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PSICANÁLISE
CIÊNCIA OU CONTRACIÊNCIA?

Hilton Japiassu

A psicanálise, se não enquanto "ciência" propria­


mente dita, pelo menos enquanto teoria e prdtica tera­
pêutica, tomou-se, em nossa sociedade, um fato in­
contestável e irreversível. A partir do momento em
que Freud, no fmal do século XIX, aprimorou todo
um conjunto de procedimentos de investigação dos
processos inconscientes, que ele batizou de "psicaná­
lise", numerosos foram os médicos, filósofos, pensa­
dores e escritores que sé interrogaram sobre o valor, o
interesse, a significação e a eficácia dessa nova técnica
de ver o "invisível", de radiografar a "mente" do in­
divíduo ou de perscrutar a "alma humana". Para se
realizar uma an'álise, três qualidades são indispensá­
veis, proclama Freud: a primeira é a coragem, a se­
gunda é a coragem, a terceira é a coragem.
E coragem foi o que não faltou a Freud. Para cons­
tituir a psicanálise, ele teve que enfrentar inómeras
resistências e arraigados preconceitos, não somente do
saber preexistente e da ideologia dominante, mas do
saber já instituído e institucionalizado, repleto de
certezas, incapaz de questionar-se e de abrir-se ao no­
vo. Lutando contra os interesses daqueles que preten­
diam, inicialmente, ignorar a psicanálise, em seguida,
denegri-la, finalmente, deformá-la a fim de proscre­
ver seu conteúdo inovador, instituinte e "subversi­
vo", Freud conseguiu instaurar, contra tudo e contra
todos, seu saber "transgressor". Ao pretender expli­
car as neuroses, ele teve que enfrentar, além das opo­
sições, resistências, intolerâncias e interditos do saber
oficial, um sério obstáculo: não podia explicá-las a
partir da psicologia da consciência. Viu-se obrigado a
construir uma teoria dando conta dos sintomas de seus
pacientes a partir de uma estrutura invisível, não­
aparente, desconhecida até entáo: o inconsciente.
A originalidade da teoria freudiana pode ser ex­
pressa nos seguintes termos: a psicanálise veio nos es­
clarecer que os homens não constituem entidades au­
tônomas, vai� dizer, não são donos de seus pensa­
T@íbhoteta jf reullíana
mentos e de suas condutas, pois são determinados (ou
condicionados) por uma estrutura invisível (o apare­
lho psíquico) "armada", em cada um deles, durante os
primeiros anos de suas vidas. Assim como Marx nos
mostrou que o sujeito humano, o ego econômico, po­
lftico ou filosófico, não constitui o "centro" da histó­
ria, Freud nos revela que o sujeito real (o indivíduo
em sua "essência" singular) não possui a figura de um
ego centrado no "Eu", ou seja, na consciência, pois
constitui um sujeito inteiramente de-centrado. Assim
como a astronomia copernicano-galileana nos desa­
lojou· do centro do universo; assim como a biologia
evolucionista darwiniana nos retirou da posição de
reis da criação e o materialismo histórico marxista nos
mostrou a determinação dos lugares que acreditáva­
mos ocupar livremente, Freud veio destruir a ilusão
de que a consciência seria o centro de nós mesmos.

A fim de elucidar os mecanismos do inconsciente,


Freud sente a necessidade de lançar mão de uma apa­
relhagem teórica específica susceptfvel de determinar
a exist&!cia histórica da psicanálise. MEdico de for­
mação, especializado no estudo dos processos neuro­
fisiológioos, precisa de um equipamento teórico per­
mitindo-lhe pensar o inconsciente, diferenciar suas
funções e, com a ajuda desse "impensado", elaborar
uma teoria da memória. Para tanto, torna-se indis­
pensável explicar, de um lado, a conservação dos
acontecimentos, do outro, seu desaparecimento pro­
visório, condição de seu reaparecimento (retorno do
recalcado). Tal exigência está na origem de uma su­
cessão de sistemas conceituais permitindo à psicaná­
lise converter-se num sistema de saber ao mesmo
tempo coerente e evolutivo, progredindo em direção à
cientificidade. Esse progresso se faz em tomo de dois
eixos principais: o eixo do espaço e o eixo do tempo.
No primeiro são tratadas as questões de aparelhagem
psíquica, reagrupadas na ttJpica. No segundo sio tra­
tados os problemas de dinâmica, notadamente uma
dupla "démarche" histórica: a história da neurose e a
da evolução da humanidade. Enfim, o eixo do tempo
permite a Freud pensar a regressãc, processo em jogo
na cura. E é af que se realiza e se precisa a teoria da
memória, na medida em que a cura faz emergir uma
outra estruturação do tempo susceptfvel de introduzir
uma mutúJnça no real. Esta noção de mudança ·já nos
autoriza a falar do pensamento filosófico de Freud, que
T@íbhoteta jf reullíana ele prefere chamar de metopsicológico.
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Japiassu, Hilton, 1934-


J39p Psicanálise: ciência ou "contraciência"? Hilton Japiassu. -
Rio de Janeiro: Imago Ed., 1989.

(Série Logoteca)

Apêndice.
ISBN 85-312-0047-4

1. Psicanálise. I. Título. li. Série.

CDD -150.195
89-0188 CDU -159.9
HILTON JAPIASSU
Professor de Epistemologia do Departamento de Filosofia
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

psicanálise
Ciência ou
Contraciência?

(Série Logoteca)

Direção de

JAYME SALOMÃO

!MAGO EDITORA LIDA.


-Rio de Janeiro -
Copirraite © 1989, Hilton Japiassu

Produção editorial: Celso Fernandes


Revisão: Pedrina Ferreira,
Carlos M. da S. Neto e
Angela G. Castello Branco
Capa: Jorge Cassol

Direitos adquiridos por IMAGO EDITORA LTDA.


Rua Santos Rodrigues, 201-A- Estácio
CEP 20250- Rio de Janeiro- RJ
Tel.: 293-1092

Todos os direitos de reprodução e divulgação são reservados.


Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida por fotocópia,
microfilme ou outro processo fotomecânico.

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
SUMÁRIO

Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

Capítulo I- PSICANÁLISE E CIÊNCIA................. 17

Capítulo II - PSICANÁUSE E "CONTRACIÊNCIA" . . . . . . . 55

Capítulo III - PSICANÁLISE E FILOSOFIA. . . . . . . . . . . . . . 97

Apêndice I- MUTAÇÕES E ORIENTAÇÕES DA

PSICANÁLISE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131

Apêndice II- FREUD, JUNG E A CIÊNCIA . . . . . . . . . . . . . . 137

Apêndice III- INCONSCIENTE E DIALÉTICA . . . . . . . . . . . 143

Apêndice IV- A CRfriCA NIETZSCHEANA AO

MORALISMO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 152
PREFÁCIO

Enquanto "psicologia das profundezas", doutrina do inconsciente


psíquico, a psicanálise pode tomar-se indispensável a todas as ciên­
cias tratando da gênese da civilização humana e de suas grandes ins­
tituições, tais como a arte, a religião e a ordem social. Eu a entendo
assim: a psicanálise já ajudou extraordinariamente a resolver os pro­
blemas postos por essas ciências, mas isso não passa de fracas con­
tribuições comparadas ao que ela poderia fazer quando historiadores
da civilização, psicólogos das religiões e lingüistas estiverem em
condições de utilizar o novo instrumento de investigação que a aná­
lise coloca em suas mãos.

S.FREUD

Enquanto "psicologia das profundezas" ou enquanto "doutrina do in­


consciente ps(quico", a psicanálise, se não enquanto "ciência" pro­
priamente dita, pelo menos enquanto teoria e prática terapêutica, tor­
nou-se, em nossa sociedade, um fato incontestável e irrevers(vel. A
partir do momento em que Freud, no final do século XIX, aprimorou
todo um conjunto de procedimentos de investigação dos processos in­
conscientes, que ele batizou de "psicanálise", numerosos foram os mé­
dicos, filósofos, pensadores e escritores que se puseram a interrogar-se
sobre o valor, o interesse, a significação e a eficácia dessa nova técnica
de ver o "invis(vel", de radiografar a "mente" do indiv(duo ou de
perscrutar a "alma humana". Para se realizar urna análise, três qualida­
des são indispensáveis, proclama Freud: a primeira é a coragem, a se­
gunda é a coragem; a terceira é a coragem. 1
E coragem foi o que não faltou a Freud. Para constituir a psicaná­
lise, ele teve que enfrentar imhneras resistências e arraigados precon­
ceitos, não somente do saber preexistente e da ideologia dominante,
mas do saber já instituído e institucionalizado, repleto de certezas, in-

- 7 -
capaz de questionar-se e de abrir-se ao novo. Lutando contra os inte­
resses daqueles que pretendiam, inicialmente, ignorar a psicanálise, em
seguida, denegri-la, finalmente, deformá-la a fim de proscrever seu
conteddo inovador, instituinte e "subversivo", Freud conseguiu instau­
rar, contra tudo e contra todos, ou apesar de tudo e de todos, seu saber
"transgressor". Ao pretender explicar as neuroses, ele teve que en­
frentar, além das oposições, resistências, intolerâncias e interditos do
saber oficial (institu(do e institucionalizado), um sério obstáculo: não
podia explicá-las a partir da psicologia da consciência. Por isso, viu-se
obrigado a construir uma teoria dando conta dos sintomas de seus pa­
cientes a partir de uma estrutura invis(vel, não-aparente, desconheci9a
até então: o inconsciente.Esta estrutura, somente reconhec(vel por seus
efeitos, permitiu-lhe elucidar o significado de um fenômeno até então
incompreens(vel: o sonho. Aprofundando seu trabalho teórico, teve
condições de dar conta da chamada "vida ps(quica", tanto "normal"
quanto "anormal". E, dessa forma, penetrou no processo de construção
ou de ·constituição do sujeito ps(quico portador dessa "consciência"
que, aparentemente, determinava os comportamentos nele observados.
Assim, rompeu com as evidências reinantes na psicologia da consciên­
cia e produziu uma teoria do processo de constituição de sujeitos. 2
Em s(ntese, a originalidade da teoria freudiana pode ser expressa
nos seguintes termos: a psicanálise veio nos esclarecer que os homens
não constituem entidades autônomas, vale dizer, não são donos de seus
pensamentos e de suas condutas, pois são determinados (ou condicio­
nados) por uma estrutura invis(vel(o aparelho ps(quico) "armada", em
cada um deles, durante os primeiros anos de suas vidas. Assim como
Marx nos mostrou que o sujeito humano, o ego econômico, pol(tico du
filosófico, não constitui o "centro" da história, da mesma forma Freud
nos revela que o sujeito real (o indiv(duo em sua "essência" singular)
não possui a figura de um ego centrado no "Eu", ou seja, na consciên­
cia, pois constitui um sujeito inteiramente de-centrado. Assim como a
astronomia'copemicano-galileana nos desalojou do centro do universo;
assim como a biologia evolucionista darwiniana nos retirou da posição
de reis da criação e o materialismo histórico marxista nos mostrou a
determinação dos lugares que acreditávamos ocupar livremente, da
mesma forma Freud veio destruir a ilusão de que a consciência seria o
centro de nós mesmos.Ele fala apenas de três revoluções ferindo gra­
vemente a imagem que a humanidade se fazia dela mesma: da copemi­
cana, da darwiniana e da sua própria.Nessas três revoluções, cosmol6-

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gica, biológica e psicológica, é a imagem mesma do homem que se en­
contra atingida, relativizada e despossufda de sua autonomia. Todo o
problema consiste em saber se o "inédito" freudiano constitui real­
mente uma revolução susceptfvel de mudar a cena teórica em sua tota­
lidade e em sua radicalidade. 3
Com quase um século de existência, a psicanálise já possui uma
história bastante rica e muito movimentada. Já foi sacudida por ruptu­
ras dilacerantes. Já foi perseguida pelos regimes totalitários. Já foi
ameaçada de anexação pela psiquiatria. Já teve que enfrentar a concor­
rência de terapias pretensamente mais eficazes. Já foi acusada de ideo­
logia pequeno-burguesa ou de charlatanismo . • A tudo e a todos, re­
. .

sistiu. Sua autodeterminação é um fato incontestável. Sua luz continua


a brilhar e a iluminar nossa inteligência. É até poss(vel que ela venha a
deixar de existir, um dia. Mas seu desaparecimento ou morte será por
velhice, de morte natural, não pelo assassinato da refutabilidade epis­
temológica. Enquanto isso, ela prossegue seu caminho como uma dis­
ciplina do saber ainda bastante "indisciplinada", tendo um estatuto
ainda não totalmente determinado e definido, posto situar-se no entre­
cruzamento da biologia, da lingüfstica, da psicopatologia e da antro­
pologia, numa espécie de antecâmera das ciências propriamente ditas,
quer dizer, oficialmente reconhecidas como institucionalizadas de ple­
no direito. O positivismo lógico, oriundo do Cfrculo çle Viena, embora
admita que ela seja capaz de revelar certos elos entre vários fatos (no­
vos e surpreendentes) observáveis, declara que ela não satisfaz aos
critérios da verdadeira cientificidade. Wittgenstein chega mesmo a di­
zer que a sedução das idéias freudianas é semelhante à que exerce toda
e qualquer mitologia. Quanto ao racionalismo crrtico de Popper, sus­
tenta e tenta provar que a psicanálise, não tendo condições de ser re­
futável, não pode ser considerada uma teoria cient(fica, mas tão-so­
mente um interessante programa metaf(sico de pesquisas. Em contra­
partida, para uma boa parte dos psicanalistas, o problema da cienti­
ficidade de sua disciplina não suscita um grande interesse. Talvez
estejam mais preocupados com os dois maiores perigos que a amea­
çam: em primeiro lugar, o risco que ela corre de fechamento, de re­
tomo sobre ela mesma, conseqüentemente, com os riscos de esterili­
dade precoce e de dogmatismo; em seguida, o perigo de perder
sua identidade, sempre mal assegurada, refugiando-se em outros do­
m(nios do saber (como os da biologia, da psicologia ou de qualquer
outra ciência humana) ou deixando-se infiltrar por noções e concei-

- 9 -
tos provenientes de outros campos teóricos. A esse respeito, escreve
A.Bourguignon:

"A psicanálise é obrigada a avançar entre esses dois perigos. Sem


dlivida, ela pode evitá-los pela cr(tica constante, pela dlivida, pela
contestação, pelos questionamentos regulares da teoria, pela luta
contra a crença cega, pela submissão aos fatos e às exigências da
lógica. Mas é preciso que esses remédios não sejam piores do que
o mal e matem, no esp(rito dos analistas, os fantasmas, os frutos
da imaginação e da desrazão, o gosto pela aventura e a capacida­
de de deixarem-se surpreender, que constituem as linicas fontes
verdadeiras da criação cient(fica e psicanal(tica" ("Quelques pro­
blêmes épistémologiques posés dans le champ de la psychanalyse
freudienne", in Psychanalyse à L' Université, Éd. Répliques, ju­
nho de 1981).

Se é verdade que só podemos medir o "inédito" freudiano a partir de


sua própria perspectiva fundacional, nem por isso temos o direito de
desvinculá-lo completamente da filosofia, pois não somente ela está
presente mas constitui o lugar mesmo em que se põe o problema da ra­
cionalidade, através da diversidade de suas modalidades de realização.
Por conseguinte, todo discurso cient(fico, tomado em si mesmo ou re­
gulando determinada prática, refere-se, de uma forma ou de outra, por
uma espécie de necessidade mesma de racionalidade, à filosofia. Neste
sentido, nenhum Jogos, tampouco o da psicanálise, pode ser-lhe total­
mente estranho. É nesses termos que podemos falar dos fundamentos
filosóficos da psicanálise, ou seja, que podemos determinar o aconte­
cim�nto que constitui a "coisa freudiana" por seu advento no campo
do saber. P.L. Assoun, ao constatar a delicadeza dessa questão, es­
creve:

"Freud não parte de um edif(cio filosófico para nele se inspirar,


nem mesmo para criticá-lo especificamente( ... ) De um lado, as
aquisições anairticas constituem certas projeções sobre o campo
dos problemas filosóficos, na medida em que Freud, para articular
os enunciados de sua 'ciência' própria, sente a necessidade de
dar-se prindpios. Do outro, a produção dos conceitos analfticos
modifica, de modo um tanto· determinado, o equacionamento de
certa classe de problemas filosóficos, entre os mais importantes.

-10-
Por conseguinte, compreendemos que a tomada em conta desses
efeitos filosóficos (.. .) não somente é leg(tima, mas indispensá­
vel para medir a própria revolução psicanaUtica. A inteligibilida­
de da psicanálise só é apreendida plenamente discernindo a praia
sobre a qual vem inscrever-se seu efeito, condição para se apre­
ender os efeitos dessa inscrição mesma" ("Les fondements philo­
sophiques de la psychanalyse", in Histoire de la psychanalyse, t.
I, Hachette, 1982, p. 74-75).

A fun de elucidar os mecanismos do inconsciente, Freud sente a neces­


sidade de lançar mão de uma aparelhagem teórica espec(fica suscept(­
vel de determinar a existência histórica da psicanálise. Médico de for­
mação, especializado no estudo dos processos neurofisiológicos, preci­
sa de um equipamento teórico permitindo-lhe pensar o inconsciente, di­
ferenciar suas funções e, com a ajuda desse "impensado", elaborar
uma teoria da memória. Para tanto, torna-se indispensável explicar, de
um lado, a conservação dos acontecimentos, do outro, seu desapareci­
mento provisório, condição de seu reaparecimento (retorno do recalca­
do).Tal exigência está na origem de uma sucessão de sistemas concei­
tuais permitindo à psicanálise converter-se num sistema de saber ao
mesmo tempo coerente e evolutivo, progredindo em direção à cientifi­
cidade.5 Esse progresso se faz em tomo de dois eixos principais: o eixo
do espaço e o eixo do tempo. No primeiro são tratadas as questões de
aparelhagem ps(quica, reagrupàdas natópica . No segundo são tratados
os problemas de dinâmica, notadamente uma dupla demarche histórica:
a história da neurose e a da evolução da humanidade.Enfim, o eixo do
tempo permite a Freud pensar a regressão, processo em jogo na cura.E
é ar que se realiza e se precisa a teoria da memória, na medida em que
a cura faz emergir uma outra estruturação do tempo suscept(vel de in­
troduzir umamudança no real. Esta noção de mudança já nos autoriza
a falar dopensamento filosó]lCo de Freud, que ele prefere chamar de
metapsicológico. 6
Hilton Japiassu

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NOTAS

1. Nunca é demais insistir no fato de que a psicanálise não surgiu pronta da ca­
beça de Freud. Pelo contrário, ela foi o resultado de um penoso e progressi­
vo processo de elaboração, de pesquisas, de tentativas, de esperanças e desi­
lusões. O próprio Freud se aborreceu com os críticos que não perceberam
essa evolução: "Diríamos que, para eles, a análise caiu do céu ou surgiu do
inferno, que é congelada e não construída a partir de um conjunto de fatos
lenta e dolorosamente reunidos ao preço de um trabalho metódico". Seu
percurso clfnico e psicanalftico se estendeu por mais de cinqüenta anos (de
1886 a 1939), sempre marcado por modificações práticas e revisões teóricas.
Foi revolucionária sua prática médica numa época em que os choques.elétri­
cos, o isolamento, a hidroterapia, as massagens, a sugestão hipnótica consti­
tuíam o único arsenal terapêutico dos "neurologistas" debutantes. E diante
de vários artigos de técnicas, considerou-os inadequados: "Não creio que
possamos inculcar os princípios da técnica por escritos. Isto só pode ser feito
pelo ensino direto. Evidentemente, os principiantes precisam de um mínimo
para começar (.. .) Contudo, se eles seguem muito conscienciosamente as
diretrizes, não tardarão a encontrar dificuldades. Por isso, devem aprender a
desenvolver sua técnica pessoal" (S. Blanton, lournal de mon analyse avec
Freud, trad. fr., P.U.F., 1973).
2. A tendência dos cientistas, na época de Freud, era a de reduzir a consciência
a um epifenômeno não objetivável. Numerosos são os psicólogos e psicana­
listas que decidem deixar a consciência e suas aporias aos fJlósofos. Os psi­
cólogos behavioristas, por exemplo, como bons empiristas, não negam a
existência da consciência, mas a excluem do campo de seus estudos, pois ela
não é susceptível de um conhecimento objetivo fundado na observação e na
experimentação. Por sua vez, os neurofisiologistas, preocupados em estudar
o sistema nervoso central como um órgão qualquer, reduzem a consciência a
um simples estado de vigflia, vale dizer, a um estado variável de atenção e de
possibilidade de reação mais ou menos grande aos estímulos (excitações) do
mundo exterior, podendo ser objetivável pela observação clínica ou pelo
eletÍoencefalograma. Evidentemente, Freud não nega a consciência do su­
jeito, pois é através dela que se constitui e que se pode conhecer o incons­
ciente que, num primeiro momento, nada mais é que a não-consciência. A
característica fundamental desse inconsciente é a impossibilidade da rejlexi­
vidade, propriedade exclusiva da consciência. Pelo menos em parte, é a

- 1 2-
consciência que alimenta o inconsciente. Por sua vez, é o inconsciente que
conserva e restitui aquilo que nele depositou a consciência. Neste. sentido, ele
funciona como uma espécie de reservatório no qual a consciência vai buscar
as lembranças de que tem necessidade. A menos, é claro, que o inconsciente
não se converta numa força devastadora, impondo-se imperativamente à
consciência e pondo em risco a vontade e a liberdade do indivíduo (casos
patológicos do psiquismo).
3. O inconsciente, em nossos dias, está muito na moda. Desperta todo tipo de
curiosidade. Ele se beneficia muito do fascínio que lhe confere o mistério. O
grande público procura descobrir, em tudo o que se publica ou se projeta, a
chave de seus próprios sonhos ou o sentido de seus próprios fantasmas: ima­
gens obsedantes exprimindo pulsões mórbidas, desejos perversos inconfes­
·
sados, parricídios imaginários, etc. Há toda uma banalização de nosso in-
consciente apresentando-o como uma espécie de "porco sonolento" ou de
"besta imunda" manifestando-se, notadamente nas telas de televisão e de ci­
nema, nas mais variadas fisionomias: do fascismo, do nazismo, do comunis­
mo, da pornografia, etc. Essas várias faces do inconsciente proporcionam a
muitos de nossos contemporâneos não somente um certo conforto intelectual
e moral, mas uma espécie de álibi para numerosos comportamentos ou pen­
samentos "impuros", pois sempre se pode dizer: "Não sou eu, é o Outro".
Evidentemente, não é desse inconsciente desnaturado que trata Freud, mas,
no dizer de M.C. B artholy e J.P. Despin, "dessa parte do psiquismo essen­
cial a seu funcionamento normal e que compreende muito mais coisas do que
projetos de assassinatos, angústias de castração ou os esboços de uma sexua­
lidade sodomita e/ou gomorreana" (Le psychisme, Magnard, 1980, p. 16).
4. Lembremos que a psicanálise contribuiu bastante para "modelar" as menta­
lidades, as atitudes e os comportamentos, apesar da hostilidade conjugada
das morais religiosas e da medicina. Ela contamina tudo o que toca. E exerce
grande fascínio aos que procuram os prazeres da vida privada. Muitos fize­
ram dela um substituto da religião, outros um álibi justificador das decepções
político-ideológicas ou um meio de se "confessarem" de modo mais científi­
co. Os que nela buscam um elemento inocentador encontram também meios
de culpabilizar instituições e autoridades. Apresentando-se sobretudo como
uma terapêutica, suas "verdades" não podem ser refutadas, pois se "verifi­
cam" na prática (na ação da cura). Os detentores dessas verdades pouco dis­
cutem. Tentam explicar e desmascarar. E fazem defas instrumentos eficazes
de desacreditar objeções e resistências. Estas constituem sintomas de um
complexo a ser superado. Boa parte do êxito da psicanálise vem dessa estra­
tégia de "patologizar" toda resistência.. Ao invadir a cultura, procura logo

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desrecalcar, desculpabilizar, desalienar, promover a expansão dos desejos e
dos prazeres como condição de uma generalizada liberação individual. Para
muitos, constitui um instrumento de justificação ou de motivação dos fra­
cassos amorosos ou dos conflitos de gerações. Não é de hoje que casais se
çlesfazem. Mas agora há uma justificativa "científica". Sabedoria prática
susceptível de romper com preconceitos e tolices tradicionais, a psicanálise
fornece "conselhos científicos" securizantes a quem perdeu a confiança na
"autoridade", a quem pretende libertar-se das opressões dos superegos ou
viver uma vida menos angustiada e com um Ego mais fortalecido . . .
5. Importa observar que, derivado de Freud, há todo um "freudismo" defen­
dendo, para a psicanálise, um projeto objetivista, tão caro às ciências natu­
rais, culminando na total eliminação da subjetividade (no self elimiMtion).
Trata-se de um projeto contraditório. Com efeito, o que caracteriza o freu­
dismo é, de um lado, a afirmação decisiva segundo a qual o fundo da psiqué
escapa à objetividade e lhe é irredutível, do outro, a manutenção do pressu­
posto "cientificista" segundo o qual nenhum conhecimento é verdadeiro a
não ser que seja determinado objetivamente. Nesta segunda perspectiva, o
inconsciente psíquico, reconhecido como o afeto, não passa do representante
de processos bio-energéticos, vale dizer, de uma realidade natural. "Esta
visada intencional, comenta Michel Henry, que permanece p.rision!ili"-ª.-º-ª-re­
presentação, reproduz-se no plano da terapia e a condiciona enquanto esta
obedecer ao único desígnio da tomada de consciência. Semelhante teleologia
comanda o pensamento do Ocidente e serve de lugar-comum à psicanálise, à
ciência e à filosofia clássica" (La barbarie, Grasset, 1987, p. 162-163).
Contudo, essa teleologia "iluminista" se opõe à posição de um "inconsciente
original" inteiramente insubmisso: a vida. A liás, a prática psicanalítica não
cessa de verificar o primado desse írrepresentável, que é a vida, susceptível
de determinar tanto a representação quanto a tomada de consciência. Ade­
mais, ela subordina constantemente o progresso cognitivo ao destino do
afeto e revela a natureza verdadeira de toda intersubjetividade concreta. Ao
fazer isso, ela resiste à redução objetivista, pois afirma e defende, mesmo
que "inconscientemente", o direito ina ienável da vida.
6. O homem Sigmund Freud já constitui uma lenda. Nos meios psicanalíticos,
comenta-se apaixonadamente os menores acontecimentos de sua vida, seus
sonhos, suas cartas, seus esquecimentos, seus êxitos e seus fracassos. Fora
desses meios, toma-se cada vez mais conhecida a imagem de um Freud
"cientista", cético e pessimista, revelando uma exemplar austeridade de vida
e certo conformismo familiar. Sabemos o quanto sua velhice foi perturbada
pela perseguição nazista que o levou a exilar-se em Londres, onde morre no

- 1 4-
final de 1939. Todo o horizonte político desse intelectual burguês e liberal
foi o da Viena de sua época. Já vai longe o tempo em que os fll6sofos quali­
ficavam a psicanálise de "obscenidade científica" e em que os historiadores
explicavam a teoria da libido pela sensualidade dos vienenses e, o pretenso
sensualismo de Freud, pela licenciosidade de sua vida privada. Hoje em dia,
tudo o que concerne à vida e à obra de Freud constitui o objeto de um culto
discreto. Mas raros são os trabalhos se interrogando sobre o que ele deve
a seu tempo, à sua cultura e à sua cidade. Muitos viram na Viena do final do
século XIX uma cidade burguesa e provinciana, hipocritamente puritana e
dançadora de valsa. Mas ela foi um centro irradiador de cultura, com aspec­
tos bastante inovadores: aí viveram Gustav Mahler, Schõnberg, Wittgens­
tein, Carnap, Mach e muitos outros; aí Trotski editou o Pravda. Curiosa­
mente, Freud ignorou toda uma "revolução cultural" em sua Viena. Ernest
Jones conta que, um dia, quando disseram a Freud que ele vivia numa cidade
repleta de idéias novas, respondeu com indignação: "Há cinqüenta anos eu
vivo aqui e jamais encontrei uma única idéia nova". A pesar de sua raiva por
Viena, ele lhe foi muito fiel (ver R. Jaccard, "Freud et la société viennoise",
in Histoire de la psychanalyse, t. I, Hachette, 1982). O importante a notar é
que, apesar da especificidade de sua criação (a psicanálise), Freud sempre
procurou integrar-se na sociedade vienense de sua época e tornar-se aceito
pela burguesia médica e universitária. Mantendo-se sempre afastado da
"boemia vienense" e consciente de seus dons de escritor, s6 reconheceu,
como espécie de valor supremo, a ciência (vale dizer, a física e a química).
Esta exigência de Freud, bem como seu desejo de participar do prestígio do
papel médico, acarretaram numerosas conseqüências ao desenvolvimento
posterior da psicanálise.

- 15 -
CAPÍTULO I

PSICANÁLISE E CIÊNCIA

Não sou um verdadeiro homem de ciência, nem um experimentador,


nem um pensador. Sou apenas um conquistador, um explorador,
com toda a curiosidade, com a audácia e a tenacidade que caracteri­
zam esse tipo de homens. Geralmente, s6 se reconhece o valor das
pessoas se elas tiverem sucesso, se realmente descobriram alguma
coisa: senão, elas são afastadas. E isto não é inteiramente injusto.

S. FREUD

A questão da cientificidade ou não da Psicanálise revela-se um proble­


ma bastante complexo para ser resolvido no contexto de um cap(tulo
pretendendo apenas lançar as bases epistemológicas sobre as quais ele
pode ser formulado e levantar as principais objeções à pretensão dessa
disciplina de erigir-se como verdadeiro conhecimento cient(fico. Talvez
a Psicanálise nem mesmo tenha necessidade de constituir-se numa
ciência, no sentido próprio do termo.Teria ela por objetivo conhecer,
vale dizer, ap�opriar-se intelectualmente- ato de apoderar-se, de sub­
jugar, de submeter, de dominar e de manipular- de um campo emp(rico
ou ideal dedados? Porque todo conhecimento, no sentido pós-kantiano
do termo, além de implicar uma dimensão intr(nseca de dominação ou
apropriação, faz intrinsecamente apelo a uma dimensão de consumo ou
utilização de determinado campo ordenado, racional e objetivado de
só a ciência conhece. As demais for­
fatos ou de idéias. Neste sentido,
mas do Saber sabem. Porque somente ela pretende apropriar-se do real
para explicá-lo de modo racional e objetivo, procurando estabelecer
entre os fenômenos observados relações universais e necessárias auto-

- 17 -
rizando a previsão de resultados ou efeitos cujas causas podem ser de­
tectadas mediante procedimentos de controle experimental.
Se quisermos aplicar à Psicanálise essas categorias de "conheci­
mento" e de "ciência", precisamos retomar, como ponto de partida, o
momento mesmo em que ela teria alcançado o estatuto de cientificida­
de, vale dizer, o momento em que teria instaurado sua autodetennina­
ção epistemológica. Queremos falar do momento de seu nascimento,
momento em que ela transformou os métodos de investigação dos fe­
nômenos psfquicos e se deu, por um processo de ruptura com a psico­
logia existente, um objeto inteiramente novo: o inconsciente. Por isso,
partiremos da posição claramente assumida por Freud. Veremos, em
seguida, como a Psicanálise suscitou, desde seu surgimento, numerosas
crfticas e resistências. Deixando de lado as variadas derivas e as de­
mais errâncias, as numerosas dissidências ou eventuais releituras, bem
como os diversos revisionismos, levaremos em conta apenas as chama­
das crtticas epistemológicas à pretensão da Psicanálise de reivindicar o
estatuto de cientificidade. É claro que há dois tipos de crfticas: umas se
referem à teoria, outras à prática. As cr(ticas dizendo respeito à teoria
são, além das epistemológicas,
a. filosóficas, recusando o inconsciente, fazendo dele um non­
sens, em nome do postulado cartesiano segundo o qual o "eu sou" psi­
cológico consiste unicamente no "eu penso". A crftica filosófica, feita
notadamente por Sartre, tem por objetivo refutar o "coisismo" de
Freud e opor-lhe um certo intelectualismo de tipo cartesiano. Para Sar­
tre, não pode haver inconsciente, porque toda a chamada dinâmica
freudiana do inconsciente pressupõe projetos, intenções e vontades,
vale dizer, uma consciência. Se o "eu penso" constitui a l1nica realida­
de, não pode haver Id, não pode haver Superego, não existe dinâmica
entre as instâncias: só existe o Ego. Não há besta nem sociedade no
.
homem. Só existe o homem (ver L'être et le néant, Gallimard, 1943, p.
90-92);
b. cientificas, negando a validade de certos conceitos centrais da
teoria psicanalftica e algumas de suas observações: a necessidade e a
universalidade do Édipo, por exemplo. Com efeito, o que se contesta é,
ao· mesmo tempo, o dogmatismo freudiano afirmando que toda criança
passa por uma fase edipiana e que, nessa fase, possam se exprimir os
desejos dos adultos. Em seu "delfrio interpretativo", Freud só retém,
na conduta infantil, as palavras e as relações susceptfveis de confinnar
sua teoria, deixando de lado outras hipóteses, como a do jogo infantil

- 18 -
ou da influência dos pais. Tampouco parece cientificamente comprova­
da a fatalidade do Édipo em toda criança de 4-5 anos. Freud se esquece
de que a sexualidade infantil, permitindo que o menino deseje sua mãe
e a menina deseje seu pai, possui, em grande parte, um conteúdo for­
temente cultural;
c. poUticas, denunciando, sobretudo, não somente o confonnismo
social de Freud, mas também sua falocracia. Atacam o "ponto de vis­
ta" adotado por Freud sobre a cultura e sobre a sociedade, notadamente
em Totem e tabu, Moisés e o monote(smo, O mal-estar na civilização e
em O futuro de uma ilusão. Freud não teria o direito de derivar, da
psicanálise, hipóteses e ju(zos sobre a origem das sociedades, sobre seu
funcionamento, etc. Os interditos do Superego não podem ser reduzi­
dos a meros interditos parentais, pois muitos interditos são sociais e
culturais.
Não vamos tratar dessas cr(ticas, nem tampouco das sociol6gicas,
procurando desmistificar a prática psicanal(tica e seus ritos. 1 Constate­
mos apenas que hoje, toda obra, todo filme, toda emissão televisiva
relativos aos fenômenos psíquicos constituem o objeto de uma extraor­
dinária curiosidade que pouco ou nada tem a ver com a curiosidade
propriamente intelectual ou cient(fica. Assim, em tudo o que se publica
e se projeta, acostumamo-nos a procurar a chave de nossos próprios
sonhos ou a buscar o sentido de nossos próprios fantasmas. Com efeito,
para o grande público, os fenômenos psíquicos só são percebidos atra­
vés de uma esquema psicanal(tico vulgarizado, banalizado, simplista e
mais ou menos mistificador, no término do qual se admite, acritica­
mente, que toda criancinha tem inveja de matar seu pai, que todo lapso
constitui o reaparecimento dissimulado de um desejo recalcado, etc.
Em suas múltiplas versões, a Psicanálise, que aterrorizou a burguesia
vienense do final do século passado, que divertiu os surrealistas e for­
neceu o frisson da transgressão a muitos intelectuais do entre-guerras,
que pretendeu disseminar seu "vfrus" subversivo na sociedade ameri­
cana (em 1 909, Freud, acompanhado por Jung, dizia-lhe que estava le­
vando, para a América, o "v(rus" da Psicanálise), é aceita hoje, sem
muitas discussões, pela imprensa, pelo rádio, pela TV, como "a ciência
dos fenômenos psfquicos''.
Enquanto a psicologia se vê mais ou menos relegada aos universi­
tdrios, que montam sutis e misteriosas experiências e se perdem em
obscuras manipulações estat(sticas; ou é deixada aos publicitdrios, que
recorrem às estratégias psicológicas elementares, não somente para

-19 -
guiar as condutas de escolha racional, mas para aumentar a cifra de ne­
gócios de seus clientes; ou ainda aos "caçadores de cabeças" encarre­
gados de escolher e selecionar os quadros mais aptos para as empresas,
os indivfduos mais adaptados para a realização dos melhores meios
tendo em vista a obtenção de determinados fins; enquanto a psiquiatria
inspira ao mesmo tempo o respeito que é devido a toda especialidade
médica e o horror ou rejeição da clfnica-prisão, de um poder absoluto,
arbitrário e opaco; portanto, enquanto a psicologia é misteriosa e sus­
cita certa indiferença; enquanto a psiquiatria dá medo, a Psicanálise
é acesstvel a todos, graças à vulgarização de suas principais teorias.
Ela é reconfortadora, apesar dos assassinatos do pai, dos incestos e das
pulsões sádicas que a povoam. Ora, o pensamento comum adora o pito­
resco, adora a mitologia, adora o imaginário. Em contrapartida, recusa
a ascese fria da demarche cientffica. 2

1. Posição de Freud

Desde seus trabalhos de neurologia propriamente dita, que se estendem


de 1877 a 1897, Freud busca as bases do q ue será, mais tarde, a "ciên­
cia do inconsciente". Seu texto inacabado de 1S95, Esboço de uma
psicologia cient(fica , já visa representar o aparelho psfquico em lin­
guagem de neurofisiologia e conferir uma base c ie n t (fica às especula­
ções psicológicas. Ele jamais renunciou a essa ambição. Durante toda a
sua vida, não hesita um instante em dizer e redizer que a Psicanálise
pertence à famflia das Ciências da Natureza (Naturwissenschaften). De
forma alguma ele aceita o dualismo inaugurado por Dilthey remetendo
a duas esferas axiologicarnente distintas: a das Geistewissenschaften
(Ciências do Espfrito) e das Naturwissenschaften. Para ele, a Psicanáli­
se só pode ser uma ciência da natureza . Em seu entender, a Naturwis­
senschaft passa a ser pura e simplesmente sinônimo de Wissenschaft
(Ciência).
Esta tomada de posição está fundada num monismo radical - dou- .
trina que só admite uma realidade constitutiva do Ser ou da Natureza,
reduzindo tudo o que existe, seja à matéria, seja ao espfrito ou à idéia­
recusando o dualismo clássico que pregava a existência de duas subs­
tâncias distintas, conseqüência da distinção ontológica entre alma/cor­
po, entre espfrito/matéria, entre história/natureza. Freud não aceita que
essa distinção ontológica seja capaz de fundar uma distinção episte-

-20-
mológica. Ele vai encontrar a justificativa para sua posição na obra de
Ernst Haeckel (1834-1919) , O monisnw, profissão de fé de um natura­
lista. A tese de Haeckel, que Freud adota integralmente, consiste em
dizer que há uma unidade profunda entre a natureza orgânica e a natu­
reza inorgânica, entre o reino animal e o reino vegetal, entre a ciência
da natureza e a ciência do espfrito. Porque toda ciência natural, ou
simplesmente, toda ciência precisa ser explicativa . E a Psicanálise, pa­
ra ser ciência, precisa ser tão explicativa quanto as ciências naturais.
Muito embora Freud reserve um lugar de destaque à dimensão inter­
pretativa ou compreensiva na clfnica, sua opção epistemológica é feita
levando em conta o tipo de prática cient(fica que efetivamente ele codi­
fica. Como sabemos, todo o seu aprendizado cient(fico, baseado na
anatomia e na fisiologia, leva-o espontaneamente a alinhar-se do lado
do modelo ftsico-qu(mico. Por isso, toma decididamente o partido dos
teóricos do conhecimento que identificam pura e simplesmente ciência
com ciência da natureza. E ao assumir tal posição, coloca-se ao lado
dos ftsicos e dos fisiologistas em luta aberta contra o dualismo episte­
mológico defendido por Dilthey e por Rickert. Por isso, situa a Psica­
nálise na esfera da natureza. E funda seu estatuto epistemológico no
reducionismo em vigor, que se encontra na base de seu monismo. Ele
faz seu o juramento fisicalista celebrado por Du Bois-Reymond e por
Brücke: "Brücke e eu fizemos o engajamento solene de impor esta ver­
dade: somente as forças ftsicas e qufmicas agem no organisnw:'3
São as seguintes as teses fisicalistas -teses afirmando que a lfngua
da f(sica deve ser a lfngua universal e unitária de todas as ciências­
adotadas por Freud:
a. só há forças (manifestações materiais) Hsico-qufmicas;
b. somente essas forças agem no organismo (não há vitalismo);
c. a tarefa da ciência é a de descobrir a forma de ação dessas
forças;
d. todas as demais formas de ação devem ser reduzidas às forças
Hsico-qufrnicas (fica exclufdo o emergentismo, postulando forças irre­
dut(veis).
Por isso, não pode haver lugar para as ciências do homem. Porque
o humano não pode constituir uma matéria espedfica de ciência. O
método f(sico-matemático abarca a totalidade dos fenômenos. Por isso,
só pode haver Naturwissenschaft. E como a Psicanálise pretende ser
uma ciência, só pode ser uma ciência da natureza. Esta convicção
epistemológica de Freud, da qual não abre mão, leva-o a estabelecer

-21 -
uma homogeneidade entre os fenômenos inconscientes e os fenômenos
ffsico-qufmicos. E ele legitima essa posição fazendo apelo a outro
mestre, cuja obra assimilou, Ernst Mach, partidário do fisicalismo no
psiquismo. A obra de Mach que mais influenciou Freud foi Conheci­
mento e erro, verdadeiro best-seller de filosofia das ciências frsicas no

infcio de nosso século. Assim, ressuscitando os princfpios metodológi­


cos de Mach, em "Psicanálise e teoria da libido", revela o modo psica­
nalftico de se pensar: "A psicanálise atém-se aos fatos de sua esfera de
trabalho, aspira a resolver os problemas mais próximos da observação,
comprova-se novamente na experiência, é sempre inacabada e está
sempre pronta a retificar suas teorias". •
Uma das caracterfsticas fundamentais da Psicanálise consiste em.só.
passar ao real mediante o simbólico. A simples elaboração de um texto
teórico, como A interpretação dos sonhos, dirigido ao consenso dos
sábios, não basta para conferir-Ih� os critérios de "objetividade" ou de
"universalidade". No posfácio que Freud escreveu para o capftulo I
dessa obra (1909), revela surpresa e impaciência pelo fato de, passados
nove anos, nada se ter produzido de novo e de válido nessa matéria:
"Na maioria das publicações que apareceram no intervalo, minha obra
permaneceu sem ser mencionada ou considerada. Ela recebeu menos
atenção ainda da parte daqueles que se engajaram no que chamamos a
'pesquisa' sobre os sonhos e que forneceram, assim, um brilhante
exemplo de repugnância a aprenderem algo de novo, que é caracterfsti­
co dos homens de ciência". Freud permaneceu, até o final de sua vida,
convencido do caráter acumulativo da ciência e da assimilabilidade da
psicanálise, como "pedra angular", ao edifício do saber cientffico. O
exemplo mais probante é o do sonho, ao qual dedica sua obra teórica
mais sólida: A Interpretação dos sonhos. Ele faz tudo para que o con­
teúdo dessa obra passe à comunidade cientffica como uma contribuição
a um problema deixado, até então, sem solução.
Contudo, como todo o esforço teórico de Freud versa sobre a cor­
relação entre sonho e sintoma, o livro, ao tratar apenas do sonho, só
produz um modelo vazio: "É somente em referência a essas forças de
ordem sexual que podemos preencher as lacunas que ainda são patentes
na teoria do recalque. Deixarei aberta a questão de saber se esses fato­
res sexuais e infantis são igualmente exigidos na teoria dos sonhos.
Deixarei essa teoria incompleta nesse ponto, pois já dei um passo além
daquilo que pode ser demonstrado afirmando que os desejos-de-sonho
são invariavelmente derivados do inconsciente" (Standard Edition, vol.

-22-
V. p. 606). Sem dúvida, algumas teorias de Freud, como a do "conteú­
do latente e manifesto" e a do "sonho guardião do sono" , etc. , fazem
parte da aquisição cientffica. Todavia, o cerne mesmo da teoria freu­
diana, a saber, que "o sonho é realização do desejo", permanece-uma
afirmação teórica pelo menos controvertida. Aliás, o sonho não cons­
titui um objeto autônomo podendo constituir objeto de ciência. No di­
zer do próprio Freud, "ele é o primeiro membro de uma classe de fe­
nômenos psfquicos anormais", possuindo "o valor teórico de um para­
digma", posto que "quem não conseguiu explicar a origem das ima­
gens de sonho dificilmente pode esperar compreender fobias, obsessões
ou delfrios e ter sobre eles uma influência terapêutica" (S.E. , IV, 23).
Observemos que a história da psicanálise vem manifestando, desde
Freud, a ambigüidade oculta das relações entre ciência e mfstica. Isto
não constitui um escândalo, pois ela se deu por objeto a exploração de
profundezas ocultas onde facilmente se encontram a psyché, como ob­
jeto de conhecimento cientffico, e o mito, como produção, expressão e
meio de investigação dessa psyché. Foi essa ambigüidade que, pelo
menos em parte, constituiu o fio condutor das divergências radicais de
Freud com vários de seus discfpulos, notadamente com Jung. Muito
embora a posição freudiana não seja tão defensável do ponto de vista
do conteúdo de sua teoria, toma-se bastante mais compreensfvel quan­
do nos atemos ao método utilizado por Freud e ao rigor de sua demar­
che. Com efeito, do ponto de vista do conteúdo, as barreiras por ele
estabelecidas entre a psicanálise racional e cientffica que pretende
construir e os "desvios mfsticos", que denuncia em Jung, parecem
bastante arbitrárias.
Do ponto de vista metodológico, porém, ele quis fundar a psicaná­
lise como ciência e tomá-la reconhecida, enquanto tal, pela comunida­
de cientffica. Tudo, em sua demarche, exprime essa preocupação, ape­
sar da originalidade e da irredutibilidade de suas descobertas, de reu­
nir, em tomo da psicanálise, um consenso quanto a seu caráter não so­
mente racional mas cientffico. Para tanto, privilegia as interpretações
causalistas ffsicas, não somente para explicar fenômenos considerados
até então como insignificantes (sonhos, lapsos, chistes, mitos antigos,
etc.), mas para explicar os fatos psicológicos construfdos a partir des­
ses fenômenos. Assim, o causalismo determinista perpassa todo o seu
método, posto que, a priori, tudo deve ser explicado; e o papel da in­
terpretação e da teoria é o de descobrir a causa oculta de todo compor­
tamento ou discurso, mesmo aparentemente fortuito e sem significação.

-23 -
E a causa a ser descoberta se reduz sempre, de direito, a um mecanismo
Hsico, mesmo que seja mediante o desvio dos modelos metapsicológi­
cos. Porque até mesmo os modelos metapsicológicos funcionam como
mecanismos biológicos que, por sua vez, se reduzem a mecanismos f(­
sico-qu(micos. É na utilização do conceito de "energia ps(quica" de
Freud que aparece com maior nitidez o postulado fisicalista: ele é uma
grandeza conservadora (nada se perde e nada se cria). Trata-se de um
conceito designando um substrato energético postulado como fator
quantitativo das operações do aparelho ps(quico e indispensável ao en­
raizamento da psicanálise nas ciências da natureza. Jung critica, em
Freud, seu "preconceito materialista" impedindo-o de reconhecer "a
seriedade da parapsicologia e o caráter de dado real dos fenômenos
ocultos" (Ma vie, tr. fr., Gallimard, 1966, p. 182).
Preocupado em salvaguardar um método ana/{tico, isto é, diferen­
ciador, Freud pretende impor-se como homem de ciência. Em seu en­
tender, o critério de demarcação e de identificação só pode ser o do
reconhecimento pela comunidade cient(fica de seu tempo. É neste sen­
tido que se situam suas "objeções contra a maneira imediata de explo­
rar a mitologia" utilizada por Jung (Correspondance, Gallimard, 1976,
p. 336s). O interessante, nessa polêmica, é que ele parece ver-se con­
denado a oscilar entre sacrificar o rigor à riqueza e sacrificar a riqueza
ao rigor. Opta decididamente pelo rigor cient(fico e pelo determinismo
causalista, muito embora seja por seus aspectos não-cient(ficos que a
psicanálise apresenta seus resultados mais ricos, fecundos, originais
e interessantes. Do ponto de vista metodológico, o medo pânico de
Freud era o de deixar-se submergir pela "lama preta do ocultismo". 5
Por isso, reivindicou enfaticamente o caráter cient(fico para sua disci­
plina, chegando mesmo a forjar conceitos novos permitindo-lhe desen­
volver-se ao abrigo de sua inevitável ambigüidade. Diria que é muito
mais pelo método utilizado do que pelos conteddos f(sico-biológicos de
suas teorias, que Freud se revela um homew. de_ çiência. Com efeito, de
um ponto de vista estratégico, é por seu método de pesquisa e de dife­

renciação que a psicanálise tem o direito de aceder ao dom(nio da


cientificidade. E é justamente em nome desse método que ela deveria
opor�se à sua própria ortodoxia, vale dizer, a toda tentação de fixar seu
conteddo num corpus de ensinamentos verdadeiros e definitivos.
Aliás, do ponto de vista do conteddo, várias teorias psicanal(ticas
foram contestadas. É o que revela, por exemplo, Mircea Éliade, a pro­
pósito das hipóteses da "horda primitiva" e do "sacrifrcio-comunhão

- 24 -
totêmico" sobre as quais se funda Totem e tabu ( 1 9 13): "No momento
em que Freud elaborava sua explicação do sentimento religioso e acre­
ditava ter encontrado a 'origem' das religiões, as duas hipóteses citadas
não gozavam mais de nenhuma credibilidade entre os etnólogos e os
historiadores das religiões competentes". Frazer, por exemplo, de­
monstrou a "não-universalidade do totemismo como fenômeno sócio­
religioso (é desconhecido de imtmeras tribos 'primitivas') e a extrema
raridade dos sacriffcios-comunhões totêmicos (quatro casos apenas)"
(lmages et symboles, Seuil, 1 952, p. 27-28). Portanto, se, do ponto de
vista do conteúdo das teorias, não se pode tanto falar da cientificidade
da psicanálise, o mesmo não pode ser dito a respeito de seu método.
Porque o rigor do método freudiano aparece claramente em estrito e
fiel respeito às regras do jogo social da pesquisa científica, onde a psi­
canálise fala com a ajuda da linguagem reconhecida pela comunidade
cient(fica ou, então, com uma linguagem ad hoc, mas forjada em conti­
nuidade e conformidade com a precedente. E é justamente aqui, creio,
que se situam ao mesmo tempo a grandeza e o fracasso do empreendi­
mento científico freudiano. O interessante a observar é que, à preocu­
pação de rigor científico e de apego ao determinismo causalista físico,
Freud sente a necessidade de associar a utilização, como instrumentos
de investigação, dos fenômenos até então privilegiados pelas culturas
tradicionais não-científicas. O fato é que a ambigüidade da psicanálise,
quanto à sua cientificidade, foi-lhe muito útil. Porque, para muitos, in­
clusive para o próprio Freud, em seu íntimo, ela aparecia como muito
mais original e interessante por seus aspectos não científicos. A espe­
rança de Freud, acredito, ao sacrificar uma riqueza aparente e imediata
em proveito do rigor, consistia em deixar uma porta aberta para que,
desse rigor, aparecesse uma riqueza ainda maior.
De uma coisa não podemos duvidar: Freud fez de sua psicanálise
uma "ciência" susceptível de descobrir ou redescobrir a verdade pro­
funda das tradições míticas e, com isso, também capaz de conferir-lhes
um indispensável caráter "científico" . Por isso, sua tentativa de fundar
a psicanálise como disciplina científica, contra "a lama preta do ocul­
tismo", não constituiu um simples caprici)o, mas um elemento funda­
mental de uma demarche de mdltiplos desafios tendo necessidade do
consenso de uma sociedade humana particular: a dos homens de ciência
e dos filósofos de seu tempo. E foi em defesa da cientificidade da psi­
canálise que Freud deserdou seus dois discípulos, Jung e Adler, por ele
considerados de "heréticos". Deserdou J ung, porque ele enraizou o

- 25 -
movimento da dessexualização num cristianismo m(tico privando a psi­
canálise de sua novidade cient(fica e vinculando-a à alquimia, ciência
do imaginário. Deserdou Adler, porque ele ligou todas as afirmações
freudianas sobre a sexualidade infantil a uma inferioridade constitucio­
nal orgânica, sem a menor relação com a seqüência acontecimento-la­
tência-retomo do recalcado, anulando, assim, a existência mesma do
Inconsciente (cf. Minha vida e a psicanálise, 1 925) . 6

2. Críticas epistemológicas

As cr(ticas epistemológicas à cientificidade da Psicanálise são, de lon­


ge, as mais radicais. Se elas forem fundadas, essa disciplina não terá
condições de estabelecer nenhum saber propriamente objetivo. É o que
sustentam as duas correntes mais hegemônicas de filosofia da ciência
atuais: o empirismo lógico e o racionalismo crftico de Karl Popper.7
Vejamos, sucintamente, sua argumentação essencial:
a. Os epistemólogos oriundos do empirismo lógico, preocupados
com a lógica da explicação, contestam veementemente o caráter de
cientificidade à Psicanálise. Eles raciocinam da seguinte maneira: se a
Psicanálise constitui realmente uma "teoria" propriamente cient(fica,
isto é, um conjunto de proposições que sistematizam, explicam e pre­
vêem certos fenômenos observáveis, deve satisfazer às mesmas regras
lógicas de uma teoria cient(fica como a da Hsica, por exemplo. Em
primeiro lugar, deve ser capaz de validação emp(rica; para tanto, é
precisO que possa deduzir de suas proposições determinadas conse­
qü�ncias pass(veis de controle experimental, sem o que a teoria não
possui conteddo definido; ademais, deve ser capaz de elaborar proce­
dimentos determinados (definições coordenadoras ou definições ope­
ratórias) suscept(veis de ligar esta ou aquela noção teórica a fatos defi­
nidos e não amb(guos. Ora, dizem os empiristas, parece que não pode­
mos deduzir nada de preciso das noções "energéticas" do freudismo,
posto que elas são vagas e metafóricas: são noções sugestivas, mas não
suscept(veis de validação emp(rica.
Em seguida, a validação empfrica deve satisfazer a uma lógica da
prova, caso pretenda ser tomada por evidente. E não adianta nada a
Psicanálise dizer que seu método principal é o da interpretação. Ora,
em que condições uma interpretação pode ser dita válida? Pelo fato de
ser coerente? Claro que não. Porque o paciente a aceita espontanea-

- 26 -
mente? Tampouco. Porque conduz o doente a uma efetiva melhora?
Menos ainda. Porque é indispensável que tal interpretação tenha real­
mente um caráter de objetividade. E o acesso à objetividade exige uma
série de pesquisadores independentes apropriando-se de um mesmo
material reunido em circunstâncias cuidadosamente codificadas. É ne­
cessário, em seguida, que se lance mão de procedimentos objetivos
permitindo decidir entre as interpretações rivais. Ademais, é irnpres­
cind(vel, ainda, que a interpretação dê lugar a previsões verificáveis.
Ora, dizem os positivistas lógicos, a Psicanálise não se encontra em
condições de satisfazer a essas exigências de cientificidade. Porque seu
material de investigação adere à relação singular do analista e do ana­
lisado. Além do mais, há sempre uma suspeita de que a interpretação,
por falta de procedimento comparativo e de investigação estatJ!stica,
seja imposta aos fatos pelo intérprete. Enfim, as alegações dos psica­
nalistas concernentes à e]1eácia terapêutica tampouco satisfazem às re­
gras mais elementares da verificação emp(rica: pelo fato de não poder
estabelecer nem ter condições de definir de modo estrito taxas de me­
lhoria, de forma alguma a eficácia terapêutica da Psicanálise pode ser
comparada com a eficácia de outra investigação ou de outro tratamento.
Por isso, não deve ser levado em conta o critério de sucesso terapêuti­
co.
Na mesma linha de pensamento situam-se os psicólogos behavio­
ristas. 8 Para Skinner, por exemplo, a Psicanálise, se pretende ser ciên­
cia, precisa satisfazer às regras de uma linguagem operacional. · Aos
olhos do operacionalismo estrito, a teoria psicanalftica e todos os con­
ceitos que gravitam em torno da idéia de aparelho mental só podem
aparecer como metáforas perigosas. Do ponto de vista epistemológico,
a teoria psicanalftica não constitui um progresso decisivo em relação
ao animismo (crença segundo a qual a natureza é regida por almas ou
esp(ritos, análogos à vontade humana) e a seus sucedâneos: "O esque­
ma explicativo de Freud, diz Skinner, segue o modelo tradicional con­
vidando a procurar uma causa do comportamento humano no interior
do organismo (in Minnesota studies in the philosophie of science,
1 956, p. 79). Esta " ficção tradicional de uma vida mental" leva a afir­
mar algo que não é observável e sobre o qual não podemos agir. Ora,
para o operacionalismo, só devem ser levadas em conta as mudanças
do organismo referidas às variáveis do meio. Por isso, Skinner acusa
Freud de s6 ter-se interessado pelos aspectos da conduta que devem ser
considerados como expressões de processos mentais e de ter restringido

- 27 -
enormemente o campo da observação. E declara que o aparelho mental
que Freud impôs à Psicanálise só veio retardar a incorporação dessa
disciplina ao corpo da ciência propriamente dita. A crítica skinneriana
pretende reduzir a Psicanálise à psicologia do comportamento. Pretende
também reduzir a interpretação psicanalftica à construção de uma teoria
destinada a ser verificada por observáveis.
Alguns psicanalistas americanos, preocupados em fazer a psicaná­
lise atender às exigências de cientificidade do positivismo lógico, re­
formularam seus princípios numa linguagem inteiramente derivada dos
dois Observáveis fundamentais: a percepção e a resposta, a fun de tor­
nar sua teoria aceitável pela psicologia skinneriana. Assim, tentaram
situar os fatos da psicanálise entre os observáveis da psicologia cientí­
fica, a psicanálise acrescentando apenas, à noção de comportamento, a
de latência. O funcionamento, segundo leis próprias, dos sistemas da
tópica freudiana (ld, Ego e Superego) constituiria um feixe de "mode­
los distintos", regendo funcionamentos "parciais", à maneira do mo­
delo reflexo; por sua vez, o ponto de vista econômico se alinharia bem
sob o modelo entrópico da tensão e das reduções de tensão: a teoria
dos estádios dependeria de um ponto de vista genético; enfun, em
Freud, os sistemas formariam uma hierarquia de integração, o superior
inibindo e controlando o inferior. Mas há um duplo inconveniente nes­
sa tentativa de alinhar a teoria psicanaHtica ao modelo da psicologia
comportamental: a) a teoria do duplo funcionamento do aparelho psí­
quico, sob o signo dos princípios do prazer e da realidade, ficaria redu­
zida a uma peripécia da adaptação, submetida ao esquema estímulo­
resposta; b) a psicanálise evoluiria para uma egopsychology. Em ambos
os casos, o ponto de vista adaptativo s6 prevalece se o princípio de
realidade for interpretado no sentido de uma pré-adaptação para o Ego.
Por isso, a psicanálise não pode nem deve satisfazer às exigências de
cientificidade propostas pelo operacionalismo behaviorista. Isto seria
uma mutilação daquilo que ela possui de original. Não sendo uma ciên­
cia da observação, talvez ela se situe melhor entre as ciências semioló­
gicas e históricas, pois se define muito mais por ser uma ciência exegé­
tica, hermenêutica ou interpretativa.
Ademais, quem diz "ciência", diz "lei" e, conseqüentemente,
"medida". Muito embora a medida seja apenas uma das formas da veri­
ficação experimental, nem por isso deixa de ser o único meio de prova
reconhecido no mundo das ciências. Porque somente ela permite a uma
disciplina aceder ao estatuto cientffico. A verificação pelo vivido do

-28 -
SUJeito é rejeitada como anticientffica. A expenencia do SUJeito não
fornece um critério suficiente de credibilidade. Só são legftimas as leis
cuja cientificidade é devida à verificação pela medida, pela instrumen­
tação e pela manipulação. A medida, por ser constitutiva da realidade
legftima, opera como seletor do real admitido na esfera do racional. O
que escapa às ciências fundadas na medida pertence ao domfnio do ir­
racional. Porque, fora da medida, encontra-se o reino da superstição,
da loucura, da magia e da religião. Por isso, não é de se estranhar que
aquilo que hoje se opõe à metaffsica nada mais é que a medida como
princfpio explicativo da ordem das coisas. Só são cientfficos os ramos
do saber que constituem seus objetos em função de um sistema de pro­
vas passando pela verificação experimental mensurável. E é em nome
desse critério que os empiristas excluem da esfera cient(fica a psicaná­
lise.
Como poderia ela atingir um "conhecimento objetivo" , posto ocu­
par-se sobretudo da subjetividade individual? Ora, o conhecimento
objetivo implica uma unidadt: na demarche empfrico-lógica na qual
"fatos" são observados em condições de reprodutibilidade que fundam
sua objetividade, por conseguinte, a realidade "exterior" concreta. Si­
multaneamente, a lógica liga esses fatos uns aos outros. Ela funda a
coerência de seu tecido e, assim, o grau de realidade "interior" (pelo
menos intersubjetiva) do conhecimento teórico e prático que dela re­
sulta. Nessa demarche, as regras que fundam ambos os tipos de resul­
tados (protocolos experimentais e regras lógicas) apoiam-se uma sobre
a outra a fim de se prevenirem contra os perigos (de erro, de ilusão)
que a experiência de cada uma dessas realidades comportaria isolada­
mente. Uma certa garantia de " verdade" se encontraria do lado dos
fatos (garantia exterior contra os perigos da imaginação), ao passo que
a coerência lógica seria a garantia interior de uma generalidade possf­
vel , portanto, da existência de um conhecimento. Ora, se essa demar­
che do "conhecimento objetivo" elimina o irreprodutfvel e o ilógico,
vale dizer, uma boa parte de nossas experiências subjetivas individuais,
torna-se evidente que a psicanálise, trabalhando apenas com uma reali­
dade "interior" (o inconsciente), não pode ter acesso à cientificidade.
b. A interrogação popperiana sobre a cientificidade da Psicanálise
procede do sentimento confuso e vago que essa disciplina, como o
marxismo, oferece, em seus resultados, menos verdade e certeza do
que as ciências ffsicas. Em Conjectures and refutations (1963, p.
34-38), Popper é bastante enfático: não é porque a Psicanálise e o mar-

-29 -
xismo reivindicam o estatuto de cientificidade que eles o possuem ne­
cessariamente. 9 O ponto central de sua argumentação consiste em com­
parar os enunciados das teorias ffsicas, de um lado, aos enunciados das
teorias freudianas e marxistas, do outro. O que ele pretende descobrir,
entre esses dois tipos de enunciados, é um verdadeiro critério de de­
marcação. Como sabemos, este critério é o da falsificabilidade ou re­
futabilidade. Com efeito, no entender de Popper, uma teoria só pode
ser considerada propriamente cientffica se ela for susceptfvel de ser
refutada pela experiência. A testabilidade é a condição sine qua non
de toda teoria com pretensões à cientificidade. Assim, se a ffsica é uma
" verdadeira ciência" , é porque ela faz predições que a experiência, em
prindpio, pode contradizer. Esta vulnerabilidade, longe de constituir
uma fraqueza, impõe-se como uma grande vantagem, posto que permite
a eliminação dos erros e garante que o confronto entre a teoria e
a natureza tenha um sentido preciso. A Psicanálise, em contrapartida,
padece de um grande defeito: os fatos a confirmam sempre. Portanto,
aos olhos de Popper, é a refutabilidade que constitui o verdadeiro crité­
rio de demarcação entre o cientffico e o não-cientffico. De um lado,
temos as teorias que podem ser refutadas experimentalmente; do outro,
as teorias pouco operatórias para que lestes decisivos possam ser efe­
tuados. As primeiras são teorias cient(ficas. As segundas são metaftsi­
cas. Enquanto as teorias ffsicas fazem previsões que podem ser des­
mentidas pelos fatos provocados ou observados, as "teorias" psicana­
lfticas não assumem esse tipo de risco. Elas se contentam com predi­
ções vagas. Ademais, são capazes de explicar todos os fenômenos que
parecem contradizê-las de modo evidente. 1 0
A crftica popperiana à Psicanálise pode ser resumida na seguinte
frase: "Uma teoria que pretende e pode tudo explicar não explica na­
da". É por isso que ela não pode ser uma teoria propriamente cient(ji­
ca. Evidentemente, o critério de demarcação proposto por Popper é ni­
tidamente formal. Com efeito, é a forma de um enunciado - e, espe­
cialmente, seu caráter previsional e arriscado - que lhe confere o es­
tatuto de cientificidade. Mas essa noção de risco deve ser entendida
também num sentido moral: há uma honestidade cientffica que consiste
em aceitar o desmentido eventual dos fatos, bem como o desmentido da
crftica da comunidade cientffica. É esta honestidade fundamental que,
na ausência de riscos, falta à Psicanálise, posto que ela se entrincheira,
de antemão, contra toda tentativa de falsificação graças a um arsenal de
hipóteses ad hoc , aceitas sem nenhuma confirmação experimental, real

- 30 -
ou possfvel , para assegurar a coerência de suas teorias. A Psicanálise
supõe o recurso permanente a uma hipótese ad hoc pretendendo que
todo adversário ou todo paciente reticente sejam inspirados por um re­
calque ou por uma resistência qualquer que os impedem de crer em sua
eficácia e em seu valor.
O fato de o critério de demarcação popperiano ser, ao mesmo tem­
po, formal e moral acarreta uma conseqüência singular: Popper não diz
que a psicanálise, o darwinismo e o marxismo constituem teorias fal­
sas. Declara simplesmente que, por não terem condições de usar esse
critério de objetivação, que é a falsificabilidade (refutabilidade ou tes­
tabilidade), escapam à nossa possibilidade de decidir se são verdadei­
ros. Por isso, Popper diz que a psicanálise, o darwinismo e o marxis­
mo, por não constitu(rem teorias testáveis, não são teorias cient(ficas.
Eles são, isto sim, programas metaffsicos de pesquisa bastante interes­
santes e fecundos. Diferentemente dos empiristas lógicos, Popper não
diz que a metaffsica seja um non-sens. Para ele, uma teoria metaj(sica,
de direito, pode ser verdadeira . Contudo, é praticamente imposs(vel
testá-la diretamente. Por isso, ela constitui um programa susceptfvel de
orientar utilmente certas pesquisas cient(ficas particulares. Em todo ca­
so, diria que, para Popper, o niio-testável não significa, de modo al­
gum, o detestável! 1

3. A Psicanálise e as ciências do homem

Em Minha vida e a psicanálise (tr. fr. , Gallimard, 1950, p. 88), Freud


declara que, " lançando um olhar para trás, sobre a parte de trabalho
que me foi dado realizar em minha vida, posso dizer que abri muitos
caminhos e dei muitos impulsos que poderão culminar em algo no futu­
ro. Eu mesmo não posso saber se esse algo será muito ou pouco". Este
algo indeterminado, . cujo futuro Freud apenas vislumbra, tornou-se o
campo mesmo da psicanálise. Assim, em extensão, a Psicanálise ga­
nhou terreno, embora tenha perdido bastante em compreensão. Em
nossos dias, sua extensão se faz à custa de uma trfplice exigência: heu­
rlstica, terapêutica e cienNfica. As ciências humanas ou do homem
são, pelo menos em parte, responsáveis por esse desperdfcio de senti­
do, na medida em que procuraram utilizar a Psicanálise como instru­
mento teórico num contexto que lhe é estranho. Ela seria uma das c iên­
cias do homem, possuindo uma especificidade própria irredut(vel às

-3 1 -
demais ciências humanas. Esta posição parece inaceitável. Em relação
às demais ciências, a Psicanálise se situa à sua margem, em oblfquo,
devido às implicações cr(ticas que a perspectiva anaHtica faz pesar so­
bre todas as instâncias que se aplicam à idéia de homem. Enquanto cr(­
tica da consciência, do sujeito, do indiv(duo, da normalidade, etc., a
Psicanálise, ao invés de fazer parte das ciências humanas, as situa. Ela
as atravessa sem, no entanto, justificá-las. É neste sentido que J.B .
Pontalis pode dizer que "a incidência da psicanálise não é medida por
qualquer transtorno . do saber que ela acarretaria, mas, antes, por uma
variação da posição do sujeito quanto a esse saber ( . . . ) e, por conse­
guinte, por uma modificação da economia de seu desejo (de filósofo,
de etnólogo, de escritor, de psicanalista )" (in Nouvelle revue de psy­
...

chanalyse, n2 1 , 1 970, p. 7).


Por que e para que rotular de "cientffica" a prática psicanaHtica?
Não estarfamos fazendo da ciência uma idéia tão elevada, tão sublime,
a ponto de rotularmos como ciência este algo tão importante, tão inte­
ressante e tão fecundo quanto a Psicanálise? Na realidade, nem mesmo
existe a ciência, uma ciência em si, uma idéia geral ou ordem geral que
possa intitular-se "ciência" ou que seja capaz de legitimar qualquer
forma de discurso. A ciência não é um ideal que atravessa toda a histó­
ria e que seria encarnado, primeiramente, pela matemática, em seguida,
pela ffsica e pela biologia, finalmente, pela psicanálise e outras formas
de saber. Tampouco possui uma normatividade ou funciona efetiva­
mente como ciência, numa época dada, segundo certo m1mero de es­
quemas, de modelos, de valorizações e de códigos. No dizer de M .
Foucault (in Comunicação 3 , Tempo Brasileiro, 197 1 ), ela é "um
conjunto de discursos e de prdticas discursivas muito modestas, enfa­
donhas e diffceis que se repetem incessantemente". Há normas para es­
sas práticas. Há códigos para esses discursos. Não há razão para nos
vangloriarmos disso. Os verdadeiros cientistas não se orgulham em sa­
ber se é ou não ciência o que estão fazendo. Insistir em definir que a
Psicanálise deve ser cientffica não seria impor-lhe condições demasiado
duras e exigências bastante excessivas? Para seu próprio bem, não seria
prefer(vei evitar impor-lhe essa camisa-de-força da cientificidade? No
fundo, os que reclamam o estatuto de cientificidade para a Psicanálise
manifestam ruidosamente seu desprezo pelas c iências positivas. Só o
escondem um pouco em relação à matemática. De fato, sua atitude
mostra que têm pela ciência um respeito e uma reverência de secunda­
ristas. Acreditam que, se a Psicanálise fosse uma ciência, poderiam ter

-32 -
certeza de sua validade. "Eu acuso essa gente, declara Foucault, de ter
da ciência uma idéia mais alta do que ela merece, de ter um secreto
desprezo pela psicanálise. Eu os acuso de insegurança. É por isso que
reivindicam um estatuto que não é tão importante para a psicanálise"
(Ibidem).
Aliás, a cientificidade das ciências do homem não se encontra de­
finida de modo un(voco. Razão pela qual Foucault traça, em Les mots
et les choses (cap. X), uma genealogia dos modelos cient(ficos que en­
gendraram a idéia de ciência do homem, "este corpo de conhecimentos
que toma por objeto o homem naquilo que ele tem de emp(rico". Ele
manifesta um grande desprezo pela objetividade do saber e da ciência.
Nem mesmo acredita em saber objetivo, por estar sempre comprometi­
do por uma gênese extracient(fica e por funcionar a serviço de fins ex­
tracient(ficos. E as ciências humanas, de modo especial , são finalizadas
e funcionalizadas por contextos não-cient(ficos. Não é cient(fico o sub­
solo sobre o qual elas repousam, quer esse subsolo seja a episteme mo­
derna, tornando poss(vel o advento do homem, quer se situe além dos
discursos, nas configurações do poder que perpassam as sociedades.
Na episteme clássica, o homem nem mesmo era necessário. Ele só apa­
rece por uma exigência da nova episteme. Juntamente com ele, surgem
as ciências humanas. Doravante, elas passam a ser, não uma análise
daquilo que o homem é em sua natureza, mas do homem enquanto
fonte das representações suscept(veis de exprimir suas relações com a
vida, com o trabalho e com a linguagem. Não sendo propriamente ciên­
cias, nem por isso podem ser consideradas como simples doxas ou co­
mo falsas ciências. O espaço epistemológico mesmo que as constituiu é
que as impede de acederem ao dom(nio da cientificidade. Mas elas
pertencem ao dom(nio positivo do saber: são algo mais que a opinião,
mas algo menos que a ciência. Portanto, se o homem é definido por
suas relações com a vida, com o trabalho e com a linguagem, as ciên­
cias que o estudam só podem girar em torno da biologia, da economia
pol(tica e da filologia. Sendo assim, nenhuma delas pode ser conside­
rada como ciência humana. E a razão fundamental é que elas não pos­
suem por objeto o homem em sua positividade empfrica, mas a repre­
sentação que ele se faz do mundo no qual ele vive, trabalha e fala.
Portanto, dizer que a Psicanálise constitui uma ciêÓcia do homem
não seria reduzi-la a uma psicologia ou a uma teoria do indiv(duo, vale
dizer, a um conjunto de técnicas permitindo, ao situá-lo no plano teóri­
co numa coletividade graças a uma série de normas, integrá-lo quando

-33 -
se mostra desviante, excluf-lo quando se revela "anormal" e seleciorui­
lo quando se apresenta como "apto"? É por isso que Lacan prefere
considerar a Psicanálise como uma teoria do sujeito. Para ele, não
existe ciência do homem. Porque o homem da ciência não existe. O que
existe é somente seu sujeito (Écrits, p. 859). E o sujeito é aquele que
fala, o lugar de toda enunciação. Ele não possui uma essência. Deve
ser concebido como o objeto de uma divisão que o constitui, ent:r� o
inconsciente que o determina antes de todo discurso e as produções
conscientes, das quais faz parte a idéia de homem. Assim, a única ciên­
cia poss(vel é a do sujeito ocupado com a produção da linguagem. Por
isso, diferentemente da noção de sujeito, a de homem é relativa a tal
cultura, a tal método; numa palavra, depende, não da universalidade,
mas da generalidade. Só o sujeito é universal e universalizável. A
ciência, contrariamente à magia e à religião, constitui um saber que se
comunica, diz Lacan, "mas a forma lógica conferida a esse saber inclui
o modo da comunicação como suturando o sujeito que ele implica"
(Ibidem, p. 877). Assim, a comunicabilidade do saber do sujeito sobre
o sujeito depende de uma lógica que o pense como separado da causa
de seu discurso. Esta lógica é a mesma que implica a psicanálise, ciên­
cia "das miragens" do sujeito e ciência do inconsciente. Ela inclui os
efeitos e a causa. É em função dessa especificidade que ela não pode
situar-se entre as ciências humanas, a não ser para criticá-las, como
uma espécie de contraciéncia, diria Foucault. Neste sentido, ela se
distancia bastante da psicologia convencional, dessa psicologia que
Canguilhem define como uma "teoria -geral da conduta" submetida à
ideologia dominante, pois toma por objeto o homem, indiv(duo no seio
de uma coletividade regulada. É por isso que Lacan fala ainda, não
somente da psicologia, mas da psicanálise americana, de um verdadeiro
"apelo da servidão": a psicanálise americana e seus métodos ditos não­
diretivos de psicoterapia reduziram a contribuição freudiana a uma téc­
nica da integração ou da pseudocrrtica sociais , amputando a Psicanálise
de sua dimensão cient(fica. 1 2

• • •

Façamos duas observações interligadas e complementares, a primeira


concernente a um critério distinto de cientificidade, a segunda dizendo

-34 -
respeito a uma das grandes novidades introduzidas pela Psicanálise
freudiana:
1 . Se mudarmos o critério de cientificidade, tanto o proposto pelo
empirismo lógico quanto o popperiano da refutabilidade, talvez possa­
mos dizer que a Psicanálise seja, dentre as várias disciplinas que estu­
dam os fenômenos humanos, uma das mais cient(ficas. Com efeito, uma
noção como a de "corte epistemo/6gico" constitui hoje um dos eixos
mesmos de toda metodologia pretendendo ser outra coisa que um puro
devaneio ou uma mitologia sobre o saber. Toda a demarche do conhe­
cimento está a( para nos informar que a ciência não existe senão a par­
tir de uma ruptura semântica que a arranca do senso comum. "O esp(­
rito cient(fico só pode constituir-se destruindo o espfrito não-cient(fi­
co" . "A filosofia do espfrito cient(fico deve ser feita sobre novas ba­
ses". "Temos que aceitar uma verdadeira ruptura entre o conhecimento
sensfvel e o conhecimento objetivo". Eis o pensamento profundo de
Bachelard. 1 3 Longe de haver continuidade entre os sistemas de repre­
sentação que precedem uma ciência e esta ciência, há uma ruptura.
Nessa teoria, esse conceito de ruptura se faz acompanhar do de obstá­
culo epistemol6gico: sistemas de representações ou ideologias que pre­
cedem o nascimento de uma ciência. E o homem em quem aparece com
maior nitidez esse conceito de "corte epistemológico" é o mesmo que
dará, como centro, a sua concepção do psiquismo, o complexo de Édi­
po. Freud liga expressamente seu prindpio fundamental àquilo que lhe
transmitem o discurso legendário, o discurso mftico ou o discurso lite­
rário. Estranha metodologia esta, proclamando alto e bom som, como
uma de suas regras essenciais, que, "aquilo que permanece são os
poetas que o fundam" (Bachelard). Por isso Lacan vem nos lembrar
que Freud teria designado, como o lugar privilegiado para se institu­
cionalizar a formação dos psicanalistas, a universitas litterarum.
2. Como se constitui uma ciência? Vejamos três critérios que,
acredito, aplicam-se à Psicanálise: a) Em primeiro lugar, uma ciência se
constitui opondo-se às opiniões, a essa forma de conhecimento que se
apresenta como um conjunto fal samente sistemático de jufzos, de repre­
sentações esquemáticas e sumárias, elaborado para a prática e pela prá­
tica, visando traduzir as necessidades em conhecimentos e a designar
os objetos por sua utilidade ; numa palavra, uma ciência se constitui ne­
gando e criticando as evidências do senso comum; b) em segundo lu­
gar, uma ciência se constitui enfrentando e denunciando criticamente
as oposições e resistências que necessariamente uma disciplina nova

- 35 -
recebe, não somente do saber preexistente, da ideologia dominante,
mas do saber já institufdo e institucionalizado (oficial), repleto de cer­
tezas, incapaz de questionar-se e de abrir-se ao novo; c) finalmente,
lutando contra os interesses daqueles que pretendem, inicialmente, ig­
norá-la; em seguida, denegri-la; finalmente, deformá-la para eliminar
seu conteddo inovador, instituinte, fundante, subversivo.
Ora, parece ter sido este o processo de constituição da Psicanálise.
Ela teve que enfrentar, por parte do saber oficial, oposições, resistên­
cias, intolerâncias e interditos. Ela surgiu como um saber transgressor.
Freud rompeu com as evidências reinantes na psicologia da consciência
e produziu uma teoria do processo de constituição de sujeitos. Ade­
mais, veio esclarecer que os homens não são entidades autônomas, que
eles não são donos de seus pensamentos nem tampouco de suas con­
dutas. Pelo contrário, são "determinados" ou condicionados por uma
estrutura invisfvel (o aparelho psfquico) "armada", em cada um deles,
durante os primeiros anos de vida. Assim como Marx nos mostrou que
o sujeito hwnano, o ego econômico, polftico ou filosófico, não consti­
tui mais o "centro" da história, da mesma forma Freud nos revela que
o sujeito real, vale dizer, o indivíduo em sua "essência" singular, não
pode ser considerado como um Ego centrado em seu "Eu", ou seja, em
sua consciência. Porque ele é um Ego de-centrado. E é constitufdo por
uma estrutura que tampouco possui "centro": o inconsciente. Por con­
seguinte, assim como a astronomia de Copémico e de Galileu nos de­
salojou do centro do Universo; assim como a biologia darwiniana nos
tirou da posição de reis da criação; e assim como o materialismo de
Marx nos mostrou a determinação social dos lugares que acreditávamos
ocupar livremente, da mesma forma Freud veio destruir nossa ilusão de
que a consciência constitui o centro de nós mesmos. Com ele nasce um
problema novo: o da consciência como mentira, ou o da mentira da
consciência, pois a questão da consciência é tão obscura quanto a do
inconsciente. 1 4
Observemos que a intervenção de Freud, n o domínio das ciências
humanas, constituiu um fato decisivo. A descoberta do Inconsciente
passa a ser um dos grandes acontecimentos de nosso século. A extraor­
dinária e por vezes cruel luz que ela lança sobre o passado e o presente
de nossas instituições, o modo que tem de dar conta das ilusões em tor­
no das quais se construiu nossa civilização (o primado da consciência,
da vontade, da sociedade transparente, etc.), a maneira racional que
utiliza para colocar em seu devido lugar a Razão, o registro que abre

- 36-
dos lapsos cometidos pela filosofia, pela arte, pela religião, pela ciên­
cia e pela polftica, tudo isso desloca brutalmente o centro de nossa re­
flexão. A partir de Freud, o conhecimento não pode mais desenvolver­
se segundo os mesmos prindpios: todo o velho fundo intelectual que
nos governa, provenha ele do "conheça-te a ti mesmo" socrático ou de
outras "pregações", fica estremecido em sua base e precisa ser lido ou
interpretado de outra forma. Com o conceito de Inconsciente, surgem
outros conceitos fundamentais forçando a entrada do campo teórico: a
pulsão, o p.razer, o sexo e seus componentes, a morte, etc. Até mesmo
o corpo, em toda a sua existência palpitante, passa a existir teorica­
mente e se apropria de uma palavra que até então lhe era recusada.

4. A Psicanálise e sua teoria do conhecimento

Vimos que Freud considera a filosofia um obstáculo ao conhecimento


cient(fico. Porque ela é portadora de uma pretensão globalizante, vi­
sando elaborar uma Weltanschauung desembocando numa presunção
de saber absoluto. Por isso, nunca se descuidou em estabelecer r(gidas
fronteiras entre o saber anal(tico (cient(fico) e o saber filosófico. Em
uma de suas declarações, ele é bastante categórico: "Os problemas fi­
losóficos e suas formulações me são tão estranhos que não sei o que
dizer deles"; por isso, "evitei cuidadosamente aproximar-me da filoso­
fia propriamente dita". 1 5
É claro que Freud, apesar de declarações tão peremptórias, não
consegue romper seus v(nculos com a filosofia. Em primeiro lugar, co­
mo nos mostra P.L. Assoun,16 porque ele não pode prescindir de uma
teoria do conhecimento. De uma forma ou de outra, expl(cita ou impli­
citamente, ele faz uso de tal teoria. E isto, na medida em que procura
identificar seu objeto de estudo (o inconsciente) mediante um saber.
Apesar de pretender instaurar a psicanálise no reino da cientificidade,
não consegue evitar que ela seja confrontada com a questão dos prinof­
pios de seu funcionamento. Tanto é assim que sentiu a necessidade de
elaborar todo um corpo teórico - por ele chamado de "metapsicologia"
- suscept(vel de supervisionar a prática e de retirar do "material" uma
conceitualização: ele se defronta com a questão da "especulação" ao
relacioná-la com o "dado".
Por outro lado, Freud se refere freqüentemente a sistemas filosófi­
cos. Não se limita, vor exemplo, a citar Platão, Kant, Schopenhauer e

- 37 -
Nietzsche a fim de legitimar seus próprios conceitos referindo-se a es­
ses filósofos. Ele designa os problemas que a psicanálise precisa reto­
rnar a seu modo. De modo especial, a psicanálise freudiana está estrei­
tamente vinculada à tradição filosófica do instinto, notadamente de
Nietzsche e de Schopenhauer. Em Nietzsche, Freud descobre uma an­
tecipação de seu prindpio pulsional mais importante: o "Id" . Descobre
ainda antecipações importantes sobre o sonho, a memória e a culpabili­
dade. Em Schopenhauer, encontra antecipações de seu conceito de re­
calque, descobre na "metaffsica do amor e da morte" a dupla intuição
do poder de Eros e de Thanatos e encontra uma das fontes de seu pes­
simismo. Temos a( uma dupla ascendência cultural da psicanálise. O
próprio Freud reconhece que ela se encontra no cruzamento desses dois
registros, embora faça tudo para situar o saber psicanaUtico apenas do
lado da vertente científica. Não é por acaso que a "psicologia das pro­
fundezas" ou "psicologia abissal" de Freud encontra, nesses dois filó­
sofos instintualistas, pondo em relação uma teoria do instinto e uma
"psicologia" dos motivos morais, a antecipação de seu prindpio. Evi­
dentemente, esses filósofos não fornecem os "fundamentos" da psica­
nálise. Mas é inegável que sobre ela exerceram certa ascendência.
Ora, se a psicanálise se apresenta como um saber (episteme), ela
não pode deixar de confrontar-se com a questão das condições do sa­
ber, vale dizer, com a questão epistemol6gica. Esta questão se desdo­
bra em duas, correlativas uma da outra. Em primeiro lugar, trata-se de
um saber reivindicando o estatuto de ciência (de Wissenschaft), melhor
ainda, de ciência da natureza (Naturwissenschaft), por conseguinte,
devendo referir-se à comprovada metodologia rigorosa utilizada no
dom(nio dos fenômenos naturais. Em seguida, trata-se de um saber
voltado para um tipo de fenômenos (ps(quicos-inconscientes) espec(fi­
cos, bastante refratários ao tratamento pelos métodos "explicativos"
das ciências naturais: deveriam ser analisados por um método próprio,
pelo método "compreensivo", por exemplo? No momento da fundação
da psicanálise, Freud se defrontou com a questão do método (Metho­
denstreit). Com isso, ele se viu às voltas com o debate metaHsico de
como se representar, no conhecimento, a distinção "Natureza/Esp(ri­
to". Freud opta, então, por dois prinofpios epistemológicos suscept(­
veis de dar um suporte ao edif(cio de sua ciência1 7 :
a . u m prindpio monista. Freud se recusa a desvincular a psicaná­
lise das ciências da natureza. Para ele, ela é uma ciência da natureza.

- 38 -
Seu modelo de inspiração é o Hsico-qu(mico. Seu ideal de inteligibili­
dade é o das ciências Hsico-qufmicas;
b. um princfpio agnosticista. Freud pretende fundar uma "psico­
logia sem alma", uma ciência inteiramente despreocupada com "coisa
em si", mas decididamente voltada para certa "classe de fenômenos"
devendo constituir a objetividade da "ciência psicanalftica".
Munido desses dois princfpios elementares, o saber psicanalftico
vai requerer, não obstante, um procedimento especial, adaptado a seu
objeto (os processos inconscientes). Freud dá a esse procedimento o
nome de "metapsicologia". Trata-se de um saber que se adapta a uma
objetividade particular, os fenômenos inconscientes, ultrapassando o
dado imediato, pois vai "além" (meta) do consciente. Isto implica, no
dizer de P.L. Assoun,

"uma racionalidade particular, que exige uma "imaginação teóri­


ca" (Phantasieren), que necessita de uma "transposição" ativa
dos elementos. Freud não hesita em comparar a metapsicologia a
uma "feiticeira", o que mostra que ele subverte de modo fecundo
os princ(pios positivistas que ele torna de empréstimo à concepção
da ciência da "escola vienense" de Ernst Mach notadamente.
Aliás, é nesse movimento de fidelidade aos princ(pios cientificis­
tas de seu tempo e de transgressão soberana, sob a pressão de seu
objeto próprio, que reside um dos segredos da força do dispositi­
vo de saber analftico"_ . 8

Sob sua forma freudiana, a psicanálise, preocupada em estudar o con­


tetido das representações e dos afetos, constitui um extraordinário
exemplo de uma "doutrina" procurando explicar o presente do indiv(­
duo por seu passado. Ela explica o adulto pela criança. Neste sentido,
ela é portadora de uma intenção genética, muito embora não conceba a
gênese como uma construção cont(nua, à maneira de J. Piaget, mas
simplesmente como a manifestação de certas tendências iniciais: o pre­
sente sendo reduzido ao passado e as diversas fases do desenvolvi­
mento ficando reduzidas ao deslocamento dos pontos de aplicação da
energia pulsional inicial. Assim, a psicanálise freudiana procede se­
gundo o ideal reducionista. Ela não reduz o mental ao orgânico ou ao
social, mas reduz as formas psfquicas superiores a formas elementares
subsistindo, durante toda a vida do indiv(duo, em seu inconsciente.
Portanto, ela procede a uma explicação por identificação: os estágios

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oral, anal, narc(sico, primário, objetai, edipiano, etc. não passam de
manifestações sucessivas da mesma l ibido suscept(vel de deslocar suas
"cargas" energéticas de um objeto a um outro, partindo do corpo para
atingir, em seguida, as pessoas que lhe são exteriores e, finalmente, su­
blimações variadas. Contudo, para que haja uma identificação do di­
verso a um prindpio linico, tomam-se necessárias as resistências. Don­
de o primeiro dualismo: o do indiv(duo, portador da libido, e da socie­
dade, que se opõe a seus desejos. Donde também a repressão, o recal­
que, a censura, o simbolismo como despistamento, etc. Freud encontra
uma dupla sa(da: em primeiro lugar, ele interioriza as interdições so­
ciais sob a forma do superego, integrado no aparelho ps(quico, embora
o Ego não conquiste sua autonomia relativamente à libido; em segundo
lugar, ele promove o pensamento simb6lico numa espécie de pensa­
mento primitivo escapando, em parte, à censura.
À guisa de conclusão, façamos algumas observações:
1 . A irrupção da psicanálise, no campo das ciências humanas, es­
barra com um problema especffico: o da 16gica da explicação, ou seja,
a do "como" se pode conhecer as leis da coexistência ou de sucessão
dos fenômenos. Como a "cícnt i fic idadc" era altamente cotada na bolsa
de valores culturais da �poca de Freud , era natural que ele procurasse a
gl6ria, não nos caminhos da filosofia ou da literatura, mas nos cami­
nhos da ciência. V imos que os epistem61ogos oriundos do empirismo
lógico puseram em dlivida o caráter de cientificidade da psicanálise. E
que o racionalismo cr(tico e refutacionista de Popper a considera um
i nteressante e fecundo "programa metaf(sico". Mostramos ainda que a
psicanálise, diferentemente da psicologia, ciência de observação anali­
sando fatos de conduta ou de comportamento, constitui uma forma de
saber preocupada em estabelecer as relações de sentido entre os objetos
substitu(dos e os objetos perdidos da pulsão. Essas duas disciplinas di­
vergem quanto à noção mesma de "fato" ou de " inferência a partir dos
fatos". Para Freud, os "fatos" não valem como observáveis, mas como
significantes para a história do desejo. A psicanálise não está preocu­
pada em observar "fatos", mas em interpretá-los. O estatuto de seu
objeto, o inconsciente , é o de ser uma reserva de pulsões. Mas essas
pulsões não se tornam acess(veis em seu ser "biológico" , apenas em
seus "representantes" ou delegados, pertencentes à ordem da repre­
sentação ou do afeto. Eles só se tornam acess(veis no término de um
longo trabalho de decifração, a partir dos efeitos de sentido na superH-

- 40 -
cie da consciência. Neste sentido, o objeto especrfico da psicanálise
pertence a uma "semântica do desejo".
2. Contudo, a psicanálise não suprime o problema de suas frontei­
ras com a psicologia. Ilustremos isso com três exemplos:
a) como toda explicação, ela só atinge seu objeto por meio de uma
estrutura teórica. Mas como esta estrutura teórica se justifica? No dizer
de J. Ladriêre, ou ela é capaz de fornecer uma elucidação completa de
seus próprios pressupostos ou, então, mostrar-se independente do in­
consciente. "No primeiro caso, trata-se de estabelecer que é possível
obter-se um controle completo do inconsciente ( . .. ) No segundo, trata­
se de provar efetivamente que o discurso psicanalítico é , ele mesmo,
independente do inconsciente"19• Sendo assim, coloca-se o problema
da forma da teoria e de seu modelo. E é no nível dos modelos não-be­
havioristas que a psicanálise e a psicologia poderão encontrar-se;
b) aos olhos da psicologia genética de Piaget, a psicanálise, apesar
de seu programa genético (teoria dos estádios da libido, teoria da cons­
tituição do superego, etc.), aparece como uma teoria rival. Com efeito,
o construtivismo piagetiano considera a psicanálise uma forma de re­
ducionismo, pois explica o presente do indivíduo por seu passado, o
adulto pela criança, considerando a gênese, não como uma construção
contínua, mas como o único desdobramento de certas tendências ini­
ciais: "o presente se vê reduzido ao passado e as diversas fases do de­
senvolvimento são reduzidas ao único deslocamento dos pontos de
aplicação da energia pulsional inicial". Não se trata de um reducionis­
mo do "mental ao orgânico ou ao social" , mas "das formas psíquicas
superiores às formas elementares" subsistindo no inconsciente 2 0 • O mé­
rito de Piaget consiste em mostrar que sua psicologia genética e a psi­
canálise podem constituir duas demarches complementares de ver o
homem e de construção de seu psiquismo: o que é anunciado pelo
construtivismo genético de Piaget situa-se na zona freudiana do "prin­
cípio de realidade" ;
c ) finalmente, por sua teoria do superego, a psicanálise se aproxi­
ma bastante da psicologia social. Ora, se o objeto da psicanálise é o
desejo em seus efeitos de sentido, uma completa "semântica do desejo"
só se tornará possível se, inicialmente, o desejo for considerado em seu
afrontamento com instâncias sociais levantando, contra ele, barreiras e
interditos, projetando-o no inconsciente. Esse confronto do desejo com
as instâncias sociais situa a psicanálise numa nova relação, não mais
somente com a psicologia do comportamento, mas com as demais ciên-

-41 -
cias soctats. Aliás, desde seu in(cio, a psicanálise pretendeu ser, além
de uma terapêutica, uma interpretação da realidade humana em seu
conjunto. Seu objeto não é a pulsão, mas a relação do desejo com a
cultura. Por isso, não se entrincheira na região das pulsões, do sonho e
da neurose. Ela se confronta, não somente com o desejo, mas com o
desejo e seu Outro, a fim de "explicar" os efeitos de sentido numa si­
tuação cultural de caráter conflitivo.
3. A teoria psicanaHtica do conhecimento, em nome do conceito
de inconsciente, embora não desconheça o homem como indivfduo,
tende a desacreditar aquilo que os herdeiros da filosofia do Cogito
chamam de "homem" . Foucault declara que "tudo se passa como se a
dicotomia do normal e do patológico tendesse a se anular em proveito
da bipolaridade da consciência e da inconsciência"2 1 • E o privilégio
que ela confere à psicanálise é justamente o de poder substituir o pen­
sado pelo impensado e de poder dizer: "Pensa-se" (on pense) ou "Isto
pensa". Mas há dois tipos de inconsciente: o da psicanálise e o da his­
tória ou sociologia. Nos dois casos, é o sábio quem domina suas signi­
ficações, quem pensa seu impensado. No segundo caso, porém, a in­
consciência do homem é, antes, ignorância: ele não sabe o que faz por
não conseguir apreender o contexto daquilo que ignora e prever seus
efeitos; ignora a astticia da história. Mas essa astticia da história talvez
seja simplesmente a do sábio que, diante do fato de alguém ter-se sui­
cidado por desespero, pretende explicá-lo por regularidades objetivas:
ele se suicidou porque se deixou levar por uma tendência suicidogêni­
ca. Seria essa tendência mais "verdadeira" que o desespero? Teria o
conceito da ciência o monopólio da verdade? Pode ser considerada in­
consciência a experiência ingênua que ignora esse conceito? Claro que
a psica':lálise se propõe um outro objeto: procura compreender o indiv(­
duo para "tratá-lo", e não para inseri-lo num conjunto, num contexto
social ou numa conjuntura histórica, a fim e descobrir sua significação
"objetiva" . Outra é a linguagem do psicanalista. Ouçamos Laplanche :

"Aquilo que chamamos de inconsciente é algo que não está além,


mas que se encontra aquém do sujeito, que seria não subjetivo. É
por isso que o chamamos de 'isto', como quando o sujeito diz:
'Isto é mais forte do ·que eu . . . Fiz isto apesar de mim'. Pois bem, é
o próprio sujeito quem deve procurar descobrir o que ele disse. É
nos vazios, nos erros, nas máscaras, nas lacunas de seu discurso
que se encontra o que ele quer dizer; e é ele quem vai conseguir

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descobri-lo. Em outras palavras, aquilo que o sujeito diz e:m pri­
meira pessoa, em 'eu' ('moi'), n6s o recusamos efetivamente.
Aquilo que é dito em 'eu' não é verdadeiramente ele, é algo que,
inicialmente, não está na primeira pessoa, mas que deve vir na
primeira pessoa. É algo que tentamos ajudá-lo a emergir em pri­
meira pessoa. Não estamos aqui como Deus Pai. Estamos aqui
unicamente para ajudá-lo a se reassumir e a voltar a falar em ter­
mos de 'Eu' ('je') aquilo que nele se falava, inconscientemente,
em termos de 'isto'. "2 2

4 . Chamemos também a atenção para o fato d e a obra de Freud


não dever ser lida apenas como a descoberta do Inconsciente. Porque
ela se inscreve no sulco do projeto cient(fico e desmistificador da filo­
sofia materialista das Luzes. No pensamento freudiano encontra-se
cultivado o ideal iluminista do Sapere Aude ! , do "tenha a coragem de
utilizar a tua Razão ! " , da superação da menoridade pela qual o homem
se sente culpado a fim de atingir a maioridade sem tutelas estranhas !
Para Freud, o processo civilizatório exigiu do homem, durante milê­
nios, que ele vivesse em condições de menoridade ou infantilismo ps(­
quico. E isto, através da proibição de pensar mantida pelo jogo dos
automatismos internos que preservaram, sem o uso da força, a coesão
social. Mas ele já vislumbra a passagem à maioridade, isto é, à condi­
ção adulta:

"A humanidade, como um todo, passou por condições análogas à


neurose e pelas mesmas razões, porque , na época de sua ignorân­
cia e de sua debilidade psíquica, os sacrifícios pulsionais, indis­
pensáveis à vida comunitária do homem, s6 podiam ser obtidos
mediante forças afetivas. Durante longos per(odos, os precipita­
dos desses processos, semelhantes ao recalque, continuaram liga­
dos à civilização ( . . . ) Provavelmente o tempo já amadureceu para
que possamos substituir os efeitos da repressão pelos resultados
da operação racional da inteligência" (0 futuro de uma ilusão.):l

Em O mal-estar na civilização, Freud afirma que uma comunidade de


homens, capaz de subordinar sua vida afetiva aos ditames da Razão,
deveria desempenhar um papel importante na condução dos negócios
humanos. Esta hipótese é elaborada a partir das mesmas premissas ilu­
ministas ( liberar as tendências ou pulsões naturais): a função da inteli-

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gência é determinante na luta contra o irracionalismo. Por isso, o po­
der da Razão deve desempenhar o papel de contraforça destinada a
neutralizar a ascensão da violência e da intolerância. Esse racionalismo
é indissociável de um ideal de objetividade, pois são o princfpio de
realidade e a aptidão ao acesso à consciência de si, pela análise das
rafzes infantis, dos afetos e das pulsões, que devem engajar o indivfduo
numa via realista. O acesso à racionalidade é um ideal sempre alcançá­
vel. Por isso, diante de uma crise de valores, de problemas relativos à
dissociação interna do eu, à força latente do irracional e à precariedade
da consciência de si, Freud crê no desenvolvimento da razão cientffica.
Mas esta crença não oculta a consciência de urna desilusão: o progresso
ético não constitui o acabamento do processo civilizador nem tampouco
o acabamento do desenvolvimento das luzes da Razão:• Porque as
tendências agressivas são um dado instintivo primário. No infcio, não
se encontra a unidade, não se encontra a harmonia nem tampouco
existe o princfpio de onde tudo brotará. No infcio, encontra-se o con­
flito, está presente a dualidade, o que existe é a falha no ser, fazendo
deste ser, ao mesmo tempo, expansão c destruição - amor e morte, vida
e suicfdio. A pulsão de morte trabalha dinamicamente a história onde
"as pressões instintivas são mais fortes que os interesses racionais" e
onde o homem é "um lobo para o homem " . Por isso, é na natureza hu­
mana mesma que se enrafza a repressividade social. A civilização é to­
mada no jogo conjugado de instinto de vida e de instinto de morte: ela
é o lugar e o efeito do insoh1vel conflito entre Eros e Thanatos.
5. É na análise da noção de repressão que se situa o mal-entendi­
do .do freudo-rnarxismo de um Marcuse, por exemplo. Com efeito, seu
Eros e civilização se apresenta como uma espécie de justificação da
utopia. O livro começa com um capftulo intitulado "Sob a dominação
do princfpio de realidade" e termina com outro denominado "Para além
do princfpio de realidade". A história do homem é pensada, antes de
tudo, como a história da repressão. E somente a regressão tem condi­
ções de libertá-lo, pois permite-lhe tomar um desvio pelo ponto zero da
história, ponto a partir do qual ele poderá recomeçar, desta feita, libe­
rado. E isto, como se a única via polftiea fosse uma terapêutica regres­
siva em escala da humanidade. Nesse processo regressivo, o homem
cruzaria com a sociedade de consumo, com o "individualismo padroni­
zado", com a busca de "elos vivos entre o indivfduo e a cultura", até
chegar a uma espécie de parafso perdido. Para lutar contra a repressão,
ele deve regredir. E todas as formas de regressão constituem armas efi-

- 44 -
cazes contra a repressividade social, familiar, sexual e polftica.
A criança, o louco e o selvagem são as três figuras privilegiadas dos
regressivos de nossa cultura, os três mitos de origem dos individualis­
tas de nossa época. Donde se procurar lutar contra a escola (lugar de
repressão da criança), contra o asilo (lugar de repressão do louco) e
contra as missões (lugar de repressão do selvagem) . Mitologia que pas­
sa ao lado da verdadeira realidade, mas que não nos cabe analisá-la
aqui.
6. Finalmente, uma observação concernente ao problema hico da
psicanálise. Freud não tratou dos objetivos éticos da cura. Mas sobre
essa questão, que envolve problemas poHticos e ideológicos, tomadas
de posição discordantes levaram alguns analistas a procederem a de­
formações práticas e teóricas na psicanálise. Esta se converte, nos Es­
tados Unidos, não na peste prevista por Freud, mas numa teoria alta­
mente adaptativa: toda uma literatura vulgarizada e cinematográfica
apresenta o analista como um conselheiro privado, como um mediador
familiar ou como um confessor leigo. Mas independentemente dessa ca­
ricatura, há toda uma nova orientação da psicanálise procurando adap­
tar os indivfduos, procurando proporcionar-lhes um "viver-melhor" re­
forçando seus mecanismos de defesa, assegurando-lhes um Ego mais
"forte", mais resistente às ameaças. H. Hartrnann é um dos mais im­
portantes teóricos a fundar a "Ego-psychology". Diferentemente de
Freud, para quem o Ego tem, na prática da cura, uma função protetora
e mediadora entre o Id (reservatório das pulsões) e o Superego (instân­
cia da legalidade e de suas prescrições), Hartmann, em seu Ego Psy­
chology and the problem of adaptation (1939), converte o Ego numa
instância central e desdobrada: parte dele é independente, não provindo
do conflito entre ld e Superego, mas é extrafdo progressivamente, se­
guindo as etapas da formação ps(quica. É este "Ego autônomo" que
deve ser fortificado para ajudar o paciente diante de suas dificuldades
com o mundo exterior. Ademais, esse Ego é porta<;tor de uma energia
"neutralizada", resultante da anulação da agressividade pelas pulsões
libidinais. Portanto, Hartmann transforma o Ego em instância de neu­
tralidade: neutro no sentido latino de nem um (nem Superego) nem o
outro (nem o ld). Desta forma, o analisando fica situado numa espécie
de no man's land afetivo e ideológico, como se a psicanálise pudesse
operar um desinvestimento do campo poHtico ! Questão que também
ultrapassa nossos objetivos.

- 45 -
NOTAS

I. As críticas sociológicas têm por objetivo principal desmistificar a prática


psicanalítica e denunciar alguns de seus ritos ocultando certo charlatanismo.
Alguns psicanalistas correm o risco de se converterem em feiticeiros que,
por razões econômicas, tendem a encobrir sua prática com um espesso véu
de mistério. Por sua vez, muitos analisandos depositam uma tal fé no poder
mágico da psicanálise, que só evocam suas experiências para mitificar seu
analista (ou guru). O próprio Freud (notadamente em dois textos: "O início
do tratamento" e "Os novos caminhos da terapêutica psicanalítica", in La te­
chnique psychanalytique, P.U.F., 1953, p. 84-93 e 140-141) declara que a
eficácia da cura depende de sua duração e da freqüência das sessões, vale di­
zer, depende do dinheiro investiào pelo paciente. E ele tira a conseqüência
sócio- política desse "princípio": somente as classes médias podem fazer
análise. Defende, assim, o poder curativo pelo dinheiro. É tão importante a
dimensão econômica da psicanálise, que Freud enuncia seu famoso princfpio:
"Toda sessão faltada é devida" (sobre esse tipo de crítica, ver, por exemplo,
Catherine Clément, Lesfils de Freud sontfati�:ués, Grasset, 1978).
Lembremos ainda outra crftica, desta feita de ordem institucional: o
pensamento psicanalítico, confrontado com seu formidável clã criador do
início, atravessa um momento de grande mediocridade. As famosas análises
didáticas, quanto mais se prolongam c se aprofundam, menos se revelam fe­
cundas em suas descobertas teóricas. A máquina institucional não prepara
cabeças inovadoras e pensantes. Parece ter mais necessidade de cabeças dó­
ceis e submissas, enquadradas e sem colocar problemas incômodos. Se, em
seu início, a psicanálise aspirava a "perturbar o sono do mundo", corre hoje
o risco de gerar novos conformismos sócio- polfticos incentivados por um
individualismo apenas intelectualmente mais requintado.
.
2. É inegável o grande fascínio que a psicanálise exerce sobre o grande público.
Ela modela sua mentalidade. Serve até mesmo como uma espécie de ersatz à
religião. Às pessoas que sofrem, fornece um meio de se "confessarem" com
a garantia de uma ciência. Aos decepcionados políticos, fornece um instru­
mento para se inocentarem, para acusarem e culpabilizarem as autoridades e
as instituições. Para muitos, ela se tomou uma visão do mundo. Ancorados
na eficácia de sua prática, muitos passam a crer na superioridade de suas
verdades. Com isso, pouco discutem, e explicam muito. E se tornam mestres
em desacreditar, como ilusão, a objeção. A resistência à psicanálise se con­
verte no sintoma de um complexo a ser curado. Este aspecto iniciático, de-

- 46-
senvolvido pela psicanálise, constitui uma das causas de seu êxito. Todo
mundo fala de recalque, de complexo, de investimento, de estádio anal, de
repressão, de ferida narcísica, etc. Ao ser vulgarizado, o freudismo é assi­
milado ao desrecalque, à explosão dos desejos e dos prazeres, etc. A psica­
nálise é utilizada como justificação e como motivação dos casais que se se­
param, dos filhos que não podem mais suportar seus pais, etc. Leva os pais a
terem vergonha de sua autoridade e os educadores a liberarizarem os valores
éticos. Claro que os maridos sempre abandonaram suas esposas e que os fi­
lhos sempre tiveram vontade de matar seus pais. Contudo, com a teoria psi­
canalítica, teoria psicológica das profundezas, temos, pela primeira vez, uma
justificação "científica" para essa "normalidade". Nos jornais, nas revistas
de vulgarização, nas rádios e nas televisões, são distribuídos vários conselhos
de sabedoria prática questionando as tolices tradicionais. O declínio da auto­
ridade paterna e o da autoridade escolar procuram um substituto numa psi­
canálise vulgarizada através de certos meios pedagógicos: ela é securizante,
consoladora, ajuda a falar, etc. Mas será que ajuda a crescer? Por mais que a
psicanálise ajude a demolir todos os superegos, não estaria ela ajudando a
criar, não digo uma geração egoísta, mas egotista ou, como dizem os ameri­
canos, uma Ego generation?
3. A continuação do juramento diz: "No caso em que essas forças físicas e
químicas não podem ainda explicar, devemos nos empenhar em descobrir o
modo específico ou a forma de sua ação utilizando o método físico-matemá­
tico, ou postular a existência de outras forças equivalentes em dignidade às
forças físico-químicas inerentes à matéria, redutíveis à força de atração e de
repulsão" (Cf. E. Jones, A vida e a obra de Sigmund Freud*, 1 953, p. 45;
uma das melhores obras sobre a questão da cientificidade da psicanálise é a
de P.L. Assoun, Introdução à epistemologia freudiana (tradução minha), Rio
de Janeiro, !mago, 1983).
4. A preocupação de Freud é a de dizer que a Psicanálise, verdadeira ciência da
natureza, nada tem a ver com a filosofia. Fazendo suas estas palavras de Ma­
ch: "O sábio tem necessidade imperiosa de examinar os métodos pelos quais
ele adquire ou amplia seus conhecimentos" (Connaissance et erreur, tr. fr.,
1908, p. 7), Freud se considera um amador em filosofia e se julga, como Ma­
ch, "apenas um sábio". Sua recusa da filosofia se deve ao fato de ela condu­
zir ao país do transcendente e elaborar uma Weltanschauung que "procura
orientar-se, no conjunto dos fatos, de modo tão universal quanto possível"
(cap. I de Selbstdnrstellung). Para estabelecer o estatuto diferencial entre a

* Publicado no Brasil pela !mago, jan. 1 989.

-47 -
ciência e a filosofia, Freud copia, no dizer de P.L. Assoun (op. cit., p. 80),
essas palavras de Mach: "Não tendo tido a excelente oportunidade de pos�
suir inquebrantáveis axiomas, o sábio se habituou a considerar como provi�
sórias suas idéias e seus princípios mais seguros e mais fundados, mas sem�
pre está pronto para modificá�los em seguida a novas experiências". Lendo
essa passagem, ele descobriu a linguagem de sua posição metodológica para
dar conta apenas de determinada esfera de fenômenos: os inconscientes. A
Psicanálise, que os estuda, não é um sistema, não constrói uma cosmovisão,
não se impõe como conhecimento acabado, não propõe uma exigência de
perfeição lógica. Pelo contrário, opõe, à panconceitualização filosófica,
o empirismo cientfjico; à universalidade sistematizante, o particularisma da
ciência; ao fechamento do sistema, a abertura experimental; ao apriorismo,
a identidade da ciência analftica (Sobre as relações de Freud com a filosofia,
ver P.L. Assoun, Freud, a filosofra e os filósofos, tradução minha, Francisco
Alves, 1978).
5. Freud insiste com Jung que o valor da compreensão, isto é, a natureza da
explicação, seu método, deve primar sobre seu conteúdo. Este é o melhor
critério para se diferenciar a racionalidade científica da magia e do mito: o
caráter local e incompleto da explicação científica, por oposição à completu�
de e à universalidade da explicação mítica. Por isso, aconselha seu discípulo e
filho querido (Jung) a manter a cabeça fria, a jamais abandonar a teoria se�
xual e a conservá� la como um "bastião inquebrantável contra a maré negra
(ou lama negra) do ocultismo". E ele entendia por "ocultismo" , diz Jung, tu�
do o que a filosofia, a religião e a parapsicologia nascente podiam dizer da
alma (Ma vie, Gallimard, 1 966, 1 77� 1 80). E ao suplicar a seu "querido filho"
que não renuncie ao desejo de compreender em proveito da causa da com�
preensão, Freud pretende salvar, a todo custo, um método analftico, vale di�
zer, diferenciador da ciência.
6. Importa observar que foi somente em 1922, após um longo período de pes�
guisa, que Freud forneceu a defmição a mais completa do termo "Psicanáli�
se" , introduzido em 1 896 no texto A hereditariedade e a etiologia das neuro­
ses. Em Psicanálise e teoria da libido, declara:
"Psicanálise é o nome:
1 z De �m procedimento para a investigação de processos mentais mais
ou menos inacessíveis de outra forma;
2Z De um método fundado nessa investigação para o tratamento de
desordens neuróticas;
3Z De uma série de concepções psicológicas adquiridas por esse meio e
que crescem juntas para formar progressivamente uma nova disciplina cien�

- 48 -
tífica". Por conseguinte, a psicanálise se apresenta, antes de tudo, como uma
investigação dos processos inconscientes. Correlativamente, como um certo
tipo de terapêutica centrada nas neuroses. Finalmente, ela reivindica o esta­
tuto de uma teoria científica da psiqué. Numa carta a Ludwig Binswanger
(28 de maio de 1 9 1 1), Freud se mostra plenamente consciente da ascese que
exige a prática da psicanálise: "Na verdade, não existe nada a que o homem,
por sua organização, seja menos apto do que à psicanálise".
7. O termo "positivismo" está associado ao movimento do século XIX defen­
dendo três teses fundamentais: a) todo conhecimento da realidade (matter of
facts) está fundado nos dados (data) "positivos" da experiência; b) há um
domfuio puramente formal das "relações de idéias" (relations ofideas): o da
lógica-matemática; c) é suspeito todo conhecimento "transcendente" (meta­
físico ou teológico) ou que ultrapassa toda evidência possível. Por sua vez,
o positivismo lógico, movimento que surge com o Círculo de Viena, na déca­
da de 20, constitui um estudo das funções da linguagem e dos tipos de signi­
ficação. Ele utiliza o famoso critério da verijicabilidade que distingue a ciên­
cia (cujas proposições são verificáveis) da metafísica (cujas proposições in­
verificáveis devem ser suspeitas como non-sens). Popper acredita ter "mata­
do" o positivismo lógico, criticando de modo defmitivo o critério de verifi­
cabilidade. A ciência não procede por indução, diz ele. Não existe conheci­
mento podendo ser verdadeiramente verificado positivamente. Só podemos
infirmar uma teoria científica. Todo conhecimento científico é conjecturai. O
verdadeiro "critério de demarcação" entre ciência e metafísica consiste em
dizer que uma proposição científica se apresenta sob uma forma tal que seja
susceptível de ser eventualmente infirmada. Diferentemente do positivismo
lógico, Popper reconhece certo valor à metafísica, a esse "non-sens" em
geral e, mesmo, aos mitos. Ao mesmo tempo, afirma que o marxismo e a psi­
canálise não são ciências, posto que são formulados em termos tais que são
irrefutáveis. - Observemos que o positivismo lógico não sobrevive mais tal
como ele apareceu. Nos Estados Unidos, surgiu um neopositivismo desen­
volvendo estudos sobre a linguagem da ciência. Na Inglaterra, a "filosofia
analítica" ou da "linguagem ordinária" desenvolveu-se em reação contra
o cientificismo do positivismo lógico e no prolongamento do pensamento do
segundo Wittgenstein (Investigações filosóficas), ao passo que, nos Estados
Unidos, a filosofia analítica se refere mais ao Wittgenstein propriamente
"positivista" do Tractatus logico-philosophicus.
8. O behaviorismo skinneriano, apoiando e desenvolvendo as teses de J.B.
Watson (Psychology as the behaviorist views it, 1 9 1 2 ; Psychology from the
standpoint of view of a behaviorist, 1 9 1 3), que rejeitam toda introspecção,

-49 -
acredita que, para se constituir, a psicologia deve decalcar-se nos modelos
das ciências naturais, notadamente da física. Nesta, é a observação ou a ex­
perimentação que verificam ou infrrmam os enunciados. Para dobrar-se a
esta ascese, a psicologia deve renunciar a tomar por objeto de estudo tudo o
que não puder ser tomado como fenômenos observáveis, quer dizer, objeti­
vos. Ela abandonará aos filósofos o conhecimento íntimo, para dedicar-se
unicamente ao comportamento observável, mensurável por todo observador
racional e honesto. O psiquismo é considerado como uma "caixa preta", isto
é, como uma entidade não observável e incognoscível pela ciência. A cons­
ciência e o psiquismo devem ser colocados "entre parênteses", posto que só
constituem objetos de uma ciência os observáveis. A psicologia só estuda os
comportamentos, vale dizer, tudo o que o organismo faz e diz, ou seja, esse
conjunto de manifestações do organismo que vão desde as atividades mais
primitivas do animal às atividades mais elaboradas do homem. Fundado nu­
ma filosofia determinista e causalista de tipo comtiano, procurando em toda
parte, nos fenômenos, associar uma causa a um efeito, o behaviorismo des­
creve o fato psíquico como uma reação (resposta ou out put) a uma situação
(estímulo ou in put). Por esse conhecimento dos efeitos e das causas, o beha­
viorismo pretende dar-se o meio de prever os efeitos conhecendo as causas,
e de agir sobre o comportamento manipulando as situações.
9. Popper declara que o marxismo e a psicanálise demonstram apenas uma
aparente capacidade de explicação, pois parecem explicar praticamente tudo
em seus respectivos campos. Suas teorias sempre encontram verificações.
Popper acusa os marxistas de adotarem a mesma prática dos adivinhadores e
dos astrólogos, pois tornam suas profecias e interpretações suficientemente
vagas para explicar qualquer coisa: " Para escaparem à falsificação, destruí­
ram a testabilidade". Por sua vez, a teoria psicanalítica, por não ser testável,
apresenta-se como irrefutável. Popper não diz que Freud está errado. Pelo
contrário, acredita que sua teoria pode contribuir para uma psicologia "tes­
tável". Contudo, declara que suas "observações clfnicas", da mesma maneira
que as afirmações dos astrólogos, não constituem confim1ações de suas teo­
rias: "Quanto à epopéia freudiana do Ego, Superego e ld, não se pode rei­
vindicar para ela um padrão científico mais rigoroso do que o das estórias de
Homero sobre o Olimpo. Essa teoria descreve fatos, mas à maneira de mitos:
sugere fatos psicológicos interessantes, mas não de maneira testávef' (op.
cit., p. 37).
10. Popper não quer dizer, com isso, que a psicanálise seja científica porque
possui o critério da explicação causal e preditiva. Ele próprio é um defensor
da explicação causal. Sua posição decorre do conceito que tem de teoria:

- 50 -
sistema axiomatizado formado de enunciados sintéticos universais permitin­
do, com a ajuda de condições iniciais apropriadas, fornecer uma explicação
causal de fatos expressos por enunciados singulares e predizê-los. Assim,
fornecer uma explicação causal de determinado fenômeno significa deduzir
um enunciado eescrevendo-o, utilizando como premissas de dedução uma ou
várias leis universais e certos enunciados singulares chamados de condições
iniciais. Seja, por exemplo, explicar a natureza de um fio. O modo de operar
é o seguinte: de um lado, tomamos uma hipótese tendo a forma de uma lei
universal: "toda vez que um fio for submetido a um peso excedendo o que
caracteriza sua resistência, ele se quebrará"; do outro, tomamos dois enun­
ciados singulares: "O peso característico da resistência deste fio é de um
quilo" e "o peso ao qual este fio está submetido é de dois quilos". Esses dois
enunciados formam as condições iniciais. A ssim, deduzimos da conjunção do
enunciado universal e dessas condições iniciais um outro enunciado singular:
"Este fio se quebrou" ou "este fio se quebrará" (previsão). As condições
iniciais descrevem a "causa" do fenômeno, ao passo que a predição descreve
o "efeito". Contudo, em relação ao famoso princípio de causalidade, a posi­
ção de Popper é clara: não aceita a aplicabilidade universal desse método de­
dutivo de explicação. Porque dizer que todo fato é susceptível de uma expli­
cação causal significa adotar uma posição metafísica, não metodológica. O
que devemos fazer, declara, é procurar sempre leis universais e um sistema
teórico coerente a fim de podermos explicar, por um elo causal, todo tipo de
acontecimento que pudermos descrever (cf. A lógica da pesquisa científica,
Cultrix, 1975, p. 62-75).
Ilustremos isso com dois exemplos: 1. há uma "lei" psicológica segundo
a qual toda atitude agressiva de um indivíduo deve ser procurada (sua causa)
numa frustração afetiva por ele vivida. Ora, ligar um fato (a atitude agressi­
va de um indivíduo) a outro fato (uma frustração sofrida) corresponde à de­
marche científica: a lógica da afirmação é compreendida por todos. Todavia,
essa coerência não é fechada, pois não temos o direito de afirmar que toda
agressividade provém de uma frustração afetiva: o que é frustração para um
pode não ser frustração para outro; e tal frustração pode ser apenas uma das
causas da agressividade; 2. A psicanálise freudiana afirma que toda conduta
humana encontra sua explicação (sua causa) na estruturação precoce da libi­
do do indivíduo. Embora a libido constitua um pressuposto da explicação
psicanalítica, não podemos dizer rigorosamente, sob a forma de um teorema:
toda conduta humana se explica pela estruturação precoce da libido indivi­
dual. Diversas atitudes são possíveis diante desse dado irredutível que é a li­
bido: a) ela constitui o dado explicativo de todos os fenômenos humanos (in-

- 51 -
dividuais e sociais); os defensores dessa posição tentam explicar a psicologia,
as relações sociais e a história apenas por esse dado; b) a libido constitui o
dado explicativo de toda conduta individual; única causa em seu domínio (a
psicologia), a libido não é causa ou a única causa no domínio social e históri­
co; c) a libido constitui um dado explicativo ao lado de outros dados: ao lado
da libido, Jung acrescenta o princípio irredutível que é o instinto de poder.
1 1 . Não é fácil distinguir nitidamente uma teoria científica de uma teoria meta­
física, vale dizer, um sistema lógico pretendendo dar conta de fatos experi­
mentais de um sistema, também lógico, dando-se como verdadeiro, mas sem
nenhuma experimentação ohjetiva. Do ponto de vista filosófico, o primeiro a
colocar esse prohlema foi Kant, ao criticar o empirismo radical de Hume.
Ele admite que o conhecimento científico da realidade possui, contraria­
mente à metafísica, um conteúdo de experiência. Todavia, afirma que esse
conteúdo é organizado pela razão: " Sem a sensibilidade, nenhum objeto nos
seria dado, mas sem o entendimento, nenhum seria pensado. Pensamentos
sem conteúdo são vazios, mas intuições sem conceito são cegas" (Critique de
la raison pure, P.U.F.," 1950, p. 77). Assim, as teorias científicas se defmem
como sistemas nos quais fazemos um uso legítimo da razão. As especulações
metafísicas, ao contrário, só produzem ilusões. Este problema é retomado
por Popper. Contudo, enquanto Kant procurava um critério ló�:ico diferen­
ciando a ciência da metafísica, Popper busca um critério metodológico: ele se
pergunta como a ciência procede para objetivar seus resultados. No seu en­
tender, o cientista constrói teorias das quais tenta incessantemente falsificar
as conseqüências. Em outras palavras, para que uma teoria seja reconhecida
como científica, é preciso que ela possua este caráter distintivo que é ajalsi­

ficabilidade. Toda ciência funciona em três tempos: a) teoria; b) dedução e


conseqüências particulares da teoria; c) experiência (ou observação) suscep­
tível de falsificar uma dessas conseqüências. Quer dizer: só são científicas as
teorias às quais a experiência pode fornecer um desmentido indireto e par­
cial. Nessas condições, as "teorias" psicanalíticas não podem ser científicas:
são infalsificáveis.
12. Na interpretação de L. Althusser, Lacan teria visto na descoberta e na práti­
ca de Freud um conjunto orgânico composto de uma prática (a cura analíti­
ca), de uma técnica (o método da cura) e de um equipamento teórico. Por­
tanto, formalmente, Freud fundou uma ciência, uma ciência nova, ciência de
um objeto novo: o inconsciente. Ele repetiu várias vezes que a prática (a cu­
ra) e a técnica (o método analítico) só eram autênticas porque fundadas nu­
ma teoria científica. Eis a posição de Lacan, diz Althusser, que prossegue.
"Se a Psicanálise é verdadeiramente uma ciência, pois ela é a ciência de um

-52 -
objeto próprio, ela é também uma ciência segundo a estrutura de toda ciên­
cia: possuindo uma teoria e uma técnica (método) que permitem o conheci­
mento e a transformação de seu objeto em uma prática específica. Como em
qualquer ciência autêntica constituída, a prática não é o absoluto da ciência,
mas um momento teoricamente subordinado; o momento em que a teoria,
tomada método (técnica), entra em contato teórico (conhecimento) ou práti­
co (a cura) com seu objeto próprio (o inconsciente)" (" Freud e Lacan", in
Walter J. Evangelista, Freud e Lacan!Marx e Freud, Graal, 1 983, p. 55).
13. Não somente a ciência constitui um conhecimento distinto do que nos forne­
ce o senso comum, mas só pode existir ao preço de uma ruptura epistemoló­
gica com a opinião e com os pseudo- saberes anteriores. Enquanto a opinião
procura um efeito, a ciência estabelece uma relação. A ciência procura legi­
timar suas asserções sem se preocupar com os efeitos de seu conteúdo. A
opinião, ao contrário, é indiferente a toda explicação de um fenômeno, posto
que somente constata os fenômenos só se interessando pela utilidade que
deles pode retirar. Para Bachelard, a ciência não marca apenas uma ruptura
com a opinião no momento em que ela se constitui, pois ela é perpétua rup­
tura, uma idéia científica podendo sempre ser ou tomar-se, uma vez consa­
grada, uma opinião esterilizante. Portanto, a história do pensamento científi­
co não pode ser considerada como a de um progresso contínuo, mas como a
de uma revolução permanente na qual as idéias vêm contradizer outras
idéias, os fatos contradizer outros fatos. Esta "dialética" define o movi­
mento mesmo da ciência, que é retificação incessante das idéias pelos fatos e
dos fatos pelas idéias (ver La formation de l' esprit scientifique, V rin, 1 967, p.
13- 15; Le matérialisme rationnel, P.U.F., 1972, p. 207 - 2 1 3).
14. Freud se recusa a fazer da psicanálise uma ciência do homem. Para ele, o
homem deve ser considerado um objeto natural. Não sendo mais referido a
uma norma superior e absoluta (ser metafísico), passa a ser confrontado com
o mundo biológico, vinculado apenas ao mundo animal: é mais complexo que
os outros animais por constituir-se num ser de desejo e de necessidade. O
que Freud encontra, sobre as construções da cultura, é o jogo das pulsões e
do desejo. Em seu esforço para naturalizar o homem, ele faz da psicanálise
uma ciência natural tendo o direito de intervir eficazmente no conjunto das
ciências humanas. Admite mesmo que ela desempenha o papel principal,
posto que o psiquismo individual pode ser tomado como forma universal de
referência, como base real de todos os fatos humanos e sociais: "Enquanto
psicologia das profundezas, doutrina do inconsciente psíquico, a psicanálise
pode tomar-se indispensável a todas as ciências que tratam da gênese da ci­
vilização humana e de suas grandes instituições, tais como a arte, a religião e

-53 -
a ordem social" (Minha vida e a psicanálise, 1923). Assim, além de naturali­
zar o homem, ele biologiza o psiquismo e psicologiza a sociedade.
15. Ma vie et ÚJ psychanalyse, G.W., XIV, p. 86.
1 6. Freud, la philosophie et les philosophes, P.U.F., 1 976, p. 1 25s.
17. Esta questão é desenvolvida amplamente por P.L. Assoun em lntroduction à
l'épistémologiefreudienne, Payot, 1 98 1 , capítulos I, li e 111.
18. "Les fondements philosophiques de la psychanalyse", in R. Jacard, Histoire
de la psychanalyse, tomo 1 , Hachette, 1982, p. 8 3 - 84.
19. L'articulation du so1s, Aubier Montaigne, 1970, p. 44.
20. L'épistémologie des sciences de l'homme, Gallimard, 1970, p. 1 82.
21. Les mots et les choses, Gallimard, 1 966, p. 374.
22. Revue de I' enseignement philosophique, dezembro de 1 966, p. 87.
23. Observemos que o racionalismo de Freud não se linúta a reconhecer que o
homem é, desde seu ponto de partida, um ser racional. Ele o leva a reconhe­
cer os limites de sua própria razão e, assim, o arma para conquistar a razão,
ponto de chegada. "A voz da inteligência é pouco audível, mas não repousa
enquanto não for escutada", declara. "É certo que o primado da inteligência
está num futuro distante, mas provavelmente não num futuro infinitamente
distante", prossegue. E ao divinizar e razão, enfatiza: "Nosso deus, logos,
não é dos mais poderosos ( ...) Mas acreditamos que a ciência pode lograr al­
gum conhecimento sobre o mundo real, graças ao qual será possível aumen­
tar nosso poder sobre a natureza e organizar melhor nossa vida". Enquanto
isso, diz Sérgio Paulo Rouanet (que cita esses textos), "o homem pode impa­
cientar-se e procurar atalhos para a verdade, que dispensem a razão - seitas
orientais, experiências místicas, 'singularidades inefáveis'. Em vão. Pois, co­
mo Freud nos alertou, 'quando o viajante canta no escuro, pode espantar seu
medo, mas nem por isso vê mais claro"' (As razões do Iluminismo, Compa­
nhia das Letras, S. Paulo, 1 987, p. 143).
24. Durante a primeira guerra, por exemplo, Freud declara: "Esta guerra susci­
tou nossa desilusão por duas razões: a fraca moralidade, em suas relações
exteriores, de Estados que se comportavam, no interior, como os guardiães
das normas morais; e nos indivíduos, uma brutalidade de comportamento que
não poderíamos acreditar que, participando da mais alta civilização humana,
fossem capazes de cometer" (Essais de psychanalyse, citado por M. A nsart­
Drouen, Freud et les Lumieres, Payot, 1985, p. 229. - Nesta obra, o autor
instaura um diálogo ftlosóflco entre os pensadores das Luzes, notadamente
Rousseau, e Freud, num espaço de confronto inédito e centrado na questão
da liberdade.

- 54 -
CAPÍTULO 11

PSICANÁLISE E "CONTRACIÊNCIA"

Lançando um olhar para trás sobre a parte de trabalho que me foi


dado realizar em minha vida, posso afirmar que descobri muitos ca­
minhos e dei vários impulsos que poderão culminar em algo no fu­
turo. Eu mesmo não posso saber se este algo será muito ou pouco.

S. FREUD

Este algo ou indeterminado, de que Freud não consegue prever bem o


futuro, converte-se no domfnio da psicanálise, dessa disciplina que, em
extensão, ganha tanto terreno, a ponto de ultrapassar os limites traça­
dos por seu fundador e de correr o risco de perder bastante em compre­
ensão. Porque se trata de uma extensão conquistada em detrimento de
uma tríplice exigência: heurística, terapêutica e científica. Em boa par­
te, as chamadas "ciências humanas" são responsáveis por esse desper­
dício de sentido, na medida que passaram a utilizá-la como instrumento
teórico num contexto que lhe é estranho. Donde a necessidade de se
resgatar a integralidade do corpus freudiano em sua especificidade
própria, a fim de percebermos que a situação da psicanálise, relativa­
mente às ciências humanas, afirma-se à margem ou em oblfquo, como
"contraciência" . Porque adota uma perspectiva eminentemente crftica
de todas as instâncias que se aplicam à idéia mesma de homem: crítica
da consciência, do sujeito, do indivíduo , da normalidade, da criação
artística, etc. É ela que situa as ciências humanas, não fazendo parte
delas. Ela as atravessa sem, no entanto, justificá-las.
No interior mesmo das disciplinas e das práticas dependendo da
psicologia em seu sentido amplo, já existe um componente epistemoló­
gico bastante crftico, pelo menos no sentido em que denuncia a preten-

- 55 -
sa cientificidade que a psicologia procura cultivar e na qual pretende
instalar-se. Com efeito, ao lado de uma corrente psicológica tentando a
todo custo reivindicar um estatuto de cientificidade, existe toda uma
"contracorrente" procurando denunciar, não somente a ilusão da psi­
cologia de ser uma "ciência", mas a pretensa cientificidade de todas as
chamadas "ciências humanas". Trata-se de uma cientificidade que não
se define de modo unfvoco. Esta constatação encontra-se na origem da
tentativa de Michel Foucault de traçar uma genealogia dos modelos
cientfficos que engendram a idéia de "ciência do homem", "esse corpo
de conhecimentos que toma por objeto o homem naquilo que ele tem de
empfrico". 1 No i nterior desse corpo podem funcionar, para descrevê-lo,
várias taxinomias, dentre as quais duas possuem a seguinte caracterfsti­
ca: a de não s ituar a psicanálise como domfnio autônomo, mas como
urna espécie de exigência interna a um sistema do qual ela seria o prin­
cfpio diretriz. Porque não pode ser anexada a um conjunto de discipli­
nas já constitufdas. Pelo contrário, sua simples presença já provoca to­
da uma reviravolta nas ciências humanas. A respeito dessas disciplinas,
o julgamento de Foucault é incisivo;

"Elas não são absolutamente ciências. A configuração que define


sua positividade e as enrafza na epísteme moderna coloca-as, ao
mesmo tempo, fora do estado de serem ciências. E se nos per­
guntarmos por que, então, elas tomaram esse tftulo, bastaria lem­
brarmos que pertence à definição arqueológica de seu enraíza­
menta o fato de exigirem e acolherem a transferência de modelos
tomados de empréstimo às ciências" . 2

Foucault vai ainda mais longe. Ao falar da etnologia, da psicanálise e


da ciência em geral da l inguagem, declara que se trata de disciplinas
que, relativamente às ciências humanas e a seu projeto em geral, afir­
mam-se muito mais como contracíências. 3 E descobre um esquema co­
mum à etnologia e à psicanálise permitindo uma redefinição do campo
do homem: "Forma-se, então, o tema de uma teoria pura da linguagem
que daria à etnologia e à psicanálise, assim concebidas, seu modelo
formal" .' A l inguagem - e suas mdltiplas teorizações - constituiria
a contracíêncía capaz de unificar o campo pseudocientffico das ciên­
cias humanas.
Por sua vez, Lacan acredita que a psicanálise vale como uma espé­
cie de condenação mais ou menos radical da reivindicação "cientffica"

- 56-
da psicologia positiva. Declara estar convencido de que "as_�ondiçõe_s_
de uma ciência não poderiam ser o empirismo", que o "científico", na
psicologia, não passa de uma etiqueta, porque "a função do sujeito, tal
como a instaura a experiência freudiana, desqualifica, na raiz, aquilo
que, sob esse título, só faz perpetuar um quadro acadêmico". 5 Donde a
clivagem que ele faz entre a psicaru11ise, que introduz uma teoria do
sujeito, e a atual psicologia (americana), que introduz uma teoria do
indivlduo. Por isso, não inclui ·a psicanálise no sistema das ciências do
homem: "Não há ciência do homem, porque o homem da ciência não
existe, mas somente seu sujeito". 6 O sujeito é aquele que fala, o lugar
de toda enunciação, não podendo ser conhecido como uma entidade
única, titular de uma essência, mas como o objeto de uma divisão que o
constitui, entre o inconsciente que o determina antes de todo discurso e
as produções conscientes, das quais faz parte a idéia de homem. Por is­
so, no plano da linguagem em geíal, e de suas determinações em parti­
cular, a única ciência possível é a ciência do sujeito responsável pela
produção da linguagem: a noção de homem, contrária à de sujeito, é
relativa a tal cultura e a tal método, dependendo apenas da generalida­
de, não da universalidade . A comunicabilidade do saber do sujeito so­
bre o sujeito depende de uma lógica que o pensa, antes, como separado
da causa de seu discurso. Esta lógica é a mesma que implica a psica­
nálise, ciência "das miragens" do sujeito e ciência do inconsciente, in­
cluindo os efeitos e a causa. E é em função dessa especificidade que
ela não pode situar-se nas ciências humanas, a não ser que pretenda
criticá-las radicalmente. A mesma coisa foi dita por G. Politzer: "É a
psicanálise que nos dá a visão verdadeiramente clara dos erros da psi­
cologia clássica, e nos mostra a psicologia nova em vida e em ação". 7
Ela é percebida, não como uma disciplina vindo ocupar o seu lugar ao
lado dos outros ramos da psicologia, mas como uma prática mais ou
menos subversiva do ideal cient(fico da psicologia experimental.
No dizer de Foucault, é enquanto prática que a psicanálise desem­
penha o papel de contraciência. Isto se deve à relação toda especial
que ela mantém com aquilo que foi dito da ' jmitude humana. Trota­
. .

se, pois, de uma condição por assim dizer "filosófica" da psicanálise,


dessa disciplina que "avança na direção dessa região fundamental onde
se jogam as relações da representação e da finitude". 8 E o que é a fi­
nitude? Não consiste apenas no fato de o homem ser limitado e ter
consciência dessa limitação. Tampouco se trata de uma finitude no in­
terior do pensamento do infinito. Deve ser entendida como uma finitu-

- 57 -
de "no cerne mesmo desses conteddos que são dados, por um saber fi­
nito, como as formas concretas da existência finita". 9 Quer dizer: a
psicanálise vai ao inconsciente, volta-se para ele "como para aquilo
que está af e que se afasta, que existe com a solidez muda de uma coi­
sa, de um texto fechado sobre ele mesmo, ou de uma lacuna branca
num texto visfvel e que, com isso, se defende". Aquilo que ela encon­
tra, ao tentar essa abordagem, como mensageiras dessa finitude humana
sobre a qual "os conteddos da consciência se articulam", são as figuras
da Morte, do Desejo e da Lei. E essas figuras não podem ser "encon­
tradas no interior do saber que percorre, em sua positividade, o domí­
nio empírico do homem". Porque aquilo que a Morte , o Dese o e a Lei
designam são "as condições de possibilidade de todo saber sobre o
homem". 1 0
A conclusão de Foucault é que a psicanálise é menos um saber
propriamente dito que uma "relação com aquilo que toma possível todo
saber em geral, na ordem das ciências humanas". Não se trata de uma
relação especulativa, pois é estabelecida "no interior de uma prática"
na qual se encontram comprometidos tanto o conhecimento que temos
do homem quanto o próprio homem. 1 1 Trata-se de uma relação "de am­
bição crítica que inquieta, do interior, todo o domfnio das ciências do
homem". E é justamente isso que faz da psicanálise uma disciplina que
dissolve o homem . Mas se ela o dissolve, não é para redescobri-lo me­
lhor ou para reencontrá-lo de modo mais puro e mais l ibertado, porém
para "remontar àquilo que fomenta sua positividade". 1 2 E é por esta
razão que a psicanálise deve ser considerada como "contraciência" .
De forma alguma isso quer dizer que ela seja menos "racional" e "ob­
jetiva" que as demais ciências, mas simplesmente que as toma a "con­
tra-corrente" e "as conduz a seu solo epistemológico e não cessa de
'desfazer' este homem que, nas ciências humanas , faz e desfaz sua po­
sitividade" . 1 3
Em sfntese, Foucault declara que a psicanálise intervém no domf­
nio das ciências humanas em geral, e não somente no campo da psico­
logia, como uma prática portadora de um fator de dissolução daquilo
que constitui o que podemos denominar "ideologia espontânea" cons­
tantemente presente e atuante , de modo mais ou menos implfcito, mas
decisivo, nas ciências do homem tais como a psicologia e a sociologia.
Esta "ideologia espontânea" consiste na convicção possufda por tais
disciplinas de estarem elaborando, de modo mais ou menos cientffico,
um çonhecimento antropológico, vale dizer, um conhecimento sobre o

- 58 -
homem que as tornaria tão científicas quanto os saberes do mundo físi­
co. Assim, se a psicanálise combate a psicologia e adota, em relação a
ela, uma postura clara de contra-reação crítica, não é tanto pelo fato de
a psicologia reivindicar o estatuto de cientificidade (ciência do com­
portamento, das condutas, das aptidões, etc.), mas porque ainda acre­
dita, de modo mais ou menos espontâneo, ter condições de constituir-se
e de instaurar-se como uma ciência humana.
Com efeito, é porque já pretende ser uma ciência e porque tenta
constantemente reivindicar ao máximo a atitude científica e seus méto­
dos clássicos de conhecimento, que a psicologia, como as demais ciên­
cias humanas, começa ·o movimento de sua dessolidarização das pers­
pectivas e do programa de uma antropologia, pelo menos tal como ela
foi elaborada no interior da "filosofia das Luzes" e desenvolvida, com
um acentuado determinante ideológico, no século XIX. Porque, en­
quanto científicas - e a psicologia não constitui uma exceção -, as
ciências humanas se esforçam por atingir, no homem, aquilo que, do
homem, se dá como manifesto e positivo, vale dizer, aquilo que, em
sua manifestação, revela-se objetivo. Dessa forma, aquilo que elas
atingem talvez possa constituir um elemento para uma antropologia,
embora não se apresente à ciência na forma antropológica. Aliás, cada
vez mais as ciências humanas revelam a consciência que têm dessa
condição não-antropológica de seu objeto quando se apresentam como
ciências do homem, quer dizer, desse homem enquanto objeto de ciên­
cia, não enquanto ciências humanas, pois não se desenvolvem em fun­
ção de um projeto antropológico mais amplo. 1 4
Todavia, do ponto de vista particular das relações entre a psicolo­
gia "científica" e a psicanálise, o questionamento da primeira pela se­
gunda não diz respeito apenas à dimensão de pano de fundo filosófico
- permitindo opor à ideologia "antropológica" da psicologia uma dou­
trina da "finitude" humana e da "desconstrução" do homem da antro­
pologia clássica -, mas à própria dimensão de cientificidade. Neste ca­
so, a contestação adquire um duplo sentido: a contestação que os parti­
dários da psicanálise fazem da psicologia e, reciprocamente, a que os
psicólogos fazem da psicanálise, por eles recusada como ciência. Para
além da questão do pano de fundo filosófico, .considerado por Fou­
cault, o que a psicologia e a psicanálise debatem é a própria natureza
da objetividade científica. Em ambos os casos, a objetividade é defini­
da de modo bastante diferente: o comportamento (ou a conduta) objeti­
vo, num caso, a "significação" , no outro. Deste ponto de vista, a psi-

- 59 -
cologia do comportamento e a psicanálise se situam nas ant(podas uma
da outra: cada uma está convencida de sua própria pretensão à cientifi­
c idade e consciente da possibilidade de atingi-la, sendo espontanea­
mente levada a negar o caráter cient(fico uma da outra.
Quanto à contestação proveniente do horizonte da psicanálise, as
atitudes de um Politzer ou de um Lacan são bem caracter(sticas: o saber
em questão, com o propósito humano de edificar uma psicologia, situa­
se no nível do sentido. Neste particular, é enorme o esforço da psica­
nálise; quanto à psicologia, adotaria apenas um simulacro de ciência:
"Os psicólogos são cientistas como os selvagens evangelizados são
cristãos" _ . 5 Por sua vez Lacan declara que a psicologia nada mais faz
que prolongar o academicismo da psicofilosofia do sujeito: o termo
"ciências humanas" é falso, diz ele, e a psicologia "descobriu os meios
de sobreviver nos ofícios que oferece a tecnocracia" . 1 6 Afirmações du­
ras, sem dúvida. Mas há psicólogos que retrucam: "Sabemos como psi­
cólogos e filósofos chamam tudo isso: mitologia freudiana" . 1 7 Toda es­
sa divergência tem o mérito de, pelo menos, mostrar-nos que a questão
ainda não se encontra devidamente e lucidada. No domínio da psicolo­
gia, onde as coisas são menos contestáveis, precisamos discernir dife­
rentes tipos de objetividade e várias modalidades epistemológicas da
prática intelectual do conhecimento.
É claro que a psicanálise, tanto por seu clima filosófico quanto
pela especificidade de sua prática intelectual, quando comparada com a
psicologia clássica, adquire uma nítida postura de "contraciência". Sua
objetividade é de outra espécie: 4ma troca de "sentidos" entre mo­
mentos diferenciáveis do ser e da atividade psíquica, a começar pelo
consciente e pelo inconsciente. E sua intersubjetividade é de outra or­
dem: trata-se de uma intersubjetividade particular, vinculada ao nível
da relação dual da análise, não da relação universal e pllblica. Embora
presente nas preocupações da psicanálise, a intersubjetividade univer­
sal só surge a posteriori, naquilo que pode ser elaborado e publicado a
partir da intersubjetividade inicialmente particular e dual da relação
analftica. Acresce a isso o fato de seu saber permanecer muito mais
comprometido com a percepção e com a atualização histórica de um
dado singular: para o analista e seu analisando, é esta história aqui ir­
repetível (a história de Dora ou a do ' 'homem dos lobos" , por exem­
plo), que é sabida como dotada de sentido , de um sentido que a análise
faz emergir. A história individual pode ser narrada até certo ponto. E o
sentido que ela comporta pode ser exposto a terceiros. É o que faz

- 60 -
Freud ao escrever suas Cinco lições de psicanálise. Mas é somente
como exemplo e paradigma que essa história individual, munida de seu
sentido analftico, passa para a esfera de uma intersubjetividade univer­
sal: nenhum psicanalista pretende refazer a experiência freudiana com
Dora ou com o "homem dos lobos" . Porque o interesse da psicanálise
é o de fazer existir, no campo epistemológico, uma atitude intelectual
metódica e uma prática de saber susceptfveis de ultrapassar, de fato , o
caráter clás sico da cientificidade, muito embora ela tenha condições de
justificar, pelo menos em princfpio, a posse de um autêntico estatuto de
racionalidade.
O grande impacto da psicanálise freudiana foi o de questionar ra­
dicalmente a filosofia do "sujeito pensante" ou da consciência, fazen­
do aparecer, no campo epistemológico e, conseqüentemente, no domf­
nio filosófico, algo novo. A este respeito, certas análises de Nietzsche
servem como uma antecipação intelectual. Com efeito, ele afirma que a
filosofia permaneceu prisioneira de preconceitos e de apreensões de
ordem moral, sem ousar ir às profundezas. Ela pode ser considerada
como uma morfologia e como um teoria geral da vontade de poder. Os
preconceitos morais penetram profundamente no mundo do pensamen­
to, nele exercendo uma ação nociva, paralisante, geradora de cegueira
e de ilusões. Os instintos não podem ser divididos em "bons" e
"maus": os instintos de ódio, de cobiça e de dominação são instintos
vitais que precisam ser exaltados. Diante deles, nossa atitude deve ser
de coragem:

"Navegamos para além da moral, ficamos sufocados, talvez es­


maguemos com o mesmo golpe o que nos resta de moralidade ao
ousarmos levantar âncora. Mas o que importa nosso destino? Ja­
mais um mundo de conhecimentos mais profundos abriu-se à ou­
sadia dos navegadores e dos aventureiros. E o psicólogo que as­
sim se ' sacrifica' - e não se trata do sacrifizio dell' intellecto,
pelo contrário - terá pelo menos o direito de reclamar, em troca,
que a psicologia redescubra seu estatuto de ciência fundamental,
que todas as ciências têm a tarefa de servir e de preparar. Porque ,
doravante, a psicologia tornou-se o caminho que conduz aos pro­
blemas essenciais". 1 8

Ora, sabemos que, com o estudo dos sonhos, com a prática médica das
neuroses e de certos casos de psicose, e com o emprego de certas ações

- 61 -
terapêuticas, Freud acompanha de perto o processo efetivo da inteli­
gência no interior do domínio representado pela positividade psico­
rnental das "profundezas" evocadas por Nietzsche . É com ele que a
positividade começa a evidenciar-se com a brutalidade do fato e com
sua força convincente própria. Antes, o pen samento crítico permanecia
apenas no n ível do pressentimento. Com o advento da psicanálise, ins­
taura-se uma forma de pensar em contato com as próprias coisas. E é
desse efeito de contato que vai surgir a força do questionamento, posto
que a inteligência passa a ser instruída pela psicanálise. 1 9
Freud procurou apaixonadamente "traduzir" toda a sua experiên­
cia adquirida. Para além de uma simples teorização científica, procurou
mesmo "filosofar" sobre essa experiência. E fez desse "filosofar" o
princfpio mesmo da compreensão e da interpretação de im1meros fatos
culturais: estéticos, morais e religiosos. Apesar de as teorizações freu­
dianas não serem infalíveis e incontestáveis, e de suas aplicações à elu­
cidação do dado cultural apresentar um grau discutível de cientificida­
de, nem por isso temos o direito de negar a existência de certa positivi­
dade nessa referência aos fatos. Mesmo que tenha teorizado de modo
mais ou menos discutível sobre a cultura, nem por isso fica invalidado
o fato de Freud ter descoberto nela certa positi vidade psicomental,
oculta pela filosofia do sujeito e pela psicologia que dela derivou. Com
ele inaugura-se a positividade do "inconsciente". A partir dele, o "in­
consciente" se toma, a seu modo, positividade nn c para a vida mental.
Deixa de ser uma simples " realidade" aquém ou abaixo da "consciên­
cia". É no interior mesmo da consc iênc i a que se tece o estofo da vida
mental. E o esforço de Freud é o de desmascarar essa positividade. Ele
foi o primeiro prático da e x periência analftica a fazer uso de um méto­
do rigoroso .
S u a anál ise d o s sonhos consegue definir uma primeira prática ope­
ratória susceptível de revelar a existência de um "conteúdo latente"
constituindo um momento de vida mental não "consciente " . Tal con­
teúdo se encontra depositado pelo "conteúdo manifesto", vale dizer,
pelas representações espontaneamente relatadas pelo sonhador no mo­
mento em que narra seu sonho. Ora, esse conteúdo latente faz parte da
vida mental: ele está presente "em si" como que exprimindo-se e signi­
ficando-se clandestinamente no "contelldo manifesto " ; habita o psi­
quismo suscitando o desvelamento desse contelldo em vista de expri­
mir-se na cena da vida mental. É esse modo de finalidade de expressão
de si que constitui o verdadeiro princfpio teleológico da atualização

- 62 -
dos diversos elementos de conteúdo manifesto e da sintaxe que organi­
za sua apresentação no processo mental consciente . 2 0
Quando isso ocorre, é porque a vida mental conjuga duas instân­
cias: a) uma instância óbvia, de "consciência", com seus conteúdos
manifestos; b) uma instância oculta, de "não-consciência", com suas
projeções latentes no seio dos conteúdos manifestos. Esta segunda ins­
tância, embora oculta, mas evidenciável, conduz o jogo da vida mental
manifesta, que é uma simbolização do que existe no n(vel da instância
da não-consciência. Assim, a "sintaxe" consciente fica sujeita a uma
intenção "semântica" inconsciente, vale dizer, fora do alcance da to­
mada de consciência pelo sujeito. Tal situação se apresenta, não so­
mente nos sonhos, mas em inúmeros casos: os sintomas mórbidos e as
condutas neuróticas formam uma estrutura análoga. A própria vida co­
tidiana possui sua pequena psicopatologia. Porque na consciência, e
não fora ou abaixo dela, existe uma formação de não-consciência (in­
consciente, pré-consciente) distinta, em muitos casos, da atualidade
consciente. Por isso, a consciência não pode ser autônoma. Seu poder
fica bastante limitado e reduzido. Eis um fato que a psicologia inerente
ao Cogito não tinha condições de perceber. Foi a investigação freudia­
na que o evidenciou de modo insofismável: o "esp(rito " é habitado por
um significante inconsciente que é inconscientemente significado pela
atualidade aparentemente inocente da vida mental consciente. Donde a
necessidade de uma decodificação da mensagem inconscientemente
21
veiculada pela vida mental consciente e por seu discurso próprio.
É bastante conhecido o fenômeno da dissimulação intencional e
voluntária. O que a análise freudiana veio mostrar foi a existência de
outro tipo de dissimulação e de camuflagem operando quase natural­
mente no interior da vida mental. Tal dissimulação é feita à instância
consciente, mas pode também constituir uma expressão cuja decifração
permite-nos apreender tanto a dissimulação quanto o dissimulado.
Donde a idéia segundo a qual a psicanálise é uma pedagogia da sus­
peita. De fato, ela conduz inevitavelmente a duas percepções que, à
primeira vista, chocam "o amor próprio" do sujeito pensante, mais ou
menos instalado na estima filosófica de si mesmo, enquanto pretensa­
mente consciência de si e razão:
a. A primeira é a percepção do papel mais ou menos universal de­
sempenhado pela sexualidade na organização dessa instância do psi­
quismo não consciente. A sexualidade aparece como a forma quase­
originária e a modalidade onipresente da sensibilidade e do desejo hu-

- 63 -
manos. Essa energia da libido revela-se motriz desde a origem do hu­
mano e encontra-se investida em todos os domfnios da vida e da ação
dos homens. No plano sexual , ela tende espontaneamente à realização
de todas as suas potencialidades, das mais "normais" às mais "desvia­
das"; tende espontaneamente à efetivação de todas as satisfações, das
mais "elementares" às mais "sofisticadas" como se, no infcio, o ho­
mem fosse este "perverso polimorfo" de que fala Freud para caracteri­
zar as potencialidades libidinosas da criança. A natureza dessa matriz
libidinal de todo desejo e, por assim dizer, de todo querer humano,
permanece oculta à consciência do homem, sej a pela inconsciência na­
tural da vida em seu começo, seja pelo jogo de um reflexo de vela­
mento do sexual de que o pudor constitui a manifestação sociológica e
o encobrimento da nudez é a atestação simbólica profunda. É o jogo
desse reflexo de velamento, tanto em suas realizações patológicas
quanto sadias, que provoca, no seio da vida mental, o aparecimento das
formações do não-consciente velando-se à consciência mesma, muito
embora continue latentemente presente e constantemente influente,
apesar de inacessível ao inventário direto dos conteúdos da consciên­
cia, pois só é apreensfvel graças aos métodos e às práticas do diagnós­
tico indireto. A revelação psicanalftica tira, por assim dizer, a roupa do
"corpo" do espfrito consciente: este se desnuda movido ou promovido
pela sexualidade oculta do homem que se vê obrigado a reconhecer-se
a si mesmo e todas as suas "obras" à luz daquilo que ele tende a banir
com seu olhar "decente" , "recatado" e "bem-educado".
b. A segunda percepção, ligada à primeira, é a do caráter infantil e
arcaico do sistema de determinações constitucionais que vêm se ins­
crever nas formações da instância não-consciente imanente à vida
mental do homem adulto. A este respeito, tudo constitui o efeito de vi­
vidos psfquicos e psicológicos muito antigos e pueris, em seguida pro­
tegidos por uma espécie de esquec i mento vigilante, cujas barreiras só
dificilmente se deixam contornar (como no sonho) ou forçar (como nas
amnésias profundas). O adulto, o homem consciente e senhor de si,
aparece como alguém muito dependente do depósito que nele se acu­
mulou desde a infância, de uma história dos começos de sua vida, onde
ainda é extremamente passivo e dependente dos mais variados condi­
cionamentos, notadamente corporais. Nesses casos, o remédio filosófi­
co da dúvida cartesiana, dando à iuz a assim chamada "consciência pu­
ra" , aparece como inteiramente ilusório.
Portanto, o homem adulto traz em si, mais ou menos revelável à

- 64 -
técnica analftica, o "precipitado" (no sentido quase qufmico do termo)
de certa história infantil própria, que também é a história psicossocio­
lógica de sua sexualidade infantil: aventuras da l ibido e seus distintos
estágios de desenvol vimento, formas do complexo edipiano, modos de
formação do superego, etc. E disso o homem não se desfaz ou se li­
berta de modo substancial . Pode até reconhecer-se dependente, mas
não consegue abolir sua dependência em relação a si mesmo. Pode ad­
quirir um saber até certo ponto "desculpabilizante " , especialmente em

relação às chamadas "faltas contra a moral sexual". Mas trata-se de um


saber correndo o risco de ser terrivelmente "miserabilizante" para a
consciência adulta, reconduzida aos conteúdos e às origens efetivas de
suas próprias formações não-conscientes. E ainda aqui, por detrás das
teorizações freudianas, não podemos negar certo estatuto de positivida­
de ao psiquismo e à consciência do homem. O que se coloca em ques­
tão é a própria essência do estatuto do "sujeito pensante " , tal como ele
foi definido pelo idealismo filosófico clássico. A este respeito, a psica­
nálise freudiana se apresenta como um questionamento radical , não
somente deste ou daquele tema da reflexão filosófica, mas do conjunto
do projeto filosófico. É o que constata um hkido texto de Paul Ri­
coeur:

·"O filósofo contemporâneo encontra Freud nas mesmas paragens


que Nietzsche e Marx. Os três se levantam, diante dele, como os
protagonistas da suspeita, como os desvendadores de máscaras.
Nasceu um novo problema: o da mentira da consciência, da cons­
ciência como mentira (. . . ) O que é questionado de modo geral e
radical é aquilo que nos aparece , a nós , bons fenomenólogos, co­
mo o campo, como o fundamento, como a própria origem de toda
significação, ou seja, a consciência ( . . . ) É uma confissão seme­
lhante à de Platão ('a questão do ser é tão obscura quanto a do
não-ser') que devemos fazer: a questão da consciência é tão obs­
cura quanto a do inconsciente ( . . . ) Devemos atravessar a zona
árida da dupla confissão: 'Só compreendo o inconsciente a partir
daquilo que sei da consciência ou mesmo do pré-consciente ' ;
'nem mesmo compreendo mais o que é a consciência' . Eis o bene­
fício essencial do que há de mais antifilosófico e de mais antife­
nomenológico em Freud, ou seja, o ponto de vista tópico e eco­
22
nômico aplicado ao conjunto do aparelho psfquico".

- 65 -
O testemunho de Ricoeur, constatando a derrocada da doutrina c lássica
do "sujeito pensante" pela difusão da psicanálise, é importante, pois
ele não se apresenta como um crftico operando do exterior sobre uma
tese que pretende refutar ou sobre uma atitude a ser combatida, mas
como um filósofo que se deixa questionar pelo ensinamento freudiano
antes de questioná-lo. Outros autores, mais do interior, vão mais longe
ainda: Lacan e Foucault concluem por uma subversão do sujeito bem
mais radical. Chegam até mesmo a anunciar a morte do homem da an­
tropologia clássica, homem este caracterizado c omo sujeito consciente
e situado no horizonte c ultural de uma "razão universal" . Contudo, por
situarem-se menos no interior da tradição elaborada pela filosofia, sua
crftica torna-se filosoficamente menos eficaz, muito embora seja mais
relevante no que diz respeito à episteme de nossa época.
Portanto , Freud abala profundamente a filosofia que se deu por
ponto de partida o Cogito cartesiano. Encontramo-nos hoje diante de
um Cogito ferido, que se põe, mas não se possui, que só compreende
sua verdade originária na e pela confissão da mentira da consciência
atual. Freud fala da psicanálise como de uma ferida e de uma humilha­
ção do narcisismo, como o foram, a seu modo, as descobertas de Co­
pérnico e de Darwin, que decentraram o mundo e a vida relativamente
à pretensão da consciência. Neste sentido, ele é, para as ciências hu­
manas, o que Copérnico foi para a astronomia. A Terra é bem menor
que o Sol. Ela não é o centro do mundo, mas uma comarca do Sol. O
homem não é o soberano de seus pensamentos. A posse de s i é a ilusão
de um ser sempre decentrado relativamente a si mesmo. Assim, as três
revoluções de que fala Freud atentaram contra a imagem que a humani­
dade tem dela mesma. A primeira revolução é a de Copérnico , afirman­
do que a terra gira em torno do sol. Darwin efetua a segunda, fazendo
decorrer a espécie humana da animalidade. O próprio Freud se sente
responsável pela terceira, enquanto fundador da ciência do incons­
ciente. Nessas três revoluções: cosmológica, biológica e psicológica, a
imagem do homem se encontra atingida, relativizada e despossufda de
sua autonomia. Mas Freud não fala de Marx, de sua revolução, pois ele
j amais fez parte de sua cultura nem tampouco de seu saber. No entanto,
sabemos que, depois de Marx, "o sujeito humano, o ego econômico,
poHtico ou filosófico, não constitui o 'centro' da história". 2 3

• • •

- 66 -
Concluindo esta primeira parte , poderfamos nos perguntar: afinal, o
que, realmente, a psicanálise descobriu? Sobre que ponto decisivo, ela
alterou e inovou nossa visão do mundo? Freud sentiu a necessidade de
responder a essas questões lançando mão de uma parábola. É através
dela que ele nos revela o seu "inédito" , situado no sulco das revolu­
ções copernicana e darwiniana. Trata-se de uma parábola de fundação,
considerada por Freud como sua mais decisiva inovação. Ao refletir
sobre as "resistências contra a psicanálise ", por parte de muitos leito­
res e ouvintes, declara que a raiz dessa oposição é o narcisismo ou
amor-próprio . Trata-se de um narcisismo que sofreu, pela investigação
científica, três graves humilhações: depois que Copérnico arruinou com
a i lusão geocêntrica e que Darwin liqüidou com a i lusão "biocêntrica" ,
chega a vez de o fundador da psicanálise privar o homem de seu dltimo
motivo de presunção: sua própria alma ! Assim, o sujeito perde a pro­
priedade sobre o mundo, sobre a vida e sobre ele mesmo: "O Eu não é
mais senhor em sua própria casa", diz Freud. Eis o ponto de onde sur­
ge a resistência àquilo que descobriu a psicanálise. O que ela descobriu
foi menos a e lucidação de objetos ignorados que a evidenciação da­
quilo que interiormente divide o próprio sujeito. Doravante, o sujeito é
o objeto de processos que o constituem, de processos que são sua
" verdade" , dos quais nada pode saber. Por isso, ele resiste à psicanáli­
se, que lhe revela o hiato entre sua verdade imaginária e seu saber pró­
prio. P . L. Assoun situa a intervenção psicanalftica nessa espécie de
dialética entre o " saber" e a " verdade" em três momentos, que sinteti­
zo : 3 4
1 . O inconsciente supõe a presença, n o sujeito, de um " não-sabi­
do" ("insu"): o que nele é "verdadeiro " , ele não sabe ; e o que ele
" sabe" não é sua verdade. Donde seu desconhecimento irredut(vel: não
somente se encontra na ignorância, mas no desconhecimento, quer di­
zer, na impossibilidade de saber sua própria verdade , pois há algo de
seu próprio desejo que ele não pode dizer:
2. O que a psicanálise descobre ao sujeito? Ela introduz um tipo
novo de saber, produz um saber do " não-sabido" do sujeito. Com isto,
ela desestabiliza radicalmente a relação de saber que o sujeito mantém
com sua própria verdade: "Wo es war, soll lch werden" ( "Lá ou ça
ltait, Je dois advenir" ) ; o que punha em movimento sua "verdade" , o
sujeito deve sabê-lo: eis o imperativo da psicanálise.
3. A descoberta analftica anuncia ao sujeito uma novidáde que
suscita resistência, pois ela interessa ao próprio sujeito através daquilo

- 67 -
que não pode confessar-se . O narc isismo é ferido desde que o anteparo
imaginário (a verdade reputada do sujeito) é deslocado pela introdução
de um saber novo e subversivo. Resta ao sujeito aderir a esse saber a
Ílm de tirar dele as conseqüências.

• • •

Importa observar ainda que, a partir de Freud, não podemos mais esta­
belecer a equação Eu = Consciência = Sujeito. Porque o Sujeito não
tem mais muita coisa- a ver com o velho sonho de um Eu sede e cons­
ciência das flutuações. Doravante, sabemos que a exterioridade desse
Eu não é um fora, mas reside em seu próprio interior. O Eu também é
·
um outro para mim. Laca n pontua o Cogito: "Penso: logo existo " . Essa
pontuação quebra o Eu em dois tipos de Sujeitos: a) de um lado, há um
S ujeito do enunciado que diz: "Logo eu existo " ; b) do outro , encon­
tramos o sujeito da e nunciação: "Eu sou aquele que pensa" . Portanto,
há uma clivagem entre o sujeito que pensa e o sujeito que existe. Não·
há mais o princfpio de permanência do Eu sujeito. Ao discurso que uni­
ficava o sujeito do enunciado e o sujeito da enunciação, Lacan opõe o
corte do inconsciente. O Eu não é mais uniücado. Por sua vez, o objeto
do desejo não é nem interior nem exterior. É simplesmente parcial.
Porque o Eu é um lugar imaginário, uma miragem, uma ilusão eficaz de
constituir os objetos dos desejos. Nessa perspectiva, ainda seria válido
o adágio de Freud: Wo es war, Soll lch Werden? Claro, pois o "Eu"
não tem a pretensão de desalojar o ld ou o inconsciente. O Eu clivado
não está morto. Ele é feito também do discurso do outro, participa de
um mundo que o ultrapassa c que o constitui, no qual ele age: ele é ca­
paz de linguagem e de jogos sociais. Por isso, ao responder às questões
dos estudantes de filosofia sobre a consciência (Cahiers pour I'Analy­
se, n� 3, 1975), Lacan declara que o sujeito não pode cometer o erro de
identiücar-se com sua consciência, que ele não está condenado à cons­
ciência, mas a seu corpo que resiste à sua divisão. "O eu aut6nomo,
escreve, a esfera livre de conflitos, proposto como novo Evangelho
pelo sr. Heinz Hartmann ao cfrculo de Nova Iorque, não passa da
ideologia de uma classe de imigrados sociais dos prestfgios que gover­
navam a sociedade da Europa central quando, com a diáspora da guer­
ra, tiveram que se instalar numa sociedade onde os valores se sedi­
mentam segundo a escala do income tax".

- 68 -
1. A mutação lacaniana

Trata-se de estabelecer as relações da psicanálise com a linguagem do


inconsciente. A luta de Lacan com e contra a linguagem provém do
fato de a aquisição da linguagem ser indispensável à maturação da
criança. Deter-nos-emos na tese fundamental de Lacan: "O incons­
ciente l estruturado como uma
linguagem' ' . S6 secundariamente fala­
remos de sua tese concernente ao sujeito: "O inconsciente do sujeito é
o discurso do Outro".
Sabemos que é a implicação profunda do vivido do prático em sua
prática, em interação com o vivido do sujeito-objeto de estudo, que
permite a Lacan situar a psicanálise em algum lugar entre magia, reli­
gião e ciência; que permite a Michel Foucault qualificá-la de "anti­
ciência" ; e que permite a Wittgenstein ver nela pura e simplesmente
uma mitologia, embora "dotada de um grande poder". Ora, não foi so­
mente como terapia que a psicanálise conquistou um lugar de destaque
em nossa cultura, mas como teoria psicológica criando o objeto e o
método de uma nova ciência do homem (para aqueles que lhe conferem
o estatuto de ciência). Afinal , ciência ou mito? Eis a questão. Em seu
estudo sobre "a ciência e a verdade" (Écrits, p. 855-877), Lacan faz da
psicanálise uma disciplina em si, cujos valores de verdade lhe são pró­
prios, um instrumento de exploração e de conhecimento original a ser
acrescentado ou justaposto à ciência, à magia e à religião. É desse n;to­
do que ele tenta contornar as contradições entre o projeto freudiano de
constitu(-la como uma "ciência natural" e o insuperável projeto de se
construir um conhecimento objetivo do sujeito. Ao fazer apelo às ciên­
cias da linguagem como meio para fundar definitivamente a psicanálise
como uma disciplina cient(fic a, Lacan não se faz ilusões, muito embora
ele não tenha dúvidas sobre "sua obediência cient(fica" (p. 870). Mas
retomemos seu itinerário fundamental.
Sabemos que o ensinamento de Freud foi retomado, de modo bas­
tante original e polêmico, pela chamada "Escola Freudiana" de Paris,
tendo à sua frente o famoso psicanalista Jacques Lacan. O objetivo ge­
ral de Lacan, com seu "retorno a Freud", consiste em pensar mais lon­
ge a realidade dessa formação mental não-consciente (o inconsciente) e
seu papel no seio da vida ps(quica humana. 25 Ele insiste bastante nesse
modo de compreensão. Para realizar seu projeto, ele retine alguns fato­
res tornando poss(vel, não somente um " retorno a Freud", mas uma
importante reformulação das teorias freudianas . Seu ponto de partida é

- 69 -
uma cr(tica radical à psicanálise à americana, por demais adaptativa.
Por isso, denuncia os vfnculos profundos entre a ego-psychology,
o "american way of life" , a ideologia das relações humanas e a "hu­
man engeneering' ' . A partir da(, a palavra de ordem de Lacan passa a
ser o "retorno a Freud". Contudo , para conseguir esse retorno, sente a
necessidade de lançar mão de alguns instrumentos indispensáveis de
análise, quer já constituídos, quer em vias de constituição. Dos saberes
já constitufdos, lança mão, por exemplo, do vocabulário da dialética
hegeliana e de várias informações da antropologia. Dos saberes em
processo de constituição , faz amplo uso do estruturalismo antropológi­
co (notadamente sobre as relações de parentesco), da lingüfstica de
Saussure e dos sistemas de análise formalizada.
Em primeiro lugar, Lacan repensa a inspiração fi losófica de Freud
com alguns elementos do pensamento hegeliano. Por exemplo, busca
nele um sentido novo para os termos "desejo" e " ser" a ftm de mostrar
a dialética "mestre-escravo" entre o desejo, o ser e a morte. Ele utiliza
o sistema dialético para mudar, do interior, a tópica freudiana, a ftm de
impor-lhe uma lógica do retomo, sendo complementada com os ins.:
trumentos da topologia matemática. Opõe , assim, o ideal ismo hegeliano
ao materialismo biologista e energético freudiano. Em seguida, inspi­
rando-se na antropologia estrutural, ele repensa a mitologia freudiana,
do complexo de Édipo à horda primitiva. E elucida, mediante a análise
das estruturas de parentesco, a noção de famrtia. Assim, na composição
edipiana triangular (pai, mãe e fi lho ) , o q u e conta não é tanto a idéia
do pai biológico , mas a id6a do pai simbólico (civil ou efetivo: tio,
avô). Finalmente, ao u t i l izar bastante os conceitos da lingüfstica saus­
suriana, Lacan transfonna as palavras freudianas que descrevem as leis
do inconsciente. E torna possfvel uma verdadeira "reescritura" da tópi­
ca, a partir da noção de si�nificante.
Não é fác i l compreender Lacan. lndmeras são as obras intituladas
mais ou menos assim: " Para compreender Lacan " . Seu estilo de lin­
guagem é bastante esotérico e preciosista. Possui uma adjetivação bas­
tante sofisticada. Utiliza muitos jogos de palavras, efeitos de linguagem
("efeito de cristal da Hngua") e chistes, tendo uma função de dendncia
social ou de demonstração. Emprega todos os e feitos possfveis: arcafs­
mos, jogos retóricos, gfrias, lfnguas estrangeiras e neologismos. O re­
sultado é surpreendente. Mas serve para despertar a linguagem de seu
sono. Melhor ainda, serve para "regenerar o significante" .
O que Lacan tem e m vista é descobrir um estatuto novo para o psi-

- 70 -
canalista. A imagem que ele encontra para descrevê-lo é a de alguém
que se situa entre o professor e o clwmii (médico feiticeiro das socie­
dades a-históricas). Por isso, seu ensino não se deve realizar nos qua­
dros oficiais das universidades: essas instituições, como quaisquer ou­
tras, inclusive a psicana1ftica, precisam ser criticadas. O que não impe­
diu Lacan de ser um professor, extremamente dedicado ao ensino. Mas
numa Escola que ele mesmo fundou para inovações práticas no proces­
so de formação dos analistas. Neste sentido, sempre se situou como um
marginal relativamente ao saber oficial, à linguagem em curso e às ins­
tituições existentes. Em boa parte, seu êxito é devido às suas exclu­
sões. Por isso, como Freud, foi alvo de imimeras cr(ticas, resistências e
interditos. Ao ser exclu(do da Sociedade Psicanal(tica Francesa, ele
funda sua própria Escola ( 1966), onde passa a realizar seus famosos
"Seminários", onde seu ensino é sustentado pela /6gica da teoria e por
um discurso totalmente "livre". Este ensino original, assistido por
centenas de estudantes, cientistas e curiosos, encontra-se na origem da
grande difusão das teorias lacanianas. Progressivamente, um pdblico de
psiquiatras em formação anal(tica passa a freqüentar, com entusiasmo,
esses "Seminários". A palavra do "mestre" é apaixonante e cativante,
repleta de inovações poéticas (na prática docente e no estilo) e cient(fi­
cas (na prática lógica e demonstrativa). Eu mesmo tive oportunidade,
por algumas vezes, de testemunhar a afluência de um grande pdblico
deslumbrado. Alteram-se, assim, certas práticas da linguagem em psi­
canálise, de expressão e de transmissão de seus signos.
É inegável que o ensino oral de Lacan, fazendo sua "releitura" de
Freud, marcou profundamente a filosofia de nosso tempo. Retomado e
difundido por inúmeros disdpulos, encontra-se praticamente contido
nos famosos Écrits (Seuil, 1966). Até então, a imagem que se tem de
Freud é a de um pensador reduzindo toda a ordem humana à sexualida­
de: por detrás dos sonhos, das neuroses, mas também das obras de arte
e dos grandes ideais, Freud teria visto apenas a ação de uma maquina­
ria do instinto sexual ou da libido. Ele apareceria como o libertador dos
tabus, permitindo aos homens conquistarem sua liberdade. Novo rr:édi­
co da alma, moralista dos novos tempos e um novo "psicólogo", ele te­
ria recebido a incumbência de reconciliar o homem consigo mesmo.
Nesse particular, a originalidade de Lacan consiste em mostrar que
Freud não pode ser identificado com o herdeiro moderno da filosofia e
da psicologia clássicas. Pelo contrário, veio inaugurar um dorr:(nio teó­
rico novo susceptfvel de transgredir e de subverter a geografia das an-

-7 1 -
tigas "ciências do homem". Ele veio instituir um novo objeto : o in­
consciente. Por isso, ler Freud significa, antes de tudo, jamais se es­
quecer de que "o inconsciente de Freud não pode ser confundido com
o emprego romântico de um inconsciente se referindo ao arcaico, ao
primordial , ao primitivo. Nada a ver. O que vemos em Freud é um ho­
mem que se encontra o tempo todo em vias de debater-se com cada pe­
daço de seu material lingü(stico, de detectar suas articulações" . 2 6
A "revolução copernicana" de Lacan consiste justamente e m mos­
trar que devemos conferir à relação do homem com a linguagem uma
dimensão inteiramente nova. Sem dt1vida, em nossa experiência coti­
õiana, vivemos a linguagem como o instrumento de um pensamento
oculto. Inclusive, como uma espécie de muro por detrás do qual nosso
pensa mento golpeia sem conseguir fazer-se ouvir. Mas a l inguagem
possui também uma função que podemc s chamar de "transcendental " ,
n a medida em que pode ser considerada como aquilo através d o qual
nascem o sujeito humano e o mundo dos objetos. Portanto, é ingres­
sando na ordem da linguagem, vale dizer, na ordem do significante, e
submetendo seu desejo à sua grande regra de aliança e de troca, que o
homem se constitui face a um mundo que se identifica com um arranjo
das impressões sens(veis nas categorias do sentido. Assim, não temos,
de um lado, o ser pensante, do outro, as coisas organizadas e, entre
ambos, as palavras ou meios de enunciar. Como diz M. Foucault, n6s
já somos, "antes da menor de nossas palavras, dominados e transmiti­
dos pela linguagem". 27 No entanto, ao declarar que "o inconsciente é
estruturado como uma linguagem" e ao assimilar o discurso a uma

"retórica", nem por isso Lacan identifica linguagerr: e inconsciente.


Ele afirma simplesmente que o inconsciente obedece a leis formais
análogas às que o lingüista extrai dos significantes puramente lingüfsti­
cos. Para ele, as leis da linguagem, suas estruturas, aparecem, com suas
cadeias rigorosas de determinações, como uma causalUiade material. A
análise mostra que as palavras tornam o homem doente; e que a de­
composição das palavras patogênicas, em elementos simples, desata os
sintomas; assim, a linguagem age por si mesma. Não por seu contet1do
nem tampouco por seu sentido, Illi tS por sua estruturação interna, de

que o signifrcante constitui o elemento diferencial. 2 8


Convencido de que as funções da linguagem são capazes de provar
a existência do inconsciente - que produz efeitos psicossomáticos e
sintomáticos como a histeria, o sonho e as neuroses -, l acan se põe a
relacionar as fonnas de linguagem elucidadas por Freud e as que são

- 72 -
utilizadas pela lingüística e pela retórica. A lingüística produz a noção
de significante. A retórica produz a noção de letra ("lettre"). Tomadas
em suas correlações, essas noções permitem a Lacan pensar que existe
uma estrutura no inconsciente e a modificar o conceito saussuriano de
signo de linguagem: relação entre significante e significado, vale dizer,
entre a parte visível , sensível e material do signo, e sua parte ausente,

designada e alusiva. Para Saussure, essa relação se escreve assim: � .


s
O S maiúsculo designa o significante, o s minúsculo designa o signifi­
cado. Lacan vê nessa relação a fórmula do recalque: a barra ou traço
separando as duas partes do signo representa a barreira do recalque.
Sendo assim, o significado se encontra do lado do recalcado. Ele está
sempre ausente. Esquivando-se ao apelo, constitui o designado pelo
significante que é a estruturação da linguagem. Por sua vez, o signifi­
cante possui uma realidade material : em seu grafismo, ele possui im­
pacto e eficácia. E a lettre nada rr.·ais é que essa "estrutura essencial­
mente localizada do significante", porque o significante deve ser toma­
do "ao pé da letra", em seus encadeamentos, em seus elos termo a ter­
mo, que são a estrutura da l inguagem. Em síntese, no vocabulário saus­
suriano, amplamente utilizado por Lacan, um signo é constituído çela
associação de dois elementos: a) um certo material (a emissão da voz, o
desenho da escrita) encarregado de veicular o sentido, ou seja, o signi­
ficante; b) uma determinação da vida mental (representação, noção,
etc .) vinculada, por convenção de linguagem, - ao e lemento material do
signo, recebendo o nome de significado desse signo. No que diz res­
peito à coisa da qual a determinação da vida mer1tal é a representação
ou noção, recete o nome de referente do signo. Podemos nos servir do
seguinte esquema:

SIGNIFICADO:
w
li REFERENTE: as árvores

que estão na natureza

SIGNIFICANTE: "ÁRVORE"

Na linguagem, os significantes se organizam em seqüência linear vei­


culando pensamentos significados. Fala-se, então, da "cadeia" dos sig-

- 73 -
nificantes. Tomemos o caso do sonho ou do sintoma neurótico. Aquilo
que neles é percebido, quer dizer, a materialidade das imagens onfricas
ou sintorr,as observáveis, deve ser tomado como significante - cadeia
de significantes m< is elementares - de um significado que, ao invés de
ser uma determinação consciente (como o são os significados no caso
da linguagem ordinária), constitui uma determinação da formação não­
consciente da vida psfquica e cria, no sonho ou no sintoma, sua afabu­
lação, seu significante. Assim, as imagens onfricas e os sintomas neu­
róticos são como as palavras e os discursos de que o inconsciente se
serve para se exprimir numa linguagem cifrada ou codificada. O deci­
framento ou a decodificação psicanalftica da linguagem consiste, em
última análise, em descobrir os " verdadeiros" significados e em deter­
minar os mecanismos de criação dos significantes. Este é o primeiro
sentido da tese lacar-iana segundo a qual "o inconsciente funciona co­
mo uma linguagem": o inconsciente procura "falar" pelo truque do
simbolismo ou do sintoma. 2 9
Observemos que, para Lacan, o mais importante significante é
o fálus, o "significante de significante" . Embora reconheça que o fálus
é simb6lico, não podendo ser definido nem como um órgão real nem
como uma imagem associada a esse órgão, não pretende dessexualizar
a psicanálise. Pretende mostrar que se trata exatamente de sexualidade.
Porque o fálus é justamente o órgão simbólico susceptfvel de constituir
a sexualidade como estrutura. Assim, é em relação a ele que se distri­
buem os lugares variáveis ocupados pelos homens e pelas mulheres. O
fálus não é um fantasma ou um efeito imaginário. Tampouco pode ser
confundido com o órgão (pênis ou clitóris) que ele simboliza. Porque
seu estatuto é o de um sign�ficante: " É o significante destinado a de­
signar, em um conj unto, e fe i tos de significado, enquanto que o signifi­
cante os cond ic iona por sua presença de significante" . É_ com a expres­
são fá l ica que se const i t u i a ordem simbólica. É ainda com ela que se
organiza c se sign i fica, em c u l t ura, uma natureza de cuja ordem somos
exclufdos, como mostra a ausênc i a , em nós, de instintos organizadores
de nossas necessidades e de nossos modos de satisfação. E são as ca­
tástrofes próprias a essa simbólica que darão conta dos avatares do su­
jeito e de suas perturbações.
Mas a tese lacaniana possui um outro sentido. Com efeito, o signi­
ficado (no sentido saussuriano) inconsciente - ao mesmo tempo signifi­
cado e referente no processo do sonho ou no sintoma neurótico - fre­
qüentemente aparece sob a forma de uma coisa proferida por uma ins-

- 74 -
tância superior de paro/e (palavra), como se fosse um ' }atum" (no
sentido etimológico de Jari: falar, pronunciar) imposto de fora ao su­
jeito. E a determinação inconsciente desse fatum surge, então, como
uma espécie de falar anônimo, como sistema de signos cujos signifi­
cantes são materialmente constitutivos da formação inconsciente e cujos
significados provêm de outras partes distintas do próprio sujeito: inten­
ções parentais irresgatáveis pelo sujeito, silêncio do pai, desejo da mãe,
etc. O próprio inconsciente funciona como palavra (paro/e). Todavia,
com relação ao "eu" ("je") do sujeito consciente, funciona como pala­
vra distinta da sua, como palavra "no outro" ou "do outro". Tal pala­
vra, que faz do inconsciente uma linguagem, isto é, um sistema de sig­
nos dotado de certas leis de coerência própria, também é a palavra
constitutiva da personalidade do sujeito que ela habita.
Nessas condições, as expressões do inconsciente decifráveis no
conteúdo do sonho ou do sintoma aparecem menos como criações de
linguagem do que como retraduções, atualizadas no plano da consciên­
cia, das coisas ditas na l fngua (langue) mais fundamental e mais decisi­
va do inconsciente. O sujeito pensante é anônima e ousadamente "pen­
sado" e "falado" antes mesmo de poder pensar e falar por sua própria
conta. Numa certa medida, seus pensamentos e palavras conscientes
são simples reproduções ou travestis inconscientes dessa palavra (pa­
ro/e) impessoal que já o habita. Este é o sentido mais forte da tese la­
caniana ("o inconsciente funciona como uma linguagem"). Temos af
um modo forte de marcar a dependência (geralmente inconsciente) do
sujeito que se acredita consciente e pessoal em relação a uma instância
não-consciente e não-pessoal de seu próprio ser e do conjunto de suas
atividades. Para o ser humano, não há apenas uma dependência onto­
genética (no plano da biologia) do capital genético recebido no mo­
mento da concepção, mas uma dependência "psicogenética" (no plano
da vida mental humana) de uma formação "histórica" do "inconscien­
te" , normalmente muito arcaica, profundamente mergulhada no esque­
cimento mais ou menos irresgatável do sistema individualizado (a his­
tória psicossocial da primeira infância, por exemplo). Por outro lado, o
ser humano se torna muito mais passivo do que geralmente ele pensa.
Aliás, as grandes molas dessa passividade são capazes mesmo de con­
tradizer as nobres pretensões estabelecidas pelo sujeito pensante.
A partir de sua tese segundo a qual o "inconsciente é estruturado
como uma linguagem", quer dizer, procede por encadeamentos rigoro­
sos de elementos, Lacan mostra que esses elementos encadeados não

-75 -
óbedecem a uma lógica cont(nua. Porque entre eles surgem certos
"brancos" de silêncio tão importantes quanto os "plenos" das pala­
vras. O psicanalista deve escutar tudo, tanto os "brancos" quanto os
"plenos". Porque os "brancos" também "falam". E isto, segundo a lei
fundamental que desprende o discurso de suas coerções sociais. "O
psicanalista sabe melhor do que ninguém que a questão é a de perceber
qual a 'parte' desse discurso a que é confiado o termo significativo. E é
assim que ele opera no melhor caso: tomando o relato de uma história
cotidiana por um apólogo a quem um bom entendedor dirige sua salva­
ção, uma longa prosopopéia por uma interjeição direta ou, ao contrário,
um simples lapso por uma declaração bastante complexa, até mesmo o
suspiro de um silêncio por todo o desenvolvimento ao qual ele supre"
(Ecrits, p. 252). Enfim, a interrupção do discurso, quer ele seja provo­
cada pelo analisando, quer pelo analista que o interpreta ou suspende a
sessão, constitui uma pontuação. Os efeitos da linguagem são escandi­
dos pela pontuação que, manejada pelo psicanalista, torna-se um ins­
trumento fundamental para a articulação da transferência: relação liga­
da ao tempo e a seu manejo. Toda a cura analftica vai consistir num
desnudamento da linguagem pelo suporte temporal que constitui sua
estrutura. Assim, de significante em significante, nos intervalos que
pontuam todo o relato e toda associação de palavras, torna-se insistente
uma estrutura de linguagem: é o discurso do Outro. Na verdade, o in­
consciente é o discurso do Outro. Mas quem � o Outro? Ninguém.
Melhor ainda, não é uma pessoa, mas um lugar, um lugar organizado
em rede, vale dizer, a estrutura do sujeito, suporte individual da lin­
guagem . 3 0

• • •

2. Observações

1 . Freud reconhece que há "doenças que falam" e que não temos o di­
reito de ignorar o que elas nos dizem. Por isso Lacan diz que o incons­
ciente não é a sede dos instintos, mas o lugar privilegiado da palavra.
Donde comparar Freud a Champollion, o decifrador dos hieróglifos
comparando-os, apreendendo suas relações e articulações. Como o in­
consciente fala em toda parte, Freud teve o mérito de nos ensinar a de­
cifrar sua linguagem: no sonho, nas neuroses, na loucura, etc. E todo o

- 76 -
esforço de Lacan consiste em ler Freud com a grelha lingüfstica a fim
de descobrir, na linguagem, a verdade do inconsciente. Porque a ver­
dade não se encontra numa pretensa relação com a realidade , mas nesse
sistema de leis estudado pela lingüfstica. É essa onipresença da lingua­
gem que permite o diálogo. Mas é rejeitada a idéia de uma pessoa au­
tônoma, mestra de sua palavra, pois não sou eu quem fala: é isto que
fala em mim. Por isso, o recalcado não é uma coisa, mas um discurso
estruturado que funciona fora do sujeito consciente.
2. Se não compete ao filósofo julgar uma técnica psicanal(tica, ele
tem, pelo menos, o direito de interrogar o psicanalista sobre a signifi­
cação de seu projeto. O "retorno a Freud" nada mais é que um retorno
ao sentido de Freud. E este sentido é o da linguagem. Freud é inter­
pretado como um lingüista. Lacan pretende conferir à psicanálise um
verdadeiro estatuto cient(fico: "Ela só fornecerá fundamentos cientffi­
cos à sua teoria como à sua técnica formalizando de modo adequado
essas dimensões essenciais de sua experiência que são, com a teoria
histórica do s(mbolo, a lógica intersubjetiva e a temporalidade do su­
jeito" ( Écrits, p. 289). Mas além de ser uma "ciência", a psicanálise é
uma prática, uma terapêutica procurando restituir ao sujeito humano o
domfnio de sua linguagem. Lacan não considera a linguagem como um
sistema objetivo. Está preocupado com a dialética da linguagem que se
impõe ao sujeito e da palavra que é sua atualização subjetiva. É dessa
dialética que decorrem os três objetivos da psicanálise:
- de história de uma vida vivida como história;
- de sujeição às leis da linguagem, as t:inicas capazes de sobrede-
terminação ;
- de jogo intersubjetivo por onde a verdade penetra no real
(Écrits, p. 348) .
Esses três objetivos, diz Lacan, indicam o s caminhos d a formação
do analista. A formação do analista constitui uma de suas preocupa­
ções fundamentais. Segundo ele, Freud julgava indispensáveis, à
formação dos analistas, as seguintes disciplinas: psiquiatria, sexolo­
gia, história das civilizações, mitologia, psicologia das religiões,
história e crítica literária. A essa lista, Lacan acrescenta as "artes li­
berais" da l inguagem.
3. Em sfntese, o objetivo da psicanálise consiste em permitir que o
sujeito humano assuma sua história, assuma sua história biográfica nas
redes culturais. E isto, na medida em que essa história é constitufda
pela palavra dirigida ao outro . Em outras palavras, trata-se de uma

- 77 -
história que, na psicanálise, só pode ser mostrada na e pela linguagem.
Por isso, a psicanálise não elimina o sujeito. Ela é mesmo uma ciência
da subjetividade . Esta se realiza na e pela intersubjetividade. Do ponto
de vista terapêutico, a análise termina quando a satisfação do sujeito
conseguir realizar-se na satisfação de cada um, isto é, de todos aqueles
que ela associa numa obra humana. Porque o sujeito humano começa a
análise falando de si, não se preocupando em falar ao analista; ou en-:
tão, falando ao analista, sem se preocupar em falar de si; a análise só
termina quando esse sujeito conseguir realmente falar de si ao analista.
O inconsciente é esta parte do discurso que não se encontra à disposi­
ção de ninguém para restabelecer a continuidade de seu discurso cons­
ciente. Ele é o capftulo da história do sujeito marcado por um "bran­
co". O analista ensina ao sujeito reconhecer esse "branco" a fim de
que ele possa reassumir a totalidade de sua temporalidade. Pois a ver­
dade de sua história já se encontra dada nele, embora ela lhe escape,
embora ele não a conheça. Razáo pela qual ele se imobiliza na repeti­
ção. É reconhecendo-a que tem condições de assumir a plenitude de
sua dimensão histórica. Para tanto, precisa ser decifrada a lógica de seu
inconsciente, que é uma lógica do fantasma.
4. Longe de nós a pretensão de criticar Lacan. 3 1 Quisemos apenas
mostrar que, graças a ele, a psicanálise se tomou, a partir dos anos 50,
um fato cultural importante e uma referência intelectual indispensável .
A partir d e sua afirmação primordial de que " o inconsciente é estrutu­
rado como uma linguagem", muitos psicanalistas tomaram consciência
de que é a linguagem que confere o sentido e fornece a verdade, por­
que não somente ela nos atravessa e nos carrega, mas nos deporta. E
o sujeito não se encontra lá onde ele acredita estar: "Eu penso lá onde
não estou; logo, não estou lá onde eu penso". Assim, toda relação com
o outro só é válida quando se eleva ao nível do simbólico. O signifi­
cante não vale por aquilo que ele significa, mas pela relação que man­
tém com outros significantes e com as funções que e le assume: econô­
micas, culturais e fantasmáticas. O próprio corpo é uma arquitetura de
significantes onde o fálus desempenha um papel privilegiado.
O grande mérito de Lacan consiste em ter combatido o desvirtua­
mento da prática analftica à americana e em ter dissociado a repressão
do recalque. Ao lutar contra um subfreudismo difuso na psicanálise,
reduzindo o psicanalista ao nfvel de um assistente social dos grandes
conjuntos ou de um confessor leigo das classes abastadas, ele e vitou
que a psicanálise sucumbisse numa antropologia ingênua do ser falante

- 78 -
e restaurou, ao enfatizar a linguagem, o primado da teoria. Ressituou a
psicanálise numa nova etapa de seu desenvol vimento, doravante atra­
vessada por uma exigência cientffica real. Por isso, para além do jogo
de espelho entre Lacan e seu público e para além do júbilo de lingua­
gem que por vezes mascara a importância da contribuição teórica, o iti­
nerário lacaniano gera uma desconfiança salutar, qual seja, nos diz
C.B. Clément:

"a de um psicanalista que sempre soube que sua prática estava


sob a ameaça da burguesia, no seio da qual se constituiu , e que
tenta mantê-la num rigor teórico onde pensa encontrar uma segu­
rança relativa ( . . . ) A psicanálise, marcada pelos conflitos ideoló­
gicos que afetam a medicina e a universidade, triunfante aparen­
temente em sua difusão burguesa e, ao mesmo tempo, ameaçada
pela recuperação espontânea que dela faz a classe dominante, é
atingida, como toda prática terapêutica e toda prática cultural,
pelos efeitos da crise que atravessamos. Embora os psicanalistas
em seu conjunto ainda estejam pouco conscientes da herança
ideológica que sobrecarrega bastante sua prática e sua teoria, tal­
vez eles tenham atingido, através de seus mal-estares e de seus
problemas internos, o limiar de uma reflexão necessária que, no
campo da prática, eles são os únicos a conduzir a bom termo" . 32

5 . Mas Lacan tem consciência da responsabilidade do analista ca­


da vez que ele intervém pela palavra: "A função decisiva de minha
própria resposta não é somente de ser recebida pelo sujeito como apro­
vação ou rejeição de seu discurso, mas verdadeiramente de reconhe­
cê-lo ou de aboli-lo corno sujeito" (Écrits, p. 299). O poder da palavra
é capaz, "pelo dom que ela constitui", de "transformar o sujeito a
quem ela se dirige" (p. 296). Reconhece, assim, o direito à subjetivi­
dade: as ciências do homem são "as ciências da subjetividade", de urna
"subjetividade criadora" que "milita na cultura". Por isso, o fim da cu­
�:,a não é, como para a psicanálise americana, o de adaptar o indivfduo à
coletividade que o aliena e o torna conformista, mas situa-se alhures,
na salvação da �ubjetividade pela descoberta de "sua verdade" ; "A
análise não pode ter por fim senão o advento de uma palavra verdadei­
ra e a realização, pelo sujeito, de sua história em sua relação com um
futuro" (p. 302). A estratégia da cura não é a de repor o sujeito em
contato com o real. O desenvolvimento da transferência mostra que se

- 79 -
trata de algo distinto das "relações do Eu com o mundo". Neste senti­
do, Lacan defende uma filosofia do conceito: "O conceito é a coisa
mesma" , pois "é o mundo das palavras que cria o mundo das coisas"
(p. 276) ; e é a linguagem que constitui o homem, pois se "o homem
fala, é porque o símbolo o fez homem". O inconsciente, que é "todo o
objeto da psicanálise" , fica despersonalizado, porque o problema do
ser do inconsciente se refere inteiramente à linguagem, objeto exterior
à consciência, anônimo, opaco e pesado de sentido, que não somente
ilustra o inconsciente, mas o constitui. 3 3
6. Uma sexta observação sobre o conteúdo do discurso psicanalf­
tico, sobre aquilo que vai preencher a palavra do analista fornecendo­
lhe algo para decifrar. Tal conteúdo é o Desejo. Aquilo que se mani­
festa nos símbolos é "a linguagem primeira do Desejo" . Em outros
termos, o Desejo é "o sentido singular do discurso do inconsciente do
SUJeito humano". Distinguindo-se radicalmente da necessidade orgâni­
ca de essência biológica, o Desejo tem as mãos puras, seu objeto sendo
constituído, tanto pela linguagem quanto pelo Outro. A linguagem (a
verdadeira, a da lingüística) não é, para o Desejo, um meio de expres­
são, mas sua mola mesma: "O Desejo é menos paixão pura do signifi­
cado que pura ação do significante" (p. 629). Mas este significante de­
ve se dizer, e é no Outro como lugar da palavra que ele se diz: o De­
sejo se volta para o Outro (o O mai11sculo designa o psicanalista visado
pela transferência) . Ademais , como esse significante designa uma au­
sência, o Desejo significa a falta de ser: se o sonho "é a metáfora do
Desejo", "o Desejo é a metonímia da falta de ser" (p. 622). Assim, "o
Desejo do homem é o Desejo do Outro" (p. 628) - do Outro, não en­
quanto ele é desejável, mas enquanto é ausência de ser. Como o sujeito
tem sua consciência de si no discurso, s6 é atingido quando de-centra­
do de si. Mesmo quando sua palavra é plena, ainda está alienado na
linguagem. 3 4

• • •

3. Nota conclusiva

Em As palavras e as coisas, Michel Foucault nos convida a adotarmos


a seguinte atitude: "Sobre tantas ignorâncias, sobre tantas interroga­
ções deixadas em suspenso", precisamos saber parar, pois temos ar "o

- 80 -
fim do discurso" e "o recomeço, talvez, do trabalho ! " Mas não gosta·
ria de encerrar o presente discurso sem levantar mais uma interroga­
ção: "ciência" do subjetivo e do sentido, a psicanálise nasceu com
Freud, mas não estaria hoje dando pouca importância ao proble11U1 do
sentido, vale dizer, ao da palavra do sujeito à sua própria subjetivida·
de? Até que ponto os psicanalistas se dão por tarefa fundamental a de
"desvelar" o sentido da palavra do homem? Até que ponto a psicanáli­
se ainda é portadora de uma " vocação humanitária", no sentido em que
trabalha efetivamente para restituir ao homem os meios de reencontrar
sua dignidade, seu desabrochamento e sua liberdade? Enquanto ciência
do subjetivo, e não do homem em geral ; ciência da libertação, e não da
integração social; ciência da palavra reencontrada, e não adaptada e
modelada pelas estruturas; ciência do protesto e da transgressão, e não
da adaptação e da acomodação do homem a seu meio ; ciência do in·
consciente, e não da racionalidade técnica e tecnocrática; ciência da
criatividade, e não das mentalidades etiquetadas, planificadas e este·
reotipadas ; ciência da desalienação, e não um conjunto de receitas e de
práticas que alienam o homem e o impedem de falar autenticamente nas
estruturas, a psicanálise fundada por Fre ud, elaborada num contexto de
11U1rginalidade e de não-reconhecimento, corre o risco de ingressar
numa era da "menopausa" (ausência de desejo) ou de ser "metaboli­
zada" pela administração implantada. Corre o risco de perder seu sen­
tido original. Em nossos dias, Lacan e seus discfpulos tentam resgatar a
inspiração freudiana pervertida pela psicanálise americana e por certos
métodos psicoterápicos reduzindo a contribuição de Freud a uma técni·
ca da reintegração ou da pseudocrftica sociais. Portanto, na medida em
que a psicanálise se dá por tarefa fundamental, permitir ao sujeito sa­
ber quem ele é, rejeitando as respostas alienantes já dadas pela menta·
!idade social, corre sempre o risco de não ser aceita por uma grande
parte da sociedade e de encontrar seu verdadeiro estatuto numa certa
marginalidade.
Historicamente, a "revolução copernicana" reivindicada por Freud
consistiu em constituir a psicanálise contra o naturalismo reinante,
contra a estrita tradição do fisicalismo empirista. Muito embora ele ja·
mais tenha renunciado a esse vocabul ário fisicalista, tendo mesmo ima·
ginado, no infcio (no "gmnde projeto" exposto a Fliess em 1895), umá
espécie de dinâmica geral das leis do espfrito fundada nos mecanismos
e nas conexões neurônicas e utilizando os princfpios de energia, de
tensão, de descarga, etc . , apresentou a libido como uma forma especifi-

- 81 -
camente psicológica de energia. Apesar de tê-la tratado segundo o
mesmo modelo das energias ffsico-qufmicas, sempre afirmou sua irre­
incons­
dutibilidade ao ffsico-qufmico. Por sua vez, no que se refere ao
ciente, Freud não se limitou a mostrar que há "pequenas percepções"
ou lembranças esquecidas que podem não somente ressurgir mas in­
fluenciar nossas condutas. Ele afirma categoricamente que a consciên­
cia é mistificada, que seus dados imediatos constituem muito mais des­
pistamentos ou formações reacionais que evidências sobre o autê ntico.
Está convencido ainda de que tanto a dinâmica real quanto a significa­
ção dos móveis de ação escapam, em sua essência, ao sujeito e ao ob­
servador superficial. Sua afirmação revolucionária, notadamente em
relação às filosofias da consciência reinantes, consiste em sustentar: a)
em primeiro lugar, que existe uma unidade da pessoa, que tudo possui
um sentido, que o lapso, o sonho ou o del.frio são tão determinados
quanto a consciência; b) em seguida, que o princfpio mesmo dessa uni­
dade coerente e dessas determinações não pertence ao sujeito fenome­
nal, mas a um
Outro. Assim, a pedra angular da epistemologia freudia­
na é uma dualidade do sujeito e do objeto: se eu sei aquele que sou
(Sujeito), é o analista P quem sabe aquele que é, competindo ao epis­
temólogo E perguntar-se como ele sabe isso.
Contudo, o "desvelamento" do sentido não pode ser feito segundo
as regras de objetividade controláveis, porque, mesmo não intervindo
expressamente, o analista P transforma S; ademais, porque o sentido é,
por sua natureza mesma, um contfnuo histórico em permanente evolu­
ção. Não podemos elaborar uma epistemologia nacional da psicanálise
enquanto praxis: ela prova seu movimento andando, não explicando-o.
Mas a reflexão do psicanalista não se contenta com isso. É o que nos
mostra Lacan. Diante de um caso clfnico, por e xemplo, diante de um
caso a ser comentado ou de um texto a ser elucidado, ele não recua
diante da evocação assegurando uma "presentificação" do sentido no e
pelo "dito psicanaHtico". Está convencido de que o sentido é veicula­
do pelo discurso. Porque a ação psicanalftica nada mais é que uma tro­
ca discursiva: eu falo, e " Isto" fala, mas P também fala, e o próprio
silêncio também constitui uma parte do discurso. Contudo, con vencido
ainda de que o discurso possui suas regras, Lacan procura construir ou
descrever "estruturas" , lançando mão das ciências da linguagem. Se os
significantes de S são apenas metáforas, metonímias . . . , P só pode ace­
der aos significados mediante a estratégia de uma teoria não metafórica
da metáfora. Ao conceitualizar a metáfora e a metonímia segundo o

- 82 -
modelo da lingüfstica de Roman Jakobson, Lacan mostra que, no plano
da praxis, é decadente uma psicanálise que se contenta com a magia
empfrico-metafórica. Donde sua tese fundamental: "O Inconsciente é o
discurso do Outro".
Mas quem é esse Outro? Não se trata apenas da pessoa do outro,
porque o Outro também é a Outra cena, aquela cena na qual se desen­
rolam as causas reais da vida ilusória do sujeito. Ao transformar as
instâncias da segunda tópica freudiana, o imaginário correspondendo à
função de proteção e de equilfurio investida no Ego, e o simbólico cor­
respondendo à função cultural contida no Superego, Lacan articula os
elementos que constituem a estrutura do sujeito. Nessa estrutura, o
Outro vai encontrar seu lugar preciso: o lugar do simbólico ou da or­
dem cultural onde ele surge. Este lugar do Outro é decisivo, pois con­
diciona sua possibilidade mesma de ser vivo. Mas não pode ser conce­
bido sem os dois outros e lementos que lhe dão a configuração de um
triângulo, segundo a forma da triangulação edipiana estabelecida por
Freud para a criança. Na estrutura edipiana, o triângulo é formado pela
criança e por seus dois pais. Na estrutura do sujeito, porém, o Outro é
o lugar do simbólico, onde se desempenham as funções paternas de de­
nominação e de autoridade. O objeto a determina, para o sujeito, um
lugar inacessfvel onde pode ser reconhecida a função da mãe. Final­
mente, a' , reflexo, no sujeito, dos dois lugares simbólico e imaginário,
situa o sujeito em sua posição de ficção. Contudo, a esses três pontos
do triângulo, Lacan acrescenta um quarto: o sujeito tomado nessa rede,
o sujeito barrado por sua própria estrutura, produzido por um discurso
que o sustenta: o discurso do Outro. Em outras palavras, o Sujeito, bar­
rado pela clivagem consciente/inconsciente, como quarto ponto da
triangulação edipiana, encontra-se em A, no Outro, lugar do pai e da
ancoragem simbólica; encontra-se também em a', lugar do Imaginário,
do lnfans do espelho e do Ideal do Ego; finalmente, encontra-se em a,
lugar do Õbjeto do desejo (lugar materno). Donde o esquema gráfico:

- 83 -
A ESTRUTURA DO SUJEITO

$ -----""71 a Objeto a
Mãe
I . . .
1 S ignificante do objeto pnmord1al

I
a'L..-----' A
Ideal do Ego Outro
Imaginário Pai-Nome-do-Pai
"Infans" (Ego) Simbólico

Nesse esquema, Lacan diz que o sujeito desempenha o papel do morto


no jogo de bridge com quatro jogadores: está incluído no sistema mas é
excluído do jogo. Seu papel é o de um instrumento, o de um suporte
para a linguagem e o jogo entre real, imaginário e simbólico. O sujeito
não desaparece , mas fica apenas privado de uma i lusória autonomia
herdada da tradição do Cogito e da onipotência do pensador sobre o
mundo que o cerca. Com isso, resgata a posição freudiana de um ver­
dadeiro determinismo do inconsciente. Muito embora Lacan diga que
"o inconsciente é este capítulo de minha história que é marcado por um
branco e ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado", nem por
isso deixa de reconhecer que "a verdade pode ser encontrada; na maio­
ria das vezes, ela está escrita alhures, a saber, nos monumentos ( . . . ),
nos documentos de arquivos ( . . . ) , na evolução semântica (. . . ) , nas tra­
dições e mesmo nas lendas ( . . . )" (Écrits, p. 259). Portanto, se o imagi­
nário define para cada um o material de sua história própria, ele cons­
titui o tecido mesmo do desconhecimento. E esse estatuto da ilusão
começa com o est;1dio do espelho. Mas a verdade pode ser encontrada
quando for elaborada uma exegese restabelecendo seu sentido ao ser
recalcada em minha história, vale dizer, nesses registros variados, mo­
numentos, documentos, léxicos e lendas formando outros tantos livros
de ficção que absorvem a vida dos homens.
Esta análise permite a Lacan declarar que "não há ciência do ho­
mem, porque o homem da ciência não existe, mas somente seu sujeito"
(Écrits, p. 859). Para ele, a distinção entre sujeito e homem é determi­
nante: o sujeito é aquele que fala, o lugar de toda enunciação, não po­
dendo ser concebido como uma entidade única, titular de uma essência,

- 84 -
mas como o objeto de uma divisão que o constitui, entre o inconsciente
que o determina antes de qualquer discurso e as produções conscientes
das quais faz parte a idéia de homem. Sendo assim, tanto no plano da
linguagem em geral quanto de suas determinantes particulares, a tinica
ciência do sujeito produtor de linguagem. Em con­
ciência possível é a
trapartida, a noção dehomem é relativa a determinada cultura e a de­
terminado método. Por conseguinte, ela depende, não da universalida­
de, mas da generalidade . Somente o sujeito, como termo lógico, é uni­
versal e, portanto, universalizáve l : "Tenho necessidade de dizer que,
na ciência, contrariamente à magia e à religião, o saber se comunica?
Mas devemos insistir ( . . . ) que a forma lógica dada a esse saber inclui o
modo da comunicação como saturando o sujeito que ele implica"
(lbid. , p. 877). Assim, a comunicabilidade do saber do sujeito sobre o
sujeito depende de uma lógica que o pensa, antes, como separado da
causa de seu discurso. Esta l ógica é a mesma que implica a psicanálise,
ciência das "miragens" do sujeito e ciência do inconsciente: ela inclui
os efeitos e a causa. É em função dessa especificidade que ela não po­
de situar-se entre as ciências do homem, a não ser para criticá-las.

NOTAS

1. Les mots et les choses, Gallimard, 1 966, p. 355.


2. Ibidem, p. 378. As ciências humanas continuam sendo, prossegue Foucault,
"em sua figura própria, ao lado das ciências e sobre o mesmo solo arqueoló­
gico, outras configurações do saber".
3. lbid., p. 377. Foucault considera tanto a psicanálise quanto a etnologia como
"ciências do inconsciente". E juntamente com a lingüística, elas não estudam
o homem nem tampouco nos propõem uma teoria a seu respeito. Porque não
constituem ciências do homem, mas "contraciências", cuja vocação é a de
dissolver ou desfazer o homem. O que a psicanálise explora (para nos limi­
tarmos a ela) são as figuras da finitude: M orte, Desejo e Lei que "designam
as condições de possibilidade de todo saber sobre o homem" (Les mots et les
choses, p. 393). Longe de dizer algo sobre o homem, aquilo "que permite ao
homem ser conhecido" é, ao mesmo tempo, aquilo que o impede para sempre
de constituir objeto de conhecimento. As ciências do inconsciente são tais,
"não porque elas atingem, no homem, aquilo que se situa abaixo de sua
consciência, mas porque se dirigem para aquilo que, fora do homem, permite

- 85 -
que saibamos, com um saber positivo, aquilo que se dá ou escapa à sua cons­
ciência" (Ibid., p. 390). Com isso, Foucault subtrai do Cogito sua transpa­
rência e sua soberania, para reduzi-lo a algo de opaco a si mesmo, sempre
espreitado, na expressão de Mikel Dufrenne, "pela noite insistente do im­
pensado"; ademais, ele situa "esse impensado fora de si" e o define como
"seu duplo próximo, mas estrangeiro", vale dizer, como "o Outro que não
está nele, mas ligado a ele numa dualidade sem recurso" (Ibid., p. 337). As­
sim, é o estudo positivo da Vida, do Trabalho e da Linguagem que faz apa­
recer o inconsciente, este algo que escapa ao homem, que o transporta e que
o inspira· sem jamais pertencer-lhe totalmente, mas que o arranca de si, como
a Morte, o Desejo e a Linguagem. Mas talvez seja difícil, constata Dufrenne,
"para consagrar a alteridade radical do inconsciente, onde o homem deve
perder-se no inumano, romper totalmente os elos que unem o homem a seu
desejo ou às obras de seu trabalho". Isto só pode ser feito anulando "as di­
ferenças entre vida, trabalho e linguagem" e concebendo essas três instân­
cias segundo o modelo da linguagem (Pour fhomme , Seuil, 1968, p. 9 1 -92).
É por isso que o inconsciente é hoje sempre considerado, enfatiza Foucault,
em referência à linguagem, segundo o que ensina a lingüística que, como a
psicanálise e a etnologia, não falam mais do homem (lbid., p. 393). E este é o
leitmotiv fundamental da teoria lacaniana, tão claramente expressa em "Fun­
ção e campo da palavra e da linguagem em psicanálise". Estando perfeita­
mente consciente da "responsabilidade do analista", cada vez que ele inter­
vém pela palavra, Lacan observa: "A função decisiva de minha própria res­
posta não é somente, como se diz, de ser recebida pelo sujeito como aprova­
ção ou rejeição de seu discurso, mas verdadeiramente de reconhecê-lo ou
aboli-lo como sujeito" (Écrits, p. 299). Assim, a palavra tem o poder de,
"pelo dom que ela constitui, transformar o sujeito a quem ela se dirige"
(lbid., p. 296). Razão pela qual as ciências do homem são "as ciências da
subjetividade", de uma "subjetividade criadora" que "milita na cultura"
(lbid., p. 285).
4. lbid., p. 392.
5. Jacques Lacan, Écrits, Seuil, 1 966, p. 795. No entender de Lacan, a psicolo­
gia, enquanto teoria do indivíduo, é um conjunto de técnicas possibilitando,
no plano teórico, situá-lo numa coletividade graças a uma série de normas:
normas que o reintegram, quando delas se desvia, que o excluem, quando por
elas for considerado "anormal", e que o selecionam, quando for considerado
"apto". E Georges Canguilhem mostra o perigo de uma psicologia que se
defme como uma "teoria geral da conduta": fica subordinada à ideologia
dominante, pois toma como objeto o homem, o indivíduo no seio de uma so-

- 86 -
ciedade regulada e reguladora. E é por isso que Lacan fala, a esse respeito,
de um verdadeiro "apelo à servidão": a psicanálise americana, com seus
métodos psicoterapêuticos não-diretivos, reduziu a contribuição freudiana a
uma técnica de reintegração, amputando, assim, sua dimensão científica.
Para ele, são profundos os vínculos entre a "ego-psychology", o "american
way of life" , a ideologia das relações humanas e a "human engeneering".
6. Écrits, op. cit., p. 859. Para Lacan, a psicanálise se define como uma prática.
Foi através de sua prática médica, neurobiológica e psiquiátrica que Freud
descobriu o psiquismo em sua presença irredutível. Foi a partir da cura das
histéricas e, em seguida, da análise dos sonhos, que ele construiu as premis­
sas de uma ciência do Inconsciente. Por isso, a psicanálise é, antes de tudo,
uma terapêutica dependendo, enquanto tal, da prática médica. Contudo, tra­
ta-se de uma terapêutica específica, pois visa curar o co1po pela linguagem.
E ao elaborar sua própria teoria da linguagem, a psicanálise introduz, em to­
do o campo da linguagem ("literária" ou "científica"), uma verdadeira re­
volução. As leis da linguagem e suas estruturas aparecem, pois, como uma
causalidade material. Donde se pode mostrar, pela análise, que as palavras
tornam doente e que a linguagem age por si mesma: não por seu conteúdo
nem tampouco por seu sentido, mas por sua estruturação interna, da qual
o significante constitui o elemento diferencial: o significante, unidade da lin­
guagem, tem por característica "reduzir-se a elementos diferenciais últimos
e compô-los segundo as leis de uma ordem fechada" (Écrits, op. cit., p. 501).
7. Critique des fondements de la psychologie, É ditions Sociales, 1959, p. 1 7.
Importa observar que Politzer sempre tomou a defesa dessa "ciência jovem e
alerta", embora tenha reconhecido que "todo o fundamento teórico da psi­
canálise deve ser refeito" (op. cit., p. 1 8). Em seu célebre estudo Lafin de la
psychanalyse, publicado no ano mesmo da morte de Freud e poucos anos
antes de ser executado por um pelotão nazista, reafirma que o freudismo
constitui um fiasco, porque "jamais Freud e seus discípulos chegaram a uma
compreensão clara das relações entre o indivíduo, entre a lei psicológica in­
dividual e a lei histórica". Freud chegou perto de um domínio de importância
capital, mas os fatos que a psicanálise abordou "devem ser retomados para
serem compreendidos corretamente" (op . cit., p. 288). É esta atitude de de­
fesa da ambição freudiana em seu objetivo científico, contra os preconceitos
metafísicos e idealistas, mas de crítica radical da ideologia psiCanalítica, em
nome dessa ambição científica, que Politzer adota. Trata-se de uma atitude
crítica ao mesmo tempo intransigente e construtiva, determinando, pelo me­
nos em parte, o rumo das relações posteriores entre a psicanálise e o mar­
xismo.

- 87 -
8. Foucault, op. cit., p. 385. A concepção foucaultiana de finitude é distinta da
concepção dos filósofos da existência que insistem no sentimento subjetivo
da fmitude: pelo medo, pela angústia ou pelo sentimento do absurdo, o ho­
mem sente os limites de seu ser - esta constatação podendo orientá-lo, seja
para o Infmito divino, seja para sua própria liberdade.
9. Op. cit., p. 327.
10. Op. cit., p. 386.
1 1. Op. cit., p. 387.
1 2. Op. cit., p. 3 9 1 .
13. Ibidem . .
14. Convém lembrar que todo o esforço de Foucault consiste em elaborar uma
"arqueologia do saber". Trata-se, a partir da análise das práticas discursivas,
de descobrir o solo onde se ancoram as possibilidades de pensar, vale dizer, a
episteme. Este termo, que significa "ciência" , por oposição a "techné" que
designa os conhecimentos positivos ligados às práticas, foi reintroduzido na
linguagem filosófica por Foucault com um sentido novo: a "episteme" é
o espaço historicamente situado onde se reparte o conjunto dos enunciados
que se referem a territórios empíricos constituindo o objeto de um conheci­
mento positivo, não científico. Fazer a arqueologia dessa "episteme" é des­
cobrir segundo que regras de organização se mantêm esses enunciados.
15. Politzer, op. cit., p. 6. Mais adiante, declara: "Os psicólogos falam de ciência,
eles a copiam, mas não a amam" (Ibidem, p. 101).
16. Écrits, op. cit., p. 859. Não nos esqueçamos de que a "releitura" que o psica­
nalista Lacan fez de Freud marcou profundamente a filosofia de nosso tem­
po. De Freud, muita gente só reteve, durante longo tempo, apenas que foi
um pensador que reduziu, de modo simplista, toda a ordem humana à sexua­
lidade como à sua causa. Por detrás dos sonhos, das neuroses, mas também
das obras de arte ou dos grandes ideais, Freud teria visto somente a ação de
uma maquinaria monótona. Novo médico da alma, moralista dos tempos no­
vos, numa palavra, "psicólogo", teria reconciliado o homem consigo mesmo.
O que Lacan veio mostrar é que Freud não pode ser considerado o herdeiro
da filosofia nem tampouco o herdeiro da psicologia clássica ou da biologia.
Pelo contrário, ele inaugura um domínio teórico novo que transfonna com­
pletamente a geografia das antigas "ciências do homem", instituindo um no­
vo objeto: o Inconsciente, de uma "contraciência: a Psicanálise. Diz ele: "Ler
Freud é, antes de tudo, compreender que o inconsciente de Freud não pode
ser confundido com o emprego romântico de um inconsciente se referindo
ao arcaico, ao primordial, ao primitivo. Nada a ver. O que vemos em Freud,
é um homem que se encontra pennanentemente em Juta com cada pedaço de

- 88 -
seu material lingüístico para descobrir suas articulações" (Le Figaro litttrai­
re, 1 � dezembro de 1966).
17. Foucault, op. cit., p. 386.
18. Par-delà le Bien et le Mal, Gallimard, 1 97 1 , p. 4 1 -42. A crítica que Nietzs­
che dirige contra a doutrina fllos6fica da consciência intelectual ou pensante
está bem explicitada em sua Vontade de Potência. Esta crítica repousa em
duas idéias fundamentais: a) a consciência nada mais é, na realidade, senão
uma dependência do corpo vivo, a serviço da totalidade viva do corpo - isto
vai no mesmo sentido do aforismo de Marx: "Não é a consciência que de­
termina a vida, é a vida que determina a consciência", mas dando uma maior
ênfase ao corpo vivo individual; b) a tematização filosófica falsificada da
consciência repousa na "ilusão gramatical" do Cogito, consistindo em fazer
do eu da consciência de si um "sujeito" agindo e determinando seu predica­
do-ação: o pensamento. As intuições nietzscheanas agrupadas em torno da
primeira idéia freqüentemente anunciam a perspectiva da análise freudiana.
Os protestos que se agrupam em torno da segunda anunciam a exploração
pós- freudiana das similitudes entre o funcionamento do inconsciente e o de
uma linguagem. Não nos esqueçamos de que toda a obra de Nietzsche, no fi­
nal do século XIX , constitui um enorme questionamento, com as armas da
erudição, da veemência e da ironia, à raiz de toda a cultura ocidental: a Ra­
zão e o Estado modernos. Seu empreendimento de destruição nada poupa.
Pois seu objetivo é o de demolir as ilusões e os ídolos - ele é um iconoclasta
- , evidenciar a mentira fundamental que habita o mundo atual e que é o pro­
duto do trabalho sabiamente empreendido pelas forças reativas - as forças
da "mediocridade" - contra as forças ativas: as forças da vida. Para ele, o
universo atual está entregue ao nihil, ao nada que nivela os valores multipli­
cando-os, que afirma de direito aquilo que nega de fato, que esvazia a von­
tade de toda energia e priva a vida de toda substância. A medida e o cálculo,
vaidade das almas servis, proíbem a alegria e o sofrimento. Só subsiste a
existência tecida de dores sem fecundidade e de prazeres sem exaltação. A
essência do poder é o ressentimento; e a da obediência é o medo . . .
19. Do ponto de vista do estudo das doenças mentais, por exemplo, a originali­
dade essencial da psicanálise deve-se ao fato de ela considerá-las como um
fenômeno especificamente psicol6gico. Trata-se de um postulado de base
adotado por Freud: primeiramente, quando começou sua carreira de psi­
quiatra ( 1 8 85), constatou que os conhecimentos sobre o funcionamento do
sistema nervoso eram insuficientes, não dando conta do domínio misterioso
do psiquismo e de suas patologias; em seguida, postula que o psiquismo
possui suas leis próprias, não podendo ser reduzidas às da química do cére-

- 89 -
bro. Desta forma, rompe com a jovem psiquiatria de sua época. E essa ruptu­
ra, que .conduz a psicanálise a um ponto de vista psicogenético, segundo o
qual a origem da doença deve ser buscada num disfuncionamento do psi­
quismo, não no organismo, veio escandalizar os partidários de uma psiquia­
tria organogent!tica fundada em dois pressupostos filosóficos: a) o reducio­
nismo, pretendendo que as leis da psicologia se reduzam ãs da fisiologia, e
estas ãs da biologia; b) o mecanicismo ou materialismo, postulando a depen­
dência do espírito em relação ao corpo e exigindo que a ciência submeta suas
hipóteses teóricas ã verificação experimental ou observacional.
20. Ainda aqui, mais uma antecipação nietzscheana. A metáfora da "câmara
obscura" que, em Marx, é a da inversão ideológica, em Freud, é a do incons­
ciente - a "câmara obscura" encobre as relações rea.is, separa a consciência
de si mesma e do mundo -, converte-se, em Nietzsche, na metáfora do pers­
pectivismo generalizado. Ao lado da imagem dessa "câmara", vamos encon­
trar a imagem do guardião, dessa sentinela postada na entrada da consciên­
cia, encarregada de manter e de supervisionar a etiqueta. A "câmara obscu­
ra" é relacionada com um sistema de forças destinadas a estabelecer certa
hierarquia entre as forças. Torna-se, assim, a metáfora do esquecimento, es­
quecimento necessário ã vida. A câmara da consciência possui uma chave. E
seria perigoso olhar pelo buraco da fechadura! Vejamos o texto da Genealo­
gia da moral (li, 1 ): "Fechar de tempos em tempos as portas e as janelas da
consciência, permanecer insensíveis ao barulho e ã luta que o mundo dos ór­
gãos a nosso serviço fornece para se entreajudar ou se entredestruir; fazer
um pouco de silêncio, fazer fábula rasa em nossa consciência para que haja
novamente lugar para coisas novas e, em especial, para as funções e os fun­
cionários mais nobres, para governar, para prever, para pressentir (porque
nosso organismo é uma verdadeira oligarquia) - eis aí, repito, o papel da fa­
culdade ativa de esquecimento, uma espécie de guardiã, de vigilante encarre­
gada de manter a ordem psíquica, a tranqüilidade, a etiqueta" (Sobre a me­
táfora da câmara obscura em Marx, Nietzsche e Freud, ver o livro de Sarah
Kofman, Camt!ra obscura de ridt!ologie, É ditions GaWée, 1 973).
2 1 . Nos dias de hoje, podemos até mesmo falar dos "traumatismos da consciên­
cia". Com efeito, o sujeito do discurso, o sujeito da história e o sujeito psi­
cológico não são mais definidos relativamente a uma consciência fundadora
de verdade (ou de liberdade). Longe de constituir-se a fonte de todo conhe­
cimento ou de toda ação, ela se apresenta, em grande parte, como desconhe­
cimento. Porque, não somente não consegue conhecer-se a si mesma, mas
pode tornar-se a fonte de ilusões tenazes que constituem outros tantos obs­
táculos na formação dos saberes que defme nossa modernidade.

- 90 -
22. Le conflit des interprétations, Seuil, 1969, p. 1 0 1 - 102. Ao se interrogar sobre
o que ocorre com uma filosofia da reflexão quando ela se deixa questionar
por Freud, Ricoeur reconhece: "Depois de Freud, não é mais possível esta­
belecer a filosofia do sujeito como filosofia da consciência. Reflexão e cons­
ciência não coincidem mais. Deve-se perder a consciência para se encontrar
o sujeito. O sujeito não é aquele que se crê . . . Em suma, utilizo a psicanálise
como Descartes usava argumentos céticos contra o dogmatismo da coisa.
Mas, desta vez, é contra o próprio Cogito - ou antes, é. .no interior do Cogito
- que a psicanálise vem cindir a apoditicidade do Eu, das ilusões da cons­
ciência e das pretensões do Ego" (Ibidem, p. 172).
23. Louis Althusser, "Marx et Freud", in La nouvelle critique, nÇ? 1 6 1 - 1 62, ja­
neiro de 1965, p. 1 07. Isto não quer dizer que a psicanálise de Freud não te­
nha nenhuma conotação política. Ele mostrou que o sujeito humano é engen­
drado pela submissão da ordem biológica (a pulsão) à ordem simbólica, vale
dizer, ao social. Mostrou também, notadamente em Totem e tabu, como deve
ser pensada a ruptura pela qual advém e se perpetua a cultura. Em O mal­
estar na civilização, mostrou os efeitos da culpabilidade sobre nossas socie­
dades. Sabemos que, depois de Freud, o homem se encontra confrontado
com uma imagem de si que torna irrisória a ilusão de um domínio de si e de
uma plena consciência de si. Sua psicanálise não é uma psicologia: ela revela,
mostrando como se efetua, pelo Édipo, o ingresso da criança na ordem sim­
bólica como sujeito, que o indivíduo é o efeito -de uma estrutura social. Não
se trata, evidentemente, da estrutura social desta ou daquela sociedade his­
tórica particular, mas da estrutura do social enquanto tal, digamos, de sua
essência. De outra forma, não poderíamos ver o que significa a afirmação da
universalidade do complexo de Édipo. Se Freud pensa a história, é como re­
petição. E ele só pensa o devir no interior dessa repetição. Tudo se passa
como se cada sociedade tivesse que representar a mesma peça ou improvisar,
num cenário sempre idêntico, uma dramaturgia que a especifica como figura
histórica particular (ver a este respeito, o longo artigo de André Akoun,
"Psichanalyse et société", in La Philosophie, Les Encyclopédies du Savoir
Moderne, 1 977, p. 388-405).
24. "Les grandes découvertes de la psychanalyse", in Histoire de la Psychanaly­
se, Hachette, 1 982, Tome 1 , p. 225-230. Na mesma obra, é muito interes­
sante o longo estudo, do mesmo autor, sobre "Les fondements philosophi­
ques de la psychanalyse", p. 45- 108. Relembremos, sucintamente, as etapas
da demarche freudiana. Os primeiros trabalhos de Freud foram de neurolo­
gia ( 1 877- 1 897). Representou o aparelho psíquico em linguagem de neuro­
fisiologia. Com seus "Estudos sobre a histeria" ( 1895), elaborou suas pri-

- 91 -
meiras abordagens psicanalíticas da neurose, definida como a defesa volun­
tária contra lembranças intoleráveis, ligadas a um traumatismo infantil: o
empreendimento de sedução sexual da criança por um parente próximo (fre­
qüentemente o pai). A terapêutica, inicialmente método de hipnose, em se­
guida método da associação livre, tem por objetivo obrigar o doente a ver
aquilo que ele se recusa a ver e renunciar à sua inconsciência. A dialética
entre ele mesmo e seus pacientes permite a Freud analisar-se "como um ou­
tro". Esta auto-análise leva-o a descobrir a ambivalência de seus sentimen­
tos em relação a seu pai. Esta intromissão (não conceitualização) do comple­
xo de Édipo lhe revela o caráter fantasmático dessa cena de sedução infantil
alegada pelos pacientes. Mas logo Frcud abandona suas construções sobre a
histeria c formula sua primeira teoria psicanalítica em A Interpretação dos
Sonhos (1 900) . O aparelho psíquico compreende três instâncias: o incons­
ciente, o pré-consciente e a consciência, separadas por censuras e possuindo,
cada uma, seu tipo de processo e sua energia de investimento própria. Em
em 1 905 aparecem os "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" provo­
cando grande escândalo: acreditava-se que, para Freud, a sexualidade seria a
explicação única e definitiva de todo comportamento humano. O que ele
mostra é que a sexualidade é atuante desde a primeira fase da vida, não sen­
do confundida com a genitalidade. Em 1 9 1 9, descobre a pulsão de morte
(Para além do princípio de prazer). Trata-se de referir o aparelho psíquico a
um conflito fundamental entre Eros e Thanatos. Com a pulsão de morte,
instaura-se a discórdia na raiz do ser psíquico: não podemos encontrar nas
coisas uma unidade última. Esse remanejamento se faz acompanhar, em
1 920, da construção de um segundo sistema no qual as três instâncias se tor­
nam o ld, o Superego e o Ego. Finalmente, podemos reagrupar num con­
junto os textos visando à análise da civilização e de suas obras: Totem e tabu
( 1 9 1 3), O Futuro de uma ilusão ( 1 927), O mal-estar na civilização ( 1 930),
etc.
25. Vejamos como L. Althusser analisa esse "retorno". Para ele, retornar a
Freud impõe: "a) não apenas recusar como grosseira mistificação a camada
ideológica de sua exploração ideológica; b) mais ainda, que se evite cair nos
equívocos ( . . . ) do revisionismo psicanalítico; c) e que se consagre por fim a
um trabalho sério de crítica histórico-teórica para identificar e definir, nos
conceitos que Freud teve que empregar, a verdadeira relação epistemológica
existente entre esses conceitos e o conteúdo que eles pensavam. Sem esse
tríplice trabalho de crítica ideológica (a e b) e de elucidação epistemológica
(c), praticamente inaugurada na França por Lacan, a descoberta de Freud fi­
cará, em sua especificidade, fora de nosso alcance. E, o que é muito mais

- 92 -
grave, tomaremos por Freud justamente aquilo que é colocado ao nosso al­
cance" (La nouvelle critique, no 1 6 1 / 162, dezembro de 1964 e janeiro de
1 965). Em outra passagem, explica o que quer dizer retorno a Freud: "Re­
torno à teoria bem estabelecida, bem fixada, bem assente no próprio Freud, à
teoria madura, refletida, consolidada, verificada, à teoria suficientemente
avançada e instalada na vida (inclusive na vida prática) para haver construído
af sua morada, produzido o seu método e engendrado a sua prática. O retor­
no a Freud não é um retorno ao nascimento de Freud, mas um retorno à sua
maturidade" (Freud et Lacan, Ibidem).
26. Le Figaro Littéraire, 12 de dezembro de 1 966.
27. Les mots et les choses, Gallimard, 1966.
28. Lacan define o significado como "o conjunto diacrônico dos discursos con­
cretamente pronunciados" (É crits, p. 414). Não se trata do significado no
sentido saussuriano, mas daquilo que Saussure chama de la parole em oposi­
ção a la langue (sistema de signos). Quanto ao significante, Lacan o consi­
dera uma unidade de linguagem tendo por propriedades "reduzir-se a ele­
mentos diferenciais últimos e recompô-los segundo as leis de uma ordem fe­
chada" (Ibidem, p. 877). Essas composições formam a estrutura do signifi­
cante, a letra (lettre), localizada na linguagem é material. A ssim, dizer que
devemos tomar o inconsciente "à la lettre", significa afirmar a exigência es­
trutural quanto ao método analítico e reconhecer a natureza estruturante do
inconsciente, que determina o todo.

29. O "imaginário" e o "simbólico" são analisados, por Lacan, sobretudo a par­


tir de seus estudos sobre a formação do "eu" ("je"), observando os fenôme­
nos do chamado "estádio do espelho". Nesse estádio, a criança (o infans)
manifesta um enorme interesse por sua imagem no espelho. E isto, mesmo
antes de ter condições de reconhecer-se nessa imagem. Uma criança de seis
meses, por exemplo, demonstra uma grande e alegre excitação ao ver sua
imagem refletida num espelho. Não possui ainda a experiência de seu corpo
próprio como de uma totalidade unificada. Ainda vive prisioneira dos fan­
tasmas do corpo fragmentado. Por isso, essa imagem total do corpo, revela­
da pelo espelho, desempenha uma função estrutural e securizante. A través
dela, a deslocação angustiante encontra um ponto focal que a anula. A crian­
ça pressente, nessa imagem, a restauração de sua unidade perdida. Por isso, é
pela identificação com a imagem do semelhante (no caso, é a imagem dela
mesma) que a criança antecipa (imaginariamente) o domínio de sua unidade
corporal. Esta identificação da criança com o outro, a fim de tornar-se ela
mesma, constitui o esboço primeiro do "eu" que possui o estatuto de uma

- 93 -
instância imaginária. E é assim que o "eu", nesse emaranhado de identifica­
ções, se constitui como um outro.
30. Mas isto já nos remete à segunda tese. Em geral, entende-se por Outro a
pessoa de outrem. Contudo, o Outro também é a Outra cena, a cena sobre a
qual, no dizer de Freud, desenrolam-se as causas reais da vida ilusória do
sujeito. Ao articular os elementos que constituem a estrutura do sujeito, La­
can mostra que o Outro aí encontra seu lugar preciso, o lugar do simbolismo:
da ordem cultural onde o sujeito nasce à sua origem. Decisivo, porque con­
diciona sua possibilidade de ser vivo, o lugar do Outro não é concebido sem
os dois outros pontos que lhe dão a configuração de um triângulo. Na es­
trutura edipiana, o triângulo é formado da criança e de seus dois pais. Na
estrutura do sujeito, o Outro é o lugar do simbólico onde se vinculam as fun­
ções paternas de denominação e de autoridade. O ohjeto a (parcial e perdido)
determina, para o sujeito, o lugar de um local ao mesmo tempo inacessível e
degradado onde poderíamos reconhecer a função materna. Enfim, a' ima­ -

gem do eu, reflexo, no sujeito, dos dois lugares simbólico e imaginário - si­
tua o sujeito em sua posição de ficção. Assim, aos três elementos do triân­
gulo, Lacan acrescenta um quarto: o sujeito tomado como rede, quer dizer,
barrado por sua própria estrutura e produzido por um discurso que o sus­
tenta: o discurso do Outro.
3 1 . Não são poucos os críticos de Lacan. Alguns consideram seus Écrits, por
exemplo, como os "evangelhos apócrifos" da psicanális!!. O psicanalista
François Roustang, em seu livro Un destin si funeste (Paris, Éditions du Mi­
nuit, 1 976), faz uma crítica feroz, provavelmente bastante injusta em muitos
de seus aspectos, à teoria lacaniana. Por sua vez, o filósofo Cornelius Casto­
riadis se revela bastante impiedoso contra Lacan, notadamente em seu longo
estudo "La psychanalyse, projet et élucidation", in Carrefours du labyrinthe
(Esprit/Seuil, 1 978, p. 65- 1 21).
32. "Le sol freudien et les mutations de la psychanalyse", in Pour une critique
marxiste de la théorie psychanalytique, É ditions Sociales, 1977, p. 1 3 7.
33. Nos t:crits, há um famoso texto, "Função e campo da palavra e da linguagem
em psicanálise", no qual Lacan define todo um programa de ensino, não da
análise, mas para os psicanalistas. Trata-se de um texto situando a psicaná­
lise no contexto mesmo da cultura de onde ela emerge. Ele lembra as disci­
plinas que Freud teria designado como devendo constituir as ciências anexas
de uma ideal Faculdade de psicanálise: psiquiatria, sexologia, história da ci­
vilização, mitologia, psicologia das religiões, história e crítica literárias. La­
can acrescenta: a retórica, a dialética (no sentido técnico de Aristóteles), a
gramática e a poética. E conclui seu texto dizendo: a psicanálise "não confe-

- 94 -
rirá fundamentos científicos à sua teoria como à sua técnica, senão formali­
zando de modo adequado essas dimensões essenciais de sua experiência que
são, com a teoria histórica do símbolo, a lógica intersubjetiva e a temporali­
dade do sujeito". A "teoria histórica do símbolo", determinada por causas
materiais, deve ser completada pelo materialismo histórico. A teoria da "ló­
gica intersubjetiva", em que os sujeitos se encontram ancorados em sua he­
rança cultural, não descreve o vivido existencial, mas fornece as regras de
sua existência. A teoria da "temporalidade do sujeito", que o relaciona com
seu passado, deve pensá-lo como determinação histórica real, não imaginá­
ria. Se "história", "tempo" e "símbolo" encontram- se no pensamento freu­
diano, nele estão ausentes, articulados num conjunto, os termos "teoria",
"lógica" e "sujeito". É Lacan quem os articula nesse conjunto indissociável.
E .com isso, abandona certo empirismo freudiano, em nome de uma teoria
do conhecimento de estrutura lógica.
34. Insistamos na importância que Lacan dá à sua interpretação do estádio do
espelho, pois é a partir dela que ele nega todo valor à filosofia da consciência
e proclama "a ruína das filosofias do Cogito, de Descartes a Husserl". O que
a criança vê, por uma espécie de crença mágica, na imagem do espelho, é um
duplo de si mesma. Lacan relaciona a compreensão da imagem com a identi­
ficação da criança com o Outro. Apresenta o estádio do espelho como "for­
mador da função do Eu" (Je). A personalidade, antes da imagem especular, é
Q . ld. A imagem vai tornar possível uma outra visão da personalidade (ele­
mento primeiro de um Superego). O que pode ser considerado tanto como a
aquisição de uma nova função (contemplação de si ou atitude narcísica)
quanto como uma alienação do eu imediato em proveito do eu do espelho;
a imagem me preparando para outra alienação, a do eu pelo outro (a criança
não é somente um eu sentido, mas um espetáculo, alguém que se pode olhar).
Enfim, o Eu só se constitui através da imagem do corpo, jamais por um ato
de percepção.
Ao retomar a interpretação freudiana do desejo inconsciente, Lacan a
aprofunda à sua maneira, numa perspectiva em que o inconsciente não é
mais definido como individual nem tampouco como coletivo, mas como
"transindividual". Ele define o Desejo em contraposição à necessidade (be­
soin), essencialmente fisiológica, e em contraste com a demanda (demande),
que não se volta para os conteúdos explícitos aos quais faz apelo. A demanda
é, antes de tudo, demanda de amor: por exemplo, a demanda de bombom da
criança parece ser uma necessidade (besoin); na realidade, ela dissimula uma
demanda de amor dirigida para a mãe. Para Lacan, o Desejo não é nem uma
demanda nem tampouco um simples apelo ao Outro, pois não se satisfaz,

- 95 -
como a necessidade, com um objeto: "O próprio do Desejo é que ele se en­
raíza no imaginário do sujeito. Ele é desejo de outro desejo, desej o de fazer
reconhecer pelo outro seu próprio desejo" (Écrits). A ssim, sua concepção do
Desejo se situa no prolongamento da dialética hegeliana do senhor e do es­
cravo.

- 96 -
CAPÍTULO III

PSICANÁLISE E FILOSOFIA

Numerosas são as vozes que se levantam para, com insistência, en­


fatizar a fraqueza do Ego em relação ao Id, do racional contra o de­
moníaco em n6s; e que se esforçam para fazer dessa tese a base de
uma "visão do mundo" psicanalítica ( . . .) Sou hostil à fabricação das
visões do mundo; que sejam deixadas aos filósofos.

S. FREUD

Não é minha intenção, no presente capftulo, analisar o pensamento fi­


losófico de Freud em toda a sua amplitude. Meu objetivo é o de detec­
tar algumas pressuposições e implicações em sua tese "cientificista" de
proscrever da Psicanálise toda e qualquer interferência do pensamento
"metaHsico ". Em várias passagens de sua obra, notadamente na Confe­
rência XXXV , intitulada "A questão da Weltanschauung" (Novas
Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise, Edição Standard B ra­
sileira, !mago Editora, volume XXII), ele estabelece uma oposição ra­
dical entre a Psicanálise - concebida como uma forma de saber cientf­
fico - e a Filosofia - concebida como uma Weltanschauung, cosmovi­
são ou visão intuitiva do mundo. Para ele , a Psicanálise não precisa de
uma Weltanschauung, pois não constitui uma forma de saber totali­
zante. Tampouco deve fundar-se num sistema fechado de explicação,
numa imagem completa do mundo e num princfpio de ordem universal.
Pelo contrário, ela deve definir-se pela pretensão de "fundar-se" no
saber que revela sua prática. Portanto , não tem necessidade de nenhu­
ma fundação exterior como, por exemplo, a fundação constitutiva da
racionalidade .filosófica, pois ela "fara da se" , vale dizer, se fundará
em sua própria prática. Enquanto ciência, ela adere pura e simples-

- 97 -
mente à Weltanschauung das c1encias naturais. E é por isso que vai
distinguir-se radicalmente da Filosofia, tanto por seus objetos respecti­
vos quanto por sua natureza epistêmtca, vale dizer, por sua modalidade
posicional do objeto e por sua concepção da objetividade.
Não nos esqueçamos de que toda a formação cient(fica de Freud
foi feita num solo cultural bastante marcado por certo positivismo
cientificista muito avesso e hostil às questões ditas metaHsicas. Ade­
mais, na Viena de seu tempo, ele teve que adotar uma atitude de defesa
cr(tica numa situação de exclusão social. É por isso que a origem
ideológica de sua formação e de sua famflia desempenha um papel de­
cisivo na gênese da psicanálise: constitui um instrumento de cr(tica ba­
seado num mal-estar por ele experimentado sob a forma do anti-semi­
tismo. Em sua biografia, ele explica como decidiu sua vocação: por ne­
cessidade, pois não possu(a recursos. E suas relações com a profissão e
com as instituições são marcadas pelo mesmo mal-entendido e pelas
mesmas ambigüidades que afetaram sua vida familiar. Ele não desejava
uma profissão particular, pois se dizia movido por uma "espécie de se­
de de saber, mas que se dirigia mais àquilo que concerne às relações
humanas do que aos objetos próprios às ciências naturais". Assim, sua
vocação inicial é mais filos6fica que propriamente cient(fica. O fato de
ter sempre preservado a psicanálise de toda confusão com a filosofia
não o impede de dizer, mais tarde, que ela se situa exatamente entre
a filosofia e a medicina:

"É assim que, de sua posição intermediária entre a medicina e a


filosofia, a psicanálise só retira inconvenientes. O médico a con­
sidera como um sistema especulativo e não admite que, como
qualquer outra ciência natural, ela repouse na observação pa­
ciente e laboriosa de fatos pertencentes ao mundo de nossas per­
cepções. O filósofo (. . . ) acha que ela parte de hipóteses impos­
s(veis e censura seus conceitos fundamentais de não possu(rem
clareza e precisão" . 1

Freud v ê n a filosofia não somente u m obstáculo a o conhecimento cien­


t(fico, mas uma pretensão globalizante desembocando numa presunção
de saber absoluto. A este respeito, ele é categórico: "Os problemas fi­
losóficos e suas formulações me são tão estranhos que não sei o que
dizer deles" (Minha vida e a psicanálise) . A tal ponto que teria ·�evita­
do aproximar-se da filosofia propriamente dita". No entanto, apesar

- 98 -
desse veredicto, não deixa de tomar uma dupla atitude. Em primeiro
lugar, não pode prescindir de uma teoria do conhecimento, na medida
em que tenta identificar um objeto por meio de um saber. Se é verdade
que a psicanálise é uma ciência, não pode evitar o confronto com os
princlpios de seu funcionamento. E a prova consiste no fato de Freud
ter constituído um corpo teórico específico denominado "metapsicolo­
gia", tendo por finalidade supervisionar a prática e retirar do "mate­
rial" uma conceitualização. Ao tratar da especulação em sua relação
com o "dado", ele coloca a questão de seus princípios.
Essa primeira atitude se faz acompanhar de uma segunda. Freud se
refere constantemente a sistemas filosóficos precisos, notadamente à
galáxia Platão-Kant-Schopenhauer-Nietzsche. Não se trata apenas de
citações esporádicas desses autores, mas de reconhecer neles certas
"antecipações" de seus próprios conceitos. De fato, ele reconhece
"antecipações" do conceito de recalque no Mundo como vontade de
representação; reconhece na "metafísica do amor e da morte" a dupla
intuição do poder de Eros e de Thanatos; deve muito de seu pessimis­
mo a Schopenhauer, a esse filósofo "precursor" do "evangelho" psi­
canaHtico. No texto " Uma dificuldade da psicanálise" , Freud se rela­
ciona com Copérnico e com Darwin. Mas situa Schopenhauer como seu
antecipador. Por sua vez, descobre em Nietzsche uma antecipação de
seu princípio pulsional fundamental : o ld. Toma-lhe de empréstimo
considerações sobre o sonho, sobre a memória e a culpabilidade. Nes­
ses filósofos "instintualistas" encontramos uma valorização do instinto
como princípio autentificador, o que desemboca numa teoria do senti­
do: do querer-viver schopenhaueriano à vontade de potência nietzs­
cheana, é toda uma axiologia instintual que se promove. Ademais, nes­
sas filosofias se encontram relacionadas uma teoria do instinto e uma
"psicologia" dos motivos morais; encontra-se antecipado o princípio
de uma "psicologia das profundezas" ou "psicologia abissal" , como
Freud define a psicanálise. ta
Ora, na medida em que a psicanálise se apresenta como um saber
(episteme), precisa confrontar-se, mesmo que implicitamenttp, com as
condições desse saber. Eis uma questão epistemológica que, a partir de
Kant/ especifica-se por duas questões correlativas. Em primeiro l ugar,
trata-se de um saber que reivindica, de pleno direito, o estatuto de
ciência e, mais precisamente, de ciência da natureza (Naturwissens­
chaft), quer di�er, susceptível de referir-se a uma metodologia rigorosa
já tendo demonstrado sua eficácia no domínio dos fenômenos físicos ou

- 99 -
naturais. Em seguida, trata-se de um saber voltado única e exclusiva­
mente para um tipo de fenômeno : o psfquico-inconsciente. No final do
século XIX, todos os teóricos do conhecimento se punham o problema
do método (Methodesntreit) tendo em vista determinar se as chamadas
ciências do homem ou do espfrito (Geisteswissenschaften) deveriam re­
ferir-se a um método próprio ("compreensivo" ou "interpretativo") ,
por oposição ao método "explicativo" já consagrado pe las ciências da
natureza. De fato, essa questão metodológica possura um alcance meta­
Hsico inegável: o de saber como se representar, no conhecimento, a
distinção "Natureza/Esp(rito " . A distinção epistemológica suporia uma
descontinuidade entre fenômenos "naturais" e fenômenos "espiri­
tuais" , enquanto que uma unificação postu laria uma continuidade (ou
redução). Por seu objeto mesmo, a psicologia se vê comprometida com
esse debate filosófico. É nesse contexto da possibilidade mesma do co­
nhecimento cient(fico que surge a psicanálise aceitando os dois prind­
pios epistemológicos centrais servindo de base à construção de seu sa­
ber: o prindpio rrwnista e o prindpio agnosticista . 3
Freud não hesita um instante* em dizer que a Psicanálise pertence
à famOia das ciências da natureza (Naturwissenschaften). Ele não
aceita o dualismo inaugurado por Dilthey remetendo a duas esferas
axiologicamente distintas: a das ciências do esp(rito (Geisteswissens­
chaften) e a das ciências da natureza. Para ele, a Psicanálise só pode
ser ciência da natureza. Neste sentido, Naturwissenschaft passa a ser
pura e simplesmente sinônimo de Wissenschaft (ciência). E o que pre­
tendo mostrar é que essa tomada de posição epistemológica está funda­
da num rrwnismo bastante radical , motivado pela recusa sistemática e
decisiva do dualismo clássico, pregando a existência de duas substân­
cias distintas, conseqüência de uma distinção ontológica: alma/corpo,
esp(rito/matéria, história/natureza. Freud não aceita que essa distin­
ção ontológica funde uma distinção epistemológica. Por isso, nega
veementemente a primeira parte da distinção, para só admitir a se­
gunda.
A posição freudiana encontra-se fundamentada no monismo epis­
temológico de muitos cientistas alemães do final do século XIX. Mas é
sobretudo na teoria do naturalista Emst Haeckel ( 1 834- 1 9 19), expressa

* A parte que se segue constitui o capítulo V, "Freud e a 'Wetanschauung' filosófica" de meu


livro A pedagogia da incerteza, !mago Editora, 1983. As imprecisões do texto original são
corrigidas, creio, com longas notas adicionais.

- 100 -
em seu O nwnisnw, profissãn de fé de wn naturalista, que vai buscar a
melhor justificativa para seu próprio monismo. Diz Haeckel : .. Insisti­
mos na unidade fundamental da natureza orgânica e inorgânica . . . Não
podemos mais traçar um limite exato entre esses dois dom(nios princi­
pais da natureza. Tampouco podemos estabelecer uma distinção abso­
luta entre o reino animal e o reino vegetal, ou entre o reino animal e o
mundo humano. Conseqüentemente, consideramos também toda ciência
humana como um único ediffcio do conhecimento, e rejeitamos a dis­
tinção habitual entre a ciência da natureza e a ciência do espírito
(Geisteswissenschaft). A segunda não passa de uma parte da primeira.
Reciprocamente, as duas constituem apenas wna ciência" (trad., franc. ,
p . 1 2) .
Este texto constitui uma espécie de manifesto monista dos cientis­
tas às voltas com a já famosa disputa metodológica quanto ao estatuto
de cientificidade das Geisteswissenschaften. A disputa é feita entre os
partidários de um único modelo para as ciências, o modelo explicativo,
e os defensores do modelo interpretativo, mais adequado às ciências
humanas. Freud de forma alguma pretende cindir a demarche psicana­
l Ctica numa parte explicativa (na linha das ciências naturais) e numa
parte interpretativa (na linha das ciências humanas). Não somente a
psicanálise é totalmente ciência natural, mas pode reservar um lugar à
dimensão interpretativa. No entanto, apesar de Freud se utilizar do mo­
delo interpretativo na clínica, sua escolha epistemológica é feita natu­
ralmente levando em conta o tipo de prática científica que ele codifica
·
espontaneamente. Todo o aprendizado científico de Freud, baseado na
anatomia e na fisiologia, leva-o espontaneamente a alinhar-se do lado
do modelo f(sico-qufmico. Por isso, toma o partido dos que identificam
pura e simplesmente ciência (Wissenschaft) com ciência da natureza. E
ao assumir tal posição, coloca-se ao lado dos físicos e dos fisiologistas
em luta contra o dualismo epistemológico, notadamente o defendido
por Dilthey e por Rickert.
John Stuart Mill, de quem Freud traduziu para o alemão o Sistema
de lógica dedutiva e indutiva, estabelece uma distinção menos rígida
entre ciências morais e ciências da natureza. A diferença entre esses
dois tipos de ciências é apenas de grau. Trata-se de um dualismo ate­
nuado, também reivindicado por Wundt para situar a psicologia no nf­
vel da cientificidade propriamente dita. Freud rejeita também esse dua­
lismo. Mas ele permitiu-lhe determinar a posição da psicanálise como
"psicologia científica". No entanto, diferentemente de Wundt, que fa-

- 10 1 -
zia da psicologia uma espécie de tampão entre as ciências naturais e as
ciências do espfrito, Freud sustenta intransigentemente que a psicanáli­
se se situa, por vocação, na esfera da natureza . É dos anatomistas e
dos fisiologistas que ele recebe essa idéia. Contudo , não pretende fun­
dar a cientificidade da psicanálise sobre uma ciência da natureza. Vai
além, e funda seu estatuto epistemológico no redutivismo cientffico em
vigor. E é esse redutivismo que está na base do monismo freudiano.
Assim, Freud não hesita em fazer seu o juramento fisicalista celebrado
por Brücke e Du Bois-Reymond em 1 842: "Brücke e eu fizemos o en­
gajamento solene de impor esta verdade: somente as forças ffsicas e
qufmicas agem no organismo. No caso em que essas forças não podem
ainda explicar, devemos nos empenhar em descobrir o modo especffico
ou a forma de sua ação utilizando o método ffsico-matemático , ou
postular a existência de outras forças equivalentes em dignidade às for­
ças ffsico-qufmicas inerentes à matéria, redutfveis à força de atração e
de repulsão" (Cf. E. Jones, A vida e a obra de Sigmund Freud, 1 95 3 ,
p. 45) .
Esse j uramento fisicalista constitui a carta de princfpios comum
aos ffsicos e fisiólogos alemães que marcaram o pensamento de Freud.
Segundo P .L. Assoun (Introduction à I' épistémologie freudienne, 1 98 1 ,
p. 47), são as seguintes as teses fisicalistas aceitas por Freud: "a) só há
forças, isto é, manifestações materiais (em virtude da equivalência for­
ça-matéria), ffsico-qufmicas; b) somente essas forças agem no organis­
mo, ficando virtualmente barrado o caminho a todo vitalismo; c) a dni­
ca tarefa c ientffica é a de descobrir .a forma da ação dessas forças ffsi­
co-qufmicas; d) no c aso em que a investigação encontrar formas não
redutfveis a essas modalidades conhecidas, somente o método ffsico­
qufmico se imporá para reduzir essas manifestações às forças ffsico­
qufmicas, dnica matéria de saber".
Por conseguinte, fica exclufda do domfnio cientffico toda força de
emergentismo postulando ordens irredutfveis. Ademais, não pode haver
lugar, no campo da cientificidade, para as chamadas "ciências do ho­
mem". Porque o humano não pode constituir uma matéria especffica de
ciência. O método ffsico-matemático abarca a totalidade dos fenôme­
nos, sejam eles naturais, sejam humanos ou sociais. Por isso, toda ciên­
cia só pode ser Naturwissenschaft. E como a psicanálise pretende ser
uma ciência, só pode ser uma ciência da natureza . Eis a convicção
epistemológica de Freud, da qual não abre mão: a psicanálise é um re­
quisito da ciência da natureza; e deve ser tal, na medida em que tenta

- 102 -
eliminar, dos fenômenos inconscientes, todos os germes de irredutibili­
dade ao método ffsico-qufmico . Aliás, Freud considera a ffsica e a
qufmica, não como ciências particulares, mas como o canteiro e o foco
do método da ciência da natureza propriamente dita. Por isso, postula
uma homogeneidade entre os fenômenos inconscientes e os fenômenos
ffsico-qu (micos.
De todos os c ientistas de sua época, certamente Emest Mach foi
um dos que mais cativou e i nfluenciou Freud. Sobretudo por ser ele um
partidário do fisicalismo no psiquismo e um filósofo dessa prática
cientffica. A obra de Mach que Freud mais assimilou intitula-se Conhe­
cimento e erro. Trata-se de uma síntese de filosofia das ciências, ver­
dadeiro best-seller no infcio do século XX. É baseando-se nessa obra
que Freud legitima a psicanálise como verdadeira ciência da natureza,
nada tendo a ver com a filosofia. Por isso, faz suas as palavras de Mach:
"Sem ser de forma alguma filósofo, sem mesmo aceitar o nome, o sábio
tem necessidade imperiosa de examinar os métodos pelos quais ele ad­
quire ou amplia seus conhecimentos. " Mach reivindica ter escrito uma
obra de psicologia cient(fica, obra de uma ciência especial no interior
das ciências naturais. Mas reconhece poder relacioná-la com as outras
ciências e com a filosofia, mas prudentemente. Freud poderia, ainda,
assinar esta passagem de Mach: "Sempre senti um vivo interesse pelas
ciências vizinhas da minha e pela filosofia. Mas só pude percorrê-las
como amador. Confesso: o pafs do transcendente me está fechado;
ademais, declaro abertamente que seus habitantes de forma alguma po­
dem excitar minha curiosidade cientffica. Torna-se fácil, então, medir o
enorme abismo que me separa de muitos filósofos. Já disse explicita­
mente: sou apenas um sábio, não sou absolutamente wn fil6sofo. No
entanto, se alguém me considera como tal, não sou responsável por is­
so. Como sábio, não quero submeter-me cegamente à direção de um
filósofo particular" (Connaissance de r erreur, trad. franc . , 1908, p. 7
e 9). A concepção freudiana do saber é nitidamente topol6gica. Reco­
nhece a existência de regiões cientfficas. Elas se recortam segundo
classes de fenômenos investigados. Cada região mantém com as outras
relações diplomáticas. Mas é de rigor o respeito às fronteiras de cada
região. Quanto à filosofia, também é concebida topologicamente , para
que não legifere mais sobre o conjunto dos saberes. Freud vai buscar
em sua "incapacidade constitucional" para a abstração a justificativa
para sua recusa da "especulação" . Mas ao abordar metodologicamente
a psicanálise, não hesita em estabelecer uma demarcação nrtida entre

- 1 03 -
"Ciência e Filosofia" (este é o t(tulo do caprtulo I de Selbstdarstel­
lung).
A filosofia é concebida, nesse caprtulo (cf. P.L. Assoun, op. cit. ,
p. 79-88), ao mesmo tempo como pais do transcendente e como uma
ciência particular. Do primeiro ponto de vista, ela tende à Weltans­
chauung, pois "procura orientar-se , no conjunto dos fatos, de modo tão
universal quanto poss(vel". Quanto ao sábio, "procura estudar um do­
m(nio de fatos restrito". Isto não quer dizer, declara Freud, que os
cientistas não precisem tomar algo de empréstimo ao pensamento filo­
sófico : "Os grandes filósofos Platão, Aristóteles, Descartes, Leibniz
abriram novos caminhos à pesquisa cient(fica". No entanto, apesar de
abrir caminhos e de penetrar em domfnios ainda inexplorados pela
ciência, a filosofia recebe. sua autoridade da capacidade que tem de
antecipar-se aos fenômenos e de legitimá-los posteriormente. Sendo as­
sim, a ciência e a filosofia constituem dois momentos inversos da in­
vestigação: o ponto de partida do filósofo constitui, para o c ientista,
um alvo muito distante. Aquilo que , para o filósofo, funda-se na neces­
sidade de um sistema a priori ou pré-construfdo, para o cientista repou­
sa na comodidade arbitrária de um ponto de partida. Essa comodidade,
elaborada por Mach, é retomada por Freud, quando diz que o ponto de
partida do trabalho psicanalftico "tem, em todo rigor, um caráter de
.convenções". Para Mach, são as "relações significativas" com o mate­
rial fenomenal que ponderam a arbitrariedade do conceito inicial e
constituem o ponto de partida real. É desta forma que o cientista se
opõe ao filósofo quanto ao modo de trabalhar.
Segundo P.L. Assoun, para estabelecer o estatuto diferencial entre
a ciência e o saber filosófico, Freud copia essas palavras de Mll,ch:
"Não tendo tido a excelente oportunidade de possuir inquebrantáveis
axiomas , o sábio se habituou a considerar como provisórias suas idéias
e seus princípios mais seguros e mais fundados, mas sempre está pronto
para modificá-los em seguida a novas experiências" (op. cit. , p. 80).
Tudo se passa como se Freud tivesse encontrado, ao ler essa passagem,
a linguagem de sua posição metodológica. Nos numerosos textos em
que ele opõe a psicanálise (como Naturwissenschaft) à filosofia (como
Weltanschauung) , ressuscita literalmente os princfpios metodológicos
de Mach. Assim, ao modo de pensar filosófico , que concebe a totalida­
de do mundo a partir de "alguns conceitos fundamentais", contrapõe,
em " Psicanálise e teoria da libido" , o n:odo psicanalrtico de pensar:
"A psicanálise atém-se aos fatos de sua esfera de trabalho, aspira a re-

- 1 04 -
solver os problemas mais próximos da observação, .comprova-se nova­
mente na experiência, é sempre inacabada e está sempre pronta a retifi­
car ou a modificar suas teorias. " Ademais, à guisa de princ fpios, con­
tenta-se com "pressupostos provisórios", esperando uma "determina­
ção mais rigorosa de um trabalho futuro" (citações de P.L. Assoun, op.
cit. , p. 81). Somente essa atitude, dizia Mach, "pode tomar possíveis
os progressos sérios e as grandes descobertas". E é baseando-se nela
que Freud censura o sistema filosófico de fechamento, não deixando
"nenhum espaço para novas descobertas e pontos de vista perfectíveis"
(ibid.).
Portanto, é nesse modelo epistemológico que Freud pretende fun­
dar a psicanálise como ciência natural. Está preocupada em estudar
apenas determinada esfera de fenômenos: os inconscientes. Fazendo is­
so, distingue-se da filosofia, pois não é um sistema, não constrói uma
cosmovisão, .não concebe uma totalidade do mundo, não se impõe co­
mo conhecimento acabado nem propõe uma exigência de perfeição ló­
gica . Pelo contrário, o que faz a psicanálise é opor: à panconceituali­
zação filosófica, o empirismo científico; à universalidade sistematizan­
te, o particularismo da ciência; ao fechamento do sistema, a abertura
experimental ; ao apriorismo, a identidade da ciência analítica.
Estes são os principais pressupostos epistemológicos aceitos por
Freud para demarcar os campos do saber científico e do saber filosófi­
co. Em suas Novas conferências sobre a psicanálise ( 1 932), porém,
tematiza melhor seu pensamento. Nelas, ele convida seus ouvintes fic­
tícios (essas conferências nunca foram pronunc iadas) a confrontarem
audaciosamente a psicanálise científica com a especulação filosófica.
A questão que coloca é a seguinte: "Pode a psicanálise conduzir-nos a
uma concepção particular do mundo? Neste caso, a qual ?"
Ao empregar o termo Weltanschauung, Freud tem consciência de
defrontar-se com uma sólida tradição ideológica e de estar manejando
uma "idéia especificamente alemã". Reconhece também a ambigüidade
do termo e a impossibilidade de defini-lo de modo preciso. Contudo,
enquanto significa pretensão de totalização, a Weltanschauung pode
ser entendida como "uma construção intelectual capaz de resolver, se­
gundo um tinico princ fpio, todos os problemas colocados por nossa
existência" e "na qual nenhuma questão permanece aberta". Trata-se
de uma estrutura susceptível de fornecer um princ(pio de ordem uni­
versal permitindo-nos situar "num lugar determinado tudo o que pode
nos interessar" . Donde o finalismo latente em toda " visão do mundo".

- 105 -
E Freud vê nesse finalismo o sintoma de certo narcisismo. É claro que
ele não nega que a psicanálise possa contribuir para que aprofundemos
nossa compreensão do mundo. Mas rejeita que ela possa, sozinha, for­
necer-nos uma imagem do mundo . Porque, por natureza, é uma ciência
especializada. Enquanto "psicologia abissal" ou "psicologia das pro­
fundezas", constitui um "ramo da psicologia" e vincula-se, por conse­
guinte, a uma esfera particular de fenômenos. Não possui este poder de
gerar uma concepção particular do mundo. Deve conformar-se com tu­
do o que lhe fornecem as ciências naturais e aderir pura e simplesmente
à Weltanschauung científica. E é por isso que Freud estabelece urna di­
cotomia radical entre a ciência e a Weltanschauung filosófica:

a. a ciência afirma a unidade como simples princfpio regulador;


a Weltanschauung, ao contrário, pretende postulá-la como princfpio
adquirido a partir do momento em que é concebido ;
b. a ciência se limita "àquilo que é atualmente conhecido" e "re­
jeita todos os elementos estranhos" à sua esfera particular de conheci­
mento: a "visão do mundo" , ao contrário, antecipa-se especulativa­
mente aos dados e cria misturas de fatos e de conceitos;
c. a ciência requer um "trabalho intelectual" fundado em "obser­
vações cuidadosamente controladas" ; a visão do mundo, ao contrário,
parte de um conhecimento imediato, do tipo "revelação", "intuição"
ou "adivinhação" ;
d . a ciência se regula sobre o objeto; a visão do mundo, ao contrá­
rio, é antropomórfica e traduz a presunção da subjetividade; "exigên­
cias do espírito" ou "necessidades da alma humana".

Baseado nesses princfpios, Freud não aceita que a ciência e a filosofia


tenham direitos iguais à verdade. Daí ele defender a intolerância cien­
tfjica da verdade: "A ciência considera como seus todos os domfnios
onde possa exercer-se a atividade humana". Não há lugar para se es­
colher entre ciência e filosofia, porque a verdade científica não é tole­
rante. Enquanto ciência, a psicanálise precisa expurgar toda intromis­
são em seu domínio de conhecimento. Freud distingue três perigos es­
pecfficos, três poderes intrusos: a arte, a filosofia e a religião. Eles dis­
putam a posição básica da ciência. Mas apenas "a religião deve ser
considerada seriamente como adversária":
a. "a arte quase sempre é inócua e benéfica; não procura ser nada

- 106 -
mais que uma ilusão. Excetuando algumas pessoas que se dizem 'pos­
sessas' pela arte, esta não tenta invadir o reino da realidade" ;
b . "a filosofia não se opõe à ciência, comporta-se como uma ciên­
cia e, em parte, trabalha com os mesmos métodos ; diverge , porém, da
ciência, apegando-se à ilusão de ser capaz de apresentar um quadro do
universo que seja sem falhas e coerente, embora tal quadro esteja fada­
do a ruir ante cada novo avanço em nosso conhecimento". Como a ar­
te, a filosofia é relativamente inofensiva. Mas é por causa de seu eli­
tismo: "Não exerce nenhuma influência sobre as massas, só interessan­
do a um pequeno grupo de intelectuais";
c. a religião constitui um "poder formidável", disputando com a
ciência " seus direitos e seus domínios" . A grandiosidade do poder da
religião reside no fato de ela fornecer aos seres humanos "informações
a respeito da origem e da existência do universo, assegura-lhes prote­
ção ·e felicidade definitiva. . . e dirige seus pensamentos e ações me­
diante preceitos estabelecidos com autoridade". Com isso, ela desem­
penha três funções: 1 ) a de "satisfazer a sede de conhecimento do ho­
mem"; 2) a de "acalmar o medo que o homem sente em relação aos pe­
rigos e vicissitudes da vida" ; 3) a de "estabelecer preceitos, proibições
e restrições, indo muito além da ciência" (Edição Standard, Imago
Editora, vol. XXII. p. 1 96- 197).

Freud não se limita a dizer que a filosofia constitui uma visão do mun­
do. Ele ousa mesmo relacioná-la com outras visões do mundo. No ca­
p ftulo terceiro de Totem e Tabu, por exemplo , ele esboça uma teoria
geral das grandes expressões culturais da civilização. Em O Interesse
da Psicanálise, podemos encontrar uma espécie de lei freudiana dos
três estados (semelhante à de Comte), regendo "o modo de evolução
das concepções humanas do mundo". No dizer de Freud, "a humani­
dade teria, no curso dos tempos , conhecido sucessivamente três siste­
mas intelectuais, três grandes concepções do mundo: concepção ani­
mista (mitológica) , concepção religiosa e concepção cient(fica". E o
que vai determinar cada uma dessas visões do mundo é um tipo de es­
truturação das "relações entre a realidade e o pensamento" . Essa evo­
lução marcha, num processo de descentração, até atingir a realidade do
mundo exterior. E é o psiquismo humano que constitui a nonna de toda
realidade. Nota-se, nesse processo evolutivo, um declínio crescente da
"onipotência das idéias" . Assim, na fase animista, "o homem atribui a
si mesmo a onipotência"; na fase religiosa, o homem transfere essa

- 107 -
onipotência aos deuses, mas fazendo-os agirem conforme seus desejos;
na concepção cientffica do mundo , termina a era da onipotência do
homem: este se resigna às necessidades naturais e à morte . Freud faz
uma ressalva: somente no domfnio da arte mantém-se até nossos dias a
onipotência das idéias, porque, "graças à ilusão artfstica, este jogo
produz os mesmos efeitos afetivos como se se tratasse de algo real".
Quanto à filosofia, Freud a situa relativamente a esse esquema de
base: como visão do mundo, ela se define em função da dialética entre
o desejo e a realidade que ela formula, ficando fora do processo terná­
rio Arte-Religião-Ciência. Este processo esgota a história da Weltans­
chauung humana. Portanto, o lugar da filosofia é um lugar diferencial.
Todavia, por ocupar um lugar irredutfvel a uma forma determinada do
processo evolutivo, nem por isso a filosofia deixa de mostrar-se como a
reveladora do processo global. Este se encontra preso ao duplo movi­
mento da imediação do desejo e da mediação do real. E a filosofia se
vê tentada pelo desejo integral e pela exigência do real. Por isso, sua
unidade só pode ser sonhada, ilusória. No entanto, unidade verdadeira,
pois revela a realidade do desejo ou aspiração absoluta dessa unidade
ilusória.
Finalmente, na 61tima das Novas Conferências, Freud diz que o ato
filosófico reproduz a atitude animista. Ele define a filosofia como "um
animismo sem atos mágicos", uma forma de saber que "superestima a
magia verbal" , que supervaloriza a idéia segundo a qual "nosso pen­
samento guia e regula os fenômenos" , como se ela pudesse dominar e
racionalizar integralmente o real. Ora, os "diversos sistemas filosófi­
cos" nada mais fazem senão uma tentativa de "descrever o mundo tal
como ele se reflete no cérebro do pensador, em geral muito distanciado
do mundo" . Assim, a filosofia se caracteriza por uma forma secundária
de animismo, vinculado ao animismo propriamente dito. Por detrás de­
le, Freud diz que se exprime o narcisisnw fundamental do ato filosófi­
co. Este narcisismo se revela na crença que têm os filósofos na "oni­
potência das idéias" e na "força mágica das palavras" , no conscien­
cialismo ou primado da consciência e numa imagem do mundo coerente
e sem lacunas. É nessas crenças que se funda, no entender de Freud,
o dogma narofsico da filosofia. Em 6ltirna instância, quando os filóso­
fos defendem o primado da consciência, estão racionalizando a defesa
narcfsica face ao inconsciente. Donde a força e a ilusão da filosofia: de
um lado, ela conforta racionalmente a crença narcfsica do Ego; do ou­
tro, faz com que "o homem se sinta soberano em sua própria alma" .

- 108 -
Ora, como o narc 1s1smo constitui o princfpio da Weltanschauung, e
como a filosofia é o protótipo da Weltanschauung, ele é a cristalização
do ideal no qual o homem investe sua fé para "sentir-se mais à vontade
na vida" . Donde o " fundamento afetivo" da filosofia: os sistemas filo­
sóficos são documentos do desejo, " são cristalizações de desejos " . É
por isso que possuem " valor para a vida humana".

• • •

Depois de aprese ntar o núcleo do que poderfamos chamar a "episte­


mologia freudiana" , no que concerne ao problema da demarcação en­
tre ciência psicanalftica e cosmovisão filosófica, façamos algumas ob­
servações que nos permitam uma compreensão mais aprofundada da
questão . Antes, porém, convém lembrar que, em O Projeto de Psica­
nálise ( 1938), Freud permite-nos apreender a articulação dessas duas
formas de saber. No capftulo IV, declara: "A concepção segundo a
qual o psfquico é, em si, inconsciente , permitiu-me constituir a psico­
logia como uma ciência da natureza. " Portanto, foi a co nquista do seu
objeto, o inconsciente , que possibilitou à psicanál ise reivindicar o es­
tatuto de Naturwissenschaft. Foi a unificação do objeto, como unidade
fenomenal, que tornou possfvel à psicanálise autodeterminar-se episte­
micamente.
1 . Totalidade é a categoria-chave implicada no conceito freudiano
de Weltanschauung para caracterizar a forma do saber filosófico. Essa
categoria não possui um contet1do positivo. Designa apenas o horizonte
inacess(vel. Pen sar a totalidade é ultrapassar e negar o conceito de
" determinado" , de " limite " , de "fora". A totalidade não é algo: ela
exclui o outro. Por exemplo, quando dizemos que o homem é uma to­
talidade, não estamos definindo-o. Estamos simplesmente afirmando
que seu ser, pelo fato de não se identificar com outra coisa, é movi­
mento e ultrapassamento, manifesta-se como "transcendência", como
abertura a um além de todas as determinações e , ao mesmo tempo, co­
mo um somatório de determinações concretas. 4
2. Para os gregos, o tenno Ccsmos (Welt em alemão) significa ao
mesmo tempo o Mundo e a Ordem do mundo. Trata-se, não somente
daquilo que, no século XVII, passa a ser chamado de Universo, mas
das leis que o regem, que o tornam distinto de um conjunto anárquico
de coisas. Por significar ao mesmo tempo ordem, beleza, harmonia e

- 1 09 -
plenitude, o Cosmos é concebido como um todo finito e hierarquica­
mente ordenado. Neste sentido, a cosmovisão grega s6 podia ser cos­
mológica e, ao mesmo tempo, cosmocêntrica. Com efeito, toda cos­
mologia pressupõe um conhecimento do mundo como sistema e a pos­
sibilidade de sua expressão num discurso. Por isso, a imagem do siste­
ma do mundo é determinante para toda filosofia que se pretenda siste­
mática. E o postulado de uma totalização do mundo pelo saber torna-se
necessário para que possa operar-se a totalização do próprio saber (sem
fratura entre Ciência e Filosofia). Assim, o fato de uma filosofia poder
constituir-se em sistema do mundo decorre do fato de possuirmos uma
imagem do mundo como totalidade fechada, finita, centrada e hierar­
quizada. Mas tudo isso vai mudar quando essa imagem for substitu(da
pela de um universo infinito, sem ordem e de-centrado. O modelo de
um cosmos finito e bem ordenado predomina na filosofia antiga. Ex­
prime-se na ffsica aristotélica, na qual se opõem dois tipos de movi­
mentos: um movimento eterno e circular, definindo as esferas celestes;
um movimento limitando - no espaço e no tempo - as coisas terrestres,
estas ficando submetidas às mudanças e à corrupção.
Assim, a cosmovisão antiga submetia o baixo mundo sublunar ao
determinismo físico e ontológico da esfera celeste. As verdades e os
valores desciam do céu para a terra. O esquema inteligfvel do Cosmos
propunha urna ordenação totalitária de todas as coisas aqui de baixo ao
poder soberano e transcendente dos astros-deuses. Eis o princfpio de
ordem do mundo: tudo deveria estar submetido aos astros-deuses que
comandavam o devir dos seres, segundo procedimentos que os sábios
podiam decifrar e realizar graças a uma hábil conjunção de influências
antagônicas. O saber unitário da ontologia propõe uma sfntese coerente
do conhecimento e da ação. Deduz os destinos dos homens a partir das
constelações e oposições que presidem, de cima, os acontecimentos ter­
renos. Trata-se de um saber que fornece remédios para as predestina­
ções desfavoráveis, mobilizando as energias compensadoras. Este saber
unitário encontra seus princfpios nos ritmos das revoluções astrais. A
astrobiologia vinha apresentar à morada dos homens um esquema de
segurança, proporcionando a todos um enorme conforto espiritual. Os
homens se encontravam sob o abrigo protetor da cumeeira celeste, de
onde se exercia a providência astral .
3. A cosmovisão medieval, sem deixar de ser cosmológica, passa
a ser teocentrada. No pensamento grego, prevalece a imagem de um
mundo finito, l imitado e regido por uma ordem. A influência do cris-

- 1 10 -
tianismo vem perturbar esse sistema. Coloca na origem do mundo cria­
do um Deus perfeito e infinito. Assimilando a cosmologia grega, o pen­
samento cristão afirma que a finitude do mundo fica restrita à ordem
das coisas. O mundo cristão constitui uma perspectivação da existência
humana a partir da atitude fundamental da fé. Enquanto mundo, é ne­
cessariamente unificante e totalizante: unificante, porque opera uma
s(ntese, de todas as determinações a partir da perspectiva fundamental
que a constitui; totalizante, porque abarca todas as manifestações do
homem e porque se mostra capaz de integrar, em sua perspectiva, toda
manifestação nova.
4. É sobretudo a partir da astronomia copernicana que tal imagem
do mundo começa a perder sua preponderância. A Natureza, contraria­
mente ao Cosmos, não implica mais a noção de totalidade. Ela é homo­
gênea. Não possui regiõe s de ser separadas. Suas relações não são es­
truturadas por um centro nem pela oposição do alto e do baixo. A cos­
mologia indicava, a priori, os l ugares naturais das coisas e a direção
dos movimentos. Constituía, pois, o maior obstáculo à constituição da
ciência moderna.
Esta foi a obra, sobretudo, de Galileu, inaugurador de uma nova
cosmovisão, não mais cosmológica , mas sem Cosnws, decididamente
antropológica e, posteriormente, antropocêntrica. A ciência moderna,
da qual Galileu é o protótipo , veio destruir o esquema de um Cosmos
organizado hierarquicamente no interior de um espaço fechado e im­
pregnado de ressonâncias mítico-religiosas. O Universo, doravante,
precisa ser compreendido sob a forma de um cont(nuo ffsico de exten­
são indefinida, no interior do qual os fatos físicos se condicionam reci­
procamente em virtude de necessidades materiais e matematicamente
calculáveis. São banidas do campo epistemológico as simpatias e anti­
patias, as afinidades e analogias sobre as quais se fundava a operação
do mágico. O campo epistemológico deve subordinar-se 11nica e exclu­
sivamente às disciplinas da Razão . Só pode fazer autoridade uma inte­
ligibilidade restritiva. Só ela pode satisfazer ao entendimento humano.
E ela é inteiramente desprovida de eficácia consoladora para os indiv(­
duos preocupados com seus problemas de ordem pessoal , sobretudo
com o problema de seu destino. A oposição homem/Deus é substitu(da
pela oposição homem/mundo. Melhor ainda: pela oposição Sujei­
to/Objeto. No dizer de A. Koyré , a revolução galileana é caracterizada
por dois traços complementares: 1 . a destruição do Cosmos e, por con­
seguinte , o desaparecimento, na ciência, de todas as considerações

- 111 -
fundadas sobre tal conceito ; 2. a geometrização do espaço: o conjunto
contínuo, concreto e diferenciado dos "lugares" da física e da astro­
nomia antigas é substitufdo . por um espaço-dimensão, homogêneo e
abstrato. Assim, o mundo passa a ser concebido como um Universo
aberto, indefinido, unificado pela identidade de suas leis e de seus ele­
mentos fundamentais. A demolição do Cosmos pode ser considerada
como a "ruptura do cfrculo", como o "estouro da esfera". Ficam ex­
clu(das do pensamento científico todas as considerações invocando o
valor, a perfeição, o sentido e a finalidade . A verdade do mundo é indi­
ferente à verdade do homem.
5 . Com a era moderna, o mundo se torna imagem concebida. E o
homem se torna sujeito. A teoria do mundo se converte em teoria do
homem, em antropologia. Inaugura-se urna espécie de humanismo que
ainda não explora cientificamente o homem. Não se estuda mais a fina­
lidade do homem criado . Instaura-se uma interpretação filosófica do
homem: uma avaliação da totalidade da existência humana a partir do
homem e em direção a ele. O enraizamento da interpretação do mundo
numa antropologia se exprime no fato de que a posição fundamental do
homem face à existência em sua totalidade determina-se como visão do
mundo, como cosmovisão, desta feita, com um sentido novo. A partir
do início do século XVIII, a visão do mundo deixa de significar uma
plácida contemplação do mundo: passa a significar visão e concepção
da existência humana, da vida humana e de suas manifestações sócio­
culturais . Nesta perspectiva, a psicanálise é uma Weltanschauung, uma
" visão do mundo" tentando elucidar, mediante conceitos, a existência
humana. Ela é uma interpretação da cultura. Esclarece o sentido da vi­
da humana e o revela, pensando-o segundo os sfmbolos. Dissolve as
ilusões da consciência para chegar à significação do simbolismo huma­
no. Por isso, diz Freud, "é necessário que os ídolos morram para que
vivam os s ímbolos";
6. Como se explica a recusa de Freud em fazer da psicanálise uma
ciência do homem? Uma ciência humana'? Para qlJe possa haver uma
ciência do homem, é preciso que ele seja descoberto, seja considerado
como um objeto natural. Isto só se torna poss(vel no século XIX. Na
época clássica, o homem era um ser puramente metafísico, um ser fini­
to, capaz de erro, de fracasso e de falta, referido a um Deus considera­
do corno entendimento infinito , como bondade infinita e como poder
infinito. No século XVIII, com o advento de uma mentalidade empi­
rista, já se pensa nas relações constantes que caracterizam a afetividade

-112 -
e a sociedade humanas, mas no contexto das questões do direito (por ·
exemplo, a do contrato social) . É o século XIX que vai transformar
totalmente o homem em objeto natural. Ele deixa de ser referido a uma
norma superior e absoluta. Passa a ser confrontado com o mundo bio­
lógico. Se Deus não aparece mais, o que é o caso de muitos, inclusive
de Freud, senão como um projeto do ser humano, tenta-se descobrir no
homem tudo o que o vincula ao mundo animal. E é assim que se faz do
homem, ser muito mais complexo que os outros animais, um ser de de­
sejo e de necessidade. Sobre as construções da cultura, Freud vai en­
contrar o jogo das pulsões e do desejo; Marx vai encontrar o jogo dos
conflitos econ6micos; Nietzsche vai descobrir o jogo das tensões vitais.
E a especificidade do ser humano passa a ser entendida em termos de
trabalho, de linguagem e da capacidade de fixar valores. No esforço
para se naturalizar o homem, privilegiam-se certas referências essen­
ciais. E a biologia e a economia são tomadas como c iências-piloto.
Freud, por exemplo, ao fazer da psicanálise uma ciência natural, j ulga
que ela tem o direito de intervir eficazmente no conjunto das ciências
humanas. Admite mesmo que t;la desempenha o papel principal. O psi­
quismo individual pode ser tomado como fonna universal de referên­
cia, como base real de todos os fatos humanos e sociais: "Enquanto
psicologia das profundezas, doutrina do inconsciente psíquico, a psica­
nálise pode tornar-se indispensável a todas as ciências que tratam da
gênese da civilização humana e de suas grandes instituições, tais como
a arte, a religião e a ordem social" (Minha vida e a psicanálise, 1 923).
Assim, além de naturalizar o homem, ele biologiza o psiquismo e psi­
cologiza a sociedade.
7. A Weltanschauung psicanaHtica possui um caráter marcada­
mente pessimista. Por mais que ela tente mobilizar o espírito científico
para combater as "visões do mundo" , notadamente a religiosa, que é
"uma tentativa de obter domfnio do mundo perceptível no qual nos si­
tuamos, através do mundo dos desejos que desenvol vemos dentro de
nós em conseqüência de necessidades biológicas e psicológicas" (No­
vas Conferências, p. 204), não fornece aos homens razões de viver, ra­
zões de esperar e , por conseguinte, de morrer. No ú ltimo parágrafo, de
O mal-estar na civilização ( 1 930), ele se interroga sobre o destino da
espécie humana, sobre o progresso da civilização, não acreditando que
tal progresso possa trazer solução para as perturbações que as pulsões
de agressão e de autodestruição trazem à vida coletiva dos homens:
"Os homens adquiriram sobre as forças da natureza um tal controle

- 1 13 -
que, com sua ajuda, não teriam dificuldades em se exterminarem uns
aos outros, até o último homem. Sabem disso, e é isto que explica em
grande parte sua inquietação presente, sua infelicidade e sua ansieda­
de. " Talvez Freud nos deixe num sentimento de insatisfação, na medi­
da em que combate todos os "profetismos" e propõe uma Weltans­
chauung erigida sobre a ciência possuindo apenas traços negativos,
"tais como a submissão à verdade e a rejeição das ilusões". E prosse­
gue: "Todo semelhante nosso que está insatisfeito com essa situação,
que exige mais do que isso para seu consolo momentâneo, haverá de
procurá-lo onde o possa encontrar. Não o levaremos a mal, não pode­
mos ajudá-lo ; mas não podemos, por causa disso, pensar de modo dife­
rente" (Novas Conferências, p. 220).
Não deixa de ser interessante a razão fornecida por Freud: "Sou
hostil à fabricação de visões do mundo. Deixemos isso aos filósofos:
são eles que professam abertamente que a viagem da vida é imposs(vel
sem tal visão do mundo para dar-lhes informações sobre todas as coi­
sas . . . Quando aquele que anda na cscuridade canta, nega sua ansieda­
de , mas nem por isso consegue ver mais claro" (Inibições, Sintomas e
Ansiedade). Convencido que está de que somente a ciência não cons­
titui uma ilusão, e de que a ilusão consiste em acreditar que podemos
encontrar alhures o que ela não pode dar, Freud sustenta, até 1 930,
pelos menos, a necessidade de manter um discurso aberto e incerto:
"Por isso, não tenho a coragem de erigir-me em profeta diante de meus
irmãos. Curvo-me à sua censura de não estar em condições de fornecer­
lhes nenhum consolo. Porque, no fundo, é isso que todos desejam
apaixonadamente, tanto os revolucionários mais arrebatados, quanto os
mais bravos pietistas" (0 mal-estar na civilização, p. 1 70).
8 . Um dos grandes limites da Weltanschauung cientffica que
Freud reconhece reger a ciência psicanalftica consiste em fazer certas
analogias entre os fenômenos neuróticos e os diversos comportamentos
sociais, notadamente os que se manifestam no campo das práticas reli­
giosas. Diria que sua falha básica reside no fato de pretender explicar a
história em termos fundamentalmente não-históricos de uma teoria da
"natureza humana" . Ora, só posso considerar como um erro estratégi­
co toda tentativa de psicologização da sociedade, toda pretensão de
centrar as ciências do homem no psiquismo individual. Por maior que
seja o valor da ciência psicanalftica no interior de seus limites, uma
coisa precisa ficar clara: tais limites passam à margem do campo da
história e das realidades sociais. Ademais, precisamos estar conscientes

- 1 14 -
do seguinte fato: não existe uma "teoria psicanalftica da religião " .
Porque qualquer teoria d a religião, psicanalftica o u não, deveria per­
mitir-nos explicar o conjunto das dimensões do fato religioso, sua di­
versidade no espaço social e sua evolução histórica. Ora, a noção de
"neurose obsessional universal" da humanidade não responde a ne­
nhuma dessas exigências fundamentais. Freud imagina poder explicar a
prodigiosa variedade das formas da religião invocando "os dons indi­
viduais dos povos em questão". E é no "inconsciente dos povos" que
vai buscar a explicação para a raiz do anti-semitismo. E as razões que
fornece são as seguintes: "A inveja provocada por um povo que pre­
tendia ser o primogênito e o favorecido por Deus" ; "a desagradável
e inquietante impressão produzida pela circuncisão" ; "o ódio do cris­
tianismo pelo juda(smo" (Moisés e o monote(smo). 5
Outra inconsistência pode ser notada no modo como Freud explica
psicanaliticamente (cientificamente !) o processo histórico de degene­
rescência da religião. Sua explicação é simples: "A maioria das neuro­
ses infantis desaparece espontaneamente quando a criança cresce ; este
é o caso das neuroses obsessionais da infância". Ora, como a religião é
uma neurose obsessional universal da humanidade , a "profecia" de
Freud é a seguinte: "O abandono da religião se dará com a fatal inexo­
rabllidade de um processo de crescimento; e hoje, já nos encontramos
nessa fase da evolução" (0 Futuro de uma Ilusão). Assim, a degene­
rescência da religião se explica pelo fato de a humanidade ter sa(do da
"infância". Mas como a humanidade pode ter passado à idade adulta,
quando o próprio Freud reconhece que seu destino é dominado pela
"luta eterna entre o Eros e o instinto de destruição ou de morte" ? Co­
mo pode ter ela acedido à maturidade, quando Freud reconhece que
"os povos se encontram ainda hoje em fases de organização muito pri­
mitivas, numa etapa muito pouco avançada do caminho que conduz à
formação de unidades superiores" (Ensaias de psicanálise)? Para dizer
que a humanidade chegou hoje a um estágio de desenvolvimento bas­
tante avançado para prescindir da religião, Freud se baseia em sua
crença pessoal que, aliás, é a de Comte: em sua "lei dos três estados",
Comte acredita na degenerescência espontânea da religião. 6
Freud não percebeu que é a partir da História que se elucida o mo­
vimento da consciência. Tampouco compreendeu que a psicologia não
possui o segredo dos fatos humanos, porque este segredo não é de or­
dem psicológica. A psicanálise não pode reivindicar o papel explicati­
.
vo principal no campo das ciências do homem. É claro que, a partir do

- 1 15 -
século XIX, as ciências biológicas estabeleceram a origem animal do
homem e mostraram a necessidade de se colocar em termos biológicos
os problemas do ponto de panida da ontogênese e da filogênese da es­
pécie humana. Todavia, não podemos hoje compreender a passagem da
animal idade à humanidade apenas como complexificação evolutiva e
genética, mas como um processo dialttico no qual a continuidade das
modificações quantitativas "suporta" uma ruptura qualitativa permi­
tindo à humanidade, mesmo prolongando a animalidade em certos as­
pectos, constituir-se como algo distinto. E são os processos históricos
que fazem psiquicamente do homem adulto aquilo que ele é hoje. Neste
sentido, a fonte do dinamismo fundamental da personalidade humana
não se situa numa realidade psicológica, mas no mundo social. É a
· história que explica a psicologia, e não o contrário . Contudo, não basta
dizermos que a história encontra sua explicação, não no psiquismo dos
indivfduos, mas na dialética de suas relações constitutivas. Porque, pa­
ra tornar-se realmente "motor da história" , essa dialética deve passar
pelos indivfduos concretos. 7
9. Freud submete o sujeito humano , de origem biológica, à ordem
súnbólica, quer dizer, ao social enquanto tal. Neste sentido, é um pen­
sador "polftico"·. Em Totem e Tabu , por exemplo, ele mostra como de­
ve ser pensada a ruptura pela qual acontece e se perpetua a cultura. E
essa ruptura é o assassinato do "real" para erigir-se no simbólico que é
a realidade humana. Em O mal-estar na civilização, ele mostra os
efeitos da culpabilidade sobre nossas sociedades. Entre estes, destaca­
se a qualidade fundamental do homem: pulsão de vida/pulsão de morte.
Não podemos mais negar os efeitos perturbadores da psicanálise no
campo fechado das produções culturais. Depois de Freud, por e xemplo,
o homem se encontra confrontado com uma imagem dele mesmo tor­
nando irrisória a ilusão de uma plena consciência de si. E ao mostrar
como se efetua, pelo Édipo, o ingresso da criança na ordem simbólica
como sujeito, reconhece que o indivfduo constitui o efeito de uma es­
trutura social. Contudo, não se trata da estrutura social desta ou da­
quela sociedade particular. Trata-se da estrutura do social enquanto tal,
em sua "essência". Se não fosse assim, não poderfamos compreender
a afirmação da universalidade do complexo de Édipo. No entanto,
Freud pensa a história como repetição e pensa o devir no interior dessa
repetição. Tudo se passa como se cada sociedade tivesse que desempe­
nhar o mesmo papel, ou improvisar, num cenário sempre idêntico, uma
dramaturgia que a especifica como figura histórica particular. Mas isso

- 1 16 -
não nos leva a concluir pela impossibilidade de toda avaliação poiCtica.
Pelo fato de considerar a sociedade através da permanência dos jogos
do desejo e da lei, Freud não identifica uma sociedade fascista com
uma sociedade socialista e com uma sociedade l iberal. Sua rejeição das
grandes religiões "polfticas", acreditando numa sociedade de institui­
ções conformes ao desejo, não o leva a ignorar a diferença entre o tole­
rável e o intolerável. Acreditar que, se tudo não é poss(vel, nada resta­
ria, seria permanecer no universo infantil. 8
1 0. Algumas concl usões a que chega Freud poderiam constituir,
pelo menos , objeto de nossa reflexão: a) a finalidade da civi lização não
é a felicidade dos homens; consiste em sua submissão à ordem coletiva;
b) a luta contra as forças desagregadoras da civilização permite que
esta derive a agressividade humana para grupos exteriores, tomando
moralmente suportável a suspensão dos interditos que impedem de rea­
lizar-se a pulsão de morte; c) é ilusória a crença filosófica segundo a
qual o discurso verdadeiro pode dissipar o erro e os homens são, fun­
damentalmente, desejosos da verdade; d) por detrás dos discursos polf­
ticos e religiosos, dos apelos morais ao "amor da Humanidade", preci­
samos ouvir a voz de um discurso silenciado; e) o social remete ao
mistério biológico deste animal (o homem) que, em seu ser, . é marcado
por um "assassinato" permitindo-lhe aceder ao simbólico; f) o "bom"
poder é o menos totalitário, o mais aberto às contradições, o mais di­
versificado em suas prerrogativas econômicas, pol rticas etc . , numa so­
ciedade polite(sta . 9
1 1 . Não vamos discutir, aqui, sobre a validade ou não dessas con­
clusões. Isto nos levaria, e muito, a ultrapassar os limites de nossa
questão inicial. Contentemo-nos em analisar sumariamente a posição
epistemológica de Freud segundo a qual , em função de um progresso
real ou suposto da psicanálise, esta ciência teria encontrado a chave
explicativa de todos os problemas antropológicos, a partir de um ponto
de vista naturalista, separado de toda referência à filosofia. Como se
um dos efeitos dessa separação não consistisse no esquecimento ou no
"recalque " , pela psicanálise, de inúmeros pressupostos e impl icações
filosóficas presentes em seu discurso. Com efeito, Freud pretende que a
psicanálise cubra, não somente de direito, mas de fato, a totalidade das
manifestações do homem. Porque todas essas manifestações procedem
da organização, do funcionamento e da evolução de seu psiquismo. Por
outro lado, a psicanálise considera todas essas manifestações de um
ponto de vista altamente particular e em relação a uma práxis necessa-

- 1 17 -
riamente singular. Daí seu estranho estatuto epistemológico relativa­
mente ao domínio da filosofia.
1 2 . É claro que não estamos querendo negar a extraordinária con­
tribuição da psicanálise para a compreensão dos fenômenos sociais,
sejam eles econômicos, políticos ou religiosos. O que nos perguntamos
é se tem fundamento essa passagem do campo individual ao campo so­
cial. Pessoalmente, não creio na possibilidade real ou lógica de uma
redução do social ao inconsciente individual . Freud reconhece que a
sociedade é a realidade. Reconhece que a psicanálise pressupõe a so­
ciedade, que esta fornece ao indivíduo o conteúdo concreto do "princf­
pio de realidade" . Competiria a outras ciências o exame da sociedade.
No entanto, Freud reivindica o direito que tem a psicanálise de dizer
coisas sobre a religião, por exemplo, que constitui uma parte �ssencial
da realidade social. O que ele entende por "realidade" , por " socieda­
de" e por sua "história"? A "realidade" com a qual se defronta a so­
ciedade é a mesma que enfrenta o indivíduo? Claro que não , pois ela
nos remete a dois objetos distintos: a história e a biografia, a socieda­
de e o indivfduo. Não são "os homens", enquanto "seres de desejo",
que constroem a história. São os processos históricos que con stituem
psiquicamente o que os homens estão sendo. 1 0
Ora, como a psicanálise d e Freud se apresenta como uma teoria
geral do homem, e não somente como uma Ciência natural particular
estudando certos objetos (a teoria da infância e da doença mental, por
exemplo), não vejo como não pode culminar n um certo tipo de irracio­
nalismo. 1 1 Ao extrapolar o campo das chamadas descrições objetivas,
ela passa a ter um alcance filosófico, sobretudo na medida em que
constitui toda a psicologia a partir da doença mental e em que parece
identificar, como irmãs, razão e desrazão. Como essa teoria geral ca­
racteriza o homem?
a) pela existência, nele, de um sentido irtconsciente de seus atos;
sendo estes expressões de lapsos e de atos falhos, identificam-se , em
última instância, com os sintomas do doente que exprimem simbolica­
mente emoções que o homem não consegue verbalizar;
b) pela passividade do homem relativamente às pulsões origina­
riamente inconscientes, cujos conflitos forçam-no a instaurar um siste­
ma de defesa ilusório; neste sentido, todos os indiv(duos são "vítimas"
de um destino que não podem controlar;
c) pela dependência do homem adulto relativamente a uma infân­
cia da qual não consegue libertar-se; sempre e em toda parte (na políti-

- 1 18 -
ca, na religião e na cultura) ele repete o mesmo cenário familiar, não
conseguindo tornar-se verdadeiramente adulto;
d) pela predominância, nele, de uma afetividade "sofrida", domi­
nando e condicionando suas demais potencialidades. 1 2

• • •

Permanece uma questão: o que fazer? Claro que não temos resposta.
Tampouco acredito que Freud tenha dado uma que seja acabada. No
entanto, como constata uma semelhança muito grande entre a evolução
da civilização e a do indivíduo, pois ambas usam os mesmos meios de
ação, j ulga-se autorizado a fazer o seguinte diagnóstico: "A maioria
das civilizações ou das épocas culturais - mesmo a humanidade toda,
talvez - não se tornou neurótica sob a influência dos esforços da pró­
pria civilização?" Estaria ele imaginando uma psicanálise das socieda­
des neuróticas? Talvez. 1 3

NOTAS

1 . As resistências à psicanálise, 1 925. Numa carta a Martha Bernays ( 1 6 de


agosto de 1 882), Freud escreve: "A filosofia, que sempre imaginei como um
objetivo e como um refúgio para minha velhice, cada vez mais me fascina
todos os dias". Em outra carta (2 de abril de 1 896) declara: "Em meus anos
de juventude, só aspirei aos conhecimentos filosóficos e, agora, estou prestes
a realizar esse desejo, passando da medicina à filosofia". Bem diferente é a
posição de Lacan, beni mais tarde. Em suas "Respostas a estudantes de fi­
losofia sobre o objeto da psicanálise" (Cahiers pour fAnalyse, n9 3, maiO-ju­
nho de 1 966), diante da pergunta: "Até que ponto a psicanálise ou em que
sentido a psicanálise está em condições de dizer que a filosofia constitui uma
paranóia?" , confessa que essa questão não lhe agrada, embora dela tenha
tratado bastante. Mas responde dizendo que "a filosofia releva da paranóia,
releva da etapa selvagem da ironia freudiana. Certamente não é por acaso
que Freud a reserva ao inédito ( . . . ) Não sei o que se pode esperar do inte­
rior do ensino filosófico, mas tive recentemente uma experiência que me
deixou na dúvida: que a psicanálise não possa contribuir para aquilo que

- 1 19 -
chamamos de hermenêutica senão reduzindo a fllosofia a seus vínculos (atta­
ches) de obscurantismo".
la. O livro de Paul-Laurent Assoun, Freud, la philosophie et les philosophes
(P.U.F., 1 976) constitui um dos melhores estudos elucidando o pensamento
de Freud e os pressupostos .filosóficos de sua teoria psicanalítica (tradução
minha para o português, Francisco Alves, 1 978). Sua preocupação central
consiste em responder a duas questões que sempre atormentaram o fundador
da "ciência do inconsciente": a) qual o sentido da fllosofia? b) quem são os
fil6sofos? Trata-se de estabelecer as relações da psicanálise com a fllosofia.
O que se encontra em jogo, nessa obra, é uma investigação sobre a inteligi­
bilidade dos textos metapsicológicos nos quais se esboça a relação de Freud
com a fllosofia e com certos grandes ftl6sofos. Af são tratados os seguintes
problemas-desafio: 1. Em que consiste a crftica epistemol6gica da "concep­
ção de mundo" fllos6fica? 2. Em que consiste o diagn6stico pulsional sobre a
atividade fllosofante apresentada por Freud? 3. Que necessidade, para a
teorização freudiana, revela o recurso a sistemas fllos6ficos particulares? 4.
Qual o sentido da relação privilegiada que Freud instaura com Schope­
nhauer? A poiando-se no pr6prio Freud, o autor pretende mostrar que a crf­
tica do "consciencialismo" (fllosofia baseada na consciência) e a recusa da
Weltanschauung ("visão intuitiva do mundo") vão encontrar seu fundamento
no diagn6stico narcfsico; e que o limite da metapsicologia não pode encon­
trar sua chave senão na problemática epistemol6gica. Numa palavra, seu
objetivo é o de mostrar o lugar ideológico que condiciona a teorização analf­
tica, mediante este revelador privilegiado que é sua relação com a fllosofia.
2. Com efeito, é a partir de K ant que o fll6sofo se vê impossibilitado de fundar
a ciência (que progride) sobre a metaffsica (lugar onde se agita o combate
entre as teses). O empreendimento crftico tem por objetivo demarcar os do­
mínios. Não há outro conhecimento senão o fornecido pelas ciências. Mas o
conhecimento científico não é o conhecimento das coisas em si, do real nele
mesmo, mas apenas conhecimento dos fenômenos. Por isso, a ciência perde
toda legitimidade quando pretende falar para além dos fenômenos ou de toda
experiência possível. Contudo, se o saber se encontra totalmente do lado da
ciência, nem por isso o saber constitui o todo do pensamento nem tampouco
do destino do homem. Porque, limitando o saber, encontra-se a crença, diz
K ant. E para demonstrar a importância dessa limitação, escreve: "Supon­
do-se que nossa crítica não tenha feito a distinção que ela estabelece neces­
sariamente entre as coisas como objetos de experiência e essas mesmas coi­
sas como objetos em si, então deve-se estender a todas as coisas em geral,
consideradas como causas eficientes, o princípio da causalidade e, por con-

- 1 20 -
seguinte, o mecanismo natural que ele determina. Portanto, não poderia di­
zer do mesmo �f ( ) que sua vontade é livre e que, no entanto, ele é sub­
• . •

metido à necessidade fisica, isto é, que ele não é livre sem cair numa evidente
contradição" (prefácio à segunda edição da Crftica da razão pura). A ssim,
ao afirmar que o homem, apreendido nos quadros da experiência (no espaço
e no tempo), é apreendido como tomado na cadeia do determinismo, mas
que, pensado em si, pode ser pensado como sujeito livre, K ant evita a con­
tradição entre a legitimidade do conhecimento cientifico e a legitimidade da
crença moral. Dessa forma, a filosofia não pode mais construir, apoiada ape­
nas na razão, um discurso absolutamente verdadeiro do qual o discurso da
ciência seria apenas a realização parcial ou derivada. Doravante, o triunfo da
razão constitui o triunfo do empreendimento técnico e cientifico.
3. Pelo princípio monista, Freud se recusa a apresentar a psicanálise numa
ruptura com as ciências da natureza. Pelo contrário, seu modelo de inspira­
ção é o ffsico-qufmico, pois pretende explicar os processos psíquicos incons­
cientes segundo o ideal de inteligibilidade proposto pelas ciências físico­
químicas. Por sua vez, pelo princípio agnosticista, pretende construir uma
"p sicolQgia sem alma", vale dizer, uma psicologia sem nenhuma pretensão de
conhecer qualquer "coisa em si" (Alma ou Inconsciente), voltada inteira­
mente para uma certa "classe de fenômenos" devendo constituir a objetivi­
dade da "ciência psicanalítica".
4. Ap6s examinar, em seu longo estudo, "Os fundamentos ftlos6ficos da psica­
nálise", no qual estabelece os princípios pelos quais ela se articula, tanto em
sua formalidade quanto em sua temática, P.L. Assoun chega à conclusão (in
Histoire de la psychanalyse, t. I, Hachette, 1 982, p. 108- 1 09) de que o prin­
cfpio mais geral da psicanálise freudiana, o que lhe confere, não uma "pla­
taforma epistemol6gica", mas uma "16gica fundamental", é o da análise. Ao
intitular sua disciplina "Psico-análise", Freud toma a análise como o princí­
pio supremo da racionalidade. Ao reivindicar, para si, o tftulo de "analista",
declara: "Raramente sinto necessidade de sfntese. A unidade deste mundo
me aparece como evidente, não merecendo ser mencionada. O que me inte­
ressa é a separação e a organização daquilo que, de outra forma, se perderia
numa papa originária" (carta a Lou A ndreas-Salomé, 30 de julho de 1 9 1 5).
Numa outra carta, desta feita a Groddeck, enfatiza: "Tenho um talento par­
ticular para o consentimento fragmentário" ( 1 7 de abril de 1 92 1). A ssim,
a tomada de posição de Freud é em relação ao antagonismo assumido pela
hist6ria do Logos ftlos6fico entre a racionalidade analftica e a racionalidade
sintética. De forma alguma ele pretende procurar nenhum princípio suscep­
tível de organizar o Mundo ou o Ser. Está muito mais interessado por aquilo

- 121 -
que separa, que torna d(ferente, mas que te 'r condições de ser organizado.
Porque o princípio da descoberta não é o da sfntese, mas o da análise.
5. Sabemos que o último livro de Freud, Moisés e o monotefsmo ( 1 939) gira em
torno do conceito de analogia. Nele se ordenam a neurose individual, o re­
calque e a origem infantil da humanidade; e isto, numa articulação com a
cultura e com a neurose. Eis a problemática a partir da qual são invalidadas
as distinções entre o normal e o patol6gico e entre o passado e o presente. O
passado não desaparece. Ele se inscreve, de geração em geração, pela repeti­
ção do fato original. Freud começa a descrever o processo hist6rico da neu­
rose pelo relato do individual. Com efeito, o desenvolvimento individual
comporta uma origem perdida: o acontecimento traumático. Um perfodo de
defesa, a latência, encobre o traumatismo. No final do processo, a doença e
"tentativa de cura": unificação do Ego ameaçado pela repetição do trauma­
tismo. Em seguida, Freud passa da hist6ria individual à hist6ria coletiva. Ele
encontra na hist6ria original da humanidade o mesmo cenário: um trauma­
tismo original ou inicial: a morte do pai; a seguir, uma latência, perfodo de
amnésia hist6rica durante o qual se organizam as defesas sob a forma de ta­
bus: primeiras formas da organização social; finalmente, o recalcado retoma
e produz modificações estruturais. E Freud se põe, então, a elaborar uma
teoria geral do homem. E ele começa mostrando que, ap6s a morte do pai,
rituais regulares e iterativos são organizados para comemorar esse assassi­
nato. Um animal totem é sacrificado, substituindo o pai morto. E é a partir
dessa etapa arcaica que se desenvolve a religião: progressivamente, o ani­
mal-totem vai adquirindo forma humana, até alcançar a imagem monotefsta
de um deus- pai. Por isso, a religião se desenvolve como uma neurose, segun­
do o cenário que vai do traumatismo original ao retorno do recalcado, pas­
sando por um perfodo de latência. A través de mecanismos de deslocamento
análogos aos do sonho, Freud vai explicar a passagem do monotefsmo judai­
co à religião cristã. Ao levar sua análise até o ponto de clivagem entre natu­
reza e cultura, se converte num filósofo, elabora uma Weltanschauung, ape­
sar de todas as suas denegações.
Observemos, a prop6sito, que Freud pensa, em Totem e tabu, a origem
da sociedade. Estaria ele fazendo história? Por que ele procede a descrições
etnol6gicas de um estado-origem que talvez nem tenha existido? O que sig­
nifica pensar a origem? E por que apresentar como real uma hist6ria funda­
dora tão contestável no plano dos fatos? Que estatuto conferir a esta espécie
de "mito cientffico"? Todas essas questões são analisadas por P. Kaufmann
em Psychanalyse et théorie de la culture (Denoel-Gonthier, 1 974). Elucide­
mos apenas o significado do termo "origem". No contexto freudiano, a ori-

- 1 22 -
gem nada tem a ver com o começo, significa originário. No sentido de origi­
nário a origem é a busca do fundamento ou da essência, aquilo pelo qual o
objeto se torna inteligível, não um acontecimento passado. Ela fornece
o sempre já-a[ de toda hist6ria. Por isso, não depende da investigação hist6-
rica, mas de uma enquête atual. Em Totem e tabu, aquilo que é atingido é o
Édipo como originário, um Édipo que encarna a ordem do simb6lico.

Quanto à necessidade de uma historicidade remetendo a um acontecimento


real, Freud declara, em Moisés e o monote(smo: "O núcleo de verdade que
chamamos de verdade hist6rica (trata- se do assassinato original), vamos en­
contrá-lo nos dogmas das diversas religiões. Estes, confessemos, apresentam
o caráter de sintomas neur6ticos, mas escapam à maldição do isolamento in­
dividual enquanto fenômenos coletivos".
6. Não nos esqueçamos de que toda a demarche te6rica de Freud e a evolução
do movimento psicanalítico foram fortemente marcadas pela tradição cultu­
ral e religiosa do judaísmo. Apesar de sua permanente declaração de fé
ateísta, Freud se reconhece um judeu: " Meus pais eram judeus, eu mesmo
permaneci judeu" (Minha vida e a psicanálise). Suas origens religiosas re­
montam a seu pertencimento ao judaísmo. Torna-se membro ativo da Asso­
ciação judaica liberal B'nai B'rith. Admira Bonaparte e Cromwell enquanto
libertadores dos judeus. Durante sua infância, sofre bastante com o anti-se­
mitismo de Viena. Conta como seu pai foi humilhado em praça pública por
ser judeu: "A parece um cristão; de repente, ele joga meu boné na lama gri­
tando: 'Judeu, saia da calçada!' - E o que você fez? - Peguei meu boné, disse
meu pai com resignação" (A interpretação dos sonhos) Essa atitude contra­
dit6ria, vivida por Freud, reflete as contradições objetivas da pequena bur­
guesia judaica na monarquia austro-húngara. Judeu por sua hist6ria pessoal,
Freud se torna ateu por revolta. E se converte num crltico feroz da alienação
religiosa. A esse respeito, sua obra Moisés e o monoteísmo, concluída em seu
exflio londrino ( 1 939), tem por objetivo declarado desmistificar o persona­
gem de Moisés, de quem ele procura demonstrar a origem egípcia: "Privar
um povo do homem de quem se orgulha como o maior de seus fllhos não é
algo a ser alegre ou descuidadamente empreendido, e muito menos por al­
guém que, ele pr6prio, é um deles. Mas não podemos permitir que uma re­
flexão como esta nos induza a pôr de lado a verdade, em favor do que se su­
põe serem interesses nacionais" (Standard Edition, Imago, vol. X X III, p.
1 9). Assim, enquanto procura solapar os fundamentos hist6ricos do judaís­
mo, mostrando que M oisés era um egípcio, Freud assiste à ascensão do na­
zismo e à perseguição sistemática aos judeus. E explica a regressão do povo
alemão a uma barbárie quase pré-hist6rica. Para ele, os fenômenos religiosos

- 1 23 -
são con1paráveis às neuroses individuais. Por isso, eles são o resultado de um
recalque hist6rico. Portanto, se Freud não "renega" o judafsmo, é simples­
mente porque acredita obedecer às determinações hist6ricas de seu passado.
Mas ele critica a atitude judaica em relação à lei, à repressão cultural e a to­
dos os interditos: se "liberta", em parte, do recalque hist6rico. Donde defi­
nir-se como ':j/1{/eu in[id' - é infiel por seu ateísmo, mas permanece judeu
por seu passado coletivo c individual.
7. Sabemos que a teoria psicanalítica se articula sobre um processo que consti­
tui o cerne da anál ise fre u d ian a: o retom o do recalcado. Este mecanismo põe

em jogo uma conccp�,"ão do tmt po c da memória na qual a consciência apare­


ce como a 1111íscaru enganadora c como o traço efetivo de acontecimentos
que organizam o tm'S('It/r', Se o passado é recalcado, excluído do presente,
ele retoma suh- rcptidamcntc. Um exemplo caro a Freud é o da astúcia da
hist6ria: depois de ler sido assassinado, o pai de Hamlet retoma, como fan­
tasma, em uma outra cena; s6 en tão ele se torna a lei à qual seu filho obede­
ce. Neste sentido, os mortos "se põem a falar", não através do historiador,
mas através de um "isto laia" no t ra b a lho c nos silêncios do inconsciente. A o
comentar esse exemplo, M ichel d e Ccrtcau diz que, para Freud, a hist6ria é
"canibal" e que a memória se torna o campo fechado onde se opõem duas
operações contrárias: "o csquccirncnto, que não é uma passividade, uma per­
da, mas uma ação contra o passado; o t raço mnésico, que é o retorno do es­
quecido, isto é, uma ação, desse passado d o ra vantc forçado ao despistamen­
to". De um modo mais genérico, "toda ordem autônoma se constitui graças
àquilo que ela elimina, produzindo ll l l l /"( 'slo con de nado ao esquecimento;
mas o excluído se insinua novamente nesse l ug ar tJróprio, a ele remonta, o
inquieta, torna ilus6ria a consciência que tem o prese nte de estar em sua mo­
rada". Esse excluído se instala na casa como um "selvagem", como um "ob­
ceno" ou como uma "resistência" da "superstição" e afirma, contra a vonta­
de do proprietário (o eu), a lei do outro (" l 'sy c ha n alyse et histoire", in La
nouvelle histoire, Encyclopédie du savoir moderne, Retz, I 978, p. 477-487).
A este respeito, importa observar que a psicanálise e a historiografia
possuem duas maneiras distintas de distribuir o espaço da memória. Elas
pensam diferentemente a relação do passado com o presente: enquanto a psi­
canálise reconhece o passado no presente, a historiografia reconhece um ao
lado do outro; ela trata essa relação segundo o modo da imbricação (um no
lugar do outro), da repetição (um reproduz o outro de outra forma), do
equívoco e do qüiproqu6 (o que está "no lugar" de quê?). Por sua vez, a
historiografia considera essa relação segundo o modo da sucessividade (um
depois do outro), da correlação (proximidades mais ou menos grandes), do

- 1 24 -
efeito (um segue o outro) e da disjunção (ou um ou outro). S ão duas as es­
tratégias do tempo desenvolvendo-se no terreno de questões análogas: "Pro­
curar princípios e critérios em nome dos quais compreender as diferenças ou
assegurar continuidades entre a organização do atual e das configurações
antigas; fornecer valor explicativo ao passado e/ou tornar o presente capaz
de explicar o passado; reduzir as representações de ontem ou de hoje às suas
condições de produção; elaborar (de onde? como?) os modos de pensar e,
portanto, de superar a violência (os conflitos e os acasos da história), inclusi­
ve a violência que se articula no próprio pensamento; definir e construir o
relato que é, nas duas disciplinas, a forma privilegiada dada ao discurso da
elucidação" (M. de Certeau, op. cit., p. 478).
8. Freud pensa a história (notadamente em Totem e tabu, em Psicologia de gri t­
po e a análise do ego, em O futuro de uma ilusão e em O mal-estar na civili­
zação) como repetição. E pensa o devir no interior dessa repetição. A o
mostrar como s e efetua, pelo Édipo, o ingresso d a criança na ordem simbóli­
ca como sujeito, esclarece que o indivíduo é o efeito de uma estrutura social.
Não se trata de uma estrutura social determinada, mas da estrutura social
enquanto tal, ou seja, de sua essência. Freud fala de uma realidade histórica:
a do assassinato do macho dominador na horda primitiva. Trata-se de um
assassinato coletivo que nos impede de confundir a ordem individual da
neurose (que separa) e a ordem do social (que congrega). Os irmãos assassi­
nos só devoram em comum aquilo que mataram em comum. Neste sentido,
dizer que o assassinato se realizou "realmente" significa dizer que ele ins­
taurou o Social enquanto fundamento do Real. Nesse acontecimento, tudo
gravita em torno do Pai, porque a paterrudade supõe um ato de fé e de troca
da ordem social. Esta ordem social não nasce do assassinato do Pai, porque o
macho assassinado não é o "pai" da horda, mas aquele que a domina por suas
relações de força. O que é assassinado é a relação natural de dominação. E o
que resulta é o Pai simbólico, de quem surge a ordem social. Quando a cul­
tura mata a coisa, surge o símbolo. Mas como Freud explica o investimento
retroativo da função paterna sobre o genitor assassinado e devorado num
festim canibal? Pelo remorso dos irmãos, remorso este explicado por um
conflito intrapsíquico originário: o da pulsão de vida e o da pulsão de morte.
É nesse dualismo, que constitui a falha especffica da humanidade, que se
enrafza a ordem da cultura. No dizer do próprio Freud, "o sentimento de
culpabilidade é a expressão da luta eterna entre Eros e Thanatos". Essa cul­
pabilidade, que é como que consubstanciai ao social, explica a relação ambt­
gua que o homem mantém com os interditos, sem os quais não haveria vida
coletiva. E a história deve ser compreendida a partir dessa culpabilidade. O

- 1 25 -
mal-estar na civilização explicita seus efeitos na humanidade moderna.
Freud af fala de uma história que se opõe às filosofias que pretendem pensar
o devir humano segundo um eixo que vai das trevas à luz e que racionalizam
o mundo. Embora Freud reconheça, como Marx, que a história se desenrola
sobre várias cenas, ele não leva em conta o encadeamento que vai do ideoló­
gico ao econômico: apenas enxerta o imaginário numa realidade hipotética
ou, na hipótese da horda primitiva, mítica e cultural. Quanto a Marx, parte
de um real determinante, assim resumido por Engels: "Marx foi justamente o
primeiro a descobrir a lei segundo a qual todas as lutas históricas, quer sejam
conduzidas no terreno político, religioso, filosófico ou em qualquer domínio
ideológico, não constituem, de fato, senão a expressão mais ou menos clara
das lutas das classes sociais; lei em virtude da qual a existência dessas classes
e, por conseguinte, suas colisões, são, por sua vez, condicionadas pelo grau
de desenvolvimento de sua situação econômica, por seu modo de produção e
seu modo de troca, que deriva do precedente" (Prefácio de 1 885 ao 1 8 Bru­
mário).
9. É oportuno lembrar que Freud, em sua Psicologia de grupo e a análise do
ego (obra de 1 92 1), dedica algumas páginas à colocação do problema da na­
tureza e das funções da ideologia nas instituições sociais. Ao tomar por
exemplo duas instituições, o Exército e a Igreja, relança sua hipótese (for­
mulada_ em 1 907) de que, numa obra cultural, num romance ou numa reli­
gião, sempre podemos detectar uma problemática correspondendo a confli­
tos intrapsfquicos. E lembra ainda a necessidade de nos interrogarmos sobre
as funções das ideologias polfticas ou religiosas tanto de coesão quanto de
dissolução das instituições. Por isso, ele sugere que tais ideologias devam ter
por função manter os vínculos libidinais entre os subordinados e seus chefes,
assegurar a renovação dos investimentos positivos para com as autoridades e
manter os vínculos entre os sujeitos da instituição. Como se pode notar, essa
abordagem psicanalftica das ideologias supõe toda a teoria das produções
culturais, a teoria das relações entre os sujeitos e o social concebidos como
termos indissociáveis e inintelig!veis em sua distinção, bem como a teoria do
sujeito e do inconsciente. Trata-se de uma abordagem pondo em jogo, não
somente a teoria dos aparelhos simbólicos, mas a concepção mesma das rela­
ções sociais e a teoria do sujeito. E está na origem de várias pistas de pes­
quisa.
10. Ainda em Totem e tabu ( 1 9 1 3), livro que Freud considera uma tentativa de
"aplicar o método analítico a problemas que, vinculando-se à psicologia dos
povos, fazem-nos remontar às origens das instituições mais importantes de
nossa civilização: organização política, moral, religião, mas também interdi-

- 1 26 -
ção do incesto e remorso" (Cinq leçon sur la psychanalyse, Payot, 1 966, p.
1 1 3), elabora toda uma teoria das relações entre o individual e o coletivo,
vale dizer, entre a biografia e a historiografia. Suas intervenções na historio­
grafia são, na expressão de Michel de Certeau, "quase cirúrgicas". Suas
operações apresentam as seguintes características: a) ele invalida o corte en­
tre psicologia individual e psicologia coletiva; b)"considera o "patológico"
uma região onde os funcionamentos estruturais da experiência humana se
exacerbam e se desvelam" (desse ponto de vista, é apenas fenomenal a dis­
tinção entre nom1alidade e anormalidade); c) "ele apreende, na historicidade,
sua relação com crises que a organizam ou a deslocam. Ele descobre, em
acontecimentos decisivos (relacionais e conflitivos, originalmente genealógi­
cos e sexuais), os pontos de constituição de estruturas psíquicas" (
• • • ); d) ele
modifica o "gênero" historiográfico, "nele introduzindo a necessidade, para
o analista, de marcar seu lugar (afetivo, imaginário, simbólico), e faz dessa
explicitação a condição de possibilidade de uma lucidez", substituindo, por
um discurso "objetivo" (visando dizer a realidade), o discurso "ficcional"
(op. cit., p. 478-479). - Observemos ainda que, em "Psicologia de grupo e a
análise do ego" ( 1921), Freud defende a seguinte tese: "A atitude do indiví­
duo em relação a seus pais, a seus irmãos e irmãs, à pessoa amada, a seu mé­
dico, em suma, todas as relações que até o presente constituíram o objeto das
pesquisas psicanalfticas podem, a justo título, ser consideradas como fenô­
menos sociais" (Essais de psychanalyse, Payot, 1 967, p. 83). Esses fenôme­
nos sociais só se distinguem dos fenômenos tratados pela psicologia coletiva
por um "fator numérico" não pertinente do ponto de vista das estruturas
psíquicas.
1 1 . Com efeito, uma das orientações atuais da psicanálise que, reduzindo o indi­
víduo àquilo que o inconsciente o determina, consiste em articular-se com os
discursos excluídos pela racionalidade técnica e científica: do sonho, da fá­
bula e do mito. Contrariamente à postura kantiana, defendendo os direitos e
os deveres da consciência esclarecida (Aujklarung) - plena liberdade e res­
ponsabilidade, autonomia do saber, possibilidade de uma "marcha" permi­
tindo ao homem "sair da menoridade" -, a análise freudiana remete o adulto
à sua "menoridade" infantil, o saber aos mecanismos pulsionais que o deter­
minam, a liberdade à lei do inconsciente e o progresso a acontecimentos ori­
ginários. Por sua vez, os discursos do sonho, da fábula e do mito convertem­
se no espaço mesmo onde se elabora toda uma crftica à sociedade burguesa
tecnicizada. Ao retomar como instância simbólica os mitos e os ritos recal­
cados pela racionalidade científica e técnica, a psicanálise introduz na histo­
ricidade, não somente a persistência do irracional, mas a persistência do

- 1 27 -
princfpio do prazer freqüentemente recalcado pela ética do progresso (cf. M.
Certeau, op. cit., p. 487).
1 2. A teoria freudiana da natureza humana é muito dependente de sua concep­
ção da neurose, guiada por dois princípios: a) o neurótico é alguém que ten­
tou recalcar uma tendência, um desejo ou uma lembrança traumatizante,
para evitar um conflito com outras tendências mais fundamentais; e que ex­
prime, sob a forma de sintomas, aquilo que não pode formular consciente­
mente (as obsessões, as fobias, os atos falhos, etc.); b) ou então, é o indiví­
duo que, face a um presente extremamente diffcil de ser enfrentado, regride
até um ponto de seu passado onde sua afetividade permaneceu profunda­
mente fixada. Em suas Reflexões sobre a guerra e a morte, durante a pri­
meira grande guerra, Freud declara: "A importância mesma conferida ao
mandamento: ' Não matarás', assegura-nos de que descendemos de uma li­
nhagem interminável de gerações de assassinos que tinham o amor do assas­
sínio no sangue como talvez tenhamos nós". Dez anos mais tarde, em O mal­
estar na civilização, enfatiza: " A civilização está perpetuamente ameaçada
de desintegração pelo fato dessa hostilidade fundamental que levanta os ho­
mens uns contra os outros ( ) A tendência à agressão é uma disposição
• • •

inata, independente, instintiva do homem". E nos anos 30, respondendo a


uma questão de Einstein, "por que a guerra?", declara simplesmente: "Não
se trata de nos desembaraçarmos totalmente das pulsões agressivas do ho­
mem. Basta tentarmos desviá-Ias de tal forma que não tenham mais necessi­
dade de se exprimir pela guerra". E num de seus últimos escritos, exclama:
"Teremos ainda que lutar durante muito tempo contra os perigos que a na­
tureza intratável do homem se ponha no caminho de toda comunidade so­
cial". Por sua vez, a tese central de O mal-estar na civilização diz: aquilo que
ameaça "o progresso da civilização", aquilo que perturba "a vida em co­
mum", são "as pulsões humanas de agressão e de autodestruição"; que a luta
é "eterna entre o Eros e o instinto de destruição ou de morte. Este conflito
surgiu desde o instante em que se impôs aos homens a tarefa de viverem em
comum".
Assim, o ponto de vista a partir do qual Freud pretende nos esclarecer
sobre a significação geral da história humana é que "a agressividade consti­
tui uma disposição instintiva, primeira e autônoma do ser humano". Declara
ainda não compreender mais que "possamos permanecer cegos à ubiqüidade
da agressão e da destruição não erotizadas e negligenciar dar-lhes o lugar
que elas merecem na interpretação dos fenômenos da vida". Os homens que
preferem os contos de fada não percebem "a tendência inata do homem à
maldade, à agressão, à destruição e também à crueldade" (Malaise dans la

- 1 28 -
civilisation, trad. fr., p. 75-77). Donde Freud conceber ou representar a so­
ciedade segundo o modelo tipicamente idealista e burguês de um pacto social
concluído voluntariamente entre os indivíduos a fim de, coletivamente, esca­
parem às dificuldades inerentes ao estado de natureza: "É precisamente por
causa desses perigos que a natureza nos ameaça que nós nos aproximamos e
criamos a civilização que, entre outras razões de ser, deve permitir-nos viver
em comum. Na verdade, a tarefa principal da civilização, sua razão de ser
essencial, consiste em nos proteger contra a natureza" (L'A venir cf une illu­
sion, trad. fr., p. 22). Portanto, de um lado, temos os indivíduos considerados
apenas sob o ângulo das pulsões, como seres de desejos estruturados em sua
infância (por suas relações familiares); do outro, uma sociedade reduzida a
algumas de suas superestruturas (direito, moral), identificada, em tiltima
instância, a uma Lei proibitiva: eis a imagem idealista e simplista através da
qual Freud explica "a significação da evolução da civilização" (0 mal-estar
na civilização).
Importa observar ainda que, na medida em que a psicanálise se apre­
senta como uma teoria geral do homem, não se contentando em descrever e
em estudar cientificamente certos objetos (a teoria da infância e da doença
mental, por exemplo), corre o risco de desembocar num certo irracionalismo
filosófico de caracterizar o homem, a partir de extrapolações de descrições
ditas objetivas, seja pela existência de um sentido inconsciente de seus atos,
seja por sua passividade relativamente a pulsões originariamente incons­
cientes, seja por sua dependência em relação a uma infância da qual jamais
pôde libertar-se inteiramente, seja, enfim, pela predominância, nele (ho­
mem), de uma afetividade "sofrida" capaz de dominar e de condicionar to­
das as suas outras potencialidades. O alcance filosófico dessa teoria consiste
em constituir toda a psicologia a partir da doença mental e de fundá-la no
determinismo psicológico da afetividade.
1 3. Diríamos que, do ponto de vista filosófico, o pensamento de Freud não é na­
da otimista. Pelo contrário, é até mesmo bastante pessimista. Está muito lon­
ge dos "profetismos" preocupados em nos fornecer razões para viver, ra­
zões de esperar e razões para morrer. Atribui essa tarefa às filosofias. As­
sim, em "Inibições, Sintomas e Ansiedade", declara: "Sou hostil à fabricação
de visões de mundo. Deixemos aos filósofos, que professam abertamente
que a viagem da vida é impossível sem um tal Baedecker para dar-lhes in­
formações sobre todas as coisas ( ) Quando aquele que caminha na obscu­
• • •

ridade canta, nega sua ansiedade, mas nem por isso ele vê mais claro". Para
Freud, só a ciência não é uma ilusão. A ilusão consiste em acreditarmos que
podemos encontrar alhures aquilo que ela não pode dar. Em O mal-estar na

- 1 29 -
civilização, escreve: "Por isso não tenho a coragem de erigir-me em profeta
diante de meus irmãos; e me inclino diante da crítica de não estar em condi­
ções de trazer-lhes nenhum consolo. Porque é isso que todos desejam, não
somente os mais selvagens revolucionários, como também os mais ardorosos
pietistas". Pelo menos, o pensamento de Freud teve o mérito de nos mostrar
que: a) na esfera do poUtico, as relações econômicas não são as únicas a te­
rem uma influência decisiva; b) a finalidade da civilização não consiste na
felicidade dos homens; c) nas sociedades, o homem é um lobo para os ho­
mens; d) constitui uma ilusão fllos6fica acreditar que o discurso verdadeiro
pode dissipar o erro e que os homens são, por essência, desejosos da verda­
_de; d) o social remete ao mistério biol6gico, pois o sujeito humano é engen­
drado pela submissão da ordem biol6gica (a pulsão) à ordem simb6lica, isto
é, ao social enquanto tal.

- 1 30 -
APÊNDICE I

MUTAÇÕES E ORIENTAÇÕES DA PSICANÁLISE

Em 1902, é fundada uma Sociedade Psicológica da Quarta-Feira (reu­


nião de alguns estudiosos em casa de Freud todas as quartas-feiras) .
Em 1 907, impulsionada por Jung, é fundada em Zurique a Sociedade
Freud. Em 1 908 , é fundada a Sociedade Psicanalftica de Viena, dela
fazendo parte Freud, Jung, Adler, Rank (secretário do grupo), Reik,
Lou Andreas-Salomé , etc. A criação da Associação Psicanal ftica Inter­
nacional se dá em 1 9 10, associação dotada de um "chefe" detendo
meios de controle e destinada a "favorecer a ajuda mdtua de seus
membros".
As coisas andam depressa. Apesar das resistências afetivas. Apesar
dos escândalos ou por causa deles, os psicanalistas começam a ser for­
mados. Mais lentamente que a teoria, a prática psicanalftica começa a
se difundir. Nas conferências realizadas nos Estados Unidos em 1 909,
Freud espera a consagração universitária não recebida em seu país . Em
1 9 1 9 , ao prefaciar o livro de T. Reik, O ritual: psicanálise dos ritos
religiosos, Freud reconhece que "a mitologia, a história da literatura e
a das religiões pareciam ser os domínios os mais facilmente acessí­
veis". E felicita Reik de "ter incessantemente guardado presentes ao
espírito as relações entre os tempos pré-históricos e os primitivos de
hoje, bem como as relações entre os neuróticos". Esses três domínios
("a mitologia, a história da literatura e das religiões") já eram tratados
nas reuniões das quartas-feiras e na Sociedade Psicanalftica de Viena.
Dois fatos devem logo ser ressaltados. O primeiro é a rápida ex­
pansão da psicanálise nos países anglo-saxões. O segundo, logo en­
frentado por Freud, são as mdltiplas dissidências, cisões e discórdias no
movimento psicanalftico. Para isso, não faltam explicações: o caráter au­
toritário de Freud, os problemas "filiais" de seus discípulos ou as ques­
tões de rivalidade pessoal. No entanto, importa lembrar que muitos dos

- 13 1 -
que se uniram a Freud, no primeiro momento, eram médicos sem for­
mação analítica e que nem mesmo fizeram uma auto-análise (como
Freud). Ademais, a psicanálise atraCa muitas personalidades estrangei­
ras, freqüentemente individualistas e fortemente inclinadas a se con­
verterem em chefes de um novo movimento, em fundadores de uma no­
va escola. Este fenômeno perdura ainda hoje. Não são poucos os agru­
pamentos freudianos que se repartem o terreno da psicanálise e fazem
uma partilha teórica da "ciência" freudiana. Desde o início, Freud re­
siste a essa fragmentação, a essa tentativa de dissidência e a esse mo­
vimento de ruptura. Mas em vão. As dissidências se instalam. E se
instauram as derivas. Historiemos, muito sucintamente, as mais trau­
matizantes ao "ouro puro da psicanálise" que Freud tanto tentou pre­
servar:
1 . Em primeiro lugar, a situação ideológica em que se deu a ruptu­
ra de Adler e de Jung ( 1 9 1 1 - 1 9 1 3). O ponto de resistência desses dois
disdpulos foi a sexualidade. Eles abandonam esse terreno em proveito
de uma psicologia (Adler) e de uma mística (Jung). Freud reage incon­
tinente. Assim, em Minha vida e a psicarUflise ( 1 925), declara: "Jung
tentou uma transposição dos fatos analíticos para o modo abstrato, im­
pessoal, sem levar em conta a história do indivíduo, pelo quê esperava
poupar-se do reconhecimento da sexualidade infantil e do complexo de
Édipo ao mesmo tempo que da necessidade da análise da criança. Adler
pareceu afastar-se ainda mais da psicanálise: rejeitou em bloco a im­
portância da sexualidade, vinculou exclusivamente a formação do ca­
ráter e da neurose à vontade de poder dos homens e à sua necessidade
de compensar sua inferioridade constitucional; ele lançou pela janela
todas as aquisições psicológicas da psicanálise". Aliás, desde 1 9 14, na
HisüJria do movimento psicanalftico, Freud já denunciava "as duas
tendências retrógradas que se afastam da psicanálise" e "afirmam cer­
tos pontos de vista levantados, por assim dizer, sub specie aeternita­
tis" . 1
2. Em seguida, o enxerto do freudo-marxismo, notadamente mar­
cuseano e reichiano. Com efeito, o filósofo Marcuse e o símbolo do in­
dividualismo anárquico Reich pretenderam fazer uma "s(ntese" entre
marxismo e psicanálise. O mal-entendido se deu em torno da noção de
repressão: eles assimilaram o processo do recalque (que funciona no
n(vel ps(quico) e a repressão política e ideológica. E protestam contra
a repressão política e ideológica da sexualidade, pois vêem na libera­
ção sexual o pivô da libertação dos oprimidos e de uma revolução so-

- 1 32 -
cial. A psicologia de massas do fascismo ( 1 933) de Reich e Eros e ci­
vilização ( 1 95 5 ) de Marcuse são expressões típicas do freudo-marxis­
mo. Reich e Marcuse se tomam, como diria Bertold B recht, "escultores

de imagem do mundo" procurando libertar o proletariado mas sem le­


varem em conta os processos de libertação econômica e poHtica.
3. Em terceiro lugar, o desenvolvimento da psicanálise nos Esta­
dos Unidos. Ela a( se implanta e é redefinida numa configuração "ma­
de in USA", onde o empirismo experimental de uma neurologia psi­
quiátrica faz certa aliança com os "curas d'alma" de tipo religioso.
Neste país, onde é notória a confiança do povo nos recursos profundos
do Ego e na capacidade que tem a sociedade de assegurar a "self-ex­
pression" dos indivíduos, integrando-os, o "casamento" da teoria freu­
diana com o behaviorismo provocou uma alteração importante na psi­
canálise. A guinada da psicanálise se deu, sobretudo, no eixo da moral.
E não foram poucas as deformações práticas e teóricas do "ouro puro
da psicanálise". A "peste" que Freud acreditava trazer aos americanos
foi logo por eles apropriada e convertida nas mais variadas "receitas
adaptativas". E não poucos foram os psicanalistas que se tomaram
conselheiros privados, mediadores familiares ou "confessores" laicos
procurando adaptar os indivíduos à sociedade, proporcionar-lhes um
"melhor-viver" reforçando seus mecanismos de defesa, assegurando­
lhes um Ego mais "forte" e resistente às ameaças do meio. No ano
mesmo em que morreu Freud ( 1 939), Hartmann publicou seu famoso
livro Ego psychology and the problem of adaptation fundando no Eu
uma psicologia adaptativa mais tarde combatida por Lacan: o Eu, que
deve "desalojar o Id", toma-se uma instância central e, mesmo, se des­
dobra: uma parte desse Eu, que é independente, não provém do conflito
entre o Id e o Superego, mas se forma progressivamente seguindo as
etapas da formação do psiquismo; é o "Eu autônomo" que deve ser
fortificado para ajudar o paciente diante das dificuldades encontradas
em seu contato com a realidade exterior. Contudo, o Eu é ainda porta­
dor de uma energia "neutralizada", resultado da anulação da agressivi­
dade pelas pulsões libidinais: o Eu é transformado em instância ou em
algo neutro (no sentido latino de nem um nem outro), nem Superego
nem �d, situando-se num no man' s land afetivo e ideológico.
4. Finalmente, o movimento de "retomo a Freud" e a refundição
de sua doutrina com a intervenção conceitual da lingü{stica, da etnolo­
gia e da filosofia hegeliana levados a efeito por Jacques Lacan (Ver
supra "A mutação lacaniana").

- 1 33 -
E hoje em dia, quais as orientações fundamentais da psicanálise? O
que ela se tornou depois que, em 1 97 1 , pela primeira vez, realizou-se
em Viena, na Viena de Freud, o Congresso Internacional de Psicanáli­
se, congregando quase três mil psicanalistas? Vindos do mundo todo,
esses psicanalistas não fizeram uma espécie de retorno à casa paterna
ou de ..peregrinação" a um lugar .. sagrado" susceptfvel de reinspirar a
"horda" dos herdeiros do Mestre? Com isso, constata Michel de Cer­
teau, a psicanálise ingressa na história. E alteram-se suas relações com
a história. A partir de então, ela se orienta em três direções básicas
que, em substância, são as seguintes:

1 . Uma história da psicandlise


A psicanálise dos fundadores fazia da história uma regtao a
ser conquistada. Em nossos dias, a história se torna uma relação da
psicanálise consigo mesma, de sua origem com seus desenvolvi­
mentos, de suas teorias com suas instituições, da relação transfe­
rencial com filiações, etc. Claro que se pode vincular Freud a uma
tradição judaica marcada pelo sabatismo ( .. a lei se realiza pela
transgressão", diz um aforisma sabatista) ou reconhecer os v(ncu­
los de Lacan com o surrealismo ou com uma linguagem cristã
substituindo o corpo perdido pelo fogos. Mas uma psicanálise da
história se elabora, antes de tudo, pela elucidação dos déficits da
teoria no que concerne: a) às relações de transferência e de con­
flito a partir dos quais se constroem os discursos anaUticos; b) ao
funcionamento das Escolas freudianas e às formas de associação e
de poder, habilitando ao ..exercfcio" da profissão de psicanalista;
c) às possibilidades dos procedimentos analfticos nas instituições
psiquiátricas onde são freqüentes as alianças administrativas da
poUtica e da terapêutica.

2. Uma biografia autocr(tica


Grande é o interesse pela biografia. Ela constitui uma autocrf­
tica da sociedade liberal-burguesa. O indiv(duo, figura epistemo­
lógica e histórica da modernidade ocidental, base da economia ca­
pitalista e da poUtica democrática, torna-se a cena onde se desfa­
zem as evidências de seus produtores e beneficiários. Nascida da e
na Aujkliirung, a obra de Freud inverte o gesto instaurador da
consciência esclarecida. A Kant, que pregava os direitos e os de­
veres dessa consciência, convidando o homem a "sair de sua me-

- 1 34 -
noridade", a análise freudiana responde remetendo o adulto à sua
"menoridade" infantil, o saber aos mecanismos pulsionais e o pro­
gresso a acontecimentos originários. A biografia psicanalítica ope­
ra uma inversão ou constata uma erosão de seus postulados: ela
desfaz, do interior, a figura histórica e social que constitui a base
do sistema no qual se desenvolve o freudismo. Mesmo que as
coerções sociais levem a biografia a fazer a apologia do indivíduo,
ela assume a forma de autocrítica e sua narrativa tem valor de anti­
mito.

3 . Uma história da natureza


Ao reduzir o indivíduo àquilo que o inconsciente (o outro) o
determina, a psicanálise retoma às configurações simbólicas que
articulavam as práticas sociais nas civilizações tradicionais. Os
discursos excluídos pela razão esclarecida (o sonho, a fábula, o
mito) convertem-se no espaço mesmo onde se elabora a crítica da
sociedade burguesa e técnica. Claro que os teólogos do freudismo
procuraram mudar essa linguagem em positividade científica. Mas
isto não é tão grave. Ao retomar como instâncias simbólicas os
mitos e os ritos recalcados pela razão, a crítica freudiana pode hoje
ter a aparência de uma antropologia. Ela inaugura algo que pode­
ria ser chamado de nova história da "natureza" e que introduz na
historicidade: a) em primeiro lugar, a persistência do irracional,
constituindo uma violência no interior mesmo da cientificidade e
da teoria; b) em seguida, uma dinâmica da natureza (as pulsões, os
afetos, o libidinoso) articulada com a linguagem, o que contradiz
as ideologias da história privilegiando as relações do homem com
o homem e reduzindo a natureza a um terreno passivo e indefini­
damente aberto às conquistas científicas e sociais; c) finalmente, a
pertinência do gozo (orgástico, festivo, etc.) - reprimido pela ética
ascética do progresso -, portanto, a subversão que o princípio do
prazer insinua no sistema da cultura (Ver Michel de Certeau, "Psy­
chanalyse (Histoire et)", in La nouvelle histoire, Les Encyclope­
dies du Savoir Moderne, Paris, Retz/CEPL, 1978, p. 477-487).

- 135 -
NOTA

1. Jung e Adler foram os dois mais importantes discípulos deserdados pelo


Mestre. Jung enraíza o movimento de dessexualização num cristianismo mí­
tico privando a psicanálise de sua novidade científica a fim de tratá-Ia no
campo da alquimia, de uma "ciência" do imaginário. Ele abandona a teoria
freudiana e vai em busca, como indica o título de seu livro, das Metamoifoses
da alma e seus sfmbolos. Quanto a Adler, vincula todas as afirmações freu­
dianas concernentes à sexualidade infantil a uma inferioridade constitucional
orgânica, como indica o tftulo de seu livro A compensação psfquica do esta­
do de inferioridade dos órgãos. Dez anos mais tarde ( 1 923), dois outros dis­
cípulos, apesar de não serem deserdados, desviam-se da teoria da regressão,
central na demarche freudiana: Otto Rank persegue a regressão até o nasci­
mento da criança; Sandor Ferenczi a faz recuar para além do ventre mater­
no. Para Rank, a história de Édipo, como todo mito, conta o relato do retor­
no à mãe: a cegueira do herói reconstitui a obscuridade do corpo perdido da
mãe; Édipo apenas reproduz o traumatismo da separação. Para Ferenczi, o
que mais importa é a biologia da sexualidade; trata-se de articular a relação
entre o complexo de Édipo e a tendência biológica em estado de calma pré­
natal. Quanto a Melanie Klein, ela ocupa um lugar bastante específico no
movimento psicanalítico, vale dizer, o lugar que lhe conferem a prática e a
.
teoria da psicanálise das crianças. Ao explorar as regiões obscuras dos fan­
tasmas e do "mundo" infantil, ela elabora conceitos inéditos e introduz
·
transformações no sistema freudiano. Seu ponto de partida é a angústia de­
corrente do choque do nascimento da criança e de sua separação do corpo
materno • . .

- 1 36 -
APÊNDICE 11

FREUD, JUNG E A CIÊNCIA

Em nome da cientificidade da psicanálise, Freud deserdou seu disd­


pulo Jung. Ele quis fundar a psicanálise como ciência e, como tal, tor­
ná-la reconhecida pela comunidade cientffica de sua época. Tudo fez
para que, em tomo de seu método, houvesse um consenso quanto a seu
caráter racional e cientlfico. Para tanto, fez apelo a interpretações cau­
salistas físicas. O causalismo determinista perpassa todo o seu método.
Porque, a príorí, Freud acreditava que todo comportamento ou todo
discurso, mesmo aparentemente fortuito ou sem significação, precisava
ser expl icado. E o papel da interpretação e da teoria era o de descobrir
suas causas ocultas. Por isso, procurou reduzir essas causas a meca­
nismos físicos. Este postulado fisicalista aparece claramente na utiliza­
ção do conceito de "energia psíquica", importante para o enraizamento
da psicanálise nas ciências da natureza. Contra o qual se insurge Jung,
acusando Freud de adotar um "preconceito materialista" impedindo-o
de reconhecer a seriedade da "parapsicologia" e a "realidade dos fe­
nômenos ocultos" (Ma víe trad. fr. , Gallimard, 1 966, p. 242). Mas não
,

é em tomo dessa noção de "energia psíquica" que se cristaliza a oposi­


ção fundamental entre Freud e Jung. A oposição se dá em tomo da se­
xualidade como intermediário biológico entre o "ffsico" e o "psfqui­
co", pois, para Freud, a teoria energética da libido e das pulsões cons­
titu(a uma espécie de garantia de fisicalismo e, mesmo, de materialis­
mo, que tanto procurou preservar. Donde a reação de Jung ao que ele
chama de "dogmatismo" sem justificação cientffica de seu Mestre, co­
mo podemos notar no relato da conversa na qual Freud o precavinha
contra a maré negra (vaso negro ou lama negra) do ocultismo: 1

Lembro-me ainda vivamente de Freud dizendo-me: "Meu caro


Jung, prometa-me jamais abandonar a teoria sexual. É o mais es-

- 1 37 -
sencial ! Veja, devemos fazer dela um dogma, um bastião inque­
brantável". Ele me dizia isso cheio de paixão e com o tom de um
pai dizendo: "Prometa-me uma coisa, meu caro filho: vá todos os
domingos à igreja!" Um pouco surpreso, eu lhe perguntei: "Um
bastião contra o quê?" Ele me respondeu: "Contra a onda de vaso
negro de . . . " Aqui ele hesitou um momento para acrescentar:
". . . do ocultismo". O que inicialmente me alarmou foi o "bas­
tião" e o "dogma"; um dogma, isto é, uma profissão de fé indis­
cut(vel, só o impomos lá onde queremos uma vez por todas esma­
gar uma drtvida. Isso nada tem de um julgamento cientrfico, mas
depende unicamente de uma vontade pessoal de poder ( . . . )
Freud parecia entender por "ocultismo" mais ou menos tudo o
que a filosofia e a religião - bem como a parapsicologia que nas­
cia por essa época - podiam dizer da alma. Para mim, a teoria se­
xual era tão "oculta" - vale dizer, não demonstrada, simples hi­
pótese possível - quanto muitas outras concepções especulativas.
Para mim, uma verdade cientrfica era uma hipótese momentanea­
mente satisfatória, mas não um artigo de fé eternamente válido.
Algo sobretudo me preocupava: o amargor de Freud. Por ocasião
de nosso primeiro encontro, ele já me surpreendeu. Por muito
tempo me foi incompreens(vel até que compreendi que se relacio­
nava com sua atitude em relação à sexualidade. Para Freud, sem
ddvida, a sexualidade era um numinosum; contudo, em sua termi­
nologia e em sua teoria, ela se exprime exclusivamente enquanto
função biológica. Só o entusiasmo com que ele falava dela per­
mitia concluir que tendências mais profundas ainda ressoavam
nele. Em suma, ele queria ensinar - pelo menos é o que me pare­
cia - que, considerada do interior, a sexualidade engloba também
a espiritualidade ou possui uma significação intr(nseca. Mas sua
terminologia concretista era demasiado restrita para poder formu­
lar essa idéia. De sorte que tive dele a impressão que, no fundo,
trabalhava de encontro a seu próprio objetivo e de encontro a si
mesmo; ora, existe um maior amargor que o de um homem que é
para si mesmo seu mais ferrenho inimigo? Para retomar suas pró­
prias palavras, ele se sentia ameaçado por "uma onda de lama ne­
gra", justamente ele que, antes de qualquer outro, havia tentado
penetrar e tirar a limpo as negras profundezas.
Freud j amais se perguntou por que ele precisava continua­
mente falar do sexo, por que esse pensamento o havia a tal ponto

- 138 -
cativado. Jamais ele se deu conta de que a "monotonia da inter­
pretação" traduzia uma fuga diante de si mesmo ou diante dessa
outra parte dele que talvez devêssemos chamar de "m(stica". Ora,
sem reconhecer esse lado de sua personalidade, era-lhe impossf­
vel pôr-se em harmonia consigo mesmo. Ele era cego em relação
ao paradoxo e à ambigüidade dos conte6dos do inconsciente, e
não sabia que tudo o que dele surge possui um alto e um baixo,
um interior e um exterior. Quando falamos apenas do aspecto ex­
terior - é o que fazia Freud -, só levamos em consideração uma
6nica metade e, conseqüência inevitável, nasce uma reação no in­
consciente (Ma vie, op. cit., p. 1 77- 1 80).

Esse julgamento de Jung é bastante severo e, talvez, injusto. Porque,


na realidade, o que Freud queria, antes de tudo, era que seu discfpulo
guardasse a cabeça fria e que, à custa de tanto querer compreender,
não viesse a sacrificar a causa da compreensão. Ele estava muito mais
preocupado em salvar, não o contel1do da compreensão, mas seu valor,
vale dizer, a natureza da explicação e seu método. Eis o critério para
diferenciar a racionalidade cientffica da magia e do mito: o caráter lo­
cal e incompleto da explicação cient(fica, por oposição à completude e
à universalidade da explicação mftica. A atitude de Freud em relação
ao mito e às suas poss(veis relações com a ciência foi a de tentar salva­
guardar um �todo analftico, quer dizer, diferenciador do espiritual e
do corporal. Querendo ser, não um filósofo, mas um homem de ciência,
acreditava que o 6nico critério de demarcação e de identificação cient(­
fica residia no reconhecimento pela comunidade cient(fica de seu tem­
po. Contrariamente a Jung, que sacrificou o rigor da psicanálise à ri­
queza de seus conteúdos, Freud preferiu sacrificar a riqueza ao rigor
cientffico do determinismo causalista ffsico. Donde ser justificável, do
ponto de vista do método, seu medo quase pânico de deixar-se submer­
gir pela "lama negra do ocultismo". E é justamente essa atitude que faz
de Freud um homem de ciência. Em outras palavras, eJe é um cientista
muito mais por sua metodologia de trabalho do que pelos conteúdos de
suas teorias. Por isso, sua tentativa de fundar a psicanálise como uma
disciplina verdadeiramente cientffica, contra "a lama negra do ocultis­
mo", não foi um simples capricho de um homem autoritário, mas cons­
titu(a, para ele, um elemento fundamental de uma demarche, tendo ne­
cessidade, para tomar-se socialmente aceita, de receber o reconheci­
mento da comunidade cient(fica e filosófica de seu tempo. Do ponto de

- 1 39 -
vista do conte11do, é poss(vel que Jung tenha razão em suas crfticas ao
monismo freudiano. Do ponto de vista estratégico, porém, foi pelo
método de pesquisa que Freud pretendeu elevar a psicanálise ao nfvel
da cientificidade. E é por isso que a psicanálise "devia opor-se à sua
pr6pria ortodoxia de contelldo, isto é, a toda tentação de fixá-lo num
corpus de ensinamentos verdadeiros e definitivos; para tanto, instituir
uma ortodoxia de método que s6 pode aparecer arbitrária àqueles para
os quais o objetivo s6 pode consistir em atingir a Verdade da Realidade
Ultima" (H. Atlan, A tort et à raison, Seuil, 1 986, p. 223).
Em Minha vida e a psicam1lise ( 1925), Freud critica Jung por ta­
zer uma "transposição dos fatos anaHticos sobre o mundo abstrato, im­
pessoal, sem levar em conta a hist6ria do indivfduo", razão pela qual
ele desconhece a sexualidade infantil e o complexo de Édipo. Com
efeito, Jung transforma o fantasma em "arquétipo" e procura as causas
das perturbações individuais numa hist6ria arcaica. Com isso, converte
a psicanálise numa tilosofia da cultura. Ao relacionar os trabalhos dos
mit6logos e dos filósofos, utilizados para descrever os traços de figuras
mfticas .e enunciar generalidades sobre a relação entre indivfduo e co­
letividade, ele vê no inconsciente coletivo o reservatório das imagens
individuais. Donde ele negar a sexualidade infantil. Porque está con­
vencido de que "os conflitos elementares dos seres humanos conser­
vam uma identidade independente do tempo e do espaço", pois "uma
comunidade indissol11vel nos une aos homens da Antiguidade" (Meta­
morfoses e sfmbolos da libido). E esse desvio para o lado dos arquéti­
pos universais tem conseqüências sobre a prática analftica. Assim, Jung
defende uma auto-análise sem transferência, convertendo a psicanálise
numa atividade auto-educativa, moral e religiosa. O psicanalista se tor­
na uma espécie de "curador das almas": "O problema da cura é um
problema religioso", declara Jung. Donde a reação virulenta de Freud
contra a tentação de seu discfpulo de se submergir na "lama negra do
ocultismo" , de abandonar a psicanálise em prol de uma "psicologia
anaHtica" e de cair num "espiritualismo" nada tendo a ver com o espf­
rito cientffico.'

- 140 -
NOTAS

1 . Importa observar que a psicanálise desempenhou um papel importante, já na


época de Freud, nessa tentativa de se buscar uma unidade entre uma verdade
crítica desmistificadora (''verdadeira", porque científica) e um discurso ou
uma prática dizendo respeito ao vivido dos indivíduos. Ela queria superar a
alternativa entre "cientificamente verdadeiro" (não implicando os indiví­
duos) e "cientificamente falso" (implicando o vivido dos indivíduos). Freud
não se conforma quando Jung lhe pede autorização para explorar "o oculto"
e a astrologia. Diz Jung: "N6s deveremos também conquistar o ocultismo, a
partir da teoria da libido. Oriento-me atualmente na astrologia, cujo conhe­
cimento me parece indispensável para a compreensão da mitologia. Há coisas
surpreendentemente estranhas nessas obscuras paragens. Deixa-me, eu lhe
peço, vagar sem preocupações nessas infinidades" (Correspondanee; Paris,
Gallimard, 1 976, vol. 2, p. 1 73). A esse pedido de Jung, Freud responde de
modo ambíguo, invocando a reputação cientffica de seu disdpulo, que cor­
reria o risco de ser manchada: "Sei que suas tendências mais íntimas levam­
no ao estudo do oculto ( ) Contra isso, nada podemos fazer, pois cada um
• • •

age corretamente seguindo o encadeamento de seus impulsos. A reputação


que lhe vale a Dementia resistirá um bom momento à injt1ria de "místico".
S6 que, não fique lá em baixo nessas colônias tropicais, trata-se de governar
em casa" (Ibidem). Pouco tempo depois, Freud escreveu a Ferenczi: "Jung
escreve que n6s devemos também conquistar o ocultismo, e pede a permis­
são para tentar uma expedição no reino da mística. Percebo que não posso
detê-los, nem um nem o outro. Procedam, pelo menos, de comum acordo.
São expedições perigosas e não posso acompanhá-los nisso" (grifo nosso).
2. A ruptura de Carl Gustav Jung (psicanalista e ft16sofo suíço: 1 875- 1 961)
com seu mestre Freud constitui o mais espetacular cisma da psicanálise. A
causa desse cisma não foi somente a personalidade forte de Jung (médico
famoso, de cultura vastíssima e disdpulo predileto de Freud), mas, sobretu­
do, a originalidade de seus pontos de vista, notadamente sobre o modo de
compreensão da estrutura mental. Em seu entender, essa estrutura é com­
posta de três instâncias fundamentais: a) a primeira instância é o consciente,
cujo centro é o Ego; e o conjunto das funções de relação desse Ego com o
mundo dos objetos constitui a persona; b) a segunda é o insconsciente pes­
soal, cujos contet1dos são adquiridos, sendo formado por elementos recalca­
dos ao longo da hist6ria do indivíduo; c) a terceira, enfim, é o inconsciente
coletivo, cujos contet1dos são especfficos da raça e cujo nt1cleo jamais se tor-

- 14 1 -
nará consciente; este inconsciente é estruturado por arquétipos (propensões
a sempre repetir as mesmas imagens míticas ou imagens análogas), vale di­
zer, disposições hereditárias a reagir, exprimindo-se em imagens simbólicas
coletivas (as obras mais importantes de Jung são: Teoria psicanalftica, O
homem à descoberta de sua alma, Metamoifose da alma e de seus s(mbolos,
Introdução à essência da mitologia e O inconsciente na vida psfquica normal
e anormal).

- 1 42 -
APÊNDICE III

INCONSCIENTE E DIALÉTICA

O objetivo deste apêndice é o de esboçar uma sa(da para o confronto


entre dois modos de conceber a real infra-estrutura da personalidade: o
que pretende encontrá-la nos desejos inconscientes do psiquismo hu­
mano (posição assumida por Freud) e o que acredita descobri-la no
processo histórico das relações sociais de produção (teoria defendida
por Marx). Meu ponto de partida reside na compreensão da metáfora da
câmara obscura, constru(da para explicar a passagem do obscuro (in­
consciente) ao claro (consciente).
Originariamente, a câmara obscura era uma máquina utilizada
pelos · pintores (Leonardo da Vinci, por exemplo) para imitar a nature­
za. Era um aparelho de decalque e de transparência capaz de revelar o

acordo do homem com o mundo. Era uma espécie de olho sem ponto de
vista. Em última instância, era um aparelho comparável ao olhar de
Deus sobre o universo. É a partir do século XIX que essa metáfora
passa a adquirir um sentido negativo: a obscuridade constitui o ele­
mento primeiro e insuperável por qualquer procedimento teórico ou por
um puro e simples desvelamento. O aparelho de clivagem passa a ser o
de um recalque originário e indestrut(vel. Em Marx, a câmara obscura
constitui a metáfora da inversão ideológica. A ciência não é mais espe­
culativa nem tampouco especular. Embora seu sonho seja o de passar
de um "quarto obscuro" a um "quarto claro", somente as transforma­
ções práticas conduzem ao dia das relações transparentes e racionais. O
progresso cientrfico ou teórico não dissipa as fantasmagorias ideológi­
cas. Porque o sentido claro não preexiste à obscuridade ideológica.
Toda "verdade" é fruto de um trabalho de transformação. A clareza é
um produto do tempo. Não é conquistada pela resolução de contradi­
ções teóricas, mas por transformações de ordem prática.

- 1 43 -
Embora Marx prefira falar de consciência ideo16gica, ao invés de
inconsciente de classe, nele a câmara obscura opera à maneira de um
inconsciente. Quanto a Freud, de modo expl(cito e reiterado, descreve
o inconsciente com a ajuda dessa metáfora. Todavia, preocupado com o
rigor cient(fico, ele a substitui pelo modelo <:Jo aparelho fotográfico.
Mas a diferença entre as duas metáforas é mfnima: a imagem ffsica tor­
na-se uma impressão qufmica. Por intermédio da noção de clichê, a teo­
ria da visão permanece a mesma: ver é sempre obter um duplo. Ora,
quando Freud utiliza o modelo do aparelho fotográfico, é para mostrar
que todo fenômeno psfquico passa necessariamente, em primeiro lugar,
por uma fase inconsciente, pela obscuridade, pelo negativo, antes de
ter acesso à consciência, de revelar-se na clareza do positivo. Contudo,
assim como a imagem negativa não se transforma necessariamente em
imagem positiva, da mesma forma o processo psfquico inconsciente não
se transforma obrigatoriamente em processo consciente. Porque entre
os dois processos interpõem-se forças operando uma seleção, forças
estas identificadas nas imagens da censura, do guardião e do examina­
dor, presentes na entrada · da antecâmara negra e proibindo que certas
pulsões tenham acesso ao salão claro da consciência.
Essas imagens servem para descrever o caráter conflitivo do psi­
quismo. Na metáfora fotográfica, por exemplo, o "negativo" tem uma
conotação pejorativa: está ligado à obscuridade, à antecâmara, peça re­
servada ao camareiro. Quanto à consciência, caracterizada pela clareza,
pela lucidez e pelo "positivo", encontra-se num lugar mais nobre, no
salão, pois ela é a mestra. Freud pensa todo o sistema psfquico (incons­
ciente e consciente) através de uma representação espacial. A este res­
peito, seu texto é claro:

"Assimilamos o sistema do inconsciente a uma grande antecâmara


na qual as tendências psfquicas se apertam, como seres vivos.
Cont(gua a essa antecâmara, encontra-se outra peça, mais estreita,
uma espécie de salão, onde habita a consciência ( ... ) Mas na en­
trada da antecâmara, no salão, vigia um guardião que inspeciona
toda tendência psfquica, impõe-lhe uma censura, impedindo-a de
entrar no salão, caso ela não lhe agrade (._) Tudo depende do
gráu de vigilância e de sua perspicácia. As tendências que se en­
contram na antecâmara reservada ao inconsciente escapam ao
olhar do consciente que mora na peça vizinha ( ) Posso assegu­
..•

rar-lhe que esta hipótese bruta de dois lugares, com o guardião

-144 -
postando-se no limiar entre duas peças, e com a consciência de­
sempenhando o papel de espectadora no fundo da segunda peça,
fornece uma idéia muito aproximada do estado de coisa real"
'(lntroduction à la psychanalyse, Payot, p. 275).

Esta posição poderia induzir-nos a crer que Freud concebe o psiquismo


submetido à mesma finalidade quanto a proposta pela dialética hegelia­
na: passar da obscuridade à luz através de uma progressiva revelação
do Espfrito a si mesmo. O tempo psfquico seria linear: a) o tempo da
infância, o da impressão conferindo uma imagem negativa (segundo o
modelo fotográfico); b) o tempo de latência, da revelação (fotográfica)
ou do crescimento ; c) o tempo da imagem positiva marcado pela passa­
gem da obscuridade à luz, da infância à idade adulta. A imagem positi­
va, réplica do negativo, implica que "aquilo que está no fim já se en­
contra no começo". A revelação nada acrescentaria. Permitiria apenas
tomar claro o obscuro.
Ora, se entendermos por dialttica, seja o movimento racional per­
mitindo o ultrapassamento de uma contradição, seja o método e o pro­
cesso do próprio movimento histórico, vale dizer, o método da teoria
segundo a qual o modo de produção da vida material condiciona em
dltima instância o processo de conjunto da vida social, intelectual, po­
Irtica e psfquica, o problema que se coloca é o de saber se existe uma
relação dialética entre o Inconsciente e o Consciente.
Será que podemos fazer uma leitura hegeliana de Freud? Creio que
não. Porque, no aparelho psfquico, a substituição do negativo pelo po­
sitivo não é nem necessária nem tampouco dialética. O complexo de
Édipo, por exemplo, não tem origem, pois é originário: não tem um
começo, um infcio, não é um acontecimento passado que não mais
existe; como o originário, é um fundamento, uma essência, aquilo pelo
quê o objeto se torna inteligfvel. Também o recalque é uma realidade
psfquica originária, nele havendo algo que jamais acede à consciência.
Por sua vez, a pulsão de morte, como princ fpio de economia generali­
zada, impede que confundamos o negativo freudiano com o negativo
hegeliano. A passagem à consciência não depende de um critério lógi­
co, mas de uma seleção implicando conflitos de forças não dialetizá­
veis. Enfim, passar do negativo ao positivo não é tomar consciência de
um sentido preexistente, luz ou verdade da razão que teria sofrido um
desvio para melhor ser recuperada. A passagem à clareza é feita por
uma demarche prática: a cura analftica. Só se obtém a clareza por trans-

- 145 -
formações práticas, não pela resolução de contradições teóricas. Não é
por uma câmara lúcida que se "revela" a câmara obscura. Somente
a transformação das relações de forças é capaz de conduzir à clareza.
Portanto, passar da obscuridade à luz não é descobrir ou reconhecer um
sentido já presente, um sentido claro que preexistiria à obscuridade do
inconsciente (Freud) ou da ideologia (Marx). Significa construir um
sentido que jamais existiu enquanto tal. Ao estudar o retomo do repri­
mido, Freud declara:

"O que as crianças experimentaram na idade de dois anos e não


compreenderam nunca precisa ser recordado por elas, exceto em
sonhos; elas só podem vir a saber disso através do tratamento psi­
canal(tico" (Moists e o monote(smo, Edição Standard, Imago
Editora, vol. XXIII, p. 1 49).

Diferentemente de Hegel e de Marx, Freud não pensa a História como


movimento, mas como repetição. Ele pensa o devir no interior mesmo
dessa repetição. Tudo se passa como se cada sociedade tivesse que de­
sempenhar o mesmo papel e tivesse de improvisar, sobre um cenário
sempre idêntico, uma dramaturgia especificando-a como figura históri­
ca particular. Toda a sua metapsicologia se constrói a partir das pro­
priedades lógicas e cronologicamente espedficas do inconsciente. E
este inconsciente é pensado dentro de uma teoria geral que o apresenta
como eterno, não no sentido em que transcende a história ou encontra­
se fora dela, mas em que é onipresente e imutável em sua forma ao
longo da história. Enquanto tal, escapa à contradição e às vicissitudes
do tempo. Nele não há negação, não há d6vida nem tampouco grau de
certeza. O que nele existem são conte6dos mais ou menos investidos.
Quanto ao conceito de "negação", Freud o transforma: durante o pro­
cesso analCtico, ele é o enunciado de uma resistência, provando exata­
mente o contrário daquilo que pretendia provar. Sendo assim, a nega­
ção se reduz a uma denegação e, quando pensada em sua articulação
com o inconsciente, converte-se na "aceitação" do recalcado. Por se­
rem intemporais, não ordenados no tempo e não modificados pelo
acontecer histórico, os processos do sistema inconsciente escapam ao
modo dialético de se pensar.
É claro que, no desenrolar do processo analCtico, o passado retoma
no tempo da vida cotidiana. Também o recalque de um acontecimento
definitivamente desaparecido introduz um anacronismo na biografia in-

- 146 -
dividual. Ademais, a ordem cronológica de uma vida é completamente
transformada pelo inconsciente, cuja produção sintomática tem por
função fazer surgir o peso do passado mal vivido sobre um presente
tampouco bem vivido. Portanto, no inconsciente tudo se conserva, tudo
se inscreve. E o esquecimento não é um apagamento desses traços, mas
o recobrimento da ordem causal que os fez se inscreverem. Donde se
poder dizer que se efetua uma relação com o tempo, mas ela depende
do processo secundário, não do primário. Se, no sistema inconsciente,
há uma grande mobilidade do investimento, permitindo os desloca­
mentos, os conflitos e os elos relacionais entre objetos ("processo pri­
mário"), o "pr_ocesso secundário" se encontra do lado da constituição
de procedimentos lógicos, de que a elaboração consciente constitui a
dltima produção. Por isso, Freud substitui a realidade exterior pela
"realidade psfquica", esse anteparo interposto entre o real e o sujeito
que o vive. A noção de fantasma é a que melhor explícita a distância
entre realidade psfquica e realidade exterior. O fantasma é um anteparo
que separa radicalmente o sujeito do mundo em que ele vive. Mas esta
separação converte-se em proteção: tudo se passa como se, para Freud,
o real exterior fosse extremamente duro para ser suportado pelo sistema
psfquico. Razão pela qual elabora defesas e sistemas, de que o recalque
constitui um dos mais importantes pivôs. Tais sistemas correspondem
às tópicas: lugares figurados espacialmente, nos quais se encontram as
intâncias intermediárias entre o Inconsciente, o sujeito e o real.
Dando um passo à frente, ousaria dizer que, na medida em que a
teoria do inconsciente parece conduzir a uma psicologização do social,
a uma biologização do psiquismo e a uma naturalização do humano,
nega o caráter fundamentalmente histórico dos fatos humanos. Conse­
qüentemente, leva à crença numa natureza humana imutável em seu
fundo. Um dos riscos que corre a psicanálise consiste em fazer uma
generalização apressada permitindo-lhe concluir, da relativa permanên­
cia de estruturações infantis, à invariância do psiquismo humano e, até
mesmo, da sociedade humana. Nesta armadilha caiu a antropologia es­
truturalista de Lévi-Strauss, compreendendo o tempo como simples de­
senrolar, na duração, de propriedades invariáveis do universo. Para
evitar que a psicanálise caia na ideologia naturalista, seja através do
biologismo, seja do psicologismo ou de uma interpretação estruturalis­
ta, precisaríamos estar de posse de uma teoria c ientffica capaz de arti­
cular a estruturação infantil do psiquismo e a estruturação da persona­
lidade desenvolvida ou madura. Ao que parece, essa teoria ainda está

- 147 -
por ser elaborada de modo satisfatório. Em todo caso, deveria levar em
conta que a base da personalidade madura não coincide com a da per­
sonalidade infantil. Evidentemente, a personalidade infantil permanece
o ponto de partida da biografia. Mas não constitui a base efetiva da
personalidade madura. Portanto, o modo de eficácia do "infantil" não
coincide com o da "infra-estrutura".
Desde 1 9 1 2, em Totem e Tabu, Freud afirma que a psicanálise
"descobriu o mais remoto determinismo e o mais profundo dos atos e
formações ps(quicos". Nas tHtimas páginas desse livro, conclui dizendo
que "encontramos no complexo de Édipo os começos ao mesmo tempo
da religião, da moral, da sociedade e da arte''. E para evitar qualquer
equ(voco, precisa que compete � psicanálise assumir o papel explicati­
vo principal, não somente dos indiv(duos, mas também da sociedade
em geral. Esta tese visa desqualificar teoricamente, de antemão, toda
argumentação contrária, apresentada como manifestação de uma "re­
sistência afetiva". Sobre essa tese, Freud jamais variou. Assim, 1 5
anos depois, e m Psicanálise e medicina, volta a insistir: "Enquanto
psicologia das profundezas, doutrina do inconsciente, a psicanálise po­
de tornar-se indispensável a todas as ciências que tratam da gênese da
civilização humana e de suas grandes instituições, tais como a arte, a
religião e ordem social" (Ma vie et la psychanalyse, Gallimard, 1 949,
p. 235). Por exemplo, toda vez que ele aborda conflitos sociais ou po­
Hticos, jamais os considera como contradições entre realidadt. s sociais
(classes, Estados, nações), mas sempre como figuras de um eterno con­
fronto entre os indivfduos e a sociedade: todo conflito social é reduzido
a um combate entre o indivíduo e a sociedade. E a sociedade é pensada
e assimilada a uma instituição ético-jurfdica cuja função proibitiva ou
repressiva é de tipo paternal. Da( a explicação, pelo complexo de Édi­
po, da guerra de 1 9 14, do fascismo, do anti-semitismo ou do bolche­
vismo.
Não creio que a psicanálise tenha condições de desempenhar o pa­
pel explicativo principal em matéria de fatos humanos. Tampouco
acredito que seja o materialismo histórico que poderá dizer a última
palavra sobre a estrutura de conjunto do campo das ciências do homem.
Falta-nos ainda uma teoria cientrfica capaz de articular a estruturação
do psiquismo e a estruturação das relações sociais. Enquanto isso, os
psicanalistas acusam os partidários do método dialético de ocultarem o
papel fundamental do desejo. E fornecem mesmo uma explicação para
tal ocultamento: a resistência afetiva dos dialéticos. Por sua vez, os

- 148 -
marxistas acusam a psicanálise de ignorar a importância fundamental
das relações de produção. E têm uma explicação para esse fato: a
ideologia burguesa na qual se funda a psicanálise. Como sair do impas­
se? Talvez reconhecendo que essa simetria seja falaciosa, pois ambas
as acusações não se referem ao mesmo objeto: "o homem". Referem-se
a dois objetos distintos, aos quais o conceito " homem" nos remete :
o indivíduo e a sociedade, a biografia e a história.
Enquanto a psicanálise pretende explicar a história pela psicologia,
a dialética explica a psicologia pela história. A primeira se interessa
por um aspecto espec ífico do psiquismo, cuja dependência ein relação à
história não é direta nem tampouco evidente. E sua posição originária
não pode ser confundida com uma função infra-estrutural no psiquismo
em geral . Donde ser discutível dizer que Marx e Freud dissiparam, do
mesmo modo, a ilusão do sujeito pensante: o primeiro tem uma concep­
ção de-centrada da história, o segundo uma concepção de-centrada do
psiquismo. Entre os dois há mais oposições que homologias. A concep­
ção freudiana do psiquismo é relaciona!. Enquanto tal, mascara as rela­
ções sociais objetivas que, na concepção marxista, constituem a base
real de todo de-centramento. É claro que Freud não nega que o indiví­
duo seja o efeito de uma estrutura social. O problema é que essa estru­
tura não é a desta ou daquela sociedade histórica particular. Trata-se da
estrutura do social enquanto tal, vale dizer, em sua essência. Se não
fosse assim, o que poderia explicar a afinnação da uni versalidade do
complexo de Édipo, por exemplo?
O que postula o método dialético, centrado na teoria (ou ciência)
das relações de produção e de troca, é que compt;!te ao processo histó­
rico fazer psiquicamente do homem aquilo que ele realmente é. Em ou­
tras palavras : a fonte das mudanças sociais e da resolução dos conflitos
não se encontra no indivíduo, em nenhuma realidade psicológica, mas
no mundo social e em suas contradições. É nesse mundo que iremos
encontrar a real infra-estrutura da personalidade. Contudo, não basta
dizer que a história encontra sua explicação última, não no psiquismo
dos indiv íduos, mas na dialética de sua relações constitutivas. Para tor­
nar-se motor da história, essa dialética precisa levar em conta os indi­
víduos concretos, mas nega a possibilidade de uma articulação direta
da estruturação inconsciente dos desejos e das relações intra-estruturais
de produção. O simples acoplamento dessas duas estruturações consti­
tui o fundo das mais variadas posições denominadas "freudo-marxis­
tas", responsáveis por toda uma série de malabarismos teóricos, entre

- 149 -
os quais podemos destacar: a) a proibição do incesto seria a forma pri­
meira e o centro de toda frustração social; b) o princípio de realidade
seria a expressão mais generalizada da opressão de classes; c) o recal­
que ou a repressão sexual seriam semelhantes à exploração do trabalho
assalariado; d) a força de trabalho nada mais seria senão a libido su­
blimada, etc. Todas essas homologias culminariam na proclamação da
chamada "revolução sexual", esta se apresentando como o corolário e
como o critério da verdadeira "revolução socialista".
W. Reich constitui um dos melhores exemplos dessa posição. Com
efeito, ele pensa ter estabelecido o caráter "objetivo" e "eminente­
mente revolucionário" da psicanálise. Tal afirmação é tão falsa quanto
a asserção contrária, porque confunde planos fundamentalmente dife­
rentes. Sem dúvida, a revolução socialista deve ter sobre a vida sexual
efeitos diretos (pela transformação das relações sociais, jurídicas, fa­
miliares, etc.) e indiretos (pela modificação da estrutura mesma das
personalidades e de suas trocas) , no sentido emancipador que é o seu.
Contudo, falar da revolução sexual e conferir-lhe um estatuto homólo­
go ao da revolução social é misturar os caminhos. No fundo, o que
pretendem os partidários da revolução sexual é contestar vigorosamente
o marxismo em nome de seu aprofundamento "radical ": a "raiz", para
"o homem", estaria no desejo e em suas manifestações de tipo indivi­
dualista. A significação ideológica dessa postura freudo-revoluciona­
lista consiste em desviar os rumos da revolução social em direção a
uma festividade libertária que, em última análise, nada mais é que a
expressão da crise geral das relações burguesas entre os indivíduos,
nos quais repercutem os efeitos mais ou menos derivados, como frus­
trações, das novas formas de opressão do atual sistema capitalista. Este
sistema, ao conferir o primado ao indivíduo sobre as relações sociais, e
ao permitir que o desejo seja elevado ao nível de infra-estrutura, forja
uma ideologia cujo sentido pol(tico consiste em restaurar, de forma new
look, o velho ponto de vista do indivíduo burguês. Ademais, consiste
em reduzir os esforços de libertação de "o homem" às dimensões de
uma revolução que nada revoluciona quanto ao essencial. A raiz dessa
confusão deve ser procurada, mais uma vez, na psicologização da es­
sência humana. E claro que tudo isso não diz respeito a inúmeros psi­
canalistas sérios. O fato, porém, é que a psicanálise tem servido de ba­
se "teórica" para todo um tipo de festividade anàrco-nietzscheana fa­
zendo o jogo de certo individualismo burguês bem-pensante. A saída
do impasse exige que essa questão não seja escamoteada. Melhor ain-

- 1 50 -
da, que seja bem colocada para, em seguida, ser procedida uma crítica
permanente e rigorosa das superestruturas que freiam, bloqueiam e pa­
ralisam o exercício da liberdade criadora dos homens, vivendo em so­
ciedade, não somente para desvelar as "coisas" que essa sociedade
oculta, silencia e recalca, mas para re velar a significação profunda das
ações humanas e das produções intelectuais em nosso atual momento
histórico.

Sobre essa questão do freudo-marxismo, ver:

- M ARCUSE, H., Éros et civilisation, trad. fr., Éditions de Minuit, 1 97 1 .


- REICH, W . , La revolution sexuelle, trad. fr., Éditions Anthropos, 1 97 1 .
- REICH, W . , La psychologie de masse du fascisme, Payot, 1972.
- FROMM, E., La crise de la psychanalyse, trad. fr., Anthropos, 1 97 1 .
- SEVE, L., "Psychanalyse et materialisme historique", in Pour une critique
marxiste de la théorie psychanalytique, Éditions Sociales, 1977.
- ROU ANET, S.P., Teoria crftica e psicanálise, Tempo Brasileiro, 1983.

- 1 51 -
APÊNDICE IV

A CRÍTICA NIETZSCHEANA AO MORALISMO

Cuidado com os sábios! Eles te odeiam, porque são estéreis! Eles têm
os olhos frios e secos. Diante deles, todo pássaro é depenado. Eles se
vangloriam de não mentir. M as a incapacidade de mentir ainda está
muito longe do amor da verdade ( ... ) Desconfia daqueles cujo ins­
tinto de punir é poderoso.

NIETZSCHE

Não é fácil sistematizar a cr(tica nietzscheana ao moralismo da cons­


ciência idealista. Porque sistematizar Nietzsche já s ignifica traí-lo. Por
isso, longe de nós a pretensão de apresentar o pensamento organizado
desse filósofo iconoclasta, demolidor de ídolos ou destruidor de ilu­
sões, que invade o mundo intelectual europeu , nas 1Htimas décadas do
século XIX , como uma torrente avassaladora, colocando em questão,
não somente a veracidade do sujeito pensante ou da consciência, mas
todo o saber instituído e institucionalizado de sua época. Juntamente
com Marx e Freud, Friedrich Nietzsche ( 1 844- 1900) pode justamente
ser considerado um pensador de importância decisiva para que o ho­
mem pudesse tomar consciência de sua falsa consciência ou de sua
consciência como mentira e fonte de ilusões. Os três autores são ico­
noclastas da consciência, na medida em que destróem seus ídolos e
desmistificam suas ilusões . Instauram uma filosofia, não mais da dt'ivi­
da, mas da suspeita . 1
Embora os três divirjam em muitos aspectos, podem ser considera­
dos dentre os melhores exegetas do homem moderno. O que eles ata­
cam, em primeiro lugar, é a ilusão da consciência de si. Esta nada mais
é que a superação da ilusão da coisa. A ssim como as coisas não são o

- 152 -
que aparecem, da mesma forma a consciência não se identifica com
aquilo que se manifesta ou se nos apresenta. Corno ela não é mais o
que poderfarnos acreditar, mas o que deverfarnos ter pensado, instaura­
se urna nova relação entre o patente ou manifesto e o latente ou oculto.
Tal relação corresponde àquilo que a consciência intufra entre a apa­
rência e a realidade da coisa. Assim, a categoria essencial da consciên­
cia passa a ser a relação oculto/mostrado, isto é, simulado/manifesto. E
no projeto que os três autores tentam construir, por caminhos diferen­
tes, de urna ciência mediata do sentido, dora vante irredutível à cons­
ciência imediata, há todo um esforço para fazerem coincidir seus méto­
dos "conscientes" de decifração com o trabalho "inconsciente" da ci­
fração que eles atribuem, respecti vamente , ao ser social (Marx) , ao psi­
quismo inconsciente (Freud) e à vontade de poder (Nietzsche). Seu
ponto de partida é a suspeita em relação às ilusões da consciência. Mas
dão prosseguimento a seus respectivos empreendimentos analisando as
astlkias dos processos de decifração da consciência. Mas não se limi­
tam a ser seus meros detratores.

"O que pretende Marx, diz P. Ricoeur, é liberar a práxis pelo co­
nhecimento da necessidade. Mas essa liberação é inseparável de
urna 'tornada de consciência' que é urna réplica vitoriosa das mis­
tificações da consciência falsa. O que pretende Nietzsche é o au­
mento do poder do homem, a restauração de sua força; mas o que
pretende dizer vontade de poder, deve ser recoberto pela media­
ção dps enigmas do 'super-homem' , do 'eterno retomo' e de 'Dio­
nfsio' ( ... ) O que pretende Freud é que o analisando, ao fazer seu
o sentido que lhe era estranho, amplie seu campo de consciência,
viva melhor e, finalmente, seja um pouco mais livre e, se possí­
vel, um pouco mais feliz" . 2

Nietzsche não se define por ser um filósofo abstrato da consciência Ii­


bertária e de sua autarquia moral. Ele tem consciência de ser, não so­
mente consciência, mas homem: vida e animalidade. Talvez por isso
fale de " vontade de poder" , de urna vontade concreta de carregar con­
sigo, não tanto a liberdade, energia por demais desencarnada da cons­
ciência, quanto do ser humano em toda a sua densidade corpórea e afe­
tiva. Tal energia, ao mesmo tempo animal e livre, espontânea e neces­
sária da vontade de poder, encontra-se em presença de hábitos coleti­
vos da moral: os famosos "bons costumes" , que Nietzsche julga intole-

- 1 53 -
ráveis. A moral fica, assim, na prática e na teoria, falsificada pelos dis­
cursos justificadores dos bons costumes. E a própria intenção constitu­
tiva de uma moral já é falsidade humana, falsificação do homem. O
responsável por tal aberração é certo tipo de caráter mental, vale dizer,
certas disposições da consciência criadas pela filosofia do sujeito pen­
sante e por sua ética. Porque os filósofos, mesmo quando se j ulgam
conscientes e livres, nada mais fazem que dar seu aval àquilo que se
definia sem eles como seus "preconceitos ".
O pensamento nietzscheano não somente desconcerta e escandali­
za, mas interpela, com ferrenha intransigência, toda a racionalidade
filosófica e científica em vigor. Porque se trata de uma racionalidade
que se constrói contra o instinto: é uma perigosa energia que mina a
vida. A conservação da vida é assegurada pelo instinto. Mas é prejudi­
cada pela razão. Esta posição levou muitos a verem em Nietzsche uma
alta dose de misologia ou de ódio à razão. Sua avidez de viver tê-lo-ia
levado a destruir a razão, a con verter-se no profeta da des-razão e no
apologista do irracional. Na verdade, ele vai além da razão e da des-ra­
zão. Para ele, a questão dos valores racionais ou irracionais não tem
sentido. Seu pensamento, escrito em estilo aforfstico e poético , refratá­
rio à idéia de uma exposição sistemática, revela-se totalmente irredutf­
vel a todo dogmatismo, a toda pretensão de se acreditar em verdades
estabelecidas ou de se crer que a razão possa edificar sistemas sólidos e
inquestionáveis de conhecimento. O generalizado questionamento
nietzscheano constitui uma contestação, não somente da moral, mas da
ciência e da própria filosofia. Para Nietzsche, é a decadência que se
encontra na origem da metafísica, com o personagem de Sócrates. O
transtorno dos valores, bem como a questão do sentido e da interpreta­
ção, desemboca num questionamento dos fundamentos, ou seja, na re­
velação última do nada sobre o qual repousam o sentido e o valor.
Donde tornar-se imprescindfvel a demincia da ilusão dos mundos pré­
concebidos para que seja superada a metafísica, pois é ela que sustenta
o mundo do ser.
Os valores não possuem verdade absoluta. Nada mais são que ter­
rfveis contraverdades conduzindo o homem a uma moral de escravo e
ao ressentimento onde se aniquila sua vontade. Nessa perspecti va,
o niilismo se converte numa noção filosófica susceptfvel de re velar
uma das tendências fundamentais da civilização moderna, que é a de
fundar-se em "(dolos" tomados por valores ou por verdades inestimá­
veis. Trata-se ainda de uma noção que se encontra na origem de toda a

- 1 54 -
decadência que culmina em nossa cultura, pois é uma afirmação do ne­
gativo. Sua afirmação essencial é a morte de Deus. 3 Se Deus está mor­
to, devemos admitir que, agora, o céu se encontra vazio, não existindo
mais Ideal. O ressentimento, a má consciência, o ideal ascético, a morte
de Deus e, finalmente, o último homem, aquele que deve morrer, eis as
etapas do niilismo, ou seja, da crença na ausência de valor. E a causa
do niilismo é "a crença nas categorias da razão". Ao falar da "queda
dos valores cosmológicos" , declara Nietzsche:

"A partir do momento em que o homem descobre que é constru(­


do apenas sobre suas próprias necessidades psicológicas e que de
forma alguma é fundado nele acreditar, vemos manifestar-se a úl­
tima forma de niilismo, que encerra em si a descrença em um
mundo metaffsico, que se proíbe a crença em um mundo verda­
deiro. Chegados a esse estádio, confessamos que a realidade do
devir é a única realidade, interditamo-nos todos os caminhos des­
viados que levariam à crença em outros mundos e em falsos deu­
ses. Mas não suportamos esse mundo, a ponto de nem mais ter­
mos vontade de negá-lo (. . . ) Chegamos ao sentimento do não-va­
lor da existência. •

Assim, toda a obra de Nietzsche pode ser considerada como um ques­


tionamento radical, com as armas afiadas da erudição, da veemência e
da ironia, à raiz mesma de toda a chamada "cultura ocidental", que é a
Razão. Em seu esforço demolidor, de destruição (iconoclastia), nada é
poupado. Porque pretende justamente destruir as ilusões e evidenciar a
mentira fundamental que habita o mundo atual e que é o produto do
trabalho empreendido pelas forças reativas, ou seja, pelas forças da
"mediocridade" , contra as forças ativas, ou seja, as forças da vida. Em
O crepúsculo dos (dolos, ele constata essa destruição, destruição que
os poderes estabelecidos, que as filosofias e as ciências mascaram para
torná-la agradável. Está convencido de que o universo atual está entre­
gue ao nihil, ou nada que nivela os valores multiplicando-os; ao nada
que afirma, de direito, aquilo que ele nega, de fato: ao nada que esva­
zia a vontade de toda energia e a vida de toda substância. A medida e o
cálculo, apanágios da ciência, constituem pura vaidade e parcimônia
das almas servis: não somente impedem a alegria e o sofrimento, mas
deixam subsistir apenas uma existência tecida de dores sem fecundida­
de e de prazeres sem exaltação.

- 1 55 -
Nessa perspectiva, a essência do poder é o ressentimento, que
chamamos de sucesso. E a essência da obediência é o medo , que cha­
mamos de disciplina. A sacralidade fica reduzida a uma seqüência de
procedimentos e, a arte, a uma combinação de receitas. Enquanto o go­
verno é reduzido a um sistema de ameaças e de prevaricações, a filoso­
fia se reduz a um conjunto de . enunciados didáticos. Por sua vez, a mo­
ral se con verte numa muralha de interditos. E a ciência, do alto de sua
racionalidade, reduz-se a um feixe de crenças recu sando-se a reconhe­
cer sua essencial precariedade. Contra tudo isso, apenas uma coisa nos
importa: querer. E querer, sobretudo, o desmoronamento dos dois
maiores (dolos cuja sombra se abate sobre o mundo: o Estado, que
substituiu Deus, e a Ciência, que tomou o lugar da Religião.
Ao questionar radicalmente os fundamentos mesmos da metafCsica,
o que pretende Nietzsche é denunciar a criação que ela faz de um mun­
do pré-concebido ilu sório, em nome do qual os filósofos passam a jul­
gar este nosso mundo daqui, a fim de nele condenar a vida e a energia.
Porque toda metaf(sica se funda na divisão entre o sens(vel (aqui em
baixo) e o inteligfvel (lá em cima). Trata-se de uma dicotomia tendo
por finalidade justificar o ascetismo mórbido pelo qual as religiões e as
morais condenam o sensfvel e o rebaixam em nome do inteligfvel. A
ilusão alimenta a mistificação. E a mistificação pouco a pouco esclero­
sa os valores, fazendo deles fardos culturais destinados a impedir a
construção de novos valores. Portanto, é desviando-se da metaffsica
que o homem tem condições de encontrar a força para criar valores.
Donde, no plano ético, tomar-se necessária a destruição da moral tradi­
cional para se fundar uma outra, a serviço do niilismo ou de seu ultra­
passamento. A moral nietzscheana é assim descrita por Heidegger:

"O que Nietzsche entende por moral é o sistema de tais aprecia­


ções de valores nos quais um mundo supra-sensCvel é posto en­
quanto desejável e fornecendo a medida de todas as coisas.
Nietzsche concebe a moral sempre num sentido metaffsico, isto é,
relativamente ao fato de que é na moral que decidimos quanto
à totalidade do ente". 5

O que Nietzsche pretende instaurar é mais propriamente uma genealo­


gia da moral. 6 O termo "genealogia" é tomado para significar uma
forma crCtica colocando a questão da origem dos valores morais e das
categorias filosóficas. Essas categorias, longe de remeter a um valor de

- 1 56 -
verdade absoluta, servem, ao contrário, para mascarar os valores mo­
rais, na medida em que se põem a serviço de interesses particulares. E
o que pressupõe o empreendimento genealógico é que os valores ou as
verdades jamais devam ser considerados em si e por si mesmos, como
absolutos. Por que só adquirem algum sentido quando religados à sua
origem. Trata-se de uma "genealogia " que vai "além do bem e do
mal" e que instaura um mefodo de interpretação da hierarquia institu(da
dos valores, permitindo que eles sejam intervertidos: são os fracos e os
escravos que dão um sentido aos valores morais; são eles que masca­
ram sua decadência e sua ausência de querer-viver. Como a base da
positividade dos valores é constitu(da pelo ressentimento e pela dene­
gação, eles não têm uma posição autônoma. Por detrás das motivações
e das categorias metaf(sicas, ocultam-se interesses, esconde-se uma mo­
ral do ressentimento que adota uma posição de revanche instaurando
sua própria decadência como mestre do discurso do rac ionalismo filo­
sófico. Se, ao invés dessa confusão, religarmos a origem renegada à le­
gitimidade factCcia que impõe sua dominação, a genealogia implicará
uma total reviravolta dos valores, a partir daquilo que condiciona sua
produção. Ela é uma crCtica que revela menos a continuidade de uma
filiação que o processo que culmina em seu desconhecimento. Por isso,
é preciso que os escravos se rebelem:

"A re volta dos escravos na moral começa quando o ressentimento


mesmo se torna criador e gera valores: o ressentimento desses se­
res, aos quais é vedada a verdadeira reação, a da ação, e que só
encontram compensação numa vingança imaginária. Ao passo que
a moral aristocrática nasce de uma triunfal afirmação dela mesma,
a moral dos escravos diz 'não', logo de in(cio, àquilo que não faz
parte dela mesma e àquilo que é 'diferente' ( . . . ) e esse não é seu
ato criador". 7

Ao contestar a raiz comum da ciência e da metaf(sica, não somente


Nietzsche elabora uma crCtica da especulação, fundada por uma filoso­
fia da vida, mas questiona as "evidências" sobre as quais se apoiava o
po_s itivismo cientCfico de sua época. Por exemplo, as noções de "ciên­
cia", de "imparcialidade", de "objetividade" e de "experiência", até
então incontestadas pelas di versas filosofias, são inscritas num mundo
cultural, no mesmo mundo cultural que o positivismo contesta em nome
dessas noções. Por i sso, escreve:

- 157 -
"Por maior que seja o reconhecimento que devemos testemunhar
ao espfrito objetivo, devemos aprender a desconfiar desse reco­
nhecimento e a moderar o excesso de lou vor que, em nossos dias ,
prodigamos ao esforço do desprendimento e à imparcialidade do
espfrito, como se isto fosse um fim em si, uma transfiguração,
uma redenção" . 8

Porque não há desprendimento. Tampouco existe neutralidade históri­


ca. Tanto o desprendimento quanto a neutralidade remetem a uma certa
tomada de posição diante da vida. O mundo teórico no qual formamos
nossas respostas e interrogações e constitufdo por uma tradição que se
trata de remontar para ser refletida. Pretender sair dela, por um gesto
inaugural e definitivo, para dirigir-se a outro lugar, à ciência, à arte ou
à ação, constitui uma ilusão. A grande tolice da filosofia iluminista e
do positi vismo consistiu em ter acreditado que o espfrito racional havia
vencido o espfrito religioso. E a filosofia da história progressista tam­
bém se repousou em outra mentira: assim como a razão de Estado é a
seqüênca lógica da revelação religiosa, da mesma forma a fé na ciência
possui a mesma natureza que a fé religiosa. O uni verso construfdo pe­
los cientistas tem por fundamento conceitos entre os quais muitos têm
origem teológica. Por outro lado, o trabalho de dominação cientffica da
natureza não é inocente. Ele se faz acompanhar, necessariamente, de
uma organização da dominação dos homens, do estabelecimento de
valores que implicam o as sujeitamento dos indi vfduos. Ademais, a
ciência é serva do Estado como, outrora, a teologia era serva da Igrej a.
Aliás, o desenvolvimento das ciências foi realizado, nos tHtimos sécu­
los , em razão de três erros fundamentais:

"Em parte, porque, com elas e por meio delas, esperava-se com­
preender melhor a bondade e a sabedoria de Deus - motivo capi­
tal da alma dos grandes ingleses (como Newton); em parte, por­
que se acreditava na absoluta necessidade do conhecimento, es­
pecialmente no nexo o mais fntimo possfvel entre a moral, a ciên­
cia e a felicidade - moti vo capital dos grandes franceses (como
Voltaire) ; em parte, porque pretendia amar, na ciência, algo de
desinteressado, de inofensi vo, de auto-suficiente, algo em que os
maus impulsos do homem não teriam absolutamente nenhuma
parcela - motivo capital de Spinoza, o qual, enquanto sujeito
cognoscente, sentia-se di vino". 9

- 1 58 -
O fundo da crítica nietzscheana consi ste em recusar a problemática da
verdade através da qual se articula a filosofia clássica, sustentáculo da
chamada "civilização ocidental" . Assim, face a um enunciado, a
questão que deve ser colocada não é a de saber se ele é verdadeiro.
Este é um c;�specto secundário e meramente circunstancial. Tampouco
consiste em saber para quê ele serve. Ao contrário, face a um enuncia­
do, deve interessar-nos saber a quem ele apro veita. Precisamos ainda
compreender essa questão na perspectiva do conflito que opõe as for­
ças da vida às forças reativas. Porque "a força do conhecimento não
reside em seu grau de verdade", mas em "seu caráter de condição vi­
tal " . Por isso, não querendo que a existência venha a degradar-se ao
nfvel do exercfcio do cálculo cientffico, Nietzsche interpela os cientis­
tas para que respeitem tudo o que ultrapassa o seu horizonte e condena
a estupidez do totalitarismo cientffico de sua época:

"Dizer que somente vale uma interpretação do mundo que dê ra­


zão a vocês, uma interpretação que autorize a procurar e a pros­
seguir trabalhos no sentido que vocês dizem cientfficos (é mecâ­
nico que vocês pensam, não é mesmo?); que somente vale uma
interpretação do mundo que não permita senão contar, calcular,
pesar, ver e tocar, é estupidez e ingenu idade, se é que não é de­
mência ou idiotice ( . . . ) Porque uma interpretação 'cientffica' do
mundo, tal como vocês a entendem, meus senhores, poderá ser
uma das mais tolas e estúpidas dentre todas as que são possfveis.
Que isso seja dito a seus ouvidos, à sua consciência, senhores
mecânicos de nossa época, que se misturam de bom grado com os
filósofos e que imaginam que a sua mecânica seja a ciência das
leis primeiras e últimas e que toda a existência deva .repousar so­
bre elas como sobre um fundamento necessário. Um mundo es­
sencialmente mecânico! Mas seria um mundo essencialmente es­
túpido" . 1 0

Nietzsche se preocupa muito com a filosofia de seu tempo, filosofia fa­


zendo das Idéias uma utilização demiúrgica: ao modelar as Idéias, o
filósofo acredita refazer o mundo. Que bela satisfação para a vontade
de poder ! Tranqüilo em sua biblioteca , o filósofo o mais submisso à
sociedade ainda pode "brincar" de Criador: ele concentra as diversas
realidades em Idéias (tais como Causa, Substância, Corpo, Espfrito) e
as manipula à vontade, decidindo as possfveis relações entre o Homem,

- 159 -
a Natureza e o próprio Deus. Até mesmo Deus, esse infeliz, não passa
de uma peça infinitamente plástica nesse jogo especulativo. Ademais,
os filósofos revelam uma profunda indiferença pelos verdadeiros pro­
blemas da vida . Donde Nietzsche constatar, com amargor, o estado a
que chegou a filosofia:

"Toda a atividade filosófica moderna é política e policial, reduzi­


da pelos governos, pelas Igrejas, pelas Universidades, pelos cos­
tumes e pela covardia dos homens a ser apenas uma aparência de
erudição". 1 1

O pensamento novo não opõe mais o verdadeiro e o falso, mas o nobre


e o vil, o alto e o baixo. E isto, segundo a natureza das forças que se
apoderam do próprio pensamento. Não se trata de reencontrar os anti­
gos valores, pois há verdades da baixeza, verdades de escravos. Zara­
tustra faz a parte do falso, parte real do poder afirmativo e artfstico.
Não se trata mais de opor-se ao erro. A tarefa do filósofo é a de opor­
se à idiotice, à baixeza, aos discursos imbecis constituídos de verdades.
Às pequenas verdades dos valores em curso, às pequenas filosofias sá­
bias do Estado, aos funcionários da história, convém opor-se a violên­
cia seletiva dos lugares extremos. Donde a receita nietzscheana para
que "nos desembaracemos dos maus filósofos":

"Deixem os filósofos pensarem em liberdade, recusem-lhes toda


perspectiva de uma situação, toda esperança de ascederem a uma
posição social, não os estimulem por um tratamento; melhor ain­
da, persigam-nos, considerem-nos com desfavor, e assistirão a
coisas miraculosas ! Um descobrirá uma cura pastoral, o outro um
posto de professor secundário; aquele outro irá alojar-se na reda­
ção de um jornal, um outro escreverá livros clássicos para pen­
sionatos de meninas. O mais sensato pegará o arado, o mais vai­
doso irá para a Corte". 1 2

Todos os filósofos tiveram a pretensão de "fundar" a moral ou, pelo


menos, uma moral. Todavia, o que eles designaram pelo nome de ftm­
damento da moral jamais constituiu, declara Nietzsche, senão uma for­
ma requintada da fé ingênua na moral estabelecida:

- 160 -
"Quiseram apresentar como um dado uma moral determinada e
mesmo, no final de contas, uma maneira de negar que tivéssemos
o direito de considerar essa moral como um problema. O que
pretendiam era o contrário de um exame, de uma análise, de uma
colocação em dli vida da fé ( . . . ) Desde Platão, todos os teólogos e
os filósofos se engajaram no mesmo caminho, o que significa que
o instinto, ou como dizem os cristãos, a fé, ou, como digo eu,
o rebanho, saiu vencedor em matéria de moral". 1 3

Este diagnóstico diz respeito, ao mesmo tempo, aos costumes - "amo­


ral é hoje, na Europa, a moral do rebanho" - e à pretensão ingenua­
mente ilusória da consciência filosófica que identifica o ditame da
consciência moral ao preconceito de sua vida pré-consciente. No en­
tanto, o que Nietzsche pretende mostrar é que, "para além do bem e do
mal" instala-se, na vontade de poder, uma unidade entre, de um lado, o
intratável, o perigoso e o mau e, do outro, o bravo, o forte e o podero­
so. Nisto se resume a virtude. A moral dos senhores se opõe à moral do
rebanho. A mentalidade do rebanho, a raça das v(timas, dos impoten­
tes, dos fracos, substituiu a força pela astlicia, o poder pelo ressenti­
mento. Foi ela que inventou o direito, o bem, a humanidade, a carida­
de, a igualdade, o amor ao próximo para "possuir" os fortes. E os for­
tes ti veram vergonha de sua força e de sua saúde: ficaram com remor­
so. Desta forma, também as " vftimas" manifestavam, de modo hipó­
crita, a vontade de dominar os fortes, os criadores. Sob esses ideais, há
ainda uma vontade de poder, mas censurada e recalcada. Por isso, em
nome da vontade de poder, deve ser proclamado: para além do humano,
precisamos atingir o sobre-humano, o vitorioso, o soberano de nossos
sentidos e o mestre de nossos valores. 1 4 O ideal de fraternidade e de
solidariedade é um mero substituto do ideal da caridade. É um bando
de fracos e de pobres de espfrito que se congrega sob a bandeira da
igualdade para impor, como norma, uma pretensa natureza humana. Es­
sa comunidade de med(ocres, cujo prindpio básico é a submissão, rea­
l iza-se no Estado moderno. E o igualitarismo formal das leis encontra
seu complemento na ordem moral oriunda da pregação cristã. 1 5
Para Nietzsche, o "novo" é a forma superior de tudo o que existe:
há valores que já nascem novos (superiores) e valores que já nascem
velhos (inferiores) . Os primeiros dão testemunho do caos geral e da
bagunça irredut(vel a toda ordem: constituem o fundo intempesti vo de
onde provêm as grandes criações. A vontade de poder tem por subtítulo

- 161 -
"Transvaluação dos valores". Ela questiona as questões. Não é cobiça
ou apropriação. Pelo contrário, é dom, criação, afirmação e virtude que
dá. Assim, no perspectivismo nietzscheano, tudo muda segundo olhe­
mos de alto para baixo e de baixo para cima. Não há relativismo, mas
uma crrtica da profundidade, da consciência e da interioridade. Michel
Foucault observa que essa profundidade

"implica a resignação, a hipocrisia, a máscara. O intérprete que


percorre seus sinais para denunciá-los deve descer ao longo da li­
nha vertical e mostrar que essa profundidade da interioridade é,
na realidade, algo distinto daquilo que ela diz ( . . . ) Mas se o pró­
prio intérprete deve ir até o fundo, como um escavador, o movi­
mento da interpretação é, ao contrário, o de um 'desequilíbrio'
(surplomb), de um desequilíbrio cada vez mais elevado, deixando
sempre acima dele manifestar-se, de um modo cada vez mais visí­
vel, a profundidade. E a profundidade é agora resgatada como se­
gredo absolutamente superficial, de tal sorte que o vôo da águia,
a ascensão da montanha, toda essa verticalidade tão importante
em Zaratustra é, no sentido estrito, o in verso da profundidade, a
descoberta de que a profundidade era apenas um jogo, uma dobra
da superffcie" . 1 6

Diante de tal situação, o que se pode fazer? Melhor ainda, o que se de­
ve fazer? Essencialmente, desmascarar. Mas como? Primeiramente,
pela história mesma do "dado" da moral em sua verdade. Em seguida,
de modo mais profundo, pela crítica dos valores éticos recebidos. Fi­
nalmente, por uma análise de muitos ideais morais, procurando re­
montar aos princípios profundos de sua constituição, como os ideais
ascéticos, por exemplo, que constituem o objeto da terceira dissertação
da Genealogia da moral. O ideal ascético exprime o medo diante da
vida. Ele se transfigura, no plano filosófico, em vontade de verdade. A
verdade é um valor tendo por fu nção conservar a ex istência. À vontade
de verdade, Nietzsche opõe a vontade de poder. Esta se manifesta, es­
sencialmente, no artista, cujo objetivo é o de glorificar a aparência, a
ilusão e, até mesmo, o falso. Donde o profundo menosprezo do homem
gregário pela "arte inútil", pois ela seria um ópio, um repouso. A esta
tese pessimista de Schopenhauer, Nietzsche opõe a afirmação de Sten­
dhal: "O belo é uma promessa de felicidade", vale dizer, a exaltação
da vontade, o sentimento de uma plenitude aqui e agora. O artista é

- 1 62 -
quem melhor nos dá o exemplo do amor da vida. Os filósofos estão in'­
diferentes aos verdadeiros problemas da vida:

"O ideal ascético serviu, durante muito tempo, ao filósofo, de


aparência exterior, de condição de existência: ele era forçado a
representar esse ideal para poder ser filósofo; era obrigado a crer
nele para poder representá-lo. Esta atitude particular ao filósofo,
que o faz distanciar-se do mundo, esse modo de ser que renega o
mundo, mostra-se hostil à vida; é, antes de tudo, uma conseqüên­
cia das condições forçadas, indispensáveis ao nascimento e ao de­
senvolvimento da filosofia; porque, durante muito tempo, a filo­
sofia não poderia ter sido possfvel sobre a terra sem uma máscara
e um travestimento ascético, sem um mal-entendido ascético". 1 7

O sujeito pensante, que consagra e sacrarnenta uma moral, encon­


tra-se habitado, não por uma força racional e livre, mas por um con­
j unto de forças irracionais. Porque as morais não são outra coisa senão
"a linguagem das paixões". Ademais, no filósofo, "nada é impessoal".
Sua moral testemunha rigorosamente "aquilo que ele é, pois revela os
mais profundos instintos de sua natureza e a hierarquia a que eles obe­
decem". Também por esse atalho, o sujeito pensante da filosofia idea­
lista se vê lembrado de sua própria realidade, da qual fazia candida­
mente abstração, bem como da dissimulação, ora consciente e deso­
nesta; ora simplesmente idiota e ingênua, que se fazia dessa condição.
É tal condição que provoca o surgimento dos "novos filósofos", dos
filósofos de uma época em que o sujeito moral não mais coincidirá com
o sujeito pensante ou com a consciência. Assim, o tema da consciência
li vre e uni versalmente racional no nfvel da conduta moral, que foi,
desde Kant, o tema predileto da filosofia moral, em substituição ao te­
ma do conhecimento racional de Deus, passa a ser vigorosamente con­
testado e subtrafdo do domfnio de competência da filosofia clássica. 1 8
O projeto nietzscheano é o de in staurar uma "transmutação de to­
dos os valores". Semelhante revolução pressupõe uma espécie de ponto
fixo ou de absoluto: a vida. É a única coisa em que Nietzsche acredita.
Porque ela é "o ato primiti vo" , o estofo de toda coisa, o próprio ser.
Por isso, rrão pretende apresentar uma filosofia, mas uma mensagem de
vida . "Sempre introduzi em meus escritos, diz ele, toda a minha vida e
toda a minha pessoa; ignoro o que possam ser problemas pu ramente
intelectuais". O que não o impede de ser considerado como o fu ndador

- 163 -
da filosofia dos valores. Porque ele reduz todo problema a uma questão
de valor; e todo valor, a um jufzo de valor. Sua tese fundamental con­
siste em afirmar que as coisas, nelas mesmas, não possuem valor; seu
va '.o r resulta de uma avaliação que é um ato do homem, que exprime
seus desejos, seus instintos, numa palavra, sua vontade de poder. São
os homens que se dão a si mesmos o seu bem e o seu mal. A v aliar sig­
nifica criar. É avaliando que os homens se fixam valores. Aceitar os
valores propostos pelas morais é aceitar "um crime capital contra a vi­
da". Porque a vida é, essencialmente, vontade de poder, apropriação,
agressão, assujeitamento daquilo que é estranho e fraco, imposição de
sua própria forma, dureza e opressão. A vida consiste em elevar-se e,
elevando-se, em superar-se. A moral dominante na Europa, oriunda do
socratismo e do cristianismo, repousa em falsos valores feitos para o
rebanho, para o vulgar, para os medfocres. Não é uma moral da ele va­
ção, mas da decadência. Por isso, a vida declinante deve ser vencida
pela vontade de poder: "O homem não existe senão para ser ultrapas­
sado. A sociedade não será, amanhã, senão meio para o nascimento do
indivfduo soberano". Todavia, a vontade de poder não é uma vontade
de querer dominar. Quem deseja dominar são os escravos e impotentes
que se fazem uma imagem do poder. Em seu mais alto grau, a vontade
de poder não significa tomar ou cobiçar, mas dar e criar: seu verdadei­
ro nome é virtude que dá. 1 9
Diria que a crftica nietzscheana da moral recebida e do papel que a
filosofia da consciência desempenhou a seu respeito, talvez valha mais
por seu estilo e por sua análise de conjunto que por seu conteddo e por
sua análise de detalhe. No que se refere ao contelido dessa crítica,
constitui o equivalente, pelo menos em grande parte, de uma crítica dos
costumes apoiando-se na consciência de sua relatividade, função das
épocas e dos meios. Por outro lado, trata-se de uma crítica de humor e
de ironia, com certos rasgos de penetração de gênio, mas sobrecarrega­
da de interpretações discutrveis, de um enorme potencial de agressivi­
dade eficaz, diante do qual, se não devemos nos deixar impressionar
demais, nem por isso devemos ficar indiferentes. Desse ponto de vista,
a crftica nietzscheana da moral não vai muito longe, posto que a filoso­
fia moral não se resume a um quadro de um estado de costumes cano­
nizados racionalmente, mas uma análise dinâmica da postura humana
dos indivfduos capazes de vontade e chamados a agirem refletindo so­
bre sua ação ou práxis concreta e tentando explicitar constantemente as
referênc as desse agir. Nesse sentido, o próprio Nietzsche é um filósofo

- 164 -
preocupado com a filosofia moral. É até mesmo um "moralista", vale
dizer, um grande analista crftico dos costumes, de uma vez que o mo­
ralista, como o filósofo, deve estar a serviÇ o de um projeto de mudar a
conduta e de instaurar em profundidade um novo modo de compreender
seu valor e seus valores.
Mais que o conte11do propriamente dito, é o estilo de Nietzsche
que se revela extraordinário. De modo mais longfnquo que Marx, já
encontramos nele certa ligação entre sua crftica e a possibilidade de
certas "ciências humanas", pelo menos de uma "ciência" dos costu- ,
mes, incluindo estudos etnográficos, históricos, lingüfsticos e psicoló­
gicos. Em contrapartida, mais ainda que em Marx, encontramos nele a
vontade de analisar e de elucidar, no homem, em suas condutas e em
sua cultura, no discurso que ele profere sobre si mesmo e sobre seu
agir, aquilo que se acha subterrâneo e dissimulado: o interior do "se­
pulcro caiado". Neste sentido, a crftica nietzscheana e seu efeito de
subversão da "boa consciência", bem como de seu discurso, ainda são
mais virulentos que a dendncia marxista.
Com efeito, a den11ncia nietzscheana é sistemática e sua estratégia
é bastante organizada. Assim, na Genealogia da moral, podem ser
c onstatadas: dendncia da ação do ressentimento na elaboração do qua- ,
dro de valores do bem e do mal; dendncia da "má consciência" e da
necessidade instintiva de atormentar-se moralmente nas doutrinas mo­
rais da falta e da culpabilidade; dendncia da "doença niilista" no ideal
ascético da conduta, etc. Eis a crftica mais radical jamais feita à inten­
ção moral e a um sistema de moralidade da intenção, tal como ele apa­
rece no nfvel daquilo que Kant e Hegel chamavam de "a bela alma".
Isto não quer dizer que tenha sido Nietzsche o inventor dessa crftica da
moralidade da intenção. O adágio "o inferno está repleto de boas in­
tenções" é um velho ditado que já se encontra em Hegel. O que
Nietzsche consegue fazer é reinjetar a "má consciência" no seio mes­
mo da consciência filosófica clássica, que tanto trabalhou para tomar­
se a boa consciência dos homens. 2 0
Outra grande contribuição d e Nietzsche à filosofia foi a de nela
introduzir dois conceitos fundamentais: o de sentido e o de valor. Uma
filosofia do sentido e dos valores só pode ser uma cntica: crftica a to­
dos os conformismos e a todas as submissões a que docilmente se en­
tregou a filosofia bem-pensante. Donde ele pensar sua filosofia dos
valores como a verdadeira realização da crftica, de uma crftica total, a
ponto de fazer filosofia, como ele mesmo diz, "a golpes de martelo" .

- 1 65 -
·
Ele luta, a golpes de martelo, contra o dogmatismo axiológico, este an-
cestral do velho humanismo. Não tendo que fazer avaliações particula­
res, ele coloca em perspectiva as tendências que as avaliações supõem.
Cada povo tem seu a priori de valores, possui sua própria história. Os
próprios filósofos são, " inconscientemente" , produtores e produtos de
sistemas morais. Por isso, diz Nietzsche:

"Descobri pouco a pouco que toda grande filosofia, até o dia de


hoje, foi a confissão de seu autor e constitu i (quer ele tenha nota­
do quer não) suas memórias . Da mesma forma reconheci que, em
toda filosofia, as intenções morais (ou imorais) formam o verda­
deiro germe de onde nasce toda a planta". 2 1

Em sua essência, o problema crftico consiste em apreciar o valor dos


valores, vale dizer, em avaliar a criação dos valores. Contudo, as ava­
liações não constituem valores. São apenas modos de ser, modos de
existência daqueles que avaliam. A crftica é justamente a expressão
ativa do modo de existência ati vo do filósofo. Este não pode ser "bai­
xamente". Pelo contrário, deve pensar "altamente " . Ao substituir os
princfpios de universalidade e de semelluznça dos valores pelo senti­
mento de diferença ou de distância , Nietzsche declara que "é do alto
desse sentimento de distância que nos arrogamos o direito de criar va­
lores ou de determiná-los: o que importa a utilidade?" 2 0
Quanto ao conceito de sentido, afirma que jamais encontramos o
sentido de uma coisa qualquer a não ser que saibamos determinar qual
a força que dela se apropria, que a explora ou nela se exprime. É uma
força atual que confere sentido às coisas. E toda força é apropriação,
dominação, exploração de uma qu anti dade de realidade. A história de
uma coisa é uma su�essão das forças yue dela se apoderam ou a coe­
xistência das forças que lutam para dela se apropriarem. Assim, cada
coisa ou cada objeto muda de sentido conforme se altere a força que
deles se apoderam. Não existe, pois, um sentido, mas uma pluralidade
de sentidos: toda dominação equivale a uma nova interpretação. Uma
coisa possui tantos sentidos quantas forem as forças capazes de domi­
ná-la, explorá-la ou subjugá-la. Nada possui um único sentido. Nem
mesmo a religião, pois ela serve a forças múltiplas . Até mesmo a
"morte de Deus" é um acontecimento de sentido múltiplo, porque a
"di vindade" significa a existência de deuses. 2 2

- 166 -
Não nos esqueçamos de que Zaratustra constitui a pregação de
Nietzsche. Seu herói desce da montanha, onde meditou sobre "a morte
de Deus", para pregar a moral do super-homem. "Vi vei no perigo, diz
Zaratustra, construf vossas cidades ao lado do Vesúvio, lançai vossos
navios aos mares inexplorados, permanecei fiéis à Terra e não deis cré­
dito àqueles que vos falam de esperanças supraterrestres; são envene­
nadores". Todo aquele que pretende ser criador deve, antes, quebrar os
valores. Por isso, Zaratustra destrói "tudo aquilo em que podemos
crer". Porque a crença é uma recusa da criação. E o homem que imita
se recusa a ser ele mesmo. Donde o ataque nietzscheano ao cristianis­
mo ("quem os salvará de seu Salvador?") em nome das potências da
vida: "O cristianismo é a expressão de um ressentimento contra a vi­
da" . Somente o instinto, enraizado na vida e apresentando-se como um
poder de renovação infinita, constitui o reservatório das forças criado­
ras, de toda inspiração e de todo entusiasmo. Profusão de vida, ele na­
da tem a ver com o egofsmo, que é o fato da inteligência calculadora.
Donde a necessidade, para os homens, de se superarem : "O homem é
algo que deve ser superado . . . eu prego o super-homem". Assim, des­
truindo a imagem da transcendência pura, que corre o risco de fascinar
os homens, ao in vés de dinamizá-los, Nietzsche mostra que a verdade
jamais se encontra na aceitação daquilo que é, mas na autenticidade da
criação pessoal. É por isso que os homens devem, para além do huma­
no, atingir o sobre-humano, o vitorioso, o soberano de seus sentidos,
mestre de seus valores, apaixonadamente voluntário, que se transcende
porque deixou de estar contente consigo e com o mundo, que comanda
porque comandar é assumir a responsabilidade, o risco e o perigo. 2 3
Tendo uma verdadeira alergia pelos conceitos gerais, tais como os
de "o ser", "a substância" , "o absoluto", "a identidade", "a coisa"
ou "a ciência", por serem os mais antigos e, por conseguinte, os mais
falsos, Nietzsche declara que eles foram in ventados para contradizer,
fundamentalmente, o mundo do devir.24 Nesse mundo, o que importa
é querer. E querer, sobretudo, o desmoronamento do Estado, que to­
mou o lugar de Deus, e da Ciência, que tomou o lugar da religião.
Tanto o Estado quanto a Ciência, ao laicizar o poder, acrescentam, à
sua repressão, a mentira e, a seu exerc fcio da coerção, as virtudes do
direito. Por isso, não nos iludamos: "Cuidado com os sábios ! Eles te
odeiam, porque são estéreis ! Têm os olhos frios e secos; diante deles,
todo pássaro é depenado. Eles se vangloriam de não mentir. Mas a in­
capacidade de mentir está ainda muito longe do amor da verdade" . 2 5

- 1 67 -
Quanto ao Estado, torna-se o guardião de todos os elementos que o
constituem: hierarquia maníaca, crueldade, arbitrariedade, obsessão
pela ordem, pela vigilância, pela delação, etc. Para a manutenção de
seu poder e de sua repressão, constrói e se encobre de todo um apare­
lho de justificações deixando, para o indi víduo, a llnica saída: ou se
entrega à mediocridade de uma felicidade empírica ou, então, converte­
se num excluído. O que se exige de todos os indivíduos é a obediência,
conseqüentemente, o conformismo. Por detrás de todo esse edifício,
que é o Estado, encontra-se presente , em sua glória monstruosa, o Deus
revelado. É por isso que a obediência ao Estado nada mais é que a lai­
cização, na escala das nações, do espírito de humildade pregado pelo
cristianismo. Enganaram-se, pois, os filósofos iluministas, quando
acreditaram tolamente que o espírito racional derrotou o espírito reli­
gioso. O ideal de fraternidade nada mais é que o ideal da caridade ! O
Estado moderno só realiza uma comunidade de med íocres, cujo princf­
pio é a submissão. O igualitarismo formal de suas leis não passa de
uma reedição da ordem moral oriunda da pregação cristã. O Cristo não
sofreu em vão ! Foi preciso que subisse ao Calvário para que a humani­
dade contemporânea descesse à baixeza e à idiotice "leigas, primárias e
obrigatórias".
Por sua vez, a filosofia da história progressista repousa em outra
mentira, assim descrita por F. Châtelet:

"Assim como a razão de Estado é a continuação lógica da revela­


ção religiosa, da mesma forma a fé na ciência tem a mesma natu­
reza que a fé (pura e simples). Convém observar que o universo
construído pelos sábios tem por fundamento muitos conceitos
oriundos da teologia; mas, sobretudo , que o trabalho de domina­
ção da natureza não é inocente, que ele se acompanha necessa­
riamente de uma organização da dominação dos homens, da ins­
tauração dos valores que acarretam o assujeitamento do indiví­
duo, que a ciência é serva do Estado como outrora a teologia era
serva da Igreja. Nietzsche teve a intuição profunda da transfor­
mação que invadia os Estados-nações no final do século passado
e que iria conduzir a esse Leviatã de um novo tipo que é nosso
Estado sábio, combinando poder e saber para reforçar sua autori­
dade: ' 2 6

- 168 -
Apesar de Nietzsche ter-se dado por tarefa fundamental questionar a
raiz comum da ciência e da metafísica, seus próprios fundamentos, e
isto, falando a linguagem mesma do valor, nem por isso podemos dizer
que ele fundou uma a.xiologia. Sua "moralização" não constitui uma
moralização, pois não tem outro objetivo senão o de questionar, em seu
fundamento mesmo, os conceitos da metafísica. Para além do bem e do
mal não é um li vro visando apenas criticar a especulação, fundando-se
numa filosofia da vida, mas recorrendo à história do pensamento para
questionar as "evidências" sobre as quais se apoiava o positivismo e
denunciar seus panos de fundo filosóficos. Não se trata apenas de
exaltar o senslvel de nosso mundo, por oposição ao outro mundo, mas
de questionar a própria di visão entre dois mundos, pois é a unidade do
sensível e do supra-sensível que estrutura a metafísica. Neste sentido,
não somente Nietzsche afirma a necessidade da filosofia primeira, mas
reconhece que ela é irredutível ao sujeito que a pensa.
Nietzsche chama ainda nossa atenção para o fato de que, quanto
mais as ciências nos concernem, dizem respeito ao nosso vivido, menos
e as são " verdadeiras", pelo menos, dessa verdade cujos critérios fo­
ram instituídos pela prática do jogo das ciências naturais aplicada aos
negócios humanos idealizados e delimitad os sob medida; dessa " verda­
de que não nos concerne". E ao falar a propósito da "crença" , pede
que "consideremos se as convicções não são inimigos mais perigosos
da verdade que as mentiras" (L'an!Lchrist, tr. fr. , UGE, 1967, p.
9 1 -94). Pelo contrário, quanto mais uma ciência nos concerne, menos
ela tem chances de ser verdadeira, pois liga "convicções e mentiras"
(Ibidem). É por isso que os sacerdotes antigos, sabendo que isso não
podia ser de outro modo, punham, na origem das convicções regendo
os comportamentos sociais, não uma ciência, tampouco "a Razão" ,
mas um "para-além" d a Razão que denominavam deus. E o valor a ser
atribuído a essas leis, todas de origem "divina" , não provém de seu ca­
ráter racional ou irracional, mas da natureza do deus em questão: "São
pagãos todos aqueles que dizem sim à vida, para os quais 'Deus' é a
palavra designando o grande sim a todas as coisas" (Ibidem, p. 94) .
Por isso, Nietzsche proclama, tanto em Assim falou Zaratustra quanto
na Gaia ciência, a total inutilidade de se buscar Deus. Porque Deus
morreu , nós o matamos, somos seus assassinos. Quer dizer: cultural e
"espiritualmente", os homens deixaram de crer em Deus. Com isso,
decretaram a morte de todo um sistema de valores. A morte de Deus
constitui a expressão máxima do niilismo, sem o qual não poderia rea-

- 169 -
lizar-se "a transmutação de todos os valores" nem tampouco instaurar­
se um mundo moderno desdivinizado, descristianizado e dessacrali­
zado.

NOTAS

1. A época vivida por Nietzsche é muito rica. Nas últimas décadas do século
passado, após a guerra franco-alemã de 1 870, da qual ele participa como
enfermeiro voluntário, triunfam por toda a Europa os ideais democráticos e
socialistas. É o momento da constituição dos grandes impérios coloniais.
A ideologia do "Progresso", tão exaltada no século do lluminismo (XVIII),
solidifica-se de tal modo que passa mesmo a suplantar, entre os bem-pen­
santes, a força do cristianismo. O desenvolvimento das ciências e suas apli­
cações no domfnio industrial e no campo da medicina levam muitos a entre­
verem a próxima chegada de uma era de felicidade para a humanidade. No
entanto, ao lado desse otimismo oficial em relação à ciência e à sua raciona­
lidade, ao lado do sonho de muitos com uma época de segurança, de fartura
e de paz, surge todo um movimento de den6ncias encabeçado pelos anar­
quistas e pelos niilistas vindo perturbar, com suas ações e com suas crlticas
ferozes, "a tranqüilidade do rebanho". Nesse contexto, Nietzsche se apre­
senta como o herói do niilismo. Ele ataca violentamente, pela palavra, toda a
cultura mistificadora européia, notadamente alemã, cultura esta domesticada
por seu maior interesse. Seu niilismo implica que os valores supremos da so­
ciedade européia se desvalorizam. Deus morreu. Está extinto o céu estrelado
dos ideais morais. O europeu flutua no vazio. As avaliações não cessam, mas
elas têm o nada como valor dominante. Mas não devemos confundir o pes­
simismo da fraqueza com o pessimismo bastante forte para dizer "sim" ao
mundo. Este, em sua intransigência, é um sintoma da força, do poder afir­
mativo que se estabelece contra o embrutecimento apático. Os mestres da
Terra, os discípulos de Dionísio, não se limitam a constatar: eles legisferam.
2. Le conjlit des interprétations, Seuil, 1 969, p. 1 50- 1 5 1 .
3 . A o anunciar a "morte d o homem", numa analogia com a "morte d e Deus"
nietzscheana, Michel Foucault corre o risco de um mal-entendido. Porque "o
fim próximo" do homem não passa do fim de certa idéia do homem. Na ex­
pressão nietzscheana, nomeia-se Deus, quer dizer, a Idéia de Deus é int'Ítil.
Na expressão foucaultiana, o homem é elevado à dignidade de Idéia do Ho­
mem. Ora, essa idéia pode sofrer mudanças históricas, pode mesmo desapa-

- 1 70 -
recer. Mas o homem real está bem vivo. Não temos o direito de saltar de
certa concepção do homem para uma grandiosa profecia sobre o Fim do
Homem. A Idéia do Homem é uma abstração. Pode até mesmo constituir
objeto de estudo legítimo, para além dos homens reais. Mas o homem da "e­
pisteme" não pode ser confundido com o homem "assassino" de Deus. Ao
falar do "homem superior", em seu Zaratustra, Nietzsche é mais realista:
"Vamos, coragem, homens superiores. É no presente que a montanha do
futuro humano vai dar à luz. Deus morreu. Mas n6s, n6s queremos, no pre­
sente, que o Super-homem viva".
4. A vontade de poder, § 1 2. - O nülismo nietzscheano, que podemos chamar
de "psicol6gico", manifesta-se pelo fato de que: a) o futuro é sem objetivo,
"o devir não tende a nada"; b) o devir "não é dirigido por qualquer grande
unidade na qual o indivíduo possa mergulhar totalmente como num elemento
de valor supremo" (Deus está morto); c) o mundo do além, que seria o mun­
do verdadeiro para o homem, "não é construido senão sobre suas pr6prias
necessidades psicol6gicas": as categorias de fim, de unidade, de ser perde­
ram todo o seu valor. Contudo, essa passagem destruidora pelo nülismo deve
culminar em valores novos; deve obrigar a humanidade a se ultrapassar por
uma inversão dos valores cristãos e metafísicos tradicionais feitos pelo "re­
banho", graças a seres superiores e em proveito do desabrochamento dos
instintos fundamentais da vida e da vontade de poder, para além do bem e do
mal.
5. Nietzsche, Gallimard, 1 97 1 , p. 487.
6. A Genealogia da moral, cujo subtítulo é "Para servir de complemento a uma
obra recente: 'Para além do bem e do mal' e enfatizar seu alcance", foi pu­
blicada em 1 887. Trata-se de uma obra na qual Nietzsche faz seu acerto de
contas com seu antigo mestre Schopenhauer, pois ele havia estigmatizado,
como absurdo, o querer-viver; e tinha feito a apologia de uma moral repou­
sando na "piedade" cristã. Assim, de certo modo, é contra o cristianismo que
ele escreve essa obra, na medida em que se trata de uma religião que depre­
cia a vida, elabora uma moral de escravos, fundada na impotência e no res­
sentimento. Mas trata-se também de um livro escrito em reação contra as
morais utilitaristas identificando o bem ao títil. Contudo, como foram os
ideais da moral cristã que as sociedades européias assumiram, é contra eles
que se insurge a crítica mais radical. Os valores de altruísmo, de abnegação,
de humildade e seus corolários são valores que convêm ao "rebanho huma­
no": constituem a ideologia da decadência, da recusa da vida e do 6dio vol­
tado contra si. E contra essa moral, deve ser construída uma outra, uma
moral da exaltação de si, uma moral do risco, da vida mesma em todas as

- 171 -
formas brutais de manifestação. Porque a moral dominante dos escravos de­
ve ser substituída por uma moral dos senhores que exaltará a "vontade de
poder", que glorificará a vida sob todos os seus aspectos. O valor supremo,
nessa moral, é a ação. E de sua ação, o sujeito moral não deve prestar contas
a ninguém.
7. Primeira dissertação da Genealogia da moral, § 10.
8. Para além do bem e do mal, § 207.
9. A Caia ciência, § 37.
1 0. Ibidem, § 373.
1 1. Segunda intempestiva.
1 2. Terceira intempestiva.
1 3. Par-delà le bien et le mal, 1 97 1 , p. 95 e 1 04.
14. Trata-se da moral dos senhores e, mais especialmente, do super-homem.
O texto da Genealogia da moral (segunda dissertação, § 24) diz: "Este ho­
mem do futuro, que nos redimirá ao mesmo tempo do ideal atual e daquilo
que forçosamente teve que sair dele, do grande nojo da vontade do nada e do
nülismo - esse bater de sino do meio-dia e do grande julgamento, esse liber­
tador da vontade que devolverá ao mundo seu objetivo e ao homem sua es­
perança, esse anticristo e antinülista, esse vingador de Deus e do nada, é pre­
ciso que ele venha um dia".
1 5. Em Para além do bem e do mal, destinado a ser um "prelódio a uma ftlosofia
do porvir", Nietzsche trata dos preconceitos ftlosóficos, do espírito livre, da
religiosidade e de algumas sentenças. Explica, de infcio, que "mau" se diz,
em alemão, schlecht e bõse. Schlecht é vil, desprezível, vulgar; bõse é intra­
tável, perigoso, malvado. E mostra que gut (vindo de Gott, Deus) tem dois
sentidos: bom, inofensivo e pacífico, mas também bravo, forte e poderoso.
Assim, "para além do bem e do mal", há uma unidade de bõse e de gut na
vontade de poder: é a virtude, a moral dos senhores (Herren-Mora[), oposta
à moral do rebanho (Harden-Mora[). Mas é o escravo quem triunfa, diz
Nietzsche. E o que é a escravidão do escravo? É mais que a pobreza dos ins­
tintos ou a anemia: é a submissão desejada erigida em sistema de valores.
A força dos fracos subverte os valores nobres. Esta força do ressentimento,
tomada criadora, engendrou seus pequenos valores. Assim, a interioridade
nada mais será que o resultado da perversão dos instintos. E a profundidade
não passa do produto da falta de extensão. Quanto ao ideal ascético, nada
mais é que um avatar, mesmo grandioso, de uma vida fraca e doente. O tini­
co ideal, mesmo antes da vinda de Zaratustra, é o de ir além e de transvaluar

todos os valores.

- 172 -
1 6, A rchéologie du Savoir, Gallimard, 1 969.
17. Terceira dissertação da Genealogia da moral.
18. Observemos que, para Nietzsche, há uma instância mais profunda por detrás
da oposição manifesta entre verdadeiro e falso. No jogo da interpretação e
da avaliação, nada descobrimos em última instância. Nada, exceto a vontade
de poder, mas de um poder de metamorfose, de modelagem das máscaras e
de avaliação. Vontade de poder estranha a todo "querer do poder" regulado
sobre o poder social, sobre as honrarias, sobre o dinheiro, etc. A vontade de
poder não é vontade que quer o poder, porque "o desejo de dominar, quem
pode chamar isso de desejo?" Quem quer o poder desse modo, quem deseja
o valor de dominação? Os escravos, os fracos, os impotentes. Precisamos
colocar em questão o valor desses valores. Para tanto, precisamos "conhecer
as condições e os meios que lhes deram origem, no seio dos quais elas se de­
senvolveram e se deformaram: ver a moral enquanto conseqüência, sintoma,
máscara, parti pris, doença ou mal-entendido; mas ver também a moral en­
quanto causa, remédio, estimulante, entrave ou veneno" (Genealogia da mo­
ra[).
19. Poderíamos explicitar ainda a crítica nietzscheana à doutrina filosófica da
consciência intelectual ou da consciência pensante derivada da filosofia car­
tesiana do Cogito. Neste particular, A vontade de poder é bastante elucidati­
va. Uma boa apresentação dessa crítica é feita por J. Granier em Le proble­
me de la vérité dans la phiwsophie de Nietzsche (Seuil, 1 966). Ele destaca
duas idéias fundamentais: a) a consciência não é outra coisa senão uma de­
pendência do corpo vivo, a serviço da totalidade viva do corpo - ver a rela­
ção com o aforisma de Marx: "Não é a consciência que determina a vida, é a
vida que determina a consciência" ; b) a tematização filosófica falseada da
consciência repousa na ilusão gramatical do "Eu penso" (cf. Vontade de po­
der, §§ 98 e 148; Para além do bem e do mal, § § 16 e 17) consistindo em fa­
zer do Eu da consciência de si um "sujeito" agente e determinando seu pre­
dicado-ação: o pensamento. As intuições nietzscheanas agrupadas em tomo
da primeira idéia freqüentemente anunciam a perspectiva da análise freudia­
na (ver ainda o livro de Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, P.U.F.,
1973).
20. A modernidade filosófica muito deve a Nietzsche. Seu estilo, aforístico e
poético, perturba a idéia de uma exposição sistemática do saber filosófico.
Ele se revela irredutível a todo dogmatismo. Inaugura um tipo de questio­
namento que critica tanto a moral e a ciência quanto a própria filosofia. É a
decadência que se encontra na origem da metafísica. O abalo dos valores, a
questão do sentido e da interpretação desemboca no questionamento dos

- 173 -
fundamentos, vale dizer, na revelação última do nada sobre o qual repousam
sentido e valor. A demarche nietzscheana se articula a partir de uma filosofia
da arte (Nascimento da tragédia) e de um retorno às fontes gregas da civili­
zação ocidental. Mas também é uma "consideração intempestiva" que con­
vém ao passado longínquo e ao momento atual. O niilismo, segundo o qual
os valores não possuem verdade absoluta, encontra-se na origem de toda a
decadência que culmina em nossa cultura, na medida em que ele é uma afir­
mação do negativo. Sua afirmação essencial é a morte de Deus. Se Deus
morreu, devemos admitir que, agora, o céu está vazio e que o Ideal se per­
deu. As etapas do niilismo são: o ressentimento, a má consciência, o ideal as­
cético, a morte de Deus e o último homem (aquele que quer morrer).
2 1 . Para além do bem e do mal .
22. Ao estudar as coisas escondidas e disfarçadas em Nietzsche, Gilles Deleuze
descobre várias razões, entre as quais, a mais geral é de ordem metodológica:
"Jamais uma coisa tem um único sentido. Cada coisa tem vários sentidos que
exprimem as forças e o devir das forças que nela atuam. Melhor aind!J., não
há 'coisas', mas somente interpretações e a pluralidade dos sentidos. Inter­
pretações que se escondem umas nas outras, como máscaras encaixadas, lin­
guagens incluídas umas nas outras... As interpretações deixam de ter o ver­
dadeiro e o falso como critério. O nobre e o vil, o alto e o baixo se tornam os
princípios imanentes das interpretações e das avaliações" (in Por que Nietzs­
che?, Achiamé, Rio de Janeiro, s.d., p. 1 9-20).
23. A grande preocupação de Nietzsche é, em primeiro lugar, combater a moral
dos escravos, isto é, a moral daqueles que, movidos pelo ressentimento, de­
cretam que os valores supremos são a piedade, a humildade, o perdão e o
desinteresse. Esses valores conduzem a uma depreciação de si, posto que
esses seres sentem confusamente, apesar da habilidade de seus "pastores",
sua impotência e sua indignidade. A moral cristã opera essa inversão dos
valores, estabelecendo uma superioridade imaginária de seus adeptos. O
Sermão da Montanha é o ponto culminante dessa mistificação. Em seguida,
Nietzsche propõe a moral dos senhores que procede de uma triunfante afir­
mação de si, consistindo na glorificação da vida e considerando a ação o va­
lor supremo.
24. A vontade de potência, t. I, § 1 1 2.
25. Assim falou Zaratustra, Do homem superior, § 9.
26. "La modemité en philosophie", in La philosophie, Encyclopédies du Savoir
M oderne, Retz, 1 977, p. 332. Ao criticar os conceitos fundamentais utiliza­
dos pelos cientistas, notadamente os de "objetividade" e de "imparcialida­
de", Nietzsche mostra que eles se inscrevem no mesmo mundo cultural con-

- 1 74 -
testado pelo positivismo: "Por maior que seja o reconhecimento que deve­
mos testemunhar pelo espírito objetivo" , precisamos desconfiar desse reco­
nhecimento e não mitificar a impessoalidade do espírito, pois tal "espírito
objetivo" não constitui "um fim em si, uma transfiguração, uma redenção"
(Para além do bem e do mal, § 207). O mundo teórico no qual nós formula­
mos nossas interrogações e nos damos respostas é constituído por toda uma
tradição exigindo de nós uma tomada de posição diante da vida. Por isso, o
cientista não pode conceber-se, historicamente, como "neutro", pois não é
um puro espelho.

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