ram esses meios, que escapam à racionalidade comum. Esta,
seria apenas a zona de penetração, mas também a janela aberta comparativamente, aparece como coisa vulgar, inferior, conde-
da projeção noúrica, o ponto em que aflora e se projeta exteri- nada por natureza a jamais saber elevar-se acima do plano em
ormente a irradiação espiritual. Quando, através desse processo que se move, no infinito trabalho de análise, sem esperança de
e dessa técnica, a emanação atinge o sujeito e penetra em sua síntese. É questão de grau, porém a inspiração artística se es-
caixa craniana, a corrente noúrica, degradada em forma de onda, fuma na mediunidade, como no caso de Rosvita Bitterlich, a
está apta a imprimir e imprime uma diferente orientação aos menina de Innsbruck, cujas telas, tanto pelo conceito como pela
movimentos planetários dos átomos das moléculas das células técnica, assombram os pintores e confundem os psiquiatras.
cerebrais. Então, a pura excitação noúrica se materializa ainda Existe outro fato, que é a fundamental unidade interior da
mais, revestindo-se de energia psíquica e nervosa e tornando-se inspiração, idêntica para todos em suas origens e que se espe-
praticamente perceptível, inclusive por instrumentos ou como daça e modula em diversas formas somente quando desce ao
sensação, e, então, atingida sua última fase de transformação, é mundo exterior, pelos caminhos oferecidos pela capacidade do
suficientemente densa, podendo por isso impressionar a epífise, sujeito. Isso corresponde àquela unidade de princípio de que já
que, arrastando consigo, em sua sintonização, o cérebro e o sis- falei e a que se tende por ascensão evolutiva.
tema nervoso, dirige a função mecânica muscular da escrita. Desse modo, a ideia abstrata do bem pode tornar-se músi-
ca, poesia ou pintura, renúncia, martírio ou ação heroica, con-
VI. CONCLUSÕES forme o ambiente humano em que se materializa. Cada reali-
zação concreta é um processo involutivo em que a unidade se
Esse mundo em que nos temos agitado até agora não é um ramifica no particular. Por isso cores e sons e as várias sensa-
mundo fantástico. Num campo muito menos elevado, a rabdo- ções humanas se equivalem num plano mais alto e não passam
mancia, renascente hoje com o nome de radiestesia, demonstra de diferentes vestiduras do mesmo conceito. Esse conceito foi
que, se o sensitivo que passa sobre um manancial de água ou percebido por Franz Liszt quando, de Roma, escreve ao seu
uma jazida mineral sente algo que pode especificar com grande amigo Berlioz, dizendo-lhe como sentia um secreto parentesco
exatidão, isso quer dizer que eles emitem qualquer coisa, algu- entre Rafael e Mozart, entre Miguel Ângelo e Beethoven, entre
ma irradiação de ondas eletromagnéticas que o sistema nervoso Ticiano e Rossini. Poder-se-ia afirmar que na profundeza da
humano, sensibilizado, percebe. Os minerais, portanto, também consciência se tocam os planos superiores, onde a ideia, antes
emitem correntes, e no seio do universo subsiste toda uma de descer e diferenciar-se na forma concreta, é abstrata e existe
emanação imaterial. E, se emitem correntes os minerais, tam- em tipos simples e únicos para muitos grupos de manifestações
bém as produzem as plantas, e uma paisagem será uma sinfonia diversas, e que, quanto mais subimos para o centro, tanto mais
de vibrações que o musicista poderá transformar em harmonias a ideia originária se faz abstrata e única, até identificar-se na-
musicais. Todos os seres transmitem correntes, e, entre todos, a quele monismo absoluto, que é Deus. Assim, a arte e a fé, a ci-
psique humana, que é a central mais dinâmica. ência e a ação não passam de diferenciações produzidas pela
O problema das noúres adquire, assim, uma importância descida daquele único princípio.
muito mais vasta que a mediúnica. O problema das noúres é o Estes elevados problemas de psicologia têm também uma
problema da inspiração artística, que só elas podem explicar; é grande importância prática, porque sua compreensão e solução
o problema do desenvolvimento psíquico da humanidade, dos revolucionam todos os rumos intelectuais e científicos de nos-
sistemas de aquisição cultural, dos novos métodos de pesquisa sos tempos. Revolucionam os métodos de pesquisa científica,
necessários ao ulterior progresso da ciência, métodos de con- tanto quanto os sistemas de aquisição cultural.
cepção que deem novos rumos à filosofia e a todo o cognoscí- Estou persuadido de que o saber humano, em todos os
vel humano, com repercussões na direção da vida social, de campos, não mais pode avançar com os velhos métodos e que
modo a tornar possíveis as bases de uma nova civilização. é iminente e necessária uma mudança de rota. É evidente que a
Observemos estas últimas consequências que enunciamos. verdade, que tão laboriosamente se acomete, já existe íntegra,
É um fato verificado, para os que estão habituados à criação completa, funcionando desde toda a eternidade. O universo é,
intelectual e artística, que esta não se realiza, verdadeiramente, não de agora, um organismo perfeito, não dependendo, para is-
pelas vias da consciência quotidiana normal, que tão útil nos é so, da compreensão humana. Possui ele sua sabedoria e suas
para as necessidades e relações da vida. Parece quase que o pro- leis e sabe aplicá-las com consciência e equilíbrio. Não se trata,
Pietro Ubaldi AS NOÚRES 177
pois, de criar coisa alguma, mas de saber enxergar o que já sopro novo tem que dinamizar tudo no espírito, pois, de outro
existe, de atingir conceitos que se distanciam de nosso relativo. modo, a vida se apagará. E deve ser uma espiritualidade não
É absurdo continuarmos a observar eterna e exteriormente os vaga, sentimental, enfermiça, porém viril, operante, científica,
fenômenos, multiplicando observações e classificações, e per- volitiva, consciente do titânico trabalho construtivo que a es-
manecermos esmagados sob a mole divergente do particular. pera e que ela tomará para si. A luta pelo espírito será a luta
Importa aperfeiçoar e potencializar esse instrumento de pes- mais digna da vida.
quisa que é a consciência humana, se quisermos algo que pro- Ainda outras consequências de índole prática se pode extrair
duza um resultado prático. desses conceitos. Frequentemente tenho perguntado a mim
Para mim, o método racional analítico não passa de uma re- mesmo: Sabemos pensar e aprender? Não encontraremos nessas
dução involutiva do método intuitivo sintético. A evolução psí- profundezas psicológicas novos métodos mais fáceis e mais
quica do homem impõe a ascensão a este método mais profun- produtivos em favor da aquisição cultural?
do. Estou convencido de que a solução dos problemas não se Ao estudar e aprender, atemo-nos aos sistemas mais empíri-
acha no exterior sensório, mas no interior intuitivo, e só pode cos, como ler, repetir, memorizar, sem percebermos a essência
ser alcançada se nos projetarmos dentro de nós mesmos, com a do pensamento e dos fenômenos psíquicos nem de que comple-
introspecção, e não fora de nós, com a observação. xa entrançadura de vibrações e de ressonâncias sejam eles a sín-
Sinto que os princípios não se podem encontrar senão por tese, sem nos preocuparmos de quais interferências de ondas e
visão, por uma transformação de consciência que se identifique de quantas captações noúricas a mente seja suscetível. Não ati-
com o fenômeno, por uma transferência do eu a um novo plano ramos, talvez ao acaso, diante da mente um alimento para que
conceptual; enquanto se permanecer na dimensão atual da ra- ela o assimile, não se sabe como?
zão, certos problemas permanecerão insolúveis. É fato compro- Reconheço bem quanto a psique humana, na massa comum,
vado que as mais elevadas verdades, as sínteses conceptuais, é imatura para estas sutis operações de pensamento, e minha
sempre se descobrem a golpes de gênio, isto é, de revelação por audácia está justamente em pensar na normalização de tais mé-
inspiração, e não por análise objetiva e racional. Esta não sabe todos. Entretanto estou certo de que o homem se acha numa
tomar a seu cargo senão o desenvolvimento metódico de um grande curva de seu caminho evolutivo, que a eterna criação
princípio, quando este e sua orientação já foram apresentados. biológica está operando atualmente no nível psíquico, e que
A audácia de minhas conclusões está em propor à ciência o novos métodos se impõem pela lei do meio mínimo. Por que o
método de pesquisa por inspiração noúrica como método nor- método intuitivo deve limitar-se apenas às formas artísticas e
mal, a fim de que o método da intuição complete o dedutivo poéticas? E por que não poderá existir uma nova e normal ins-
experimental; estou convencido de que os conceitos já existem piração filosófica, matemática, social, moral, científica? Por
em forma de emanações radiantes, de correntes em expansão, e
que não reconhecermos que a sabedoria não se encontra nos li-
que basta captá-las; sinto que o problema do conhecimento só é
vros, farrapos do passado, mortas cristalizações do pensamento,
solúvel com este novo método de sintonização noúrica que te-
mas sim nas vivas correntes conceptuais em que palpita e em
nho vivido, aplicado e aqui amplamente descrito. Certamente
que se sustém todo o universo? E que, para saber, esse grande
que é um método delicado e complexo. É necessário antes
livro do infinito é o único que importa ser lido? E, para a for-
compreendê-lo para se saber usá-lo. Exige uma delicadeza psi-
mação cultural, por que às longas e exaustivas vias do estudo
cológica para que não se maltrate nem prejudique o delicadís-
não se preferirão as da purificação da consciência, da evolução,
simo instrumento de pesquisa que é a psique do ultrafano. Será
que a conduz à dimensão superconceptual, onde a visão da ver-
preciso tempo; deverão ser superadas as resistências opostas
dade é espontânea? No Alto, a sabedoria é gratuita, e, através
pelo misoneísmo do passado; será laborioso reformar a psico-
de sua progressiva espiritualização, o homem adquirirá, um dia,
logia da ciência, mas não existe outro caminho para avançar.
o conhecimento por imersão em estados vibratórios e por expo-
A própria evolução tem de levar, inevitavelmente, à norma-
lização da intuição. sição da psique às correntes noúricas.
O homem, chegado a uma determinada fase de sua evolução Por que, ao invés de um esforço mnemônico para acumular
psíquica, tem de atingir, normal e naturalmente, o conhecimen- noções, a formação cultural não deverá ser um processo de sen-
to pelas vias da captação noúrica. sibilização da psique, que lhe permita a captação das ondas-
Os tempos já sentem, confusamente, essas iminentes revo- pensamento por sintonização?
luções que abalarão em suas bases o pensamento humano; já se Tenho a sensação de um erro fundamental em todo o siste-
pronunciam vagas palavras que exprimem tentativas e tendên- ma cultural moderno, consistente na descentralização do co-
cias. Importa indicar exatamente, aprofundar, falar de coisas re- nhecimento no particular, o que conduz ao desnorteamento na
ais e casos vividos, já haver aplicado o método e realizado os especialização; tenho a sensação de que sob o peso esmagador
resultados. Os inspirados se têm mantido até agora, comumen- de uma série enorme de noções, ao invés da centralização con-
te, no campo dos princípios gerais, nos termos vagos do senti- ceptual, que, nos princípios, nos fornece a chave de todos os
mento, nas elevadas, mas imprecisas, aspirações do misticismo problemas, se atinge a dispersão. O saber não é uma congérie
e, permanecendo na linha da inspiração artística, não fizeram da de conhecimentos; é uma superfície que não se domina perma-
intuição uma verdadeira técnica de pensamento, metodicamente necendo no chão, percorrendo-a em todos os sentidos, mas so-
dirigida na direção da pesquisa científica. Importava chegar a mente elevando-se à altura de uma dimensão superior. A ver-
uma revelação científica exata, dando à ultrafania um conteúdo dadeira cultura é algo de qualitativamente diferente da erudi-
vasto e concreto, que dela fizesse um instrumento portador de ção, é um sentido. Para o registro e armazenagem da erudição
contribuições tangíveis à ciência. não bastam as bibliotecas? A psique tem funções diretivas a
Nesta efervescência dos tempos, ansiosos de novas direções, cumprir mais importantes que as registrações mecânicas, seme-
foi lançada uma corrente de ideias que não poderá ser detida. lhantes a pesada carga para a inteligência, correspondente a tra-
Achará ela ressonâncias que a amplificarão. Repercutirá nas balho material de caráter inferior.
consciências que, fazendo-a suas, a levarão a grandes distâncias. Na verdade, hoje se começa a pensar, mas como? A produ-
O futuro da humanidade está biologicamente em sua espiri- ção é caótica, paleontológica, estrondeante; não é um concerto.
tualização. Ou espiritualizar-se ou morrer. Tenta-se, mas não se domina. A mole cultural é embaraçosa,
O materialismo aprisionou e comprimiu o espírito na ma- não auxiliando, antes dificultando a síntese; o saber é exterior e
téria, talvez somente para que ele pudesse melhor explodir. Um desorientado e não destila na transparência que deixa ver os prin-
178 AS NOÚRES Pietro Ubaldi
cípios. É raro o caso da intuição que se desembaraça do passa- ao desenvolvimento gradual, na Terra, do pensamento de Cris-
do, deixando de repetir velhas coisas que existem em todos os to, que, como vimos, é uma contínua emanação. A Síntese torna
livros e se lança, virgem, pelas vias da criação. A orientação a trazer ao seio da vida o Evangelho, que hoje parece constituir
materialista do século mecanizou também o saber, criou um ti- suprema utopia, unido à grande inimiga – a ciência – como um
po de sabedoria utilitária acessível a todos, uma vestimenta que novo passo no caminho milenário que conduz à realização, na
todos podem usar; a cultura, porém, é um impulso interior, cujo Terra, do Reino dos Céus.
segredo está na força da alma. Séria afirmação! Ondulou vagamente na profundeza de mi-
É necessário impelir o atual desfraldar de competições para nha consciência, através de todo este escrito, e somente agora,
uma direção diferente, importa deslocar o centro psicológico quando tenho de concluí-lo, encontrou um caminho para explo-
da vida. Atualmente o pensamento é um esforço, porque tem dir em sua plenitude. Eu mesmo não havia avaliado a profunda
de emergir da cegueira da matéria; porém, em fases mais altas significação desta ou daquela sentença por mim proferida, e es-
de sensibilização, é espontâneo, jubiloso, repousante. As at- te conceito só agora o compreendo, ao investir-me ele como
mosferas mais rarefeitas da evolução são construídas de pen- uma revelação. A forma da mediunidade possui uma gradação
samento; basta atingi-las. evolutiva: involve na direção da forma física e evolve no senti-
A escola deveria ser uma palestra para a formação de cons- do da forma inspirativa.
ciências, nunca de fatigados carregadores de conhecimentos, Agora compreendo o significado da dor, da purificação, da
oprimidos pelo trabalho aquisitivo de noções. ascensão moral, colocadas no caminho da evolução de minha
A sufocante supercultura moderna deve ser aligeirada em mediunidade, único caminho que me pode permitir alcançar es-
verdades mais simples e sintéticas. Estas podem parecer coisas tas noúres mais elevadas, que são minha meta. Agora compre-
longínquas, mas o são talvez menos do que se acredita. A vida endo porque, no conjunto dos grandes inspirados, escolhi ins-
caminha e não pode parar. A evolução se dirigirá necessaria- tintivamente, por simpatia, os inspirados da revelação cristã,
mente à normalização de todas estas audácias; a ciência não apartando-me dos outros, embora também grandes. Assim,
poderá permanecer sempre tão limitadamente utilitária e sentirá compreendo agora que me movo na linha da inspiração cristã e
necessidade de completar-se. E o mundo explodirá nesses psi- reconheço com que imensa noúre me acho em sintonia. Enten-
quismos superiores. O pensamento superará seu hodierno perí- do porque, ao traçar a história dos grandes inspirados, anterio-
odo paleontológico e será a potência do homem do futuro, pois res ou posteriores a Cristo, sempre os vi encaminhando-se para
o mundo tem vivido sempre e sempre viverá de superações. Sua figura, central no mundo, e eles me apareceram natural-
Já agora tudo disse a respeito do meu caso. Em A Grande mente unidos em corrente na linha do lógico desenvolvimento
Síntese, descrevi as noúres como as senti; aqui, descrevo as mi- desta grande noúre, em cuja esteira também se arrasta minha
nhas sensações ao senti-las. Observamos o fenômeno inspirati- inspiração. Agora compreendo todo o significado de A Grande
vo em muitos outros casos, separamo-lo tecnicamente e agora Síntese e como existe, na verdade, essa grande noúre cristã que,
concluímos com as consequências práticas. Agora se pode de Moisés até hoje, jamais silenciou.
compreender o que é A Grande Síntese. Exteriormente, é uma Com tudo isso, quero indicar apenas a direção de proveni-
nova filosofia da ciência, com conclusões ético-sociais, uma ência da minha fonte noúrica, que, localizando-se no Alto, está
demonstração racional de problemas científicos e éticos até próxima daquela unificação em que tudo se funde em Deus.
agora ainda não resolvidos e demonstrados. É uma reconquista Não é Ele a fonte de todas as coisas? Que há de extraordinário
de todo o disperso conhecimento humano, para levá-lo à unida- em uma inspiração descer do Alto? Por que essa grande potên-
de. E, por esta sua amplitude de visão conceptual, que reúne o cia central deveria estar ausente, distante da Terra? Não existe
pensamento religioso e o científico, a gênese mosaica e o evo- lá para erguer continuamente as criaturas no caminho das as-
lucionismo darwiniano, já expresso pela esfinge egípcia, reli- censões do espírito? Falo do Cristo cósmico, imensamente mai-
gando-se assim a todas as revelações e atingindo a verdade úni- or que o Cristo histórico. Com isso, repito, somente indico a di-
ca, é realmente a obra da unificação. Unificação mais profunda reção, porque, como já disse, a luz, filtrada através de potências
do pensamento humano, mais completa fusão de ciência e fé intermediárias e noúres de redução, não sei quanto teve de
não se poderia imaginar. A evolução biológica tem seu prosse- ofuscar-se para chegar até mim, não obstante minha tensão as-
guimento na ascensão espiritual das religiões, ao longo de uma censional, e isso por causa da opacidade de minha mediação; na
única linha. A Grande Síntese realizou a audaciosa obra de fa- registração, certamente o pensamento original assinalará traços
zer a ciência flanquear a revelação na mesma linha de desen- de meu cansaço e de minha inferioridade humana. Nada disso é
volvimento. É também o fato completo a demonstrar a prática prodigioso; tudo é lógico, normal.
aplicabilidade do método da intuição, que nela oferece seus O martírio era um meio feroz, necessário para, em tempos
produtos concretos e úteis. É uma nova pedra do edifício inspi- ferozes, fazer compreender a verdade a uma humanidade feroz.
rativo, que prova a realidade da captação noúrica e, mais longe, Já não é ele hoje necessário, porque se entendeu a psicologia
da evolução psíquica em vários planos de consciência. de reação que as perseguições geram e é, por isso, considerado
A Grande Síntese, porém, é algo mais. Possui um seu aspec- ato de má política. Atualmente, importa trabalhar não com o
to interior e é o documento que comprova a existência real do sangue, mas com o pensamento.
supersensório, atingido através da inspiração. Poderá tudo isso O momento histórico justifica essa descida de pensamento
parecer exaltação, entretanto tudo está preso em cadeias de ló- dos planos superiores, e já vimos que a história é uma consci-
gica. As pedras são inertes, o espírito é vivo e audacioso, e eu o ência viva que lança forças próprias e produz os acontecimen-
prendi num cárcere de racionalidade, a fim de que esta ofere- tos necessários à sua evolução. O momento histórico é grave.
cesse a garantia da seriedade. Há em seus eventos um preparar-se de maturações tão solenes
No seu aspecto interior e profundo, A Grande Síntese é uma como jamais houve em tempo algum. Encontramo-nos numa
revelação. Num mundo em que todo ser é constrangido por uma grande curva da história do mundo, e todos o pressentem. A
lei feroz a reclamar da carne do semelhante o seu próprio ali- humanidade está lançando as bases do novo milênio, está jo-
mento, esta é uma voz que tem um timbre diferente. É uma re- gando a carta de sua salvação ou de sua ruína. Há hoje aquela
velação atingida conscientemente, através de métodos precisos, mesma plenitude da civilização romana, que se precipitou nas
de que apresentei a técnica. Sua vestimenta científica é exterior invasões bárbaras, a mesma plenitude da realeza da França,
e cobre, realmente, uma substância evangélica que une a Síntese que se precipitou na Revolução.
Pietro Ubaldi AS NOÚRES 179
Importa dar novamente à Europa a consciência da unidade Com o presente volume, não apenas cumpri um novo dever,
de civilização e de destino; depois da conciliação política, na mas este trabalho de reflexão foi indispensável, sobretudo para
Itália, entre o Estado e a Igreja, urge atualmente esta maior mim mesmo, para minha própria compreensão.
conciliação espiritual, no mundo, entre a ciência e a fé; é neces- Fiz, neste escrito, afirmações graves; elas me empenham.
sário encontrar em Deus a unidade fundamental da verdade e Destruí as pontes à minha retaguarda: não mais me é possível
do pensamento. Existe, porém, nas almas o desejo da verdade, e retirar-me. Este também era um dever meu.
a cisão entre ciência e fé é um caso de involução. A evolução, Que sucederá agora? Aonde me conduzirá a evolução de
entretanto, é a grande lei da vida, é irresistível lei de unificação. minha mediunidade? Que novos conceitos registrará minha
As civilizações se cansam; só o espírito pode dar-lhes a for- captação noúrica? Que nova maturidade espiritual e sensibiliza-
ça capaz de rejuvenescê-las. E o espírito está no Alto, na dire- ção perceptiva me trará o futuro? Que sucede nas profundezas
ção de Cristo, Que está presente, sabe e vela. de meu destino? De qual meta, na eternidade, me aproximo eu?
Compreendido o mecanismo interior da vida e da sua evo- Espero a maturação de meus estados interiores e, através de-
lução, tudo isso é lógico. É lógica também esta minha sinceri- la, o contato com novas correntes de pensamento que revelem,
dade. Agora se pode entender como este segundo volume é primeiramente a mim mesmo, qual seja a direção que deve as-
necessário para esclarecer, no mais íntimo, A Grande Síntese, sumir meu trabalho. Sei que a fonte de pensamento é inesgotá-
que, de outro modo, poderia permanecer ininteligível, mal in- vel. Entretanto, seja o que for que possa acontecer, de uma coisa
terpretada em sua linguagem, por vezes audaz e apocalíptica, estou certo: o passado não morre; o passado é a base do futuro,
a ponto de poder parecer ironia se aceita como produto de mi- no qual sempre ressurge e, por isso, jamais foi vivido em vão.
nha consciência normal.
Eu mesmo deveria e só eu poderia explicar certas coisas. FIM
Através desse dobrar-se sobre mim mesmo, tinha de chegar a
compreendê-las.
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 181
Somente numa segunda parte o fenômeno místico é apre-
ASCESE MÍSTICA sentado em seu aspecto espiritual, religioso e ideal, tal qual o
foi, de modo quase sempre exclusivo2. Ele se distingue, pois,
PRIMEIRA PARTE dessa comum nomenclatura, vaga e imprecisa, e é definido em
suas linhas fundamentais de fenômeno de evolução biológica,
O FENÔMENO levada até ao campo do mais alto psiquismo. Encarado assim,
sob a forma de caso vivido, o fenômeno, conquanto pareça cir-
I. SITUAÇÃO DO PROBLEMA cunscrito ao subjetivismo de minha consciência individual,
apresenta-se, sem dúvida, não somente na solidez de uma reali-
Analisarei neste volume o fenômeno da ascese mística. Dis- dade experimental, senão também nos limites de uma verdade
penso-me de novamente situá-lo no campo cultural e no mo- universal, porquanto eu o concebo e encaro, em concordância
mento psicológico moderno, visto que o apresento em seu du- com minha orientação filosófica e científica, constantemente
plo aspecto de fenômeno científico e de fenômeno espiritual, seguida, como fase da humana e normal evolução biológica,
como sequência lógica e vivida do fenômeno inspirativo, já
embora seja aqui continuada e projetada até aos superiores ní-
amplamente analisado no precedente volume 1. Quem o tiver li-
veis da ascensão espiritual. Verdades, pois, universais estas de
do, nele terá encontrado o duplo pretexto desta continuação, se-
que trataremos; linhas fundamentais do desenvolvimento feno-
ja no campo científico, seja no campo espiritual. E, para res-
mênico, que é lei das coisas; realidade objetiva situada além do
ponder objetivamente, ou ainda, quase fotograficamente, à rea-
relativo, no absoluto; realidade profundamente humana, tecida
lidade do fenômeno, tal qual foi por mim vivido, aqui o analisa-
de lutas, de dores e de conquistas.
rei e aprofundarei sob dois aspectos decorrentes de duas psico-
Grande vantagem esta de poder operar sobre uma realidade
logias diversas, que, embora hoje consideradas opostas, são pa-
psicológica, para mim experimental, e sobre uma verdade que é
ra mim equivalentes: a ciência e a fé.
Servirá isto para demonstrar sua identidade substancial em universal; são estas duas bases de nosso estudo, bastante sóli-
todos os campos e, principalmente, em face deste tão discutido das, que compensam quanto poderiam opor-me como defeito,
e controverso fenômeno místico; servirá igualmente para evi- isto é, a contínua necessidade de falar de mim, assim como de
denciar que já devem ser tidos por superados certos antagonis- minha precedente produção literária. A esta devo, contudo, in-
mos ultimamente tão agudos e transformados em sementes de dispensavelmente reportar-me, porquanto dela resultam as pri-
dolorosas cisões da unidade do pensamento e da fé. E, quando meiras fases da maturação do fenômeno espiritual por mim vi-
eu tiver feito convergir para as mesmas conclusões as extremas vido. É imprescindível, para compreendê-lo no caso concreto
e opostas atitudes do pensamento humano, minha concepção in- em que o analiso e apresento, recorrer, como preparação e ex-
terpretativa, baseada na realidade por mim muito intensamente plicação, ao meu passado, que o contém em germe, e do qual
sentida, terá solidez de verdade universal e poderá ser conside- ele se desenvolveu. Não saberia estabelecer diversamente os
rada novo fundamento que, no meu permanente anseio de reali- termos deste estudo, até porque somente quem tem experimen-
zar o bem, terei conseguido lançar para a construção do edifício tado determinadas sensações e emoções possui a palavra sufici-
do conhecimento. Ouso esperar isso não somente como fruto do entemente vibrante para exprimir o inefável.
imenso trabalho interior em que me tenho amadurecido, por fa- Perdoem-me semelhante ostentação, forçoso como é reco-
talidade da lei de evolução, superior aos méritos meus e à mi- nhecer quanto é ela inevitável. Perdoem-me se ela parece che-
nha própria vontade, mas também porque este mesmo estudo gar a uma confissão desapiedada de todo o meu ser, até à inti-
constitui, para mim, tão alto coroamento de minhas precedentes midade mais recôndita, confissão que proporcionará ao leitor
sínteses, que as posso resumir e levantar todas para aquilo que aquela mesma sensação que provo, feita de sacrifício e de ho-
eu poderia chamar minha mais alta síntese conceptual, de pai- locausto, ao invés de vão exibicionismo. Doação de mim
xão e de vida. O fenômeno místico é, de fato, animado por um mesmo para o conhecimento e solução dos mais árduos pro-
dinamismo tão potente e profundo, feito de maturações e supe- blemas da ciência e da fé, implícitos no espírito; problemas do
ramentos interiores tão substanciais, anelante de ímpetos tão mundo, não somente em sentido evolutivo, mas também histó-
excelsos, que deve ser necessariamente considerado no vértice rico, porque místicos sempre os houve, em todos os tempos e
das aspirações da inteligência e do coração. em todos os países. A ressonância que minha alma encontra na
O precedente estudo, a que já me reportei, conquanto seja de tantos místicos e que a deles encontra na minha, a comu-
aparentemente exaustivo e definitivo, mais não é do que a pre- nhão de fé, de experiências e de metas espirituais, a universali-
paração deste, assim como o fenômeno da mediunidade inspira- dade histórica de fatos e fenômenos vividos ampliam meu po-
tiva, nele descrito, não foi, para mim, mais do que uma fase de bre caso para além dos limites de um subjetivismo que, evi-
vida. Nesta nova fase, parecem levantar-se, como num turbi- dentemente, já não se acha circunscrito em mim, mas trans-
lhão, todas as potências da alma humana, e eu, através de mi- borda para além das fronteiras de minha personalidade.
nha exposição, guiarei o leitor que me seguiu até aqui, ainda Espero haver, assim, justificado a posição em que situo o
além da sensação viva da vertigem arrebatadora que me tem problema místico, que aqui se compensa com dois sólidos pon-
golpeado nos meus estados supranormais de visão e de êxtase. tos de apoio e, todavia, dois pontos de relativa debilidade.
Afirmei que isso é continuação de precedentes fases do fenô-
meno, razão pela qual, neste escrito, devo referir-me necessari- II. EVOLUÇÃO DA MEDIUNIDADE
amente ao volume em que estas são descritas. Declarei que se
trata de fenômenos por mim vividos, pelo que sou compelido a Coloco, assim, o fenômeno místico na sequência evolutiva
falar ainda de mim. Se isso é deselegante, é, todavia, garantia do fenômeno inspirativo. Precisemos, pois, com maior exatidão.
de objetividade, porque minha análise toca, também aqui, assim Em meu livro precedente, classifiquei em várias fases a me-
como nas fases já examinadas, uma realidade que, embora inte- diunidade, que tenho considerado um fenômeno em evolução,
rior, me é perfeitamente acessível. Conquanto pessoal e objeti- momento e expoente da maior evolução biológico-humana, a
va, dela pude abstrair-me nitidamente, submetendo-a a estudo qual, superadas as formas orgânicas, se aventura hoje, desmate-
metódico, analítico e científico. rializando-se progressivamente, nas formas psíquicas. Aqui não
1 2
As Noúres, obra do mesmo autor (N. do T.). Segunda parte do presente volume – “A Experiência” (N. do T).
182 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
demonstro, mas apenas relembro esta evolução biológico- proximação dos dois termos tende, assim, a tornar-se cada vez
psíquica, alhures já por mim exaustivamente tratada 3. mais estreita, mais constante, mais normal. Com o andar do
Em seu primeiro nível inferior, o fenômeno mediúnico mani- tempo, a sintonização vibratória estabiliza, por constante repe-
festa-se em forma física, de efeitos materiais. Em plano mais al- tição, aquele estado de afinidade entre transmissor e receptor,
to, aparece uma mediunidade superior, mais evolvida, de efeitos que é simpatia e atração, estado reconhecidamente básico, sobre
mentais. Formas demasiado conhecidas, para que nelas eu insis- o qual tanto insisti no estudo do fenômeno da recepção noúrica.
ta. Se, em seu primeiro nível, a mediunidade intelectual é sim- Evidente é o resultado deste processo. Contém ele um cam-
ples mediunidade passiva e inconsciente, em que vontade e po de forças convergentes para o mesmo ponto, que deverá, ne-
consciência do médium se afastam do fenômeno, como elemen- cessariamente, ser tocado, ou antes, ou depois. A comunicação
tos estranhos e inúteis, chegando por evolução a nível mais ele- anormal do pensamento tornar-se-á, na consciência do metafâ-
vado, transforma-se em sentido ativo e consciente, no qual, co- nico, uma espécie de educação e, consequentemente, de hábito
mo tenho demonstrado, a consciência do médium está desperta e para viver em superior zona espiritual, onde tenderá a normali-
do qual é parte integrante. Em verdade, ocupei-me longamente zar-se, em forma cada vez mais estável, o equilíbrio de seu no-
dessa mediunidade inspirativa, isto é, mediunidade intelectual vo peso específico psíquico. E a comunhão não lhe estabilizará
ativa e consciente, limpidamente operante na viva personalidade somente as vias, mas dilatar-lhe-á as fronteiras; se antes invadia
do sujeito. Delineei a lei de ressonância do fenômeno, pela qual, somente as zonas da inteligência e era somente luz resplande-
entre o centro de emanação transmissor, individualizável como cente, porém fria, inundará agora as zonas do coração e será
noúres ou correntes de pensamento, e a consciência desperta do também calor que inflama de paixão.
médium, pode estabelecer-se, pela sintonia de vibrações, uma Extremamente férvido de maturações é, pois, o fenômeno, e
comunicação, que é base da recepção inspirativa. intensamente ativo é o Alto na transfusão de forças para a tran-
E, neste ponto, me havia detido, porque, ontem, este cons- sumanização do ser. Tende, pois, para uma gradual, progressiva
tituía o último termo de minha realização; mas, já não o é ho- e total elevação, de si para si, da consciência receptora, de todo
je. Aquelas afirmações continham, porém, as razões para esta o eu humano do sensitivo, com todos os seus recursos e poten-
continuação. cialidades. Daí resulta um como incêndio que reduz a cinzas o
A mediunidade inspirativa4 já é imensamente superior à co- homem velho e o faz ressurgir em forma completamente nova,
mum mediunidade passiva e inconsciente, porque vem a ser ati- em que se apresentam totalmente renovadas a concepção, a ori-
va e tende a fixar-se na personalidade do médium, como sua entação psicológica e a visão do fenômeno e de suas leis.
normal emanação. Mas não pode o fenômeno interromper aqui o Vemos, assim, o fenômeno da mediunidade inspirativa
seu desenvolvimento e, certamente, nos levará para altitudes amadurecer e transformar-se, naturalmente, por lógico desen-
vertiginosas, sobretudo para a ciência, que não está acostumada volvimento, naquilo que se pode chamar, em seu primeiro
a tratar de fenômenos cuja progressão evolutiva os leva a uma tempo, metafania mística, no sentido de recepção cada vez
normal desmaterialização, que os subtrai à comum percepção mais total, isto é, de emanações não mais exclusivamente
sensória e psíquica; progressão que os leva aparentemente a conceptuais, mas também afetivas etc. À medida, porém, que
desvanecer-se num mundo que, por imponderável, é contestado esse fenômeno se encaminha para sua maturação, transcende
pela ciência. Mas esta não constitui razão bastante para que eu de tal modo o simples fenômeno inspirativo, num arrebata-
deva deter-me, máxime quando em mim encontro o guia de uma mento de todo o ser, que acaba por se encontrar diante deste,
experiência vivida. Prossigamos, portanto, ainda, como durante como a luz solar diante da luz lunar.
um ano prosseguiu em mim o fenômeno; releguemos ao passado Tal é o fenômeno místico de que agora nos ocupamos.
aquela fase conhecida e superada e aventuremo-nos na zona su-
perior de evolução do fenômeno mediúnico inspirativo.
Temos visto que os dois termos do fenômeno inspirativo, à III. MEDIUNIDADE – METAFANIA – MISTICISMO
semelhança de uma transmissão-recepção radiofônica, repre-
sentam o centro emanante e a consciência do médium, recepto- Entraremos, mais adiante, nos pormenores deste desenvol-
ra e registradora. Os dois termos são distintos, embora comuni- vimento. Basta-nos, por agora, traçar as linhas de orientação. A
cantes, isto é, ligados por fenômeno de ressonância. A captação sucessão destas fases não a apreendi de livros, que não leio, ou
noúrica baseia-se nesse princípio, ou seja, no estado de sintonia de textos, que não consulto, mas de minha experiência direta.
ou harmonização vibratória, que se alcança mediante duas recí- Quis conservar aqui minha virgindade de pensamento, perma-
procas aproximações: primeiro, a entrada na fase de supercons- necendo em contato direto e exclusivo com o fenômeno, da
ciência por parte do eu do médium, que se põe em tensão, em maneira que, depois, a eventual coincidência com os resultados
outros termos, deslocamento ascensional de seu centro ao longo de outros estudos e de outras experiências se tornasse, para
da escala evolutiva das dimensões, até à mais alta fase psíquica mim e para os outros, mais surpreendente e comprobatória.
e superconsciência; segundo, descida ao longo da mesma escala Fica assim definida a amplitude do fenômeno da ascese mís-
evolutiva, isto é, involução de dimensão conceptual por parte tica, objeto deste estudo, que pode ser expressa nestes termos e
do centro emanante e de sua irradiação, de modo que, através
ser compreendida dentro destes limites: por ascese mística en-
de recíproca propensão de um para outro, seja possível o encon-
tendo o desenvolvimento do fenômeno psíquico, desde a fase de
tro e o amplexo dos dois termos.
metafania lúcida ou de inspiração consciente, até à sua fase de
Tendem essas faculdades, mediante contínuos exercícios, a
misticismo, que se consuma com a unificação integral entre re-
estabilizar-se, desde a zona instável de fadiga e de conquista, até
ceptor e transmissor. O presente estudo, assim como minha ex-
a zona de assimilação completa na personalidade do médium, is-
periência, que lhe serve de guia, move-se entre esses confins.
to é, até a zona de instinto e qualidade normal (automatismo).
A essência do fenômeno consiste sempre na universal e in-
Forma-se um hábito da consciência, através da respiração
suprimível evolução do espírito. Mas é certo que, nesses níveis,
sutil nas zonas rarefeitas dessa estratosfera do pensamento. A-
o simples fenômeno mediúnico se espraia sobre tal mar de con-
3
Em A Grande Síntese e As Noúres (N. do T.) .
quistas e de grandiosas afirmações, que aquele fio de revelação
4
Os que estiverem habituados a denominar estes fenômenos com outra supranormal e primeiro lampejo de transparências transcenden-
nomenclatura, a menos que substituam a palavra pelo conceito e a forma tais que é a simples metafania, perde-se na vertigem de luz que
pela substância, saberão igualmente, estou certo, compreender, ainda que é o estado místico, de modo que, longe de diminuir a personali-
as expressões por mim adotadas sejam insólitas para eles (N. do A.). dade na inconsciência, a arrebata consciente até ao superconce-
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 183
bível. Ouço a voz interior exprimir-se num cântico de harmoni- de desenvolvimento, através de características constantes.
as universais, dizendo-me: “Contempla a substância espiritual Enquanto a mediunidade de efeitos físicos se move prevalen-
das formas do ser. O todo é um turbilhonar de esferas. Este temente por força de causas barônticas 5 e com técnica ecto-
movimento representa a mais doce música, a mais maravilhosa plasmática, e a mediunidade intelectual inconsciente pode
harmonia de luzes, a mais gigantesca construção, na mais am- abrir-se por todas as portas e fazer-se órgão de recepção de
pla exatidão de relações, e é também cântico de conceitos e sen- todo pensamento, desde o mais nobre até o mais vil, assisti-
timentos. Observa e, na harmonia deste amor infinitamente mos aqui a um processo de progressiva purificação do fenô-
múltiplo, esquece a dissonância de tua dor, que se encontra fe- meno e do médium. Na recepção inspirativa consciente, o fa-
chada no tempo. Deixa teu espírito explodir, além de todas as tor moral, como tantas vezes tenho insistido, ocupa o primei-
medidas, no incomensurável; além de todos os limites, no infi- ro plano e, no misticismo, não constitui somente condição
nito; além de todos os ritmos menores, no ritmo divino do todo. prevalente, mas absoluta e irrevogável, tanto que ele repre-
Verás e ouvirás. Toda alma é feita para ver e ouvir”. senta o vértice da perfectibilidade moral e religiosa. O fenô-
“Repara. Os seres dividem-se e reúnem-se segundo hierar- meno transborda, pois, em suas mais altas maturações, além
quias. Cada qual se põe, por virtude de seu peso especifico, em dos limites das possibilidades e da competência da ciência,
seu nível natural, inviolavelmente. Eles se veem e se falam e se no campo da fé e da religião. Para mim, todavia, não existe
escutam. Vozes e luzes, de plano a plano, descem e sobem, antagonismo, a não ser de relatividade de perspectivas e de
porque o Alto tem sede de se dar, como o plano inferior tem unilateralidade de pontos de vista. Devemos, contudo, elevar
sede de ajuda. Esta é a Lei, imperante em toda parte e em todo a ciência ao nível da fé e empreender, sem transviar-nos, a
nível. Assim tudo se distingue por individuações inconfundí- penetração nos domínios do supersensório. É chegada a hora
veis, e tudo volta a reunir-se e irmanar-se na mesma luz e no de estes antagonismos entre ciência e fé, hoje destituídos de
mesmo cântico. Ao apelo do fraco responde um eco bondoso; sentido, porque filhos de visões unilaterais e de momentos
graças à bondade do Alto, há sempre uma dádiva por fazer. históricos superados, caírem para sempre, relegados ao pas-
Auxiliar-se reciprocamente, eis a Lei”. sado, assim como caem todas as coisas superadas.
“A luz irradia do centro e transparece de esfera a esfera, O fenômeno místico deixa assim para trás, na via das ascen-
através dos seres que a compõem. O metafânico é alma desper- sões humanas, os fenômenos mediúnicos e, conquanto se origi-
ta à escuta e ouve aquilo que para os outros é silêncio. Concei- ne destes, é de se ver que destes se liberta completamente. In-
to, harmonia e potência consubstanciam aquela luz; ela é sinfo- gressamos, assim, em um campo supermediúnico, embora re-
nia dos pensamentos e ações, é também corrente de amor e de sultante do mediúnico. Chegamos às superiores fases, a que as-
força a enxertar-se no espírito, que é a causa única da vida. E cende o fenômeno e nas quais ele se intensifica e liberta, e in-
reforça as motivações e fecunda vossas obras”. gressamos nesta zona, que é de suprema purificação.
“A percepção noúrica é um contato com a irradiação divina, Ainda não pude elevar a níveis mais altos, hoje pelo me-
que é a linfa vital do universo”. nos, minha capacidade de penetração. Parece-me haver toca-
“Por isso, vos digo: Escutai e purificai-vos, para que tudo do o vértice de minhas possibilidades e do meu sonho de re-
seja ascensão. Não ausculteis em vão, por simples curiosida- alizações humanas.
de, porque sagrada é a voz do Alto. Não dissipeis a potência
substancial da vida. Sirva-vos tudo isso para subir. Jamais IV. A CATARSE MÍSTICA E
atendais às tristes vozes dos planos inferiores, a não ser para O PROBLEMA DO CONHECIMENTO
ajudar a sofrer e a subir”.
“A lei de ascensão moral, conduzida através da bondade e O fenômeno místico pode ser também concebido, na mais
do amor, é a lei do centro, que por ela sustém o universo”. ampla acepção, qual momento das ascensões espirituais huma-
Relembro aqui as palavras de Goethe a Eckermann: “Ne- nas. Inclui, pois, o problema do conhecimento e pode ser consi-
nhuma produção de ordem superior, nenhuma invenção ja- derado, como o considero, uma verdadeira técnica do pensa-
mais procedeu do homem, mas emanou de uma fonte ultrater- mento e método particular de indagação, de superlativo rendi-
rena. Portanto o homem deveria considerá-la um dom inespe- mento. Alhures, já insisti nestes conceitos, quando do estudo do
rado do Alto e aceitá-la com gratidão e veneração. Nestas fenômeno inspirativo. Prosseguindo a análise do mesmo fenô-
circunstâncias, o homem é somente o instrumento de uma po- meno, em suas fases superiores, é natural que aqueles conceitos
tência superior, semelhante a um vaso julgado digno de rece- também encontrem aqui seu ulterior desenvolvimento.
ber um conteúdo divino”. É a evolução do espírito que traça e supera os limites do co-
◘ ◘ ◘ nhecimento, que diversamente o situa no seu progredir, até ao
Sentiremos depois, mais de perto, o incêndio daquelas su- ponto em que a unificação com a fonte de emanação, que encon-
blimações de espírito, pelas quais se passa da fase de inspiração tramos no vértice do fenômeno místico, se torna também unifica-
consciente à de unificação mística. Mas é necessário, antes, ção dos divergentes aspectos, sob que se contempla o relativo,
compreender e explicar racional e cientificamente o fenômeno. numa única verdade humanamente absoluta. Assim, às diferentes
Antes de abandonar-se ao impetuoso lirismo da visão, é neces- fases da evolução espiritual correspondem diversos graus de co-
sário seguir o fenômeno em cada uma de suas manifestações, nhecimento e diferentes aproximações de revelação da verdade.
apreendê-lo em sua realidade nua, com as tenazes do analista. Nos albores de sua vida espiritual, o homem não sabe
Cumpre, antes de tudo, dar completa satisfação à razão. elevar-se além das imediatas consequências de suas impres-
Na evolução do fenômeno mediúnico, do plano físico ao sões sensórias. Seu julgamento se detém, pois, na superfície
plano psíquico inconsciente, depois consciente, até à unifica- dos fenômenos, limitando-se a uma interpretação empírica e
ção mística com a fonte, é nota fundamental a progressão de desconexa, pura projeção, no cosmo, das reações de seu pe-
consciência, de intervenção da vontade e, ao mesmo tempo, queno mundo interior.
de desmaterialização. E nela se encontra uma progressiva 5
Neologismo formado de elementos gregos: “baros” (gr. báros, ous) –
conquista do fator moral, uma ascendente realização de acri- pesado, denso, e “ontos” (gr. ón, óntos) – ser, entidade. Barônticas: pro-
solamento espiritual, uma transformação em peso específico, venientes de espíritos de constituição densa (entidades inferiores). Esse
cada vez mais livre e mais leve. Todo o vasto fenômeno da problema de correntes barônticas é amplamente explanado no livro As
evolução da mediunidade se conjuga, assim, em suas zonas de Noúres, do mesmo autor (N. do T.).
184 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
Em mais avançado momento, a consciência, mais amadure- V. OBJETIVISMO E SUBJETIVISMO
cida, qual tem acontecido até hoje, no seio da civilização, quer
dar-se conta do valor das próprias reações, procura e exige uma Ao enfrentar o problema gnoseológico, partimos de princí-
verdade menos aparente e mais substancial e vai ao encontro pios decisivamente novos no pensamento moderno. O conhe-
dos fenômenos, não mais exclusivamente com a fantasia do cimento, creio, não se alcança com os métodos chamados obje-
primitivo, mas com o olhar objetivo do observador. Tem, as- tivos de projeção para o exterior, mecânicos, iguais para todos e
sim, aprendido a catalogar fatos, coordenando-os segundo pla- acessíveis a todos, mas por métodos subjetivos, de introspec-
nos hipotéticos, e tenta compenetrar-se da lógica e fixar a lei de ção, peculiares somente a determinados tipos de superconsciên-
progressão dos fenômenos, para chegar a estabelecer gradual- cia Creio que os limites do conhecimento sejam dados e medi-
mente os princípios, cada vez mais abstratos e gerais, que re- dos, prevalentemente, segundo o grau atingido pela consciência
gem o funcionamento orgânico do universo. Tal é a presente fa- humana na escala da evolução psíquica, o que quer dizer que a
se científica. O homem moderno sente, justamente, a sua supe- amplitude do campo fenomênico dominado é condicionada à
rioridade diante do homem supersticioso, que se impressiona
extensão conseguida pelo eu em sua evolução, que é sua poten-
antes de saber observar, e sente-se orgulhoso de não se deixar
ciação e dilatação. Eis porque o fenômeno místico, que é a fase
invadir por vãos temores, diante de fenômenos cuja causa pode
superior de evolução do espírito, se apresenta conexo com o
surpreender com seu poder de análise. E isto já é muito. O ho-
problema do conhecimento e coincide com sua solução.
mem tem conseguido a racionalidade, esta potência arquitetôni-
Coloco-me, assim, como antípoda da hodierna forma men-
ca, que permite as construções ideológicas; ela é poder de esco-
tal adotada pela ciência, ao mesmo tempo que, sobrepondo-
lha e de coordenação, é visão de relações e unificação; é indu-
ção, dedução, sistematização, que guiam para a reconstrução do me à psicologia objetiva, elevo para os primeiros planos o
pensamento originário da Criação. subjetivismo.
A ciência tem recolhido todas as pedrinhas do grande mo- Indiquei, no princípio, o caráter subjetivo deste escrito, que
saico, tem procurado reconstruir o grandioso painel, sem, toda- é também o de toda a minha orientação psicológica. Poderão
via, lograr outra coisa que delinear alguma figura. Mas, ai de arguir-me de subjetivismo, qual se fora isso um defeito. A ob-
mim! – longo é o caminho, extremamente prolixo é o método, jeção, que pode ser global e insurgir-se contra a minha perso-
tanto que pode ser considerado inadequado à consecução da nalidade e o valor que atribuo ao método da intuição, parece
síntese máxima. Evidencia-se, dessarte, a inépcia da ciência e, grave, mas não o é.
consequentemente, uma fundamental questão de método; este, Como pode a ciência racional opor-me, como defeito, a
tal qual é concebido, nada mais pode ser que um eterno cami- arbitrariedade do subjetivismo e suas bases intuitivas, quando
nhar, incapaz de síntese. ela mesma se funda sobre bases axiomáticas, igualmente in-
Da maturação evolutiva da consciência humana decorre, tuitivas e arbitrárias, porque ainda passíveis de demonstração?
porém, uma fundamental mutação. Sinto por experiência pes- Os fundamentos daquele organismo conceptual, de que pode
soal, por observação de tipos históricos do movimento das provir esta acusação, embora considerados absolutamente se-
leis biológicas, a verdade desta afirmação. O fenômeno da guros, são axiomas gratuitos, de valor transitório e extrema-
catarse mística representa uma tão completa elevação da mente relativo. Isto pode dar a alguns espíritos autônomos a
consciência, que se lhe escancaram as vias do conhecimento. sensação de que o pensamento humano, em toda a sua esma-
É este um importante aspecto do fenômeno místico, que aqui gadora congérie de construções ideológicas, filosóficas e cien-
estamos estudando. Antes de lhe enfrentarmos os maiores as- tíficas, se agite sobre bases convencionais. Ignora a ciência o
pectos psicológicos, éticos e religiosos, examinemo-lhe o ci- que sejam, substancialmente, os fenômenos sobre os quais
entífico e gnoseológico. ópera. Averigua e combina os efeitos, porque tem experimen-
Os três graus do conhecimento, isto é, a fase sensória, a fase tado que as coisas ocorrem deste e daquele modo. Mas, por
racional-analítica e a fase intuitivo-sintética, correspondem aos que causas e de que maneira isto ocorre, não o sabe. No cam-
três tipos de homem e de consciência por mim descritos noutra po abstrato, se penetrarmos até aos bastidores desataviados da
obra6, a saber: o homem vegetativo, físico, sensório, de ideação construção ideológica e pusermos a nu o jogo com que se tece
concreta, movido pelos instintos primordiais da vida; o homem e desenvolve a cadeia do silogismo humano, verificaremos,
racional, submetido à educação, psíquico, nervoso, utilitário; e subindo de concatenação para concatenação e de relação para
o super-homem, dono de si, das forças da vida, do conhecimen- relação, que se deve necessariamente chegar ao ponto fixo de
to. O fenômeno da ascese mística representa a maturação bio- partida, à pedra basilar de todo o edifício. Ora, esse ponto fi-
lógica deste novo tipo de homem. xo, que é precisamente o que rege a construção e por cuja fal-
Acontece agora, neste momento da evolução humana, uma ta toda ela se esboroa, é simplesmente um axioma do qual não
renovação tal da consciência, que seus efeitos são incalculáveis se sabe dizer outra coisa além de que é assim porque é assim,
no campo psicológico e merecem, pois, particular exame. Trata- axioma cuja demonstração se reputa supérflua, pela simples
se de nova e autêntica técnica de pensamento, de completa re- razão de o declararem evidente; e enquanto, para aceitação de
construção dos métodos de pesquisa e de orientação científicas. um pormenor, se exigem mil provas, para aceitação do princí-
Devo, por isso, retornar a esses conceitos, já precedentemente pio-base nada se requer, somente porque ele já existe na qua-
esboçados7, para aqui levá-los mais além, na continuação lógica lidade de aceitação indiscutida na grande maioria humana. E
de seu desenvolvimento. Devo retornar a eles porque, se naque- então a garantia dessa verdade fundamental é confiada única e
les escritos o método da intuição começa a revelar-se na fase de exclusivamente a um fundo de intuição coletiva que instinti-
mediunidade inspirativa consciente, aqui ele se manifesta ple- vamente apoia um mínimo de verdade. Instintivamente, por-
namente, na fase mística, que lhe constitui a continuação. Neste
tanto além de todo o controle racional. Deixada à parte a ciên-
nível de evolução, completa é a maturação daquele método, cujo
cia utilitária, a verdadeira ciência, abstrata, filosófica, mate-
rendimento se nos apresenta com plena eficiência.
mática, de conteúdo conceptual, volve e revolve, reincide e
6 apoia-se toda sobre rudimentos de intuição. Intuições míni-
Em A Grande Síntese, cap. 78 – “As Vias da Evolução Humana”;
v. também Cap. 37 – “Consciência e Superconsciência. Sucessão dos mas, mas seguras, porque somente garantidas pelo estender-se
Sistemas Tridimensionais” (N. do T.) . a grande número de pessoas; ou intuições maiores, de gênios,
7
V. As Noúres, particularmente os capítulos V – “Técnica das Noúres”, videntes insulados, posteriormente desenvolvidas, analítica e
e VI – “Conclusões” (N. do T.). racionalmente, pela cadeia do raciocínio.
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 185
Há, pois, nas raízes do pensamento moderno, uma zona da- vas, que não são as dos sentidos e dos instrumentos, nem as
quela arbitrariedade e daquela intuição que viriam exatamente fornecidas pela aceitação da normal psicologia humana.
inquinar meu subjetivismo. O método da intuição consiste Mas não é tudo. O método objetivo baseia-se totalmente
apenas numa extensão do mesmo sistema a todo desdobramen- sobre um erro fundamental de situação, que lhe impede a pene-
to ideológico; significa estender o mesmo contato intuitivo a tração conceptual dos fenômenos. Esse erro consiste na distin-
todo desenvolvimento e manter-se constantemente no sistema ção entre o eu e o não-eu, entre o sujeito e o objeto, entre a
axiomático, sem pedir apoio racional. Se “o axioma é o conta- consciência e o mundo exterior. Sobre esse individualismo, fi-
to intuitivo com o absoluto”, estendo esse contato e o torno lho do egoísmo, baseia-se toda a psicologia científica hodierna.
contínuo e universal. Não condeno, pois, a ciência; considero- Ora, faz-se mister admitir que as duras necessidades da psico-
a, antes, centelha de pensamento, até onde não está demonstra- logia de luta que a vida impõe não podem ser definitivamente
da e aonde não chega sua atividade racional. Amplifico, antes, superadas. Enquanto, no método intuitivo, a consciência, fa-
seus fundamentos num método que, embora acessível somente zendo-se humilde, mas sensível, logra transportar-se, por vias
a quem, por evolução, ali chegou, é o único que verdadeira- interiores, do seu íntimo à íntima essência dos fenômenos, com
mente pode atingir o conhecimento. o método objetivo, a consciência, permanecendo autônoma e
O método da intuição não é aceito pela ciência positiva mo- volitiva, suprime sua sensibilidade e sufoca a voz dos fenôme-
derna, porque é antiobjetivo. Não é aceito porque, enquanto o nos, choca-se contra eles, sem neles penetrar, detendo-se à sua
mundo fenomênico, segundo o método da observação e da ex- superfície, na forma, que não toca senão aparências e ilusões.
perimentação, é aproximadamente igual para todos e é suscetí- O pensamento de Deus, que está no íntimo das coisas, se retrai
vel de ser entendido e construído, o método intuitivo, sendo ex- quando enfrentado com uma psicologia de dúvida e de violên-
tremamente pessoal e subjetivo, não possui força para subir e cia, ao passo que se revela espontaneamente aos que se apro-
elevar-se a altura maior do que a de uma interpretação pessoal. ximam com amor e fé. Tal é a lei da vida.
Existe aí uma ideia preconcebida e esta consiste no núme- O objetivismo é, pois, filho de um preconceito: um funda-
ro, isto é, em admitir que a extensão numérica do juízo seja ga- mental instinto humano. Que valor terá ele quando transportado
rantia de verdade. Dá-me isto a ideia de cegos que se dão a para a atmosfera rarefeita da concepção? É daí que procede essa
mão para guiar-se reciprocamente. Ora, o resultado da obser- orientação psicológica de destruição. A distinção entre sujeito e
vação exterior é, se não total, pelo menos parcialmente igual objeto não é somente separatismo que distancia e cava insupe-
para todos, somente porque é exterior, ou ainda, é conjugado à rável abismo de incompreensão entre observador e fenômeno,
forma mais simples de percepção sensória, a mais rudimentar e mas, em rigor, é também antagonismo, porque a observação
também a mais difusa e fundamental no mundo biológico. O parte, precisamente, da negação e da dúvida e, como garantia
valor da objetividade apoia-se, portanto, somente na extensão de verdade, toma precisamente a desconfiança, opondo-se à
de uma identidade de juízo, que é, por sua vez, filha de uma confiança e à fé, isto é, assume-se uma atitude mental que fe-
identidade de construção fisiológica, nervosa e psíquica. A ob- cha, a priori, todas as vias de comunicação. Com essa psicolo-
jetividade, então, revela-se tanto mais evidente quanto mais gia de agressão e negação, apenas se pode obter destruição con-
depende da estruturação sensória mais primitiva, qual é pri- ceptual e, diante do mistério, trevas e silêncio.
meiramente o tato (sabemos quão ilusória é esta indiscutível Oposto é o método do subjetivismo e da intuição. Enquanto
realidade sensória em face da constituição cinética da matéria), o objetivismo distancia, este aproxima; enquanto o objetivismo
e depois a vista, o ouvido etc. Pode-se dizer então que ela é diverge e separa, o subjetivismo converge e unifica. Este é ver-
função direta da inferioridade do nível evolutivo, pois, quanto dadeiramente o método da unificação conceptual na demolição
mais evolve o ser, necessariamente tanto mais penetra, graças absoluta do dualismo do método objetivo.
à lei de diferenciação, no subjetivismo.
Ora, o método objetivo, embora apresente a vantagem de VI. O MÉTODO DA UNIFICAÇÃO
chegar a conclusões e interpretações mais universais, parece
construído, por sua natureza, precisamente para permanecer Como, então, resolveremos o problema do conhecimento?
aderente, sem poder superá-las, às aparências mais exteriores, É neste ponto que, de novo, ele se conjuga e funde com o
às estruturas e interpretações fenomênicas mais rudimentares da ascese mística, porque o método da unificação pode mani-
e superficiais. Esta unidade de juízo é vantagem aparente, festar-se apenas quando a evolução da consciência atinge a fa-
porque nos deixa na superfície, tende a reconduzir-nos sempre se mística. Nesse plano ocorre o grande fenômeno da unifica-
para o relativo, o particular, e não constitui, absolutamente, ção, que a seguir aprofundaremos. Isto não podia deixar de ter
unidade de orientações e de conclusões, universalidade de reflexos e repercussões também no campo gnoseológico. A
concepções que alcancem a substância das coisas. O objeti- evolução altera os métodos e dilata a consciência. E, como ha-
vismo nasceu fatalmente sem asas. Efetivamente, a ciência via anulado a psicologia racional na psicologia da intuição,
hodierna é incapaz de construir um sistema que contenha a passando da fase lógico-científica à fase que poderemos cha-
explicação de todos os fenômenos e evidencie, por meio de- mar inspirativa, assim a intuição continua e completa-se na
les, o funcionamento da lei universal. unificação conceptual, do mesmo modo que a recepção inspi-
O método objetivo é, em suma, a negação do método da pe- rativa continua e completa-se, como veremos, na fusão unitária
netração na profundeza e na substância das coisas; parece-me dos dois termos daquela recepção.
quase um lastro que intercepta e detém em baixo, automatica- Atingido esse plano, desaparece na consciência o dualismo
mente, as vias do conhecimento, capaz de resultados utilitários, do método objetivo. Aproximam-se os dois termos – sujeito e
mas impotente em face de resultados mais profundos. O valor fenômeno – a distância é reabsorvida até desvanecer-se, solda-se
da objetividade reside inteiramente nesse consenso humano, a cisão, o dissídio entre os dois antagonismos é sanado e abre-se
que certamente não contém a chave do absoluto, nem pode ser a compreensão. Aqui não nos ocupamos deste fenômeno da uni-
tomado como medida das coisas. O verdadeiro consenso pode ficação, a não ser pelo que dele se reflete no problema do co-
consistir apenas na voz dos fenômenos, que somente o subjeti- nhecimento. Quando a consciência, na catarse mística, não só se
vismo intuitivo sabe ouvir e fazer ouvir, fazendo-a emergir do comunica, quase radiofonicamente, com a fonte noúrica, como
silêncio do mistério. Não pode deixar de nascer, no ânimo de na mediunidade inspirativa, mas tende, por um processo que
quantos hajam ouvido esta voz, uma confiança em outras pro- examinaremos, a sobrepor-se e identificar-se com a fonte mes-
186 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
ma, então o contato é tão íntimo e integral, que se adquire es- de estar satisfeito com sua negação, nem sentir-se contente com
pontaneamente o conhecimento, mediante novo sentido de vi- a realidade que possui, sem jamais desejar mais amplas realiza-
são, e a verdade transborda de todas as categorias da razão, os ções; também a incompreensão do ignoto constitui vago tor-
esquemas racionais se reduzem a prisões insuficientes para con- mento, que estimula a sair dele.
ter os conceitos. A consciência transcende os confins da lógica, O método da unificação contém em si os elementos aptos a
e, com um senso de imensa dilatação, o pensamento humano é compensar aquilo que pode parecer seu ponto fraco, isto é, o
abalado desde os fundamentos, numa revolução e renovação tão subjetivismo. Como poderemos compensar a pluralidade das
completas, que permanecem incompreensíveis e inadmissíveis concepções e a dissonância das contradições que derivam da-
para quem não os tenha experimentado. A compreensão existe, quele subjetivismo? A filosofia, precisamente aí, onde o pensa-
efetivamente, em função da amplitude e profundidade do campo mento, elevando-se e abstraindo da simples averiguação objeti-
de consciência e de seu grau de sensibilização. va, chega a ser necessariamente subjetivo, é um mar de inconci-
Para resolver o problema do conhecimento, é necessário liáveis divergências, que desorientam o espírito, dando sensação
atingir a universalidade do eu. Faz-se mister escancarar, median- de ser absurda a pesquisa da verdade. E, contudo, una é a verda-
te um ato de fé e de amor, mediante um senso de completa sub- de. Será, então, incapaz de atingi-la o subjetivismo divergente?
missão, as portas da alma e projetar-se fora de si, para que o in- Foi exatamente, como reação a tudo isso, que a ciência se
finito nela penetre. Certamente, este é um novo comportamento mutilou na objetividade de compreensão, com o fim de alcançar
na hodierna psicologia, contudo ele é necessário à consecução uma verdade igual para todos. Mas é evidente que o conheci-
de resultados novos. Somente a identificação do eu com o fenô- mento ganha em profundidade e potencialidade, à medida que
meno pode permitir a dilatação do primeiro até aos limites do passamos do mundo exterior ao interior. Não é baixando-se ao
segundo, e, quando o fenômeno se tornar o universo, sua expan- primeiro, mas elevando-se ao segundo, que se ganha em verda-
são não terá limites, como não os tem a Divindade. Abrangerá o de. É precisamente aí, quando mal nos separamos da superfície
infinito o amplexo de almas. Atiram-se fora, então, as velhas sensória e progressivamente nos aproximamos da íntima subs-
muletas da observação e voa-se. É somente através da evolução tância, que começa o subjetivismo, isto é, a variedade e a di-
do sujeito, através de renovações de consciência, que se podem vergência das expressões individuais; as vias do conhecimento
obter superamentos tão substanciais. Resolve-se então o pro- estão na subjetividade, e as vias da subjetividade constituem as
blema do conhecimento. Neste novo modo de ser, está implícito vias do separatismo intelectual, que parece distanciar-se da uni-
o conhecimento; a verdade revela-se automaticamente, por vi- dade do conhecimento. A conquista da verdade deve, portanto,
são, e atinge-se uma síntese espontânea, simples, completa. Dei- passar através desta contradição e saber conciliá-la. Uma ver-
xa-se para trás a observação sensória, a presumida segurança ob- dade igual para todos não pode ser senão uma verdade de su-
jetiva, como método rasteiro, inadequado, incapaz de verdadeira perfície. A procura de uma realidade mais profunda conduz à
síntese; abandonam-se as tortuosas vias da razão pela nova sen- divergência. Pois bem. Importa, então, saber compreender antes
sação do verdadeiro, direta, imediata, exauriente. Verdadeira e e, depois, coordenar e reorganizar aquela divergência.
palpitante é a visão; já não mais a fatigante conclusão oriunda de É natural que as apreciações mudem à medida que subi-
uma destilação cerebral, e sim conclusão vivente; nela o univer- mos, porque tanto mais, então, se desperta e movimenta o eu
so vibra e exulta de pensamento e de ação. pessoal, isto é, o múltiplo individualismo em que se reflete a
Com o dissolver-se do separatismo da fase egoística na uni- unidade do absoluto. Este permanece simples e monista e nada
ficação da fase altruística, caem as barreiras do dualismo do mé- perde de seu caráter unitário, exprimindo-se na infinita varie-
todo objetivo. A verdadeira única e radical solução do problema dade do relativo. Devemos recordar que o eu que concebe é
do conhecimento só pode ser obtida mediante a transferência da um relativo e está em evolução.
consciência para um plano superior de evolução. O problema fi- Preciso, então, se faz que superemos essa divergência e re-
losófico não pode ser insulado nem resolvido independentemen- construamos a unidade da substância. É necessário que não nos
te da realidade biológica e psíquica. Ele reside na personalidade intimidemos em face dessa aparente inconciliabilidade, dessa
humana e com ela adianta-se; seu progresso não pode ser mais dissonância de interpretações; devemos empenhar-nos, através
que um momento do progresso desta. É necessário romper o cír- da coordenação das expressões do relativo, em reconstruir a
culo dos impulsos instintivos, bem como os vínculos da psicolo- trama unitária do absoluto. A cisão está na manifestação huma-
gia racional e das concepções habituais. Assim como o mistério na, não na substância. Reorganizemos os reflexos particulares e
da unificação, na ascese mística, é fenômeno natural, que se de- reconstruiremos os aspectos da única luz. Da fusão das visões
senvolve segundo uma técnica própria de desenvolvimento, as- unilaterais sairá um mosaico que nos fornecerá os delineamen-
sim também é a conquista do conhecimento. tos do modelo divino. E as variadas intuições do subjetivismo
Então, ao surgir a visão, aparece entre as duas formas de escalonar-se-ão por amplitude e profundidade; as verdades rela-
pensamento – a racional e a intuitiva – um dualismo psicológi- tivas coordenar-se-ão, as menores atrás das maiores, até às mais
co. Diferentes são as duas visões: a maior compreende a menor, abrangentes e mais puras – aquelas que mais tiverem podido
mas a menor não compreende a maior. Quem estiver fora desta avizinhar-se da substância e houverem conseguido torná-la de
mais alta realidade tomá-la-á seguramente por ilusão, até que a maior transparência. Serão consideradas como tantos jatos de
conquiste por evolução. Considera-se irreal o que está fora da luz, cada um dos quais representa o sinal de uma linguagem
própria experiência. Os dois olhares atingem profundidades di- eterna e infinita, a palavra de um sermão divino. Serão conside-
versas e, consequentemente, veem na mesma verdade aspectos radas sucessivas aproximações da alma humana, que ascende
diferentes. Discriminar-se-ão, necessariamente, os dois pontos entre trevas e lutas, ao longo do mesmo caminho da verdade, do
de vista, sob o pretexto de incompreensão, porque as duas relativo para o absoluto, da análise para a síntese, galgando por
consciências são diversas e a extensão das recíprocas sensibili- seu próprio esforço as vias da unificação. E, por unidades de
dades é a única medida do respectivo cognoscível. Todavia, se medida e índice de verdade, tomar-se-á não a objetividade ou o
a psicologia superior pode penetrar a inferior, e não inversa- juízo do número, mas o grau de purificação do ser, que, em sua
mente, esta última, ainda que a negue, não pode deixar de vol- evolução, se aproxima de Deus.
tear em torno da outra, por um vago pressentimento da verdade, Deixe-se também florescer em mil formas o jardim da intui-
por um desejo que, incessantemente, clama na alma por desco- ção. Cada flor diversa será igualmente bela e exprimirá uma re-
brir o mistério. Pois que a treva não satisfaz à vista nem o si- velação. Ver-se-á, então, que, em essência, cada flor, em sua
lêncio ao ouvido, nem a ignorância ao intelecto, e ninguém po- variedade, traduz a mesma eterna beleza e canta a mesma infini-
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 187
ta sapiência. A flor mais perfeita e mais pura falar-nos-á doce- cas repercussões se projetam até no campo prático de proble-
mente, com transparência mais evidente; a mais rude e primiti- mas de orientação conceptual, tão graves, tormentosos e ainda
va mal saberá balbuciar. Una, porém, é a palavra, porque unos hoje não solucionados.
são o plano da criação e o pensamento de Deus. E, então, atra- Superados esses corolários de índole filosófica, nos quais
vés da multiplicidade – bela, porque rica – do subjetivismo, es- me tenho detido, não só por sua importância intrínseca, mas
pontaneamente se volverá à unidade, em que o separatismo de sobretudo para melhor enquadrar o fenômeno místico no co-
novo se unifica e o eu se funde no Todo, sem se destruir, como nhecimento moderno e justificar-lhe a técnica de pensamento
colaborador que se deu a si mesmo para a reconstrução do em face da psicologia racional, retomemos agora, mais particu-
grande edifício do conhecimento. Nessa altura, ver-se-ão coin- larmente, a análise de seu desenvolvimento e metas conclusi-
cidir na profundidade, no mesmo cântico, que é a voz de Deus, vas, dentro do âmbito traçado na definição de ascese mística,
as cindidas intuições pessoais. dada no princípio do Cap. III.
Então, a multiplicidade e diversidade dos juízos mais não A solução do problema do conhecimento mais não é do que
são que o índice assinalador da distância entre a intuição e a um aspecto da transumanização que se realiza na ascese místi-
única fonte central. Quanto mais se aperfeiçoa o ser, tanto ca, a qual consubstancia tão profunda transformação do ser, que
mais sensível e potente se torna o instrumento consciência e chega a mudar e resolver todos os problemas humanos. Quando
tanto mais evidente se torna a unidade conceptual do verda- o espírito chega a esse nível, desaparece o simples fenômeno da
deiro. A dissonância das contradições é, pois, devida unica- unificação, que aqui não é somente uma técnica de pensamento,
mente ao embaçamento do espelho refletor e é dada pelo grau método para atingir o conhecimento, mas constitui uma tran-
de impureza do meio receptivo; as cisões nas conclusões indi- sumanização de personalidade, reabsorção do distinto no todo,
cam o grau de corrupção do pensamento e a distância que da consciência na Divindade. Então, a simples recepção noúrica
aquela cava entre este e Deus. A harmonia, que é perfeita no torna-se visão e êxtase, isto é, já não será apenas uma comuni-
Centro, corrompe-se à medida que se afasta na imperfeição de cação de pensamento, mas uma expansão total do ser em todas
ressonância da periferia. E a ignorância humana, que irradia as suas capacidades. Para muitas psicologias, esse campo estará
desordem, é a involução que gera o caos. situado na zona do superconcebível.
Existe, portanto, solução para o problema: basta que progri- Para compreender o fenômeno místico, é necessário recons-
damos, que superemos a zona das primeiras desordenadas tituí-lo desde o princípio, orientando-o, antes de tudo, no seio da
aproximações da intuição. Encontraremos, então, espontânea e fenomenologia universal. É ele fenômeno psicológico, fenôme-
automaticamente, a unidade do verdadeiro. A evolução, e so- no de evolução biológica, que, partindo das superadas fases or-
mente a evolução, pode dar-nos e dar-nos-á, necessariamente, a gânicas, prossegue nas superiores fases de evolução espiritual.
unificação. Somente pela evolução se pode passar da ignorância É, pois, fenômeno universal, logicamente situado no desenvol-
ao conhecimento, da separatividade à unidade. A involução é vimento da lei de evolução, natural, necessário, insuprimível. É
treva que divide, a evolução é luz que unifica. Na involução, supranormal somente em sentido relativo, isto é, em relação com
emudece-se a verdade, sufocada no meio denso, que não permi- a atual posição evolutiva da consciência humana. É, como o são
te transparências. A evolução coordena, reorganiza, harmoniza todas as culminâncias, pouco comum, pouco visível e dificil-
e, com isto, reabsorve as divergências e torna mais evidente a mente concebível para os que se encontram nos baixos planos da
realidade do verdadeiro. medíocre normalidade atual. Vemo-lo, com efeito, surgir em to-
Não se deve, pois, condenar e abandonar o subjetivismo in- dos os tempos e em todos os lugares, de um a outro extremo da
tuitivo, mas fazê-lo evolver, purificá-lo, conduzi-lo sempre história e do mundo. Cada tipo intelectual lhe imprime, segundo
mais para o alto, até reencontrar nele a unidade. Assim, ele sua específica diferenciação, a nota particular de sua personali-
permanecerá sempre a via mestra do conhecimento. Coordenar, dade e o plasma, transforma e adapta a si, à sua raça, ao seu
pois, as atuais intuições para reconstruir a verdade, mas, acima tempo. Mas o fenômeno subsiste, como momento integrante das
de tudo, subir, fazendo evolver a consciência, para aproximar- leis da vida. Parece fatal que, no limiar desta, deva apresentar-
se da verdade. É necessário subir também por humildade de co- se, como numa grande curva de sua trajetória, a evolução huma-
ração, por pureza de intenções, por sublimação de paixão. É ne- na, chegada ao momento de sua mais alta maturação. Nada,
cessário, para fazer evolver a consciência, atravessar a catarse pois, de miraculoso, de excepcional, de gratuita e arbitrariamen-
mística, que está no centro deste estudo. Num coração corrom- te concedido pelo céu. Em todos os fenômenos, sobretudo na-
pido não pode nascer outra coisa além de soberba linguagem de queles que se elevam para Deus, sentimos cada vez mais a pre-
vã sabedoria, além de dissídio, confusão, incompreensão. Eis as sença de uma ordem, de uma justiça, de uma harmonia divina.
estéreis logomaquias de alguns filósofos. Isto não significa falta de fé e de religião, mas simplesmente se-
Una e simples é a verdade. Mas, para vê-la toda, em sua riedade, positividade, conformidade com a justiça.
unidade e simplicidade, importa saber alcançar-lhe a altura; não Expliquei cientificamente em A Grande Síntese, na teoria da
se pode pretender trazê-la para baixo, para nosso nível humano, evolução das dimensões8, como o espírito humano, por evolu-
sem inquiná-la e falsificá-la. A verdade, a solução dos misté- ção, ascende da atual fase de consciência para a fase de super-
rios, a visão do pensamento de Deus não se conseguem median- consciência, que é a primeira dimensão do sucessivo universo
te poderosas argumentações, por laboriosas pesquisas ou atra- trifásico, em que evolve o atual, trino em seus planos de desen-
vés de prepotência de lógica e de razão, mas seguindo as vias volvimento: matéria, energia, espírito. Certamente, o ingresso
das ascensões do espírito, que são as da catarse mística. da psique humana nesta nova dimensão do ser, aqui já absolu-
tamente supermaterial ou supersensória, é para ela um fato tão
VII. ESTRUTURA DO FENÔMENO MÍSTICO novo e grandioso, que a simples apresentação no limiar da nova
dimensão e do novíssimo modo de ser basta para dar-lhe pro-
Falei de mediunidade, de metafania. Falo agora de misti- funda sensação de vertigem, como sucede a quem se debruça
cismo, considerando-o, em suas formas, o índice e o expoente sobre o abismo do mistério. Este parece feito de trevas, mas não
mais ostensivo desta evolução espiritual, que é o problema passa de inexplorado mar de novas sensações.
central de todo o meu estudo, como o é de minha vida. Diante Mais adiante, exporei o fenômeno em termos de sensação,
destas consequências, levadas até ao campo dos métodos para qual o viveram tantos místicos, em concordância com as linhas
a conquista do conhecimento, pode ser evidenciada e averi-
8
guada a importância de tais questões, uma vez que tão gigantes- A Grande Síntese, Cap. XXXIV a XXXVII (N. do T.).
188 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
fundamentais, como eu mesmo o tenho vivido e qual objetiva- ma sintonia, tornando-se impossível a comunicação. Efetiva-
mente o descreverei. Como tenho dito, opero a análise de reali- mente, havemos tomado a afinidade como condição necessária
dades para mim experimentais, deduzidas não apenas de ou- da transmissão e captação noúrica.
trem, mas sobretudo de minha observação. As consciências ou espíritos são, pois, semelhantes ou dis-
Antes, porém, de abandonar-me ao ímpeto lírico do momen- semelhantes pelas características vibratórias. No nível físico,
to místico, devo expressar-me aqui em termos de ciência e de dois ou mais seres que vibram perfeitamente em uníssono e se
razão, expor a possibilidade lógica do fenômeno, de modo que sentem um só, por instintos, sentimentos e pensamentos, perma-
ele se torne racionalmente admissível, até para os que não o necem, todavia, inexoravelmente distintos por sua aparência
sintam, nem o tenham tocado por evolução e, portanto, não es- humana, sem possibilidade de se sobreporem e coincidirem. Se
tejam aptos para entendê-lo a não ser nos termos de sua psico- lhes suprimirmos o invólucro, eles parecerão e se tornarão o que
logia racional. Poderemos, assim, analisar e compreender, com realmente são como consciência, isto é, um ser único, sem pos-
a moderna forma mental da ciência, um fenômeno que parece sibilidade de distinção. Se os situarmos em sua posição de espí-
relegado às mais altas e inacessíveis zonas do espiritualismo e ritos, eles se confundirão no mesmo tipo de vibração, assim co-
das religiões. Ele aparecerá, assim, em sua realidade nua, não mo duas notas idênticas, emanadas de duas fontes diversas, for-
qual um privilégio ou concessão do Alto, nem como um mono- mam o mesmo som. Eis por que, muitas vezes, se torna difícil a
pólio privado, porém, mais exatamente, como via aberta a todos chamada identificação espiritual, precisamente porque já não
os homens de boa vontade. Aparecerá, qual é, ou seja, como fe- tem significação, em mais altos planos, o conceito de personali-
nômeno exato, objetivo, cuja lei é possível traçar, como fare- dade em sentido humano. Naquelas zonas de evolução espiritu-
mos, e cuja verificação se pode fazer espontaneamente, todas as al, os seres se ligam por ressonância, em forma de existência co-
vezes que dele se apresentem as condições determinantes. Ele letiva, isto é, existem em forma de correntes de pensamento. Por
não ocorre por intervenção de caprichosas vontades extracós- isso, mal imergimos nessa atmosfera conceptual da evolução,
micas, antes representa o normal desenvolvimento funcional do encontramos noúres, e não individualidades separadas, como
universo, em seus mais elevados planos. Reconstruamos, pois, nos induziria a supor a analogia com o mundo humano.
através da observação, a lei do fenômeno. Na discrição da técnica da recepção noúrica já estavam
Para assim proceder, reduzamo-lo à sua mais simples ex- contidos os germes deste desenvolvimento. Tal como o fenô-
pressão, focalizando a essência de sua estrutura vibratória. Vi- meno inspirativo evolve e se completa no fenômeno místico,
bração significa, no mundo hiperfísico em que ora ingressa- assim também a simples comunicação noúrica aqui se comple-
mos, o verdadeiro modo de ser, fundamental qualidade, capaz ta na identificação de consciência, que é unificação de perso-
de individuar a forma em tipos específicos nitidamente defini- nalidade. No campo acústico, o fenômeno de ressonância, que
dos. Vemo-lo, por exemplo, nas ondas hertzianas. Os seres si- havíamos tomado como ponto de partida daquela técnica, é
tuados no plano físico, isto é, na forma orgânica de um corpo precisamente uma afinidade dinâmica, uma identificação de
material, distinguem-se uns dos outros pelas qualidades deste modo de ser, uma superposição de individuações. A sintonia é
invólucro, pelos limites da dimensão espacial em que ele está sempre a base do mesmo fenômeno em continuação, pois har-
situado, pela sua impenetrabilidade, pelas suas características monizar-se é a sua lei, para chegar, primeiro, à comunicação,
sensórias. Mas há, indubitavelmente, formas de existência hi- que é o centro do fenômeno noúrico, e, depois, à unificação,
perfísicas, de consciência supersensória, livre do invólucro or- que é o centro do fenômeno místico. Então, as duas consciên-
gânico. Quando passamos do organismo físico, regido por um cias, vibrando em uníssono, isto é, existindo em idêntica for-
princípio dinâmico, ao organismo de estrutura exclusivamente ma, perdem toda nota distintiva, adquirem-na como identifica-
dinâmica, em que o corpo já não é constituído de matéria, mas ção e fundem-se na mesma unidade.
só de energia, a individuação específica pessoal, aquela que Todo fenômeno místico se realiza, pois, mediante um pro-
distingue, não pode mais ser dada pelo corpo e por suas carac- cesso de atração tendente a encurtar as distâncias dadas pela di-
terísticas físicas. Então, o que individua é o tipo de vibração versidade, isto é, a suprimir as diferenças, e contém um método
que constitui a manifestação de vida do ser, é a peculiar forma para a conquista da afinidade, para chegar à unificação. É este
de energia segundo a qual ele se agita, são as características da um processo de amor, a grande mola da ascese mística, como é
onda, pelas quais se define essa vibração. a coluna central do edifício da evolução. No mundo espiritual,
Em tal forma de vida estão situados e se manifestam não só os seres que entoam a mesma nota e emitem a mesma luz tor-
o espírito desencarnado (tão mais definidamente quanto mais, nam-se a mesma música e o mesmo esplendor; os seres que se
por evolução, estiver liberto de seus invólucros mais densos) movem segundo o mesmo tipo dinâmico fundem o seu movi-
mas também aquela parte do homem que é pura consciência ou mento, unificam-se, isto é, são a mesma consciência.
espírito (tão mais claramente quanto mais conseguir superar a
zona barôntica das mais baixas paixões e atingir os mais altos VIII. COROLÁRIOS - FÉ E RAZÃO
planos de evolução, ainda que seja em especiais estados meta-
fânicos). Então, o eu existe aí somente na forma deste dina- Estas simples afirmações nos oferecem a chave do fenôme-
mismo, superando as dimensões espaço e tempo. no da ascese mística e dos respectivos corolários espirituais.
Já explicamos, na “Técnica das Noúres” 9, como pode ocor- Vibração, ressonância, sintonização, afinidade, unificação são
rer a comunicação entre puros centros psíquicos (naquele caso, as suas fases lógicas e evidentes. Mais no alto, teremos, como
corrente de pensamento e consciência do médium). Isto se dá já disse na “Técnica das Noúres”, equivalências superiores da
graças ao fenômeno da ressonância, que é lei universal de re- vibração, embora seja idêntico o princípio. Quando se pensa
percussões até no campo acústico. Já vimos que esse fenômeno que, na ascese mística, o segundo termo é verdadeiramente a
é a base da transmissão e recepção noúrica e que, para ele se Divindade, pode imaginar-se desde já que vertigem da exalta-
verificar, os dois termos – transmissor e receptor – devem en- ção de consciência pode aquela ascese representar para a perso-
trar em sintonia, isto é, harmonizar-se segundo o mesmo ritmo nalidade humana que a empreende. Segue-se imediatamente daí
vibratório. Vimos ainda que é necessária uma comunhão de vi- que a ascese está nas vias do aperfeiçoamento espiritual, se-
bração. Se esta for semelhante, poderá coincidir e sobrepor-se; gundo o modo mais elevado, e que os vórtices das conquistas
se for dissemelhante, não haverá ressonância e, portanto, nenhu- morais lhe são a meta natural e necessária.
Os místicos falam sempre de Deus e de amor, de união, de
9
No volume As Noúres, Cap. V (N. do T.). núpcias espirituais da alma com Deus. Cumpre-nos chegar, ra-
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 189
cionalmente, à explicação dessa nomenclatura e psicologia que cionalismo científico, em contínuo, estridente e inconciliável
eles não explicam. Aí vemos funcionar todo o mecanismo vi- contraste. E, todavia, o primeiro é o sistema dos místicos, dos
bratório do pensamento, dos sentimentos, das paixões. gênios do Evangelho, das grandes criações de espírito, é o mé-
Através de sinais positivos e negativos, vemos formarem-se todo que se baseia no aperfeiçoamento do órgão central da con-
simpatias e antipatias, harmonias e dissonâncias, atrações e re- cepção, a consciência, fato fundamental, de que a ciência se
pulsões. Aí estão as grandes forças do amor e do ódio, que se afasta. Se não rompermos, por evolução, o círculo em que se
encontram nas bases da vida. fechou a razão, esta jamais sairá dele e dentro dele, impedida de
Mas a ascese é fenômeno de evolução e, portanto, de har- evadir-se, retornará sempre sobre si mesma. E é impossível
monização e unificação; é sobretudo amor. Na ascese mística rompê-lo por evolução, a não ser mediante a introdução na
estabelece-se esta corrente de atração entre o alto e o baixo e consciência de fatores novos, capazes de lhe dilatarem a poten-
entre o baixo e o alto e, com isso, revela-se, em termos de ra- cialidade. Fé é como se designa o ato psicológico com que se
zão, o maior mistério, que é a descida do amor de Deus até ao introduzem esses fatores novos.
homem. Veremos que maravilhoso jogo de luzes espirituais Para que serve permanecer no campo da positividade e da
nascerá desses fenômenos. O princípio de sintonização e de segurança, se este é tão limitado e não oferece possibilidade de
afinidade impõe o processo de purificação, a necessidade de expansão? A verdade universal já está totalmente pronta e pre-
fazer o vácuo em baixo, no mundo da matéria, que se relega ao sente, escancarada diante de nossos olhos. Criá-la não é o que
passado, a fim de que em nível mais alto haja espaço por ceder nos compete fazer, mas sim desenvolver a vista para vê-la. Re-
à vida. Nasce então a luta interior da renúncia, a fadiga da vir- toma-se, pois, todo o problema mediante uma transformação de
tude, a dor que dilacera os vínculos do espírito, o superamento consciência. Esta chegará somente até aquela zona em que será
das paixões, a destruição do eu humano e a ressurreição em capaz de existir. Aí encontra uma barreira pacífica, mas invio-
Deus do eu super-humano. lável, que detém os imaturos, os indignos. A Lei põe-lhes um
O princípio vibratório em que se baseia o fenômeno nos in- véu diante dos olhos, e sua violência permanece impotente; a
duz a compreender as vias da liberação, a compreender porque verdade permanece fora do campo de sua consciência.
se devem guiar as paixões, e não destruí-las, e porque se torna “Cumpre-me saber subir qualitativamente”, cada qual deve
necessário alcançar-lhes o domínio, e não esterilizar-se na sua dizê-lo, porque o conhecimento é um estado vibratório de sin-
simples destruição. É necessário reconstruir a vibração que se tonização que se alcança harmonizando-se pelas vias da bonda-
detém, reconstruí-la em um movimento mais intenso, para que de, da ascensão espiritual. Ora, aquele que, em vez de seguir es-
seja vida, e não morte. É necessário transformar, reedificar, re- tas vias, colocando-se em estado positivo de confiança, que es-
nascer continuamente, afirmar vigorosamente e, direi mais, go- tabelece ressonância, põe-se no estado vibratório negativo de
zar, viver, amar no alto, e não apenas sofrer e morrer em baixo. dúvida e de desconfiança, que se afasta na dissonância, a si
O meu misticismo é alegre, construtivo, dinâmico. É absurdo mesmo fechará automaticamente as portas do conhecimento.
certo misticismo conventual, feito só de árida renúncia, que ne- Apliquemos sempre os mesmos conceitos: vibração, resso-
ga, mata, destrói e nada mais deixa além do vazio. É absurda nância, sintonização, afinidade, unificação. Por essas vias, o
certa contemplação que, às vezes, encontramos no Oriente, a espírito consegue fundir-se tranquilamente na verdade. Ora,
qual insula o homem no seu egoísmo de espírito e o segrega do pode compreender-se que o problema do conhecimento, na sua
mundo, sem torná-lo ativo agente do bem na vida de todos. essência e integridade, consiste num problema de unificação
Compreendemos, assim, o mecanismo da renúncia e da con- entre o eu humano e a Divindade, representa um problema de
quista. Cada um se torna escravo daquilo que ama, e, quando se ascese mística, de revelação, porque, em nossa consciência,
trata de coisas materiais, o coração se liga ao caduco e ao ilusó- aquela Divindade é limitada somente por nossa capacidade de
rio, condena-se a novos dilaceramentos, até compreender e, as- conceber e se entrega à nossa alma em relação à sua potência de
sim, dirigir-se a metas mais seguras. É o princípio vibratório, pe- harmonização. Mas, quando é atingida a sintonização e comple-
lo qual se estabelece uma corrente de atrações entre os dois ter- tada a unificação, a verdade então se torna um cântico divino,
mos, o eu e o objeto de seu amor, que nos explica a gênese da uma harmonia suprema, um incêndio de amor em que a alma já
ligação. São potências sutis e, todavia, reais, que depois se faz não se sente a si mesma como coisa distinta.
preciso demolir. Real também é a dor. O homem é vinculado, Esta concepção vibratória nos revela mecanicamente que no
arrastado de todos os lados, tormentosamente, por esses liames amor de Cristo reside a grande via das ascensões humanas. O
imponderáveis criados por ele mesmo. Também aqui se nos de- Evangelho é o método da harmonização universal; nele, como
param os mesmos termos do fenômeno: vibração, sintonização, em nenhuma outra parte, transparece a Divindade, na sublime
afinidade, unificação. E o nosso coração experimentará a sorte poesia do Seu amor. Trata-se precisamente de transparência, e
do objeto de sua unificação. A comunhão de vibrações nos torna esta se conquista na ascese mística.
semelhantes ao que amamos: põe-se no Alto o objeto, e a alma o Se nos pusermos em posição de resistência, em estado vi-
serve. Eis a razão mecânica pela qual se faz preciso desprender- bratório fechado, como se nos recusássemos a subir, então nós
se da terra, que nos faz compreender como os sentimentos, as mesmos nos deteremos e nos privaremos da recepção amplifi-
paixões, as atrações geram fusões que podem, segundo a nature- cadora que desce das correntes vivificantes difusas no todo. A
za do objeto, tornar-se vínculos de alegria e de dor. razão é um círculo de forças fechadas, é um egoísmo conceptu-
Compreendemos, assim, o fenômeno e o significado da fé. al que a si mesmo não sabe ultrapassar, não se dá por simpatia e
Concebo a consciência como unidade radiante, o eu evolvido não conhece as vias vibratórias da atração, que levam à fusão
como noúre, que tende perenemente à difusão, à dilatação de si com o não-eu e, portanto, à sua dilatação até ele. Necessário se
mesma e é centro de emanações contínuas. Como, pois, se rom- faz subjugar este equilíbrio e reconstruí-lo em mais alta e com-
pe o círculo fechado da razão e se penetra no céu da intuição e pleta forma, embora seja mais instável e, não obstante, mais di-
da visão? Como se conquista, com os limitados meios de uma nâmica. E a fé é o primeiro salto para frente.
dimensão conceptual inferior, o domínio da dimensão superior? No duvidoso tormento, tenho interrogado o mais profundo
Com a fé. A técnica vibratória nos dá a chave do mistério. de mim mesmo, dizendo-me: “Como posso eu confiar-me a um
A razão é objetiva. Quer, antes de crer, assegurar-se e, só imponderável que em mim ainda não existe e ao qual devo eu
debaixo de seu controle, confiar. Mas o método da prudência e mesmo criar?”. E o profundo me tem respondido: “Crê, porque
da segurança não é o método do voo. E aqui ressurge o inces- só a tua fé, base de impulsos ascensionais, tornará objetivas e
sante antagonismo entre minha forma de pensamento e a do ra- tangíveis aquelas realidades mais altas que hoje te escapam”.
190 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
10
Não se trata de fé louca, do “credo quia absurdum” , deses- gressiva para a unificação. Procuro, assim, guiar gradativamente
perada capitulação da razão, que, sem embaraço, pretende ser o leitor à compreensão racional, depois à sensação deste supre-
sempre a única a falar, até fora de seu campo. Que esta se extin- mo vórtice de ascensões a que está presa minha alma. Nesta
ga para sempre, dobre-se em suas expressões caricatas e perma- concepção, atinjo o conhecimento por sintonia com correntes
neça fechada em seu âmbito, como rainha, mas sem pretender noúricas, operando com o método da intuição.
outros reinos. A fé não é uma renúncia às faculdades de pensar, Observemos o diagrama anexo e expliquemo-lhe o significa-
como pode parecer a quem seja incapaz de atingir esse nível; ela do e o desenvolvimento, imaginando construí-lo qual efetiva-
é antes um estado de graça que vê e conhece por outras vias e mente ele surgiu em minha mente (Fig. 1).
conserva em si a sua alegria infinita; é uma doação em que nada O diagrama exprime, por coordenadas ortogonais, a lei de
se perde, porque àquele amor e àquela confiança responde o variação da evolução em função do tempo. Mais exatamente,
universo, retribuindo com novas doações; não é cegueira senão temos gradações de evolução sobre o eixo vertical das ordenadas
para os cegos, porque naquela cegueira se abre a visão e se reve- e gradações de tempo sobre o eixo horizontal das abscissas. Por
lam os céus, e aparece fulgurante o pensamento de Deus. tempo, entendo não a dimensão temporal, que, nas superiores
A fé é, pois, ato criativo por excelência, que acompanha a zonas de evolução, é superada, mas o ritmo do transformismo
realidade em formação e que, voluntariamente, pode e sabe an- fenomênico, que é fato universal e subsiste por toda parte, qual
tecipar os futuros estados da evolução. Dentro de nós, em nossa passo assinalador do caminho do eterno vir-a-ser. Especificare-
profundeza, já reside o germe dos infinitos desenvolvimentos mos mais adiante quais são os graus de evolução.
do divino. Faz-se mister alimentá-lo em nosso íntimo, e nossa Dai resulta um „V‟ de progressiva abertura, cujos ramos são
deve ser a primeira impulsão. Há no eu a potência de levantar tangentes aos círculos sobrepostos. Supondo a coordenada verti-
esses eixos dinâmicos, de ampliá-los como turbilhões de forças, cal, indicadora da evolução, repetida mais à direita e elevada ao
atraindo e assimilando infinitas correntes universais. Com a fé, longo dos centros dos círculos, teremos um diagrama simétrico,
podemos crer antes de sentir, afirmar antes de conhecer, querer isto é, um diagrama cuja metade direita se repete na metade es-
antes de ser. Absurdo, dirão. Assim é, no entanto, que sentimos, querda, nos lados da referida linha, aparecendo na forma muito
conhecemos e existimos; com antecipação, voamos onde outros mais expressiva de um „V‟ que se abre para o alto.
caminham. Daí emerge uma criação, impossível de outra forma. A série dos círculos e tangentes que se repetem lateralmente
Dessarte, com antecipação, forma-se o estado vibratório e exci- exprime a repetição do fenômeno no seu andamento em indivi-
ta-se-lhe a ressonância que, amplificando-se em contínua vibra- duações idênticas e contemporâneas, isto é, expressas no mesmo
ção, nos transportará àquele modo e àquele plano de vida, aon- âmbito de desenvolvimento. Esta repetição do diagrama em ca-
de queremos subir, e nele nos transformará. sos colaterais é necessária para estabelecer as relações entre as
Assim como o Sol é uma torrente de luz e força que se irra- várias individuações do fenômeno.
dia por toda parte, mas que só se utiliza e valoriza quando inci- A progressão ascendente dos círculos não passa de um dia-
de sobre um germe receptivo, assim também Deus é torrente de grama inserto no precedente, segundo os mesmos eixos de de-
pensamento e de energias que frutifica somente quando vem re- senvolvimento e cujas mesmas coordenadas poderiam repetir-
colhido pela ressonância de uma alma preparada. A fonte é um se, partindo do centro de cada uma das sucessivas circunferên-
todo, e dela fluem não só conhecimento, mas bondade, ação, cias. Obtemos, assim, a expressão do desenvolvimento interno
poder. Contudo é o eu que, mediante um ato de fé, deve abrir os do fenômeno, qual é compreendido na abertura coniforme das
braços, escancarar as vias da absorção conceptual e dinâmica duas tangentes divergentes, e a expressão da causa determinan-
em todas as suas modulações, executar o trabalho de projetar-se te desta abertura, à proporção que se ascende para as mais altas
para aprender, cingir e assimilar. Fecundado assim pela divina zonas da evolução. Compreender-se-á este diagrama interno,
ressonância, nutrido dessas respostas, o estado vibratório esta- observando-se que ele nada mais exprime que o progressivo
bilizar-se-á e formará a aptidão, a qualidade, o modo espiritual abrir-se de uma espiral, cujo centro, por comodidade de obser-
de ser, que depois se fixará com a repetição, se tornará hábito, vação e de evidência de expressão, se desloca progressivamente
instinto, necessidade. Assim, o influxo divino representa uma para o alto ao longo do mesmo eixo, e recordando que este dia-
potência eternamente ativa na obra da criação. grama mais não é que o desenvolvimento da trajetória típica
dos motos fenomênicos (Fig. 2)11, aplicado e repetido neste ca-
IX. DIAGRAMA DA ASCENSÃO ESPIRITUAL so particular, com o supracitado deslocamento de centros. É
evidente, com efeito, que também este particular fenômeno da
Para penetrar mais profundamente no problema da ascese evolução de consciência ou ascese espiritual, que aqui estamos
mística, retomemos os conceitos já expostos, fixando-os, tanto estudando, deva manifestar em sua linha espiritual a mesma tra-
quanto possível, em um diagrama. Dessarte, poremos em evi- jetória típica tomada como expressão abstrata e universal do
dência, graficamente, o fenômeno em suas linhas mais expressi- andamento de todo fenômeno. Assim, o diagrama da figura 1
vas e obteremos sua definição em forma mais sintética e intuiti- indica a mesma progressiva cobertura de zonas (tracejadas),
va – uma estrutura gráfica que nos dará a sua técnica funcional. como no diagrama da figura 2 (porém, nesta, em forma concên-
Temos colocado o fenômeno da ascese mística no seio do fenô- trica), cobertura que indica, tanto num como noutro desenho, as
meno da evolução, como sua parte integrante e central. zonas sucessivas de expansão do fenômeno.
Assim, a ascese mística se projeta sobre o fundo grandioso Esta a explicação analítica que, no entanto, em sua originá-
do maior fenômeno do universo. Temos visto como o princípio ria fase intuitiva, foi em mim instantânea. Vejamos agora o sig-
vibratório, individuando o espírito, permite a sintonização por nificado destes sinais. Temos, pois, três diagramas fundidos
ressonância e como, pela estabilidade desta em um estado de conjuntamente: o primeiro é dado pelas duas linhas divergentes
afinidade, guia o ser ao último termo da ascensão – a unificação em forma de „V‟ que se abre para o alto; o segundo é dado pela
com Deus. Portanto, no seio da evolução, chegada à sua superi- abertura da espiral com cobertura de sucessivas zonas, o que
or fase espiritual, a ascese mística é o fenômeno em marcha pro- exprime a expansão do fenômeno (seu aspecto dinâmico), per-
mitindo a um tempo fechar-lhe e isolar-lhe as várias fases (as-
10
“Creio porque é absurdo”. Frase de origem desconhecida, diz Paulo pecto estático); o terceiro é dado pela repetição lateral dos dois
Rónai. Possivelmente adaptação de palavras de Tertuliano. Impropria-
11
mente atribuída a Santo Agostinho, essa expressão define a fé em oposi- Confronte A Grande Síntese, Cap. XXVI – A trajetória típica dos
ção à razão, conforme conceito generalizado na Idade Média (N. do T.). motos fenomênicos, e a fig. no 1 de As Noúres (N. do A.).
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 191
diagramas precedentes, o que permite estabelecer as relações
entre os vários casos e transforma o simples fenômeno indivi-
dual em fenômeno coletivo. Tríplice é, pois, o significado do
diagrama: primeiramente, exprime ascensão do ser ao longo
dos vários planos de evolução; em seguida, traduz a correspon-
dente dilatação (espiritual) de consciência (zonas tracejadas);
por fim, significa progressiva superposição de individuações e
fusão de consciência em forma de existência coletiva. Assim, a
música das ascensões dilata progressivamente as suas ressonân-
cias, estende-as na complexa sinfonia das harmonizações cole-
tivas. A harmonia gráfica do diagrama mais não é que a expres-
são ótica de um ritmo musical do conceito, no qual está divi-
namente contido um desenvolvimento lógico de forças.

Figura 2

No entanto aquela demonstração se detém no vértice da fa-


se espírito e da dimensão consciência, precisamente porque,
ultrapassando este ponto, saímos de nosso universo e da fase
humana, qual é correntemente concebida. Mas não podemos
deter-nos aí. E exatamente onde acaba aquela demonstração
começa este estudo. Através dos estados místicos que tenho
percorrido e vivido, sinto haver podido emergir do nível hu-
mano, normalmente concebível, avançando maravilhosamente,
como nova forma de consciência, nas primeiras zonas da pri-
meira fase „x‟ do universo trifásico evolutivamente superior
(+x, +y, +z, Fig. 2). Neste estudo, que poderia ser definido
2
também como uma incursão no inconcebível, desço de novo da
dimensão superconceptual do êxtase e da visão à dimensão ra-
cional corrente, para expor analiticamente a lei e o conteúdo
do fenômeno. Espero com isso fazer-me compreendido. Com-
pletaremos assim a análise do fenômeno místico, o qual per-
manece desse modo perfeitamente enquadrado e orientado na
fenomenologia universal, como uma forma de superconsciên-
cia evolutivamente situada nas primeiras zonas do superconce-
bível. Só agora poderíamos dar mais exatamente esta defini-
Figura 1
ção, que não era possível em princípio (Cap. III).
Deixemos, por assim dizer, no subsolo da evolução as fases
X. PRIMEIRO ASPECTO – PLANOS DE CONSCIÊNCIA , , , já atravessadas e superadas, e iniciemos o diagrama
(Fig. 1)13 por uma linha horizontal que tomaremos graficamente
Desenvolvamos agora o íntimo significado do diagrama, como ponto de partida de nosso exame de detalhe da primeira
principiando por seu primeiro aspecto. Podemos explicar aqui o zona do superconcebível. Aqui, a evolução orgânica da espécie
que entendemos por gradações de evolução, quais são assinala- é superada e o homem sobrevive apenas como psiquismo. A
das ao longo do eixo vertical das ordenadas. Já estabelecemos unidade individual emergente e, a um tempo, remanescente de
alhures12 a constituição trifásica do universo abrangido pelo cog- todo o anterior processo evolutivo é a consciência. Deste ponto
noscível humano, isto é, constituído de três planos de existência: para cima, não podemos operar senão sobre unidades imateri-
matéria (), energia () e espírito () (fig. 2), situados nas relati- ais. A presença inegável do fenômeno psíquico e sua derivação
vas dimensões de espaço, tempo e consciência. E demonstramos das zonas orgânicas mostram à evidencia que a evolução tende
que essa trindade una, tridimensória e trifásica, além de ser a para a desmaterialização, razão pela qual não poderemos avan-
forma típica dos infinitos universos fenomênicos, que se trans- çar senão no imponderável.
formam uns nos outros, é também o eixo interno de evolução do Adiante, insularemos, no segundo aspecto do diagrama, o
nosso. No seio do fenômeno da evolução, o ser está, pois, conti- estudo do desenvolvimento de uma simples consciência. Ob-
nuamente em marcha, da fase matéria para a fase energia, e desta servemos agora, ao contrário, no prosseguimento da evolução
para a fase espírito. Ao que já expliquei, dispenso-me de retornar.
13
O diagrama fig. 1 não passa de um estudo de detalhe da zona +x do
12
Cfr. A Grande Síntese, Cap. VII, VIII e IX. (N. do T.) diagrama fig. 2. (N. do A.)
192 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
físico-dínamo-psíquica, estas primeiras zonas da dimensão converte em comunhão, a simples ressonância se torna fusão e
superconsciência. Nestas zonas irromperá, assim, distinto e unificação por identificação de estrutura vibratória, que naquele
insulado em seu próprio plano, o fenômeno, no seio da evolu- plano de existência é a forma distintiva do ser. Como no plano
ção e de suas fases. Tomada como ponto de partida a fase precedente se havia despertado, pela visão conceptual, uma res-
neutra de transição +x1, que cobre a horizontal de base, in- sonância na consciência, que nesta ressonância se tinha dilatado
gressemos na primeira zona ou plano de consciência, +x 2. Te- (como está graficamente expresso no diagrama), assim, neste
remos assim uma sucessão de planos, +x 2, +x3, +x4, +x5 etc., plano, desperta-se o êxtase místico, em que canta uma voz no-
ao longo dos quais ascende a consciência. Mais exatamente va, na qual vibra o amor, que é uma dilatação de consciência
teremos a seguinte progressão: tão vasta, que, como descreverei, o ser sente-se humanamente
+x2 = plano de consciência sensória. perdido, mas divinamente ressurrecto. Não são hipóteses ou
+x3 = plano de consciência racional-analítica. fantásticas lucubrações estas; são estupefacientes realidades,
+x4 = plano de consciência intuitivo-sintética. nas quais esteve presa minha alma, como em um turbilhão, e
+x5 = plano de consciência místico-unitária. que, todavia, aqui demonstro dominar analiticamente, na forma
+x6 = plano inexplorado etc. mental hoje normal. E completo o trabalho de tal redução raci-
onal, para que esses altos fenômenos sejam admitidos e com-
O plano de consciência sensória assinala o plano físico da
preendidos, porque sei que pouquíssimos poderiam explicá-los
consciência, em que esta começa a despontar como síntese pu-
assim, por experiência, e também porque sei que neles estão o
ramente sensória. Fase de consciência mecânica, que ignora
futuro e o progresso do espírito humano.
qualquer interpretação positiva do universo. Psique de superfí-
O plano +x5 exprime e compreende, em seu âmbito, o fenô-
cie, que ignora toda tentativa de indagação, organismo de rea-
meno da ascese mística. Ignoro quanto se passa no plano +x6, o
ções mecânicas (cf. Cap. IV). É o primeiro nível humano do qual exorbita de minha atual experiência e, se não sobrevierem
bruto, apenas emerso da besta, ainda animal e vegetativo. novos fenômenos evolutivos, se perderá, para mim também, no
O plano de consciência racional-analítica representa uma inconcebível. Talvez isto esteja acima das possibilidades huma-
primeira tentativa de ascensão, de desmaterialização, de for- nas. E, naturalmente, infinita é a escola de ascensão no subse-
mação e de desprendimento de um psiquismo espiritual, psi- quente e, em seguida, nos sucessivos universos trifásicos.
quismo que ainda é puro meio de funcionamento orgânico. É
a fase da ciência, da observação, do relativo, da hipótese, da XI. SEGUNDO ASPECTO.
razão e da análise, mas não ainda da síntese. Começa-se a en- EXPANSÃO DE CONSCIÊNCIA
carar seriamente o mundo exterior, mas sempre com meios de
superfície. Na consciência, que permanece sensória como mé- Analisemos agora o segundo aspecto do diagrama, dado não
todo de indagação, acende-se uma chama interior que anseia e mais pela abertura das diagonais para o alto, fato que exprime a
pergunta, mas que ainda não sabe. É o período da pesquisa e, ascensão do ser através dos vários planos de evolução, mas pela
todavia, da ignorância ainda. abertura da espiral com a cobertura de círculos cada vez mais
O plano da consciência intuitivo-sintética é uma zona evolu- extensos, os quais exprimem zonas de dilatação de consciência
tiva já supranormal e excepcional para a média humana atual, correspondentes aos vários planos agora descritos.
que repousa na fase +x3. Aqui, a gênese de um psiquismo espi- Já fizemos a conexão deste segundo aspecto do fenômeno
ritual independente é completa, e a desmaterialização realizada com o primeiro, porque eles são ligados por correspondência,
lhe permite, em dados estados e momentos, perceber por resso- razão pela qual se estende, no âmbito de cada zona de evolução,
nância as emanações de zonas de consciência ou planos psíqui- a amplitude de uma dada fase de consciência. Do diagrama re-
cos evolutivamente mais altos. É a fase metafânica, consciente sulta, assim, graficamente, com toda evidência, esta dilatação
e inspirativa; não mais da ignorância, mas do conhecimento; expressa pelos campos tracejados, cada vez mais extensos. No
não mais da análise, mas da síntese. Chega-se a esse plano com diagrama, os espaços, as linhas e os seus movimentos e rela-
o método da intuição. Contemplam-se os fenômenos por vias ções representam diferenças, movimentos e relações de concei-
interiores, pesquisa-se e atinge-se a verdade por introspecção, tos: alto e baixo têm um sentido evolutivo, a extensão de cons-
no íntimo, onde ela realmente está. Aí, o ser já não toca apenas ciência é figurativamente espacial, a repetição rítmica de linhas
o relativo, nem está imerso na ilusão, mas toca o absoluto, pos- significa afinidade de características vibratórias individualizan-
sui a verdade. Não opera com o instrumento da lógica, da indu- tes. Dessarte, cada círculo contém todas as zonas precedentes
ção, da hipótese, mas por sintonização vibratória com zonas de conquistadas nos níveis mais baixos da evolução. Vemos assim,
consciência onde já está registrada a verdade. Já não é sensória no diagrama, não só que às zonas +x2, +x3, +x4, +x5 correspon-
a consciência. Arde a chama interior, que não só pergunta, mas dem as amplitudes de consciência dos círculos 2, 3, 4, 5 e assim
sabe. Atravessei, por experiência, essa zona 14 e dela extrai A por diante, mas também que cada círculo compreende dentro de
Grande Síntese, que é averiguação da realidade ultrassensória si todos os círculos menores. Assim, por exemplo, o círculo 5
da verdade fenomênica, por sintonização e visão interior. contém o 4, o 3, o 2 e o 1. Isso significa que cada dimensão
O plano de consciência místico-unitária é aquele em que vi- conquistada, ao tocar o correspondente plano de evolução, con-
vo atualmente minha nova experiência, do qual, aliás, eu já ti- tém todas as dimensões precedentes, cada nível compreende os
vera pressentimento. Tenho definido esses planos em relação inferiores sobre os quais se eleva e abaixa; significa também
com o conhecimento porque este é o seu índice prevalecente, que cada forma de consciência domina o âmbito de cada cons-
bem como o mais evidente e significativo. Se, até agora, temos ciência assimilada e superada. Em seus círculos maiores, o grá-
tratado de fria ascensão intelectual, que não tem outra meta e fico dá a impressão intuitiva deste acréscimo espacial de cons-
saciedade além da compreensão, vamos ver que, neste novo ciência em torno de seu núcleo, por estratificações sucessivas e
plano de consciência mística, a ascensão é integral. A sintoni- superpostas, o que corresponde à realidade, porque o acréscimo
zação com as superiores zonas de evolução não é só conceptual, é devido verdadeiramente a uma sedimentação de experiência.
mas, ao contrário, investe todas as qualidades da personalidade. Enquanto tudo isso constitui a expressão do aspecto estático
Coração, sentimentos e paixões despertam, e o ser já não as- do fenômeno, imobilizado, por comodidade de estudo, nas suas
cende só por intelecto, mas por amor. Então, a comunicação se várias fases de desenvolvimento, a linha do dinamismo do fe-
nômeno, isto é, da progressão de seu andamento, é dada pelo
14
Descrita no citado volume, As Noúres. (N. do A.) desenvolver-se da espiral que, em seu caminho, sucessivamente
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 193
abrange campos de consciência cada vez mais extensos. Aqui As criações da bondade e do amor equivalem às da sensibili-
reencontramos a mesma espiral do desenvolvimento fenomêni- dade, da razão e da intuição, e já se preparam em baixo, no
co universal (Fig. 2), embora seja, por seu deslocamento do primeiro núcleo de consciência.
centro, aparentemente diversa, conforme já notei. Neste sentido, igualmente, pode ser lido o nosso diagrama.
Por dilatação de consciência devemos entender potenciação Na horizontal de base, são traçados, equidistantes, muitos pon-
de todas as suas qualidades. Assim, em cada plano, se ajunta às tos, que representam centros de consciência. O círculo fechado,
precedentes uma qualidade nova. Eis que cada fase completa traçado em torno de cada ponto, além de indicar o âmbito da
uma criação sua, segundo esta ordem: consciência, correspondente ao plano em que está situado, pode
+x2 = consciência sensória = sensibilidade. exprimir um campo de forças ou ciclo de vibrações fechado em
+x3 = consciência racional-analítica = razão. si mesmo, isto é, que retorna, sem vias de saída, perenemente
+x4 = consciência intuitivo-sintética = síntese (verdade). sobre a própria trajetória. Esta é a fase de egoísmo, necessária
+x5 = consciência místico-unitária = amor (união com Deus). em seu plano à proteção da primeira formação do eu. Se este
campo de forças, no princípio, se acha determinado desta forma
Quanto ao que se passa mais no alto, nada sei; mas a cada por necessidades protetoras e representa sólida crosta de defesa
degrau corresponde um salto para frente, uma nova conquista contra todos os agentes de destruição, ele não permite abertura
que se soma às precedentes. Tal é a evolução, essência da vida. de circuito, nem contém possibilidades de expansão. Não per-
Amor, sentimento de que me deixarei inflamar mais adiante, é, mite contatos e comunicações, como todos os circuitos fecha-
pois, minha hodierna conquista e o conteúdo e a essência do dos, e os centros equidistantes sobre a horizontal de base se ig-
fenômeno da ascese mística que aqui estamos estudando. noram uns aos outros. Esta recorda a correspondente fase de ci-
Amor é unificação com Deus. nética atômica de ciclo fechado, o equilíbrio estável, mas imó-
No âmbito do círculo 5, que exprime precisamente a fase vel, da matéria (química inorgânica).
mística, encontramos, pois, todos os menores círculos concên- O despontar e destacar-se da espiral ao lado do círculo, diri-
tricos, isto é, a sensibilidade, que desenvolve a razão; a razão, gida para traçar a circunferência superior, representam o surgi-
que gera a intuição, a qual conduz à síntese; a intuição, que, mento de novo equilíbrio de forças instáveis, porém mais vasto:
por sintonia, se transmuda em amor, o qual leva à unificação o altruísmo. A trajetória, por impulso de maturações interiores
com o Todo. E cada qualidade compreende em si a precedente, (manifestação, exteriorização de divindade), em um dado ins-
sobre a qual se construiu. tante se desprende do circuito fechado e já não retorna sobre si
mesma; rompe-se o equilíbrio; abre-se o ciclo de forças em um
XII. TERCEIRO ASPECTO. novo equilíbrio de consciência altruísta. Sobe-se, assim, a uma
CONSCIÊNCIAS COLETIVAS nova fase, que recorda o equilíbrio instável porém móvel da
energia, correspondente à cinética atômica de ciclo aberto da
Observemos agora o terceiro aspecto do diagrama. O de- vida (química orgânica). Assim, o ritmo dos planos inferiores
senvolvimento do fenômeno espiritual já está exaustivamente repete-se mais no alto, porém mais transparente de divindade.
analisado sob todos os seus aspectos, como caso avulso. Neste É rompida a capa protetora, e o ser parece abandonar lou-
último momento, vem ele repetido (lateralmente, no gráfico) camente suas defesas e estar em poder de todos, porque toda
em outras individuações suas, com o escopo de estabelecer as força, demolidas as barreiras, pode penetrar em campo aberto.
relações entre vários casos, estudar suas recíprocas repercus- Desponta o Evangelho, que parece utopia. Mas também o cir-
sões e, finalmente, expor a sua dilatação como fenômeno cole- cuito, que antes fechava, está aberto, e nasce a possibilidade de
tivo. Segui-lo-emos aqui, em sua nova complexidade, para de- todas as expansões; e todo assalto é um contato, todo contato
duzir-lhe importantes e inesperados corolários, porquanto a as- torna-se uma absorção e uma dilatação de consciência, que as-
cese consiste nestas ressonâncias coletivas, que multiplicam e sim inicia o seu caminho de expansão para Deus.
transformam o fenômeno. O gráfico nos revelará a gênese de O diagrama é a expressão desta expansão, cujas conse-
superposições e fusões de consciências, de que nascerão novas quências de caráter coletivo ele indica. Pois que, também gra-
formas de existência coletiva. ficamente, os pequenos círculos distanciados na base, em seu
A dilatação de consciência proveniente da ascese espiritual insulamento egoístico, se avizinham em sua expansão, subin-
não é só conquista de conhecimento, mas também expansão ca- do até se tocarem, iniciando uma progressão de superposi-
da vez mais integral do ser em todas as suas qualidades, desper- ções, que se torna cada vez mais intensa. Antes de estudar-lhe
tadas e potenciadas sucessivamente, fora do germe (forma uni- o significado, observemos como este processo de superposi-
versal da expansão fenomênica, ou criação, ou manifestação do ção se manifesta no desenvolvimento gráfico. Demonstra o
divino), que esperava potencialmente no núcleo da fase prece- diagrama, com unidades espaciais, que a zona de superposição
dente. O ser, assim, muda de consciência, dimensão conceptual, dos círculos, que exprimem os campos de consciência nos vá-
modo de perceber e sentir, muda sua própria natureza, e mudam rios planos, está em progressivo aumento e que a zona de não-
igualmente as leis de vida, deslocando-se ao longo dos diversos coincidência dos referidos campos é inversamente progressi-
planos de existência. O superamento contínuo da evolução o va, e isso mediante relações que exprimem uma lei de apro-
transforma e purifica, deixando em baixo as escórias. Pode as- ximação infinitesimal constante. Observemos esta lei de pro-
sim acontecer o que verificamos alhures, isto é, que, na fase de gressiva coincidência e suas consequências.
transição, qual é a atual fase humana, no período de novas for- Enquanto, no plano 2, se acham ainda distantes as duas
mações, duas leis, de duas altitudes diversas, disputem o cam- circunferências, no plano 3 elas são tangentes e, no plano 4,
po: a lei biológica da luta pela vida e o amor evangélico. superpõem-se por 1/2 diâmetro (tomado o diâmetro como uni-
Hoje, que o homem médio está situado na fase +x 2, de dade de coincidência). Temos ainda 1/2 diâmetro de não-
consciência sensória, e na fase +x3, de consciência racional, coincidência (v. linha a=1/2). No plano 5, a zona de não-
encontrando-se exatamente absorto no labor das primeiras cri- coincidência é reduzida a 1/4 do diâmetro (v. linha b=1/4), e
ações do pensamento, vê agigantada, ante os próprios olhos, a proporcionalmente aumentada é a zona de superposição. No
importância destas e é levado a considerá-las a precípua e tal- plano 6, a zona de não-coincidência é reduzida a 1/8 do diâme-
vez única criação do espírito. Ele ainda não sabe conceber as tro (v. linha c=1/8); e assim sucessivamente. Isso basta para
manifestações que aparecerão no plano intuitivo e no plano traçar a progressão 1/2, 1/4, 1/8 de não-coincidência, que expri-
místico. Mas o espírito é um exército de qualidades em marcha. me a correspondente relação de superposição.
194 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
A mecânica do gráfico nos permite, pois, calcular a lei de vel, é ainda a personalidade humana. É lógico que a expansão
atenuação do separatismo ou distanciamento entre unidades de desse núcleo em formas imateriais conduz à interpenetração e,
consciência e a correspondente lei de fusão de individuações. portanto, à comunhão de personalidades. Conceitos, para nós,
Mostra-nos também, com a expressão tangível das suas pro- apocalípticos, bem o sei, mas esta é a realidade. Lá em cima, no
gressivas superposições espaciais, que a tendência da lei é a Alto, a consciência já não aparece com as características unitá-
unificação, isto é, identificação por coincidência, tendência ex- rias e distintivas de nosso plano, mas torna-se um fato coletivo.
pressa por uma relação constante de aproximação. Mudando-se Não se pode negar que isso desoriente todas as nossas concep-
as distâncias de base entre os centros, mudar-se-ão as relações, ções; nem por isso, contudo, se torna menos verdadeiro. Nada
mas a lei e a tendência permanecem. De um diagrama necessa- pode alterar-se ante a simples obstinação com que, em nossa in-
riamente bidimensional não podemos exigir mais como repre- compreensão, negamos. Encontraremos noúres, sempre noúres,
sentação de uma realidade pluridimensional e abstrata. correntes não só de pensamento, mas de atração, de simpatia, de
Que significa isso? A expansão leva, pois, a uma interpene- amor, através das quais os espíritos se ligam em forma de exis-
tração de campos de forças; o desenvolvimento da ascese espi- tência coletiva. Pode verificar-se um início do fenômeno tam-
ritual assume aqui um mais vasto aspecto coletivo de harmoni- bém em nosso plano, no caso da consciência coletiva, em que se
zação de consciência. A evolução, portanto, leva a uma fusão tem exatamente um principio de existência psíquica por corren-
mais estreita, sem jamais, porém, tornar-se identidade, porque a tes. Isso também poderia ser expresso em nosso diagrama, en-
zona de não-coincidência (1/2, 1/4, 1/8, 1/16, 1/32, 1/64 etc.) é tal que quanto há também em tal fenômeno uma dilatação e interpene-
jamais se anula. Embora permaneça espacialmente idêntica, tração de consciência individual na compreensão sempre menos
porque são paralelas ao infinito as diagonais de ascensão, aque- egoística do bem de todos.
la zona se adelgaça com a aproximação constante (permitindo o
fenômeno inverso da progressiva superposição), pois, em todo XIII. EGO SUM QUI SUM15
plano, muda a relação com os diâmetros, que redobram conti-
nuamente. Assim, enquanto sempre aumenta a zona de identi- Nosso diagrama já nos ofereceu, em seus aspectos maiores e
dade, a zona de distanciamento está em contínua diminuição, menores e em seus corolários, matéria para muitos ensinamen-
precisamente porque o progressivo aumento da relação entre os tos e conceitos. Afastemo-nos agora das minúcias e observemo-
diâmetros de extensão das consciências tende para a anulação lo em seu conjunto, qual uma sinfonia única. Distanciemo-nos
da distância, embora jamais atinja isto absolutamente. Seja qual da representação gráfica e ascendamos em abstração, avizi-
for a extensão que se atribua às distâncias de deslocamento na nhando-nos assim da realidade.
base do diagrama, já o disse, esta lei permanece constante. Até aonde vai esse ilimitado caminho evolutivo?
Cada plano tende, assim, quanto mais alto, a ser tanto me- Ocorre sob nossos olhos o fenômeno da transformação de
nos uma série de consciências distintas e tanto mais uma zona consciência, que, intensificando-se, parece evanescer em nossa
unitária de consciências harmonizadas e fundidas na mesma na- percepção. E, todavia, repete-se em planos imateriais o mesmo
fenômeno da evolução orgânica darwiniana, regido pelo mesmo
tureza. Outrossim, no diagrama, a vizinhança entre os centros é
princípio. Há em todo o processo um ritmo grandioso e implacá-
de fato progressiva em relação aos diâmetros. A superposição
vel, pelo qual o universo avança para zonas em que se desmateri-
dos campos de forças atenua sempre a distinção e opera a assi-
aliza e parece perder-se no inconcebível. Nossa vista, conquanto
milação entre os vários tipos de consciência, que tendem a tor-
aguda, não pode hoje ultrapassar uma dada ordem de planos. E
nar-se um modo único de ser. Assim, abre-se sempre mais a
depois? Depois há uma só direção, e esta direção é Deus.
comunicação interior, escancaram-se as vias da ressonância. No
Do grande caminho mais não vemos do que um pequeno
nível espírito, já o dissemos, a individuação já não tem a força
trecho que parte da matéria; nem lhe conhecemos os anteceden-
corpórea espacial do plano físico, sendo definida pelo tipo de
tes evolutivos. Ele termina nestas superiores fases espirituais
vibração, por um próprio timbre de emanação. Então a zona
que estou descrevendo, além das quais lavra tal incêndio, que
sintoniza-se segundo uma única nota e é toda, como cada cons-
nosso eu não pode resistir. Este incêndio é Deus.
ciência componente, a mesma e única nota. A comunicação Já foi muito o ter descoberto a evolução biológica; já é mui-
torna-se comunhão, e a comunhão, unidade. to o tê-la aqui continuado em suas superiores fases psíquicas.
Vejo então animarem-se as consecutivas circunferências do Mas, depois, além, ainda mais além, permanece o mistério. E,
diagrama, revelando-se na sua real essência de espíritos frater- contudo, o homem evolve. A mesma lei que, mais no alto, nos
nos, harmonizados na mesma nota de amor. E cada plano de embarga a visão, para esse alto nos arrebata, perseguindo pro-
evolução é uma esfera celeste que modula uma diversa e cada gressivamente o mistério. A consciência dilata-se em todas as
vez mais intensa e pura nota de amor. Vejo um fantástico turbi- suas qualidades, e a luz divina pode descer em sua cada vez
lhão de luzes ao redor de um enceguecente esplendor, centro de maior transparência de espírito.
sapiência e de amor, que é Deus. Vimos que a evolução consiste num processo de harmoni-
Esta unificação por estados vibratórios, esta sempre mais ín- zação vibratória e que, quanto mais se ascende, tanto mais se
tima interpenetração de consciências, este ritmo de aproximação manifesta em forma de ressonâncias musicais. A evolução de
colateral, resultante de todo o movimento do diagrama, nos di- um a outro plano de consciência pode assim nos dar a revelação
zem que, à proporção que galgamos os planos espirituais de evo- das mais inimagináveis realidades. Em cada nível, os seres res-
lução, não podemos encontrar, e aqui explicamos como efetiva- pondem cada vez mais, por clareza e por força, à nota divina
mente não encontramos, individuações pessoais de consciência que, qual uma luz, chove do alto e penetra as várias zonas, mais
no sentido humano, tipos de eu separado, à nossa semelhança, ou menos, segundo sua densidade. Tudo é, pois, uma projeção,
nas zonas de consciências ligadas na mesma sintonia. Isso expli- mais ou menos densa de sombras, do pensamento de Deus. As
ca racionalmente a dificuldade de identificação espiritual no ca- vias da ascensão espiritual, que estamos estudando e das quais
so de elevadas entidades, que jamais se definem em sentido hu- o fenômeno místico é, para nós, um momento tão grande, são
mano, e o fato por mim averiguado de que, ascendendo evoluti- as vias que convergem para o centro, guiando para Deus, últi-
vamente, não tenho encontrado centros individuais de pensa- mo termo de todas as ressonâncias.
mento, mas noúres, isto é, correntes de pensamento. E é lógico,
ademais, que a evolução, sendo um renovamento tão substanci- 15
“Eu sou Quem Sou”. Palavras do Senhor a Moisés, na tradução lati-
al, conduza quase à vaporização daquela distinção, que é a nota na da Bíblia (Êxodo, 3:14). Em hebraico, significa “Eu sou aquele que
necessária e fundamental desse núcleo denso que, em nosso ní- é”, no sentido de transcendência divina – O Ser Supremo (N. do T.).
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 195
Deus é, pois, a meta para a qual se dirige a evolução uni- A grande força que impele a evolução é amor. Ela é a radia-
versal em marcha. Esta é uma ascensão orgânica de todos os ção que desce do Alto e atrai para si. Ela reconstrói, reúne, re-
seres. À proporção que sobem, eles se coordenam, harmoni- armoniza, reconduz à unidade. A luta entre o bem e o mal é a
zam progressivamente suas dissonâncias, eliminam seus anta- luta entre estas impulsões reconstrutoras, que afirmam, e as im-
gonismos e reaproximam suas cisões. A ascensão é um ample- pulsões negativas, destruidoras e dispersivas da involução. Es-
xo cada vez mais estreito que consolida as conquistas e unifica força-se, mas conquista-se. O egoísta que acredita vencer, fa-
a expansão. De baixo para cima, a evolução é um processo de zendo-se centro de tudo e de tudo senhoreando-se, a fim de
progressiva unificação, e o último termo desta unificação é acumular para si, ao contrário a si mesmo fecha as portas da vi-
Deus. Deus é o ponto para o qual tendem todos os seres. Para da, porque se insula do grande movimento de unificação, se-
Ele tudo converge e n'Ele tudo se unifica. gregando-se de suas fontes e esterilizando-se. Ele inverte as vi-
“Ego sum qui sum”. Deus não pode ser definido. Definir as da expansão do eu, acorrenta-se às coisas perecíveis e fecha-
significa limitar, e aqui se fala do ilimitável. Toda definição será se à expansão no coração do semelhante e das criaturas. Para
uma redução, uma mutilação. Não pode ser definido, porque não nutrir-se somente a si mesmo em detrimento dos outros, subtrai
se pode projetar no finito o infinito, no relativo o absoluto, não de si toda nutrição. Assim é vencido, e não vencedor. Disso nos
se pode representar no ilusório da forma a realidade da substân- tem advertido a suprema sabedoria do Evangelho. O egoísta vi-
cia, sem ocultá-la. Não se podem conjugar os conceitos de Deus ve a expensas do todo. Quem ama vive em contínua comunica-
e de pessoa, de vez que este é circunscrição de individualidade e ção com o todo, inexaurível manancial de riquezas. Quem dá
o infinito não pode ser circunscrito. Não se pode chegar a Deus parece perder, mas com esse ato identifica o bem próprio com o
por argumentações, porque Ele está acima de todo raciocínio. de seu semelhante e, multiplicando-se no semelhante, nele re-
Deus não se demonstra: sente-se. Não se pode chegar a Deus vive. Assim, o altruísmo dilata a consciência e, se perde utilita-
mediante pura multiplicação de atributos humanos. Para superar riamente, perde unicamente segundo a mais limitada psicologia
o conceito de direção a que devemos limitar-nos, seria necessá- racional, mas, em compensação, ganha muito espiritualmente.
rio um salto no inconcebível. Quem, com efeito, se avizinha O ato de egoísmo, ao contrário, constitui uma contração e leva
verdadeiramente de Deus experimenta uma sensação de imenso à asfixia; a sensação de expansão e aumento que decorre do ato
esmorecimento. Só então se olha verdadeiramente para o Alto. de altruísmo explica a alegria de dar, de outro modo absurda.
Subindo de plano para plano, a fusão dos espíritos se faz cada Assim se explica, e somente assim, como para o espírito o dar-
vez mais íntima e completa. Ao longo desta harmonização está o se em sacrifício não seja, como é para o corpo, uma penosa mu-
caminho que conduz a Deus. Ele é unidade global que, em si, tilação de vida, mas uma alegre forma de expansão.
harmoniza e funde todas as consciências e criaturas. Por amor, entendo o amor de espírito, que unifica, não o
As superiores zonas de evolução são níveis de espírito e es- amor carnal, egoísta, que deixa sempre profundos resíduos de
tão dentro de nós. Deus, supremo termo, não está fora, mas separatismo; entendo por amor a vibração de circuito aberto,
dentro de nós, nas profundezas de um abismo sobre o qual, não a vibração de circuito fechado, que retorna sobre si mesma.
trêmulos, apenas ousamos debruçar-nos. É o eu de todos os fe- Entendo-o como a vibração expansiva do verdadeiro altruísmo
nômenos que Ele cria eternamente em Sua manifestação. Não evangélico, a vibração da expansão mística, que representa uma
podemos orar senão imergindo-nos neste centro interior, onde ordem de ondas mais curtas, rápidas e dinâmicas e, por isso,
se confundem altura e profundidade e já não têm sentido nossas mais penetrantes, cujo ritmo mais intenso e veloz permite que
medidas. A ascese mística é um trecho do caminho que nos elas se elevem além da atmosfera terrestre e atravessem os su-
conduz a Deus. A evolução espiritual é o aprofundamento de periores planos de evolução, para aproximar-se muito mais da
nossa consciência em nosso próprio íntimo; sua dilatação é uma fonte, sentir-lhe a atração e, com ela, alcançar uma sintonia
estranha dilatação superespacial para o interior, que pode comu- mais perfeita. O amor é a estrada mestra para chegar a Deus.
nicar-nos também a sensação de uma expansão para fora de nós. Assim é que, em baixo, todas as criaturas são inimigas, no alto
Mas não há sensações comunicantes que permitam estabelecer todas as criaturas são irmãs. Eis como o Evangelho transforma
termos de comparação com as novas dimensões. As fulgurações o inimigo em amigo, e, atingido um dado nível, toda a fenome-
de consciência que estão na inspiração, na revelação, no êxtase nologia universal aparece qual imensa música de toda criação, a
são bem fulgurações da Divindade. Ouvir-Lhe-emos o eco voz das coisas muda-se e torna-se um cântico. É a ascese que
imenso, auscultando a voz do espírito; ver-Lhe-emos os lampe- opera este milagre, revelando à alma o segredo da harmoniza-
jos olhando na profundeza de nós mesmos, porque Deus está no ção, que no amor opera a reabsorção do mal, das trevas, da luta,
fundo do coração humano, como pressentimento de todas as as- da dor, para o equilíbrio, a ordem, a felicidade.
censões, insuprimível como o instinto fundamental da vida.
A ascensão espiritual é um processo de penetração do eu XIV. DA TERRA AO CÉU
consciente em seus cada vez mais íntimos e profundos estratos,
que são planos de consciência sempre mais elevados. Esta mar- O fenômeno da ascensão espiritual permanece situado no
cha em profundidade é uma liberação do invólucro denso da seio da fenomenologia universal, como fase de evolução, como
matéria e de sua ilusão sensória, é um desnudamento de pesa- fato insuprimível e necessário. Ele está enxertado na técnica do
das escórias, é uma progressão para a realidade, a verdade, o funcionamento orgânico do todo. Se aqui chegamos à verifica-
bem, o absoluto. É uma ascensão para o interior. O futuro está ção experimental, em forma cientifica, todo o nosso mundo não
dentro de nós. A manifestação rumo à realidade exterior dos podia deixar de defrontar-se com um fato tão fundamental. E
sentidos e da matéria é descida involutiva; é, perdoem-me o ele se repete em todos os tempos e em todos os lugares e, do
termo, descentração da Divindade. A evolução procede em di- bramanismo ao budismo, do islamismo ao cristianismo, reen-
reção inversa, porque é o movimento centrípeto do retorno da contra-se em todas as religiões.
alma a Deus. O centro de consciência, para evolver, não se pro- O processo de ascese mística, objeto deste estudo, poderia
jeta para o exterior, mas desloca-se para a realidade interior, hi- repetir-se como método de Ioga, com nomenclatura equiva-
perfísica e supersensória. Isso é uma reabsorção do espírito em lente, porquanto o iogue tende igualmente à libertação e unifi-
Deus, que, após haver projetado fora de Si o processo criativo cação. Mas esquivo-me de tudo isso que cheira a negativismo,
em sua primeira fase involutiva, o inverte e o reconcentra em porque o insulamento do mundo e dos semelhantes constitui
Si, em sua fase evolutiva. Processo concêntrico de síntese, de sempre um pouco de insulamento de Deus. Esquivo-me desse
atração e de amor, oposto ao precedente, de dispersão. método, porque ele é supressão de realidade exterior, antes que
196 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
expansão de realidades interiores; fujo de tudo isso a que não em abundância, limitada tão só pela capacidade receptiva do ser,
se chega por harmonização, esse dulçoroso canto que faz da pela sua potência de ressonância. Deus é um centro de energias
vida e da dor uma alegria, como o canto do Irmão Francisco tão vitais, afetivas e intelectivas, que qualquer ser ficaria reduzi-
no Cântico das Criaturas. Eu, que sou latino, não posso sentir do a cinzas se as vias de penetração não fossem automaticamen-
a ascensão de espírito senão na forma ardente e passional dos te limitadas em proporção à sensibilidade.
latinos, na forma de um misticismo vibrante e ativo, não pos- Tratei racionalmente do assunto, cujas bases científicas já es-
so abstrair-me no insulamento socialmente passivo da pura tabeleci. Mas, agora, o passo tardo da razão irresistivelmente se
concentração; mas tenho necessidade, mal haja atingido um acelera, sutilizando-se em expressões excelsas; pois que o argu-
novo elemento na concentração, de novamente descer entre mento insta e meu espírito tem pressa de abrir as asas e mostrar-
meus semelhantes para doar-me; tenho necessidade de dizer e se em voo, tal qual ele verdadeiramente é, não mais constrangi-
de realizar, não de concentrar em mim, mas de expandir, me- do entre aquelas peias. É hora de despojar-se dos invólucros da
diante uma harmonização de almas, o fruto de minha ascen- representação racional e de avizinhar-se da visão. Dela me apro-
são. Minha concepção de ocidental, mais exteriormente dinâ- ximarei paulatinamente, neste escrito, até penetrar nela, até
mica, me impõe como dever narrar tudo isso, para que tudo imergir-me e perder-me no êxtase e arder no amor divino.
venha à luz e ressoe no coração dos outros. Declarei, no princípio, que haveria de tratar do argumento
O mundo não me aparece exclusivamente coma vã dança de da ascese mística não só como razão, mas também como sensa-
sombras, qual grande Mâyâ, mas como um campo de lutas, onde ção e fé; não só em seu aspecto científico e objetivo, senão
sangra a alma de meu irmão, a quem me cumpre ajudar. Através também em seu aspecto místico e espiritual. Esta sua diversa
desta unificação com ele, consolida-se minha unificação com o projeção não cindirá a realidade do fenômeno, mas reforçá-la-á,
Alto. Desta base de amor humano, inicio o processo de minha confirmando-a; nada subtrairá à sua basilar solidez racional, à
harmonização no amor divino. A ascese mística, entendo-a lati- qual é sempre possível descer, porquanto já não pode ser perdi-
namente, vale dizer cristãmente, não como estéril concentração da de vista, ainda que se queira, salvo quando se saiba traduzir
meditativa que rouba à sociedade uma alma e uma atividade, os termos de fé em termos de ciência. O aspecto científico que
mas como fecundação operada pelo divino no humano, a fim de antepus no princípio para, sobre a Terra, estabelecer solidamen-
que no humano se expanda e multiplique para sua ascensão; en- te as bases do fenômeno, não se desmente, precisamente agora
tendo-a não qual uma força que se ausenta da Terra, mas uma que observamos a continuação desse fenômeno no Céu.
força que a ela retorna e sobre ela é ativa e presente, agindo po- Nos meus trabalhos precedentes, narrei desapiedadamente,
tentemente cada dia. Entendo a ascese mística como ajuda à vi- depois de vencer a vergonha das íntimas coisas da alma, meu so-
da, e não como agressão a ela; como expansão, e não como frimento, minha fraqueza, minha fadiga. É hora de relatar o fruto
compressão. Estou, pois, imensamente longe de certo estéril as- de tudo isso – a conquista – e entrar na fase das realizações. No
cetismo conventual, que oprime sem ter em si paixão de ressur- fim do volume precedente16, fiz afirmações graves. É chegado o
reição. Não matemos o amor, refiro-me ao amor de espírito, de momento de consolidá-las com afirmações ainda mais graves.
outro modo matar-nos-emos a nós mesmos; não o matemos, mas Não posso renegar o passado; devo continuá-lo com novas as-
enxertemo-lo na dor. Passará a dor, e o amor sobreviverá; fe- censões. Neste novo testemunho, que dou com a alma nua diante
cundado pela dor, crescerá e nos levará para mais alto. de Deus, ainda me empenho e irei até ao fundo. Apertam-se os
Minha concepção, baseada em sólidos fundamentos científi- primeiros liames, reforçam-se os compromissos; por certas vias,
cos e experimentais, deve passar muito distinta e distante de to- já não é possível deter-nos. Este testemunho dirá o que é A
dos os escolhos, entre todas as falsificações de uma visão sadia e Grande Síntese, revelará hoje nova zona de seu significado, ain-
positiva da vida. Só transitoriamente aceito a treva, o tormento, da mais profunda, confirmará e ampliará as minhas já tão graves
a mutilação da renúncia, apenas o mais brevemente possível, e afirmações a respeito. Falarei de Cristo, porque Cristo se apro-
só para reviver mais intensamente e mais no alto. Viver, viver, ximou, e sinto que se aproxima cada dia mais, numa luz res-
viver sempre mais. Minha ascese é um vórtice de paixão, não plandecente. Pois que Ele é o centro de que nascem e em que se
um adormecimento no nada, nem uma escola de perseguição as- fundem toda a minha obra e toda a minha personalidade.
cética e, muito menos, uma acomodação de conveniências; é Assim, farei melhor compreender, neste mundo de cegos,
maturação biológica, natural e irrefreável, que aparece quando a quais são as verdadeiras metas da vida. Muitos compreendem
alma tem atrás de si um acúmulo tal de forças, que os equilíbrios tardiamente, já no termo do caminho, que nada de substancial
se precipitam para mais altas formas de vida. Na ascese, vejo a foi construído, nada que resiste à morte e sobreviva à destrui-
sã metodologia mística, isto é, o processo natural de desenvol- ção e não se possa subtrair à própria personalidade. Compre-
vimento de consciência. E, assim como a fase racional nos deu o endem então que riqueza, honras, amor sexual representam vã
método analítico, e a fase inspirativa nos deu o método da intui- ilusão. Que tédio na alma! Depois, será necessário recomeçar
ção, levando-me à construção de uma síntese universal, assim desde o princípio, repetir o curso das provas. A luz só se faz no
também a fase mística nos dá o método da expansão integral e final, na orla do túmulo. Primeiro, sempre uma agressão sem
leva à construção de uma consciência unitária. A unificação do tréguas, para depois se tornarem grandes lá onde nada resiste e
saber completa-se e eleva-se até a unificação no sentir. o tempo tudo destrói. Sempre assim; de outro modo, que se
A expansão dos ciclos expressa no diagrama é um agiganta- haveria de fazer? Parece que outra coisa não sabem os homens
mento de consciência que cobre campos de sensação cada vez fazer. Parece que se acabasse esta rivalidade, esta ferocidade
mais vastos, abrange na mais intensa capacidade vibratória uma de luta, ficariam espantados, a olhar-se, bocejando, como
gama de notas cada vez mais extensa e pode responder cada vez quem nada mais tem por fazer, ou já não sabe o que fazer. Ou
mais a vozes no grande cântico do universo. A superposição dos então se fartariam de bens e de gozos, até se arrebentarem e
planos no diagrama acarreta realmente uma descida de luz, de morrer. Esta tremenda paixão que agito parece, pois, propria-
força e de amor do Alto e estabelece incessante comunhão entre mente fora do normal concebível. Cada qual desce pelo declive
os vários planos, que é um maravilhoso concerto de almas. E, e arrasta consigo os outros, e todos se arrastam conjuntamente;
quanto mais subo, tanto mais me identifico neste canto; e, quan- é uma competição para aquele que mais velozmente se precipi-
to mais recebo e me fundo, tanto mais me nutro dele, mais devo ta, uma compressão a que mais ninguém resiste e em que se
dar o que me foi doado, mais devo abaixar-me e difundir-me nas calca aos pés a alma humana, centelha de Deus.
menores criaturas irmãs. Há realmente no universo, de plano a
16
plano, esta maravilhosa circulação de linfa vital, a derramar-se As Noúres. (N. do A.)
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 197
Farei compreender as mais profundas realidades da vida, ção. Mas, agora, na expansão de meu espírito, vem ao meu en-
que escapam ao olhar cúpido e pressuroso do homem hodier- contro, sem mais limites, o universo. Doar-me, eis o meu traba-
no. Crê ele ser o próprio corpo, nada mais que o corpo, e com lho; imergir-me no ritmo do todo, eis minha nutrição.
ele consumar-se. Não quer envelhecer, nem morrer com ele. Tais doações, normalmente consideradas absurdas e muito
Que tremenda mutilação da consciência infinita, identificar-se menos necessárias, são dever absoluto para a alma que, nua,
assim exclusivamente com a própria limitação, enclausurar-se transpôs o umbral. Se, em conquista de conhecimento e de
nas trevas, sem esperança de luz, encarcerar o espírito livre no amor, eleva-se, assim é para executar um trabalho mais árduo,
invólucro da matéria e sofrer as vicissitudes instáveis desta, o para cumprir mais árduos deveres. Pois que deverá nascer uma
seu afanoso transformismo, para, ao fim, putrefazer-se com nova civilização, e é necessário o sacrifício para prepará-la; se-
ela! Cristo veio para anunciar-nos: “Eu sou a Ressurreição e a rá um novo ciclo histórico, que formará nova raça, em que a
Vida”, e não O temos compreendido. O homem de hoje, na fraternidade já não será vã palavra, mas nova fase evolutiva de
pretensa civilização moderna, perseguindo laboriosamente um mais perfeita harmonização espiritual.
ideal de bem-estar material, fechou-se às vias da expansão es-
piritual, às vias do desenvolvimento de consciência; encerrou- XV. METODOLOGIA MÍSTICA
se numa crosta de egoísmo, e sua alma asfixia-se e sofre. Ela
desejaria explodir em seu livre elemento, mas sente-se, ao Viver e amar, tal é a substância do meu misticismo, qual
contrário, morrer na matéria. aparecerá nesta sua expressão de fenômeno vivido. À propor-
Assim enclausurado, o espírito sente a pressão das estreitas ção que caem os véus e a fonte se aproxima e transparece, as-
paredes que tenta erguer e não compreende que elas não são, nem cende-se e lavra o incêndio. Dentro dele ouvir-se-á cantar a
podem ser sua habitação. O presumido dinamismo de nosso tem- música do divino, o amor das criaturas, o amor de Deus. Diante
po mais não é do que a agitação desordenada desta angústia que de nós, veremos ressurgir a figura de Cristo, que nos precede e
busca evasão. Domínio de velocidade, de tempo e de espaço; pa- avança pelos séculos. Veremos aparecer gradativamente, numa
rece uma fuga, uma libertação, um superamento, e, contudo, mais sucessão de quadros, esta visão e nela a transformação de uma
não é do que o respiro mais curto e afanoso de quem corre mais alma. Mas retardemos ainda a marcha, antes de aventurar-nos
velozmente no mesmo círculo de coisas vãs. Não se imagina co- no grande voo. Avancemos por um gradual crescimento de ten-
mo toda a vida humana se apoia sobre estes sutis jogos psicológi- são. Tratamos suficientemente do aspecto técnico da questão.
cos, sobre estas leis profundas da evolução do espírito. Deixemos atrás este superado labor. Estamos ainda no vestíbu-
A ciência utilitária pretendeu abrir passagem através dos lo, diante do portal. Nossa psicologia deve avançar através de
círculos férreos das necessidades materiais, e as massas huma- progressiva desmaterialização, e as precedentes afirmações teó-
nas foram lançadas nessas ondulações de esperanças, caindo, ricas deverão converter-se em sensível forma de vida. Para tor-
entretanto, em precipícios tais, que o mundo ainda ficou mais nar possível a compreensão, devemos separar-nos gradualmente
insatisfeito do que antes. Muito diversa é a expansão de que da psicologia corrente e gradualmente despojar-nos do invólu-
necessita a pressão interior. O espírito não pode saciar-se com cro analítico racional, liberando-nos e elevando-nos da forma
estes acréscimos na matéria, novas estratificações exteriores, mental de nosso tempo. O precedente estudo técnico nos fez
que tornam espesso o invólucro e encadeiam o espírito ao las- compreender racionalmente a ascese mística; agora, devemos
tro terreno, que é feito de dor. compreendê-la espiritualmente. Aquela primeira orientação está
Para quem vê e compreende, é espantoso esse espetáculo. na base e, por isso, nos ajuda e nos ajudará, mas, agora, é ne-
Seria ridículo, se não fosse mortificante. É uma corrida dilace- cessário atingir a superelevação do edifício. É necessário ele-
rante para o inútil. Tal é o mundo a que falo, eu o sei. Falo de var-se na nova forma de pensamento e mover-se nela; devemos
elevações de espírito às mais rarefeitas atmosferas da inteligên- rasgar o véu e encarar a luz.
cia e do amor. Pretendo arrebatar o leitor ainda para mais além, Aqui, a ascese mística superou, em nosso exame, a fase teó-
em arroubos divinos. Levá-lo-ei, plenamente, à sensação do êx- rica da compreensão e ingressa no campo prático de sua reali-
tase místico, porque esta é a substância do fenômeno. Serei zação. Emerge da exposição racional com uma palpitação de
compreendido? Sei bem que se trata muitas vezes de almas de vida, não mais ilustração explicativa, mas norma de atuação.
idades diferentes, de diversa e menos profunda maturação inte- Quem ainda duvida verá que a ascese se torna um método e que
rior, para cuja insensibilidade são necessários certos abalos bru- há uma metodologia para chegar a Deus e realizar a unificação.
tais. Mas a dor delas é real e me dilacera. Sinto-as chamar de Isto faz igualmente parte de minha experiência. Está exposição
muito longe. Conquanto não a entendam nem a admitam, ela nos encaminhará à compreensão da última parte e dos quadros
implica para mim o tremendo dever de dar-me para o bem delas. psicológicos que a completam. Veremos, assim, nascer aqui,
Vejo-as sufocar, imersas até a garganta, na treva e no tormento; como consequência lógica de nossas promessas, uma metodo-
vejo iminentes os perigos de agora, que elas ignoram. Para que, logia mística. É a mesma dos grandes místicos, da qual, porém,
pois, deveria eu viver, a não ser para ajudar. Não tenho eu o de- eles não deram explicação racional e científica, necessária à
ver de restabelecer, onde há mais necessidade, aquela luz que do hodierna compreensão. Essencialmente, ela é a metodologia da
alto chove em torrentes, gratuitamente, sobre mim? evolução na fase espírito, decorre de cada palavra minha em
A organização unitária e compacta do universo impõe uma meus escritos passados, neles está contida em suas linhas gerais
solidariedade entre o alto e o baixo, no labor de ascender. e, aqui, continua em um seu mais alto desenvolvimento.
Quem mais tem mais deve dar. É por esta razão de equilíbrio e O campo experimental de minhas observações se estende,
de amor que o extremo da grandeza de Cristo se casou com o assim, às experiências dos místicos que viveram o fenômeno e
extremo oposto de sua cruenta paixão. Através de meu espírito deram o seu testemunho, confirmando-o. Há uma ciência místi-
movem-se forças que, na harmonização destes planos, são de ca, cujos autores se dão as mãos. Embrionária nos primeiros
todos. Não posso insular-me. O universo é agora para mim um tempos do cristianismo, desenvolve-se depois, alcançando mui-
concerto; é necessário viver, harmonizando-se. Sinto-me enle- tas vezes alturas inauditas. São Dioniso Areopagita enuncia as
vado no caminho do retorno, e sobe comigo para Deus o cânti- leis gerais da teologia mística, lançando-lhe as bases; João Ru-
co de todas as criaturas. As dissonâncias humanas do egoísmo, ysbroech (nascido na Bélgica, em 1293) assimilou-lhe o pen-
da avidez, da violência não lograrão fazer calar este cântico samento e, sobretudo, o viveu. No Ornamento das Núpcias Es-
imenso, que é a alma da criação. Abandonei tudo ao longo do pirituais, ele verdadeiramente arde como um incêndio e voa
caminho da dor. Ressurgi nu das lacerações oriundas da separa- como águia; seu espírito solta um grito imenso e se abisma na
198 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
vertigem dos mais altos estados místicos. E quem não conhece necessário deixar as pernas, pois, enquanto quisermos caminhar,
Eckart, Tauler e ainda a Beata Ângela de Foligno, S. Boaventu- jamais voaremos. Já não se trata de correr a largos passos de ra-
ra, S. Teresa, alma vibrante inigualada, e o santo da mística As- zão, mas de voar em intuição e visão. Ora, isso é coisa bem dife-
sis, São Francisco, sombra de Cristo? Máximo doutor em teo- rente. E os dois mundos se defrontarão, acusando-se reciproca-
logia mística, da grandeza de São Tomás em dogmática, é São mente de ilusão. Se não se abre uma passagem, eles jamais se
João da Cruz (nascido na Espanha, em 1542). Suas obras: Subi- compreenderão. Mas poderiam perguntar-me, se o homem está
da do Monte Carmelo, A Noite Escura da Alma, O Cântico Es- fechado na razão, qual o está em sua pele, como logrará um dia
piritual e A Chama Viva do Amor descrevem as vias da ascese sair? Como se pode sair da própria consciência? Evidentemente
espiritual até a unificação da alma com Deus. que é por força de evolução. Não é esta uma continua emersão de
Há, pois, um método para chegar a Deus, com característi- sob os envoltórios da própria semente? Há esta imensa impulsão
cas que se repetem, demonstrando que, atrás das realizações interior que contém todos os desenvolvimentos, e é um impulso
pessoais, há um fenômeno geral. Nisso são concordes, numa de Deus para a sua manifestação.
nota dominante, os místicos teóricos e os místicos experimen- O místico exclui a razão. Não a mata, supera-a; não a per-
tais. Que fazem, que querem todos esses homens? São almas de, transmuda-a. A alma encaminha-se para Deus; para que
atormentadas por estranha necessidade; têm pressa de chegar a mais podem servir os raciocínios do intelecto? Como se po-
Deus, são impulsionados por um desejo vertiginoso, o desejo da dem avaliar certas altitudes espirituais com os meios feitos
unificação. Ardem todos de íntima efervescência de amor. Vi- para as pequenas distâncias psicológicas da Terra? As de-
vem com os braços abertos para Deus e para as criaturas, so- monstrações racionais, as argumentações filosóficas podem
frendo antes de chegar e, depois, cantando e amando. Infla- constituir uma aproximação, aliás muito imperfeita, da ideia
mam-se no incêndio do êxtase, em fontes inimagináveis, para, de Deus, mas esta, em sua essência, não comporta imagem,
em seguida, derramar torrentes de luz e de paixão. Ouvimos como também não comporta demonstração. Pretender de-
clamores que, em nosso mundo, não são compreendidos e, por monstrar-Lhe a existência equivale a negar a sensação direta
isso, não são admitidos. Que ocorre então? d'Ele e fechar as grandes vias de comunicação com Ele, que
Ocorre o fenômeno da absorção do eu inferior no eu superi- são as vias da fé. Satisfeito, o intelecto então se cega, porque
or, através da noite escura dos sentidos. Desloca-se o centro da se sente muito melhor com os outros meios. Outra coisa é o
gravidade da vida para um mundo hiperbiológico, situado além conhecimento de Deus; é mais um deixar-se levar do que uma
de nossa capacidade de conceber. Se, teórica e tecnicamente, é laboriosa pesquisa; é o assomar da alma acima do plano da ra-
isso concebível, conforme veremos, coisa mui diversa é viver o zão, em uma visão nua, que já não comporta imagem, já não
fenômeno e experimentar a sensação de seu amadurecimento. encadeia nem reduz o divino na representação. A consciência
Quem ainda está evolutivamente distante, observa e não enten- deve ressurgir em uma luminosidade tão clara, vasta e imedia-
de; mas quem chegou e vive o fenômeno atravessa uma revolu- ta, que nela não podem insinuar-se estas densas e opacas vi-
ção de pensamento e de sensações. O sorriso de quem nega não brações inferiores, como os sentidos, a razão, a observação, a
pode destruir esta realidade, tampouco suas pseudoexplicações distinção, a lógica. A visão torna-se pura, simples, unitária.
patológicas podem deter o desenvolvimento das leis da vida.
Sobrevêm o fenômeno da transumanização em Deus, e a alma, XVI. A NOITE DOS SENTIDOS
embora coberta de ridículo, se encontra em face de tão estupen-
das realizações, que não pode calar o seu arrebatamento. Insistem muito os místicos neste superamento sensório que
O fenômeno logo se revela como decisivamente super- eles alcançam mediante um processo de progressiva purifica-
racional, precisamente porque é transformação de consciência; ção. Bastante árduo é o início. Não são, pois, somente negação
em seu primeiro passo, supera e anula a razão. Como primeira de razão, treva de intelecto e renúncia de compreensão lógica,
ocorrência, vem, pois, a faltar o ponto de contato com a psico- mas também negação de sentidos, cerramento das portas da
logia inferior. É lógico, todavia, que quem voa abandone a ter- alma, ávida de projetar-se para o exterior, mas repelida para o
ra. A razão pode classificar o fenômeno, porém não pode senti- interior, cerramento das portas de satisfação às paixões, com-
lo. Transposto o portal, a razão não entra. É natural que perma- primidas assim para sublimar-se. Começam aqui as angústias
neça fora e, não encontrando repercussão alguma na extensão do místico, cuja alma se lhe dilacera, fibra por fibra. Para che-
da própria consciência, negue. Surgem, então, as acusações de gar à dilatação, faz-se mister atravessar esta zona de compres-
histerismo e de neurose, porque de cada boca não pode sair são. O desenvolvimento do fenômeno é dado por toda esta mu-
mais que a voz da própria compreensão. tação de equilíbrios, através da qual se desloca o centro de
Ingressemos no supersensório e no super-racional, que é uma gravidade da consciência. O fenômeno é essencialmente dinâ-
dimensão completamente diversa da normal dimensão humana. mico, e em seu movimento há dois momentos: atrofia do eu in-
Esta bitola não se presta a medir tais dimensões. Os próprios mís- ferior e sua reconstituição em um plano superior de consciên-
ticos não encontram palavras na linguagem de todos. A profunda cia. A primeira fase é, pois, a morte. Isso, porém, se torna ne-
essência do fenômeno permanece inadmissível para a razão, e es- cessário. Unicamente sob a condição de uma inversão do pro-
ta, vendo-se negada, nega por sua vez. Assim, ambas excluem-se cesso vital de expansão na zona humana, pode iniciar-se um
reciprocamente. Não sendo o fenômeno sentido como realidade processo de expansão muito mais potente na zona super-
entre as realidades e considerando que todo eu se faz invariavel- humana. Aquele sofrimento de renúncia, que parece absurdo,
mente medida das coisas, é ele então, por incompreensão, defini- mais não é, todavia, que uma potenciação de ímpeto para uma
do como um nada, o qual, todavia, para quem sente, contém o in- vida nova, muito mais intensa e mais vasta. A ressurreição no
finito, um nada vibrante de paixão e fecundo de esplêndida ativi- divino deve ser, pois, paralela, próxima à morte no humano. Só
dade, sobre-humanamente altruística e benéfica. Eis o que con- este misticismo é sadio, ativo, criador, porque se dirige para a
tém o repouso sem principio nem fim de Boëhme, o eterno silên- vida. Ai de quem se detiver só na primeira fase e demolir a
cio de Eckart, a tranquilidade e o silêncio da noite de São João consciência, sem reconstruí-la. Isto é suicídio, e não misticis-
da Cruz. E, assim, parece absurdo criar uma doutrina sobre um mo. Este deve avançar através das amplas vias da evolução,
sistema de negação sistemática dos meios dos sentidos e da men- que conduzem à luz e à alegria, e nunca recuar sobre as vias
te e que se possa conquistar uma visão a força de trevas. Em ver- estreitas da involução, que se fecham na cegueira e na dor.
dade, há uma primeira fase de negação e de treva, mas é um iní- Esta primeira fase de trabalho e de treva foi expressa pelos
cio apenas, depois vem a ressurreição. No entanto, para voar, é místicos como sendo a noite dos sentidos. Quero reproduzir,
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 199
nesta altura, uma página de conhecido cientista, Carrel, que em duos. Só então se tornará fecunda a ciência do homem. Difícil é
seu volume O Homem, Esse Desconhecido, conduz a ciência a este empreendimento. Como construir uma síntese?”.
confissões jamais ousadas, que pareciam eternamente fora de Não podemos contentar-nos com um ponto de interrogação.
sua competência. Se bem que Carrel nada tenha podido enten- Nossas almas têm pressa de saber e têm a necessidade e o direi-
der de alguns problemas, porque ciência e razão não são sufici- to de saber, imediatamente. Por que não compreende a ciência
entes para resolvê-los, pois seria necessário possuir outros mei- esta síntese? Por que não sabe criar neste sentido? Por que esta-
os e fontes de orientação, é muito interessante, contudo, verifi- ciona, encalhada, em sua segurança objetiva? Por que ninguém
car como certos altos fenômenos místicos possam ser suficien- ousa e arrisca, sem se preocupar com o sacrifício de reputação e
temente compreendidos e classificados pela ciência, quando é posição, jogando tudo por tudo, a realizar, através de uma pai-
consciente, alada e genial. Escreve Carrel17: xão arrebatadora, um sonho imenso?
“A iniciação ao ascetismo é árdua, e poucos têm a coragem Mas voltemos ao nosso fenômeno, para nele penetrarmos to-
de enveredar por esta via. Aquele que deseja empreender esta talmente, até ao âmago. Aquela primeira fase do fenômeno mís-
penosa viagem deve renunciar-se a si mesmo e à coisas do tico, feita de purificação e de treva, qualificada pelos místicos
mundo. Em seguida, permanece nas trevas da noite escura, ex- como a noite dos sentidos, não é ilógica mutilação de vida, mas
perimenta os sofrimentos da vida purgatória e, deplorando sua concentrado labor de evolução. Têm aquelas angústias a mais
fraqueza e indignidade, suplica a graça de Deus. A pouco e ampla justificação racional e experimental. Parece absurdo pos-
pouco, ele se desprende de si mesmo. Sua prece se tornará con- suir olhos e recusar-se a ver, possuir ouvidos e recusar-se a ou-
templação. Ele ingressa na vida iluminativa, já não pode des- vir, possuir sentidos e recusar-se a sentir, o amor e recusar-se a
crever o que vê. (...) Seu espírito transcende o espaço e o tem- amar, a vida e recusar-se a viver. A consciência humana, assom-
po, entra em contato com algo inefável e atinge a vida unitária, brada, interroga-se acerca do porquê daquelas vicissitudes. Mas
contempla Deus e com Ele age. (...) Devemos aceitar sua expe- recusa-se a ver, ouvir, sentir, amar, viver, só para ver, ouvir, sen-
riência tal qual nos é dada. Somente aqueles que têm vivido em tir, amar e viver mais e melhor, sempre mais e melhor. Eis para
prece podem julgá-la. A busca de Deus é, com efeito, um em- que serve a noite escura dos sentidos: deixa-se de raciocinar, pa-
preendimento muito pessoal. Mercê de certa atividade de sua ra intuir; de amar a criatura, para amar o Criador. Certamente es-
consciência, o místico tende para uma realidade invisível, que ta primeira fase de compressão é dor, mas a seguinte, de expan-
reside no mundo material e se estende além dele. Ele se lança são, é incomparável alegria. É justo, ao demais, que todo pro-
na mais temerária aventura suscetível de ser tentada, razão pela gresso evolutivo seja conquistado através de um esforço e um
qual pode ser considerado um herói ou um louco”. trabalho; isso é quanto impõe o equilíbrio da Lei18. É de dor este
Mais adiante, continua o mesmo autor, sob outro aspecto: primeiro movimento, porque reprime e inverte o ímpeto da al-
“Os homens mais felizes e mais úteis compõem um conjunto ma, que é expansão (evolução). Mas, bem analisada, esta inver-
harmonioso de atividades intelectuais e morais. (...) Existe, além são está igualmente, ou melhor, mais potentemente nas vias da
destes, uma classe de homens, que embora tão desajustados expansão e da evolução. Detendo-se junto ao quadro de vida pu-
quanto os criminosos e os loucos, são indispensáveis à socieda- ro e humano, a razão incorre facilmente em erro. Que são, com
de moderna: são os gênios, caracterizados pela monstruosa hi- efeito, dor e prazer senão a indiscutível voz do instinto, ciente
pertrofia de algumas de suas atividades psicológicas. Os grandes do que lhe é necessário? A necessidade da vida, necessidade
artistas, os grandes cientistas ou filósofos são geralmente ho- fundamental e universal em todos os níveis, é expansão; sua sa-
mens comuns, cuja função se hipertrofiou. Podem comparar-se tisfação é alegria e sua limitação, sofrimento. Mal uma resistên-
também a um tumor que se desenvolvesse em um organismo cia cede e permite a expansão do eu, este é invadido por indizí-
normal. São em geral infelizes essas criaturas não equilibradas, vel satisfação. E o eu, interiormente, está exercendo continua
contudo produzem grandes obras que beneficiam a sociedade in- pressão, porque é, por sua natureza, ilimitado e, como tal, não
teira. Seu desajustamento engendra o progresso da civilização. admite confins. Esta é a lei universal, constante em qualquer
Jamais a humanidade foi propelida pelo esforço da multidão, plano, ainda que seja sob formas diversas. O prazer é acresci-
mas pela paixão de alguns indivíduos, pela flama de sua inteli- mento; a dor, diminuição. Então a consciência não sabe, em um
gência, por seu ideal de ciência, de caridade ou de beleza”. primeiro momento, a causa desse processo de diminuição que
Tal é Carrel. Tem ele o mérito de encaminhar a ciência à tanto lhe repugna nem porque deve substituí-lo por aquele de
aceitação de duas grandes verdades: o valor do fator moral em aumento, que tanto a atrai. Mas, tão logo supere o primeiro mo-
face do problema do conhecimento e a possibilidade de supera- mento e prove as novas realizações, ela se lançará na ascese
mento do plano racional-analítico em dimensões conceptuais e mística com o impulso contido que teria dado às paixões huma-
planos superiores de consciência. A ciência avança e chegará nas. Porque se trata sempre de aumento, que é prazer.
através de longo caminho. Mas temos pressa, o trabalho é vasto, Se, todavia, é necessário morrer, o misticismo se baseia in-
não podemos perder tempo nas hesitações das hipóteses, nem no teiramente na fase reconstrutiva e não aceita a primeira negação
tardo controle da análise. Mal tocamos um fenômeno, é necessá- de vida senão como treva transitória, condição de luz permanen-
rio concluir logo, ir ao fundo, dar-lhe uma explicação exaustiva. te. O fenômeno equilibra-se consoante uma perfeita lógica. Tra-
Continua ainda Carrel: “Desde muitos anos, assistimos ao ta-se de remodelar a consciência segundo uma natureza mais po-
progresso dos eugenistas, geneticistas, biometristas, estatísticos, tente. As paixões humanas representam uma ordem de vibrações
behavioristas, fisiologistas, anatomistas, químicos orgânicos, bi- pesadas, que, recaindo na Terra, são incapazes de elevar-se na
oquímicos, psicólogos, médicos, endocrinologistas, higienistas, estratosfera do espírito e engolfar-se nos planos superiores, para
psiquiatras, criminologistas, educadores, pastores, economistas, neles penetrar e fixar-se. O desprendimento é uma inaptidão da
sociólogos etc., e sabemos quão insignificantes são os resultados consciência para responder a certas vibrações estabilizadas em
práticos de suas pesquisas. Esta imensa congérie de conheci- vastíssimos períodos de evolução biológica e um adestramento
mentos se encontra disseminada e difundida nas revistas técni- para responder a vibrações mais sutis e mais elevadas. Afirmei
cas, nos tratados, no cérebro dos homens de ciência, de modo que as vibrações representam uma ordem de ondas mais curtas,
que cada um possui um fragmento dela. Agora urge reunir essas rápidas e dinâmicas, mais penetrantes e, por seu ritmo mais in-
parcelas em um todo e fazê-lo viver no espírito de alguns indiví-
18
V. fig. 2: “Desenvolvimento da trajetória típica dos motos feno-
17
As citações que se seguem, traduzimo-las diretamente do original mênicos”. Todo fenômeno, antes de iniciar o arremesso de seu mai-
francês: L'Homme Cet Inconnu, Cap. IV e VIII, Librarie Plon, Pa- or desenvolvimento, dobra-se sobre si mesmo em uma fase de con-
ris, 1936. (N. do T.) tração. (N. do A.)
200 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
tenso e veloz, capazes de se elevarem. Aqui se trata de passar de XVII. A UNIFICAÇÃO
uma ordem de vibrações densas e pesadas a uma ordem de vi-
brações ágeis e sutis. Cientificamente, pode definir-se a ascética Já está iniciada a cisão, traçado está o antagonismo, cada
como a ciência das ondas-pensamento e, assim, do método de vez mais larga se torna a brecha. Por entre as fendas do invólu-
sua transformação em tipos cada vez mais imateriais, elevados, cro já penetrou algo, e possível já se tornou alguma fuga. Vivi-
penetrantes, velozes e potentes, constituindo o organismo de da foi uma nova experiência, e já não pode esquecê-la o espíri-
normas modeladoras dessa ressonância. Os estados de alma, o to, que torna a investir contra as paredes para sua libertação.
comportamento do espírito, contêm o método de operar a trans- Momentos emocionantes, de trepidante expectativa, em que se
missão e de captar tais ondas, método pelo qual se chega a pôr o debate tenazmente a alma e, de sua prisão, clama apaixonada-
espírito no estado de sintonia permanente com centros de cons- mente e cada vez mais comprime e intensifica seu esforço de
ciência e de emanação situados em mais altos planos. libertação, porque ouviu através das espessas paredes a primei-
Na ascese, avança-se gradativamente. Uma primeira vibra- ra ressonância, provou a primeira embriaguez do voo, sente ruí-
ção liga o espírito, por ressonância, com um plano mais alto. A rem nas trevas uma a uma as últimas barreiras, além das quais
repetição consolida a ligação, de modo que se torna possível ao explodirá a luz. Rasgam-se, a pouco e pouco, os véus, e ocor-
ser adaptar-se paulatinamente, até que logre estabilizar-se em rem os primeiros contatos. Sons divinos descem até ao espírito.
novo equilíbrio e transferir-se definitivamente para novo modo Aberta está a passagem, e por ela jorra agora a fonte divina. A
de ser. Por isso, justamente, insisti muito sobre a afinidade com alma estará inundada além de toda a sua ânsia.
a fonte transmissora na técnica das noúres, porque aí se iniciava Chega então o espírito de Deus, qual a irrupção de um in-
este processo de sintonização que aqui se completa. Na ascese cêndio que passa por sobre tudo, para incinerar totalmente os
mística tende-se para a unificação, portanto a sintonização deve resíduos das paixões humanas. Inicia-se, nessa altura, o proces-
ser integral, de toda a alma e com todo o universo, e não mais so da unificação. Mas este, tampouco, advém sem luta. A alma
parcial apenas, localizada em uma dada ressonância conceptual. está agora nua e é percutida até à profundeza. A subversão dos
Então, a evolução, após haver invertido por um momento sua equilíbrios ocasiona inauditas tempestades de sensações; no
direção, retifica-a e retoma-a para ascender vertiginosamente. O campo de forças da consciência, a superveniência das potentís-
ser supera a fase de negação e torna-se a afirmar com centupli- simas radiações provoca fulgurações e incêndios. A alma deve
cada potência. Cambiado o centro, a vida então muda de signifi- arder e abrasar-se para surgir renovada das cinzas de seu passa-
cado e valor; contém realizações diversas das humanas, para as do. A suprema força divina atraiu e cingiu em sua órbita aquela
quais tende. O organismo físico já não é um meio de expressão e alma, que, presa, põe-se a gravitar-lhe em derredor, cada vez
expansão, mas um cárcere, um meio de compressão. A morte mais vertiginosamente: e, quanto mais se constringem as órbi-
torna-se vida, e a vida se converte num processo da negação no tas, tanto mais violenta é a atração, mais ativa a absorção, mais
humano e de afirmação no divino. É um desnudamento de alma, próxima a unificação. Nesta unificação, a consciência sente
porquanto a certos níveis não pode chegar e neles ingressar se- perder-se como individuação distinta, já não sabe quem seja e
não a alma nua. Depois das primeiras vicissitudes, o espírito re- luta contra o seu dulcíssimo aniquilamento, feito de amor. Mas,
toma a direção, e verifica-se o fenômeno maravilhoso da inver- ao mesmo tempo, não pode deixar de expandir-se, porquanto
são da dor, isto é, de sua anulação. Conquista-se então a liberta- aquela atração é também sua atração, e os dois termos, unifi-
ção. Superada a dissonância, o espírito harmoniza-se no grande cando-se, não podem deixar de incidir fatalmente um sobre o
concerto do universo, a dor humana separa-se cada vez mais de- outro. A alma experimenta vacilações, sente expandir-se ilimi-
le e permanece cá em baixo, como coisa morta, entre as mortas tadamente, e isso é alegria suprema, porém já não se identifica,
escórias da vida. A dor é reabsorvida no amor, a vibração disso- já não se reconhece como eu distinto, e isso a entristece. Afigu-
nante é submersa no oceano de harmonias da Divindade. Ocor- ra-se-lhe que já não é possível existir sem representar tal eu;
re, então, o que ocorre na morte: o sofrimento, que deveria au- nessa imensa expansão, parece-lhe consumir-se e recua apavo-
mentar, é progressivamente reabsorvido na insensibilidade. Na rada. Abre-se-lhe aos pés a voragem do infinito, e não sabe me-
luta entre a dor e o amor, vence o amor; morre a dor, triunfa o di-la sua pequena consciência de antes. Esta experimenta a ver-
amor. Em meio dos tormentos, a alma canta. tigem das grandes altitudes e volve a prender-se àquela força de
Assim, emerge o espírito em um novo mundo. Isso, porém, atração divina, que a leva sempre mais além e acaba por con-
se realiza gradualmente. O sofrimento decorrente da mutilação sumi-la como coisa humana, para fazê-la ressurgir, integral-
de consciência no plano humano é compensado pela alegria da mente e só, como coisa divina.
expansão no plano sobre-humano. À proporção que ocorre, no Luta, sempre luta, mas agora dulcíssima luta. Nos primei-
nível inferior, o sufocamento da vida, desdobra-se o campo co- ros planos da ascese mística, o combate se travara entre a bes-
berto pela nova consciência; à proporção que se torna iminente ta e o anjo, que, mesmo exausto e dilacerado pelos ferimentos
o desprendimento, encurtam-se as distâncias e a alma, aproxi- recebidos, ainda se conserva; porém, agora, a luta se desenca-
mando-se da meta, exulta com seu triunfo. A vida dos místicos deia entre o divino e o humano. Diz Ruysbroeck, em sua obra
é o percurso desse trajeto. O Ornamento das Núpcias Espirituais, no capítulo “O Com-
Ascetas existem duros e insensíveis, que nada mais sabem di- bate”: “Os assaltos do amor colocam frente a frente dois espí-
zer além de renúncia, em que tudo está ainda imerso na noite da ritos: o Espírito de Deus e o nosso. Começa então a luta. Nos-
separação humana; e ascetas há que, chegados a nível mais alto, so espírito inclina-se para Deus e quer possuí-Lo. O impulso
cantam o amor. Há os que semeiam e os que colhem, os que se do amor tem por cúmplice o ato secreto de Deus, ardentemen-
martirizam e os que triunfam, mas todos percorrem as diversas te buscado. O duelo ocorre na profundeza. São de espantosa
fases de idêntico ciclo. No princípio, o caminho é inçado de difi- intimidade os ferimentos recebidos pelos combatentes; eles se
culdades e resistências. O eu inferior não depõe facilmente as atiram raios que lhes abrasam a força ardente, e o ardor do
armas e, quando voluntariamente o faz, organiza uma defesa in- combate aumenta a ansiedade do amor entre eles. Assim, am-
consciente em que reafloram os impulsos milenários, indomados, bos se fundem. O espírito de Deus agracia-nos, e o nosso re-
do pretérito biológico. Então, na profundeza da carne e da pai- tribui, e desse duplo impulso nasce a força do amor. Esses
xão, ressoam sussurros ameaçadores, e a fera se revela, olhos fluxos e refluxos fazem multiplicar-se a fonte do amor. Des-
sangrentos, ferozes, para dilacerar. Estão precisamente unidos, sarte, o contato de Deus e o furor de nosso desejo conjugam-
um ao outro, os dois tremendos inimigos – espírito e matéria – e se na mais inefável simplicidade. Invadido e possuído do
a luta é atroz, interior, sem tréguas. Não raro, vence a besta. amor, o espírito, por incríveis esquecimentos, chega a não re-
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 201
cordar-se mais senão de seu possuidor. Sente-se abrasado e, Diz-se que a maior punição das almas culpadas consiste na
ao engolfar-se no abismo daquele a quem agora toca, vendo o privação de contemplarem a Deus, o que significa permanecer
próprio desejo e a própria avidez superados pela realidade que fora das grandes correntes da vida. A maior alegria das almas
ele vive, assiste estupefato ao próprio desfalecimento. Mas, eleitas reside precisamente neste contato com Deus, nesta su-
reunindo, num supremo esforço, todas as suas forças, encontra prema embriaguez de harmonização, nesta fusão completa.
na profundeza de sua atividade a energia necessária para mu- Mas é inútil acumular palavras. Aqui me atormento com ex-
dar-se a si mesmo em amor. Então, o santuário íntimo de sua primir o inefável. Esse contato de amor, que em si torna sen-
essência criada, em que principia e acaba sua atividade terres- sível a presença de Deus, é uma sensação tão sutil, que só se
tre, está em suas mãos. E domina, com suas virtudes e seus atinge mediante apuração e aguçamento da própria sensibili-
poderes, a multiplicidade do mundo”. dade. É uma nota tão alta e de tal frequência vibratória, que
É através destas sensações, confirmadas peles místicos, que não a percebe o ouvido comum; se a percebesse, ele se arre-
age o processo progressivo que vimos: vibração, ressonância, bentaria, tão intenso é o seu potencial. Para atingi-la, é neces-
sintonia, desprendimento, purificação, afinidade, atração, sário, inclusive para a consciência madura e adestrada, entrar
amor, unificação. No ápice do desenvolvimento do fenômeno gradativamente em sintonia e elevar-se em tensão. A isso se
está a unificação. Trata-se de um procedimento de amor, base chega pouco a pouco, e pode ajudar aquele processo de sinto-
da vida. Parece que o estado mais perfeito e completo do ser, nização noúrica, condição de recepção inspirativa, que des-
que é o da unidade em Deus, tenha sido outrora, como que crevi em meu precedente volume 21. A contemplação nos guia
precipitado, por involução, no cindido dualismo do amor sexu- na casa de Deus. A auscultação das harmonias do criado é im-
al, em que o ser, dolorosamente desdobrado em dois, deva per- portante via musical de elevação, porque nos faz assistir cons-
correr ansiosamente, cada dia, o trabalho de reconstrução da cientes ao pensamento de Deus.
unidade através das vias imperfeitas, instáveis e insidiosas do Chegada a esse estado, a consciência está, não só metafori-
amor humano. O misticismo remonta as vias da evolução, que camente mas também realmente, fora de si, porque está em novo
levam à liberação de tais limitações, de todas as cisões e sepa- plano de existência e fora de sua dimensão conceptual. Diz-se,
ratismo, que são a característica dos planos inferiores, em que então, arrebatada em êxtase. O êxtase é um estado tremenda-
a unidade se fragmenta e se pulveriza no múltiplo e no relati- mente ativo e supremamente consciente, é o estado de percepção
vo. Trata-se de um grande esforço de reabilitação do ser invo- da unificação. Esta pode ser inconsciência somente para os in-
luído, de reconstrução da integridade e imensidade do eu, hoje conscientes nesse plano. O êxtase é a última fase do fenômeno
perdida como se fora punição. Trata-se de reconquistar, em místico, o coroamento da ascese, o vértice atingido, não racio-
Deus, o verdadeiro amor universal para todos os seres 19. Em nalmente, como fizéramos em princípio, mas sensitivamente.
baixo, ele se manifesta humanamente semelhante a uma chuva Não se trata aqui de apenas entender o fenômeno, porém, muito
de doações, que o espírito difunde totalmente em torno de si, mais do que isso, trata-se de vivê-lo. Tal é a diferença existente
isto é, semelhante a uma forma de sacrifício e de amor por to- entre observar e ser. O êxtase é a revelação consciente da união,
dos os homens e todas as criaturas, na qual se exprime clara- é a percepção da realização perfeita da identificação vibratória.
mente o seu caráter universal. Estes seres representam sobre a A “graça”, tão discutida, é um fenômeno real, cientificamente
Terra, canais de expansão divina. admissível, isto é, uma descida de corrente que eleva para a sin-
Se o aspecto racional do fenômeno, como já foi exposto, é tonização e tende para a unificação; é a emanação do Alto, na
intelectualmente compreensível, o seu aspecto sensitivo é abso- qual a Divindade se revela ativa e move suas atrações. O estado
lutamente inimaginável e incomunicável a quem não sente e, de graça é o estado de harmonização alcançado.
portanto, não pode experimentar. Faltam palavras e expressões Eis o glorioso epílogo da via longa e dolorosa que o místi-
na linguagem, falta, sobretudo no coração humano, a capacida- co percorreu. O poeta se põe a caminho, mas só o místico che-
de de vibrar e de responder a tais emoções. Como se pode ex- ga. O poeta tenta e invoca, o místico realiza e ama. Assim, o
plicar a perda de individuação distinta de consciência, a identi- místico é o poeta completo, íntegro, que alcançou toda a reali-
ficação por reabsorção no princípio do universo, a transumani- dade de seu sonho. O êxtase é a síntese suprema de toda arte,
zação da dor por harmonização, se tais estados não existem no porque o é de toda concepção e de toda beleza. Assim os mís-
plano de consciência normal? Eis aonde chega quem logrou ticos são poetas imensos, vertiginosos, maravilhosos. Não se
romper o invólucro; um contato realmente contínuo, interno e ausentam da vida, mas nela estão mais intensamente presentes.
profundo, que é unidade. Os amores humanos têm a mesma O místico retorna às coisas, mas com visão divina, retorna às
tendência, mas, enclausurados no invólucro físico, jamais po- criaturas e torna a amá-las, porque nelas está Deus e nelas re-
dem chegar a essa identificação completa, deixando sempre encontra Deus. Todas as coisas não possuem mais do que um
uma distância que divide, um resíduo de egoísmo. Mas este não significado e um poder: o de elevar seu espírito a Deus. Seu
está entre os amores, tantos entre tantas formas, mas é o Amor. egoísmo se transformou no amor de um eu tão vasto, que
São Paulo nos disse que o amor é a estrada mestra, ou melhor, a abrange toda a Criação e não pode conter senão Deus; já não
única via do misticismo, a graça mais necessária do que qual- bastam seus pobres braços humanos para cingir o infinito. O
quer outra. É ele quem clama: “Vivo autem iam non ego; vivit místico, então, parte em dois tempos o ritmo do seu dinamis-
vero in me Christus” (“Já não sou eu que vivo, mas é Cristo mo: contemplação e ação. E os dois ciclos entrelaçam-se,
quem vive em mim”)20. “A razão e a inteligência”, acrescenta completam-se, nutrem-se reciprocamente. Primeiro, engolfa-se
Ruysbroeck, “detêm-se na porta. Mas o amor, que é o amor, o no abismo divino para alcançar sua luz e energia. Depois, des-
amor que recebeu uma ordem, quer corajosamente avançar, se ce novamente entre as misérias humanas para exercer o bem e
bem que cego como os outros. Ele conservou na própria ceguei- aliviar a dor. De sua altitude, ele se abaixa de braços abertos.
ra o instinto da alegria. Assim, quando, ante a porta, a inteli- O sulco tangível que deixa atrás de si a ascese do místico é fei-
gência se prostra e sucumbe, diz o amor: Entrarei”. E o amor to de obras de bondade: “O amor de Deus não pode ser ocio-
entra, e a morte é vencida neste triunfo. so”. Estas consequências práticas, motivo de cisão no nível
humano, deve a sociedade compreendê-las. Cito a propósito
19
Esses problemas são amplamente desenvolvidos e elucidados em outras palavras simples e sublimes de Ruysbroeck: “A consola-
outras três obras do mesmo autor, posteriormente escritas: Deus e Uni- ção interior é de ordem menos elevada do que o amor ativo que
verso, O Sistema e Queda e Salvação. (N. do T.)
20 21
Epístola aos Gálatas, 2:20. (N. do T.) As Noúres, Op. cit. (N. do A.).
202 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
se põe, espiritualmente ou corporalmente, a serviço dos po- a sua ignorância. Contudo, na consciência estão as mais pro-
bres. Por isso, eu vos digo: ainda que sejais arrebatados em êx- fundas realidades e as mais vastas possibilidades da vida.
tase tão alto quanto São Pedro ou São Paulo, ou quaisquer ou- Ainda não se sabe nada, no entanto a consciência já é o germe
tros que queirais, se ouvirdes de um doente que tenha necessi- de todos os desenvolvimentos. Se qualquer coisa nasce no
dade de uma sopa quente ou de qualquer outro socorro do mundo exterior, em qualquer dos seus campos, desponta sem-
mesmo gênero, eu vos aconselho que vos desperteis por um pre daquele mistério interior. Se o divino desce sobre a Terra,
instante de vosso êxtase e façais aquecer a sopa. Abandonai é por meio daquele trâmite.
Deus por Deus; buscai-O e servi-O em seus membros: nada O problema é, pois, palpitante, atual, e também prático. Não
perdereis na permuta. O que por caridade abandonardes, Deus se pode esquecer ou abstrair aquilo que não se vê e não se toca,
vo-lo restituirá com muitas outras perfeições”. porque justamente ali se encontram a causa e a origem das coi-
sas. E cada um de nós traz em si essa unidade que se chama eu,
XVIII. INCOMPREENSÃO MODERNA essa síntese que se chama consciência. Esta é o que de mais vi-
vo temos em nós, e tão vasta é, que não lhe conhecemos os li-
Posta em frente a essa psicologia, a mentalidade moderna mites. Vemo-la abismar-se em camadas profundas, que não sa-
não compreende. Contenta-se em tirar vantagens das suas con- bemos e não ousamos sondar. Ela evolve e se transforma conti-
sequências utilitárias, inteiramente imersa no eterno jogo da nuamente em nós, mas está sempre presente. Não a vemos, no
ambição. Despreza quem se recolhe à solidão e o define como entanto as nossas mais íntimas sensações e emoções, a alegria e
ocioso e misantropo; só admite o trabalho quando rumoroso, a dor, estão nela, e não no exterior; a nossa parte mais vital e
porque só compreende o que lhe fere os ouvidos. Aquela soli- importante se encontra nesse imponderável. Esse centro estabe-
dão parece vazia, entretanto encerra uma terrível atividade in- lece contatos com tudo o que o cerca e, apesar disso, permanece
terior. O místico mantém outras relações vitais e, se foge por sempre distinto, gigantesco e indestrutível.
momentos ao contato humano, é para nutrir-se no contato divi- O homem moderno, que compreendeu as leis mecânicas de
no. O centro das suas atrações está colocado além da atmosfera tantos fenômenos, zombando assim de tantos terrores, acredita
terrestre, sua alma não ama a vida, senão enquanto ela repre- com isso ter destruído o mistério e resolvido o enigma da vida.
senta uma missão de bem e uma prova para levá-lo a Deus. Pa- E, num simplismo primário, não vê que o mistério é infinito e
ra onde quer que o seu olhar se volte, não procura e não ama que nada mais fez do que ampliar os seus limites. Não vê que
outra coisa, senão a Deus. Ele o sente identificado na sua pró- no mundo sutil do espírito se encontram leis grandiosas e rea-
pria essência, presente e ativo no mais íntimo de si mesmo. ções tremendas. Por isso quem tocou e viu, se revolta quando a
Todas as imagens caíram. Só Deus permanece, tonante voz in- inconsciência nega e sorri. Por isso me esforço sem tréguas pa-
terior, no silêncio exterior das coisas. A alma do mundo é va- ra fazer que se veja e saiba. Nestas questões elevadas e distan-
zia e se projeta ao exterior, para cobrir o seu vácuo horrendo; a tes, “que não servem para nada”, agita-se o problema das civili-
alma do místico é plena e ama a solidão, que lhe permite proje- zações futuras. Nestas pugnas, não escritas, por certo, para
tar-se ao interior e sentir a própria plenitude. Ele não precisa exercício retórico, agita-se uma vida muito mais intensa, mo-
aturdir os sentidos para esquivar-se à própria desolação; não vem-se forças titânicas, tomba a semente de novas orientações,
teme, como o mundo, os silêncios em que a alma se manifesta. que amanhã conquistarão valores imensos.
A realidade da vida está nesse recato em que a palavra cessa. O espírito humano deve, por irresistível e fatal impulso de
Só quando atingimos a profundidade daqueles silêncios, a rea- evolução, projetar-se além das barreiras que hoje o limitam,
lidade levanta a fronte e nos encara. A grande claridade se en- além das dimensões do seu atual concebível. Tem-se o dever de
contra no fundo, além da mais densa treva. arrancá-lo da sua ordem de vibrações voltadas para a Terra e
O plano de vida do místico está colocado muito acima da projetá-lo, com toda a sua potencialidade, nesta outra ordem de
Terra. Ele também sofre e goza, teme e espera, lamenta-se e vibrações, que querem subir, superar e romper os espaços, para
canta e ama, mas tudo isso se passa em outro nível de consciên- a fusão com o ritmo cósmico.
cia, através de formas, reações e repercussões diferentes. A ori-
entação conceptual e sensória, a maneira de ver as suas relações XIX. O SUBCONSCIENTE
com os fenômenos, é completamente diversa. Ele capta, num
todo, uma nova ordem de ressonâncias. Conquistou um novo Conquanto se insurja em protesto a multidão dos cegos ra-
sentido, o sentido místico, que é o sentido da harmonização ciocinadores, o homem não pode renegar o indestrutível pres-
com o universo. As suas vias são outras. O homem atual avança sentimento de seus futuros desenvolvimentos de consciência.
pelas vias do trabalho, do domínio sobre o mundo, e quer des- Tem-se a sensação de que, sob o minúsculo eu normal de su-
truir a dor pelo exterior. É a via longa da evolução, que vence perfície, se estende em profundidade um eu ilimitado. E o ho-
os obstáculos, doma as resistências, mas prende o espírito. O mem inquire de si mesmo: que coisa, pois, sou eu? A ciência
místico segue o caminho curto, avança pelas vias da concentra- percebe que o mundo fenomênico, já imenso em sua superfí-
ção, do domínio de si mesmo, e destrói a dor no íntimo, não cie, é de uma complexidade, perfeição e sabedoria que progri-
aniquilando-lhe as causas, mas superando-as, com uma diferen- dem à medida que é observado a maiores profundidades. A ci-
te sensibilidade. Ele não toca e não modela o exterior, mas li- ência é algo que, perpétua e ilimitadamente, evolve na direção
berta o espírito, supera tudo, porque se eleva sobre a Terra. dessa profundidade. Ela mesma é constrangida, por leis de
Essas duas psicologias são contrárias, e não há possibili- evolução, a progredir e a lançar-se nesses novos campos. E já
dade de se comunicarem. Exatamente por isso me objetarão a percebeu que a personalidade humana se estende em zonas que
não-aplicabilidade de tudo isto, justificando-se a indiferença estão além dos limites normais da consciência racional e práti-
por certos problemas que “não servem para nada”. E então se ca; deve ter verificado a existência de um campo subterrâneo
quererá relegar para o patológico e atirar aos ângulos esqueci- de consciência, carregado de motivos, repleto de germes, de
dos da história certos fenômenos. Não obstante, o problema que tudo isso se desenvolve e aflora na normal consciência de
psicológico é sempre o mais angustiante, e o mistério da per- superfície. Denominou esse campo de subconsciente ou cons-
sonalidade humana é o mais tormentoso enigma. Este é, por- ciência subliminal, ou coisa semelhante.
tanto, o estudo mais moderno, mais profundo, mais original “Nestes últimos anos”, escreve Paolucci em seu opúsculo Os
que se possa fazer. A fé nos fala com palavras poderosas, mas Problemas do Espírito, “a ciência relativamente nova da psico-
vagas, e a ciência apenas balbucia; quando é honesta, confessa logia começou a projetar viva luz sobre o mistério da personali-
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 203
dade humana. Numerosas pesquisas e estudos experimentais do “É uma faculdade estranha: apreender a realidade, sem o
funcionamento normal e anormal do espírito humano conduzi- concurso do raciocínio, parece-nos inexplicável. (...) É assim
ram os psicólogos a descobrir que considerável quota de nossa que o conhecimento do mundo exterior nos chega muitas vezes
atividade mental se produz sem que o percebamos. Esta cerebra- por vias diferentes das dos órgãos sensoriais 24”.
ção inconsciente, como a denominam, parece confirmada por Assim é encarado, por necessária consequência de averi-
nossos conhecimentos psicológicos. Daí procedem as discussões guações de fenômenos, o subconsciente; mas não se lhe com-
acerca do subconsciente. Segundo aqueles psicólogos, o sub- preendeu a natureza, a extensão, o conteúdo. Cada autor tem
consciente parece ser a sede da inspiração e da intuição. Poetas, criado um seu diverso subconsciente e nenhum o tem enqua-
pregadores, musicistas disso podem dar testemunho. Os pensa- drado na fenomenologia universal, na teoria mais profunda da
mentos de maior apreço são os que nos chegam sem ser invoca- gênese e do desenvolvimento do espírito e das metas da per-
dos e que constituem as fulgurações do gênio. As melhores des- sonalidade humana25.
cobertas científicas realizam-se, muitas vezes, graças ao que os Para James e para Myers, o subconsciente é o primitivo, o
psicólogos chamam de subconsciente. O investigador sente pri- fundamental; o secundário, a derivação é a consciência, que é
meiro uma intuição e, depois, entrega-se ao trabalho e pede à um produto da ambientação. Jastrow acrescenta que “acima da
experiência que a justifique. A razão, que nada mais é do que o consciência existe uma organização psíquica anterior a ela, a
nome ordinariamente dado por nós ao exercício consciente de qual é sem dúvida a fonte de que ela se originou”. Chegou-se a
nossas faculdades mentais, arrasta-se penosamente sobre quatro sentir confusamente a existência desse intelecto profundo, mais
pés; a intuição impulsiona-se com um bater de asas”. A intuição, vasto do que aquele intelecto de superfície que chamamos ra-
pois, que está na profundeza, é um contato mais próximo da rea- zão; entendeu-se que esta síntese da vida não pode suster-se por
lidade do que a razão, que está na superfície. “O método discur- sua força e que, como ilha emergente do oceano, deve apoiar-
sivo e dedutivo”, diz Jastrow em A Subconsciência, “é o cami- se, para emergir, em bases tanto mais vastas quanto mais se
nho penoso da lógica, montada em pernas de pau, enquanto a in- desce em profundidade. Para entender e resolver o problema,
tuição é o voo possante do inconsciente, que, num instante, se não basta haver notado tudo isso e permanecer na dimensão ra-
transporta da Terra ao Céu”. Muitos, porém, como Geley, idea- cional, é necessário sair, de uma vez por todas, dessa dimensão
lista, mas positivista, em seu De l'Inconscient au Conscient, não e lançar-se naquela profundidade, e isso de olhos abertos, isto é,
chegaram ao fundo e não compreenderam. O próprio Schope- permanecendo consciente em outras dimensões. É necessário
nhauer vê um abismo intransponível que separa o inconsciente possuir em si o fenômeno e sondá-lo por introspecção. É neces-
do consciente e, em vez de lançar pontes, corta-as. Outros se sário ter a coragem, que a ciência não tem, de concluir por uma
avizinham, averiguam, sem contudo explicar. Assim o faz Ri- concepção única dos fenômenos. É necessário ter anteposto a
bot: “L'inspiration revèle une puissance supérieure á l'individu tudo isso uma orientação completa, intelectual e moral, do pró-
conscient, étrangére a lui quoique agissant par lui: état que tant prio eu no seio do funcionamento orgânico do universo.
d'inventeurs ont exprimé en ces termes: Je n'y suis pour rien”22.
XX. O SUPERCONSCIENTE
Não posso furtar-me a citar, nessa altura, uma página do co-
nhecido volume O Homem, Esse Desconhecido, de Alexis Car-
Não posso repetir aqui sobre que bases assentou o proble-
rel. Esse livro, que me caiu às mãos por acaso, enquanto corri-
ma, coisa já feita em outra parte26. Naquela obra desenvolve-
gia provas tipográficas um ano depois de eu haver concluído
ram-se teorias que atribuem exato valor ao conceito de sub-
este meu trabalho, me surpreende pela identidade de pensamen-
consciente. Resumamos. A psique humana é um organismo em
to de seu autor com minha experimentação. Coincidência estra-
contínuo crescimento (expansão) por descida na profundidade,
nha entre indivíduos tão diversos e de ambientes tão distantes,
mediante estratificações das sínteses das experiências da vida,
que não pode deixar de nos impressionar, pois demonstra que
as quais gravitam para o interior. Essa assimilação contínua,
certas ideias, por mim vividas (expressas em As Noúres) e por
operada em zona de livre arbítrio, se fixa no determinismo dos
outros julgadas absurdas e inadmissíveis, pelo contrário estão
equilíbrios estabilizados na trajetória do destino. O subconsci-
no ar, de uma a outra extremidade do mundo, e o espírito dos
ente é precisamente a zona dos instintos formados, das ideias
mais evolvidos já está preparado e concorde para apreendê-las. inatas, dos automatismos criados pela repetição habitual da vi-
Escreve o Dr. Carrel, um dos mais eminentes cirurgiões ex- da. A lei do meio mínimo 27 limita o esforço consciente só no
perimentadores do Rockfeller Institute for Medical Research: campo ativo da construção nova. O resto, o que foi vivido e
“É certo que as grandes descobertas científicas não consti- constitui síntese completa, vai jazer em repouso (inconsciência)
tuem obra exclusiva da inteligência. Os cientistas de gênio pos- nos estratos do subconsciente, de onde tantas qualidades e ins-
suem, além do poder de observar e compreender, outras quali- tintos nossos emergem como produtos completos, cujos termos
dades, a intuição, a imaginação criadora. Com a intuição, eles determinantes nos escapam. A consciência de superfície é, pois,
apreendem o que permanece oculto aos outros, percebem rela- um tentáculo ativo, consciente, porque em fase de trabalho. O
ções entre os fenômenos aparentemente insulados, advinham a subconsciente é um imenso repositório de reservas, de produtos
existência do tesouro ignorado. (...) Sabem, sem raciocínio, sem estáveis e fixados depois do período de formação consciente.
análise, o que lhes importa saber. É o fenômeno outrora desig- Ora, aqui começa a terrível confusão dos psicólogos, quan-
nado pelo nome de inspiração. do eles julgam este subconsciente a fonte da inspiração, a sede
“Encontram-se, entre os homens de ciência, dois tipos de es- da intuição, o germe da criação intelectual do gênio, pois há
pírito: o lógico e o intuitivo. A ciência deve seu progresso tanto uma terceira zona, que chamo de superconsciente, a qual, por
a um quanto a outro desses tipos intelectuais. (...) Somente os
grandes homens, ou os puros de coração23, podem ser transpor- 24
Traduzimos diretamente do original francês L'Homme Cet Inconnu,
tados pela intuição às culminâncias da vida mental e espiritual. Cap. IV, os trechos citados. (N. do T.)
25
Cfr. A Grande Síntese, “Teoria da evolução das dimensões”, Cap.
22
“A inspiração revela uma potência superior ao indivíduo consciente, XXXV; “As origens do psiquismo”, Cap. LXII; “Técnica evolutiva do
que, embora se manifeste por ele, lhe é estranha; é um estado que mui- psiquismo e gênese do espírito”, Cap. LXIV; “Instinto e consciência,
tos inventores têm traduzido nestes termos: não tomo absolutamente técnica dos automatismos”, Cap. LXV etc. (N. do A.).
26
parte nisso”. (N. do T.) V. nota 4, no final do capítulo precedente. (N. do A.).
23 27
Quanto não insisti em As Noúres e aqui também sobre o valor do Sobre essa lei ou principio do meio mínimo, veja A Grande Sínte-
fator moral! (N. do A.) se, Cap. XL – “Aspectos Menores da Lei”. (N. do T.)
204 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
estar igualmente fora da consciência normal, foi confundida ga-se tudo explicado. E, todavia, a neurose continua sendo para
com o subconsciente. E entre os dois há a diferença do dia para a própria ciência, nos domínios da anatomia patológica, um
a noite. Se o subconsciente pertence ao passado, o superconsci- enigma; fora desses domínios, mais no alto, a ciência é, por mé-
ente pertence ao futuro; o primeiro aprofunda-se nos estratos todo e premissas, incompetente. Certas realidades mais vastas
involutivos dos antecedentes biológicos, o segundo emerge nos serão eternamente negadas, porque incompreensíveis, se não se
planos evolutivos dos superamentos espirituais. Estamos nos sair do campo circunscrito por tal método e por tais premissas.
antípodas. Neste volume, falando de mais altos níveis de cons- Resumo, pois, o quadro da estrutura da consciência humana.
ciência, que da razão ascendem à intuição e à visão do êxtase Ela se divide em duas partes: o consciente e o inconsciente. O
místico, temo-nos movido e avançado sempre e exclusivamente primeiro é a consciência conhecida, normal, racional, prática,
no campo de superconsciência, subindo precisamente ao longo que todos distinguem. O segundo se compõe de duas zonas: o
das fases de uma realização sua cada vez mais intensa. subconsciente, que pertence ao passado, e o superconsciente,
Em todo esse caminho, a consciência é, pois, uma pequena que pertence ao futuro. Seus extremos se perdem no infinito
zona de luz, que, partindo da primeira emersão do psiquismo ori- graduar-se da ascensão evolutiva, mas eles se aproximam num
undo das formas dinâmicas, prossegue através da fase biológica e ponto que continuamente se desloca do sub ao superconsciente,
se aventura agora na fase psíquica e no seu superamento na fase mas que é sempre o centro consciente em que o mar do incons-
hiperpsíquica, em que a consciência se encaminha para tornar-se ciente aflora à superfície da sensação, como da ação construti-
consciente em dimensões hoje super-racionais para a média nor- va. O subconsciente contém e resume todo o passado e o leva
mal, imersa nas trevas do inconcebível. A consciência racional é até ao limiar da consciência; o superconsciente contém, no es-
um pequeno vaga-lume, um risco iluminado, de trabalho e cria- tado de embrião, todo o futuro que está em expectativa de de-
ção, que se desloca ao longo desse extraordinário trajeto, cujo senvolvimento. Segundo o próprio grau de evolução e maturi-
princípio é abandonado em baixo e cujo fim se perde no alto, dade, as várias consciências estão diversamente situadas ao
além de toda nossa medida. Assim o subconsciente, conquanto longo desta linha, sobre a qual podemos desenhá-las como uma
invisível, porque não emerge à luz da consciência, contém as ba- zona em marcha. Observemos a figura 3.
ses do edifício e representa os fundamentos que o sustentam.
Embora não apareça no pormenor, ainda assim ele sobrevive
completamente como síntese e, como tal, é suscetível de ser in-
vestigado. Se o subconsciente é superado e esquecido como labor
construtivo consciente, todavia nós o possuímos íntegro como re-
sultado; é aquele instinto tão rico de misteriosa sabedoria, que
rege tantas ações nossas e é tanto mais sólido quanto mais pro-
fundamente radicado nos estratos da evolução biológica.
Do outro lado, como um pressentimento, lampeja em jatos o
superconsciente. Ora, o gênio se inspira nesse pressentimento, e
não no subconsciente, que contém somente os fundamentos do
edifício, e não a sua elevação; o gênio cria só como antecipação
de evolução, qual tentáculo lançado no futuro, e não por remi-
niscência de um passado inferior. Nele, a zona de consciência
deslocou-se para além do normal, aos planos mais altos da evo-
lução. Nas profundezas do subconsciente se pescará o passado
involvido, nunca o futuro superevolvido, que chega. Assim, o
eu se desloca do subconsciente ao superconsciente, através da
fase presente, chamada consciente. Esta é zona lúcida de cons-
ciência racional. O resto nos escapa sob formas de consciências
veladas, intermitentes, inimagináveis. Mas o resto é o nosso
maior eu da eternidade, que está para lá do nascimento e da
morte e com o qual o ser se identifica, reencontrando-se todo a
si mesmo e, então, não conhece mais fim.
Ora, se esta zona não-consciente é aquela que nos põe em
comunicação com a realidade da intuição e com a Divindade
nos estados místicos, é para se horrorizar, quando se ouve dizer
que a graça de Deus se manifesta no homem através do sub-
consciente ou que o homem, para alcançá-la, se transfira ao
subconsciente, pois a graça é fenômeno evolutivo, e não involu-
tivo; de superconsciência, e não de subconsciência. A graça é
uma elevação ao superconsciente; é através deste que ela se di-
rige ao homem; é a esse plano que o convida a se transferir. Por
aí se vê como quem não sabe superar a dimensão racional per-
manecerá impotente em face de tais concepções e tateará cons-
tantemente na treva. Só uma tão completa cegueira pode fazer
confundir, na mesma forma de não-consciência, dois extremos Figura 3
opostos: o subconsciente e o superconsciente. A concepção ne- Querendo figurar o desenvolvimento do fenômeno de evo-
bulosa dos psicólogos modernos apenas tem vislumbrado esta lução da consciência sobre uma faixa, isolamos na figura, para
zona de mistério e, sem sondá-la, a ela tem relegado todo o in- comodidade de observação, um trecho do percurso, e isso para
decifrável do fenômeno psicológico. Ao invés de tentar pelo três tipos de consciências diversamente desenvolvidas: a, b, c.
menos uma explicação para o fenômeno, ela se contentou em A zona de luz exprime, em sua extensão, a zona de consciên-
batizá-lo com uma palavra: neurose. Maravilhoso modo de ex- cia; a zona negra exprime a zona de não-consciência, ou o in-
plicar! Cunha-se uma palavra de origem grega e, com isso, jul- consciente. Este se estende por dois lados: à esquerda, temos
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 205
o subconsciente; à direita, o superconsciente. Sempre esfu- SEGUNDA PARTE
mando nessas duas zonas de treva, a zona consciente avança
do sub ao superconsciente, segundo o progressivo grau de A EXPERIÊNCIA
evolução das consciências a, b, c etc. Uma vez superados, os
instintos são gradativamente abandonados fora da consciên- I. EM MARCHA
cia, na zona de treva do subconsciente, à medida que a cons-
ciência conquista com o seu labor (a vida) o superconsciente e Abandonemos os cegos negativistas; já é tempo que eu
o faz desabrochar em sua luz. Isso pode ser comparado ao prossiga, embora sozinho, na minha experiência do fenômeno.
caminho do caruncho na madeira. Ele (a consciência) avança Expus os fundamentos, e agora podemos avançar. Inicialmente,
(evolução) perfurando incessantemente, através da madeira, enquadrei o fenômeno místico no mundo dos conceitos moder-
um canal, de cujos produtos (esforço de vida, assimilação de nos; depois expus, no estudo do diagrama da ascensão espiritu-
provas, criação de novos instintos) ele se apropria e se nutre, al, o aspecto teórico e científico bem como sua técnica funcio-
assimilando-os, ao mesmo tempo em que conquista novo es- nal, dando a demonstração lógica do fenômeno nos seus vários
paço, que torna seu (o superconsciente), enquanto abandona o momentos e nuanças, para que a razão ficasse satisfeita; em se-
velho (subconsciente), no qual deixa os excrementos (instin- guida explorei o seu aspecto prático, como realização espiritual
tos superados) de sua vida e de seu trabalho. na metodologia mística e dele ofereci a descrição genérica co-
Se quiséssemos ser mais precisos, intentando reduzir a mo uma sensação, referindo-me, especialmente, às experiências
termos de espaço o que não é espacial, deveríamos dizer que dos místicos. Aqui termina minha tarefa de estudioso, de obser-
das duas não-consciências, consideradas em relação com a vador racional distinto do fenômeno.
consciência lúcida de superfície, a superconsciência se esten- Tudo isto, porém, não é o bastante. Entro no fenômeno, vi-
de em profundidade, nas zonas interiores, avança para Deus e vo-o e descrevo minha experiência. O que o fenômeno perde,
tende para a unificação com o todo, a que se chega, pois, por limitando-se como extensão de casos observados, conquista em
introspecção. A subconsciência, ao contrário, estende-se em profundidade de sensação, em vivacidade de expressão, em so-
direção oposta, não sob, mas para o exterior da superfície; é lidez de experiência. Esta segunda parte é para os que amadure-
filha das experiências do mundo exterior e nele é abandonada. ceram. Para aqueles que sentem e podem, por isso, compreen-
O eu avança entre duas zonas igualmente não lúcidas, mas sua der. Esses descobrirão um mundo; os outros não poderão entrar.
progressão é para o interior, sua evolução o afasta do sub- Alcançamos um campo de misticismo que viverá nestas pagi-
consciente e o leva para o superconsciente. Valores opostos: o nas; um misticismo experimental. Para me ater ao caso visado,
primeiro é um resíduo, o segundo, uma conquista; o primeiro deverei assumir a forma pessoal e dizer muitas vezes eu: dese-
é uma zona inferior, de que nos distanciamos, é uma escória legante, mas necessário, embora me desagrade. Perdoar-me-ão,
que abandonamos; o segundo é uma zona superior, de que nos quando virem que estes eus são para os outros.
aproximamos, não contém os remanescentes da vida, ainda Temos, assim, uma progressão de realidade, de precisão in-
que no momento sejam necessários, mas o futuro da vida. A terpretativa, de profundidade de sensação; restringir e concen-
passagem do subconsciente ao superconsciente é uma expan- trar-se para ir ao fundo e emergir. Reviverei nestas paginas o
são para o interior, se assim podemos expressar-nos, uma ex- tormento e a conquista. Ver-se-á, numa série contínua de qua-
pansão em profundidade, em que o ser, aprofundando-se para dros, todo o desencadear da tempestade interior; ver-se-á que
o centro, se eleva aos planos mais altos que lhe são a aproxi- tais afirmações não são gratuitas. Ver-me-ão na hora terrível
mação. Nesse caminho, o eu é como um núcleo que se enri- da derrota e do abatimento em que a ideia nos precipita, e na
quece, dilatando por estratificações suas potencialidades atra- hora em que a alma, transposto o limite, consegue ouvir a mú-
vés das experiências da vida, que são exatamente o agente re- sica divina e canta a glória de Deus. Partirei da minha debili-
velador daquele mistério íntimo em cuja profundeza está Deus dade e miséria humana, o que me fará mais compreensível.
(manifestação). Assim, esse mistério é continuamente exterio- Aparecerá a dolorosa negativa humana antes que apareça a
rizado naquele plano de consciência lúcida, que, como se vê, é deslumbrante afirmativa divina, a sombra cansada da cruz do
uma consciência de trabalho e de transição, em marcha do caminho que se projeta sobre a Terra antes de sua vitoriosa
subconsciente ao superconsciente, cuja posição é, portanto, aparição no Céu. Veremos, vivida, a realidade das afirmações
relativa, assaz diversa de indivíduo para indivíduo, segundo racionais até agora expostas. Porque esses fenômenos, que
sua história e sua maturidade evolutiva. muitos negam, ou falsificam, ou condenam, são feitos de aspe-
Somente em tal enquadramento de conceitos é possível en- rezas insuspeitadas, de vida humana desiludida, só mais tarde
tender o superconsciente, fixar-lhe os limites, o conteúdo, a reabsorvidas no êxtase místico. Esses fenômenos exigem cons-
função. Só assim se pode orientar e definir o fenômeno místico tante fadiga da mente e do coração; nunca se conseguem com
como naturalmente situado nas superiores zonas do supercons- facilidade; só se desenvolvem na luta de cada momento, com a
ciente. Não se resolve o problema com o mutilá-lo ou negá-lo, alma nua no meio da estrada onde se debate a vida. Alimen-
de vez que ele é um majestoso fato histórico, responde a um tam-se com a dor própria e alheia, que se torna comum. É ne-
sentimento religioso universal e fundamental, a uma função cessária a comunhão de sofrimento com os humildes para se
eterna do espírito humano e, como experiência para quem o al- obter a comunhão de sentimentos, para sintonizar com o Alto e
cança, é um fato objetivo indiscutível. Se a forma mental mo- obter resposta. É preciso empobrecer e descer, para se iniciar a
derna é o que de mais inadequado pode haver para chegar a tais marcha. Só por esse meio desusado, incompreendido e não
fenômenos, isso nada lhes pode tirar à realidade e à importân- admitido, se alcança o êxtase no grande amor que é a harmoni-
cia. É logicamente absurdo, até para os racionais, que um con- zação suprema do espírito nas palpitações cósmicas.
senso tão vasto e um tipo de experiência tão unânime qual o é a A consciência dos lineamentos e da orientação do fenômeno
mística, que repercute de uma a outra extremidade da Terra e é aqui, afinal, conseguida. É resultado da parte científica e téc-
dos tempos, repouse sobre o erro e a impostura. O fenômeno nica, assim como da parte espiritual e descritiva. Minha poesia
místico é, ao contrário, o mais imponente fenômeno da vida poderá, enfim, avançar tranquila sobre esses duplos trilhos soli-
humana, porque ele assinala uma reaproximação daquela divin- damente assentados.
dade, que, como centro espiritual do universo, é meta de toda Pelas várias sondagens que realizei para estabelecer as rela-
existência, convergência de todas as forças, de todos os movi- ções entre o fenômeno místico e a psicologia normal, para si-
mentos, tendência suprema da evolução. tuá-lo nela e torná-lo compreensível, e não apenas admissível,
206 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
ver-se-á com quanta prudência vou avançando nessa psicologia çar o fenômeno (primeiramente julgado exclusivamente mediú-
supernormal. Era necessário fazer ver claramente que a mesma nico) tirando-o daquela atmosfera de fantástico e miraculoso
pessoa que aqui possa parecer quase louca sabe, no entanto, ra- que a tantos satisfaz (outro escolho no meu caminho), percebe-
ciocinar friamente e domina todo o fenômeno como domina a se com quanta ponderação devia eu seguir minha áspera estra-
psicologia normal de que se faz juiz. Compreendo perfeitamen- da. Impus-me naquele trabalho, eu, o intuitivo, desiludido da
te a enorme dificuldade dos problemas abordados, do risco de razão humana, uma psicologia de desconfiança racional e cien-
tão novas afirmações, da minha responsabilidade moral ante a tífica. Os meus trabalhos se desenvolvem na profundidade do
ciência e a fé. No entanto, num e noutro sentido, já falei claro e cognoscível e do inconsciente e nascem em estranha lucidez do
falarei ainda mais claro. Certas afirmativas enérgicas foram e contato da alma com abissais zonas de mistério. A minha cons-
serão feitas em plena razão e lucidez, com a consciência da res- ciência racional normal tem que exercer um severo controle so-
ponsabilidade e das consequências. Minha alma está ampla- bre estas, para mim, estupefacientes imersões. Se aquilo que me
mente aberta a todos os olhares nestes meus trabalhos, que têm distingue e em que talvez consista minha chamada mediunidade
finalidades bem mais altas que culturais e pessoais; e se ela gri- é ser consciente no superconsciente, sinto emergir em mim,
ta é porque tem coisas graves a dizer. igualmente, baixas zonas de subconsciente, que tenho de reco-
É indispensável extrema prudência quando nos aventura- nhecer e dominar. Eis porque não aconselho o abandono do
mos a tais campos inexplorados, sobretudo quando isso é feito consciente ao inconsciente às pessoas que não tenham o super-
em forma tão pessoal. Aqui, não afirmo e defendo a mim consciente largamente desenvolvido, e disso não estejam ampla
mesmo, mas afirmo e defendo um princípio. E desta ideia po- e claramente seguras. De outro modo, a inspiração não será se-
dem nascer no pensamento humano muitas outras de repercus- não o afloramento das baixas regiões da alma.
são grave. Em certos momentos, estas minhas elucubrações as-
sumem importância universal, abrangendo as religiões, a filo- II. NAS PROFUNDEZAS
sofia, a ética, além da ciência. Em certos momentos, o seu de-
senvolvimento excede os limites da exigência editorial, que
Revivamos agora, em forma pessoal, a teoria exposta nos
jamais poderá ser elemento suficiente para julgamento. Às ve-
últimos capítulos. O meu eu consciente ouve vozes emersas dos
zes, o quadro assume as proporções de tão violento incêndio,
diversos planos do inconsciente; daquelas zonas que são nor-
que os traços fogem da moldura imposta pela necessidade prá-
malmente de trevas, vejo explodirem clarões de luz que me en-
tica e se revelam em sua verdadeira universalidade. Nesses
chem de espanto, porque me revelam que em tudo existe uma
momentos, o traçado que os caminhos humanos quiseram im-
personalidade imensa. À medida que volto a percorrer dentro
por ao meu pensamento surge destruído, e o meu conceito nada
de mim as várias fases da evolução realizada, projeto-me cons-
mais tem de comum com os campos particulares em que pare-
cientemente em zonas de superconsciência; num plano, ouço
cia enquadrado. E então, eu sou supermediúnico, supermetap-
uma voz, e outra voz noutro plano; cada uma delas tem um
síquico, superbiosófico etc. Estou sozinho, avanço desacom-
timbre, uma pureza e uma força diversa, segundo o seu nível, a
panhado, porque sozinho vivi o meu fenômeno e sozinho as-
sumo todos os riscos e todas as responsabilidades. minha posição e a força de vida em relação a esse nível. Ouço
É necessária extrema prudência, porque os escolhos são mui- se aproximarem ecos longínquos de formas psíquicas vivas e
tos. Todos estão implacavelmente atentos, à espera dos que de- sepultadas nas mais profundas dobras do eu; vejo o passado
sejam criar. O pensamento humano, por necessidade de defesa e amorfo e primordial erguer-se do sono dos séculos e voltar a
de sobrevivência, encerrou-se em castelos armados uns contra os mim (isto é, do subconsciente ao consciente), das profundida-
outros; não flui livremente, como linfa verdadeira, mas está cir- des tenebrosas da raça e do sangue, das estratificações funda-
cunscrito em recintos. Não se admitem ideias que não se apre- mentais do instinto, através da incessante recomposição da car-
sentem limitadas, aprisionadas dentro de um desses recintos. Eu ne, do espírito de que é feita a vida. Como o passado tarda a
voo alto, por sobre os castelos, vejo-os todos. Desejaria que se morrer! E súbito reaparece a fera bruta e violenta, a baixeza que
identificassem na paz e compreensão recíprocas. Não posso des- se condena nos outros – tipos de consciência que existiram e
cer, porque descer seria entrar para um recinto e ficar prisionei- que se negam a morrer. No subconsciente está toda a animali-
ro. Teria a defesa e a estabilidade da terra firme, mas perderia, dade do homem-besta, como no superconsciente está a super-
com a prisão, a liberdade do voo. No entanto devo descer, entrar humanidade do gênio e do santo. A evolução da consciência do
nos castelos, mas não me conformar com o encerramento na sub ao superconsciente é justamente a ascensão espiritual da
cômoda segurança da verdade aceita e devo caminhar ainda; e, besta ao santo – fenômeno imenso e universal.
muitas vezes, ver, saber e calar. Tenha-se em conta, nestes meus Existem realmente, para quem pode senti-las, realidades
trabalhos, sobretudo, as muitas coisas que calo. tremendas dentro de nós. Às vezes, a unidade do eu oscila entre
No entanto essa prudência seria covardia se, no momento vários planos; a síntese consciente da personalidade não conse-
decisivo, eu me calasse, ou não revelasse todo o meu pensa- gue encontrar meios de se fundir numa forma nítida e única.
mento a qualquer preço. Aqui, minha alma está ofegante de Então, ouvem-se dissonâncias interiores, desencadeiam-se con-
cansaço e paixão, aos pés de uma ideia pela qual tudo darei. flitos de íntimas vontades dissidentes que não sabem e não po-
Nem mesmo as preocupações humanas importam. dem fundir-se na alma, que, por estar em fase de rápida trans-
Mas a prudência é necessária, sobretudo porque faço sonda- formação evolutiva, contém em si mesma todos os extremos de
gens no mistério, que pode conter para mim, para a minha baixeza e de sublimidade. É justamente às portas dessa supera-
consciência, como razão e como fé, grandes perigos. Não são ção que todo o passado, sentindo-se subitamente negado, se
os riscos da incompreensão humana que me atemorizam, mas aferra violentamente ao desejo de não morrer. Então, numa
sim os riscos no terreno divino que exploro e que às vezes me tempestade imensa, erguem-se das profundezas as forças de-
esmagam. Inúmeros e severos exames de consciência são ne- sencadeadas pela turbação dos equilíbrios que dormiam em paz.
cessários antes que nos aventuremos em certos campos e antes E gritam com vozes apavorantes de trovões, para reviver ainda
de ousarmos certas conclusões. Da calma, objetiva e fria análise e sempre. E nas profundezas há um medonho redemoinho inte-
com que, no volume precedente28, enfrentei o estudo do meu rior, uma batalha de negações e afirmações que desejam ser ab-
caso, procurando, eu próprio, até onde me foi possível, esmiu- solutas, uma explosão de rebeliões imprevistas, ilógicas, inex-
plicáveis e que não dão de si outra razão senão a de íntima sen-
28
As Noúres, já citado. (N. do A.) sação instintiva de uma verdade indestrutível.
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 207
Minha percepção noúrica é imensa, sobretudo dentro de perder-se e ser negada; no entanto, para mim, ela é repleta de
mim; minha sensibilidade psíquica permite-me contato com reservas conceptuais inexauríveis, porque dela fluem continua-
uma vasta gama de planos de consciência, tanto no alto como mente ideias que antes eu ignorava. Habitualmente, no meu tra-
no fundo. Posso mirar não apenas os luminosos picos do super- balho de escritor, atinjo o manancial. Ponho-me a escrever mal
consciente, mas também as tenebrosas profundidades do sub- conhecendo o assunto e, enquanto escrevo, as ideias brotam da-
consciente. E, devo dizer, o passado é também pavorosamente quelas profundezas, e percebo a sua presença sensível na minha
profundo! Que há lá em baixo? Lá estão as raízes do mal e da consciência. Então, apodero-me delas, vejo-as, são minhas. Não
dor que o cansaço da vida traz consigo em cada dia e que é pre- sei onde e como, de outro modo, se poderiam procurar e, muito
ciso vencer. Há todo um mundo naqueles abismos da alma, to- menos, encontrar ideias que não estivessem em livros, que não
do o mistério do ser e do destino, o próprio mistério do univer- fossem a repetição de velhas coisas já ditas.
so. Daquele oceano profundo, onde mergulharam tantas dores e Mas onde estão estas, antes que me apareçam? E então, a
tantas vitórias, culpas e virtudes, emergem agora, inesperadas e dúvida: sou eu, ou não sou eu? É fácil um engano, mas, certa-
insuspeitadas, estas criações da sombra, para nos ajudar ou para mente, o eu não é tudo na base consciente. Aqui são outros os
nos punir, segundo o que nós fizemos. Dos quadros que se se- seus limites; um mundo mais vasto, que se revela aos poucos,
guirão adiante, poder-se-á ver que infernal e demoníaco passa- por síntese; tão forte que minha razão tem grande trabalho em
do é capaz de emergir dessas profundezas. Isto, embora se de- representá-lo com palavras; um mundo onde a concepção é tão
seje projetar ao exterior em estado físico, está sempre e só den- viva, luminosa e espontânea e também tão rebelde a todas as
tro de nós, num estado de inconsciência – quer seja o inferno normas do razoável, que me é muito trabalhoso dominá-lo e
nos estágios involuídos do subconsciente, com os seus demô- mantê-lo dócil à forma objetiva do pensamento comum. Este
nios (individualizações de forças pensamentos-vontades), quer mundo não está fora, mas dentro de mim. Esta grandiosa ex-
seja o paraíso nos estágios evoluídos do superconsciente. pansão é interior e se dirige à desmaterialização, ao supercons-
Daquela profundeza fala a voz do nosso destino e são con- ciente, a Deus. É surpreendente encontrar um super-eu ignoto e
cedidas as dádivas da felicidade que parecem casuais e gratui- tão vasto dentro de nós; mas não se pode negar que ele exista e
tas; vêm, enfim, as punições que se creem imerecidas. E a vi- que eu o sinta dentro de mim.
da flui como uma torrente que leva consigo todas as escórias É, então, o meu eu uma unidade tão extraordinariamente
do caminho percorrido e, sempre em marcha, deposita-as e se imensa, que contém em si, em sua profundeza, o universo con-
purifica. E, assim como a torrente tem uma vontade própria, ceptual onde estão os caminhos que conduzem a Deus? Se o
irrefreável, de andar, maleável e sujeita aos caminhos que o meio de comunicação está dentro de mim, eu não sou o meio de
terreno oferece, adaptando-se ou reagindo, também assim o comunicação, nem as noúres cósmicas com que me identifico.
destino tem uma trajetória ampla, impulsionada pelo seu pas- Mas a tudo chego e com tudo isto me unifico, aprofundando-me
sado, ativa e resoluta e, no entanto, flexível às circunstâncias, dentro de mim mesmo. Digo de mim mesmo, mas o fenômeno é
que aceita ou rejeita. Experimente-se, porém, opor um dique a universal e acessível a todos os que amadureceram. O super-
esse doce fluir de onda; a torrente e o destino amontoarão im- consciente parece, pois, conter tão vasto mundo, porque é a fase
pulsos e massas compactas, até se tornarem ameaçadores e de evolução em que o ser retoma contato e comunhão com esse
poderem tudo arrastar no seu ímpeto – expressão do domínio vasto mundo. É uma extensão maior que o espírito faz sua e on-
absoluto da Lei, pela qual aprendemos que é melhor andar de de se expande. É uma desmaterialização de substância que lhe
boa vontade, já que é impossível parar. permite a identificação de consciência com um campo imenso,
No extremo oposto, minha consciência se defronta com o antes exclusivo, do eu. E, então, esta nova imensidade conquis-
superconsciente. Embora eu tenha sempre falado e fale neste tada é uma imersão tão íntima, que se torna em realidade.
trabalho do lado positivo do fenômeno, descrevendo as emer- Justamente aqui, enquanto escrevo, este superconsciente está
sões evolutivas da minha consciência, não quis, nestas últimas presente e funciona. Sinto-o fazer pressão, túrgido de concep-
páginas, esquecer o lado negativo, de sombra, descrevendo mi- ções, e preciso me conter para não precipitar o concatenamento
nhas imersões involutivas. Contraste necessário estas oposições das ideias e saltar às conclusões. Sem dúvida, em mim o contro-
dos aspectos subumano e humano e do aspecto divino do fenô- le é contínuo. Mas, às vezes, a concepção é tão premente que
meno; necessária a exposição deste lado de debilidade e fracas- tenta seguir sozinha e não admite desvios. Eu mesmo, quando
so, de quedas e ressurgimentos – porque corresponde à verdade; começo a escrever, parto de uma ideia simples, já amadurecida,
porque torna o meu caso mais acessível à compreensão, huma- sem me preocupar com o seu desenvolvimento, que ignoro, e
nizando-o em alguns pontos; porque me reaproxima, me irmana, deixo-a caminhar espontaneamente. Assim, tão logo me identifi-
sob a mesma cruz, ao meu semelhante humilde e desconhecido co com um conceito, ele se torna meu, porque se grava preciso e
que luta e sofre sem a alegria das compensações espirituais. a fogo em minha consciência. Deixo-o andar e falar, porque o
Grande felicidade, mesmo porque duramente merecida, esta sinto como força viva, volitiva e autônoma, até que me revele
emersão no superconsciente. Este confinamento superconcep- todo o seu íntimo. Eu vivo deste estupendo trabalho agitado que
tual é para mim um fato de cotidiana experiência. Dir-se-ia que ultrapassa minha consciência, que parece ativa em toda parte,
minha consciência normal, pela contínua pressão que exerce mesmo na profundidade do mistério, onde lança seus tentáculos
sobre o desconhecido, sofre dilatações imprevistas. Dir-se-ia e segura e traz a si tudo o que encontra em sua sondagem.
que, às vezes, o invólucro que circunda e delimita o âmbito ce- Esta sensação de oceânicas profundidades em mim mes-
de a lacerações súbitas, através das quais penetram relâmpagos mo, a liberdade de atingir o inexaurível, a consciência de pos-
de luz ofuscante. Vejo assim aparecer constantemente, na mi- suir tal reserva de recursos conceptuais são para mim uma
nha consciência racional normal, súbitas concepções, vindas alegria, uma enorme sensação de poder. Parece-me ter atingi-
não sei de que ignotas profundidades. Sinto cada dia, com es- do as próprias raízes da vida, o princípio das coisas, a essên-
panto, fazer-se mais viva a presença desta mais vasta consciên- cia do absoluto. Escrever passa a ser, então, meditação, prece
cia intuitiva e mística, onde o racional se perde. Trata-se de que me aproxima de Deus. É destes páramos profundos, e não
uma nova consciência, cuja unidade de medida e pontos de re- da consciência normal, que afloram os pensamentos mais pu-
ferência são diversos; ela me parece interminável, porque ja- ros e mais belos, tanto mais puros e mais belos, quanto mais
mais acabo de percorrê-la e de conhecê-la inteira. Talvez al- profunda é a sua nascente. E eles parecem ofuscar-se quando
guém queira negá-la; todavia é para mim uma realidade sensí- saem à superfície da consciência, cristalizados em luzes que
vel, evidente. Pode a razão achá-la absurda, porque ela pode bruxuleiam e morrem, aprisionados nas palavras. São tão es-
208 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
plêndidos, fluidos e vivazes, que é doloroso paralisá-los em não desorientar o leitor de chofre, com a visão dos últimos pla-
formas imóveis. A palavra escrita é um ataúde ao qual eles nos, e para que ele veja quanto foi contida, controlada e guiada
não desejam descer. E, quando julgo havê-los assim aprisio- por mim a suprema loucura que está para acontecer. E eu, con-
nado, eles já estão mortos, e eu apresento apenas cadáveres. E tra meu próprio ímpeto de paixão, avanço temeroso, porque es-
ressurgem outra vez, mais vivos, mais esplêndidos, mais ver- pero afirmativas cada vez mais altas, deveres sempre mais gra-
dadeiros, e tornam a luzir, a brilhar no céu nebuloso do meu ves, revelações sempre mais solenes.
superconsciente, inexauríveis palpitações de uma sabedoria Minha alma percorreu o áspero caminho narrado no cap.
imensa, que vem de Deus. Sabendo-se e desejando-se amadu- XXV de I Fioretti di São Francesco29, a que já me reportei30.
recer, isso pode aparecer na consciência de todos. Colhamos os fenômenos da ascese espiritual no ponto mais in-
Se, na minha fase intuitiva, a emersão foi apenas conceptu- tenso e central, no momento mais notável de sua transformação,
al, de orientação e ajuizamento (A Grande Síntese), na atual fa- quando convergem todos os impulsos, coexistem todos os ele-
se mística a emersão é também de sentimentos; a dilatação não mentos, se juntam e fundem todas as forças e surge a última sín-
se verifica apenas na força do pensamento, mas também na in- tese, na qual o fenômeno se precipita em novos equilíbrios e se
tensidade de sensações e no fervor da paixão. É ainda emersão transmuda em novas orientações. Estamos no centro do drama.
de forças que me agarram e me engolfam na unificação. O fe- A vida é uma viagem, e eu sou um peregrino; serei sempre
nômeno se complica com o aparecimento desta força de atra- encontrado a caminhar. O meu último volume viveu e foi supe-
ção, pela qual não apenas eu me atiro à nascente para possuí-la, rado; minha alma não ficou saciada. Disse: ainda, ainda, quero
mas a nascente se projeta contra mim, para me submergir. Este subir ainda. E andei mais um ano, por um novo sulco, diferente
extravio do ser no infinito é tal dilatação de vida, que meu espí- do velho sulco traçado. Alinham-se assim os volumes, seguindo
rito ali retorna incansavelmente, agora que a vai conhecendo, as etapas do meu cansaço. Caminho, caminho pela infinita es-
voando-lhe em torno, como a falena que se atira à luz cegante e trada da vida. Como é grande a dor, como é espantoso o conhe-
não sossega enquanto não lhe cai em cima e se queima. cimento e infinito o universo; parece que jamais conseguiremos
O meu eu é uma escada que se prolonga ao infinito. Quanto chegar! E no fim está o abraço da morte irmã. Vai-se exausto de
mais avanço, mais vejo nas margens da estrada coisas maravilho- forças, carregado do pó da viagem, pesado de lama, de lágrimas
sas. Cada plano de consciência me dá uma síntese mais forte e e de sangue. Quanto trabalho para atravessar a vida! Em nenhum
mais luminosa do universo. O meu ser se inebria com este avan- ponto se sabe como a alma pôde arrastar-se até lá. À espera do
ço progressivo, com esta navegação pelo inexplorado, que revela abraço da morte irmã, a dor chama e martela. O leitor não sabe
sempre novos horizontes. O meu eu, indo de uma consciência a quanto sofrimento humano condiciona certos triunfos do espíri-
outra, no superconsciente desmaterializa-se, se rarefaz, sente di- to. Estou frequentemente muito cansado. Sinto-me culpado e
luir-se. É como se eu me evaporasse. No entanto é esta evapora- abatido. Esta minha pobre irmã carne chora abafada, já sem co-
ção, na qual já não reconheço o meu velho eu concreto, que me ragem para protestar. Pobrezinha! Ela sabe, porém, que o seu
leva longe. É uma decomposição, mas, no fundo dela, Deus se sacrifício era necessário a estas afirmativas de uma vida mais al-
substitui ao meu pequeno eu, porque tudo Ele absorve em Si. ta. Ofereceu-se e recua hoje, humanamente doente, sem um la-
Sinto, então, nascer em mim as palavras tremendas da Beata Ân- mento. Pobre irmã, obrigado por teu pequeno heroísmo. Ela o
gela de Foligno: “Tu és eu, e eu sou tu”; e aquelas de São Paulo: compreendeu. Ensinei-lhe, dia a dia, que ela não podia ser um
“Já não sou eu quem vive, mas é Cristo que vive em mim”. fim, mas apenas um meio. E ela disse ao meu espírito: “Vive tu,
E isto também pode se passar no coração de todos. então, que vales mais”. Há tempos, pedi ao meu corpo que se
oferecesse em holocausto, e ele me respondeu: “Toma-me”. E
III. DOR agora, ele é tão distinto e afastado de mim, que o considero co-
mo uma outra criatura que amo, porque à sua imolação devo a
Assim, o meu eu desce e vai de uma consciência a outra, do verdadeira vida. É justo que o menor se sacrifique ao maior. A
abismo da animalidade aos cumes do espírito; dos vários planos minha piedade deixa-o morrer tranquilamente.
me contemplo, enquanto, de síntese em síntese, avanço pela es- A dor bate, martela, consome e reedifica. É um martelar
trada da evolução. Exposto assim o meu panorama, observo-me rítmico, lacerante, que fere e desperta as profundezas. Esse
e penetro o mistério da minha alma. Com o superconsciente martelar arranca de minha alma gritos que são a sua voz, uma
alimento o consciente. Com este analiso aquele. Retraço, assim, voz que conta, com lógica e calma, uma história trágica e es-
os lineamentos de meu vulto psíquico na eternidade. tranha, profunda e sublime – a história de uma alma que con-
A minha exposição se faz cada vez mais pessoal e vivida. O quista o infinito. É para lançar estes gritos que são minhas
fenômeno, pela lenta deslocação dos panoramas, cada vez se obras, que enfrento e empenho minha vida; é para viver, viver
coloca com maior precisão e, desnudo em sua vibrante realida- e narrar este fenômeno supremo que suporto, sem auxílio nem
de, cada vez mais se aproxima do coração do leitor. Um livro piedade, a minha imensa dor interior, diante da qual estou so-
diz tudo sem o querer, especialmente o que não se quer dizer, zinho e não posso estar senão sozinho. Com a agonia do hu-
pela preocupação de calá-lo. A miragem que vibra nos olhos do mano se resgata o triunfo no divino.
escritor transfere-se para as suas páginas. Quem sonhou glórias, Contei às pedras a minha dor. Contei-a às ondas humildes, às
escreverá glórias; quem egoísmo, egoísmo; quem avidez, avi- árvores amigas, ao céu e ao vento. Minhas lágrimas ardentes ca-
dez; quem sensualidade, sensualidade. Mas também aquele que íram sobre as pedras, e elas não se partiram. O homem olhou-me
tudo lutou e sofreu pela elevação do espírito – diga o que dis-
29
ser, só falara sobre elevação do espírito. É como uma música de A história do áspero caminho é encontrada no Cap. XXV de I Fio-
fundo, uma cor predominante, uma psicologia dominante que retti em alguns textos, qual o usado pelo Prof. Ubaldi. Em outras edi-
não se quer, não se improvisa, não se inventa. Não se pode ções, a mesma história é narrada no capitulo seguinte. A excelente tra-
mentir através de volumes e volumes, diante de argumentos tão dução do padre português Aloysio Gonçalves (Florinhas do Glorioso
medonhamente grandes. Só quem tem para dar um testemunho São Francisco de Assis, Braga, Portugal, 1944), registra-a no cap.
XXV, mas I Fioretti di San Francesco (Rizzoli Edit., Milano, Itália,
que é mais forte que a vida e a morte pode, a cada passo, pro- 1949) traz o mesmo relato no cap. XXVI. Igualmente, as edições de
nunciar o nome de Deus. Vozes, de Durval de Morais, inclusive em São Francisco de Assis –
Já superei a exposição teórica. Devo agora dar do fenôme- Escritos e biografias – Crônicas do 1o Século Franciscano, Vozes –
no a impressão sempre mais viva, através da minha sensação. Cefepal, 1981 – assinalam o Cap. XXVI. (N. do T.)
30
Devo controlar-me e conter-me, avançando gradualmente, para As Noúres, Cap. IV – Os Grandes Inspirados. (N. do A.)
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 209
rindo, e as criaturas irmãs recolheram-se pensativas, em silêncio. lo aos que me seguem. Devo, até meu último alento, com a pa-
A onda humilde e casta vai ainda, murmurando, levar meu pran- lavra e o exemplo, dar a certeza da ideia que possuo. O que im-
to de crista em crista, sem compreender. É preciso ter gritado ao porta é a ideia, e não este inútil trapo de minha pessoa. Numa
mundo, sem resposta, uma grande paixão incompreendida; é exaltação de todo meu ser, grito com toda a força de minha voz
preciso arrastar-se, sangrando, sobre espinhos; é preciso ter atra- a verdade da vida eterna e da ressurreição no espírito. E digo:
vessado o deserto de todas as solidões e de todos os abandonos; vede e tocai, vós que não credes – eu o vivi.
é preciso ter perfurado com a cabeça as duras portas do céu para Neste volume, chego aos últimos degraus de minha vida. Es-
abri-las e, com o último alento, ter atirado para dentro a alma te é o livro da dor e do amor, o livro da unificação. Já realizei a
encolhida, para que o infinito se entregue e a visão de Deus apa- cansativa obra da condensação (A Grande Síntese) e do ajusta-
reça em seu deslumbrante esplendor. Aquele que se lança atra- mento conceptual – o trabalho que faz pensar. Cumpro aqui um
vés de certos caminhos deve perder o apoio da compreensão momento evolutivo diferente, não em termos de ciência, mas
humana. Deve, num certo ponto de seu caminho, encontrar-se com voz de paixão, a obra jubilosa da expansão, que faz chorar
só, porque ninguém mais está em seu plano – e só e sem ajuda e esperar, o livro do triunfo do sentimento e da fé. Chego com
tem que avançar por desconhecidas e ásperas estradas. Sobre a ele ao último ponto, onde Cristo, que já se avizinha, me espera;
Terra, indiferença, quando não sorrisos céticos e censuras. e, além de uma nova grande dor, que me faça digno, abrir-se-á o
Quando se tem sede de almas e ninguém sente tal febre espiritu- selo interior da devoção e do amor. Caindo e erguendo-me, an-
al – ninguém, então, compreenderá de que paixão se morre. dei através da vida. Os meus livros são um longo caminho de es-
Chegam, então, do céu, ao qual o espírito se prende como forço e de fé. Superei muitas etapas; meu pensamento desenvol-
última salvação, as provas maiores. Parece que as forças da veu-se em muitos conceitos; minha paixão amadureceu graças a
vida percebem a possibilidade de uma fuga e agarram-no para muito sofrimento. Ao fim de tanto trabalho de mente e de cora-
impedi-la. Parece desencadear-se, no dinamismo cósmico, ção, depois de tanto expor, não restará senão uma única palavra:
uma rebelião contra a nascente exceção, que viola a regra ge- Cristo. Sobre esta palavra, que é a síntese suprema do conheci-
ral, e começa o assalto. Só quem o experimentou pode imagi- mento e do amor, eu me inclinarei, satisfeito e feliz, para morrer.
nar que coisa é esta insurreição de forças, que exigem o nive- Saciado como quem, além de todas as ilusões humanas, reen-
lamento na mediocridade. controu a verdade absoluta; feliz como quem, além de todas as
Trágico e ciclópico destino, de conquista e de aflição, de vi- dores humanas, reencontrou sua suprema alegria.
sões e de trevas, em que me debato, criando no pensamento,
enquanto peço um repouso que não existe senão na morte. Só IV. RESSURREIÇÃO
no pensamento reside a minha mais intensa sensação de viver.
Nestes contatos super-humanos está, para mim, a razão de tudo, É realmente trágico alguém sentir em si mesmo este desfa-
o refúgio, o repouso, a nutrição e o cansaço. Sinto meu orga- zimento físico, ver diante de si ainda um imenso trabalho e vi-
nismo estalar sob tamanha tensão. E já estou sobrecarregado ver ansiosamente, no temor de que lhe venham a faltar as for-
com o trabalho normal de todos, necessário para o cumprimen- ças. E ter que consumir-se no trabalho humilde e pesado que a
to dos deveres e para se ganhar a vida. Mas o espírito está cal- vida impõe, e ter que esbanjar-se a mãos-cheias na luta estúpida
mo, observa satisfeito e vai espreitando os sintomas do fim, a que o constrange a filosofia dos demais. A natureza humana é
inebriado com a sua criação, triunfante e contente deste lento lenta e preguiçosa; arrasta-se a custo e segue de má vontade.
martírio, sonhando, nele, sua libertação e redenção. Tem a teimosia do asno, tem todos os vícios, a inércia e a fra-
Ofereço, fisicamente, o espetáculo do homem prostrado pe- queza da animalidade. A matéria é sombria, não compreende. O
lo lento trabalho da exaustão. Tenho a sensação de uma lon- inimigo está dentro de mim. O meu corpo é um meu irmão me-
guíssima agonia, em que as forças físicas se diluem. Não é mo- nor, que arrasto atrás de mim, com coragem e esforço E, no en-
léstia, nem lesão, ou alteração orgânica. É o extinguir-se, o tanto, tenho de lhe dar o que ele precisa, para que dê seu rendi-
dar-se de uma forma de vida, enquanto o essencial se coloca mento. Às vezes, lhe digo: “Ponhamo-nos de acordo irmão!
mais no alto. Os dois termos, matéria e espírito, são antitéticos. Não me dê atribulações inúteis! Vamos! Vença o peso de sua
Só em tal estado de prostração física se avizinham as transpa- matéria, e caminhemos juntos”. Mas ele para, tropeça, não
rências do céu. A ascensão espiritual é feita também desta aguenta. Dorme facilmente, e não sonha senão com curtas e fá-
desmaterialização exterior; tal sublimação da alma implica ceis descidas. Cada vibração de entusiasmo, cada arrepio de al-
também estas transformações íntimas da matéria. O corpo se ta paixão, todo o incêndio do meu espírito se desfaz rápido nes-
extingue e vaporiza-se numa dilatação imensa. Só neste estado se meio denso e inerte. Que luta entre o espírito ativo e a carne
se pode falar de coisas que já não são da Terra. Somente com a inimiga e sonolenta, que condena estas relações intolerantes en-
alma nua diante de Deus e com o corpo nu diante da morte, se tre ambos! A animalidade pretende impor a todo o ser a sua lei,
assume o dever da sinceridade absoluta e de certos testemu- e o espírito se atormenta para impor seu dinamismo. Onde um é
nhos supremos; somente sob o martelar tenaz da dor, olhando ardente, o outro é glacial. Pobre companheiro embrutecido!
para a morte e apresentando-se além dela, se tem o direito de Meu espírito espera tranquilamente tua aniquilação, para reali-
levantar a voz e de se falar em nome de Deus. zar seu sonho de fuga. Pobre corpo! Não és feito para voos.
E eu falarei, pelo direito que me dá o ter sofrido tanto, ter- Corres e ficas verdadeiramente extenuado! Consomes-te nesta
me oferecido em minha fadiga, que foi até à exaustão, e por ter marcha absurda, que não é feita para ti. Eu bem o sei! O edifí-
Cristo no coração; pelo direito que me confere o batismo da cio orgânico não suporta tão intensos e rápidos desenvolvimen-
dor, o espasmo da paixão, o dever, o amor. Uma voz imensa tos dinâmicos, tais tempestades de concepção, tais fulgurações
eleva-se de meus laboriosos silêncios; a dor me arrancará novos de paixões. Vejo-o às vezes tombar, dominado de exaustão do-
clamores, a visão me encherá de novos entusiasmos; eu senti lorosa, mas o espírito é insaciável, sem piedade. Esquece-o até
algo de inolvidável no tempo, lá longe, nos infinitos espaços do que ele chegue a extremos intoleráveis, e então a alma, também
meu espírito e não posso esquecer, não posso calar. E direi, sofrendo, observa a sua dor, acaricia-o, e ele se acalma; acom-
obedecendo a uma ordem que me é superior, que só eu conhe- panha-o na marcha, coloca-se ao seu flanco e leva-o junto, co-
ço, e que está por sobre todas as ordens humanas. Tenho de di- mo um irmão. E a matéria opaca se ilumina de sacrifício, es-
zer toda a minha verdade antes de morrer e, na morte, dar tes- plende nos reflexos do espírito e, em longa agonia, se oferece
temunho de minhas afirmações. Devo deitar a semente, para em holocausto ao triunfo do irmão maior, porque sabe que ele
que um dia germine. Recebi o archote da verdade e devo passá- é o único e legítimo herdeiro de sua síntese de vida e que a ele
210 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
pertence o futuro; sabe que esta é a Lei: pelo aniquilamento da minuto – o fenômeno da morte orgânica e da ressurreição espiri-
vida física nasce e cresce a vida espiritual. tual. No aniquilamento do corpo, a crosta opaca que me aprisio-
O corpo não pode viver nas altas temperaturas que o espírito na o espírito se faz cada vez mais diáfana; na exaustão física me
atinge em contato com o divino; naquela altíssima tensão, as fi- chega, então, e ouço-o cada vez mais límpido e mais distinto, o
bras humanas se rompem; naquele fogo espiritual, o corpo arde cântico que se eleva além das limitações. Insaciável, torno a es-
e se consome rapidamente; brilha subitamente numa chama vio- cutar e a ouvir, para trabalhar e para sacrificar-me ainda, até ao
lenta e se aniquila. No entanto, se é vencido ou triunfa, se morre último alento de minha paixão Ouço um martelar taciturno e in-
ou revive, se sofre ou é feliz, é belo. Ao declinar das forças físi- cessante sobre a bigorna da minha dor. Mas cada golpe acorda
cas, o canto sobe do fundo da alma, cada vez mais doce, mais nas profundezas uma ressonância nova, como o eco divino. A
sutil, mais belo. Afina-se pela dor, harmoniza-se com a harmo- cada golpe se rasga um pouco a minha alma e das feridas lampe-
nia do universo, conquistando novas ressonâncias em sintonia ja luz. Ouço um cortejo sempre mais frequente de golpes e de
com o infinito. É intuitivo que certas elevações espirituais, cer- respostas, com uma fatal aceleração de ritmo; amo e abraço mi-
tas realizações supremas não possam ser alcançadas senão à cus- nha dor, que me abre as portas. A cada instante, mais me inebrio
ta de repercussões no estrato inferior do próprio ser. É lógico ao sentir que, além do sensível e concebível, uma pulsação nova
que toda a unidade da pessoa seja arrastada no turbilhão da asce- e maravilhosa bate e responde. Cada pingo de tempo rasga um
se. Só a morte, com sua proximidade, pode dar ao espírito certa véu e destrói um obstáculo. Avanço, mas tenho medo, e me an-
luminosidade. Só um corpo quotidianamente açoitado pode faci- gustia este progressivo diminuir da distância. Mas estou em
litar certas transparências próprias da última purificação. Os que marcha e não posso deter-me. Não se interrompe um fenômeno
leem não podem saber de que sulcos de tormento desponta esta desencadeado. Tudo converge para a unificação. Caem, um a
nova flor de vida; de que destruição humana nasce a amplitude um, os últimos diafragmas. Sinto adelgaçar-se a parte sensorial
conceptual e passional que alimenta certos trabalhos literários; que ainda me detém. Que existirá ainda? Desfazem-se os últi-
de que massa de vida se deve dotar a palavra, para que seja mos liames. Darei um salto e cairei nas chamas.
quente e ativa. Não pode compreender que bases de angústia A fonte das emanações noúricas, da qual captei uma vez os
sustém o ímpeto festivo e exuberante da criação. meus registros inspirativos, era uma estrela brilhante e longín-
Conheço esse tormento e o aceito. Cada volume me parece qua que me olhava do céu. Mas o transmissor aproximou-se do
o último, mas sei que haverá outro amanhã, embora hoje o ig- receptor, que, ao longo daquele raio, se encaminhou para o céu.
nore. E retomarei o livro de minhas confissões; diante de mim, Agora, a estrela, sempre mais próxima, se tornou imensa, a
uma resma de folhas em branco; dentro de mim, a minha pai- ponto de invadir e ocultar todo o meu horizonte. Aquele fio de
xão. Viver, evoluir, escrever. Caminha, caminha! E esta fatal fria concepção aqueceu-se e tornou-se um incêndio. A luz trê-
caminhada não cessará senão pela extrema exaustão. O futuro é mula de uma estrela longínqua é agora um flamejar de meteoro
infinito; diante do eterno amanhã, todo o passado é sempre um flamejante que me atrai ao seu campo de ação e me envolve
prelúdio. Conheço o tormento da criação, mas torno a dar-me, numa tempestade de forças. Sinto-o chegar, raptar-me e me ab-
torno a abandonar-me àquela febre que me dá a vida e a morte, sorver, como uma labareda imensa, à qual não posso fugir.
que me eleva e sustém na sublime exultação das intensas reali- Quereria, mas é tarde. Quereria escapar a este último aniquila-
zações e que, no entanto, me destrói e me foge do corpo. Este mento, e não sei. Sinto-me preso em sua órbita; a minha massa
trabalho me despedaça, mas eu abro para o mundo uma nova é lançada e a trajetória se restringe. Perder-me-ei naquela luz e
janela no céu, e o espírito vence. É a sua hora. nem me reconhecerei a mim mesmo. Aperta-me a alma um
Estou falando de morte e devia falar de vida; continuo abraço imenso, ouço as pulsações de meu coração ecoando pelo
olhando a terra enquanto o céu me chama. Este estado não é universo, e em cada ângulo do infinito responde uma palpitação
fim, mas começo; não é poente, mas alvorada; não é derrota, fraterna. É um amor novo, inextinguível, sem fronteiras, que se
mas triunfo. Esta é a maravilhosa realidade que eu vivo, e hei recurva sobre todas as almas irmãs. É uma vida tão vasta que
de gritá-la cada vez mais alto. Ouça-me o leitor. Minha alma já revive na vida de todos os seres.
está além da vida. Escrevo diante de Deus e da morte, nu diante Fenômeno de força astronômica. Compreendo que é uma
de tudo o que foi criado e me vê. Não pode ser mentira. Perso- enormidade falar de mim mesmo nestes termos. Mas, nesse fe-
nifico, neste momento, o fenômeno apocalíptico da minha nômeno, me anulo. Eu o sei. Aqui em baixo, sempre se receia
grande revolução biológica e o apresento no momento decisivo que o nosso semelhante seja maior do que nós. Mas não falo
de sua maturação, carregado dos aspectos mais ricos, vivos em de minha grandeza – falo da grandeza de todos. Todos podem
mim no mais forte contraste de forças antagônicas. Estamos no subir e subirão, fatalmente. Dos meus conceitos muito pouco
centro do drama. A besta e o anjo que vivem em mim empe- atribuo a mim mesmo – nada mais que o esforço de ir colhê-
nham-se nos últimos assaltos. As forças da vida apertam o cer- los. Se assim falo de mim, é porque o meu eu é apenas uma
co fatal, e todo um processo se fecha; longa travessia de milê- centelha de vida no seio de Deus, é uma força que não pode ser
nios, lenta e dolorosamente seguida, se precipita num instante separada do universal organismo. Falo, portanto, de mim e de
que tudo refaz, contém e justifica. Aqui está em mim o supremo todos, porque neste plano não se fazem distinções. Em suma, o
drama humano de uma vida que se extingue; aqui está em mim meu novo amor me leva a falar, para guiar à libertação aqueles
o supremo drama divino de uma vida que ressurge. O sacrifício que sofrem. A minha experiência é perturbadora para mim. E é
humano foi imenso, mas o resultado final do meu trabalho su- humano gritar a própria alegria suprema, a vitória do espírito
perou toda a minha expectativa. Não vem a mim apenas a luz pela qual se lutou e gastou uma vida. É humano, para quem
do mistério; vem a meu encontro o amor de Deus. superou o terror dos abismos e a amargura de todas as ilusões,
Tenho a sensação de que profundos abalos se dão em mim, dizer ao irmão ainda inexperiente: “Vê! Esta é a vida! Assim te
como se planos inteiros da minha consciência se desmoronas- falo, porque assim vivi. Pode ser que a minha verdade te con-
sem. E, no fundo das ruínas, encontro ressurreições estupefaci- venha”. E como posso recusar-me a alegria de evitar um peri-
entes. Aquelas prostrações são a condição de reações profundas, go aos outros, de poupar uma dor aos demais? Eu também es-
que têm a virtude de trazer à luz o mistério da alma, de fazer pe- tou ligado a esta lei de coesão universal, que traz unidos os
netrar o meu eu consciente nas camadas profundas. Procedo por mundos bem como as almas; aquele que evolui sente necessi-
mergulhos no abismo e ressurgimentos, como as ondas do mar, dade, para poder gozar de sua evolução, de voltar-se para trás e
e destas grandes oscilações nasce um poder sempre maior do es- comunicá-la aos próprios irmãos. Alegria isolada não é jamais
pírito. Vivo lentamente, saboreando-o e controlando-o, minuto a alegria: o amor é a grande lei da vida.
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 211
V. A EXPANSÃO mais alto o fenômeno da explosão do átomo, que desenvolve
reservas inexauríveis de energia radiante. O sistema cinético fe-
Propus-me, nestes capítulos, a dar minha sensação do fenô- chado, de trajetórias em circuito de retorno sobre si mesmo
meno e aqui estou, já bastante atarefado na exposição racional (átomo, egoísmo), no qual o existir é justamente este contínuo
de sua compreensão. É esta minha sensação que para cá devo rodopiar egocêntrico e a sensação do eu, pela inexorável pulsa-
trazer, aproximando-a dos olhos do leitor. Meu primeiro dever ção de todas suas forças interiores contra a trajetória limitada
é a espontaneidade, para que tudo seja exposto aqui, fora de do sistema, não superada, se transforma num sistema cinético
mim, tal como em mim foi vivido. Nenhum freio impede, já aberto, de trajetórias impetuosas, radiantes (energia, onda, per-
agora, o ímpeto do meu entusiasmo e da minha paixão. Preocu- sonalidade radiante), onde o existir se identifica com o movi-
pações de incompreensão mutilariam meu pensamento; já não mento e a sensação do eu: uma expansão que se estende até à
me posso deter. A psique normal está habituada ao âmbito fe- identificação com o todo. Fenômeno de libertação, de multipli-
chado de seus limites e não se reencontra neste confinamento cação, de superamento. O movimento sucede à estagnação, o
de valores. Há necessidade de tatear a solidez de sua prisão, de voo ao passo. O existir não está mais em permanecer, mas em
se identificar no invólucro, para se sentir, viver. É aquela rea- andar. Ao atual tipo humano do eu estático sucede o tipo, hoje
ção de retorno das forças, girando em campo fechado, que dá a dificilmente concebível, do eu dinâmico.
sensação do eu. Mas, quando todas as resistências cedem e as A sensação de vida é um extravasar ilimitado, que a princí-
paredes se abatem, não há possibilidades suficientes para que se pio aturde; é um dilatar-se de impulsos; é aquela desmateriali-
abranjam os novos horizontes. Trata-se, aqui, de uma explosão zação na qual se traduz, justamente, a evolução. Faltará consis-
da alma, que, em sua expansão, vaporiza-se e não sabe se reen- tência a essa sensação; mas, em troca, quanto espaço conquis-
contrar, de improviso, no todo; falta-lhe então a pressão do con- tado! Não nos sentimos mais concretamente como antes: senti-
finamento na mente (ignorância) e no coração (egoísmo), que mo-nos em tudo! Eis de que técnica fenomênica nascem e co-
faziam concretamente sensível a identidade. É muito diferente mo se justificam as minhas sensações. Assim, perde-se a indi-
sentir-se o eu na identificação da própria mente no conhecimen- vidualidade humana circunscrita, para se adquirir uma nova e
to universal e do próprio coração no amor de Deus. imensa, no seio de Deus. Assim, compreende-se como eu pos-
Subindo aos superiores planos da evolução, o eu se torna sa, como afirmo, atingir e possuir o sentido da unificação;
uma unidade completamente distinta. Já vimos, na recepção compreende-se a origem de muitas das minhas estranhas ex-
inspirativa, que a certas altitudes conceptuais, não se encon- pressões e a grande lógica da aparente loucura; compreende-se
tram entidades pessoais no sentido humano, mas somente noú- como a ascensão da alma para Deus, que é a substância da evo-
res, ou correntes de pensamento, e que, para se conseguir lução e a razão da vida, seja um processo de harmonização, isto
imergir nestas correntes, é necessário transformar-se evoluti- é, de progressiva sintonização na harmonia suprema.
vamente, até esses planos e dimensões. Ora, quando a consci- Subindo, tudo se reúne e converge à fonte comum: a verda-
ência humana passa da fase intuitiva das simples comunica- de una, o amor uno. Aqui em baixo, tudo está dividido: as ver-
ções à fase mística da identificação, perde permanentemente, e dades são diversas, os egoísmos diferentes, o amor limitado e
não ocasionalmente, como no período receptivo, suas caracte- desunido em cada criatura. Nesta transformação de consciência,
rísticas de personalidade humana, mudando-se por evolução, o esforço da evolução é largamente compensado. A grande as-
até se transformar naquele tipo de consciência que o inspirado piração e a maior alegria da vida, que é a expansão, alcança aí
encontrara em suas ascensões, isto é, numa noúre ou corrente sua satisfação mais completa. As pequenas portas humanas se
de pensamentos. Em outros termos, transforma-se numa perso- abrem de par em par. O eu não tem mais necessidade de se obs-
nalidade radiante. A alma humana já é, inicialmente, um esta- tinar e se restringir, porque se unifica no todo e o todo é seu. E
do vibratório, uma corrente de pensamento, e é isto exatamente cada um sente no seu instinto quanto a alma sofre aqui em bai-
o que sobrevêm na desmaterialização do processo evolutivo. xo, onde, a cada passo, a sua marcha tropeça num mundo de
Este tipo de consciência é igualmente identificável, conservan- obstáculos. Todos sentem quanto a terra se opõe a essa ânsia de
do uma individualidade característica, porém não pessoal no liberdade. O maior e mais ardente desejo de todos não é esse de
sentido humano. O eu, evoluindo, sofreu um processo de ex- fugir ao espaço, ao tempo, superar as formas do pensamento, de
pansão; já não é mais um campo de forças confinado em si conquistar, multiplicar-se em novas forças? Esta superação es-
mesmo, como a matéria, mas um sistema cinético radiante, pacial-temporal não é a base e a essência do nosso progresso
como a energia. A identificação já não é feita, então, no senti- mecânico? Só por este motivo, isso é evolução, porque é evasão
do humano da circunscrição e da distinção, mas num outro dos limites e superação das dimensões. Todos desejam riqueza,
sentido, o do tipo individual de vibrações que, em uma consci- força, liberdade, amor. Mas é esta outra a verdadeira riqueza, a
ência radiante dilatada não pode ser, agora, senão a única for- verdadeira força, a verdadeira liberdade, o verdadeiro amor,
ma de identificação. Assim é, e só assim acontece com aquele porque tudo se amplia no próprio poder de percepção, numa
que constata seu aparecimento, sozinho, no plano noúrico, ou sensação ilimitada, numa consciência onipresente.
seja, na superposição de consciência, na identificação e na fu- Chega-se a unificação com Deus depois de se haver com-
são por grupos, dentro do seu tipo de vibrações. E só assim se preendido, numa síntese conceptual, o funcionamento orgânico
pode explicar e compreender o fenômeno da unificação, que do universo, fundindo-se e identificando-se com a alma univer-
no plano humano será sempre um mistério. sal. Este é o rumo do ser: a realização da maior felicidade, por-
Estas transformações profundas no modo de existir expli- que, ao mesmo tempo, da mais vasta expansão. De outro modo,
cam o esmagamento do espírito que chega a esta fase de evolu- tudo será uma trabalheira inútil. O instinto insaciável da alma
ção. O eu não se vê mais em suas vestes de personalidade hu- está manifesto, mas a porta de entrada está no céu, e não na ter-
mana e distinta e não se reconhece nesta sua nova forma radian- ra. Aqui em baixo, no ambiente fechado, a expansão se reduz a
te, em sistema cinético aberto, como noúre ilimitada, livre. A violência recíproca, pela angústia de espaço. Aqui em baixo, is-
expansão lhe dá o sentido da dispersão. No entanto, é este, para to não se obtém senão roubando-o aos semelhantes, senão
todos, o futuro da evolução biológica em seu plano psíquico oprimindo e esmagando, mas não é assim no céu! A que extre-
superior. Esta é a transformação de dimensões, o ingresso num mos opostos estamos sobre a terra, onde a afirmação do eu é a
novo universo, ou seja, em breve explicação, o que nos espera luta de todos contra todos, é a imposição, a extorsão e a coerção
além dos portais. Superando, por evolução, o limiar, a consci- do mais forte para com o mais fraco. Que dissonâncias, que
ência naturalmente muda suas características. Retorna ao nível atritos, que dispersão de energias, que inferno. No entanto o
212 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
universo é ordem, é música, é amor e tal aparecerá, com esma- eu projetaram-se para o Alto num ímpeto de paixão. Atônito,
gadora evidência, assim que a alma se curve às realidades mais assisto a minha dissolução e a minha ressurreição.
profundas. Esta é a maravilha que nos espera, transposto o li- O grau de ascensão do ser nos planos espirituais mede-se pe-
miar. A verdadeira expansão está nas dimensões superiores do lo grau de harmonização conseguido pela consciência no orga-
espírito. Só assim ele, o insaciável, poderá ficar saciado! nismo universal, pelo grau de identificação com o todo, de uni-
Assim nasce, entre o místico e o mundo, um antagonismo ficação com Deus. E o índice exterior da harmonização, o sen-
irredutível, um abismo de incompreensão. Tudo, logicamente, timento pelo qual esta se revela sensível, é o amor. É o grau com
depende das diversíssimas colocações do problema, pela diver- que se apazigua a luta, se dilata o altruísmo; o grau com que se
síssima situação do centro da vida. O grande trespasse não é a sabe ouvir a música da criação e irmanar-se a todas as criaturas;
morte. Pode-se morrer e renascer em vida, segundo o grau de o grau com que se sabe sofrer por amor, pelo bem dos nossos
espiritualidade conseguida. Quando subimos, desaparecem as semelhantes. O amor é a forma com que a personalidade radian-
distinções humanas. A matéria divide, o espírito unifica. Quan- te alcança a identificação vibratória com as correntes divinas; o
tos estridores dissonantes em baixo, quantas harmonias paradi- amor é o sinal da unificação. Chega-se a Deus, mesmo em meio
síacas em cima! Faz-se tão profunda a harmonização das criatu- à dor, com a alma contente, cantando e louvando; subindo de
ras quando sobem para o Centro, que a harmonia adquire uma harmonia em harmonia, de amor em amor. O grau de ascese
intensidade inviolável. Faz-se tão poderosa, que não há mais mede-se pelo grau com que a alma venceu a dor com alegria,
dissonâncias que a possam perturbar. Tão forte, que não há vo- absorveu no bem o mal, harmonizou na ordem as dissonâncias.
zes maldosas que a possam dominar. Tão doce, que nenhuma Este amor é uma palpitação secreta e interior, potente e
dor poderá mais poluí-la! E fatalmente, gradativamente, dor e submissa, violenta e, no entanto, doce; por vias íntimas, ele se
mal são reabsorvidos e anulados nessa suprema harmonia. propaga em silêncio, de ser a ser, e alcança longe. Tão longe,
que o coração abraça em si tudo o que foi criado. Amor pro-
VI. A HARMONIZAÇÃO fundo e amplo, que penetra em tudo e em toda parte encontra
seres para amar. Satisfação superior ao desejo. É grande esta
A Lei se cumpre, e eu observo o seu fatal avanço. A matu- maravilha, num mundo onde o desejo é sempre maior que sua
ração é um processo tão lógico, um concatenamento de forças satisfação. É uma ebriedade sem limites esta vibração imensa,
tão equilibrado, que me parece natural. Na evolução, alto e bai- onipresente, indestrutível; este abrir-se de almas para se der-
xo são relativos, e não vejo em mim nenhuma superioridade ramarem umas nas outras. Já era tão grande a alegria do tímido
excepcional. Eu persigo a minha alegria, como o fazem todos. escapar de um raio de amor humano, de um egoísmo para ou-
Apenas, persigo uma alegria mais verdadeira, por meios mais tro egoísmo! Que paraíso não será então este de poder ouvir,
incomuns, e alcanço-a. O universo é harmonia que guia ao su- onde quer que seja, para onde quer que a mente se dirija, além
premo amor, que é Deus. Eu, simplesmente, me harmonizo. Is- de todas as barreiras do espaço e do tempo – ouvir uma palpi-
to é tão espontâneo, que qualquer sensação de fadiga desapare- tação de retorno que diz: “amo-te!”. E então, a alma grita;
ce. Não creio que me possa arrogar mérito por isso. Chega-se a “Descobri o amor! Venham a mim, humanos que o buscais!
isso naturalmente, fora da medida das grandezas humanas. Ofe- Não é o vosso, o amor. Descobri o amor! Isto não é loucura, é
recer-se em sacrifício é a lei natural de coesão neste plano. E, se alegria. Sorria, quem o quiser. Eu canto, eu vivo, eu gozo, eu
a dor inimiga é amada, não é por loucura, mas porque já se ex- afirmo! Os que negarem ficarão em suas trevas”.
perimentou que esse é o meio de conquista. Bendiz-se, então, a A tremenda luta humana e animal se desarma completa-
lei de Deus que fere, porque se sente que por trás da prova está mente diante da força luminosa do amor. Amei tanto, que
o Seu amor. Falo de forças ativas e sensíveis, de conquistas re- também tu, dor inimiga, te tornaste amiga. Doce irmã morte,
ais. Não se creia que os estados místicos sejam uma absurda amei tanto, que tu também me apareces envolta em amor. En-
exceção à universal lei utilitária do mínimo meio 31 e maior ren- tão, apenas se pode dizer: “Meu corpo está cansado e eu can-
dimento, o qual deve estar sempre em termos de felicidade. A to; o meu corpo sofre, e eu canto; o meu corpo morre... e eu
sensação do sublime paga largamente cada esforço, e aos práti- canto”. Eis o paraíso, fruto não da morte, mas da maturação
cos poderia dizer: “o negócio convém”. íntima, que sempre se pode alcançar.
Esta harmonização progressiva, que através de todos os se- Então, na própria alma repercutem todos os ecos do univer-
res se eleva ao amor de Deus, é uma vibração tão grandiosa, le- so, em música solene e profunda onde canta a voz de Deus. Es-
va a tão grandioso êxtase, que se alcança a suprema felicidade. ta música embala e adormece a minha dor. Identificando-me
Que posso desejar mais? Nenhuma insaciabilidade humana po- àquela vibração, me aligeiro e posso fugir ao peso da matéria.
derá jamais ser tão saciada. Caíram, para mim, os véus dos mis- Este amor tornou meus amigos os rochedos, as sarças e as
térios, e minha mente está satisfeita. Na harmonização, agora, tempestades; irmãos meus o homem e a fera. Tornou minha
caem as barreiras do amor, e o meu coração está satisfeito. De- amiga também tu, irmã morte, que marcarás o último impulso
pois da festa da compreensão, a festa da expansão. Depois da de minha fadiga terrena. O amor vence a dor e a morte. Que
alegria de ver com inteligência, a alegria de apreender com as transmutação de valores, que maravilhosa libertação! A feroci-
minhas sensações. A mente fundiu-se na luz divina, alcançando dade de cada pena é domesticada pela elevação; o irmão lobo
a unidade no conhecimento da verdade. Agora, o coração des- faz-me carícias. E, então, as ressonâncias da vida mudam ao
perta e se eleva àquela mesma altitude, para alcançar a unidade toque desta força. Acalmam-se todas as rebeliões, adormece o
no amor. O processo de unificação no conhecimento e no amor cansaço. De cada ato de bondade emana música tão doce, que
– meta suprema da vida – é único, para a inteligência e para o reabsorve toda a aspereza do sacrifício que o ato impõe. A
coração. Só então estará completo. bondade, aqui, abre a porta de uma lei superior, cujas harmo-
Onde está, agora, minha pobre percepção inspirativa, aquela nias são tão fortes, que neutralizam o sofrimento e o cansaço
espiral aberta para o céu, se as portas estão escancaradas e cho- da renúncia. Trata-se de uma superior estética do espírito, cuja
vem, com a luz, torrentes de sensações? A intuição tornou-se beleza supera todas as belezas. O sacrifício expande-se por es-
visão, um rapto, um êxtase. Chegou como uma explosão de to- ta ressurreição numa vida maior e conquistada; transforma-se
da a minha personalidade, um soerguimento total do meu ser, numa limpidez de visão, num amplexo de amor. A perda está
lançado como uma onda para o céu. Todas as potências do meu no restrito ângulo visual humano, não no divino, onde existe
afirmação, alegria, beleza. Eu ouvi esta música divina; ela can-
31
Veja nota de rodapé – Cap. XX, da 1a parte. (N. do T.) ta no sacrifício, e estou sedento por ouvi-la de novo. O cansaço
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 213
se vai, e a música fica. Então, a alma não grita somente: “Des- Assim, a música das coisas se pôs a cantar dentro de mim;
cobri o amor!”, mas grita também: “Venci a dor!”. a beleza, a força, o amor do todo revive em mim. Os fenôme-
E tudo adquire um sabor novo; irradia-se uma alegria que nos, a vida, o universo, já não estão afastados e no exterior,
se difunde sobre todas as coisas. A alma se torna um canal por mas falam, existem em mim. Na unificação perde-se o sentido
onde desce e se difunde o amor divino. Com alegria se reto- das distinções. A compreensão é um abraço. Já não sou apenas
ma, a cada manhã, o fardo da vida. É o trabalho comum de to- um espectador de fora ante o panorama da criação e a arquite-
dos; mas um sentido divino que lhe bafeja dentro, torna-o san- tura do universo, para deduzir e subir à Divindade, mas estou
to e esplendente. Dirão: “Ora, velharias!”. Respondemos: em comunhão interior com a Sua vibração. O meu olhar é um
“que se dizem, mas não se fazem, não se sentem”. Dentro da- gesto que aperta ao meu coração todos os seres que comigo vi-
quela fadiga, que é a mesma por fora, arde tal luminosidade vem em Deus. E todos cantamos o mesmo canto, vibramos na
de bem, tal beatitude de espírito, uma tão vivida bênção de mesma harmonia, abraçamo-nos com o mesmo amor, vivemos
Deus, tanta fé e tanto amor, que tudo se transforma, como por a mesma alegria de viver, sofremos e estamos redimidos pela
toque mágico. Então, e só então, a vida é verdadeiramente be- mesma dor, subimos todos com o mesmo esforço para o mes-
la. Então, o homem, curvado ante o caminho, levanta-se a ca- mo Deus. Da fria análise da mente os conceitos emergem aqui
da manhã com a alegria no coração, porque sabe que é santa a como figuras vivas que falam a realidade da sensação. Tudo se
renovada fadiga que o reconduz a Deus; e à noite, na carne move, os fenômenos vivem, os seres respondem, as almas
cansada, o espírito exulta, rendendo graças pelo dever cum- amam. O pensamento vivifica o espaço. A verdade se torna
prido, pelo novo pedaço de caminho percorrido. Sabe que a tangível. O todo toca a minha expansão de consciência. Deus,
dor escreve, além do tempo, aquilo que não se apaga mais. O então, é real, presente, atual e ativo, em mim e em torno de
corpo se abate, e a alma se abre; dentro dela cantam as har- mim. Para onde quer que me volte, esta sensação absoluta
monias do universo. Aquela alegria é a alegria de toda a cria- emerge de todas as coisas; o universo se ergue e vem ao meu
ção, e transborda, e volta, e não há força que a amordace. encontro, como uma onda imensa, esmagadora. Morre-se em si
Então, me vem uma nova coragem de viver, um desejo de mesmo, no próprio egoísmo, para ressurgir em todas as coisas.
dar às minhas forças um maior rendimento de bem, um medo A palavra „eu‟ assume um significado diferente. A evolução
de dispersão humana porque tudo se concentra no divino. E rompeu os diques, e o universo irrompe em mim.
retorno a todos os seres, numa larga multiplicação de amor; Não são destilações teológicas, nem sublimações passionais,
olho todas as faces do universo, porque me falam de Deus. E, mas estupenda realidade vivida. Esta é a minha alegria, depois de
então, tudo é amor em torno de mim, dentro e fora de mim. ter deixado para trás as alegrias humanas. Esta é a minha prece.
Amor, alma dos fenômenos, centelha da vida, grandeza divi- Os lábios estão mudos, a mente está muda e não sabe mais for-
na. Mas eu quero esta união profunda e completa, esta com- mular pensamentos. O meu eu está suspenso, trepidante, sobre as
penetração e identificação que o amor humano não dá; quero asas desta vibração que enche o universo; ele não sabe, não sabe
o amplexo sem fim, imenso, com todo o universo; quero o nada mais que esta sua imensa alegria, demasiado vasta para que
amor sem egoísmo, perfeito, indivisível, eterno. Quero o ver- se conheça toda. Canta, porque tudo canta. A música não é sua e
dadeiro amor, mais forte que a morte. apenas ecoa, se desenvolve, sai, expande-se dentro dele, até se
Que importa se a pesada cruz da vida me faz sangrar ao tornar o seu próprio modo de ser. A vibração autônoma da distin-
longo do caminho, se eu tudo possuo, se eu avanço estreitamen- ção se perdeu e se anulou na vibração mais ampla.
te unido, coração a coração, com todas as criaturas irmãs? Se a Chegou a liberdade de todas as compressões humanas, a ex-
florzinha que eu colho me dá o seu perfume e morre, dizendo: plosão, a fuga não para o exterior, que é o caminho que restrin-
“Amo-te, irmão”? Se os animais, as rochas, o vento, os espaços, ge, mas para o interior, que é o caminho da expansão. Projetan-
me dizem: “Amo-te”? Se as estrelas e as imponderáveis forças do-se sensorialmente ao exterior, o eu se engolfa no particular,
giram em torno de mim, em maravilhoso equilíbrio e sinfonia no relativo, na ilusão. Por ai se adensam os véus, se levantam as
de movimento, para me dizerem: “Amo-te, irmão”? barreiras, se desce em dimensão, as ideias se ocultam. Uma es-
Então, meu espírito explode na suprema loucura, e sou en- pessa névoa obscurece a consciência. É o caminho das trevas.
volvido na esteira luminosa de Cristo e nela me dissolvo. Es- Vejo este abismo, que está sob mim, em sentido involutivo, um
queci o meu eu. Não existe, não se reconhece mais. Está morto. abismo de angústia e de desejo, onde o maior mal é a cegueira
Ressurrecto. Não sou mais eu, no entanto estou vivo e presente, que impede a visão de Deus. É o inferno. Ele está na impossibi-
em um novo mundo, mudado, renovado, imenso. Eu sou tudo o lidade de corresponder às vibrações da luz divina. O eu destru-
que é o meu amor. O meu amor está em todas criaturas; o meu iu-se num beco estreito e grita, invoca e sofre inutilmente, ba-
é o seu eu; o meu canto é o seu canto; a minha alegria é a sua tendo em todas as portas, que se conservam fechadas à sua ex-
alegria. E que morte pode fechar esta vida universal sem limites pansão. Ouço vozes desesperadas subir daqueles densos invó-
de tempo e de espaço? lucros. A pobre alma se debate no seu tormento, na sua sensibi-
lidade, contra as paredes espessas e tenazes. Deve transpô-las
VII. A UNIFICAÇÃO com a sua paixão, demoli-las com o gotejar de seu sangue. A
cada novo espasmo, uma pedra se move e cai. Que festa a do
Através do amor realiza-se o mistério da unificação. O espírito ao se abrirem as primeiras brechas! Vejo os prisionei-
pensamento comum sobrevoa, não toca a vida; a simples ros esgueirarem-se da prisão derruída, emergir dos muros de-
compreensão da verdade não desce à profundidade da alma molidos e, finalmente livres, lançarem-se ao infinito. Vejo a
para convulsioná-la com suas sensações. No plano místico, o maré dos seres sair das trevas para a luz. Isto é a vida. E é tal
pensamento é vida, cada conceito que emito é um fato que aquela treva, que, além de certo grau, minha vista já não a pe-
desceu e se estampou no espírito. A fria concepção transmu- netra; e é tal aquela luz, que, além de certo limite, os meus
dou-se aqui em renovação de alma. A suprema abstração do olhos já não a suportam. E a treva é também dissonância, como
conceito de Deus avizinha-se e se torna sensível descida ao a luz é harmonia. A treva é densidade de matéria, sufocação de
centro da própria consciência. Deus não se aproxima, não se espírito, malvadez, ira, desespero. A luz é transparência de es-
mostra: sente-se. A fria ideia da verdade se aquece, se anima e pírito, felicidade, bondade, amor e bênção.
vibra nas palpitações de todo o universo. A sinfonia da cria- Sinto a luz mover-se em direção às trevas. E a força de pe-
ção não se vê apenas por compreensão: toca-se por percepção. netração é atração que redime e levanta. As trevas são inércia,
E isto é a sublimidade do êxtase. resistência, negação. Sinto o choque e a luta entre as duas for-
214 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
ças: o bem e o mal. Alcançam-se e se dilaceram. Sinto o entre- nho força para ficar no meu posto de análise, porque a sensa-
choque, que faz tremer o universo. A luz ataca com a violência ção brota com método. Minha carne adormece absorvida, e ou-
do amor, que conquista os corações; o ódio resiste tenazmente, ço-lhe, longe, as lentas palpitações; no paroxismo de sua ten-
as trevas gritam o seu terror. E desenvolve-se uma hierarquia de são rompe-se minha alma. Tenho que comprimir a instantanei-
irmanações, uma descida de auxílios, um entrançado de atra- dade do pensamento e calcá-lo em palavras. Estou sedento de
ções e repulsões. Vejo o turbilhão do amor projetar-se do alto Deus. Humilho-me, anulo-me, e isto me eleva. Queimo-me e
para baixo, lutar para entrar. Num momento supremo da histó- me prostro, e isto me alimenta e satisfaz. Está satisfeita, final-
ria do mundo, vejo o vórtice do amor projetar-se com extrema mente, a minha insaciável alma.
violência, e a maré de dor crescer até ao ponto de tocar o vórti- Tenho nos olhos uma poeira de ouro; nos ouvidos, música
ce. E, então, aparece Cristo. Então, a terra chega ao céu e o céu inebriante; em todos os sentidos, uma sublimação suprema. De-
desce a terra, e entre os dois extremos, do amor e da dor, nasce sejaria abandonar esta pena inerte, que não sabe chorar nem
o milagre da redenção. Sinto ressoar em meu coração a euforia amar comigo. No meu interior se processa a dança soberba e
daquela fusão e o cantar da alegria daquela redenção, como coi- harmoniosa das forças cósmicas, que cantam uma canção pro-
sa minha, porque eu também estou naquela maré de dor que foi funda e inefável. Penetra-me uma música de movimentos e de
apanhada e fundida no incêndio de amor. ressonâncias tão transcendentais, que não as sei exprimir. Deus
É, verdadeiramente, a suprema maturação de uma alma isto se reparte no seu esplendor; o mistério se abre como melodia, a
que conto. É coisa que não se pode fingir nem improvisar. Tais ideia é viva e revive das coisas em mim. Aproximo-me do cen-
palavras não se escrevem a frio, com a satisfação calma de quem tro, onde todas as manifestações se encontram, onde todas as
se equilibra entre as coisas da Terra. Há em mim um espasmo de expressões se equivalem, todas as manifestações se unificam.
alma que grita sua alegria e seu cansaço, uma explosão, uma Toco a unidade fundamental do verdadeiro e do belo, o mo-
paixão por qualquer coisa de sobre-humano que está para che- mento em que convergem e se fundem, o ponto de apoio que
gar. O sublime quer descer à minha pena, que não resiste e está sustém todas as vibrações do universo. Sinto a unidade que está
para se partir. Eu queimo como uma tocha. No entanto não sei nas raízes da vida, na profunda essência das coisas. Além da
me atribuir mais nada, porque quanto mais altas são minhas forma transitória, múltipla e dividida, encontrei a substância
concepções, mais escrevo, abandonando-me a Deus. Sinto-o vi- una, indivisível, eterna. Atinjo, concentrada numa única palpi-
zinho. Não sei mais rogar, não sei mais compreender. tação, a síntese máxima do conhecimento e do amor.
Vivo numa atmosfera de incêndio. Parece-me que minha Quem está de fora não vê, olha e permanece em suas con-
alma, em terrível crescendo, já não pode conter toda a sua ale- cepções, sem perceber que um ser saiu da órbita das atrações
gria. Esta exaltação dá fogo à minha palavra e faz com que humanas. Sou, já agora, um bólido que gira vertiginosamente
possa exprimir o inexprimível. E eu obedeço e conto e reconto em torno de seu sol, preso à sua atração, fechado naquele cam-
ainda, para saborear todo o meu êxtase, para compreendê-lo, po de força, de onde já não pode escapar. Não me ocorreu, no
para senti-lo todo na sua inexaurível luz. Avanço com a alma entusiasmo das realizações, no ímpeto do amor, que a voragem
fremente, apertada, na ânsia de me compreender a mim mes- era imensa e que averiguar o sonho era demasiado para a força
mo, de firmar e registrar estes lampejos do espírito. Só a harpa de um homem. Não me ocorreu que, no processo de progressi-
de um anjo, decerto, poderá narrar tais coisas. Eu, aqui, detur- va sintonização com a fonte dos meus registros inspirativos, no
po-as e insulto-as. Não disponho de matéria mais diáfana que a desejo de perscrutá-la sempre mais de perto, avizinhava-me do
palavra para me exprimir, uma imagem menos concreta, um foco de um incêndio, de um vórtice que teria tragado minha
pensamento mais fluido e mais transparente. Queria um meio vontade, minha consciência, todo o meu ser. Lutei tanto para
mais digno e não o consigo encontrar. O meu ritmo interior su- chegar à harmonização, e não me ocorreu que me precipitava
foca neste marasmo que é a expressão humana, as luzes se ex- num turbilhão de forças que teria absorvido a nota distinta de
tinguem, brilhos se confundem e se perdem. O que escrevo minha personalidade. Já não tenho a minha vibração; perdi-me
mostra a mancha disforme onde está um quadro sublime. A pa- na vibração do universo. Já não tenho a minha voz, que se per-
lavra é impura, sabe a carne e a terra. Assim o belo se deforma, deu na voz de Deus. Acreditava ouvir a pequena música do
o movimento se cristaliza, o pensamento se mutila, tudo se meu pensamento, e ela se transformou na música da criação.
precipita neste meu miserável balbuciar. Não há, no concebível Tinha tanta necessidade de amor no deserto terrestre e me atira-
humano, medida que possa conter o superconcebível. No en- ra, loucamente, para o centro da minha inspiração. Agora, qua-
tanto, esta imensidade é tão simples, tão espontânea, tão natu- se me apavora vê-lo vir ao meu encontro como um gigantesco
ral! E eu procuro ser simples e espontâneo para que as vestes aerólito incendiário. As chamas já se inclinam para a minha al-
não ofusquem a beleza do corpo. Deixo escapar as palavras ma, e algumas línguas de fogo lambem-na, provam-na e se re-
como elas querem nascer, saturadas e transparentes, vibrantes traem para deixá-la respirar. Habituam-na aos poucos à sua at-
e ardentes, como o quer o argumento. Abandono-me ao ímpeto mosfera de fogo. Retraem-se, abandonando-me no desespero da
lírico, porque revela o canto interior que me inebria. Não é já minha cegueira humana e tornam a beijar-me, para me incendi-
possível refletir e raciocinar. Já o fizemos muito. Assim, eu arem de novo. Nestas alternativas, atraem-me e repelem-me.
mesmo estou escutando a voz que emerge das profundezas, eu Aquelas chamas se lançam e se contorcem em torno de meu es-
mesmo sou arrastado no seu ímpeto de dizer: “assim nasce um pírito, para chamá-lo a si, no centro do incêndio.
estilo não pensado nem desejado, que tem a força das coisas Ardo, mas não me consumo; queimo, mas não me aniquilo.
verdadeiras”. É a vibração interior que o forma, e o sugere, e o Estruge em torno de mim, pavorosamente, o ruído das coisas
leva longe, a ecoar no coração dos homens. Seja a forma a ser- humanas, e eu estou sozinho, pobre alma nua na fulgurante nu-
va da ideia. Tudo brota da ferida profunda de onde a paixão dez da substância. Esboço ainda o gesto pueril de agarrar, mas
transborda e é feito de pedacinhos da minha alma, das palpita- não tenho mãos; de fechar os olhos à luz demasiada, mas não
ções do meu coração, da febre desta tensão em que vivo. Não tenho olhos; desejo fugir, mas estou fora do espaço e do tempo.
obstante os meios inadequados, este é sempre o canto inenar- Sinto uma tempestade imensa no céu, e do seu seio uma voz
rável da dor e do amor que irrompe da profundeza do ser. Eis que me diz: “Nada receie, sou Eu”, “Ego sum qui sum”. O
que minha alma não está mais dentro da casa do corpo. A sen- inexprimível está em mim, e eu tenho forças para lhe falar.
sação de Deus passa perto, e o meu eu se dissolve no seu arre- Deus está em mim, vibrante na minha sensação, e eu tenho for-
batamento. O meu dizer vai inconsciente por uma estria lumi- ças para não morrer. Estou na Tua órbita, Senhor, e me precipi-
nosa que parece traçada no céu pelo voo de um anjo. Já não te- to em Ti. No Teu amor, tem piedade de minha fraqueza.
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 215
VIII. A SENSAÇÃO DE DEUS ptações e compensações e se elabora na imobilidade de seu ín-
timo movimento. Assim estou fundido no todo, e o todo fundi-
Assim aparece Deus na alma. A existência de Deus despon- do em mim. Sou, agora, onipresente no espaço, coexistente no
ta nela e se fixa como um fato sensível. Aquela ideia central, tempo, como o é qualquer consciência neste plano. Assim a
síntese do universo, é tocada pela consciência, tão logo esta al- minha vida está na vida de todas as criaturas, e a minha percep-
cança o campo místico. Esta é a substância da minha experiên- ção – a minha consciência – está em todo o universo. Eis a sen-
cia, e aqui a descrevo. No plano racional, a razão procura Deus; sação da nova dimensão, e isto é o superamento e o aniquila-
mas, na análise, não O encontra (ciência). No plano intuitivo mento de todas as medidas precedentes. Onde existir um ser, lá
(exemplo: A Grande Síntese), Deus aparece na mente, mas so- estou eu, sentindo, vivendo. Eis a verdadeira sensação interior
mente como conceito, e permanece como uma visão exterior, de Deus. A minha concepção e sensação fundem-se na concep-
distinta do eu. No plano místico (exemplo: Ascese Mítica), ção e na sensação em que o universo concebe e sente, ele pró-
Deus aparece na consciência como sensação total interior, una prio. Nenhuma objeção teológica ou científica poderá destruir
com o eu, e a síntese da verdade se transforma em amor (união esta minha forma de consciência universal. A voz de Deus é
com Deus). Neste plano, a revelação se torna arrebatamento. mais forte que a voz dos homens.
Método para conhecimento também, mas inusitado e mais pro- O infinito não é o imenso, o incomensurável, como se costu-
fundo. A ciência adota o método da observação. Para superá-la, ma pensar. Não é grande nem pequeno. É simples, espontâneo,
adotei o método da intuição e o descrevi. Este é o método da calmo; não é uma extensão cansativa, uma fantástica multiplica-
unificação. Mas é uma posição tão fora do comum, tão afastada ção de medidas. É uma atmosfera natural e tranquila, na qual caí-
da normal atitude da consciência humana, que neste plano não é ram os limites, foi superada a negação. Não é um múltiplo do fi-
compreensível, não atua, nem se pode comunicar. Veem-se res- nito, mas uma coisa diferente. A anulação como consciência hu-
surgir aqui, ante a ideia de Deus, vivos na minha experiência, mana me faz emergir à superfície de um oceano luminoso e tran-
os níveis de consciência expostos no diagrama da ascensão es- quilo, livre e sem tempestades. Espaço e tempo são trevas, ci-
piritual. E compreende-se que tremenda realização sensorial é sões, prisão, barreira, negação. O infinito é estado de repouso si-
para o espírito o alcançar o plano da unificação. Eis como se tuado além dos limites que a mente humana, em seu relativo,
pode dizer: Deus está em mim, vibrando na minha sensação. procura eternamente superar, sem o conseguir jamais. Ali, o espí-
Descrevamo-la ainda, deixem-me dizer assim, esta tão ex- rito chegou; ultrapassou seu superamento e seus trabalhos.
traordinária forma de consciência. Expando-me na vastidão das É nesta zona de grande calma que o espírito ouve a música
minhas sensações. As vias sensoriais se multiplicam ao infinito, profunda que está nos fenômenos. O ritmo estético e lógico de
à medida que a alma evolui. Quando tudo na ascensão se des- seu desenvolvimento, a harmonia dos equilíbrios e das finalida-
materializa, a vibração alcança o centro consciente, não apenas des. E isto tudo não é mais aquela pequena compreensão da
pelo canal dos sentidos – única via normalmente aberta – mas mente, mas avizinha-se à alma, dentro dela ressurge, com ela se
por todos os lados, excita ressonâncias de mil formas, e cada funde num canto único e imenso. Este canto prende-a, vence-a,
ressonância é sensação. Como no plano intuitivo foram abertas arrasta-a e nela irrompe e se unifica numa exultação potente e
as portas da compreensão, no plano místico se abrem as portas estupenda. Dir-se-ia que a alma explode, projetando-se no uni-
da sensação. Forma-se uma percepção anímica direta. verso, e que o universo se condensa para fechar-se nela. Nesta
Estamos além do espaço e do tempo, no infinito. Medidas dimensão superespacial, universo e espírito têm a mesma exten-
humanas não nos servem. O todo é um ponto; a eternidade, um são. É tão bela e doce a harmonia da criação, que o sintonizar-se
instante. Identificam-se. Tudo é onipresente e contemporâneo. com ela, o unificar-se em sua ressonância, constitui uma ventura
E compreendemos, então, que espaço e tempo são barreiras que, em seu grau mais intenso, é o êxtase em que se alcança a
existentes apenas para as nossas dimensões do relativo; não sensação de Deus. A prece não é senão a harmonização inicial.
passam de aparência, outro modo de existir, para o qual Deus é Harmonizar-se em toda parte, na majestade do canto gregoriano,
centro e periferia, conceito e manifestação, absoluto e relativo, no simbolismo litúrgico, nas correntes que emanam das cate-
princípio e forma. Sem olhos, eu vejo o firmamento interior do drais trecentistas; harmonizar-se ainda com maior presteza dian-
universo, onde tudo fala sem haver palavras. A substância vai e te do divino espetáculo do criado; harmonizar-se na estética su-
vem, da ideia à expressão e da expressão à ideia. Movimento prema de um ato de bondade e de amor fraternal em Cristo – es-
imenso, que é mais uma vibração, tão imóvel está. Cada vida é te é o caminho que conduz à sensação de Deus. Cristo apareceu
uma pulsação desta vibração. Não, não me engano. Estou tre- e não podia deixar de aparecer a São Francisco, no Alverne, se-
mendamente presente na minha sensação. Respiro seu ritmo na não como o último ponto desta suprema harmonização.
minha própria vida. Nesta profundidade de consciência, a vida As fibras humanas se partem na tensão destes paroxis-
é una. O universo é um grande organismo do qual eu, como to- mos. Eu ouvi a harmonia do criado, fundi-me nela e alcan-
dos, sou uma pequena engrenagem, útil, inconfundível, neces- cei a sensação de Deus. O meu coração pulsou com o cora-
sária, eternamente em função. ção de todas as criaturas irmãs, e nestas palpitações percor-
A verdade está em mim. Nela estou imerso, e ela me nutre. reu-me o amor de Deus. Todas as vozes falaram em mim, e
Percebo-a por identificação. O mistério é a barreira de trevas eu respondi a todas as vozes.
que o invólucro da matéria impõe. Superada a matéria, o misté- Guiou-me ao centro, de esfera em esfera, um cântico de
rio desaparece. A limitação está na ilusão do nosso relativo, não amor. Deslizando ao longo da sinfonia dos fenômenos e da teo-
na realidade. O todo está saturado de verdade, grita-a em alta ria dos seres, o meu espírito subiu a Deus. Mas a última tensão
voz, e a alma foi feita para ouvir. Basta romper a crosta e emer- do êxtase é imensa. O espírito não resiste por muito tempo e
gir da própria surdez. precipita-se de dimensão em dimensão, para se reencontrar, co-
O todo está saturado de amor; ele é a vibração e une o parti- mo consciência normal, no corpo exânime. Ouço então, como
cular, que parece disperso em pó impalpável, atrai-o, torna-o um eco, o cântico continuar de esfera em esfera, ascendente e
compacto e devolve-o à unidade. Sinto que, em sua diversa dulcíssima harmonia que se esvai, se dilui nas trevas terrestres.
multiplicidade, o universo é uno. Ecoa em mim o ruído das for- De novo a mentira dos sentidos, e revivo apenas para tornar a
ças que tudo coligam, socorrem e guiam. Cada ponto se encon- ouvir as palpitações de meu coração extenuado. Não conservo
tra no todo, e o todo se reencontra em cada ponto. Tudo é indi- em mim senão uma recordação e uma saudade; senão uma ânsia
vidualizado, mas comunicante; tudo é distinto, mas indivisível; amargurada daquele meu longínquo paraíso, que aqui em baixo
tudo obedece a uma lei inflexível, mas elástica, de infinitas ada- parece loucura. Que parece nunca mais poder retornar.
216 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
IX. CRISTO Os escritores contam as vicissitudes do Cristo histórico; a ar-
te tenta exprimir-Lhe o vulto concreto; o próprio ritual comemo-
Eis a que sensações e a que planos de consciência nos leva a ra-O baseando-se nos fatos de uma vida vivida aqui em baixo.
ascese mística. Neste plano, alcancei – e só nele se pode alcan- Os olhos humanos enxergam apenas as manifestações sensoriais
çar – o conhecimento imediato de Cristo. Sei que tremenda coi- e só através destas, trabalhosamente, podem alcançar a realidade
sa estou dizendo e só agora posso dizê-la, depois de amadurecer imaterial. Assim, a vida de Cristo demora de preferência no sen-
através das experiências que descrevi. Até agora, estive calado. tido humano, no drama sangrento da cruz, mais que no sentido
Mas o meu trabalho todo se moveu para convergir, fatalmente, divino – o triunfo luminoso da ressurreição. Mas aquele é o
para as culminâncias onde aponta a síntese suprema do meu momento inferior, mais denso e pesado, no qual o espírito se põe
pensamento e da minha vida. A figura em que a concepção abs- em contato com a matéria. É o lado menos divino, menos belo –
trata e sublime do êxtase se humaniza, tornando-se ainda mais se em Cristo pode haver menos belo; o momento no qual a lu-
acessível como presença e assim avizinhando-se da consciência minosidade tem a força de imergir-se, sem se apagar, nas trevas.
normal, é Cristo. Sua voz tomou forma e se delineou naquele Este é o Cristo histórico, gênio, reformador, mártir, o homem
vulto que contemplo com amor e tremor; definiu-se num Ser visto por todos. É o fato tangível e inegável, em que o supersen-
que me tomou pela mão e me disse: “Caminhaste e estás cansa- sível se materializou; o fato alcançado mesmo pelos escritores
do, mas não podes parar. Deves ainda avançar e vencer outras materialistas e difamadores, impotentes para o voo, que não
lutas e cansaços. Segue-me. Não podes mais parar. Coragem. souberam caminhar além. Neste aspecto de Cristo, o infinito fe-
Estou ao teu lado”. Na doçura da carícia, no ímpeto da tempes- chou-se no ritmo curto da vida de um homem, para que até os
tade, no terror da solidão, ouvi ainda: “Segue-me, segue-me”. E cegos o pudessem tocar. E esta é talvez, para quem sente o ver-
essa ordem se gravou em mim. Naquele momento me tornei dadeiro Cristo, a maior maravilha do amor divino.
criança, fechou-se a vista da terra e reabriu-se a visão do céu; o O Cristo histórico realmente morreu e parece ter acabado.
êxtase me retomou em seus tentáculos e me levou para longe. Mas existe um Cristo mais profundo e ele continua vivo. É des-
É a Sua face, o que me aparece e me atrai no centro do in- te que falo. Ele está vivo na minha sensação e na minha paixão.
cêndio, o aerólito gigantesco que se avizinha de mim, flame- Presente em nós, fora do espaço e do tempo, eternamente. Só a
jando. Era uma voz e se tornou uma figura sensível e próxima, carne morre, só a matéria se desfaz, o espírito não. O Cristo real
completa na sublimação de todos os atributos do concebível. À não abandonou jamais a Terra. Não poderia ser prejudicado por
debilidade de representação humana, ao desejo da matéria de aquela pequena vicissitude humana da vida e da morte. Cristo
concretizar, foram concedidas imagens, mas não são imagens simplesmente mostrou-se há vinte séculos, mas estava vivo na
de Cristo. Certas figuras adocicadas, de uma suavidade mole, revelação que O preanunciava. Está vivo, ainda que possa não
exterior, rósea e ovalada – são um véu, não uma expressão; são parecer, ainda que talvez os homens não o desejassem; está vi-
distância e sofrimento para quem as contempla. vo na Igreja que Lhe professa o ensinamento. E isto, por razões
O verdadeiro Cristo é uma realidade e uma sensação imensa e meios super-humanos. Cristo é – além do passado e do futuro.
que repele imagens. É um infinito que se conquista por sucessi- Não surge e não desaparece, não nasce e não morre. Este Cristo
vas aproximações. À medida que o espírito sobe, aos vários pla- vem não do exterior, em forma humana; a sua chegada se dá no
nos de consciência correspondem vários planos de conhecimen- interior, no espírito. É fato espiritual, é luz de compreensão e de
to de Cristo, os quais são uma revelação progressiva de sua es- amor. Sua realidade não pode ser procurada nos fenômenos fí-
sência divina. No plano sensorial, a consciência não supera a re- sicos. O preanunciado Reino dos Céus está, antes de mais nada,
presentação concreta do Cristo histórico, do conceito encarnado no coração do homem, e este é o campo que tem de ser arado;
em forma humana. No plano racional, a consciência crítica pro- esta é a criação que deve ser feita. Só um Cristo assim, sentido
cura o divino naquela figura, sem conseguir encontrá-lo. No com ritmo interior, pode ser um vínculo de almas, um princípio
plano intuitivo, a consciência encontra, por inspiração na revela- de fusão e de unificação, no qual todos os filhos de Deus pode-
ção, o Cristo cósmico e compreende que coincide com a Divin- rão reviver em divina unidade. Cristo, com a Sua paixão, lan-
dade. No plano místico, a consciência sente pelo amor o Cristo çou a ponte do amor através dos egoísmos humanos, entre si e
místico, e da concepção de Deus passa à unificação com Deus. eles. Abriu e moveu o vórtice do altruísmo. Deu o primeiro im-
Assim, a consciência alcança e toca, progressivamente, um pulso à expansão. Tornou possível a unificação.
Cristo sempre mais interior, penetrando na Sua profundidade; O Cristo real é completo na Sua trindade de Cristo históri-
um Cristo sempre mais real e imaterial, dele se avizinhando co, Cristo cósmico e Cristo místico. Esta trindade projeta a sua
primeiro com os sentidos, depois com a mente e depois com o imagem nas três fases evolutivas ou planos de existência do
coração; um Cristo sempre maior, mais potente, mais bondo- nosso universo: matéria, energia, espírito. Tem a sua corres-
so, mais unitário, mais transparente na Sua realidade, isto é, pondência no microcosmo humano, organismo feito de corpo,
sempre mais, para o homem, perfeito modelo de Deus. Nesta mente e coração; de sentidos, de concepções e de sentimentos.
progressão de imaterialidade e de interiorização, o espírito O Cristo histórico é a forma, a manifestação no plano físico, o
avizinha-se de Sua divina realidade, sente mais evidente Sua princípio que retoma a matéria e a carne para elevá-las a si,
verdade. Vivi nestas diversas profundidades do real, nos di- através do amor. O mistério da redenção se baseia neste recuo
versos planos de consciência; senti, da vastidão conceptual da dos vários planos para o plano inferior, por um princípio de
revelação mosaica, que se detinha no Deus-criador, somente equilíbrio e de coesão, que o impõe, para que a evolução não
potência, emergir o Cristo-místico, o Deus-amor, que, do se afaste e avance compacta. O Cristo cósmico é conceito-lei, é
mundo cósmico conceitual da mente, floresce no íntimo mun- o princípio de organização que rege e regula o mundo. O Cris-
do místico do sentimento e do coração. O Cristo que eu sinto to místico é amor, princípio de harmonização, de coesão e de
e amo é um Cristo imaterial, interior, cuja manifestação terre- unificação. Assim, a Trindade se completa envolvendo-se em
na representou a mais perfeita expressão de Deus. Ele é um si mesma: é ao princípio de coesão do amor que o princípio-lei
ritmo no qual me harmonizo e em cuja sintonia me dissolvo, confia a redenção da carne. E a Trindade é una, presente nos
uma vibração da qual quero me fazer eu próprio e que de mim seus três modos de ser. “Eu sou o Caminho, a Verdade, a Vi-
quer se fazer ela própria. Será um Cristo demasiado alto para da”, disse Ele. O Caminho, isto é, norma de vida prática sobre
as necessidades comuns da concepção normal, mas somente a Terra, para chegar a Deus; a Verdade, isto é, a síntese do co-
Este é o Cristo real; só nesta interioridade e imaterialidade, é nhecimento, o pensamento de Deus; a Vida, isto é, a força do
concebível n'Ele a divindade, a presença, a unificação. amor, a unidade das almas em Deus. É na fase que aqui estudo,
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 217
da ascese mística, que a alma alcança o mais fecundo aspecto poderei talvez escrever, se tiver forças e se for digno, uma vida
da Divindade: o amor. Sem o Cristo, que foi, acima de tudo, de Cristo, primeiramente lida por minha alma na profundeza do
manifestação de amor, como poderia o homem acercar-se de coração, por força do amor.
Deus? A vinda de Cristo à Terra foi, portanto, a descida do es- Cristo me aparece assim como um trovão que ouço, saindo
pírito até à carne para um ato que é o terceiro momento, no da noite dos tempos e ecoando de século em século, como uma
qual os dois primeiros se completam: amor. “No princípio era força progredindo em passo gigantesco através da história do
o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus... mundo. Cristo é o fulcro do dinamismo das ascensões humanas,
O Verbo se fez carne e habitou entre nós” (S. João) 32. é a voz imensa do espírito que tudo arrasta em sua força, é o tra-
çado do cansativo caminho da vida, é a fecundação divina do
X. AMOR humano, para divinizá-lo. Através do amor, me aparece o vulto
divino de Cristo. Sua forma histórica é um átimo, um lampejo,
É este Cristo imaterial, interior, vivente e presente que eu fechado no tempo. Sua realidade é eterna e contém o gesto de
sinto, respiro, vivo, que penetra e se identifica comigo. Se a Deus que volve às páginas da criação e da evolução do universo.
sensação de Deus se alcança essencialmente através da mente, a A força deste gesto está dentro da história; sustém-na, guia-a,
sensação de Cristo se toca essencialmente através do coração. eleva-a. O mundo despenca, e aquela força toma-o e levanta-o;
A síntese de concepção se transforma e completa em uma sínte- os destinos dos povos periclitam, e aquela força os salva.
se de sentimento. O aspecto cósmico do Deus-princípio se mul- Cristo é o Verbo humanizado que se funde às longas vicis-
tiplica e se dá no seu segundo aspecto de Deus-amor, o Cristo situdes humanas. É o Verbo que o tempo que morre diz ao
místico. Tenho, portanto, que abandonar a linguagem da razão tempo que nasce, que o ritmo universal transmite e repete; é a
por outra muito mais difícil – a linguagem do amor. Só os que concepção onde nascem e morrem os milênios, despontam e
amadureceram poderão compreender-me. somem povos e civilizações.
É este Cristo a forma em que a Divindade se humaniza para Esta força divina, que com tanto ímpeto explodia na gênese
se aproximar de mim. O acesso se faz pelo caminho do amor. É mosaica, desce de suas alturas e vem de encontro ao homem. O
este o incendiado aerólito gigantesco que já descrevi. E Cristo gesto criador de Deus se adoça em Cristo, num amplexo de
chega, e eu O recebo, não através da razão, da autoridade ou da amor. O mistério da redenção é mistério de amor. A força infi-
história, mas Ele desce diretamente na minha sensação, invio- nita e trovejante do Deus dos exércitos assume manifestação
lável realidade interior, onde a vontade humana não atua. Esta é mais profunda, se adoça em modulação mais íntima e consegue
uma conquista minha, como pode ser de todos, que o mundo o milagre inaudito de saber restringir-se na suavidade de um
exterior não pode desfazer; é uma realidade que ele não pode humilde abraço. Em Cristo, Deus deseja descer de Seu trono de
expulsar de minha alma. glória, alto e longínquo, grande e terrível, e se aproxima para
Não se pode compreender Cristo aproximando-se d'Ele com penetrar profundamente no coração do homem. Neste ato su-
ânimo de historiador, de exegeta, de crítico erudito e sábio. Isto blime, esconde e encobre sua força, para se tornar igual ao hu-
pertence ao exterior e fica de fora. É preciso aproximar-se com milde e ao pobre. Deus, então, já não se exprime em força, mas
ânimo amoroso, porque só a quem ama são concedidas certas em beleza e sentimento. Transmuda o terrificante lampejar do
compressões íntimas e profundas; porque o amor é o caminho fulgor no doce canto que cinge e arrasta; o gesto armado da jus-
único da compreensão. É ele a força tremenda que levou a Di- tiça no gesto brando que perdoa. Sinto esta mudança interior da
vindade à humanização. Realmente, o Evangelho, mais que o divina Trindade para outro aspecto; este seu remodelamento em
livro da sabedoria, quer ser o livro do amor. expressão mais completa e complexa, para acorrer às necessi-
Assim me aparece a figura interior de Cristo. Caem os véus dades do tempo, para se unificar com a alma humana, para al-
do mistério, e a Paixão aparece em sua essência. Sob a vida his- cançar nela sua mais viva expressão.
tórica e humana de Cristo surge uma vida mais profunda e real, Sinto Cristo como uma força irradiante, tal como a luz do
a qual, e só ela, contém significados interiores e substanciais. Sol, saturando de si a nossa atmosfera espiritual, para que ca-
Somente revivendo-a assim em profundidade sente-se, a cada da alma a atinja, como cada planta ao sol, segundo a sua ca-
passo, o divino irromper, irresistível e cegante, através do véu pacidade de receber. É uma luz que desce generosa e imparci-
da forma. Tenho agora a sensação do apocalíptico desenvolvi- al, mesmo no lodo, e não se mancha; conduz pureza sempre
mento de forças cósmicas que aquela vida contém, entretecido renovada. É uma potência indestrutível, apesar dos assaltos do
numa sinfonia grandiosa, na qual ecoa e se completa o desenvol- tempo, da caducidade das formas, dos obstáculos do mal. Ve-
vimento espiritual da humanidade. Somente neste sentido pode- jo-a presente em cada momento, em cada ser, em cada povo,
em cada civilização; a sua história é a história do mundo; ve-
32
Nota: O autor, aqui, não enfrenta explicitamente, por não ser este jo-a mudar e avançar com o homem, seguindo-o passo a pas-
o lugar próprio, a questão de saber se o Cristo, que nunca chamou a so, alma de sua alma; sinto-a adoçar-se à medida que as escó-
si mesmo de Deus, mas sempre Filho em face do Pai, se identifica rias do invólucro caem e a natureza humana, mais sensível,
com o Deus do universo, motor supremo do criado e último termo tem menor necessidade de empurrões violentos. Até que Cris-
de tudo o que existe. Confrontando estas páginas com os capítulos to, na alma unida, se torna num canto que tem a magia de anu-
sobre Deus e Universo no volume Problemas do Futuro, parece que
lar a dor e realizar a redenção. Torna-se um cântico imenso e
enquanto, naquele, o autor fala do Deus universal, único centro do
todo, abstração suprema insuscetível de definição e além de toda estupendo, ecoando por todo o universo. Ouço-o agora como
representação, não só em forma sensória mas também no concebível uma voz que vai de forma em forma e se repete de criatura em
humano, neste volume o autor queira falar do Cristo somente como criatura. Que nos humildes canta a mesma música dos gran-
perfeita manifestação ou expressão daquele Deus, numa forma rela- des; que não tem mais limite nem medida; é a sinfonia da uni-
tiva à vida terrestre e ao concebível humano. dade do universo. É a voz das almas grandes, é a voz das al-
De todo modo, não é no presente volume, em que o autor exprime as mas simples, é a voz do espírito abatido que na dor expia e se
suas mais intensas sensações, que o feriram profundamente na sua entra-
eleva, é o trovejar das convulsões sociais que submergem e
da no mundo místico, que ele podia ocupar-se de precisar aquilo que,
somente depois, em outros estados d‟alma, pôde fazer nos volumes su- criam as civilizações, é o grito de triunfo dos mártires, é o tí-
cessivos e em outros estados de espírito, especialmente no volume Deus mido sorriso da florzinha humilde e inconsciente, é o primeiro
e Universo (cfr. XIV – “A Essência do Cristo”). (N. do A.) vagido de uma vida e de um destino – é o reclinar-se esgotado
V. nota de rodapé no 1, no Cap. XVII da 1a Parte deste volume. (N. do T.) na morte, alvorada de ressurreição.
218 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
Cristo! Tu és a bondade que acaricia, o amor que inflama, a dos uma semente contém! Uma semente é, como a palavra de
luz que guia. És também a prova que me cabe, para meu bem, a Cristo, uma concentração poderosa de forças, capaz de realizá-
dor que me liberta, a morte que me restitui a vida. Tudo Tu és, ó las lentamente, germinando e crescendo.
Deus! Seja por meio da alegria, do amor, da dor – é sempre a Tua Cristo não destruiu: continuou e fecundou. Arrancou o ho-
mão que me guia para a única meta, que és Tu. Que animes ou mem de um plano de vida, para transportá-lo a outro, mais alto.
castigues, que acaricies ou punas, sempre atrais tudo a Ti, como A Sua revolução está sempre presente. No fundo, não é senão a
suprema razão de vida. Agora cheguei à suprema violência, que maturação lenta e fatal das leis da vida, sendo, por isso, parte
supera os raios do Sinai: a violência do amor. Ela me busca o co- integrante do plano orgânico do funcionamento e desenvolvi-
ração, para arrancá-lo e ficar em seu lugar. Então, a alma chegou mento do universo. O contraste entre as forças do bem e as for-
ao porto, atingiu a meta. Na fuga dos tempos, Cristo venceu. ças do mal, o choque entre o espírito e a matéria são lutas com-
Antes da vinda de Cristo, Deus era uma lei justa e severa, preendidas num mais vasto equilíbrio, são momentâneo cansa-
que o homem adorava de longe; era o comando que exigia obe- ço da evolução, desordem contida e utilmente enquadrada numa
diência, incutindo temor. Exprimia-se como força que não pede ordem maior. Era necessária uma intervenção enérgica de força
compreensão, que não se unifica no amor, que permanece distin- excepcional, para desviar e renovar tão decisivamente o curso
ta no coração do homem. Com Cristo, a manifestação divina da história. Para arrancar à prisão da carne o prisioneiro da ma-
chega a uma nova dimensão, aproxima-se mais um grau da vida téria, aquela luz tinha de possuir a potência do raio. No entanto,
e da sensação do homem, inicia um lento processo de atração e naquela força, o equilíbrio não se perturba, a fusão é lenta, a
de absorção, culminando na unificação. É um tipo de ação com- obra se completa em ordem. E é esta a sua maior expressão: a
pletamente novo, que deseja arrancar o espírito da natureza hu- força contida na doçura. A carícia de Cristo traz em si o gesto
mana, deseja levar a evolução além da órbita animal. Deus era do criador dos mundos. O mesmo tremendo Deus de Moisés
lei fechada ao contato do homem. Agora, se abre e se projeta, se sabe evolucionar Sua manifestação e proporcionar Sua expres-
dá e se comunica, atrai e unifica. Com a chegada de Cristo, o di- são no relativo. Era chegada a hora de abrir as portas da verda-
vino escancara as portas e se despeja em jorro pela terra, os di- de, e Cristo a arranca do mistério dos templos para a luz do Sol,
ques ruem e a inundação começa. Será contínua. Os opostos, ter- toma pela mão o homem guiado pela revelação e o conduz mais
ra e céu, se atraem, são campos de forças contrárias, que têm ne- adiante. Rasga-se o véu do templo. E hoje continua acompa-
cessidade de se equilibrar, compensando-se e fundindo-se. A nhando o homem, que pesquisa através da ciência, porque a
maré da dor humana sai de baixo, prostrada e invocativa, alta e própria ciência não pode deixar de revelar, cada vez mais evi-
terrível, devorando distâncias, destruindo obstáculos interpostos dentemente, a Sua verdade. Está presente na intuição do gênio,
sobre a rota. A dor eleva o destino dos povos e os torna mais no heroísmo do santo, na revelação, que é contínua, pois Ele es-
dignos. O amor divino sentiu este levantamento do desejo, este tá acima de todas as ascensões humanas.
intumescer de aspirações, e o vórtice celeste se projetou, ansioso
pelo contato; as duas espirais tocaram-se, e Cristo apareceu co- XI. A REDENÇÃO
mo um raio a vibrar entre o céu e a terra; o divino desceu no
homem, para que o humano fosse arrebatado ao divino. O mistério da redenção é um mistério de dor e de amor. Para
Assim, Cristo se enxerta como força cósmica, no centro da compreender, voltemos aos conceitos fundamentais. Já exami-
evolução humana, e influi decisivamente sobre o desenvolvi- namos em outro livro33 o fenômeno estupendo da anulação da
mento do fenômeno espiritual, iniciando uma fase de ascensão dor através da evolução. A dor é o cansaço da ascensão, que la-
que se dirige ao divino. Um mundo novo, feito de sentimentos e boriosamente leva à felicidade, que assim deve ser conquistada.
de aspirações, antes ignorados, começa a revelar-se, saindo da Mas, se a dor faz a evolução, a evolução anula progressivamente
profundidade da alma. É manifestação divina, à qual Cristo deu a dor. Então a anulação da dor se processa através da dor. Com
o impulso inicial. A Sua vinda representa, no campo das forças seu exemplo, Cristo nos veio mostrar estes profundos aspectos
da vida, mudança substancial, deslocamento fundamental de da Lei. A dor é uma característica de determinada fase de nossa
equilíbrio, cujo centro, agora, gravitará da matéria ao espírito. evolução, em que ela funciona necessariamente como agente de
A trajetória da evolução, engolfada na mais desastrosa descida, transformação, desaparecendo quando preenchida a sua finali-
teve um sobressalto e retomou sua marcha ascensional. A vinda dade, tão logo seja alcançado um alto plano de vida. A dor é
de Cristo é o impulso que desce do céu para realizar a nova uma condição de vida inerente à matéria, durante a fase humana.
obra da ascensão do homem, no sentido de todos os superamen- Na desmaterialização do ser, essa condição desaparece. A dor é
tos de sua animalidade. E Cristo, que tem nas mãos a força da uma dissonância a ser reabsorvida na harmonização; é uma den-
renovação, se coloca no momento central da evolução do ho- sidade que se vaporiza na espiritualização. Cristo veio ensinar o
mem, entre o extremo limite da descida (materialismo helênico- caminho da superação da dor através da dor e da espiritualiza-
romano) e o pressentimento da ascensão, para desintrincar as ção. Antes de Cristo, a dor era feroz, terrível, sem piedade. Cris-
leis de uma vida superada e reconstruí-la na forma de vida no- to fez dela a via mestra da ascensão, da liberdade, da redenção.
va, mais digna e mais alta. Cristo é o primeiro momento, o sinal Fez dela uma força amiga, indispensável para a conquista do
sensível, do nascimento desta força, que jamais deixará de agir nosso bem e da nossa felicidade. A fera inimiga suavizou-se,
para o futuro, presente no infinito das coisas, no profundo das domesticou-se, tornou-se útil colaboradora; a coisa temida e
almas, na forma da vida, nas obras do homem. E a ação será maldita se faz santa e amada, e nós a apertamos ao coração co-
constante, a presença tenaz, a ascensão lenta e contínua; a ele- mo um salva-vidas. Cristo derrubou e refez a concepção huma-
vação será progressiva até à realização do Reino dos Céus. A na, fazendo do vencido um santo, um herói, um vencedor. Cristo
verdade se fará estrada sempre mais evidente nos espíritos; ca- desceu e se fez presente e sensível no fundo das almas que so-
da vez mais, o amor divino aquecerá os corações. Através de frem, irmanando-se com elas no Seu amor, tornando própria a
uma luta longa e estafante, a nave da igreja de Cristo atravessa- sua dor, a cada dia, justamente como o fez sobre a cruz.
rá o grande oceano da vida dos povos; os mártires sacrificar-se- É um maravilhoso fenômeno que estou experimentando, es-
ão pela ideia, e o primeiro movimento será elaborado e atuará, te do superamento da dor, que Cristo ensina. É lógico que a dor,
completando-se no pormenor, cada vez mais exatamente, o sendo um instrumento de ascensão, se destaque do eu quando a
grande projeto de Cristo; lançar-se-ão laboriosamente as bases ascensão é terminada. É necessário, na ordem do universo, que
colossais de uma nova civilização, que transformará o mundo
33
desde os seus alicerces. Cristo foi uma semente. Mas que mun- A Grande Síntese, Cap. LXXXI – A Função da Dor. (N. do A)
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 219
a dor caia quando for superada a função evolutiva de prova e de O que aturde e assombra nossa compreensão nessa descida
lição. Quando tivermos compreendido tudo e, com isso, hou- do Cristo é este aprofundamento de divindade na imundície da
vermos esgotado sua função de escola e de expiação equilibra- carne humana.
dora na ordem dos impulsos morais, então ela cai, como as ou- Somente se sabendo que Ele é Deus e é homem, pode-se
tras ilusões da vida. Então, não só não se verificam mais, por compreender a vertiginosa grandeza desse ato e que tremenda
haver sido alcançada a medida do débito, as condições exterio- força é, por isso, o amor divino.
res da dor, porque um assunto inútil aos escopos do bem está Que necessidade poderia ter o Santo dos Santos de passar
fora de equilíbrio (trata-se de equilíbrios automáticos ingênitos pelos caminhos da dor? Não por Si, decerto. Ele era perfeito.
da Lei), mas advém um fato novo. Mesmo que a dor permaneça Não tinha necessidade de purificação, de ascensão ou de reden-
como fato exterior, advém por evolução uma tão profunda ção. Mas isso se tornou uma necessidade fatal, apenas Ele se
transformação de personalidade, que ela lhe escapa. A evolu- fundiu na natureza humana. Toda carne e todo sangue parecem
ção, levando-a a uma fase nova, deu-lhe um novo modo de ser, ter ascendido com Ele, após Seu martírio de carne e de sangue,
no qual a dor não repercute com as mesmas reações do nível eternamente enobrecidos por esse contato.
humano; em outros termos, a ascensão leva o espírito a tal grau Muitos dizem: Por que o tormento dilacerante da cruz, se
de harmonização (amor divino), que não existe mais dissonân- Ele era Deus, o Todo-Poderoso?
cia que tenha força para penetrá-la e alterá-la. Então, mesmo Eles não compreendem que aquela dor é a sombra das cul-
que permaneçam idênticas as condições ambientes, o choque pas humanas que, sem essa expiação, não poderiam ser neutra-
daquela força não encontra mais impulsos antagônicos nem re- lizadas.
ações contra as quais se assanhe por sua expansão e desaparece Cristo não quis, diante do povo que Lhe pedia o milagre,
sem resistência. O instrumento receptivo mudou, e bastou esta salvar-se e descer da cruz. Não poderia fazê-lo diante do Pai,
mudança de natureza para que se transformasse completamente que Ele representava. Não o poderia perante a Lei, que Ele per-
a gama de suas ressonâncias. Superpõe-se à consciência uma sonificava.
opacidade de audição; o espírito não responde senão àquela or- Aceito o cálice, estreitados os liames, a paixão era um re-
dem de vibrações, e a surdez, naquele plano, é substituída por demoinho de forças em movimento em que o Verbo se expres-
um poder receptivo no plano mais alto do amor. O fato positivo sava. Cristo agia no coração da Lei e, se a violasse com o arbí-
e o fato negativo convergem para o amortecimento progressivo trio, teria negado a Si mesmo.
da sensação penosa da dor, na sensação gloriosa do amor. A O povo que estava ao pé da cruz não compreendera esta
mutilação do desejo e a compressão do sofrimento se transfor- fatalidade de paixão, esta inviolabilidade de princípios, e co-
mam, então, na multiplicação e expansão do amor; a dor se mo Quem a quisera não poderia renegá-la. “Salvou os outros e
muda em felicidade. Agora, a dor é amor, nisto se afirma e ja- não pode salvar a Si mesmo!” – diziam. “Se é o Rei de Israel,
mais se encontra a si mesma; junta-se a Cristo, ao amor que Ele que desça agora da cruz, e nós acreditaremos n'Ele!”. O povo,
nos trouxe – compreende e alcança a Sua redenção. que era o mundo, imaginava ser Cristo um homem que deve-
Grande e maravilhosa lei de equilíbrio e de justiça esta pela ria pensar em si mesmo. Se o supunham um Deus, era no sen-
qual a dor, quando cumpriu sua função de levar a alma até à tido de deus humano, cujo principal fim e uso do próprio po-
superação da animalidade, se afasta em silêncio! Quanto é sábia der seriam em sentido egoístico. No vértice de sua paixão,
a lei de Deus, na qual o mal é confinado e submetido aos fins Cristo não existia para si. Da cruz, olhava o mundo dividido
do bem; o sofrimento é justo e frutífero; a dor é condição de fe- por um abismo de incompreensão. O mundo imagina um Deus
licidade! Ela é uma força fechada no seu plano, da qual não se e uma lei à sua semelhança, não ainda perfeitos, que admitem
pode fugir; a liberdade só é possível subindo-se. A dor não po- modificação, retoques, arbítrio; confunde liberdade com li-
de atuar além do limite circunscrito pela Lei, onde se deve es- cença, poder com abuso – e não imagina que tudo isto desapa-
gotar sua função de prova e formação da alma. Mais no alto não rece quando se sobe. O mundo acredita que, como aqui em
existe senão a dor do justo, que é coisa santa, livre, é missão, baixo, possam existir no Alto consciências isoladas e egoístas,
martírio, triunfo e, sobretudo, amor. que se substituam, segundo os caprichos, às ordens absolutas
O drama da paixão de Cristo, ponto culminante de sua des- da Lei. E invoca o milagre como prova de poder, enquanto
cida, tocou estes pontos culminantes da vida humana, o núcleo que o poder maior está na ordem.
central da Lei no momento humano. Cristo nos revelou, na sua Mas este volume quer somente ser um ímpeto de fé e de
ação, o mistério desta reabsorção da dor em amor. Devo discor- paixão, um protesto de amor e veneração a Cristo; representa
rer sobre estes problemas porque são eles a substância da obra somente a primeira explosão de estados místicos na vida do
do Cristo. Olhemos, porém, mais profundamente. Ele não veio autor. Aqui, nesse estado d‟alma, que depois será retomado e
apenas para ensinar. Veio também para pagar. Não somente pa- desenvolvido nos seus outros volumes, ele não quer, de ne-
ra mostrar-nos o princípio da expiação necessária, mas para so- nhum modo, enfrentar o problema da essência do Cristo e da
frer, Ele próprio, com Seu tormento, esta expiação. Ele não significação da Sua paixão e da redenção. Estes são proble-
veio apenas para nos fazer compreender, pela palavra e pelo mas amplos, que, para serem resolvidos, exigem uma prepa-
exemplo, este maravilhoso fenômeno que descrevi, da anulação ração e uma explanação mais vastas. Serão considerados com
da dor, sua espiritualização e a rearmonização de suas disso- o maior amadurecimento que só se poderá alcançar nos últi-
nâncias na harmonia do amor. Cristo não desceu apenas para mos volumes da Obra, somente nos quais estas questões po-
nos ensinar a possibilidade de uma libertação. Colocou-se no derão ser resolvidas definitivamente. Isto não se tornará pos-
centro do fenômeno e o viveu. No centro da dor humana, que sível senão numa explanação particular, em que todo o siste-
fez Sua. No centro da dissonância, para reabsorvê-la dolorosa- ma ficará resolvido, especialmente no 10 o volume, Deus e
mente na harmonização do Seu amor. Fez sua a escravidão hu- Universo, e no último, Cristo 34.
mana e teve que, com trabalho e sofrimento humano, conseguir 34
a libertação. Fazer-se homem é imergir completamente, até ao Veja-se a nota do Prof. Ubaldi no final do Cap. IX da 2 a Parte
deste volume.
fundo, no plano humano, em sua atmosfera, em suas debilida- Convém acrescentar que os problemas referentes à natureza espiri-
des, em suas sensações, em sua iniquidade. Significa fazer pró- tual de Cristo, o autor os expôs não somente no seu livro Deus e
pria essa iniquidade e por ela ter de responder, em Seu nome, Universo (Cap. XIV – A Essência do Cristo), mas ainda em O Sis-
diante da lei de Deus. Assim, Cristo se fez culpado, em Sua tema e Queda e Salvação, que se lhe seguem e lhe são intimamente
Pessoa, pelas iniquidades humanas, devendo expiá-las. complementares (N. do T ).
220 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
XII. ASCESE DA ALMA cute e se multiplica até à última criatura, humilde e desprezada –
propaga-se e inunda a Terra. E a música das pequenas coisas
Assim inicia Cristo a ascese mística, a elevação das almas à aqui de baixo desenvolve-se e se repete nas ressonâncias grandi-
unificação com Deus. Ele se faz o grande inspirador, o invisível osas do céu, que se abriu para ouvir; sobe a paixão da alma, e o
impulsionador da vida espiritual; a evolução humana se ergue amor do homem se unifica no amor de Deus. Esse canto atrai e
atrás d'Ele, para segui-Lo. Sem Ele, a vida não podia ter alcan- arrebata. Lentamente, da Terra, a humanidade se ergue como
çado o plano místico – com Ele, prepara-se para alcançá-lo. A uma maré que cresce e sobe em um único cântico de almas
história do homem continua a ser escrita no grande livro da vida, apaixonadas, que se funde e se perde na música do céu.
e inicia uma nova página: a página do amor. Uma nova síntese Caminha, caminha. Cristo adiante, e atrás o mundo. Como é
floresce do trabalho dos milênios; uma nova clarinada, emergin- longa a estrada do Reino de Deus. Quantos tropeçam e caem ao
do da profundidade dos tempos, chama à colheita, no curso das longo do caminho Quanto esforço de alma para unir a terra ao
civilizações instáveis e inquietas, a vida deslocada de seu eixo e céu! De início, é apenas um pequeno grupo; poucos se põem co-
muda o centro das atrações humanas. Os egoísmos se abrem, as rajosamente em marcha. É pesado o fardo da carne, e muitos não
consciências se dilatam, o irmanamento começa, a voz de Cristo podem movê-lo. Mas flameja com tamanho ardor a alma daque-
ressoa de coração em coração num canto único que se funde e se les poucos, é tão ativa a irradiação do céu, ressoa tão harmonio-
eleva, respondendo à glória dos céus. O mundo inicia uma pode- samente a boa nova, que até a matéria, pouco a pouco, se abala.
rosa marcha para a realização do Reino de Deus, que não é dá-
diva gratuita à inércia humana, mas laboriosa conquista feita sob
a inspiração de Cristo; a ascensão não é o cômodo desfrutar de
méritos divinos, mas fusão humana em Sua paixão.
Caminha, caminha. Inicia-se o grande movimento. Cristo
vai à frente, diante de todos, com o exemplo de Sua dor e de
Seu amor, da cruz e da paixão, uma luz que avança, deixando
atrás de si um rasto de esplendor. Por esta estrada luminosa o
mundo caminha e segue. Cristo é um sol esplendente que atrai
a si as chamazinhas das almas humanas. D'Ele se desprende
uma radiação de amor, sob a qual revivem, se levantam e se
acendem novas centelhas. É como o começo de um incêndio.
E as pequenas chamas engrossam, sobem, sobem, até tocar o
céu, unificando-se no esplendor do grande sol central, onde,
reabsorvidas, se perdem.
Caminha, caminha. Cristo vai com Sua cruz, sempre diante
de todos. Ele não tem propriedades, nem riquezas, nem poder
humano. Ele é uma força nua, suspensa entre os horrores da ter-
ra e os esplendores do céu. Ele não está na história, mas é supe-
rior à história; não está encerrado no tempo, mas é senhor do
tempo. Na sua realidade, ele é imaterializável e, justamente por
isto, está vivo e presente. A sua realidade é interior, está nas
palpitações e no tormento do nosso espírito. Justamente por is-
to, Ele está aqui conosco, entre nós, sensível para qualquer um
que o saiba sentir. Ele está vivo e presente, e, por não ser Ele
feito de matéria, o mundo não O reconhece.
Ele é uma vibração. Sua casa está em nós – uma ressonância
de pensamentos e de ações. Ele vai humildemente peregrinando
de porta em porta, pedindo hospitalidade; vai batendo de cora-
ção em coração, implorando amor. E o mundo lhe diz: “Quem
és tu? Segue, não te conheço”.
Caminha, caminha. Ouço chegar, sobre a onda do tempo,
ecoando de século em século, esta nova voz de Deus, que traz a
boa nova da bondade e do amor, pressentida e profetizada em Is-
rael, alcançada, predicada e vivida no Messias e, depois, seguida
e em atuação na Igreja. Ouço-a chegar, concentrando-se como
uma força na vinda de Cristo, fazer-se senhora dos equilíbrios Desenho de Francesco Ubaldi (Franco Ubaldi)
do mundo e abrir-se depois em espirais em constante expansão, Caminha, caminha, Cristo adiante e atrás o mundo
projetando-se sobre a humanidade para iluminar-lhe a alma. O
ritmo é contínuo, ligado a um chamado que vai de século em sé-
culo e se propaga de geração em geração. Repete-se num ecoar Aqueles poucos são canais abertos, vias de comunicação. A
de apelos e respostas, de palpitações e de ímpetos, de coração a luz, assim, espanta as trevas, e um calafrio estranho penetra e
coração; ouve-se, gradativamente, entre a terra e o céu, uma mú- anima a inerte densidade da Terra. Cristo vai adiante e atrai to-
sica imensa. De início, são vozes isoladas, invocações amargu- dos após Si; está sempre à frente, em marcha no caminho da as-
radas e dispersas em paciente espera. Mas as almas ouvem aten- censão. Ele tomou nas mãos o estandarte da evolução e disse:
tas esta nova palavra de amor. Uma força nova invadiu o mundo “Sigam-me. Eu sou o futuro”. Poucos seres apenas, incompre-
e se propaga. A ferocidade humana se adoça num estremecimen- endidos como o Mestre, seguem-no, sangrando e insultados.
to de ternura. Sob o beijo de Cristo, também a natureza muda a Mas Sua voz é tão doce e incomum, que muitos, fascinados, se
linguagem, até ao Cântico das Criaturas, de São Francisco. A esforçam por ouvi-Lo e caminham juntos para compreender
alma humana abre-se como uma corola e desabrocha ao cântico aquela estranha paz que o mundo não possui. Algumas palavras
de Deus. Este canto ecoa e se dilata em mil ressonâncias, reper- são ouvidas, algumas vibrações alcançadas ressoam na alma a-
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 221
través da surda carapaça da carne. E o pequeno grupo de Cristo ça de se friccionarem sobre esses conceitos, sujaram-se. Nossa
atrai e avoluma-se pouco a pouco, à medida que caminha. Al- ação contínua recobriu-os de escórias. O espírito foge da Terra,
gumas palavras ecoam e se repetem; novos ouvidos se põem a e, quanto mais se fazem colossais as formas, menos aptas são
escutar; novas almas cansadas acorrem, suplicantes. Juntam-se para contê-lo. O grande edifício é um gigante que permanecerá
uns, e depois outros, e a palavra multiplica a palavra, o exem- mudo e vazio, prestes a desmoronar, se não vier a escorá-lo a
plo multiplica o exemplo, a redenção multiplica a redenção, a única força verdadeira que o pode fazer: o espírito. Abandone-
ascensão multiplica as ascensões. A onda avoluma-se, o grupo mos os inúteis protelamentos humanos, a sagacidade da terra e
se faz multidão, multidão imensa, incontável, até aos confins do do tempo! Se o espírito se vaporiza, fica um corpo sem alma;
mundo. As estradas da vida se abrem. O carreiro estreito e es- um cadáver em putrefação. Além das formas existe uma reli-
pinhoso dilata-se e se eleva; vejo-o desaparecer no céu, como gião substancial, única que poderá resistir aos momentos terrí-
rasto luminoso de um bólido. veis. Existe uma substância íntima e vivificadora, a força única
Eu sigo em último lugar, depois de todos. A cada passo, mi- que tudo sustenta – um imponderável sem o qual desmoronam
nha alma cai e tenta reerguer-se, peca e espera redimir-se, sofre, os mais suntuosos templos. Tudo é inútil peso morto, tudo é pe-
expia e sonha elevar-se; e tropeço, paro e recuo. Mas estas que- rigosa dispersão, se não houver um meio de acender e manter
das me remergulham na humanidade, na vida de todos, me hu- nas almas, que são os verdadeiros templos, o espírito do Evan-
milham e me irmanam aos humildes. É preciso que eu esteja gelho. Não são as posições humanas e a sua consolidação que
ainda aqui em baixo, na minha imperfeição e no meu trabalho. sustentam o edifício divino. A segurança, suprimindo a luta,
Se caio, minha vista se ofusca, mas não posso viver na minha suavizando a subida do Calvário, adormenta a capacidade de
cegueira e sou constrangido a subir. Não posso viver sem a sen- conquista. Cristo é uma força ativa e presente antes de tudo nas
sação de Cristo. Amor e dor, dor e amor. Minha alma cansada almas. Não pode ser destruída, não pode ser oculta. Se o orga-
caminha, caminha. Mas um dia, sobre o áspero caminho de nismo que a exprime não mais a contém, ela renascerá noutro
meus esforços, senti um passo junto ao meu, senti outro ombro lugar. Quando esta flamejante e evanescente alma das formas
aproximar-se do meu, levantar a minha cruz e transportá-la para se ausenta, mesmo que para os olhos humanos esteja bem fir-
mim. Desde então, não fiquei mais sozinho. Outro coração se me, tudo está intimamente corrompido. Se a presença de Cristo
debruçou sobre o meu, a dor tornou-se amor, e mais ninguém não sustém, se o Divino tem de se afastar, então se abre o abis-
poderá arrancar-me à indissolúvel aliança. No entanto eu caí mo; e Cristo, humilde e simples, coloca-se em outra dimensão e
novamente e, então, desanimei por minha fraqueza e tive medo continua em outro lugar o seu trabalho.
por minha indignidade. Então, a Voz me disse: “Não temas. Então, quem és Tu, Cristo? Perguntei-o à minha dor, que
Meu amor é mais forte que tua debilidade. Apoia a cabeça so- tudo me ensinou, inclusive a reencontrar Deus, e ela me res-
bre meu peito e descansa”. pondeu: “Ele é o fraco a quem deves ajuda, o inimigo ao qual
Então, tornei a apanhar o Evangelho, para reler e recordar. deves perdão, o pobre a quem te deves tu próprio. Ele é paixão
Aquela Sua palavra doce e potente me empurra como um forte e renúncia, amor e ascensão. Ele é amplexo e elevação de alma
vento e me leva longe, até Seu mundo, que não é este mundo. – e anda pela Terra, dia a dia, procurando, implorando hospita-
Releio lentamente aquela música vasta como o infinito, e minha lidade nos corações, porque o Dono do mundo não tem casa
alma desce, de trecho a trecho, aos significados mais profundos nem teto e anda, qual peregrino, esmolando amor”.
da Sua palavra. Aquela música me acalma, esta profundidade
me sacia. Somente ali, encontro os espaços ilimitados que mi-
XIII. MINHA POSIÇÃO
nha alma deseja. Aquela palavra doce é uma espada de fogo
que me penetra a alma e a atravessa como o olhar de Deus; é a
Chegou o momento de dizer tudo sobre mim mesmo, até à
vibração mais harmônica que eu possa conceber no universo.
última profundidade, de assumir a minha posição e a minha
Aquela palavra ressoa no meu coração como a harpa de um an-
responsabilidade. Eu disse em páginas anteriores (Segunda Par-
jo e dissolve a dor. O meu espírito não tem ecos bastante pro-
te, Cap. III – “Dor”) como devia dizer toda a minha verdade,
fundos para exprimir a múltipla, imensa riqueza daquela vibra-
dar testemunho das minhas afirmações com a palavra e com o
ção. Sinto-a alcançar-me, maravilhosa e me aterrorizo ao ouvi-
exemplo, dar a certeza da ideia que possuo. E disse (Segunda
la extinguir-se em minha sordidez. Em mim, a vibração purís-
Parte, Cap. I – “Em Marcha”) que a minha prudência seria vil,
sima daquela onda se distorce e deforma, recebe ressonâncias
se no momento decisivo me calasse ou não dissesse tudo. O
desarmônicas, e eu choro por mim e por minha opacidade terrí-
meu último volume culminava, nas conclusões 35, na afirmativa
vel, que tudo ofusca e deturpa.
de que A Grande Síntese é uma revelação conexa, em sua subs-
Mas com que direito ouso eu falar de Cristo? Como não
tância evangélica, ao desenvolvimento gradual, na Terra, do
compreendo o absurdo de tal intimidade, não ouço a rebelião do
pensamento de Cristo, que é emanação contínua. Então, senti
universo que diz: “Para trás, imundo! Não sentes o cheiro de tua
que também me movia sobre a linha da inspiração cristã e per-
baixeza?”. Então, fujo horrorizado de mim e torno a olhar de
cebi com que imensa noúre estava em sintonia. Com isso, defi-
longe, do fundo da minha miséria, aquela beleza, da qual já não
ouso avizinhar-me. Não sei como a minha pena não se despeda- ni a significação daquela obra. Não nos limitemos à moldura, à
ça na violência desta minha sensação, no contraste da consciên- veste editorial, à colocação humana. O conteúdo ultrapassa es-
cia de mim mesmo e a irresistível atração. Este tormento de for- tes confins, resultantes apenas da necessidade do momento. Re-
ças me abate, me eleva, me anula e, no entanto, se faz próxima; feri-me à gravidade da hora histórica, que justifica métodos ex-
me estraçalha e, no entanto, me acaricia. Não sei como o meu cepcionais para a ressurreição de Cristo no mundo. Então, era
coração não se arrebenta na exuberância da alegria, no ímpeto cedo para dizer mais. Era necessária minha nova maturação,
da paixão, quando aquela música ainda me arrebata, me levanta, que aparece neste volume, para continuar; era necessário este
me conduz ao alto, a perder-me nos céus. Como sofro ao ver os novo testemunho para que o leitor pudesse compreender me-
cegos que afanosamente procuram o Cristo na história e douta- lhor. E, mesmo agora, destruo as pontes atrás de mim, para que
mente discutem e tentam a reconstituição de sua figura entre as não me seja aberto senão um caminho: o de avançar.
cinzas do tempo, enquanto que Ele está próximo e sensível. Ele Quanto eu disse de Cristo e, sobretudo, quanto direi nos úl-
ressurgiu, está vivo, caminha adiante de nós. Reabramos os timos e mais intensos quadros que se seguem, é uma confissão
olhos que O esqueceram e revê-Lo-emos. feita em termos tão sentidos, tão gravemente cheios de empenho
Não! Nós não o vemos. Em vinte séculos de história, aquele
35
perfume sutil esvaiu-se. Nossas mentes e nossos corações, à for- As Noúres, Cap. VI – Conclusões. (N. do A.)
222 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
diante de Deus, que não se pode admitir a mentira. O equilíbrio O movimento é espiritual. A meta é um reino que não é da
deste estudo exclui qualquer enfermidade de consciência. Nem Terra: o Reino dos Céus. A forma é aristocrática; enfrenta a in-
tais afirmações se fazem com escopos humanos, porque elas telectualidade e a cultura, porque são a aberração do século.
representam um gravame terrível para quem assume por elas, Não se tocam os estratos inferiores, mais densos e menos ma-
como eu o faço, plena responsabilidade. Este é o testemunho duros para a compreensão. Tudo desce depois, automaticamen-
que eu devo dar hoje, por absoluta ordem interior, da verdade te, por gravitação, na assimilação e também, ofuscando-se, na
de A Grande Síntese. A íntima ligação de minha alma com realização. Ficamos em uma atmosfera pura, pelo menos no
Cristo, aqui exposta, confirma hoje e revalida as minhas graves momento da gênese e da concepção. As forças substanciais não
afirmações de ontem, num caminho de tenaz e inflexível coe- agem do exterior, mas vão diretas ao coração do homem; in-
rência. É o testemunho de seu conteúdo cristão, motivo central crustam-se nas motivações, e estas forças cósmicas estão aqui
no renovamento da civilização. Disse-o inequivocamente; é presentes, em ação. Aqui tudo é forte porque é imaterial; é in-
preciso que compreendam também em alguns de meus silêncios destrutível porque é imponderável. Quem está na matéria, se
terrivelmente eloquentes. A minha meta é construir; nunca me desejar destruir, encontra o vazio e não sabe o que agarrar.
verão aqui acusar, agredir, demolir. O meu escopo é o bem, é Quem está no espírito compreende e não pensa em destruir. Es-
unificar, e não semear dissensões, irritações e antagonismos, te é um germe tão espiritual, que não toma forma humana; é a
polemizando. O meu método tem de ser, necessariamente, o substância da fé, é um dinamismo puro, que em toda parte che-
método de Cristo – o sacrifício, o perdão, o amor. As dificulda- gará e em qualquer divisão humana poderá frutificar. É uma
des e os dissabores são apenas para mim. A verdade vale por si, paixão de bondade que pode existir em cada casa, em cada ins-
não por mim. A verdade é que tem valor, e não eu. tituição, em cada opinião; é um princípio de honestidade, do
Mas, perguntar-me-ão, que significa tudo isto, que é que eu qual cada autoridade não poderá senão se regozijar. É uma pu-
desejo e aonde pretendo chegar? Não o sei precisamente, hoje. reza e uma sinceridade em que cada alma se sentirá renascer. É
Certamente não se diz tudo quanto eu disse apenas para se lançar a luz de Deus, que se dá a todos acima dos monopólios huma-
um livro. Sei apenas que atrás de mim há uma força imensa, à nos; é pura destilação de força e bondade, alcançada na fonte,
qual obedeço e sigo sem saber, eu mesmo, dos futuros desenvol- antes que atinja a canalização e as impurezas humanas. Parece
vimentos. Eu semeio, mas não colho. Devo ser inteiramente des- nada, porque não desceu ainda à forma fixa e concreta. Flutua
ligado do fruto do meu trabalho. A minha recompensa está em no ar como um perfume, como o orvalho ainda não denso. Mas
outro lugar, está apenas em Cristo e em Sua aproximação. Não este é o estado mais dinâmico, o estado da gênese. É o espírito
aprendo o meu caminho humano senão dia a dia. Assim tem sido do Evangelho, que volta na sua esplêndida fase primordial. Ele
até agora. Não se me atribuam, portanto, perfeições e méritos, nada possuía, senão mártires.
pois não os tenho e, se faço alguma coisa, não é minha. E per- Na sua origem, o fogo do espírito era líquido e jorrava em
guntar-me-ão: trata-se de um movimento? Tranquilizem-se to- abundância das grandes crateras abertas. Hoje, o homem está
dos. Não é um movimento no sentido humano. O homem é muito imerso na matéria; um século de ciência volatilizou o evanes-
apegado às suas distinções, divisões e organizações humanas, cente perfume do Céu. Hoje recolhemos as últimas fagulhas
porque incluem interesses. Eu lhes deixo todas estas coisas que semiextintas e as conservamos religiosamente nas lâmpadas
tanto lhes agradam e que para mim nada valem. Nada se muda do acesas, cansado e pálido reflexo do incêndio original. Mas isto
que é externo, porque o exterior não conta. Dir-se-á: é utopia. não basta para desfazer as trevas, que se tornam cada vez mais
Não. As verdadeiras forças estão no Céu, as forças que renovam densas e ameaçadoras. Não basta o monumento das verdades
a Terra. Nós vimos e sentimos seu maravilhoso funcionamento. escritas, conservadas num invólucro imponente que se formou
Um homem não pode realizar certos movimentos, mesmo através através dos séculos. O espírito é uma força viva que habita no
de seu heroísmo e de seu martírio; eles despontam na hora histó- coração do homem. É uma força, não uma palavra escrita, e,
rica, no sangue dos povos, no equilíbrio da civilização. Estas for- como força, se difunde e se exaure, não pode ser fechada no
ças, que tudo operam, se o quiserem, lançarão o homem, além de imóvel. Extremamente móvel, ele se nutre de vida, é uma radi-
sua própria vontade, onde ele não saberia chegar, como um ex- ação que desce do Alto, é um calor que se dissipa, se não rece-
poente que parece elevado, mas que, substancialmente, pode ser be continuamente novo calor para comunhão da alma com o
insignificante. É um fato que certos movimentos substanciais do Céu. “Litera Occidit spiritus autem vivificat” (Cor. II – 3.6)36.
espírito não descem sobre a Terra, mas estão fora de qualquer re- Muitas vezes, nós trocamos o continente pelo conteúdo, toca-
cinto, entre o mundo e o Céu, e nunca se desenvolveram valori- mos o invólucro pensando tocar o fogo, mas em verdade fica-
zando categorias humanas. Não se cuida, pois, de qualquer pro- mos frios. O hábito nos acostumou à forma; ouvimos palavras
priedade; tudo é dirigido tão-somente pela força do espírito. O incendiárias e permanecemos indiferentes. Que pesado fardo
homem pensa por demais em corrupções. Por isso não quero nem humano tem a Igreja de arrastar no seu caminho divino! Tanto
casas, nem sedes, nem cargos, nem a larga pestilência das orga- esfregamos nossas almas impuras nas coisas santas que, em lu-
nizações humanas. Nada que possa atrair os baixos instintos ou gar de nos santificarmos, tornamos estas impuras. Abaixamos
estimular as sempre rápidas reações dos impulsos inferiores do tudo ao nosso nível, a fim de podermos carregar tudo conosco,
homem comum. Nenhuma fetidez de dinheiro, que tanto atrai os para nosso uso e consumo.
ávidos e sombrios aduladores. Estes fogem, graças a Deus, em Mas a verdadeira fé é um incêndio que se situa, com difi-
face de um prato onde não há senão fadiga, dor, paixão de espíri- culdade, no círculo das coisas humanas. É um perfume que não
to. Esta é a minha segurança. se pode fechar em frascos. É toda uma espontaneidade festiva
Ai das crenças que não exalam somente o perfume da e, se deve ser codificada em lei, é pela triste necessidade de ser
renúncia! adaptada à vida dos cegos. Esta fé é hoje necessária, necessária
Esta é a minha força diante do mundo: a ideia pura e nua é esta erupção espontânea e direta das forças do Céu, necessária
como desce do céu e atirada como semente ao vento, para que esta explosão de energias irrefreáveis como o raio e a tempes-
germine sob o impulso secreto das leis da vida. Só a imateriali- tade. Pergunto que coisas poderia fazer um punhado de homens
dade é garantia de invulnerabilidade. A força da ideia que de- fortes, poderosos pela disciplina do espírito, armados desta psi-
senvolvi e sempre segui não se desmente e confia só e sempre cologia heroica, dirigida à renovação da civilização; que coisas
unicamente nela mesma. Atrás dela estão as forças do infinito,
e elas me joeiraram tremendamente a princípio. Agora se de- 36
“A letra mata, mas o espírito vivifica”. Palavras do Apóstolo Paulo,
senvolvem, como verifico, com método e lógica. em sua Carta aos Coríntios. (N. do T.)
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 223
poderiam fazer diante da massa inerte, das maiorias jocosas e é um controle contínuo de correspondência de capacidade, é um
cegas, que não procuram senão o prazer, sem paixão por ideais permanente exercício, é um equilíbrio de forças, que leva a alma
nem vontade de martírio, sem saber nada dos grandes desígnios até aquele ponto de sua missão que ela é capaz de suportar, e
da vida. Em cada encerramento de um ciclo de civilização, tal não além, porque então ela seria abandonada e cairia.
como para as plantas em cada estação, é necessário uma brota- Sinto, afinal, levantarem-se menores objeções, as quais,
dura nova e fresca que atinja diretamente as fontes da vida e um ocupado com outros problemas, não tenho até agora considera-
flamejar de sol que amadureça a messe. Outrora, em tempos de do, mas que devo considerar. Tudo isto pode parecer não ser
calma, de inércia espiritual, era possível ficar calado e viver de senão o eu humano que grita em mim, que se ensoberbece e se
acomodamentos, mas não hoje, quando o inimigo está às por- agita. Modéstia, modéstia. O verdadeiro místico é, sobretudo,
tas. Estamos diante do dilema: ou ressurgir no espírito, ou mor- humilde, e este é o livro do orgulho. Que é isto de subir à cáte-
rer na matéria. A história prepara uma tremenda convulsão de dra, podem dizer-me, e fazer vaidosas afirmações de altíssimos
dor. É a voz de Deus para os surdos, é a via da redenção. É o contatos de espírito, não provados pelos outros, e que implicam
batismo da tempestade, que faz voltar a pureza; é paixão de al- numa gratuita posição de superioridade e autoridade, decerto
ma, que faz subir novamente. Não é destruição – é renovação. não aceitável pelos demais.
Não temamos, Cristo se aproxima, não apenas como justiça Pense-se, porém, no que é este livro. Ele é uma desesperada
mas também como salvação. Nos séculos de tranquilidade, tam- invocação a Deus, de uma alma que, vendo o que é o mundo e o
bém o céu fica tranquilo. Mas, nos momentos de tempestade, o que o espera, oferece para salvá-lo, nada mais tendo para dar, a
céu se abre e, entre os raios, lança relâmpagos de luz. Quando os si próprio (ver capitulo XXVII – “Paixão”), mesmo que seja
tempos estão maduros, uma ferida se abre na história e jorra ameaçado de destruição. A psicologia comum dos críticos mo-
sangue e linfa vitais. Sem isto, parece que a humanidade não te- ve-se em outro plano; não seria possível contentar a todas as
ria forças para continuar seu caminho. O inimigo está chegando pessoas e divergentes exigências. Mas, aqui, eu sinto bem dife-
ao centro da fortaleza. Cristo tem de recomeçar do princípio. rente: sinto a que imensa incompreensão vou de encontro e, no
Nos momentos supremos e decisivos, só resiste quem for subs- entanto, não posso deter-me. Isso assinala o início do meu mais
tancialmente forte e estiver abastecido de espiritualidade, e não intenso sacrifício. Falo forte e alto, perturbo os que chegam, des-
apenas de habilidades humanas. Mas o mal, se destrói, também faço os acomodamentos, semeio o incêndio nos ânimos. Sou vi-
purifica e, nas mãos de Deus, é guiado para os limites do bem. olento no espírito porque devo abalar e salvar. Não me iludo:
O mal é cego e não o sabe, mas o bem, que o guia, sabe-o. devo pagar pelas minhas afirmativas. Antes morrer que pensar
As tempestades reedificam e são bem-vindas. não possa mantê-las. Não são coisas que se afoguem no silêncio
Deus escolhe os Seus meios em toda parte, mas bem rara- ou possam desaparecer na indiferença. Chegará a hora do teste-
mente entre as fileiras oficiais, entre os poderosos e os sábios. munho ainda mais evidente, não já de palavra, mas de ação e de
Os pobres seres que se fazem admitir neste movimento, arris- dor. O meu caminho se estreita, e não posso retroceder. A depu-
cam-se, a cada instante, a ficar pulverizados. Eles terão de ração deve ser severa e exigente na proporção da massa de afir-
fornecer sozinhos, sem apoio, o testemunho supremo de sua mativas feitas. Qualquer um na Terra tem o direito de enfrentar
verdade. E esta não poderá pairar senão mais tarde, sobre um quem assim fala e dizer-lhe: “Exijo provas”. E eu devo estar
consenso de almas, que não se pode formar senão lentamente, pronto. E bem sei que a sociedade moderna, que evita o sangue,
por maturação e por vias interiores, e só depois da experiência sabe triturar um homem de forma sutil muito mais dolorosa.
completa, quando a vida encerrar-se, isto é, quando aquele E diante deste pressentimento foi que senti não poder renun-
consenso não puder mais levar a quem agiu, nenhuma ajuda e ciar ao dever de dar testemunho de minha verdade. Não cumprir
nenhum conforto. esse dever seria para mim trair minha missão. Não posso. E aqui
Mas também o Alto é avaro de auxílios, não dá sinais nem estou para sofrer as consequências. Não há alternativa. Espiritu-
provas. Estas seriam uma espécie de patente de autorização pa- almente, o mundo já está em chamas. Não é lícito, neste mo-
ra o exercício pacífico da própria missão. Não. Ele deve ser ex- mento, cruzar os braços e ficar como espectador, porque a tem-
posto a todos os ventos, golpeado por todos os assaltos. A sua pestade vem para todos. Qualquer absenteísmo espiritual é hoje
alma deve ser atirada nua na poeira das estradas, onde todos culpa e vilania. O mundo deve decidir e escolher seus valores,
possam pisá-la. Nada de posições protegidas e seguras, que um princípio deve vencer. Os neutros serão arrastados e se tor-
adormentam e ensoberbecem, mas humilhações, lutas, incerte- narão servos. E as palavras que eu digo não poderiam ficar ape-
za; não a alegria da colheita, mas a fadiga da sementeira. nas nos altos céus, tão distantes da universalidade. Devem des-
Muito mais rude que o da Terra é o selo do Céu! Esta exce- cer também à forma precisa de luta e de conquista que o mo-
ção, que é péssimo exemplo para a mediocridade ignorante, de- mento histórico impõe, momento de ação tremenda e decisiva.
ve sofrer os mais severos controles, para que a estrada não seja As palavras que eu digo devem saber precisar, no seio da uni-
escancarada pela rebelião e pelo erro. A lei é que cada superação versalidade evangélica, o pensamento que temos hoje o dever de
de normas não seja lícita senão quando se entra em normas hu- lançar ao mundo, e, neste pensamento específico, feito de vida,
manamente mais rígidas, moralmente mais elevadas. Quem vive devo oferecer minha contribuição. E se este livro puder parecer
protegido pela autoridade, cedendo a esta o peso de sua respon- um imperdoável ato de orgulho e de audácia, é justo que eu pa-
sabilidade, tombará neste caminho. Quem for escolhido, terá gue. Aqui estou para isso. Para mim, existe outro prélio no Céu,
uma soma muito maior de deveres e somente poderá resistir e aonde a Terra não chega, e estou a postos. Que os sonolentos se-
vencer com a ajuda de Deus. Ele o sabe. Uma missão é um ca- jam abalados. O sono é hoje a pior das posições.
minho que se restringe cada vez mais, às vezes até ao martírio. Compreendo que, para quem vive no plano normal, no qual
Ele o sabe e não foge. Ele deve dar testemunho. Se Deus não es- o movimento histórico é menos sensível, a minha atitude possa
tiver próximo, tal caminho não se poderá percorrer. Só quem es- parecer, desde logo, exaltação, perigosa audácia, pretensão ab-
tá ao lado de Deus concorda em arar semelhantes campos. Neste surda, estranha megalomania, efeito de desmedido orgulho.
clima, nenhuma motivação humana resiste. O verdadeiro cha- Mas, na hora premente de hoje, eu não posso viver de acordo
mado se faz reconhecer pela ausência de qualquer motivo terre- com as medidas e as prudências humanas, que são proporcio-
no, por um particular método de luta, por uma cor psíquica in- nais a fins humanos. Confesso, sim, que sinto tudo isto como
confundível. E só então ele corre e avança, quando os instintos um grande dever, um encargo de grande responsabilidade. Não
humanos foram destroçados pela raiz e nenhuma outra coisa se- se veja em tudo isto, e especialmente na unificação de que falei,
não Deus pode estar nele. Tudo isto é uma peneiração cotidiana, uma posição elevada e de vantagem conquistada para sempre.
224 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
Veja-se, ao invés, uma posição de trabalho, na qual me devo posições terrenas, perdendo então a suprema e divina força, e
manter a custo de uma contínua tensão de espírito e que posso enfileirar-se, por coerência, no nível das forças humanas, limi-
perder apenas dela deixe de ser digno. A unificação não é um tadas e vulneráveis, quais o próprio homem.
agigantamento do meu eu humano, coisa que tantos temem, Está ao alcance da mão uma grandeza imensa, essencial na
mas é o eclipsar-se deste eu numa unidade maior. Não é autoe- nova civilização. Quem desejará valer-se dela37? Trata-se não
xaltação falar deste novo eu em que meu ser desaparece. Para de salvar um organismo, mas de salvar o mundo, que precisa de
mim é, ao contrário, um ato de suprema consagração. Examino- Cristo38. Agita-se neste livro um conflito mundial trágico e imi-
me e me confesso sem pretensão de infalibilidade. E isto é tudo nente, do qual dependerão os futuros milênios. Ai da Igreja vi-
o que sinto agora na minha consciência. Não tenho culpa se as- sível da Terra se dela se afastar a Igreja invisível de Deus! Há
sim é, por sua natureza, para quantos o vivem, o fenômeno mís- outra religião, mais profunda, dentro da religião, que supera to-
tico, se eu me encontro a vivê-lo agora e se isso está fora da ex- das as formas e sem a qual nenhuma religião é valida. É um
periência normal e além da compreensão. sentimento universal que é a alma de todas as fés e que se faz
Algumas coisas não se dizem, poderiam ainda objetar. Mas sentir por sua verdade. Há uma religião de superfície, feita de
eu tenho o dever de dar o exemplo, de devolver o que recebi, de práticas, formal, sancionada, forte, triunfante, organizada e em
dar aos outros a alegria conquistada, o dever de indicar o cami- marcha como um exército. E há outra religião, sem clero, sem
nho e de testemunhar minha experiência. Tenho o dever, pesa- autoridade, pobre, sofredora, simples, forte apenas por uma fé
do e gravíssimo, de inquietar as consciências, que é necessário imensa e vitoriosa no céu. Há um Cristo maior, que não está só
para os que dormem. Cumprido o dever, silêncio. O fenômeno, nas imagens e nos templos, mas em todo o lugar onde uma al-
naturalmente, fica, e vivíssimo, mas, acabada a necessidade de ma sofre e ascende. Há santuários também no coração do ho-
manifestá-lo para um fim benéfico aos outros, minha boca se mem e momentos nos quais a alma pode falar diretamente com
fecha, e tudo ficará fechado sob o selo do meu silêncio, simples Deus. É necessário reafirmar este imponderável, sem o qual ne-
fato pessoal, presumível apenas por suas consequências. Mas nhuma religião é religião. É necessário reviver como nos tem-
fazer-me compreender primeiro é hoje parte de meu dever. Era pos em que as coisas do espírito estavam presentes, quando se
necessário explicar, e esta sinceridade pode ser uma prova ca- manifestavam não apenas como um eco longínquo das profun-
paz de sacudir as almas. Não vejo outro meio de fazer isto. Que dezas dos séculos, mas sim como forças ainda incandescentes e
pode importar, ante a urgência da hora e a perfeição da meta, destemidas, não resfriadas e cristalizadas. É necessário retornar
diante do bem de tantos, se para tudo isto um só se deva expor à força virgem do primeiro Evangelho e do primeiro francisca-
às críticas e ao sofrimento? À natureza humana normal repugna nismo. Só assim se poderá enfrentar com esperança o futuro.
a ideia nua e abstrata. É necessário que essa ideia se materialize Neste sentimento culmina a catarse mística de minha alma.
num ser que a viva aqui, lutando, sofrendo, testemunhando. O A minha ascese não é, portanto, fenômeno circunscrito ou ato
homem comum exige esta materialização para contra ela bater a fechado no meu egoísmo, mas se expande e se dobra sobre o
cabeça – é preciso dar-lha. Eu, porém, tenho aqui a sensação mundo. A minha paixão demonstra que a metanóia 39 a que nos
humanamente penosa de uma pública confissão, a sensação da guia o Evangelho, o superamento e a reviravolta de valores que
última espoliação da minha personalidade, que assim não tem ele nos impõe, toda a sua revolução de espírito, não são utopia,
mais ângulos seus, nem segredos, nem refúgio, porque tudo como muitos acreditam, inexequível só porque não foi e não é
deu, toda se expôs e toda, já agora, pertence aos outros. sempre realizada segundo as praxes religiosas e sociais. Quem
Digo-o e repetirei para que também o leitor distraído perce- isto afirma é cego para o imponderável. A luz e o bem que eu
ba: por caridade, não se me atribua qualquer coisa de excepcio- recebo do Alto tenho de devolver e vivo para isso. Por caridade,
nal e de superior como homem. Nada seria mais falso e mais não se me entenda mal, dando qualquer valor à minha pessoa,
nocivo para o meu trabalho. Não se esqueça jamais o quão pro- que não tem nenhum, julgando capaz da mínima perfeição mo-
fundamente estou mergulhado nesta natureza humana, contra a ral este pobre verme que eu sou. E isto também é verdade, e
qual tanto luto dia a dia. Faço uma declaração. Se não a quise- devo testemunhá-la. Eu não sou senão um vil e frágil instru-
rem compreender, a culpa não é minha. Não poderei, por isso, mento colhido numa engrenagem gigantesca. O meu estribilho
mudar o meu caminho. Faço de uma vez e para sempre esta é este, e eu o repito cada noite, ao fim do cansaço do dia: “Se-
bem clara distinção: não se me atribua nada de bom que eu pos- nhor, eu sou o teu servo. Nada peço senão isto”.
sa fazer. Isso não é meu. Esta é a verdade. Atribuam-se-me, ao Gradualmente chegamos bem longe das proporções estrita-
invés, todos os defeitos, as fraquezas, as culpas que possa ter o mente científicas em que este estudo começou.
meu trabalho. Tudo isto, sim, é verdadeiramente meu.
37
O leitor considere com seriedade e imparcialidade as palavras seriís-
XIV. MOMENTOS PSICOLÓGICOS simas que se seguem no texto. A oferta foi feita sinceramente também
à Igreja de Roma, para que a mesma se renovasse para o seu próprio
Devo completar o estudo do fenômeno também em seu as- bem. A resposta veio com a condenação do livro. Este foi escrito em
pecto religioso. Falando assim tão intensamente de Cristo, era 1938. O autor continuou oferecendo a sua obra de bem aos diversos
grupos humanos, para a salvação do mundo. No fim, foi o Brasil.
inevitável referir-me à Sua Igreja. Minha ascese levou-me ao
que a compreendeu e a aceitou, pondo-se assim na vanguarda. Infe-
mais cristão dos misticismos. Eu mesmo devia alcançar o plano lizmente tudo se está preparando na história para que estas páginas
místico para poder compreender e afirmar estas conclusões. Os proféticas se realizem. Mas, quando foram escritas, ninguém quis
últimos trechos deste volume, que chamo momentos psicológi- acreditar e foram rejeitadas. (N. do A.)
38
cos, descreverão as minhas últimas realizações espirituais. Gos- Esclarecendo ainda mais e ampliando estes conceitos, o mesmo au-
taria de me calar, mas a Voz me disse: “Fale sempre mais claro tor escreveu Profecias e Problemas Atuais, publicados por esta Edito-
e sempre mais forte”. Em certos caminhos não é possível parar. ra. (N. do T.)
39
Tenho olhado a Igreja com o mesmo ânimo respeitoso e reve- Metanóia – palavra de origem grega (metánoia), significando con-
rente com que tenho olhado Cristo. Serei o último a levantar a versão, não apenas no sentido de arrependimento de erros e pecados,
mas ainda, e bem significantemente, de “mudança de espírito”, “mu-
voz contra ela. Mas meu coração estremece pela gravidade das dança de mente”. Vejam-se Mt., 4:17; 21:30; II, Cor., 7:8 etc. Neste
provas, pela proximidade do momento. O dilema é tremendo: verdadeiro sentido evangélico, o autor usou a palavra metanóia no
ou reencontrar a força no espírito, conservando-a nua diante de texto original: “... la metanoia a cui ci guida il vangelo, il superamen-
Cristo, qual Ele a fez, e somente tal pacto supremo respeitar no to e rovesciamento di valori che esso ci impone, tutta la sua rivoluzi-
mundo, em contato com o Céu, ou continuar consolidando as one di spirito...”. (N. do T.)
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 225
Durante o trajeto apareceram na minha consciência momen- um frio muito intenso o atormentava. Chamou, nesse momento,
tos culminantes, de mais evidente sensação, de mais intensa o Irmão Leão, que ia mais à frente, e assim lhe falou: „Ó Irmão
emoção. Isolei-os e, aqui, os exponho sucessivamente, porque, Leão, ainda que os Irmãos Menores dessem no mundo inteiro
no desenvolvimento deste trabalho, teriam desfeito o desenvol- grande exemplo de santidade e boa edificação, não obstante, es-
vimento lógico da argumentação. São visões diferentes, mas creve e toma cuidadosa nota, que nisso não está a perfeita ale-
exprimem sempre o mesmo caminho da minha ascensão. São, gria‟. E caminhando um pouco mais, São Francisco o chamou
talvez, o exemplo de uma arte nova, baseada numa psicologia pela segunda vez: „Ó Irmão Leão, ainda que o Irmão Menor res-
científico-espiritual nova. titua a vista aos cegos, cure os paralíticos, expulse os demônios,
Aqui, termino o meu trabalho. Os quadros se desenvolve- faça os surdos ouvirem, os coxos caminharem e os mudos fala-
ram sem comentários, num crescendo insistente, no qual quem rem e, o que é muito mais, ressuscitasse um morto de quatro di-
não crê e não sente, mas só observa e raciocina, poderá ver o as, escreve que não está nisso a perfeita alegria‟. E, andando um
desenvolvimento do fenômeno como foi colocado no princí- pouco mais, São Francisco, em voz alta, falou: „Ó Irmão Leão,
pio, em seu aspecto científico. Estes quadros, depois de terem se o Irmão Menor soubesse todas as línguas, ciências e escritu-
atravessado diversos níveis espirituais e planos de consciência, ras, e se soubesse profetizar, revelando não somente coisas futu-
e os mais contrastantes momentos do meu subconsciente e do ras, mas até mesmo os segredos das consciências e dos homens,
meu superconsciente, depois de se terem desenvolvido em di- escreve que não está nisso a perfeita alegria‟. (...) E, continuan-
versas perspectivas da realidade interior do imponderável, ex- do a falar assim pelo espaço de duas milhas, o Irmão Leão, mui-
plodiram numa visão suprema: “Paixão”, o último grito em tíssimo admirado, lhe perguntou: „Pai, peço-te, da parte de Deus,
que minha voz se apaga. Esse quadro é realidade vivida. Quem que me digas onde está a perfeita alegria‟. E São Francisco lhe
quiser me acoimar de louco, releia a parte científica, onde a es- respondeu: „Quando chegarmos à Santa Maria dos Anjos, intei-
ta minha interrupção dei sólidas bases. ramente molhados pela chuva e enregelados pelo frio, enlamea-
Tal é o meu ponto de chegada hoje. Amanhã, não sei. A dos e atormentados pela fome, e batermos à porta do convento e
verdade é que minha vida caminha. Quem me seguiu até agora o porteiro chegar irado e disser: „Quem sois vós?‟, e nós respon-
o sabe. Mas os desenvolvimentos mais altos estão hoje acima dermos: „Somos dois de vossos irmãos‟, e ele disser: „Não falais
do que posso conceber. Cristo é uma beleza tão completa, uma a verdade. Sois dois malandros que andais enganando o mundo
grandeza tão vasta, um conceito tão conclusivo, uma perfeição e roubando as esmolas dos pobres. Fora daqui!‟, e não nos abrir
tão absoluta – que não é possível superá-la e imaginar além. É a a porta e nos deixar de fora, expostos à neve e à chuva, com frio
saciedade do desejo, o último término da mente e do coração. A e com fome, até à noite; então, se suportarmos pacientemente
Sua figura não tem sombras para serem esbatidas; é um infinito tantas injúrias, crueldades e rejeições, sem nos perturbarmos e
e a ele nada se pode juntar nem se pode superar. Mas justamen- sem murmurações contra ele, se, com humildade e caridade,
te porque é um infinito, não tem pausas nem fim, e nunca se pensarmos que aquele porteiro verdadeiramente nos conheça e
acaba de percorrê-lo. A vida, que não se encerra nunca, será pa- que Deus o fez falar contra nós, ó Irmão Leão, escreve que nisto
ra mim uma eterna imersão naquela profundidade sem limites. está a perfeita alegria. E se nós continuarmos a bater à porta e
ele sair perturbado e nos expulsar como vadios importunos, com
XV. IRMÃO FRANCISCO insultos e bofetadas, dizendo: „Ide embora daqui, ladrõezinhos
miseráveis, ide para o albergue, porque aqui não tereis comida
Peregrinei por toda esta minha terra úmbrica e, além de nem abrigo‟; se isso suportarmos pacientemente, com satisfação
seus confins, corri no encalço de suas subterrâneas descen- e com amor, ó Irmão Leão, escreve que nisto está a perfeita ale-
dências, ressurgidas em terras limítrofes. Nestas, me detive gria. E se nós, constrangidos pela fome, pelo frio e pela noite,
longamente, para me encontrar, a mim mesmo. Nos seus si- batermos e chamarmos de novo, e pedirmos pelo amor de Deus,
lêncios austeros e sublimes, minha alma viveu sua mais inten- com muitas lágrimas, que nos abra a porta e nos deixe entrar; e
sa maturação. Os horizontes altíssimos de suas montanhas me se o porteiro, mais escandalizado ainda, disser: „Esses são ve-
deram a sensação de Deus. lhacos importunos, dar-lhes-ei o que merecem‟, e sair com um
Peregrinei por toda esta terra franciscana, de Assis à irmã nodoso bordão, agarrar-nos pelo capuz, atirar-nos ao chão, re-
Gubbio; do Subásio ao Alverne; da Porciúncula a Greccio. volver-nos na neve, golpear-nos com aquele bordão, nó por nó;
Andei apaixonadamente interrogando as antigas pedras, para se nós suportarmos todas estas coisas com paciência e conten-
que me contassem o segredo de sua história. Estreitei-as ao tamento, pensando nos sofrimentos de Cristo bendito, e que tudo
coração, banhei-as de lágrimas. E falei: Dizei-me, vós que o devemos suportar pelo Seu amor, ó Irmão Leão, escreve que nis-
vistes, o São Francisco humilde e pobre, recordais? Não é to está a perfeita alegria‟ (...)”.
possível que um hálito de seu imenso respiro não tenha ficado ◘ ◘ ◘
em vós também; não é possível que o seu abrasante amor não Estava frio, no entanto fazia tanto calor no coração! Estava
vos tenha percorrido com uma vibração tão poderosa, que não escuro, e, no entanto, resplandecia tanta luz na alma! A tormen-
permaneça até agora e que deveis comunicar-me. Não ouvis- ta era rigorosa lá fora, mas Deus cantava tão forte do interior!
tes? E por que não falais? Escuta, escuta! Não ouves a voz das profundezas? Sim. O
Falai, imensos horizontes, narrai-me os êxtases, os trabalhos, Subásio é o mesmo, e lá em baixo Assis descansa; em torno, a
as penas daquele coração. De torrão em torrão, andei invocando coroa das colinas úmbricas. São os mesmos os declives cheios
a longínqua lembrança. Pedi aos declives inundados de sol, às de bosques de Greccio, a vista na direção de Rieti e Fonte Co-
selvosas montanhas, às veredas, às humildes casinholas, às cape- lombo; os mesmos os reflexos escuros e profundos do lago de
linhas perdidas, aos doces recantos do campo – sempre à espera Piediluco e os perfis de seus grandes montes severos. Os mes-
de uma arcana revelação interior – que me dissessem: é aqui, foi mos os vastos silêncios do Trasimeno imenso. Ouço um bater
aqui, não vês? Aqui está a pequena figura do Santo, queimando, de remo no lento caminhar de praia em praia e aí reencontro
consumida pela sua paixão; não ouves a sua voz harmoniosa e minha alma, que caminha sem nunca descansar. Vem da terra o
persuasiva, que fala da perfeita alegria? Escuta40: eco daquele passo bendito de Francisco, que sigo sem alcançar.
“Certa vez, vindo São Francisco, de Perusa para Santa Maria Interrogo as ressonâncias íntimas e ouço, admirado, um mur-
dos Anjos, em tempo de inverno, em companhia do Irmão Leão, múrio humilde na mais secreta palpitação de meu coração.
Dizei-me, forças da vida, por que não guardastes um sinal
40
De I Fioretti de São Francisco, Cap. VII. (N. do A.) do meteoro que por aqui passou, perdendo-se nas transparências
226 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
do céu; dizei-me, criaturas irmãs que comigo atravessais a vida, reclinada. Andava em torno de mim o hálito da pedra ascen-
nenhum longínquo eco retorna no timbre de vossas vibrações, dente. Nas harmonias das últimas luzes, no vago palpitar dos
se tanto ímpeto de paixão vos imprimiu o canto do Irmão Fran- espaços supremos do templo, no indefinido do último sonho,
cisco? No entanto, na música da criação, ouço ir e vir a harmo- despedaçou-se a abóbada, e em mim apareceu o pensamento
nia evanescente daquele cântico de Deus que em vós se fundiu de Deus. Meu corpo ficou lá em baixo, unido a cruz. Mas mi-
quando por aqui passou a alma do Santo. Vós, então, ecoastes, nha alma fugiu para sempre na glória dos céus.
compreendestes e respondestes, cantastes em coro a grande sin-
fonia que ele entoava, a sinfonia do amor divino. XVII. PROFETISMO
Dai-me de novo aquele canto; é o cântico de Deus. Criatu-
ras irmãs, ajudai-me a subir, a vibrar, a sentir. Aquele canto Hoje, subi às alturas do tempo e, dos horizontes longínquos,
arrebatará minha alma deste barulho infernal, para longe da ouço emergir ressonâncias profundas, atraídas a mim por uma
Terra, para sempre. sintonia de pensamento imposta pelo momento presente da vida
Então, num imenso e profundo silêncio, ecoa mansamente a do mundo. Ouço o cântico poderoso da história, que vai e volta,
música divina. Cada forma de existência emite uma nota. Oro e, repetindo-se em ciclos titânicos, lentamente, em ascensão, em
na minha prece, ouço Deus como um canto imenso e sublime quedas, em ressurreições, num renovamento sempre mais alto
que emana de todas as criaturas. Cantam todas as expressões de de vida, no qual, entretanto, sempre reponta o passado. Em on-
Deus, a terra e o céu, a luz e a vida, a ordem e o pensamento. A das, nascem e morrem, vêm e vão as civilizações sobre o gran-
minha alma se torna bem pequenina, mas emite harmonia, e, a de mar do tempo. São elas as palpitações da progressiva ideia
cada nota, sintonizo gradualmente; a ressonância me invade, a de Deus, que vai sempre em rumo à sua realização.
vibração me eleva, o arrebatamento me conduz. Já não sou eu, Tudo isto ressoa em mim, torna-se uma vibração minha, e
mas uma harpa na qual ressoa o Universo. É uma prece na qual nela mergulho. E, então, o vórtice me agarra e me transporta
se cala. É a união com Deus. num turbilhão, onde ouço os sonidos invocadores da vida. Ouço
Das profundidades do tempo e do espaço, ouço esta voz po- o encalço das horas, o iminente precipitar dos equilíbrios, a
tente de Deus, que me leva a alma num turbilhão. Ouço a sinfo- tempestade furiosa às portas; ouço a voz de Deus, que anuncia a
nia dos vastíssimos horizontes, a luminosidade dos céus, as har- maturidade do tempo. Gritam os sinais interiores, despercebidos
monias da vida, a voz do mundo, cantando: Cristo! Cristo! Cris- pelos cegos da hora, fechados no cálculo do momento. Sob os
to! Assim grita a história: Cristo esperado, Cristo presente, Cristo céus da história aparecem as procelárias anunciadoras, acordam
operante no coração da civilização. Cristo! repete-me a beleza da as consciências mais prontas, sentinelas da vida, e lançam o gri-
arte, a profundidade da sabedoria, a vitória da bondade, a grande- to de alarme; levantam-se as vozes admoestadoras e caem como
za do espírito. Esse canto se dilata e me penetra. Cada nota ecoou pérolas da magnificência dos céus, antes de cada calamidade.
em mim, lentamente, das humildes às grandes vozes. Minha alma Ouço um rufar profundo, cadenciado, incessante; ouço o
apertou e sorveu em si a estupenda vibração e, acompanhando passo do tempo, que avança com ritmo fatal, qual massa fatal
esta harmonia, subiu com o canto. “Cristo!”, me repete todo o imensa de lava, que desce sem pressa e tudo submerge. Onde es-
universo. Sinto Cristo chegar, resplandecente, dos céus, tão ver- tão os ombros para segurá-la, os peitos para enfrentá-la? Os
tiginosamente alto e belo, como sonho que deve ter sido no ardor tempos são graves, e o Céu luta ao lado da Terra. Já não se vive
de Francisco na suprema consagração do Alverne. apenas de pão, de números, de riqueza, de poder humano. Pode-
rão as forças do espírito não estar presentes apenas porque um
XVI. VISÃO DA CATEDRAL GÓTICA século de materialismo as negou? As atitudes do pensamento
humano não podem desordenar a lei de Deus. E sempre, cada
Um dia, senti o meu destino como um feixe de forças con- vez que o homem violou os divinos equilíbrios do justo e do
vergentes e ascendentes e o reencontrei na força e musicalida- bom, a reação justa da Lei se fez sentir. Que levantem, portanto,
de arquitetônica da catedral gótica. As arcadas, sempre se res- a cabeça os que dormem. Já não estamos no momento de expli-
tringindo mais para o vão da porta, exprimem as linhas de con- car e demonstrar. Aquele trabalho está pronto. É o momento do
centração do externo para o interior. E eu entrara jovem no choque físico e tangível, que a todos abala e a todos arrasta.
templo austero da solidão do pensamento. Lá fora, era para Deus nos ama. É necessário alertar os surdos, os inertes,
mim estridor e sofrimento, e já não podia tornar a gozar as fá- amansar os rebeldes. É necessário que o mundo aprenda de no-
ceis alegrias do mundo exterior. E, desde jovem, me acostumei vo a orar; que, na humilhação e na desventura, se irmane e re-
a respirar aquela atmosfera severa, saturada de conceitos pro- encontre o seu Deus, que foi esquecido. Deus é um caminho de
fundos. Meus olhos aprenderam a ver na mística penumbra e paixão e de amor que se percorre em silêncio, no próprio cora-
se alentaram das luzes esplendentes do Alto, que convidavam a ção; é uma consagração real de si mesmo, é um humilde abraço
subir. O meu olhar embalou-se na música harmoniosa das ar- de irmão a irmão, para se ajudarem reciprocamente ao longo do
quiteturas, no sonho diáfano dos místicos vitrais, na doçura das caminho espinhoso das ascensões humanas.
imagens das coisas eternas e santas. Assim, a minha alma se Nada tema quem tem Cristo no coração. A tempestade puri-
desafeiçoou lentamente da Terra e abriu-se toda à visão de ficará. Voarão longe os ouropéis ao vento furioso, e a imateria-
Deus. E, como no templo gótico, foi também, no meu destino, lidade do espírito, só ela, resistirá e sobreviverá. Cairá o huma-
uma convergência de linhas de força que me levou acima, ao no, para que Cristo resplandeça mais alto e mais verdadeiro.
longo da nave central, até onde a estrutura do edifício abre Oséias, Oséias, profeta de Israel! Parece-me ouvir a tua voz
seus braços em forma de cruz. Levou-me até à culminância so- superar a barreira do tempo e alcançar-me: “Deus é amor”. Esta
nora da sinfonia arquitetônica, na qual explode o grito do Cris- tua grande palavra anunciadora de Cristo, que ninguém antes de
to moribundo, lá em cima, no centro do templo, onde, sobre o ti, nem mesmo Moisés, havia dito e que tem sustentado a hu-
altar-mor, aquele grito se repete no sacrifício da missa. Tenho manidade por milênios, foi o novíssimo verbo eclodido de teu
vivido naquele anelo de forças convergentes para o Alto, cons- coração de mártir. A dor te fez profeta, e profeta de amor.
trangido a um concatenamento compacto como num “fugue” Vejo-vos todos enfileirados em vosso trabalho, profetas de
de Bach. Arrastei-me ao longo da nave central, deixando atrás Israel. Ouço-vos a todos fundidos naquela imensa linguagem
de mim um rasto de sangue. Mas, chegando ao grande altar do em que ressoam a terra e o céu. Tempos em que a palavra do
centro, minha alma recolheu o grito de Cristo agonizante e alto descia palpitante e o homem vivia aliado com Deus. Tem-
estreitou-se, num abraço que não terá mais fim, àquela cabeça pos em que a alma se elevava até alcançar o céu! Que grande-
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 227
za, este contínuo contato com Deus! Ele parece afastado de Mas Jeremias falou também às portas do exílio babilônico,
nós; entre tanta ciência e sabedoria, parece que perdemos a que transformou o povo de Israel e a sua religião, joeirando
ideia d'Ele. Ele não está mais presente em nossas ações nem grão por grão, separando o bom do mau, o essencial do supér-
nos eventos da história. Calculam-se todas as forças, menos a fluo. Nas grandes curvas da história, a terra tem de ser doloro-
suprema; em todas as posições da vida, não se pensa nunca no samente revolvida até o mais profundo, para estar preparada
impulso maior, que é Deus. para as novas germinações. E o exílio na dor purificou Israel,
Ouço Isaias: “um resíduo se converte”, isto é, uma semen- até que subsistiu apenas aquele resíduo, aquela semente de que
te permanece. Podemos hoje repetir suas palavras, que são um falou Isaias. E os ciclos retornam, e a história se repete. Entre
pressentimento do Reino de Deus, prometido por Cristo e que as labaredas de Jerusalém destruída eram despedaçadas tam-
o mundo espera: “... os seres não farão dano nem mal, pois bém as velhas formas, mas o espírito que estava no profetismo
que a terra será plena da consciência de Deus, como a água e não pudera ser queimado, sobreviveu. O Estado estava des-
cobre o fundo do mar”. truído, e a religião separou-se dele e, liberada, ficou leve e pô-
Não. Deus não é um elemento preterível na vida do indiví- de elevar-se de novo e viver mais no alto; até que Ezequiel foi
duo e dos povos. Deve ser sentido, próximo, e o é somente ao seu povo para lhe ensinar o amor de irmão para irmão e a
quando se merece. Só um Deus que esteja na alma, domina as força dos vínculos espirituais que sabem fundir as almas, for-
paixões, guia as ações, faz fremir o coração – só este Deus é mando e mantendo a unidade ideal acima de qualquer forma e
vida. Portanto é necessária a desventura, para que o espírito contra qualquer ataque material.
atire fora o manto e se apresente de novo nu diante de Deus. Como na sua grande visão da nova Jerusalém, aflora hoje
Que importa a forma quando nós, na substância, sacrificamos nos espíritos um vago pressentimento da nova civilização do
a Moloque e só a admiração de seu fausto está em nosso cora- terceiro milênio, na qual a Igreja será verdadeiramente podero-
ção? Então, também nos templos suntuosos, Deus se cala, sa e invencível, porque feita apenas de espírito.
porque se afastou de nossa alma. E Deus se vai e fala em ou- Oh! Que tremendo trabalho este nascer, viver e morrer, para
tra parte, aos humildes, aos cansados viandantes do ideal, que renascer, reviver e morrer novamente – este dever de evoluir
estão sempre a caminho, como São Francisco, golpeados por para levantar-se da queda, para redimir-se na dor, para libertar-
todos e sozinhos com Deus. se e retornar ao espírito!
Então, o destino bate às portas da história, tocam as trombe- Voltamos às fontes, à virgindade das origens, à pureza da
tas anunciadoras, os profetas ressurgem, porque o mundo des- primeira nascente. Surge a eterna visão que abalou Zacarias.
perta. Quem ouve e compreende entre tantas vozes falsas e con- E a história pulsa e palpita pelos mesmos eternos movimen-
fusas? Devemos então repetir o fatal “Dies irae dies illa”41 ain- tos que a empurram laboriosamente para frente. O mal triunfa
da hoje vivo na arte, na liturgia, na música, o “Dies irae” do abertamente, e os puros de coração, que sofrem inclinados
profeta Sofonias?42. De que será feito este povo-resíduo que se- sobre os sulcos, enquanto regam com o seu suor a nova se-
rá semente da futura civilização? Será um povo não visto hoje, menteira, olham e dizem: “Onde está o nosso Deus de justiça,
como era o primeiro grupo de soldados de Cristo na grandeza se os malvados são felizes e os violentos têm sucesso?”. Mas
romana, um povo feito de humildes e piedosos, que hoje so- eles não sabem quanto a dor é fecunda. Tudo germina, ba-
frem, sentem e esperam. E de que servirá ao mundo a força sem nhado por linfa divina. Só assim nascem as coisas grandes e
o direito, o poder sem a justiça, a ciência sem a consciência? Ai fortes, que resistem às ventanias e desafiam os séculos, en-
de quem usar a espada, porque morrerá pela espada. A ordem quanto as criações do mal são pó que tornarão ao pó, lança-
ética despedaçada trará destruição. das longe pelo turbilhão do tempo. Quem semeia pelos cami-
Como se ora de outro modo quando o destino ameaça e a nhos do bem semeia e segue, porque a semente germina, con-
dor golpeia, diferente de quando tudo é tranquilo, o Céu parece tendo já na trajetória do seu movimento a sua lei de vida e a
assegurado e a vizinhança de Deus garantida pela autoridade da disciplina de seu desenvolvimento.
Terra! Mas a fé é tempestade, e não um trono de glória; é tor- Esta ideia da presença de Deus no destino do homem e dos
mento de ascensão, não aquiescência passiva. É um dinamismo povos, esta ideia que emerge de cada página da Bíblia, ideia
incessante, tremendo, um espasmo de alma à procura de Deus. que percorre e une todo o profetismo de Israel, não é um absur-
Quereria gritar com Jeremias: “Oh! O meu peito, o meu pei- do, ainda que hoje seja um anacronismo. É a ideia fundamental
to! Que sofrimento terrível! Oh! O meu coração! Como se so- que rege a vida, e essa ideia não morreu.
bressalta! Não posso ficar quieto, porque minha alma ouviu o É a ideia-eixo em torno da qual o mundo gira: Deus e ho-
som da trombeta, o grito da guerra!”. mem, homem e Deus. É a própria música do espírito, que do
Jeremias, que todo se plasmou segundo Oséias, por reviver- profetismo israelita se prolonga no misticismo cristão, como o
lhe todo o amor e toda a dor; Jeremias, a mais alta e pura ex- mesmo contato com Deus. É a mesma conquista de espírito que
pressão do Profetismo hebraico! Quereria repetir seus concei- se efetua, é sempre o mesmo problema que se agita e vive: o
tos, que exprimem a essência das religiões, ou seja, a superiori- das ascensões humanas.
dade da substância sobre a forma, de um coração puro sobre as
ações exteriores. Melhor: “... os pagãos que observam com ver- XVIII. OS ASSALTOS
dadeira fidelidade e com perfeita devoção a sua religião falsa e
insensata – eles são em verdade mais agradáveis a Deus do que Um dia, em que meu espírito estava prostrado pela demasi-
vós, que possuís o verdadeiro Deus, mas o esqueceis e lhes sois ada intensidade de sua vida e jazia abatido pelo cansaço da
desobedientes”. E Jeremias, que ousara dizer tão graves pala- carne, um espírito malvado, um semblante de Satanás, veio ao
vras, morreu em terra estranha, lapidado por seu próprio povo! meu encontro com o olhar oblíquo, riu-me na face e sussurrou
41
ao meu ouvido: “Palhaço!”. Era mentiroso e parecia ter esco-
“Dies irae dies illa...”: “O dia da cólera (justiça), aquele (terrível) lhido astutamente este momento, para me colher em falta, ten-
dia...”. Primeiros versos de um hino medieval de Frei Tomás de Cela- tando triunfar de minha fraqueza. Sentia-se forte, mas falava
no, discípulo e primeiro biógrafo de São Francisco de Assis. É uma
evocação do dia do Juízo Final – informa Paulo Rónai – e faz parte do
com a pressa do ladrão que rouba, que sabe ser breve a hora
oficio dos mortos. (N. do T.) propícia, que não volta depressa.
42
Considera-se o hino de Celano inspirado no profeta Sofonias: “Está As forças mais baixas, tão logo caia a tensão da ascese e se
próximo o grande dia de Jeová! Dia de angústia e de tribulação (...)” abra uma brecha na alma, podem surgir, por lei de equilíbrio.
(Sofonias, 1:14-18, 2:1.3). (N. do T.) Eu estava prostrado e triste. O céu estava fechado e este era o
228 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
conforto. “Palhaço”, ouvi repetir-me. “Onde está a tua força energias da vida e adquire forças com o vosso assalto. Acumu-
de espírito, o infinito, a harmonia da criação, a presença da la-se a reação e está próxima a hora em que explodirá seu grito,
Lei? Se és amigo de Deus, por que não desce Deus para te para dilacerar as trevas e reencontrar a luz.
confortar?”. O escárnio atroz dançava sobre o meu sofrimen- O espírito é um anjo que desceu de seus céus esplendentes
to. Estas são as horas tétricas nas quais os vastos horizontes se sobre a terra. Para amar, tornou-se inerme e deixou longe, já
fecham, o Céu permanece inacessível à percepção, torna-se ir- não sabe onde, todas as armas de sua defesa e aparece, fragran-
real e se evade no nada. te como uma flor, bom como uma criancinha. E chega ao infer-
Então, o espírito do mal me lançou ao rosto o seu hálito fé- no terrestre. Um riso de escárnio o recebe, um vento de tempes-
tido e me disse: “Palhaço!”. O mundo esplendoroso do espírito tade dá o primeiro golpe naquela fragilidade de sensitivo. O do-
está longe. A carne está ali, cansada, e grita seu tormento. Nos ce canto que ele trazia consigo, cessa, destroçado. É preciso
meus ouvidos não há senão o ruído da derrocada de minha alma aprender a cantá-lo aqui em baixo, no inferno terrestre. Aqui
abatida. Atiro-me ao solo. Não sei mais orar. reina a matéria, plena de força, armada de esperteza, conhece-
Estes são momentos medonhos na vida de quem luta por um dora de estratégias, atenta para colher o espírito em falta. Sabe
ideal. Formam-se na alma vácuos imensos e silêncios terríveis; as passagens, as armadilhas, a mentira que disfarça, a zombaria
passam-se horas de solidão e desolação, nas quais o eu mais pro- que abate, a traição que mata. O primeiro encontro é brutal. A
fundo se ausenta, deixando a alma cega e agonizante. O relâm- fera responde: “Não sou teu semelhante, odeio-te, não quero
pago da intuição me abandona, tenho medo daquela coragem luz. És uma criatura do céu descida cá em baixo? Pois bem, és
que antes tudo ousava; a minha fronte está no chão e se lacera tu o estrangeiro, não eu. Aceita as leis do meu mundo. Aqui
contra a pedra. É a revolta das forças biológicas, a desforra, a reina a força; guarda tua justiça, aqui ela não serve. Aqui reina
derrota de uma hora. Que está acontecendo no íntimo? Por que a mentira, guarda a tua verdade, que também não serve. Aqui se
Deus me abandona? Porque eu sei que naqueles silêncios sem maldiz e se odeia, portanto guarda a tua bondade e o teu amor.
nome e sem esperança estão os trajetos subterrâneos do caminho Que queres, louco ridículo? Teu Evangelho é loucura. Nós te-
das ascensões; sei que destas anulações ressurgem as grandes mos uma lei. É feroz, mas é nossa. Não aceitamos a tua. Some-
massas túrgidas de pensamento e de paixão, emerge o vórtice te, estrangeiro! Insistes? Nós te destruiremos”.
maravilhoso onde esplendem todas as luzes. É no fundo desses Mas o anjo avança. Começou a luta, mas ele está acostuma-
abatimentos, quando a alma vive suas horas mais atrozes, que do a sofrer. Então, o ataque muda. A matéria veste-se de adula-
ela ouve a primeira nota de onde nascerá a criação. Pois que fé e ção e mentira, a ferocidade se esconde e reaparece sorridente de
concepção jorram destes espasmos de alma, que, para lançar graça. O terreno se faz mais pérfido. O anjo avança num mundo
centelhas, deve se atirar contra os penhascos ásperos e cortantes. de aparências inconsistentes e mutáveis, de formas falazes. Vai
Os meus pensamentos são gotas de sangue espremidas de um colher uma flor e colhe um escárnio; acredita estar contemplan-
tormento interior, onde minha alma se debate para fazer nascer a do a verdade e é uma máscara que se desprende, gargalhando.
concepção. Esta floração de escritos é martírio e holocausto de Cada ser tem duas faces; mostra a falsa e esconde a verdadeira.
cada dia. Cada afirmação espiritual é um pedaço de carne deixa- É um mundo irreal, no qual tudo foge e se desfaz; é uma dança
do sobre as sarças do caminho. Caminhar e sangrar é a vida do macabra de esqueletos doidos que acreditam ser sábios e lindos.
pensamento. Produção contínua significa sofrimento continuo. É o triunfo dos ouropéis, um perfume que recende mal, um bei-
Existem momentos em que a realidade brutal da vida, o jo que morde, uma carícia que mata, um mundo de luzes falsas,
mundo das imperiosas necessidades, retoma a direção e recor- onde tudo são trevas e silêncio.
da asperamente ao espírito livre a sua escravidão, que é a ver- Mas o espírito avança. A força não o venceu, e a mentira
dade do momento. A matéria tem as suas desforras, as suas não o vence. Vê a cor real da vida e deseja lenir o sofrimento
vinganças tremendas. Reinam, então, as trevas, a mentira triun- de que ela é feita. Vê ouro e fome, exércitos e cruzes, poder e
fa, o sarcasmo sorri, a incompreensão alarga-se. E o ignorante, sangue. São poderosas as ordens do deus prazer! O mundo
o falso, o malvado, que tem na mão os meios materiais, enfren- pede-lhe amor falso; é feito de forças inferiores, mas deseja
tam-nos, gritando: “Dinheiro! Dinheiro! Eu sou o poder! realizar-se a si mesmo. E a luta continua. Satanás se disfarça
Quem reina sou eu!”. E, então, a Terra é, em verdade, um de- em seus infinitos semblantes e muda de tática. Vejo-o voltar e
serto sem esperança. A fonte seca, o canto emudece. As lágri- não me diz “Palhaço”. Está razoável e ladino. Diz-me: “Refle-
mas caem sobre o solo seco, e o egoísmo humano bebe avida- te, deixa a utopia, depressa. A vida é bela, e é preciso gozá-
mente a dor alheia. A ideia se dispersa ao vento, a fé dúbia es- la”. É lento e paciente o cerco da lisonja. É uma imaginação
capa. E ele, o herói do pensamento e do amor, fica abandonado interior; nasce inadvertida nas raízes do desejo. Insinua-se en-
e só. Só, com os olhos arregalados na escuridão, onde a luz de ganosa, por toda parte. Parece nada e já envolve o espírito em
seu sonho se apagou. Só, com o coração despedaçado, ao qual seus tentáculos. E quando este percebe, já está preso e aprisi-
do alto já não chega o amor; só, com a mente arruinada, onde o onado. Insinuação prudente, de gesto lento, de mil braços de
canto dos céus já não tem ressonância. polvo, aperta acariciando num longo sufocamento. Age com
Era muito linda a embriaguez do sonho e a felicidade de cautela e tem fascínio, como a serpente. Assim se forma o
imolar-se longe da Terra. Vai, alma cansada, pela deserta terra, sorvedouro onde se submerge o mundo.
sem esperança. Deus te olha, mas o teu castigo é não vê-Lo A luta continua. Pobre de minha alma! Tem sede e não deve
mais. Deus te ajuda, mas o teu martírio é não o saber. Deus te beber: a fonte está poluída. Tem fome e não deve comer: o ali-
ama, mas teu tormento é não O sentir. Tua lira partiu-se. Em mento está envenenado. Está exausta e não pode repousar: o
teu coração há uma derrota de paixão que já não sabe chorar. terreno é malseguro.
Aquele olhar cintilante de pensamento e de bondade abaixou- Mas muda ainda a aparência de Satanás. O meu ventre está
se, humilhado. Aquele gesto estendido em ato de amor abateu- satisfeito. Que beatitude! Inércia de espírito, toda a sua vibra-
se, envilecido. Aquela cabeça que concebeu os mais altos con- ção neutralizada numa pausa de calma. A animalidade domina,
ceitos da vida está coroada de espinhos. o jogo da vida reduziu-se aos planos mais baixos, a consciência
Não o conforteis. É a sua hora. As trevas se apressam em inferior cochila satisfeita no equilíbrio das funções primárias,
exauri-la; a dor se apressa em polir aquela alma com seus gol- na felicidade do bruto. As tempestades estão longe. Que ale-
pes maiores. Apressai-vos, forças do mal, porque estais encer- gria, finalmente, repousar! Quantos ventres satisfeitos vão pela
radas no tempo que vos segue e vos destrói. O espírito se cala e vida, acreditando serem tudo, felizes apenas por estarem cheios.
se atemoriza, mas vós vos exauris. Ele se concentra, atrai a si as Pequenas almas situadas no ventre! O ventre deseja, opina, es-
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 229
colhe – beatitude de carne saciada. Conheci também isto, à es- Esse insulto é Satanás. É uma força baixa, brutal, enorme,
pera de que o leão despertasse, rompesse a inércia com o seu negra, imersa na inconsciência. É uma investida estúpida e feroz;
rugido e tornasse a mergulhar o olhar nos céus. explode, desafoga-se, esgota-se, extingue-se e para, estupidamen-
O espírito avança, mas também o inimigo caminha e penetra te, sem ter alcançado a meta, sem nada ter compreendido de si.
na fortaleza da mente. A fé desagrega-se na dúvida. Terei eu lu- Tenho vivido estas lutas. Então, a alma se sente oscilar à
tado e sofrido tanto em vão? O pó das coisas não cobrirá todas beira de um abismo, que abre as fauces para tragá-la. O grande
as minhas fadigas? Investi todo o meu capital de pensamento e sonho realizado no tormento de cada dia parece ameaçar ruína.
atividade no Evangelho. Para esta inversão dos valores huma- ◘ ◘ ◘
nos perdi as vantagens positivas, tangíveis, reconhecidas. E, Começa a luta. O inimigo desce dentro de mim e toma lu-
afinal, se fosse ilusão? Arrastei-me assim toda a vida, humana- gar em meu coração.
mente destruído, e só por um sonho? E se o espírito me traísse? Sou eu ou é ele? Quem é que nega e quem é que afirma
Onde está Cristo, se eu não o vejo? Por que jamais um sinal de dentro de mim? Como me posso cindir assim, entre a minha
evidência? Onde está esse mundo que ninguém percebe e que alegria e o meu tormento, entre o triunfo e a derrota, entre a
todos os fatos negam? Por que, por que acreditar? Que desilu- minha ascensão e a minha abjeção?
são tremenda recolher quimeras! E esse mundo é tão pronto a Dentro de mim se reúnem as forças do bem e do mal. Sou
se desvanecer, e eu aconselhei e sofri na realidade – e a última aquelas e estas; duas metades de mim mesmo se digladiam
compensação será a derrota! “Tolo, não confies”, diz Satanás, horrivelmente.
“Por que crer? Era uma quimera, e agora és um vencido. Mere- Começou a luta, e em ambos os lados recebo feridas pro-
ceste. Rebela-te, libera-te, derruba e destrói o edifício das ilu- fundas.
sões. Salva pelo menos as últimas horas. Goza. Não te deixes “Tu me traíste”, diz em mim o homem ao espírito. “Sê
trair para sempre. Esta é a vida, não vês? Não há outra vida se- maldito, traidor de minha vida”.
não esta. A minha alegria está aqui, o Céu está longe”. “Estou exausto”, diz o espírito. “Não sou mais, não vejo
Mas o espírito avança. E então, depois do ataque do escár- mais. Senhor, tem piedade de mim”.
nio, da dor, da necessidade, da força, da mentira, do gozo, da A minha alma se arrasta, perseguida pelo inferno terrestre.
inércia, da dúvida, desfere-se o assalto do desespero. Sinto-o A realidade de todos me insulta e me repudia. “Idiota”, dizem-
aproximar-se sob a forma de um fantasma e sinto terror. Aden- me. A multidão repete: “Louco, morre. Bem o mereces”.
sam-se as trevas em torno da minha alma. Estou cego e mudo Meu corpo tem fome, está cansado. A fonte de meus cantos
em poder da tormenta. Penetra-me um choque diabólico de to- estancou na garganta seca. O mundo me diz: “Morre”. No en-
do meu ser, e a minha alma mergulha no inferno. É uma preci- tanto foi por sua dor que eu ouvi, me comovi e me entreguei.
pitação involutiva de plano em plano, uma perda de luz, de le- Peço auxílio. Motejando, Satanás murmura: “Se estás ao
veza, sempre mais para baixo, num invólucro sempre mais lado de Deus, pede-lhe que te salve e te levante”.
denso. O assalto agarrou-me, aperta-me em seus tentáculos, ar- Mas tudo permanece indiferente do lado de fora. Portanto
rasta-me de sorvedouro em sorvedouro, mutilando-me, sufo- eu estou errado e os outros é que têm razão.
cando-me. O inimigo rompeu as cadeias e está em mim para Levanto, então, os olhos e grito: “Senhor!”. E o céu se
me torturar. É a sua hora, a hora das trevas, a hora tétrica de abre, e uma voz que desce do Alto diz: “Acalma-te, filho!”.
sua vingança. Atira-se contra mim. Minha alma debate-se em Então, encontro força para dizer: “Vade retro, Satana!” 43. E
seus tentáculos. Vão os dias arrastados no duro e necessário o mal se afasta.
trabalho, vão as noites sem repouso, vai o tempo que me deixa ◘ ◘ ◘
arruinado. As trevas me destroçam. Preciso correr e não posso No entanto Satanás volta. Minha mente duvida, e o mundo
andar. Tenho que fugir e estou amarrado. Petrifico-me numa grita ainda: “Louco! O teu ideal é absurdo. Não é aqui neste
dor muda, negra, sem lágrimas, sem esperança. Ignoro Deus, mundo que se pode realizar. Onde está o homem de que falas?
entorpeço-me, estou perdido. Onde está a punição profetizada, a justiça de Deus? Utopias.
Então, a minha sensibilidade se torna um porto aberto a todos No mal, o mundo caminha mais alegremente que nunca. Vai,
os ádvenas. Mil forças barônticas aparecem, tremendas e confu- tolo, caminha sozinho. O mundo sabe divertir-se sem ti”.
sas; mil faces se desenham no raio de minha consciência. Sou le- “Duvidas? Então invoca teu Deus para que te ilumine, para
vado numa esteira de tormenta que me atravessa o espírito. que desencadeie a tempestade saneadora, para que refaça o ho-
Depois, quando a força do mal está saciada de todos os seus mem. O mundo conhece o seu caminho e não precisa de ti”.
assaltos, em todos os seus aspectos, ouço-a fugir, zombando, E em verdade, o mundo caminha e não pede salvação.
feliz de sua esplêndida chacoteação. Grito, então: “Senhor, ajuda-me! Eu me perco! Que posso
fazer só e cansado contra o mal organizado e poderoso, rápido e
XIX. TENTAÇÃO tenaz?”. E o Céu se abre, e uma luz desce do Alto e escreve no
meu coração: “Acalma-te, filho!”.
Quanto mais a alma sobe, tanto mais é agredida pelas forças Então, reencontro a luz e posso dizer: “Vai-te, Satanás”. E
do mal. A lei do equilíbrio contém suas reações. Quanto mais ele se vai.
sofreres e mais subires, mais subirás e mais serás tentado, po- ◘ ◘ ◘
rém mais forte também serás para vencer. Satanás, porém, volta ainda. Meu coração é um deserto. Ca-
Estas forças adquirem figura concreta: Satanás. É a imagem da amor humano secou-se dentro dele. Estou só e desamparado.
do homem quando o mal se apossa dele; a força que se personi- Tenho frio. Primeiro gritou a fome do corpo, e eu venci. Depois
fica em nós quando somos malvados. Ele é, portanto, real e gritou a sede da mente, e eu venci. Agora grita a paixão do co-
próximo. É uma vibração presente em nossa consciência. Está ração, e não sei vencer.
entre nós, dentro de nós. 43
“Vai-te, Satanás” ou “Retira-te, Satanás”. Na tradução latina do
Aparece também nos grandes místicos o momento secreto e
Evangelho encontram-se estas palavras, dirigidas por Jesus a Simão
terrível, no qual o grande sonho sentido no ardor da fé se de- Pedro, quando este O censurou por haver anunciado aos discípulos
compõe num caos horrendo. É a desforra da baixeza, a hora das Sua grande rejeição, Sua morte e ressurreição (Marcos, 8:31-33). En-
trevas. É o Getsêmane, é a zombaria da loucura embriagada e contra-se também expressão semelhante na narrativa da Tentação
triunfante, que se diverte com o martírio do santo. (Mateus, 4:9,10). (N. do T.)
230 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
E o mundo me diz: “Louco! Quem queres que responda ao Senhor, enxota-me. Eu o mereço.
teu amor? Caminha, caminha. O mundo sabe bem amar sem ti. Eu estava na glória de tua luz, quando uma lisonja vã, te-
O teu coração geme? Pois bem, invoca o teu Deus. Ele que te naz, traidora, cheia de atrativos, como um polvo, avizinhou-
responda, que te satisfaça e demonstre aos homens o Seu amor”. se de mim lentamente, me estreitou com uma carícia; depois,
E vejo o mundo indiferente correr unicamente para suas estreitou-me mais fortemente, paralisou-me cada movimento
paixões. de defesa e me venceu. Quando eu quis reagir, era tarde. Le-
Então, elevo o coração para o alto e grito: “Senhor, amo- vou-me arrastado, cego, mudo, aturdido, amarrado, para as
Te!”. E o céu se abre, e uma palpitação desce do alto, freme profundezas.
dentro do meu coração e aí canta: “Paz, filho!”. O cansaço me venceu, diminuiu a tensão da subida; a maté-
Então, eu reencontro o amor, lanço a Satanás um olhar ar- ria, pronta para a vingança, se apossou de mim.
dente e digo-lhe: “Vai-te, Satanás, para sempre, porque eu venci. Deus meu! Como estou triste sem Ti!
Unido a mim, em meu coração, está o meu Deus. As tuas forças Porque, afinal, o veneno doce e traidor exauriu a sua viru-
não prevalecerão”. E Satanás foge precipitadamente, vencido. lência, o espírito começou a se reerguer e, só agora, vi meu de-
O meu corpo, a minha mente, o meu coração não puderam pauperamento.
renegar Deus. O caminho da dor era o verdadeiro. Não tenho mais coragem de orar, já não tenho força para
ascender, não tenho mais esperança para agir. Aqui em baixo,
XX. INFERNO o meu belo sonho é uma zombaria. Cristo é um absurdo, por-
que aqui reina uma verdade feita de estridor de luta e de ego-
Do longínquo passado de minha involução, pelo oceano in- ísmo. Aqui não existe a paz de alma. Aqui, tudo insulta meu
finito do tempo, uma onda desprendeu-se, veio ao meu encon- passado. O ideal pelo qual vivi e tudo dei é considerado um
tro, envolvendo-me ameaçadora. Agrediu-me e me submergiu. ideal de loucura. Reabre os olhos em uma luz tão turva, que é
Era uma força real, um impulso por mim uma vez enxertado quase apagada, obstruída por zonas e nesgas imensas de opaci-
no meu destino, emergindo do meu passado, da animalidade dade. Uma confusão de forças caóticas contorce em mim, nu-
ainda não vencida. ma dissonância penosa, a divina harmonia da vida. Vejo essas
Senhor, não soube nem quis vencer as forças do mal. forças se entrelaçarem em deformações horrendas, que me fe-
O meu coração, que era Teu, eu o atirei ao mar. E então a rem com seus ângulos pungentes, saltos ásperos e desordena-
onda me engoliu, e me aprofundei no abismo. dos, impulsos de luta e rebelião. Elas dançam em torno de mim
O archote de meu amor apagou-se. As águas negras me en- em vértices vertiginosos que me envolvem numa sensação de
volveram; as ondas se amontoaram sobre minha cabeça; a deso- espasmo, com emissão feroz de gritos desesperados, lá onde
lação me penetrou até ao fundo da alma. havia cantos harmoniosos e paz cheia de alegria. Essas forças
O sorvedouro imenso me apanhou, envolveu-me, e eu fui deslizam ao longo de um declive sempre mais íngreme, proje-
mergulhado até às raízes das montanhas.
tadas para medonhas profundidades abismais, e, lá em baixo,
As algas se enroscaram em torno de mim, fecharam minha
as trevas se tornam sólidas a tal ponto, que nenhuma espada
boca, impediram-me de respirar, e o mar, sobre mim, tornou a
flamejante de luz as poderá despedaçar. E o vórtice é aberto e
fechar-se para sempre.
ativo; uma vez presas as almas em suas espirais, a sua atração
Da profundeza do abismo a minha voz não pode mais che-
as atira para o abismo tenebroso. É um vórtice de forças no
gar até meu Senhor. Estou petrificado de horror. Meu desespero
qual se precipita um fluxo palpitante de almas a urrarem de-
é sem esperança. Minha alma se desfaz
sesperadas, agarradas ao seu desespero.
Que horrível não poder mais dizer: “Senhor. Senhor!”.
No terror dessa visão, o meu espírito desperta, e, pelo terror,
Mas eu o mereci. Ele deve punir-me. Sinto apenas a justiça,
recupero a força para tornar a subir, tenso, à atmosfera rarefeita
não mais o amor. Morro porque não posso mais vê-lo. Entre
de que tombei.
mim e Deus há um abismo que não sei mais superar.
Já não sei orar, não ouso invocá-Lo Aqui estou, só, nas pro- Desperta e, enquanto luta para retomar a subida, ainda o eco
fundezas do meu inferno. dos motejos o segue: “Tolo, tolo! Não vês que enquanto dás,
Onde está o meu Senhor? Procuro-o, mas estou cego e nem todos os outros só pretendem tomar? E quando tiveres dado tu-
o saberia mais ver. Estou surdo, não o saberia ouvir. Estou mu- do, estarás só e ludibriado. Sim, escarnecido ante a Terra e ante
do, despedaçou-se a lira do meu canto. Estou morto, no entanto o Céu, que, quando quer, fecha suas portas também para aquele
estou vivo e gostaria de poder morrer. que muito lutou e sofreu”.
Conheci Deus e perdi-O. A minha alma é um estrondo de Mas a ascensão está iniciada e recebe forças de seu pró-
desespero. prio impulso, e o eco dos gritos selvagens de insultos perde-se
Inferno, inferno, aniquila-me em tuas espirais, destrói minha sempre mais longe, encoberto pelo canto das harmonias do-
alma, para que tenha fim o meu desespero. minantes.
Minha alma retomou sua ascensão, reencontrou a tensão,
XXI. QUEDA DA ALMA atingiu a sua atmosfera, onde brilha a mais alta verdade do
Evangelho, e o eco já não repete o rugido selvagem do egoísmo
Que aconteceu comigo? Eu era feliz, dono da luz e da força que insulta, mas repete o canto que diz: “Dá e receberás, ama e
do espírito; dominava um panorama imenso, era livre e sobera- serás amado, perdoa e serás perdoado”.
no – e, daquela luminosa altura, fui precipitado a um mar de Cheguei. Estou numa aurora iridescente de luzes. Em Deus,
trevas. tudo resplandece numa alegria infinita, repousa numa harmonia
Volto a mim cansado, aturdido, nauseado de mim e da vida. suprema. A minha alma reencontrou a sua paz.
Que torpor nos membros! O dinamismo do espírito desva- Estes não são sonhos nem fantasias de poeta. São forças vi-
neceu-se, não ficou em mim senão a matéria preguiçosa e iner- vas em ação, entre as quais me movimentei, e que me abateram
te, já não sei arrastá-la. Sou pedra entre pedras, abandonada na e me reergueram; são realidades, contudo imponderáveis, mas
estrada. nem por isso menos verdadeiras e atuais.
Há um frio de morte nas minhas vísceras. Nos ossos, sinto É verdadeiro este drama que minha alma viveu, que a des-
sensação de vazio. Coleio pela terra viscosa, envolto em lodo. truiu e a regenerou, que sempre a frustrou, para que ela conhe-
Em meu coração há o sentido da minha inutilidade. cesse o terror da treva sem esperanças.
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 231
XXII. MEA CULPA Para lá do mutável, alcancei o Imutável; para lá do relativo,
atingi o Absoluto; para lá da diversidade, toquei a Unidade.
Pequei, Senhor. Mea culpa, mea culpa44. Perdi o senso da separatividade. Realizou-se em mim o mis-
Outrora, sorriam em mim, com o Teu sorriso, o céu e a ter- tério da unificação.
ra. Agora, tudo se me afigura tétrico, melancólico e deserto; Já não me envolvo nas espirais da dor, porque Teu amor a
perdi toda luz e toda ressonância em minha desolação. venceu, Teu amor me redimiu.
Morro, porque não posso viver sem Ti, Senhor. Apoderou-se de mim, Senhor, Tua vontade, e não sei distin-
Da profundeza de minha culpa, já não ouso erguer o olhar, guir-me, nem resistir.
nem sei tão pouco dirigir-Te minha prece. Teu pensamento desceu a mim, e já não sei pensar senão
Gela-se-me a alma, agora que já não me aquece Tua luz. em Ti.
Sou desprezível. Sei que Te traí e Te reneguei. Venceu-me o Teu amor, e já não sei amar senão a Ti.
Agora, já não tenho nada para ofertar-Te, a não ser minha Morri e depois ressuscitei. Pois que Tu vives em mim, eu
culpa. revivo em Ti.
Pronto estava o espírito para seguir-Te e ascender contigo. Tua mão, Senhor, a tudo sondou e revolveu na profundeza
Mas a carne recalcitrante quis volver ao lodo. de meu coração, para tudo reconstruir. Tu Te colocaste no cen-
Ela me acorrentou em baixo e me venceu. Não tive forças tro de mim mesmo, para aí procederes como dono.
para arrastá-la. Minha alegria consiste em abandonar-me em Ti, em não
Horroriza-me a minha baixeza, porque ainda estás junto a mais separar do Teu o meu minúsculo ser.
mim e me olhas. Sou transparente à Tua luz, que me invade por inteiro.
Olhas-me, como sempre, com um olhar feito de amor. Pene- Vivo no ritmo da Tua ordem, que inteiramente vibra em
tra-me a alma esse doce olhar de perdão e, todavia, mais do que mim.
qualquer exprobração, ele me aniquila. Nutro-me de beleza e da verdade em que Tu fulges; Teu
Sobre o coração experimento o peso imenso do remorso de amor me sacia.
quem traiu seu mais doce amigo. Estou em Teu regaço, ó Senhor, e já não quero reencontrar-
Ofendo-Te, e Tu me acaricias; insulto-Te, e Tu me perdoas; me.
Contemplo o desígnio do universo, ausculto o respiro da cri-
abandono-Te, e volves a buscar-me.
ação, sinto em mim mesmo a ressonância de Teu pensamento.
Não te aproximes, Senhor. Não sou digno de implorar per-
Revelaste-me a urdidura divina de amor que rege os seres, e
dão. Não sou digno, Senhor.
neles Te reencontro; somos todos obreiros de um vasto orga-
Naquele tempo, Tu vieste ao meu encontro e me disseste:
nismo, abertos no afã de retornar a Ti.
Tenho necessidade de tua alma. E eu, então te disse: Senhor,
Subir, subir, eis o cântico do universo. Teu amor a todos nos
toma-me a alma.
estreita, como irmãos.
No entanto ela está maculada de culpas. Não te repugna
Vivo da Tua Lei, porquanto em mim está a palpitação de
descer sobre tal esterqueira?
Teu pensamento e de Tua vontade.
Amo-te, disseste-me. E retomaste-me a alma repleta de tor- Na profundeza de minha alma reside Tua paz.
pezas, curaste-a com Teu amor. Só Tu, só Tu, Senhor, podias
fazê-lo, não eu. Outra coisa não possuo, nem outra criatura pos- XXIV. BEM-AVENTURANÇAS
so tornar-me.
Toma-me a alma, toma-me a vida. Ela Te pertence até o úl- Que importa se ganhei ou perdi, se estou bem ou mal, se sou
timo respiro. rico ou pobre, amado ou amaldiçoado, se Tu estás aqui, Senhor,
e eu não me encontro mais sozinho, e Tu estás ao meu lado e
XXIII. CÂNTICO DA UNIFICAÇÃO me animas?
Que importa riqueza ou miséria exterior, se dentro de mim
Ouço a voz de Deus cantar pelo universo; escuto os seres, canta a magnificência do universo?
que respondem num cântico sem fim. Que importa se nada mais possuo, se sou desprezado e igno-
Vejo a luz de Deus difundir-se e dar vida; vejo os seres nu- ro meu amanhã, se atingi a fonte das coisas eternas?
trirem-se de seu reflexo e progredirem em fileiras sem fim. Faz frio, mas eu me abraso, porque me queima o Teu amor.
Sinto palpitar no infinito o ritmo da ordem divina; ouço res- Está escuro, mas eu enxergo, porque me ilumina a Tua luz.
soarem, de esfera a esfera, as harmonias da criação. Tudo é silêncio, mas eu escuto a doce música da Tua voz.
Extasio-me na música das coisas divinas; a Verdade desceu Minha carne perdeu as forças no caminho do dever, mas
até minha alma. meu espírito exulta.
O centro de minha vida retraiu-se para a profundeza, aí on- Estão vazios meus sentidos, mas está saciada minha alma.
de Deus a todos espera. De Ti está cheio o universo, e eu Te possuo.
Superei os confins do ser, caídos jazem todos os véus. Atin- Acorrei criaturas irmãs! Vinde alegrar-vos comigo; ajudai-
gi o derradeiro termo das ascensões humanas. me a cantar o cântico do divino amor!
Rasgou-se o firmamento, e Tu, Senhor, sublime, apareceste Escutai! Muitos, muitos anos estive sozinho, mas agora está
nos céus e, então, prostrei-me para adorar-Te. comigo o meu Senhor.
Tu me arrebataste, e eu, que Te reencontrei, vou entoando Muitos, muitos caminhos percorri, mas agora cheguei.
um cântico de céu a céu. Muito, muito tenho lutado e sofrido procurando; agora achei
Perdi, no entanto, a consciência de mim mesmo. Tu és tudo; e sou feliz.
eu estou em Ti e Tu estás em mim. Onde está meu desespero? Não mais o encontro.
Em Ti, o nada que sou torna-se no tudo que Tu és. Ele se Onde estão os espinhos dolorosos do meu tormento? Não
identifica em mim, e eu me identifico n'Ele. vejo senão rosas...
Onde o rugir das forças desencadeadas do mal?
44
“A culpa é minha, a culpa é minha”. Primeiras palavras de uma anti- Vinde escutar. Canta dentro de mim a música da criação.
ga oração da Igreja, o “Confiteor” (“Confesso-me”): o orante reconhe- Vinde, ajudai a alegrar-me; não tenho forças para ser tão
ce, diante de Deus, seu pecado, culpa ou responsabilidade. (N. do T.) feliz!
232 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
Vinde, achegai-vos a mim, criaturas de Deus, auxiliai-me a XXVI. PAIXÃO.
cantar, a orar, a amar. ASSIS, QUINTA-FEIRA SANTA, 1937.
Compreendei o milagre. Eu estava encerrado num castelo
de dor, e o castelo desmoronou-se. Eu era cego e agora en- Peregrino de dor e de paixão, eu me aproximo de Ti, Se-
xergo. Era surdo e agora ouço. Meu coração estava compri- nhor.
mido em mordaça de ferro, e a mordaça despedaçou-se. Es- Despedaçaste todos os meus afetos humanos, um a um; qui-
tava imerso num mar de gelo e agora me acho envolto num seste que somente o Teu amor permanecesse.
incêndio de amor. E, quando o meu coração caiu por terra, ensanguentado,
Sobre minha fronte descansou o beijo do Eterno, e eu res- na estrada poeirenta, pisado por todos, Tu então o recolhes-
suscitei. te e me disseste: “Eu sou o teu amor. Somente a mim podes
Basta, Senhor! Reprime o êxtase do meu coração, que se amar”.
despedaça... Em mordaça de ferro comprimiste minha paixão; quando
Faz-me ainda sofrer, somente para que eu aprenda a amar- ela desejava explodir no mundo, Tu lhe fechaste todas as portas
Te mais intensamente ainda!... e a lançaste dentro de mim, para que, nessa constrição, se tor-
nasse mais profundo e mais potente o seu lume e ardesse num
XXV. CÂNTICO DA MORTE E DO AMOR incêndio sempre maior, e no íntimo inflamasse, chamejando até
encontrar-Te, Senhor.
Desfere-se o derradeiro cântico da vida. Dosaste o meu tormento, proporcionaste asfixia lenta, qui-
És bom e grande, ó meu Senhor. Tenho-Te concebido em seste que eu me aproximasse de Ti por minha busca e por es-
Tua infinita potência, no estupendo dinamismo do universo. forço meu.
Sinto, no entanto, que tudo em mim se acha exausto e já não sei
Agora compreendo que ao Teu amor divino eu não poderia
senão isto: morro e amo-Te.
chegar senão pela dilaceração de todo amor humano.
Ouço, como um grito dentro da noite, todo o turbilhão de
A Ti não se chega senão pela tempestade, porque és o turbi-
meu corpo, que não quer morrer. Elevo-me, porém, para Ti e
lhão e o poder, és a essência da força.
digo: Senhor, sustém minha alma, sinto-me fatigado.
Sinto que a chama do Teu incêndio se aproxima e lança la-
Para chegar a Ti, Senhor, dilacerei minhas vestes sobre as
baredas sobre mim. De repente, uma delas me toca e se enrodi-
sarças e as perdi ao longo do caminho; deixei sobre os seixos
da estrada, minha carne em farrapos e verti todo o meu sangue. lha à minha alma, aperta-a e agarra-a para atraí-la a si, no cen-
Cobri-me de poeira e desfiz-me através de longa fadiga. Já não tro do incêndio.
tenho lágrimas para chorar, nem voz para invocar-Te, nem for- Afrouxa, em seguida, a pressão e me deixa recair nas coisas
ças para andar e para sofrer. humanas, para retomar-me depois, outra vez, ainda outra, sem-
Enfrentei as forças titânicas da vida, para superá-las. Elas se pre mais forte.
rebelaram e fizeram de mim um farrapo. Tremi na solidão das Aquele incêndio me espera, e eu nele cairei.
noites de insônia; arrastei-me nas vias de meu dever, de unhas e ◘ ◘ ◘
cotovelos, quando os pés já me sangravam. Tenho vivido para É a Semana da Paixão e aproxima-se a hora santa em que
sofrer e tenho sofrido para amar-Te. Acreditei em Ti, sem que Tu, Senhor, na Tua agonia, lançaste ao mundo o grito da reden-
jamais pudesse ter direito ao sinal exterior, que persuade os ção e do amor.
sentidos. Amei-Te perdidamente, sem jamais poder experimen- Nestes dias, espadelaste minha alma, para que também eu
tar a alegria do amor correspondido. vivesse a tua paixão de dor e de amor.
O último esforço da minha vida consiste em alçar meu co- Sobre minha sensibilidade, vibrando e ressoando, passaram
ração para confiá-lo ao Teu seio, ó Senhor. É minha última o choque brutal e o insulto feroz, e nela se hospedaram, sub-
dádiva. mergindo-se com alegria na minha dor torturante.
◘ ◘ ◘ Tu estavas presente e próximo, mas, por desgraça minha, eu
Perdoa, Senhor, minha ânsia. Fraca é minha carne, e atroz é não o senti.
a sua tempestade. A nova dor, porém, reergueu até Ti minha sensação, e, nas
Sobe de minhas vísceras uma tristeza de morte; despedaça- profundezas do meu desgarre, eu Te reencontrei, assim como
dos se acham meus membros, submerge-me uma amargura tantas vezes eu Te perdi e, na minha prostração, vieste ao meu
inominável. Prostra-se-me a alma na luta extrema. encontro e de novo me apareceste.
Ergue, Senhor, a criatura que Te invoca. Que desejas de mim, Senhor?
No limiar da morte, busco-Te com um olhar, para que me Chego a Assis, ao anoitecer da Quinta-feira Santa. Sete ve-
salve Tua vista. las e mais sete, em duas ordens bem visíveis, ardem, solitárias,
Já Te vejo, esplendente, no fundo de minha dor e já ouço a na basílica de Francisco45.
voz de Tua ressurreição. Apagam-se lentamente, uma a uma, com um salmodiar lon-
Morre-me o corpo, e na profundeza da minha alma Tu can- go e triste, em que chora a Igreja e o mundo suplica; lá fora,
tas; no fundo de minha agonia física entoa-se o cântico da vi- tristemente, o dia se extingue, filtrando sua agonia através dos
da maior. Ele ressoa pelos céus, nas noites cintilantes. A fron- históricos vitrais.
de, no poente, sussurra-o para outra fronde; a criatura, em ca- A sinfonia de liturgia, de luzes, de pranto, canta concorde
rícias, transmite-o à criatura irmã, e a onda repete-o para a uma lenta sonolência de morte, em que se extingue a agonia
onda, através dos mares ilimitados. Celebram-nos as luzes que da paixão.
cruzam o firmamento, propaga-o o raio tonante, irradiam-no Quando, porém, com a derradeira luz do dia, se apaga a
os sóis, e nele retumba e esplende o universo sem confins. O última vela, o último canto do salmo explode tão trágico e di-
cântico sobe das coisas para mim, dilata-se na minha agonia,
triunfa na minha morte. 45
Nessa basílica giottesca celebra-se, nas tardes de Quarta e Quinta-
É a minha vida nova. Deus de potência e de amor enfim, eu feira Santas, ao crepúsculo, o “Oficio das Trevas”, extremamente su-
Te sinto. Jaz desfeito o meu corpo, minha alma, porém, chegou gestivo pelo ambiente artístico, a liturgia e o canto solene, e sobretu-
a Ti. Finalmente, no grande cântico do universo todo, ouço a do pela quase ausência de assistentes, que, pela sua distraída incom-
voz do amor, que responde: “Criatura minha, amo-te”. preensão, sempre perturbam. (N. do A.)
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 233
lacerante, interrompido pelo triste batido das vergas no so- E, quando, já sem forças, cair e vir chegar até mim a carícia
lo46, que minha alma tempestuosa se abate, porque então ou- sedutora das coisas humanas, minha alma deverá recusar qual-
ço em mim gritar a dor do mundo, que, súplice, chora com o quer repouso ou conforto e dizer: “Por amor de Ti, Senhor”.
Cristo que morre. Flagela diariamente meu espírito, para que ele seja desperto
Já é noite. Ensombram-se os vitrais luminosos. Tudo está e pronto ao Teu comando.
apagado nos altares nus. A Igreja, que nesta hora agasalha a Com a minha renúncia, alimentarei todo dia a chama de
dor de um Deus e a dor do homem, depôs seus ouropéis e se meu amor por Ti.
abate desnuda aos pés de Cristo. Não! Não é renúncia, não é dor: é expansão e alegria. “É
Nesse ar triste, mas calmo; nessa atmosfera de dor, gran- por amor de mim, Senhor”.
de, mas consciente e resignada, escuto o clamor das multi- Que posso eu fazer? Agora, é inútil resistir. Precipito-me
dões distantes, que não querem e não sabem sofrer; sinto o em Ti, Senhor; as órbitas se comprimem vertiginosamente; a
espasmo das marés humanas, que a dor e a paixão perseguem maturação prossegue no mundo e em mim por caminhos
e atormentam. opostos.
Minha alma treme. A hora é intensa para todos. Não se pode detê-la. Preparada,
Jaz abatida ao pé da cruz e olha, no alto, o drama de um já há tempo, precipita-se. Eu temo olhar.
Deus agonizante por amor. Somente o seu olhar me dá força ◘ ◘ ◘
para viver. O cerco se aperta. O drama da Paixão de Cristo se faz inten-
Vivo o Teu tormento, meu Senhor. Subi Contigo até à cruz; so dentro de mim; o drama das tempestades humanas acossa
Tua dor é minha dor. Agonizo e morro Contigo. quem está lá fora.
Desço à cripta e me abato aos pés do túmulo de Francisco.
Desejaria invocar piedade para todos, mas não tenho cora-
Apossa-se de mim, plenamente, o espírito do lugar, tão for-
gem. Não tens mais sangue para dar; morres nu e amaldiçoado,
te, que me lança por terra. Apoio sobre a pedra desnuda a fronte
e és inocente. Que posso pedir-Te mais por amor do homem?
em chamas, para acalmar a febre e abrandar o incêndio.
Eu o sei: dar-me-ás ainda lacerações tremendas; mas, a cada
Conduziste-me até aqui. Para que? Que queres de mim,
novo rasgar-se de minha carne, eu Te direi: “Por amor de Ti,
Senhor?
Senhor”.
Começo a balbuciar: “Toma minha alma”.
Estou à espera, vibrando, em tensão, sem palavras.
Recordo. Já me disseste numa hora de trevas: “Segue-me,
segue-me”.
Paira sobre mim algo de grave e de grande que eu não sei.
Sinto solene a hora. Estás perto de mim, é Cristo, eu Te sinto.
Francisco é uma força viva, vibrando daquele túmulo, e me
contempla e me ajuda.
Algo de potente, de imenso, quer subir das profundezas de
meu coração e não pode. É intenso demais para suas forças. A
ideia se agita, comprime-se para explodir, busca a palavra que a
expresse, que a engaste em sua última forma.
Finalmente emerge a voz, e minha alma grita: “Senhor! Eu
Te seguirei até à cruz!”
Então, sinto dentro de mim, a cantar: “Tu estás no centro de
meu coração”.
Minha alma, liquefeita em lágrimas de júbilo, de amor e de
paixão, prostra-se, sem forças.
Naquele instante, porém, ressoa do alto, do templo superi-
or47, da igreja baixa pintada por Giotto, no cântico que salmodia
até ao vértice de sua paixão, ressoa, como raio a ecoar toda a
explosão do meu tormento, condensando minha tempestade,
ressoa, no clamor da música e das vergas batendo no solo, o
grito derradeiro do Cristo que morre.
Esse grito me atinge e me fere. Alguma coisa se dilacera em
mim; abre-se uma fenda em minha alma.
O extremo apelo me convoca: é o lamento do Cristo, é a dor
do mundo, é uma convergência, em mim, de forças superiores e
inferiores; sinto minha alma fugir-me, arrebatada num vértice
de forças titânicas, sinto a Voz instar dentro de mim, e repito:
(“O Gólgota” de E. Longoni)
Aproxima-se a hora santa em que Tu, Senhor, na Tua agonia,
“Senhor, seguir-Te-ei até à cruz”.
lançaste ao mundo o grito da redenção e do amor. Estou esmagado pelo peso de uma promessa solene.
◘ ◘ ◘
Torno a subir à igreja média, pintada por Giotto.
46
Refere-se o escritor a um rito litúrgico da Semana Santa. Ao traduzir Apaga-se a última vela. É noite. Ouço ainda mais perto,
“Passione”, não entendendo esse trecho, recebi do Prof. Ubaldi a ex- dentro de mim, a repetir-se, o grito do Cristo a morrer.
plicação do mesmo, em carta de 3 de maio de 1950. É um rito da Igreja Ele aqui está, no momento, presente.
em que se representa a Paixão de Cristo, de que faz parte a cena da flage-
Rasga-se, então, ante meus olhos, a visão da Terra e do Céu.
lação (“scena deile battiture”), quando o Senhor foi preso a uma coluna e
açoitado com varas. No rito, as vergas, longas e delgadas, batem no solo,
47
exprimindo as flagelações impostas a Cristo. “Isso – escreve-me o Prof. A basílica de São Francisco é composta de três igrejas superpostas.
Pietro – produz um efeito lúgubre e triste. Naquela cena eu senti em A cena se passa na igreja do meio e na cripta que está em baixo, onde
mim a dor de Cristo flagelado pelas vergas”. (N. do T.) se encontra o túmulo do Santo. (N. do A.)
234 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
O Céu chora a agonia e a paixão de amor de um Deus, a Compreendo que Tu esperavas esta minha nova dação, por-
Terra treme, convulsa, no pressentimento de um vendaval que agora um peregrinar mais áspero se inicia e um esforço
sem nome. mais árduo me espera.
O drama do homem e o drama de Deus se conjugam nesta O cântico cessou depois de seu último paroxismo.
hora suprema de paixão. Todas as luzes se apagaram. O templo está em silêncio, no
Olho, atemorizado. Vejo um turbilhão de forças que se pro- escuro.
jeta para a Terra e vejo a Terra sacudida, agitada, submersa Minha alma atinge, junto à alma de Cristo no Getsêmane,
num mar de sangue. sua última desolação.
É a hora tétrica da paixão do mundo. E parece sem esperan- Abala-me o último estalido das vergas batendo no solo.
ça. O cerco estreita-se cada vez mais; bem depressa estará fe- Naquele instante, verdadeiramente senti a Terra tremer.
chado e tarde será para escapar à compressão. ◘ ◘ ◘
A mão do Eterno empunha o destino do mundo; estão pron- Como era belo contemplar, lá fora, antes do ocaso, sobre o
tas a desencadear-se as forças para o choque fatal. Está próxima doce e extenso vale úmbrico e os reflexos do Tescio1, os pinhei-
a hora das trevas, do mal triunfante, da prova suprema. Feliz ros ondeando ao vento, contra os diáfanos esplendores da dis-
quem não for vivo, então, sobre a Terra. tância!
O amor de Deus deve retrair-se um momento, para que a E, mais tarde, a lua cheia surgindo do Subásio 2, a mole do
justiça seja feita e o destino, desejado pelo homem, se cumpra. templo, irreal, entre pálidas luzes, e a imensa campina ador-
Há algum tempo, eu já disse – preparai-vos, preparai-vos – mecida.
e não ouvistes. Em breve, será demasiado tarde. Hora de doces colóquios de espírito com a alma do criado,
O drama está próximo, eu o sinto, torna-se meu, toco-o, res- no intenso pressentimento de primavera. Hora de ternas recor-
soa desesperadamente no mais íntimo de meu espírito. dações para mim, nesta doce terra de Assis, onde tão profun-
Repito: “Toma, Senhor, minha alma”. damente tenho vivido e que tanto tenho amado. Hora em que o
E três vezes repito: “Senhor, ofereço-te a mim mesmo pela Céu e a Terra refletem, amigos, um sorriso comum e se estrei-
salvação do mundo”. tam num fraterno amplexo.
“Seguir-Te-ei até à cruz”. Parecem em paz, mas é aparência do momento.
Três vezes repito e sinto que Tu, Cristo, me escutas me Vive dentro de mim a visão da realidade
aceitas e que estou unido à Tua paixão. Eu senti verdadeiramente a Terra tremer.
Compreendo que me guiaste até aqui, ao templo de São
Francisco, para que, sobre Seu túmulo, próximo Dele, eu Te re- FIM
petisse esta nova promessa, solene, decisiva, após a primeira,
após cinco anos de duro caminhar.

1
Torrente das proximidades de Assis. (N. do A.)
2
O monte Subásio, aos pés do qual está edificada Assis. (N. do T.)
O MISSIONÁRIO
Vida e Obra de Na primeira semana de setembro de 1931, depois da grande decisão fran-
ciscana, Cristo novamente lhe apareceu e, desta vez, acompanhado de São

Pietro Ubaldi Francisco de Assis. Um à direita e outro à esquerda, fizeram companhia a Pie-
tro Ubaldi durante vinte minutos, em sua caminhada matinal, na estrada de
Colle Umberto. Estava, portanto, confirmada sua posição.
Em 25 de dezembro de 1931, chegou-lhe de improviso a primeira mensa-
(Sinopse) gem, a Mensagem de Natal. Por intuição ele sentiu: estava aí o início de sua
missão. Outras Mensagens surgiram em novas oportunidades. Todas com a
mesma linguagem e conteúdo divino.
O HOMEM No verão de 1932, começou a escrever A Grande Síntese, a qual só termi-
nou em 23 de agosto de 1935, às 23h00min horas (local). Esse livro, com cem
Pietro Ubaldi, filho de Sante Ubaldi e Lavínia Alleori Ubaldi, nasceu em capítulos, escrito em quatro verões sucessivos, foi traduzido para vários idio-
18 de agosto de 1886, às 20:30 horas (local). Ele escolheu os pais e a cidade mas. Somente no Brasil, já alcançou quinze edições. Grandes escritores do
onde iria nascer, Foligno, Província de Perúgia (capital da Úmbria). Foligno fi- mundo inteiro opinaram favoravelmente sobre A Grande Síntese. Ainda outros
ca situada a 18 km de Assis, cidade natal de São Francisco de Assis. Até hoje, compêndios, verdadeiros mananciais de sabedoria cristã, surgiram nos anos se-
as cidades franciscanas guardam o mesmo misticismo legado à Terra pelo guintes, completando os dez volumes escritos na Itália:
grande poverelo de Assis, que viveu para Cristo, renunciando os bens materiais 01) Grandes Mensagens
e os prazeres deste mundo. 02) A Grande Síntese - Síntese e Solução dos Problemas da Ciência e do Espírito
Pietro Ubaldi sentiu desde a sua infância uma poderosa inclinação pelo
03) As Noúres - Técnica e Recepção das Correntes de Pensamento
franciscanismo e pela Boa Nova de Cristo. Não foi compreendido, nem poderia
sê-lo, porque seus pais viviam felizes com a riqueza e com o conforto proporci- 04) Ascese Mística
onado por ela. A Sra. Lavínia era descendente da nobreza italiana, única herdei- 05) História de Um Homem
ra do título e de uma enorme fortuna, inclusive do Palácio Alleori Ubaldi. As- 06) Fragmentos de Pensamento e de Paixão
sim, Pietro Alleori Ubaldi foi educado com os rigores de uma vida palaciana. 07) A Nova Civilização do Terceiro Milênio
Não pode ser fácil a um legítimo franciscano viver num palácio. Naturalmen- 08) Problemas do Futuro
te, ele sentiu-se deslocado naquele ambiente, expatriado de seu mundo espiritual. 09) Ascensões Humanas
A disciplina no palácio, ele aceitou-a facilmente. Todos deveriam seguir a orien- 10) Deus e Universo
tação dos pais e obedecer-lhes em tudo, até na religião. Tinham de ser católicos
Com este último livro, Pietro Ubaldi completou sua visão teológica, além
praticantes dos atos religiosos, realizados na capela da Imaculada Conceição, no
de profundos ensinamentos no campo da ciência e da filosofia. A Grande Sínte-
interior do palácio. Pietro Ubaldi foi sempre obediente aos pais, aos professores, à
se e Deus e Universo formam um tratado teológico completo, que se encontra
família e, em sua vida missionária, a Cristo. Nem todas as obrigações palacianas
ampliado, esclarecido mais pormenorizadamente, em outros volumes escritos
lhe agradavam, mas ele as cumpriu até à sua total libertação. A primeira liberdade
na Itália e no Brasil, a segunda pátria de Ubaldi.
se deu aos cinco anos, quando solicitou de sua mãe que o mandasse à escola, e
O Brasil é a terra escolhida para ser o berço espiritual da nova civiliza-
aquela bondosa senhora atendeu o pedido do filho. A segunda liberdade, verdadei-
ção do Terceiro Milênio. Aqui vivem diferentes povos, irmanados, indepen-
ro desabrochamento espiritual, aconteceu no ginásio, ao ouvir do professor de ci-
dentes de raças ou religiões que professem. Ora, Pietro Ubaldi exerceu um
ência a palavra “evolução”. Outra grande liberdade para o seu espírito foi com a
ministério imparcial e universal, e nenhum país seria tão adaptado à sua mis-
leitura de livros sobre a imortalidade da alma e reencarnação, tornando-se reen-
são quanto a nossa pátria. Por isso o destino quis trazê-lo para cá e aqui com-
carnacionista aos vinte e seis anos. Daí por diante, os dois mundos, material e es-
pletar sua tarefa missionária.
piritual, começaram a fundir-se num só. A vida na Terra não poderia ter outra fi-
Nesta terra do Cruzeiro do Sul, ele esteve em 1951 e realizou dezenas de
nalidade, além daquelas de servir a Cristo e ser útil aos homens.
conferências de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Em oito de dezembro do ano se-
Pietro Ubaldi formou-se em Direito (profissão escolhida pelos pais, mas ja-
guinte, desembarcaram, no porto de Santos, Pietro Ubaldi acompanhado da es-
mais exercida por ele) e Música (oferecimento, também, de seus genitores), fez-se
posa, filha e duas netas (Maria Antonieta e Maria Adelaide), atendendo a um
poliglota, autodidata, falando fluentemente inglês, francês, alemão, espanhol, por-
convite de amigos de São Paulo para vir morar neste imenso país. É oportuno
tuguês e conhecendo bem o latim; mergulhou nas diferentes correntes filosóficas e
lembrar que Ubaldi renunciou aos bens materiais, mas não aos deveres para
religiosas, destacando-se como um grande pensador cristão em pleno Século XX.
com a família, que se tornou pobre porque o administrador, primo de sua espo-
Ele era um homem de uma cultura invejável, o que muito lhe facilitou o cumpri-
sa, dilapidou toda a riqueza entregue a ele para gerencia-la.
mento da missão. A sua tese de formatura na Universidade de Roma foi sobre A
Em 1953, Pietro Ubaldi retornou à sua missão apostolar, continuou a re-
Emigração Transatlântica, Especialmente para o Brasil, muito elogiada pela ban-
cepção dos livros e recebeu a última Mensagem, Mensagem da Nova Era, em
ca examinadora e publicada num volume de 266 páginas pela Editora Ermano
São Vicente, no edifício “Iguaçu”, na Av. Manoel de Nóbrega, 686 – apto. 92.
Loescher Cia. Logo após a defesa dessa tese, o Sr. Sante Ubaldi lhe deu como
Dois anos depois, transferiu-se com a família para o Edifício “Nova Era” (coin-
prêmio uma viagem aos Estados Unidos, durante seis meses.
cidência, nada tem haver com a Mensagem escrita no edifício anterior), Praça
Pietro Ubaldi casou-se com vinte e cinco anos, a conselho dos pais, que es-
22 de janeiro, 531 – apto. 90. Em seu quarto, naquele apartamento, ele comple-
colheram para ele uma jovem rica e bonita, possuidora de muitas virtudes e fina
tou a sua missão. Escreveu em São Vicente a segunda parte da Obra, chamada
educação. Como recompensa pela aceitação da escolha, seu pai transferiu para
brasileira, porque escrita no Brasil, composta por:
o casal um patrimônio igual àquele trazido pela Senhora Maria Antonieta Sol-
11 ) Profecias
fanelli Ubaldi. Este era, agora, o nome da jovem esposa. O casamento não esta-
va nos planos de Ubaldi, somente justificável porque fazia parte de seu destino. 12 ) Comentários
Ele girava em torno de outros objetivos: o Evangelho e os ideais franciscanos. 13 ) Problemas Atuais
Mesmo assim, do casal Maria Antonieta e Pietro Ubaldi nasceram três filhos: 14) O Sistema - Gênese e Estrutura do Universo
Vicenzina (desencarnada aos dois anos de idade, em 1919), Franco (morto em 15) A Grande Batalha
1942, na Segunda Guerra Mundial) e Agnese (falecida em S. Paulo - 1975). 16 ) Evolução e Evangelho
Aos poucos, Pietro Ubaldi foi abandonando a riqueza, deixando-a por con- 17) A Lei de Deus
ta do administrador de confiança da família. Após dezesseis anos de enlace ma- 18) A Técnica Funcional da Lei de Deus
trimonial, em 1927, por ocasião da desencarnação de seu pai, ele fez o voto de
19 ) Queda e Salvação
pobreza, transferindo à família a parte dos bens que lhe pertencia. Aprovando
aquele gesto de amor ao Evangelho, Cristo lhe apareceu. Isso para ele foi a 20 ) Princípios de Uma Nova Ética
maior confirmação à atitude tão acertada. Em 1931, com 45 anos, Pietro Ubaldi 21) A Descida dos Ideais
assumiu uma nova postura, estarrecedora para seus familiares: a renúncia fran- 22 ) Um Destino Seguindo Cristo
ciscana. Daquele ano em diante, iria viver com o suor do seu rosto e renunciava 23 ) Pensamentos
todo o conforto proporcionado pela família e pela riqueza material existente. 24) Cristo
Fez concurso para professor de inglês, foi aprovado e nomeado para o Liceu São Vicente (SP), célula mater. do Brasil, foi a terceira cidade natal de Pie-
Tomaso Campailla, em Módica, Sicilia – região situada no extremo sul da Itália tro Ubaldi. Aquela cidade praiana tem um longo passado na história de nossa
– onde trabalhou somente um ano letivo. Em 1932 fez outro concurso e foi pátria, desde José de Anchieta e Manoel da Nóbrega até o autor de A Grande
transferido para a Escola Média Estadual Otaviano Nelli, em Gúbio, ao norte da Síntese, que viveu ali o seu último período de vinte anos. Pietro Ubaldi, o Men-
Itália, mais próximo da família. Nessa urbe, também franciscana, ele trabalhou sageiro de Cristo, previu o dia e o ano do término de sua Obra, Natal de 1971,
durante vinte anos e fez dela a sua segunda cidade natal, vivendo num quarto com dezesseis anos de antecedência. Ainda profetizou que sua morte acontece-
humilde de uma casa pequena e pobre (pensão do casal Norina-Alfredo Pagani ria logo depois dessa data. Tudo confirmado. Ele desencarnou no hospital São
– Rua del Flurne, 4), situada na encosta da montanha. José, quarto No 5, às 00h30min horas, em 29 de fevereiro de 1972. Saber quan-
A vida de Pietro teve quatro períodos distintos (v. livro Profecias – “Gêne- do vai morrer e esperar com alegria a chegada da irmã morte, é privilégio de
se da II Obra”): dos 5 aos 25 anos  formação; 25 aos 45 anos  maturação in- poucos... O arauto da nova civilização do espírito foi um homem privilegiado.
terior, espiritual, na dor; dos 45 aos 65 anos  Obra Italiana (produção concep- A leitura das obras de Pietro Ubaldi descortina outros horizontes para uma
tual); dos 65 aos 85 anos  Obra Brasileira (realização concreta da missão). nova concepção de vida.

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