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Creio que com a série de aspectos que irei, desenvolver neste item, se perceberá
uma coisa fundamental: que minha intenção – ainda que me sinta solicitado para falar sobre
um tema que é mais analisado por historiadores, sociólogos ou estudiosos intérpretes da
cultura: a questão da modernidade – é demonstrar que não podemos esperar que um filósofo
seja um autor de teorias políticas, econômicas, sociais ou teorias da cultura. Os teóricos destes
campos poderão usar questões filosóficas para fazer suas teorias. Mas não é tarefa do filósofo
ser fiador de teorias que interpretem a modernidade, que interpretem a biologia, a psicologia,
etc. O filósofo não tem acesso, na competência e na sua fala, a um campo colado ao empírico,
ao universo da experiência empírica. Apesar disso penso que temos que perceber, cada vez
mais, como, contudo, existe um caminho de duas mãos em que filosofia e conhecimento
empírico e conhecimento das ciências humanas (ciências hermenêuticas) transitam e
interagem3. Portanto, a Filosofia não necessariamente desconhece as conquistas do universo
da ciência e é por isso que ela, necessariamente, também tem uma obrigação de acompanhar
os fenômenos, ao menos os fenômenos abordados pelo campo de alguma ciência. Digamos
que seja bom para o filósofo conhecer sociologia ou psicanálise/psicologia, ou direito, etc.,
isso faz com que a atividade filosófica não termine sendo uma recepção no vazio de um
trabalho mais filológico e histórico. A Filosofia se perde numa auto-reprodução em pensar-se
a si mesmo como história da filosofia e se não há uma experiência num outro campo, pode-se
estar a correr um grande risco de aderir à escolha de uma teoria filosófica como se fosse
verdade, desconhecendo todo o universo que o conhecimento humano desenvolve para além
da filosofia.
Tendo isso claro, é importante também perceber que não podemos determinar um
objeto específico para a filosofia. Tanto assim que a filosofia é apenas um campo com
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Este texto foi elaborado com base na conferência proferida na Universidade do Vale do Rio dos Sinos em São
Leopoldo-RS no dia 23.05.2007, por ocasião do colóquio internacional “O Futuro da Autonomia: Uma sociedade
de indivíduos?”, realizado pelo Instituto Humanitas (IHU) entre os dias 21.05.2007 e 24.05.2007.
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Filósofo. Pesquisador 1 A do CNPq. Professor do Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUC-RS.
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Cf. STEIN, Ernildo. Pensar é Pensar a Diferença. Filosofia e Conhecimento empírico. Ijuí: Unijuí, 2002.
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de ser-no-mundo4, introduziu pela analítica existencial, uma variante que se baseia no ser-em
num mundo em que já sempre me compreendo que acompanha todo meu conhecimento.
A questão que irei abordar aqui, o cenário da era na técnica e das inquietações que
pairam no ar, na era do dispositivo, não é uma questão que Heidegger escolheu de maneira
aleatória. Gadamer relata que, já numa das primeiras aulas de Heidegger a que ele assistira,
nos anos 20, o filósofo falava de um estado que nos acompanha, além dos atos de intenção,
em que nos concentramos em um objeto. Dizia Heidegger que, além dos atos que são
intencionados, existem atos que são atencionados. Os antigos falavam em actus exercitus
(intentio obliqua) que é um ato que acompanha, o actus signatus (intentio recta) do qual
temos consciência. Podemos estar escrevendo e, ao mesmo tempo, ouvir uma sinfonia de
Beethoven. Não estamos concentrados na sinfonia: ela apenas está presente como ato
exercido, como algo que acontece simultaneamente. Se alguém perguntar o que eu estava
fazendo posso dizer: estava escrevendo. E se continuarem a me questionar – mas não havia
mais nada? Então diria: havia um piano tocando no fundo. Temos, portanto, que distinguir
entre um ato intencionado e um ato atencionado. Gadamer, ao ouvir Heidegger dizer que a
fenomenologia era capaz de trazer a tona não apenas o universo intencionado, mas também o
universo atencionado, no qual nos movemos nos nossos atos, quando nos relacionamos com
pessoas, coisas, objetos, viu abrir-se um horizonte novo que Heidegger abria para filosofia.
Heidegger descobriu que há um ato atencionado, que não é simplesmente um ato
intencionado, de objetivação, mas que acontece enquanto nos ocupamos com objetos como o
todo de um compreender. Isso que acontece está ligado à nossa compreensão de ser.
Esse testemunho de Gadamer nos impressiona porque mostra como Heidegger
começou a fazer uma distinção entre dois universos no nível do compreender. Podemos estar
empiricamente envolvidos com objetos e, ao mesmo tempo, estamos ocupados com algo não
presente empiricamente, mas ontologicamente operado no compreender. Há uma
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Em outra oportunidade, explorando as origens do conceito de mundo em Heidegger, destaquei que o filósofo
explora três caminhos na investigação do conceito de mundo: a) a análise ontológico-compreensiva-estrutural,
realizada em Ser e Tempo; b) a análise da gênese histórico filosófica, levada a efeito na conferência Sobre a
essência do fundamento; c) a análise comparativo-diferencial: mundo da pedra, mundo do animal e mundo do
homem. A pedra é sem mundo, o animal é pobre de mundo e o homem é formador de mundo. Este último
caminho é explorado no livro Conceitos fundamentais da Metafísica: Mundo, Finitude e Solidão. Para uma
explicação mais detalhada, permito-me remeter o leitor para: STEIN, Ernildo. Mundo vivido. Das vicissitudes e
dos usos de um conceito da fenomenologia. Porto Alegre: Edipucrs, 2004, em especial pp. 141 e segs.
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aqui deste novo modo filosófico de Heidegger abordar a modernidade e seu destino
fundamental, a técnica.
Certamente um dos temas que mais preocupam Heidegger, além dos temas
filosóficos tradicionais, é a questão da técnica. Como o ser humano não pode mais ser
objetificado – na analítica existencial realizada pela fenomenologia hermenêutica não se
objetifica, mas se pensa um acontecer, há outros modos de manifestação - é preciso que ele
seja olhado desde o ponto de vista do mundo no qual se move e em que ele é formador de
sentido. Não é um mundo de objetos, mas um mundo que se forma com o ser-no-mundo como
sentido. Assim as coisas ao nosso redor são marcadas pelo sentido que é resultado da
compreensão do ser pelo ser-aí. Mesmo uma pedra que está à mão pode receber uma forma e
ser colocada em algum lugar e essa pedra passa então a ter sentido.
Isso pode ser descrito em três dimensões:
a) A primeira se dá porque nós, como seres humanos, estamos sempre aí, no
mundo, e vivemos em função do cuidado de nós mesmos, compreendemos-nos e
compreendemos o ser.
b) Em função desse cuidado conosco mesmos, também desenvolvemos uma
relação significativa com os objetos, os artefatos, os instrumentos; com aquilo cujo modo de
ser nos atinge no mundo da compreensão, os entes disponíveis (Zuhandenheit);
c) a do mundo das coisas que estão simplesmente aí (Vorhandenheit).
Se há mundo natural com sentido é graças à compreensão do ser. Os eventos, os
objetos não são significativos a menos que o homem os encontre. Um enxame de abelhas é
apenas um enxame de abelhas até que alguém o recolha; as leis de Newton só existem porque
um físico as registrou. De alguma maneira, todo o mundo natural entra neste mundo que se
abre pela compreensão do ser.
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Essas quatro conferências compõem juntas um ciclo de conferências intitulado Einblick in das was ist (Lance
de olhos para dentro daquilo que é) que marcam a estréia pública de Heidegger depois de seus quinze anos de
ostracismo e foram realizadas em Bremen no ano de 1949 Cf. STEIN, Ernildo. Diferença e Metafísica. Ensaios
sobre a desconstrução. Porto Alegre: Edipucrs, 2000, pp. 98 e segs.
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Esses quatro temas se articulam em função do problema da técnica. Ele diz que isso é um
Einblick in das was ist (Lance de olhos para dentro daquilo que é). Vem mostrar como as
coisas podem ser descritas fenomenologicamente como um acontecer. Então a Coisa se põe
como problema fundamental para nos levar a compreendermos mais rapidamente a idéia de
uma objetificação. Numa relação objetificadora o sentido da Coisa se esgota no seu uso. Ou
seja, estamos cercados por um universo de mercadorias que o mercado nos oferece ao infinito.
Para Heidegger essa relação certamente é empírica. Mas, ao mesmo tempo, o ser humano tem
uma outra relação, significativa – e não apenas sensível – com todos esses objetos. Se a Coisa
é convertida apenas em objeto e não se percebe o contexto significativo, no qual ela se
articula conosco no dia-a-dia, estará perdida a dimensão fundamental em que o mundo no
qual nós estamos nos insere no todo que nos leva a transcender a simples manifestação do
objeto.
Quando, por exemplo, Habermas fala de três elementos determinantes para que o
ser humano possa se adequar a um contexto de convívio: o elemento da cultura, que nós
temos que entender em seus símbolos; o elemento da sociedade, no qual temos que nos
integrar não como sociopatas, mas aceitando as leis; e o elemento da identidade, no qual nós
temos que encontrar, de alguma maneira, a nós mesmos enquanto indivíduos sem conflitos
exagerados –, ele apresenta uma idéia interessante. Mas isso não é filosofia. Pode ser uma
reflexão do ponto de vista de uma teoria sociológica. Entretanto, se olharmos a questão do ser
humano, no nível filosófico de o compreender no mundo, no sentido da relação com a Coisa –
e o ser humano tendendo sempre a se concentrar na Coisa no presente, não percebendo ela nas
três dimensões do cuidado e do tempo, como um elemento significativo que amplia a
existência, nós limitamos nossa condição de ser. Isto representa (fenomenologiacamente) um
outro modo de ver o homem, numa dimensão que transcende a mera relação do objeto.
Heidegger leva adiante a análise da questão da coisa, mostrando como uma ponte,
um sapato, uma obra de arte com a qual nos relacionamos, tudo que se apresenta como ente à
mão, disponível, possui uma dimensão de celebração, como um encontro, um acontecer de
sentido, em que o compreendemos como ser.
O Filósofo vê os seres humanos – e aqui ele se apropria de Hölderlin – articulados
numa quaternidade: os mortais e os deuses, a terra e os céus. É claro que são expressões que
não devem ser levadas ao pé da letra. Elas são uma espécie de metáfora, de elemento
simbólico em que o equilíbrio da relação com a Coisa se manifesta. Quando percebemos a
Coisa nessa dimensão quatripartite, isto é, quando vemos a Coisa, por exemplo, uma jarra de
vinho, não somos apenas humanos, mas os mortais que celebram a sua finitude. Podemos
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transcender essa jarra para usá-la no altar de Baco e fazer uma oferenda: Mortais e Deuses.
Podemos, ao mesmo tempo, ver nessa jarra a terra em que nos enraizamos e também uma
dimensão de abertura que recebe os céus: Terra e Céus. Isso possibilita uma série de acenos
que exploram a questão da Coisa nesta totalidade significativa presente na quaternidade:
Mortais e deuses, terra e céus.
O segundo objeto de análise Heidegger denominou de Ge-stell, o elemento do
Dis-positivo. Conhecemos toda uma tradição sobre o Dispositivo: Há os dispositivos de
Foucalt, os dispositivos de Lacan, os dispositivos de Derrida. Podemos achar muito
importante essa idéia de dispositivo da tradição francesa, mas ela se apresenta com outro
sentido que aquele no qual Heidegger se move. O filósofo situa o Dis-positivo numa estrutura
de dupla dimensão. Para Heidegger existe o jogo de um fundo e um raso, a dimensão do ser e
do ente. Não é uma dualidade. Mas não há ser sem ente e não há ente sem ser. Entretanto, a
nossa tendência – como na Coisa – é de encobrir o ser e só pensar o ente como ente6. Nós não
nos damos conta de que tudo é, e que estamos ligados com a nossa condição de ser-no-mundo
com tudo que é no mundo. Compreendemos o ser e nos compreendemos. Movemo-nos na
diferença ontológica – ser e ente.
Heidegger mostra, que na tradição metafísica, sempre se quis explicar esse
compromisso por uma espécie de vínculo central. Cada época da metafísica identificou esse
modo do vínculo com um ente. A Idéia em Platão: o mundo do ideal lá em cima e os entes
aqui embaixo. Na Idade Média: O Ser que nos criou e com ele permanecemos vinculados.
Esse Ser que é um Deus. Mas não um Deus como ser, mas como um ente. Em Descartes, a
consciência, o cogito ergo sum; em Kant, o Eu Penso que acompanha todos meus juízos; em
Hegel, o Saber Absoluto; em Nietzsche, a Vontade de Poder. Cada filosofia confundiu essa
dimensão de ser que a fenomenologia descreve e que está ligada à compreensão de ser,
descrevendo-a como um ente. No texto O tempo da imagem do mundo7, Heidegger mostra
como cada um destes princípios que confundiram o ser com um ente, são princípios epocais.
Na época do ser como subjetividade, todos os campos do conhecimento são interpretados a
partir da subjetividade. A história, o direito, a psicologia, a política, a economia, a sociologia,
tudo é pensado através deste ente que é considerado como o que está por baixo dos entes: É
considerado mais ente dos que os outros entes.
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“Tão finitos somos nós que necessitamos do conceito de ser para pensar”, diz Heidegger.
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O texto citado se encontra traduzido entre nós em: SCHNEIDER, Paulo Rudi. Um outro Pensar. Ijuí: Unijuí,
2006.
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Cf. STEIN, Ernildo. Pensar é pensar a diferença. op. cit..
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