Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
No final dos anos 60, um adesivo marcava forte presença nas ruas do Rio de Janeiro.
Sobrepostos a um círculo vermelho de contornos negros, o número 7 e a inscrição “Rei da Lira”
apareciam fixados nos vidros dos carros, sinalizando a devoção de seus motoristas a um exu
pouco ortodoxo.
Noticias
Iorubá, Fon e Kimbundu: Lorenzo Turner Registrou os Terreiros Baianos em
1940
PEU ARAÚJO
06.30.15
Aos finais de semana, esses veículos percorriam um vasto e tortuoso caminho rumo a
Santíssimo, bairro periférico da zona oeste carioca. Ali, em meio ao mato cerrado, às vias de
terra batida e a algumas poucas casas habitadas por trabalhadores de baixa renda, ocorria um dos
espetáculos noturnos mais comentados da cidade – um híbrido de procissão religiosa com baile
de carnaval promovido pela mãe de santo Cacilda de Assis.
Samba e Paganini
Nas sessões de Seu Sete, o acompanhamento musical não se restringia aos tradicionais
atabaques. Cordas, metais, bateria e um coral executavam canções dos mais variados ritmos:
música popular, erudita, sacra, profana, tangos, valsas, choros, maxixes, boleros, hits
radiofônicos e velhos sucessos carnavalescos. O exu regia a orquestra, comandando um
repertório que emparelhava Carlos Gardel e Roberto Leal, Chiquinha Gonzaga e Nelson
Gonçalves, Moacyr Franco e Carmen Miranda.
Mas era o samba que ditava a tônica das cerimônias: Ataulfo Alves, Aracy de Almeida,
Adoniran Barbosa, Jamelão e Agepê estavam no rol das forças invocadas pela orquestra nos
rituais de cura. Os pontos que Cacilda concebia no terreiro foram reunidos em disco pela EMI-
Odeon, e composições de sua autoria ganharam intérpretes como Noite Ilustrada, Emilinha
Borba, Odete Amaral, Edith Veiga, os Demônios da Garoa e Jackson do Pandeiro – este
último, um seguidor confesso do exu.
A música, acreditava-se, polarizava boas vibrações, agindo como combustível sonoro de uma
gigantesca corrente que atingia seu auge à meia-noite, no chamado Pino da Hora Grande. Os
fiéis, então, meditavam com os braços entrelaçados, num silêncio rompido apenas pelos gritos
daqueles que caíssem em transe. Sobre a multidão devota, Cacilda soprava fumaça e cuspia
marafo. Industriais e operários, hippies e engravatados, jovens e idosos, doentes terminais e
solteironas em busca de casamento fundiam-se numa única massa compacta.
O Maracanã da Fé
No início da década de 70, as sessões de sábado à noite chegavam a reunir até 20 mil pessoas.
Além dos peregrinos, as ruas de Santíssimo também vinham fisgando repórteres.
Notas sobre Cacilda já eram publicadas pela imprensa diária, mas coube sobretudo à revista O
Cruzeiro a tarefa de transformá-la em objeto de matérias extensas. O fotógrafo e jornalista Jorge
Audi, ex-diretor do semanário carioca, se lembra da grande frequência com que o espiritismo e
os cultos afrobrasileiros davam as caras por lá: “A revista era altamente popular e o assunto
estava muito em moda”. A abordagem, garante, transcendia o oportunismo editorial: “Alguns
dos nossos colegas eram bastante espiritualizados”.
Ao longo do segundo semestre de 1971, Ubiratan esteve na liderança da equipe que registrou nas
páginas de O Cruzeiro o crescente alvoroço em Santíssimo. A empreitada se desdobrou em
quatro longas reportagens, todas num estilo bem caro ao semanário: manchetes garrafais, textos
superlativos e fotografias em profusão. O terreiro ganhou a alcunha de “Maracanã da Fé” e Seu
Sete converteu-se em ícone pop, com direito inclusive a pôsteres encartados no miolo da revista,
cujas tiragens chegavam a 720 mil exemplares.
Os dotes do exu passaram a ser requisitados por todo tipo de celebridade – Pelé, Gretchen,
Capitão Aza, o empresário Rubem Medina, a poetisa modernista Adalgisa Nery – e logo caíram
nos radares da televisão. Dali para os programas de auditório, foi um pulo.
A batida dos atabaques servia como pano de fundo para testemunhos de curas e milagres: cegos
que recuperaram a visão, infartados que voltaram do além, deficientes que se levantaram de suas
cadeiras de rodas, gente que venceu o câncer e a hanseníase. Entre um depoimento e outro,
Cacilda proferia frases de efeito e conduzia a orquestra na execução dos pontos de exu. “As
curas de Seu Sete da Lira têm uma beleza rara / Porque Seu Sete começa onde a medicina para /
É um fato consumado que ninguém mais ignora / Para Seu Sete da Lira, o câncer virou
catapora”, cantarolavam os fiéis, antes de invadirem o palco num empurra-empurra alucinado.
Naquele domingo, o município de São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, havia
sido palco de uma morte violenta.
À uma e meia da tarde, o jovem Everaldo Ferreira da Silva, de 31 anos, decidiu tirar a própria
vida. Ele estava na casa de Eládio Rodrigues, seu vizinho, e acabou se matando ali mesmo, na
presença de conhecidos. Segundo o boletim registrado no 73º DP da cidade, o suicídio se
consumou com um “disparo de arma de fogo no ouvido direito”. No local da ocorrência,
policiais encontraram um revólver Taurus, calibre 32.
Em dezembro, o ministro das comunicações, Hygino Corsetti, se queixaria dos maiôs e rebolados
tão caros às assistentes de palco. No ano seguinte, um veto impediria temporariamente que
costureiros e figurinistas integrassem júris em shows de calouros – mero pretexto para que
homossexuais assumidos, como Clodovil e Clovis Bornay, fossem afastados do vídeo. Em 1973,
Flávio Cavalcanti amargaria dois meses de suspensão após entrevistar um homem impotente que
perdera a esposa depois de emprestá-la ao vizinho. E até o final da década, entrevistas com
celebridades de esquerda, como Jorge Amado e Geraldo Vandré, seriam interditadas com
frequência.
Nostalgia
DONA CACILDA E UMA SEGUIDORA NO FINAL DOS ANOS 90. IMAGEM: ACERVO
PESSOAL (ADÃO LAMENZA SALAMA)
“Minha mãe começou a frequentar o terreiro em 1969. Praticamente nasci no templo e ainda
pequeno acompanhava as sessões, bastante encantado com tudo o que presenciava”, conta Adão,
que tinha apenas três anos quando a polêmica com Chacrinha e Flávio Cavalcanti ganhou o país.
Na adolescência, ele se tornou assistente de Cacilda, com quem trabalharia até dezembro de
2000, quando a médium decidiu encerrar suas atividades.
Cacilda morreu aos 92 anos, de causas naturais, no dia 21 de abril de 2009. Seu terreiro foi
transformado em condomínio residencial, e na atual paisagem de Santíssimo quase não restam
vestígios dos tempos de outrora. O posto de gasolina Sete da Lira, no entanto, permanece ativo.
Antigo ponto de encontro das caravanas que se dirigiam às sessões de sábado, o estabelecimento
talvez seja o último remanescente de um período ainda vivo na memória dos fiéis: “Eu,
particularmente, preferiria que Seu Sete não tivesse se exposto daquela maneira”, assume Adão.
“Mas todos nós nos lembramos daquela época com grande nostalgia”.