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ISSN - 0102-7395

Revista de Psicanálise 79
Publicação do

Ano 42 Junho 2020


Periodicidade Semestral - ISSN - 0102-7395

Publicação semestral do

Reverso | Belo Horizonte | ano 42 | n. 79 | p. 1–102 | junho 2020


PUBLICAÇÃO DO CÍRCULO PSICANALÍTICO DE MINAS GERAIS
ANO XLII – N. 79, JUNHO 2020

P R E S I D E N TE
Guiomar Antonieta Lage
D I R E T O RA DE CO MUN I CA ÇÃ O E DI V ULGA ÇÃ O
Scheherazade Paes de Abreu
E D I T O R A DA RE V I S TA RE V E RS O
Maria Mazzarello Cotta Ribeiro
C O MI S S Ã O DE PUBLI CA ÇÃ O DA RE V I S TA RE V E RS O
Ana Boczar
Carlos Antônio Andrade Mello
Eliana Rodrigues Pereira Mendes
Maria Mazzarello Cotta Ribeiro
Marília Brandão Lemos de Morais Kallas
Paulo Roberto Ceccarelli
C O N S E LHO CO N S ULTI VO
Anchyses Jobim Lopes – Rio de Janeiro
Carlos Pinto Corrêa – Bahia
Déborah Pimentel Rebello de Mattos – Sergipe
Marco Antonio Coutinho Jorge – Rio de Janeiro

Tiragem 100 exemplares - Circulação Junho


Indexadores: IndexPsi Periódicos (BVS-PSI) - <www.bvs-psi.org.br>
Clase - Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales y Humanidades
<http://132.248.9.1:8991/F/-/?func=find-b-0&local_base=CLA01>
Latindex (Sistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas
de América Latina, el Caribe, España y Portugal)
Diadorim
Dialnet
Classificação Capes/Anppep – B2
Esta revista é encaminhada como doação para todas as bibliotecas
da Rede Brasileira de Bibliotecas da Área de Psicologia – ReBAP
CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
ANPEPP – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia

<www.bvs-psi.org.br>

Ficha Catalográfica
Reverso.– ano 1, n. 1 (set.) 1971–
Belo Horizonte: Círculo Psicanalítico de
Minas Gerais, 1971. 102 p.

v.: il.; 28,0 x 21,0 cm


Semestral.
Continuação: Boletim do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

1. Psicanálise – Periódicos. I. Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.


Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – Diretoria – 2017/2020
DIRETORIA EXECUTIVA
Presidente: Guiomar Antonieta Lage
Vice-Presidente: Eliana Rodrigues Pereira Mendes
Diretora da Secretaria: Maria Auxiliadora Toledo Garcia Freire
Diretor Administrativo-Financeiro: Délia Rodrigues Frazão
Diretora Científica: Maria de Lourdes Elias Pinheiro
Diretora de Comunicação e Divulgação: Scheherazade Paes de Abreu

Conselho Fiscal
Membros Efetivos:
Juliana Marques Caldeira Borges
Maria Angela Assis Dayrell
Maria Heloisa Noronha Barros

Membros Suplentes:
Maria Carolina Bellico Fonseca
Maria do Carmo Barbosa Mendes
Yumara Siqueira de Castro

Delegada junto ao CBP:


Rua Maranhão, 734 - 3º andar Juliana Marques Caldeira Borges
30150-330 - Belo Horizonte - MG
Tel.: (31) 3223-6115 - Fax: (3l) 3287-1170 COLABORADORES
E-mail: <cpmg@cpmg.org.br> ASSESSORIA DA DIRETORIA CIENTÍFICA
Site: <www.cpmg.org.br> Colegiado de Coordenadores de Seminários:
Eliana Monteiro de Moura Vergara
Maria de Lourdes Elias Pinheiro
Maria Pompéia Gomes Pires
Jornadas: Vanessa Campos Santoro
Seminários Livres: Maria Helena Ricardo Libório Barbosa Mello
Clínica de Psicanálise: Marisa de Lima Rodrigues

ASSESSORIA DA DIRETORIA DE COMUNICAÇÃO E DIVULGAÇÃO


Centro de Documentação e Divulgação
Biblioteca “Júlio César Valadares Roquete”
Yvonne Louise Coulaud Coelho da Rocha Muzzi

Comissão de Eventos
Eliana Rodrigues Pereira Mendes

Comissão de Publicação da revista Reverso


Ana Boczar
Carlos Antônio Andrade Mello
Eliana Rodrigues Pereira Mendes
Maria Mazzarello Cotta Ribeiro (Editora)
Marília Brandão Lemos de Morais Kallas
Paulo Roberto Ceccarelli

Delegada junto à IFPS


Eliana Rodrigues Pereira Mendes

Vencimento do Mandato:
Outubro/2020

.................................................................................................................................................................

Projeto gráfico e formatação


Valdinei do Carmo

Figura da capa
“Divanguarda” - Desenho com bico de pena, 2018
NOTA DO EDITOR Autor: Thiago Mendes
Todos os textos, inclusive a revisão da língua
portuguesa, são de exclusiva responsabilidade Revisão e normalização
Dila Bragança de Mendonça
dos autores. Reproduções totais ou parciais
são permitidas, desde que feita referência à Revisão do inglês
sua procedência. Paulo Roberto Ceccarelli
Esta revista foi revisada conforme o Novo Impressa em 30/06/2020
Acordo Ortográfico.
Sumário Editorial .............................................................................................. 9
Editorial

AUTO R CO N V I DA DO
Vozes do Supereu na clínica e o mal-estar contemporâneo
– paradoxos e trevo do Supereu ............................................................. 15
Voices of the Superego in the clinic and contemporary malaise
– paradoxes and clover of the Superego
Marta Gerez-Ambertín

TE O RI A E CLÍ N I CA PS I CA N A LÍ TI CA S
Considerações sobre o corpo na constituição subjetiva
do bebê com deficiência ....................................................................... 23

reverso Considerations on the body in the subjective constitution


of the infant with disability
Débora Crivelaro Dickel e Daniela Scheinkman Chatelard

N. 79 | Junho de 2020 Ouvir com os olhos: gestos, expressões, ritmos ...................................... 29


To hear with eyes: gestures, expressions, rhytms
Rua Maranhão, 734, 3º andar Jô Gondar
30150-330 - Belo Horizonte - MG
Tel.: (31) 3223-6115 - Fax: (3l) 3287-1170 A prática psicanalítica ........................................................................... 39
Site: <www.cpmg.org.br> The psychoanalytic practice
E-mail: <cpmg@cpmg.org.br> Maria Ângela Dayrell

Narrativa e história de si, contadas em análise ...................................... 45


Narrative and own story, told in analysis
Scheherazade Paes de Abreu

O estranhamente infamiliar dos medos ................................................. 53


The strangely (un)familiar of fears
Vanessa Campos Santoro

PS I CA N Á LI S E E CULTURA
Amar, verbo intransitivo, idílio:
a iniciação sexual de um jovem e o desejo de Fräulein ........................... 59
To love, intransitive verb, idyll:
the sexual initiation of a young man and Fräulein’s desire
Eliana Rodrigues Pereira Mendes
Marisa Lima Rodrigues

Transfobia, masculinidades e violência sob a ótica da psicanálise ........... 67


Transphobia, masculinities and violence from the perspective of psychoanalysis
Gabrielle Leite Rocha
Hugo Ribeiro Lanza
Sarug Dagir Ribeiro

Uma lei incompreendida: o dilema ético e moral de Heloise ................ 75


An unprecised law: the ethical and moral dilemma of Heloise
Otacílio José Ribeiro

PS I CA N Á LI S E E A RTE
Reflexões clínicas em Ré Menor .......................................................... 81
Clinical reflections in D minor
Daniel Röhe

E N TRE V I S TA
Entrevista com Arlindo Pimenta
– 50 anos de Círculo Psicanalítico de Minas Gerais ............................. 89
Interview with Arlindo Pimenta
– 50 years of Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
Arlindo Pimenta

NORMAS DE PUBLICAÇÃO ......................................................... 95


8
Editorial
Este número da Reverso, o 79, foi preparado dentro do período da pandemia do
COVID-19, que se apossou não só do Brasil mas também de todos os países.
Consideramos importante, neste momento, manter a palavra psicanalítica inscrita
em nossos artigos, fazê-la chegar aos leitores e, assim, pelo prazer do conhecimento,
trazer esperança a nossos “corações e mentes”.
Com foco na clínica psicanalítica, surge uma pergunta: “Como atua o Superego, a
partir do mais íntimo da subjetividade e do mal-estar na cultura, vociferando: Faça aquilo
que conspira contra ti!?” Assim, nossa convidada, Marta Ambertín inicia seu artigo,
Vozes do Supereu na clínica e o mal-estar contemporâneo - paradoxos e trevo do Supereu.
Prossegue num apanhado das formas como Freud descreveu o SE e seus efeitos na clínica.
Ao final de seu texto, tomando o SE como revés do desejo inconsciente, afirma que só
há clínica do desejo e não clínica do SE. Termina com a máxima lacaniana: “só o amor
permite ao gozo condescender ao desejo”, mas adverte que isso nem sempre é possível.
No setor Teoria e Clínica Psicanalíticas, iniciamos com as autoras Débora Crivelaro
Dickel e Daniela Scheinkman Chatelard um estudo sobre os efeitos que uma deficiência
orgânica no bebê pode ter sobre o imaginário parental e as implicações que pode trazer
para a constituição subjetiva do bebê e sua imagem corporal. No artigo Considerações sobre
o corpo na constituição subjetiva do bebê com deficiência, as autoras discutem a possibilidade
de elaboração parental do luto pela perda do bebê imaginário e a construção de novo
investimento libidinal, possibilitando um estatuto de sujeito a esse filho.
Em seguida, Jô Gondar, em Ouvir com os olhos: gestos, expressões, ritmos, nos traz
o conceito de dissociação, já estudado em Freud, no texto de Masud Khan (1971),
quando este relata a dissociação que se opera entre o que o analista ouve como discurso
e como expressão do corpo. Chama a atenção para uma clínica que não se reduz à
linguagem verbal, mas implica gestos, tons de voz, odores, atmosferas e ritmo, fazendo
uma correlação com vivências intrauterinas.
A prática psicanalítica é o texto escrito por Maria Ângela Assis Dayrell em que
discorre sobre o desejo de analista e sua posição na direção de uma análise, a partir da
operação de se constituir no “ser analista”.
No artigo seguinte, Narrativa e história de si, contadas em análise, Scheherazade
Paes de Abreu tece fios na fronteira entre psicanálise e história. Assegura, para todos,
uma questão sobre o valor da vida, a sexualidade e a morte, cuja resposta é a narrativa
de uma história. Na análise, aponta para não só a importância da história, mas também
o modo como se narra sua história.
O estranhamente infamiliar dos medos, texto elaborado por Vanessa Campos
Santoro, compara a fobia, que surge como resposta à angústia de castração, num tempo
de estruturação do sujeito – a fase fálica, com a irrupção do real no caso dos bombeiros
que participaram do resgate às vítimas do rompimento da barragem em Brumadinho
(MG), que foram ouvidos em atendimento psicanalítico e trouxeram além do estresse
pós-traumático, lembranças da história de cada um com fixações em traumas infantis.
A seção Psicanálise e Cultura é aberta com Eliana Rodrigues Pereira Mendes e
Marisa Lima Rodrigues, discutindo a questão da iniciação sexual de jovens segundo o
grupo social e o tempo histórico em que vivem, sempre numa reedição do complexo de
Édipo, no artigo Amar, verbo intransitivo, idílio: a iniciação sexual de um jovem e o desejo de
9
Fräulein. As autoras trabalham, no romance homônimo de Mário de Andrade, Amar,
verbo intransitivo, idílio, o enredo amoroso de um jovem adolescente e sua iniciadora
sexual, contratada pelo pai deste, onde o verbo amar, intransitivo, sofre uma subversão
e torna-se transitivo, escapando ao roteiro escrito pelo pai do rapaz.
Em seguida, com o artigo Transfobia, masculinidades e violência sob a ótica da
psicanálise, os autores Gabrielle Leite Rocha, Hugo Ribeiro Lanza e Sarug Dagir Ribeiro
discutem a transfobia pelo viés da teoria da sedução generalizada e da categoria de
códigos de Jean Laplanche, que a situa na origem alteritária dos processos constitutivos
do psiquismo e da noção de enquadramentos proposta por Judith Butler, para entender os
abalos narcísicos nas identidades masculinas e seus efeitos violentos para com mulheres
trans e travestis.
Com o texto Uma lei incompreendida: o dilema ético e moral de Heloise, Otacílio José
Ribeiro discute as possibilidades, pela via da psicanálise, de o sujeito se haver com seu
desejo diante das exigências do Superego, atualizadas nas leis sociais. Exemplifica essa
problemática trabalhando aspectos metapsicológicos da protagonista Heloise no filme
Em Nome de Deus.
No setor Psicanálise e Arte, Daniel Röhe discorre sobre as questões musicológicas
e sua presença na relação entre analista e paciente, pouco exploradas e estudadas.
Estende suas considerações à expressão dos afetos pela tonalidade Ré menor de que
os compositores se servem em suas peças. Traz exemplos de experiências pessoais e
profissionais de Freud com a música e encerra esse artigo Reflexões clínicas em Ré Menor
perguntando: por que a música possui um status de marginal em sua relação com a
psicanálise?
Finalizando, temos uma Entrevista com Arlindo Pimenta - 50 anos de Círculo
Psicanalítico de Minas Gerais, onde ele discorre sobre os dados históricos da psiquiatria
mineira nos anos 1960, a influência da psicanálise sobre ela e seu percurso profissional
concomitante à fundação e à constituição do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
(CPMG) até os dias de hoje.
A produção da Reverso conta com uma notável Comissão de Publicação composta
por Ana Boczar, Carlos Antônio Andrade Mello, Eliana Rodrigues Pereira Mendes,
Marília Brandão Lemos de Morais Kallas, Paulo Roberto Ceccarelli e coordenada por
Maria Mazzarello Cotta Ribeiro.
Nos trabalhos técnicos temos: na revisão e normalização dos artigos, Dila Bragança
de Mendonça; no projeto gráfico, Valdinei do Carmo; na revisão do inglês, Paulo Roberto
Ceccarelli; na tradução do espanhol, Bernardo Maranhão; na revisão técnica do espanhol,
Carlos Antônio Andrade Mello; na biblioteca, Marta Aparecida Almeida e Almeida;
na secretaria do CPMG, Adriana Dias Bastos.
A toda essa equipe de primeira ordem, os nossos agradecimentos e reconhecimento!
Nossa capa é uma ilustração de Thiago Mendes, que traduz com muita propriedade
o momento atual quando a necessidade do isolamento social levou a relação analítica à
modalidade virtual, seus efeitos e sua inventividade. O divã conectado com o mundo!
Por toda a dedicação dos autores, pela equipe de produção e o apoio da Diretoria
do CPMG a Reverso tem se mantido na classificação Capes/Anppep - B2.
A todos que participaram dessa edição o nosso muito obrigado!

Maria Mazzarello Cotta Ribeiro


Editora da revista Reverso - CPMG

10
11
Ainda prefiro a existência à extinção!
FREUD, [1926] 1990, p. 118

Em O valor da vida - uma entrevista rara de Freud.


Entrevista concedida por Sigmund Freud ao jornalista George Viereck em 1926.
In: SOUZA, P. C. (Org.). Sigmund Freud & e o gabinete do Dr. Lacan.
Ensaios de Peter Gay, Phiplip Rief e Richard Wollheim;
artigos de Jean Maugüé, Marilene Carone e Paulo César de Souza.
Tradução de Isa Maria Lando e Paulo César de Souza.
2. ed. São Paulo: Brasiliense,
1990. p. 117-128.
FOTO: M. MAZZARELLO COTTA RIBEIRO

Retrato de Freud
esculpido em placa
de mármore
na cidade de Split
(Croácia).

Tradução
da inscrição:
O PAI DA
PSICANÁLISE
ESTEVE NESTE
RECINTO
EM SETEMBRO
DE 1898.
AUTOR
Marta Gerez-Ambertín - Tradução: Bernardo Maranhão - Revisão técnica: CON
Carlos Antônio AndradeV I DA DO
Mello

Vozes do Supereu na clínica e


o mal-estar contemporâneo
(paradoxos e trevo do Supereu)

Marta Gerez-Ambertín
Tradução: Bernardo Maranhão
Revisão técnica: Carlos Antônio Andrade Mello

Resumo
O Supereu avassala o domínio do eu e das engenhosamente cifradas formações do inconsciente,
ao passo que também impele ao gozo… mais além do princípio do prazer. Por isso, ao atravessar o
conceito de Supereu, o “eco” do pai (mas também seu Nome) serve de orientação. Entre o eco (do
castigo) e o Nome se jogam os caminhos que bifurcam as apostas do destino ligados ao Supereu:
apostar no pior do pai ou para além do pai. Lugar superegoico ou ruptura do lugar, obstáculos e
ardis na cura e na vida para se enfrentar e negociar com a instância brutal.

Palavras-chave: Vozes do Supereu, Imperativos de gozo, Paradoxos do Nomes-do-Pai.

As vozes do Supereu aturdem e coman- E aqui estamos, novamente, com


dam insensatamente: murmúrios incom- as vozes e os imperativos do Supereu. É
preensíveis, mandados descabelados, preciso ter em conta seu lugar na teoria
vozes reprovadoras, imperativos que e na clínica psicanalítica, além de seus
instam ao fracasso, imperativos de gozo, efeitos na contemporaneidade. Há trinta
vozes planetarizadas e até estratosferiza- e cinco anos escrevo sobre o tema sem
das – Lacan dixit – ... em suma, o Supereu interrupção.
vocifera e comanda insensatamente a O resultado de minhas pesquisas sobre
partir do mais íntimo da subjetividade, a o Supereu em Freud evidencia que tal
partir do mais estrondoso e ensurdecedor instância não só avassala o suposto domí-
do mal-estar da cultura que, a partir dos nio do eu e das engenhosamente cifradas
mass media, vigia e vocifera: Faz aquilo formações do inconsciente, mas também
que conspira contra ti! comanda insensatamente e impele ao
Tais são seus efeitos palpáveis. Es- gozo, sempre mais além do princípio do
tamos inundados das vozes do Supereu, prazer.
vozes que instam a falar... ou calar!, quan- Muitos anos antes de sua nominação
do não são os insistentes WhatsApp que – em 1923 – a clínica indica a Freud que é
coagem leia isso ou aquilo já!, responda preciso atender e fazer referência, de algu-
já!. E resulta que ouvir é obedecer! com a ma maneira, a esse “corpo estranho e trau-
cumplicidade de cada um para assediar-se mático” que, enquistado no mais íntimo
por vozes fustigantes. da subjetividade, fustiga implacavelmente.
Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p. 15 – 22 • jun. 2020 15
Vozes do Supereu na clínica e o mal-estar contemporâneo (paradoxos e trevo do Supereu)

A figura da autopunição resultou apta, “delírio de observação” na paranoia; “de-


para Freud, a nominar preliminarmente o lírio de insignificância” na melancolia;
Supereu e dar conta dos atos de fracasso hiperculpabilidade na obsessão; assujei-
que emergem do mais íntimo e – ao mesmo tamento sacrificial na histeria; satisfação
tempo – mais alheio do sujeito. masoquista na perversão; necessidade de
Os atos de fracasso aos quais precipita castigo, assujeitamentos, crimes insensa-
o Supereu fazem obstáculo à nossa clínica tos, debilidade do Supereu nas mulheres;
e, ao mesmo tempo, o recurso contra eles humor negro, etc. – mas, fundamental-
compete ao desejo inconsciente. É nesse mente: revés do desejo.
desejo que nos sustentamos para desbara- Caracterizar o Supereu como revés
tar o avanço das vozes do Supereu. do desejo inconsciente permite centrar a
Desde o começo de sua obra (1886), questão da relação dos imperativos do Su-
Freud descobre o inconsciente, mas tam- pereu com a clínica psicanalítica. E resulta
bém as vozes fustigantes ligadas à auto- que essa clínica está do lado do desejo e,
punição e ao castigo físico autoinfligido por isso, põe ênfase na transferência, o que
(autolesões semideliberadas), as quais dá a verdadeira orientação à direção da
nomeia, a partir de 1923, como “impera- cura ou ao tratamento possível da psicose.
tivos do Supereu”. Não há clínica do Supereu. Só há
Ninguém está livre dos castigos do clínica do desejo.
destino, castigos das vozes do Supereu, Desejo e inconsciente, suportes
castigos que, na clínica psicanalítica e na fundamentais da clínica psicanalítica,
psicopatologia da vida cotidiana, têm as mas que dizer do Supereu, despojo das
caras mais diversas, mas convergem para formações do inconsciente e revés do
um dado comum, clinicamente observá- desejo? Como afirmar na clínica uma ins-
vel: o fracasso. tância que, precisamente, atenta contra
Supereu e fracasso configuram essa o inconsciente estruturado como uma
confluência que se aninha na subjetivi- linguagem e, por conseguinte, contra o
dade. Freud, Lacan e Klein responderam laço social e, portanto, obstrui a transfe-
a partir de suas teorias e de sua clínica a rência? Sem dúvida, como aquilo que, a
essa explosiva combinação que convive partir do real, faz obstáculo à clínica e nela
em nós, a essa parte de nossa vida que “não instila o mal-estar do qual não é possível
quer se curar” – Lacan dixit – e impele ao se livrar, porque o real é consubstancial à
mal-estar. subjetividade.
Apesar de eu me dedicar a pesquisá-lo As vozes dos imperativos do Supereu
há mais de trinta e cinco anos, o Supereu são mandados de gozo – empuxos de gozo
não deixa de me surpreender – o real nun- – nos quais o sujeito se abisma mais além
ca deixa de nos surpreender. Novos rostos, do desejo inconsciente. A clínica psicana-
novas arestas, novos ardis se apresentam lítica, clínica do desejo, encontra no desejo
como obstáculos à clínica psicanalítica e, sua bússola e os recursos para negociar
nesses obstáculos, o Supereu tem um lugar com a espinhosa instância que atenta
privilegiado. contra a subjetividade. O imperativo de
As fustigantes vozes dos imperativos gozo superegoico precipita à dessubjetiva-
do Supereu têm múltiplas consequências ção na medida em que o real espreita para
observáveis que vão de um extremo a ou- degradar o sujeito à condição de objeto.
tro da experiência clínica, sob diferentes Vozes e imperativos do Supereu que ar-
nomes – fracasso, neurose de destino, mam as emboscadas das culpas nas quais
reação terapêutica negativa, culpas infun- se enreda o neurótico, goza o perverso e
dadas, autopunição ou suicídio, pesadelos, padece o psicótico.
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Marta Gerez-Ambertín - Tradução: Bernardo Maranhão - Revisão técnica: Carlos Antônio Andrade Mello

Mas há algo que quero destacar, que Mas há nesse texto uma formulação
é a paradoxal formulação freudiana, pela paradoxal: duas consequências opostas
dupla herança que recebe: herdeiro do de uma mesma premissa são verdadeiras
Isso e do complexo de Édipo, das quais (lógica imprecisa ou lógica dos parado-
surge uma gama de paradoxos que quero xos).
ressaltar. Freud não retrocede diante desses
A partir desses paradoxos, afirmo que paradoxos, muito pelo contrário. E saberá
o Supereu é o saldo da hostilidade da lei obter de tudo isso importantes achados
dos Nomes-do-Pai que, como “íntimo teórico-clínicos.
estrangeiro”, comanda a partir de seus O Supereu é herdeiro do Isso, além
imperativos hostis (Freud) ou seus impe- de herdeiro do complexo de Édipo. Afir-
rativos de gozo (Lacan). mação paradoxal, cabeça de uma longa
O Supereu faz obstáculo à clínica e série que abarca de ponta a ponta a obra
nela instila o mal-estar: os três de Freud freudiana.
(Isso, Eu e Supereu) e os três de Lacan A banda de Moebius destaca seu
(RSI) o asseveram. Destaco esse ponto no paradoxo.
final, com o trevo do Supereu.
A partir daí encontro um caminho
para trabalhar sobre os paradoxos do Su-
pereu em suas diversas versões.
A contribuição sobre o Supereu que
fiz em meus três livros: As vozes do Supereu
(2001), Imperativos do Supereu e a minha
tese de doutorado El superyó en la clínica
freudo-lacaniana: nuevas contribuciones
(1999) destaca a lógica dos paradoxos por
sobre uma lógica binária. O Supereu não
só faz contraponto ao Nome-do-Pai, por Na lista que oferecemos a seguir (mui-
exemplo, mas supõe uma complexidade to mais limitada que a do livro As vozes do
maior do que a lógica dual que tenta supereu) pretendemos, mais do que resol-
desfazer os paradoxos. E resulta que, para ver essas afirmações paradoxais, pesquisar
recorrer à formulação do Supereu em até onde elas conduzem, e pediríamos que
Freud, é preciso adentrar o labirinto desses sejam lidas como numa banda de Moebius
paradoxos. Aqui tomarei da obra freudiana os paradoxos dessa instância.
um ponto de apoio central no texto O eu
e o isso (Freud, [1923] 1979). Algumas categorias
paradoxais do Supereu em Freud
2. Paradoxos do Supereu Versão aniquilante e cruel Versão mesurada
O Eu e o Isso representam um marco na Sonhos punitivos:
Encobrimento do sonho
construção teórica do Supereu, em que se pesadelos
destaca a formulação de enunciados dis- Murmúrios
Mandados
incompreensíveis
cordantes, em suma, de suas aporias. An-
Tabu desvinculado
tes de mais nada: o Eu e o Isso constituem do sistema totêmico
Tabu dentro do sistema totêmico
uma estação de relevo na indagação sobre Angústia Angústia da consciência moral
o Supereu, estação na qual o Supereu al- Culpa muda Consciência de culpa
cança sua nominação e uma clara posição ou de sangue e culpa inconsciente
estruturante no aparato psíquico demarca- Voz ofensiva Voz da consciência
do na segunda tópica: Eu, Isso, Supereu. “Moção maligna” Moção crítica

Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p. 15 – 22 • jun. 2020 17


Vozes do Supereu na clínica e o mal-estar contemporâneo (paradoxos e trevo do Supereu)

A partir desses longos paradoxos fo- ma de outros sonhos nos quais o murmúrio
ram suscitadas intermináveis polêmicas e rompe o texto, cortando-se a circulação
uma série que poderíamos chamar a série do desejo inconsciente e provoca o des-
dos “mas...”: “O Supereu é herdeiro do pertar abrupto. Aqui não há disfarce nem
Isso”, mas... e o Édipo?; “é inconsciente”, substituição, mas dissolução da palavra, e
mas... e sua rebeldia pulsional?; “é um esse furo da lei simbólica leva ao despertar
mandado incompreensível”, mas... pode traumático.
se converter em mandamento, etc. Isso Do mesmo modo, o sonho-pesadelo
se resolve se é possível lê-los sempre na de uma paciente que tem o seguinte so-
banda de Moebius. nho: Está “esquartejando” o bebê de sua
Por isso, a conceitualização mais irmã – sua máxima rival – que teve há
precisa e ao mesmo tempo complexa do pouco um bebê.
Supereu se revela, justamente, nos en- Atendendo as indicações de Freud
treditos de O eu e o isso (Freud, [1923] na Conferência XXIX: Revisão da teoria
1979). É aqui onde finalmente ganha re- dos sonhos sobre os sonhos autopunitivos,
levância o real do Supereu, que dissolve a que derivam para pesadelo por efeito
realidade (advogado do Isso) e se recupera do Supereu, e que não se incluem entre
a vigência do conceito de censura, à qual os “sonhos como realização de desejos”
se atribui a destruição dos fios lógicos da (Freud, [1932] 1979, p. 27), não pedimos
cadeia associativa. Rebelde, pois, contra o nesse momento associações nem fazemos
inconsciente, o Supereu transita desfazen- interpretação alguma por entendermos
do e carcomendo suas formações. que o pesadelo – que não é uma formação
Tomamos, para isso, o exemplo do do inconsciente, mas um imperativo do
sonho Serviços de amor, capítulo IV de A Supereu – expunha, em demasia e com
interpretação dos sonhos (Freud, [1900] um cobertura muito frágil, a “fantasia
1979) incluído na seção A desfiguração do corpo desmembrado”, “de seu próprio
onírica, localizado entre dois sonhos que corpo desmembrado”.
se fizeram famosos por suas consequên- Recebemos as associações em silêncio
cias clínicas: o do Tio Joseph e o da bela esperando que a metonímia permitisse
açougueira. uma substituição mais eficaz, como efeti-
O sonho dos serviços do amor se vamente se produziu em outro sonho que
caracteriza fundamentalmente pela trabalhamos em sua análise. Pretender
emergência de vozes como murmúrios trabalhar seu pesadelo teria conduzido à
que rompem sua trama muito mais do sua dessubjetivação ou a uma passagem
que os típicos recursos do mascaramento ao ato.
do sonho. Relata que despertou daquele horrível
A viúva culta e bela de cinquenta pesadelo com angústia intensa e tremendo
anos oferece – em sonhos – seus patrióti- de ódio à sua mãe. Pode, então, recordar
cos serviços sexuais a toda uma tropa de que em sua infância “odiava imensamente,
soldados, mas o texto é interrompido por ao menos uma vez por semana” essa mãe
incompreensíveis murmúrios justamente esfinge que devora, estrangula e esquar-
ali onde se revelaria mais fortemente o teja, essa mãe que confessava desejar os
desejo ligado, sem dúvida, à degradação da abortos, essa mãe como Outro primordial
vida erótica na interseção santa-puta. Os que havia querido seu próprio desmem-
murmúrios desfiguram a mensagem, ainda bramento e morte.
que sem destroçá-la totalmente. Portanto, Retomamos, então, o eixo central
a preservação do repouso e a cobertura da da apresentação sobre os paradoxos do
angústia estão assegurados. Mas é paradig- Supereu:
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Marta Gerez-Ambertín - Tradução: Bernardo Maranhão - Revisão técnica: Carlos Antônio Andrade Mello

• O Supereu é herdeiro do Isso em seu Enigmática origem da instância. Sua


liame como pai terrível-perverso-demoní- fonte está no Isso e assenta no auditivo.
aco (o que marca o “eco” do castigo) que Fonte no Isso (que tem sua gênese na
instiga a partir do âmago pulsional, mas linguagem), montagem mesma da pulsão.
também é herdeiro do complexo de Édipo Ratificam-se as premissas da Carta 52
no que cabe à substituição do pai diante (Freud, [06-12-1896] 1982) e do Proje-
da falha da lei. to para uma psicologia científica, (Freud,
O que se complementa com outra [1895] 1982), na medida em que “desva-
hipótese: limento e linguagem” colocam o sujeito à
• Resto da lei do Pai Morto que, mercê do outro próximo.
não-todo, legisla: instância admonitória A partir de O mal-estar na cultura
e insensata. Excedente pulsional (voz, (Freud, [1929] 1979) poderemos entender
olhar, espectro, demônio) suporta o peso que a formação reativa que tenta expulsar
do pai diabólico, que empurra a partir do o gozo pulsional não faz senão reforçá-lo.
imperativo que se faz ouvir gozando. Face Tudo isso se complementa com a afir-
obscura e desreguladora de toda lei. mação da Conferência XXXI:
Com a instauração do Isso, e na pró-
pria borda das superfícies fronteiriças ao [...] o Supereu da criança não se edifica,
mundo exterior, é onde se incrusta a lin- na verdade, segundo o modelo de seus
guagem, com a calota acústica de permeio progenitores, mas segundo o Supereu
(Hörkappe: percepção acústica). deles (Freud, [1932] 1979, p. 62).
No traço primário, nos restos de pala-
vras, na voz desconhecida que pressiona Assim, o Supereu se edifica segundo
na margem do fora e do dentro: ali o Su- o Supereu dos pais. Não há no Supereu
pereu, resíduo, viveiro de palavras, que modelo possível com o qual se identi-
se infiltra no aparato psíquico no recurso ficar.
da voz. Tal como Freud ([1932] 1979) o Alguém poderia localizar como era o
localiza na vesícula de O eu e o isso e na Supereu de seus pais se não pode localizar
Conferência XXXI: da Decomposição da o seu próprio?
personalidade psíquica. Como podemos afirmar, aproximan-
Donde a sugestiva citação de Georg do-nos do momento de concluir, o Supe-
Groddeck (1921) no Livro d’Isso sobre a reu é êxtimo¸ no dizer de Lacan (exterior-
passividade do eu: “somos vividos por po- -íntimo), gendarme interior que convive
deres desconhecidos, ingovernáveis”, que conosco e com o qual, para aplacá-lo,
remete às “vozes e multidão indetermina- somente a partir do desejo inconsciente é
da” que sitiam por dentro o sujeito – tal a possível negociar e transacionar.
afirmação de Introdução ao narcisismo – re- Por isso, digo na introdução de As
-percussão de uma voz que, como alheia, vozes do Supereu que, na entrada e na saí-
brota de dentro, e de um olhar que, como da do percurso pelo conceito de Supereu,
estrangeiro, fulmina também a partir de o “eco” do pai (mas também seu Nome)
dentro. servem de orientatio. Entre o eco (do cas-
Fenômenos clínicos do delírio de tigo) e o Nome se jogam os caminhos que
observação, da recriminação histérica, bifurcam as apostas do destino ligadas ao
da hiperculpabilidade na melancolia e Supereu: apostar no pior do pai ou mais
na obsessão. Restos de linguagem que além do pai. Lugar superegoico ou ruptura
não conduzem à significação da palavra do lugar, obstáculos e ardis na cura e na
e pressionam o sujeito de modo insupor- vida para se enfrentar e negociar com a
tável. instância brutal.
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Vozes do Supereu na clínica e o mal-estar contemporâneo (paradoxos e trevo do Supereu)

A premissa lacaniana “somente o do nó do trevo, recurso topológico que


amor permite ao gozo condescender ao de- enlaça:
sejo” (Lacan, [1959-1960] 1988) oferece • Registro imaginário: Figura obscena
pistas para inquirir os álibis do Supereu e e feroz encarnada em uma imagem de
incursionar, a partir daí, pelas alternativas terrível potência;
para enfrentar o arsenal superegoico. • Registro simbólico: Significante
De alguma maneira, posso esperar da falta do outro – S(A) – e correlato da
que: ali, onde o Supereu estava, o desejo castração;
possa advir, mas é preciso advertir... que • Registro real: Imperativo de gozo –
isso nem sempre é possível. Sem essa voz e olhar.
observação, aquela premissa poderia se
tornar um novo mandado superegoico.
E a clínica psicanalítica, que está longe
do mandado, aspira sempre à aposta no
desejo.

3. Dos paradoxos do Supereu


ao nó de trevo do Supereu
Reitero: o Supereu é o resultado dos para-
doxos da lei do pai, o saldo desregulador
dessa lei que incita a gozar.
Lacan considera o Supereu como sal-
do de um luto impossível pelo desacerto
da lei paterna.
Assim, seguindo Freud e Lacan, é
possível concluir: o Supereu da criança é Finalmente, para concluir:
o saldo cruel das faltas do pai. Por isso, é O trevo do Supereu dá conta de que
preciso apoiar as aporias do Supereu nos Édipo-tentação-pulsão se encontram na
paradoxos inerentes às do significante dos gula superegoica. Essas três versões do
Nomes-do-Pai. Supereu deverão ser levadas em conta
Isso permite dizer que toda referência sempre em nossa clínica... do desejo. j
ao Supereu precisa ter em conta tanto o
eco do Isso como o eco do complexo de
Édipo. O saldo? A gula superegoica, na
qual fazem interseção proibição-castração
e tentação-pulsão. Donde sua opressão
mortificante.
Essas paradoxais formulações fazem
obstáculo à sua abordagem? Não. Pelo
contrário, enriquecem-no. Uma versão
harmoniosa do Supereu não chegaria
a dissipar a inevitável opacidade dessa
instância. Por isso, para dialetizar os pa-
radoxos do Supereu em Lacan, enunciei
“quarenta premissas e uma incógnita”
(G erez -A mbertín , 2011, p. 286), as
quais possibilitam destacar três registros
do Supereu enlaçados na simplicidade
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Marta Gerez-Ambertín - Tradução: Bernardo Maranhão - Revisão técnica: Carlos Antônio Andrade Mello

VOICES OF THE SUPEREGO


IN THE CLINIC AND Referências
CONTEMPORARY MALAISE FREUD, S. Carta 52 (06-12-1896). O. C. I. Bs.
(PARADOXES AND CLOVER OF As.: Amorrortu, 1982 (274-280).
THE SUPEREGO)
FREUD, S. Conferencia XXIX: Revisión a la doctrina
de los sueños (1932). O. C. XXII. Bs. As.: Amor-
Abstract
rortu, 1979 (7-28), p. 27.
Not only does the Superego overwhelm the
domain of the self and ingeniously encrypted FREUD, S. Conferencia XXXI: La descomposición
formations of the unconscious, but it also de la personalidad psíquica (1932). O. C. XXII. Bs.
impels to jouissance... beyond the pleasure As.: Amorrortu, 1979 (53-74).
principle. Therefore, when going through the
FREUD, S. El malestar en la cultura (1929). O. C.
concept of Superego, the father’s “echo” (but XXI. Bs. As.: Amorrortu, 1979. p. 65-140.
also his name) serves as a guide. Between
the echo (of punishment) and the Name, FREUD, S. El yo y el ello (1923). O. C. XIX. Bs.
the paths that bifurcate the bets of destiny As.: Amorrortu, 1979.
linked to the Superego are played: betting on
FREUD, S. La interpretación de los sueños (1899).
the worst of the father or beyond the father. O.C. IV y V. Bs. As.: Amorrortu, 1979.
Superegoic place or rupture of the place,
obstacles and devices in healing and in life to FREUD, S. Proyecto de Psicología (1895). O.C. I.
face and negotiate with the brutal instance. Bs. As.: Amorrortu, 1982 (362-404).

GEREZ AMBERTÍN, M. Las Voces del Superyó en


Keywords: Voices of the Superego, la clínica psicoanalítica y en el malestar en la cultura.
Imperatives of jouissance, Paradoxes of the 3ra ed. Bs. As.: Letra Viva, 2011.
Names-of-the-Father.
GEREZ AMBERTÍN, M. Tesis Doctoral: El superyó
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Tucumán: Sec. de Posgrado y Sec. de Ciencia y
Técnica de la Univ. Nac. de Tucumán.1999.

LACAN, J. El Seminario, Libro VII, La ética del


psicoanálisis (1959-1960). Bs. As.: Paidós, 1988.
p. 370-387, Sesión del 06/07/1960.

Recebido em: 30/09/2019


Aprovado em: 03/04/2020

Sobre a autora

Marta Gerez-Ambertín
Doutora em Psicologia (Universidade Nacional de
Tucumán-Argentina).
Pós-doutora em Psicologia Clínica - Menção Psi-
canálise - PUC São Paulo (Brasil).
Diretora do Curso de Doutorado em Psicologia.
Faculdade de Psicologia da Universidade Nacional
de Tucumán-Argentina.

Endereço para correspondência

Marta Gerez-Ambertín
E-mail: martagerezambertin@gmail.com

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T EOR IDébora
A ECrivelaro
CLÍ Dickel
N ICA PSICA
& Daniela NA
Scheinkman LÍT ICAS
Chatelard

Considerações sobre o corpo


na constituição subjetiva
do bebê com deficiência
Débora Crivelaro Dickel
Daniela Scheinkman Chatelard

Resumo
Pretende-se situar a questão do corpo na clínica psicanalítica com bebês que apresentam patologias
orgânicas, para pensar as possibilidades de inserção do bebê com deficiência na rede simbólica
parental. Interroga-se, assim, como a imagem do corpo, constituída e sustentada na relação com
o Outro Primordial poderá ser propiciadora ou limitante para a constituição subjetiva da criança,
entendendo os efeitos da lesão fantasmática sobre o laço parental na clínica das deficiências.

Palavras-chave: Psicanálise, Clínica com bebês, Imagem do corpo, Subjetividade, Deficiência.

Ao falar de deficiência, falamos desde a Assim, ao falar de corpo já não mais


nomenclatura diagnóstica do campo da nos referimos aqui com exclusividade à
medicina, a qual se refere àquilo que pode- questão do corpo orgânico, que carrega
mos entender como patologias orgânicas no real as marcas da deficiência, uma vez
que incidem sobre o organismo do bebê e que, para a psicanálise, o corpo não se
que poderão ter consequências sobre o seu reduz ao corpo objetivado da medicina.
desenvolvimento. Trata-se do corpo sobre o qual incide o
Entretanto, para além disso, o que olhar do Outro, e, a partir de uma cadeia
interessa à psicanálise não são as questões significante, poderá ser falado, revestido
do comprometimento orgânico em si, e de palavras desde as possibilidades que
sim os efeitos que o real do corpo orgânico aquele que ocupa esse papel de alteri-
possa ter sobre o imaginário parental e, por dade terá para oferecer ao bebê, ou seja,
conseguinte, suas implicações na consti- desejá-lo.
tuição subjetiva do bebê e na constituição Nesse sentido, entendemos, como
da imagem do corpo. aponta Jacintho (2012), que o processo
Desse modo, coloca-se em questão de constituição subjetiva do bebê passa
as marcas que a imagem do corpo atra- necessariamente pelo corpo. Isso significa
vessado pela fantasmática da lesão terá dizer que,
sobre a constituição subjetiva do bebê.
A compreensão de corpo se dá pela te- [...] graças ao investimento libidinal da
oria psicanalítica, que entende o corpo mãe sobre o corpo do seu bebê, este últi-
na dimensão da sua imagem constituída mo deixa o registro funcional para aceder
na relação com o Outro Primordial e na ao estatuto de corpo erógeno (Jacintho,
possibilidade do investimento libidinal que 2012, p. 249).
será aí colocado.
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Considerações sobre o corpo na constituição subjetiva do bebê com deficiência

O corpo dividido que não dá conta, em sua função, de estar


pela marca da deficiência a serviço da constituição do sujeito.
Alfredo Jerusalinsky (2010) retoma a Ainda que todo bebê nasça em estado
sabedoria do Rei Salomão1 para lembrar de desamparo e que a relação do orga-
que o olhar materno opera, a partir de seu nismo com sua realidade está alterada
desejo, uma unarização sobre o corpo do devido ao inacabamento anatômico do
bebê. Se esse olhar que unifica faz função sistema piramidal – o que aponta para a
sobre o sujeito em constituição, interroga prematuração específica do nascimento
o autor do homem –, isso incide de maneira ain-
da mais presente quando se trata de um
[...] o que podem fazer uma mãe e um pai bebê com um organismo marcado pela
cujo filho já vem com o corpo ‘cortado’? deficiência.
[...] Como sustentar o deslizamento con- A formulação lacaniana traz a com-
tínuo do significante sobre uma criança preensão da função do estádio do espelho
que o desagrega? (Lacan, [1949] 1998) como a função de
estabelecer uma relação do organismo com
Tomando a noção freudiana de corpo, sua realidade. Entende-se que o inacaba-
é possível pensar que é justamente a partir mento anatômico do ser humano resulta
das marcas pulsionais sobre o corpo que em uma relação alterada do organismo
ele terá possibilidade de ser para além do com sua realidade. E é em decorrência
orgânico. disso que o estádio do espelho é compre-
Dunker (2011) sinaliza, a partir da endido como um
teoria lacaniana, que, ainda que seja
necessário um corpo dotado de materia- [...] drama cujo impulso interno precipi-
lidade para se tornar um sujeito, trata-se ta-se da insuficiência para a antecipação
também de um ser em potência, fazendo- (Lacan, [1949] 1998, p. 100).
-se necessária uma suposição desse sujeito
para que realize sua entrada no campo da O Outro terá, assim, papel funda-
linguagem, estando assim este “assujeito” mental para o bebê não apenas pela pos-
posto em relação com o lugar de vir-a-ser. sibilidade de identificação com a imago
Desse modo, o autor entende que: de seu semelhante, mas também por
oferecer o suporte necessário para que ele
A carne é corpo antes que haja corpo pro- dê conta desse corpo ainda insuficiente,
priamente dito, assim como o organismo é inacabado – papel que deverá oferecer
carne antes que haja carne propriamente um suporte ainda mais insistente para
dita [...]. É na carne que incide a função que o bebê que carrega as marcas de uma
de identificação simbólica expressa pelo patologia orgânica consiga se precipitar da
traço unário, que está lá antes que exista insuficiência para a antecipação, dadas as
sujeito (Dunker, 2011, p. 104). limitações orgânicas que se impõem sobre
seu desenvolvimento.
Podemos compreender, segundo La-
can ([1949] 1998), que há um desencon- Bebê imaginário versus bebê real
tro entre o corpo pulsional e um organismo A partir desse ponto, buscamos interrogar
acerca do que se fala ao dizer que a imagem
idealizada do bebê poderá ocupar um lugar
1. Referência à passagem bíblica em que o Rei Salomão no imaginário e nas fantasias parentais, as
julga a causa de duas mulheres que alegam, ambas, ser
mães do mesmo filho, propondo o rei, assim, dividir a quais se reeditam no momento do nasci-
criança em duas partes. mento de seu filho.
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Freud ([1914] 2010, p. 36) situa que entre a mãe e o filho, fundamental na
a afetuosa atitude dos pais para com “Sua constituição da imagem do corpo e da
Majestade, o bebê” deve ser compreendida subjetividade.
e reconhecida “[...] como revivescência
e reprodução de seu próprio narcisismo A autora entende que poderão se
abandonado”. produzir efeitos catastróficos para os pais
Isso significa dizer que o momento a partir de um problema de desenvolvi-
do nascimento da criança tem a ver com mento de seu bebê, e isso aponta para
o comparecimento do infantil dos pais e, a importância de compreender, desde o
mais especificamente, de seu narcisismo, início, que lugar a criança ocupa no fan-
o que, segundo o autor, leva os pais tasma parental.
Quando Freud nos coloca que o bebê
[...] a atribuir à criança todas as perfeições vem ao mundo predestinado a cumprir
[...] e a ocultar e esquecer todos os seus as realizações que não foram possíveis de
defeitos (Freud, [1914] 2010, p. 36). ser alcançadas por seus pais, ele nos situa
justamente em relação a esse lugar do qual
Mas, se entendermos, como propõe o bebê é desejado e esperado. Constrói-se,
Freud, que a criança está posta aí, no lugar a partir dessa idealização, um bebê imagi-
de concretizar os sonhos não realizados nário, que será sempre diferente do bebê
de seus pais, o que podemos esperar dessa real, independentemente das condições
relação especular e imaginária em torno orgânicas com as quais a criança advenha
de uma criança que apresenta as marcas ao mundo.
da deficiência denunciadas em seu corpo? No entanto, atenta-se para que o en-
Como será possível ao bebê com patologias contro entre o bebê imaginário e o bebê
orgânicas oferecer essa ilusão de comple- real enfrentará um grande abismo quando
tude e de realização a seus pais? da ocasião de uma deficiência, podendo,
Podemos compreender que, ainda que segundo Tavares (2013, p. 89),
a causa do sujeito não resida no orgânico,
este por vezes poderá produzir ruídos na [...] ser da ordem do irrepresentável,
relação do bebê com seus cuidadores, po- fazendo com que possam claudicar a
dendo, ainda, incidir sobre a construção filiação, a sexuação e a identificação, ou
do aparelho psíquico, tendo efeitos sobre seja, a constituição de um sujeito nesse
a constituição do sujeito (Coriat, 1997). pequeno ser de carne e ossos.
Assim, fica claro que a constituição
do sujeito em bebês com patologias orgâ- Possibilidades na constituição sub-
nicas enfrentará difíceis entraves, quiçá jetiva do bebê com deficiência
mais perturbadores das construções entre Sabemos que, para que uma criança
a mãe e o bebê do que as dificuldades com patologias orgânicas
encontradas por um bebê que apresenta
seu orgânico preservado. [...] tenha a possibilidade de advir como
Eda Tavares (2013, p. 92), ao falar da- sujeito do desejo, é necessário que se
quilo que se rompe na construção especu- cumpram as mesmas premissas, os mes-
lar entre a mãe e o bebê com deficiências mos passos necessários para que isso
múltiplas, situa que aconteça em uma criança organicamente
normal (Coriat, 1997, p. 153).
[...] quando o espelho quebra por fraturas
no corpo da criança, fica comprometida Não se trata de compreender a cons-
a possibilidade desse jogo especular tituição do sujeito de maneira diferente
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Considerações sobre o corpo na constituição subjetiva do bebê com deficiência

quando falamos de deficiência, mas de Laznik (2004) sustenta que é a ausên-


garantir que essa criança possa também cia da imagem real que torna impossível a
ocupar um lugar no desejo parental e que imagem do corpo. Desse modo, podemos
as limitações orgânicas não se interpo- pensar que, ainda que a imagem real se
nham às possibilidades de reformulações veja comprometida ou insuficiente, é
do ideal-do-eu e das fantasias parentais. preciso elaborar o luto da perda do bebê
Assim, a pergunta que surge aí tem imaginário e construir novas possibilidades
relação com as possibilidades que estarão de investimento libidinal para que seja
dadas desde as particularidades de cada possível a constituição de uma imagem
caso que se apresenta, entendendo que do corpo.
nem sempre o investimento lidibinal Nesse sentido, a deficiência que marca
materno será possível em uma relação o corpo real, corpo orgânico da medicina,
atravessada pelo real do organismo que ainda que incida sobre a fantasia mater-
comparece na deficiência. na e que produza marcas e ruídos nessa
Por vezes, a quebra do espelho, como relação, não será por si só impossibilita-
citado anteriormente (Tavares, 2013), dora da assunção da imagem do corpo do
se mostra irreparável. Nem sempre será bebê deficiente. É a partir da sustentação
possível reconstruir um bebê imaginário simbólica do bebê e da possibilidade em
que foi despedaçado no encontro com remetê-lo ao ideal-do-eu parental que será
um corpo insuficiente, defeituoso, não possível investir falicamente sua imagem
desejado. (Jerusalinsky, 2002, p. 104).
A partir dessas questões, apontando As possibilidades e as limitações das
para as possibilidades de intervenção do ressignificações e do deslizamento de sig-
psicanalista na clínica com bebês, Julieta nificantes no imaginário parental depen-
Jerusalinsky (2002) entende a necessidade derão, portanto, de como isso irá operar
de que o bebê não seja colocado no lugar para cada um na relação com seus filhos.
de exceção a partir do diagnóstico que Segundo Julieta Jerusalinsky (2002), o
lhe é atribuído para que possa ser inserido diagnóstico incide sempre de modo pecu-
nessa rede de representações parentais. liar sobre a fantasia materna, e para que
Aí reside a importância de que esse o bebê possa ser situado na série familiar
bebê, diagnosticado com uma patologia essa incidência deverá estar em jogo no
orgânica, possa ser falado pelos pais e que trabalho clínico.
a partir disso seja construída uma narrati- Nesse sentido, Tavares retoma as
va e uma historicidade acerca da vida do consequências desse encontro com o
bebê, podendo ressignificar aquilo que foi real do corpo do bebê, entendendo que
deixado de lado desde o estabelecimento as relações que aí se estabelecem serão
do diagnóstico. decisivas para a constituição do estádio
A autora traz a compreensão de que, do espelho, as quais
em transferência, se busca:
[...] dependem da antecipação que a
[...] dar lugar ao estabelecimento de uma mãe poderá realizar, tendo como suporte
borda nessa cratera que se produz na rede o jogo que se opera entre corpo da mãe
de representações parentais pela incidên- e corpo do filho como suportes para o
cia de uma patologia, para que não seja significante (Tavares, 2013, p. 92).
o bebê quem, amarrado ao diagnóstico,
termine caindo no abismo da falta de Considerações finais
significação simbólica para a sua vida A partir do momento em que um diag-
(Jerusalinsky, 2002, p. 98). nóstico de deficiência é atribuído ao bebê,
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Débora Crivelaro Dickel & Daniela Scheinkman Chatelard

podemos afirmar que algo se rompe para [...] permite-lhes conviver com seu filho
aqueles que ocupam as funções parentais deficiente num plano de ‘normalidade’,
dessa criança. Ainda que essa ruptura seja com efeitos normalizantes para a criança
inevitável, é a partir dela que se deverão (Jerusalinsky, 2010, p. 97).
produzir novas significações sobre o lugar
que esse bebê venha a ocupar no imagi- Por fim, entendemos que há muito a
nário parental a fim de que ele possa se ser feito na clínica psicanalítica com bebês
constituir como sujeito. com deficiência, ainda que esse seja um lu-
Pavone e Abrão (2014) apontam que, gar de difícil entrada para o psicanalista, ao
para que a lesão real no corpo do bebê entendermos que muitas vezes a demanda
não tome proporções de impossibilidade parental se orienta no sentido de
constitutiva do sujeito, será necessário
que os pais consigam reorganizar o ima- [...] que lhes seja arrumado o ‘boneco es-
ginário e o simbólico sobre a criança, tragado’ do seu narcisismo (Jerusalinsky,
visto que 2010, p. 92).

[...] o diagnóstico de quadro orgânico Trabalhará o psicanalista no sentido


pode desmontar o imaginário que susten- de oferecer o suporte para que os pais con-
tava as hipóteses sobre o filho esperado/ sigam produzir marcas significantes sobre o
imaginado (Pavone; Abrão, 2014, p. corpo do bebê, fazendo, assim, com que es-
375-376). sas inscrições significantes possibilitem um
estatuto de sujeito ao bebê, ocupando um
Assim, as autoras entendem que lugar na rede de significações parentais. j
será fundamental para os pais o reorde-
namento dos registros Real, Imaginário
e Simbólico, CONSIDERATIONS ON THE
BODY IN THE SUBJECTIVE
[...] ou seja, entre o real do organismo, CONSTITUTION OF THE
supondo imaginariamente um sujeito INFANT WITH DISABILITY
além das necessidades físicas, sustentados
pelos significantes na cadeia simbólica Abstract
familiar (Pavone; Abrão, 2014, p. 378). This article intends to situate the issue of the
body in psychoanalytic clinic with babies with
Entende-se que embora a marca dei- organic pathologies, to discuss the possibilities
xada pela deficiência deva ser reconhecida of insertion of the disabled baby in the
pelos pais no real do corpo de seu bebê, symbolic parental network. It’s examined,
será necessário ver para além desse real, therefore, how the image of the body,
supondo a criança para além de seu “cor- constituted and sustained in the relationship
po estragado”, realizando o que Alfredo with the Primordial Other, can be propitiative
Jerusalinsky (2010, p. 97) sugere como or limiting to the subjective constitution of
uma operação simbólica que só é possí- the child, understanding the effects of the
vel no campo da denegação e que “tem phantasmal injury on the parental bond in
como efeito dizer a verdade amortizando the clinic of the disabilities.
o afeto”.
Assim, ao passo que os pais se colocam Keywords: Psychoanalysis, Clinic with
situados no lugar de saber sobre a deficiên- babies, Body image, Subjectivity, Disability.
cia de seu filho, poder denegá-la em suas
consequências
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Considerações sobre o corpo na constituição subjetiva do bebê com deficiência

Referências Sobre as autoras

Débora Crivelaro Dickel


CORIAT, E. A psicanálise e a criança com proble- Psicóloga, graduada pela Universidade Federal
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bebês. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1997. Especialista em Atendimento Clínico Psicanalítico
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DUNKER, C. I. L. Corporeidade em psicanálise: Especialista em Clínica Interdisciplinar
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ASSADI, T. C.; DUNKER, C. I. L. (Orgs.). A pele pelo Centro Lydia Coriat (Porto Alegre/RS).
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Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia
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Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Mestre em psicanálise pela Université de Paris 8.
Letras, 2010. Doutora em Filosofia pela Université de Paris 8.
Professora Associada ao Departamento
JACINTHO, A. L. Clínica da prevenção: o olhar de Psicologia Clínica e ao Programa
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17, n. 2, p. 242-261, jul./dez. 2012. Disponível em: e Cultura da Universidade de Brasília.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_ar Membro da Escola de Psicanálise
ttext&pid=S1415-71282012000200005. Acesso dos Fóruns do Campo Lacaniano.
em: 05 dez. 2019. Membro da Associação Nacional
dos Estudos sobre o Bebê.
JERUSALINSKY, J. Enquanto o futuro não vem: Autora do livro O conceito de objeto na psicanálise:
a psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês. do fenômeno à escrita (Ed. UnB, 2005).
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Endereço para correspondência
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Recebido em: 10/12/2019


Aprovado em: 03/04/2020

28 Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p. 23 – 28 • jun. 2020


Jô Gondar

Ouvir com os olhos:


gestos, expressões, ritmos1
Jô Gondar

Resumo
“To hear with eyes” é uma expressão de Shakespeare usada por Masud Khan como título de um
artigo seu escrito em 1971. Khan narra o caso clínico de uma jovem modelo que lhe dizia certas
coisas, mas em cujo corpo, deitado no divã, ele via outras coisas. O artigo de Khan tem quase
50 anos, e pode-se dizer que hoje o manejo clínico das questões corporais e das dissociações
subjetivas tornou-se mais premente. Se Khan privilegiou o olhar do analista sobre o corpo do
paciente, podemos hoje alargar este horizonte, matizando a relação entre as expressões corporais,
os gestos e os ritmos no encontro clínico.

Palavras-chave: Clínica contemporânea, Pacientes dissociados, Gestos e ritmos.

O título deste artigo tem uma dupla tante sem que precise haver fala. Isso se
inspiração. “Ouvir com os olhos” é uma torna mais relevante, para Khan, no caso
expressão de Shakespeare, no Soneto 23: de pacientes dissociados. Eles encenam
com seu corpo determinados aspectos de
Mais do que a língua que mais se expressa sua subjetividade e de sua vida que não
Ouvir com os olhos faz parte das sutilezas mantêm nenhuma relação com aquilo
do amor. que dizem.
O que quero trazer aqui não se reduz
Essa expressão também foi usada como tí- ao trabalho de Masud Khan. Ele privi-
tulo de um artigo de Masud Khan (1971), legiou o olhar do analista sobre o corpo
cujo subtítulo é Notas clínicas sobre o corpo do paciente. Isso é importante, mas eu
como sujeito e objeto. É um texto conhecido, gostaria de ir além, matizando a relação
em que ele narra o caso clínico de uma entre as expressões corporais, os gestos e os
jovem modelo que lhe dizia certas coisas, ritmos, e estendendo o olhar ao encontro
mas em cujo corpo, deitado no divã, ele clínico, sem reduzi-lo a uma capacidade
via outras coisas. A partir dessa defasagem do analista.
entre o que era ouvido como discurso e o A questão é que o artigo de Khan tem
que era ouvido como expressão do corpo, quase 50 anos, e, de lá para cá, pode-se
Khan apresenta um estudo interessante so- dizer que o manejo clínico das questões
bre o conceito de dissociação desde Freud. corporais e das dissociações subjetivas
Sua tese, já naquela época, era a tornou-se mais premente. Temos cada vez
de que a experiência clínica emprega e mais pacientes que não usam o divã, que
se comunica por outros meios além da pedem o nosso olhar, e não apenas para
linguagem; nela se daria uma troca impor- controlar o ambiente.

1. Trabalho apresentado no XXI International Forum of Psychoanalysis, em Lisboa, em 07 fev. 2020.

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Ouvir com os olhos: gestos, expressões, ritmos

Em primeiro lugar, é importante Expressão e gesto


marcar uma diferença entre olhar e ver. Quando se fala em expressão, a entrada
Ver é um ato que se emparelha com os em cena do corpo é mais radical. O corpo
demais sentidos: audição, olfato, tato, que os olhos ouvem não é simplesmente
paladar. O que chamamos de “sentidos” um corpo simbólico ou um resto de ope-
são órgãos que recebem estímulos do rações simbólicas. É um corpo que tem
ambiente. Os olhos, porém, enquanto potência e se expressa de múltiplas ma-
órgãos dos sentidos, apresentam um neiras, como nos ensinou Ferenczi: para
funcionamento mais complexo do que os ele a clínica não se reduziria à linguagem
demais. O ouvido e o nariz, por exemplo, verbal, mas envolveria muitas formas de
recebem estímulos, mas os olhos não só expressão, tais como gestos, tons de voz,
recebem como refletem e emitem estí- odores e atmosferas de modo geral.
mulos (Gil, 1996). O corpo que os olhos ouvem é um
Explicando melhor: quando alguém corpo em sua capacidade de expressão e
me olha, eu vejo nesse olhar o meu refle- de impressão (Câmara, Herzog, Canavêz,
xo. Isso faz com que o olhar do outro não 2018), ou, em outros termos, em suas pos-
seja apenas uma coisa, e sim algo além do sibilidades de afetar e de ser afetado pelo
enquadre da minha visão objetiva. Olhar outro e pelo mundo. A linguagem verbal
um olhar implica uma profundidade, uma é apenas uma dessas possibilidades – mas
terceira dimensão, porque posso me ver não a única. E nem a central.
nele ao mesmo tempo em que o vejo. O que significa dizer que a linguagem
Quando meu olhar encontra o olhar do é apenas parte de uma grande capacidade
outro, ele me permite ver também o que expressiva e impressiva? Significa não
não vejo de mim. Permite ver o que para separar corpo e psiquismo, separação
mim é visível e o que para mim é invisí- que ocorre quando se acredita que a lin-
vel, ao mesmo tempo. Em consequência, guagem, proveniente da psiquê, é capaz
nunca vejo no outro o reflexo exato do de produzir efeitos no corpo. Quando
meu olhar. Quando alguém me olha, eu pensamos que o psíquico causa algo no
vejo nesse olhar o meu reflexo e – mais corpo, já estamos separando os dois. Boa
– o modo como esse outro recebe o meu parte da psicanálise faz isso, do mesmo
olhar (Gil, 1996). Esse outro olhar emite modo que a psiquiatria organicista faz
estímulos, fazendo intervir um modo sub- o contrário: pensa que substâncias pro-
jetivo na imagem vista. duzidas pelo meu corpo – a serotonina,
É nesse sentido que Masud Khan por exemplo – causam o que acontece na
afirma, no artigo mencionado inicialmente minha mente.
(1971), que na situação clínica o olhar Porém se não os separo, penso que
pode ser afetivo ou empático, hostil e re- tanto o corpo quanto o psiquismo expres-
jeitador, mas não pode ser neutro, como a sam e sofrem impressões nos encontros
escuta é capaz de ser. A proposta de ouvir que realizam. Um não causa algo no outro,
– também – com os olhos amplia tanto os embora possa sofrer reverberações a par-
sentidos envolvidos na atenção flutuante tir do outro. É o que Freud chamava de
do analista quanto as possibilidades de paralelismo psicofísico, ideia que provém
expressão envolvidas na associação livre de Leibniz. Ferenczi radicaliza essa ideia
do paciente. A psicanálise não é apenas quando propõe que existem forças psíqui-
uma “cura pela palavra”, mas uma cura cas no corpo – por isso o corpo é capaz de
pelo encontro expressivo e afetivo entre pensar (Ferenczi, 10 jan. 1932) – assim
paciente e analista. Encontro expressivo como existe corporeidade ou sensoriali-
que inclui a fala, mas não só. dade nas palavras.
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Jô Gondar

Ele trata disso num pequeno texto, cortar. Os pacientes não neuróticos são
intitulado Palavras obscenas ([1911] 1991). muito sensíveis a isso; nas intervenções
Um palavrão é algo que nos toca visceral- do analista, o que eles percebem é o
mente, para além de seu significado verbal. gesto, mais do que o conteúdo do que é
Porém, aquilo que se dá com os palavrões dito. Pode-se entender então que, para
teria ocorrido, originalmente, com todas as esses indivíduos, uma interpretação ou
palavras. Todas elas, de início, possuiriam corte súbito de sessão sejam percebidos
um caráter tangível e sensorial, estando literalmente como corte – não como corte
carregadas de “riqueza afetiva e potência simbólico, capaz de convocar a elaboração,
motora” (Ferenczi, [1911] 1991, p. 119). mas como corte real, no qual aquele que
Barthes (1984, p. 64) diz a mesma foi cortado sofre na carne o gesto do afas-
coisa sobre a linguagem dos apaixonados: tamento e da exclusão.
no estado amoroso, ele escreve, O silêncio também pode ser pensado
na esfera do gesto. Evidentemente, exis-
[...] a linguagem é uma pele: esfrego tem vários tipos de silêncio e vários gestos
minha linguagem no outro. É como se possíveis implicados no silêncio. Existem
eu tivesse palavras ao invés de dedos, ou silêncios que desanuviam a atmosfera; em
dedos na ponta das palavras. contrapartida, há outros que nos dão a
impressão de que o ar poderia ser cortado
Isso pode acontecer porque todas as a faca. Creio, porém, que determinado
formas de expressão possuem uma origem tipo de silêncio tem uma importância
comum (C âmara , H erzog , C anavêz , especial no encontro analítico. Refiro-
2018), isto é, tanto as palavras quanto os -me ao silêncio originário que Winnicott
gestos corporais proviriam de uma mesma ([1958] 1998) ligou à solidão essencial
capacidade impressiva e expressiva. Por e, no plano dialógico, à capacidade de
esse motivo, ouvir seria uma experiência estar só na presença do outro. Sem essa
sensória, assim como, ao falar, se poderia possibilidade de silêncio, todo encontro se
afetar o outro, do mesmo modo que os torna um confronto. Só há liberdade em
dedos tocam a pele. qualquer encontro – e, particularmente,
Que consequências essa ideia tem no encontro analítico – quando se pode
para a clínica? Isso implica pensar que o também não dizer, não comunicar, não
encontro clínico é feito não só com pa- endereçar, não confrontar e nem buscar.
lavras, mas com tudo aquilo que permite Esse é o momento em que, sustentado pelo
que alguém se expresse diante de um outro analista, alguém pode descansar de ser si
com objetivos muito diversos, como fazer- mesmo enquanto forma dada, abrindo
-se compreender ou pedir compreensão, entrada para o informe e o inédito.
transmitir, ordenar, tocar ou, simplesmen-
te, estar com o outro. Todas essas possibi- Sobre o ritmo
lidades expressivas podem ser entendidas Existe uma noção de tempo muito curiosa
como gestos, o que permite pensar que os e pouco explorada em Freud. É a noção de
gestos, em seu movimento expressivo, são período. Freud ([1895] 1977) apresenta
mais amplos e até anteriores às palavras. essa noção no Projeto para uma psicologia
Afirmar que os gestos são anteriores científica, quando trata da passagem da
às palavras não significa dizer que eles são quantidade à qualidade. A questão é que
pré-linguísticos. Significa dizer que as pa- o mundo não nos dá qualidades, só quan-
lavras, segundo a forma como são usadas, tidades. O mundo não nos dá vermelho;
são antes de tudo gestos: elas servem para o que ele nos dá são ondas luminosas, ou
afastar, aproximar, ferir, ordenar, afagar, seja, quantidades de excitação. Como
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Ouvir com os olhos: gestos, expressões, ritmos

transformamos isso em vermelho? Freud Jacques Derrida (1967) afirma que


diz que com os nossos órgãos dos sentidos a noção de período corresponde à intro-
não podemos perceber quantidades de dução, por parte de Freud, da noção de
excitação, porém podemos ser afetados diferença pura. Mas é possível dar à noção
pelo período da excitação, ou seja, pelo de diferença pura um nome psicanalítico:
aumento ou pela diminuição da excitação singularidade. Podemos, então, dizer que a
num determinado período de tempo. Au- singularidade mais básica, a partir da qual
mento ou diminuição da excitação num todo um estilo de ser se erige, é o ritmo – o
determinado período de tempo; vamos nosso e o do outro, o nosso construído na
dar um nome a isso: ritmo. É o nome que percepção do outro. Uma singularidade é
lhe dá Freud. antes de tudo um ritmo. O que isso quer
Em O problema econômico do masoquis- dizer, em termos mais encarnados?
mo, ele retoma a questão, afirmando que As pesquisas mais recentes no campo
o período se refere do autismo têm levado muitos psicana-
listas a admitir uma sensibilidade prévia
[...] ao ritmo, à sequência temporal do bebê para captar a variação de ritmos
das mudanças, elevações e quedas nas na voz e no corpo da mãe. Alguns desses
quantidades de estímulo (Freud, [1924] psicanalistas, como Geneviève Haag e
1977, p. 200). Suzanne Maiello, defendem a ideia de
que essa sensibilidade é muito precoce,
Ou seja, o que percebemos como surgindo já durante a vida intrauterina. O
vermelho é um certo ritmo da excitação; autismo teria origem num problema ligado
o que percebemos como amarelo é outro à experiência rítmica.
ritmo da excitação. É o ritmo que faz a Segundo Maiello (1998), essa experi-
quantidade ser transformada em quali- ência rítmica começaria a acontecer por
dade. Ritmo: um estilo de variação das volta do quarto mês da vida intrauterina.
intensidades. Freud está nos mostrando Nesse período, o feto já começaria a per-
como constituímos os nossos objetos, com ceber um proto-objeto sonoro, a partir dos
as qualidades que lhes atribuímos: os ob- sons e ritmos do corpo e da voz da mãe.
jetos são ritmos e diferenças entre ritmos. Geneviève Haag (2005, p. 120) es-
Podemos, porém, ser mais rigorosos creve:
neste ponto: os ritmos não estão encrava-
dos nas próprias coisas; eles se constituem Parece que um certo nascimento do
na relação que estabelecemos com elas. sentimento de existência se produziria
O ritmo do vermelho, ou do amarelo, ou a partir do quarto mês da vida pré-natal
do acolhedor, ou do inóspito, dependem na percepção diferencial entre os ritmos
do meu ato de olhar ou de sentir. Nesse regulares dos ruídos do coração e o sur-
caso, a operação de constituição de objetos gimento do aleatório da voz materna. As
seria, ao mesmo tempo, uma operação de crianças autistas têm nos mostrado que
constituição de nós mesmos, enquanto estabeleceram uma analogia entre a voz
sujeitos. Sujeito e objeto são produtos de humana e os ruídos da passagem de água
uma relação, e não termos previamente nos canos, analogia que provavelmente
dados a partir dos quais uma relação iria pode remeter aos borborigmos intestinais,
se constituir. Em outras palavras: o mundo outro ruído aleatório percebido ainda no
e nós próprios seríamos criados conjun- útero.
tamente. Ao criarmos um mundo como
ritmo, criamos também o nosso próprio O que Haag nos diz é que o senti-
ritmo. mento de existência, isto é, a sensação de
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Jô Gondar

existir – algo que se dá muito antes de um se sintonizar com o outro, criando uma
eu – decorre da percepção da variação de coreografia corporal, criando a respi-
ritmos no corpo da mãe, o que implica di- ração de um movimento. O bebê tem
zer que há um prenúncio de si mesmo que uma sensibilidade precoce para captar a
se cria enquanto ritmo ele próprio. Falan- variação dos ritmos na voz, nos gestos e
do mais claramente: o feto experimenta os nos movimentos maternos, e se mostra
ritmos da mãe e nessa experiência cria seu apto para responder a esses movimen-
próprio ritmo, primórdio de um si mesmo. tos, criando com a mãe uma verdadeira
No início não era o verbo nem o ato. coreografia.
No início era o ritmo. Nós somos, e cada Mas para que esse ballet do encontro
um de nós ao seu modo, um ritmo: um aconteça, diz Roussillon (2004), é preciso
tempo anterior à própria temporalidade. que cada um, e mais particularmente o
Uma espécie de tempo potencial, a partir bebê, seja capaz de antecipar os movimen-
do qual uma temporalidade subjetiva se tos ou as variações do outro, como fazem
poderia fazer. Esse ritmo diria respeito às dois parceiros de dança ou dois músicos
sensações primordiais, aos sentimentos que tocam juntos.
vitais. Antes mesmo de existir um sujeito Como o bebê é capaz de um proce-
ou um ser no mundo, há um sentir, e nesse dimento tão complexo? É verdade que,
sentir tocamos algo que ainda não é um se a mãe for muito brusca, caótica ou
objeto, através de uma sensorialidade errática, ela vai extrapolar a capacidade
muito primitiva. É nesse nível, porém, de antecipação do bebê. Porém, se não
que o primeiro surgimento de uma forma for, o bebê é capaz de se apropriar dos
é possível, e a primeira forma – que não esboços de ritmo que se desprendem do
é ainda uma forma, uma Gestalt, sendo movimento da mãe.
mais uma Gestaltung, um se fazendo da Roussillon escreve:
forma –, essa Gestaltung é o ritmo. Entre
o caos e o mundo, entre o caos e o sujeito, É o ritmo, primeiro nível de organização
entre o informe e a forma, está o ritmo. de uma forma de temporalidade, que tor-
Vamos agora sair do campo do autismo e na possível uma certa previsibilidade da
passar para outros autores que se dedicam mãe e de seus movimentos (Roussillon,
a pensar as trocas emocionais entre um 2004, p. 430).
recém-nascido e sua mãe.
Como é que um bebê percebe sua E explica:
mãe? René Roussillon (2004) afirma que o
bebê percebe, desde o início uma forma de O ritmo define uma sequência, permite
mãe, assim como é capaz de diferenciar ob- antecipar um seguimento, observar uma
jetos animados e inanimados, baseado no regularidade e prever, de algum modo, a
tipo de ritmo do movimento dos objetos. sequência seguinte (Roussillon, 2004,
A mãe é primeiro um ritmo, e Roussillon p. 430).
escreve que o bebê é capaz de reconhecê-
-la muito cedo, desde as primeiras horas Além disso, o bebê teria uma capaci-
de vida. O psicanalista francês vê as trocas dade para transpor os ritmos percebidos
emocionais como emanações rítmicas, um num plano para outro – aquilo que Da-
processo de sintonia afetiva. Fala de um niel Stern (2003) chamou de apreensão
verdadeiro ballet de ajustamento de gestos, intermodal: o bebê pode transpor ritmos
mímicas e posturas entre a mãe e o bebê. escutados para ritmos vistos, pode trans-
Trata-se não de uma simetria, e sim por, através do ritmo, melodias de gestos
de uma sintonia rítmica: cada um tenta para melodias visuais.
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Ouvir com os olhos: gestos, expressões, ritmos

Roussillon (2004, p. 439) acrescenta: até mesmo o autoritarismo começa com a


imposição de um ritmo – a marcha militar
Para ser mais preciso, as pesquisas mais cadenciada. j
recentes acabam de colocar que, mais
ainda que nos ritmos, é nas variações “TO HEAR WITH EYES”:
de ritmo que os bebês são mais experts. GESTURES,
Pode-se comparar e colocar em paralelo EXPRESSIONS, RHYTHMS
as improvisações rítmicas dos duetistas de
jazz e as que se pode observar na coreo- Abstract
grafia do encontro primitivo entre mãe e “To hear with eyes” is a Shakespearean
bebê. Para poder improvisar, é necessário expression used by Masud Khan as the title of
ter aprendido a regra rítmica implícita, a an article written in 1971. Khan narrates the
improvisação supõe uma arte na qual o clinical case of a young model who told him
respeito da regra do jogo e a liberdade se certain things, but in whose body, lying on the
combinam e se harmonizam. couch, he I saw other things. Khan’s article is
almost 50 years old and yet it can be said that
Não é preciso dizer que nessa improvi- today the clinical management of body issues
sação o bebê é não apenas um receptor de and subjective dissociations has become more
ritmos, mas também um emissor: a partir pressing. If Khan privileged the analyst’s gaze
dessa dança ou desse duo ele vai criando on the patient’s body, today we can broaden
um ritmo próprio. this horizon, tinting the relationship between
O que é possível pensar, a partir das body expressions, gestures and rhythms in the
pesquisas de Geneviève Haag, Suzanne clinical encounter.
Maiello e Roussillon? Podemos dizer que
o ritmo se encontra na base da relação Keywords: Contemporary clinic, Dissociated
primária entre mãe e bebê, na base da patients, Gestures and rhythms.
constituição do primeiro objeto e na base
da constituição subjetiva. Isso implica
conceber o sofrimento psíquico como
uma perturbação no ritmo, uma disritmia.
Percebe-se igualmente a importância,
durante uma sessão de análise, do ritmo
de cada sujeito.
Quanto mais traumático for o pro-
cesso subjetivo, mais importante é a per-
cepção e o respeito ao ritmo do paciente,
tanto quanto a possibilidade de podermos
compor com esse ritmo, colocando-nos
no diapasão desse sujeito, para que esse
ritmo, que é o dele, possa ser sustentado.
Isso é importante porque muitas vezes um
sujeito não conhece, não respeita ou não
sustenta, ele próprio, seu próprio ritmo –
principalmente diante de um outro.
Para finalizar, gostaria de fazer uma
observação de cunho político que pode
ser importante neste momento para nós,
especialmente no Brasil: cabe lembrar que
34 Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p. 29 – 36 • jun. 2020
Jô Gondar

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Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p. 29 – 36 • jun. 2020 35


Maria Angela Assis Dayrell

A prática psicanalítica1
Maria Angela Assis Dayrell

Resumo
A partir de um caso clínico, é trabalhada a questão da posição do psicanalista na escuta analítica
e na direção do tratamento.

Palavras-chave: Ser psicanalista, Desejo de analista, Sintomas, Ética do bem dizer.

Atendendo a um amável convite, esta A terapia analítica não deseja acrescentar


intervenção foi proferida após a escuta de ou introduzir algo novo, mas sim, retirar,
um caso clínico apresentado na Reunião extrair, por isso cuida da gênese dos sin-
Clínica de 07 ago 2019, no Círculo Psica- tomas doentios e do contexto psíquico
nalítico de Minas Gerais. da ideia patogênica, cuja remoção é seu
O caso clínico suscita um momento de objetivo.
elaboração de saber. E essa elaboração
pode ser constatada, não só na supervisão, Segundo Benoît Le Bouteiller (2019),
como também nesse dispositivo do CPMG, vários aspectos, entre outros, são signi-
de apresentação de caso à comunidade ficativos para que alguém possa se dizer
analítica, analista:
[...] em que duas dimensões diver- • Ser analista com seu estilo e se
sas – analítica e teórica – encontram inscrever na comunidade analítica im-
um lugar para serem articuladas (Jorge, plica compartilhar a dívida. Sabemos
2017, p. 142). que a vida nos oferece oportunidades,
e cada um de nós, diante do que rece-
A forma como o colega encerrou sua bemos da mãe, do pai, de um professor
apresentação fazendo alusão à psicanálise ou de alguém que um dia cuidou da
como uma obra de escultura remete ao que gente, reconhecemos essa dívida e, en-
Marco Antonio Coutinho Jorge (2017, p. tão, vamos oferecer algo à comunidade
134) comenta: pelo que recebemos, compartilhar com
outros, mesmo sabendo que a dívida é
[...] vem à lembrança, imediatamente, impagável!
a comparação que Freud fez entre a psi- • Postular a travessia da fantasia: a
canálise e a escultura, definida por Da janela do sujeito, através da qual se vê
Vinci como operando per via de levare o mundo! Quinet (2009, p. 164), em A
e se opondo à sugestão que opera como estranheza da psicanálise, diz:
pintura, per via de porre.
[...] no final de uma análise, o sujeito pode
No texto Psicoterapia, Freud ([1905] deslocar o quadro da fantasia que recobria
2016, p. 337) enfatiza: sua janela para poder se confrontar com o

1. Comentário teórico-clínico realizado no debate do caso clínico apresentado na reunião clínica do Círculo
Psicanalítico de Minas Gerias, em 07 ago. 2019.

Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p. 39 – 44 • jun. 2020 39


A prática psicanalítica

furo do Outro que o torna inconsistente fazer analítico quanto da passagem de


[S (A)] e deixar cair o objeto a. um analisante à posição de analista, uma
passagem ao autorizar-se analista.
• Estabelecer a função desse ‘ser ana- Então, precisamos destacar duas coi-
lista’, que implica se assenhorar, tomar pos- sas, ensina Bouteiller (2019):
se, ocupar o nó borromeano, considerando • Qual é o motor do desejo de ana-
os três registros (RSI) independentes mas lista?
articulados entre si e, no ponto central, A resposta implica os quatro aspectos
o objeto a. já indicados.
• Constatar que o sujeito-analista • Qual é a bússola do analista? Como
deve mudar radicalmente sua modali- vai conseguir progredir em sua prática?
dade de gozo, isto é, não pode gozar do São questões éticas e técnicas, por
lado fálico e nem do lado do gozo do exemplo, manejo da transferência, aten-
sentido. Tanto no gozo fálico quanto no ção à modalidade de gozo do analisante e o
gozo do sentido não se pode ser analista. que ele está fazendo com o próprio corpo,
Impossível! É o gozo Outro: é outro gozo, questão diagnóstica, interpretação e ato
diferente, indizível, que tem a ver com a analítico, entre outras. Motor e bússola
impossibilidade (está lá, entre o R e o I, têm ligação e concorrem para se ver como
no nó borromeano). Portanto, repetin- analista.
do: não é gozar do sentido. E nem gozar A questão diagnóstica sempre aparece
falicamente! ao se dirigir um tratamento. Nesse aspecto,
Nessa dimensão, o que é ser analista? o analista precisa pensar de uma forma
Não faz sentido dizer “sou analista”. singular, o oposto da clínica médica. Para
Tenho, sim, que sustentar um espaço que um médico, sintoma é um signo (sinal)
possa ocorrer o ‘ser analista’. Ser analista, de uma doença. Para um psicanalista, o
diz respeito a uma posição, se tornando sintoma é expressão do inconsciente, do
psicanalista num processo contínuo, num desejo recalcado. Portanto, “o sintoma é
movimento, que é o movimento do desejo: sinal do sujeito”, bem acentua Quinet, em
desejo de analista. O sinal (2011).
Referindo-se ao texto de Freud (1937)
A questão da análise leiga, diz Jorge (2017, O sintoma, segundo Quinet (2011),
p. 115):
[...] é uma forma de dizer – por meio da
[...] o que importa para a psicanálise não dor, da tendinite, da insônia, da impotên-
é a formação anterior do psicanalista, cia, do pânico, da depressão – que ainda
mas sim sua formação propriamente não encontrou a sua fala apropriada. Por
psicanalítica. O analista leigo não é para trás de todo sintoma há um sujeito em
Freud o analista não médico, mas sim o sofrimento, uma história, um temor, a
analista que não possui uma formação dor maior.
psicanalítica sólida.
[...] O sintoma é um compromisso entre
Cumpre destacar que é inerente à for- um desejo que não quer calar e a censura
mação do analista seu compromisso com que o cala. Em suma, reflete a luta entre
a própria análise, e a responsabilidade da aquilo que não cessa de se escrever e o
análise é levá-la ao seu término, que im- apagador que não apaga dor alguma.
plica o advento do desejo do analista como
contingência, isto é, possível de acontecer. Portanto, no tratamento psicanalítico,
Nesse final, decide-se a eficácia tanto do a partir de uma hipótese diagnóstica, po-
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Maria Angela Assis Dayrell

demos perceber não apenas a função que mento, mantinha sessões esporádicas, de
o analista tem para esse sujeito na relação ‘manutenção’ com ele).
transferencial, mas também a função do Que o analisante possa suportar sua
sintoma para o analisante. diferença e a não adaptação, isto é, implica
E mais, continua Quinet (2011): sua inclusão como sujeito que requer uma
invenção, uma forma singular de estar no
[...] o significado de um sintoma, para mundo!
a psicanálise, não é a patologia, e sim o Falar tem um efeito não só no jogo das
pathos, a paixão de um desejo que não significações, como também e principal-
ousa dizer seu nome. Ame seu sintoma mente, tem efeito no simples fato de dizer!
como a si mesmo! Ele aponta sua verdade. Christian Dunker (2017, p. 13), em
Mas se ele faz sofrer é porque realiza um Reinvenção da intimidade acentua:
desejo conflituoso de que você nem quer
saber. Não adianta, ele insiste! Cada experiência de sofrimento é uma
história que se transforma à medida que
Se o sujeito calar seu desejo, será ao é contada.
custo da angústia, e só faz surgir inibição.
“É por isso que se deve acolher o sintoma O bem dizer é a virtude: bem dizer o
– seu e do outro – e não fazê-lo calar”, sintoma e o mal-estar na civilização. Dizer
conclui Quinet (2011). é um ato! E o psicanalista vai ‘ler o dizer’
O sintoma, a volta do recalcado, pode do analisante: ler o desejo que está em
dar prazer, o que não pode ser sentido movimento e não entender! O analista
como tal. Existe um gozo relativo a esse precisa ver como ele está nesse lugar:
aparente desprazer, portanto um gozo que como ouvir esse Real que está no ‘dizer’
não coincide com o registro do prazer e não no ‘dito’. O dizer pode ter a função
(por exemplo, um gozo relativo a uma de permitir a ligação, a articulação entre
autopunição). os três registros – RSI.
No caso apresentado, nosso co- Benoît Le Bouteiller (2019/2020), ao
lega coloca em relevo a questão da tratar da teoria dos nós, questionou: como
psicanálise com o idoso, o que é muito aproveitar dessa teoria clinicamente, na
importante, pois com a idade, ocorrem sua dimensão poética?
modificações físicas e cognitivas, além O trabalho do psicanalista, nos lem-
de outras. Mas a estrutura psíquica não bra Bouteiller, é um trabalho de um leitor,
tem idade! O sujeito do inconsciente leitor de um nó que está acontecendo
não envelhece, é bem lembrado, segun- atrás do dito. Ter uma leitura orientada
do Angela Mucida. Mas constituir-se a partir da teoria dos nós, não se reduz
analista só para idosos, estaria falando apenas a duas dimensões, Imaginário e
mais do próprio analista, da sua questão Simbólico, numa tentativa de ter sentido,
subjetiva e, obviamente, poderia ser mas, sim, se a ver com o Real, a terceira
objeto de sua própria análise. dimensão que está, especificamente, atrás
Portanto, nosso trabalho na condução do dito.
do tratamento é produzir uma experiência Como conseguir ver a dimensão do
singular, o que é diretamente oposto à Real, além da aparência do Imaginário e
fascinação pelo saber, colocando sentido do Simbólico?
em tudo, pois corre-se o risco da ‘manu- Ensina Bouteiller: primeiro, aprender
tenção’, isto é, de manter tudo igualzinho! a ler para alcançar a escrita do sujeito;
(expressão usada pelo clínico para dizer segundo, fazer um corte, uma incisão na
que a paciente, após concluir seu trata- espessura do que está presente, isto é,
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A prática psicanalítica

cortar no lugar certo, quando o sujeito Portanto, vale sublinhar a diferença entre
está falando. o dizer e o dito: a interpretação engloba
O corte, na interpretação do analista, os ditos, e o dizer sustenta que a relação
tem um efeito não sobre o sentido, mas sexual não existe.
sobre a estrutura. Estrutura entendida aqui Em Economia de gozo e final de análise,
não como estrutura nosográfica, mas como Nilza Ericson (2015, p. 150) afirma:
estrutura lógica e topológica do sujeito.
A interpretação, portanto, não é Nunca se vai poder apreender o ser pelo
cronológica, mas num tempo lógico da dito, apesar do dito pretender isso. Há
fala do sujeito, para colocar sua fala em sempre algo atrás do que foi dito. Al-
outro lugar. guma coisa que ex-siste ao dito, que não
A interpretação do lado do sentido está toda no dito. Então o dito não traz
não faz a torção que permite sair de um o dizer todo.
lado para outro, como na banda de Mo-
ebius, mas mantém o sujeito girando no Parabéns a todos os presentes que tan-
mesmo lugar. Portanto, enfatiza Bouteiller, to contribuíram para nossa conversação
ser psicanalista é poder ler de uma forma nos proporcionando ocasião de aprendi-
nova! zado, reflexão e debate! j
O ser falante está habitando as três
dimensões RSI, e essa escrita vem através THE PSYCHOANALYTIC
de seus ditos, que exige uma leitura no um PRACTICE
a um. A teoria dos nós vai nos oferecer
ferramentas para lermos o que se está di- Abstract
zendo atrás daquela fala, afirma Bouteiller. Based on a clinical case, the question of the
O percurso analítico não é a busca psychoanalyst’s position in analytical listening
de uma coisa recalcada, mas produzir and in the direction of treatment is addressed.
‘iné-ditos’ que não estavam presentes. É
criação, produção! O desafio para o ana- Keywords: Being a psychoanalyst, Analyst’s
lista, salienta Bouteiller, é permitir uma desire, Symptoms, Ethics of good saying.
invenção, uma escrita nova. O analista vai
ver como isso se constrói e como funciona
essa modalidade de fazer nó!
O sujeito está construindo um senti-
do, e o analista usa suas ferramentas – ato
e interpretação – para ir atrás da fala do
sujeito e atentar para a lógica subjetiva do
que se está escrevendo! É um trabalho de
criação em que o sujeito faz uma constru-
ção de si mesmo.
Portanto, o ato analítico, como ato
de criação, tem a ver com o ato poético,
conclui Bouteiller.
O discurso do analista é o que sustenta
seu ato e o leva ao dever da interpretação.
O ato e a interpretação, diz Quinet (2018),
são as armas do analista, um dizer que
funda um fato e fura a consistência do
Outro (o avesso do discurso do mestre).
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Maria Angela Assis Dayrell

Referências Sobre a autora

Maria Angela Assis Dayrell


BOUTEILLER, B. Caso clínico em psicanálise. Psicóloga.
Anotações de aula. Belo Horizonte, CPMG, jul. Psicanalista.
2019. Membro do Círculo Psicanalítico
de Minas Gerais (CPMG).
BOUTEILLER, B. Seminário Topologia e poesia: os Além do trabalho clínico e de supervisão,
efeitos clínicos da última parte da obra de Lacan. dedica-se à transmissão da psicanálise
Anotações de aulas. Belo Horizonte, CPMG. Em no seu consultório e no CPMG, onde coordena
andamento, com início em 23/09/2019 e com Seminários de Introdução à Formação
reuniões em 2020. (Tempo do saber), e da Prática Psicanalítica
(Tempo do Fazer).
DUNKER, C. I. L. Reinvenção da intimidade -
políticas do sofrimento cotidiano. São Paulo: Endereço para correspondência
Ubu, 2017.
Maria Angela Assis Dayrell
ERICSON, N. Economia de gozo e final de análise. E-mail: maria.angelaadayrell@gmail.com
Rio de Janeiro: 7Letras, 2015.

FREUD, S. Psicoterapia (1905). In: ______.


Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Análise
fragmentária de uma histeria (O caso Dora) e outros
textos, (1901-1905). Tradução de Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
(Obras completas, 6).

JORGE, M. A. C. Fundamentos da psicanálise: de


Freud a Lacan, v. 3: a prática analítica. Rio de
Janeiro: Zahar, 2017.

QUINET, A. A estranheza da psicanálise: a escola de


Lacan e seus analistas. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

QUINET, A. Seminário A política do analista.


Anotações de aula. Campo Lacaniano de Belo
Horizonte, out. 2018.

QUINET, A. O sinal. Estado de Minas, Caderno


Pensar, sábado, 30 jul. 2011.

Recebido em: 17/09/2019


Aprovado em: 03/04/2020

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Scheherazade Paes de Abreu

Narrativa e história de si,


contadas em análise
Scheherazade Paes de Abreu

Resumo
Este artigo surge através de questões sobre as fronteiras instáveis entre psicanálise e história.
Todos têm alguma questão sobre o valor da vida, a sexualidade e a morte, este é um ponto rele-
vante, pois o que é possível obter como resposta é a narrativa de uma história. A história surge
no atendimento clínico: todos têm algum tipo de história cotidiana a narrar. É inevitável contar,
mas isso também conduz ao que é inenarrável. A concepção de história que se pesquisa neste
artigo é capaz de suportar o equívoco; a história passa a ser algo que comporta o sem sentido, o
sem nome, o impossível e a possibilidade de morte. A história também abarca o indizível. É emer-
gência do novo e interrompe o tempo. O que seria uma concepção de história capaz de incluir
a psicanálise? Até que ponto se faz necessário aproximar verdade, inconsciente Real e história,
e por essas fronteiras se verificar possível reflexão? Por fim, um impasse: a história – apartada e
íntima da psicanálise.

Palavras-chave: História, Narrativa, Real, Recalque, hystoriser

[...] Tu és a história que narraste


não o simples narrador
[...] És a linguagem.
Dor particular.
Carlos Drummond de Andrade

Todos têm algum tipo de questão sobre o psicanálise e história, e o que poderia
valor da vida, a sexualidade e a possibili- emergir no espaço dessa mobilidade. Por-
dade de morte. Os homens são mortais, e tanto, faz um breve percurso bibliográfico
tais acontecimentos lhes pertencem desde para investigar a concepção de história e
que nascem. Esse é um ponto relevante, narrativa, que, por vezes, parece padecer
pois, além disso, o que é possível obter de um certo quiproquó.
como resposta e solução é a narrativa de Além disso, tenta aproximar história
uma história. O homem e sua história se e psicanálise. E sob esse aspecto, a his-
confundem. Nesse contexto, dá-se o en- tória – tal como a narrativa – surge no
cadeamento de circunstâncias que podem atendimento clínico: todos têm algum tipo
configurar a existência. Contudo, toda de história cotidiana a narrar e pequenas
narrativa de história de si é incompleta. ficções a decifrar. É inevitável contar, mas
Mas será que a dor particular quer saber isso também conduz ao que é inenarrável.
da sua história? Com efeito, a psicanálise opera por e no
Este artigo surge através de interro- nível do dizer. Nesse sentido, quais as pos-
gações sobre as fronteiras instáveis entre sibilidades para que o inenarrável da dor
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Narrativa e história de si, contadas em análise

particular e o sofrimento possam irromper fato, história e psicanálise se entrecruzam


na história de si? em diversos delineamentos.
Sobre esse aspecto, Gagnebin (2009, De que se sofre? Em vez de tratar os
p. 55) dirá que a história humana tem a pacientes com a ajuda de poções, repouso,
tarefa de transmitir aquilo que não pode internações, protocolos comportamentais,
ser contado, certa fidelidade ao passado Freud nota que eles sofrem por ter uma
e aos mortos, principalmente enquanto família e por pertencer a uma genealogia.
não se conhecem seus nomes tampouco Sofrem de uma história recalcada, estão
seu sentido. doentes por ter um inconsciente habitado
Isso implica uma certa ascese (do por tragédias, e não somente por neurô-
grego askesis, exercício) da história nios. Assim escreve Roudinesco (2019,
que, em vez de repetir aquilo de que p. 104).
se lembra, descerra-se aos brancos, aos Retornemos, então, ao ponto em
buracos, aos esquecidos, aos rastros, que se sofre de uma história recalcada. O
ao recalcado. Somente assim pode ter recalque visa a manter no inconsciente
acesso ao dizer, mesmo com solavancos todas as ideias e as representações ligadas
e hesitação, pois se trata de narrar o que às pulsões e, para isso, se faz presente
ainda não teve direito à lembrança nem grande empenho de forças, pois a pressão
ao esquecimento. pelo retorno é constante.
Umberto Eco (2017, p. 308-309) Conforme Luiz Alberto Hanns (1996,
questiona se reconhecemos as coisas p. 355-358), não são as pulsões em estado
apenas através de definições. Exemplifica bruto que são recalcadas, mas as repre-
que a fórmula química NaCl se refere ao sentações, pois são portadoras de energia
composto de sódio e cloro; o que mais se pulsional que, ao atingir a consciência,
pode saber sobre o sal (que é extraído do se expressa como afetos (prazer ou des-
mar ou de salinas, que já foi mais caro e prazer). São os afetos incômodos que o
precioso), encontra-se na história. recalque quer afastar e, desse modo, evitar
O saber, a ciência é, assim, feito e o desprazer.
propagado através de histórias. No exer- Em A história do movimento psicana-
cício de apreender o mundo, a criança lítico, Freud ([1914] 1996, p. 26) mostra
vê um cão e pergunta o que é. Pode-se que a teoria do recalque é a pedra angular
responder-lhe falando da definição; mas sobre a qual repousa toda a estrutura da
o cão também é, antes da definição, uma psicanálise. Portanto, continua Freud, é o
forma de história: “lembra aquele dia em fenômeno que pode ser observado quantas
que fomos ao jardim do vovô e havia um vezes se desejar. O movimento de recalque
animal?”. Portanto, a coisa que as crianças consiste, assim, em afastar determinada
realmente querem saber, isto é, de onde coisa do consciente e mantê-la a distância.
vêm os bebês, é exposta também como Então, a arte consiste em apontar ao
uma história. Assim, a vida se passa dentro paciente a construção histórica? Nesse
de redes de histórias que se contam, ou sentido, continua Freud, era a transferên-
não se contam, uns aos outros. Pois se fala cia que abrandava a resistência. Contudo,
a partir de histórias. tal estratégia não era suficiente para a
Por sinal Lacan ([1954] 1998, p. abertura do inconsciente. Assim, não era
374), em Introdução ao comentário de Jean possível recordar a totalidade do que havia
Hippolite sobre a “Verneinung” de Freud, nos sido recalcado, e exatamente o que restou
diz que, quando fala, o sujeito convoca de impossível poderia ser a parte essencial.
através de histórias a figura dos outros Nota-se que o recalcado é repetido
originários. Isso conduz à questão que, de como experiência contemporânea, em vez
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Scheherazade Paes de Abreu

de ser recordado como passado. Temos vos imediatos da psicanálise sejam hoje
aqui que a história é não apenas reminis- inteiramente diferentes do que eram no
cência, mas também algo que pode fazer começo.
parte de uma ação sobre o presente? De
que forma? Sentido e história estão intimamente
apegados. Entretanto, a concepção de
Além disso, ao falar de recalque, história que se pesquisa neste artigo é
Freud ([1906] 1996, p. 50) diz que capaz de suportar o equívoco. A história
de si passa a ser algo que comporta o sem
[...] o conceito de inconsciente é mais sentido, o sem nome, o impossível, o ine-
amplo, sendo o de recalcado o mais restri- narrável, a possibilidade de morte. Isso
to. Tudo o que é recalcado é inconsciente, ocorre a propósito de algo que se vivencia,
mas não podemos afirmar que tudo o que que é trauma e, assim, não pode se apro-
é inconsciente é recalcado. priar de palavras.
Mas a história também abarca o indi-
Assim, há o inconsciente, o recalcado, zível. É emergência do novo e interrompe
a história e suas retroações significantes. o tempo. Até que ponto a história de si
E há o real que é forcluído. Temos aqui também é contingência? O que seria uma
a disjunção entre a história, na qual se concepção de história capaz de incluir a
realiza o retorno do recalcado, e o real psicanálise?
como o que subsiste fora da simbolização. Verifica-se que a especificidade da
O que é uma narrativa capaz de levar em história, como notou Chartier (2015), é
conta o real? sua capacidade de articular os diferentes
Contudo, em que medida o recalque tempos. Nesse sentido, a leitura de di-
também fracassa? Freud ([1915] 1996, p. ferentes tempos faz com que o presente
265) em O sentido dos sintomas, nos diz seja o que é: herança e ruptura, invenção
que os sintomas têm um sentido e se rela- e inércia. A história, um procedimento
cionam com as experiências do paciente. de investigação, narrativa, escritura
O sintoma, os atos falhos e os sonhos têm desdobrada e fragmentada, tem, então, a
uma afinidade, que Freud ([1915] 1996, tarefa de convocar o passado que já não
p. 265) nomeia de “conexão” com a vida está no discurso do tempo presente, pois
de quem os produz. A história é também o passado nunca é um objeto que já está
o sentido do sintoma? ali. A história é essa brecha existente
No entanto, isso ainda diz pouca coi- entre o passado e o que o representa,
sa, pois Freud ([1915] 1996, p. 278) nos entre o que foi e o que não é mais, e
conta que, embora as vivências forneçam em relação com a narrativa (Chartier,
uma explicação satisfatória dos sintomas, 2015, p. 12-23).
a interpretação histórica do sintoma deixa Em vista disso, a história que se lem-
incertezas. A análise, como arte interpre- bra do passado também é sempre escrita
tativa, não fazia mais do que descobrir, no presente e para o presente. Portanto,
reunir e comunicar ao paciente seu próprio a intensidade dessa volta ao passado é
material inconsciente. também um fazer de novo, que possibilita
Nesse sentido, Freud ([1920] 1996, p. a quebra da continuidade cronológica e
29), em Além do princípio do prazer, percebe linear capaz de enterrar o sofrimento e o
que isso não solucionava as coisas: horror, nos diz Gagnebin (2013). Logo,
essa quebra de continuidade histórica
[...] vinte e cinco anos de intenso traba- é um gesto de interrupção do tempo,
lho tiveram por resultado que os objeti- cessação mesmo, suspensão do sentido,
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Narrativa e história de si, contadas em análise

que torna possível inscrever na narrativa Será que temos a morte como pos-
silêncios e fraturas. Com esses elementos, sibilidade de um limite nos instantes da
reflete-se que o acesso ao passado é sempre história capaz de se findar? Portanto, a
faltoso, comporta sempre um fracasso, tal história tem esse caráter temporal, tal
como o recalque. como a psicanálise, e capaz de provocar
Nesse contexto, sobre psicanálise, rupturas.
história e a narração do sofrimento, Gag- No princípio da análise, nos diz
nebin (2013) nos diz que isso consiste Dunker (2016, p. 98), o analisante pa-
na quebra da coerência ilusória de uma rece falar de modo a justificar a posição
história repetitiva, pois a narrativa deve subjetiva através da racionalidade própria
ter a força de romper o que, tal como uma sobre o sofrimento que o afeta. Tais expli-
barragem, resiste ao fluxo narrativo. Em cações estão ligadas às contingências de
outras palavras, a dor, que não quer saber sua história: vida amorosa, profissional e
de sua história. a forma como se está com o outro. Algo
Além disso, como notou Gagnebin que predomina é que de algum modo
(2013, p. 107-110), repetir, romper até ocorre à isenção do sujeito por retirada da
que surja o diferente: implicação ou pelo excesso de implicação.
A psicanálise é também a prática dos
As intervenções do analista não teriam modos de falar, denominada por Freud de
como alvo primeiro opor a essa história associação livre. Até que ponto incidem
uma contra-história, uma interpretação problemas sobre a narrativa, a ponto de
diferente da primeira, mas tão constran- encurtá-la ou empobrecê-la? Para Dunker
gedora, e restritiva quanto ela, numa (2017, p. 44-45), percebe-se um déficit
espécie de luta interminável e estéril narrativo.
entre duas versões divergentes da mesma Desse modo, o analista, ao dizer ao
vida; elas deveriam, muito mais, provo- analisante que conte sua história de vida,
car rupturas nessa narrativa por demais recebe como resposta: “sou dono de uma
convincente, designar seus furos, seus padaria”. Porém, o analista insiste, per-
brancos, retomar o tropeço, o ato falho gunta, mas o analisante não tem nada
para o sujeito se arriscar, no seu presente, mais a dizer. Dunker busca em Walter
a andar, a agir diferentemente (Gagnebin, Benjamim, no texto O narrador (1936),
2013, p. 107). a impossibilidade de narrar como uma
mutação estranha da época. Narrar não é
Por sinal, para Lacan ([1953] 1998, relatar, não é descrever; há um universo
p. 319), em Função e campo da fala e da de problemas discursivos e linguísticos em
linguagem em psicanálise, o automatismo torno da narrativa.
da repetição visa a temporalidade histórica Nesse contexto, como notou Gagne-
da transferência, ao passo que a pulsão de bin (2013, p. 62) a respeito do esfacela-
morte exprime o limite da função histórica mento da narrativa mítica tradicional em
do sujeito – ou seja, a morte. Entretanto, narrativas independentes, essas narrativas
não a morte como simples término da vida podem rememorar o passado sem assumir
nem como certeza empírica, mas como uma forma mítica. Com efeito, não se trata
possibilidade. Esse limite se faz presente tanto da harmonia perdida ou do fim de
em cada instante que a história tem fim. É uma época, mas da realidade do sofrimen-
o passado sob forma real que se manifesta to incapaz de ser depositado nas experi-
revertido na repetição, diferentemente ências narrativas. No entanto, poderia
do passado em que o homem encontra e ser transmitido em um sentido diferente
garante o futuro. da tradicional narrativa? Como pode ser
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Scheherazade Paes de Abreu

contado? O que é, de fato, contar uma A verdade não se manifesta apenas


história, ou a história? Por que essa ne- na pura negatividade do indizível; ao
cessidade e essa incapacidade, de contar? contrário, surge estreitamente conecta-
Essas são questões, nos diz Gagnebin da à superfície do dizer. A verdade em
(2013, p. 2), que preocuparam Walter psicanálise não está recalcada, forcluída
Benjamim. Qual seria a narração que ou denegada. Ela fala. Mas saber escutar
salvaria o passado e saberia resistir à essa fala implica descobrir em que língua
tentação de preencher as faltas e sufocar ela fala e qual a angulação de sua refração
os silêncios? Benjamin insiste nos laços (Iannini, 2012, p. 153-234).
entre morte e narrativa, pois se trata de Ao falar de ruínas e história, Gagnebin
uma nova ligação com a finitude. A nar- (2009, p. 54) considera a narração como
ração tem sua origem mais autêntica no saída das ruínas da narrativa. O narrador é
agonizante, aquele que está no limiar da um catador de sucatas e lixo, recolhe cacos
morte. Não porque há um saber especial e restos, movido pela pobreza. Por isso,
a se revelar, mas porque é no limiar da se interessa pelo que é deixado de lado,
morte que se aproximam o mundo vivo e sem significação, algo sem importância ou
o familiar desse outro desconhecido que é sentido, algo pelo qual não se sabe o que
a morte (Gagnebin, 2013, p. 58-64). fazer, algo que não deixa rastros.
Mas será ainda preciso perceber que Em Variantes do tratamento padrão,
o que se conta na análise nunca é tão Lacan ([1955] 1998, p. 353), pergunta:
importante como o modo como se conta. “[...] O que é a fala?”. E prossegue: trata-
No momento em que tenta compreender -se de um ato.
o significado do que o analisando cons-
cientemente relata na complexidade da Dizer que a fala é um ato é ir além das
história evocada, o analista deixa de ouvir ressonâncias semânticas que ela necessa-
o modo como se diz. Portanto, o que se diz riamente implica (Andrade, 2016, p. 41).
que ocorreu nunca é tão importante quan-
to o modo como se diz, pois ao psicanalista A escrita poética chinesa e a escrita
importa não somente o que se passou, mas de Joyce forçam a língua, enlaçam e de-
também a posição que se toma no dizer senlaçam. Assim, mantêm o leitor atento
para falar sobre isso. Assim, a forma de para que haja algo a ser lido.
falar coloca em ato a divisão do sujeito
(Lutereau, 2017, p. 12). Lacan convida a encontrar na escrita poé-
Por sinal, a originalidade da psicanáli- tica chinesa a semente da interpretação
se diante de outros discursos é a incidência (Andrade, 2016, p. 189).
do aspecto material da verdade como cau-
sa. É a materialidade como significante, Partindo desse ponto, faz-se questão
ou seja, o significante incide precisamente o destino da história de si narrada e como
ao veicular o sujeito em sua relação com se pode se articular a tal operação. Afinal,
outro significante. Isso produz o sujeito, até que ponto a história de si também é
o sujeito do inconsciente, o sujeito em poesia?
quem isso fala. Mas isso não é tudo, pois Por fim, a pergunta de Lacan em Prefá-
o sujeito não é totalmente produzido pelo cio à edição inglesa do Seminário 11 ([1977]
simbólico. O sujeito é o próprio simbólico 2003, p. 568) ainda persiste:
barrado, fundado em torno de um vazio
por um impasse do real. “Há um ponto [...] o que pode levar alguém, sobretudo
de real no coração do simbólico”, nos diz depois de uma análise, a se ‘historisterizar’
Iannini (2012, p. 233). [hystoriser] de si mesmo?

Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p. 45 – 52 • jun. 2020 49


Narrativa e história de si, contadas em análise

Ainda assim, depois de uma análise,


que história teríamos? Por sinal, até que Referências
ponto se faz necessário aproximar verdade,
inconsciente Real e história para através ANDRADE, C. Lacan chinês. Poesia, ideograma
e caligrafia chinesa de uma psicanálise. Maceió:
das fronteiras se verificar possível reflexão?
Edufal, 2016.
Desse modo, finalizo esta escrita com
um impasse: a história – apartada e íntima CHARTIER, R. A história ou a leitura do tempo.
da psicanálise – um caminho com algo Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
ainda a se desenhar. j
BENJAMIN, W. O narrador (1936). In: ______.
Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre li-
teratura e história da cultura. Tradução de Sérgio
NARRATIVE AND Paulo Rouanet. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.
OWN STORY, p. 197-221. (Obras escolhidas, 1).
TOLD IN ANALYSIS
DUNKER, C. I. L. Litorais do patológico: leituras
sobre Lacan. São Paulo: Versos, 2017.
Abstract
This article brings about on about the un- DUNKER, C. I. L. Por que Lacan? São Paulo:
stable boundaries between psychoanalysis and Zagodoni, 2016.
history. Everyone has some question about
ECO, U. Pape Satàn aleppe: crônicas de uma socie-
the value of life, sexuality and death. This
dade líquida. Rio de Janeiro: Record, 2017.
is a relevant point, because what is possible
to obtain as an answer is the narrative of a FREUD, S. A história do movimento psicanalí-
history. The history emerges in clinical care: tico (1914). In: ______. A história do movimento
everyone has some kind of everyday story to psicanalítico, artigos sobre a metapsicologia e outros
trabalhos (1914-1916). Direção geral da tradução
tell. It is inevitable to tell, but it also reveals
de Jayme Salomão Rio de Janeiro: Imago, 1996.
what is unspeakable. The conception of his- p. 18-73. (Edição standard brasileira das obras
tory that is researched in this article is capable psicológicas completas de Sigmund Freud, 14).
of supporting the mistake; history becomes
something that includes the meaningless, the FREUD, S. Além do princípio de prazer (1920).
In: ______. Além do princípio de prazer, psicologia de
nameless, the impossible and the possibility of
grupo e outros trabalhos (1920-1922). Direção geral
death. History also embraces the unspeakable. da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro:
It is an emergency of the new and interrupts Imago, 1996. p. 12-75. (Edição standard brasileira
time. What would be a conception of history das obras completas de Sigmund Freud, 18).
capable of including psychoanalysis? Up to
FREUD, S. Conferência XVII: O sentido dos sin-
which extent is it necessary to approach truth,
tomas. In: ______. Conferências introdutórias sobre
the unconscious Real and history, and through psicanálise (Parte III. Teoria geral das neuroses.
these borders is possible reflection possible? 1917 [1916-1917]). Direção geral da tradução
Finally, an impasse: history – separated and de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
intimate from psychoanalysis. p. 265-279. (Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud, 16).
Keywords: History, Narrative, Real, Repres- FREUD, S. Delírios e sonhos na “Gradiva”, de Jen-
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e outros trabalhos (1906-1908). Direção geral da
tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago,
1996. p. 19-88. (Edição standard brasileira das
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50 Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p. 45 – 52 • jun. 2020


Scheherazade Paes de Abreu

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Recebido em: 10/03/2020


Aprovado em: 03/04/2020

Sobre a autora

Scheherazade Paes de Abreu


Psicanalista.
Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.

Endereço para correspondência

Scheherazade Paes de Abreu


E-mail: scheherazade_abreu@yahoo.com.b>

Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p. 45 – 52 • jun. 2020 51


Vanessa Campos Santoro

O estranhamente infamiliar dos medos1


Vanessa Campos Santoro

Resumo
A autora compara a formação de sintomas na clínica psicanalítica da fobia com a verdadeira
irrupção do real vista em acontecimentos recentes, como no episódio da mina do Córrego do
Feijão em Brumadinho (MG). Lacan trata o Real pelo Simbólico, abordando o estranho familiar
[das Unheimliche] em cada um de nós. A capacidade de elaboração do estresse pós-traumático
pede não só a palavra que toca o corpo como letra de gozo, mas também a elucidação de pontos
da história de cada um que, de uma maneira estranhamente (in)familiar, se fixou em traumas
infantis. Esses pontos de real nos deixam agitados e aturdidos. E para eles faltam palavras.

Palavras-chave: Trauma, Formação de sintomas na fobia, Unheimliche, Retorno do recalcado,


Letra de gozo, Bordejamento do real pelo simbólico, Estresse pós-traumático.

A fobia é uma das manifestações sinto- No Seminário 4: a relação do objeto,


máticas mais frequentes na infância e Lacan ([1956-1957], 1995, p. 211) afir-
relaciona-se ao evitamento de um objeto ma:
susceptível de desencadear o medo. Reve-
la um modo intenso da perda do lugar que [...] convém separar corretamente a an-
o infantil sujeito ocupa naquele momento gústia da fobia. Se existem aí duas coisas
diante do Outro. que se sucedem, não é sem razão: uma
O não saber sobre seu corpo, seu gozo vem em socorro da outra, o objeto fóbico
e, principalmente, sobre a situação de vem preencher sua função sobre o fundo
desamparo diante do que o Outro quer de de angústia.
mim traz muita angústia, acompanhando
a irrupção do sexual. E Lacan ([1956-1957], 1995, p. 353)
Analisando os medos infantis, perce- continua:
bemos que eles surgem em situações como
o medo do escuro, o medo de ficar sozinho A angústia não é o medo de um objeto.
ou de se perder do outro primordial – a A angústia é o confronto do sujeito
mãe. Ou também na presença de objetos com a ausência de objeto, onde ele é
e coisas que cercam o familiar da criança, apanhado, onde se perde, e a que tudo
como medo de cachorro, de bicho de luz, é preferível, inclusive forjar, o mais es-
de galinha, de barata, podendo chegar a tranho e o menos objetal dos objetos,
um sintoma fóbico. o de uma fobia.
A fobia se manifesta num tempo de
estruturação do sujeito como resposta à Assim, o objeto fóbico se articula com
angústia de castração que emerge nesse a significação fálica, toma um valor signi-
momento da estrutura (fase fálica). Ela ficante. É a linguagem que o fornece. Às
pode aparecer ou não. O que é fundamen- vezes é o que está mais à mão, ou seja, o
tal nesse momento é a angústia. familiar, (in)familiar, o doméstico.

1. Trabalho apresentado no X Fórum Mineiro de Psicanálise. Divinópolis (MG), 12-13 jul. 2019.

Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p. 53 – 58 • jun. 2020 53


O estranhamente infamiliar dos medos

O infamiliar é o retorno de algo, prin- sim, como uma placa giratória [...] Ela
cipalmente de cunho sexual, que deveria gira mais do que comumente para as
ficar escondido e que volta a incomodar. duas grandes ordens de neurose, a his-
Da definição dos Irmãos Grimm, usa- teria e a neurose obsessiva, e também
da por Freud em O estranho ([1919] 1996), realiza a junção com a estrutura da
tiramos: heimliche é doméstico, familiar, perversão; [...] Ela é muito menos uma
caseiro, aconchegante, secreto, oculto, entidade clínica isolável do que uma
velado ao conhecimento de fora, relativo figura clinicamente ilustrada de ma-
à casa, ao lar. neira espetacular, sem dúvida, mas em
Unheimliche tem várias traduções: contextos infinitamente diversos (Lacan
estranhamento, sinistro (que ameaça), fu- [1968-1969] 2008, p. 298).
nesto (cheio de maus presságios), esquerdo
(algo que faz parte de nós, mas é visto O estresse pós-traumático
como um lado cego, reprimido) acidente O conceito de estresse pós-traumático
grave, catástrofe. é objeto de estudo tanto pela medicina
Tudo aquilo que era familiar à psi- quanto pela psicologia. Faz parte da DSM-
que foi reprimido e, ao retornar, é visto -IV (Diagnostic and Statistical Manual of
como estranhamente familiar. Freud dá Mental Disorders) e, pelo menos tempo-
o exemplo do trem, onde se assusta com rariamente, incapacita o indivíduo para
sua própria imagem no espelho da porta. exercer suas funções no trabalho (saúde
mental do trabalhador).
Assim como o retorno do totemismo na O recente episódio do rompimento da
infância origina fobias infantis e acentua barragem da mina Córrego do Feijão, da
o complexo paterno como um complexo mineradora Vale, em Brumadinho (MG),
de castração, o retorno do animismo na com quase trezentas mortes e destrui-
infância desenvolve a consciência moral, ção do Rio Paraopeba, em 25 de janeiro
a autocrítica e o sentido de auto-ob- de 2019, pôs em relevo a fragilidade e
servação. A gênese do Supereu parece a ineficácia de um sistema extrativista
depender nesse sentido, do cruzamento exercido amplamente nas Minas Gerais
entre o legado totemista e a superação e aterrorizou a todos pelas proporções do
do narcisismo animista (Dunker, 2019, acontecimento.
p. 210-211). Mais que o Schreck (susto), o tsunami
incontrolável de lama com resíduos tóxi-
A formação de sintomas fóbicos revela cos lavou parte de uma cidade, as depen-
uma enfermidade da metáfora paterna, dências da mineradora e o Rio Paraopeba,
isto é, a maneira pela qual o desejo da tornando-o impróprio à vida.
mãe não é, de forma alguma, portador do O que vimos foi uma verdadeira irrup-
valor simbólico do falo. O discurso da mãe ção do Real, ou seja, mortos, muitos deles
situa, apenas por sugestão, o lugar do pai esquartejados pela força de destruição do
como pai. Daí o sintoma fóbico ser uma rio de lama. Indizível. Faltam palavras. E
suplência da metáfora paterna. O modo quando elas vêm, também estão conta-
como o pai é falado pela mãe retira o peso minadas pela raiva, pela desorientação e
simbólico do pai na palavra da mãe. todo o imaginário fantasioso com o qual
No Seminário 16: de um Outro a outro, tentamos bordejar a pulsão de morte.
Lacan afirma: No resgate das vítimas e, trabalhando
incessantemente há quatro meses, esti-
A fobia não deve ser vista, de modo veram os bombeiros que recebem acom-
algum, como uma entidade clínica, mas panhamento médico e psicológico desde
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Vanessa Campos Santoro

então. E muitos deles chegaram a nossos em que a pessoa foi confrontada com a
consultórios, na tentativa de pôr palavra morte ou grave ferimento em si, ou em
onde só havia destruição e morte. outras pessoas, com resposta de intenso
O trabalho de resgate de vítimas medo, impotência ou horror.
e de corpos foi intenso nos primeiros O evento traumático é revivido em
meses. No consultório, os bombeiros recordações aflitivas recorrentes e in-
atendidos relatavam minuciosamente trusivas, e em pesadelos. Um fenômeno
o vivido, repetindo as façanhas de sal- paradoxal é a reexposição compulsiva a
vamento e o horror das mortes. Corpos eventos potencialmente traumáticos.
despedaçados, casas, ponte, estrada, ci- A diferença principal entre o trata-
dade, tudo soterrado pelo mar de lama. mento psicanalítico e o cognitivo – com-
Tudo era falado exaustivamente. Eles portamental usado para o TEPT é o uso
estavam presos às cenas traumáticas e que se faz da linguagem. A proposta do
só falavam delas. segundo é que o estressado passe a falar
O drama dos familiares desapareci- imediatamente depois do ocorrido para
dos, a esperança de encontrar um parente ultrapassá-lo e se curar, restabelecendo
com vida, a luta para identificar corpos seu eu cognitivo.
e enterrar os mortos, tudo isso repetido Há novas pesquisas que apontam “post
inúmeras vezes por aqueles homens va- traumatic growth”.
lentes e acostumados com fogo, incêndio Na psicanálise, falar é muito impor-
e devastação. tante para conter o desamparo e o horror
Na escuta, além dos relatos, os psi- radical vivido no trauma. Mas é preciso
canalistas pinçaram pontos da história de tomar a fala pelos furos, e não pela clareza
cada sujeito. Relatos da infância, medos da comunicação. A psicanálise parte do
e outras situações traumáticas vividas pressuposto do impossível de dizer – o
começaram a aparecer e, de maneira Real. Falar do trauma é construir bordas
estranhamente (in)familiar, se fixar em em torno do impossível de dizer.
traumas infantis. O que é trauma para a psicanálise?
Esses pontos de Real retornavam O trauma é o encontro com o Real do
com força diante da catástrofe, muitos sexo e o Real da morte, ambas figuras do
deles como impressões, outros como impossível de representar no Simbólico.
traços. Todos indizíveis, trazendo muita O encontro com o Real da castração. O
angústia. À medida que se pôde pôr em trauma vem sempre a posteriori, quando,
palavras essa angústia tão antiga, houve numa repetição, já no Simbólico, a cena
uma melhora daqueles sujeitos. Passaram traumática é retomada e ressignificada,
a dormir, tranquilizavam uma agitação entrando na cadeia significante com seu
constante denominada por eles de “sempre peso de trauma, isto é, o que excede às
alerta”, diminuindo os sintomas corporais representações.
de cefaleia e dores estomacais. Para Freud, o traumático é não a cena,
Embora as buscas estejam no fim, tem mas a lembrança a posteriori da cena que
acontecido um fenômeno ainda por en- faz um efeito de gozo e da qual nos defen-
tender: muitos dos bombeiros se recusam demos fazendo sintoma.
a abandonar o local de trabalho e conti- O trauma se apresenta. O trauma
nuam a procurar na lama algum sinal de não se representa. O trauma é o que não
vida ou resgatar pedaços de corpos. pode ser ligado e integrado nos sistemas
Conforme o DSM-IV os transtornos mnêmicos. É o não representado ou o
do estresse pós-traumático (TEPT) se re- insuficientemente representado, que afeta
ferem à exposição a eventos traumáticos sempre o equilíbrio narcisista.
Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p. 53 – 58 • jun. 2020 55
O estranhamente infamiliar dos medos

Para Freud, o trauma é mobilizado ficando sempre no tempo presente, reatu-


pelo encontro com das Ding – a Coisa alizado compulsivamente.
externa ao corpo, que o leva a falar. Lacan trata das reminiscências como
Lacan retira daí outro conceito: o de letras, peças avulsas cheias de gozo, que
objeto a – resto inassimilável do encontro podem entrar no trabalho de rememora-
da carne com a linguagem. ção, abrindo novas vias de circulação para
O trauma é uma experiência de não o indizível, não tanto pelo que guardam
saber. O saber administra o gozo. Ao se de verdade, mas pelo gozo que escoam.
perder o saber, fica-se à mercê de uma Cada um responde aos novos desar-
experiência de gozo ameaçadora. Freud ranjos do real a partir de seu sinthome
abandona a teoria da sedução e investe muito mais do que aos acontecimentos
na fantasia. inesperados ou violentos.
E Lacan ([1967] 2003, p. 259), em Pensamos que o trauma reatualizado
Proposição de 9 de outubro de 1967, afirma no TEPT encontra dificuldades de ser sim-
que o fantasma é a janela para o Real. bolizado, mas é absorvido pelo fantasma
Fantasma fundamental é uma matriz do sujeito, fixando sua posição de gozo.
imaginária, na qual o sujeito se posiciona Temos, por um lado, a angústia diante
frente ao enigma do desejo do Outro e da intrusão do que se reproduz e, por ou-
dos gozos envolvidos, dando uma resposta tro, a fascinação pela cena traumática ini-
a esses enigmas, que vão coordenar sua cial, a fascinação pelo horror (facínora...).
construção da realidade e a formação de
seu mundo simbólico durante toda a vida. Conclusão
Notamos como a história de cada um Na definição de Unheimliche temos: sinis-
dos bombeiros influiu na elaboração do tro acidente grave, catástrofe. Aí pensa-
trauma. mos em trauma e no episódio de irrupção
Segundo Fernando del Guerra Prota, do Real, em Brumadinho, esse conto de
entender quão neurótico é um indivíduo terror dos tempos modernos.
tem relação ao quão pouco um indivíduo Outra definição de Unheimliche privi-
confia no seu fantasma como fonte de legia o estranhamento, o esquerdo, como
garantia para a constituição da realidade. algo que faz parte de nós, mas é recalcado,
No TEPT não há um movimento dia- podendo retornar via inconsciente nos
lético, uma significação de algo anterior. sintomas, como a fobia. No trauma, a an-
Há um transbordamento quantitativo, gústia é de morte e, na fobia, é angústia de
que fica além da realização simbólica do castração – dentro da cadeia significante
trauma. Simbólico/Imaginário. Para não desorgani-
Não há uma subjetivação da mesma zar o aparelho psíquico, fazemos sintoma.
situação, como ocorre nas lembranças Trauma está fora da cadeia significante,
encobridoras, quando uma cena infantil é invasão do Simbólico pelo Real.
retomada e vivida e não mais como apenas Depois do trauma não existe mais o
objeto de uma ação. sujeito não traumatizado, e ele tem que
É que no TEPT o indivíduo vive uma se posicionar no mundo a partir disso. Há
experiência intensa de ser colocado na uma posição de intensa fixação pulsional,
posição de objeto de gozo do Outro. de empuxo a gozar desses sujeitos e da
Então, além da insuficiência do sim- certeza da perversidade do Outro. Daí as
bólico para bordejar esse Real intrusivo, repetições que paralisam a vida do sujeito,
temos a própria realização fantasmática trazendo reações agudas ansiosas, crises de
radical, fixando um gozo mortífero, im- pânico e, no melhor dos casos, o estranha-
pedindo que o trauma se torne memória, mente infamiliar dos medos. j
56 Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p.53 – 58 • jun. 2020
Vanessa Campos Santoro

THE STRANGELY
(UN) FAMILIAR OF FEARS Referências
CALDAS, H. Trauma e linguagem: acorda. Opção
Abstract Lacaniana online nova série. São Paulo, ano 6, n. 16,
mar. 2015. ISSN 2177-2673.
The author compares the formation of symp-
toms in the psychoanalytic clinic of phobia CESAROTTO, O. No olho do Outro. São Paulo:
with the true outbreak of the real seen in Iluminares, 1996.
recent events, such as in the episode of the
Córrego do Feijão mine in Brumadinho DUNKER, C. Animismo e indeterminação em
das Unheimlich. In: FREUD, S. O infamiliar (Das
(MG). Lacan treats the Real through the
Unheimliche) seguido de O homem da Areia /
Symbolic, approaching the familiar stranger E.T.A. Hoffmann (1856-1930). Tradução de
[of the Unheimliche] in each of us. The abil- Ernani Chaves, Pedro Heliodoro Tavares (O ho-
ity to elaborate post-traumatic stress requires mem da areia, tradução de Romero Freitas). Belo
not only the word that touches the body as a Horizonte: Autêntica, 2019. p. 199-218. (Obras
incompletas de Sigmund Freud, 8).
letter of enjoyment, but also the elucidation
of points in the history of each person, who, FREUD, S. Inibições, sintomas e ansiedade (1926
in a strangely (in)familiar way, has become [1925]). In: ______. Um estudo autobiográfico,
fixated on childhood traumas. These points of inibições, sintomas e ansiedade, análise leiga e outros
the Real leave us agitated and stunned. For trabalhos (1925-1926). Direção geral da tradução
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them, we lack words.
p. 91-167. (Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud, 20).
Keywords: Trauma, Formation of symp-
toms in phobia, Unheimliche, Return of the FREUD, S. O ‘estranho’ (1919). In: ______. Uma
repressed, Letter of enjoyment, Bordering the neurose infantil e outros trabalhos (1917-1918).
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Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 237-269. (Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas
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FREUD, S. O infamiliar (Das Unheimliche) se-


guido de O homem da Areia / E.T.A. Hoffmann
(1856-1930). Tradução de Ernani Chaves,
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tradução de Romero Freitas). Belo Horizonte:
Autêntica, 2019. (Obras incompletas de Sig-
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LACAN, J. O seminário, livro 16: de um Outro ao


outro (1968-1969). Texto estabelecido por Jacques-
Alain Miller. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. (Campo
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Rio de Janeiro: Zahar, 1995. (Campo Freudiano
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LACAN, J. Proposição de 9 de outubro de 1967


sobre o psicanalista da escola. In: ______. Outros
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Zahar, 2003. p. 248-264. (Campo Freudiano no
Brasil).

Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p. 53 – 58 • jun. 2020 57


O estranhamente infamiliar dos medos

PROTA, F. G. Um olhar psicanalítico sobre o


transtorno de estresse pós-traumático. Disponível em:
<http://www.ebp.org.br/textos-online/um-olhar-
psicanalitico-sobre-o-transtorno-de-stress-pos-
traumatico>. Acesso em: 02 jun.2019.

Recebido em: 10/03/2020


Aprovado em: 03/04/2020

Sobre a autora

Vanessa Campos Santoro


Psicóloga.
Psicanalista.
Sócia do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.

Endereço para correspondência


E-mail: vansantoro@uol.com.br

58 Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p.53 – 58 • jun. 2020


PSICA
Eliana Rodrigues NÁ LISE
Pereira Mendes E CU
& Marisa Lima LT U R A
Rodrigues

Amar, verbo intransitivo, idílio:


a iniciação sexual de um jovem
e o desejo de Fräulein
Eliana Rodrigues Pereira Mendes
Marisa Lima Rodrigues

Resumo
Leitura psicanalítica do romance de Mário de Andrade Amar, verbo intransitivo, idílio, que trata
da iniciação sexual de Carlos, um jovem dos anos 1920, feita pela preceptora alemã Fräulein.
A sexualidade é vista como uma produção discursiva que envolve o sujeito e a cultura. A ini-
ciação sexual se dá de acordo com o grupo social e o tempo histórico e é sempre uma reedição
do complexo de Édipo. No romance, ao se apaixonar, o casal subverte a ordem esperada, o que
torna explícita a interdição paterna.

Palavras-chave: Iniciação sexual, Adolescência, Masculinidade, Feminilidade.

A sexualidade é uma das dimensões do ser Assim se justifica falar em sexualida-


humano que abrange uma complexidade des, no plural, e ter sempre em mente a
que perpassa gênero, identidade sexual, contínua evolução dos conceitos e com-
orientação/preferência sexual, erotismo, portamentos sexuais através dos tempos.
envolvimento emocional, fantasias, dese- O sexo envolve o sujeito (com a tensão
jos, crenças, valores, atitudes. permanente entre o biológico e o psíquico)
A psicanálise e a literatura dialogam e a cultura.
pelos meandros da linguagem, e o sujeito A iniciação da vida sexual apresenta-
falante é o sujeito do inconsciente. Somos -se, então, como uma temática complexa,
constituídos por palavras. Quanto à sexu- que varia de acordo com o grupo social e
alidade, se a literatura sempre abordou a o tempo histórico, que vão definir o con-
questão sexual como tema inesgotável do trole, as interdições e o período em que a
desenrolar da vida humana, a psicanálise identidade sexual se afirma (Nascimento;
fez do sexo um dos fundamentos do psi- Gomes, 2007).
quismo. Na contemporaneidade, não há
Dentro da riqueza de visões sobre ritos de passagem da adolescência
a sexualidade, um autor como Foucault para a maioridade. Tais cerimônias,
(1985) considera o sexo como uma no entanto, eram comuns entre povos
produção discursiva, logo uma constru- primitivos e ainda são usadas em socie-
ção sócio-histórica. Nessa perspectiva, dades mais tradicionais, como entre os
a sexualidade constitui-se muito mais judeus, onde os meninos de treze anos
como uma norma cultural que governa fazem sua introdução ao mundo adulto
a materialização dos corpos do que como através de um cerimonial bem definido
um dado corporal sobre o qual se impõe e fortemente valorizado (o chamado
artificialmente a construção de um gênero. bar mitzvá).
Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p. 59 – 66 • jun. 2020 59
Amar, verbo intransitivo, idílio: a iniciação sexual de um jovem e o desejo de Fräulein

Atualmente, essa passagem se dá de pré-edípicas, que se encaminha, por meio


forma particularizada, no um a um; cada da resolução edípica em andamento, à es-
qual vive também a iniciação sexual a seu colha de um novo objeto amoroso, que, na
modo, sem ter muitos parâmetros rígidos. verdade, é uma escolha renovada. Agora
A permissividade sexual de nossos dias o objeto da sexualidade infantil é proibido
mudou bastante o panorama dessa vi- pela barreira contra o incesto. As fanta-
vência de iniciação. Hoje rapazes e moças sias incestuosas têm de ser superadas, e o
podem vivenciar o sexo de uma forma mais superego tem de ser reelaborado.
liberada, em que é desnecessária a con-
corrência de uma figura mais experiente, Completa-se então, a mais dolorosa ex-
para inaugurar a experiência sexual de um periência da puberdade: o desligamento
jovem. Mas ainda é uma forte preocupação da autoridade dos pais (Freud, [1905]
dos pais, que veem nesse momento uma 1976, p. 234).
afirmação de seu orgulho viril projetado
nos filhos. Freud considera que o desenvolvi-
mento da masculinidade seja mais fácil e
Do ponto de vista de Carlos direto, já que o menino
No belo livro Amar, verbo intransitivo, Idí-
lio, de Mário de Andrade ([1927] 2013), [...] retém o mesmo objeto que catexizou
somos chamados a acompanhar as vicis- em sua libido – não ainda um objeto
situdes do adolescente Carlos, com seus genital – durante o período precedente,
quinze anos, recém-saído da puberdade. enquanto estava sendo amamentado e
Único filho varão de uma família cuidado (Freud, [1925] 1976, p. 310).
abastada e patriarcal, com mais três irmãs,
Carlos constitui uma preocupação para Mas, na realidade, isso não parece
seu pai, que toma a si a responsabilidade ser tão fácil assim. No caminho para a
de iniciá-lo na vida sexual. O que o pai assunção de sua masculinidade, o menino
deseja, ao contratar a preceptora alemã, vivencia muitas fantasias ameaçadoras à
prática comum em seu grupo social e em sua integridade viril. Como consequências
sua época, é que ela conduza seu filho com da angústia de castração para os meninos,
segurança e sem percalços, nos mistérios dependendo de como foi vivida a sua
do sexo. Fräulein [senhorita, em alemão], situação edípica, pode haver um horror
como é chamada no seu posto de trabalho, diante da mulher, criatura mutilada, ou
deve dar a Carlos lições de amor, verbo um desprezo triunfante diante dela.
intransitivo, sem objeto. Segundo Freud ([1925] 1976, p. 314),
O que nos diz a psicanálise sobre esse “[...] esses desfechos, contudo, pertencem
momento crítico do desenvolvimento do ao futuro, embora não muito remoto”.
menino? Melanie Klein (1957), entre outros
Freud propõe a noção de bissexualida- autores, levanta a questão da inveja do
de do ser humano, sobre a qual se fundam menino pelo seio, como uma característica
as hipóteses a respeito da construção da feminina nutridora e amorosa, que se am-
identidade sexual. A diferenciação básica plia depois para a capacidade de procriar
do desenvolvimento sexual vai mostrar o e de gerar bebês.
complexo de castração nos meninos e a A dominação masculina gera a subser-
inveja do pênis nas meninas. Na puber- viência aos padrões culturais de virilidade,
dade, com o desenvolvimento do corpo força, dureza, resistência, competência
sexuado, há uma explosão pulsional de física, e muitas vezes esses mesmos padrões
caráter genital, calcada nas experiências criam uma grade intransponível para o me-
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Eliana Rodrigues Pereira Mendes & Marisa Lima Rodrigues

nino, que, para ser macho, tem de abdicar tro da estreita grade, já mencionada, que
de sua sensibilidade e de sua ternura. delimita o comportamento dos jovens do
As condutas extremas do machismo e sexo masculino, há uma preocupação em
da homossexualidade podem ser pensadas observar se os comportamentos expressos
como defesas complementares e equiva- se enquadram num padrão de identidade
lentes, que negam a possibilidade de inte- sexual prescrito pelo modelo hegemônico
gração entre o masculino e o feminino de do gênero. Tem de haver uma conciliação
cada sujeito, comprometendo a harmonia entre discursos e práticas.
interna entre a masculinidade e a femini- No imaginário social, de um lado, os
lidade, que coexistem em todos os seres pais costumam expressar as expectativas
humanos, ou seja, a bissexualidade que de que os jovens devem se iniciar sexu-
os constitui. Com isso, também se nega a almente para afirmar sua masculinidade,
incompletude e a dependência afetiva da sua virilidade; de outro, há o campo da
condição humana. interdição que faz com que esses pais não
Entre os obstáculos que o menino tem demonstrem, na prática, como ocorre a
que superar está a imagem paradoxal relação sexual, delegando a outrem esse
que ele tem das mulheres: por um lado, ensinamento. Isso pode ser feito por jovens
o temor e a idealização diante do poder mais experientes, profissionais do sexo,
da imago da mãe fálica e, por outro, o mulheres mais velhas.
temor à possível potencialidade femini- O pai de Carlos, chefe patriarcal de
lizante e o enfraquecimento no contato uma família dos anos 1920, é ele mesmo
com o sexo feminino. Nas mulheres são um exemplo de dupla moral: dentro de
projetadas, alternativamente, imagens casa é o pai e o marido dedicado, mas sai
de domínio e força, e imagens de des- sozinho todas as noites, deixando a ‘sagra-
valimento e debilidade (V annucchi , da’ esposa presa no lar, junto com os filhos.
2009). Todos esses sentimentos têm de Ele quer que seu filho seja também um
ser enfrentados pelo jovem que faz sua espécime masculino bem-sucedido, como
iniciação sexual. ele mesmo se considera. Sua condição fi-
Segundo Elizabeth Badinter (1993 nanceira o abaliza para contratar as lições
apud Alizade, 2009, p. 188), “[...] a vi- particulares de amor para seu herdeiro.
rilidade não é algo concedido, deve ser Toma essa iniciativa em surdina, sem avi-
construída, fabricada”. sar a esposa dona Laura, sem considerar
Bleichmar (2006 apud Alizade, 2009) os pedidos de Fräulein para que explicite
fala que a masculinidade é pensada como a situação e sem dizer uma única palavra
um ponto de chegada, como algo a ser ao filho, que se vê enredado na sedução
conquistado na passagem de um pênis fá- encomendada pelo pai.
lico para um pênis como objeto de ligação. Fosse o pai um senhor de escravos, en-
Como se sabe, a construção de uma tregaria Carlos, o sinhozinho, à sedução de
identidade, seja de homem, seja de mulher, sua mucama. Fosse menos endinheirado,
é produção sintomática da neurose. O faria vista grossa para o assédio do filho
sintoma visa suplantar o furo estrutural, à empregada doméstica, essa que tantas
tenta produzir uma analogia, impossível, vezes iniciou sexualmente os filhos da
entre real e simbólico. casa em que serve. Fosse Carlos um jovem
Voltemos a Carlos, que teve sua ini- contemporâneo, teria assediado a moça
ciação sexual nos anos 1920. proletária de sua empresa ou escritório,
De acordo com o tempo e o grupo so- sob a benevolência cúmplice dos mais
cial, administra-se a forma como o jovem velhos, ou teria tentado aprender o sexo
inaugura e exerce a sua sexualidade. Den- pela internet, também esta uma forma de
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Amar, verbo intransitivo, idílio: a iniciação sexual de um jovem e o desejo de Fräulein

amar intransitivamente, segundo o modo mudanças corporais que o tempo acarreta


atual de se comportar. estão sempre a nos demandar provas de
Carlos, com as irmãs, especialmente nossa consistência identitária. Pode-se
a mais velha, próxima dele em idade, é passar a vida buscando encontrar o outro
sempre o machucador, aquele que se chega complementar, que, pelo amor, garantiria
a ela para um contato corporal mais pró- a identidade.
ximo, mas sempre disfarçado numa certa Segundo Poli (2007) alguns casais
brutalidade. “Mamãe, olha o Carlos”, é dão provas desse encontro e optam por se
a queixa constante da irmã. A conduta assegurar mutuamente até o fim de seus
agressiva de Carlos mascara o desejo in- dias. Culturalmente essa é a resposta esté-
cestuoso de um contato com ela. tica à falta de sentido da vida – castração
A princípio indiferente às enfadonhas simbólica – que mais apreciamos.
aulas de alemão, Carlos vai se interessando Terá Carlos conseguido chegar lá?
cada vez mais por aquela professora cálida
e acolhedora, até desejá-la de fato e sentir Do ponto de vista de Fräulein
a explosão de toda a força de sua vigorosa A Fräulein, de Mário de Andrade, acredita
sexualidade adolescente. O que saiu do no amor. Cultiva a fantasia de que ele não
roteiro traçado pelo pai foi o idílio (subtí- demora a chegar. Mais dois trabalhos ao
tulo do livro) que uniu Carlos e Fräulein. custo de oito contos de réis cada serão
Com isso ninguém contava. Fräulein é suficientes. Para isso ela trabalha. E como!
um objeto amoroso de Carlos, e Carlos Fräulein, ou melhor, Elza, simples
também o é para ela. O verbo amar passa assim, sem sobrenome, é uma alemã de
a não ser mais intransitivo. Tem, afinal, um trinta e cinco anos. Veio para o Brasil fu-
objeto. Transitivar-se foi a sua subversão. gida da devastação causada pela Primeira
Os dois amantes causam agora repúdio e Guerra Mundial. Imigrante, se estabelece
aversão ao senhor Sousa Costa (o pai). Ele na cidade de São Paulo, símbolo de prospe-
avisa Carlos de seu contrato com Fräulein, ridade da época, onde encontra a melhor
mas este, atônito, não quer acreditar que possibilidade de juntar dinheiro e voltar
ela fez o que fez por dinheiro. Carlos se ao seu país, local onde pretende consti-
sente amado e revive inconscientemente tuir um lar feliz. Moça bem apessoada,
com a professora o amor pela jovem mãe, professora de línguas e de piano, Elza não
que, afinal, se aproxima dele e o aninha tem dificuldade em encontrar trabalho
novamente em seus braços, para que se nas casas de famílias abastadas. Mas logo
esqueça de Fräulein. O primeiro objeto de descobre outra forma de mestria que lhe
amor volta à cena. Esse aconchego com trará rentabilidade financeira bem maior.
a mãe é agora permitido. Esse é, assim, Sua principal atividade passa a ser, então,
considerado como um mal menor, diante a de professora de iniciação sexual dos
do perigo da mulher estrangeira. jovens e ricos herdeiros da alta burguesia
Terão as lições de amor provido Carlos paulistana. Assim, Elza se torna Fräulein,
de uma identidade masculina que lhe per- colocando em suspensão o significante de
mitirá se encontrar no amor? Fräulein crê sua identidade, para resgatá-lo quando
que lhe deu a chave para se resolver bem, puder realizar o sonho acalentado de um
através de suas lições. Tanto que Carlos é ideal de amor, esperando por ela longe dali.
visto por ela, não sem certo sofrimento, A trajetória de Fräulein carece de deci-
com uma jovem namorada. fração para que se encontre um sentido, e
Sabemos que a identidade sexual é à psicanálise, neste momento, recorremos
frágil. As vicissitudes da vida como o ca- como imprescindível para que possamos
samento, a maternidade, a paternidade, as ir além da narrativa e do dito nesse idí-
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Eliana Rodrigues Pereira Mendes & Marisa Lima Rodrigues

lio. Fräulein não se contenta apenas em amor e evitar assim os muitos perigos,
ensinar sexo aos seus adolescentes. Ela é se ele fosse obrigado a aprender lá fora.
arrojada. Deseja ensinar também a lingua- Mas não estou aqui apenas como quem
gem do amor. E o amor pode ser ensinado? se vende, isso é uma vergonha! [...] Se
Fräulein acredita que sim. E sonha com infelizmente não sou nenhuma virgem,
o seu próprio amor, não encomendado. também não sou nenhuma perdida. [...]
Um amor sincero, sublime, sem loucuras. E o amor não é só o que o senhor Sousa
Enquanto ele não chega, inicia os jovens. Costa pensa. Vim ensinar o amor como
O desejo de um futuro feliz faz com deve ser. Isso é que pretendo, pretendia
que Fräulein suporte a dura realidade. Aqui ensinar para Carlos. O amor sincero,
ela tem de achar um jeito de lidar com a elevado, cheio de senso prático, sem
impossibilidade de realização desse desejo. loucuras. Hoje, minha senhora, isso está
Os senhores que contratam seus serviços se tornando uma necessidade desde que a
de preparadora sexual particular de seus filosofia invadiu o terreno do amor! Tudo
filhos querem apenas que eles se iniciem o que há de pessimismo pela sociedade
no sexo de maneira segura e higiênica, de agora! Estão se animalizando cada vez
evitando contatos com a promiscuidade mais. Pela influência de Schopenhauer,
e com possíveis aproveitadoras. Inexpe- de Nietzsche... embora sejam alemães.
rientes, esses jovens correm o risco de ser Amor puro, sincero, união inteligente de
explorados e manipulados por mulheres duas pessoas, compreensão mútua. E um
desqualificadas. Fräulein insiste em ser futuro de paz conseguido pela coragem de
reconhecida como professora de línguas aceitar o presente. [...] ... É isso que vim
e de piano, talvez por se ver submetida ao ensinar para seu filho, minha senhora!
poder masculino dominante, num mundo Criar um lar sagrado! Onde é que a gente
onde as esposas são poupadas e mantidas, encontra isso agora? (Andrade, [1927]
e as prostitutas são usadas e descartadas. 2013, p. 56).
Freud afirma ([1910] 1976, p. 151):
Na literatura é sabido que cada leitor
No amor normal o valor da mulher é atribui um sentido particular à obra, a
aferido por sua integridade sexual, e é re- partir de seu olhar único, sustentado pelos
duzido em vista de qualquer aproximação recursos internos de que dispõe.
com a característica de ser semelhante à O sentido encontrado no idílio de
prostituta. Mário de Andrade passa pela instigante
conduta da protagonista, uma vez que
Fräulein não quer ser considerada uma o autor, através dela, nos apresenta uma
dessas. Insiste em afirmar que exerce uma temática em que a linguagem se manifesta
profissão como outra qualquer. Não se pelo surgimento dos afetos. É na narrativa
sente interesseira, muito menos aprovei- psicológica dessa história de amor que
tadora. Simplesmente trabalha e faz jus podemos perceber a sensibilidade com
à grande quantia que recebe ao final de que se conjuga o verbo amar, mesmo que
cada empreitada. de maneira intransitiva, quase beirando
Assim se justifica perante dona Laura, o sublime.
a mãe de Carlos, quando é interpelada: No caso específico do filho do senhor
Sousa Costa, surge o inusitado, pois as
Estou no exercício de uma profissão. E lições de amor de Fräulein ultrapassam os
tão nobre quanto as outras. É certo que limites da cartilha impessoal e educativa,
o senhor Sousa Costa me tomou para passando a ser permeadas pelos sentimen-
que viesse ensinar a Carlos o que é o tos afetivos. Esse é o momento em que o
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Amar, verbo intransitivo, idílio: a iniciação sexual de um jovem e o desejo de Fräulein

leitor se encanta e é capturado pela obra, desenvolvimento possível: uma conduz


na medida em que cresce a densidade com à inibição sexual ou à neurose, outra à
que Fräulein se entrega de corpo e alma ao modificação do caráter no sentido de um
que acredita. E Fräulein acredita no amor. complexo de masculinidade, a terceira, fi-
Entretanto, sabe que o sentimento nalmente, à feminilidade normal (Freud,
que nutre pelo jovem aprendiz tem de ser [1933] 1976, p. 155).
transitório e que em breve terá de deixar
a mansão dos Sousa Costa. Ciente da dor Entretanto, esses três caminhos des-
que a separação causará nela e em seu critos por Freud não são libertadores para
pupilo, não recua em momento algum, as mulheres, pois nenhum deles oferece
fortalecida pelo sonho de que seu desejo a possibilidade de superar o complexo de
se realizará longe dali. castração e prescindir do falo.
Sobre a transitoriedade, Freud ([1916] Com Fräulein não é diferente. Para
1976, p. 346), também grande poeta, diz: exercer a mestria do sexo e do amor, ela
“Uma flor que dura apenas uma noite, nem não pode abrir mão de seu falo. Nesse
por isso nos parece menos bela”. âmbito, ela detém o poder e o saber. Sua
Cabe a nós poder contemplá-la, usu- porção masculina se sobrepõe à da mu-
fruir de sua beleza e nos encantarmos, lher que um dia pretende ser. Ela está no
mesmo cientes de sua evanescência. comando.
Depende de como suportamos a nossa A despedida dos amantes se dá com o
impermanência. O jovem Carlos, por sua desespero de Carlos e com a dor de Fräu-
vez, inicia sua relação com a professora lein em ter que fazer o corte necessário.
de modo indiferente, pouco interessado Mas é assim que deve ser. Com dignidade,
em aprender alemão, mas aos poucos vai ela o beija na testa e o entrega a dona
sendo envolvido pela atmosfera de sedu- Laura, sua mãe. Esta, protetora, acolhe o
ção, até se apaixonar perdidamente. Sa- desamparo do filho oferecendo o mundo
bemos que o amor de um jovem por uma em seus braços capazes de abrigar, naque-
mulher madura remete inevitavelmente le momento, toda a dor do filho amado,
às suas vivências edipianas, uma vez que agora tornado homem.
presentifica os sentimentos de ternura O epílogo do idílio é emocionante.
decorrentes de uma fixação infantil em Fräulein, já em novo trabalho, passeia de
sua mãe, escolhendo, na puberdade, um carro pelo corso de carnaval da Avenida
objeto substituto que se torna especial Paulista, na companhia de Luís, seu mais
por apresentar algumas características recente aluno. Depara-se com Carlos, em
maternas. outro carro, por sua vez acompanhado
Do passado de Fräulein nada sabemos. de uma rica e bonita moça. Carlos olha,
Entretanto, é Freud quem nos acende a envia-lhe uma educada saudação, num
luz, ao considerar a natureza da feminili- gesto rápido de cabeça. Depois continua
dade um enigma. Atribui às mulheres um a brincar como folião.
complexo de castração afirmando ainda Fräulein se doeu, mas logo se recompôs
que a inveja do pênis deixa nelas marcas no domínio de si mesma.
indeléveis.
Em Contribuições à psicologia do amor, E se venceu completamente com o racio-
sua escrita é bastante elucidativa: cínio, numa espécie de felicidade. Estava
certo assim. [...] O mundo é tal como é. A
A descoberta de que é castrada repre- gente tem de aceitar sem revolta. Carlos
senta um marco decisivo no crescimento casará rico. Perfeitamente (Andrade,
da menina. Daí partem três linhas de [1927] 2013, p. 148).

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Eliana Rodrigues Pereira Mendes & Marisa Lima Rodrigues

E agora, qual o futuro de Fräulein?


Mais dois trabalhos e poderá retornar à Referências
terra natal. Será a mulher de um só ho- ALIZADE, A. M. Cenários masculinos vulne-
mem. Alguém digno, paciente, estudioso. ráveis. Jornal de Psicanálise, São Paulo, v. 42, n.
Nariz longo, muito fino e bem traçado. 77, p. 187-205, dez. 2009. ISSN 0103-5835.
Branco como tem de ser. Óculos sem aro, Disponível em: pepsic.bvsalud.org/scielo.php?p
id=50103-58103-58352009000200013. Acesso
todo vestido de preto, alfinete de ouro
em: 13 mar. 2013.
na gravata. Ele lhe beijará a testa, pronto
para jantar e levá-la para ouvir a Pastoral. ANDRADE, M. Amar, verbo intransitivo, idílio
(1927). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.
Fräulein se tornará Fräu [senhora], mulher
FOUCAULT, M. História da sexualidade, v. 1. Rio
respeitada. É assim que sonha, pois sua de Janeiro: Graal, 1985.
felicidade está nesse ideal de completude.
Para resgatar Elza, Fräulein prescindirá de FREUD, S. Algumas consequências psíquicas
seu falo, mas diante da impossibilidade de da distinção anatômica dos sexos (1925). In:
______. O ego e o id e outros trabalhos (1923-1925).
se ver castrada, recorrerá ao homem ama-
Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio
do, homem destinado a lhe cobrir a falta. de Janeiro: Imago, 1976. p. 303-320. (Edição stan-
Será possível, enfim, conjugar o verbo dard brasileira das obras psicológicas completas de
amar de forma transitiva? Sigmund Freud, 19).
Fräulein acredita no amor. j
FREUD, S. Conferência XXXIII - Feminilidade
(1933 [1932]). In: ______. Novas conferências
introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos
TO LOVE, (1932-1936). Direção geral da tradução de Jayme
INTRANSITIVE VERB, IDYLL: Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 139-145.
THE SEXUAL INITIATION (Edição standard brasileira das obras completas de
Sigmund Freud, 22).
OF A YOUNG MAN
AND FRÄULEIN’S DESIRE FREUD, S. Sobre a transitoriedade (1916 [1915]).
In: ______. A história do movimento psicanalíti-
Abstract co: artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos
Psychoanalytic reading of the novel by Mário (1914-1916). Direção geral da tradução de Jayme
Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 345-150.
de Andrade To love, intransitive verb, idyll,
(Edição standard brasileira das obras psicológicas
deals with the sexual initiation of Carlos, a completas de Sigmund Freud, 14).
young man of the 1920s, made by the Ger-
man tutor Fräulein. Sexuality is seen as a FREUD, S. Um tipo especial de escolha de objeto
discursive production that involves the subject feita pelos homens (contribuições à psicologia do
amor I) (1910). In: ______. Cinco lições de psica-
and culture. Sexual initiation occurs accord-
nálise, Leonardo da Vinci e outros trabalhos (1910
ing to the social group and historical time and [1909]). Direção geral da tradução de Jayme Sa-
is always a reissue of the Oedipus complex. lomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 147-192.
In the romance, when they fall in love, the (Edição standard brasileira das obras psicológicas
couple subverts the expected order, which completas de Sigmund Freud, 11).
makes paternal interdiction explicit.
FREUD. S. Três ensaios sobre a teoria da sexuali-
dade (1905). In: ______. Um caso de histeria, três
Keywords: Sexual initiation, Adolescence, ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos
Masculinity, Femininity. (1901-1905). Direção geral da tradução de Jayme
Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 123-252.
(Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud, 7).

KLEIN, M. Inveja e gratidão (1957). In: ­­­­­______.


Inveja e gratidão, Rio de Janeiro: Imago, 1974.

Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p. 59 – 66 • jun. 2020 65


Amar, verbo intransitivo, idílio: a iniciação sexual de um jovem e o desejo de Fräulein

NASCIMENTO, E. F.; GOMES, R. Conversas Sobre as autoras


íntimas para fóruns privados (2007). Disponível
em: www.scielo.br/pdf/csc/v14n4/a11v14n4.pdf. Eliana Rodrigues Pereira Mendes
Acesso em: 13 mar. 2013. Especialista em psicologia clínica pela Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais.
POLI, M. C. Feminino/masculino, Rio de Janeiro, Titulada psicóloga clínica pelo Conselho
Zahar: 2007. Regional de Psicologia - Seção Minas Gerais.
Psicanalista do Círculo Psicanalítico de Minas
VANNUCCHI, A. Masculino e feminino: Gerais (CPMG).
vicissitudes e mistérios. Jornal de Psicanálise, Presidente do CPMG
São Paulo, v. 42, n. 77, dez. 2009. Dispo- nos períodos de 1999-2001 e 2011-2014.
nível em: pepsic,bvsalud.org.scielo.php? Vice-Presidente do CPMG
p i d = 5 0 1 0 3 - 5 8 1 0 3 - no período de 2017-2020.
58350090000200006.10/03/2020. Acesso em: 13 Leciona ‘Psicanálise e Cultura’ no Programa
mar. 2013. de Formação para Psicanalistas do CPMG,
desde 1990.
Recebido em: 10/03/2020 Integrante da Comissão
Aprovado em: 03/04/2020 de Publicação da revista Reverso do CPMG.
Delegada do Brasil na International Federation
of Psychoanalytic Societies (IFPS).
Editora regional para a América do Sul da
revista International Forum of Psychoanalysis
(IFP), desde 1998.
Tem artigos publicados em revistas e livros
no Brasil e já editou três números da revista
International Forum of Psychoanalysis como
editora convidada.

Marisa de Lima Rodrigues


Especializada em Psicologia Clínica pela
Faculdade de Ciências Humanas da
Universidade FUMEC.
Titulada psicóloga clínica pelo Conselho
Regional de Psicologia - seção Minas Gerais.
Psicanalista do Círculo Psicanalítico de Minas
Gerais (CPMG).
Coordenadora da Clínica de Psicanálise do
CPMG nos períodos de 2005-2007 e 2017-2020.
Fez parte da Diretoria no período de 2011-2014.

Endereço para correspondência

Eliana Rodrigues Pereira Mendes


E-mail: elianarpmendes@hotmail.com

Marisa de Lima Rodrigues


E-mail: mligues@yahoo.com.br

66 Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p. 59 – 66 • jun. 2020


Gabrielle Leite Rocha, Hugo Ribeiro Lanza & Sarug Dagir Ribeiro

Transfobia, masculinidades e violência


sob a ótica da psicanálise
Gabrielle Leite Rocha
Hugo Ribeiro Lanza
Sarug Dagir Ribeiro

Resumo
Pretendemos discutir a transfobia utilizando a teoria da sedução generalizada e a categoria de
códigos tradutivos de Jean Laplanche, bem como a noção de enquadramentos proposta por Ju-
dith Butler para entender as posturas violentas de homens contra mulheres transexuais. A partir
disso, discutiremos o papel do abalo narcísico das identidades masculinas como uma das possíveis
causas psicológicas das violências cometidas por homens cis contra mulheres trans e travestis.

Palavras-chave: Transfobia, Códigos tradutivos, Psicanálise, Abalo identitário.

Introdução Susana Muszkat (2006), pontuamos que


Entendemos que as violências transfóbicas os homens, ao se perceberem ameaçados
são multideterminadas, agregando reitera- pela percepção que têm das mulheres trans
das violações, de caráter físico e simbólico. e travestis, podem enxergar na passagem
Dessa forma, visamos abordar, pela psica- violenta ao ato uma alternativa para fazer
nálise, pontuações sobre os rudimentos cessar suas angústias e se reaproximar de
da transfobia. Neste trabalho contextua- um ideal masculino.
lizamos a transfobia no cenário brasileiro
enquanto um dispositivo de violência Sobre a transexualidade
genocida, que atua sobre a vida de pessoas e o transfeminicídio
trans e travestis, que, no enquadramento A população trans e travesti do Brasil é
proposto por Judith Butler (2015), não são sujeita a estigmas, preconceitos e mar-
vivíveis ou passíveis de luto. ginalização. A não conformidade com
Posteriormente, utilizando da Teoria a cis-heteronormatividade expõe tal
da Sedução Generalizada, proposta por população à exclusão social e diferentes
Jean Laplanche (2003; 2015), situamos a formas de violência e violação de direitos
violência transfóbica na origem alteritária fundamentais e constitucionais.
dos processos constitutivos do psiquis- Consideramos a cis-heteronorma-
mo. Para isso, analisamos a facilitação tividade como uma imposição social de
tradutiva proporcionada por códigos normas de gênero e sexualidade, ocasio-
tradutivos socialmente consolidados, que nando uma padronização das identidades
subjazem às masculinidades e à violência. de forma binária e biologizante, na qual
Sustentamos, então, que a violência é aqueles que fogem da cisgeneridade e da
uma manifestação subjetiva e expressiva heterossexualidade não são reconhecidos
utilizada por muitos homens quando têm (Sousa, 2018)
comprometida ou ameaçada a masculini- A transfobia é o dispositivo que pro-
dade ideal. Por fim, a partir dos estudos de duz os preconceitos, a exclusão estrutural,
Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p. 67 – 74 • jun. 2020 67
Transfobia, masculinidades e violência sob a ótica da psicanálise

a violação de direitos, os diversos tipos de Segundo Butler (2015), o que sen-


violência que atingem especificamente timos é condicionado pelo modo como
pessoas transgêneras, devido ao gênero interpretamos o mundo, ou seja, condi-
que performam (Jesus, 2014). cionado pelos enquadramentos postos e
Já o transfeminicídio, o entendemos, pelos dados. Assim, sentimos mais horror
a partir de Berenice Bento (2014, p. 1), e repulsa por violências cometidas contra
algumas vidas do que por outras: aqueles
[...] como uma política disseminada, cuja vida não importa, não geram como-
intencional e sistemática de eliminação ção pública ao serem violados.
da população trans no Brasil, motivada Em se tratando de sujeitos cujos cor-
pelo ódio e nojo. pos são inscritos à margem das normas de
gênero e sexualidade, é conferido às trans
É importante ressaltar que Jaque- e aos travestis um status de abjeção. Esse
line Gomes de Jesus (2014), a partir enquadramento denota, assim, vidas que
do elevado número de assassinatos podem ser destruídas, cuja perda não é
de transexuais no Brasil e do caráter lamentada, pois nunca foram vividas, ou
discriminatório da violência transfóbi- seja, nunca foram consideradas como uma
ca, considera que, para compreender vida (Butler, 2015).
o caráter estrutural da transfobia, é Dessa maneira, é instituído um ge-
preciso concebê-la como uma tenta- nocídio silencioso, que não perturba a
tiva de genocídio, além de conceber o percepção da violência, pois esses são
transfeminicídio na esfera interpessoal corpos que não importam. Consequen-
como um crime de ódio. temente, não há comoção pública ou
A tentativa sistemática de eliminação distúrbio na percepção da ordem social,
dos corpos trans e travestis ocorre em apenas manifestações isoladas de luto,
função da maneira como a sociedade os quando tanto.
identifica – ou não.
Em Quadros de guerra: quando a Alguns apontamentos
vida é passível de luto?, Butler (2015) psicanalíticos e a Teoria
trabalha com a ideia de que existem da Sedução Generalizada
enquadramentos epistemológicos que Optamos por utilizar a Teoria da Sedução
organizam as experiências sensoriais e Generalizada, proposta pelo psicanalista
ontológicas do sujeito, diferenciando vi- francês Jean Laplanche como modelo
das que são reconhecidas e apreendidas para problematizar o caráter subjetivo das
daquelas que não o são. A partir desses violências em sua relação com a masculi-
enquadramentos, existem vidas que são nidade, uma vez que essa teoria acentua
qualificadas como vivíveis e outras que o papel da alteridade na constituição
são qualificadas como não vivíveis, além subjetiva.
de corpos passíveis de luto e corpos não
passíveis de luto. [...] resposta que, certamente subjetiva,
Segundo a autora, adota linguagens culturalmente estabe-
lecidas na tentativa de traduzir enigmas
A capacidade epistemológica de apreen- associáveis ao inconsciente sexual, infan-
der uma vida é parcialmente dependente til e recalcado (Andrade, 2011, p. 46).
de que essa vida seja produzida de acordo
com normas que caracterizam como uma Conforme a teoria laplancheana, está
vida ou, melhor dizendo, como parte da situado na “situação antropológica funda-
vida (Butler, 2015, p. 16). mental” o encontro assimétrico entre o
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Gabrielle Leite Rocha, Hugo Ribeiro Lanza & Sarug Dagir Ribeiro

adulto, dotado de seu inconsciente, sexual passa a operar como um corpo estrangeiro
e recalcado, e a criança (infans), passiva e interno e a atacar o ego (Bacelete; Ribei-
desprovida de um inconsciente. ro, 2016).
Nesse cenário, o adulto, ao cuidar Segundo Laplanche (2015), as prin-
da criança, transmite a ela mensagens cipais mensagens desse tipo são as men-
que são enigmáticas, tanto para ele, que sagens de designação de gênero, que
desconhece que as transmite, quanto consistem em
para o bebê, vulnerável às mensagens,
uma vez que ainda não dispõe de recursos [...] um conjunto complexo de atos que
simbólicos e narcísicos para integrá-las se prolongam na linguagem e nos com-
(Belo, 2004). portamentos significativos do entorno.
Todavia, o encontro com a criança Poder-se falar de uma designação contí-
suscita nos pais algo do sexual infantil, nua ou de uma prescrição (Laplanche,
que é anárquico, polimorfo, perverso e, 2015, p. 123).
portanto, tal qual um ruído, o inconsciente
do adulto se infiltra nas mensagens pré- A criança, nesse processo, ocupa tam-
-conscientes-conscientes, interferindo bém uma posição passiva, ou seja, passa
e comprometendo o que é transmitido por um processo de identificação no qual
(Laplanche, 2015). é identificada pelo adulto como perten-
Portanto, a veiculação da sexualidade cente a um gênero. Esse giro em direção à
no corpo e no psiquismo infantil é necessa- primazia da alteridade é fundamental para
riamente traumática, uma vez que resulta a compreensão dos códigos propostos pela
de um encontro desigual entre um adulto cultura, como aqueles relativos à perfor-
e uma criança em situação de extrema mance de um dado gênero, pois
passividade em relação ao mundo externo
(Bacelete; Ribeiro, 2016). [...] nos primórdios da vida psíquica, o
Enquanto trauma, a mensagem enig- verbo identificar não pode ser usado na
mática endereçada ao infante se consolida voz reflexiva eu me identifico, mas antes
em dois tempos, na voz passiva eu sou identificado: são
os adultos com os quais a criança con-
[...] no primeiro tempo a mensagem é vive que designam e definem seu gênero
simplesmente inscrita, ou implantada, (Lattanzio, 2011, p. 64).
sem ser compreendida (Laplanche, 2003,
p. 407). Os códigos tradutivos
e as normas de gênero
Em um segundo momento, essa men- Em seus esforços de tradução das men-
sagem sagens emitidas de adultos, a criança
encontra apoio nos códigos que estão
[...] é revivificada do interior. Ela age disponíveis para ela na cultura, o que La-
como um corpo estranho interno que é planche (2003, apudFerreira, 2012, p. 3)
preciso a todo preço integrar, controlar define como universo do mito simbólico.
(Laplanche, 2003, p. 95). Esses códigos configuram para a criança
uma ajuda para a tradução da tarefa de
Ou seja, da operação inevitavelmente conter, de simbolizar as mensagens do
falha de tradução, sobram ‘restos’, exci- adulto.
tações não traduzidas e não ligadas pelo Tomando esse caminho predefini-
ego incipiente da criança, que compõem o do pela cultura, o Eu e o narcisismo da
objeto-fonte da pulsão (Belo, 2004), que criança são:
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Transfobia, masculinidades e violência sob a ótica da psicanálise

[...] formados a partir da erotização foi recalcado pelo agressor em sua vida.
originária inconsciente e dos códigos Ressaltamos a ligação entre a conduta
de tradução que lhe advêm do adulto, violenta e o interesse do Eu em obter se-
algo a que a criança se apega em face gurança total em relação aos ataques de
de seu desamparo perante o pulsional. seu inconsciente, projetados sobre a figura
Isso gera o apego apaixonado às normas, do objeto externo:
à sujeição, aos códigos que orientam as
traduções constitutivas do sujeito, que A violência é, por definição, como bem
permitem seu aparecimento (Lima; Belo, aponta Laplanche (1994), um fenômeno
2018, p. 10). estritamente humano, já que potencial-
mente carregado de significados de natu-
Os códigos tradutivos são impreg- reza sexual: “ela está ligada às fantasias
nados pela sexualidade inconsciente dos sexuais que habitam nosso inconsciente
adultos, uma vez que, no encontro com [...]”. Luís Maia (1991, 1993), na esteira
a criança, os adultos têm a própria sexu- de Laplanche, desenvolveu a tese de que,
alidade infantil reativada (Laplanche, na violência, o traço sexual tem uma
2015). conformação que, além de sádica, pode
O processo em questão é, portanto, ser também (senão primariamente) nar-
císica: o desejo de autonomia em relação
[...] sujeito a diversas vicissitudes, impon- à alteridade, o desejo de autossuficiência
do à criança um trabalho de simbolização está na raiz da violência, a qual nega a
do excesso que lhe chega (Lattanzio, dependência em relação aos outros que
2011, p. 64-65). são submetidos ou destruídos (Andrade,
2011, p. 47).
A codificação do gênero geralmente
segue a cis-heteronormatividade, gerando Fundamentalmente, a violência pode
dois polos: masculino-feminino, relacio- ser mais compreendida em sua relação
nados à noção de atividade-passividade e com o sexual implantado pela alteridade,
correlatos à lógica de simbolização (Lima; pois:
Bedê; Belo, 2017).
Se observarmos as condutas violentas [...] essa concepção nos faz pensar que o
e transfóbicas dentro desse paradigma, desamparo original que experimentamos
podemos localizar a dimensão defensiva pode nos levar a participar de práticas
de tais posturas. Frente aos enigmas da de crueldade (Bacelete, Ribeiro, 2016,
alteridade e aos ataques internos ao Eu, o p. 95).
homem, em postura ativa, pode recorrer
à violência, E a passagem ao ato do agressor frente
à vítima pode ser apreendida como uma
[...] entendida aqui como todo ato em solução precária e cruel, que toma para
que haja o intencional abuso de força para si a atividade frente às ameaças de, por
subjugar, humilhar ou mesmo eliminar algum motivo, se situar no polo oposto,
outra(s) pessoa(s) na relação de poder o da passividade, o que o faria tencionar
estabelecida socialmente (A ndrade , a própria identidade, se aproximar de seu
2011, p. 47). desamparo originário, sua passividade ra-
dical. A angústia experimentada é relativa
O desejo pulsante de clamar para si ao que lhe é estranho, o outro. Embora
o poder da atividade e fazer o outro se projetados na vítima, os ataques sentidos
submeter, aparece no retorno daquilo que pelo Eu advêm do que lhe é interno, do
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Gabrielle Leite Rocha, Hugo Ribeiro Lanza & Sarug Dagir Ribeiro

pulsional implantado pelo outro na situa- estruturais, ou seja, constituem o tecido


ção antropológica fundamental. social e pautam todas as relações sociais,
e o patriarcado, portanto.
Sobre as masculinidades e a violência A produção de práticas discursivas
As relações de gênero são trocas simbóli- pelos homens, a partir das masculinidades,
cas, nas quais há preponderância mascu- implica uma negação de tudo aquilo que
lina sobre o feminino, configurando uma se afasta da postura hegemônica mascu-
dominação masculina nas relações de lina reiterada pela cultura e aproxima as
gênero, sendo o homem detentor de poder masculinidades subalternas das feminilida-
simbólico. Podemos, então, entender a des. A violência é muitas vezes utilizada,
masculinidade como uma produção prá- pelos homens, como uma manifestação
tica de símbolos e discursos em torno da subjetiva.
posição dos homens nas relações (Connel;
Messerschmidt, 2013). Sendo assim, o sentido da violência de
As masculinidades são pautadas por gênero praticada pelo homem é a reafir-
ações reais e concretas, com um sentido mação de sua preponderância na socie-
definido, dentro dos mais diversos âmbitos dade: demarcando sua dominação sobre
da sociedade e suas instituições, como a as mulheres, sua superioridade diante
família, a igreja, o trabalho, a escola, entre de outros homens e reafirmação de sua
outros. Por ser um construto social, estão virilidade (Silva, 2014, p. 2811).
inscritas em contextos específicos: são pro-
duzidas a partir de um contexto histórico, Abalo narcísico
cultural e social, fazendo sentido em tem- Resultante do conflito violento entre a
pos e espaços geográficos determinados. passividade e a atividade, e a revivescência
Os estudos sobre as masculinidades do traumatismo da veiculação do sexual
comumente demonstram a existência de adulto, podemos situar no campo de defe-
diversas hierarquias masculinas, que são sas do Eu uma insurgência contra o abalo
pautadas por marcadores como classe, narcísico sofrido pelo homem frente aos
raça e sexualidade, considerando que as corpos trans e travestis.
masculinidades permeiam múltiplas rela- Em seu trabalho com homens autores
ções de poder. de violência doméstica, a psicanalista Su-
A partir de nossa leitura de Connel sana Muszkat (2006) identificou que eles
e Masserschmidt (2013) e Silva (2014), recorriam à violência, pois sentiam um
entendemos a masculinidade hegemô- abalo narcísico de sua identidade mascu-
nica como aquela que pauta uma forma lina, considerando que a masculinidade
normativa de exercer os papéis do gênero hegemônica permite papéis de gênero
masculino, no topo das hierarquias do pouco flexíveis. Quando esses homens
gênero, subordinando não somente as exercem papéis que não condizem com
feminilidades, mas também as masculini- o padrão de masculinidade – ou seja, há
dades subalternas. uma contradição entre um ideal de ho-
A relação entre violência e a forma- mem, marido, provedor e/ou pai e o real
ção da subjetividade masculina tem sido experienciado –, eles têm abaladas sua
apontada desde o início dos estudos das identidade e a própria noção de existência
masculinidades. As assimetrias das rela- enquanto homens. Há, portanto, o que a
ções de gênero configuram narrativas em autora denomina por abalo identitário.
que a submissão da mulher e as domina- Homens que não mais se viam como
ções masculinas correspondem à dinâmica provedores financeiros da família ou cujas
de poder pleiteada. Essas relações são companheiras não correspondiam ao
Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p. 67 – 74 • jun. 2020 71
Transfobia, masculinidades e violência sob a ótica da psicanálise

padrão de feminilidade que idealizavam, das e nem naturais: são artificiais. A partir
são exemplos de homens que Muszkat da cis-heteronormatividade, é produzido
(2006) identificou sofrerem desse abalo sobre os corpos um discurso que entende
identitário, que ameaça a integridade do que há uma relação natural entre sexo e
Eu desses sujeitos. A partir da necessida- gênero, legitimando a existência de dois
de de autopreservação, o homem pode gêneros: homem e mulher. Essa produção
recorrer à violência, fundamentada como discursiva binariza os dois gêneros, sinali-
comportamento legítimo dentro do esque- zando a existência de diferenças inatas e
ma narrativo das masculinidades, como antagônicas entre ser homem e ser mulher,
ferramenta de defesa. hierarquizando-as (Bento; Pelucio, 2012,
Em Silva (2014) a violência de gênero p. 575).
cometida por homens pode ser entendida Entretanto, esse discurso é produzi-
como uma resposta imediata, ou algum do, já que o binarismo de gênero é uma
tipo de lição, a um outro que põe em construção histórica. Assim, é possível
questão sua autoridade masculina ou entender que tais práticas discursivas em
incita um prejuízo à sua masculinidade. torno do gênero são artificiais e existem
Assim, há sentimentos de humilhação e “[...] múltiplas possibilidades de experiên-
ofensa quando homens se veem distantes cias e práticas de gênero” (Bento; Pelucio,
do ideal de masculinidade, quando têm 2012, p. 576).
seu ideal do Eu abalado. Portanto, a vio- A partir do conceito de abalo identi-
lência de gênero praticada é uma tentativa tário, entendemos que, frente a corpos que
de preservar esse ideal abalado e afirmar rompem com a cis-heteronormatividade
uma identidade pautada na masculinidade com experiências dissidentes de gênero,
hegemônica. possíveis agressores têm seu Eu compro-
metido. Esse comprometimento pode se
Deste prisma, o ato violento praticado, dar a partir da exposição de que a relação
tem como finalidade principal a preserva- entre gênero e sexo não é natural e que
ção narcísica do ego, sendo a destruição o gênero é uma artificialidade. Portanto,
do outro consequência e não o objetivo o próprio gênero de um agressor não é
que leva ao ato (Muszkat, 2006, p. 171). natural, é também um construto, uma
produção discursiva, de tal modo que é
Dito isso, é possível pensar a violên- passível de desconstrução e modificação.
cia transfóbica como sendo operada por
semelhantes mecanismos de defesa de um Conclusão
Eu comprometido nesses homens. Como o Em suma, devido à carência na literatura
transfeminicídio é a máxima da violência acadêmica, sobretudo psicanalítica, sobre
transfóbica, é possível considerar que o a transfobia e o transfeminicídio, os apon-
agressor possui um forte abalo identitário, tamentos e as hipóteses por nós levantadas
um grande afastamento da experiência carecem de estudos mais aprofundados.
real de sua masculinidade de seu ideal do Os processos intrapsíquicos relacionados
Eu. Diante de corpos cujas experiências ao ato transfóbico são múltiplos, de modo
são discordantes da cis-heteronormativi- que é possível estabelecer diversas relações
dade, existem sujeitos que entendem que e explicações, não só para a existência,
a própria identidade enquanto cisgêneros mas também para a manutenção dessa
e heterossexuais está comprometida. violência.
Além disso, as experiências diversas A partir dos estudos de Muszkat
de gênero e sexualidade evidenciam que as (2006), entendemos que os tensionamen-
identidades rígidas e binárias não são da- tos entre o Eu e as masculinidades são
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Gabrielle Leite Rocha, Hugo Ribeiro Lanza & Sarug Dagir Ribeiro

pontos fundamentais para a compreensão


desse fenômeno. Referências
É a ausência de flexibilidade das
normas sexuais que incita a violência ANDRADE, F. C. B. Horror, resposta e responsa-
bilidade: violência na escola. Anais do III Congresso
transfóbica. Butler (2015) entende que
Nacional de Psicanálise, Direito e Literatura: Respon-
as vidas que representam uma ameaça à sabilidade e Resposta, Nova Lima p. 44-53, 2011.
própria vida, ou ao próprio Eu são vidas
que não incitam comoção. BACELETE, L.; RIBEIRO, P. C. Violência e sexua-
Por fim, se o gênero e a sexualidade lidade: uma reflexão a partir da teoria psicanalítica.
Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte, n. 45, p.
experienciadas de modo dissidente pela
87-100, 2016. Publicação semestral do Círculo
população trans e travestis configuram Brasileiro de Psicanálise.
uma ameaça à integridade do Eu de um
sujeito transfóbico, essas vidas são con- BELO, F. Os efeitos da violência na constituição
sideradas como não passíveis de luto e, do sujeito psíquico. Psyche (São Paulo), São Paulo,
v. 8, n. 14, p. 77-94, dez. 2004.
portanto, passíveis de destruição. A vio-
lência é aplicada, com legitimação social, BENTO, B. Brasil: país do transfeminicídio. Centro
de modo seletivo. j Latino-americano em sexualidade e direitos humanos
(CLAM), 2014.

BENTO, B.; PELUCIO, L. Despatologização do


TRANSPHOBIA,
gênero: a politização das identidades abjetas. Rev.
MASCULINITIES AND VIOLENCE Estud. Fem., Florianópolis, v. 20, n. 2, p. 559-568,
FROM THE PERSPECTIVE Aug. 2012.
OF PSYCHOANALYSIS
BUTLER, J. Quadros de guerra: quando a vida é
passível de luto? 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Abstract
Brasileira, 2015.
We intend to discuss transphobia using the
theory of generalized seduction and Jean CONNELL, R. W.; MESSERSCHMIDT, J. W.
Laplanche’s category of translational codes, Masculinidade hegemônica: repensando o con-
as well as the notion of frameworks proposed ceito. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 21, n. 1,
p. 241-282, Apr. 2013.
by Judith Butler to understand the violent
stances of men against transsexual women. JESUS, J. G. Transfobia e crimes de ódio: Assas-
Besides, we will discuss the role of narcis- sinatos de pessoas transgênero como genocídio.
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LAPLANCHE, J. O gênero, o sexo e o sexual. In
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LIMA, V. M.; BEDÊ, H. M.; BELO, F. R. R. Sexu-


alidade e violência no funk: dominação masculina,

Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p. 67 – 74 • jun. 2020 73


Transfobia, masculinidades e violência sob a ótica da psicanálise

psicanálise e adolescência. Revista Percurso (Onli-


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LIMA, V. M.; BELO, F. R. R. Gênero, sexualida-


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SOUSA, V. P. Desconstruindo a cis-heterossexuali-


dade uma perspectiva decolonial. ARTEFACTUM
- Revista de Estudos em Linguagens e Tecnologia, v.
16, n. 1, 2018. Publicação da Universidade Federal
do Rio de Janeiro.

Recebido em: 20/02/2020


Aprovado em: 03/04/2020

Sobre os autores

Gabrielle Leite Rocha


Graduanda em Psicologia
pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Hugo Ribeiro Lanza


Graduando em Psicologia
pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Sarug Dagir Ribeiro


Psicóloga Clínica.
Psicanalista.
Doutora em Psicologia
pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Mestra em Teoria da Literatura - Pós-Lit/UFMG.

Endereço para correspondência

Gabrielle Leite Rocha


E-mail: gabrielleleiterocha@gmail.com

Hugo Ribeiro Lanza


E-mail: hugo.rlanza@gmail.com

Sarug Dagir Ribeiro


E-mail: sdagir@gmail.com

74 Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p. 67 – 74 • jun. 2020


Otacílio José Ribeiro

Uma lei incompreendida:


o dilema ético e moral de Heloise1
Otacílio José Ribeiro

Resumo
Este texto mostra aspectos metapsicológicos de Heloise, protagonista feminina do filme Em nome
de Deus. A produção cinematográfica retrata o dilema ético e moral da personagem que não se
resigna diante da sociedade moralista e conservadora do século XII. Por ser incompreendida, ela
vive o conflito com a lei. O problema ético observado está centrado no “abrir mão de seu desejo”,
provocando sintomas em Heloise (Lacan, [1959-1960] 1997), p. 382). É necessário construir um
novo tipo de engajamento, buscando na história indícios de sinthoma. Quais as possibilidades para
que uma nova Heloise possa se haver com sua instância superegoica a partir de seu Id, tornando
possível desabrochar novamente o seu Ego? Nesse viés, o sentido deste texto é abrir a discussão
sobre a contribuição do saber psicanalítico no erigir de uma ética para a sociedade contemporânea
que possa contribuir para a criação de valores éticos que levem em conta o desejo dos sujeitos.

Palavras-chave: Ética, Moral, Desejo, Superego, Amor.

Introdução Para ele, tudo vinha de Deus. Tudo era di-


Causado pela referência a Abelardo feita vino. Heloise entra na vida de Abelardo
por Lacan no Seminário 7: a ética da psi- altercando, levantando questões sociais e
canálise ([1959-1960] 1997, p. 383), mais políticas, irritando-se com a exploração
precisamente em Os paradoxos da ética, do outro, do pobre, do excluído.
buscou-se a história do filósofo medieval Em um debate religioso entre os pro-
do século XII a partir do filme Em nome tagonistas sobre o Velho Testamento e o
de Deus. A narrativa cinematográfica Novo Testamento, a jovem mulher apre-
apresenta o drama amoroso vivido com senta exemplos de contradições na lei
Heloise, discípula, companheira e amante e contrapõe o Deus vingativo e o Deus
de Abelardo, numa história que perpassa amoroso. Ela procura a verdade e ques-
vida religiosa e os exercícios de filosofia. tiona os fatos. E vê em Deus a felicida-
Recortam-se neste texto aspectos da de independentemente dos meios. No
posição subjetiva de Heloise, tomando contraponto, o professor incorpora o pa-
vinhetas do filme. Sabe-se da existência de radigma típico da Idade Média com um
correspondências trocadas entre a mulher Deus Todo-Poderoso, tirânico, único e
e seu amado; porém, procura-se ater aqui salvador.
ao conteúdo da produção cinematográfica. A partir de discussões acaloradas,
Trata-se da história de um amor in- nascem o respeito, a admiração, o amor
terditado, proibido. Abelardo havia feito e o sofrimento entre ambos. A religião
voto solene e ideal com Deus, que lhe e a tradição os impedem de ficar juntos.
dera o dom de ensinar filosofia e teologia. Abelardo deveria ser solteiro para realizar

1. Texto apresentado na XXXVI Jornada de Psicanálise do CPMG. Belo Horizonte, 27-28 set. 2019. Agradeço ao
Grupo de Estudos e de Produção (2019) do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, coordenado por Messias Eustáquio
Chaves.

Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p. 75 – 80 • jun. 2020 75


Uma lei incompreendida: o dilema ético e moral de Heloise

e legitimar seu trabalho de professor. E também filósofa vive seu dilema ético e
Heloise só poderia se casar com alguém moral dentro de um sistema déspota e
que a sua família escolhesse. algoz da lei vigente que ela não compre-
Qual era a concepção de amor que ende e interroga, procurando romper com
havia entre o casal? Para Abelardo, o amor normas, costumes e regras estabelecidas.
se tratava de prazeres e desejos; era algo Pode-se perceber na sua história o ideal de
errado e condenado por Deus. Em Heloise quebra da moral do propósito,4 da recipro-
o amor era ampliado e não considerava a cidade e do contrato, numa perspectiva de
repercussão dos fatos ou o juízo dos ou- desconstrução.
tros; o sexo acontecia entre pessoas que Um olhar contemporâneo para a Ida-
se amavam. de Média permite ver a mulher num viés
As duas concepções coexistiam dentro desconstrucionista, aquilo que Jacques
de uma sociedade conservadora, em que o Derrida aponta como aporia do tempo
sexo deveria acontecer na constância do e da lei.5 Ou seja, pode-se ver Heloise
casamento. A sexualidade era reprimida travestida de Eva (mulher pecadora) em
no século XII; a virgindade, o celibato e a contraponto à idealizada Virgem Maria
castidade eram regidos por normas rigo- (mulher santa) que a sociedade medieval
rosas que deveriam ser vividas por todos impunha como modelo.
os cristãos. O paradoxo entre os dois não Generalizando, o conflito externo e
os impedia de estar juntos, persistentes e interno de Heloise reverbera nos processos
fiéis. Eles se encantaram um pelo outro e se de significação e constituição dos sujeitos
apaixonaram por suas características pes- e nas suas interações simbólicas daquele
soais; encararam as dificuldades e lutaram contexto histórico até os dias de hoje.
cada qual a seu modo pelo amor proibido. Num processo neurótico, lei e desejo se
A mentalidade obsessiva da época opõem e duelam, caracterizando um so-
dominava a vida das pessoas com o rigo- frimento psíquico singular que questiona
rismo moral. Os protagonistas transgre- a ética e a moral vigente.
diram a lei, e a punição de Abelardo foi a O que a psicanálise tem a ver com o
castração. Por conveniência de ambas as Isso ou com o Id? O sofrimento da prota-
partes, num gesto de renúncia ao desejo, gonista é extremamente atual, na medida
Abelardo e Heloise se afastam, tornando- em que não é tratado aqui como um fato
-se monge e freira, carregando a dor e a histórico, mas um mal-estar que assola a
culpa de seus atos.

Um olhar psicanalítico 4. Moral do propósito: Para Abelardo, o filósofo, o agir


A pessoa é para o que nasce.2 Heloise3 ético é regulado por uma lei, no caso, a Lei de Deus.
carrega no nome a marca da saúde, da O pensamento é livre, mas não o é a sua expressão.
Ou seja, o problema ético está centrado no obedecer
coragem e da bravura. Ela se apresenta aos próprios desejos e não atender à lei divina (Reale;
combatente e guerreira, à frente de seu Antiseri, 1990; Le Goff, 2003).
tempo, dividida entre a lei e o desejo. A 5. Desconstrução e aporia: Conceitos do filósofo con-
temporâneo Jacques Derrida imbricados na percepção
de mundo que baseia o paradigma da complexidade.
A desconstrução aponta para novas possibilidades e
articulações, contrapondo-se ao niilismo, salvo melhor
2. Referência ao filme A pessoa é para o que nasce. Docu- juízo. Aporia faz referência à dificuldade ou dúvida ra-
mentário de Roberto Berliner. 6 min. Subgênero: Drama. cional decorrente da impossibilidade objetiva de obter
Brasil, Rio de Janeiro: 1998. Disponível em: <http:// resposta ou conclusão para determinada indagação
portacurtas.org.br/filme/?name=a_pessoa_e_para_o_ filosófica. Bauman (2004) busca esclarecer, registrar e
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Otacílio José Ribeiro

subjetividade. Lacan ([1959-1960] 1997) Mas a felicidade, se existe, é da ordem


propõe pensar a psicanálise a partir da da incompletude, do não-todo. No meio
ética, introduzindo o sujeito na ordem do do caminho havia a lei moral e o celibato.
desejo, num processo pelo qual o indivíduo Havia Abelardo, suas concepções, seus
se apropria da experiência vivida. embates teológicos e suas contradições.
Com espaço para uma operação O homem pensava nos prazeres da carne.
analítica significativa, abrem-se possibi- Uma carne que cheirava a incenso e igreja.
lidades para que uma nova Heloise possa Casaram-se em segredo, para não manchar
se haver com sua instância superegoica o prestígio de Abelardo.
a partir do Id, e o Ego possa desabrochar Um professor casado, amarrado ou
novamente. consorciado não tinha a legitimidade de
Nesse viés, o sentido deste texto é um solteiro, de quem se esperava a dedi-
abrir a discussão sobre a contribuição do cação exclusiva ao conhecimento privile-
saber psicanalítico no erigir de uma ética giado pela igreja. Surgem a castração real
para a sociedade contemporânea que possa e a separação. O casal é separado: ele se
contribuir para a criação de valores éticos refugia em um mosteiro e faz com que ela
que levem em conta o desejo dos sujeitos. se retire em outro. Distanciam-se como
Há que entender aqui ética enquanto monge e freira. Ele propõe a aceitação;
princípio do respeito à origem ontogené- ela, a resistência. Ela procura a coerên-
tica do ser humano, em sua essência mais cia de seus ideais; dentro de si pulsa um
intrínseca, ou seja: (1) enquanto forma fogo ardente, incompatível com o exer-
de conhecimento das necessidades e dos cício de sua liberdade, de ser reduzida à
desejos dos indivíduos; (2) enquanto ficção de esposa de Cristo. Dificuldade,
orientação racional da ação (através da impasse, paradoxo, dúvida e incerteza
vontade) a partir do conhecimento racio- convivem com a contradição. A mulher
nal dessas necessidades. vive o estranhamento e questiona, quer
Em síntese, conforme Henrique Vaz saber de si, reivindica o que não tem.
(1997), a ação do indivíduo aponta não Contestadora, ela quer que o amante a
apenas para o passional humano (o sentir, deseje e reclama. Aparece o sintoma de
epitymia) como também para a condição como lidar com a falta-a-ser dentro de
intelectual de escolha (o racional, boyle- uma estrutura social e religiosa rígida.
sis), vetores para o autoconhecimento, a Ela permanece na insatisfação histérica.
autonomia e a liberdade. Seu desejo passa pelo desejo de Abelardo,
o Outro.
Discussão Heloise se opõe à penitência humil-
Uma cena do filme merece registro: pe- de de Abelardo, castrado e resignado. O
ríodo natalino, o beijo como imperativo conflito da então freira persiste diante da
da tradição, praticamente lei, mas, mais renúncia do amado. Ela manifesta para
do que isso, talvez a sagração do amor ele o quanto sua conduta de mosteiro era
entre Heloise e Abelardo: “Somos um, incoerente com a sua vivência interior: um
para sempre”, ela diz. Na sequência, amor massacrado, mas de uma fidelidade
apresenta-se uma revoada de pombas. “A inabalável.
pena da pomba significa amor; quero uma. Vem de Winter (2001, p. 12) a ques-
Será minha relíquia sagrada”. “Proclamo tão:
este dia como um dia sagrado, pois nunca
poderei ser mais feliz do que sou”. A fala Como é possível, hoje mais do que ontem,
da mulher sugere votos de núpcias e amor continuar a ignorar que não estamos ali
eterno. onde agimos, que não estamos ali onde

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Uma lei incompreendida: o dilema ético e moral de Heloise

pensamos, que ali onde estamos não culpa entra em cena, na medida em que
pensamos? o sujeito cedeu de seu desejo, conforme
ensina Lacan ([1959-1960] 1997, p. 382).
O conflito interno é obnubilado pela
azáfama do trabalho no mosteiro, numa Finalizando...
tentativa, quiçá, de sublimar o propósito O que pode o conflito edípico vivido por
originalmente sexual por algum outro, diz Heloise ensinar para a contemporaneida-
Freud ([1908], 1994) no seu texto Moral de? O que a psicanálise tem a ver com isso?
sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna. Para alçar lugares como sujeitos capazes
Mendes (2011, p. 56) vem dizer da de enfrentar os novos desafios, as ‘novas
necessidade de contato com as pulsões Heloises’ precisam construir um novo
perigosas e destrutivas para o ego. tipo de engajamento, buscando em sua
história indícios de produção de sinthoma,
A sublimação não livra do sofrimento observando uma organização subjetiva não
humano [...] a maior ou menor distância mais pautada pela matriz edípica (Lacan,
dessas fontes pulsionais é que vai trazer [1975-1976], 2007).6
ou não o equilíbrio psíquico para o sujeito. Nessa perspectiva, em que a Lei do
Pai não é mais a fundadora, importam
Heloise fica na balança. A operação as manifestações escritas em si e não as
simbólica de desmontagem da pulsão deixa razões que as motivaram. Quando o Ego
resto, um a causa de desejo, um mais de não consegue dominar seu complexo
gozar (Lacan, [1957-1958] 1998). A pro- investimento de energia, que vem do Id,
tagonista está sempre requerendo, sempre ele volta a operar na formação reativa
buscando, sempre buscando mais. Nesse do ideal do Ego. A profusa comunicação
imbróglio seu Superego transita rígido, entre esse ideal e as pulsões inconscientes
impondo-lhe um autocastigo ligado ao resolve o enigma de o ideal mesmo poder
universo de falta. A inconstância afetiva ficar grande parte inconsciente ao Ego.
perdura: a mulher vive uma lei insensata, Voltemos à heroína. Em seu leito de
desprovida de sentido e incompreendida morte, Heloise toma suas últimas forças e
que estabelece um mal-estar dentro de si. quebra o crucifixo, relicário de seu amor.
Da leitura de Ambertín (2009, p. Recupera seu amor sacramentado no ob-
107), pode-se inferir de Heloise um Su- jeto ‘pena’. Aquela pena de pomba na qual
perego situado entre duas instâncias: a um dia depositara seu amor, tratando-a
primeira como herdeira do Édipo, da inter- como relíquia sagrada, carregando-a até o
dição, da norma; a segunda, ligada ao Id, fim de sua vida envelopada no crucifixo.
aquela que autoritariamente está sempre Um amor crucificado. Agora, já no dealbar
mandando que o desejo seja atendido. O da morte, ela rompe com o crucifixo e
Superego, aqui, é um resíduo das primeiras toma para si apenas o amor, a essência do
escolhas objetais do Id e se forma como
uma enérgica formação reativa ao Id.
No primeiro caso, na relação com a 6. “Da solução do sintoma ao sinthoma como solução”:
lei, quanto mais forte foi o complexo de O sintoma é o mal do qual o sujeito quer se livrar, como
Édipo, tanto mais rapidamente ocorreu o consequência do encontro com a castração. O sintoma
carrega em si o conflito gerado pela necessidade de
seu recalque; o Superego terá o domínio satisfação da libido e as proibições internas e externas.
sobre o Ego como consciência moral. E Contudo, sempre há um resto não realizável; portanto,
na oposição de forças entre Superego e temos que viver com ele. Por mais longe que o sujeito
leve sua análise, por mais que se reduza o gozo, restará
Id, quanto maior for o rigor da lei, mais o sinthoma como modo de gozo (Santiago, 2015, p.
enfraquecido o Ego se apresentará. E a 163, 168).

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Otacílio José Ribeiro

crucifixo, a pena do amor que lhe trouxe AN UNPRECISED LAW:


dor. Para sempre Heloise fica na esperança THE ETHICAL AND MORAL
de estar novamente na cama de Abelardo. DILEMMA OF HELOISE
É o fim. É o começo. Ao rechaçar o
crucifixo na parede talvez Heloise tenha Abstract
se deparado com o seu dilema ético e The text discusses metapsychological aspects
moral dentro de uma lei incompreendida, of Heloise, female protagonist of the film In
vivendo a culpa de abrir mão ou de “ter the name of God. The cinematographic
cedido de seu desejo”. A passagem ao ato production portrays the ethical and moral
escandaliza, mas pode ser interpretada dilemma of the character who is not resigned
também como um gesto de encontro com to the moralist and conservative society of the
suas convicções, que podem ser traduzidas 12th century. Because she is misunderstood,
como ideais: ideal do amor humano, da she lives in conflict with the law. The observed
autenticidade, de não dependência ou ethical problem is centered on “giving up
profilaxia da dependência (Lacan, [1959- your desire”, causing symptoms in Heloise
1960] 1997, p. 382). (LACAN, [1959-1960] 1997), p. 382). It
Diz o poeta compositor Almir Sater: is necessary to build a new type of engage-
“É preciso amor, pra poder pulsar”. E He- ment, looking for signs of sinthome in history.
loise pulsou o encantamento de seu amor What are the possibilities for a new Heloise
até o fim. Sua vivência pode reverberar to deal with her superegoic instance from
nos dias de hoje, trazendo para as novas her Id, making it possible to unfold her Ego
Heloises a necessidade de aprender com a again? In this bias, the meaning of this text is
experiência do inconsciente e com a ética to open the discussion about the contribution
da psicanálise, introduzindo-as na ordem of psychoanalytic knowledge in the erection
do desejo, levando-as em sua singulari- of an ethics for contemporary society that can
dade a viver o paradoxo da ética, pergun- contribute to the creation of ethical values that
tando-se continuamente, parafraseando take into account the subject’s desire.
Lacan ([1959-1960], 1997, p. 373): “agi
em conformidade com o meu desejo”? j Keywords: Ethics, Moral, Wish, Super ego,
Love.

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Uma lei incompreendida: o dilema ético e moral de Heloise

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PSICA NÁ LISE E A RT E
Daniel Röhe

Reflexões clínicas em ré menor


Daniel Röhe

Resumo
Comentários clínicos sobre questões musicológicas foram feitos desde uma perspectiva históri-
ca, contemplando elementos originais da psicanálise além de aspectos da formação clínica em
geral. Críticas com relação à resistência ao saber musicológico aparecem a partir de Freud em O
Moisés de Michelangelo e perduram até os dias de hoje. Tal resistência gera óbice à reflexão clí-
nica devido ao seu caráter de negação de estudos já realizados. Foi possível observar a presença
de questões musicológicas na relação entre analista e paciente, além de outras considerações
psicológicas sobre elementos da teoria musical, como a tonalidade de Ré menor.

Palavras-chave: Musicologia, Ópera, Teoria clínica, Psicanálise.

Reflexões clínicas em ré menor como o de Teller (1917) focam no nível


Interseções entre música e clínica re- estésico da análise musical, ou seja, na
montam aos tempos dos ritos dos cori- experiência da escuta. Já Graf (1947) se
bantes (Platão, 1999) presididos pelos aproxima mais ao nível poiético, porque
irmãos de Harmonia, esposa de Cadmo.1 a psicologia dos compositores reflete na
As incursões psicanalíticas em música se forma como eles trabalharam em suas
devem originalmente a Max Graf (1900) composições. Nattiez (1990) falou ainda
escrevendo sob orientação direta de Sig- de um terceiro nível, que se dá justamen-
mund Freud (Välimäki, 2005), ainda que te entre os níveis poiético e o estésico,
Richard Sterba (1965) tenha sugerido o que se debruça sobre a obra musical ema-
trabalho de Frieda Teller (1917) como nando do processo poiético e refletindo
marco histórico do cruzamento entre no estésico. Nesse terceiro nível, denomi-
música e psicanálise. nado neutro, se encaixa nosso estudo so-
Max Graf era mais musicólogo que bre as óperas baseadas no mito de Édipo
clínico, de forma que muito cedo seu fi- (Röhe; Martins; Conceição, 2020), que
lho, o Pequeno Hans, teria contato com privilegia a interpretação da obra musical
a música, e anos mais tarde trabalharia desde uma perspectiva psicanalítica, mas
com Maria Callas no La Scala, na estreia não sem tangenciar a biografia de com-
de ambos no grande palco milanês (Vi- positores ou a experiência da escuta.
ves, 2012). Mas se Teller (1917) focou Outra área estudada no campo da
mais na experiência da escuta musical, Pesquisa em Música e Psicanálise e que
Graf (1947) fez estudos sobre as perso- escapa a Nattiez é o da relação de Freud
nalidades de compositores, em especial com a música. Sabemos que, certa vez, o
Richard Wagner. psicanalista ofereceu uma interpretação
Caso usássemos a terminologia de para um paciente cantando suavemen-
Nattiez (1990), diríamos que trabalhos te uma ária de Don Giovanni de Mozart
1. De acordo com Diodoro de Sicília (1950), Cadmo esteve na Samotrácia à procura de sua irmã Europa. Naquela
ilha, o patriarca tebano foi iniciado por Iasião que, por sua vez, se casou com Cibele e teve Coribas, que empresta
seu nome aos místicos curandeiros que usavam a música em rituais terapêuticos.

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Reflexões clínicas em ré menor

(Haynal, 1993), e que há um estudo casa (Carpenter, 2015). Ademais, próxi-


sobre vivências infantis de Freud com a mo a Freud estava Max Graf, cujo círculo
música, em especial a canção de ninar social incluía personalidades da música
presente na Hubička de Smetana (Duar- do calibre de Johannes Brahms (Vives,
te, 2017). 2012). A humildade de Freud, portanto,
Parece-nos que Freud tinha muita era obrigatória, mas sem implicar em au-
humildade em relação à música, o que sência de gozo musical.
foi interpretado como uma aversão por Certa vez, Freud se recusou a ser pa-
Ernest Jones, Harry Freud, Peter Gay e recerista de um manuscrito de Deszo Mo-
Marie Bonaparte (Leader, [2000] 2010), sonyi (Psychologie der Musik) submetido à
principalmente quando se comenta a Imago, não exatamente porque ele des-
famosa passagem de O Moisés de Miche- prezava o tema, mas porque ele não era
langelo, em que Freud (1914) não soube capaz de avaliar o estudo (Michel, 1991).
explicar como a música fazia surtir um O posicionamento de Freud é visível até
estranho efeito nele. É, portanto, desde o os dias de hoje, quando observamos a
nível estésico (Nattiez, 1990) que se de- resistência de clínicos mais tradicionais
fende o entejo de Freud pela música, logo quando se fala em intervenções musicais
ele que era um amante da ópera (Hay- em práticas clínicas (Silverman; Bibb,
nal, 1993). 2018). Nesse sentido, falamos de uma
Em 30 de dezembro de 1912, Freud humildade original que assume a forma
aproveitou a falta de um paciente para de uma resistência e acaba impondo a
ir à ópera assistir Don Giovanni (Freud, marginalização aos estudos psicanalíticos
[1912] 1933). Como se tivesse tempo a em musicologia (Välimäki, 2005).
perder! Sabemos também da atenção à Mas por que a interseção entre músi-
Die Zauberflöte, de Mozart, em um co- ca e psicanálise possui status de marginal?
mentário sobre o sonho do escaravelho A humildade de Freud não nos parece
de uma paciente sua (Freud, [1900] uma explicação suficiente. Por um lado,
2010) e de uma breve menção à ópera de o uso da linguagem musical técnica na
Offenbach, Les contes d’Hoffmann (Freud, interpretação musical pode aleijar a pos-
1919). É pouco, de fato, em comparação sibilidade de uma interpretação mais afe-
com a literatura. Contudo, podemos di- tiva e pessoal (Kruse, 2007) – a instrução
zer que Freud prestou mais homenagem musical, portanto, não é necessária para a
à música, em especial à ópera, do que ao escuta. Por outro, a ojeriza de Freud para
cinema – ele sequer aceitou participar com o cinema está em clara oposição à
como consultor de um filme à época das evolução dos estudos sobre a sétima arte
intrigas que envolviam o Segredos de uma desde uma perspectiva psicanalítica que
alma, de Pabst. floresceram e trouxeram inovações meto-
dológicas a partir das décadas de 1960 e
Freud afirmaria: 1970 (Välimäki, 2005).
Segundo Välimäki (2005), ocorre um
[...] de minha parte [...], não quero ter afastamento entre estudiosos oriundos
nenhum tipo de relação com filme algum do campo da música e os clínicos devido
(Freud, [1925] 2000, p. 222, tradução às divergências de referenciais teóricos.
nossa). Fala-se em psicanálise aplicada quando
a música ou as artes são estudadas por
Freud não recebeu educação musical psicanalistas; e em psicanálise crítica
formal em conservatórios, inclusive havia quando a ciência de Freud é estudada por
pedido aos pais que retirassem o piano de autores oriundos de outras cadeiras. É o
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Daniel Röhe

caso, por exemplo, de Lawrence Kramer, Rossini fosse igual a todas as outras no
ligado à New Musicology, movimento mu- contexto da história da humanidade – e
sicológico que incorporou influências da mais – que a impossibilidade de interpre-
psicanálise (Välimäki, 2005). tação da música absoluta é uma espécie
Kramer (2015) escreveu sobre Sa- de dogma, o que indica não apenas uma
lomé e o caso Dora numa revista espe- espécie de grosseria na dita resistência,
cializada em ópera da Universidade de mas na falta de um comprometimento
Oxford, explicando o abandono de Dora científico, tão caro ao fazer clínico e à
para com Freud enquanto uma forma de psicanálise. Ou talvez tal resistência não
vingança semelhante à realização do de- passe de uma neurose, que expressa um
sejo de Salomé por meio da sintomática desprezo ao passo que esconde uma igno-
Dança dos sete véus. Quantos psicanalis- rância desprovida de humildade.
tas conhecem trabalho com essa temáti- Contra a referida resistência, indica-
ca? E quanto à ópera Dora, estreada em mos a interseção entre música e psicaná-
2002, com partitura de Melissa Schiflett lise, que se dá na relação entre analista
e libretto de Nancy Garret, cujo tema é e paciente, para além das reflexões so-
exatamente o caso Dora? Susan Loes- bre fala/prosódia e escuta. Sabemos de
ser ([2002] 2020) descreveu o canto de contatos mais diretos entre psicanalistas
Dora enquanto belo e picante, em con- e compositores musicais. Por exemplo,
traste com uma sonoridade mais pesada e Gustav Mahler foi paciente de Freud,
severa dos personagens masculinos, entre em uma longa sessão de apenas um dia,
eles, Freud, interpretado por Mark Ble- e que o compositor Robert Still (1960),
eke. autor de uma das óperas diretamente ins-
Existem ainda outros problemas no piradas em Édipo, explorou os serviços
campo da intepretação musical. Igor prestados por Freud ao grande maestro.
Stravinsky (1947), em suas aulas ofereci- Outro caso foi o de Alban Berg e Anton
das na Universidade Harvard, se posicio- Webern, ambos ligados a Adler e Freud
nou contra a possibilidade de produção (Carpenter, 2015).
de significação musical. Pensamos que O ponto é que os profissionais da
o posicionamento teórico de Stravinsky clínica atendem, por vezes, pacientes
(1947) se aplica às suas composições, em ligados à música, seja essa ligação ama-
contraste com as reflexões musicológicas dora ou profissional, e que as vivências
que diferenciaram a música programáti- musicais dos pacientes podem surgir na
ca da música absoluta. Dahlhaus (1989) transferência. E se isso ocorrer, aspectos
lançou mão de tal diferenciação para ex- musicais podem vir a ser mobilizados na
plicar o estilo de Wagner com seus ricos contratransferência, ou facilitando o tra-
entretecimentos entre libreto e partitura, balho da análise, ou promovendo a resis-
de forma que o romantismo alemão foi tência.
diferenciado da música de Rossini, que O que dizer do encontro de duas
era pura forma musical tingida pela im- pessoas com gostos musicais totalmente
possibilidade de ser interpretada por re- distintos? Em que medida os afetos mobi-
cursos extramusicais. lizados em tal encontro afetam, no con-
O caso da música absoluta é típico texto clínico, a relação profissional do
da resistência de clínicos que se recusam analista para com o paciente?
a dar o lugar merecido da música no uni- Pensamos que negar disparidades de
verso psicanalítico. Trata-se, portanto, gosto pode afetar a relação entre analista
além de uma resistência, de uma gene- e paciente, dando margem ao desmenti-
ralização forçada, como se a música de do e apenas confirmando, no Inconscien-
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Reflexões clínicas em ré menor

te, que há influência. E que o importante consciência (Melo; Greco; Franco; Sil-
é lidar com tais diferenças, assim como va Júnior, 2006).
lidar com as semelhanças, que podem O termo clínico aparece também no
emular muito o sentimento de amizade, vocabulário musical para designar a va-
de pessoas que partilham algo em co- riação no ritmo usual. A menos que uma
mum, promovendo também uma espécie partitura indique o contrário, o primeiro
de óbice ao fazer clínico. tempo de um compasso é sempre o mais
Mais um tópico musical interessa ao forte, e a ele se segue um tempo fraco.
clínico. Trata-se da apropriação de con- Caso a notação indique o contrário, o
ceitos musicais na escrita clínica, como tempo do qual seria esperada uma inten-
nos casos da perlaboração e do tempo sidade maior pode ser escutado como fra-
(Freud, 1937) necessário de terapia para co (Dunstan, 1908). É como se a sístole
que ela promova os efeitos esperados. A ocorresse no tempo da diástole.
escolha terminológica de Freud empres- Ademais, sabemos que a psicopato-
tou da música o termo “tempo” em de- logia empresta da música o termo “idée
trimento, por exemplo de Zeit (Leader, fixe”, que aparece na Symphonie Fantas-
[2000] 2010). tique, de Hector Berlioz, para designar
Segundo Tarasti (2000), existe uma ideias musicais bem delineadas que se
ansiedade ligada ao tempo de execução repetem ao longo da composição, além
de uma música, que a apressa deforman- de ser uma manifestação da insistência
do sua expressão. Já na psicanálise, existe amorosa do compositor (Brittan, 2006).
um inconformismo de analistas novos e Na sintomatologia da neurose ob-
mesmo de alguns pacientes para que se- sessiva, a idée fixe indica uma repetição
jam obtidos resultados do trabalho ana- compulsiva no nível do pensamento, que
lítico de forma célere (Leader, [2000] ocorre sem que a vontade do paciente
2010). esteja envolvida (Janet, 1894). A sinto-
Entendemos, contudo, que, via de matologia da ideia fixa aparece também
regra, todo relato de melhora dos pacien- no personagem título da ópera Wozzeck
tes em início de análise (digamos, até a (Ato I), de Alban Berg, que apresenta um
décima sessão) é mais um sinal de resis- quadro delirante com alucinações.
tência ao desenvolvimento de uma inti- O leitor pode ainda não estar conven-
midade com os conflitos intrapsíquicos cido sobre a relação entre música e clíni-
do que, de fato, uma melhora. Nesse sen- ca. Pode se tratar apenas de uma resistên-
tido, o tempo de análise deve ocorrer no cia. Que seja concedido um tempo a ela.
tempo do paciente, e não em fast-forward Tomemos a enciclopédia de vinhe-
(>>), que reflete mais a realização de tas sobre ópera e psicanálise de Castarè-
disposições ansiosas do paciente. Em um de (2020), que analisou Die Zauberflöte,
certo sentido, a análise representa mais discutindo a modalidade do poder mo-
um esforço backwards (<), no qual está ral que atravessa a ópera. A Rainha da
envolvida a (re)emergência de lembran- Noite, consumida pelo afeto vingativo
ças na consciência, em especial aquelas contra Sarastro, chega a provocar desejos
relacionadas aos traumas. suicidas em sua própria filha (Pamina). A
Além da psicanálise, sabemos que a crise psicológica da Rainha da Noite se
medicina possui termos também encon- deu em virtude de um único objeto ter
trados no vocabulário musical. Por exem- sido subtraído de sua herança, o Círculo
plo, a síncope pode ocorrer mediante de Ouro, que representa, de forma muito
uma arritmia que provoca a hipoperfusão discreta, o simbolismo solar dos franco-
cerebral, levando à perda temporária de -maçons.
84 Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p. 81 – 88 • jun. 2020
Daniel Röhe

A ópera de Mozart, em especial sua a caracterização verbal das tonalidades


Ária 14, é um caso exemplar do uso do musicais era de caráter subjetivo. Sem
ré menor enquanto representante do dúvida, a impressão que Lavignac pos-
Sturm und Drang. O musicólogo Clive sui do ré menor difere daquela de Pauer,
McClelland (2017) questionou a relação Grove e Riemann, e talvez ele tenha se
do Sturm und Drang com músicas que re- sentido mais à vontade para caracterizar
presentam tempestades, muitas delas em tal tom à sua maneira, diferenciando-se
ré menor. Por esse motivo, McClelland dos outros acadêmicos. A mesma atitude
(2017) cunhou o termo “tempesta” para foi tomada por Dunstan (1908), que lem-
designar cenas que representam perse- brou do nosso Hector Berlioz e de sua in-
guições, loucura e timopatias de tipologia terpretação sobre o ré menor como uma
irada. Assim, a relação das Sinfonias de chave lúgubre.
Paris, de Joseph Haydn, com o Romantis- Voltando ao controverso Sturm und
mo alemão não é necessariamente verda- Drang, notemos que a musicóloga hún-
deira. Contudo, podemos afirmar que as gara Marta Grabócz observou o K. 332
cenas de tempestade representam casos de Mozart, a Sonata em fá maior (diga-se
típicos da psicopatologia clínica. de passagem, a tonalidade relativa de ré
Por exemplo, na última ópera de menor). Nessa obra, o Sturm und Drang
Haydn, L’anima del filosofo, o ré menor assume, na exposição do primeiro movi-
aparece em dois coros em meio a uma mento, uma função transicional entre o
tempestade que prepara a entrada das primeiro e o segundo tema, e entre o se-
Fúrias, associadas à loucura que elas pro- gundo e o terceiro.
vocam nos parricidas. Mozart, além de Grabócz (2019) observou que, entre
lançar mão do ré menor em Die Zauber- o primeiro e o segundo tema, a função
flöte, usa o mesmo tom em Don Giovanni, transicional do Sturm und Drang é reali-
na famosa cena do comendador, quando zar a modulação. No primeiro tema sa-
o convidado de pedra arrasta o sedutor bemos da composição do estilo cantante
para o inferno. No ballet Don Juan, de aliado ao da caça e, no segundo, notamos
Gluck, dragões arrastam Don para o in- a combinação do Empfindsamkeit com a
ferno, enquanto em sua Alceste, o ré me- síncope alla zoppa. Ainda na passagem do
nor é usado como prelúdio para a entrada segundo ao terceiro tema, que expressa a
das Fúrias (McClelland, 2017). dança do menuet, o Sturm und Drang não
Pauer (1876) comentou que o ré possui função modalizadora já que não há
menor estaria relacionado à ansiedade, mudança de tonalidade.
ao luto e à melancolia. A tonalidade foi Ocorre, então, que o Sturm und
citada também por Grove (1880), men- Drang assume função delineadora entre o
cionando o poeta Klopstock enquanto canto e a caça em direção à lógica escla-
homem brilhante qualificado como pes- recida complementada por um desmaio
soa do tipo ré sustenido maior, tonalidade musicológico, e que o Sturm und Drang
mais apropriada do que aquela sombria ressuscita o desmaio em uma dança. O
atmosfera dos tons menores. movimento se encerra em uma cadência
Para Riemann (1893), o ré menor es- virtuosa, realçando o resgate promovido
taria associado a um sentimento de agita- pelo Sturm und Drang. Interpretamos a
ção, mas também de nobreza – não seria passagem enquanto uma sequência de
essa atmosfera digna de uma rainha? La- queda e ascensão, de rebaixamento hu-
vignac ([1899] 2020) comentou que o ré moral seguido por um resgate de vigor.
menor estaria associado à concentração e O mais resistente leitor ainda não se
à seriedade, mas sem deixar de notar que convenceu da interseção entre música e
Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p. 81 – 88 • jun. 2020 85
Reflexões clínicas em ré menor

psicanálise. Nesse momento, nossa con-


tratransferência não pode esquecer o de- Referências
sejo que Didier Anzieu (1987) tinha de
se livrar do paciente. Tenhamos paciên- ANZIEU, D. Some alterations of the ego which
make analyses interminable. International Journal of
cia como nos pede o fantasma de Jocasta
Psycho-Analysis. Londres, v. 68, n. 1, p. 9-19, 1987.
na ópera edipiana de Pierre Bartholomée.
Lembremos que, de fato, a pesquisa BRITTAN, F. Berlioz and the pathological fan-
em música e psicanálise não é um campo tastic: melancholy, monomania and romantic
vastamente estudado, mas que também autobiography. 19th-Century Music. Berkeley, v.
29, n. 3, p. 211-239, 2006.
não é inexistente. Trata-se ainda de área
do saber pouco cultivada devido às ad- CARPENTER, A. “This beastly science…”: On
versidades que cerceiam a encruzilhada the reception of psychoanalysis by the composers
entre os complexos de Édipo, as óperas of the Second Viennese School, 1908-1923. Inter-
e muitas outras composições musicais national Forum of Psychoanalysis. Estocolmo, v. 24,
n. 4, 243–254, 2015.
criadas pelo gênero humano. Ademais, é
preciso tratar dessa resistência, de forma CASTARÈDE, M.-F. Les Vocalises de la passion.
que um campo fértil não seja devastado Psychanalyse de l’opéra. 1. ed. Paris: Armand Colin/
ou mesmo impedido de continuar cres- VUEF, 2020.
cendo. j
DAHLHAUS, C. The idea of absolute music. 2. ed.
Chicago and London: The University of Chicago
CLINICAL REFLECTIONS Press, 1989.
IN D MINOR
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Abstract Cambridge, MA Harvard University Press, 1950.
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Clinical comments on musicological issues
were made from a historical perspective, DUARTE, F. Freud e a música. Ide. São Paulo, v.
covering original elements of psychoanalysis 40, n. 64, dez. 2017
in addition to aspects of clinical training in
general. Criticisms regarding the resistance DUNSTAN, R. A cyclopædic dictionary of music. 1.
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to musicological knowledge appear from
Freud in Michelangelo’s Moses and con- FREUD, S. Analyse der phobie eines fünfjahri-
tinue to this day. Such resistance creates an gen knaben. Jahrbuch für psychoanalytische und
obstacle to clinical reflection due to its denial psychopathologische forschungen. Leipzig, v. 1, n. 1,
character of studies already carried out. It pp. 1-109, 1909.
was possible to observe the presence of mu-
FREUD, S. Carta 1021. In: E. Brabant; E. Fal-
sicological issues in the relationship between zeder; P. Giampieri-Deutsch. The correspondence
analyst and patient, in addition to other psy- of Sigmund Freud and Sándor Ferenczi, 1920-1933
chological considerations about elements of (Vol. III, pp. 222-223). Cambridge & London:
music theory, such as the key of D minor. The Belknap press of Harvard University Press,
2000. Obra publicada originalmente em 1925.
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Sigmund Freud and Sándor Ferenczi, 1908-1914
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Belknap press of Harvard University Press, 1933.
Obra publicada originalmente em 1912.

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86 Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p. 81 – 88 • jun. 2020


Daniel Röhe

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Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p. 81 – 88 • jun. 2020 87


Reflexões clínicas em ré menor

Sobre o autor

Daniel Röhe
Psicólogo pela Universidade de Brasília (2011).
Mestre em Psicologia pela Universidade Católica
de Brasília (2015), com foco em psicanálise,
sob a supervisão do professor emérito e médico
Francisco Martins.
Doutorando em Psicologia Clínica e Cultura
na Universidade de Brasília, com extrato da
pesquisa publicada no International Forum of
Psychoanalysis e disponível em:
https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/08
03706X.2018.1562219?journalCode=spsy20.
Apresentou em 2018 o trabalho Oedipus
goes to the opera Psychoanalytical inquiry in
Enescu’s Œdipeand Stravinsky’s Oedipus Rex, em
conferência psicanalítica na Islândia.
Participou de conferências musicológicas na
Finlândia, no Reino Unido e na Grécia, para
discutir pesquisa clínica e ópera com estudiosos
de musicologia. Seu foco de pesquisa inclui
óperas como fontes de insights clínicos.
Oferece serviços psicológicos voltados para o
público adulto na Clínica Diálogo, em Brasília,
desde 2013.
Iniciou seus estudos em clarinete em 1998.
Desde 2014 realiza networking com o Prof.
Dr. Eero Tarasti, musicólogo e semiólogo da
Universidade de Helsinki.

Endereço para correspondência

Daniel Röhe
E-mail: psicologo.rohe@gmail.com

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Entrevista com Arlindo Pimenta
50 A NO S DE CÍ RC U L O P SICA NA L Í T IC O DE M I EN NA S T R EV
G ER A IS ISTA

Entrevista com Arlindo Pimenta


5 0 A NO S D E CÍ RCU L O PSICAN ALÍTICO DE M I N AS GER AIS

Resumo
Através da entrevista à Reverso, Arlindo Pimenta apresenta dados históricos relacionados à psi-
quiatria mineira nos anos 1960 e a influência da psicanálise no desenvolvimento dessa especia-
lidade médica. Apresenta ainda dados e fatos do início do CPMG e a virada político-estrutural
no início dos anos 1980 e como foi retomada e aperfeiçoada nas gestões que se seguiram até os
dias de hoje.

Palavras-chave: História, Círculo Psicanalítico Minas Gerais, Estrutura, Evolução, Transfor-


mações.

Reverso: Arlindo, como foi sua apro- Reverso: E como você chegou à psi-
ximação com a psicanálise? quiatria?
Arlindo: A primeira vez que ouvi falar Arlindo: Em uma aula de Doenças
em psicanálise foi na aula de filosofia, tropicais, encontrei meu colega Cézar
quando fazia o terceiro ano científico no Rodrigues Campos, com um exemplar da
colégio Santo Antônio. O professor falou revista Arquivos da Clínica Pinel. Achei in-
da psicanálise e achei intrigante o tema. teressante. Ele me falou do Hospital Galba
Reverso: E o que aconteceu depois? Veloso e o projeto de se implantar ali uma
Arlindo: Iniciei o curso de medicina nova forma de atendimento psiquiátrico.
e sempre tive vontade de estudar alguma E me convidou para conhecer o hospital.
coisa que tivesse a ver com o sistema Reverso: E você foi?
nervoso. Arlindo: Fui. Achei interessante o
Reverso: E então? projeto de open door, de como se abria
Arlindo: Quando cursava as cadeiras mão dos meios de contenção até então
de clínica, procurei algum espaço que ti- usados na psiquiatria (camisa de força,
vesse a ver com o sistema nervoso. Optei quarto forte) e se substituía esses méto-
pela anestesia, fiz um estágio e cheguei a dos pelo uso de neurolépticos e de uma
participar de algumas cirurgias. assistência mais assídua aos pacientes.
Reverso: Não prosseguiu? O Galba, àquela época, era um hospital
Arlindo: Não, não era bem o que eu onde só se internava mulher. Essa política
queria. Além do mais, nessa época (início assistencial dirigida pelo Dr. Jorge Paprocki
dos anos 1960), havia uma forte ebulição inaugurou um capítulo novo e importante
política e questões ligadas à participação na psiquiatria mineira. Fiz as entrevistas
da medicina nas doenças relacionadas à e fui admitido como acadêmico. Passei a
pobreza (parasitológicas e a desnutrição). dar plantões, a participar e acompanhar
Fui envolvido por essas ideias e cheguei a pacientes da terceira enfermaria.
fazer parte de um grupo (Ação Popular) Reverso: E como a psicanálise entrou
que se propunha a tentar compreender nisso?
a realidade brasileira sobre seus vários Arlindo: Entrei para o Hospital Galba
ângulos, inclusive o médico. Veloso em 1965. Com pouco tempo de
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Entrevista com Arlindo Pimenta
50 A NO S DE CÍ RC U L O P SICA NA L Í T IC O DE M I NA S G ER A IS

existência, o Círculo iniciara suas ativi- tíferos para o CPMG. Foi repensada toda
dades das quais participavam o Dr. Jorge a estrutura de formação psicanalítica até
Paprocki e a Dra. Eunice Rangel, diretores aquela data, e os quatro analistas didatas
do hospital. Era, então, recomendado que fundaram a Comissão de Análise Didática
o corpo clínico e os acadêmicos estivessem (CAD), que se encarregava de todos os
em análise. Nesse mesmo ano, iniciei aspectos administrativos e da formação
minha participação em terapia de grupo do Círculo. Tudo que acontecia passava
com o Dr. Jarbas Portela até 1968, quando forçosamente pela CAD. A CAD foi mui-
me decidi pela psicanálise e iniciei meu to importante para dar uma estrutura ao
processo analítico. CPMG, até então muito confusa e disper-
Reverso: E então? sa. Houve um aumento rápido de adesões
Arlindo: Nesse período esteve em Belo ao CPMG, que àquele tempo só aceitava
Horizonte o Prof. Igor Caruso. Fez várias médicos e psicólogos para formação.
conferências abertas ao público e assisti Reverso: O que aconteceu então?
a algumas delas. Com a vinda de Caruso, Arlindo: Como disse, aconteceu uma
houve também uma reestruturação no estruturação, mas a CAD, com o tempo,
Círculo Brasileiro de Psicologia Profunda passou a ter um poder muito grande, pois
- Seção Minas Gerais. O modelo adotado todas as análises eram feitas com eles, além
era o da IPA, com várias etapas desde das supervisões e dos cursos. E quem tem
analista autorizado até o analista didata. muito poder, frequentemente abusa. Isso
Com a vinda de Caruso, aconteceu uma gerou, então, um clima de inibição, medo
ampliação do número de analistas didatas e silêncio nos sócios. Alguém apresenta-
e uma aproximação com o grupo da Dra. va um trabalho e praticamente ninguém
Katrin Kemper, além da ideia de ampliar opinava ou questionava. Em uma palavra,
o Círculo em outros estados brasileiros. havia muito medo.
Reverso: Que outras consequências a Reverso: E quais as consequências?
vinda de Caruso provocou? Arlindo: Isso foi se tornando um clima
Arlindo: Muitas consequências se se- de revolta e, aos poucos, de questiona-
guiram à vinda de Caruso. Uma das princi- mento do Círculo Psicanalítico de Minas
pais foi a mudança do nome da instituição Gerais. Na sua gestão, o Dr. Jarbas Portela
de Círculo Brasileiro de Psicologia Profun- convidou alguns analistas da geração mais
da - Seção Minas Gerais para Círculo Psi- jovem para integrar a Diretoria. Assim,
canalítico de Minas Gerais (CPMG), o que alguns colegas e eu passamos a participar
significava não só uma mudança de nome, mais de perto das decisões da Diretoria.
mas também uma opção pela psicanálise, Em pouco tempo, o Dr. Jarbas se
porque anteriormente, além da psicanáli- desentendeu com a CAD, deixou a presi-
se, era privilegiada a terapia de casal, de dência do CPMG, assumida pelo vice-pre-
família e de grupos. Mas aconteceu uma sidente Dr. Luiz Carlos Drummond, que
divergência: houve uma primeira cisão e, manteve a Diretoria anterior. O nível do
em função disso, foi criado o Instituto de mal-estar foi crescendo progressivamente.
Estudos Psicoterapêuticos (IEPSI). Alguns A gestão seguinte, a de Dr. Elias Hadad,
membros fundadores do Círculo foram ao já contou com a participação de um grupo
congresso no México junto com Caruso, mais organizado dos descontentes, que
para tentar a filiação junto à IFPS, mas atuava basicamente em duas frentes: uma
não foram aceitos de início. junto à Diretoria atual tentando pôr em
Reverso: Outras consequências? pauta a possibilidade de os cargos adminis-
Arlindo: A ida ao congresso no México trativos serem exercidos por não didatas
e o contato com Caruso foram muito fru- e outro atuando na reforma do regimento
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Entrevista com Arlindo Pimenta
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interno do Instituto de Formação. Um fato Reverso: Como foram elaboradas as


causou muita polêmica. O anteprojeto de propostas e a composição da chapa?
reforma do regimento do Instituto foi en- Arlindo: Nossa chapa foi escolhida
viado para aprovação da Diretoria quan- entre os membros do grupão, por eleição
do ainda estava em discussão. Esse fato interna, e foi proposta uma plataforma que
levou alguns componentes do grupo a não constava dos seguintes tópicos:
aceitar o ocorrido e a enviar uma carta 1. Proposta de uma estrutura nova
ao coordenador do Instituto, em que ma- para o CPMG, que rompesse com aquela
nifestavam sua discordância com aquela da IPA. Uma tentativa de remediar, aquilo
atitude. Diziam na carta que não cabiam que Caruso não propusera, isto é, romper
mais atitudes como aquela (comuns aos com a ortodoxia. Em nossa discussão das
didatas). Na ocasião, fazíamos um curso várias propostas encaminhadas, duas so-
de psicanálise e literatura a partir de um bressaíam: uma de Márcio Pinheiro, uma
romance A menina morta, uma trama sociedade entre pares, e outra partindo de
que se passava na Fazenda do Grotão. Célio Garcia, uma sociedade entre ímpa-
E muitos de nós fazíamos parte desse res, fazendo uma correção na primeira. As
grupo. O grupo do Grotão virou grupão. duas propostas foram articuladas em uma
Alguns membros desse grupo já haviam terceira que passou a fazer parte de nossa
escrito textos em jornadas, apontando proposta: uma sociedade entre pares/
os desacertos e os desmandos da CAD. ímpares. Pares em termos de hierarquia e
Por fim, foi votada em assembleia geral a ímpares em termos de respeito à subjeti-
modificação estatutária, que permitia que vidade e ao percurso de cada um.
outros membros não didatas ocupassem 2. Reestudo da formação psicanalí-
cargos de Direção. tica.
Reverso: E o que ocorreu? 3. Revisão da produção científica,
Arlindo: Após a assembleia, fui procu- extremamente baixa entre nós.
rado por alguns colegas tendo à frente a 4. Criação de um espaço interdiscipli-
Lena Moreira Santos e Renato Dousi, que nar. O CPMG se colocava de forma muito
diziam que eu teria de assumir o coman- isolada em relação às outras sociedades
do do movimento. Confesso que fiquei psicanalíticas. As disciplinas afins pode-
surpreso, pois julgava que no Grupão riam nos enriquecer bastante. Tentaríamos
havia colegas com mais competência para promover cursos de filosofia, antropologia,
assumir o posto. Insistiram e, como não bem como de artes mantendo o curso de
sou de correr da raia, acabei assumindo o literatura já em andamento.
comando e, consequentemente, a candi- 5. Ativação do projeto da Clínica
datura à presidência na eleição seguinte. Social que, por algumas razões, não ia
Reverso: E depois? para frente.
Arlindo: Passado o susto, percebi que 6. Registro da história do CPMG, que
a missão não era fácil e que seu sucesso naquele ano completava 21 anos. Havia
dependia de um grupo de apoio o maior necessidade de ter clareza do caminho
possível. Passamos a fazer o que os didatas percorrido até então.
não faziam, ou seja, escutar a sociedade. Depois da eleição, que se realizou
Organizamos vários pequenos grupos que numa quinta-feira, recebi das mãos do
escutavam os sócios e as demandas dos coordenador do Instituto, uma carta de
colegas. A maioria atendeu nosso convite. demissão. Na quarta-feira seguinte, recebi,
Alguns não. Chegaram a tentar articular por intermédio de minha secretária, um
uma chapa “pró-didatas”, que acabou não recado da Secretaria do CPMG me infor-
emplacando. mando que estava sendo convocado para
Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p. 89 – 94 • jun. 2020 91
Entrevista com Arlindo Pimenta
50 A NO S DE CÍ RC U L O P SICA NA L Í T IC O DE M I NA S G ER A IS

uma reunião no Instituto. Fiquei assustado colegas, fomos também, verbalmente ou


porque se tratava de uma convocação. por telefone, objeto de uma carga pesa-
Eu não entendia bem. Como Presidente da, que parecia de ódio e ressentimento
do CPMG, eu não deveria ser convocado muito grande. Lembro-me de um colega,
por um órgão subordinado à presidência. com quem mantinha relacionamento de
Deveria ser convidado. E nessa condição amizade, que me telefonou para me xingar
de convidado, tomei a liberdade de esten- e me dizer que “estávamos sujando o prato
der o convite aos colegas, uma vez que em que comíamos” – foi essa a expressão
nosso regime de funcionamento é o de que ele usou. Paralelamente a toda essa
colegiado, e comparecemos à reunião do tensão emocional em que nos encontráva-
Instituto. Foi uma reunião extremamen- mos, começou a haver uma cobrança das
te tensa. Vivemos um silêncio terrível. atividades cientificas por parte dos colegas.
Depois da reunião perguntei a um amigo Apenas em novembro conseguimos fazer
quantos minutos de silêncio se passaram a eleição da Comissão Científica.
naquela reunião. Talvez uns dez ou quinze Voltando ao Instituto, entramos em
minutos. Para mim, no entanto, eles foram contato com algumas pessoas e trocamos
vivenciados como se fossem pelo menos ideias, salientando a destrutividade da-
duas horas ou mais. Então, nessa situa- quele clima em que nos encontrávamos.
ção extremamente tensa, começou a se Conseguimos que a lista tríplice fosse en-
estabelecer um clima de confrontação. E viada. Foram designados os nomes do Dr.
nesse clima, a compreensão foi impossível. Flávio Neves, Dr. Cláudio Pérsio e da Dra.
Eu havia retomado a minha análise Pompéia Pires. Conversamos com os três
com o Dr. Jarbas, mas se estabeleceu, como sobre a disponibilidade de cada um deles
disse um colega, um verdadeiro entrevero e, a partir dessas conversas, indicamos
entre nós dois. É claro que, nessas condi- o Flávio para assumir a coordenação do
ções, a minha análise estava terminada ali Instituto. Um outro aspecto que começou
mesmo. Propusemos, então, uma segunda a aparecer nessa época foi a necessidade
reunião, na qual a Diretoria, dessa vez e já de criar uma Comissão Sociocultural que
tendo condições, pudesse propor alguma se encarregasse da circulação das ideias
coisa. Essa reunião foi um pouquinho mais dentro e fora da sociedade, conforme
amena, e a Diretoria propôs o seguinte: constava da plataforma.
que os colegas que compunham o Instituto Durante todo esse período, o que
de Psicanálise nos enviassem uma lista mais nos chamou a atenção na atitude dos
tríplice da qual pudéssemos indicar o novo analistas didatas, foi a recusa do diálogo,
coordenador do Instituto. Mas, menos de com duas exceções. Não só nas primeiras
uma semana depois, fomos surpreendidos reuniões, mas também posteriormente. E
com uma carta do Dr. Jarbas dizendo que essa recusa se fazia principalmente de três
a Diretoria não reconhecia a legitimidade formas: uma tentativa de fazer caricatura
dos colegas integrantes do Instituto e que, do grupo emergente, uma presença silen-
por esse motivo, ele pedia demissão das ciosa e uma ausência física total. No con-
suas funções de coordenador do ensino e texto de tudo o que foi dito, compreende-
professor da disciplina Teoria da clínica do -se que o CPMG vivia no momento um
Instituto. Esse momento foi vivenciado medo profundo. Havia também o medo do
pelo grupo de forma muito angustiante. fratricídio ante a dificuldade de elaboração
Uma coisa chamou a atenção: alguns dessa vivência, como elaborá-la se havia
colegas da Diretoria adoeceram nesse recusa de diálogo nas três formas que
período. Adoeceram mesmo. Circulava coloquei. Todos sabemos que a morte do
um clima de angústia. Por parte de alguns pai deve acontecer simbolicamente. Mas
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Entrevista com Arlindo Pimenta
50 A NO S DE CÍ RC U L O P SICA NA L Í T IC O DE M I NA S G ER A IS

quando isso acontece em termos reais, a fazer laços com o meio artístico e participa-
elaboração se torna muito difícil. mos do debate de duas peças teatrais: No
Nos dias 24 e 25 de março de 1984, foi Natal a gente vem te buscar e Despertar da
realizado em Belo Horizonte o Simpósio do primavera. Na área política, conseguimos
Círculo Brasileiro de Psicanálise, em que que o CPMG fosse declarado de utilidade
as unidades integrantes apresentavam um pública municipal. A partir daí, pleiteamos
histórico de cada unidade, cuja experiên- um terreno onde seria construída nossa
cia seria permutada, bem como os projetos sede própria. Estava sendo aberta a Aveni-
de formação psicanalítica. Os trabalhos da dos Andradas e, apesar das tentativas,
apresentados pelos integrantes do CPMG a política, ou politicagem, falou mais alto,
eram todos teóricos e não mencionavam e hoje no lugar em que seria nossa sede,
a situação institucional que vivíamos. ergue-se o shopping do América Futebol
Vários colegas das unidades do Círculo Clube.
Brasileiro de Psicanálise vieram me ques- Reverso: E no nível internacional?
tionar por que não se falava da instituição Arlindo: Fizemos duas viagens: a
CPMG. Fui obrigado, de improviso a expor primeira à Europa, porque em Madri se
para as demais unidades do CBP a situação realizava o Congresso da IFPS. Fiquei co-
que vivíamos. Esse depoimento em sua nhecendo a Dra. A. Turkel, naquela época
íntegra consta dos Cadernos de Psicanálise presidente da IFPS. E a segunda aconteceu
do Círculo de Pernambuco (ano I, número em Cuba, em Havana, por ocasião do I
especial, jun. 1984). Congresso de Psicanálise e Marxismo.
Reverso: E o que se seguiu? Vivíamos um problema: ao mesmo tempo
Arlindo: Saímos fortalecidos desse que rompêramos com a estrutura da IPA,
simpósio e convocamos, uma assembleia não nos interessava a proposta de Escola
geral em 48 horas. Seguiram-se várias Lacaniana que chegava até nós, proposta
outras até que em junho já tínhamos o pelo Sr. Jacques-Alain Miller, extrema-
modelo da nova estrutura proposta. Ter- mente arrogante, com seus integrantes
minava a hierarquia, e todas as grandes bem próximos da estrutura de uma seita
decisões da sociedade deveriam ser toma- fundamentalista. Vanessa e eu nos encon-
das em assembleia geral. Quase todos os tramos em Cuba com Geraldino Alves
didatas se demitiram, à exceção do Prof. Ferreira Neto, Oscar Cezarotto e Márcio
Malomar, que mais adiante também se de- Peter de Souza Leite, que formavam a
mitiu. Ficou apenas Antônio Ribeiro, que Associação Livre, um grupo lacaniano não
se manteve ligado ao CPMG conduzindo ligado ao Sr. Miller. Feito o convite, Oscar
seminários e cursos até seu falecimento. Cezarotto ministrou seminários no CPMG
Reverso: E então? por vários anos. Mediante o contato e o
Arlindo: Partimos para novos conta- prestígio de Célio Garcia, estiveram entre
tos, no sentido de arejar a instituição e nós Marie Claire Boons, Alain Badiou,
fazer novos laços. Pierre Fédida e René Major. Por indicação
Reverso: Quais contatos? de nossa colega Frida Grimbaum, fizemos
Arlindo: Nosso contato inicial foi com contatos e por alguns anos estivemos es-
Marilena Chauí, que nos indicou Joel tudando com o Prof. Gregório Baremblit.
Birman e Renato Mezan. Fizemos também Houve algumas comemorações em home-
contatos no Rio de Janeiro com Wilson nagem a Michel Foucault, que esteve entre
Chebabi e Hélio Pellegrino, que nos in- nós e que havia falecido. Em resumo, pro-
dicou Jurandir Freire Costa. Realizamos curamos pôr em prática nossa plataforma
uma pequena jornada de fim de semana à exceção de dois itens: a Clínica Social,
com esses três convidados. Começamos a que foi retomada posteriormente, e a sede
Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p. 89 – 94 • jun. 2020 93
Entrevista com Arlindo Pimenta
50 A NO S DE CÍ RC U L O P SICA NA L Í T IC O DE M I NA S G ER A IS

própria, que foi encaminhada e resolvida INTERVIEW WITH


na gestão seguinte, de Renato Dousi. Foi ARLINDO PIMENTA:
uma experiência muito penosa, muito pe- 50 YEARS OF CÍRCULO
sada e muito difícil, mas ao mesmo tempo PSICANALÍTICO
muito rica e de muito crescimento. DE MINAS GERAIS
Reverso: E as gestões posteriores?
Arlindo: Foram todas extremamente Abstract
importantes. Mas seria muito extenso Through an interview to Reverso, Arlindo
aqui examinar o esforço e o trabalho das Pimenta presents historical data related to
gestões que se seguiram. A biblioteca tem Minas Gerais psychiatry in the 1960s and the
uma videoteca em que foram entrevistados influence of psychoanalysis on the development
todos os presidentes até 2003, (40 anos de of this medical specialty. It also presents data
CPMG). É um trabalho que merece ser and facts from the beginning of the CPMG
continuado. and the political-structural turning point in
Reverso: E atualmente como você vê o the early 1980s and how it was resumed and
CPMG em sua estrutura e funcionamento? improved in the administrations that followed
Arlindo: O CPMG mantém sua estru- until today.
tura própria. Não segue o modelo inicial
da IPA nem se transformou em uma escola Ke y w o r d s : History, Minas Gerais
lacaniana. Tem uma posição terceira, ao Psychoanalytic Circle, Structure, Evolution,
mesmo tempo em que se propõe ser uma Transformations.
“metamorfose ambulante”. Temos um mo-
delo de formação psicanalítica própria em
dois tempos, que vai se aperfeiçoando pro-
gressivamente. Temos uma programação
regular de seminários, uma jornada anual
sempre muito concorrida, publicação da
Reverso. Além disso, contamos muitas ve-
zes com convidados de outras instituições.
A gestão atual, muito atuante, mantém e
aperfeiçoa nossas atividades, agindo no
sentido da modernização, informatização
e divulgação de nossa instituição.
No mais, obrigado pelo espaço con-
cedido e pela atenção a mim dedicada. j

Belo Horizonte, 02 de março de 2020.

94 Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p. 89 – 94 • jun. 2020


Normas de Publicação
1. Reverso – Revista de Psicanálise – tem por finalidade publicar trabalhos e assuntos
de interesse da psicanálise e suas articulações com outras áreas do saber, produzidos
por sócios do CPMG, convidados, autores brasileiros e estrangeiros. Além de artigos,
poderão ser publicadas resenhas, traduções e entrevistas.

2. Cabe à Comissão Editorial avaliar os trabalhos recebidos e autorizar sua publicação.


A Comissão se reserva o direto de não publicar aqueles que estiverem em desacordo
com sua orientação. Assim, pede-se atenção especial à linguagem do texto, que deve
estar de acordo com a língua padrão. O uso de linguagem adequada constitui um dos
critérios de avaliação do artigo.

3. As opiniões e os pontos de vista emitidos pelos autores são de sua inteira


responsabilidade.

4. Os trabalhos candidatos à publicação devem ser inéditos, isto é, textos que não
foram publicados em outra revista ou jornal científicos semelhantes à Reverso. Em
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5. A apresentação dos trabalhos deve ser iniciada pelo título em português e em inglês,
seguido do nome do(s) autor(es).

6. Os trabalhos devem conter Resumo e Palavras-chave em português, antes do início


do texto. O Resumo e as Palavras-chave devem conter de 50 a 100 palavras, em torno
de 561 caracteres (sem espaços) e 662 (com espaços). Depois do texto será incluída
a versão em inglês do resumo (Abstract) e das palavras-chave (Keywords), seguida das
Referências.

7. No final do texto deverá(ão) constar o(s) nome(s) do(s) autor(es), sua qualificação
profissional e seu e-mail.

8. Os originais deverão ser enviados por e-mail para cpmg@cpmg.org.br.

8.1 O texto, digitado em Word, da Microsoft para PC, deve obedecer às seguintes
especificações conforme as normas da ABNT:
• papel A4;
• margens superior e esquerda de 3 cm, inferior e direita de 2 cm;
• fonte Times New Roman tamanho 12;
• espaçamento entre linhas 1,5;
• parágrafo recuado em 1,25 cm; e
• alinhamento justificado.
8.2 Os trabalhos devem ter no máximo 10 laudas de 2.000 caracteres com espaços,
totalizando 20.000.
95
9. Os artigos serão submetidos à revisão, o que pode resultar em algumas alterações no
texto, que também serão submetidas à apreciação do(s) autor(es).

10. Tabelas, gráficos, matemas, figuras em geral, etc. deverão ser enviados à parte, via
e-mail, com as respectivas legendas numeradas e a localização no texto indicada entre
parênteses. Caso seja necessária arte-final especial, o(s) autor(es) deverá(ão) enviar o
arquivo em separado.

11. As notas de rodapé deverão ser numeradas de forma contínua no texto.

12. As citações deverão estar acompanhadas de sua fonte, com a(s) respectiva(s)
página(s).

12.1. Citação direta: É a reprodução literal de textos de outros autores. Nesse caso
deve-se informar o sobrenome do autor, o ano da obra e a(s) página(s). As citações
diretas podem ser de dois tipos, conforme o número de linhas.

12.1.1. Até três linhas

A citação curta é incorporada ao texto, entre aspas.

Ex. a) Quinet (2009, p. 36) afirma: “O discurso do analista é o único em que a causa
do laço social coincide com a causa do sujeito”.

Ex. b) “Um significante nunca existe sozinho” (NASIO, 1997, p. 128).

12.1.2 Mais de 3 linhas

A citação longa deve ser destacada com recuo de 4 cm da margem esquerda, com a fonte
tamanho 10 e espaçamento simples. Não há necessidade de usar aspas.

Ex.: Rosa (1972, p. 62-63) diz:

[...] do capim alto aquele surgiu. Foi e – preto como grosso esticado pano preto, crepe,
que e quê espantoso! – subiram orelhas os cavalos. Touro mor que nenhuns outros, e
impossível, nuca e tronco, chifres feito foices, o bojo, arcabouço, desmesura de esqueleto
total desforma.

12.2. Citação indireta: texto baseado na obra do autor consultado. Aqui se pode incluir
ou não a(s) página(s).

Ex. a) Diversos autores citam a importância do estudo das perversões para entender as
psicopatias da vida cotidiana (ANDRÉ, 2003; CLAUVREUL, 1990; CORRÊA, 2006;
DOR, 1991).

Ex. b) A concepção médica de oposição entre o normal e o perverso se desfaz, segundo


Corrêa (2006), à medida que o inconsciente vai sendo revelado.

12.3 Citação de citação: É a reprodução de informação já citada por outros autores.


Deve-se citar o sobrenome do autor do documento não consultado seguido de uma
das expressões ‘citado por’, ‘apud’, ‘conforme’ ou ‘segundo’, e o sobrenome do autor do
documento efetivamente consultado.

96
Ex. c) O senso de humor é a marca de uma certa liberdade: o inverso da rigidez das
defesas características da doença. Ele é aliado do terapeuta, que, graças a ele, experimenta
um sentimento de confiança e se sente autorizado a uma certa liberdade de manobra. É
uma prova da imaginação criativa da criança e de sua alegria de viver (WINNICOTT,
2005 citado por MACEDO, 2011).

13. O registro das referências deverá ser feito conforme os exemplos a seguir.

Observação:
“Somente serão registradas como referência as publicações que foram citadas ao longo
do texto. Tudo que está citado deve ser referenciado e tudo que está referenciado deve
deve ser citado!” (ABNT NBR 6023:2018).
a) Livro

AUTOR. Título em itálico: subtítulo. Edição. Local (cidade) de publicação: Editora, ano
de publicação.

Ex.: GAY, P. Freud: uma vida para o nosso tempo. 1. ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.

b) Capítulo de livro

AUTOR DO CAPÍTULO. Título do capítulo. In: Autor do livro. Título em itálico:


subtítulo. Edição. Local (cidade) de publicação: Editora, Data. Número de páginas ou
volumes (Nome e número da série).

Ex.: JORGE, M. A. C. O ciclo da fantasia. In: ______. Fundamentos da psicanálise: de


Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. v. 2, p. 38-61.

Ex.: FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930 [1929]). In: ______. O futuro de uma
ilusão, o mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931). Direção-geral da tradução
de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 67-153. (Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21).

c) Artigo de revista

AUTOR. Título do artigo. Título do periódico em itálico. Local de publicação (cidade),


número do volume, número do fascículo, páginas inicial e final, mês e ano.

Ex.: MENDES, E. R. P. Um jogo de espelhamentos, a partir do Moisés de Michelangelo.


Reverso. Belo Horizonte, v. 27, n. 52, p. 21-30, set. 2005.

d) Publicações periódicas no todo

Título da Publicação. Local (cidade) de publicação: Editor-autor, ano do primeiro


volume. Periodicidade. ISSN.

Ex.: REVERSO. Belo Horizonte: Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, 2005 - Semestral.
ISSN: 0102-7395.

97
e) Texto consultado via internet

FORBES, J.; FERRETI, C. Entrevistas preliminares e função diagnóstica nas neuroses e


nas psicoses. Disponível em: <http://www.jorgeforbes.com.br/br/artigos/entrevistas-
preliminares-funcao-diagnostica.html>. Acesso em: 03 fev. 2016.

N.E.: Favor notar que os detalhes de dois pontos, abreviaturas e vírgulas, bem como
qualquer outro assinalado, devem ser registrados nos originais como nos exemplos.

14. A Comissão Editorial se reserva o direito de não publicar nem devolver, os artigos
que não se enquadrem nas normas expostas, ainda que reconhecido seu valor científico.

15. Ao encaminhar seu texto, o(s) autor(es) aceita(m), concorda(m) e permite(m) sua
veiculação na home-page e na edição eletrônica da revista Reverso.

16. Os trabalhos devem ser encaminhados para cpmg@cpmg.org.br.

Sugere-se que o assunto do e-mail seja “Reverso” ou “Texto para Reverso”.

98
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - Sócios
ANA BOCZAR ELIANE MUSSEL DA SILVA
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ANA CRISTINA TEIXEIRA DA COSTA SALLES GUIOMAR ANTONIETA LAGE


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ANDERSON DE SOUZA SANT’ANNA ISABELA SANTORO CAMPANÁRIO


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E-mail: anderson.santanna@fgv.br E-mail: isabelasantoro@uol.com.br

ANGELA LUCENA DE SOUZA PIRES JULIANA MARQUES CALDEIRA BORGES


Rua Helena Antipoff, 364 - São Bento Rua Padre Rolim, 815/307 - São Lucas
30350-690 - BELO HORIZONTE (MG) 30130-090 - BELO HORIZONTE (MG)
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ARLINDO CARLOS PIMENTA MARIA ANGELA ASSIS DAYRELL


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BRENO FERREIRA PENA MARIA AUXILIADORA TOLEDO GARCIA FREIRE


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Tel.: (91)98418.4042 Tel.: (31)99504-7637
E-mail: brenopena@hotmail.com E-mail: dodoratoledo@hotmail.com

CARLOS ANTÔNIO ANDRADE MELLO MARIA CAROLINA BELLICO FONSECA


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Tel.: (31)3241-4647 Tel.: (31)99331-2442
E-mail: carlosaamello@gmail.com E-mail: carolinabellico@gmail.com

DÉLIA RODRIGUES FRAZÃO MARIA DE LOURDES ELIAS PINHEIRO


Rua Rodrigues Caldas, 740/902 - Santo Agostinho Av. Brasil, 1831/1001 - Funcionários
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ELGA ROSALVA SILVA MARIA DO CARMO BARBOSA MENDES


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31744-134 - BELO HORIZONTE (MG) 30170-132 - BELO HORIZONTE (MG)
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ELIANA MONTEIRO DE MOURA VERGARA MARIA HELENA RICARDO LIBÓRIO BARBOSA MELLO
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ELIANA RODRIGUES PEREIRA MENDES MARIA HELOISA NORONHA BARROS


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99
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