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A era do dispositivo

- Um modo heideggeriano de pensar a questão da técnica1 -


Ernildo Stein2

1. A caminho do mundo ou do a priori compartilhado

Creio que com a série de aspectos que irei, desenvolver neste item, se perceberá
uma coisa fundamental: que minha intenção – ainda que me sinta solicitado para falar sobre
um tema que é mais analisado por historiadores, sociólogos ou estudiosos intérpretes da
cultura: a questão da modernidade – é demonstrar que não podemos esperar que um filósofo
seja um autor de teorias políticas, econômicas, sociais ou teorias da cultura. Os teóricos destes
campos poderão usar questões filosóficas para fazer suas teorias. Mas não é tarefa do filósofo
ser fiador de teorias que interpretem a modernidade, que interpretem a biologia, a psicologia,
etc. O filósofo não tem acesso, na competência e na sua fala, a um campo colado ao empírico,
ao universo da experiência empírica. Apesar disso penso que temos que perceber, cada vez
mais, como, contudo, existe um caminho de duas mãos em que filosofia e conhecimento
empírico e conhecimento das ciências humanas (ciências hermenêuticas) transitam e
interagem3. Portanto, a Filosofia não necessariamente desconhece as conquistas do universo
da ciência e é por isso que ela, necessariamente, também tem uma obrigação de acompanhar
os fenômenos, ao menos os fenômenos abordados pelo campo de alguma ciência. Digamos
que seja bom para o filósofo conhecer sociologia ou psicanálise/psicologia, ou direito, etc.,
isso faz com que a atividade filosófica não termine sendo uma recepção no vazio de um
trabalho mais filológico e histórico. A Filosofia se perde numa auto-reprodução em pensar-se
a si mesmo como história da filosofia e se não há uma experiência num outro campo, pode-se
estar a correr um grande risco de aderir à escolha de uma teoria filosófica como se fosse
verdade, desconhecendo todo o universo que o conhecimento humano desenvolve para além
da filosofia.
Tendo isso claro, é importante também perceber que não podemos determinar um
objeto específico para a filosofia. Tanto assim que a filosofia é apenas um campo com

1
Este texto foi elaborado com base na conferência proferida na Universidade do Vale do Rio dos Sinos em São
Leopoldo-RS no dia 23.05.2007, por ocasião do colóquio internacional “O Futuro da Autonomia: Uma sociedade
de indivíduos?”, realizado pelo Instituto Humanitas (IHU) entre os dias 21.05.2007 e 24.05.2007.
2
Filósofo. Pesquisador 1 A do CNPq. Professor do Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUC-RS.
3
Cf. STEIN, Ernildo. Pensar é Pensar a Diferença. Filosofia e Conhecimento empírico. Ijuí: Unijuí, 2002.
2

preparação formal e diploma no Brasil e em alguns países da América Latina. Na Europa, a


filosofia nem consta como preparação formal e diploma. Neste caso, a filosofia é considerada
um campo de discussão, na universidade, que se pode levar adiante no mestrado e doutorado
que, no caso europeu, estão articulados num processo de pesquisa.
Isso não impede que a filosofia traga consigo as três direções que a legislação
federal colocou, por exemplo, para a psicologia em que se estabelecem três tipos específicos
de formação. Até o quarto semestre a formação é conjunta. A partir daí a formação se dirige
para a formação de professores de psicologia no curso de licenciatura; para a formação de
clínicos; e, entre estas duas formações, há aquela que se dirige para a pesquisa, direcionada
para a pós-graduação. Na Filosofia, podemos identificar essa mesma característica. Existe
uma formação filosófica em licenciatura dirigida para a formação de professores –
principalmente agora com a institucionalização da filosofia como disciplina obrigatória em
todo ensino médio, o que acarreta uma certa profissionalização da filosofia; existe também
uma formação filosófica que pode seguir uma direção que existe na Europa, que é uma
espécie de práxis filosófica, em que o filósofo tem um gabinete e recebe pessoas para resolver
problemas do conhecimento; e no meio destas duas existe propriamente aquela formação para
aqueles que pretendem dar continuidade à pesquisa com o mestrado e o doutorado.
Mas certamente todas estas coisas não irão limitar e deixar de fazer com que a
filosofia seja compreendida basicamente como um campo do conhecimento cuja definição
muda com os tempos, mas que sempre tem como elemento essencial uma tentativa de pensar
o universo em que nos movemos enquanto conhecemos. Portanto, podemos dizer que, passado
o tempo do conhecimento metafísico, em que a filosofia operava com dois mundos, nós
entramos no tempo, com Kant, da metafísica do conhecimento – passamos do conhecimento
metafísico, para a metafísica do conhecimento – onde o trabalho de pesquisa na filosofia é
feito em função do fundamento do conhecimento.
A tradição mais contemporânea, do século 20, certamente teve influência da
forma kantiana de pensar a filosofia como fundamento a priori de toda reflexão. E disto vem
a pergunta: como é possível uma vinculação, ou uma ponte entre conhecimento empírico, as
experiências empíricas e o elemento inteligível, o elemento a priori do conhecimento. Ou
então, a relação entre consciência e mundo, palavras e coisas, significado e objetos. Esse
sempre foi o grande problema da filosofia e que não podemos mais resolver na modernidade
simplesmente introduzindo Deus, ou um mito, ou uma raça, ou uma cultura na base desse
conhecimento. Necessariamente temos de nos apoiar sobre nós mesmos para estabelecer as
3

condições do conhecimento. E assim se desenvolveram os três campos do conhecimento, que


certamente não podemos recusar e que são desenvolvidos na tradição analítica:
a) A filosofia analítica da mente, que é o domínio de análise da consciência, da
representação, dos estados mentais;
b) A filosofia analítica do conhecimento – que examina os problemas das
condições de possibilidade do conhecimento;
c) E a filosofia analítica da linguagem que, de alguma forma, opera nos dois
campos (mente e conhecimento), e representa também uma esfera independente desde a
virada lingüística na filosofia.
Kant foi quem colocou um desafio dizendo que: É um escândalo não termos
encontrado, ainda, uma ponte entre consciência e mundo. Heidegger irá responder, em Ser e
Tempo, que o escândalo é ainda estarmos procurando esta ponte entre consciência e mundo.
Esta é a revolução da filosofia no século 20. É uma revolução na qual Heidegger tem uma
certa proeminência com sua obra e a fenomenologia. Mas é uma questão colocada, também,
por exemplo, já por Sellars. Além da resolução entre conhecimento intelectual e
conhecimento empírico – que termina reduzindo o conhecimento intelectual ao conhecimento
empírico, porque coloca a causalidade como princípio determinante do conhecimento
intelectual – ele fala de uma idéia atenuada de mundo no qual nos movemos.
Sellars e seus seguidores, com a introdução do espaço lógico da natureza e do
espaço lógico das razões e com a crítica ao “mito do dado”, já colocaram em dúvida a idéia
de representação, de fundamento e de verdade correspondencial, movendo-se em direção ao
problema da linguagem. Mesmo o lógico Bertrand Russell, ao falar em tipos lógicos e dos
problemas de operar com os fundamentos da lógica, afirma que nós precisamos de algo
comum. Chama esse algo em comum de acquaintance, uma palavra inglesa difícil de traduzir,
mas que, basicamente, pode significar que nós precisamos de uma certa familiaridade. Hoje
em dia chamamos isso de a priori compartilhado. Esse a priori compartilhado é o campo no
qual a filosofia se move e, portanto, não se trata mais de encontrar uma passagem entre
consciência e mundo, mas de descrever o ser humano como um todo, já sempre num mundo,
em que se opera o conhecimento empírico. Mas o conhecimento empírico não operaria sem o
conhecimento transcendental (não-clássico), sem o conhecimento a priori. Para isso, se
propuseram várias soluções conforme os paradigmas filosóficos. Heidegger, com seu conceito
4

de ser-no-mundo4, introduziu pela analítica existencial, uma variante que se baseia no ser-em
num mundo em que já sempre me compreendo que acompanha todo meu conhecimento.

2. A descoberta de uma dupla estrutura

A questão que irei abordar aqui, o cenário da era na técnica e das inquietações que
pairam no ar, na era do dispositivo, não é uma questão que Heidegger escolheu de maneira
aleatória. Gadamer relata que, já numa das primeiras aulas de Heidegger a que ele assistira,
nos anos 20, o filósofo falava de um estado que nos acompanha, além dos atos de intenção,
em que nos concentramos em um objeto. Dizia Heidegger que, além dos atos que são
intencionados, existem atos que são atencionados. Os antigos falavam em actus exercitus
(intentio obliqua) que é um ato que acompanha, o actus signatus (intentio recta) do qual
temos consciência. Podemos estar escrevendo e, ao mesmo tempo, ouvir uma sinfonia de
Beethoven. Não estamos concentrados na sinfonia: ela apenas está presente como ato
exercido, como algo que acontece simultaneamente. Se alguém perguntar o que eu estava
fazendo posso dizer: estava escrevendo. E se continuarem a me questionar – mas não havia
mais nada? Então diria: havia um piano tocando no fundo. Temos, portanto, que distinguir
entre um ato intencionado e um ato atencionado. Gadamer, ao ouvir Heidegger dizer que a
fenomenologia era capaz de trazer a tona não apenas o universo intencionado, mas também o
universo atencionado, no qual nos movemos nos nossos atos, quando nos relacionamos com
pessoas, coisas, objetos, viu abrir-se um horizonte novo que Heidegger abria para filosofia.
Heidegger descobriu que há um ato atencionado, que não é simplesmente um ato
intencionado, de objetivação, mas que acontece enquanto nos ocupamos com objetos como o
todo de um compreender. Isso que acontece está ligado à nossa compreensão de ser.
Esse testemunho de Gadamer nos impressiona porque mostra como Heidegger
começou a fazer uma distinção entre dois universos no nível do compreender. Podemos estar
empiricamente envolvidos com objetos e, ao mesmo tempo, estamos ocupados com algo não
presente empiricamente, mas ontologicamente operado no compreender. Há uma
4
Em outra oportunidade, explorando as origens do conceito de mundo em Heidegger, destaquei que o filósofo
explora três caminhos na investigação do conceito de mundo: a) a análise ontológico-compreensiva-estrutural,
realizada em Ser e Tempo; b) a análise da gênese histórico filosófica, levada a efeito na conferência Sobre a
essência do fundamento; c) a análise comparativo-diferencial: mundo da pedra, mundo do animal e mundo do
homem. A pedra é sem mundo, o animal é pobre de mundo e o homem é formador de mundo. Este último
caminho é explorado no livro Conceitos fundamentais da Metafísica: Mundo, Finitude e Solidão. Para uma
explicação mais detalhada, permito-me remeter o leitor para: STEIN, Ernildo. Mundo vivido. Das vicissitudes e
dos usos de um conceito da fenomenologia. Porto Alegre: Edipucrs, 2004, em especial pp. 141 e segs.
5

compreensão de um mundo em cujo âmbito se dá o objeto que referimos ou o ato que


exercemos. Há um mundo que acontece. Operamos o tempo todo com esse acontecer. O que a
metafísica nunca fez, em Ser e Tempo e na fenomenologia, se levantou como questão
fundamental: que nossa condição humana e nossa possibilidade de sobrevivência se fazem em
dois níveis.
Não somos obrigados a fazer conscientemente toda a enumeração de atos, fatos,
acontecimentos e decisões que tomamos porque já operamos num mundo em que se instaura o
sentido junto com o que objetivamos. Se vamos tomar um ônibus na frente da Universidade,
não precisamos dizer: Agora vamos nos levantar; agora vamos arrastar um objeto que é uma
cadeira; agora vamos atravessar um vão que pode se abrir, que é uma porta; isso é um ônibus,
não é um tanque. Com tudo isso está operando em nós uma segunda estrutura, enquanto
executamos passos, enquanto podemos, inclusive, ler um texto até chegar ao ônibus. Há,
portanto, uma facilitação do operar humano, uma desoneração, que não se dá no operar de um
chimpanzé. O chimpanzé, necessariamente, no momento em que ele se move em seu mundo,
está se movendo com passos, com confiança, suspeita, agressividade; ele está se guiando pelo
cheiro, pela ambiência; ele está alimentando o seu mover-se pelo próprio modo de ser no
habitat. Nós nos movimentamos no mundo empírico, enquanto já nos pré-compreendemos no
todo. Nossa grande diferença sobre todos os antropóides é que somos formadores de mundo,
ele não nos captura e paraliza; nós o abrimos num horizonte que dilatamos pela compreensão.
Sustentar essa camada que funciona para além da relação sujeito-objeto, mover-se
nessa camada é uma grande conquista do ponto de vista do ser humano. Mas também é uma
grande conquista da fenomenologia para a filosofia. Esta dimensão do a priori compartilhado
torna possível toda experiência e a faz humana.
Ao, portanto, olharmos para a questão da modernidade e a questão da técnica, não
estamos dando grandes explicações sobre a origem dos motores, sobre a primeira revolução
industrial, a segunda revolução industrial, ou a terceira revolução industrial – que alguns
chamam “a revolução do cérebro”. Não estamos tocando nisso diretamente. Tocamos nisso,
de alguma maneira, porque, por trás de todos esses movimentos, existe um mundo comum
entre nós e esse mundo da técnica. A compreensão antecipadora e o a priori compartilhado é
isso que visamos nesta exposição. Portanto, não estamos fazendo observações sobre a
realidade empírica como sociólogo, psicólogo, antropólogo, etc. Iremos fazer observações
sobre como Heidegger procurou compreender essa estrutura fundamental que iniciou a
modernidade.
6

Na famosa carta de 1963, em resposta a um professor japonês que perguntava pela


desumanização do mundo, Heidegger afirma: Porque a Europa passou a espalhar no mundo,
pela ciência e pela técnica, o modo matemático de ver as coisas. Por que isso levou a
desumanização? Heidegger reformula a pergunta do professor, dizendo que existe uma
europeização do mundo. Essa europeização significa o desenvolvimento do processo do
conhecimento científico e das invenções e a universalização da técnica. Essa desumanização
aparece no confronto com o sentido no qual nós nos movemos com nossas questões da
modernidade. Heidegger põe esse problema num nível filosófico em que retoma sua
interpretação da técnica pelo dis-positivo (Ge-stell).
Dito isto, vamos fazer a passagem analisando os modos de como se pode fazer
filosofia. Podemos dividir o modo de filosofar em três níveis:
a) A filosofia ornamental em que tiramos uma frase de um filósofo e a colocamos
em uma tese de um determinado campo científico, porque aí fica mais bonito. Para isso se
prestam certas obras filosóficas de qualidade em geral duvidosa.
b) A filosofia de orientação em que se toma, por exemplo, um livro de ética e
procura retirar daí uma lição para a vida ou uma resposta a questões pontuais.
c) A filosofia de paradigma é propriamente a filosofia que temos que levar a sério.
É a filosofia que estabelece standards de racionalidade ou que oferece um paradigma novo,
um universo temático epistêmico ou ontológico capaz de se difundir e de surpreender pela
originalidade.
Essa questão que analisaremos agora já foi enfrentada anteriormente, mas em
paradigmas inadequados para ela. Na tradição temos o paradigma do objetivismo ontológico,
o da subjetividade, onde pelo esquema sujeito-objeto se quer fundar o conhecimento. Cada
paradigma tem seu tema fundamental e aplica seu modo de ver a temas presentes nas
formações culturais de cada época.
Heidegger desenvolveu um paradigma em sua filosofia. A partir dele terá um
modo específico de ver a modernidade e a questão da técnica. Em Heidegger, a questão da
técnica e a questão da arte, que estão relacionadas, são dois elementos importantes que são
utilizados para mostrar como naquele universo que está acontecendo – não-intencionado – o
universo da condição humana, há dimensões que não são aquelas que podemos demonstrar
empiricamente mediante experimentação ou mediante certas observações igualmente
empíricas. Nelas há um a priori que podemos estabelecer como dimensão que pode ser
modelo para um novo modo de pensar. Aí surge um novo modo de abordar a técnica. Falamos
7

aqui deste novo modo filosófico de Heidegger abordar a modernidade e seu destino
fundamental, a técnica.
Certamente um dos temas que mais preocupam Heidegger, além dos temas
filosóficos tradicionais, é a questão da técnica. Como o ser humano não pode mais ser
objetificado – na analítica existencial realizada pela fenomenologia hermenêutica não se
objetifica, mas se pensa um acontecer, há outros modos de manifestação - é preciso que ele
seja olhado desde o ponto de vista do mundo no qual se move e em que ele é formador de
sentido. Não é um mundo de objetos, mas um mundo que se forma com o ser-no-mundo como
sentido. Assim as coisas ao nosso redor são marcadas pelo sentido que é resultado da
compreensão do ser pelo ser-aí. Mesmo uma pedra que está à mão pode receber uma forma e
ser colocada em algum lugar e essa pedra passa então a ter sentido.
Isso pode ser descrito em três dimensões:
a) A primeira se dá porque nós, como seres humanos, estamos sempre aí, no
mundo, e vivemos em função do cuidado de nós mesmos, compreendemos-nos e
compreendemos o ser.
b) Em função desse cuidado conosco mesmos, também desenvolvemos uma
relação significativa com os objetos, os artefatos, os instrumentos; com aquilo cujo modo de
ser nos atinge no mundo da compreensão, os entes disponíveis (Zuhandenheit);
c) a do mundo das coisas que estão simplesmente aí (Vorhandenheit).
Se há mundo natural com sentido é graças à compreensão do ser. Os eventos, os
objetos não são significativos a menos que o homem os encontre. Um enxame de abelhas é
apenas um enxame de abelhas até que alguém o recolha; as leis de Newton só existem porque
um físico as registrou. De alguma maneira, todo o mundo natural entra neste mundo que se
abre pela compreensão do ser.

3. Os quatro passos de Heidegger para dentro do enigma da técnica

Heidegger fez quatro conferências em 1949, quando reapareceu depois da guerra5.


A primeira conferência foi sobre A Coisa (Das Ding); a segunda sobre O Dis-positivo (Das
Ge-stell); a terceira sobre O Perigo (Die Gefahr); e a quarta sobre A Viravolta (Die Kehre).

5
Essas quatro conferências compõem juntas um ciclo de conferências intitulado Einblick in das was ist (Lance
de olhos para dentro daquilo que é) que marcam a estréia pública de Heidegger depois de seus quinze anos de
ostracismo e foram realizadas em Bremen no ano de 1949 Cf. STEIN, Ernildo. Diferença e Metafísica. Ensaios
sobre a desconstrução. Porto Alegre: Edipucrs, 2000, pp. 98 e segs.
8

Esses quatro temas se articulam em função do problema da técnica. Ele diz que isso é um
Einblick in das was ist (Lance de olhos para dentro daquilo que é). Vem mostrar como as
coisas podem ser descritas fenomenologicamente como um acontecer. Então a Coisa se põe
como problema fundamental para nos levar a compreendermos mais rapidamente a idéia de
uma objetificação. Numa relação objetificadora o sentido da Coisa se esgota no seu uso. Ou
seja, estamos cercados por um universo de mercadorias que o mercado nos oferece ao infinito.
Para Heidegger essa relação certamente é empírica. Mas, ao mesmo tempo, o ser humano tem
uma outra relação, significativa – e não apenas sensível – com todos esses objetos. Se a Coisa
é convertida apenas em objeto e não se percebe o contexto significativo, no qual ela se
articula conosco no dia-a-dia, estará perdida a dimensão fundamental em que o mundo no
qual nós estamos nos insere no todo que nos leva a transcender a simples manifestação do
objeto.
Quando, por exemplo, Habermas fala de três elementos determinantes para que o
ser humano possa se adequar a um contexto de convívio: o elemento da cultura, que nós
temos que entender em seus símbolos; o elemento da sociedade, no qual temos que nos
integrar não como sociopatas, mas aceitando as leis; e o elemento da identidade, no qual nós
temos que encontrar, de alguma maneira, a nós mesmos enquanto indivíduos sem conflitos
exagerados –, ele apresenta uma idéia interessante. Mas isso não é filosofia. Pode ser uma
reflexão do ponto de vista de uma teoria sociológica. Entretanto, se olharmos a questão do ser
humano, no nível filosófico de o compreender no mundo, no sentido da relação com a Coisa –
e o ser humano tendendo sempre a se concentrar na Coisa no presente, não percebendo ela nas
três dimensões do cuidado e do tempo, como um elemento significativo que amplia a
existência, nós limitamos nossa condição de ser. Isto representa (fenomenologiacamente) um
outro modo de ver o homem, numa dimensão que transcende a mera relação do objeto.
Heidegger leva adiante a análise da questão da coisa, mostrando como uma ponte,
um sapato, uma obra de arte com a qual nos relacionamos, tudo que se apresenta como ente à
mão, disponível, possui uma dimensão de celebração, como um encontro, um acontecer de
sentido, em que o compreendemos como ser.
O Filósofo vê os seres humanos – e aqui ele se apropria de Hölderlin – articulados
numa quaternidade: os mortais e os deuses, a terra e os céus. É claro que são expressões que
não devem ser levadas ao pé da letra. Elas são uma espécie de metáfora, de elemento
simbólico em que o equilíbrio da relação com a Coisa se manifesta. Quando percebemos a
Coisa nessa dimensão quatripartite, isto é, quando vemos a Coisa, por exemplo, uma jarra de
vinho, não somos apenas humanos, mas os mortais que celebram a sua finitude. Podemos
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transcender essa jarra para usá-la no altar de Baco e fazer uma oferenda: Mortais e Deuses.
Podemos, ao mesmo tempo, ver nessa jarra a terra em que nos enraizamos e também uma
dimensão de abertura que recebe os céus: Terra e Céus. Isso possibilita uma série de acenos
que exploram a questão da Coisa nesta totalidade significativa presente na quaternidade:
Mortais e deuses, terra e céus.
O segundo objeto de análise Heidegger denominou de Ge-stell, o elemento do
Dis-positivo. Conhecemos toda uma tradição sobre o Dispositivo: Há os dispositivos de
Foucalt, os dispositivos de Lacan, os dispositivos de Derrida. Podemos achar muito
importante essa idéia de dispositivo da tradição francesa, mas ela se apresenta com outro
sentido que aquele no qual Heidegger se move. O filósofo situa o Dis-positivo numa estrutura
de dupla dimensão. Para Heidegger existe o jogo de um fundo e um raso, a dimensão do ser e
do ente. Não é uma dualidade. Mas não há ser sem ente e não há ente sem ser. Entretanto, a
nossa tendência – como na Coisa – é de encobrir o ser e só pensar o ente como ente6. Nós não
nos damos conta de que tudo é, e que estamos ligados com a nossa condição de ser-no-mundo
com tudo que é no mundo. Compreendemos o ser e nos compreendemos. Movemo-nos na
diferença ontológica – ser e ente.
Heidegger mostra, que na tradição metafísica, sempre se quis explicar esse
compromisso por uma espécie de vínculo central. Cada época da metafísica identificou esse
modo do vínculo com um ente. A Idéia em Platão: o mundo do ideal lá em cima e os entes
aqui embaixo. Na Idade Média: O Ser que nos criou e com ele permanecemos vinculados.
Esse Ser que é um Deus. Mas não um Deus como ser, mas como um ente. Em Descartes, a
consciência, o cogito ergo sum; em Kant, o Eu Penso que acompanha todos meus juízos; em
Hegel, o Saber Absoluto; em Nietzsche, a Vontade de Poder. Cada filosofia confundiu essa
dimensão de ser que a fenomenologia descreve e que está ligada à compreensão de ser,
descrevendo-a como um ente. No texto O tempo da imagem do mundo7, Heidegger mostra
como cada um destes princípios que confundiram o ser com um ente, são princípios epocais.
Na época do ser como subjetividade, todos os campos do conhecimento são interpretados a
partir da subjetividade. A história, o direito, a psicologia, a política, a economia, a sociologia,
tudo é pensado através deste ente que é considerado como o que está por baixo dos entes: É
considerado mais ente dos que os outros entes.

6
“Tão finitos somos nós que necessitamos do conceito de ser para pensar”, diz Heidegger.
7
O texto citado se encontra traduzido entre nós em: SCHNEIDER, Paulo Rudi. Um outro Pensar. Ijuí: Unijuí,
2006.
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Heidegger então se pergunta: Mas, se em nosso tempo, com Nietzsche,


terminaram os princípios epocais e entramos, como diz Schüremann, no tempo da an-arquia,
se antes cada um destes princípios era uma arché, isto é, era um princípio em que todo
conhecimento se atrelava – em Nietzsche todo conhecimento se atrelava à Vontade de Poder
– será que não haverá um princípio em que se funda a Técnica? Será que haveria aí um
princípio? Assim, se introduz o Ge-stell, o Dis-positivo. Portanto, o Dis-positivo seria aquilo
que em Aristóteles, é a substância; na Idade Média, era Deus; e, na modernidade, é a
subjetividade. Haveria, portanto, um princípio ao qual nos atrelamos e todos os campos do
conhecimento se ligam a um princípio destes numa época determinada e seu princípio epocal.
No século 20, ou na era da técnica, não há mais um princípio e, portanto, tudo é
possível. Não há mais um princípio, então reina o princípio da an-arquia. Mas, Heidegger
pergunta: Neste contexto, seria possível pensar um princípio como este, do Dis-positivo. Que
é o Dis-positivo? O Dis-positivo é um chip. Imaginemos um chip, ele é uma estrutura mínima
de sílica que, perpassado por uma corrente elétrica, pode acumular um livro. Este design é o
Dis-positivo. Todos os objetos são aparelhos, tudo é aparelhado. Tudo é aparelhado pelo Dis-
positivo, com que Heidegger quer pensar o enigma da técnica.
Pensemos na tradução de Ge-stell. Em princípio todos os objetos são Gestell. Um
armário é Gestell, uma cadeira é Gestell, toda atuação traz o dispositivo. Mas Ge-stell em
Heidegger se torna um nome próprio (como Dasein – que é o ser-aí). Ge-stell é aquele nome
para o que está por baixo de tudo aquilo que funciona na era da técnica. Ge-stell assume duas
dimensões:
a) Uma dimensão que representa a compulsividade do ser humano em manipular
as coisas e mudá-las. Derrubar uma árvore para fazer taboas, construir casas; usar presa de um
elefante para fabricar uma jóia, etc. Ou seja, nós temos uma compulsão ao Dis-postivo que só
o ser humano tem, a fazer objetos. A natureza é, para o ser humano, um fundo inesgotável
para fazer objetos.
b) Mas há também uma dis-posição da natureza que nos provoca – ela é uma pro-
vocação – ela nos chama a transformá-la.
Isto é a questão da modernidade. Ela está marcada por este princípio. O século 20
seria o caos, porque não há um princípio organizador, reina o princípio da an-arquia. Por isso
Heidegger diz: Deve haver no ente uma forma do design, a forma do aparelho, do
aparelhamento. Deve haver um princípio epocal no fim da metafísica. Deve haver isso que faz
com que homem e natureza permaneçam jogando entre si, conduzidos pela pro-vocação.
Assim descobrimos o homem, convertendo a natureza em fundo inesgotável de reserva. Pro-
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vocados, sustentamos essa dimensão em que se constitui o Dis-positivo (Ge-stell) como o


“princípio” que organiza nossa relação com o mundo. Um princípio muito perigoso que nos
leva a desbordar. Então, a natureza, o mundo material, termina sendo convertido num fundo
inesgotável de reserva. Olhamos para um rio e já pensamos numa usina; olhamos para uma
árvore e já pensamos em táboas; olhamos para o solo e já o convertemos em lugar de
produção. Não suportamos a provocação. Por isso Heidegger se pergunta por um elemento
pelo qual possamos pensar o que sustenta o encobrimento do ser em nossa época.
A Técnica pode levar à destruição. Havia, na época de Heidegger, a bomba
atômica. Há, hoje, as conseqüências que tornam possível qualquer manipulação da natureza
com riscos. Talvez sejamos os últimos metafísicos no Planeta Terra a produzir mutações,
clonagens, agindo na transgenia, fabricando seres humanos, fiéis ao novo “princípio”, o Dis-
positivo, caminhando pelo deserto, onde se encobre o ser em nome do pensamento que calcula
e da técnica que multiplica ao infinito os entes.
A pós-modernidade traz, assim, efetivamente uma dimensão do novo que
permanece indecifrado. Ali reina o princípio da an-arquia. Porque o que reina ali é o Dis-
positivo, aquilo que substitui o elemento normativo, a subjetividade, como fundamento. O
enigma da Técnica não foi decifrado. Conduziu a modernidade para a pós-modernidade, onde
não há mais fundamento. Talvez o Dis-positivo exerça uma função pseudo-fundadora.
Na terceira conferência, Heidegger mostra como o Dis-positivo representa O
Perigo (Die Gefahr). Porque estamos na época do novo princípio – o Dis-positivo – como
dominante. Nós sabemos que este princípio é o novo modo de entificar o ser. É o novo modo
de encobrir a nossa relação significativa com o mundo, com a natureza, com aquilo que nos
cerca, com os outros seres humanos. Assim, convertemos tudo em objeto que pode se
transformar. Tudo é objeto para ser transformado, porque somos comandados por aquilo que
nos leva a imaginar que temos recursos infinitos para nossa compulsão de produzir objetos.
Heidegger observa que deve haver um risco radical nesta relação do Dis-positivo de
manipulação. Temos que pensar esse risco, porque esse risco é o encobrimento da relação que
temos que redescobrir, na era da Técnica, com o ser. Pensar a questão do ser, a questão do
mundo significa: Pensar o homem, que se define pela diferença ontológica.
Nesse sentido, tem que haver recursos da filosofia com os quais possamos pensar
isso e pensar de tal maneira que não caiamos vítimas da automatização do Dis-positivo e da
agressão inercial ao mundo e a nós mesmos. Deve haver um caminho que está encoberto pelo
Dis-positivo e pelo sucesso da modernidade, pelas revoluções industriais, pela produção de
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mercadorias. Na quarta conferência Heidegger fala de uma mudança. Depois do Perigo, do


Dis-positivo, a Kehre, a Viravolta, acena para uma saída.
Não é preciso ir longe para compreendê-la. O que importa é o seguinte: Temos
que ver, no fenômeno do nosso tempo, o mesmo fenômeno que comandava a era do começo
do racionalismo, a subjetividade. Depois desse princípio epocal, o novo “princípio” que
comanda o século 20 é o do Ge-stell, do Dis-positivo. Portanto, deve haver a possibilidade de
irmos para trás da condição humana, para trás da ordem da natureza, para o íntimo das
mercadorias, das ferramentas, dos artefatos, para vermos aí um mundo encoberto. Podemos
descobrir uma dimensão de abertura em que há um acontecer conosco e com o mundo que
está alem da pura pro-vocação e de resposta de transformação. Um mundo do encontrar-se, a
dimensão do acontecer, do encontro. A fenomenologia orienta para isso: Para fazer ver essa
dimensão.
Temos então a dimensão em que podemos pensar que além do Ge-stell, do Dis-
positivo, há uma saída, uma nova possibilidade. Para isso se exige a Viravolta – encoberta
pelo que impera – em que nós encontramos um modo de pensar que nos permite fazer o
movimento de volta. O Heidegger II, na Carta sobre o humanismo, a Jean Beaufret, descreve
um pouco como ele evoluiu desde Ser e Tempo para afirmar o seguinte: “Aqui tudo se
inverte”, (Hier kehrt sich alles sum). Há uma mutação, uma virada. Nós não somos apenas
subjetividades que abocanham e predam os objetos ao nosso redor. Os fenômenos vem ao
nosso encontro, se desvelam. Somos determinados por uma história na qual nos movemos, a
história do ser, o esquecimento do ser. O esquecimento do ser, no século 20, é o império do
Dis-positivo (Ge-stell). A Técnica encobre. Somos, portanto, levados pelo Ge-stell. Ora,
Heidegger diz ter visto (daí Einblick in das was ist) e aberto essa saída pela fenomenologia
como ele a apresenta – pela fenomenologia hermenêutica. Diz ter descoberto e visto que é
possível uma relação em que o ser humano cultiva, protege, desenvolve, tudo aquilo que
fazemos, mas numa dupla dimensão. Essa dimensão é a dimensão em que tudo se relaciona
enquanto é. Na conferencia Que significa pensar?, que analiso no livro Pensar é pensar a
diferença8, o filosofo diz: “A laranjeira que está em flor na minha frente enquanto estou
olhando, não está esperando que eu apanhe suas flores e as leve para casa. Ela está aí e eu
estou aí. Há um encontro. Algo aí acontece”. Tudo isso pode ser desenvolvido em nossa
relação com o mundo, acontece como mundo.

8
Cf. STEIN, Ernildo. Pensar é pensar a diferença. op. cit..
13

A expressão adequada se encontra numa frase que Heidegger descobre em


Hölderlin: Wo aber Gefahr ist, wächst Das Rettende auch. Ou seja, Onde está o perigo, aí
também nasce a salvação. Essa frase mostra como nós não devemos ser negativos com
relação a técnica e com o potencial fantástico de transformação da natureza, porque ali onde
está O Perigo (die Gefahr), ali nasce também a possibilidade da Viravolta, isto é, de fazer o
movimento de volta, de inverter, de vencer o elemento da compulsividade do Dis-positivo.
Portanto, nós não vamos encontrar a salvação do mundo, fugindo da técnica. Pela
fenomenologia e pela interpretação do mundo, encontramos um modo de nesse mundo no
qual estamos, (seja o da modernidade ou o da pós-modernidade) encontrarmos a saída, a
salvação, descobrirmos o esquecimento do ser.
Observamos como Heidegger não se joga na desesperança ou na negação da
técnica, ou apela a uma volta romântica a tempos idílicos. O que importa é o exercício
fenomenológico de um ver que não é dos olhos físicos, mas um ver que nos permite elaborar,
a partir do cuidado conosco mesmos, o cuidado pelo mundo, pela vigilância do ser.
Superamos, assim, as conseqüências do império da Coisa (Das Ding), com a
ameaça do Dis-positivo (Das Ge-stell), no Perigo (Die Gefahr) de sermos apenas objetos e
nisso encontrar uma saída, na Virada (Die Kehre).
Por certo, ele falará em outros textos, como o já citado, O tempo da imagem do
mundo, de outro modo, que na modernidade impera a subjetividade e impera a questão do
método; falará da questão da ciência como empresa e do problema do empresamento do
mundo.
Na objetificação a que somos levados por este movimento da subjetividade, temos
que encontrar algo. A ciência e a técnica descobrem objetos, os manipulam e os multiplicam,
enquanto se multiplicam em mais ciências, ficando paralisadas diante do ser, que é
intransponível e incontornável. Isso deve ser levado em consideração quando nos
relacionamos com objetos, eventos, processos e pessoas. Enfim, o nosso mundo não pode ser
confirmado no deserto da subjetividade e da objetificação. Mundo é encontro. Caso contrário
Fernando Pessoa tem razão quando diz nestes belos versos:
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Não são algumas toneladas de pedra ou tijolos ao alto
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo e tudo morreu.
Grandes são os desertos, minha alma.
Grandes são os desertos.

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