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RESUMO
O artigo propõe-se a examinar criticamente a tese de medicina de Georges Canguilhem,
Essais sur quelques problèmes concernant le normal et le pathologique, publicada pela
primeira vez em 1943, enfatizando o papel desempenhado pela totalidade orgânica
individual como o ponto de vista privilegiado para a definição da fronteira entre o
normal e o patológico, percorrendo as direções internas de sua argumentação, e
destacando a sua relevância e atualidade para os debates contemporâneos em clínica,
terapêutica e nas ciências da vida.
PALAVRAS-CHAVE:
Georges Canguilhem; Normal e Patológico; Saúde; Doença; Cura.
ABSTRACT
Individual, Body and Illness: the currency of Georges Canguilhem’s “The Normal and
the Pathological”
The article proposes a critical appraisal of Georges Canguilhem´s medical thesis, Essais
sur quelques problèmes concernant le normal et le pathologique, originally published in
1943. Emphasizing the role of the individual whole body for the definition of the
boundaries between the normal and the pathological, it also stresses its relevance and
currency to contemporary debates on clinical and therapeutical practices, and on life
sciences.
KEY-WORDS:
Georges Canguilhem; Normal and Pathological; Health; Disease; Healing.
Há cerca de dez anos tivemos a publicação da última edição dos dois principais sistemas
classificatórios usados internacionalmente em psiquiatria e saúde mental, a CID-10
(1993) e o DSM-IV (1994). Uma tendência se delineava nestas novas edições dos dois
principais sistemas classificatórios em âmbito internacional: a expansão do número de
categorias diagnósticas incluídas em cada uma delas. A CID-10 incluía 100 categorias
contra 30 na CID-9 (1978), enquanto o DSM-IV incluía 297, contra 292 no DSM-III-R
(1987), 265 no DSM-III (1980) e – o maior salto – 180 na DSM-II (1968). E o que
pudemos notar, a medida em que aquelas novas edições entraram em uso, foi que esta
explosão de diagnósticos se fez às expensas de um processo de patologização do
normal.
Do lado social e político, temos a França ocupada e o Regime de Vichy, o que leva
Canguilhem, em 1940, a se afastar do ensino universitário, alegando razões de
conveniência pessoal. Mas o afastamento não durou muito tempo. No ano seguinte,
Cavaillès, professor de Lógica e Filosofia na Universidade de Strasbourg, deslocada
durante a ocupação para Clermont-Ferrand, lhe fez dois convites, ambos aceitos. Tendo
sido nomeado para a Sorbonne, Cavaillès convidou Canguilhem para sucedê-lo em
Clermont-Ferrand tanto na Universidade quanto na organização das ações da
Resistência Francesa na região do Maciço Central. No plano intelectual, esta mudança
para Clermont-Ferrand o permitiu reencontrar seu antigo colega de ENS, Lagache, que
lhe apresentou um autor – Kurt Goldstein ([1935] 1983) - que seria fundamental no seu
trabalho. Em julho de 1943, não obstante as dificuldades impostas pela guerra, pela
resistência e pelo período de clandestinidade, Georges Canguilhem defendeu a sua tese
de doutorado em medicina sobre o normal e o patológico. Esta tese teve a sua primeira
edição neste mesmo ano, em Clermont-Ferrand, sob o título Essais sur quelques
problèmes concernant le normal et le pathologique. A sua terceira edição – da qual
temos uma tradução brasileira - de 1966, apresenta modificações importantes; a
começar pelo título, simplificado para O Normal e o Patológico. Além disso, esta edição
é dividida em duas partes. A primeira contém o texto integral da tese de 1943. A
segunda, intitulada Novas Reflexões Sobre o Normal e o Patológico, apresenta três
textos escritos entre 1963-1966 que retomam o assunto à luz de novas contribuições na
epistemologia e história das ciências – notadamente os trabalhos de Foucault ([1985]
1994) – e de avanços na biologia, em especial em biologia molecular.
Embora fosse a minha intenção inicial, não poderei, por uma questão de espaço, me
dedicar, neste artigo, a uma apresentação comentada do conteúdo linear da tese de 1943.
Vou privilegiar um aspecto, a meu ver central, da sua argumentação, me referindo aos
demais elementos desenvolvidos na tese na medida em que estes forem indispensáveis à
exposição que pretendo realizar. O ponto que pretendo colocar em relevo na sua
discussão é aquele que ressalta o caráter simultaneamente individual e holista da
delimitação da fronteira entre o normal e o patológico.
Reconhecendo, desde a Introdução, a medicina como “uma técnica ou uma arte situada
na confluência de várias ciências, mais do que uma ciência propriamente dita”
(Canguilhem, [1966] 1982: 16), e cujo aspecto fundamental, não obstante a
racionalização científica, é a clínica e a terapêutica, “isto é, uma técnica de instauração e
restauração do normal, que não pode ser inteiramente reduzida ao simples
conhecimento” (Canguilhem, [1966] 1982: 16), o autor desenvolve a sua argumentação
no intuito de explorar duas séries de questões: o problema das relações entre ciências e
técnicas e o das normas e do normal. Estas questões voltarão a ser abordadas em outros
artigos e conferências ao longo de sua obra.
A tese se divide em duas partes, cada uma encabeçada por uma grande questão. A
primeira parte é conduzida pela pergunta: “Seria o patológico apenas uma modificação
quantitativa do estado normal?” Nesta parte, Canguilhem faz um trabalho de história da
ciência no intuito de analisar criticamente uma concepção acerca das relações entre o
normal e o patológico que foi hegemônica no século XIX e que tomava o patológico
como uma mera variação quantitativa do normal. Esta concepção quantitativa autoriza
uma confiança na capacidade de intervenção e resolução do médico, mas ao estabelecer
uma linha de continuidade entre o normal e o patológico, para melhor conhecer no
intuito de agir melhor, arrisca a perder qualquer especificidade que o último pudesse ter.
São examinados alguns autores cuja relevância para esta concepção é assinalada, sendo
que dois deles serão personagens freqüentes em outros trabalhos de Canguilhem: Comte
e Claude Bernard.
... o fato patológico só pode ser apreendido como tal – isto é, como alteração do estado
normal – ao nível da totalidade orgânica; e, em se tratando do homem, ao nível da
totalidade individual consciente, em que a doença torna-se uma espécie de mal. Ser
doente é, realmente, para o homem, viver uma vida diferente, mesmo no sentido
biológico da palavra. (Canguilhem, [1966] 1982: 64)
É na segunda parte de sua tese que Canguilhem apresenta e justifica as suas posições na
questão do normal e do patológico. Ele o faz inicialmente por meio de uma série de
contrastes que apresentam a utilidade metodológica de permitir destacar a dimensão
avaliativa e qualitativa do que se chama normal – e por extensão, do patológico.
Neste ponto, Canguilhem retoma a inversão realizada na ordem das derivações no que
diz respeito à relação entre ciência e técnica ao discutir a concepção de Leriche – não há
nada na ciência que antes não tenha aparecido na consciência – de certo modo a
justificando, quando ele afirma:
É certo que, em medicina, o estado normal do corpo humano é o estado que se deseja
restabelecer. Mas será que se deve considerá-lo normal porque é visado como fim a ser
atingido pela terapêutica, ou, pelo contrário, será que a terapêutica o visa justamente
porque ele considerado como normal pelo interessado, isto é, pelo doente? Afirmamos
que a segunda relação é a verdadeira. (Canguilhem, [1966] 1982: 96)
... a vida não é indiferente às condições nas quais ela é possível, (...) a vida é polaridade
e por isso mesmo, posição inconsciente de valor, em resumo, (...) a vida é, de fato, uma
atividade normativa. (Canguilhem, [1966] 1982: 96)
A passagem acima citada merece destaque porque ela revela mais do que parece. Em
primeiro lugar, ela antecipa o conceito-chave da argumentação de Canguilhem: a
normatividade biológica (normativo sendo aquele que institui normas). E em segundo
lugar, ela apresenta Canguilhem incidindo no mesmo equívoco que ele denuncia, o de
confundir fatos e valores. Isto porque ele faz da normatividade da vida um fato que
fundamenta as escolhas e preferências dos viventes. Ou seja, ele faz de um valor um
fato, quer dizer, procura fundamentar uma atividade avaliativa – como deve ser – em
outra descritiva – como é. Isto fica reforçado quando se percebe que naquela mesma
página ele critica um dicionário de filosofia que dá a entender que o valor só pode ser
atribuído a um fato biológico por um falante – um ser humano – ao passo que
Canguilhem acredita que quando um ser vivo reage a uma doença, uma lesão, uma
incapacidade, isto revela um fato fundamental, o da normatividade vital. E isto se
estende da ameba – “Viver é, mesmo para uma ameba, preferir e excluir” (Canguilhem,
[1966] 1982: 105) – ao homem. Pode-se dizer que Canguilhem incide aqui em uma
falácia naturalista(2). Mesmo que normativamente estendamos esta prescrição de
inteligibilidade dos fenômenos biológicos para todos os seres, esta atribuição de valor
só poderia ter sido feita por um ser falante.
Como anunciei acima, Canguilhem recorre ao emprego de termos contrastantes para
explicitar melhor as confusões decorrentes da oposição de base que é a do entendimento
do normal enquanto fato e do normal enquanto valor. O primeiro par de termos reúne
anormal e anomalia. Recorrendo mais uma vez a uma análise semântica, e agora
também etimológica, de validade maior na língua francesa, ele indica que, naquela
língua, anomalia é um substantivo sem adjetivo e que anormal é um adjetivo sem
substantivo, o que fez com que as respectivas carências fossem suprimidas pelas
articulação de um e de outro, de modo que anormal tornou-se o adjetivo de anomalia e
este o substantivo daquela. Do ponto de vista etimológico, anomalia deriva do grego
omalos, que significa liso, uniforme, regular, logo an-omalos significa áspero, rugoso,
desigual. Já anormal deriva do grego nomos, do latim norma, que significam lei, regra.
Esta análise etimológica indica que o primeiro termo – anomalia – é na origem um
termo descritivo, ao passo que o segundo – anormal – é valorativo, mas a articulação de
ambos acabou produzindo o equívoco já mencionado de tomar por descritivo o que é
avaliativo e vice-versa. Seguindo estas indicações é possível então afirmar que a
anomalia indica apenas uma variação, uma diferença, uma descontinuidade espacial no
plano morfológico da espécie. Enquanto mera variação poderia ser ignorada pela ordem
vital. Mas se esta variação implica algum impedimento ou obstáculo ao exercício de
funções ou ao pleno desenvolvimento da vida, ela será valorizada negativamente pela
própria vida e constituirá o patológico ou o anormal, entendido este último não como a
ausência de normas ou de normatividade – o que seria incompatível com a continuidade
da vida – mas como uma restrição de normatividade. Se a anomalia não apresentar
repercussão experimentada pelo indivíduo, ela será ignorada ou concebida como uma
variedade indiferente.
O outro par que Canguilhem examina para discutir o uso ambíguo do termo normal
como valor ou como fato é aquele composto por norma (valor) e média (fato). Não raro,
pelo contrário, até muito freqüentemente, encontramos como resposta para a pergunta:
“O que é o normal?” o enunciado: “a maior freqüência estatística”. É como se o
conceito de média fosse “um equivalente objetivo e cientificamente válido do conceito
de normal ou de norma” (Canguilhem, [1966] 1982: 118). Mas como decidir, só com
base em procedimentos estatísticos, dentro de que intervalos de variação com relação à
uma posição média teórica os indivíduos ainda podem ser considerados normais?
Reaparece a questão da subordinação da média – objetiva, descritiva – à norma –
individual, avaliativa. Como afirma Canguilhem, numa inversão desconcertante para o
senso comum, “Um traço humano não seria normal por ser freqüente; mas seria
freqüente por ser normal, isto é, normativo num determinado gênero de vida”
(Canguilhem, [1966] 1982: 126).
É a atividade normativa biológica dos organismos que avalia e prefere certos estados e
comportamentos com referência a determinados meios e por isso os escolhe, tornando-
os mais freqüentes. Deste modo, as médias fisiológicas não registram objetivamente o
normal tal como ele é, sempre foi e sempre será. O que elas registram são as “latitudes
funcionais” conquistadas pela espécie humana. O Fisiologista só indica o normal
resultante da atividade normativa dos organismos, atividade que rompe as normas para
criar novas normas, a serem mais uma vez registradas em seu conteúdo instável pela
fisiologia.
Toda esta reflexão precedente serve como base para a discussão fundamental e de uma
atualidade surpreendente que Canguilhem desenvolve no capítulo IV - Doença, Cura e
Saúde - da segunda parte de sua tese, e que é o aspecto de sua obra que me interessa
destacar neste artigo. É extraordinário notar a pertinência e a relevância do material de
reflexão sobre aquelas três noções, contido neste capítulo, quando ele é transportado
para a configuração atual da prática e da pesquisa médica, completamente
transformadas com relação ao que eram há sessenta anos atrás. Basta citar a crescente
molecularização das doenças; todo arsenal tecnológico de diagnóstico, especialmente no
que concerne à produção de imagens; o aumento da eficácia associada à diminuição dos
efeitos colaterais dos tratamentos farmacológicos, entre outros.
O lugar central do indivíduo nesta avaliação tem sido destacado por diferentes
comentadores da obra de Canguilhem(3). É somente através do ponto de vista
individual que se pode avaliar se uma norma de vida é superior à outra. Se
considerarmos que enquanto há vida há normatividade, logo a vida é normal. Mas uma
norma será considerada superior à outra quando aquela comporta o que esta permite e o
que esta não permite. Sendo assim, o patológico não é o anormal, mas o normal de uma
normatividade inferior. Isto é, regido por uma norma que não tolera desvios das suas
condições de validade e também não consegue se transformar em outra norma. O
doente, enquanto vive, está normalizado por uma norma conservadora, que se repete
idêntica a si mesma, quaisquer que sejam as circunstâncias. O doente é aquele ser que
perdeu a capacidade normativa. Uma conseqüência deste viés individual na delimitação
da fronteira entre o normal e o patológico é que a doença também é individualizada. O
que interessa primariamente ao clínico é o indivíduo doente muito mais do que a
doença.
O entendimento acerca da doença que daí ressalta não é mais o de uma situação de
privação, da falta de algum atributo ou capacidade que faz do doente um ser diminuído.
O que aparece é um ser modificado em sua individualidade, que mesmo quando está
apto a chegar aos mesmos desempenhos de que era capaz antes da doença, agora o faz
percorrendo caminhos diferentes dos anteriores. A doença aparece assim, em um
primeiro momento, como um imperativo de criação. Ou seja, ao doente é exigido o
estabelecimento de novas normas que permitam a continuidade da vida. Mas é uma vida
que não continua idêntica ao que era antes, apesar de não ser só uma simples variação
qualitativa, senão não seria doença, seria anomalia. Se for doença é porque esta variação
é experimentada negativamente. Isto porque em um segundo momento a doença é um
imperativo de conservação, perde-se a possibilidade criativa. Ou seja, o doente só é
normativo se a norma permanecer sempre a mesma, o que o torna vulnerável às
possíveis modificações do meio em que vive.
A doença passa a ser uma experiência de inovação positiva do ser vivo e não apenas um
fato diminutivo ou multiplicativo. O conteúdo do estado patológico não pode ser
deduzido – exceto pela diferença de formato – do conteúdo da saúde: a doença não é
uma variação da dimensão da saúde; ela é uma nova dimensão da vida. (Canguilhem,
[1966] 1982: 149)
Parece haver aqui uma inversão do que acredita um certo senso comum – melhor
informado por um entendimento do normal enquanto média - que atribui à saúde uma
posição fixa e definida dentro de certos limites fisiológicos e à doença uma indefinição
quanto àqueles marcos do funcionamento do corpo. O entendimento que decorre do que
expomos nos parágrafos acima atribui a necessidade de conservação à doença e a
possibilidade de expansão à saúde.
Mas se a doença é conservadora, seria a cura o retorno ao estado anterior de abertura de
possibilidades? Na verdade, encontram-se duas perguntas em uma na interrogação
anterior. Uma sobre a restauração de normatividade, outra sobre a reversibilidade à
situação anterior. A posição de Canguilhem e de Goldstein ([1935] 1983) é a de que é
possível a primeira sem se acompanhar da segunda. Mais do que isso, a segunda
possibilidade, a chamada restitutio ad integrum, nunca acontece. “A vida não conhece
reversibilidade” (Canguilhem, [1966] 1982: 158). O que não significa que não sejam
possíveis reparações que correspondam a inovações fisiológicas que podem ser
eventualmente até mais normativas que a situação prévia à doença e sua cura. De
qualquer modo, a renúncia à ambição de restituir o estado anterior ao período da doença
pode ter um efeito liberador para a cura, que pode, portanto, resgatar as possibilidades
existentes de criação e instituição de novas normas que, se não repetem a do período
prévio ao adoecimento, podem expandir a normatividade restringida pela situação
mórbida. Retomando este tema trinta e cinco anos depois, em um texto destinado à
publicação em uma revista de psicanálise, Canguilhem conclui indicando a posição ética
do terapeuta na cura:
Finalizando, mesmo que a Clínica esteja escorada por procedimentos científicos, ela não
é uma ciência. Ela é uma técnica de instauração ou restauração do normal. Logo, ela não
pode objetivamente se pronunciar sobre a cura, mas deve se contentar com a satisfação
subjetiva que decorre do retorno de normatividade. Isto não torna a prática terapêutica
um procedimento subjetivista, de ordem mística ou esotérica. Como indica Canguilhem
na última frase da tese,
Pode-se praticar objetivamente, isto é, imparcialmente, uma pesquisa cujo objeto não
pode ser concebido e construído sem referência a uma qualificação positiva e negativa;
cujo objeto, portanto, não é tanto um fato, mas, sobretudo, um valor. (Canguilhem,
[1966] 1982: 189)