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Debora Fernandes Herszenhut

MILITÂNCIA, PERFORMANCE E DEVIRES IMAGÉTICOS: O CINEMA


INDÍGENA BRASILEIRO ATRAVÉS DAS TRÊS DÉCADAS DO PROJETO VÍDEO
NAS ALDEIAS

Rio de Janeiro
2014
Debora Fernandes Herszenhut

MILITÂNCIA, PERFORMANCE E DEVIRES IMAGÉTICOS: O CINEMA


INDÍGENA BRASILEIRO ATRAVÉS DAS TRÊS DÉCADAS DO PROJETO VÍDEO
NAS ALDEIAS

Dissertação de Mestrado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em Antropologia.

Orientação: Marco Antônio Gonçalves


PPGSA/IFCS/UFRJ

Rio de Janeiro
2014

Debora Fernandes Herszenhut

MILITÂNCIA, PERFORMANCE E DEVIRES IMAGÉTICOS: O CINEMA INDÍGENA


BRASILEIRO ATRAVÉS DAS TRÊS DÉCADAS DO PROJETO VÍDEO NAS ALDEIAS

Banca Examinadora:

_______________________________________________
Prof. Dr. Marco Antônio Gonçalves - Orientador
PPGSA/IFCS/UFRJ

_______________________________________________
Prof. Dra. Tatiana Bacal
PPGSA/IFCS/UFRJ

_______________________________________________
Prof. Eliska Altmann
PPGCS/ UFRRJ

______________________________________________
Prof. Dr. Marcos Alexandre Albuquerque
IFCH/UERJ

Suplentes:

_______________________________________________
Maria Laura Cavalcanti
PPGSA/UFRJ

________________________________________________
Luisa Elvira Belaunde
PPGAS/MN/UFRJ
CIP - Catalogação na Publicação

Fernandes Herszenhut, Debora


F569 m Militância, performance e devires imagéticos: O
cinema indígena brasileiro através das três décadas
do projeto Vídeo nas aldeias / Debora Fernandes
Herszenhut. -- Rio de Janeiro, 2014.
181 f.

Orientador: Marco Antônio Gonçalves.


Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia, 2014.

1. Antropologia visual. 2. Etnologia. 3. Cinema


indígena. 4. Etnografia. 5. Documentário. I.
Gonçalves, Marco Antônio , orient. II. Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os


dados fornecidos pelo(a) autor(a).
RESUMO

HERSZENHUT, Debora. Militância, performance e devires imagéticos: O cinema indígena


brasileiro através das três décadas do projeto Vídeo nas Aldeias. Dissertação de Mestrado em
Sociologia e Antropologia - PPGSA/IFCS/UFRJ: Rio de Janeiro, 2014.

Nesta dissertação, parto do levantamento do acervo filmográfico desenvolvido ao longo das


últimas três décadas (entre 1987 e 2014) pela ONG Vídeo nas Aldeias com grupos indígenas
de diversas etnias ao redor do Brasil, bem como da produção bibliográfica já produzida sobre
este acervo fílmico. Apresento a seguir algumas das questões que foram propostas acerca
destes filmes relacionando-as com teorias antropológicas e cinematógraficas, especificamente,
do cinema documentário. Proponho a articulação destas teorias e questões levantadas acerca
desta produção com a história do indigenismo brasileiro ao longo deste período. As questões
apresentadas a seguir, referem-se principalmente ao papel desempenhado pela imagem na
construção de relações e de elaboração de identidades étnicas no contexto político-social
contemporâneo, especialmente no que tange à história da constituição dos direitos legislativos
das populações indígenas brasileiras.
ABSTRACT

HERSZENHUT, Debora. Militancy, performance and imagistic becomings: The Brazilian


Indian cinema through the three decades of Video in the Villages project. Master's Degree
thesis on Sociology and anthropology - PPGSA/IFCS/UFRJ: Rio de Janeiro, 2014.

This survey is based on the film collection as well as the bibliographical production
developed by and about the NGO Video in the Villages, an institution that has been
documenting over the past three decades, different indigenous groups across Brazil. I present
below some issues that has been proposed about these film catalog, relating them with the
anthropological and cinematic theories, specifically of the documentary. I Relate these
theories and issues raised about this film collection with the Brazilian indigenism history over
these past three decades. The issues presented below refer mainly to the role played by the
image on building relations and on the process of ethnic identities construction in a
contemporary socio-political context, also regarding it with the history of the Brazilian
indigenous legislative establishment.

“Graças ao que, na imagem, é puramente
imagem (e que na verdade, é muito pouca coisa),
podemos passar sem as palavras e continuamos a
nos entender”.
Roland Barthes
AGRADECIMENTOS

Chegar até aqui não foi fácil, foram quase três longos anos de muitas turbulências.
Desde o processo seletivo, engravidei, pari, mudei de estado, mudei de casa, montei uma casa,
compartilhei uma casa com muitos amigos e hóspedes. Cursar um mestrado sem bolsa de
apoio à pesquisa, grávida e depois com um bebê, foi definitivamente uma tarefa bastante
árdua. Não foram poucas as vezes que pensei em desistir. Foram duas gestações e dois partos.
Ao longo deste período, li bastante, cresci, vi crescer em mim e fora de mim uma extensão do
meu corpo fora do corpo. Aprendi muito com tudo isso, ganhei muitos fios de cabelo branco.
Chorei muito, por tudo. Desencontrei o sentido de tudo muitas vezes. E agora ao me
aproximar do fim, recolho os fragmentos de mim espalhados nesta trajetória e reencontro o
motivo e sentido desta escolha.

Ao ingressar no programa, tinha muitos outros planos para minha pesquisa, tinha
recém comprado um equipamento de vídeo e queria utilizá-lo em campo, imaginava que
filmaria índios e que produziria imagens. Mas os imponderáveis da vida não me permitiram
este caminho. Pensei em mudar tudo, mudar de tema, não falar de nada disso, fui contaminada
pela maternidade e só conseguia me interessar pelas coisas que me ligassem a este assunto.
Ao decidir seguir em frente com meus acertos e erros, ilusões e desilusões, orientações e mais
orientações, por fim, reencontrei um caminho. Assim como na Antropologia, estava ali,
bastava olhar de outra maneira. Encontrar este caminho para a dissertação foi como tecer uma
colcha de retalhos, precisei me reencontrar com a minha história e, por fim, perceber neste
processo que o que eu tinha já era bastante coisa.

Gostaria de agradecer ao meu orientador, Marco Antônio, pela paciência, pelo apoio
constante, por todas as orientações, contribuições e inspirações para a realização deste
trabalho.
Ao professor Marcos Albuquerque, pela sua generosidade em partilhar comigo seu
maravilhoso acervo fílmico, pelo encontro recente, pela presença e pelas contribuições
acertivas na banca de qualificação. E também agora, por uma vez mais, prontamente aceitar o
convite para compor a banca de defesa do mestrado.

À Eliska Altmann, pelas conversas, desabafos e trocas no universo da antropologia


visual. Pela leitura atenta ao meu projeto de qualificação e apontamento de questões que se
fizeram bastante relevantes na finalização deste trabalho. E, finalmente, por aceitar o convite
para participar da banca de defesa de meu projeto de mestrado.

À Tatiana Bacal, que em meio aos seus inúmeros compromissos, aceitou ao convite de
participação desta banca de defesa de mestrado.

À professora Els Lagrou, que acompanhou minhas dificuldades neste processo desde o
meu primeiro semestre no programa, quem me apoiou quando precisei ainda no início desta
trajetória e recém parida. Por fim, por suas contribuições precisas na banca de qualificação de
mestrado.

Ao meu bebê Benjamim, que tanto me inspirou, que muitas vezes me obrigou a parar e
tantas outras me fortaleceu para continuar. Quem me faz companhia desde a barriga nas
primeiras aulas no programa do PPGSA, quem agora compartilha comigo os sentimentos
promovidos por estes filmes de índio que assistimos juntos ao longo deste processo de
pesquisa e que agora compõem a sua playlist no youtube.

Ao meu companheiro de todas as horas, Mario Wiedemann, que compartilha comigo


estas duas gestações e partos, quem acompanha sempre tudo de perto e que todos os dias me
ensina a olhar o mundo através de outros ângulos.

À Patricia Monte-Mór quem não apenas me deu livre acesso aos acervos do NAI e da
Mostra Internacional do Filme Etnográfico, mas, principalmente, quem há anos me ensina,
orienta e inspira. Minha mestra para sempre e de todas as horas.
À Rosane Manhães Prado, quem me mostrou as dores e delícias dos fazeres
antropológicos e quem, com muita generosidade e cuidado, me ensinou a dar os primeiros
passos neste ofício. Sempre presente e atenta com sua forma própria de exercer a maestria e,
por sorte minha, com quem tenho o privilégio de poder sempre contar com a orientação.

À minha mãe, Mirta por todas as razões que a fazem minha mãe e agora avó do
Benjamim, que ao acumular esta função esteve diretamente envolvida com o meu trabalho,
por todas as fraldas trocadas, parquinhos passeados, noites, tardes e manhãs de soneca com o
meu Benjamim.

À minha irmã Carol, que assim como minha mãe não só partilha comigo a sua
irmandade como também agora é tia do Benjamim. Por todas as razões que a fazem tia e irmã
maravilhosa, mas também pelas tardes com o Benja para que eu pudesse comparecer às aulas.

Aos meus avós Jacob, Elza e Mitha, sempre atentos e presentes, que ao tornarem-se
bisavós do Benjamim multiplicaram suas habilidades e produziram muitas delícias e
guloseimas que nos alimentaram o corpo e a alma ao longo destes quase três anos.

À Pérola Mathias, minha companheira nesta jornada de mestrado, amiga de trabalhos


em grupo, de viagens, cinemas e simpósios. Um presente que eu recebi quando aqui cheguei
ao programa.

Ao amigo Diego Madi Dias que me ajudou na preparação para o processo seletivo e
para o ingresso no programa, que compartilhou comigo uma casa, idéias, jantares e longas
conversas sobre antropologia, pesquisa, filmes, projetos e sonhos.

À professora Luisa Elvira Belaunde, que agora já não mais no Programa, possibilitou
espaços de trocas e aprendizados em sala de aula.
Às secretárias do PPGSA em especial à Claudia e Gleidis, que tiveram toda a
paciência e compreensão do mundo comigo e foram fundamentais para que conseguisse
chegar até aqui.

À toda a família Wiedemann que recebeu o Benjamim com todo amor e


disponibilidade do mundo e me deram muito suporte para que conseguisse estar presente em
aulas, reuniões, seminários e assuntos relativos à acadêmica.

Ao Chico e à Maria, pais do Zé, grande parceiro do Benjamim, que partilharam muitas
manhãs de parquinho, banhos de mangueira e a louca experiência da maternidade. Que hoje
me ajudam muito quando preciso deixar o Benjamim brincando em algum lugar.

Às amigas de todos os dias, que compartilham mais essa conquista comigo, Mariana
Kaufman, Julia Pittier, Marina Pittier, Sabrina Martins, Manoela Campos, Luna Yalom,
Mariana Vitarelli e Clara Duarte Guimarães.

Aos amigos feitos em outros campos, Careca e Betinho que me ensinaram na prática a
Antropologia reversa e se tornaram amigos de vida e de experiência.

E aos incontáveis outros amigos feitos nos trabalhos de campo realizados na Ilha
Grande e no Complexo do Alemão, que igualmente me ensinaram o sentido da Antropologia
compartilhada.

Aos companheiros de UERJ que tornaram-se compartilhadores de vida a partir das


experiências etnográficas vividas: Roberta Zanatta, Mariana Mendonça, Dudu Pererê, Márcio
Ranauro, Augusto Moulboisson e João Gustavo Monteiro de Barros.

Ao também companheiro de graduação na UERJ Vicente Cretton, hoje professor de


antropologia e guaraniólogo, por compartilhar o prazer pelos filmes dos cineastas Guarani e
me dar importantes orientações bibliográficas para que pudesse emergir neste universo
indígena.
Ao Bernard Belisário, por compartilhar comigo sua dissertação de mestrado, inúmeras
conversas, referências bibliográficas, conceitos e conhecimentos sobre este universo dos
filmes indígenas e especificamente sobre o projeto Vídeo nas Aldeias.

Ao meu padrasto Alexandre que muito me ajudou para a transformação desta


dissertação de virtual para material, no processo final de impressão deste texto sua
contribuição foi fundamental.

À Amandine Goisbault, Ernesto de Carvalho e Thiago Torres, pela acolhedora e


generosa recepção em Olinda durante o meu breve trabalho de campo.

Ao Raphinha, que ao alargar a teia tecida entre os amigos dos amigos me hospedou em
sua linda casa em Olinda durante o meu breve campo com toda a generosidade e carinho.

À Vincent Carelli, Divino, Takuma Kuikuro, Ariel Ortega e todos os realizadores


indígenas e pessoas diretamente envolvidas na produção fílmica do vídeo nas Aldeias, pela
criação e realização deste projeto profundamente inspirador.

São infinitos os pontos dessa colcha de retalhos, por hora vou parar por aqui. A todos
os que citei e os que não pude enumerar nestas páginas. No sentido proposto por Mauss, me
sinto eternamente vinculada à partir dos compartilhamentos e trocas de obrigações. MUITO
OBRIGADA!

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 15

1. O CINEMA DE VINCENT CARELLI

1.1 O Contexto histórico legislativo pós ditadura militar e a criação do


projeto VNA 25

1.2 Intercâmbio de imagens como metodologia para a prática indigenista 30

1.3 Militância e alteridade nos filmes de Vincent Carelli 36

1.4 Militância e Compartilhamento no cinema de Vincent Carelli 40

1.5 Antropofagia dos brancos para a sobrevivência da “espécie” índio 45

1.6 A nova cultura legislativa do patrimônio pós 88 e a legitimidade


dos registros imagéticos neste novo contexto político 52

2. OS FILMES DOS CINEASTAS INDÍGENAS

2.1 A história da formação dos cineastas indígenas 55

2.2 Metodologia, estética e ética nos filmes dos cineastas indígenas 64

2.3. Como desconstruir a idéia do índio genérico: os anos 90 e a nova


política ambiental. 72

2.4 A “cultura”, os filmes e os cineastas indígenas 80

2.5 Cinema indígena ou Cinema indigenizado? 88

2.6 Os anos 2000, a era Lula e a nova política cultural 96

2.7 Uma breve descrição etnográfica e um breve parênteses metodológico 102

2.8 Arrumando a casa, sacudindo a poeira 104

2.9 O amadurecimento estético, ético e político dos Cineastas Indígenas 107

3. O CINEMA GUARANI 116

3.1 A Cosmologia Guarani: algumas considerações 122

3.2 A cosmologia fílmica dos Guarani 132

POSFÁCIO
As novas diretrizes do cinema do VNA 161

CONCLUSÃO 170

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 175

REFERÊNCIAS FÍLMICAS 179


INTRODUÇÃO

O vídeo nas Aldeias (VNA) é uma Organização não governamental criada em 1987
pelo indigenista Vincent Carelli. Este projeto de produção videográfica que surge no seio de
uma militância política em favor da população indígena brasileira, traz objetivos claros
relativos ao empoderamento e engajamento destas sociedades nas suas respectivas lutas
políticas. Dar visibilidade a histórica disputa política dos indígenas brasileiros, através da
universalidade da linguagem audiovisual, é o ponto de onde partiu o trabalho desenvolvido
pelo projeto VNA.

No início, a metodologia de trabalho do projeto consistia em uma equipe de filmagem


composta por não indígenas dirigir-se às aldeias e “colocarem-se a serviço” da comunidade.
Disponibilizavam as ferramentas audiovisuais para que os indígenas propusessem as
temáticas a serem filmadas e, imediatamente após as filmagens, todos reuniam-se para assisti-
las. Posteriormente esta produção era (e ainda é) compartilhada com outros povos indígenas,
nos circuitos de festivais de cinema e nos eventos relacionados ao tema. Sobre este início do
projeto, Carelli comenta ainda em 1994 a respeito da ideia que alavancou esta iniciativa, as
primeiras impressões e suas perspectivas para o desenvolvimento deste trabalho ainda em fase
inicial.

A proposta básica do projeto Vídeo nas Aldeias era, em primeiro lugar levar aos índios
através do vídeo, todo um conjunto de informações - principalmente sobre outros grupos -
para que pudessem comparar a situação do contato. Queríamos também tornar a
manipulação da sua imagem acessível, ensinar como funciona o vídeo para que pudessem
começar a produzir suas imagens. Esta é a dimensão mais importante do projeto, mais
importante até que a informativa. A possibilidade de poder produzir e visionar, refazer e
regravar é fantástica.

O ato de ver a sua própria imagem gera em qualquer comunidade e também numa
comunidade indígena, uma dinâmica super interessante. Possibilita ao grupo fazer uma
reflexão sobre a imagem que fazia de si e a imagem que gostaria de ter de si, tanto para
dentro, quanto para fora. Esse projeto já tem cinco anos e vários desdobramentos. Está
formando jovens documentaristas indígenas, com uma produção basicamente destinada ao
consumo interno das comunidades. (CARELLI in MONTE-MOR; PARENTE (Org.),
1994, 33)

Após dez anos trabalhando com essa metodologia, o Vídeo nas Aldeias entrou em uma
nova fase, a formação de cineastas indígenas, com o objetivo de dar autonomia às 

15
comunidades para as suas respectivas produções audiovisuais. O Vídeo nas Aldeias
tornou-se uma escola de cinema para índios com a proposta de capacitar lideranças na
linguagem audiovisual. Foram mantidos os três tempos do processo metodológico aplicado
desde a criação do projeto (registro, visualização e intercâmbio/compartilhamento de
imagens). No entanto, neste novo momento os indígenas passaram a participar também do
processo técnico da criação.

Atualmente o projeto já formou alguns cineastas indígenas. Takuma Kuikuro é diretor


de cinco filmes, dentre eles está o bem sucedido Hiper mulheres, vencedor de diversos
prêmios nos mais importantes festivais de cinema do Brasil, como o festival de Brasília e de
Gramado. Divino Tserewahú é o indígena brasileiro mais premiado internacionalmente, assina
a direção de sete produções. Ariel Ortega, Mbyá Guarani, diretor formado mais recentemente
no VNA, assina atualmente cinco produções. Estes são apenas alguns exemplos de cineastas
indígenas que hoje assumem a missão de formar a nova geração de cineastas e fazem disso a
sua profissão, tanto dentro como fora de suas comunidades.

No Brasil um, projeto que tinha se desenvolvido com o objetivo de promover o encontro
entre grupos indígenas com a sua própria imagem havia se transformado em um peculiar
ateliê de formação de documentaristas indígenas, e estes vinham realizando seus próprios
filmes. Idealizado e implementado em 1986 por Vincent Carelli, o vídeo nas aldeias visava,
basicamente, tornar acessível aos índios o vídeo como meio de informação, comunicação e
expressão, e desenvolveu-se com o treinamento de jovens no uso dos equipamentos e a
articulação de uma rede de distribuição de vídeos entre as aldeias. (GONÇALVES, 2012,
18)

Neste contexto fértil de incontáveis produções audiovisuais, somente alguns destes


filmes circulam nos festivais de cinema e nos circuitos de distribuição estabelecidos pelo
projeto, são os chamados filmes de catálogo, que atualmente somam aproximadamente 75
títulos1. Existem ainda uma série de outros vídeos realizados pelo projeto que não entram no
catálogo. São estes, por exemplo, os vídeos institucionais realizados pela produtora VNA para
empresas. Os critérios e parâmetros para a escolha destes filmes de catálogo não são rígidos e
nem definidos com clareza, mas giram em torno de uma “qualidade artística” e, portanto, é

1 “Boa parte das imagens produzidas durante as oficinas do VNA destina-se a circulação nas próprias aldeias.
Os filmes que entram no catálogo do VNA, apenas uma pequena parte do material gravado e apresentado nas
aldeias são veiculados nos festivais e nas mostras e destinam-se a um público maior, desconhecedor da realidade
indígena.” (CAIXETA, 2008, 110)
16
possível encontrar alguns filmes que foram feitos em contextos “institucionais” entre os
títulos do catálogo.

Este estudo propõe a análise da produção fílmica disponibilizada no catálogo do VNA


a partir da síntese em três tipos fílmicos. Corro o risco de deixar muitas observações
relevantes desta produção fora da minha análise a partir deste recorte. No entanto, acredito
que através desta linha narrativa é possível abordar de forma clara, sintética e sistemática a
evolução e trajetória do projeto VNA, seja em termos estéticos, cronológicos ou políticos,
dando conta de uma série de questões levantadas a respeito desta vasta produção. Devo ainda
destacar que a categorização de tipos fílmicos não sugere que estes filmes devam ser
observados somente sob esta ótica, mas sim que estas categorias estão sendo colocadas para
pensar esta produção a partir destes viéses temáticos, visto que estes aparecem
recorrentemente nesta vasta produção audiovisual.

O primeiro tipo fílmico2 a ser analisado são filmes com temáticas claramente
identificadas à militância política indigenista, presentes desde a fundação do projeto dirigidos
(ou co-dirigidos) em sua grande maioria pelo coordenador e fundador do projeto Vincent
Carelli. O segundo tipo são filmes que pretendem a afirmação de uma “cultura” indígena
através da documentação de rituais, modo de vida e cultura material e imaterial destes povos,
dirigidos por cineastas indígenas de diversas etnias participantes do projeto. Por fim, o
terceiro e mais intrigante tipo fílmico, o qual qualifico aqui como Cinema Guarani, são filmes
relativamente recentes, produzidos a partir de 2007 pelo projeto VNA. Estes filmes realizados
com um grupo de cineastas Guarani Mbya do sul do país apresentam características tanto de
militância, identificados com o primeiro tipo descrito, quanto de afirmações culturais,
conforme o segundo tipo. No entanto, a estética e abordagem destes filmes são bastante
diferenciadas dos outros dois tipos. Peculiaridade estas que esmiuçarei mais adiante neste
texto.

2 Faz-se importante, portanto, destacar aqui que, toda a vez em que o termo tipo fílmico aparecer no texto sugere
que este foi o termo encontrado para definir as questões que pretendo recortar e levantar acerca de determinados
filmes produzidos no contexto do projeto Vídeo nas Aldeias, o que necessariamente não significa serem tipos
ideais, pois não são puros, ou seja, não são apenas isto. Esta é somente uma das formas possíveis de olhar estes
filmes produzidos no âmbito deste projeto. É, portanto, apenas um dos ângulos possíveis e através do qual
projetarei as minhas análises. Desta forma, sempre que o termo aparecer no texto virá em itálico, sugerindo que
esta é uma definição própria e que deve ser compreendida dentro destas reflexões.
17
Existe atualmente uma ampla produção bibliográfica a respeito desta produção
audiovisual indígena brasileira desenvolvida no âmbito do projeto VNA. Nesta pesquisa
realizo, a partir da revisão desta bibliografia e das questões recorrentemente discutidas nestes
textos, uma qualificação pormenorizada destes três tipos fílmicos acima citados. Neste
percurso concentrarei a análise somente em alguns filmes que, ao meu ver, ilustram estas
questões sugeridas anteriormente. Neste sentido analisarei alguns documentários realizados ao
longo destes 29 anos de projeto VNA que ilustram e pontuam de forma clara as características
evidenciadas por cada um destes tipos fílmicos, detendo-me mais especificamente na
decupagem e análise pormenorizada ao terceiro tipo fílmico, o Cinema Guarani.

No que se refere à metodologia de pesquisa, os meus nativos são esta vasta filmografia
e bibliografia produzida por e sobre o projeto VNA. São com eles (filmes e textos) e a partir
deles que dialogarei e trarei as reflexões antropológicas. Ao observar esta produção do e sobre
o VNA, torna-se evidente a necessidade em trazer para a reflexão a trajetória de vida de
Vincent Carelli fundador e diretor do projeto. Esmiuçar sua trajetória profissional, pessoal e
suas redes de relações foram peças fundamentais para compreender esta produção e
desenvolver a análise que proponho a seguir.

A imersão neste acervo fílmico se deu através do acesso ao acervo do Núcleo de


Antropologia e Imagem da UERJ/NAI3 e do acervo da Mostra Internacional do Filme
Etnográfico4, da qual faço parte da equipe de produção desde 2004 e onde tive os primeiros
contatos com esta intrigante produção fílmica. Nesta etnografia, portanto, a imersão em
campo se deu dentro de acervos fílmicos e bibliográficos muito específicos, visto que estes

3 O Núcleo de Antropologia e Imagem (NAI) foi criado na UERJ em 1994, no âmbito da Oficina de Ensino e
Pesquisa em Ciências Sociais do Departamento de Ciências Sociais, sendo um núcleo associado a pós-graduação
PPCIS. Trata-se de um núcleo dedicado a pesquisar e difundir as novas linguagens no campo dos registros
etnográficos, com ênfase na linguagem audiovisual. É coordenado por Patrícia Monte-Mór. Este trabalho vem se
desenvolvendo, nos últimos anos, a partir de diversas frentes: organização e publicação da revista Cadernos de
Antropologia e Imagem, organização de um acervo de documentários de interesse etnográfico; organização de
seminários e encontros; realização de cursos de formação audiovisual, assessorias a projetos e cursos; produção
de vídeos etnográficos, através do Laboratório de Edição NAI/PPCIS. (Dados retirados do blog do NAI http://
naiuerj.blogspot.com.br/)

4A Mostra Internacional do Filme Etnográfico teve sua primeira edição no Centro Cultural Banco do Brasil do
Rio de Janeiro em 1994, foi o primeiro festival do gênero organizado no país. Esta que pretendia ser um evento
pontual, tornou-se anual e atualmente completou 20 anos de existência e 15 edições.
18
filmes bem como esta produção textual não são de fácil acesso. Neste processo de imersão em
campo, um dos principais trabalhos executados foi o levantamento filmográfico e
bibliográfico desta e sobre esta produção, o que considero um verdadeiro trabalho de
garimpo, visto que este é um material disperso e não encontramos hoje ainda um local onde
esta produção esteja centralizada. Sendo este também, portanto, um dos esforços desta
pesquisa, a tentativa de levantar esta produção e centralizar as discussões antropológicas já
produzidas a respeito deste cinema indígena num único espaço.

Num terceiro e último tempo desta pesquisa, tive a oportunidade de fazer uma breve
visita à sede do Vídeo nas Aldeias em Olinda (PE), onde fui recebida por Tiago Torres,
Amandine Gouisbault e Ernesto de Carvalho, que ajudam a “tocar” este projeto com Carelli
desde 2006/2007. Este foi um momento já tardio e de imensa relevância para a pesquisa, pois
a partir de longas conversas com os três tive a oportunidade perceber o ponto em que se
encontra o projeto atualmente, conhecer as estratégias de financiamento e a estrutura física do
VNA.

O trabalho desenvolvido pelo Vídeo na Aldeias não é exatamente pioneiro no que se


refere a filmagem e documentação de culturas indígenas no Brasil, visto que antes da sua
criação já haviam algumas produções relevantes neste sentido. Trabalhos estes que vão desde
os filmes produzidos pela comissão Rondon, através da documentação fílmica realizada pelo
Major Thomaz Reis5 na última década do século XIX, até a produção realizada pelo
antropólogo Terrence Turner, junto aos Kayapó, no Pará, ao longo de 30 anos de pesquisa
com o grupo. Passando por registros feitos pela equipe dos irmãos Villas Boas, quando a
criação do Parque do Xingu, entre outros. No entanto, a relevância do trabalho realizado pelo
Vídeo nas Aldeias, se encontra principalmente no que se refere à sistematicidade exercida
neste trabalho, que ao longo de três décadas vem documentando ininterruptamente grupos
indígenas de diversas etnias ao redor do Brasil (atualmente somam 32).
Em segundo lugar, a especificidade desta produção se encontra no momento da
criação deste projeto, fundado como um braço de atuação do CTI (Centro de Trabalho

5 Em 1912 Rondon criou a Secção de Cinematographia e Photographia, colocando-o sob a responsabilidade do


tenente Major Thomaz Luiz Reis, que se tornaria o principal fotógrafo da comissão e ficaria conhecido como
Major Reis (TACCA, 199 apud GONÇALVES, 2012,33).
19
Indigenista). Desde o momento de sua criação em 1986, um grupo de antropólogos/etnólogos
politicamente engajados, estiveram diretamente ligados ao projeto, ao qual davam assessoria
ao trabalho de tradução de línguas indígenas, assessoria/consultoria antropológica e ainda
atuando diretamente na realização dos filmes.
O terceiro ponto que considero importante destacar referente a especificidade do
trabalho desenvolvido pelo VNA antes de, de fato, adentrar na reflexão a qual me proponho
neste trabalho, diz respeito à forma de produção destes vídeos. Este projeto que foi idealizado,
como já citado anteriormente, com o intuito de empoderar as populações indígenas no manejo
das ferramentas audiovisuais, tinha um propósito claro no sentido de viabilizar um meio de
luta e de articulação política para que estas populações, até então tuteladas pelo estado e com
os seus direitos reduzidos aos de alguém incapaz de dar conta de si, pudessem atuar em causa
própria. E nesse sentido sim, o Vídeo nas Aldeias foi um projeto pioneiro, pois articulou esta
produção de registros audiovisuais sistemáticos ao engajamento e à militância indígena e
indigenista, trazendo para o primeiro plano destes filmes indígenas, os índios como
idealizadores destas imagens.
Neste estudo me interessa, portanto, analisar quais as motivações e implicações que
envolvem a produção e circulação destas imagens indígenas tanto dentro quanto fora destas
comunidades por onde circulam os filmes realizados pelo VNA. Compreender a trajetória da
política indígena praticada pelo Estado brasileiro, através destes filmes que foram produzidos
ao longo das três décadas que atravessam a história de redemocratização do país6 é também
um dos esforços desta pesquisa.

Buscar refletir sobre a prática antropológica a partir desta experiência de indigenismo


fílmico vivenciada pelo projeto VNA e compreender o espaço que estas imagens ocupam na
reflexão acerca da prática da antropologia associada à utilização da imagem foram as
estratégias encontradas para tentar dar conta desta produção fílmica em profundo diálogo com
a antropologia. Associar este movimento evidenciado por estas imagens à trajetória do
cinema documentário em sua estreita relação com a antropologia, no que se refere à
linguagem, abordagem, narrativa e estética, é um dos esforços finais deste projeto. A proposta
a seguir é, portanto, pensar este projeto enquanto um projeto político-cinematográfico-

6 O marco adotado para este período é o ano 1988 com a aprovação da nova constituição.
20
antropológico que atravessa as três décadas dos direitos indígenas brasileiro desde a
aprovação da nova constituição no país.

No primeiro capítulo busco fazer uma breve trajetória dessa política indigenista
praticada no Brasil a partir da década de 1970, bem como contextualizar o projeto VNA
globalmente. Em diálogo com Gallois, Ginsburg e Vidal, que acompanharam o nascimento
destas iniciativas no Brasil e no mundo. Contextualizo esta experiência tanto no que se refere
às reflexões conceituais acerca deste projeto, quanto no exercício empírico da antropologia,
tomando este como fruto de uma tradição de uma das principais escolas de antropologia do
país, a USP, que neste período pregava claramente por uma antropologia engajada na prática.

Neste capítulo apresento o primeiro tipo fílmico já acima citado, o Cinema de Vincent.
Este cinema de militância explícita, que traz para o mundo dos brancos a imagem do índio
real, é discutida neste texto a partir de alguns parâmetros. O primeiro localiza-se na tentativa
de trazer as multiplicidades étnicas para a discussão e a descoberta pelos índios da existência
dos outros índios, numa tentativa de busca por reconhecimento e (re)existência. Através da
imagem, estes índios percebem que não estão sozinhos nas suas lutas e realizam o esforço por
reconhecerem-se índios a partir das diferenças étnicas trazidas através destes filmes, que
colocam em foco a questão relativa à desmitificação do índio genérico.

O cinema de Vincent, quando propõe o encontro de índios empoderados de suas


imagens com outros índios e com os brancos, é impossível desassociá-lo do movimento
inaugurado pelo Cinema Verdade proposto por Jean Rouch na década de 1960. E todas as
reflexões e implicações que causaram esta prática da antropologia compartilhada, mexeram
com as estruturas sólidas de uma escola de antropologia francesa e mudou para sempre os
rumos do documentário. Pensar este movimento feito por Vincent Carelli no Brasil em
paralelo à experiência de Rouch na África é importante não apenas como forma de enquadrar
este cinema esteticamente, mas também para pensar os rumos da antropologia e do cinema
documentário produzidos no Brasil nesta época, para assim seguirmos nesta evolução
cronológica do projeto que acompanha a trajetória destes tipos fílmicos.

Ainda acerca desta produção compartilhada, trago discussões antropológicas mais


atualizadas a respeito de ser ou não ser índio, ser ainda ou não ser mais índio, questões estas

21
levantadas pelos próprios indígenas quando têm a oportunidade de refletirem sobre as suas
imagens. Estas questões foram também amplamente discutidas pela antropologia
contemporânea, especialmente no Brasil. Neste ponto faço um diálogo com Fausto (2011) e
Gallois (2000) a respeito do conceito de transculturalidade e a busca por afirmação de
identidades a partir do contato, das diferenças e da alteridade despertada na produção e
circulação destes filmes.

No capítulo dois, apresento o segundo tipo fílmico, Cineastas indígenas. Quando em


1997 o VNA toma a iniciativa de formar realizadores indígenas, os filmes parecem receber
novos contornos. Estes primeiros filmes produzidos pelos cineastas indígenas7 formados pelo
projeto VNA, tratam de afirmar as suas próprias culturas através de imagens e não mais
questioná-las. Surgem num cenário político de um Brasil repaginado e já profundamente
institucionalizado no que se refere à militância indigenista. Os índios que agora mostram ao
mundo a sua “cultura” apropriam-se destes instrumentos políticos para defenderem suas
causas a partir destas perspectivas identitárias, isto é, ser índio de fato. E isso as imagens
mostram. Para pensar este processo de empoderamento de instrumentos ocidentais para a
tarefa de tornarem-se índios para os brancos, trago as discussões propostas por Carneiro da
Cunha (2009) e Marco Antonio Gonçalves (2008), a respeito da apropriação e ressignificação
do conceito de cultura pelos nativos ou objetos de pesquisa. Em diálogo com Golçalves a
partir dos escritos de Capistrano de Abreu, situo esta produção fílmica do VNA neste esforço
pela afirmação de individualidades étnicas o qual resulta numa voz homogênea que se faz
ecoar no universo da luta pelos direitos indígenas.

Neste sentido também mais uma vez podemos ver o documentário e a antropologia em
diálogo quando as novas tecnologias possibilitaram o acesso a equipamentos de filmagem em
larga escala e o vídeo torna-se uma ferramenta acessível. Vemos surgir no cenário
cinematográfico um novo cinema, ou um rompimento com tudo o que o cinema já havia
experimentado até então. Pois se antes fazer filmes era para poucos, agora é para qualquer
um. Isto pode significar o fim do cinema ou a criação de uma nova categoria fílmica. No
entanto, a discussão a que me detenho neste trabalho é sobre o que este processo trouxe de

7Cineastas indígenas é o termo empregado pelo projeto VNA para designar este momento de sua produção. O
mesmo será discutido e relativizado mais adiante no texto.
22
novidade para o cinema documentário, onde mais uma vez acompanha os caminhos e
discussões antropológicas. O documentário chegou aonde não se chegava e passou a ser visto
através dos olhos daqueles que só eram vistos. Foi como virar do avesso e conhecer o mundo
filmado, de, e por dentro. Da mesma forma que a antropologia passou a conhecer uma nova
categoria: os pesquisadores nativos.

Neste capítulo trago também a discussão proposta por Leite Lopes (2006) sobre O
processo de ambientalização em diálogo com Norbert Elias (1993, 1994) sobre o O processo
civilizador para pensar sobre a legitimidade atribuída a esta etnicidade, ou como colocarei
mais a adiante no texto, a certificação de um Selo Étnico atribuído a estas populações
tradicionais à partir da implementação da nova legislação e da apropriação destas identidades
e seus respectivos direitos pelos sujeitos em questão.

Por fim, no último capítulo do texto apresento o Cinema Guarani, o último tipo
fílmico a ser discutido representa também o momento atual do projeto VNA. Ou seja, os
filmes mais recentes produzidos pelo projeto em contexto de oficina de formação de cineastas
indígenas. Filmes estes profundamente emblemáticos para repensar todas as questões
apresentadas acima. São militantes como o primeiro tipo fílmico e também de afirmações e
representações culturais conforme o segundo. No entanto, as opções feitas para percorrerem
estes caminhos são diametralmente opostas. As escolhas estéticas, narrativas e de montagem
propõem novos desafios tanto para a antropologia quanto para o cinema. Mostrar de e por
dentro afinal, não é fácil. Os tipos fílmicos desta dissertação, portanto, não devem ser
compreendidos como uma realidade única, mas podem ajudar a compreendê-la como sugere o
conceito de tipos ideais.

Utilizo o Cinema Guarani para repensar a discussão proposta por Caixeta (2009)
acerca de um cinema indigenizado produzido no contexto do Vídeo nas Aldeias. Caixeta traça
um paralelo entre a estrutura do pensamento selvagem proposta por Lévi-Strauss a partir da
metáfora sobre o processo de trabalho do bricoleur. Conforme afirma Caixeta, esta
indigenização do cinema acontece quando os indígenas mostram-se apropriados das
ferramentas produtoras de imagens e passam a produzir “bons filmes”.

23
Neste capítulo, apresento uma breve revisão bibliográfica de textos clássicos da
literatura antropológica sobre a tradição Tupi-Guarani, mais especificamente, em diálogo com
os trabalhos produzidos por Helene Clastres (1978) e Viveiros de Castro (1986),
especificamente no que se refere abordagem teórica sobre a cosmologia e tradição deste
povo.

Retomo uma última vez a questão da autoria destes filmes a partir do conceito de
identidades transculturais. Em diálogo com Wagner (2010), faz-se importante pensar esta
produção no sentido proposto pelo autor, da prática da antropologia reversa. Seguindo o fluxo
de acontecimentos que atravessa o documentário e a antropologia, buscarei compreender este
Cinema Guarani que apresenta tantas questões “boas para pensar” retomando também as
discussões propostas por Caixeta e Brasil (2012) acerca deste cinema indígena realizado no
âmbito do projeto VNA.

Por fim, já no posfácio deste texto, volto às atenções para as formas de produção
contemporânea do VNA no que tange as estratégias de financiamento encontradas pelo
projeto para a sobrevivência e continuidade do trabalho. Atualizando, assim, as diretrizes
políticas do projeto três décadas depois da sua criação, que parecem, por fim, revelar uma
autêntica produção cinematográfica, reversa e compartilhada.

24
Capítulo 1

O CINEMA DE VINCENT CARELLI

1.1 O Contexto histórico legislativo pós ditadura militar e a criação do projeto VNA

O Vídeo Nas Aldeias foi criado em 1987. No cenário político, estamos em pleno
processo de redemocratização do país, às vésperas da aprovação da nova constituição de 88,
que traz novidades na legislação relativa aos direitos dos povos indígenas. A saber:

O reconhecimento do caráter pluriétnico da sociedade brasileira no texto constitucional


estabeleceu novos parâmetros para as relações dos índios com os não índios e com o
Estado, afastando definitivamente a perspectiva assimilacionista e esvaziando o instituto da
tutela (Leitão e Araújo 2002). Resumidamente, a constituição reconhece aos índios sua
organização social, costumes, línguas, crenças e tradições; sobre as terras que ocupam
reconhece direitos originários e imprescritíveis, consideradas inalienáveis e indisponíveis,
dando-lhes a posse permanente e usufruto exclusivo dos recursos naturais nelas existentes
(Art. 231, § 1º ao 7º); reconhece uso de suas línguas maternas e dos processos próprios de
aprendizagem (Art. 210, § 2º); impõe proteção às manifestações culturais indígenas que
passam a integrar o patrimônio cultural brasileiro (Art. 215); assegura-lhes a iniciativa
judicial na defesa de seus direitos e interesses (Art. 232); e atribui a função institucional ao
ministério público de defender judicialmente os direitos e interesses das populações
indígenas (Art.129, V).(GONÇALVES, 2012, 47)

Neste contexto de abertura política surgem uma série de associações civis


devidamente registradas e organizadas para lutarem em causa própria. O Vídeo nas Aldeias
nasce neste período, em 1987, como um braço de atividades de um projeto anterior, o CTI
(Centro de Trabalho Indigenista), criado em 1979 por um grupo de antropólogos e
educadores, que tem como princípio contribuir para que “povos indígenas assumam o
controle efetivo de seus territórios, esclarecendo-lhes assistência sobre o papel do Estado na
proteção e garantia de seus direitos constitucionais”8.

O projeto Vídeo nas Aldeias nasceu em 1987, no Centro de Trabalho Indigenista (CTI),
uma organização não-governamental fundada em 1979 por um grupo de antropólogos e de
educadores que desejavam estender sua experiência inicial de pesquisa etnológica na forma
de programas de intervenção adequados às comunidades indígenas com as quais se
relacionavam. A equipe do CTI tem um patrimônio de relações acumuladas, ao longo de
muitos anos, com vários grupos indígenas, apoiando seus esforços de reconhecimento,
demarcação e desintrusamento das reservas, seus projetos de manejo de recursos naturais e
de desenvolvimento sustentado, assim como a implantação de programas educacionais
adaptados à realidade de cada povo. (GALLOIS; CARELLI, 1995, 61)

8 Para maiores informações ver: www.trabalhoindigenista.org.br


25
Neste sentido, o projeto VNA nasce junto com uma outra série de iniciativas nacionais
referentes às lutas políticas indígenas, por onde já circulavam líderes de grande
respeitabilidade, como é o caso de Ailton Krenak, Davi Kopenawa e organizações como o
CIMI (Conselho Indigenista Missionário ), o CEDI (Centro Ecumênico de Documentação e
Informação), entre outros.9

As organizações não governamentais surgiram no Brasil no final da década de 1960. Essas


foram, predominantemente, organizações religiosas que praticavam uma política militante e
voluntarista, com destaque para a capacidade mediadora dos educadores de base
(PANTALEÓN, 2002). Em seu seio se consolidou o movimento de um indigenismo
“alternativo” ou “não oficial”, em oposição ao indigenismo de estado. Desde então,
convencionou-se chamar de “indigenistas” os não índios que trabalham direta ou
indiretamente para os índios, em diferentes aspectos que envolvem a defesa de seus direitos
de cidadãos brasileiros diferenciados.
Indigenismo alternativo e politização da identidade indígena surgem imbricados, um
necessitando do outro para existir no “tempo excessivo de proibição de tudo”, como Ailton
Krenak (199) qualifica a ditadura militar. (GONÇALVES, 2012, 41)

O Vídeo nas Aldeias surge como uma possibilidade de luta e militância nesse período
de abertura política e redemocratização do país, com uma proposta clara: trazer, a partir da
apropriação das ferramentas audiovisuais, o diálogo e a voz para estes povos indígenas
brasileiros nunca antes representados por si próprios. Conforme afirma Carelli a respeito das
ideias que o motivaram à criação do projeto, havia um desejo claro em contrapor as imagens
que estavam sendo produzidas e veiculadas na mídia sobre os indígenas brasileiros. E para
isso era necessário trabalhar em parceria.

A história do vídeo nas aldeias começa em 1987, no momento em que o vídeo se


popularizava no Brasil e chegava às mãos dos índios, principalmente dos Kayapó, que na
época já eram os índios que possuíam ouro, mogno e bastante dinheiro. Compraram suas
camcorders. Um grupo aqui do Rio começou a dar apoio a esses Kayapó, e um americano
que também começou a se envolver nisso. Colocar o vídeo nas mãos dos índios era uma
ideia antiga. No entanto, víamos esse trabalho ser realizado em uma única mão, entre o
repórter, o documentarista e os índios. Os índios eram bombardeados por câmeras, imagens
e muitas vezes imploravam por um retorno material. As pessoas não percebem que as
coisas não devem andar em um só sentido. Os índios tem uma curiosidade imensa sobre
muitas coisas.” (CARELLI in MONTE-MOR; PARENTE (Org.), 1994, 33)

A trajetória de Carelli é profundamente atravessada pelo encontro com indigenistas


formados na USP sob a orientação de Lux Vidal. Este fato não deve ser visto como uma
coincidência, mas como a opção de formação de uma geração radicada em São Paulo que, ao
atravessar o período final de ditadura militar no país, engajou-se na militância indigenista a

9 Ver mais sobre a história e consolidação do indigenismo no Brasil em: GONÇALVES, 2011.
26
partir da prática antropológica e encontra nesta escola um local para fazer eco a estas
reivindicações. Lux Vidal a respeito da formação e idealização destes projetos no final da
década de 1970, comenta:

Em 1977-78 ocorreu uma grande reunião na biblioteca Mário de Andrade, especialmente


para discutir a questão indígena e os impactos de grandes obras. E havia uma mesa muito
importante, em que estava o Orlando Villas Bôas, o Dalmo Dallari e outros, mas faltou uma
das personalidades que comporiam a mesa e eu fui chamada às pressas para substituí-la. E
foi ali que eu disse que seria preciso criar entidades que apoiassem a FUNAI, mas que
fossem independentes. Isso foi dito com toda clareza, e penso que foi nessa época que
algumas ONGs se criaram. Já havia sido constituída a ANAI, em Florianópolis, que atuava
em questões jurídicas. Silvio Coelho dos Santos foi um pioneiro nesta luta. Pouco depois
desse evento, a Comissão Pró-Índio de São Paulo começaria a ser esboçada, aqui em minha
casa, com Rubens Thomaz de Almeida, que trabalhava entre os Guarani, e o Fundo Samuel
nos apoiando com algum recurso. Um pouco mais tarde surgiria o CTI, Centro de Trabalho
Indigenista, uma cisão da Comissão Pró-Índio. Eram todos meus alunos. O próprio CEDI,
Centro Ecumênico de Documentação e Informação, que depois daria origem ao ISA,
Instituto Socioambiental, num certo sentido, começou numa aula de graduação na USP,
quando Beto Ricardo e Jurandir Craveiro fizeram um levantamento sobre os índios no
Brasil como trabalho final de curso, que mais tarde foi publicado. Enfim, era uma época em
que trabalhávamos todos pela mesma causa, consolidando as entidades de apoio ao índio.
Em 1978 houve a grande manifestação na PUC contra o decreto de emancipação dos índios
supostamente “aculturados”. Foi quando publicamos o primeiro livro da CPI, que eu
coordenei, além de mais dois números. Também organizei o livro O índio e a cidadania
(VIDAL, 1983). Começamos a fazer laudos sobre as hidrelétricas, realizamos os primeiros
estudos no Xingu. Também iniciei o processo de reconhecimento dos danos causados aos
índios Gaviões da Montanha, removidos à força do lugar onde fica hoje a barragem de
Tucuruí. Estavam abandonados, na rua. Toda a equipe para os estudos sobre o Projeto
Carajás e seus impactos em Terras Indígenas fui eu que montei. (MACEDO; GRUPIONI,
2009, 808)

O Vídeo nas Aldeias foi um projeto idealizado no seio desta militância política em
favor dos direitos indígenas. Criado com o intuito de familiarizar as lideranças com as
ferramentas produtoras de imagens, acreditando ser esta uma forma de dar voz e visibilidade
aos diferentes grupos étnicos ao redor do Brasil que sofrem desde os primeiros contatos com
o branco, com a perda de território e dizimação massiva de suas populações. A aposta na
utilização das ferramentas audiovisuais se dá de maneira clara e objetiva. Pois se estes povos
não dominam o português, a escrita e a oratória oficial do país, os registros fílmicos poderiam
surgir como um bom mediador das questões específicas de cada povo, que passariam a
comunicar-se através da imagem, sem necessariamente o domínio do idioma oficial.
Produzindo assim, através destas imagens, suas reivindicações e articulações políticas.

Ele (o Vídeo nas Aldeias) surge no bojo de uma relação acumulada ao longo de anos, uma
relação de vida, centrada em torno de uma cooperação entre índios e não índios para tentar
enfrentar problemas vitais como demarcação ou invasão de reservas, encontrar meios de
subsistência e integração na economia nacional, ou formas de negociação com o governo
para ter acesso à saúde e educação. A proposta era oferecer instrumentos que lhes
27
permitissem ter acesso às suas imagens, elaborar e recriar a sua própria imagem. O
procedimento adotado, em que a totalidade das imagens produzidas era imediatamente
exibida em público, permitia que a câmera passasse a ser um objeto apropriável por eles. A
presença da câmera criava ou instigava o fato que ela estava documentando. E é por esta
razão que não somente as pessoas não tinham uma relação incômoda com a câmera, como
também interagiam com ela, muitas vezes se dirigindo explicitamente e diretamente a ela. A
câmera não era um objeto transparente, ela era um dos atores em cena. (CARELLI in
VÍDEO NAS ALDEIAS, 2004, 22)

Para situar globalmente este processo de atuação indigenista através da utilização de


ferramentas audiovisuais inaugurado no Brasil pelo Vídeo nas Aldeias, em outros países
surgem neste mesmo contexto de políticas de democratização ao longo da segunda metade do
século XX iniciativas semalhantes, como é o caso do Igloolik Isuma Productions, criado em
1985 no Canadá, o Consejo Latinoamericano de Cine y Video do los Pueblos Indígenas,
criado em 1985 no México, o Centro de Formación y Realización Cinematographica, criado
em 1989 na Bolívia e o CAAMA (Central Australian Aboriginal Media Association) criado
em 1980 na Austrália. Ginsburg observa a criação destes projetos que articulam povos nativos
ao redor do globo às suas próprias produções audiovisuais, como uma iniciativa que tomou o
mundo a partir da década de 1980 e que compartilhavam de um mesmo desejo e expectativas
em relação a apropriação destas ferramentas.

Ao longo dos últimos dez anos, indígenas e minorias étnicas vem utilizando uma variedade
de mídias, que incluem vídeo e filme, como um novo veículo de comunicação interna e
externa, para auto determinação e para resistirem a dominação cultural exterior. As novas
formas de mídia que eles estão criando são inovadoras tanto na representação fílmica
quanto no processo social e na expressão de transformações da identidade cultural, em
termos moldadas pelas condições locais e globais do século XX. Tal alternativa “mídia
multicultural” entrou na moda e mais visível no final da década de 1980: Mostras em
museus americanos, o setor de oficina de filme negro no Reino Unido (Black film
workshop sector) e o Serviço de Transmissão Especial (Special broadcasting service) na
Austrália são apenas alguns exemplos desse interesse crescente. (GINSBURG, 1991, 93 –
Tradução própria)

Muitos destes projetos surgem numa espécie de mea-culpa governamental na tentativa


de reparar danos históricos cometidos à população nativa e, desta forma, surgem no bojo de
políticas públicas financiadas pelo governo. No entanto, em sua imensa maioria,
principalmente nos países da América Latina, estes projetos surgem numa clara articulação
das populações nativas com a sociedade civil organizada e engajada na militância indigenista
no âmbito do terceiro setor, financiados por instituições privadas, como é o caso do Vídeo nas

28
Aldeias, que ao longo de sua trajetória teve como um dos seus principais financiadores a
embaixada da Noruega. 10

O Vídeo nas Aldeias tem sido, até hoje, financiado exclusivamente por agências
estrangeiras. É sintomático e condizente com a realidade em que vivemos um projeto como
este nunca ter recebido nenhum apoio do governo brasileiro. É necessário que o Estado e a
iniciativa privada acreditem no potencial criativo dos povos indígenas, invistam na
divulgação destas culturas e estimulem o diálogo intercultural. Para tanto, é preciso investir
em formação de novos talentos, em produção de novos trabalhos. Os índios, munidos
destas novas linguagens e tecnologias, produzem obras absolutamente originais nos campos
das artes plásticas, da literatura e do cinema. É preciso usufruir, vivenciar a riqueza cultural
indígena deste país e deixar de vê-la como coisa do passado. (CARELLI in VÍDEO NAS
ALDEIAS, 2004, 29)

10 “O Canadá, por exemplo, financia não sei quantas redes de televisão indígena, redes transmitidas em língua
nativa, e tudo mais. Na austrália também existem experências nesse sentido. Mas nós ainda não chegamos
aí.” (CARELLI in MONTE-MOR; PARENTE (Org.), 1994, 25)
29
1.2 Intercâmbio de imagens como metodologia para a prática indigenista

!
Vincent Carelli na sua primeira viagem aos Xikrin fotografado por Bebnio (1969).11

Vincent Carelli, cineasta, fotógrafo e indigenista fundador e diretor do projeto Vídeo


nas Aldeias, é um Francês nascido em Paris em 1953. Mudou-se para o Brasil aos 5 anos de
idade. Aos dezesseis, quando ainda no colegial, no Liceu Pasteur em São Paulo e adolescente
em crise existencial, foi convidado pelo Frei José Caron a acompanhá-lo junto com a
Antropóloga Lux Vidal, que havia sido sua professora no Liceu, a uma expedição à aldeia
Xikrin no Pará.

Cabe aqui um pequeno parênteses sobre o encontro de Vincent Carelli com a


antropóloga Lux Vidal. Eles se conheceram no Liceu Pasteur onde Vincent estudava e Vidal
foi professora secundarista durante dez anos. Em 1967, Vidal ingressa para o mestrado na

11 Imagem retirada do livro Vídeo nas Aldeias 25 anos. Para maiores informações, ver bibliografia.
30
USP e decide como tema de sua pesquisa estudar esta peculiar escola de imigrantes franceses
em São Paulo, que abrigava muitos filhos de engenheiros e técnicos (inclusive os seus filhos)
que chegavam ao Brasil para trabalharem na montagem de fábricas no país. No entanto, sua
vida é atravessada pela trágica morte de sua filha. Neste momento todo o seu projeto de
pesquisa deixou de fazer sentido e sua vida fica subitamente paralisada. Foi quando Frei
Caron a convidou para o acompanhar numa expedição aos Xikrin no Pará, em 1969. Esta
viagem que parece ter sido um divisor de águas em sua trajetória profissional, foi a mesma
que levou Carelli aos Xikrin pela primeira vez aos dezesseis anos, conforme narra a própria:

Mudou tudo quando faleceu minha filha, Martine. Foi um momento muito difícil. Não me
sentia mais capaz de falar sobre o Liceu, perdi o sentido crítico. Abandonei esta pesquisa,
não estava mais fazendo nada, quando o frei José Caron, um dominicano, me convidou para
ir aos Xikrin com ele, em dezembro de 1969. Também me acompanhou Vincent Carelli,
então um jovem estudante do Liceu. Ao me deparar com aquele universo, percebi que havia
pouco ou nenhum estudo sobre esses índios (...) Para muitos, os Xikrin não existiam mais
ou deixariam de existir em breve. Então comecei a fazer minha pesquisa e foi muito bom
porque era um trabalho completamente desligado do resto (...) Fiz o mestrado sobre o ritual
do merêrêmê, em 1972 (Vidal, 1972). Foi um trabalho muito lindo. E em seguida, em 1973,
defendi a tese de doutorado (Vidal, 1973).” (MACEDO; GRUPIONI, 2009, 796)

Esta primeira experiência entre os índios que marcou profundamente a trajetória da


antropóloga também parece ter sido paradigmática para Carelli e, de alguma forma, se faz
substancial para compreender a sua trajetória e escolhas profissionais que seguiram a este
período, conforme relata:

Adolescente rebelde em crise existencial, resolvi ir ao encontro do desconhecido, de um


novo mundo, um recomeçar a vida. Quando em 1969, aos dezesseis anos de idade, aterrizei
pela primeira vez na aldeia Xikrin, no Sul do Pará, compreendi que o mundo era muito
mais fascinante do que eu tinha suspeitado até aquele momento. Não ingressei numa
aventura política, eu me joguei numa aventura existencial.

Na aldeia fui adotado, como é o jeito índio de acolher. Ser adotado significava também
participar em condições de igualdade em todos os trabalhos da aldeia: Carregar fardos de
piçarra na construção da pista de pouso, partir para longas jornadas de caçadas com os
homens, passar dias abrindo picadas na mata para a passagem das mulheres e crianças nas
expedições, tarefas duras para o jovem franzino que eu era. Se meu “pai índio”, Akruantury,
era severo em cobrar minha participação em todos estes momentos, quando chegava à noite
eu me sentava perto dele no centro da aldeia onde os homens se reuniam e ele, então,
carinhosamente defumava e tratava com a sua saliva as minhas mãos e pés feridos
(...)Quarenta e dois anos mais tarde, em 2011, depois de uma ausência de mais de 23 anos,
revi meu pai Akruantury, ao ir para Marabá, no sul do Pará para dar uma oficina de vídeo
para os Parkatêjê. Cheguei na casa de saúde indígena e ele já bem velhinho, dormia. Pedi
que não o despertassem e me sentei para esperar. Quando ele se levantou, tomou as minhas
mãos em silêncio, baixou a cabeça e começou a chorar, como um Kayapó chora de
saudades ao rever um filho depois de uma longa ausência: um lamento, um canto que vai
narrando a dor sentida. E eu chorei de tristeza e felicidade ao seu lado. Nesse dia entendi
com clareza algo que eu sabia intuitivamente: entrei para o indigenismo como “filho”, e

31
não como “pai dos índios”, como muitos. (CARELLI in VÍDEO NAS ALDEIAS 25
ANOS, 2011, 42)

Ao afirmar que entrou para o indigenismo como “filho”, Carelli insere dentro desta
perspectiva alguma subjetividade no que se refere a sua “missão” no mundo. Carelli retornou
a São Paulo, mas tinha claro desde aquele momento que sua vida seguiria associada ao
universo indígena. E ao que parece, após esta experiência, não passou nem mais um dia de
sua vida sem que as questões indígenas não fossem também suas. Carelli iniciou a graduação
em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo. Logo no primeiro ano de faculdade
inventou um projeto de pesquisa novamente com os Xikrin no Pára e nunca mais retornou à
universidade, abandonando, assim, prematuramente, sua carreira acadêmica. Sobre este
período, Carelli resume em poucas palavras o que foi determinante para as suas escolhas
profissionais:

Aos vinte anos eu já morava na aldeia Xikrin, e meu envolvimento com os índios passou a
ser total. Eu simplesmente queria ser índio, mas os índios queriam um amigo que lhes desse
as chaves de compreensão do que se passava ao redor deles, os ajudasse a se defender das
doenças que maltratavam a aldeia (CARELLI in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2004, 21).

Em 1973, Carelli entrou para a FUNAI, participou de uma formação indigenista em


Brasília e retornou ao Pará para trabalhar com os Xikrin, acreditando que havia conseguido
encontrar os meios adequados para contribuir com aquele povo. Ao chegar, certo de que
assumiria o posto da FUNAI nos Xikrin, foi comunicado pelo chefe da FUNAI no Pará e
Amapá que não assumiria aquela posição. Quando o indagou sobre o porquê de tal decisão, o
coronel respondeu “Porque você é amigo dos índios”. Naquele momento percebeu o quanto
ainda estava distante de poder exercer o indigenismo no qual acreditava.

Após esta primeira lição sobre o indigenismo praticado pelo Estado brasileiro,
trabalhou ainda na FUNAI com os Asurini, Nambiquara e Gavião. Era um período duro no
Brasil, em plena ditadura militar e rapidamente percebeu que não seria pelas vias do Estado
que conseguiria exercer o que considerava ser o ideal de indigenismo e optou em tornar-se
indigenista por conta própria.

Rapidamente, ficou claro o quanto o paternalismo autoritário do governo, a famosa tutela


do índio, era altamente pernicioso para os índios, politicamente desmobilizador. Não seria o
32
Estado que iria mudar a situação dos índios, mas eles é que teriam que retomar o seu
destino em mãos. Do indigenismo de Estado, migrei para o indigenismo alternativo, ou
para a subversão, como se dizia naquele tempo de ditadura. (CARELLI in VÍDEO NAS
ALDEIAS, 2004, 21)

Carelli deixou a FUNAI e foi trabalhar como repórter free lancer para algumas
revistas (Isto é, Repórter Três e Jornal Movimento), quando percorreu diversas aldeias ao
redor do Brasil. Trabalhou durante dez anos como editor fotográfico e pesquisador na
construção de um banco de imagens para as publicações do projeto Povos Indígenas no Brasil
do CEDI (Centro Ecumênico de Documentação e Informação). E finalmente, em 1979, junto
com um grupo de antropólogos fundou o CTI de onde oito anos mais tarde, em 1987, nasceria
o Vídeo nas Aldeias.

A metodologia de trabalho inicial do projeto Vídeo nas Aldeias consistia em produzir


imagens em conjunto com os indígenas em suas aldeias, com câmeras de vídeos portáteis,
tecnologia esta recém criada e que possibilitou a viabilidade do projeto. Estas filmagens
tinham suas temáticas e produções compartilhadas com os índios, que não dominavam o
manejo da câmera, mas tinham brancos “operadores de imagens” a seus serviços, dispostos a
documentar o que viesse a ser a demanda de cada um dos grupos envolvidos. Estas imagens
eram produzidas e imediatamente devolvidas à aldeia com projeções diárias. Posteriormente
estas imagens circulavam entre outras aldeias, possibilitando uma espécie de intercâmbio
cultural virtual, onde índios de diversas partes do país e de diferentes etnias tomavam
conhecimento da existência uns dos outros.

Dominique Gallois, que também foi aluna do Liceu Pasteur de São Paulo, antropóloga
formada na USP e ligada a este grupo de etnólogos formados por Lux Vidal, esteve presente
junto com Carelli nas primeiras experiências com o vídeo promovidas pelo projeto VNA. A
seguir, Gallois conta sobre sua entrada no projeto, as suas experiências com vídeo junto ao
Waiãpi, grupo com o qual tinha relações sólidas além do domínio da língua.

Sou antropóloga e meu papel no Vídeo nas Aldeias é basicamente o de traduzir de um lado
a outro os impactos da imagem tanto em nível interno quanto externo. Tento entender o
processo de manipulação da imagem pelos índios e também entender o que eles percebem
do impacto da imagem deles sobre o mundo de fora. Acho que isso é um aspecto
extremamente interessante e um longo processo que constitui na verdade, uma intervenção
muito explícita . E justamente por ser explícita, é importante, e assim tem sucesso nas
comunidades indígenas que falam línguas não inteligíveis entre si, sociedades que

33
transmitem os conhecimentos de forma oral. A manipulação e apropriação do vídeo é algo
que vem reforçar a diferenciação interna entre grupos indígenas.
Existe, então, uma série de caminhos, no Brasil, de recuperação e de resgate de formas
culturais. A apropriação que os índios fazem do vídeo é uma alternativa extremamente
importante porque ela reforça os canais orais de transmissão, e canal oral não significa
apenas que não é escrito e sim porque permite a cada um se expressar cada vez de maneira
diferente. E a transmissão oral, cada vez que é realizada, é uma nova construção. Entende-
se, assim, que a tradição é algo constantemente construído.” (GALLOIS in MONTE-MOR;
PARENTE (Org.), 1994, 34)

Carelli descreve a sua primeira experiência fílmica com os Nambiquara, no norte do


Mato Grosso, como fundamental e paradigmática para fazer entender o seu objetivo quando
tomou a iniciativa da criação deste projeto e a forma sob a qual ele foi edificado ao longo
destas três décadas de trabalho. Os Nambiquara na expectativa de poderem ter o registro
fílmico de suas atividades, decidem por retomar um ritual abandonado pela aldeia há 20 anos
e furam o lábio de trinta jovens diante da câmera.

Eu comecei a fazer vídeo aos 36 anos, e concebi este projeto dentro desta perspectiva de
intervenção e militância que orientava a minha vida. Eu nunca teria imaginado naquela
época que chegaríamos a formar realizadores indígenas. A minha aprendizagem da
linguagem cinematográfica se deu, ao mesmo tempo em que oferecia a possibilidade de
registro e de acesso às imagens de outros povos para lideranças que eu admirava por sua
visão de futuro, pelo seu discurso de resistência (...) O que interessava no vídeo era a
possibilidade de mostrar imediatamente o que se filmava e permitir a apropriação da
imagem pelos índios. Não era chegar “com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”,
mas uma câmera na mão e uma cabeça aberta para o feedback da aldeia, e deixar-se
conduzir pelo seu entusiasmo e pelos seus desejos. Foi assim que o capitão Pedro
Mãmåindê 12assumiu a direção das minhas filmagens. (CARELLI in VÍDEO NAS
ALDEIAS, 2004, 23)

A festa da moça (1987), dirigido por Carelli, é o primeiro filme do projeto que saiu
como resultado desta primeira experiência de documentação, citada anteriormente. O filme
retrata o encontro dos índios Nambiquara com as próprias imagens durante um ritual de
iniciação feminina. A “moça nova” permanece reclusa desde sua primeira menstruação, até as
aldeias aliadas virem celebrar o fim da sua reclusão. Ao assistirem suas imagens na TV, os
Nambiquara se decepcionaram e criticaram o excesso de roupa. A festa seguinte é realizada e
registrada com todo o rigor da tradição. Eufóricos com o resultado, eles resolvem retomar,
diante da câmera, a furação de lábio e de nariz dos jovens, costumes que haviam sido
abandonados há mais de vinte anos13.

12 Capitão Pedro Mãmåindê era a a liderança indígena Nambiquara naquele tempo.

13 Dados retirados do site do projeto VNA em: http://www.videonasaldeias.org.br/2009/video.php


34
“O mesmo processo foi iniciado com os Xavante do Mato Grosso, em parceria com a
antropóloga Virginia Valadão, minha esposa, e em seguida com os Waiãpi, no Amapá, numa
parceria muito especial com a antropóloga Dominique Gallois, pelo seu domínio da língua
Tupi e pelo seu relacionamento de anos com este povo. (CARELLI in VÍDEO NAS
ALDEIAS 25 ANOS, 2011, 47)

Foi em 1989, a partir de um vídeo institucional criado para captar recursos, uma
espécie de pot-pourri de imagens do projeto editado como portfólio levado a Nova Iorque por
Carelli, que estas imagens conquistaram o mundo, expandiram os seus limites de circulação e
ganharam repercussão nos meios interessados em projetos alternativos de comunicação. As
fundações americanas (Guggenheim, MacArthur, Rockefeller, Ford) foram as primeiras a
apoiarem o projeto. A partir de 1995, a Cooperação Internacional da Noruega se interessou em
apoiar financeiramente o trabalho, “o que nos deu mais estabilidade para começarmos a traçar
uma estratégia a longo prazo”, conforme assinala Carelli (in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2004,
23) . Foi assim que o trabalho desenvolvido pelo VNA passou a circular em vias de muitas
mãos, entre membros da aldeia, entre aldeias, entre brancos e ainda entre brancos entre
aldeias. Muitas vias de um mesmo caminho, pessoas interessadas em dar visibilidade e
legitimidade a estas populações.

Parece, aparentemente, um circuito restrito este. No entanto, os anos de chumbo


acabaram no Brasil, a política democrática retorna às pautas governamentais, pautadas agora
pela constituição de 88. A temática dos direitos indígenas começa a circular como necessidade
urgente, na tentativa de sanar e freiar esta dizimação ancestral dos povos indígenas
brasileiros. Nas primeiras imagens produzidas pelo projeto encontramos alguns filmes que
caracterizam bem esta fase primeira fase fílmica.

35
1.3 Militância e Alteridade nos filmes de Vincent Carelli

!
Imagem do documentário A festa da moça, 1987. Fotografia: Vincent Carelli14

A narrativa de Carelli a respeito da sua primeira experiência fílmica com os


Nambiquara, demonstra, que em um primeiro momento, esta demanda de militância política
que para ele, branco, estava clara, na perspectiva do Capitão Pedro Mãmåindê (chefe do
grupo Nambiquara), a demanda parecia ser outra. A produção daquelas imagens para os
Nambiquara tiveram significados que iam muito além da questão política no sentido estrito do
termo. O Capitão Pedro Mãmåindê ao ver seu grupo representado nas imagens, resgata uma
tradição abandonada pela sua aldeia há anos e desta forma busca o reencontro com a sua
própria identidade indígena e com a representação de si, tanto para fora de sua comunidade
como para dentro e também para si próprio. Gallois (in MONTE-MOR; PARENTE (Org.),
1994, 34), neste sentido, comenta sobre as experiências com o vídeo entre comunidades
indígenas e destaca esta produção como algo que ultrapassa ou sobrepõe-se aos relatos

14 Imagem retirada do site do projeto Vídeo nas Aldeias: www.videonasaldeias.org.br


36
escritos, aproximando esta produção imagética conforme proposto por Ginsbusburg (1995),
no sentido da mídia como algo que media, comunica e elabora:
É possível dizer que o vídeo quando apropriado pelos índios passa a ser um instrumento de
reafirmação étnica, porque permite esse movimento. Hoje é uma coisa, no outro dia, outra.
Não fazem questão de finalizar uma imagem de si para depois vender lá fora. É o processo
que interessa.

França (in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2006, 28) a respeito do Projeto desenvolvido pela
ONG Vídeo nas Aldeias, destacou a seguinte indagação:
O que essas imagens do “outro” indígena - bem longe de nós, brancos – têm, por que elas
conseguem nos falar, dirigir-se a nós, fazer-se compreender e, mais do que isso, como é
possível que elas nos façam perceber nossas maneiras de sermos, de nos pensarmos, como
é possível que elas nos falem do nosso mundo?

Neste sentido a constituição desta identidade Nambiquara que surge a partir das
imagens filmadas, só é possível, pois, quando vistos nas imagens, vêem através da
perspectiva de um outro a representação deles. A questão da autorrepresentação e da
alteridade parece de fato serem questões determinantes para compreendermos o trabalho
desenvolvido pelo Vídeo nas Aldeias. Visto que foram a partir destes dispositivos disparados
a partir da criação destas (auto)imagens que o projeto cresceu e se desenvolveu. Jean Claude
Bernardet afirma encontrar nos filmes produzidos pelo Vídeo nas Aldeias a teoria da
alteridade na prática, pois, conforme destaca, o outro que se filma precisa necessariamente se
descentralizar e se colocar fora do eixo do autorreferenciamento para encontrar a
representação tanto de si quanto do outro.

Esses filmes se inscrevem na temática do “outro”. O “outro” é uma preocupação recorrente


no cinema documentário das últimas décadas, desde o cinema direto e o cinema verdade. O
“outro” filmado, o “outro” se filmando. Sempre tive a convicção de que este “outro” no
documentário e em geral nas filosofias da alteridade não passava da falsa solução de um
problema mal equacionado. O “outro” é sempre designado por um sujeito, que, para fazer
uso desse pronome, tem que se afirmar como sujeito, como lugar da fala, como lugar de
onde parte a visão. Ora a afirmação desse sujeito como o centro é a própria negação do
“outro”, do reconhecimento da sua existência, porque o nega como lugar de onde possam
partir da fala e da visão. Acredito que a filosofia da alteridade só começa quando o sujeito
que emprega a palavra “outro” aceita ser ele mesmo um “outro” se o centro se deslocar,
aceita ser um “outro” para o “outro”. (BERNADET in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2004, 10)

E segue exemplificando sua fala com uma cena do filme Iniciação do jovem Xavante
sobre o ritual de furação de orelha na aldeia de Sangradouro, realizado por cineastas indígenas
desta aldeia e da aldeia Pimentel Barbosa:

37
Um cinegrafista de Sangradouro explica a necessidade dessa filmagem com a seguinte frase
dita em português: “Têm que mostrar a cultura de outro para outro, para ele conhecer como
é que é a festa dele, como é que é a cultura, a língua né?” Uma tal afirmação - mostrar a
cultura de outro para outro - implica que o cinegrafista Winti Suyá não só vê Pimentel
Barbosa a partir do centro que é Sangradouro, onde se realiza a festa e será feita a
filmagem, como simultaneamente, vê a si mesmo e à sua aldeia como “outro” a partir do
centro que é Pimentel Barbosa. Isso é realmente uma filosofia da Alteridade.

Sobre essa compreensão do conceito de alteridade no sentido proposto por Bernardet


do outro/outro no lugar de eu/outro, Gonçalves (2008, 153) assinala este movimento como um
novo caminho para a percepção da etnografia:

Essa probabilidade do outro/outro e não do eu/outro, na simultaneidade, vendo o outro


como outro e nesta construção ver a si mesmo como outro propõe uma nova percepção da
alteridade que parece querer ultrapassar uma oposição concebida enquanto termos da
filosofia bipolar. (...) Esta superação da relação sujeito/objeto, eu/ outro no documentário e
na antropologia abre novos rumos para uma percepção da etnografia.

Se para os fundadores deste projeto o registro do real parece ser um recurso bastante
convincente para atuar como instrumento nas disputas políticas, para os povos filmados estas
imagens os coloca em contato com as suas próprias identidades indígenas. O Espírito da TV
(1990), documentário produzido por Carelli em parceria com a antropóloga Dominique
Gallois é o quarto filme da série, no qual Gallois, que conhecia bem a língua dos Waiãpi,
estabelece um diálogo filosófico com o seu principal informante Waiwai, um autêntico
intelectual Waiãpi. Este diálogo foi transposto para o vídeo, no qual a conversa gira em torno
das emoções e reflexões sobre a força das imagens ao verem, pela primeira vez, a sua própria
imagem e a de outros grupos indígenas num aparelho de televisão. Esta conversa se
desenvolve sobre as temáticas da diversidade dos povos e a semelhança de suas estratégias de
sobrevivência frente aos não índios.

O vídeo mostra como as projeções induzem discussões que envolvem, entre outros temas,
uma redefinição da sua própria identidade em relação aos outros e, ao mesmo tempo, o
crescimento de uma consciência pan-indígena nacional a partir da semelhança dos
processos históricos que cada grupo atravessou desde o contato e dos problemas que todos
compartilham no momento. E como não poderia faltar, toda a questão política da
manipulação da imagem: quem vai nos ver e como eles deveriam nos ver, etc. (CARELLI,
2004, 24)

Segue a esta produção, A arca dos Zo’é (1993) e Eu já fui seu irmão (1993), ambos de
direção de Carelli, o primeiro realizado também em parceria com Dominique Gallois. Com
narrativa construída exclusivamente a partir das falas dos índios, no primeiro filme os Waiãpi,

38
que conheceram os Zo’é através de imagens em vídeo, decidem ir ao encontro destes índios
recém contactados no norte do Pará e documentá-los. Os Zo’é proporcionam aos visitantes o
reencontro com o modo de vida e os conhecimentos dos seus ancestrais. Os Waiãpi, em troca,
informam os Zo’é sobre os perigos do mundo branco que se aproxima o qual os isolados estão
ansiosos por conhecer. O segundo é um documentário sobre o intercâmbio cultural entre os
Parakatêje, do Pará e os Krahô do Tocantins, que embora falem a mesma língua, nunca
haviam se encontrado antes. Kokenum, o líder dos Parakatêjê preocupado com a
descaracterização do seu povo, resolve ir conhecer uma aldeia Krahô que conserva muitas de
suas tradições. Um ano depois, os Paraktêjê retribuem o convite. No final, os chefes selam um
pacto de amizade entre os dois povos.15 A respeito desta produção e sobre circulação destas
imagens entre diferentes povos indígenas, Gallois (in MONTE-MOR; PARENTE (Org.),
1994, 24) comenta:

A manipulação e a apropriação do vídeo é algo que vem reforçar a diferenciação interna


entre grupos indígenas. Existe, então, uma série de caminhos, no Brasil, de recuperação e
de resgate de formas culturais. A apropriação que os índios fazem do vídeo é uma
alternativa extremamente importante porque ela reforça os canais orais de transmissão, e
canal oral não significa apenas que não é escrito e sim porque permite a cada um se
expressar cada vez de uma maneira diferente. E a transmissão oral, cada vez que é
realizada, é uma nova construção. Entende-se, assim, que a tradição é algo constantemente
construído[...] Há um outro aspecto que acho importante, do ponto de vista antropológico: o
sucesso que esse programa de intercâmbio de imagens tem entre as sociedades indígenas
deve-se ao fato de serem sociedades em que nem sempre há necessidade de se entender o
que se diz. Os Waiãpi não falam Kayapó, os Kayapó não falam Waiãpi. O impacto da
imagem catalisa exatamente sentimentos que levam a interpretações imediatas e permite
uma condensação de tempos, quer dizer, há uma leitura a partir de visões culturais próprias
a cada grupo, o que leva a reforçar conhecimentos tradicionais, mas sempre de uma forma
nova.

Estes filmes acima citados, resumem, em parte, as diretrizes tomadas nos primeiros
anos do projeto, mas também refletem claramente a posição de Carelli enquanto realizador de
imagens. Características estas que vão acompanhar a sua assinatura enquanto documentarista
e que, ao meu ver, deixam a sua marca registrada neste primeiro tipo fílmico, o Cinema de
Carelli. São filmes que pretendem o encontro. Encontro entre brancos e índios, entre índios e
índios, entre índios e suas imagens, entre índios e as imagens de outros índios e, por fim, o
encontro que não pode e nem deve ser evitado que é o do universo indígena com todo o
mundo ocidental contemporâneo, que pulsa ao seu redor.

15 Informações retiradas do site do projeto Vídeo nas Aldeias:http://www.videonasaldeias.org.br/2009/video.php


39
Na medida em que este encontro não é possível de ser evitado, melhor enfrentá-lo. E,
para isso, é necessário ter armas em punho para o combate16. A arma encontrada para entrar
nesta luta é o vídeo. É neste sentido que os filmes de Carelli assumem esta característica de
militância, pois não é a partir da imagem idealizada que ocorrerá o enfretamento, e sim diante
da realidade fílmica produzida por cada grupo documentado, com suas mazelas, alegrias e
orgulhos próprios.

Eles (os índios) não são vítimas passivas neste processo, mas têm plena consciência da
mudança pelo qual estão passando. Há toda uma discussão e uma dinâmica interna em
andamento entre as gerações, incorporando algumas coisas de fora, rejeitando outras,
preservando a memória de tradições e abandonando outras.” (CARELLI in VÍDEO NAS
ALDEIAS, 2004, 24)

1.4. Militância e Compartilhamento no cinema de Vincent Carelli

Ao analisar a produção fílmica de Carelli, é impossível não associar sua produção às


ideias e concepções estéticas alavancadas por Jean Rouch, que promoveram um verdadeiro
alvoroço acadêmico ao trazer à tona a prática da antropologia compartilhada. Rouch era um
engenheiro civil que foi pela primeira vez à África para construir pontes. Ao retornar à França
na década de 1950, muda radicalmente seu campo de atuação e segue os estudos em
etnologia, mas mantém a África como local para realização de suas pesquisas. Ao utilizar as
ferramentas cinematográficas em campo, Rouch não se deteve apenas em registrar, mas
também em compartilhar a sua produção com os seus nativos e possibilitar que estes nativos
não só assistissem, como também interferissem e construíssem em cima de suas realidades.
Levanta, desta forma, questões delicadas relativas ao compartilhamento da produção
acadêmica com os nativos de uma pesquisa antropológica.

Desde o início, (Rouch) inclui a câmera em sua estratégia de pesquisa, mas o faz de
maneira questionadora. A perspectiva que vai se construindo não é de uma câmera de filmar
que registra dados etnográficos, mas a de um instrumento de comunicação com a realidade
etnográfica. Esse é o primeiro elemento complexificador introduzido por Jean Rouch, que
torna mais densas as situações etnográficas nas quais ele se envolve.

16 Esta metáfora entre a imagem e a arma deve ser compreendia aqui no sentido proposto por Carneiro da Cunha
(2009, 373) acerca do conceito de “cultura” e a forma a qual diferentes grupos étinicos encontraram para
afirmar e reivindicar suas identidades culturais: “Trata-se da maneira como um grupo performa e cita
reflexivamente a própria cultura, utilizando-a como recurso e como arma para afirmar identidade, dignidade e
poder diante de Estados nacionais ou da comunidade internacional”. Esta aproximação será melhor detalhada no
segundo capítulo do texto, a propósito do segundo tipo fílmico proposto, cineastas indígenas.
40
A câmera estimula a relação no campo com os sujeitos da pesquisa e provoca a relação,
fora do campo com os espectadores do filme. A prática etnográfica associada ao cinema
propiciaria o estabelecimento de uma antropologia compartilhada. (BARBOSA;
TEODORO, 2006, 36)

A propósito da prática da antropologia compartilhada, compreendida também como


feedback e inaugurada na antropologia por Rouch que afirma ter aprendido com Flaherty,
Piault (1995b,190 apud GONÇALVES, 2008:158), evidencia que este não é apenas um
método, mas principalmente a busca por dar conta do eterno paradoxo da alteridade para a
antropologia:

A antropologia compartilhada, tantas vezes reivindicada, não é um simples método de


participação afetiva, ela dá conta do insuperável paradoxo da alteridade que a antropologia
tem, justamente, por função de assumir: como mostrar e entender a diferença sem a tornar
acessível a um e a Outro aquilo que lhes é estranho e mesmo de tornar acessível o Outro
como a um aquilo que lhes é ainda incompreensível.

Rouch inaugura um movimento dentro da academia e também no campo do cinema


documental ao introduzir a ideia da câmera como elemento em cena. Cunha o termo cinema-
verdade ao sugerir que o que se passa na frente da câmera sempre será uma “performance” e
que a “realidade” da vida sempre será um jogo de construção e performance, com ou sem
câmera, e as múltiplas atuações no mundo serão sempre performances. Deleuze (2005, 327
apud GONÇALVES, 2008, 156) a propósito dos filmes deste cineasta assinala:

Vimos que por que paradoxo este cinema se chamava ‘cinema-verdade’; e há um duplo
devir suposto, pois o autor torna-se outro tanto quanto sua personagem [...] em Rouch, que
tende a tornar-se negro, ao mesmo tempo que o negro, sua personagem, tende a tornar-se
branco, de maneira bem diferente, não simétrica.

Este conceito cinematográfico proposto por Rouch tornou-se um marco na história do


cinema, na forma de pensar, compreender e produzir o gênero documentário.

Rouch foi um incansável defensor da expressão da subjetividade no filme etnográfico e


ainda do fazer fílmico como espaço privilegiado que possibilitava a associação da
linguagem cinematográfica em sua plenitude com os métodos de construção do
conhecimento da pesquisa antropológica. Sua questão era como construir reflexões
antropológicas com e a partir do filme. Seu foco foi a utilização do filme como uma forma
de contar e expressar as coisas que não poderiam ser expressas de outra forma,
principalmente o imaginário que povoa a vida dos indivíduos em seu contexto de vida. A
câmera e seu operador-antropólogo tornavam-se nesse percurso agentes e sujeitos na
realidade etnográfica.
(...) Rouch elege a reflexibilidade e a subjetividade como pilares de sua produção
intelectual. A verdade do filme estava justamente em tornar clara esta perspectiva: a
realidade filmada era a realidade presente nas relações estabelecidas entre antropólogo e os
sujeitos com os quais filmava.” (BARBOSA; TEODORO, 2006, 37)

41
Rouch percebe a presença da câmera como mais um elemento em cena. É neste
contexto que edifica o termo cinema verdade. No qual, as verdades transpostas pelas lentes de
uma câmera de filmar, devem sim, ser encaradas como verdades, mas verdades construídas
diante daquela realidade específica. A câmera cria realidades fílmicas, onde as tensões e
questões cotidianas não deixam de estar implícitas, mas tornam-se enquadradas e performadas
para a criação de uma outra realidade. “Deleuze, a partir de Os mestres Loucos17 de Rouch,
faz a seguinte observação: ‘Então o cinema pode se chamar cinema-verdade, tanto mais que
terá destruído qualquer modelo de verdade para se tornar criador, produtor de verdade: não
será um cinema, mas a verdade do cinema.’”18 (DELEUZE, 2005:183 apud GONÇALVES,
2008, 61)
Ao propor compartilhar a sua produção imagética/antropólogica com os nativos de sua
pesquisa, Rouch, está também propondo que estes se tornem sujeitos de suas pesquisas e não
apenas objetos que devem ser observados e investigados. Invalida a ideia de imparcialidade
situacional, quando considera que a imersão em campo necessariamente perturbará a ordem
cotidiana de uma sociedade. Sugere portanto, que estes nativos são sujeitos ativos assim como
o próprio pesquisador que ocupa um espaço nesta cena.

Tudo o que eu posso dizer hoje é que no campo o simples observador se modifica a si
mesmo. Quando ele está trabalhando ele não é mais aquele que cumprimentou o velho
homem ao entrar na aldeia (...) ele está “cine-etno-olhando”, “cine-etno-pensando”.
Aqueles que com ele interagem igualmente se modificam a si mesmos, a partir do momento
em que confiam neste estranho habitual visitante. Eles “etno-mostram”, “etno-falam”, (...)
“etno-pensam, ou melhor ainda, eles têm etno-rituais”. É este permanente cine-diálogo que
me parece um dos ângulos interessantes do atual progresso etnográfico: conhecimento não
é mais um segredo roubado para ser mais tarde consumido nos templos ocidentais do
conhecimento. É o resultado de uma busca interminável onde etnógrafos e etnografados se
encontram num caminho que alguns de nós já chamam de “antropologia compartilhada”.
(ROUCH, 2003c, 185 apud GONÇALVES, 2008, 157)

17 Neste filme Rouch participa de um ritual de possessão onde os Hauka encarnam brancos colonizadores.
Filmado em apenas um dia, o filme revela as práticas rituais de uma seita religiosa. Os praticantes do culto
Hauka, trabalhadores nigerianos reunidos em Accra, se reúnem à ocasião de sua grande cerimônia anual. Na
‘concessão’ (…) do grande padre Mountbyéba, após uma confissão pública, começa o rito da possessão. Saliva,
tremedeiras, respiração ofegante… são os signos da chegada dos ‘espíritos da força’, personificações
emblemáticas da dominação colonial: o cabo da polícia, o governador, o doutor, a mulher do capitão, o general, o
condutor da locomotiva, etc… A cerimônia atinge seu ápice com o sacrifício de um cão, o qual será devorado
pelos possuídos. No dia seguinte, os iniciados retornam às suas atividades cotidianas.(informações retiradas do
site :http://www.cinefrance.com.br)

18 Para saber mais sobre esta e outras obras de Rouch especificamente no que se refere a esta construção da
realidade na perspectiva antropológica, ver Gonçalves, 2008.
42
É preciso, portanto, pensar e posicionar tanto sua presença em campo como a dos seus
nativos/sujeitos de pesquisa, bem como a câmera. Considera impossível elaborar algum
conhecimento a partir de uma “falsa verdade” idealizada pelo pesquisador em campo, se
desconsiderado nas reflexões finais o lugar do qual se está falando19. Jean Rouch foi um
cineasta acadêmico que buscou por novos paradigmas para a prática antropológica e ao longo
de sua trajetória, tornou-se amigo íntimo de seus nativos de pesquisa os quais tornaram-se,
também, colaboradores em muitos de seus filmes.20 Existe uma história bastante emblemática
narrada por Gonçalves (2008, 62) para se fazer compreender o que Rouch compreendia como
Antropologia Compartilhada e os parâmetros adotados para a elaboração de sua produção
diante desta nova perspectiva.

Os Mestres Loucos para Rouch evocava “um novo método de pesquisa que consiste em
compartilhar com as pessoas que, de outro modo, não passariam de objetos de pesquisa.
Nós fazemos delas sujeitos!” (Rouch, 1980:57 apud Da-rin, 2004:158). Esse fazer do
objeto sujeito é que abria caminho para o que veio a ser designado de “antropologia
compartilhada”, inaugurada em seu filme anterior Bataille sur le grand fleuve (1954) sobre
a caça ao hipópotamo. Rouch projetou o filme realizado para os filmados e, após, algumas
sessões, os caçadores criticaram a música de fundo posta por Rouch. Os personagens do
filme dizem a Rouch que a música prejudicaria a caçada, pois para se caçar um hipopótamo
deve-se estar em profundo silêncio. Rouch levou a sério a crítica e retirou o som do filme
(Piault, 1994:68). Deve-se fazer aqui uma observação para que esse ideal de Antropologia
compartilhada não seja interpretado como romantismo simplista, significando que, quando
Rouch engajava-se em um projeto coletivo, este não produzia tensões de diferentes
percepções sobre o que era realizado. Seu compromisso de Antropologia Compartilhada era
com a realidade fílmica e não coincidia com a realidade da sociedade que estudava.

Ao observar os filmes produzidos por Carelli, a trajetória do projeto VNA e a sua


narrativa de vida, percebe-se nitidamente a clara direção tomada por ele quando decide passar
a sua vida “à serviço” dos índios. Compartilhar se torna a sua palavra de ordem. Performances
diante da câmera, foi o que viu desde a primeira vez que apontou seu equipamento para os
índios. Caixeta, ao entrevistar Carelli o indaga sobre esta suposta e aparente inspiração nos
seus trabalhos pelo cinema-verdade de Jean Rouch. Carelli comenta a seguir que, quando

19Sobre observação participante e trabalho de campo, consultar “Argonautas do Pacífico Sul” de Bronisław
Malinowski, um clássico da teoria antropológica e posteriormente toda a polêmica gerada em torno das
publicações póstumas de seus diários de campo por sua esposa.

20 Esta história está retratada no filme Rouch’s Gang de 1998 dirigido por Steef Meyknecht, Dirk Nijland e Joost
Verhey acompanha a equipe de filmagem e os bastidores deste trabalho desenvolvido por Rouch e seus quatro
amigos do Níger - Damouré Zika, Lam Ibrahim Dia, Tallou Mouzourane e Moussa Hamidou. A maioria de seus
filmes de ficção foram realizados com estes quatro amigos africanos, durante um período de mais de quarenta
anos. O vínculo entre eles é o tema do documentário de Rouch’s Gang, um vínculo de amizade que se tornou
extremamente complexo. Ao produzir uma visão externa de Madame l'Eau, o documentário oferece uma visão
sobre como Rouch aborda uma série de questões em seus filmes.
43
começou a filmar, não sabia sobre fazer filmes, assim como também não conhecia o trabalho
desenvolvido por Rouch.

Eu não conhecia nada disso. Quando eu filmei A Festa da Moça (1987), sobre os índios
Gavião, nunca tinha ouvido falar em Jean Rouch. Porque na verdade eu passei muitos anos
morando na Amazônia, eu fiquei muito afastado, a não ser o primeiro ano de faculdade,
depois eu me mudei... Quando comecei a fazer vídeo, e mesmo quando trabalhei anos nos
arquivos do CEDI, eu nunca fui muito ligado, nunca tinha pensado em fazer cinema...
Primeiro porque estas coisas não eram muito acessíveis no Brasil, circulavam em pequenos
circuitos do ramo. Eu fui conhecer isso nos festivais, na Universidade de Nova York, enfim,
nos lugares onde haviam arquivos: o pessoal dizia, poxa veja isso, veja aquilo. (CAIXETA,
2009, 151)

Conhecer o cinema realizado por Rouch, fez Carelli entender e nomear o que já estava
fazendo há algum tempo intuitivamente com os índios na Amazônia brasileira. O que se
passava diante de suas lentes era o chamado “vídeo-transe”.

O meu estilo de filmagem, de inicialmente autodidata, foi moldado por este dispositivo, o
que me jogou de imediato no “video-transe”, sem jamais ter ouvido falar em Jean Rouch ou
no cinema verdade. O transe, é claro, era nosso e deles, que ao cabo de várias performances
para ajustar a sua imagem, resolvem realizar a cerimônia de furação de nariz e lábios,
prática abandonada há mais de vinte anos. Foi uma experiência catártica, muito além das
expectativas iniciais, que nos demonstrou o poder da ferramenta e do dispositivo.
(CARELLI in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2011, 47)

É neste ponto, da realidade fílmica, que mais uma vez podemos aproximar o Cinema
de Carelli ao Cinema produzido por Rouch. Vistos sob esta perspectiva, as imagens realizadas
com os Nambiquara, com os Waiãpi e com muitos outros grupos participantes deste primeiro
momento do projeto VNA, foram também realidades manipuladas para e com a câmera.
Gonçalves (2008, 154), a respeito da prática adotada por Rouch, resume: “O que designou por
antropologia compartilhada nada mais é do que a percepção de “fingir”, de “fazer de conta”
que se é outro para mudar sua percepção e poder ver o mundo de outro ponto de vista. ”
Feitos em parceria, os resultados e as consequências destes filmes são divididos com
os sujeitos destas filmagens. Carelli é um militante indigenista que procura preencher as
lacunas deixadas pelo Estado através de ações no âmbito do terceiro setor. Ao empreender o
filme como um instrumento de atuação nesta arena política indigenista faz com que os
resultados e as consequências destes trabalhos, sejam divididos com as lideranças indígenas.
Neste caso, compartilha, portanto, não apenas o conhecimento e a realidade fílmica

44
apreendida pelas câmeras, como também os riscos assumidos quando tomada a iniciativa de
participação neste projeto.

1.5 Antropofagia dos brancos para a sobrevivencia da “espécie” índio

Performar por trás e pela frente das câmeras significa assumir riscos, gera
consequências e principalmente imprime uma marca neste tipo fílmico. Ao introduzir a
câmera em sociedades isoladas, que nunca haviam tido contato com estas ferramentas antes,
Carelli assumiu o risco de representar mais uma vez o papel do branco colonizador que oferta
espelhos aos índios que podem vir a narcisicamente morrer afogados.
A antropóloga Faye Ginsburg (1995) ao destacar o sentido da palavra mídia no
original da língua inglesa; “definida como uma substância interveniente através da qual uma
força atua ou um efeito é produzido; é algo que media, atuando entre grupos para resultar em
um entendimento, compromisso ou reconciliação”. Afirma que os trabalhos produzidos no
âmbito do projeto VNA são um convite para repensarmos as possibilidades desta “pequena
mídia” no final do século XX “como tecnologias que facilitam as relações de parentesco, a
auto consciência cultural e informação política, invertendo o que as pessoas presumem serem
as relações casuais entre mídia e alienação.” (GINSBURG, 1998, 93). Sob esta ótica, a
inserção do vídeo nestas comunidades poderia tanto produzir os efeitos desejados de
apropriação identitária, resgate cultural e resistência política. Como poderia também afetar
profundamente os modos de vida das populações envolvidas, tirando-as deste isolamento e
colocando-as diante desta temida alienação, frequentemente associada à chegada dos meios de
comunicação (principalmente a TV e, mais recentemente, a internet). Como se de alguma
forma, os brancos envenenassem os índios com a sua cultura.
Carlos Fausto (in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2011, 160) narra sua trajetória de pesquisa
com os Kuikuro no Parque Nacional do Xingu, perseguida pela questão do registro para a
manutenção cultural daquela sociedade. Quando lá chegou em 2000 para desenvolver o seu
projeto de pesquisa, os índios já tinham um projeto para ele, queriam que ele documentasse
todos os seus rituais para que pudessem “guardar a sua cultura”. A percepção dos mais velhos

45
da aldeia era a de que o os jovens já não tinham interesse em aprender os cantos e ritos. Se
estes não fossem gravados estariam fadados ao esquecimento. Havia uma preocupação clara
destes anciãos com o “embranquecimento” das novas gerações21. Conforme afirma Fausto,
"Os jovens de hoje aparecem menos como agentes das mudanças ocorridas na aldeia e mais
como presas felizes do poder de sedução dos objetos e da tecnologia não-indígena, que a
todos afeta. O cantor kuikuro Jakalu, na ocasão da cerimônia realizada para a entrega destes
tão esperados registros à aldeia, ao mobilizar uma lógica nativa das sensações afirma: “se
seus filhos viraram brancos é porque ‘o cheiro do branco é muito forte’ (kagaihá gikegü
inhahetungui). Na Amazônia indígena, o odor é mais do que uma qualidade física
apreendida pelo olfato: ele é um veículo de qualidades de outrem que penetra e transforma
o corpo de alguém. Essa noção de uma agência difusa, eficaz à distância e independente da
intenção dos agentes, é hoje mobilizada pelos Kuikuro para falar das transformações por
que passam.”

Desta forma, trabalhar nos registros destes rituais significava ressaltar para os que
levarão a “cultura” Kuikuro adiante o que de fato é relevante para a afirmação desta
identidade e que definitivamente não pode se acabar no tempo, ou no sentido descrito por
Fausto, aquilo que não pode ser impregnado pelo cheiro dos brancos.
Gallois a respeito de apropriações culturais e sobre o movimento e fluxo constante da
cultura, traça as diretrizes filosóficas que nortearam a criação do projeto Vídeo nas Aldeias,
quando afirma que as identidades indígenas hoje são construídas a partir de influências
transculturais.

Concebido como um programa de intervenção direta, parte da premissa de que as


identidades indígenas são, hoje, mais disseminadas que exclusivas, construídas a partir de
tradições fragmentadas e, sobretudo, a partir da assimilação de influências transculturais
(MARCUS, 1991). Por outro lado, a antropologia dos movimentos étnicos evidenciou que a
forma mais eficiente de fortalecer a autonomia de um grupo é permitir que se reconheça,
demarcando-se dos outros, numa identidade coletiva. Nesse processo dinâmico, a revisão
da própria imagem e a seleção dos componentes culturais que a compõem resultam de um
trabalho de adaptação constante. A cultura – que não é feita apenas de tradições – só existe
como movimento, alimentado pelo contato com a alteridade.
O projeto pretendia contribuir a esse movimento, colocando à disposição de povos
indígenas a oportunidade de um diálogo adaptado a suas formas de transmissão cultural. O
objetivo era tornar acessível o uso da mídia vídeo a um número crescente de comunidades
indígenas, promovendo a apropriação e manipulação de sua imagem em acordo com seus
projetos políticos e culturais. (GALLOIS; CARELLI, 1995, 62)

Fausto, a respeito deste temor dos Kuikuro em tornarem-se brancos de vez, adota
como ponto de vista para sua análise sobre este processo de documentação fílmica solicitado

21 Desta demanda, nasce em 2002 a Associação Kuikuro do Alto Xingu e o Coletivo Kuikuro de Cinema que em
parceria com o projeto Vídeo Nas Aldeias realizou neste primeiro momento dois filmes, O dia em que a Lua
menstruou (2004) e O Cheiro do Pequi (2006).
46
pelos anciões da aldeia, algo semelhante ao proposto por Gallois sobre a construção de
identidades indígenas a partir da assimilação de fragmentos transculturais.

Assim, se adotarmos como premissas da análise que a transformação é parte estrutural da


reprodução social, que a “abertura ao outro” implica constante apropriação da alteridade e
que a inovação é concebida como alopoiética, somos obrigados a constatar que a atitude
mais tradicional que se poderia esperar dos Kuikuro hoje é... que continuem a “virar
brancos” (KELLY, 2005). Deste modo estariam agindo em acordo com a lógica
antiidentitária e alterante que, para muitos antropólogos, caracteriza a camada mais
profunda da vida indígena.
Da perspectiva Kuikuro, contudo, ser “tradicional” neste sentido envolve dilemas e
angústias igualmente profundas. Afinal, quais as consequências de mimetizar-capturar um
outro não-indígena? O receio dos Kuikuro é o de que, no ato de apropriação do universo
não-indígena, eles se tornem inteiramente outros, invertendo a perspectiva e a
direcionalidade do processo de apropriação: começaram apropriando-se e acabarão
apropriados, deixando de lado o que lhes era próprio... Ao encomendar-me o registro de
todos os cantos e de todas as rotinas rituais em sua precisa ordem, o chefe Afukaká temia
que, na próxima geração, não restassem senão os escombros desse conhecimento, de tal
modo que eles só pudessem “virar índios” para os brancos e já não pudessem mais “virar
índios” para si mesmos (o que significa, no contexto ritual, virar itseke22). (in VÍDEO NAS
ALDEIAS, 2011, 161)

Gallois (2000), ao pensar a produção de imagens no âmbito da prática antropológica,


sugere que é necessário abandonar as premissas de um relativismo cultural, a partir da
percepção de que todas as sociedades são diferentes umas das outras, para exatamente pensar
a cultura sob uma ótica oposta. É preciso pensar a partir do ponto em que as sociedades se
encontram, para que, de fato, se possa construir uma análise de representações culturais.
Repensar a perspectiva relativista é um dever da antropologia no que se refere à metodologia,
considerando que identidades, tradições e culturas se constróem a partir do encontro com a
alteridade, principalmente no que se refere ao pensamento social ameríndio.

O atual fenômeno de intercâmbio globalizado de imagens e o crescente acesso que os povos


indígenas tem à mídia, alteraram sensivelmente - e positivamente - as possibilidades de
estudo antropológico de processos de representações culturais. Trata-se de perceber as
demandas entrelaçadas nos extremos de uma cadeia de comunicação... Abandonar a
perspectiva do relativismo cultural, que parte do pressuposto de que as sociedades são
intraduzíveis uma na outra. Ao contrário, o processo criativo de desconstrução e
reconstrução da realidade, que cabe ao antropólogo, consiste em viabilizar a identificação,
selecionando pontos de vista de nossa sociedade a serem atingidos pelo ponto de vista dos
outros, que se quer transmitir. A vantagem do audiovisual para a comunicação intercultural

22 A maioria dos rituais kuikuro está associada a uma doença causada por entidades não-humanas designadas,
como vimos, itseke, entidades que têm o mal costume de roubar as almas dos humanos para transformá-las em
seus próprios parentes. Ao se recuperar, o doente torna-se o dono do ritual associado ao agente patogênico,
devendo, no decorrer dos anos, alimentá-lo por meio da realização de sua festa. O ritual xinguano é, assim, um
dispositivo de transformação coletiva e transitória em itseke que contrarresta uma transformação individual e
definitiva que adviria caso o paciente morresse. Hoje, o ritual também serve para evitar outra transformação
definitiva, por ser o único lugar em que os índios não estão “virando branco”. Talvez por isso tenha-se
convertido em uma atividade na qual podem “virar índio” novamente. O ritual é uma terapia para a doença
crônica causada pelo “cheiro dos brancos”. (FAUSTO, 2012)
47
reside em grande parte no impacto da imagem, que impõe conceitos éticos, sentimentos,
sensações, que transcendem a diversidade das culturas: por serem atos de percepção, elas
aproximam. (GALLOIS, 2000, 3)

Sob essa perspectiva de assimilação mútua de culturas distintas é que se edifica esta
trajetória do projeto Vídeo nas Aldeias e sobre a qual também Carelli constrói sua filmografia.
Minha principal inspiração para o desenvolvimento desta pesquisa está no trabalho autoral
mais recente dirigido por Vincent Carelli. Corumbiara (2009) é um documentário que retrata
o encontro e a resistência de 20 anos pela sobrevivência de uma comunidade indígena até
então isolada e desconhecida dos órgãos governamentais e perseguida por madeiros no
interior da Amazônia. Neste filme, Carelli que assume também o papel de narrador, logo nos
primeiros planos do filme, faz uma breve apresentação do projeto densenvolvido pela ONG
Vídeo nas Aldeias e constrói uma narrativa de duas histórias paralelas que acontecem ao
longo de vinte anos. São histórias que em diversos momentos se cruzam, se confundem e se
fundem. A primeira história é a história pessoal de Carelli desde os tempos do indigenismo na
FUNAI que culmina na criação e desenvonvimento do projeto VNA. As primeira cenas do
filme são imagens do filme A Festa da Moça (1987) e o emblemático encontro dos
Nambiquara com a câmera, já citado anteriormente no texto. A segunda história começa ainda
no tempo do indigenismo na FUNAI, quando em 1985 o indigenista Marcelo Santos denuncia
um massacre de índios na Gleba Corumbiara (RO). Carelli recebe a missão de filmar, junto
com a equipe de Marcelo, o contato com este grupo de índios isolados. E filma o que resta das
evidências, pois os índios não foram encontrados. O caso passa por fantasia, e cai no
esquecimento devido à falta de provas que comprovem a existência destes índios. Marcelo e
sua equipe levam anos para encontrar os sobreviventes deste massacre promovido por
madeireiros. Somente duas décadas depois, a partir da tentativa de registro feito em diversas
ocasiões ao longo destes vinte anos, por fim acabam por encontrar o último sobrevivente
deste massacre. Diante das câmeras o único registro feito deste índio acuado de apenas alguns
segundos, serve como documento para que os órgãos encarregados tomem as atitudes devidas
para que este índio isolado que luta bravamente por sua sobrevivência possa assim
permanecer.
Corumbiara é permeado por uma série de encontros desnorteantes que ocorrem diante
a câmera. Na primeira tentativa de contactar estes índios em 1985, Marcelo Santos e Carelli
encontram os últimos sobreviventes de um grupo Canôe. Neste primeiro encontro entre
48
brancos e índios, na eternidade sensorial promovida pelo cinema, podemos ver refletida a
mímesis do contato através de uma câmera, presente, viva e atuante.
César Guimarães, nos lembra “uma breve e intensa cena do primeiro contato, o olhar para
acolher o convite que vem dele; aceita ser conduzido, e que causa uma pequena vertigem,
um descentramento, as coisas se desenquadram momentaneamente, desequilibradas, fora de
foco. Como numa dança sem ensaio, Tiramantu e Purá (índios Canoê, personagens do
filme) conduzem a equipe para o centro da aldeia. É nessa região onde a mata se encontra
acuada pela ferocidade da expansão capitalista que o documentário (e com ele todo o
cinema!) reinaugura sua cena primitiva, atualizada pelos dilemas e impasses da sociedade
na qual vivemos.” (GUIMARÃES apud CAIXETA, 2009, 149)

!
Marcelo, da Funai (à direita) e Vincent se despedem dos Canoê recém contactados. Foto: Marcos Mendes/AE,
1995

Estas são descrições emocionantes das cenas de primeiro contato com estes supostos
índios isolados. O filme transcorre entre as tentativas de encontro com os sobreviventes deste
massacre de 1985. A equipe persegue ao longo de vinte anos a tentativa de incriminar os
responsáveis pelo massacre e registram os embates com os representantes dos orgãos públicos
responsáveis pela demarcação daquelas terras, que se utilizavam do pretexto de ninguém
nunca os terem visto para não precisarem agir diante daquela situação que colocava a vida de
muitas pessoas em risco, entre elas, brancos e índios. Por fim, há uma última tentativa de
contactar este sobrevivente, que a esta altura (passado vinte anos) caminha só pelas matas e
constrói buracos na terra que servem de abrigos temporários. Marcelo Santos, ao receber
49
informações da atual localização deste “índio do buraco” sai em uma última investida
acompanhado de Carelli e sua câmera que faria o registro e traria este índio para a existencia
“real”. Quem sabe, por fim, aquele índio não poderia passar os seus últimos dias na terra,
devidamente protegido daquilo que ele vinha se escondendo há vinte anos. A dupla Marcelo e
Carelli passam seis horas na mata, cercando a cabana de palha na qual o índio estava
escondido, entre tentativas de flechadas flagradas e direcionadas à câmera é possivel ver o
rosto do índio acuado por entre as frestas da cabana. Desistem de tentar contacta-lo,
abandonam o local e deixam a câmera ligada. Após alguns minutos, o índio sai pela parte de
trás da cabana e aquela imagem de poucos segundos flagrada entre uma flechada e outra
através das palhas da cabana é que Marcelo Santos levará a Brasília e definirá o destino
daquele índio.

Sobre este filme, Jean Claude Bernardet, assinala alguns trechos que sintetizam
visualmente os sentimentos e objetivos promovidos e perseguidos respectivamente em
Corumbiara:

Corumbiara de Vincent Carelli é um filme militante. Hoje em dia, até parece palavrão. Ele
foi feito para denunciar um massacre de índios ocorrido em meados dos anos 1980. Ele
apresenta indícios, vestígios que possam comprovar o massacre. Ele se compõe de
materiais filmados no decorrer de vinte anos, é um projeto que Carelli perseguiu durante 20
anos, é um projeto de vida. Durante essas duas décadas foram flagradas situações e
momentos extraordinários. Cito alguns: o encontro com dois sobreviventes, a busca dos
sobreviventes por outros sobreviventes, o confronto com fazendeiros (câmera oculta),
intervenções da Polícia Federal, a descoberta dos “buracos” cavados na terra servindo de
esconderijo, a descoberta do índio solitário traumatizado que não suporta a aproximação de
brancos. Estes não são fatos relatados, mas momentos preciosos e únicos que a câmera
conseguiu captar...
50
Já que não se conseguiu reunir provas que atestem o massacre, pois as provas foram
destruídas, já que não há como incriminar os culpados e levá-los aos tribunais, o que se
impõe é CONTAR A HISTÓRIA. Contar a história e torná-la pública com veemência
substitui uma ação concreta e necessária mas impossível nas atuais condições sociais e
políticas. Corumbiara não testemunha, mas age. Contar a história é uma ação que denuncia
o massacre a sociedade. Contar é agir.
A questão da imagem, do narrar a história está visceralmente integrada a este filme
militante. Basta relatar o seguinte episódio: a aproximação do índio solitário refratário a
qualquer contato com brancos é feita por duas pessoas: um indegenista conhecido como
Alemão, e o próprio cineasta Vincent Carelli. O índio flecha. Isto a câmera flagrou. Carelli
explica que o índio não flechou o Alemão, mas ele, Carelli, porque ele segurava a
câmera.” (BERNADET, 2010)

Esta é uma história emblemática, amarga e irônica para pensar a trajetória de Vicent
Carelli com o cinema. Corumbiara entre os muitos prêmios que recebeu, foi premiado como
melhor filme no festival de cinema de Gramado em 2009. Um festival notoriamente
conhecido pelo seu apelo popular e sua seleção e premiação voltados para um cinema
comercial e de massa, neste ano deu o prêmio mais importante do festival para um filme
definitivamente muito pouco comercial e que levanta questões muito sérias e difíceis de
serem abordadas pela população brasileira de maneira geral. Seja pelo desconhecimento desta
história indígena, seja pela violência e crueza com que os temas são tratados. Não é um filme
de fácil digestão, pois uma vez mais nos encontramos diante do velho dilema da colonização e
as representações desta história que carregamos e amargamos até hoje em nossa história
oficial.
O registro foi feito e Carelli cumpriu com o que pretendia quando entrou nesta história
há 29 anos atrás. O índio foi identificado e seu registro encaminhado aos devidos
responsáveis em resguardar este resquicío de existência. Se será realmente feita a demarcação
e se esse índio sobreviverá, só a história poderá dizer. Mas Carelli fez o que sua militância o
ensinou a fazer, contou e registrou esta história. Ele fez o que considerava ser o seu dever, a
sua missão. Capturar em imagens o registro deste do índio do buraco poderá, quem sabe,
influenciar o futuro não só deste último sobrevivente do massacre ocorrido na Gleba
Corumbia (RO) em 1985, como também fazer com que as políticas públicas e conflitos
políticos nestes locais sejam pensados e trabalhados sob nova perspectivas diante desta
narrativa tão emocionantemente trágica para os olhos de qualquer cidadão brasileiro.
Voltar à questão sugerida por Fausto e Ginsburg sobre a maldição branca relativa ao
acesso à mídia se faz novamente importante. Neste caso apresentado em Corumbiara uma vez
mais a câmera teve o seu papel crucial, transformador e revelador. A presença que tanto

51
perturbou o índio serviu para que o protegesse. Pois, ao mesmo tempo em que existem
brancos que importunam a existência deste indíviduo, existem brancos que compartilham a
sua “sub” existência e lutam para transformar esta realidade com estas mesmas armas que
podem ferir e extinguir os povos e suas “culturas”.

1.6 A nova cultura legislativa do patrimônio pós 88 e a legitimidade dos registros


imagéticos neste novo contexto político

Para encerrar este capítulo acho de considerável importância citar ainda uma última
produção do projeto VNA. Iarautê, Cachoeira das Onças é um filme de 2006 dirigido por
Vincent Carelli. O documentário de 48 minutos reúne narrativas de lideranças indígenas do
alto Rio Negro sobre os significados e ensinamentos contidos e circuncunscritos na paisagem
da chachoeira das onças, localizada no município de São Gabriel da Cachoeira no estado do
Amazonas. Iauaretê em tupi significa "cachoeira das onças".
Trata-se de uma corredeira cuja importância não deriva de aspectos puramente ambientais e
paisagísticos, mas do fato de se tratar de um sítio sagrado para várias etnias indígenas. Os
Tukano, Desana, Pira-Tapuia, Wanano e Tuyuka consideram a cachoeira de Iauaretê como
um dos pontos de parada da cobra-canoa que trouxe ao Uaupés seus ancestrais. O
antropólogo Geraldo Andrello, que realizou pesquisas na área, explica que, em todas as
narrativas míticas desses povos, “o surgimento e crescimento dos diferentes grupos do
Uaupés são tematizados na forma de sucessivos deslocamentos espaço-temporais de seus
ancestrais, processo que define também seus respectivos territórios (ANDRELLO, 2008
apud GOLDENSTEIN, 2006, 334)

Este filme é fruto de uma parceria entre o Projeto Vídeo nas Aldeias, o Instituto
Socioambiental (ISA), o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e a
Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), ele revela o esforço e luta
para fortalecer e legitimar as tradições indígenas e constituiu parte importante do processo de
tombamento dessa paisagem como patrimônio cultural imaterial, pelo IPHAN em Agosto de
2006.23
Considero esse filme relevante na produção do Vídeo nas Aldeias, pois ele aparece
aqui como mais um canal acessado por Carelli na sua luta diária pela sobrevivencia e
resistência dos povos indígenas. Nesta ocasião, Carelli teve a oportunidade de utilizar as suas
armas novamente pelas vias do Estado, mas agora diante de um novo cenário. Os repaginados

23Para maiores informações sobre o documentário Iauraetê - Cachoeira das onças, ver resenha crítica de
Goldenstein, 2006.
52
anos 2000, a política democrática no Brasil demonstra aqui, de fato, ter evoluído em alguns
sentidos, no que tange as tradições indígenas é possível agora dialogar com o Estado diante de
novas perspectivas. Já não se trata da FUNAI e da tutela do Estado para manter aqueles índios
ainda como índios. Mas se trata das políticas que buscam resguardar a memória e patrimônio
cultural destas tradições24 reconhecerem o espaço ocupado por estes povos e corpos vivos,
atuantes, produtores de conhecimento, tradições e detentotores de uma história que precisa ser
reconhecida e legitimada como patrimônio histórico e cultural brasileiro.

Olhando retrospectivamente para os trinta e tantos anos que se passaram, constatamos com
satisfação uma certa evolução na relação do Estado com os índios. O modelo centralizador
da FUNAI, herança da ditadura militar, alimentou a cultura de um certo apartheid indígena,
em que o todo o país lavava as mãos. “Índio? Isso é problema da FUNAI!” Nos anos
oitenta e noventa, quando as associações indígenas começaram a surgir, encontraram uma
enorme resistência dos poderes públicos. Os cartórios diziam: “Registro de associação
indígena, só com autorização da Funai”. O movimento indígena se articulou, sobretudo
localmente e regionalmente. Novas categorias profissionais se formaram, especialmente a
dos professores e agentes de saúde indígenas, e agora toda uma geração começa a ter acesso
à universidade. O Brasil como um todo se democratizou. Em 1988, a Constituição
brasileira veio sacramentar algumas conquistas importantes, embora boa parte do país ainda
não as tenha digerido. Pouco a pouco, saímos do modelo centralizador de um único órgão
com o monopólio da questão indígena, para um modelo plural, onde novas possibilidades
de interlocução se apresentam para os índios, dependendo do tema específico que eles
queiram tratar: educação, saúde, meio ambiente. O Ministério da Educação tomou para si a
questão da educação indígena e o Ministério da Saúde fez o mesmo, permitindo com que as
organizações indígenas passassem a ser interlocutoras de políticas públicas.O Ministério do
Meio Ambiente criou uma linha de crédito especial para que as populações indígenas

24 A Constituição Federal de 1988, em seus artigos 215 e 216, ampliou a noção de patrimônio cultural ao
reconhecer a existência de bens culturais de natureza material e imaterial e, também, ao estabelecer outras
formas de preservação – como o Registro e o Inventário – além do Tombamento, instituído pelo Decreto-Lei nº.
25, de 30/11/1937, que é adequado, principalmente, à proteção de edificações, paisagens e conjuntos históricos
urbanos. Os Bens Culturais de Natureza Imaterial dizem respeito àquelas práticas e domínios da vida social que
se manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de expressão cênicas, plásticas,
musicais ou lúdicas; e nos lugares (como mercados, feiras e santuários que abrigam práticas culturais coletivas).
Nesses artigos da Constituição, reconhece-se a inclusão, no patrimônio a ser preservado pelo Estado em parceria
com a sociedade, dos bens culturais que sejam referências dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira. O Patrimônio Cultural Imaterial é transmitido de geração a geração, constantemente recriado pelas
comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um
sentimento de identidade e continuidade, contribuindo para promover o respeito à diversidade cultural e à
criatividade humana. É apropriado por indivíduos e grupos sociais como importantes elementos de sua
identidade. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) define como
Patrimônio Cultural Imaterial "as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – com os
instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e,
em alguns casos os indivíduos, reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural." Esta definição
está de acordo com a Convenção da Unesco para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, ratificada pelo
Brasil em março de 2006. Para atender às determinações legais e criar instrumentos adequados ao
reconhecimento e à preservação de Bens Culturais Imateriais, o IPHAN coordenou os estudos que resultaram na
edição do Decreto nº. 3.551, de 04/08/2000 - que instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e
criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI) - e consolidou o Inventário Nacional de Referências
Culturais (INCR). Em 2004, uma política de salvaguarda mais estruturada e sistemática começou a ser
implementada pelo IPHAN a partir da criação do Departamento do Patrimônio Imaterial (DPI). Informações
retirada da página do IPHAN na internet: http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do?
id=10852&retorno=paginaIphan
53
possam propor e financiar seus programas de proteção ambiental. Falta o Ministério da
Cultura assumir a sua parte e estabelecer com os índios um diálogo para definir uma
política cultural. O Ministério da Cultura ainda se comporta hoje como os cartórios de dez
anos atrás: “projeto cultural de índio, só com autorização da Funai”. O maior patrimônio
dos índios é cultural, cultura viva, não só para eles mas para milhões de brasileiros que não
fazem idéia do que se passa neste país.” (CARELLI in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2004, 30)

A possibilidade de utilizar novamente o vídeo como este aporte criador de realidades é


uma vez mais surpreendente, pois agora não estamos mais diante do confronto do contato e
sim diante do diálogo possibilitado outra vez pela produção da realidade fílmica. Este de fato
é um cinema compartilhado. Realidades criadas e trasformadas a partir da produção e
compartilhamento de imagens.


54
Capítulo 2

OS FILMES DOS CINEASTAS INDÍGENAS

!
O neto filma o avô Afukaká, cacique principal dos Kuikuro. Foto Carlos Fausto, 200725.

2.1 A história da formação dos cineastas indígenas

Entre 1995 e 1996 foi realizada uma série de dez episódios para a TV Escola do MEC
intitulada Programa de Índio. Numa parceria inédita até então do VNA com instituições
brasileiras, foi elaborado um projeto de complementação curricular para o ensino
fundamental. Estes programas realizados e idealizados pela equipe do VNA foram
distribuídos pelo Ministério da Educação (MEC) às escolas da rede pública em um Kit
composto por duas fitas VHS e três livros com artigos sobre os temas abordados pela série.
Os programas foram também veículados pelo canal de ensino a distância da TV Escola, via
satélite, a uma rede de 50 mil escolas públicas e privadas não indígenas.

25 Imagem retirada do livro Vídeo nas Aldeias 25 anos. Para maiores informações, ver bibliografia.
55
Com a abertura na legislação das TVs públicas regionais, fomos convidados pela
Universidade Federal de Mato Grosso a fazer um programa “sobre” os índios. Até
aquele momento, não nos tinha ocorrido tal possibilidade, mas imediatamente
propusemos fazer um programa “com” os índios. Assim, entre 1995 e 1996,
produzimos o Programa de Índio. (Carelli, 2004, 28)

Este projeto teve a direção geral de Vincent Carelli, que roteirizou os programas com
Tuto Nunes e Henri Gervaseau e os fotografou junto com outro colaborador do VNA, Cleyton
Capelossi. Esse trabalho de proporções nunca antes vivenciada pelo VNA envolveu ainda um
grande contingente de colaboradores que trabalharam na produção de conteúdo dos episódios
e também assinam co autoria nos roteiros, foram eles: Bruna Franchetto, Carlos Fausto,
Dominique Gallois, Luis Donisete, Benzi Grupioni e Vigínia Valadão. A série é apresentada
por Ailton Krenak, que introduz, comenta os temas e realiza as entrevistas.

Nove personalidades indígenas participam da série como personagens centrais, falando em


nome de suas comunidades, de sua história aos projetos atuais: Joaquim Maná, Kaxinawá
da aldeia Macuripe da Terra indígena Praia do Carapanã (AC), Davi Kopenawa, Yanomami
(RR), Francisco Pianco, Ashaninka do Rio Amônia (AC), Quitéria Binga Maria de Jesus,
Pankararu, Brejo dos Padres (PE), Alzilene Krin Inácio, Kaigang (SC), José Ferreira,
Maxacali de Água Boa (MG), Daniel Kaiowá, da aldeia de Rio Vermelho (TO), Bonifácio
José, Baniwa, São Gabriel da Cachoeira (AM). Além destes, participam na qualidade de
entrevistados: Brás de Oliveira França, Baré (AM), Agenos Gomes Julião, Pankararu (PE),
Jaime Lulhu, Manchineri (AC); José Lopes, Kaigang (RS), André Fernando, Baniwa (AM);
e o líder à época da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN26), Pedro
Garcia, Tariano (AM). (GONÇALVES, 2012, 100)27

Após dez anos da criação do Vídeo nas Aldeias e depois da experiência “faraônica”
que foi o Programa de Índio, inaugura-se uma nova fase do projeto, a formação de Cineastas
Indígenas. O VNA buscava, neste momento, reorientar também seus objetivos, quando
assumiu como prioridade para as suas atividades, a formação de realizadores indígenas. Estas
transformações no projeto devem ser compreendidas em diversos sentidos: em primeiro lugar

26 A Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – Foirn é uma associação civil sem fins lucrativos,
sem vinculação partidária ou religiosa, fundada em 30 de abril de 1987. A Foirn tem como missão defender os
direitos dos povos indígenas que habitam a bacia do rio Negro localizada no Noroeste Amazônico, estado do
Amazonas, Brasil. É composta de 89 associações indígenas de base que representam cerca de 750 aldeias. Sua
área de abrangência corresponde a 108 milhões de km2, onde vivem mais de 35 mil índios, pertencentes a 23
grupos étnicos, representantes das famílias linguísticas Tukano Oriental, Aruak e Maku. (Dados retirados da
página oficial da instituição: http://www.foirn.org.br/sobre-foirn/quem-somos/quem-somos/)

27Os dez epsódios realizados são, Epsódio 1: Quam são eles (18’); Epsódio 2: Nossas Línguas (20’); Epsódio 3:
Boa viagem Ibantu (18’); Epsódio 4: Quando Deus visita a aldeia (18’); Epsódio 5: Uma outra história (17’);
Epsódio 6: Primeiros contatos (19’); Epsódio 7: Nossas terras (20’); Epsódio 8: Filhos da terra (18’); Epsódio 9:
Do outro lado do Céu (18’) e Epsódio 10: Nossos Direitos (17’). Mais informações sobre esta série podem ser
obtidas em Gonçalves (2012).
56
está a demanda dos próprios indígenas por esta capacitação, que a experiência acumulada do
projeto percebeu ser o “caminho natural” a percorrer. Conforme comenta Carelli:

O reconhecimento internacional alcançado por alguns vídeos nos levou a muitos festivais, e
neles descobrimos que o desenvolvimento da mídia indígena era um movimento emergente
no planeta, desde experiências como a nossa e outras na América Latina até as de cineastas
indígenas do primeiro mundo, formados em faculdades de cinema... Os Sami na Noruega,
os Inuit e os índios no Canadá, os aborígines da Austrália, da Nova Zelândia, têm seus
canais de televisão. O desenvolvimento de uma mídia indígena é um processo mundial, um
movimento da história. Dar visibilidade às minorias étnicas através dos meios de
comunicação de massa tem um caráter estratégico para estes povos, para que sejam
reconhecidos e respeitados. (CARELLI, 2004, 28)

Um segundo ponto importante a se destacar quando tomada esta iniciativa está ligado
ao desenvolvimento e democratização da tecnologia digital, que permitiram o acesso às
ferramentas produtoras de imagens (câmeras e ilhas de edição e microfones portáteis, por
exemplo) a custos bem abaixo do que já se havia experimentado, permitindo inclusive maior
mobilidade para o projeto, que neste período comprou a sua primeira ilha de edição portátil.
Vale ainda destacar neste mesmo sentido a importância da abertura das TVs a cabo no
Brasil e a consequente ampliação do sistema público de televisão, conforme assinalam Carelli
e Gallois:

Recentemente, a legislação permitiu que retransmissoras locais da Rede Brasil, além de


retransmitir a programação gerada pela TV Educativa/Fundação Roquette Pinto, possam
também transmitir duas horas diárias de sua produção local, passando a ter um status de
retransmissoras mistas. Grande número destas retransmissoras pertencem à Fundações,
Universidades e outros organismos públicos das esferas municipais ou estaduais
(GALLOIS; CARELLI, 1995, 49).

São, estes, portanto, alguns dos fatores que foram determinantes para a inauguração
desta nova fase do projeto VNA. Em 1997 foi realizado um grande encontro no Parque
Nacional do Xingu, quando ocorreu a primeira oficina de vídeo.

Reunimos no Xingu mais de trinta índios de diversas partes do Brasil, com os quais já
trabalhávamos e que se conheciam através da rede de videotecas que instalamos em suas
aldeias. O encontro permitiu um intercâmbio direto entre eles, mas ainda nos faltava um
método de ensino. (CARELLI, 2004, 29)

Esta oficina foi um encontro que reuniu uma série de índios de diversas etnias que já
trabalhavam com o Vídeo nas Aldeias, para, pela primeira vez, participarem de uma oficina
que propunha a capacitação na utilização destas ferramentas audiovisuais. Esta foi uma

57
primeira experiência com o intuito de pensar sobre a metodologia de ensino a ser elaborada
para este novo tempo do projeto VNA. Este encontro reuniu alguns indígenas que já estavam
trabalhando com o filme em suas aldeias, para que, de fato, começassem a tomar as rédeas
desta produção. Carelli conta alguns detalhes deste primeiro encontro/teste de oficina de
formação de cineastas indígenas e os seus desdobramentos:

A oficina do Xingu foi uma tentativa de dar uma encontrada nessas pessoas que estavam
dispersas, abrindo novas frentes, enfim, tentar compor um quadro já com o plano de
sistematizar esse trabalho de formação, que é um negócio que os Bolivianos já estavam
fazendo, que os Mexicanos sempre fizeram... Enfim, tentei, da pouca informação que tinha,
reunir uns 30 índios de etnias diferentes. Então foi mais um encontro mesmo, havia trinta
índios, cinco professores, poucas câmeras, um negócio ainda difícil. E tudo num lugar só,
que era um Posto Indígena. Queríamos entender qual seria a configuração ideal para
trabalhar. Era a busca de uma metodologia mesmo, que envolvia desde qual seria o local até
com quem trabalhar, quem reunir... (CARELLI apud CAIXETA, 2009, 154).

Considero importante neste momento fazer novamente um parênteses a respeito da


trajetória de Vincent e suas redes de relações pessoais. Para a compreender este período do
projeto VNA que é marcado por muitas peculiaridades em sua produção, torna-se necessário
trazer para a discussão informações localizadas fora da esfera dos filmes, mas fundamentais
para compreendermos esta fase fílmica do projeto. Vincent ficou viúvo de Virgínia Valadão,
sua esposa e parceira profissional, que faleceu em 1998. Antropóloga, Virgínia acompanhou
Vincent em boa parte desta sua trajetória entre os índios. Estava no grupo de indigenistas que
fundou o CTI em 1979, ajudou a criar o VNA em 1986 e atuou direta e ativamente em muitos
trabalhos desenvolvidos pelo projeto, desde a sua criação. Seu vídeo mais conhecido, Yãkwa:
o Banquete dos Espíritos (1995) ganhou o prêmio Pierre Verger concedido pela Associação
Brasileira de Antropologia em 1996. Faleceu prematuramente aos 46 anos, vítima de infarte,
deixando dois filhos com Vincent, muitos projetos em andamento e Carelli sem sua principal
companhia neste front de batalha.
O VNA precisava de colaboradores para esta nova empreitada do projeto, a formação
de cineastas indígenas, que havia recém começado. Mari Corrêa é editora de imagens e

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documentarista formada pelo ateliê Varan28, onde também trabalhou como instrutora após a
sua formação em 1987. Durante a sua passagem pelo Varan29 muito já havia escutado falar de
Vincent Carelli e o trabalho desenvolvido pelo VNA. Por volta do ano de 1995, quando
Corrêa estava produzindo o seu filme no Xingu, tomou a iniciativa de ir ao encontro de
Vincent. Foi até a sede do VNA, que nesta época funcionava junto com o CTI em São Paulo,
para conhecê-lo pessoalmente. Este primeiro encontro foi um pouco desastroso conforme
narra a própria:

E ai, um dia eu fui lá conhecer o Vincent (risos)... Que me recebeu muito mal (risos)... e a
gente discordou de cara na nossa conversa, porque ele conhecia muito bem o Ateliers Varan
e rapidamente me falou assim: “É porque o nosso trabalho aqui é diferente, a gente não
edita os filmes”, e ai eu viro para ele e digo “é pra mim...” (Vincent Carelli corrige: “a
gente não edita os filmes dos índios.” e ela prossegue: É o dos índios, o que é bem pior né,
porque se não editasse nenhum ainda era justificavél”... Eu falei que a gente tinha horários
muito diferentes e a gente nunca mais se viu. (CORRÊA; CARELLI apud GONÇALVES,
2012, 100)

Carelli e Mari voltaram a se reencontrar na França dois ou três anos depois deste
episódio, quando Vincent a procurou para pedir uma cópia do seu filme O corpo e os
Espíritos, para exibir na primeira oficina de vídeo com os indígenas do projeto VNA no
Parque do Xingu, que ocorreu em Setembro de 1997. Voltaram a se reencontrar no Rio de
Janeiro durante a Mostra Internacional do Filme Etnográfico e, nesta oportunidade, Carelli
convidou Mari Corrêa a participar junto com ele, como instrutora, na segunda experiência de
oficinas de cineastas indígenas do projeto, que seria realizada no Acre durante quinze dias
numa parceria com a Comissão Pró Índio, isso foi em 1998.

28 A experiência que originou os Ateliers Varan ocorreu em 1978 quando o governo do recente país independente
solicita à Embaixada da França a vinda de profissionais para a realização de filmes sobre as transformações em
curso. Jean Rouch propõe, então, a formação de moçambicanos na realização de filmes documentários para que
eles próprios testemunhem a realidade.
A formação no Atelier Varan funciona a partir de estágios de onze semanas, com grupos de doze pessoas. As três
primeiras são dedicadas à familiarização com a câmera e o som com exercícios práticos que favorecem a
reflexão sobre o fazer documentário, assim como sessões de visionamento de filmes com a presença dos seus
realizadores. Na sequência, cada estagiário realiza um filme, ao mesmo tempo em que faz o som do filme de um
colega. E as três últimas semanas são dedicadas ao aprendizado da montagem, cada estagiário devendo editar seu
filme. (VILLAR, 2003 apud GONÇALVES, 2012, 95)

29Mari Correa foi convidada em 1990 para compor uma equipe de instrutores do Ateliers Varan que iriam
executar uma oficina de três meses oferecida aos Kanak da Nova Caledônia. De volta à França, após esta
experiência, Corrêa encontrou um amigo médico que trabalhava no Parque Nacional do Xingu, junto à Escola
Paulista de Medicina (EPM) e a partir deste encontro Mari investiu na idéia de realizar um documentário sobre a
questão da saúde indígena e seus embates frente à medicina ocidental. O resultado deste trabalho é o filme O
corpo e os Espíritos (1996) filmado entre 1992 e 1995 e premiado no festival Bilan du Film Ethnographique em
1997.
59
Sobre esta segunda oficina de formação que contou com a participação de professores
indígenas Ashaninka e Kaxinawá como alunos, e que marca a entrada de Mari Corrêa projeto
VNA, Carelli (in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2011, 48) comenta:
O conjunto de professores que a Comissão reunia era formado por um grupo muito
especial, já com uma consciência crítica formada. Foi aí que convidei Mari Corrêa, formada
nos Ateliers Varan, uma escola de cinema direto para o terceiro mundo sediada em Paris,
para compor a equipe do VNA e, juntos, adaptarmos o método desenvolvido por eles ao
mundo das aldeias.

Mari traz mais alguns detalhes do processo desta sua primeira experiência como
instrutora no VNA:
A primeira oficina foi muito rápida, foi curta, teve Ashaninka, Kaxinawá, e a gente fez duas
oficinas mais ou menos ao mesmo tempo: a oficina de desenho animado, que Vincent
dirigia, e eu fiquei com o grupo dos alunos que faziam vídeo. E como a gente estava num
espaço meio fechado, a gente filmava o que acontecia lá que era o desenho animado
(risos)... (CORRÊA apud GONÇALVES, 2012, 100)

Havia, portanto, a necessidade de se criar um enquadramento metodológico para estas


oficinas que seguiram a primeira experiência no Xingu. Este, provavelmente, foi um dos
principais motivadores que levaram Carelli a convidar Mari Corrêa para o projeto. Carelli já
conhecia bem a proposta do Ateliers Varan e sabia da importância desta formação na
consolidação de outros projetos que trabalhavam com a mídia indígena ao redor do globo
desde o início da década de 1980.
No início da década de 1990, Vincent foi ao Festival de Locarno na Suíça, quando
conheceu mais de perto alguns destes projetos e seus idealizadores/diretores30 e constatou que
todos haviam feito formação no Varan, conforme afirma: “Aliás, Varan tá por trás de toda essa
história porque o cara que fundou o projeto no México também fez Varan, o Lupone. E o cara
que fundou o CEFREC lá na Bolívia também tinha feito Varan” (Vincent Carelli, 28.07.2003
apud GONÇALVES, 2012, 93). Percebe-se neste ponto que são documentaristas formados no

30 Entre eles Norman Cohn e Zacharias Kunuk fundadores da Igloolik Isuma Productions, a primeira produtora
de filme independente inuit no Canadá, que forma seus próprios artistas com programas paralelos, de teatro e
circense, exclusivos a uma comunidade autóctone. Fundada por Zachcharias Kunuk, cineasta Inuk de Igloolik,
pequena ilha da região norte do Baffin no ártico canadense, onde vivem 1200 Inuit. É realizador e autor de trinta
documentários e filmes dramáticos. Norman Cohn vive em Igloolik desde 1985, é o tesoureiro, o secretário e co
fundador da Isuma. Diretor de fotografia e produtor dos filmes de “Zach”, e o único não Inuk na equipe da
Isuma. Nesta oportunidade conheceu também Ivan Sanjines fundador e diretor do “CEFREC”, Centro de
Formación y Realización Cinematográfica, fundado em 1989 em La Paz e Luís Lupone, um dos idealizadores do
Consejo Latinoamericano de Cine y Video de los Pueblos Indigenas (CLACPI) criado em 1985 no México.
60
Ateliers Varan31, que fomentam a formação de realizadores indígenas na América Latina. E
foi a experiência no Varan, esta peculiar escola de cinema francesa fundada por Jean Rouch
na década de 1970, que Mari trouxe para o projeto VNA.

“A descoberta da linguagem cinematográfica, de forma intimista e artesanal, foi uma


experiência intensa, uma verdadeira iniciação ao filme documentário, que produziu uma
mudança radical na minha forma de ver e querer fazer filmes. O conceito e o método de
aprendizagem dos Ateliers Varan punham o documentarista iniciante diante de um leque de
questões éticas, políticas e filosóficas que iam muito além do manuseio do equipamento.
Era um aprender fazendo, quebrando a cara e refletindo. Lá eu descobri que fazer filmes é
pôr-se em risco, é estar aberta ao real e ao imprevisível, se despindo de idéias pré-
concebidas.” (CORRÊA in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2004, 33)

Entre 1998 e 2000 foram realizadas cinco oficinas regionais de formação de cineastas
indígenas, conforme comenta Carelli: “Então decidimos: vamos fazer o máximo de oficinas,
vamos reunir regionalmente os índios, aí fizemos oficina nos Ashaninka (...) Nesta oficina
tinha um Kanamari, um Kulina, um Katuquina, um Manchineri, um Kaxinauá e os Ashaninka,
enfim era uma Babel.” (CARELLI apud CAIXETA, 2009, 5). Seguiu-se a esta oficina, outras
três, em Fevereiro de 1998 em Rio Branco no Acre, em Maio e Agosto em Sangradouro no
Mato Grosso e em Outubro deste mesmo ano na Aldeia Macuxi de Muturuca em Roraima. No
ano seguinte foi realizada uma oficina na Aldeia Ashaninka do Rio Amônea no Acre entre os
meses de Março e Abril e na aldeia Ikpeng no Parque Nacional do Xingu em Setembro.
Destas, Mari Corrêa só não participou de uma, em Sangradouro, que Carelli coordenou com
Tuto Nunes32. Desta experiência na aldeia Xavante de Sangradouro resulta o primeiro
trabalho de autoria indígena coletiva do projeto VNA, Wapté Mnhõnõ, iniciação do jovem
Xavante (1999) de Bartolomeu Patira, Caimi Waiassé, Divino Tserewahú e Jorge Protodi (este
último da etnia Whinti Suyá). O filme é um documentário sobre a iniciação dos jovens

31 “A experiência que originou os Ateliers Varan ocorreu em 1978 em Moçambique, quando o governo do
recente país independente solicita à Embaixada da França a vinda de profissionais para realização de filmes
sobre as transformações em curso. Jean Rouch propõe então, a formação de moçambicanos na realização de
filmes documentários para que eles próprios testemunhassem sua realidade. A formação nos Ateliers Varan
funciona a partir de estágios de onze semanas, com grupos de 12 pessoas. As três primeiras são dedicadas à
familiarização com a câmera e o som, com exercícios práticos que favorecem a reflexão sobre o fazer
documentário, assim como sessões de visionamento de filmes com a presença dos seus realizadores. Na
sequência, cada estagiário realiza um filme, ao mesmo tempo em que faz o som do filme de um colega. E as três
últimas semanas são dedicadas ao aprendizado da montagem, cada estagiário devendo editar seu filme
(VILLAR, 2003 apud GONÇALVES, 2012, 95).

32 Tuto Nunes é um dos mais antigos colaboradores do projeto VNA e quem assina a maioria das edições dos
filmes do projeto na sua primeira fase fílmica. Trabalhou nos projetos do Video nas Aldeias entre 1989 e 2000
Hoje, trabalha como coordenador de eventos da Sportv, como educador e documentarista de Projetos Sociais e
como Coordenador do Projeto Ponto de Cultura Guarani junto à comunidade Guarani do Rio Silveira.
61
Xavante, um registro do ritual com depoimentos de membros da aldeia sobre o significado
dos segmentos deste complexo cerimonial. Foram produzidos ainda, nestes primeiros
momentos de oficina, outros dois documentários de autoria indígena, Tem que ser curioso
(1997) de Caimi Waiassé, Xavante da aldeia Pimentel Barbosa e Hpari Idub’rada, e Obrigado
irmão (1998) de Divino Tserewahú, ambos contam a experiência dos alunos do VNA sobre o
esta iniciação na produção de vídeos.
Carelli (2010), na sua reflexão a respeito destas primeiras experiências multiétnicas de
formação de cineastas indígenas reunidos regionalmente comenta:
Depois de uma experiência de oficina multiétnica, entendemos que trabalhar por etnia era o
que dava mais certo, pelo conhecimento da língua e pela intimidade que os jovens de cada
aldeia tinham com seus parentes. “Foi daí para a frente que a gente disse: “Vamos trabalhar
com cada um na sua comunidade”. E aí fiz muitos trabalhos assim: com os Panará, os
Kuikuro. Juntar uma turma do mesmo grupo foi a experiência que deu mais certo!
(CARELLI apud CAIXETA, 2009, 154).

Concluído este trabalho, Vincent Carelli e Mari Corrêa avaliaram que para dar a formação
pretendida era necessário oferecer oficinas mais longas, nas aldeias, e decidem investir nos
grupos que demonstraram interesse em continuar, como era o caso dos professores
Ashaninka e Kaxinawá. Eles começaram a planejar as oficinas seguintes, adaptando o
trabalho a cada grupo, criando junto com eles uma maneira de trabalhar sem interferir nas
experiências, cuja orientação era enviá-los ao campo e aguardar que trouxessem as imagens
para então trabalharem sobre o material coletado.”(GONÇALVES, 2012, 100)

A entrada de Mari Corrêa no projeto marca também a trajetória pessoal de Vincent,


que se casa com ela. Em 2000, o Vídeo nas Aldeias passou por uma reformulação do seu
estatuto e constituiu-se como Associação Civil. Mari Corrêa torna-se sócia da recém criada
ONG e passa a dividir a direção do projeto com Vincent Carelli.

Convidamos a realizadora Mari Corrêa, que trazia uma longa bagagem em processos de
formação em cinema, para assumir a coordenação das oficinas de capacitação. As oficinas
surtiram resultados imediatos e surpreendentes. Mari fez com que o projeto desse uma
guinada radical e definitiva, com uma nova proposta de linguagem e o timing da sua
edição, em sintonia fina com o tempo indígena. Em 2000, a criação da ONG Vídeo nas
Aldeias expressa esta nova perspectiva do trabalho e se torna uma escola de cinema para
índios, ampliando sua rede de alianças e parcerias com o movimento indígena e com ONGs
que cooperam com ele. (CARELLI in VÍDEO NAS ALDEIAS, 200, 29)

Neste mesmo ano aconteceram novas oficinas de formação de cineastas indígenas na


aldeia Ashaninka do rio Amônia no Acre e com os Ikpeng no Xingu, todas coordenadas por
Carelli e Corrêa. Destas oficinas resultaram três outros filmes de autoria indígena coletiva, No
Tempo das Chuvas (38’, 2000), de Isaac, Valdete e Tsirotsi Ashaninka, Lulhu Manchineri,
Maru Kaxinawá, Nelson Kulina, Fernando Katuquina e André Kanamari. O documentário

62
apresenta o cotidiano de alguns personagens desta comunidade Ashaninka durante a estação
das chuvas. Moyngo (40’, 2000), de Kumaré e Kanaré Ikpeng sobre o ritual de iniciação e
tatuagem dos meninos. Durante a oficina na aldeia, a comunidade resolveu encenar o mito de
origem deste ritual. Em 2001, Kumaré, Karané e Natuyu Ikpeng, a primeira realizadora entre
os alunos do VNA, filmaram o ritual Wagré, posteriormente o vídeo Moyngo foi remontado
em 2002, passando a ser distribuído como Moyngo, o sonho de Maragareum (44’, 2003).
Cabe aqui ainda destacar o término de um “casamento” antes de seguirmos adiante.
Quando em 2000 o VNA “proclama a sua independência institucional” e formaliza suas
atividades enquanto Organização não Governamental, ele “desliga-se” institucionalmente do
CTI, projeto com o qual teve uma importante e sólida parceria.
O CTI foi o principal parceiro institucional e articulador das atividades do VNA ao
longo da primeira década de atividades do projeto. Esta parceria era personificada
principalmente nas atuações de Virginia Valadão, que foi diretora do CTI até o seu
falecimento em 1998 e Dominique Gallois, com quem Carelli produziu os primeiros filmes do
VNA e uma das principais responsáveis pela divulgação do projeto no meio acadêmico.

O campo de atuação do VNA passou a se expandir, alcançando povos que não eram, então,
alvo de projetos específicos do CTI, de modo que a documentação audiovisual deixava, aos
poucos, de ser atividade subsidiária, para ganhar perfil próprio de organização
especializada em comunicações (FARAGE; SANTILLI, 2003, 51 apud GONÇALVES,
2012, 108).

Em 2002, o CTI (Centro de Trabalho Indigenista), implementou um projeto específico


para a documentação dos Waiãpi (Programa Waiãpi), que funcionaria em articulação com a
recém criada Associação Indígena Iepé33este projeto incluía entre, outras atividades, a

33 A criação do Iepé, em 2002, representou a formalização de relações de cooperação existentes entre seus 12
sócios fundadores, que já conduziam atividades de pesquisa acadêmica e assessoria direta aos povos indígenas
do Amapá e Norte do Pará, em programas do Centro de Trabalho Indigenista – CTI, do Núcleo de História
Indígena e do Indigenismo – NHII da Universidade de São Paulo, e do Museu Paraense Emilio Goeldi.
Inicialmente, as atividades se centravam em ações voltadas à capacitação e formação de jovens e adultos Wajãpi,
no âmbito do Programa Wajãpi, o mais antigo do Iepé. Ao logo do tempo, o leque de atividades, os focos de
ação, áreas de atuação e o número de parcerias institucionais se ampliaram. Nesta trajetória, o Iepé consolidou
sua atuação nessa região, com um trabalho em parceria com os povos indígenas e suas organizações
representativas e com órgãos de governo estaduais e federais. Por meio destas parcerias, são desenvolvidos
trabalhos em prol da defesa dos direitos indígenas, da garantia de condições para seu bem estar e qualidade de
vida no presente e no futuro, bem como para a conservação das florestas onde vivem e de seu entorno.
(informações retiradas do site da instituição: http://www.institutoiepe.org.br)
63
realização de filmes34, neste momento o Vídeo nas Aldeias encerrou também os trabalhos com
este grupo étnico.

2.2 Metodologia, estética e ética nos filmes dos Cineastas indígenas

Na linguagem da Varan, compreender o que é um ponto de vista passa basicamente por


duas questões: “Por que narramos as coisas de tal maneira? Como se estabelece a relação
com o outro? (...) Tentamos integrar esta noção de relação que é na verdade a história do
filme: o filme narra a progressão da relação que você tem com o outro, com aquilo que
você vê.” (VILLAR, 2003 apud GONÇALVES, 2012, 115)

Os filmes dos Cineastas Indígenas realizados em contexto de oficina, em sua maioria


coordenadas por Mari Corrêa e Vincent Carelli e editados em quase sua totalidade por Mari,
trazem uma roupagem nova à estética do projeto Vídeo nas Aldeias. O empenho do projeto
neste momento em não apenas capacitar os índios no manuseio das ferramentas mas também
em realizarem “bons filmes” é visível nas produções deste período. É possível perceber uma
“fórmula” na realização destas produções, decorrentes provavelmente do processo e do rigor
metodológico com que foram realizadas as oficinas de formação no período entre 1998 e
2006.

A dinâmica de trabalho das oficinas de formação de cineastas indígenas dividia-se


basicamente em duas etapas, a primeira etapa era realizada na aldeia com duração de
aproximadamente um mês, onde participavam entre cinco e doze alunos e dois ou três
coordenadores/formadores dependendo do tamanho do grupo. Neste primeiro momento era
apresentada a câmera aos indígenas que recebiam as noções básicas relativas ao seu
manuseio. Após este primeiro contato partiam para a definição de temas, as atividades de
roteiro e a busca por personagens.

O espaço da oficina é um espaço aberto, pelo qual toda a aldeia circula. Todas as noites são
realizadas projeções a céu aberto, onde são exibidos filmes de outras comunidades,
documentários, ficções, e momentos especiais produzidos pelos alunos ao longo da oficina.
De maneira que, durante três semanas, um mês, os alunos, os personagens e a comunidade
como um todo se vêem imersos em cinema. (CARELLI in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2011,
49).

34“Segundo os responsáveis pela formação audiovisual o objetivo do trabalho das oficinas é formar os Waiãpi a
fim de que possam fazer o filme de ficção para o qual eles solicitam apoio há vários anos, sendo capacitados
para a elaboração do roteiro, manipulação das câmeras, captura de imagens e processo de
edição.” (PELLEGRINO, 2003, 67 apud GONÇALVES, 2012, 109)
64
Dentre as orientações sobre narrativas, formas de abordagem, escolha de personagens,
existem algumas “regras” que foram estabelecidas pelo projeto como metodologia para esta
formação. Muitas delas são técnicas reproduzidas e adaptadas da metodologia do Varan. Uma
das principais orientações é no sentido de estimular a estabelecer-se relações de consenso e de
proximidade com os seus personagens.

Aprender a mostrar realidades cotidianas, a expressar em imagens e sons o que é uma


identidade cultural, numa aprendizagem pela prática, onde o grupo de estagiários participa
das diferentes etapas da fabricação de um filme mutuamente. O futuro documentarista
aprende que todo filme expressa um ponto de vista, o que compreende o aprendizado de
definir o seu ponto de vista, situar seu olhar, dar-lhe um sentido. Na relação com o sujeito
filmado, o documentarista é ensinado a lhe dar a palavra em seu próprio ritmo e duração.
Como princípio que realizar um filme é também uma questão ética, a orientação é de se
integrar ao meio que se filma, privilegiando a proximidade com as pessoas filmadas em
detrimento de uma observação distante. Aprende também que todo documentário faz, face
ao imprevisto, o que requer o ajuste continuado do filme ao que a realidade propõe. Nesta
pedagogia, o real não é dado, é necessário “faze-lo atuar. (“L’esprit Varan” in www.
ateliersvaran.com/presentation_esprit.asp, 18 jan 2004 apud GONÇALVES, 2012, 114.)

As filmagens durante as oficinas de formação, são orientadas a serem feitas


exclusivamente sem a presença dos instrutores. Ao final de cada dia de filmagem as imagens
são exibidas e discutidas em grupo, quando são definidas também as pautas do dia seguinte.

A nossa participação no processo de captação se dá na retaguarda, já que raramente


participamos presencialmente das filmagens, ao revisar com eles as imagens. É isso que
justamente permite que o seu olhar se expresse. É claro que orientar uma oficina é também
fazer junto, no sentido de que você está ali dando sugestões, comentando, discutindo, dando
o melhor de si. (CARELLI in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2011, 49)

Neste primeiro momento da oficina, os alunos recebem uma formação inicial sobre a
montagem de um filme, praticando exercícios com o material captado. Neste primeiro contato
com o processo de produção de um filme, são apresentadas as ferramentas e técnicas
necessárias para a realização, como também discutidas as formas e os conteúdos narrativos a
serem produzidos. Após este momento, os alunos definem um projeto que querem
desenvolver e o VNA dá o suporte técnico e financeiro para a sua realização. Quando estes
projetos já têm um volume significativo de material filmado, os alunos participam de uma
oficina de edição na sede do VNA para a edição final dos seus projetos.
"A formação de um editor toma mais tempo. Depois de dois a três filmes, se
revelam aqueles que tem talento e gosto pela coisa. A sucessão dos filmes

65
nos quais eles se reconhecem é também uma aprendizagem do conjunto da
aldeia." (CARELLI, 2011, 49)

Os filmes realizados neste período têm uma primazia estética e rigor na escolha dos
planos. Sempre bastante estáveis e observativos, a montagem ganha outro ritmo nestes filmes
do projeto onde as entrevistas dão lugar a longas sequências de observação. Os planos não são
longos, nota-se aí um recurso claro de montagem para um diálogo com o mundo dos brancos
e o tempo de aceitação destas imagens no universo ocidental. Com montagens clássicas, os
usuais recursos videográficos comumente encontrados nos primeiros filmes do projeto e que
dialogavam muito com a estética televisiva, simplesmente desapareceram neste segundo
tempo do projeto.
A câmera nestes filmes tende a adotar uma posição muito privilegiada, dando ao
espectador o acesso a intimidade da aldeia quando colocada na mão dos índios. Esta
fotografia intimista, delicada e respeitosa que vemos presente na maioria dos filmes dirigidos
por cineastas indígenas do projeto VNA, são em sua maioria imagens feitas pelos alunos das
oficinas sem a presença e interferência dos monitores/coordenadores durante as filmagens.
Este dado não fica evidente nos filmes, mas torna-se latente quando sabido. Desta forma
podemos, portanto, compreender porque estas imagens são tão peculiares e de um acesso
extremamente privilegiado a este universo. Bernardet comenta a partir do exemplo de alguns
poucos planos, a relação de intimidade desta câmera com os personagens e ações
representadas nos filmes:

Em “Um dia na aldeia”, um homem pesca uma traíra. A câmera mostra o peixe dentro da
água, a lança o atinge, a câmera segue o movimento do pescador que traz a presa para a
margem. Num outro plano, um menino caça um gafanhoto. Ele está num barco, a câmera
também. Delicadamente ele aproxima o barco da margem, deposita o remo, estica o braço
em direção ao inseto, o pega, volta à sua posição inicial e mostra a presa. A câmera
acompanha os movimentos do menino, corrige em direção ao gafanhoto e volta à sua
posição. Vistos no quadro do seminário Formação do Olhar de 2003 em São Paulo, estes
planos me encantaram. O que eles têm de tão especial? Há uma relação íntima entre a
câmera e a pessoa filmada. A câmera tem que seguir os movimentos do menino, ela
também tem que se movimentar delicadamente para não afugentar o gafanhoto, tem que
seguir o movimento do pescador que retira a traíra do igarapé. Essa observação atenciosa
dos gestos das pessoas, esse respeito à situação em que elas se encontram é algo que me
parece ter sumido totalmente, ou quase, do cinema documentário brasileiro. Este,
grandemente dominado pelo método de entrevista, tende a se limitar a colocar a câmera
diante da pessoa que fala em resposta a perguntas feitas por um entrevistador. A fala,
mesmo quando dirigida à câmera, nunca é explicativa ou analítica, ela é sobretudo
descritiva. Mesmo em filmes que apresentam rituais, como “Iniciação do jovem Xavante”
ou “O poder do sonho”, os índios descrevem as práticas e as várias fases das cerimônias, e
quando explicam será conforme o seu imaginário. Nestes filmes o discurso antropológico
ou etnográfico não tem lugar. As imagens, os enquadramentos, os movimentos de câmera
66
indicam que os jovens que participam das oficinas estão sendo treinados para aprender e
utilizar uma linguagem. Não basta ligar a câmera diante de alguma coisa. Importa o
tamanho do plano mais aberto ou mais fechado, importa o ângulo.” (BERNADET in
VÍDEO NAS ALDEIAS, 2004, 8)

A respeito destas regras e da metodologia adotada pelo projeto para a formação dos
Cineastas Indígenas, existe um valioso material para a reflexão que merece a devida atenção.
Em 2006, Vincent Carelli e Mari Corrêa convidaram os cineastas Eduardo Coutinho e
Eduardo Escorel para uma conversa sobre os filmes dos realizadores indígenas produzidos
pelo VNA. Os coordenadores do projeto enviaram aos cineastas um conjunto de oito filmes e
os textos do catálogo da primeira Mostra Vídeo nas Aldeias, que ocorreu em 2004 no CCBB
do Rio de Janeiro, para que eles se familiarizassem com essa produção. Esta conversa foi
filmada por Sérgio Bloch, cineasta, membro do Vídeo nas Aldeias e instrutor das oficinas. O
texto produzido e publicado no catálogo da II mostra Vídeo nas Aldeias, editado e organizado
por Mari Corrêa, coloca uma série de questões palpitantes para esta reflexão, no sentido não
apenas de questionarem esta “metodologia” replicada do Varan em contextos e circunstâncias
muito específicas, como também, abrem o diálogo destes filmes com a linguagem do cinema
documental e a possibilidade de diálogo destes filmes com um público mais abrangente, para
além dos ativistas indigenistas com seus objetivos políticos e dos antropólogos acadêmicos
que refletem sobre a produção de filmes em contexto de pesquisa etnográfica. Esta conversa
situa e questiona esta produção do VNA no contexto do cinema documentário contemporâneo
brasileiro, tanto no que diz respeito às suas temáticas quanto à estética e à ética encontrada
para a realização deste tipo fílmico.
No cinema documentário existe uma grande discussão a respeito do papel da
montagem na construção fílmica, as possibilidades de manipulações da “verdade” e seus
contextos, por isso, há uma grande preocupação a respeito da assinatura/participação do
diretor neste processo, visto as inúmeras possibilidades existentes no processo da montagem
de um filme. Sobre o papel ocupado pelos coordenadores da oficina durante este processo de
formação, principalmente no que se refere à edição, ficam dúvidas a respeito da autoria destes
filmes, quando reflete-se sobre o fato de os indígenas, neste primeiro momento da formação,
não assinarem a montagem. Neste sentido, Escorel (“Conversa a cinco” in VÍDEO NAS
ALDEIAS, 2006, 35) levanta algumas questões relevantes:

Escorel: Quando você assina a edição e não põe o nome do diretor, eu leio que ele não
acompanhou a edição, que ele não estava presente, e isso me causa estranheza por dar
67
impressão que a edição foi feita sem a participação de quem assinou a direção... Eu acho
que deviam assinar os dois, sempre, porque a concepção do filme, de maneira mais ou
menos explícita, está presente no momento que você está gravando. Eu não acredito muito
na reelaboração, na re-manipulação. E eu acho importante para quem vê os filmes entender
isso. Se é um projeto em que eles aprendem a usar a câmera e passam a ser diretores é
importante indicar que eles participam da edição. A meu ver, isso não diminui em nada a
importância e a contribuição de quem estiver ali como editora ou como editor.

Bernardet, a propósito desta mesma questão, tece alguns comentários que parecem
estar em direção oposta a apontada por Escorel. Conforme afirma o autor, fica claro quando lê
nos créditos que a edição foi feita por instrutores brancos, que este é um projeto
compartilhado. São filmes feitos por índios, mas que recebem clara influência destes brancos
professores de cinema direto.

Uma questão que sempre se coloca nas oficinas que iniciam jovens à linguagem
audiovisual é a montagem. De fato, passar da gravação das imagens à sua edição, implica
passar para um equipamento mais sofisticado, de manejo mais complexo. Nunca se sabe
muito bem qual é a participação dos monitores na edição. O Vídeo nas Aldeias tem uma
posição clara a este respeito. A edição de alguns vídeos é explicitamente assinada por um
monitor, em outros casos, o nome do monitor é associado ao de participantes das oficinas.
Neste sentido um plano de “No tempo das chuvas” é importante, por mostrar uma sessão de
edição em que um jovem está aprendendo a usar o teclado de um computador sob a
orientação de uma monitora, que lhe diz que foi escolhido o início de determinado plano,
mas que agora ele tem que decidir em que ponto terminará este plano. Os monitores de
Vídeo nas Aldeias não assumem uma posição ingênua, conforme a qual bastaria colocar
uma câmera nas mãos de alguém para que consiga retratar a sua vida, é necessário aprender
a usar o equipamento e conhecer a linguagem. “Iniciação do jovem Xavante” explicita a
postura assumida quando fala de “formação de documentaristas indígenas”. (BERNADET
in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2004, 10)

A propósito do princípio de relação que se deve estabelecer entre a câmera, o


realizador e seus personagens, proposto pelo Varan e adotado pelo VNA na elaboração de sua
metodologia de formação, questiona-se sobre a criação de um “dogma” no VNA, quando a
utilização do zoom como recurso ótico de aproximação não é permitido. Caso haja a
necessidade de aproximação, a indicação é para que a câmera se aproxime fisicamente e não
através deste recurso que é o zoom. Sobre este aspecto, Corrêa (“Conversa a cinco” in VÍDEO
NAS ALDEIAS, 2006, 39) comenta um dado importatante: “O zoom. Quando você está
fazendo câmera sozinho, sem uma pessoa para fazer o som, se você não chegar perto, se não,
não capta o som. Então já tem uma questão aí que é intrínseca da forma de filmar. Você tem
que se aproximar.” Coutinho e Escorel (“Conversa a cinco” in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2006,
36) a propósito deste dogma estabelecido pelo projeto, questionam Mari:

Escorel: Em certos filmes me dá impressão de uma certa interdição de se relacionar com a


câmera. Por exemplo, tem uma cena que há uma mãe com a filha e a filha olha para
câmera. E a mãe repreende a filha porque ela está olhando para a câmera.
68
Coutinho: É mal educada. Eu acho ótima essa cena.
Escorel: A cena é muito boa, mas vendo o filme me dá a impressão que alguém disse para
essas pessoas que não podiam olhar para a câmera. E eu acho que em vários filmes dá
impressão que há essa interdição, dá impressão da interdição porque não tem zoom, acho
que tem um zoom em oito filmes.
Mari: Não tem zoom.
Sérgio: É proibido ter zoom.
Coutinho: Aí é o dogma.
Escorel: E aí eu discordo de todas as interdições... Eu vejo em um ou dois filmes uma
grande naturalidade com essa questão da câmera mas que me parece também resposta a
uma direção, e tudo bem. E sinto em alguns outros momentos as pessoas evitando olhar
para câmera, como se tivesse recebido uma interdição. É a minha impressão.

Há ainda uma última colocação proposta em “Conversa a cinco” que merece destaque
nesta discussão. A respeito do público a quem estes filmes se dirigem e as formas encontradas
para esta comunicação, conforme colocado por Corrêa, existe a vontade de que estes filmes
circulem por um circuito mais abrangente de festivais de cinema e de um público consumidor
de documentários fora do nicho do cinema etnográfico e da militância indigenista. Resta a
questão a se verificar, será possível que um mesmo filme dialogue com públicos tão diversos?
Seja pela temática abordada, seja pelas escolhas estéticas encontradas para esta veiculado
mais ampla? Teriam estes filmes “fora do círculo fechado dos antropólogos e cinéfilos,
espectadores dispostos em ler e compreender uma linguagem do outro?” (CAIXETA, 2008,
111). Sobre esta questão Escorel (“Conversa a cinco” in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2006, 36)
comenta:

Escorel: Na verdade, eu veria esse problema de uma outra maneira. Vendo os filmes eu
sinto uma certa ambigüidade em relação à questão de saber a quem os filmes se dirigem.
Será possível fazer um filme que se dirija a tantos públicos diferentes, com códigos
diferentes, com hábitos diferentes? Eu tenderia a dizer que acho difícil, num mesmo filme,
conseguir atender a uma gama de públicos tão grande...
Vincent: É interessante essa colocação do Escorel, quando ele sente uma ambigüidade.
Quem é o público? Na nossa idéia seria um público geral, quer dizer, o público da aldeia se
assiste, participa da filmagem, vê o bruto e pode ter uma segunda versão extensa, quando
são registros importantes em termos de memória. E tem também, como eu disse, a vontade
de ter uma visibilidade nacional. E nesse sentido, a grande preocupação é desconstruir os
grandes clichês, porque o índio é um ser exótico, está enquadrado em clichês

Os filmes são muito bons, muito bem feitos, muito bem filmados, muito bem
montados, mas afinal, como foram feitos? Isto porque, não são filmes comuns, não é todo dia
que vemos índios fazendo filmes e, portanto, fica uma necessidade dos espectadores
“brancos” de entenderem em que contexto aquilo está acontecendo. Pede-se mais bastidores,
como são feitas estas tais negociações da entrada da câmera na intimidade. Como, afinal, eles
conseguiram aquelas imagens tão íntimas de dentro das aldeias? Como se dá o processo de

69
direção e montagem dos filmes? Parece que falta situar o método do Varan nesta prática e
encontrar o Cinema Verdade, pregado por Rouch, nestas produções, no sentido em que os
documentários devem deixar transparecer os seus contextos, devem estar situados e não
devem ser escamoteados no processo de filmagem ou edição.

Coutinho: O mistério que fica para mim é que em vários filmes vem escrito “oficina de
vídeo”, e eu não sei bem o que é oficina de vídeo. Como é que são feitos os filmes? Quanto
tempo dura a oficina? Como são escolhidas as pessoas? O que eu quero colocar é o
seguinte: o diferencial que vocês têm – mas que eu acho que não está tanto nos filmes como
deveria estar – é que vocês fazem filmes com índios. E que eles não são iguais, para
começar. Tem tribos do lado do Peru, tem os Waimiri… Devem ser distâncias incríveis.
Mas como se passa uma oficina? O que vocês dizem ou não para eles? Esses filmes são
feitos para nós, mas há uma versão para eles? Há uma questão aí que eu acho essencial: as
condições de produção de um filme são sempre importantes em um documentário. Nesses
são essenciais. (“Conversa a cinco” in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2004, 1)

Nesta conversa percebe-se um tom de “recado” deixado por Coutinho e Escorel a


respeito do “invisível” dos filmes dos Cineastas indígenas e uma espécie de “dica” por onde
este cinema deveria caminhar, para que, de fato, passe a dialogar de forma peculiar e inédita
com a linguagem do cinema documental. Na perspectiva de Coutinho, é fundamental que se
reflita sobre a forma de produção de documentário, forma esta, que deve estar disponível e
acessível no filme em si.

Coutinho: O que eu acho que poderia fazer parte é o seguinte: o que é que se ensina na
oficina? O que é dito, não é dito ou não precisa ser dito? Porque eu não conheço eles,
entende?
Escorel: Acho que está ficando cada vez mais evidente que esse documentário que o
Coutinho exige que vocês façam, tem que ser feito. Pelo menos um documentário em que
esse processo, e todas essas questões… Isso, garanto a vocês, para pessoas que trabalham
nessa área, é fascinante, importante…(“Conversa a cinco” in VÍDEO NAS ALDEIAS,
2006, 39)

A questão da falta de informação impressa nos filmes, sobre os bastidores e o contexto


em que estes filmes são produzidos é recorrente e perpassa toda a conversa entre Coutinho,
Escorel, Sérgio Bloch, Carelli e Mari Corrêa. Esta falta de informação e clareza sobre os
“métodos” desta oficina e qual o papel que ocupam estes coordenadores na autoria dos filmes
são como lacunas deixadas por esta produção dos cineastas indígenas. Esta conversa,
portanto, levanta questões importantes para a reflexão sobre estes documentários produzidos
nesta fase fílmica do VNA, conforme resume Caixeta (2008, 110):

Os dois cineastas solicitam que os filmes VNA explicitem mais o próprio contexto de sua
realização, por exemplo, até que ponto os cineastas brancos (sobretudo Vincent Carelli e
70
Mari Corrêa) influenciam na filmagem (enquadramento, tomada de som, etc.), na escolha
dos temas e, acima de tudo, na edição final? O próprio filme deveria trazer essas
informações de forma mais declarada, evitando deixar o espectador “bloqueado” para entrar
no sentido e no conteúdo do que é filmado e mostrado.

Estas são, portanto, algumas questões levantadas em termos técnicos de produção e


também em termos práticos e metodológicos, que se fazem necessárias para deixar claro o
contexto em que estes filmes são produzidos. Carelli, neste sentido, contextualiza novamente
esta produção indígena e os processos metodológicos que o envolvem numa perspectiva mais
ampla.

O VNA certamente tem um método de ensino mas, antes de mais nada, os resultados
obtidos são fruto de um estilo de relacionamento, de convivência, de escuta dos povos com
os quais trabalhamos. O fato de atendermos a uma demanda que parte deles já é meio
caminho andado. Mas, de qualquer maneira, é preciso entender as injunções, políticas
internas da comunidade, saber colocar sua presença, seu ponto de vista. Uma vez
conquistado este lugar, todo o processo flui, porque o desejo de aprender é enorme.
(CARELLI in VÍDEO NAS ALDEIAS, 20111, 48)

Para pensar esta mídia indígena realizada em contexto de militância, indigenismo,


colaborativismo e novas tecnologias, faz-se agora necessário a reflexão sobre as temáticas
abordadas nestes filmes e as questões suscitadas por elas. A seguir, apresentarei algumas
análises realizadas através de conceitos propostos pela antropologia em articulação com esta
produção fílmica dos Cineastas indígenas para refletirmos sobre estas escolhas temáticas e as
contribuições que estes filmes trazem para a discussão, tanto da prática indigenista e
antropológica, bem como para o cenário do cinema documentário brasileiro contemporâneo.

71
2.3 Como desconstruir a idéia do índio genérico: Os anos 90 e a nova política ambiental

A histórica invisibilidade das sociedades indígenas é um tema recorrente nas


produções do Video nas Aldeias. Não necessariamente como enredo principal do filme, mas
através da narrativa descritiva sobre as formas de ser e de fazer coisas de índio presentes na
ampla maioria da produção do VNA e presente principalmente nas produções realizadas pelos
cineastas indígenas. Estas imagens demonstram que, por trás de qualquer história, que no
simples enfoque nos detalhes do cotidiano, encontra-se a necessidade de afirmação,
apresentação e representação de um modo de ser indígena.

A partir de descrições imagéticas minuciosas, o objetivo é trazer para primeiro plano


as diferenças culturais e étnicas. A busca pela apropriação e reconhecimento de suas
identidades indígenas se dá através desta afirmação das diferenças evidenciadas em detalhes
nos filmes. Sair do estereótipo do índio genérico para tornarem-se reconhecidos como
indivíduos inseridos em contextos socioculturais diversos, com seus próprios códigos, línguas
e culturas distintos uns dos outros é um esforço que pode-se notar a partir desta documentação
realizada pelos cineastas indígenas do projeto VNA.

Ao mesmo tempo, a partir destas produções fica claro também, por outro lado, a
circulação dos índios por entre o mundo dos brancos, do qual também compartilham de sua
cultura e seus códigos sociais. É neste contexto também que o vídeo apresenta-se como
ferramenta para a apropriação de suas próprias imagens por estes sujeitos não índio, mas sim
Xavante, Nambiquara, Guarani, Kuikuro, etc.

Capistrano de Abreu já no início do século XX realiza um trabalho etnográfico


minucioso sobre diversos grupos indígenas brasileiros. Com o objetivo de colocar a história
indígena na história brasileira. Com muito rigor e exatidão, busca desfazer os equívocos
históricos que apagaram a herança indígena desta narrativa.

Capistrano adotou o ponto de vista da etnografia indígena introduzindo esta perspectiva no


modo como construía sua história do Brasil. Assim estava permanentemente ocupado com
os aspectos sociológicos da população, de como se formou o Brasil a partir deste
povoamento e das relações dos diferentes grupos indígenas com os colonizadores. As
diferenças indígenas eram explicitadas, o índio não era um “tupi” idealizado do século
XVI, mas sim um contemporâneo sobre o qual Capistrano tomava conhecimento a partir
das novas fontes que surgiam produzidas pela escola Alemã de Etnologia. Em seu livro
Capítulos de História Colonial é notável a quantidade de referências (mais de 150) aos
72
índios e às suas relações com os europeus. Considerando-os personagens ativos na
formação do Brasil, Capistrano ao invés de fazer uma História, fazia na verdade uma
Etnohistória do Brasil. (GONÇALVES, 2010, 21)

Percebemos que este esforço de inserir o índio na construção da sociedade e da


identidade brasileira já vêm de longa data. Este empenho encontra-se em não somente dar
visibilidade a ancestralidade indígena brasileira, mas fazê-la notar-se em suas especificidades
étnicas através da história cultural do Brasil. Este é o empenho do trabalho realizado por
Capistrano de Abreu ao longo de sua obra. No entanto a novidade do presente, ao qual o
Vídeo nas Aldeias se insere, é a possibilidade de os índios participarem agora desta
construção, contarem a sua história e escolherem a forma como querem ser vistos e
representados.

Gonçalves (2010) a respeito de sua experiência com os Paresi ao longo de 20 anos em


que acompanha a trajetória deste grupo no Mato Grosso, apresenta cenários construídos a
partir das relações dos Paresi com os brancos, para refletir sobre a elaboração do conceito de
cultura pela antropologia e sua apropriação enquanto uma categoria nativa. Relata as
transformações de sentido dado a este conceito pelo próprio grupo, o que afirma não ser
apenas uma nova forma de inserção indígena no mundo dos brancos como também uma outra
forma de inserção indígena no seu próprio universo cultural, assim como uma nova forma de
inserção dos brancos no universo indígena.

Ao trazer para sua análise um recorte temporal de vinte anos, observa que em um
primeiro momento de seu contato com os Paresi na década de 1980, no período de
demarcação de suas terras, eram frequentes as invasões de fazendeiros em seus territórios, ao
mesmo tempo em que a BR 364 atravessava a reserva indígena. O contato deste grupo com os
brancos se dava essencialmente a partir de duas situações: muitos indígenas trabalhavam para
madeireiros no desmatamento e a proximidade da estrada com a aldeia que alavancou a venda
de artesanato Paresi aos viajantes que cruzavam a estrada.

Produziram um artesanato que constava basicamente de um rearranjo dos materiais que


tinham à disposição em seu território. Desse modo reinventaram o arco, que agora era feito
com madeira de palmeira de paxiúba (bastante fraca para ser usada como arco) e enfeitadas
com penas de arara e tucano... Criaram o espanador, um dos objetos mais caros para a
venda, confeccionado com penas de ema, enfeitado com penas coloridas, tendo o cabo
produzido a partir do pé do veado...

73
Para os Paresi era claramente uma invenção, nunca venderam os artefatos como sendo
peças tradicionais de sua cultura, nunca enfatizaram esse aspecto, eram “souvenir” de índio.
(...) Os Paresi não estavam com isso afirmando uma identidade de índio genérico e nem
mesmo estavam ali inventando sua cultura indígena através de artefatos que produziam e
vendiam. Do seu ponto de vista, simulavam ser índio quando... vendiam coisa de índio, mas
tinham a consciência de estar devolvendo a imagem do índio ou do que significava a
cultura indígena para os brancos. Índio ou cultura indígena era uma invenção dos brancos
(...) Os Paresi faziam seus rituais, suas festas, contavam os seus mitos, comiam beiju,
tocavam suas flautas, caçavam, pescavam, mas tudo isso não era concebido como
“atividade cultural” ou algo que fosse específico do modo que eles faziam as coisas que
lhes davam uma especificidade, não havia algo que pudesse ser identificado para eles como
sendo a cultura Paresi ou que existisse uma diferença entre o tradicional e o espúrio no que
eles faziam. Assim o ser índio e “cultura indígena” eram alheios ao universo Paresi, que
remetia ao mundo dos brancos e não ao mundo dos Paresi (GONÇALVES, 2010).

No entanto, esse cenário tende a mudar na década de 1990, a partir das novas
perspectivas sócio políticas brasileira. Esta década é marcada por uma série de iniciativas de
programas promovidos por órgãos governamentais e por organizações internacionais para o
reconhecimento de saberes e modos de vida de populações tradicionais. Um marco neste
sentido foi a Eco 9235, a segunda conferência mundial sobre meio ambiente que reuniu no Rio
de Janeiro representantes de cento e oito países do mundo. Foi um encontro que buscava
articular as urgências climáticas e ambientais do planeta às formas de manejo e manutenção
do ecossistema, de forma a favorecer e prolongar a vida humana na terra. “A intenção, nesse
encontro, era introduzir a idéia do desenvolvimento sustentável, um modelo de crescimento
econômico menos consumista e mais adequado ao equilíbrio ecológico.”36 Neste contexto
foram aprovados muitos documentos e acordos, o relatório oficial da Cúpula da Terra, a
chamada “agenda 21”, expõe em detalhes o programa de desenvolvimento sustentável para o
século XXI e apresenta princípios objetivamente direcionados às populações indígenas:

A declaração sobre meio ambiente e desenvolvimento do Rio, lançada na cúpula, afirma em


seu princípio 22 que “os povos indígenas(...) possuem um papel fundamental no manejo e
desenvolvimento do meio ambiente, devido a seu conhecimento vital e suas práticas
tradicionais”. (CARNEIRO DA CUNHA, 2009, 319)

35 A Conferência de Estocolmo, realizada em junho de 1972, foi o primeiro grande evento sobre meio ambiente
realizado no mundo. Seu objetivo era basicamente o mesmo da Cúpula da Terra, realizado em 1992. Esta
conferência, bem como o relatório Relatório Brundtland, publicado em 1987, pelas Nações Unidas, lançaram as
bases para o ECO-92. Em 1992, vinte anos após a realização da primeira conferência sobre o meio ambiente, no
Rio de Janeiro, representantes de cento e oito países do mundo reuniram-se para decidir que medidas tomar para
conseguir diminuir a degradação ambiental e garantir a existência de outras gerações. Ver: http://
pt.wikipedia.org/wiki/ECO-92

36 Ver: http://pt.wikipedia.org/wiki/ECO-92
74
É neste contexto de legitimação e legalização de culturas tradicionais que Carneiro da
Cunha, proclama seu entendimento de “cultura”, diferentemente de cultura. Onde compreende
que cultura é algo intrínseco e inerente aos seres humanos, que deve ser regida e organizada
por funções mentais, essenciais para a construção e organização de pessoas em grupos sociais.
Em outro sentido, o termo “cultura” (com aspas) faz referência a apropriação deste conceito
por populações nativas que, no contato principalmente com antropólogos, tomam
conhecimento desta categoria a passam a utiliza-la como instrumento de reivindicação
política.

Noções como “raça”, e mais tarde, “cultura”, a par de outras como “trabalho”, “dinheiro” e
“higiene”, são todas elas bens (ou males) exportados. Os povos da periferia foram levados a
adota-las, do mesmo modo que foram levados a comprar mercadorias manufaturadas,
algumas foram difundidas pelos missionários do século XIX, como bem mostraram Jean e
John Comaroff, mas num período mais recente foram os antropólogos os principais
provedores da idéia de “cultura”, levando-a na bagagem e garantindo sua viagem de ida.
Desde então, a “cultura” passou a ser adotada e renovada na periferia. E tornou-se um
argumento central - como observou pela primeira vez Terry Turner37 - não só nas
reivindicações de terras como em todas as demais. A “cultura”, uma vez introduzida no
mundo todo, assumiu um novo papel como argumento político e serviu de “arma dos
fracos”. (CARNEIRO DA CUNHA, 2009, 312)

Neste mesmo sentido, Leite Lopes (2006) traça um percurso semelhante a respeito do
termo ambientalização colocando este em direção análoga a idéia construída por Elias (1994)
sobre a construção do conceito de civilização na sociedade moderna. A partir da história dos
hábitos e costumes no Estado Moderno, Elias invoca a história da construção de conceitos
como o de etiqueta e educação, para fazer entender o conceito de civilização como também
uma construção e invenção do homem moderno. Leite Lopes em analogia a esta elaboração
proposta por Elias, constrói o conceito de ambientalização sobre este mesmo paradigma.
(Re)constrói historicamente a interiorização e apropriação das idéias relacionadas ao meio
ambiente, utilizando como referencial histórico este contexto político/histórico descrito
anteriormente, onde torna-se urgente pensar “ecologicamente” e “culturalmente”.

O processo histórico de ambientalização, assim como outros processos similares, implica


simultaneamente transformações no Estado e no comportamento das pessoas (no trabalho,
na vida cotidiana, no lazer)... Essas transformações têm a ver com cinco fatores sobre os
quais faremos considerações: o crescimento da importância da esfera institucional do meio

37 Quanto aos próprios povos indígenas amazônicos agora usam a torto e a direito o termo “cultura”. Terence
Turner chamou a atenção o fato em 1991, mostrando como “cultura” se tornara um importante recurso político
para os Kayapó. Um processo semelhante foi extensamente descrito na Melanésia, onde a palavra Kastom, termo
neomelanésio derivado do inglês “custom”, adquiriu vida própria. Embora os Kayapó por vezes utilizem um
termo mais ou menos equivalente em sua língua, parecem preferir usar a palavra em português, Cultura.
(CARNEIRO DA CUNHA, 2009, 368)
75
ambiente entre os anos 1970 e o final do século XX; os conflitos sociais ao nível local e
seus efeitos na interiorização de novas práticas; a educação ambiental como novo código de
conduta individual e coletiva; a questão da “participação”; e, finalmente, a questão
ambiental como nova fonte de legitimidade e de argumentação nos conflitos.” (LEITE
LOPES, 2006:36)

O autor cunha o termo “ambientalização” para descrever o processo de apropriação


desta consciência ecológica tanto por grupos sociais militantes da questão ambiental como
também analisa a apropriação deste conceito por grandes empresas que identificam este como
um novo negócio e uma boa estratégia de marketing, algo que se torna ao longo destes anos
uma espécie de selo de garantia de bom comportamento. Esta condição de ecologicamente
correto pode ser compreendida como um “selo eco” concedido a estas empresas e entidades
que trabalham pregando esta prática.

Desse processo surgem defesas estatais como as agências, as leis e normatizações


ambientais; a reconversão de profissionais às novas questões ambientais, assim como novos
profissionais; e mesmo a construção de uma justificativa empresarial, baseada na
apropriação da crítica ambiental ao capitalismo ou aos seus aspectos devastadores, que
desemboca em novas “responsabilidades ambientais corporativas” e mesmo na
lucratividade com investimentos antipoluentes e ambientalmente “sustentáveis. (idem, 50)

Leite Lopes refere-se neste contexto especificamente à questão desta consciência


ecológica que passou a habitar na cabeça da população latu senso a partir do final da década
de 1960 e a apropriação deste conceito de “ambientalização” por diversos atores sociais, que
ativam estes dispositivos ecologicamente corretos e sustentáveis quando estes fazem-se
importante para as conquistas de cada um, seja no âmbito empresarial, seja na militância
“verde”, seja pelas próprias populações nativas, em busca de dar legitimidade a estas disputas.

Neste mesmo contexto político, Gonçalves (2010) narra uma outra situação
etnográfica entre os Paresi que ilustra bem este processo de apropriação pelos indígenas do
conceito de “cultura”, bem como a importância da elaboração deste conceito para as suas
lutas e reivindicações políticas. Uma índia Paresi, que morava em Cuiabá e cursava a
graduação em história ao deparar-se com a questão indígena no âmbito acadêmico, recorre a
sua ancestralidade e volta-se à sua comunidade de origem. Casa-se com o chefe da aldeia e
passa então a elaborar “projetos” para a sua aldeia. No momento da Eco 92, esta índia o
procura no Rio de Janeiro, pois queria a ajuda para a elaboração de um projeto para captar
recursos para a construção de um Museu Paresi.

76
A temática era a celebração da cultura Paresi, sua especificidade e sua riqueza e a
necessidade de sua preservação para as futuras gerações. O museu era o local natural para
se recolher os objetos da cultura, as gravações das canções e dos mitos, enfim, abarcava a
totalidade da cultura Paresi enquanto uma entidade singular e autêntica, resgatando tudo o
que ainda não havia sido “conspurcado” pelo contato com os brancos. (GONÇALVES,
2010, 94).

O que Gonçalves (2010) e Carneiro da Cunha (2009) demonstram é que a partir da


década de 1990 o mundo passou por transformações políticas e econômicas que favoreceram
o desenvolvimento deste processo de apropriação/indigenização do conceito de cultura, e
como estas categorias foram utilizadas e reelaboradas com objetivos específicos pelas
populações tradicionais, nativizando - ou, como colocou Sahlins (1997), “indigenizando” o
conceito de cultura. O que importava agora não era mais construir-se índio por oposição e
alteridade a outros povos, tratava-se de construir-se índio para eles próprios, não como
categoria genérica, mas sim em suas especificidades e singularidades (língua, cosmologia,
mitologia, conhecimentos tradicionais e cultura material). Conforme afirma Carneiro da
Cunha (2009, 313), “na linguagem marxista, é como se eles já tivessem ‘cultura em si’ ainda
que talvez não tivessem ‘cultura para si’. De todo modo, não resta dúvida de que a maioria
deles adquiriu essa última espécie de “cultura”, a “cultura para si”, e pode agora exibi-la
diante do mundo”.

Os filmes realizados pelo VNA no período entre 1998 e 2006 parecem claramente
dialogar com esta perspectiva política descrita acima. Os cineastas indígenas formados pelo
projeto neste primeiro momento de oficinas parecem bastante preocupados em esmiuçar estas
“culturas”, Ashaninka, Kashinawá, Xavante (dentre outras) e levá-las ao mundo com
objetivos claros: utilizar estas imagens com o argumento de legitimação para o
reconhecimento de suas terras, tradições e hábitos. Exibindo-as nos seus pormenores, em
detalhes, seja na elaborada e minuciosa descrição de rituais, seja no contexto do dia a dia, das
formas de fazer e de serem Ikpeng, Ashaninka, Xavante...

Vale ainda destacar através da velha tática adotada pela antropologia das análises
através de analogias ou metáforas, que estes filmes inserem-se dentro de uma mesma
perspectiva de construção de um “selo étnico”. Fazendo referência ao conceito de
ambientalização proposto por Leite Lopes (2006), estariam inseridos em um movimento de
“etnização” para fins políticos. Dentro desta perspectiva estes filmes poderiam receber o tal
“selo étnico”, não só devido a sua temática abordada mas também pela sua forma de
77
realização, quando produzidos dentro de uma perspectiva de compartilhamento e
transculturalidade, onde são os próprios indígenas os realizadores destes documentários.

Tirar o índio deste lugar estereotipado e colocá-lo em papel ativo e em contato, numa
realidade transcultural, é um esforço recorrente dos filmes produzidos pelo VNA desde os
primeiros momentos do projeto. No entanto esta questão é colocada neste novo momento de
produção de outra forma. As escolhas estéticas e as estratégias encontradas para que estas
temáticas sejam tratadas neste tipo fílmico, são bastante diferentes das que encontramos
presente na primeira fase de produção do VNA, visto que agora, quem coloca estas questões
são os próprios indígenas.

Coutinho: Porque é isso que está acontecendo e o cara continua índio...O que eu acho
original e bacana nesses filmes em comparação ao filme que o branco faz sobre o outro é
essa coisa da impureza. Você tem num filme um professor na aldeia, no final um cara dá um
artesanato para ele vender e fala: “cento e cinqüenta reais” em português. Tem essa coisa
extraordinária…
Vincent: “Deposita na minha conta.”
Coutinho: Deposita na minha conta! É sensacional. E daí tem outra mulher que pede para
ele uma havaiana. Isso daí eu acho um aspecto extraordinário. Porque é exatamente o
contrário de todos os filmes que se faz sobre o outro. E está povoado de coisas desse tipo,
“o branco faz assim, faz assado…” O cara está fazendo um troço, mas tem bacia de
alumínio, o que não é ruim nem é bom, é um fato. Não adianta esse negócio de ficar na
lamentação, tirar a bacia de alumínio. É uma posição absolutamente retrógrada, essa coisa
da pureza. Então isso está salpicado no filme e eu acho genial. Quer dizer o fato de ter isso
não impede que passe a paca na barriga, e que faça feitiço e etc... É seu mundo estranho
mas que tem objetos que foram feitos no contato com o branco. Uma hora as meninas vêm
correndo, acho que é na hora do futebol, e um cara diz uma frase em português para as
garotas: “Vamos jogar futebol”, alguma coisa assim... De repente tem uma fala em
português. Então minha pergunta é o seguinte: até que ponto vocês permitem que a
impureza invada? (“Conversa a cinco” in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2006, 38)

Gonçalves (2010, 87), a respeito desta perspectiva de assimilação e contato, relembra


algumas discussões propostas anteriormente sobre este assunto.

Wagner ao sugerir que os significados culturais estavam “num constante fluxo de contínua
recriação”, dava um passo decisivo a uma re-conceituação do que se convencionou chamar
sistema interétnico de aculturação. A formulação “zona de contato” (contate-zone) de
Clifford (1997, 2000), derivada do livro Imperial Eyes (1992), de Mary Luise Pratt, me
parece útil por ter a vantagem de não tomar o “contato cultural” como uma forma
progressiva, algumas vezes violenta, de uma cultura tomar o lugar de outra. O que é
enfatizado é um processo de partilha e apropriação em perspectivas multidirecionais. Uma
perspectiva do contato que busca entender o que se designa por dimensões interativas e
improvisadas dos encontros culturais. A formulação “zona de contato” nos permite escapar
de uma redução do contato à definição de conjuntos fechados que fazem trocas sempre
desiguais que por sua vez instauram relações estruturais de dominação e resistência,
produzindo necessariamente relação entre classes e hierarquias étnicas. Essa busca de uma
nova definição sobre “o contato” lembra aquela formulada por Peter Gow (1991) na qual
pensa a relação interétnica como algo construído à partir da mútua integibilidade, ao invés
de ser um espaço para contradições e paradoxos. Assim o contato “articula” (termo que

78
Clifford prefere usar) e não apenas “inventa” tradições. O conceito de articulação, nessa
nova acepção parece ser útil, pois procura dar conta do encontro relacionando o conhecido.

A produção dos cineastas indígenas se insere, portanto, nesta mesma perspectiva


apontada por Gonçalves a respeito da assimilação e recriação a partir do contato. Pois é neste
fluxo de trocas constantes que este novo paradigma conceitual pode ser edificado onde a
“cultura” e a “ambientalização” só puderam ter sido apropriadas e indigenizadas a partir do
contato e das relações com mundos exteriores. Bem como as ferramentas e tecnologias
apresentadas a estes povos.


79
2.4 A “cultura”, os filmes e os cineastas indígenas

“Prezado senhor, o DVD que você me emprestou (O amendoim da


cutia, de Komoi e Paturi Panará, 2006) é de longe o melhor filme que
eu tenha visto sobre os índios da América do Sul. Tudo é um sucesso:
a escolha dos temas, dos lugares, dos enquadramentos; e a qualidade
das imagens é sensacional.
Temos constantemente a sensação de sermos autorizados a ver a vida
indígena por dentro. Os autores têm de ser felicitados, e o senhor
também pela sua participação nesta realização. A cura xamânica é
um trecho antológico.”

Paris, 20 de Novembro de 2006. Claude Lévi-Strauss.

Vejamos agora alguns exemplos desta abordagem na descrição de alguns filmes deste
período e a trajetória de seus realizadores. Divino Tserewahú, nasceu em 02 de junho de 1974
na aldeia Xavante de Sangradouro. Foi criado por uma tia até completar cinco anos, na aldeia
Xavante Dom Bosco e entre os 6 e 11 anos dividiu sua moradia entre a Aldeia Dom Bosco e
Sangradouro. Em 1983 muda-se para Parabubure onde morou até os doze anos, pois seu pai
estava trabalhando como cacique e lutando pela demarcação daquelas terras. Retornou para
Sangradouro neste momento para ingressar no Hö (a casa dos adolescentes). Neste período, os
wapté (adolescentes) Xavante são assistidos e orientados por seus padrinhos quanto a
educação dos homens Xavante. Ficam reclusos até o momento de “furação de orelha” que
marca a passagem da condição de iniciandos (wapté) a iniciados (ritei’wa) e estão prontos
para o casamento. Durante este longo período de reclusão Divino permaneceu na sua aldeia
natal, Sangradouro. Concluiu os estudos até a antiga 5ª série do primeiro grau e aprendeu a
falar português, fato que atribui à sua relação de amizade com o Mestre Adalberto Heide, um
padre salesiano alemão que vive na missão Salesiana de Sangradouro e segundo Divino fala
“Xavante como Xavante”. Mudou-se para Cuiabá para estudar, concluiu o primeiro grau de
estudos no Colégio Salesiano São Gonçalo e decidiu voltar à Sangradouro pois “estava
preocupado com a cultura, tinha que furar a orelha” (GONÇALVES, 2012, 199). Divino
retorna a Sangradouro e o ritual de iniciação masculina finalmente acontece, furam-se as
orelhas dos jovens e ao final do ritual eles são apresentados às suas noivas. Quinze dias após o
término do ritual, Divino se casa em Sangradouro.

O irmão de Divino era quem costumava assumir a função de cinegrafista na aldeia,


mas não teve interesse em se manter no cargo, que passou para Divino no início da década de

80
199038. Divino conhecia bem Virgínia Valadão, que realizava pesquisas com os Xavante há
alguns anos, e logo quando surgiu a possibilidade de participar do projeto Vídeo nas Aldeias,
Divino mergulhou de cabeça nesta experiência. Participou da primeira oficina de formação no
Xingu em 1997, e em 1998 realizou seu primeiro documentário Hepari Idub’rada, Obrigado
Irmão, no qual agradece ao irmão a oportunidade por ter assumido o papel de cinegrafista da
aldeia e a profissão para a qual ele acredita ter nascido para realizar. Conforme afirma:
“Filmar é a minha profissão, é para isso que eu nasci... Não foi para trabalhar de machado, eu
não nasci para plantar. É isso que eu sempre digo para a minha mulher”39.

Wapté-Mnhõnõ: a iniciação do jovem Xavante (1999), dirigido por Divino Tserewahu


é o segundo filme deste jovem cineasta. Neste projeto, Divino e Bartolomeu Patira decidem
relembrar o primeiro encontro/oficina realizado no Xingu e convidam Caimi Waiassé, Jorge
Protodi e Whinti Suyá para participarem das filmagens da iniciação dos Wapté. Neste
documentário narram o ritual de passagem dos meninos adolescentes para a vida adulta. O
filme ganhou o prêmio da OCIC Brasil (Organização Católica Internacional de Cinema) e o
Prêmio Manuel Diégues Júnior na 6ª Mostra Internacional do Filme Etnográfico no Rio de
Janeiro em 1999, o prêmio de melhor filme no X Internacional Festival of Ethnographical
Films de Nuoro na Itália em 2000, o Gran Prêmio Anaconda na Bolívia em 2000 e o prêmio
do 1° Festival de Filme Etnográfico da Sardenha também neste ano.

Silva (2013:48), em sua dissertação sobre o cinema realizado por Divino, busca
articular o conceito de “cultura” com esta produção fílmica, tanto no sentido de afirmação e
memória cultural, como de articulação e publicização da “cultura Xavante” para o mundo.

Nas falas explicativas do filme, tem-se a explicação dos velhos a respeito das etapas a
serem realizadas e o apoio à filmagem, como demonstra Valeriano Raiwa: “Eu entendo a
importância da imagem, por isso aprendam a filmar para que os Xavante possam gravar
suas festas. Nós sabíamos que vocês viriam para filmar, todos ficaram felizes, sejam bem-
vindos”.

A fala de um ancião neste primeiro filme de Divino sobre um ritual, demonstra a noção dos
mais velhos a respeito da importância dos rituais Xavante, assim como a aprovação ao

38 Vale detacar aqui que os Xavante de Sangradouro tem relação com as câmeras e equipamentos de filmagem
desde o contato com os padres Salesianos que os abrigaram em suas terras. Este padres têm um vasto acervo de
vídeo e película de documentação deste povo. Esta história é tema de um documentário produzido recentemente
no âmbito do projeto VNA O mestre e o Divino (2013) e será apresentado em pormenores mais adiante no texto.

39Citação retirada do perfil de Divino no site do VNA, ver: http://www.videonasaldeias.org.br/2009/


realizadores.php?c=25
81
trabalho de Divino.... Tanto os depoimentos dos mais velhos com relação à importância de
se registrar os rituais quanto às explicações de Divino, seguem a mesma opinião de que os
filmes são capazes de ―valorizar a cultura. ― O meu povo valorizou o meu trabalho por
ele levar a cultura Xavante a outros povos. (informação verbal).

Através dos discursos presentes nos filmes, em entrevistas concedidas à mídia e a mim,
percebo que as tecnologias e as diferentes linguagens além de terem sido incorporadas
pelos Xavante são pensadas e usadas de múltiplas maneiras. Ter os rituais registrados em
imagens é algo bom, eles gostam de se ver, como me disse Divino em entrevista: ― eles
consideram o filme, o vídeo, tipo um livro, uma memória do povo Xavante, então eles
gostam. É também um movimento político que possibilita a negociação de direitos, traz
visibilidade a este povo, visto que os filmes podem circular por muitos locais, assim como
também possibilita a Divino circular por muitos locais, como festivais de cinema, eventos e
oficinas de audiovisual.

Segue-se a esta produção de Divino, Wai’á Rini, O poder do sonho de 2001,


documentário que narra A festa do Wai’á. Dentro do longo ciclo de cerimônias de iniciação do
povo Xavante, esta festa é a que introduz o jovem na vida espiritual, no contato com as forças
sobrenaturais. Em diálogo com seu pai, um dos dirigentes deste ritual, Divino revela o que
pode ser revelado desta festa secreta dos homens, onde os iniciandos passam por muitas
provações e perigos. Vamos à Luta de 2003 é um documentário de Divino realizado a pedido
de Carelli, sobre a comemoração dos Macuxi pelos vinte e cinco anos de luta do
reconhecimento definitivo da reserva Raposa Serra do Sol, que passava naquele momento a
contar com a presença do exército em suas terras de forma bastante intimidadora. “Divino vai
ao encontro dos seus “parentes” e registra as comemorações e a demonstração de força do
exército de fronteira para intimidar os índios. Divino manifesta a sua surpresa diante de tal
confrontação”40.

Daritizé, Aprendiz de curador (2003) é realizado por Divino a pedido do chefe de


aldeia de Guadalupe, recém criada na Terra Indígena São Marcos. “Com a divulgação do seu
vídeo Wai´a Rini, O poder do sonho em outras aldeias Xavante, os moradores da Aldeia Nova
da reserva de São Marcos pediram ao Divino que filmasse o mesmo ritual em sua aldeia.
‘Aprendiz de curador’ descreve o cerimonial do Wai´á, no qual os jovens são iniciados ao
mundo espiritual para desenvolver o seu poder de cura.”41

Estes podem ser considerados a primeira leva de filmes produzidos por Divino, que
após este período passa alguns anos afastado da sua produção autoral, exercendo apenas as

40 http://www.videonasaldeias.org.br/2009/video.php?c=39

41 http://www.videonasaldeias.org.br/2009/video.php?c=60
82
demandas como cinegrafista da aldeia e trabalhando na cidade como assessor do vereador
Bartolomeu Patira. Nestas produções nota-se a assinatura de Divino. Os filmes realizados por
este cineasta Xavante, tratam de registrar e narrar em pormenores seus rituais, com propósitos
claros no que se referem a guardar esta memória cultural para as próximas gerações, como
também funcionam como afirmação cultural. A partir destes momentos específicos de
celebrações e rituais, que os documentários realizados por Divino buscam evidenciar o que é
ser Xavante. Ou como se faz Xavante, para eles próprios, para os outros povos Xavante, para
os diferentes grupos étnicos que terão acesso a esse material e para os brancos envolvidos
nestes circuitos de festivais de cinema e eventos relacionados ao meio ambiente, a
antropologia, ao cinema etnográfico e à questão indígena.

Takumã Kuikuro é o filho mais velho de Samuagü Kuikuro e Tapualu Kalapalo,


nasceu em 1983 na aldeia de Ipatse, na Terra Indígena do Xingu, Estado de Mato Grosso.
Participou desde a primeira oficina de formação de cineastas realizada pelo projeto VNA em
2002, em sua aldeia42. Esta oficina aconteceu em parceria com os antropólogos Bruna
Franchetto e Carlos Fausto, que implementavam o projeto Documenta Kuikuro, visando a
documentação de rituais e conhecimentos tradicionais do povo Kuikuro. “Conforme explica
Carlos Fausto (in VÍDEO NAS ALDEIAS 25 ANOS, 2011), um dos coordenadores deste
projeto de documentação, o cacique e as lideranças da aldeia já tinham a demanda de
documentação dos rituais, cantos e mitos, para que pudessem “guardar a sua
cultura.” (BELISÁRIO, 2014, 33). Esta oficina foi coordenada por Vincent Carelli e Carlos
Fausto. Entre os alunos estavam Takumã, Mariká e Jair (Mahajugi) Kuikuro. O primeiro filme
realizado por este coletivo resultado desta primeira oficina é Nguné elü: O dia em que a lua
menstruou (2004). Em uma das noites durante o período da oficina, em que assistiam no pátio
central da aldeia à projeção do filme A guerra do fogo (1981), ocorreu um eclipse lunar. A
projeção foi imediatamente interrompida e durante toda a noite e no dia seguinte, uma série de

42 Em 1984, o jornalista Washington Novaes chega ao Xingu para a realização de uma série de dez grandes
reportagens sobre os povos que vivem no parque, Xingu, a terra mágica (1985). No Alto Xingu, o jornalista
gravou na aldeia dos Wauja, dos Yawalapíti e dos Kuikuro. Em uma daquelas imagens, podemos ver Mariká
Kuikuro, um dos participantes da oficina do Vídeo nas Aldeias na aldeia Ipatse, ainda criança, aprendendo a
pescar com seu pai. Takumã lembra dessas experiências de constante assédio das equipes de televisão e cinema
em sua aldeia. É neste contexto de presença intensiva (e histórica) de jornalistas, documentaristas, fotógrafos e
equipes de filmagem que, em 2002, o Vídeo nas Aldeias, em parceria com o projeto Documenta Kuikuro do
Museu Nacional/UFRJ dão início à primeira oficina de formação de realizadores indígenas na aldeia Kuikuro de
Ipatse. (BELISÁRIO, 2014, 33)
83
ações rituais foram realizadas. Neste filme os Kuikuro também lançam mão da encenação
para reconstituir algumas cenas que não puderam ser registradas no momento mesmo em que
aconteciam.” (BELISÁRIO, 2014, 34). O documentário rodou por alguns festivais de cinema,
recebeu o Prêmio Chico Mendes de melhor documentário no Cine Amazônia 2004, o Prêmio
Oficinando na Mostra do Filme Livre realizado no Rio de Janeiro, o Prêmio da ABD de
melhor documentário na 10ª Mostra Internacional do Filme Etnográfico no Rio de Janeiro em
2005, prêmio de Melhor Vídeo no II Festival de jovens realizadores de audiovisual do
Mercosul em 2005, o Troféu Unesco na XXXII Jornada Internacional de Cinema da Bahia
realizado em 2005.
O segundo filme realizado por este coletivo foi também resultado desta primeira
oficina. “Naquele momento a comunidade estava às voltas com a preparação do ritual do
pequi, o Ahugagü, que, instantaneamente, se tornou tema da sua primeira produção, como
conta Carelli: "Era o momento da colheita do pequi. Já no primeiro depoimento quando saiu
para gravar, Takumã voltou com a história da origem do pequi e tomamos essa
direção".” (BELISÁRIO, 2014, 34). Imbé gikegü: Cheiro de pequi foi finalizado somente em
2006, é um documentário que narra a história deste ritual, ganhou Menção honrosa da III
MoVA Caparaó, realizado no Espírito Santo em 2006, recebeu o Prêmio Manuel Diégues
Júnior concedido pelo Museu do Folclore e Menção honrosa na categoria Média Metragem,
concedida pela ABDeC, na 10ª Mostra Internacional do Filme Etnográfico no Rio de Janeiro
em 2006, ganhou o Prêmio Especial do Júri no Festival Internacional de Curtas de Rio de
Janeiro Curta Cinema em 2006 e o prêmio de Melhor Curta-metragem no Festival Présence
Autochtone de Terres en Vue em Montréal em Junho de 2007.
Estes filmes tratam de contar a história deste povo através de seus rituais. A opção e
demanda deste grupo em formar um coletivo de cinema deixa novamente evidente esta
necessidade dos indígenas neste momento de resguardarem esta memória através dos registros
videográficos. Aquilo que Gonçalves (2010) convencionou chamar de “tudo o que ainda não
havia se ‘conspurcado’ pelo contato com os brancos.” Sobre este processo de documentação
de rituais sistemáticos, Mari Corrêa comenta a respeito das escolhas dos temas para os filmes
e apresenta uma discussão em torno destas escolhas que teve com os indígenas participantes
da formação do VNA.

84
Durante um encontro que promovemos com os realizadores em São Paulo, lembro-me de
uma discussão sobre quais seriam os assuntos que eles gostariam de tratar em seus filmes.
O tema recorrente era o de “filmar a cultura”: filmar a cultura para não perdê-la, para
mostrar para os mais jovens, para o homem branco respeitar mais. Nesta conversa, e em
muitas outras antes e depois desta, cultura é muitas vezes identificada exclusivamente como
ritual, é festa tradicional e ponto. Começamos a questioná-los sobre esta idéia: então um
povo que não faz mais sua festa tradicional não tem mais cultura? O conceito de cultura foi
se ampliando na medida em que aprofundávamos a discussão: falar sua língua, o jeito de
cuidar dos filhos, de fazer sua roça, de preparar sua comida, as coisas em que se acredita, as
histórias, os valores… foram aparecendo como elementos e manifestações de cultura. A
certa altura, um dos participantes, um índio Terena, visivelmente aliviado, disse: Na minha
aldeia não se faz mais festa tradicional e só os velhos falam a nossa língua. Estava achando
que não ia ter o que filmar, que não tinha filme para fazer lá.” Numa outra ocasião, uma
conversa por rádio com Kumaré Ikpeng apresentava um sentido semelhante:
– Kumaré, o que você está filmando aí?
– Nada, estou parado.
– Por quê? Acabaram as fitas?
– Não, porque não está acontecendo nada.
Na entre safra das festas tradicionais que ocorrem praticamente todos os anos na sua aldeia,
Kumaré considerava que a trivialidade do dia-a-dia não apresentava nada digno de ser
registrado. (CORRÊA in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2004)

Há portanto uma clara demanda dos indígenas que perpassa toda a história do projeto
VNA por este registro dos seus rituais, seja através da alteridade produzida por estes filmes,
conforme verificamos no primeiro tipo fílmico, seja através deste registro sistemático da
“cultura” como forma de acesso e acervo destas histórias pelos próprios povos. Seja para a
legitimação e afirmação desta cultura para os brancos, neste segundo momento de produção
do VNA representada pelos filmes dos Cineastas indígenas, onde notamos também que estes
filmes se inserem numa nova forma de militância, possibilitada pelas novidades na legislação
brasileira e mundial a partir da década de 1990, bem como pelas inovações tecnológicas que
permitiram maior mobilidade e o barateamento dos custos destas produções.
Esta é, portanto, uma “fórmula” de narrativa e de estética encontrada pelo projeto em
conjunto com os indígenas para dar conta desta demanda de produção de registros
videográficos das comunidades envolvidas. Ao mesmo tempo que tentam produzir “bons”
filmes que dialoguem com o mundo dos brancos e que atinjam seus objetivos políticos, no
sentido de dar forma e representatividade para as suas respectivas lutas.
Mas há ainda uma outra forma de afirmação deste modo de ser, representado nas
produções dos cineastas indígenas realizadas no âmbito das oficinas de formação do projeto
VNA. Como já citado anteriormente as primeiras oficinas regionais aconteceram na aldeia
Ashaninka do Rio Amônia em 2000. Muitas delas contaram com indígenas de várias etnias.
Alguns dos resultados fílmicos deste período já foram elencados acima. Agora me deterei,

85
portanto, em comentar somente alguns destes filmes, que trazem para a discussão outros
exemplos daquilo que venho tentando demonstrar.
O primeiro filme resultado desta primeira oficina regional, No tempo das chuvas
(2000), é um filme feito por vários realizadores, Isaac, Valdete e Tsirotsi Ashaninka, Lulhu
Manchineri, Maru Kaxinawá, Nelson Kulina, Fernando Katuquina e André Kanamari. O
documentário é uma crônica do cotidiano da comunidade Ashaninka do Rio Amônia a partir
da apresentação de alguns personagens durante a estação das chuvas. Esta era uma proposta
de exercício de filmar o cotidiano de alguém, sem roteiro pré-estabelecido. Cada um pré-
editou a sua parte e para costurar o tema, fizeram uma entrevista com três velhos contando o
que eles faziam e deixavam de fazer no tempo das chuvas. Este filme resulta de uma
metodologia adotada pelo projeto à partir do método Varan, um modo de fazer documentário
que está muito ligado à prática etnográfica, no que se refere à observação e aos detalhes do
cotidiano, no sentido de que estes dados dizem muito sobre determinada cultura, povo ou
comunidade. Como afirma Mari Corrêa recorrentemente em seus relatos sobre a sua
experiência no VNA, esta era a experiência de “filmar o nada” conforme narra:

Durante a oficina na aldeia Ashaninka em 1999. Chovia muito. As câmeras úmidas


demoravam a funcionar e eram poucas as atividades na aldeia (...) Eu queria muito
experimentar com eles a idéia de filmar o tal do “nada” a que se referia Kumaré. Sugeri um
novo exercício: retratar o cotidiano de uma pessoa da aldeia onde cada um escolheria
alguém – homem, mulher ou criança – com quem tivesse alguma afinidade ou que
despertasse neles um interesse particular. Na busca de seus “personagens”, surgiam pessoas
com um incrível senso da imagem, verdadeiros atores natos. Um deles estava construindo
uma canoa com a ajuda de seu tio, outro organizando a coleta de côco murumuru, e ainda
outra tecendo uma cusma para o marido. Voltavam no fim do dia para assistirmos e
comentarmos juntos a filmagem de cada um. Marú Kaxinawá havia trazido um extenso
material sobre o trabalho na roça de seu personagem. Registro de observação meticulosa
onde podíamos perceber o cuidado e a precisão que tinha em acompanhar cada gesto de seu
personagem, como se, de tão familiares, fossem também seus. Quando enfim o trabalho da
roça terminou e seu personagem voltou para a casa, a filmagem foi interrompida. “Por que
parou, Marú?” “Porque ele foi comer e depois descansar. Não ia acontecer mais nada”.
Insistimos para que ele, da próxima vez, filmasse os momentos onde justamente “nada”
acontecia. No dia seguinte, o “nada” estava lá: ao compartilhar com a família o prato de
macaxeira cozida com peixe, fluía entre Marú e Kowiri, no ritmo manso do balanço da
rede, uma deliciosa conversinha sobre coisas corriqueiras da vida, causos engraçados sobre
caçadas, mulheres, aventuras passadas. A câmera, tranqüila e próxima, movia-se do prato
de comida investido pelas mãozinhas das crianças para o rosto de Kowiri. No fundo do
plano, mulheres enchendo e depois servindo a cuia de caissuma. (CORRÊA in VÍDEO
NAS ALDEIAS, 2004, 35)

No tempo das chuvas ganhou o Prêmio Manuel Diegues Júnior na 6ª Mostra


Internacional do Filme Etnográfico, realizada no Rio de Janeiro em 2000. A outra experiência
de filmar o nada, deu-se também nesta mesma oficina, Shomotsi (2001), dirigido por Wewito

86
Piãko que é professor de sua aldeia, formado nos cursos da Comissão Pró-Índio do Acre em
Rio Branco, realizador formado pelo projeto VNA e um talentoso desenhista, “entrou de
gaiato da oficina” (CORRÊA , 2006). Ele que ficava acompanhando de fora e um dia foi
convidado a participar do grupo. Durante dez dias de oficina ele acompanhou as filmagens e
discussão do material dos outros alunos e quando pegou a câmera para filmar “já saiu
filmando muito bem, nos nossos moldes. Era a primeira vez que ele estava filmando. E a
gente ficava como dois bobos de queixo caído” (CORRÊA in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2004,
46). O documentário acompanha o personagem Shomtsi, tio do diretor, que segundo o próprio
era muito turrão e divertido. Sobre o processo de filmagem deste documentário Carelli e
Corrêa comentam ainda no contexto da “Conversa a cinco” (in VÍDEO NAS ALDEIAS,
2006, 48):

Vincent: A contribuição que a gente deu no processo de filmagem foi num dia que ele
chegou e falou: “Dançou. Ele vai para a cidade tirar a aposentadoria”. “Maravilha. Vai com
ele”. No dia seguinte ele volta sozinho...
Mari: triste e cabisbaixo.
Vincent: “O que foi que houve?” “Ah, o dinheiro não chegou.”
Coutinho: Putz, que maravilha...
Vincent: “E cadê seu tio?” “Ah, ficou lá esperando”. “Volta lá!” “Mas a gente não tem nada
para comer”. “Está aqui o dinheiro.Volta para lá. Fica lá mesmo se não chegar o dinheiro...
Mas você volta com o seu tio...”
Escorel – E ele aos poucos foi entendendo porque isso era importante.

Shomotsi participou de muitos festivais de cinema entre os quais ganhou o Prêmio


UNESCO na 8ª Mostra Internacional do Filme Etnográfico no Rio de Janeiro em 2001, o
Prêmio de Melhor Filme no Festival Présence Autochtone em Montreal no Canadá em Junho
2002, recebeu Menção Honrosa do Júri oficial no Cinesul realizado em 2002 no Rio de
Janeiro, ganhou o Prêmio "Rigoberta Menchú" e o Prêmio Especial do Público Indígena no II
ANACONDA realizado em 2002 na Bolívia e o prêmio de Melhor Vídeo da mostra
competitiva nacional do Forumdoc.BH 2002 realizado em Belo Horizonte.
A propósito desta questão, cabe ainda destacar aspectos relevantes em relação à
metodologia de ensino aplicada nestas oficinas. Estes filmes resultados desta prática parecem
se enquadrar em uma “receita” de filmes que “dão certo”, ou seja, que causam boas
impressões no público pela qualidade técnica das imagens e de montagem. Neste sentido,
considero relevante, destacar o método Varan adaptado ao projeto de formação de cineastas
indígenas e alguns “dogmas” mantidos para que a “receita” funcionasse. Mari Corrêa,

87
comenta, sobre a experiência de filmar “o nada” e suas reflexões à propósito do que considera
ter sido uma tática que deu certo.

Assistíamos, entusiasmados, ao início de uma cumplicidade entre eles, de um verdadeiro


diálogo, enfim, os primeiros sinais do surgimento de um filme. Como teria sido possível
filmar essa cena de longe usando o zoom? Como teria sido possível filmar essa conversa se
Marú tivesse preparado uma lista de perguntas para fazer ao seu personagem? O resultado
teria sido idêntico ao que estamos habituados (e cansados) de ver em filmes sobre índios (e
não só sobre índios): um olhar distante com perguntas convencionais e respostas
previsíveis, a voz em off de um narrador onipresente, explicando generalidades sobre como
vivem os Ashaninka (CORRÊA in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2004, 36)

Estes são alguns exemplos do que seria esta experiência de “filmar o nada” e o que
Mari considerava ser uma forma de ampliar o conceito de cultura destes povos. Talvez não
tenha se expressado da melhor maneira, no sentido antropológico, quando afirma que estes
indígenas têm outras formas de afirmar suas culturas que não apenas através do registro de
seus rituais. Ou talvez também não entendesse isso como representação e as consequências
que estas performances imagéticas podem gerar. Pois tanto na primeira forma fílmica, a
filmagem de rituais, quanto na segunda forma, a filmagem do cotidiano e do ordinário,
apresentada acima, estes filmes demonstram a necessidade de representação desta “cultura” e
aquilo que Carneiro da Cunha apontou como a “cultura para si”, quando estes filmes
representam a apropriação do conceito de cultura por estes povos para fins políticos.

2.5 Cinema indígena ou cinema indigenizado?

A busca pela individualização de identidades étnicas a partir da criação de uma


estética comum me parece ser um aspecto bastante relevante nesta produção. A opção em
trabalhar apenas com a produção de documentários sobre temas que recorrentemente recaem
sobre a reflexão da “nossa cultura” e o “nosso modo” de fazer as coisas, seja a partir da
documentação e registro de rituais, seja na observação das ações cotidianas da aldeia,
demonstram a tentativa destes indígenas de se apropriarem destas ferramentas para
produzirem a construção de identidades de si e para si. Estes filmes realizados neste contexto
de produção pelo primeiro grupo de cineastas indígenas ligados ao VNA, reforçam a idéia
desta afirmação cultural a partir de descrições minuciosas, até mesmo, etnográficas. Ou como

88
aponta Caixeta (2008, 114), esta produção fílmica se revela uma verdadeira antropologia
nativa:

Creio que muito dificilmente um antropólogo não-indígena, por mais que tenha sido muito
bem formado na tradição de sua disciplina, poderia ter tido o mesmo sucesso na coleta de
dados etnográficos da forma que obtiveram os realizadores dessa obra coletiva indígena que
é Iniciação Xavante . E mais, isto é uma aposta, os realizadores Xavante não teriam levado
a cabo essa empreitada se tivessem, no lugar do vídeo, optado por escrever uma monografia
ou uma tese acadêmica. Veremos mais à frente, é a potência das imagens e dos sons que
lhes permite realizar uma verdadeira antropologia nativa.

Neste sentido percebemos novamente o encontro da trajetória do documentário com a


antropologia. No momento em que os nativos de pesquisa tornam-se os próprios
pesquisadores e narradores de suas histórias, quando muitos dos pesquisadores de hoje foram
os nativos de outros tempos, tornando-se hoje, ao mesmo tempo, pesquisadores e objetos de
suas próprias pesquisas. Esta questão que já foi amplamente visitada pela antropologia
também encontra ecos na trajetória do documentário. Ou seja, os personagens de outrora,
tornaram-se os realizadores de hoje em dia. Sobre este movimento de meta antropologia, ele
foi previsto por Rouch ainda na década de 1970:

Amanhã será o tempo do vídeo colorido autônomo, das montagens videográficas, da


restituição instantânea da imagem registrada, ou seja, do sonho conjunto de Vertov e
Flaherty, de uma câmera tão ‘participante’ que ela passará automaticamente para as mãos
daqueles que até aqui estavam na frente dela. Assim, o antropólogo não terá mais o
monopólio da observação, ele mesmo será observado, gravado, ele e sua cultura (ROUCH,
1979, 71)

Noto que o esforço feito neste sentido é de que se ultrapasse a barreira do fazer, ou
saber fazer, para que se faça melhor. A ideia que parece ficar plantada neste sentido pode ser
formulada da seguinte maneira: visto que os nativos se tornaram objetos/personagens de suas
próprias pesquisas/documentários, visto que já dominam a forma do fazer. É como se
precisassem agora mostrar que são capazes de fazer melhor. Parece que existe uma certa
expectativa vinda de todos os lados para que estes filmes sejam de fato os melhores filmes
produzidos sobre índio, mas não só, que estejam no hall dos melhores documentários
produzidos e que suas narrativas apresentem questões que façam a classe antropológica e de
documentaristas repensar toda uma disciplina desejando que novas lógicas de construção de
significados sejam apresentadas através destas imagens. Neste sentido Carelli (apud
CAIXETA, 2009,160) relembra as diretrizes do projeto e as motivações que o levaram a este
novo formato do projeto VNA de formação de cineastas indígenas:
89
Quero esclarecer aqui que a equipe do VNA, e muito menos os índios, não tem a menor
preocupação ou pretensão de estar na vanguarda da linguagem cinematográfica. Os índios
estão, sim, preocupados em produzir documentos que os ajude na transmissão e valorização
internas e na visibilidade e reconhecimento externos do seu patrimônio cultural, enfim,
produzir filmes com os quais eles se identifiquem. Talvez a única vanguarda do VNA tenha
sido a política de dar vez e voz aos que nunca a tiveram nesse campo de expressão, de
transpor esse fosso incrível e imaginário que a maioria das pessoas colocam entre nós e os
índios, como se não fossemos todos humanamente iguais na diferença.

Mas como verifica Carneiro da Cunha (2009, 373) a respeito da indigenização do


termo “cultura”, a apropriação deste conceito por parte desta população pode ser uma faca de
dois gumes, quando esta apropriação “obriga” seus possuidores a demonstrar
performaticamente “sua cultura”. Correndo o risco desta se tornar uma mera demonstração ou
exibicionismo cultural. E neste sentido, cultura e “cultura” produzem efeitos diferenciados:

Falar sobre a “invenção da cultura” não é falar sobre cultura, e sim sobre “cultura”, o meta
discurso reflexivo sobre a cultura. O que acrescentei aqui é que a coexistência de
“cultura” (como recurso e como uma arma para afirmar identidade, dignidade e poder
diante de Estados nacionais ou da comunidade internacional) e cultura (aquela “rede
invisível na qual estamos suspensos”) gera efeitos específicos.

Os filmes produzidos nesta primeira fase de implementação da formação de cineastas


indígenas do projeto VNA analisados, demonstram, portanto, este empenho em afirmar a
“cultura” através de performances produzidas diante, para e com a câmera. Belisário (2014,
54), em sua dissertação de mestrado a respeito do filme As Hiper Mulheres (2011), realizado
pelo projeto VNA e dirigido por Takumã Kuikuro, Carlos Fausto e Leonardo Sette, sobre o
qual discutiremos um pouco mais adiante no texto, analisa as estratégias de mise-en-scène
adotadas nesta narrativa fílmica. Belisário apresenta o conceito de mise-en-scene
documentária discutido por Comolli (2008) e Amount (2006) como uma ação performática
inevitavelmente presente no gênero do cinema documentário.

Se na ficção a mise-en-scène remeteria à maneira como o cineasta concebe e organiza a


cena – para Bordwell (2005), o movimento dos atores no quadro, a maquiagem, o figurino,
a iluminação e o cenário, no documentário a mise-en-scène do cineasta não pode ser
pensada ou concebida separada de uma outra mise-en-scène, a dos sujeitos que ele filma.

“A mise-en-scène [documentária] é um fato compartilhado, uma relação. Algo que se faz


junto, e não apenas por um, o cineasta, contra os outros, os personagens. Aquele que filma
tem como tarefa acolher as mise-en-scènes que aqueles que estão sendo filmados regulam,
mais ou menos conscientes disso, e as dramaturgias necessárias àquilo que dizem – que eles
são, afinal de contas, capazes de dar e desejosos de fazer sentir (Comolli, 1988: 60).”

Neste sentido, a mise-en-scène documentária transforma o que seria, na mise-en-scène


ficcional, um gesto de cálculo, em uma aventura em sentido literal: aquilo que advém
(Aumont, 2006: 121). Uma aventura na qual se lança tanto o cineasta – que aceita o risco
de que seu roteiro (o cálculo) não mais se sustente, na medida em que o mundo e seus

90
sujeitos vão lhe oferecendo outros novos elementos – quanto os sujeitos filmados que,
diante da câmera, precisam se inventar como personagens do filme.

Performar para e com a câmera, como já vimos extensivamente ao longo deste texto, é
algo que perpassa a trajetória do cinema do documentário, esta é uma questão que já foi
inúmeras vezes repensada, resignificada e reformulada. A questão que me leva novamente a
refletir sobre este tema reside agora em outro ponto. Neste contexto de produção fílmica
realizado por cineastas indígenas no âmbito do projeto VNA, busco compreender a partir do
conteúdo apresentado nestas imagens, quais os efeito que estas provocam quando exibidas.
Em outras palavras, quais seriam estes significados específicos sugeridos por Carneiro da
Cunha (2009) a propósito desta formulação sobre “cultura” impressa nos filmes destes
cineastas.
O empenho em que o o filme “dê certo” e a necessidade de articulação desta produção
aos objetivos do projeto quando tomada a decisão desta formação, no que diz respeito
principalmente à articulação política e à representatividade destes povos através da imagem,
provavelmente, foi o que levou o projeto VNA a desenvolver e replicar o método Varan. No
entanto, quando Coutinho e Escorel (2006) defendem que estes filmes deveriam ter muito
mais do seu processo impresso, talvez eles estejam querendo dizer que esta mise-en-scène
apresentada pelos indígenas nas suas representações de “cultura” não os satisfazem enquanto
espectadores. Talvez eles estejam querendo dizer que esta representação cultural, apresentada
praticamente como um souvenir indígena não funciona enquanto cinema. A tal autenticidade
buscada nos artesanatos indígenas conforme demonstrou Gonçalves (2010) na sua experiência
com os Paresi, também não funciona para aqueles que querem a ver a verdadeira “cultura”
indígena no cinema, ou seja, para os querem “autênticos” filmes de índio.

A magia do cinema continua sendo lidar com esta polaridade: entre o real e o inventado. O
espectador, por sua vez, como diria Jean-Louis Comolli, tira o seu encanto pelo cinema de
um duplo jogo entre acreditar e duvidar daquilo que vê. E se “uma imagem é sempre uma
imagem do outro”, em sua origem o cinema é uma arte de “reduzir cabeças”, de buscar “a
imagem do outro” nos países e lugares longínquos: o seu pulso e impulso original é
etnográfico. E estão na origem do cinema esse desejo e essa filosofia da alteridade,
“mostrar a cultura do outro para o outro”, deixar o olhar e o pensamento do outro
penetrarem no pensamento do observador: ou seja, ver o ponto de vista do outro.
(CAIXETA, 2008, 104)

91
No esforço em realizar “bons” filmes percebemos que estes podem facilmente cair na
armadilha da ambiguidade apontada por Carneiro da Cunha (2009, 313) a respeito dos efeitos
produzidos pela apropriação do conceito de “cultura” por seus possuidores. “Como vários
antropólogos já apontaram desde o final dos anos 1960 (e outros redescobrem com estrépito
de tempos em tempos), essa é uma faca de dois gumes, já que obriga seus possuidores a
demonstrar performaticamente a “sua cultura”. Neste sentido podemos colocar que, na
tentativa de produzir um filme “autêntico” pode-se também estar inviabilizando a produção de
um filme autenticamente indígena.
Em “Conversa a cinco” (in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2006, 36), muito se fala sobre os
“dogmas” do cinema ocidental e da possibilidade deste método aplicado nas oficinas
inviabilizar uma “autêntica” produção indígena. Nesta prática onde, planos muito longos ou
planos que tremem, por exemplo, “não funcionam” e são nitidamente descartados nestes
filmes. A pergunta que fica é: será que não podem funcionar? Ou ainda, funciona para quem?
Será que um filme pode atingir tantos públicos?

Coutinho: A montagem é universal e não é universal. São códigos que são criados para nós.
Mas eu me pergunto o seguinte: vocês dão a eles regras, que são regras de uma linguagem
mais ou menos universal, rejeitando um modismo ou outro… Então se você fala: “Falta um
plano para ligar”, isso é a nossa lógica de linguagem documentária. Porque você não pode
ter um corte descontínuo? Porque você não pode ter um plano extraordinário fora de foco?
Por que a câmera não pode tremer? E o problema não é de fazer que não trema, tem que
fazer sempre melhor. E aí então entra o problema das mil coisas que você pode fazer, que
não se fazem na linguagem tradicional, entendeu?

Esta questão colocada por Coutinho e Escorel foi posteriormente resgata por Caixeta,
numa tentativa de adaptá-la para a antropologia, ou talvez para este lugar onde co-habitam o
documentário e a antropologia. A questão colocada resumidamente seria: Se estes cineastas
indígenas recebem os parâmetros da forma de fazer filme dos brancos, será que conseguirão
de fato produzir um cinema indígena? Será que no ato de ensinar esta forma de fazer cinema,
não se estaria inibindo a forma de fazer cinema Xavante, Ikpeng, Ashaninka, Kaxinawá? A
este respeito Caixeta (2008, 110) comenta:

Nessa fase há pelo menos três filmes marcantes, em que o sossego da câmera, a espera de
que o tempo passe, os planos abertos, o filmar o “nada” nos fazem todos lembrar momentos
importantes do cinema moderno: No tempo das chuvas (2000), Shomõtsi (2001), Um dia na
aldeia (2003). Por outro lado, a força e a marca desse “cinema verdade” ou “moderno”
apresentadas na fase mais recente do VNA, aquela que corresponde às oficinas para
formação de realizadores indígenas a partir de 1997, são virtudes que se transformam em
crítica: o pensamento e a linguagem cinematográfica ocidental não estariam inibindo o

92
surgimento de um pensamento e de uma linguagem propriamente indígenas? Eduardo
Escorel (2006:25) constata que, de fato, os documentários VNA comprovam a eficiência do
ensino transmitido nas oficinas e o bom aproveitamento dos alunos indígenas:
“Os assuntos tratados são interessantes. Os planos são bem enquadrados, o diafragma é
correto, a imagem está sempre em foco, a câmera não trepida, o ponto de vista é adequado,
há poucos movimentos de zoom. O som é de boa qualidade. (...) O ritmo de edição mantém
o interesse. A duração dos planos e dos documentários em si não ultrapassa nossa
expectativa usual”.
Mas, apesar disso tudo, pergunta-se com razão Eduardo Escorel, não haveria uma
contradição em oferecer a linguagem audiovisual ocidental para os índios se comunicarem
com outros índios e com os não-índios a respeito e a partir de seu próprio repertório
cultural? Quando os Xavante desejam usar do vídeo para “preservar sua própria cultura”,
não seria adequado que o fizessem em sua própria “linguagem”?

Este “paradoxo” questionado por Caixeta, Escorel e Coutinho apesar de não


pertencerem ao primeiro plano dos filmes é uma questão que se faz bastante presente quando
analisamos esta produção em larga escala, fora da esfera das particularidades de cada filme e
no sentido a que este texto se pretende, em encontrar “identidades” fílmicas a partir destas
fases que marcam o processo de produção do projeto Vídeo nas Aldeias.
Caixeta (2008, 102), no que se refere a esta produção fílmica e ao processo de
apropriação e assimilação transcultural vivenciado por estes cineastas e comunidades
envolvidas nesta formação oferecida pelo projeto VNA, abre o diálogo para este suposto
paradoxo apontado nesta produção, quando apresenta a seguinte questão: “Contudo, caberia
nos perguntar: não haveria um paradoxo nesse tipo de filme feito pelo outro e sobre o outro e,
ao mesmo tempo, bem feito de acordo com o uso de nossos instrumentos técnicos (a câmera,
o microfone, a ilha de edição) e nossos “gostos” estéticos e estratégias narrativas?”
Caixeta (2008) constrói seu argumento em analogia ao conceito elaborado por Lévi-
Strauss (2007) acerca do Pensamento Selvagem. Levis-Strauss coloca o pensamento selvagem
em paralelo ao que convenciona chamar de pensamento científico. Que resumidamente seria,
enquanto o primeiro constrói suas estruturas a partir de fragmentos e resíduos de fatos que
seriam a base para a construção do pensamento mítico, o segundo organiza-se através da
criação de seus próprios parâmetros e ferramentas. Neste sentido, Lévi-Strauss aproxima a
idéia do pensamento selvagem ao trabalho de um bricoleur, ou seja, assim como o bricoleur
trabalha a partir de ferramentas e objetos pré-existentes para a fabricação de novos objetos e
reconstrução de outros, o pensamento selvagem funcionaria da mesma forma, se edificaria a
partir de mitemas (que podem ser entendidos como moléculas de mitos) reutilizadas e
recombinadas inúmeras vezes nas construções das narrativas míticas, que segundo o autor,
são a base nas quais se fundam este pensamento selvagem. E a ciência, diferente do

93
pensamento mítico (ou neolítico conforme coloca o autor), atua de maneira oposta,
construindo parâmetros e ferramentas para a edificação deste pensamento. Vale ainda destacar
que Levis-Strauss com isso não pretende afirmar que uma forma seria a evolução de outra ou
que onde existe uma não existe a outra, pelo contrário, o autor coloca que ambas as formas
habitam a mente humana na elaboração e construção de seus significados. Para o autor o mito
é um meta código e o único usuário deste código e propõe a compreensão da mitologia em
relação às coisas e não relacionados a significados estáticos. A idéia de bricolagem, para Lévi-
Strauss (2007, 34), faz parte da constituição dos “sentidos”, das criações das unidades, o que
possibilitou a analogia entre as constituições de unidade das constituições etnológicas.

Assim como as unidades constitutivas do mito, cujas combinações possíveis são limitadas
pelo fato de serem tomadas de empréstimo à língua, onde já possuem um sentido que
restringe sua liberdade de ação, os elementos que o bricoleur coleciona e utiliza são "pré-
limitados".

Caixeta neste sentido coloca esta produção de filmes dos Cineastas indígenas em
paralelo a esta questão apresentada por Lévi-Strauss. Será que ao apropriarem-se das
ferramentas e conceitos apresentados pelos instrutores brancos no processo de formação de
cineastas, estes indígenas reconstroem estes significados e constroem novas formas de
narrativas fílmicas tal qual o bricoleur quando apropria-se dos objetos disponíveis para a
construção de novos objetos? O que Caixeta pretende é encontrar neste cinema indígena o
pensamento selvagem, nas suas formas de produção e criação de narrativas a partir da
apropriação destas novas ferramentas para a construção de suas narrativas míticas. Desta
forma também aproxima a construção do cinema, especialmente do documentário, à forma de
elaboração do pensamento selvagem, propondo, portanto, que o cinema atuaria para estes
povos e cineastas como uma atualização da construção das suas habituais práticas narrativas:

O pensamento indígena é um pensamento selvagem. Pensamento selvagem nos termos da


leitura de Lévi-Strauss, porque é um pensamento que se constrói com base nas qualidades
sensíveis. Tal qual o bricoleur, o pensamento selvagem – ou mitológico – elabora estruturas
organizando os fatos ou resíduos dos fatos (pedaços, pontas), ao contrário da ciência, que
fabrica os fatos com base em estruturas (hipóteses e teorias) (LÉVI-STRAUSS, 2007).
Contudo, essa ciência do concreto é apenas uma das faces do pensamento selvagem. Outra
seria aquela do pensamento rebelde e imaginário, que não se deixa domesticar. Selvagem
porque sempre pronto a se constituir com os pedaços daquilo que foi desmobilizado ou
destruído: assim, é um pensamento construído mais a partir do corpo e da experiência do
que por meio do intelecto ou da razão, é um pensamento esquivo à instituição e ao poder...
Sempre acreditei que fazer filme documentário é uma espécie de bricolage, ir a cada passo,
pé ante pé, tateando o caminho, atento ao que se passa na frente da câmera, colhendo
pedaços (que são as imagens) de um “todo” (uma materialidade, uma corporalidade) e de
94
um “tudo” (um imaginário) que se passa fora da câmera, tudo isso sem roteiro prévio (eu
diria – ao contrário da ciência e até mesmo de um certo tipo de cinema documentário ou
ficcional – sem uma hipótese ou uma idéia prévia). A montagem também é feita a partir de
um material heteróclito, já mais ou menos decupado no momento mesmo da filmagem. E,
nesse sentido, o cinema oferece ao indígena um meio mais eficaz para realizar a sua
antropologia nativa ou reversa, da qual já falamos acima, do que a palavra escrita. Dessa
maneira o cinema se aproxima da mitologia, do imaginário, do sonho, do mágico, do corpo,
da materialidade, ou seja, aproxima-se do pensamento indígena, selvagem e não
domesticado.” (CAIXETA, 2008, 119)

Neste sentido colocado por Caixeta, o pensamento selvagem é também a forma como
se edifica o cinema, sendo assim, nada mais natural que estes “selvagens” se apropriem desta
linguagem, tão familiar a eles. A propósito desta discussão, Carelli (apud CAIXETA, 2009,
159) tece alguns comentários a respeito desta expectativa criada em torno destes filmes por
uma “nova linguagem” e da suposta “contaminação” desta linguagem dos brancos durante o
processo de formação inviabilizar uma autêntica produção do cinema indígena.

A colocação do texto de Ruben Caixeta, de que apesar da contribuição e participação da


equipe do VNA na feitura dos filmes dos cineastas indígenas, essa produção expressa seu
“pensamento selvagem”, tal qual definido por Lévi- Strauss, e faz a diferença ao retratar o
mundo indígena, supera o falso impasse da “pureza” da autoria dos filmes.
(...) É preciso entender de maneira mais fina a maneira como esses filmes vão ganhando
forma ao longo de uma oficina. É no material bruto, e na maneira como é conduzida a sua
captação, que se manifesta a sua autenticidade. A edição, sobre a qual, sem dúvida
nenhuma, temos uma mão forte, só faz ordenar esse material numa narrativa que tem, para
a decepção de certos críticos e cineastas, uma gramática visual muito semelhante a deles. O
resultado são “bons filmes”, talvez bons demais para serem autênticos segundo certos
críticos, onde o plano é cortado onde todos nós cortaríamos e, portanto, não trazem a
surpresa do novo esperado do “outro”. É um pouco essa decepção em um texto do Eduardo
Escorel e em outro do João Salles não publicado no catálogo do VNA.

Neste sentido cabe agora novamente destacar a questão da autoria nestes filmes e
também nos próximos que seguem a esta fase, que parecem refletir bastante sobre as questões
apresentadas anteriormente e que parecem encontrar caminhos bastante interessantes e
peculiares para desfazerem estes nós criados a propósito destes filmes dos cineastas indígenas
na primeira fase de produção. Carelli (apud CAIXETA, 2009, 159) novamente em resposta a
esta discussão a respeito da expectativa de indigenização deste cinema e a questão colocada
por Caixeta, comenta:

O texto Cineastas indígenas e pensamento selvagem dá um passo na discussão, às vezes


estéril e maniqueísta, sobre a pureza dos filmes que os índios produzem: o questionamento
é se a produção dos cineastas indígenas é autêntica e até que ponto a equipe “não indígena”
intervêm nos seus produtos, maculando a sua autenticidade. Essa discussão vem à tona
mais uma vez, é a nossa ficção do “bom selvagem” que embaça a nossa percepção do real.
Como se o fato da gente assumir que essas produções são fruto de um processo
colaborativo, de índios e não índios, tirasse a legitimidade e autenticidade do produto ou,
simplesmente, o interesse dessas produções
95
Carelli coloca agora o foco na discussão a respeito desta produção feita a muitas mãos.
Pretende esclarecer esta experiência produzida pelo contato, troca, assimilação e
compartilhamento. Conforme colocado por Coutinho (“Conversa a cinco” in VÍDEO NAS
ALDEIAS, 2006), a invasão da impureza nestes filmes é algo extraordinário e sobre o qual
ele gostaria de ver muito mais. Do seu ponto de vista, é neste momento que se desconstroem
os estereótipos que podem habitar estas produções e que colocam os índios em posição de
diálogo com o mundo dos brancos. Aproximando estes universos e colocando-os em posição
de alteridade com estas imagens.
A respeito da autoria destes filmes e das produções compartilhadas apresentarei a
seguir algumas produções que, ao meu ver, marcam uma fase de transição para o próximo tipo
fílmico. Esta nova fase parece florescer no seio desta discussão. Por mais que as respostas e o
tom destas conversas apresentadas sejam bastante reativos, me parece que algo foi assimilado
e repensado a partir destas questões. Algo mudou nesta forma de produzir e de pensar esta
produção a partir de um determinado momento. Sobre estas questões e as novas
configurações do projeto a partir de 2006, discorrerei a seguir.

2.6 Os anos 2000, a era Lula e a nova política cultural

A partir de 2004 o Vídeo nas Aldeias entra em uma nova fase de produção. Quando
em 2003 o Governo Federal lança através do Ministério da Cultura e da Secretaria da
Cidadania e da Diversidade Cultural o programa Cultura Viva, pela primeira vez na história
do VNA o projeto pode contar com apoio financeiro do governo brasileiro de forma mais
sistemática. A criação do edital Ponto de Cultura, uma das principais ações do programa
Cultura Viva, possibilitou um novo ambiente de produtividade para o VNA, que articulou
muitos destes grupos indígenas que já estavam produzindo vídeos em suas aldeias com
relativa autonomia, a este programa que visava “financiar iniciativas culturais e funcionar
como instrumento de pulsão e articulação de ações já existentes nas comunidades,
contribuindo para a inclusão social e a construção da cidadania, seja por meio da geração de
emprego e renda ou do fortalecimento das identidades culturais.43

43 http://www.cultura.gov.br/pontos-de-cultura1
96
O Ponto de Cultura44 foi um projeto criado durante o Ministério de Gilberto Gil, a
partir de 2003. Conforme relata Célio Turino45 (2009, 186), foi uma das primeiras ações deste
ministério assim que Gil e sua equipe assumiram o comando da cultura no país, esta foi uma
iniciativa que buscava nortear todo um programa de governo que estava sendo elaborado por
esta gestão. E desta forma, não foi coincidência o VNA ter sido selecionado por este edital
desde a sua primeira edição, ainda durante a fase experimental do programa.

Um programa como o Cultura Viva e os Pontos de Cultura só foram possíveis graças ao


ambiente social e político que o Brasil viveu a partir da eleição do presidente Lula. Com o
simbolismo que representa a presença de um líder operário e popular no principal cargo da
República, o Brasil sobe mais um degrau no seu estágio civilizacional. Para além das
mudanças em políticas públicas houve o componente simbólico, da força moral; as pessoas
passaram a acreditar mais em si e perceberam que é possível fazer coisas de um modo
diferente, experimentar. E se colocam dispostas a compartir com o governo porque
reconhecem no presidente Lula um dos seus. Este ambiente sociopolítico e institucional
também foi alcançado no Ministério da Cultura.
A presença de um artista com o destaque de Gilberto Gil trouxe uma nova dimensão ao
ministério. Ainda na fase de sua nomeação, quando perguntado sobre qual marca queria
imprimir com sua gestão, Gil respondia: “a abrangência”. Palavra vaga, com vários
sentidos, mas com um claro efeito político. A gestão de Gilberto Gil alargou o
entendimento de cultura, cultura como produção simbólica, como cidadania e como
economia; não mais cultura como sinônimo de belas-artes e refinamento, ou eventos
isolados, ou como produto de mercado, um mero negócio. Uma cultura abrangente,
presente em tudo e em todos.”

Conforme assinala Nunes (2011, 2), a gestão do Ministério de Gilberto Gil formulou
uma política pública focada na diversidade cultural e no diálogo com a sociedade civil e
“garantia estar na pauta temas como a gestão compartilhada e a transversalidade das políticas
públicas culturais”.

Toda política cultural faz parte da cultura política de uma sociedade e de um povo, num
determinado momento de sua existência. No sentido de que toda política cultural não pode
deixar nunca de expressar aspectos essenciais da cultura desse mesmo povo. Mas, também,
no sentido de que é preciso intervir. Não segundo a cartilha do velho modelo estatizante,
mas para clarear caminhos, abrir clareiras, estimular, abrigar. Para fazer uma espécie de do-

44 O termo “Ponto de Cultura” foi esboçado no final da década de 1980, pelo antropólogo Antônio Augusto
Arantes, na época Secretário de Cultura em Campinas-SP (Turino, 2009). A idéia inicial era de reconhecer e
potencializar as produções culturais de grupos e comunidades. O projeto foi interrompido com a mudança de
governo e criou-se posteriormente um programa denominado “Casas de Cultura”, no qual o governo respondia
às necessidades das comunidades. Entretanto, a proposta dos Pontos de Cultura era justamente inversa. Os
Pontos não deveriam ser construídos pelo governo. O foco não era na ausência ou carência de benefícios; mas
sim em um protagonismo social a partir de um modelo de gestão compartilhada. Ao invés de conceber, o
governo deveria reconhecer e potencializar as produções culturais dos grupos. (Nunes, 2011:3)

45 Célio Turino é historiador, escritor e gestor de políticas públicas. Foi secretário da Cidadania Cultural no
Ministério da Cultura (2004/2010) e idealizador e gestor dos Pontos de Cultura e do Programa Cultura Viva e
autor de “Ponto de Cultura – o Brasil de baixo para cima” (2009)
97
in antropológico, massageando pontos vitais, mas momentaneamente desprezados ou
adormecidos, do corpo cultural do país... (GIL, 2003, 3 apud NUNES, 2011, 2)

O Ponto de Cultura é um edital público divulgado regionalmente através dos estados e


municípios. A proposta é que a sociedade civil organizada através de suas representações
como “associações de moradores, comitês de vereadores, ONGs, igrejas, os católicos, os
evangélicos, os times de futebol”, conforme assinala Turino (2009, 39), todos possam
participar desta proposta de inclusão cultural. O Ponto de Cultura consiste basicamente em
financiar uma estrutura mínima de funcionamento para articular estes protagonistas culturais
inseridos em suas redes sociais locais através da tecnologia digital, em uma rede nacional de
distribuição e de acesso a cultura. Seja, por exemplo, consolidando cineclubes, construindo
bibliotecas ou criando salas multimídia. Os Pontos de Cultura são implementados por
entidades governamentais ou não governamentais e podem ser instalados em uma casa ou em
um grande centro cultural. A partir desse ponto, a proposta é que se desencadeie um processo
orgânico, agregando novos agentes e parceiros e identificando novos pontos de apoio. De
acordo com o edital, cada Ponto de Cultura recebia a quantia de 185 mil reais em cinco
parcelas semestrais para investir conforme cada um dos projetos apresentados. Na primeira
parcela é destinado um valor mínimo de 20 mil reais, para aquisição de equipamentos
(computador, mini estúdio, câmera digital e ilha de edição) a serem utilizados com a interface
de software livres oferecidos pela coordenação do programa ponto de cultura.

O Vídeo nas Aldeias aprovou logo na primeira edição do edital um Ponto de Cultura
para a aldeia Apiwtxa com os Ashaninka do Rio Amônia. Esta foi a primeira vez na história
do VNA que o projeto contou com o financiamento público brasileiro para a realização
sistemática deste trabalho. Ao contrário das experiências anteriores, como o Programa de
índio que tiveram financiamento de órgãos públicos nacionais para ações e produções
pontuais. Conforme comenta Carelli (in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2011, 50):

Depois de 18 anos de trabalho financiado pela cooperação internacional e muito pouca


visibilidade nacional, no governo Lula, o ministro Gilberto Gil e sua equipe realizaram uma
verdadeira revolução nas políticas públicas da cultura. Assumindo que “o Brasil não
conhece o Brasil”, e que num “País de Todos” todo cidadão deve ter não só o direito de
consumir, como de produzir cultura desde a sua perspectiva. Se iniciou uma nova era de
valorização da diversidade cultural brasileira, e se democratizou o acesso aos subsídios da
cultura. Num diálogo com a sociedade civil, tanto as Secretarias da Cidadania Cultural,
como a da Diversidade e da Identidade, traçaram uma política inédita de subsídio para as
populações tradicionalmente excluídas de qualquer subsídio na área da cultura...
Neste contexto, o Programa Cultura Viva, que subsidiou Pontos de Cultura por todo o
Brasil, deu um apoio considerável à rede de aldeias atendidas pelo Vídeo nas Aldeias,

98
possibilitando a compra de melhores câmeras e equipamentos para edição dos filmes nas
aldeias, dando-lhes maior autonomia de produção, a realização de inúmeras oficinas de
formação e encontros, a publicação da coleção de DVDs Cineastas Indígenas, com a
compilação dos melhores filmes de autoria indígena.”

Célio Turino (in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2011, 40) comenta a experiência do Ponto
de Cultura e a entrada do VNA no programa como um sinal, uma indicação de que estavam,
de fato, no caminho correto quando pensaram nas diretrizes políticas para este governo e que
nortearam a criação deste edital. O programa Cultura Viva propunha a reformulação do
conceito de “acesso a cultura” através de uma inversão estrutural tanto da produção quanto do
consumo e circulação desta produção.

Tão logo recebi a proposta para Ponto de Cultura do Vídeo nas Aldeias, pensei comigo
mesmo: “É isso, eles já são um Ponto de Cultura; potencializados em rede, vão espalhar
este conceito abstrato com sua prática”. O índio na frente e atrás das câmeras; roteiro,
direção, edição e atuação, feitos pelos próprios índios; o índio na visão do índio. A
construção de uma nova narrativa do Brasil, feita de baixo para cima.
O Vídeo nas Aldeias foi selecionado logo no primeiro edital para Pontos de Cultura, ainda
em 2004, quando o Cultura Viva era apenas uma idéia. Um Ponto apenas, na terra indígena
dos Ashaninka, às margens do rio Amônia, município de Marechal Thaumaturgo, estado do
Acre, na fronteira com o Peru. Chegamos lá. Junto com este Ponto, mais duzentos e dez,
espalhados pelos cantos mais esquecidos do Brasil. Uma ideia simples, nascida do firme
propósito de inverter a lógica nas políticas públicas, ao invés de olharmos a carência e a
falta, buscamos a potência, a capacidade de agir e transformar que cada ser humano, cada
grupo social, possui dentro de si e que, no entanto, são deprimidos ao longo de séculos de
dominação e/ou assistencialismos e paternalismos.

Em 2007 o projeto Cultura Viva46 que abrigava o edital Ponto de Cultura entre outras
ações promovidas por este Ministério dá mais um passo adiante na construção desta proposta
de articulação de agentes locais envolvidos com a produção cultural nos quatro cantos do
Brasil. E lança o edital Pontão de Cultura. Que visava articular os Pontos de Cultura
espalhados pelo país em redes maiores de gestão que abrangessem áreas de atuação
semelhantes e que pudessem promover com maior autonomia das atividades em âmbito
nacional. Conforme assinala Turino (2010, 103).

Se o Ponto de Cultura é a sedimentação da rede no território, o Pontão de Cultura é o nó


que sustenta a rede. Pontões são articuladores, capacitadores e difusores na rede, integram
ações e atuam na esfera temática ou territorial...
O primeiro Pontão nasceu quase que em paralelo aos Pontos, foi o Navegar Amazônia, um
barco-estúdio a percorrer a foz do rio Amazonas. Depois vieram os Pontões Ação Griô,
Invenção Brasileira, Vídeo nas Aldeias e Mapa da Rede, fazendo a gestão e sistematização
das informações sobre os Pontos e o Cultura Viva. Com os Pontões criamos outra forma de
gestão e acompanhamento, a gestão intra rede, uma forma de buscar os mecanismos de
gestão na própria rede, sem agentes externos, contando com a capacidade e competências
de seus próprios integrantes.

46 Para maiores informações sobre esta ação governamental de abrangência nacional que em 23 de julho de 2014
transforma esta prática do governo em lei (Lei Cultura Viva: Nº 13.018) ver: http:/www.cultura.gov.br/cultura-
viva1
99
(...) Com o Pontão, a rede ganha nós, se sustenta com mais força. Ganha autonomia e
fomenta o protagonismo interno. Agora são os próprios agentes dos Pontos de Cultura que
alimentam a rede de novas ideias, iniciativas e ações.”

O Vídeo nas Aldeias já era um Pontão de Cultura antes mesmo de ser e, portanto, a
inserção do projeto neste edital foi absolutamente natural, pois significou para os gestores
públicos da política cultural brasileira que este era de fato a diretriz correta a se seguir. Afinal,
estas “minorias” já estavam produzindo e já estavam articuladas, apenas não tinham
financiamento e o know how dos novos tempos, do mundo dos projetos, para que pudessem
buscar por financiamento que possibilitassem a sistematização destas atividades. O VNA a
partir do primeiro edital dos Pontos de Cultura em 2004 aprovou projetos para a
implementação de Pontos de Cultura em diversas aldeias com as quais já trabalhava. Quando
surge o edital do Pontão de Cultura em 2007, o Vídeo nas Aldeias, neste caso, a sede do
projeto localizada em Olinda torna-se um destes pontões que deveriam articular os outros
pontos de cultura espalhados pelas aldeias. O pontão de Cultura nasce da proposta de articular
estes agentes culturais em redes e isto o VNA também já fazia, conforme comentou Turino (in
VÍDEO NAS ALDEIAS, 2011).
O edital Ponto de Cultura e o Programa Cultura Viva como um todo, tiveram suas
atividades suspensas a partir de 2010, já sob a gestão do Governo da Presidente Dilma, que
não mais contava com a equipe de Gilberto Gil e Juca Ferreira no Ministério da Cultura. É
sobre esta interrupção do programa que parecia caminhar para uma rede de articulação
cultural cada vez maior que Carelli comenta sobre os rumos da nova gestão cultural do Brasil
pós governo Lula. O novo Ministério da Cultura parece ter abandonado as diretrizes
filosóficas que nortearam a criação deste programa e as ações deste ministério como um todo
ao longo dos oito anos de governo do Presidente Lula. Desta forma, a equipe ministerial do
Governo Dilma Roussef interrompe abruptamente um processo que estava em plena atividade
no país. Sobre a proposta de trabalho do Programa Cultura Viva, o desenvolvimento do
Projeto VNA sob estas novas diretrizes políticas e a demanda dos indígenas por esta inclusão
no projeto, Carelli (in Vídeo nas Aldeias, 2011, 50) comenta:

Muito conhecido no mundo indígena, o projeto recebe dezenas de pedidos de povos que
querem participar das oficinas. Infelizmente, por falta de recursos, somos obrigados a
recusar. Os programas culturais desenvolvidos na era “Lula” caminhavam para a
democratização dos meios de produção, e um número cada vez maior de Pontos de Cultura
Indígenas estavam sendo desenhados, e tínhamos em vista iniciar um processo de formação
de formadores, para que um número maior de grupos de apoio dispersos pelo país pudesse
atender pelo menos uma parte dessa demanda reprimida. Sonhando alto, poderíamos ter a
100
médio prazo, uma rede nacional de cineastas indígenas alimentando seu espaço próprio na
TV pública brasileira. Num momento em que vários países da América Latina implantam
programas e formulam leis inspiradas no modelo brasileiro do Cultura Viva, o Brasil parece
abandonar os avanços do governo Lula e voltar a uma política elitista de subsídio cultural.
No PAC do governo Programa de Aceleração do Crescimento não devemos nos esquecer
que o “PAC da Cultura e da Educação”, talvez sejam os mais importante deles.

A partir de 2004 quando o projeto Vídeo nas Aldeias entra nesta fase de formação
sistemática de cineastas indigínas possibilitada primordialmente através do financiamento do
programa Cultura Viva, ele amplia suas áreas de atuação nas aldeias criando pontos de cultura
em muitas comunidades com as quais já trabalhava e com outras que foram possibilitadas
através deste financiamento a longo prazo. Muitas vezes estes projetos tiveram a parceria de
outras instituições para a colocação de antenas de transmissão de sinal via satélite que
possibilitaram também o acesso a internet em algumas aldeias, como no caso da aldeia
Apiwtxa. Em outras situações, onde não havia luz elétrica, o projeto empenhou-se também em
realizar parcerias com empresas e projetos fornecedores de placas solares para a
implementação dos Pontos e das salas multimídia. Quando não haviam estas possibilidades, o
trabalho continuava bravamente levando toda estrutura necessária para a sua implementação e
utilizando geradores de energia para a viabilidade destes.
Entre 2004 e 2008 o VNA conta com a participação de muitos colaboradores para a
produção e realização destas oficinas, muitos deles já foram citados anteriormente, como é o
caso de Tuto Nunes e Altair Paixão e novos nomes entram nesta fase do projeto. São jovens
com formações que circulam basicamente entre as ciências sociais, política, mídia,
documentário e cinema e que trouxeram novo fôlego as produções do VNA. Ainda em 2000,
Leonardo Sette, pernambucano formado em História do Cinema pela Sorbonne, ingressa no
VNA como colaborador das oficinas de formação de cineastas indígenas. Em 2006, Tiago
Campos Tôrres, mineiro formado em Ciências Sociais na UNB entra para a equipe do Vídeo
nas Aldeias para dar oficinas de realização, de edição e sobretudo para editar e finalizar os
filmes do projeto. Amandine Goisbault é francesa com mestrado em Gestão da Cultura e
Mídia pela universidade Sciences Po, veio para o Brasil para realizar um intercâmbio, quando
estagiou no Vídeo nas Aldeias. Após este período concluiu seus estudos, fixou residência em
Olinda e juntou-se a equipe VNA em 2007. Ernesto de Carvalho, também formado em
Ciências Sociais na UNB com mestrado em antropologia na UFPE concluído em 2009, é
sócio de Thiago Tôrres na produtora Zumbayllu e amigo de longa data. Ernesto que também é
fotógrafo e videomaker, juntou-se à equipe do VNA em 2007 e atualmente divide-se entre as
101
atividades do VNA e o doutorado em antropologia na New York University. Entre estes novos
nomes estão alguns outros colaboradores do VNA de forma mais esporádica que trabalharam
tanto como instrutores de oficinas neste período como também na sede do Vídeo nas Aldeais
em Olinda. Marcelo Pedroso e Gabriel Mascaro, são jovens documentaristas recifenses que se
destacaram na cena do cinema documentário nacional contemporânea e a partir deste período
passaram a colaborar com o VNA editando, finalizando e realizando oficinas.
Sobre este período que considero uma fase de transição do projeto VNA, existem uma
série de comentários interessantes e pertinentes a serem feitos antes de adentrarmos
novamente na discussão fílmica propriamente. A primeira questão a se destacar, que já foi
brevemente comentada, trata do volume de trabalho do projeto neste período. Thiago Tôrres
em conversa informal comigo na sua casa em Olinda, classificou como a fase do “rodão”
quando o VNA estava abrindo muitos novos campos de produção com os Pontos de Cultura e
ainda precisava dar continuidade a todo o trabalho que vinham desenvolvendo de formação de
cineastas indígenas iniciados antes dos Pontos de Cultura e que continuavam sem o
financiamento deste edital.

2.7 Uma breve descrição etnográfica e um breve parênteses metodológico

Em Agosto de 2014 fiz uma breve passagem por Olinda, esta foi uma oportunidade de
realizar um brevíssimo trabalho de campo, na expectativa de conhecer mais de perto o
trabalho do Vídeo nas Aldeias, seus atuais colaboradores e também compreender se as
análises realizadas a partir deste acervo fílmico e bibliográfico caminhavam em sintonia com
a realidade vivida pelo projeto. Em contato prévio com Carelli, feito por intermédio de
Patrícia Monte Mor (minha professora durante os tempos de gradução em Ciências Sociais na
UERJ e com quem hoje tenho uma relação de parceria profissional e amizade construída).
Vincent comentou que não estaria na cidade durante o período em que realizaria esta viagem.
Indicou os outros membros da equipe do VNA, Amandine, Thiago e Ernesto, para que me
recebessem nesta oportunidade. Esta visita durou apenas 3 dias, dos quais apenas consegui
encontrá-los em dois. Este encontro do qual não tinha grandes expectativas, visto que Vincent
não estaria na cidade e sobre o qual pensei que talvez não funcionasse ou não acrescentasse
muito sobre as minhas reflexões, foi extremamente frutífero e generoso. Tive longas

102
conversas com Thiago e Ernesto que estenderam-se madrugada adentro. Foram eles também
que na manhã seguinte me convidaram para conhecer a casa onde está localizada a sede do
VNA, no coração da cidade histórica de Olinda, uma casa de arquitetura colonial com uma
bela vista para o mar. Nesta conversa muito falamos sobre o projeto após as suas chegadas.
São eles também, Thiago, Ernesto e Amandine, que atualmente “tocam” o projeto junto com
Vincent e que contribuíram para os novos moldes desta produção fílmica. Sobre este encontro
e algumas das reflexões que surgiram neste contexto, tratarei ao longo desta última parte do
texto. Estas conversas não foram gravadas, apenas registradas em um caderno de campo,
portanto, devo destacar que todas as “falas” que atribuir a seguir a estes “personagens” no
texto neste contexto etnográfico, são um resgate da memória e devem ser entendidas no
contexto em que estão colocadas e não como citações.
Sobre a decisão de não gravar estes encontros, esta se deu de forma objetiva e não por
falta de instrumentos ou materiais que me permitissem o feito. Conforme colocado na
introdução deste texto, há muito conheço o trabalho desenvolvido pelo VNA, meu primeiro
contato com estes filmes se deu ainda em 2004 quando realizaram a I Mostra Vídeo nas
Aldeias no CCBB do Rio de Janeiro. Logo em seguida a este evento, entrei para a equipe de
produção da Mostra Internacional do Filme Etnográfico, a qual já pôde-se perceber ao longo
deste trabalho que teve um papel importante para a circulação destes filmes no circuito de
festivais de cinema e no diálogo com a antropologia. Conheço Vincent Carelli destes espaços
de exibição, que são preciosos momentos de encontro destes produtores de cinema
documentário num ambiente festivo e de trocas. Meus contatos com ele nunca passaram de
alguns poucos cafés e um jantar de confraternização no restaurante Nova Capela, localizado
na Lapa, bairro da boemia carioca. Acompanho tanto a trajetória deste projeto quanto as suas
dificuldades e conquistas, ao longo destes anos, através desta janela que é a Mostra
Internacional do Filme Etnográfico e recebo notícias particulares do projeto através de
Patrícia Monte Mór, diretora do festival, amiga pessoal de Carelli e atualmente membro da
diretoria da instituição. Através dos textos com os quais dialoguei para a feitura desta
pesquisa, percebo em Vincent, um certo receio na aproximação de pesquisadores, que
conforme coloca, aproximam-se do projeto para “colar”, em busca de atingirem seus objetivos
específicos e pessoais. Conforme relata Gonçalves (2012, 137) em sua tese sobre o VNA e o

103
cinema de Divino, a respeito da sua entrada no campo e a receptividade de Carelli no
momento inicial de sua pesquisa:

Vincent Carelli iniciou a conversa comigo dizendo que muitos pesquisadores já haviam
tentado fazer uma pesquisa sobre o Vídeo nas Aldeias, e que até então ele não havia aberto
essa possibilidade. A razão foi de que as pretendidas pesquisas “colavam demais ou
pretendiam colar no projeto”, isto é, que em última instância, os pesquisadores pretendiam
fazer parte da equipe do VnA.

Desta forma, a partir destas informações prévias que tinha a respeito das concepções
de Vincent sobre pesquisadores que pretendiam estudar o projeto VNA e a sua receptividade
em relação aos mesmos, decidi que deveria ir ao campo sem pretensões, visto que já tinha
tomado a minha decisão em trabalhar com e sobre este acervo, a partir das informações que
este material poderiam me fornecer. Portanto, não gravar as conversas e também não guia-las
através de entrevistas, foi uma decisão tomada em consciência. Não queria me parecer com
mais uma destas pessoas que pretendiam “colar” no projeto, queria ir somente até onde me
fosse permitido e não queria que estas informações fossem norteadas por este registro que,
conforme já vimos extensivamente neste texto, atua, encena e performa. Não queria criar
barreiras, apenas transpô-las. E para isso fui a campo, apenas para ver o que quisessem me
mostrar e para dizerem o que tivessem vontade, sem compromisso com o registro que
posteriormente pudessem causar algum constrangimento.

2.8 Arrumando a casa, sacudindo a poeira

Feito este breve parênteses, voltamos a 2006 e ao encontro de Vincent com Ernesto e
Thiago. Narrado por estes dois últimos de forma “anedótica”, este encontro que se dá-se às
vésperas do momento pelo qual o VNA estava prestes a atravessar, traz questões interessantes
sobre esta nova fase fílmica que se inaugura e as suas formas de produção. Um dia em Olinda
quando fotografava um cortejo de maracatú para um trabalho que estava realizando, Ernesto
viu do outro lado da rua um sujeito que filmava com uma handcam e algo que parecia um
filtro de café acoplado ao microfone da câmera. Ernesto achou aquilo muito peculiar e foi
perguntar ao sujeito do que se tratava. O sujeito em questão era Vincent, que estava testando
um “modelo” de microfone que havia escutado falar. Os dois começaram a conversar, Vincent
contou do projeto VNA e Ernesto, que nesta época fazia a gradução na UNB e já pensava
sobre a prática da antropologia compartilhada a partir das ferramentas audiovisuais, ficou
104
encantado com o projeto e com a trajetória de Vincent. Nessa noite, conforme narra, Ernesto
ligou para Thiago, através do Skype, aplicativo que na época havia sido criado recentemente e
com o qual estavam maravilhados. Ernesto contou para Thiago sobre o encontro com Vincent
e sobre como aquilo o havia inspirado. Ernesto ganhou de Vincent uma coleção de filmes do
VNA, de volta a Brasília os levou para Thiago assistir. Inspirados pelo documentário Das
crianças Ikpeng para o mundo (2001) Thiago e Ernesto realizaram uma oficina de vídeo para
um grupo de meninos de rua em Brasília, que gerou o filme Procurando Aroldo (2004). Esta
admiração e inspiração fez se desenvolver uma relação entre os três e, em 2006, Thiago e
Ernesto mudaram-se para Olinda para trabalharem no projeto Vídeo nas Aldeias a convite de
Vincent, que ainda não conhecia Thiago pessoalmente.
Entre a primeira visita “oficial” deles ao VNA e o início dos trabalhos, Ernesto
começou a namorar com a filha de Carelli, quando acabou por levar uma rasteira do destino.
Mari Corrêa não admitiu que ele trabalhasse no projeto diante do fato de agora ser sua
“sogra”. Thiago, por sua vez, ingressou no projeto e começou a trabalhar principalmente na
edição e finalização dos filmes que estavam sendo produzidos. Amandine chegou da França
no ano seguinte para um estágio no VNA, e após a conclusão do curso, fixa residência em
Olinda. Torna-se editora do projeto e casou-se com Thiago. Neste ano, o namoro de Ernesto
com a filha de Carelli se desfez e logo em seguida Mari o convida para trabalhar no VNA.
Conforme me narrou, ele já tinha bastante intimidade com aquele ambiente, visto que a sede
do VNA era também a residência da família Côrrea Carelli que visitava com frequência e
porque morava com Thiago, que levava muitos dos trabalhos para casa para compartilhar das
opiniões do amigo.
Em março de 2008, Vincent e Mari divorciam-se. O fim deste relacionamento foi
bastante confuso e atribulado, Thiago e Amandine comentam que o ambiente de trabalho no
VNA com a presença de Mari era muito pesado e que estavam neste momento pensando
seriamente em desistir, pois não suportavam as perseguições que sofriam. Vincent, que estava
desgastado desta relação, um dia comenta com Thiago que precisava encontrar uma forma de
sair deste casamento, sem que isso abalasse as estruturas do projeto, visto que Mari era sócia e
diretora do projeto junto com Carelli. Thiago conta que a partir deste desabafo de Vincent,
decidiram então dar uma chance às possibilidades de mudança neste ambiente de trabalho. O

105
casamento acabou e Mari continuou ainda atuando no projeto, eles dividiram as tarefas para
que pudessem continuar a trabalhar em parceria, conforme comenta Gonçalves (2012, 125):

Habituados a um ritmo intenso, mesmo em meio aos dramas individuais os diretores


doVnA conseguiram manter a agenda daquele ano, inclusive a das oficinas nas aldeias,
cada qual trabalhando em projetos distintos. Mari Corrêa estava envolvida com a realização
da MAWO (Casa de Cultura Ikpeng), com uma oficina de formação para os Kisêdjê, em
Minas Gerais, um projeto de formação de realizadores, escritores e fotógrafos Maxakali em
parceria com a Associação Filmes de Quintal, com uma oficina de filmagens na aldeia Vila
Nova do Pradinho e uma de edição em Belo Horizonte.
Através de Mari Corrêa, sabia que Vincent Carelli continuava assegurando as atividades
institucionais do VnA, e que juntos, eles haviam formalizado um projeto com a Secretaria
da Diversidade (MinC) para iniciar trabalhos com cinco novos grupos. Naquele momento
pleno de incertezas e conflitos, assim como durante os próximos sete meses, Mari Corrêa
acreditou que era possível manter o affectio societatis e dedicou-se a isso. E eu,
especialmente por estar morando em São Paulo, fui uma das testemunhas privilegiadas de
seu empenho na consecução do que ela chamava de uma “agenda positiva” para se chegar a
uma nova forma de colaboração e assim “continuar essa parceria que se mostrou durante
esses anos ser frutífera, criativa e potente”.47

Esta tentativa de Mari de manter-se vinculada ao projeto após o rompimento do


casamento com Vincent não teve vida longa, o que fica nítido ter sido este um esforço
somente da sua parte, visto que outros integrantes do projeto também apoiavam a sua saída
definitiva. Os sócios48 da instituição convocaram uma Assembléia Extraordinária em 05 de
Setembro de 2008, realizada em São Paulo, na sede do Instituto Sócio Ambiental (ISA), na
qual decidiram pela divisão do projeto em dois núcleos,
O de Olinda, que continuaria como estava, sob a coordenação de Vincent Carelli, e o outro,
em São Paulo, sob a coordenação de Mari Corrêa. Os projetos e os equipamentos foram
divididos entre os núcleos, mas a efetiva e completa divisão do material seria feita mais
tarde, o que nunca aconteceu... Um escritório provisório do Núcleo foi instalado em sua
casa. E ficou definido um mediador para o processo de reestruturação institucional.
(GONÇALVES, 2012, 126).

Esta estrutura também não teve vida longa e em Janeiro de 2009 Mari anuncia
sua saída definitiva do projeto. Criou uma nova instituição para trabalhar com a mídia
indígena, o Instituto Catitu/ Aldeia em Cena49 sediado em São Paulo. Mari saiu do
VNA e levou consigo metade da quantia do financiamento anual que era oferecida
pela Embaixada da Noruega desde de 1990, o qual havia possibilitado a sobrevida do

47Trecho da carta de Mari Corrêa aos sócios do VnA enviada por correio eletrônico em agosto de 2008. In:
Gonçalves (2012, 125)

48Neste momento a associação possuía dez sócio efetivos: Vincent Carelli, Mari Corrêa, Altair Paixão, Carlos
Alberto Ricardo, Henri Arraes Gervaiseau, Lucila Meirelles, Nietta Lindenberg, Renato Gavazzi, Sérgio Bloch,
Vera Olinda Sena, um conselho consultivo e um conselho fiscal.

49 http://institutocatitu.org.br/
106
projeto VNA ao longo destes anos e a manutenção das suas atividades estruturais até
aquele momento.

Em março houve uma nova assembléia. Deixar o Vídeo nas Aldeias implicava em abdicar
de um patrimônio, o “©videonasaldeias” que ela havia trabalhado para sua transformação,
digamos, de nome para marca. O grupo de sócios entendeu, portanto, que era justo que ela
obtivesse as condições necessárias para dar continuidade aos projetos junto às comunidades
indígenas com as quais estava trabalhando. Esse foi também o entendimento do maior
agente financiador, a Embaixada da Noruega, que decidiu dividir em partes iguais os
recursos destinados ao Vídeo nas Aldeias, destinado a metade do montante à instituição que
Mari Corrêa iria criar. E assim, com o endosso da Embaixada da Noruega, nasceu o
Instituto Catitu – Aldeia em Cena.50 (GONÇALVES, 2012, 126)

O Vídeo nas Aldeias retorna então às suas estruturas originais, com uma única sede
em Olinda (PE) sob a direção de Vincent Carelli. E concentra suas atividades na formação de
cineastas indígenas, conforme comenta Silva (2013, 29)

Atualmente o VNA está sediado em Olinda (PE) e continua sendo liderado por Carelli.
Conta com uma boa estrutura de produção de filmes e capacitação de alunos e tem recebido
o patrocínio e o apoio de empresas nacionais como a Petrobrás, além das internacionais que
foram as primeiras a apoiarem seus trabalhos. Em 25 anos de trabalho o VNA produziu
registros de 37 povos e acumulou mais de 7 mil horas de filmagem, com diversas
premiações aos filmes dos realizadores indígenas e aos filmes dos coordenadores.

Sobre este processo atribulado pelo qual passou o projeto entre 2007 e 2009 existem
algumas questões interessantes a serem destacadas. Os novos instrutores que chegaram para
dar conta das demandas do projeto quando na fase do “rodão”51 a princípio trabalhavam
somente na sede do VNA editando o material final dos filmes, as oficinas eram ministradas
por Carelli, Mari e eventualmente algum outro colaborador do VNA, como por exemplo
Sérgio Bloch, Henri Arraes Gervaiseau e Altair Paixão. Deste período, vou citar algumas
produções de forma cronológica que me chamam a atenção para a guinada que o projeto está
prestes a apresentar.

2.9 O amadurecimento estético, ético e político dos Cineastas Indígenas

50 Afinidades e parcialidades a parte, esta é a narrativa desta história a qual tive acesso e que está descrita na tese
de doutoramento de Claudia Pereira Gonçalves (2012). A autora que ao longo de sua pesquisa tornou-se amiga
íntima de Mari Corrêa e sócia desta nova instituição criada por Corrêa após o seu desligamento do VNA.

51 Definição de Thiago Torres para o período de alta produtividade do projeto quando contou com o
financiamento sistemático do Ministério da Cultura através dos editais dos Pontos e Pontões de Cultura.
107
“A gente luta mas come fruta” é um documentário de 2006 realizado por Isaac
Pinhanta e Wewito Piyãko. Este filme que foi editado por Thiago Torrês é resultado já do
trabalho desenvolvido após a implementação do Ponto de Cultura na aldeia Apiwtxa
localizada no Rio Amônia (AC). Nele a comunidade apresenta as suas práticas de manejo
agroflorestal e busca demonstrar através das imagens a falha no “sistema” que enviava a
escola indígena um “kit” de merenda escolar, a mesma que era distribuída para toda a rede de
ensino nacional. No filme esta comunidade Ashaninka demonstra que não precisava desta
merenda, pois realizava a prática do manejo florestal com os alunos da escola e que estes
plantavam as árvores que dariam os frutos para a merenda. Portanto, mais do que o envio de
comida empacotada eles gostariam de receber o valor destas merendas em espécie para que
pudessem aplicá-lo de outra forma.
Este filme traz duas questões que considero de extrema importância. A primeira é o
tom de militância encontrado no documentário, que parece resgatado das primeiras produções
do projeto dirigidas por Carelli. Que, no entanto, agora ganham outro contorno visto que não
se trata mais de um branco militante e sim, indígenas militantes produtores das suas próprias
imagens. O segundo ponto que dialoga com esta questão gira em torno da apropriação destas
ferramentas, de fato, pelos indígenas e a possibilidade de produção e realização do filme na
aldeia. Estes realizadores indígenas que já foram citados anteriormente no texto a propósito
daqueles exemplos do “filmar o nada” como bons aprendizes da técnica do cinema, em
especial o cinema verdade pregado por Rouch, utilizam estas ferramentas em causa própria,
no mesmo tom de militância que verificamos no primeiro tipo fílmico e que diferentemente do
segundo tipo não pretendem a afirmação da cultura Ashaninka somente através da
demonstração das suas formas de serem índios. Esta militância se re-enquadra novamente no
âmbito legal da discussão, onde estes indígenas utilizam o vídeo como instrumento de
reivindicação não só de direitos, mas de diálogo e escolhas. As oficinas que resultaram neste
filme foram coordenadas ainda por Mari e Vincent, no entanto, a edição foi feita por Thiago
Torrês e traz novidades a esta estética do VNA. Parece que o tempo impregnado na edição
permaneceu e os principais ensinamentos da metodologia do Varan também, no entanto, tanto
os realizadores quanto o montador não se mostram presos a uma fórmula e sim, parecem
utilizar esta prática para um benefício fílmico com o propósito de dizerem aquilo o que
pretendiam em seus discursos.

108
A primeira vez que estive na Apiwtxa foi para montar o A gente luta mas come fruta. Em
paralelo, a Mari deu início a uma oficina com dois novos alunos, o Hatã, filho do Ariceme,
e o Enison, que hoje é professor na aldeia. No segundo dia na aldeia, começamos a montar
o equipamento. Mari iniciou o processo e depois eu assumi a ilha. Era o segundo filme que
eu montava. Começamos traduzindo e minutando o material. Todos os dias, nos reuníamos,
eu, Isaac, Wewito e Mari, para discutirmos o que tínhamos assistido. O material bruto era
enorme, resultado de mais ou menos seis anos de filmagem. A câmera como uma arma,
geradora de imagens para serem tanto apresentadas como prova ao exército, à justiça, etc.,
como para compor um filme. Mari e Isaac conheciam mais o material, então me diziam por
onde começar a procurar as coisas, discutiam sobre o que mostrar e como fazer. À medida
em que as coisas foram avançando, Isaac foi se afastando, para cuidar de outras coisas,
assim como Mari, que estava envolvida na oficina. Assim, eu e Wewito ficamos mais à
vontade na edição e começamos a ter mais liberdade para fazer escolhas e participar do
processo criativo do roteiro de montagem(...)
Pelo meu entendimento do trabalho no Vídeo nas Aldeias, sinto que cada processo é único.
Na produção de cada filme existe uma imersão profunda no material e na experiência do
filme. Quando partimos para uma oficina, raramente temos um roteiro em mente. O roteiro
surge à medida em que o filme vai acontecendo. Os alunos se envolvem com os
personagens e eventos que filmam, às vezes precisam participar dos eventos que filmam, às
vezes se desentendem com seus personagens, e experimentam algo completamente novo
mediado pela câmera. Na edição, quando vamos descobrir os possíveis elos entre as
situações filmadas, percebemos o que é importante ou não para a comunidade através da
reação das pessoas enquanto trabalhamos. Alguém assiste a um corte de uma sequência e
faz correr a notícia pela aldeia. As pessoas chegam, assistem, deixam suas impressões e
assim o filme vai se construindo na pré-edição(...) É muito comum a gente propor situações
de filmagens e construções narrativas. Os alunos gostam quando apresentamos ideias de
como contar a história do filme. Depois a gente discute e vê se vamos levar adiante uma
proposta ou não. O que acaba acontecendo é uma apropriação muito livre e uma nova
interpretação daquilo que foi sugerido. (Thiago Torres in VÍDEO NAS ALDEIAS 25
ANOS, 2011, 86)

O documentário A gente Luta mas come fruta ganhou o Prêmio Panamazônia 2007 de
Melhor produção audiovisual da Action Aid Americas e o prêmio de Melhor Documentário no
Cine Gaia, realizado no Rio de Janeiro em 2008. Este filme aparece como um prenúncio
destes novos tempos e parece se articular em perfeita sintonia com as ideias norteadoras das
políticas públicas culturais deste momento. A tal produção de baixo para cima, parece surtir
efeito e o cinema produzido pelo Vídeo nas Aldeias parece ganhar novos contornos. Com uma
estética bem mais palatável para os padrões dos consumidores destes filmes, que agora sim
aparecem além de bem feitos (ou seja, bem produzidos, bem filmados e bem montados), estão
também apoiados tanto em diretrizes cinematográficas sólidas e reflexivas como também
sobre pilares políticos pensados e discutidos comunitariamente. Para além de pensarem os
efeitos das imagens produzidas, estes cineastas indígenas parecem agora buscar um
movimento inverso, querem pensar os efeitos para depois produzirem as imagens conscientes
de seus efeitos. Parece, desta forma, que mais um degrau foi atingido na busca pela
autêncidade destes filmes que agora dialogam com a expectativa deste público tanto branco
quanto índio que exige esta reflexividade no documentário.

109
Para refletir ainda sobre algumas questões que considero fundamentais sobre esta fase
de produção, trago para a discussão outro filme realizado pelo VNA em 2011. Este é um filme
que antecipa um pouco a narrativa cronológica de desenvolvimento do VNA que tenho
buscado fazer até aqui, mas que considero necessária para abrir um novo canal de discussão a
respeito deste novo tipo fílmico que se inaugura no VNA a partir de 2007. As Hiper Mulheres
é um longa metragem de 80 minutos dirigido por Takumã Kuikuro, Carlos Fausto e Leonardo
Sette52. Este filme que participou de inúmeros festivais de cinema nacionais e internacionais
ganhou o prêmio mais importante do 39º Festival de Gramado, o Kikito Especial do Júri e
também o prêmio de melhor montagem. No 44º Festival de Brasília recebeu o prêmio de
melhor som, entre os inúmeros outros prêmios que recebeu em festivais de cinema mundo
afora. Este filme que é dirigido por um antropólogo, um cineasta indígena e um cineasta
branco, demonstra um amadurecimento do projeto em relação a questão da autoria discutida
extensivamente no capítulo anterior por Coutinho, Escorel e Bernardet principalmente. O
projeto do filme é idealizado pela antropóloga Bruna Franchetto em parceria com o também
antropólogo Mutuá Kuikuro53, mas quando da sua realização ainda durante o trabalho de
captação de recursos, o processo foi assumido por Fausto. Este é fruto de uma pesquisa de
muitos anos dos antropólogos com os Kuikuro no Xingu. Conforme relata Fausto (in VÍDEO
NAS ALDEIAS 25 ANOS, 2011, 104):

O filme nasceu originalmente de uma ideia de Bruna e Mutuá. Por diversas razões, eles não
apresentaram o projeto ao IPHAN, e eu acabei assumindo o trabalho. Para mim, é um
projeto muito querido, porque vai ao encontro do que estudo, que é a transmissão dos
cantos. O filme representa tudo aquilo que aprendi nesses anos no Xingu colocado em ação.

O filme narra a organização e todas as etapas de produção para realização do


Janurikumalu, o maior ritual feminino do Alto Xingu para a transmissão dos cantos
tradicionais dos Kuikuro para as jovens. As mulheres do grupo começam os ensaios enquanto
a única cantora que de fato sabe todas as músicas se encontrava gravemente doente. Este
filme que passeia entre o documentário e a ficção é fruto de uma intensa pesquisa de longos

52 Leonardo Sette, começou a colaborar com com o Vídeo nas Aldeias em 2001, após a realização de Hiper
Mulheres e dez anos de trabalhos com o Vídeo nas Aldeias, inaugura com sua companheira, Juliana Lapa, as
atividades da sua própria produtora, a Lucinda e desliga-se do projeto VNA. Sobre este período comenta:
“Aprendi muito com Vincent e muito com os índios.”

53 Mutua Mehinaku Kuikuro nasceu na Aldeia Kuikuro de Ipatse do Alto Xingu, Mato Grosso. É professor da
rede estadual de ensino do Mato Grosso e licenciado pela Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT)
cursou mestrado e doutorado em antropologia no Museu Nacional/ UFRJ.
110
anos dos antropólogos Bruna Franchetto e Carlos Fausto com este povo. Em intenso e
profundo convívio com índios produtores da sua “cultura”, o filme, a partir da sua excelência
na realização, com fotografia, montagem, som e narrativas harmônicas e afinadas à proposta,
demonstra uma maturidade deste fazer compartilhado, prenunciado por Rouch ainda na
década de 1970. Sobre este aspecto o crítico de cinema Carlos Alberto de Mattos comenta:

A criação compartilhada pelo antropólogo Carlos Fausto, o cineasta não-índio Leonardo


Sette e o diretor índio Takumã Kuikuro troca o olhar etnográfico “de fora” por uma
expressão mais autóctone para contar uma história de ficção que soa como documentário.
Índias de várias tribos se reúnem numa aldeia Kuikuro do Xingu para festejar o ritual
feminino do Jamurikumalu. É ocasião para a passagem da tradição dos cantos para as
meninas e também para as habituais brincadeiras sacanas que caracterizam a versão
indígena da “guerra” sexual.
Para quem já conhece o trabalho da Vídeo nas Aldeias, este filme é um passo além, tanto
em termos de metragem como de hibridez entre os registros de documentação e encenação.
Para quem não é muito íntimo, funciona como uma introdução deliciosa aos mitos e ao
lúdico indígenas – que, aliás, não estão nada separados.54

Este filme destaca dois novos aspectos da produção fílmica do VNA. O primeiro
ponto diz respeito a esta produção compartilhada. Se nos filmes realizados pelos cineastas
indígenas no primeiro momento de formação (compreendido entre 1998 e 2006) não fica
claro através das imagens ou nos créditos quem fez o que e, de fato, de quem é a autoria
destes filmes, conforme já extensamente discutido. Neste segundo tempo, os filmes realizados
pelo VNA de autoria indígena, parecem rever esta questão. Para se fazer compreender melhor
esta idéia, voltemos a 2002 e a chegada do VNA à aldeia Ipatsé. Quando Carlos Fausto chega
ao Xingu para realizar sua pesquisa com os Kuikuro estes já tinham uma demanda clara de
trabalho para ele. Queriam registrar a sua “cultura” em vídeo. Desta demanda dos indígenas e
após a primeira oficina de formação de cineastas realizada em 2002 na aldeia Kuikuro Ipatsé
pelo VNA em parceria com o Museu Nacional, os indígenas em formação liderados por
Takumã, criaram o coletivo de cinema Documenta Kuikuro. Entre 2002 e 2010 os cineastas
deste coletivo dedicaram-se a registrar em toda a sua complexidade os cantos dos grandes
rituais Kuikuro, as suas narrativas míticas e suas rezas. Parte deste material foi editado em
pequenos filmes que em sua extensa maioria são desconhecidos do grande público, pois o
objetivo desta realização era apenas para o consumo interno da aldeia, conforme destaca
Belisário (2014, 34):

54 Disponível em: http://criticos.com.br/?p=3839


111
Em 2008, os cineastas kuikuro e pesquisadores do Museu Nacional/UFRJ finalizaram a
mais completa documentação de um complexo ritual indígena na Amazônia, a coleção
Kuhikugu Igisü, que registra, além dos cantos dos grandes rituais kuikuro, as suas
narrativas míticas e suas rezas (kehege). Na série de 47 DVDs podemos encontrar os cantos
e a narrativa do Jamugikumalu, executados pela eginhoto Kanu Kuikuro.
Antes de filmar o ritual Jamugikumalu que está em cena em As Hipermulheres (2011),
Takumã e o coletivo de jovens cineastas Kuikuro, como explicou Takumã, filmaram e
editaram uma série de filmes sobre os rituais Ahugagü, Tolo, Hagaka, Kuãbü e as lutas
kĩdene do Egitsü (Kuarup), este último ao longo de quatro anos do ritual e em diversas
aldeias do Alto Xingu. A circulação desses filmes se restringe, geralmente, às sessões
noturnas de cinema no pátio central da aldeia ou aos momentos em que o gerador principal
é ligado e as sessões ocorrem nas casas equipadas com aparelho reprodutor de DVD e
televisão.

Quando, portanto, Carlos Fausto, Leonardo Sette e Takumã Kuikuro decidem levar
estes registros da tradição dos Kuikuro para o grande público, a aldeia já estava
profundamente impregnada deste fazer cinematográfico que foi abraçado, assimilado e porque
não dizer antropofagizado pelos indígenas. Sobre a autoria destas produções realizadas no
contexto do coletivo Kuikuro de cinema, Fausto (in VÍDEO NAS ALDEIAS 25 ANOS, 2011,
104) tece alguns comentários que esclarecem alguns pontos a respeito destas realizações:

Há, ainda, entre os Kuikuro, a questão da autoria. Quando Takumã e Mariká tomaram a
frente das oficinas, porque demonstraram um talento para este trabalho, os filmes saíram
como sendo dos dois. Na época fizemos questão, porque acreditávamos que era uma coisa
legal, e os meninos concordaram. Depois, quando foram formadas as novas gerações nas
oficinas, encontramos a saída de assinar o filme como sendo do Coletivo Kuikuro de
Cinema para marcar que ali existia um grupo de realizadores. A questão dos créditos nestes
filmes é sempre complicada. É difícil dizer quem, afinal de contas, fez o filme, porque foi
um tanto de gente. Quando trabalhei com o Leo na edição de O dia em que lua menstruou,
ele operando a ilha e tomando decisões de corte, isso ficou muito claro. No caso dos
Kuikuro, o Coletivo de Cinema não é uma solução perfeita, mas sempre se pode colocar a
realização como do Coletivo e especificar as funções nos créditos. No Xingu, uma coisa
que foi muito clara desde o início do trabalho, que foi colocada pelos caciques, é que os
cineastas estavam trabalhando para a comunidade a partir das decisões da comunidade. Mas
talvez isso possa ter brechas, Takumã está mais maduro, já é reconhecido, talvez possa
apresentar projetos mais pessoais e assumir uma autoria mais clara, ou de colaborações.
Mas essa é uma questão a ser discutida de filme para filme.

O segundo ponto que pretendo destacar nesta produção é talvez algo que esteja
incluído, ou seja consequência deste fazer compartilhado de fato. Os filmes que começam a
surgir no VNA neste período parecem apresentar uma maturidade em vários aspectos. Tanto
no sentido estético no que se refere a fotografia, montagem e narrativa, quanto nestas questões
já extensamente apresentadas a respeito deste fazer compartilhado e as suas implicações, por
fim destaco também esta maturidade apontada por Carlos Fausto a respeito do trabalho de
Takumã no filme As Hiper Mulheres. Este cineasta indígena que divide a direção com os dois
outros diretores brancos e assina a fotografia do filme, de fato alcançou o reconhecimento de
seu trabalho, tanto entre os Kuikuro como entre os brancos. Este é um processo de construção
112
e só o tempo poderia possibilitar. Este é um movimento que exemplifico aqui através do
trabalho de Takumã mas que aconteceu com outros indígenas formados no VNA, como por
exemplo Divino Tserewahú, Kamikiá Kisedje e Ariel Ortega entre outros. Este momento
demonstra um amadurecimento na realização do trabalho do VNA seja por parte desta equipe
de brancos envolvidos nesta formação seja por parte dos indígenas alunos do projeto, que
assumem esta atividade como profissão. O que representa no caso de Takumã, ser cinegrafista
e realizador de cinema. Carelli a respeito da repercursão do filme As Hiper Mulheres num
circuito mais abrangente de cinema cita o jornalista Carlos Merten a respeito da participação
do filme no festival de Gramado:

Pela segunda vez tivemos, em 2011, um de nossos filmes selecionados no festival de


Gramado. O jornalista de O Estado de São Paulo, Luiz Carlos Merten, que cobria o festival,
comentava no seu blog a respeito dos seus colegas: “Tem gente que morre só de pensar em
assistir a filmes de índios” ou, “Tem gente que acha que o filme nem devia estar no festival.
Mas como se, como cinema, é o melhor brasileiro até agora? (Carelli in VÍDEO NAS
ALDEIAS 25 ANOS, 2011, 49)

A partir da análises destes dois filmes, quero destacar o caminho pelo qual o VNA
percorreu principalmente após a saída de Mari Corrêa do projeto. A primeira impressão que se
faz notar é este retorno do diálogo mais direto com a antropologia, onde se faz perceber a
atenção dada a cada contexto, suas especificidades e profundidades, onde a produção deve ser
refletida e discutida com maior horizontalidade, caminho por onde a antropologia também
anda percorrendo e tentado trilhar. É neste sentido que Carlos Alberto de Mattos afirma sobre
esta produção etnográfica, atenta aos detalhes, ao cotidiano, mas em profundo diálogo. Me
parece que estas produções (tanto As Hiper mulheres quanto A gente luta mas come fruta) são
mais pensadas, menos estigmatizadas e menos ansiosas. Parecem serem frutos realmente do
tempo estabelecido não só durante as filmagens, mas do tempo em que esta câmera está
fazendo parte do cotidiano das aldeias de fato. A câmera foi apropriada como instrumento por
estes indígenas que, tanto querem produzir “cinema”, como querem discutir política e guardar
e mostrar ao mundo a sua cultura. Wewito Piãko (in VÍDEO NAS ALDEIAS 25 ANOS, 2011,
75) neste sentido comenta sua experiência como professor indígena em sua aldeia e como a
formação de cineasta contribuiu para o seu processo de formação como educador.

Participar da realização deste filme foi importante na minha formação e ajudou no meu
trabalho como professor. Filmar, acompanhar um personagem ou uma família, é como uma
pesquisa. Você vai se aproximando daquela pessoa cada vez mais, conhecendo sua vida

113
cada vez mais, e com isso conhecendo histórias que antes você não conhecia. Discutir como
a gente vai se apresentar no vídeo e o que vamos ou não apresentar, através do vídeo, para a
comunidade e para aqueles que não nos conhecem, o que nos diferencia de outros povos.
Me lembro que tinha uma família que não queria ser filmada porque não sabia para onde
levaríamos sua imagem. Convidamos para que assistissem aos vídeos produzidos por
outros povos, e isso fez com que as coisas ficassem mais claras. Que o trabalho com o
vídeo passava pelo intercâmbio entre os povos indígenas e também com outras culturas,
que uma pessoa, ou uma família, poderia chegar a outros povos através da imagem.”

É neste contexto de produção inaugurado conforme descrito acima, que apresento a


seguir a discussão a respeito do terceiro e último tipo fílmico, O Cinema Guarani. Quando o
projeto Vídeo nas Aldeias parece atingir a sua “maturidade” fílmica ele não só apresenta uma
qualidade estética aceitável para os padrões ocidentais, considerando que o público
consumidor destes filmes está inserido numa pequena parcela da população que reflete sobre
esta produção exaustivamente. Ou seja, ele não só traz boas fotografias e montagem, como
também apresenta discussões que parecem novamente conectar este cinema aos ideais
fundadores do projeto VNA, de militância, articulação e empoderamento, num diálogo aberto
e horizontalizado. Conseguindo desta forma, abordar uma série de questões sobre este
universo indígena tão diverso e cheio de especificidades étnicas, regionais, territoriais e
políticas. Os filmes produzidos por este grupo de realizadores Guarani Mbyá trazem agora
para o primeiro plano da cena, aquilo que Coutinho reivindicava, a autenticidade, as
articulações, as reflexões a propósito do fazer, possibilitados num ambiente dialógico e
compartilhado.
A escolha por recortar esta terceira fase fílmica do projeto a partir do cinema
produzido pelo Mbyá Guarani do Rio Grande do Sul, se dá pelo seguinte critério: são estes os
filmes realizados pelo VNA a partir de 2007 que mais se destacaram e circularam pelos
festivais de cinema e eventos relacionados ao tema produzidos por cineastas indígenas
formados no projeto. Mas não é disso que pretendo tratar neste tipo fílmico, a questão que
pretendo percorrer é que estes filmes produzidos por este grupo de cineastas Mbyá Guarani
envolvidos no projeto VNA, que conheceram o projeto já nesta etapa de maturidade e com
toda esta história acumulada, trazem à tona uma série de discussões e características já
brevemente apresentadas acima a respeito deste cinema de transição do VNA. Esta pode ser
apenas uma coincidência de fatos, visto que a primeira oficina com os Mbyá do Rio Grande
do Sul aconteceu somente no ano de 2007. E talvez pelo fato de o VNA não ter iniciado
nenhuma outra formação com outros grupos indígenas além deste, a partir deste período. O
que pretendo destacar é que, seja este um movimento de maturidade do projeto VNA por parte
114
dos instrutores quanto da metodologia aplicada nas oficinas de formação, ou, seja pelo fato de
os Guarani envolvidos na formação terem pego este veio aberto que os fizeram mergulhar de
cabeça nesta que parece ser uma nova proposta fílmica. O fato é que as reflexões e críticas
apontadas e assimiladas ao longo destes anos parecem ecoar entre os Guarani e entre os atuais
colaboradores do projeto nesta nova fase fílmica que apresenta uma série de peculiaridades
que nos colocam a pensar e a reinventar novas certezas. Sobre este tipo fílmico e seus
pormenores tratarei a seguir.

115
Capítulo 3

CINEMA GUARANI

Entre os Guarani, a demanda por formação de cineastas indígenas surgiu ao longo a


execução do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC)55 em São Miguel das
Missões. O projeto de identificação do patrimônio cultural Guarani Mbyá teve início em

55 O INRC é um instrumento oficial desenvolvido pelo IPHAN para a produção de conhecimento e


documentação acerca do patrimônio cultural. A implementação dessa metodologia de inventário pelo IPHAN se
iniciou no ano 2000, com a perspectiva de constituir um banco nacional de informações acerca das referências
culturais dos diversos grupos constituidores da Nação. Além de produzir informações sobre a pluralidade de
universos culturais existentes no país, o INRC tem também o objetivo de produzir diagnósticos que subsidiem a
gestão de políticas públicas visando a preservação do patrimônio cultural dos diversos grupos sociais. Para mais
ver: http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do?id=13493&retorno=paginaIphan
116
200456. A primeira etapa deste inventário ocorreu na aldeia de Koenju, no município de São
Miguel das Missões e foi executada por uma equipe de antropólogos da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul: “O início do inventário contou com uma fase de mobilização,
conforme preconiza a metodologia do INRC, onde houve a articulação com lideranças e
representantes Mbyá Guarani, a fim de apresentar o projeto para as comunidades e submetê-lo
a sua apreciação, de forma, a incorporar as questões, preocupações e orientações do povo
Mbyá Guarani no desenvolvimento das atividades previstas.”57
O projeto Vídeo nas Aldeias chega aos Mbyá Garani no sul do Brasil tardiamente,
apenas em 2007 após vinte anos de projeto, dez anos de formação de cineastas indígenas e
incontáveis produções. Em novembro deste ano o VNA aportou na Aldeia Anhentenguá,
localizada na Lomba dos Pinheiros, periferia de Porto Alegre (RS), para a execução deste
projeto de formação audiovisual demandado pelos indígenas durante o processo de elaboração
do INRC e financiada pelo IPHAN58 do Rio Grande do Sul. Os instrutores desta primeira
oficina de formação foram, Thiago Tôrres e Ernesto de Carvalho.
Ao chegar aos Mbyá para a primeira oficina, esta ainda não tinha um grupo fechado de
alunos indicados previamente pela aldeia para participarem do processo de formação de
cineastas. Conforme comenta Ernesto (in VÍDEO NAS ALDEIAS 25 ANOS, 2011, 139), os
primeiros contatos com os Guarani assim que chegaram à aldeia foram um pouco atropelados
e as diferenças de ritmo e expectativas em relação aos trabalhos pareciam estar
descompassados entre os instrutores do VNA e os Guarani de Anhetenguá, conforme
comenta:

Ali não tinha de fato um grupo de alunos para fazer a oficina, era algo do tipo “vai
acontecer uma oficina e quem quiser participar, e tal”. Existe uma resistência, uma
desconfiança muito grande. Os Guarani estão acostumados com relações que não dão em
nada. E naquele momento não entendíamos nada. Existe tanto de ruído na comunicação

56O INRC compõe uma das ações desta instituição relativas a legislação criada em 2000 para a salvaguarda do
patrimônio cultural imaterial brasileiro. “O Registro de Bens de Natureza Imaterial, criado em agosto de 2000
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN – tornou possível o reconhecimento de
bens culturais processuais e a definição de estratégias específicas de preservação e divulgação dos mesmos. Sua
aplicação pressupõe a documentação dos bens culturais a serem registrados. Para procedê-la, o IPHAN
desenvolveu uma metodologia específica, o Inventário Nacional de Referências Culturais/INRC.” (FREIRE,
2005, 11)

57 http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do?id=13493&retorno=paginaIphan

58
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, orgão brasileiro responsável pelo tombamento de bens
materiais e imateriais, ligado ao ministério da cultura
117
entre os brancos e os Guarani, uma relação tão tumultuada, que a postura inicial das
pessoas nas aldeias é não embarcar nesses processos.

Por fim após alguns dias de oficina, formou-se um grupo de alunos composto por
Jorge Morinoco, Germano Beñites, Alexandre Patchá, Diego Ferreira e Ariel Ortega. Este,
morador da aldeia Koenju, já tinha contato com a câmera, não só dos outros que os filmavam
em sua aldeia (turistas, pesquisadores e afins), como ele próprio já manejava câmeras e
equipamentos que possibilitam o registro nos dias atuais. Já tinha alguma familiaridade com o
universo audiovisual e rapidamente apropriou-se do projeto de realização do filme, conforme
narra Carvalho (in VÍDEO NAS ALDEIAS 25 ANOS, 2011, 138):

Quando chegamos, eu e Tiago, ao Rio Grande do Sul, em Novembro de 2007, para a


primeira oficina Guarani, Ariel já estava no carro esperando a gente. Foi muito marcante
este encontro. O Marcus Benedetti, do IPHAN, e nosso interlocutor inicial com os Guarani,
nos falou que o Ariel tirava fotos e filmava com seu celular, e nos deu a impressão de que
toda ferramenta que dispunha e colocava nas mãos ele começava a usar. Era nossa primeira
oficina sozinhos, a gente estava com aquela vontade, uma expectativa muito grande, uma
ansiedade, projetando tudo, porque queríamos fazer um bom trabalho. Saber do Ariel nos
deixou bem animados.

Ariel é o cineasta mais jovem do projeto VNA a alcançar um notório reconhecimento


pelas suas produções. Nascido em 1985 em Missiones na Argentina, começou a trabalhar com
vídeo em 2007, quando tinha 22 anos. Logo após sua primeira experiência com o cinema
ganhou visibilidade entre seu povo e foi nomeado cacique da aldeia Koenju. Atualmente atua
também como professor bilíngue na escola estadual indígena no município de Salto Jacuí
(RS) localizada na aldeia Tekoá Porã. Conforme comentam Ariel e Ernesto, foi um trabalho
difícil convencer a aldeia que a produção de um filme poderia trazer aspectos positivos e de
que esta experiência seria diferente de outras experiências prévias dos Guarani com equipes
de filmagem. Esta mudança de perspectiva só aconteceu após as primeiras projeções de filmes
do VNA das imagens captadas durante a oficina. Sobre sua entrada no projeto VNA, o
encontro com o cinema e o insight que o fez mergulhar de cabeça nesta história, Ariel
comenta:

Eu sempre me interessei pelo vídeo, mas nunca tinha tido a oportunidade de fazer um filme.
No início, eu não queria participar, não queria fazer a oficina, mas fui mesmo assim, sem
ter a menor ideia do que seria... Chegamos na Lomba sem saber o que fazer. Foi difícil.
Numa aldeia Guarani as pessoas são muito reservadas. Durante uma semana foi tudo
bastante difícil, não conseguíamos filmar, não sabíamos o que fazer, o que tínhamos que
mostrar. Conversava com as pessoas, mas elas não entendiam muito. Estávamos numa

118
aldeia que tinha 10 hectares, onde as pessoas vivem quase na periferia de Porto Alegre, é
uma situação muito difícil... Então comecei a sentir o trabalho que tínhamos que fazer. Na
verdade, as coisas já estavam acontecendo, mas eu ainda não havia me dado conta. Eu
queria fazer algo diferente do que já havia sido feito. Nasci na Argentina, na aldeia do meu
avô, muitas pessoas vinham, filmavam, vinham antropólogos, mas sempre faziam de uma
forma que não era correta. Parece que obrigavam os Guarani a falar. Então, nessa oficina eu
percebi que podia fazer diferente, que éramos nós mesmos que estávamos fazendo.
Durante a oficina na Lomba, fizemos uma reunião com a comunidade. Falamos de como
era importante fazer o documentário, que poderíamos ter voz, que a comunidade ficasse à
vontade, que poderiam falar o que quisessem falar, mostrar o que quisessem mostrar. Mas
havia uma desconfiança, porque já passamos por muitas situações complicadas. Mas então
percebemos, todos percebemos, que ali havia mesmo o problema da terra. A partir daí
começaram a surgir outras questões, de sobrevivência, a venda do artesanato. Então
começaram a falar, todo mundo começou a falar. Depois da reunião, quando entenderam o
que fazíamos ali, e depois que começamos a mostrar para a comunidade, à noite, o que
tínhamos filmado durante o dia, todos assistiam e ficavam felizes. Foi aí que o filme
começou mesmo. As pessoas se viam, entendiam o que estava acontecendo, e começaram a
ficar mais à vontade. Viam sua própria imagem e já pensavam no que falar, no que fazer.
(Ortega in VÍDEO NAS ALDEIAS 25 ANOS, 2011, 140)

Após uma semana de trabalhos na aldeia, existia um clima de insatisfação entre os


participantes da oficina, especialmente Ariel, demonstrava imensa insatisfação com as
imagens captadas. Afirmava que não havia nada a ser filmado na aldeia, pois nada acontecia
ali. Na observação de Ariel, Anhanguetá era uma aldeia pequena e os seus habitantes estavam
deprimidos. O grupo decide que deveriam sair dali para realizarem mais algumas imagens na
aldeia Koenju, localizada no município de São miguel das Missões.

Mokoi Tekoá Petei Jeguatá - Duas Aldeias e uma caminhada (2008, 63’) é o filme
resultado desta primeira oficina de vídeo. Assinam a direção desta produção Ariel Ortega,
Jorge Ramos Morinico, filho do cacique da aldeia da Lomba dos Pinheiros e Germano
Benites. O filme está dividido em duas partes, a primeira parte se passa na aldeia Anhetenguá,
em Porto Alegre (RS), mostra o dia a dia dessa aldeia em profunda angústia com a falta de
terras que impossibilita a comunidade de continuar praticando suas atividades tradicionais de
caça e plantio de milho e mandioca, principalmente. A segunda parte do documentário se
passa na aldeia Koenju e trata igualmente da produção de artesanato para a venda a turistas no
sítio histórico de São Miguel das Missões59. Por fim, estas duas partes se conectam no destino
final, as ruínas de São Miguel, para onde os moradores de ambas as aldeias se deslocam para
a venda de artesanato aos turistas. Assistir as imagens de índios roubando madeira para a
fabricação do artesanato os fazem refletir sobre a perda constante de território. Na relação

59Este sítio arqueológico foi declarado patrimônio mundial pela UNESCO em 1983, é um local muito visitado
por turistas e repleto de carga simbólica para o povo Mbyá-Guarani.
119
com os turistas em São Miguel das Missões, que compram seus artesanatos e os fotografam
invasivamente, trazem a reflexão sobre as formas como são percebidos pelos brancos e a
consequente falta de representatividade da história deste povo na história oficial brasileira.
Neste local foi construída a Redução Jesuítica Guarani60 entre o final do século XVII e
início do século XVIII. Conhecida como Sete povos das Missões, além desta redução, nesta
região foram construídas outras seis, São Nicolau, Santo Ângelo, São Lourenço, São João
Batista, São Luiz Gonzaga e São Francisco de Borba, das quais São Miguel era a maior e
considerada a capital. O local hoje abriga o Museu das Missões e as ruínas que restaram desta
construção. Uma das atrações do museu é um espetáculo de som e luzes que narra a história
do lugar para os visitantes. É para lá que os Guarani das aldeias Anhetenguá e Koenju
costumam dirigir-se para venderem seus artesanatos.

Enquanto as reduções se desenvolviam numa região ainda sem limites de fronteira


bem definidos, os portugueses ocupavam terras oficialmente espanholas ao sul do Brasil. Em
1750, o Tratado de Madrid determinou novos limites entre os impérios coloniais de Portugal e
Espanha, que nesta região determinava como limite da fronteira entre as colônias o Rio
Uruguai. Na área do estuário do Prata, pelo novo acordo, a Espanha trocava os Sete Povos das
Missões, na margem esquerda do rio Uruguai, pela Colônia do Sacramento, dos portugueses.
Os governos de Madrid e Lisboa tomaram estas decisões sem levar em conta os interesses dos
jesuítas e dos guaranis. Os indígenas recusaram-se a sair de suas terras e contaram com o
apoio parcial dos Jesuítas. Em 1753, começaram a impedir os trabalhos de demarcação da

60 As reduções jesuíticas foram os aldeamentos indígenas organizados e administrados pelos padres jesuítas na
América como parte de sua obra de cunho civilizador e evangelizador. O sistema missioneiro buscou introduzir o
cristianismo e um modo de vida europeizado, integrando, porém, vários dos valores culturais dos próprios
índios, e estava baseado no respeito à sua pessoa e às suas tradições grupais, até onde estas não entrassem em
conflito direto com os conceitos básicos da fé católica. O mérito e a extensão do sucesso dessa tentativa têm sido
objeto de muito debate entre os historiadores. Para conseguirem seu objetivo os jesuítas desenvolveram técnicas
de contato e atração dos índios e logo aprenderam suas línguas, e a partir disso os reuniram em povoados que por
vezes abrigaram milhares de indivíduos. Eram em larga medida auto-suficientes, dispunham de uma completa
infraestrutura administrativa, econômica e cultural que funcionava num regime comunitário, onde os indígenas
foram educados na fé cristã. As missões jesuíticas desta região eram modelos de sociedades autogestionadas e
ficaram conhecidas como uma espécie de socialismo cristão.
Em meados do século XVII o modelo missioneiro já estava bem consolidado e disseminado por quase toda a
América, mas teve de enfrentar a oposição de setores da Igreja católica que não concordavam com seus métodos
empregados pelos jesuítas e também do restante da população colonizadora, para quem os índios não valiam a
pena o esforço de cristianizá-los. Mesmo com vários problemas a vencer as missões como um todo prosperaram
a ponto de em meados do século XVIII os jesuítas se tornarem suspeitos de tentar criar um império
independente, o que foi um dos argumentos usados na intensa campanha que sofreram na América e na Europa e
que acabou por resultar na expulsão destes das colônias a partir de 1759 e na dissolução da sua Ordem em 1773.
Com isso o sistema missioneiro entrou em colapso, causando a dispersão dos povos indígenas reduzidos.
120
fronteira e anunciaram a decisão de não sair da região ocupada por eles dos Sete Povos das
Missões. Em 1754 eclode uma guerra colonial com exércitos portugueses vindos do Rio de
Janeiro e exércitos Castelhanos vindos de Montevidéu e Buenos Aires. Em 1756 após dois
anos de batalhas e um verdadeiro exército guarani missioneiro formado, chega ao fim a
resistência guarani com a morte de um dos seus principais líderes, Sepé Tiarajú. Neste
episódio da história houve um verdadeiro massacre ao povo Guarani com a morte de mais de
1500 indivíduos, que marcou profundamente a história deste povo.
Muitos grupos Mbyá Guarani hoje ocupam a região de fronteira entre Brasil,
Argentina e Uruguai61. A aldeia Anhetenguá (localizada na periferia de Porto Alegre) tem um
território de apenas 10 hectares e a aldeia Koenju ocupa um território de 200 hectares. Apesar
desta discrepância entre os tamanhos das aldeias, ao observar os relatos de algumas
personagens neste primeiro trabalho realizado pelo Vídeo nas Aldeias com os Guarani, é
visível o ressentimento da população de ambas as aldeias em relação a falta de mata para
realização de suas atividades cotidianas, bem como a opressão que sofrem com o crescimento
das cidades no entorno das aldeias. Que os deixa a cada dia com um território mais reduzido e
de fronteira. Os habitantes destas aldeias, hoje, dependem quase que exclusivamente da
venda de artesanato para a sua sobrevivência, pois se tornou impraticável o exercício da caça
e a roça deixou há muito de ser uma atividade de subsistência.
Neste capítulo, a partir da análise fílmica detalhada dos trabalhos realizados por Ariel
Ortega e o coletivo de cinema Mbyá Guarani, do qual fazem parte Jorge Ramos Morinico,
Germano Benites e Patrícia Ferreira, retomarei as questões discutidas anteriormente no
contexto dos outros dois tipos fílmicos do projeto VNA, para entender em que movimento
antropológico e cinematográfico podem circunscrever-se estas produções. O objetivo deste
capítulo é perceber em que lugar residem estas diferenças de abordagem e de construção de
narrativa neste terceiro tipo fílmico produzido no âmbito do projeto VNA. Digo isto tendo em
mente principalmente os dois eixos de discussão que emolduram as questões já levantadas
extensivamente ao longo deste texto, que são: as forma de afirmação e elaboração da
“cultura” e as performances produzida para e com a câmera elucidadas através dos filmes.

61A população Mbyá-Guarani no Brasil era estimada em 7 mil habitantes (2008), no Paraguai em 14.887 (2002)
e na Argentina em 5.500 (2008). No Brasil suas aldeias situam-se no interior e no litoral dos estados do Paraná,
Santa Catarina, Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo. (VÍDEO NAS ALDEIAS 25
ANOS, 2011, 137)
121
3.1 A Cosmologia Guarani: algumas considerações

Hélène Clastres escreveu em 1978 o livro A terra sem mal, que se tornou um clássico
da literatura antropológica e grande referência para a compreensão da cosmologia Tupi-
Guarani62. A autora, a partir de relatos históricos de viajantes e posteriormente pesquisadores,
linguistas e etnólogos, busca desconstruir a ideia que esteve presente ao longo do processo de
catequisação dos índios da América (especialmente entre os jesuítas) de que os Guarani, por
não apresentarem em sua cosmologia rituais suntuosos e sistemas complexos de parentesco e
de organização social (se comparados aos grupos indígenas de tronco linguistico Jê, por
exemplo) não teriam uma “cultura”. Ou como era dito naqueles tempos de primeiros contatos
através dos padres jesuítas, não conheciam Deus nem a religião.
Neste livro, H. Clastres propõe uma reconstrução destes fatos e narrativas míticas
deste povo a partir de documentos históricos. Busca compreender aonde apoiava-se de fato a
cosmologia e a tradição. Desconstrói a idéia de assimilação e messianismo, que alguns
autores anteriores a ela propuseram a respeito dos Tupi-Guarani, de que, foi com o contato, na
relação com o branco e principalmente com os jesuítas, que estes povos edificaram a sua
crença e cosmologia. Hélène Clastres busca, portanto, encontrar o ponto de “origem”, ou o
que se repete recorrentemente nestes relatos. Qual a informação a respeito desta cultura e
cosmologia que se encontra presente desde os primeiros escritos. Na sua extensa pesquisa
sobre este material histórico, chega por fim ao que apresenta como um “denomidador
comum” para o qual aponta já no título do livro, “A terra sem mal”:

A Terra sem Mal é esse lugar privilegiado, indestrutível, em que a terra produz por si
mesma os seus frutos e não há morte. Os cronistas só lhe fazem breves alusões e ainda a
reduzem a proporções compreensíveis para eles: um "além" para onde vão as almas depois
da morte. Seria de esperar que, como aconteceu com o resto, esse tema fosse assimilado ao
tema cristão do Paraíso. Curiosamente, nada disso aconteceu. (H. CLASTRES, 1978, 30)

62 Na descrição pormenorizada da autora sobre os hábitos, tradições e mitologia deste povo, ela analisa as
migrações Guarani estimuladas pela busca da Terra sem mal como a principal razão pela qual este povo vem
sendo historicamente dizimado. Pois nas longas migrações que fizeram, privaram-se de alimentar-se e adentram
as densas matas da floresta para alcançarem o seu objetivo, o lugar no qual os homens tornam-se deuses. Nestas
migrações, aldeias inteiras foram dizimadas, conforme afirma, pelo cansaço, pela fome e por doenças. Daí o tom
fatalista de sua produção, que apesar da profunda importância que teve neste campo dos estudos etnológicos
apresenta por fim apenas o deslocamento desta tal morte de uma tradição e de um povo para além das situações
de contato e localiza-a como algo inerente à própria cosmologia Guarani.
122
Os escritos de Helène Clastres foram um grande norteador para os pesquisadores
interessados em “desvendar” a cosmologia Guarani. Esta compilação de dados históricos a
partir de uma leitura antropológica trouxe novos ares para a compreensão deste povo, que
muitas vezes foi colocado na “periferia” da etnologia, exatamente pela falta de ícones que
evidenciam e glamourizam a tal “cultura” indígena neste universo etnológico. Sem a presença
dos grandes rituais ou de estruturas sociais complexas que caracterizam grande parte das
populações ameríndias, Hélène trata de deslocar o eixo do entendimento desta cultura para
além destes ícones. Desloca o foco da discussão e busca apontar para onde de fato está
localizada a manutenção cultural deste povo, o que, afinal, os fazem e refazem guarani.
A busca da Terra sem mal por este povo, segundo a autora (1978, 35) seria, portanto,
esta síntese de uma cultura que apoia-se nas palavras, no discurso e no profetismo dos karaís.
A importância destes líderes religiosos que levam a palavra dos deuses aos homens, que
fazem a mediação entre o natural e o sobrenatural, conforme afirma, “O papel verdadeiro
desses grandes xamãs - os karaís - sem a menor dúvida curandeiros, mas antes de mais nada
líderes religiosos, e muitas vezes políticos, das aldeias”, é fundamental para compreendermos
o que põe estas sociedades num fluxo contínuo de atualização social e o que os mantém nesta
que pode ser caracterizada como a “unidade cultural” dos povos tupi-guarani: a língua e o
discurso poético-profético.
A terra sem mal dos Guarani muitas vezes foi colocada em analogia por estes
primeiros cronistas, ao paraíso celeste cristão. No entanto, ao contrário deste, a Terra sem mal
pode ser alcançada em vida, é o lugar onde os homens transformam-se em Deuses, é um lugar
caracterizado pela abundância de alimentos, que crescem sem necessitar de cultivo, cuidados
e trabalho. Lá é o lugar também onde todas as estruturas serão rompidas e não haverão mais
obrigações. A terra sem mal está localizada em algum ponto geográfico da terra, que apesar
das controvérsias de testemunhos que muitas vezes a localizam a leste e outras a oeste, está
descrita como localizada além mar. Para alcançar o lugar em que os Guarani tornam-se deuses
que estes povos caminham. É o que propõe H. Clastres (1978, 66):

De onde vêm, com efeito, a necessidade da própria viagem? Sabe-se que os Tupi-guaranis
estavam tão profundamente imbuídos da realidade geográfica do seu paraíso que sempre
estavam dispostos a empreender a sua procura. Tão grande era sua certeza que, se não o
descobrissem onde supunham ser seu lugar, ou caso sua marcha acabasse levando-os a
algum obstáculo intransponível que os forçasse a se deter (como aconteceu com os
apapocuvas ao chegarem as margens do Atlântico), não hesitavam em partir novamente,

123
numa outra direção. Certamente os caraís interpretaram mal os mitos; se não descobriram a
Terra sem Mal a Leste, é porque sem dúvida ela se encontrava a Oeste; bastava retomar
caminho.

Os padres jesuítas absorveram muitas vezes o discurso da Terra sem Mal, para
aproximarem os Guarani da religião católica no processo de catequese deste grupo e
colocavam a Terra sem mal em equivalência ao paraíso celeste dos cristãos. No entanto, o
paraíso celeste cristão não é possível de ser alcançado em vida, somente após a morte. Desta
forma, os jesuítas, escapavam do risco de serem desmentidos, como acontecia em muitos
casos com os karaí quando por acaso erravam o caminho ou a direção para a Terra sem mal.
O Caminhar destes povos, as imensas migrações identificadas e registradas que
apontam para um período anterior ao contato com os colonizadores, conforme afirma a
autora, de maneira nenhuma pode ser percebido em analogia aos movimentos messiânicos
identificados em outros grupos que passaram por processo semelhante de catequese e
assimilação cultural pós contato.

Tupis e guaranis não eram, portanto, essa gente sem fé que os cronistas nos descreveram
com tanta segurança: seus próprios testemunhos vêm ensinar-nos o contrário. Todo o
pensamento e a prática religiosa dos índios gravitam em torno da Terra sem Mal. Uma
religião que pode ser dita profética. Desde o começo da conquista (recordemos que
Nóbrega escreve em 1549), todo o contexto, todos os elementos do profetismo já estão
presentes: as personagens dos caraís, com sua posição de exterioridade espacial e
genealógica; o tema da Terra sem Mal. O mito da destruição da primeira terra: e a crença
num cataclisma futuro. Quer dizer que não se trata, em absoluto de um "messianismo" que
se teria produzido em reação a colonização. É possível que, posteriormente, a conquista
tenha radicalizado o profetismo. Mas reduzir, como se pretendeu, essa religião a uma
resposta de gente oprimida a uma situação de opressão é tornar-se incapaz de compreende-
la. É a partir do próprio interior da cultura índia, como uma dimensão original da sua
sociedade, que devemos tentar explicá- la. (idem)

A busca pela Terra sem Mal seria, portanto, conforme afirma H. Clastres, a síntese
desta cosmologia Guarani. É através da conquista deste ideal que as estruturas fundantes das
sociedades guarani se edificam. Estes povos de largo conhecimento da agricultura,
caminharam de Norte a Sul do continente em busca deste lugar. Estas peregrinações que
levavam famílias e, por muitas vezes, aldeias inteiras a abandonarem suas terras, seus
cultivos, para alcançarem este lugar na terra onde os homens poderiam enfim tornar-se
deuses, alcançar a imortalidade e viverem em abundância e festa constante, fazia com que se
privassem nesta jornada de conforto e abundância material. O que representava também uma
passagem pela purificação, abandonar os excessos, viver com o elementar, guiando-se através
das palavras de seus karaís que fazem a ponte entre a palavra/vontade dos deuses aos homens.

124
Pois suas longas peregrinações através do espaço representavam também o tempo
necessário para se consumar a lenta mutação dos espíritos e dos corpos, sendo apenas ela
capaz de torná-los dignos de ascender ao término da sua busca. E essa mutação passava
pelo abandono das normas sociais. Eis aí a prova e o sentido da viagem: abandonar uma
aldeia e um território e, simultaneamente renunciar ao essencial das atividades econômicas,
sociais e políticas que se enlaçam nesse espaço. (H. CLASTRES, 1978, 66)

Para tentar sintetizar esta proposta da autora, faz-se importante destacar alguns
aspectos apontados por H. Clastres (1978, 68) que caracterizaram a “cultura” Guarani.

A busca pela terra sem mal propõe, portanto “a recusa ativa da sociedade. Autêntica ascese
coletiva (...) o pensamento da Terra sem Mal não se reduz, portanto, ao pensamento de um
alhures estritamente espacial. Trata-se de pensar um Outro do homem, absolutamente isento
de coerção: homem-Deus. Mas, se é talvez possível gozar dessa liberdade, isso não é dado:
e necessária a mediação, a viagem ascética que mostra que se deve abandonar o humano
para que, no homem, realize-se o deus. Viajar é aceitar a aposta.

Trazer para a discussão esse desapego material dos Guarani, seja pela ausência de
rituais suntuosos e rigorosos, ou através da falta de rigidez nas estruturas sociais, são,
portanto, dados fundamentais para que se possa interpretar esta estrutura cosmológica dos
Guarani, não como falta, mas como presença, pois é na desmaterialização e no desapego, que
estes ritualizam e atualizam suas práticas.
A propósito de um povo de tronco linguístico Tupi Guarani, os Araweté, Viveiros de
Castro, estabelece alguns conceitos para pensar esta suposta ausência de estruturas. Ao
contrário de Hélène Clastres, que ao fim e ao cabo, trata de resolver as questões que propõe
através do mesmo fatalismo clássico que marcam os estudos sobre os povos Guarani, apenas
deslocando esta “morte da cultura” para além do contato com colonizadores e padres jesuítas
e trata de justificar esta “morte” como já anunciada cosmologicamente, pois conforme afirma,
é na própria busca, na caminhada para a terra sem mal, que terminam por dizimarem-se, de
fome, cansaço e no rompimento com estruturas sociais. Viveiros de Castro (1986, 22), por sua
vez, busca olhar por outro ângulo os pilares sobre os quais se edificam a cosmologia Tupi-
Guarani. Que, afinal, sobrevive até os dias atuais mantendo suas unidades linguísticas e
práticas sociais. De acordo com o autor, é no devir, no desejo de transformar-se em outro, que
se apoia toda a cosmologia dos povos tupi-guarani.

Ela (esta afirmação sobre o devir) conjuga os temas centrais da cosmologia desse povo
Tupi-Guarani. Veremos que ela condensa a concepção Araweté da pessoa, que de nossa

125
parte podemos resumir assim: o destino da Pessoa Araweté é um tornar-se outro, e isso é a
Pessoa - um devir. Intervalo tenso, ela não existe fora do movimento.

Este devir, localizado nos discursos dos karaís, nas danças, nos cantos e na fumaça do
tabaco, colocam todo o resto como não essenciais, a isso justifica-se a sua economia de
símbolos e práticas rituais, mas que tem em contrapartida o desenvolvimento de um discurso
complexo sobre o sobrenatural: “O que não quer dizer arquitetonicamente elaborado, ou
dogmaticamente invariável. O imaginário Araweté prolifera na palavra e no canto. Há muito
pouco para ser visto; quase tudo, do essencial, se passa em "Outra Cena". Em certo sentido
pode-se dizer dos Araweté o que se disse dos Guarani: aqui também "tudo é
palavra" (VIVEIROS DE CASTRO, 1986, 23). Desta forma, coloca-se diante da seguinte
questão: Como tratar, portanto, este eterno movimento e fluidez social como dado
fundamental para a compreensão deste povo?

Trata-se do que eu chamaria de excesso ou suplementaridade do discurso cosmológico em


relação ao social. Ou seja: como se pode dar conta da coexistência, nas praxes Araweté, de
uma organização "frouxamente estruturada" - número restrito de categorias sociais,
ausência de segmentos ou divisões globais, fraca institucionalização ou formalização das
relações interpessoais, relativa indistinção das esferas pública e doméstica, poucos
mecanismos integrativos a nível geral - com uma extensa taxonomia do mundo espiritual,
mas de difícil redução a princípios homogêneos. Uma ativa presença desse mundo na vida
cotidiana, o papel fundamental dos mortos, e toda uma orientação "vertical", celeste do
pensamento? O que fazer, em suma, com esta preponderância do discurso sobre a
instituição, da palavra sobre o emblema e o esquema ritual, da série cosmológica sobre a
serie sociológica? (VIVEIROS DE CASTRO, 1986, 24)

O esforço de Viveiros de Castro (1986, 49) localiza-se exatamente em lidar com estas
supostas ausências de estruturas dos povos tupi guarani, para formular uma questão que
trouxesse esta ausência como fato e não como ausência de fatos. Ou seja, como realizar um
estudo antropológico que não caia neste fatalismo especulativo da história que minimiza a
cosmologia destes povos a uma perda de cultura pós contato, ou mesmo uma determinante
ecológica que coloca estes povos em relativo atraso tecnológico ou os associa a perdas
territoriais. Trata-se, portanto, de perceber que para realizar este trabalho antropológico
deveria encontrar o que é de fato estruturante para os Tupi-Guarani. Tendo em vista que estes
povos estão vivos, são praticantes de uma cultura e falantes de uma língua, que se atualiza
com frequência, mas, ao mesmo tempo, mantém conexão com suas origens mais remotas.

Havia que achar uma explicação Tupi-Guarani para uma sociedade TG, e não recorrer aos
percalços imaginários da história ou da ecologia. E era preciso olhar na direção certa, ver o
que interessava aos Araweté, seguindo o conselho sensato de Evan-Pritchard (1978,

126
apêndice IV): a que, para eles, correspondia ao gado Nuer, a bruxaria Azande, aos nomes e
ao dualismo Jê?

É neste devir radicado no centro da construção da pessoa tupi-guarani que Viveiros de


Castro situa outros dois importantes conceitos para estas populações, mesmo que muitas
vezes externados apenas metaforicamente: o canibalismo e a antropofagia. Se este devir
localiza-se fora, em algum lugar a ser alcançado, ele muitas vezes pode significar estar em
contato, apropriar-se de outras formas de ser, não por oposição, mas por apropriação do outro.
Fato que muitas vezes está negativamente também associado a esta “aculturação” sugerida
pela aparência destes povos de origem tupi-guarani. Conforme narra Viveiros de Castro
(1986, 65) através da sua experiência em campo com os Araweté, era difícil colocar barreiras
nestas relações, pois o contato com os kamarã (que significa branco na língua Araweté e pode
ser entendido com uma sub-espécie dos awi, inimigo) não implicava em barreiras ou
impedimentos simbólicos que impossibilitassem os kamarã de acessar aquela sociedade, pelo
contrário, muitas vezes os intercâmbios, as trocas e alianças eram fortemente estimuladas,
conforme relata:

O mais difícil, para mim, sempre foi resistir ao poder de sedução ou de sucção exercido
pelo grupo, no sentido de me "transformar" em um dos seus. Sociedade aberta e
"antropofágica" (no sentido metafórico que Lévi-Strauss (1955, 448) dá a essa palavra), seu
desejo radical do outro a levava, seja a querer a todo custo ser como ele (i.e. nos), seja a
puxá-lo (i.e. a mim) para dentro de si.

Na tentativa de (re)construir o percurso de simbolização dos Araweté, Viveiros de


Castro (1986, 79) lança mão de uma metáfora que parece se estender e ecoar para os Guarani.
Nota que durante o seu período de trabalho de campo, as coisas que ele tinha que mais
fascinavam este povo eram, nesta ordem: uma espingarda, um gravador e a escrita. Onde a
espingarda o possibilitou o acesso ao universo da caça, fazendo com que fosse convidado
pelos homens da aldeia para caçar, e na medida em que ganhou confiança com o grupo,
passou disponibilizar sua arma aos mais experientes da aldeia. No gravador, gravava as
conversas e principalmente os cantos, que eram do interesse de todos. Muitas vezes era
solicitado que o colocasse para tocar, para que pudessem ouvir novamente as palavras que
foram proferidas por eles mesmos recentemente.

Eram assim esses dois objetos, a espingarda e o gravador que interessavam sobremodo aos
Araweté - um instrumento que aumentava a produtividade da caça, e um "aparelho
ideológico" que reproduzia indefinidamente a singularidade da voz, do canto. Produção/

127
produtividade, reprodução/reprodutibilidade - Natureza e Sobrenatureza, o comer e o
cantar: os animais e os deuses.

A escrita foi, por fim, percebida por analogia, como a forma como os Araweté
(estendemos esta percepção aqui aos povos Tupi-Guarani) elaboram o conhecimento. A lógica
seria esta: assim como o antropólogo utiliza-se da escrita para “aprender a saber”, os Araweté
utilizam do tabaco e das palavras-alma para aprenderem a saber ser xamã. Desta forma,
Castro coloca este conhecimento e elaboração de si para os povos tupi-guarani muito
próximos à forma a qual nós brancos nos elaboramos e aprendemos sobre nós e nossa
cultura63. Conforme descreve:

E por fim perceberam que era "para escrever" que eu estava ali, entre eles; e que eu
escrevia "para saber-aprender" (to Koã). Certa vez, ao discutir com Toiyi sobre o modo de
"treinamento" dos xamãs mediante a intoxicação por tabaco, ele me disse que eles assim o
faziam "para saber-aprender" dos deuses. Insisti no verbo saber-aprender" (Koã), nesse
contexto particular, e ele me esclareceu: “assim como você faz com sua escrita - é para
saber-aprender, desse mesmo jeito". Eis então que, se na espingarda e no gravador os
Araweté se defrontavam com a magia da técnica ocidental, na escrita eles entreviam qual
era afinal a técnica da minha magia...” (VIVEIROS DE CASTRO, 1986, 79)

Esta fluidez, ou plasticidade que marcam a estrutura social dos povos tupi-guarani,
contrapõe-se, portanto, ao velho paradigma da antropologia: a natureza e a cultura. Viveiros
de Castro (1986, 115) considera impossível pensar a cultura Tupi-Guarani sem dar conta deste
sobrenatural como algo estruturante. A recusa destes povos à sociedade, como já apontada por
H. Clastres (1978), não deve ser tratada como ambiguidade ou ambivalência do paradigma
natureza/cultura. Este sobrenatural que em muitas análises de povos de troncos linguísticos Jê,
por exemplo, tratam de dar conta deste espaço que conecta e intercomunica estes dois pólos,

63 Conforme coloca o autor, estes buracos que os antropólogos tentam preencher a respeito da cosmologia das
sociedades tupi-guarani se assemelham mais aos nossos buracos brancos cosmológicos do que aos buracos
negros correntemente utilizados para pensarem as “sociedades primitivas”, que neste caso, partem do princípio
de oposição, no qual, criam-se artifícios para representar a elaboração da identidade, através da domesticação das
diferenças, conforme coloca: “Haveria aqui, portanto, uma inversão da representação tradicional que a
antropologia faz da "sociedade primitiva" como um sistema fechado. A visão da sociedade primitiva como um
teatro taxonômico, onde todo ente real ou conceitual encontra seu lugar em um sistema de classificação; onde a
ordem do universo reflete o ordenamento social; onde a temporalidade só é reconhecida para melhor ser
denegada, pelo mito e o rito; onde aquilo que é definido como Exterior ao social (Natureza, Sobrenatureza) é-o
apenas para contra-produzir a Sociedade, como um meio de interioridade e auto-identidade - “esta visão não se
ajusta absolutamente aos Araweté. Não pela razão óbvia que ela não se ajusta a nenhuma sociedade ‘real’ -
sabemos que as sociedades mudam, e que o tempo é sua própria substância; sabemos que as classificações são
instrumentos políticos; e que entre as normas e a prática deve haver um descolamento, ou a vida social seria
entediante e/ou impossível - mas porque os Araweté tendem para outra direção. Para usarmos uma alegoria
moderna, diria que a cosmologia Araweté e suas similares são mais parecidas com as nossos "buracos brancos"
cosmológicos que com os "buracos negros", no que estes últimos me trazem a mente a representação corrente do
"ser da sociedade primitiva". (VIVEIROS DE CASTRO, 1986, 27)
128
da natureza e da cultura, no caso dos povos tupi guarani, pelo contrário é o sobrenatural o
próprio gerador, formulador de estruturas sociais, sendo a sociedade uma margem ou uma
fronteira, um espaço precário entre natureza (animalidade) e sobrenatureza (divindade).
Onde, portanto, a pessoa não propriamente existe, ela é um devir, um entre, uma constante
transformação. Conforme elabora H. Clastres (1978) é uma lógica que recusa o princípio da
contradição, pois, ao mesmo tempo em que opõe extremos, busca torná-los compatíveis. Ou
como afirma Viveiros de Castro (1986), nem contradição, nem identidade; opor extremos para
apenas dissolvê-los enquanto extremos. É neste contexto que situa o conceito de devir como
estruturalizante para as sociedades tupi-guarani: “é um devir-outro: devir-deus, -inimigo, -
jaguar, onde se o Outro enquanto Objeto do Devir, é imaginário, o devir é real, e a alteridade
uma qualidade do verbo, não um predicado seu” (DELEUZE; GUATTARI, 1980: cap.X apud
VIVEIROS DE CASTRO, 1986, 124).

Assim é que, para entendermos a forma Tupi-Guarani, devemos nos voltar para sua
categoria da Pessoa, pois ali se divisará sua concepção de Sociedade - e se contemplará um
mundo "individualista" sem Indivíduos, e uma vontade coletiva sem Sociedade.
(VIVEIROS DE CASTRO, 1986, 127)

Compreendidos, afinal, aspectos fundamentais acerca da formas de elaboração das


estruturas que compõem o ser Guarani, voltemos nossa atenção para elaborações de conceitos
antropológicos que borram esta fronteira entre oposições e nos convoca a pensar as formas de
elaboração das sociedades que não as ditas “primitivas”.
Roy Wagner (2010), constrói a ideia de “invenção” da cultura em oposição a teorias
antropológicas que pensam as estruturas a partir do velho paradigma entre natureza e cultura e
nas quais a natureza torna-se, por assim dizer, o mal necessário. O outro, sobre o qual se
edificam as diferenças, “ou seja, aquilo sem o que a antropologia cultural simplesmente não
pode funcionar, na medida em que lhe faltaria esse seu “outro” aquele que define,
equivocadamente sem dúvida, o que a cultura elabora, interpreta, simboliza ou transcende - a
natureza.” (GOLDMAN, 2010, 196). Wagner, elabora o conceito de “invenção” em oposição
especificamente à teoria interpretativa64 proposta por Geertz (1973) e à teoria culturalista
estruturalizante elaborada por Sahlins (2003), ambos seus contemporâneos. Wagner propõe a

64Para maiores entendimentos destes conceitos ver A interpretação das Culturas (Geertz, 1973) e Cultura e razão
prática (Sahlins, 2003)
129
edificação do conceito de cultura apoiado em novos termos que borram também a fronteira da
antropologia com a a filosofia, onde muito da sua teoria apoia-se nas propostas de Deleuze e
Guattari.
A “invenção” proposta por Wagner, seria, portanto, não propriamente da cultura, mas
da própria antropologia enquanto ciência ocidental. A invenção de conceitos para dar conta de
outros conceitos. Ou seja, a desconstrução proposta por Wagner parte do próprio princípio,
seja interpretativo, seja simbolizante da cultura, que esta nada mais seria do que um
mecanismo da mente dos povos ocidentais para dar conta de outros mecanismos
estruturalizantes ou interpretativos encontrados em outros povos com diferentes tradições.
Neste sentido Wagner propõe o questionamento sobre a prática antropológica apoiada
sobre metáforas e analogias. Conforme afirma, estes são mecanismos criados exatamente para
interpretar e traduzir o diferente em termos que são próprios do pesquisador. Mecanismo este
recorrentemente utilizado pelas ciências exatas, chamado de controle, ou grupo controle. O
que Wagner propõe é algo absolutamente desconcertante. A lógica neste caso é a seguinte:
assim como inventamos, significamos e interpretamos; criamos também a antropologia.
O exercício a ser feito não é, portanto, o de encontrar aonde estas culturas se
estruturam, simbolizam e interpretam, mas como elas, portanto, se inventam e como inventam
a sua própria cultura. O que seria o mesmo que perguntar: como será que estes povos fazem
antropologia? (Se é que o fazem). O que significa interpretar, significar e simbolizar em
Guarani. Daniel Carlos (2012:340) a respeito da construção proposta por Wagner sintetiza:

“Nós” inventamos a cultura, e, num esforço de a ela conformar todos os agrupamentos de


seres humanos, suas motivações, e suas respectivas invenções, inventamos também a
Antropologia.
(...) Estendemos ao outro nossos próprios significados; a partir de nossa forma própria de
significar, inventamos novas possibilidades e aplicações para nossas categorias e conceitos,
afim de com elas explicar aquilo que experimentamos e vivenciamos durante nossa
pesquisa de campo. Inventamos analogias, e por meio delas, inventamos o outro para
nossos próprios pares.
A Antropologia de Wagner é aberta. Simétrica, ela se permite considerar nossos próprios
sistemas de motivação, explicitando-os. E admite, justa: se somos criativos, então aqueles
que estudamos “também têm de sê-lo” (WAGNER, 2010, 46). Sintagmática, reversa, ela
não nos vê apenas como “nativos”; somos antes, todos, “nós” e “eles”, antropólogos. E
desse modo, pretende-se uma ciência capaz de perceber o outro diretamente, em função dos
significados e das motivações que lhes são próprios. Uma ciência capaz de observar o
modo como eles nos assimilam, nos inventam, utilizando-se de seus próprios significados e
analogias, de sua própria forma de significar, de sua própria “antropologia”. Uma ciência,
enfim, capaz de compreender a “eles”, e a “nós” mesmos, menos como cultura e mais como
Humanos.”

130
Neste sentido o projeto empenhado por Wagner (2010) é absolutamente inovador para
pensar a elaboração deste conceito de cultura, ou para pensar o projeto de antropologia do
futuro quando propõe que a prática da antropologia deveria tornar-se uma prática reversa, ou,
antropologia reversa como sugeriu. Devemos, então, empreender a tarefa não de buscar
desvendar os mecanismos de funcionamento e sim, desmembra-los, desmonta-los e tratar de
reconstruí-los. Onde compreender a antropologia reversa praticada por outros povos, trataria
de desvendar para nós mesmos os mecanismos que empregamos muitas vezes de forma
implícita para as nossas próprias elaborações. Conforme sentencia Goldman (2010, 210):
“Perceber estes mecanismos de prática da antropologia reversa seria apenas um mecanismo
para “proteger a antropologia de si mesma”.
Assim, podemos voltar à citação de Viveiros de Castro (1986) a respeito da
observação do seu informante sobre o processo de escrita do pesquisador, quando afirma que,
aquela era a forma através da qual ele “aprendia a saber”. Ali o nativo o fez perceber não só a
forma como pratica a tal antropologia reversa, como o fez perceber como ele próprio pratica a
antropologia, assim como o nativo percebe a antropologia praticada pelo pesquisador.

131
3.2 A cosmologia fílmica dos Guarani

!
Projeção na aldeia Mbyá-Guarani Anhetenguá, da Lomba dos Pinheiros, Porto Alegre, Rio grande do Sul. Foto:
Ernesto de Carvalho, 201165

Para pensar esta produção cinematográfica realizada pelo coletivo de cinema Mbyá-
Guarani e buscar compreendê-la em toda sua complexidade, faz-se necessário desvendar o
que fazem, afinal, estes filmes tão visivelmente diferentes e, ao mesmo tempo, em profundo
diálogo com a trajetória do VNA. A sequência final da primeira parte do filme Mokoi Tekoá
Petei Jeguatá - Duas Aldeias e uma caminhada que encerra o período de imersão na aldeia
Anhetenguá, pode ser considerada paradigmática para pensarmos esta produção. Vamos a ela.
Uma mão em close mexe numa pequena roça de milho, ao fundo começamos a ouvir o
som do violão. Corte para crianças no pátio da aldeia cantando ao som deste violão
acompanhado de uma rabeca: “Queremos nossas terras de volta para construir as nossas casas
de reza”. Corte. Estas mesmas crianças estão agora em cima de um palco, vestidas com
túnicas brancas que muito se assemelham as vestes dos coroinhas da igreja católica.
Acompanhadas do violão e da rabeca seguem cantando em guarani “Queremos nossas terras
de volta para construir as nossas casas de reza”. No contra plano vemos um escasso público.
Alguns jovens da aldeia registram em seus celulares esta apresentação, que parece fazer parte

65 Imagem retirada do livro Vídeo nas Aldeias 25 anos, ver referência na bibliografia anexa.
132
de algum evento comemorativo da cidade de Porto Alegre. Muitos destes jovens tem cabelos
pintados, usam bonés na cabeça, mas também cocares e muitos estão com a cara pintada. A
câmera atenta ao público, flagra um senhor branco da platéia que dança com bastante
entusiasmo embalado ao som dos Guarani e convida em gestos a platéia para dançar com ele.
Novo corte. Estamos agora em algum restaurante self service da cidade, vemos mulheres e
crianças Guarani abastecerem (e porque não dizer abarrotarem) seus pratos com sanduíches,
pães de queijo, tortas caramelizadas e muitas coxinhas de galinha. Corta. Estamos de volta à
aldeia onde o velho xamã ao som novamente da rabeca e do violão incita os jovens a
dançarem. Estes jovens entram um a um na dança e formam uma roda quando começa uma
longa sequência do Xondaro66. Ariel surge na imagem, deixa a câmera num canto e adere
também a dança. Uma mulher comenta ao assiti-los dançar: “Quem dera fosse sempre assim”.
A dança segue, numa aparente brincadeira entre os dançantes entremeadas por uma série de
conversinhas e gritos em guarani. Ao final o velho diz: “Podia ser sempre assim para que
todos vissem como é. Essa dança nos faz tanta falta.”
O primeiro ponto que desperta interesse nessa sequência trata da tal perda da “cultura”
que logo salta a vista neste filme. Será que os guarani, por comerem coxinhas e tortas
caramelizadas, estarem de cabelos pintados e celulares na mão representando a sua “cultura”
para os brancos em cima de um palco na cidade, com vestes que fazem a nós brancos não nos
deixarem esquecer da longa história de catequese dos indígenas brasileiros, representam essa
perda ou morte da cultura, tão extensamente discutida neste universo dos filmes indígenas?
Será que estamos mais uma vez diante do fatalismo comumente atribuído aos Guarani, que
supõe que se ainda são índios em breve não mais o serão?
Vejamos esta sequência, plano a plano. A sequência das crianças cantando na aldeia
suas músicas de militância, pode ser entendida em analogia ao conceito de assimilação
destacado por Viveiros de Castro (1986) no que se refere ao contato com os brancos, a
possibilidade de atualização dos discursos e cantos xamânicos em contextos específicos. É o
devir Guarani enquanto localizados na periferia da cidade de Porto Alegre. Os quais através
dos seus cantos “tradicionais” de militância, ativam o dispositivo, eterno e constante, de
construção da Pessoa Guarani. Desta mesma forma podemos compreender a sequência
seguinte. Quando as meninas se apresentam praticamente como um coral de coroinhas no

66 Dança tradicional dos povos Mbyá.


133
palco, vestidas com suas túnicas brancas, mas cantando em Guarani suas músicas de
militância para uma platéia de outros poucos índios (com cortes de cabelos ocidentalizados
que registram em seus celulares esta apresentação). Eles não estão apenas sendo assimilados
pelos brancos, estão também assimilando os brancos. Da perspectiva de Wagner (2010) e de
Viveiros de Castro (1986), poderíamos dizer que estão, transformando estes brancos e ou, os
elementos dos brancos, em Guarani.
Quando a câmera, por sua vez, é absorvida pela presença do branco na platéia em
“transe”, com a dita apresentação, vemos o processo oposto, também destacado por Castro
(1986, 73) sobre a capacidade/vontade de sucção dos Araweté sobre os brancos, conforme
destaca: “Se ora os Araweté pareciam prestes a se atirar cegamente no mundo dos brancos,
ora pareciam exigir não menos absolutamente que as brancos ‘virassem Araweté’”. Desta
forma, a presença emblemática deste branco na platéia aparece aqui como o devir do branco
em Guarani.
Quando na sequência seguinte a câmera está em plano fechado flagrando os pratos
recheados de doces caramelizados e coxinhas de galinha, assistimos o processo de
apropriação/assimilação da cultura dos brancos pelos Guarani ao Devir, neste caso o devir-
branco. Como todo devir, é perigoso, pois, pode representar uma viagem sem volta. Um
transformar-se em branco, de tal forma assimilado que correm o risco de não mais voltarem a
ser Guarani. Transformarem-se a tal ponto, de não mais conseguirem retornar ao que eram
antes. Este processo de transformação definitiva, para os Guarani, está profundamente
associado aos excessos. Por exemplo, nos discursos proféticos dos karaís encontramos muitas
vezes a afirmação de que o consumo carne de caça67 em excesso para um Guarani pode
transformá-lo em onça. Sobre os excessos, Viveiros de Castro (1986, 23) observa: “Ascese ou
excesso: vias de acesso ao além, heterotopia fundadora da cosmologia Tupi-Guarani”. Da
mesma forma, podemos articular esta idéia com a discussão já apontada anteriormente por
Fausto (2010, 14) a respeito deste mesmo processo de assimilação da cultura dos brancos e a
possibilidade iminente de perda da “cultura” pelos kuikuro. Conforme narra,

Ao encomendar-me o registro de todos os cantos e de todas as rotinas rituais em sua precisa


ordem, o chefe Afukaká temia que, na próxima geração, não restassem senão os escombros
desse conhecimento, de tal modo que eles só pudessem “virar índios” para os brancos e já

67 O ato de caçar é muitas interpretado e associado nestes discursos ao ato sexual.


134
não pudessem mais “virar índios” para si mesmos (o que significa, no contexto ritual, virar
itseke)68.

Estes excessos, portanto, se não tratados adequadamente, correm o risco de nunca


mais voltarem a serem Guarani.É preciso, portanto, purificar, voltar ao lugar de origem, a
ascese pela qual é necessário passar para que de fato a transformação, este devir, possa se dar
na direção correta, a caminho da terra sem mal. É por isso que eles dançam. A longa
sequência de Xondaro na aldeia, que segue a estas já destacadas, representa, portanto, esta
ascese, a busca pelo devir Guarani, o devir Deus.
Esta sequência faz-se agora mais clara do que pode representar para além do sentido
da “aculturação” fatalista atribuída aos povos Guarani. E deve, sim, ser compreendida como
uma sequencia ontológica para compreendermos os significados da cosmologia Guarani.
Resume em poucas imagens uma série de questões levantadas sobre a produção deste cinema
indígena. Vejamos estas questões agora, ponto a ponto.
A primeira afirmação possível de se fazer a respeito destes filmes é que, de fato, eles
são autênticamente indígenas naqueles princípios destacados por Coutinho e Escorel, sobre o
fazer cinema, de fato, Xavante, Nambiquara ou Ashaninka. Se a questão para Coutinho e
Escorel estaria resolvida através da estética destas imagens, com planos ou cortes inusitados,
a autêncidade quando presente nestes filmes, encontra-se em outro plano. Pois, vistos sobre
este panorama cosmológico descrito acima, nada mais natural que os filmes guarani
apresentem “boas” imagens aceitáveis para um público ocidental, pois é neste eterno devir
assimilacionista que os Guarani se constroem e se reconstroem historicamente, sem jamais
deixarem de sê-los.
Por outro lado, se estivessem de fato apenas preocupados com a afirmação de suas
“culturas” no sentido descrito por Carneiro da Cunha (2009), ou seja, se o acesso a esta
possibilidade de produção cinematográfica representasse apenas a externação do ser índio
para os brancos, por oposições bem demarcadas, talvez os Guarani nunca pudessem de fato
chegar a produzir estes filmes. Pois esta representação cultural estaria fadada ao
entendimento generalizante de que estes índios não são mais índios, tanto para eles próprios
como para os brancos (não invalidando aqui a possibilidade de interpretação feita

68 Ao colocar em evidência o conceito de Itséke para os Kuikuro, Fausto (2011, 166) por fim destaca: Não seria
mais generoso, assim, apenas querer que os índios virem índios à maneira deles, mesmo quando isso
signifique ... “virar branco” mais uma última vez?”
135
possivelmente por muitos destes espectadores brancos que provavelmente tiram estas
conclusões ao final destes filmes). Mas não é disso que se trata. Através desta sequência
vemos a produção desta cosmologia e cultura em ação. De um povo que está em constante
liminaridade. São testados e passam por provações frequentes para a elaboração e construção
de suas identidades, ou como diria Viveiros de Castro, para a construção da Pessoa Guarani.
A afirmação da mulher a respeito da falta que sente daquela dança e do velho xamã da
aldeia ao final da dança, quando afirma que se eles fizessem sempre aquilo as coisas seriam
diferentes, são fundamentais para entendermos esta construção. Não negam o devir-branco,
apenas necessitam atualizá-lo constantemente através das suas próprias práticas de contato
com o sobrenatural, para que as coisas se restabeleçam, ou melhor, para que possam continuar
no devir-Guarani, que está em constante movimento e trânsito com os outros seres mundanos.
Ainda em Duas aldeias uma caminhada (2008), no início do filme (10’50”), Ariel
conversa com um homem que parece ser um cacique da aldeia Anhenguetá. O diálogo
transcrevo abaixo:

Ariel: Este filme que estamos fazendo vai ficar legal. Não sei quanto tempo vai ter mas
todos os Guarani vão poder ver. A gente tem que mostrar o que é importante, por isso tem
que ter personagem. Por exemplo, num filme, você têm que saber onde vai terminar. Pode
mostrar a aldeia a cidade, mas tem que ter uma idéia para terminar bem. Isso a gente não
definiu ainda, que personagem vamos seguir. Por exemplo, hoje filmamos o Juacinto. Ele
deu dinheiro pra comprar sacolé, a gente foi filmando o que as meninas iam fazer com o
dinheiro. Mas você passou pelo caminho, só que ali era outra história. Se eu voltasse com
você ninguém ia entender. Alí não tinha terminado a história do sacolé.

Homem: E eu só ia passando. É interessante mesmo.

(Imagens do anoitecer na aldeia ao som da rabeca e do violão)

Homem: Então temos que mostrar para os brancos como a gente vive. Mostrar a verdade.
Não somente para enganar. Porque nós aqui estamos na cidade. Porque não temos matas e
estamos com estas casas... Para que não só os brancos falem por nós e vocês mesmos
filmem o que nós realmente temos que mostrar.

Esta conversa é coberta com planos que descrevem e explicam didaticamente o


processo de fazer filme exposto por Ariel na conversa com o homem. Quando Ariel explica
sobre esta construção da narrativa fílmica, como deve proceder para que o filme funcione, a
questão de encontrar uma personagem (metodologia definida pelo VNA como primeiro
exercício de filmagem), o filme mostra como constroem estas personagens, através não só do
discurso, mas também com muitas imagens ilustrativas da ação em questão. Os primeiros
planos desta sequência demonstram, dessa forma, o empenho deste Guarani em “canibalizar”
136
este conhecimento sobre a ciência de fazer filmes. É preciso que o filme fique bom. E um
bom filme precisa seguir normas e regras apreendidos neste processo de aprendizagem
cinematográfica. É preciso saber fazer filmes como os brancos, é preciso, pois, aprender a
magia dos brancos. Um movimento de antropafagização deste saber. É este processo de
canibalização desta ciência dos brancos que Ariel explica para o homem nesta sequência.
Por outro lado, o homem traz o discurso para outro plano, o mundo dos brancos, o
mundo do contato, o mundo das diferenças, onde os Guarani se encontram numa constante
perda de territórios, oprimidos pela presença da cidade ao seu redor. Nesta conversa o homem
atualiza a discussão de Ariel e a proposta fílmica para os espaços de contato. No qual estes
filmes não são feitos apenas para os Guarani refletirem sobre as suas próprias construções
identitárias e cosmológicas, como também demonstram saberem da importância que estas
imagens terão no universo dos brancos. O homem atualiza, portanto, o discurso da militância
presente desde os primeiros filmes produzidos pelo VNA. É preciso falar por si próprio e,
para isso, é fundamental evidenciar este processo de canibalização e assimilação presente na
tradição deste povo. Pois, só assim ele será um autêntico filme Guarani.

Há outra sequência de Duas aldeias uma caminhada bastante emblemática para


pensarmos a respeito destas relações de contato, das formas de representações de ser Guarani
através do fazer (e por que não dizer do devir) fílmico. Um grupo de meninos vai à mata
pegar madeira para a produção do artesanato. A coleta desta madeira não é feita no território
da aldeia e sim dentro do terreno de uma fazenda. No caminho de volta, já com as madeiras
em posse, vêem um passarinho, pegam um estilingue e atiram no passarinho, que após
algumas tentativas, cai morto no chão. A câmera acompanha esta caça ao passarinho com
presteza e filma o momento exato da queda do passarinho da árvore - um sabiá vermelho,
conforme afirmam. Um dos meninos pega o passarinho e a câmera em plano fechado procura
junto com o atirador no corpo do passarinho morto aonde este tinha sido acertado, quando
concluem: “Acho que foi na cabeça”. Os meninos preparam uma pequena fogueira com
gravetos de árvores e ouvimos a fala em voz off: “Ilegalmente”. Começam a depenar o dito
sabiá e detalhadamente mostram para a câmera como fazem para tirar as tripas do passarinho,
quando comentam: “Os brancos vão sentir muita pena do passarinho quando assistirem isso”.
Há um corte na imagem para um plano aberto no qual vemos os meninos em volta da

137
fogueira, quando um deles exclama chamando a atenção do cinegrafista: “Câmera! Os nossos
avós assavam assim mesmo antigamente. Só que eles matavam animais maiores como tatus...
Agora estamos assando só um sabiá. Não estamos judiando do passarinho nem morrendo de
fome, só estamos mostrando como era nas matas”. Segue a esta fala imagens dos meninos
degustando o passarinho. “Muito gostoso”, exclamam. Por fim a câmera mostra uma pequena
disputa entre dois meninos pelo último pedaço.
Este pequeno trecho faz-nos pensar a respeito dessa relação dos Guarani com os
brancos, esta tensão tênue, que não pretende excluí-lo do seu discurso e nem exatamente
assimila-lo por completo. Quando as personagens propõem o diálogo com o branco através
desta câmera porta voz, eles não estão buscando convencer o branco sobre o quão forte e
presente é a sua cultura, estão exatamente mostrando ao branco a tal prática da antropologia
reversa proposta por Wagner. Ao afirmarem que os brancos sentirão pena do passarinho, ou
ainda, no início da sequência ao colocarem fogo na fogueira quando ouvimos a palavra
“ilegalmente”, eles estão colocando os brancos para pensarem através dos paradigmas
Guarani o que é ser índio na sua cultura hoje. Dando uma espécie de “dica”, sobre como os
brancos devem passar a pensar as perspectivas que norteiam as políticas públicas e as ditas
construções identitárias. Pois se não possuem terras suficientes e precisam exercer suas
atividades “ilegalmente” como cortar madeira, colocar fogo na mata e caçar fora de seus
territórios demarcados. Como os Guarani poderão produzir cultura?
Vemos uma vez mais aqui o tema palpitante do “registro da cultura”, que habita todas
as produções do Vídeo nas Aldeias, ser abordado. No entanto, estes filmes parecem colocá-lo
agora diante de uma nova perspectiva. Diferentemente das reações imediatas à câmera
encontradas nos outros filmes dos cineastas indígenas, que se movimentam para um “resgate”
e registro de tradições que não podem “acabar”. Os Guarani se apropriam profundamente
destas imagens e não tratam consertar com novas imagens até que estas “tradições” e
“culturas” sejam representadas como devem ser. Optam por dialogar com as imagens para
compreenderem quem são, onde estão e para onde vão.
Não se trata de construir uma identidade a partir do que se quer construir de ideal
identitário e sim uma tentativa de (re)construção do real para continuarem a produzir o seu
devir Guarani, que neste caso se realiza em formato fílmico. Encontramos aqui novamente a
questão da alteridade, presente indiscutivelmente em toda a produção do VNA como eixo

138
central para pensarmos a construção desta identidade indígena Mbyá Guarani. A construção
de identidade aqui se impõe como processo reflexivo, não se encerra em novas imagens. São
os tais “fragmentos de cultura” (GALLOIS, 2000) recolhidos para a digestão e reelaboração
no sentido de ser Guarani. Neste diálogo, entre a câmera e os Guarani, destinado aos brancos,
eles não pretendem construir grandes elaborações acerca desta identidade Guarani, apenas um
breve relato sobre a necessidade de tornar explícita e crítica as possíveis interpretações que os
brancos frequentemente fazem acerca da sua “cultura”. Sentirão pena do passarinho, acharão
que estamos morrendo de fome. No entanto, a mensagem destes filmes não é nem uma, nem
outra, estão apenas sendo Guarani, como há séculos vêm fazendo. Ao afirmarem que os
brancos sentirão pena do passarinho e pensarão ainda que estes povos estão morrendo de
fome, eles desconstroem as hipóteses que possivelmente podem ser produzidas pelos brancos
acerca destas imagens e inserem-nas em seus discursos dialeticamente. Produzindo, desta
forma, a dita antropologia reversa, que os serve como tática de argumentação para as
discussões políticas.
Deste modo, a militância inegavelmente impressa em todos os filmes do VNA aparece
aqui de outra forma. Nem subentendida como nos filmes dos cineastas indígenas (me refiro
aqui aos primeiros filmes realizados por estes cineastas) nas demonstrações dos seus rituais,
nem na militância explícita impressa nos filmes de Carelli, nem tampouco na militância
articulada aos discursos dos brancos impressa, por exemplo, nos filmes Ashaninka, já durante
a segunda fase de produção (depois dos pontos de cultura). Não precisam provar que plantam
para o seu consumo, ou neste caso, que caçam para a sua subsistência, pois, já não o fazem há
muitos anos, mas ainda assim plantam e caçam, e assim pretendem continuar vivendo,
enquanto possível for, caçar e plantar em suas terras. Mas, para isso, é preciso que os brancos
entendam que já quase não se pode, e se o fazem ainda hoje, fazem “ilegalmente” em terras
invadidas e contra todas as leis de preservação ambiental.
Para pensar sobre a prática da antropologia reversa neste filme, André Brasil (2012,
103) descreve uma sequência de entrevista feita por Ariel aos turistas em São Miguel das
Missões. Onde o modelo de entrevista apresentado é nitidamente antropofagizado e revertido
aos brancos para que percebam as formas como elaboram a história e a cultura de outros
povos, conforme afirma:

139
Além de “performar” reflexivamente a cultura desta ou daquela etnia, alguns filmes
são, em alguma medida, exercícios de reversibilidade (WAGNER, 2010): voltam-se
simetricamente para a cultura do branco, mostrando os equívocos subjacentes à
“imaginação” que historicamente produziram sobre os índios. Não há, nesse sentido,
como não nos referir à cena de Mokoi Tekoá Petei Jeguatá (Duas aldeias, uma
caminhada, 2008), do Coletivo Mbyá-Guarani de Cinema, na qual um dos diretores,
Ariel Ortega, entrevista o turista em São Miguel Arcanjo. Nessa sequência, o
procedimento da entrevista é acirrado, de modo que o comentário do turista sobre os
índios retorne reversamente para a própria cultura. A cena desconcerta também
porque evidencia o caráter assimétrico do procedimento da entrevista, tantas vezes
utilizado no documentário para conhecer a cultura do outro e raramente destinado
para que este outro se volte à nossa cultura. Na formulação de Ruben Caixeta de
Queiroz, o filme é “um olhar certeiro do índio sobre o olhar colonizador do branco
para o índio: são os índios que enquadram o ‘olhar do branco’ e revelam não só a
sua dimensão histórica, mas sua presença real no mundo de hoje”. (2008, 116)
Aquele que sempre foi objeto do olhar, agora olha, firmemente, o olhar de que era
objeto. Como se a câmera fosse uma “dobradiça”, que fizesse retornar o olhar àquele
que se acostumara a ser o sujeito do ponto de vista (e raramente o seu objeto): o
efeito que é, provocado pelo filme, o branco se vê – a si próprio – a enunciar sua
visão limitada (tantas vezes, preconceituosa) sobre os índios. São os brancos que
vêem então sua cultura ser colocada entre aspas. Dito de outro modo, longe de ser
um dispositivo neutro de registro, a câmera produz relação, relação polêmica que faz
circular, em mão dupla, a pergunta endereçada de um ao outro.

Esta cena é um desafio lançado aos brancos, pois, mostrando como fazem para ser
Guarani, através destas imagens, perguntam também: e agora como vocês brancos farão para
dar conta de nossa existência indígena diante destes fatos? Pois afirmando serem índios,
fazem os brancos repensarem seus posicionamentos em relação a esta realidade. Tendo em
vista que não será através de glamurosos rituais que verão a identidade Guarani representada.
E sim, através da compreensão dos brancos que, de fato, é preciso respeito no trato à
cosmologia alheia. E, para isso, faz-se necessário que os brancos repensem o que
compreendem como representação cultural. É preciso ouvir a antropologia nativa e as suas
invenções sobre si. A partir destas e de outras práticas é que os cineastas Guarani atualizam
aquilo que Viveiros de Castro (1986) chamou de “aprender a saber”. Neste caso, estes filmes
avisam, é preciso que os brancos também aprendam a saber ser Guarani.
Bicicletas de Nhanderú (2011) é um documentário dirigido por Ariel Ortega e Patrícia
Ferreira. Foi realizado pelo Coletivo de Cinema Mbyá Guarani durante a segunda oficina de
formação de cineastas indígenas oferecida pelo VNA em 2009, coordenada por Thiago Torres
e Amandine Goisbault. Este documentário pode ser descrito resumidamente como uma
imersão no universo da espiritualidade Guarani.

Em novembro de 2009, eu e Amandine Goisbault voltamos a Koenju para uma segunda


oficina com os Guarani. Quando acabamos o Duas aldeias, uma caminhada, não havia
perspectiva nem recurso para uma nova oficina. Mas a gente já sabia que o trabalho com os
Guarani tinha muita potência e Vincent reformou uma das planilhas e conseguiu viabilizar a
140
oficina. Filmar a espiritualidade Guarani já era um projeto antigo do Ariel. (TORRES in
VÍDEO NAS ALDEIAS 25 ANOS, 2011, 148)

A oficina realizada no período das chuvas, foi marcada pela presença de Tupã69 desde
o princípio. Esta divindade que representa os grandes cataclismas da terra para os Guarani,
aparece no filme mandando chuvas e trovoadas à aldeia logo nos primeiros planos. O filme
apresenta dois núcleos de personagens. Solano o karaí da Aldeia Koenju, que traz o discurso
da espiritualidade e decide construir a Opy (casa de reza) da aldeia após um sonho que teve
durante o processo de filmagem. No outro extremo do filme estão as crianças, os irmãos
Neneco e Palermo, nas suas andanças pela aldeia e arredores. Este filme circulou por muitos
festivais de cinema e ganhou alguns prêmios, entre eles o prêmio Cora Coralina no XIII
Festival Internacional de Cinema Ambiental realizado em Goiás em 2011 e o prêmio de
melhor média metragem no 3º Cachoreira Doc realizado no município de Cachoeira, na
Bahia, em 2011 (este é um festival que vem se revelando um importante espaço de exibição e
discussão para documentários no Brasil).
André Brasil (2012), em artigo publicado na revista Devires, faz uma análise
contundente e certeira acerca deste filme. Através de uma decupagem minuciosa das cenas,
propõe que só é possível a compreensão dos filmes produzidos pelo coletivo de cinema Mbyá
Guarani através de duas esferas: a do campo, ou seja, as cenas do filme apoiadas nos
discursos e nas falas das personagens. E a esfera do extracampo, aquilo que não vemos nas
imagens que seriam as realidades sugeridas e imaginadas através do campo. Desta forma,
consegue sintetizar de forma clara e certeira aquilo que o filme é. Não somente através das
imagens apreendidas no filme, mas também através de todo o universo que o filme pretende
apreender e abarcar, somente compreensíveis se atentarmos para estas esferas do extracampo.

69 Conforme relata H. Clastres (1978, 27) Tupã foi rapidamente assimilado pelos primeiros viajantes e pelos
padres catequistas como o Deus dos Tupi, que diante da ausência de adoração a divindades deste povo, que
atribuía fenômenos climáticos da natureza a esta entidade, rapidamente o associaram ao Deus católico. Por
ouvirem repetidas vezes esta palavra, em suas citações, Tupã foi facilmente identificado e assimilado ao discurso
religioso dos Jesuítas. No entanto, Clastres em sua obra trata de desconstruir esta associação para elaborar algo
que estaria mais próximo da representação de Tupã para estes povos: “Tupã nada é na criação do mundo, por
outro lado está estreitamente associado aos grandes cataclismas, que ele personifica. Se Monane é o deus
criador, Tupã é o deus destruidor. Senhor da chuva, do trovão e do raio, é ele a causa direta da destruição da terra
pelo incêndio e pelo dilúvio: O texto de Thevet não deixa dúvida alguma: foi "O fogo do céu que consumiu a
primeira terra e uma água celeste que gerou o primeiro dilúvio que nesse episódio do mito não intervenha o
nome de Tupã e a decisão de destruir a terra seja atribuída a uma vontade distinta da dele não muda nada: chuva,
trovão e raio são os atributos específicos e exclusivos de Tupã.
141
O trabalho do Coletivo Mbyá-Guarani interessa-nos particularmente, na medida em que ali
se fazem notar muito concretamente as aspas da cultura, sua reflexividade e sua
reversibilidade. Em Bicicletas de Nhanderu (2011), segundo filme do grupo, encena-se o
modo como a cultura (com aspas) dos Mbyá-Guarani se relaciona com o que está fora dela.
As aspas nesse caso menos encerram a cultura do que a tornam permeável. Em termos
cinematográficos, o campo (a vida na aldeia colocada em cena) imbrica-se ao extracampo,
tornando estes regimes densamente entrelaçados.
(...) Dedicando-se mais fortemente à dimensão espiritual da vida dos Mbyá-Guarani,
especificamente na aldeia de Koenju, em São Miguel das Missões (RS), Bicicletas de
Nhanderu é um filme extremamente simples e ao mesmo tempo intrincado em sua
escritura. Ele trama materialmente o campo a duas dimensões do extracampo: uma mítica
(ou, quem sabe, cosmológica) e outra cultural ou geopolítica.” (BRASIL, 2012, 103)

Este documentário que trouxe a produção Guarani para a cena do cinema nacional traz
uma série de elementos importantes que ressaltam muitas das características já explicitadas
acima quando acerca do filme Duas Aldeias uma Caminhada, e carrega ainda novos
elementos que marcam esta produção. Se por um lado a espiritualidade Guarani que Ariel
busca retratar encontra-se na figura de Solano, este karaí carrega em si, para além do seu
discurso, todas as idiossincrasias implícitas na constituição da pessoa Guarani e no próprio
papel político-religioso do karaí. O filme inicia com imagens de uma tempestade quando um
raio atinge a aldeia, em off ouvimos a voz de Solano: “Os tupã são assim, eles não vêm só pra
trazer a chuva, vêm também para nos proteger. Eles não caminham em vão. Pois nós não
vemos os seres que nos fazem mal. Somente eles podem ver os seres que nos fazem mal.”
Após a primeira cena da chuva há um longo plano de Solano sentado diante da câmera
em profundo silêncio. O silêncio e a meditação é processo pelo qual os karaí recebem as
palavras sagradas. Este silêncio e espaços-tempos meditativos presentes no filme trazem esta
dimensão da palavra e do discurso profético como construção e não como algo dado ou
previamente elaborado. A propósito deste silêncio presente no filme, Ariel Ortega (in VÍDEO
NAS ALDEIAS, 2011, 149) comenta: “Sempre que se chega num lugar, deve-se ficar em
silêncio. Ouvir o barulho do silêncio. No filme este silêncio também é importante.”
Ariel a partir deste trabalho passa a assumir um papel interessante nas suas produções.
Para além de cinegrafista e diretor, ele torna-se o principal interlocutor das personagens com o
filme. É com ele que vemos Solano inúmeras vezes conversando sobre as “coisas” Guarani e
explicando sobre a forma de atuação dos karaís, as dificuldades e provações pelas quais tem
que passar para que consigam alcançar seus objetivos. Solano explica a Ariel a importância
das palavras e do discurso na cosmologia de seu povo. De Solano ouvimos a expressão
Bicicletas de Nhanderú ao explicar para Ariel como se dá o processo de oratória dos karaí.
Quando perguntado se ouve ou vê os espíritos, Solano responde a Ariel: “Quando os deuses
142
falam você não vê nem escuta. O que Tupã fala, o que acontece na meditação é inexplicável.
Sem perceber as palavras chegam e são ditas por você. Nós somos uma Bicicleta dos deuses.
Nada mais que isso”.

É notável a forma cuidadosa, conscienciosa, precisa como a palavra é ali enunciada. Como
observou pioneiramente Pierre Clastres, parece haver uma preocupação rara em nomear os
seres e as coisas segundo sua natureza divina, o que resulta na transmutação linguística do
prosaico em uma Grande Fala, de notável riqueza poética: “Assim, os Mbyá falam da ‘flor
do arco’ para designar a flecha, do ‘esqueleto da bruma’ para citar o cachimbo, e das
‘ramagens floridas’ para evocar os dedos de Ñamandu” (Clastres, 2003: 179-180). Ou, no
belo exemplo do filme, o karaí70 a se auto-nomear “bicicleta dos deuses”, aquele por meio
do qual Nhanderu fala. Diríamos em complemento que essa palavra profética, cifrada,
quase secreta, “respinga” constantemente em dimensão prosaica, no solo cotidiano.
Mediado pela palavra dos rezadores – mas também em sua tematização nas conversas entre
os índios – o mito mantém os Mbyá-Guarani em convivência com deuses e espíritos, não
sem projetar em seu dia-a-dia a palavra profética, a busca pela Terra sem Males (Clastres,
1978 e 2003). Aqui, como escreve Eduardo Viveiros de Castro em sua leitura de Hélène
Clastres, a separação entre o humano e o divino não é uma “barreira ontológica infinita,
mas algo a ser superado”: a humanidade é então uma condição (não uma natureza), sendo
os homens consubstanciais aos deuses (Viveiros de Castro, 2002: 205).” (BRASIL, 2012,
104)

Solano, em outra passagem, apresenta uma narrativa sobre o comportamento dos


karaí, a necessidade que têm de meditar incansavelmente, que está ficando velho e que por
mais que ele beba “não esquece dos que o enviaram” e afirma
É, por isso, que estou construindo a casa de reza. Porque nela algum jovem poderá se
tornar rezador karaí. Eu dedicarei corpo e alma a este trabalho. É uma tarefa difícil para
homens cheios de imperfeições. Às vezes mesmo com boas intenções não cumprimos
nossos deveres. É por isso que certos karaí estão desse jeito...

O documentário parece estar em constante negociação com a comunidade, seja através


da tentativa de convencer os membros da aldeia da importância da realização do filme, seja
nas palavras de Solano, que soam como uma investida do karaí nestes jovens cineastas em
tranformar-lhes em verdadeiros karaís. Seja quando Solano toma a decisão de construir a casa
de reza durante o processo de filmagem. Se estes filmes buscam falar para alguém, este
alguém em primeiro lugar seria a própria comunidade Guarani, que como já vimos transita
entre a individualização e socialização com tamanha fluidez que seria impossível definir em
que ponto esta é uma construção social ou individual. Fato é que o filme serve como
instrumento para pensar a própria construção da pessoa Guarani para eles próprios.

70 A propósito do termo karaí, Brasil comenta: Karaí ou karaiva: Líder religioso com acentuado carisma e
religiosidade. Xamã. Hoje em dia o termo é usado com esse significado somente pelos Mbyá. Nos outros grupos,
o líder religioso é chamado de pa’i e karai passou a significar simplesmente ‘senhor ’,
‘homem’.” (CHAMORRO, 2008, 350 apud BRASIL, 2012, 104)
143
Na aldeia Solano conversa com Ariel:

Ser um karaí é muito difícil porque se você sentir vontade de matar, ou de transar, ou de
comer demais... Se comer muita carne você pode virar onça. Mesmo se preparando para ir a
morada de Deus. São muitas as tentações dos karaí. Mesmo os bons karaí podem acabar no
mal caminho tornarem-se mentirosos. São eles mesmos que levam seus trabalhos para o
mal. Até os que ajudam com o parto já não valem mais, porque querem dinheiro e isso não
existe entre os Guarani. Nós não devemos cobrar por coisas assim. E como Deus deixou,
nós temos que trabalhar para nós mesmos a vida toda. Isso vale muito mais do que
dinheiro. Nós os Mbyá convivemos num mundo de imperfeições. Nunca vamos ficar puros.
Precisamos das nossas danças na casa de reza. Com as danças e o suor tiramos as
impurezas do corpo. Só assim nosso corpo vai se limpando... Pouco a pouco.
Ariel: Então isso quer dizer que é muito difícil ser Karaí.
Solano: É muito difícil alcançar a terra sagrada. Acho que nem a geração do seu avô viu
alguém alcançar. Nem sei se algum Guarani já alcançou. Acho que ninguém chegou lá.
Uma pessoa que ainda tenha desejo sexual nunca alcançará a terra sagrada. Se você já é
uma pessoa elevada você perde o desejo sexual, teu pênis vai te servir só para urinar... E aí
você se assusta.

Por fim os dois caem na gargalhada.

As conversas entre Ariel e Solano em que “decupam” a espiritualidade Guarani,


trazem para o plano cinematográfico os principais aspectos que marcam a cosmologia
Guarani: a ascese dos karaí, a importância da dança e dos cantos para a purificação da pessoa
Guarani repleta de imperfeições, a busca incansável da terra sem mal, o papel de tupã e das
divindades nesta cosmologia e a importância da Opy como o espaço em que esta cosmologia
se atualiza e faz presente, através de longos períodos de meditação. Neste aspecto, o filme
surge, portanto, como uma atualização daquilo que foi longamente descrito por Hélène
Clastres em 1975, apoiado em relatos de viajantes, jesuítas e mais tarde por etnólogos. No
entanto, desta vez ouvimos este universo cosmológico proferido pelos próprios, conforme
menciona Brasil (2012, 105):

Eis, assim, a força da palavra guarani: por meio do discurso mítico, da palavra profética, ela
elabora o fora, projetando o dentro como cosmologia na qual a troca é valor fundamental.
Palavra que se mostra e se ouve no filme como um fiapo, como um murmúrio e que, tão
mais calmamente enunciada, mais revela seu poder de resistência.

Como já apontavam H. Clastres (1978) e Viveiros de Castro (1986), a atualização


deste discurso Guarani está em constante diálogo com a realidade mundana ao qual estão
inseridos. É por isso que destaco como um segundo aspecto desta produção e não menos
fundamental para a compreensão destes filmes o universo das festas, da bebida, dos jogos e
este eterno diálogo com o mundo dos brancos.

144
No filme há uma longa sequência onde vemos as crianças e muitos adultos da aldeia,
inclusive Solano em algo como uma festa/forró. Muitas mulheres dançando na pista e rodas
de carteados no chão onde mulheres e homens encontram-se bebendo cerveja, fumando
cachimbo e apostando dinheiro no jogo. As crianças imitam ao jogo dos adultos com dinheiro
de mentira. Solano aparece consumindo cerveja e nitidamente alcoolizado na roda de apostas.
Sobre esta cena, Brasil (2012, 110), coloca:

Se, por um lado, o filme sugere aspectos daninhos do mundo dos brancos entre os índios,
há que se notar, por outro lado, uma espécie de indigenização71 da festa, que vai sendo,
mais ou menos explicitamente, amalgamada (não sem passar por transformações) a
elementos culturais e ritualísticos indígenas. Significativo o fato de que ali esteja presente
boa parte da comunidade, as mulheres, as crianças, os jovens e os velhos. Ressaltemos, em
segundo lugar, a maneira como a festa é mostrada no filme, assumindo-se, em boa medida,
os riscos que a exposição impõe: afinal, vemos ali o próprio karaí a jogar e beber, dançando
diante da câmera. Trata-se de um gesto corajoso, que preserva, na montagem, a complexa,
contraditória e vulnerável relação que o grupo mantém com o mundo dos brancos.

Ariel aparece nas imagens contando um sonho que teve para outro velho da aldeia.
Sonhou que estavam todos bebendo num bar e que receberam pães recheados de facas no
lugar de mortadela para comerem. Os homens serviam aquilo para os Guarani para que eles
brigassem. E em meio ao sanduíche, comiam sangue. Todos começaram a briga e ele fugiu
com Patrícia (sua companheira) para longe. O velho afirma que este sonho significa controle e
se pergunta: Porque será que sonhou isso? Ariel diz que não concorda com as festas que a
maioria concorda, mas que é uma brecha para as coisas ruins. O velho então comenta: “Mas
se o cacique gosta, pode participar numa boa.” Sua afirmação parece apontar para o fato de
que se o chefe da aldeia aprova é porque também está imbuído da tarefa constante de
purificação das impurezas. Que neste caso aqui vemos realizar-se com a construção da Opy.

71 Neste contexto vale ressaltar aqui a nota de Brasil (2012, 110) a respeito do conceito de indigenização
proposto por Sahlins e todas as aspas que devem ser compreendidas quando utilizado este conceito para dar
conta de processos ocorridos em sociedades marcadas por uma série de acontecimentos históricos. No qual,
reduzir, portanto, este processo de imersão dos Guarani ao mundo dos brancos seria no mínimo leviano se não
colocada as devidas aspas para a utlização deste conceito. “Aqui, nos referimos livremente à formulação de
Marshall Sahlins (1997, 53): ‘A tarefa da antropologia agora é a indigenização da modernidade. Não estou
afirmando que a experiência etnográfica seja o único responsável pelo declínio do pessimismo sentimental. O
problema dificilmente se resolve por pura indução, e certamente algum movimento dialético ou pendular das
ciências sociais também estará envolvido nisso. E a perene relevância do contexto moral e político se manifesta
ainda através de outra ressalva indispensável: estamos falando apenas dos sobreviventes. Os sobreviventes
constituem uma pequena minoria daquelas ordens socioculturais existentes, digamos, no século XV. O que se
segue, portanto, não deve ser tomado como um otimismo sentimental, que ignoraria a agonia de povos inteiros,
causada pela doença, violência, escravidão, expulsão do território tradicional e outras misérias que a
"civilização" ocidental disseminou pelo planeta. Trata-se aqui, ao contrário, de uma reflexão sobre a
complexidade desses sofrimentos, sobretudo no caso daquelas sociedades que souberam extrair, de uma sorte
madrasta, suas presentes condições de existência.”
145
Filmada de maneira instável e desconfortável, por uma câmera ligeiramente “siderada”, a
festa na aldeia é “uma brecha para as coisas ruins”, como dirá Ariel Ortega, diretor e
personagem do filme. Aprendiz, Ariel também narra um sonho no qual os homens brancos
oferecem aos Guarani facas servidas em pratos. A festa será, portanto, esta brecha por onde
entra o fora – a cultura dos brancos, a violência que ela pode representar –, não sem o risco
de desagregação do grupo. Enquanto é do sonho, de dentro dele, que o fora (aqui mítico,
cosmológico) pode ensinar a ver e reverter essa desagregação. (BRASIL, 2012,110)

Mas o filme não se resume a estes diálogos poético-proféticos entre Solano e Ariel que
pontuam e permeiam a sua trajetória. Logo no início somos apresentados às duas crianças, os
irmãos Neneco e Palermo numa conversa com sua mãe. Sentados no chão de casa ao
amanhecer, a mãe prepara artesanato enquanto as crianças se aquecem na fogueira que a mãe
utiliza para queimar a madeira, decorando os objetos que está produzindo.

Neneco: Eu tenho muito dinheiro falso.


Palermo: Onde achou?
Neneco: Acho que é dos meninos.
Palermo: “Sem valor. Cinco reais. Banco central da criança”
Mãe: Ontem seu irmão chamou vocês para buscar lenha, mas vocês não foram. E agora não
temos lenha para o café.
Palermo: Eu vou olhar a armadilha e aproveito para trazer lenha.
Mãe: Faça isso.
Neneco: Por quanto você vai vender isso?
Palermo: Ela já falou, dez pilas. E tudo junto vai dar quanto? Cinquenta?
Neneco: Ta louco, isso não vale cinquenta centavos!
Palermo: Os brancos sempre querem pagar menos para levar mais.
Neneco: E o filho dos brancos também.

Conforme comenta Brasil a respeito da presença “desabusada” de Neneco e Palermo


no filme, esta atuação representa este contato intenso e conflitante com o mundo dos Brancos,
o qual fazem e não fazem parte os Guarani. Tornando presente aqui este extracampo que traz
muitas informações para dentro da esfera do filme, mesmo quando estas não estão evidentes,
explicadas através de imagens ou discursos.

Em Bicicletas de Nhanderu sente-se a presença de outro extracampo, este que tensiona a


cena, na forma de uma violência presente, ainda que não se faça visível, a não ser pelas
marcas que deixa no território. Ele diz respeito à vizinhança tensa com o mundo dos
brancos, tornando presente a figura da nação, da qual os guarani fazem e não fazem parte
(são e não são “contados”, em formulação célebre de Jacques Rancière, 2005 e 1996). No
caso da aldeia Koenju, tal como representada no filme, a nação menos abriga, ou se
avizinha do que cerca, cerceia, ronda, espreita. Este extracampo violento encontra na deriva
livre e desabusada dos irmãos mbyá, Neneco e Palermo, seu contraponto, sua linha de
errância. (BRASIL, 201, 107)

Neneco e Palermo saem em busca de madeira para a lenha, mas antes vão verificar se
haviam feito alguma presa na armadilha que deixaram na mata. Passam uma cerca que

146
delimita o território da aldeia, deixando claro que as atividades que saíram para praticar tem
de ser realizada em outras propriedades. Quando Palermo percebe que não há nenhum animal
capturado, começa uma espécie de encenação para a câmera, que se transforma num acesso de
fúria catártico. Fazendo referência ao desmatamento dos brancos, diz que por isso os
passarinhos haviam se mudado para outro mundo, foram extintos. “É de forma exasperada
que Palermo reage à presença invisível dos fazendeiros, que ameaçam a vida dos índios,
desmatam e expulsam os animais para outro mundo. Ainda que encenada para a câmera, a
performance ganha um aspecto terrível, desesperado, como que atravessada fisicamente pela
violência do fora” (BRASIL, 2012,108). Esta sequência termina com os meninos cantando a
música Beat it de Michael Jackson para a câmera. Neneco e Palermo seguem, então, em sua
caminhada na mata para cortar a lenha, quando encontram uma árvore derrubada:

Palermo: Olhem só cortaram uma cerejeira. Eles cortaram uma árvore que a
gente come. Todas estas árvores têm espírito. Elas não querem morrer só
que os brancos cortam com motosserra.

Ao seguir cortando a lenha desta cerejeira derrubada, Palermo re-encena algo que
parece ter sido um conflito entre os Guarani de Koenju com fazendeiros locais. Bastante
exaltado, grita: “Fazendeiro! Fazendeiro muito feio! Venha aqui com metralhadora para
matar! Quero morrer!” E comenta com o cinegrafista: “Aquele dia foi muito divertido,
saímos correndo derrubando farofa. Deram três tiros atrás da gente que pegaram nas árvores”.

Vale mencionar, nesse ponto, o papel exercido pelo fotógrafo no filme: ao mesmo tempo
em que fotografa, ele participa da cena, seja para responder a alguma pergunta das crianças,
seja para lhes chamar a atenção, quando a situação parece excessivamente arriscada. Os
meninos, por sua vez, perambulam pelo entorno, atravessam não apenas as fronteiras
territoriais, mas também os limites da cena, não se furtando a convocar a câmera,
adentrando o antecampo: “Você gravou os palavrões que eu disse ontem?” “Gravei.”
“Verdade?”. (BRASIL, 2012, 108)

Os meninos reaparecem, desta vez a caminho da casa de um branco, cruzam mais uma
vez a cerca que divide o território da aldeia. No caminho começam a dançar imitando
Micheal Jackson e aqui ouvimos uma trilha não diegética tocar a música de Beat it. Chegam,
por fim, à casa do branco onde vão comprar sabão. Uma mulher os recebe. Enquanto as
crianças aguardam o que pediram, comentam sobre a quantidade de sapatos e o fato de serem
todos feios. Pedem pão, recebem apenas um, queriam dois, um para cada um, por fim o

147
realizador diz: “Já tá bom ela já deu, vamos embora”. Outra cena: Palermo entra na escola. A
professora branca começa a ditar em voz alta o alfabeto desenhado no quadro negro. Palermo
lê tudo apressadamente e fora de compasso com o resto da turma. Revira os olhos como se
estivesse fatigado daquilo tudo. Pergunta aos outros alunos se eles já comeram, pois vê uma
menina com um copo nas mãos. Em seguida, boceja longamente diante da câmera e decide
que vai sair para dar uma volta. Quer ver como está a construção da casa de reza. O
cinegrafista o interroga: “Você está matando aula?” Palermo: “Sim estou”.
Neneco e seu irmão Palermo parecem testar todos os limites. Os descritos por Brasil:
do campo, do extracampo e do antecampo. Os limites territoriais da aldeia, os limites
“morais” das relações entre brancos e índios e, principalmente, parecem testar os limites deste
devir Guarani. São crianças que brincam de apostar dinheiro, não toleram a escola, desafiam
os brancos, dançam como Michael Jackson, tomam refrigerante e pedem pão aos brancos. Daí
nos vêm a questão: Como que se fazem, afinal, Guarani? A presença de Ariel, este realizador
cinegrafista que se torna personagem e principal interlocutor destes filmes, parece ocupar um
espaço central nesta produção. Pois é no diálogo entre ele e as crianças que vemos serem
atualizados os limites deste devir. Estão testando e pedindo os seus limites como qualquer
criança.
E se estes “desabusos” de Neneco acontecem para e com a câmera, será também
através dela que veremos representado o papel limitador e delimitador das transgressões e
devires dos Mbyá mirim. Quando a câmera exita em atravessar as cercas que demarcam as
terras da aldeia, quando encerra a conversa com a mulher branca e diz que um pão é
suficiente, vemos através de Ariel, o cinegrafista-diretor-interlocutor demarcarem-se os
limites dos excessos destes devires-brancos para os pequenos Guaranis. Ensinar, pois, os
limites destes devires é fundamental.
Não há definitivamente a ingenuidade de pensar que estas imagens serão vistas apenas
por eles próprios e que não circulará no universo dos brancos que fatalmente elaborarão
verdades acerca desta existência Guarani a partir destas imagens. Sabem, pois, perfeitamente
por onde estes filmes do projeto VNA circulam e é com todas estas informações em mente
que produziram os seus filmes. É neste sentido que Ariel explicita sua relação com o filme e o
que o levou a adotar a câmera e esta linha de construção narrativa em suas produções.

148
Meu primeiro passo como cineasta foi em Mokoi Tekoá Petei Jeguatá (Duas aldeias, uma
caminhada). Este foi um primeiro passo, mas não conseguimos falar quase nada sobre a
espiritualidade. Mas, desde o começo, meu objetivo ao trabalhar com audiovisual, o meu
sonho, era tentar mostrar toda a espiritualidade Guarani; qual a nossa visão sobre o
universo, o sentido de nossa relação com o universo. Estou conseguindo isso devagar.
Desde 2007, venho amadurecendo, me fortalecendo espiritualmente. Eu escuto muito o
meu avô também. Acho importante não somente entender a técnica, gravar, filmar. Porque
não adianta você entender essas coisas e não entender quem é você. Não adianta você
entender de toda aquela coisa e se esquecer do que você é e não saber conversar com um
Karaí, com um líder espiritual. Porque aí você vai entender toda aquela coisa, mas não vai
saber sentar na fogueira conversar com os mais velhos e as crianças. Não é apenas por mim.
Sei da importância deste trabalho para o meu povo, para as crianças. (ORTEGA in VÍDEO
NAS ALDEIAS 25 ANOS, 2011, 148)

Neste ponto vemos também representado o papel pedagógico que exerce este filme no
interior da própria sociedade. Vemos evidenciarem-se nas imagens a forma como se
constroem Guarani no dia a dia, como se dá a “magia” do Guarani, o aprender a saber ser.
Este filme pode ser visto como um exercício para a constituição da pessoa Guarani através de
um denso e complexo processo “pedagógico”72. Estas imagens são reveladoras de uma
identidade que parece ser perfeitamente assimilável e contundente e os colocam para
pensarem quem são de fato, para seguirem em sua busca deste ideal de construção da Pessoa/
sociedade Guarani.
Ao amanhecer na aldeia, os realizadores preparam a luz para uma entrevista. Uma
mulher (que posteriormente compreendemos ser a avó de um dos realizadores) comenta sobre
o dinheiro que vai ganhar com este filme. O realizador comenta que o filme anterior não deu
tanto dinheiro porque era o primeiro filme, mas que com esse seria diferente, pois eles
venderiam este filme que é “original” e não “pirata”. O realizador pergunta a avó: O que os
outros índios ganharam? A avó não entende a pergunta. O realizador então segue com a
resposta: “Ganharam reconhecimento”. Avó: “É mesmo? Eu não sabia”. O realizador: “Agora
é a nossa vez, mas tem que ficar muito bom”. Aqui, este realizador está mais uma vez
demonstrando como devem proceder para que este processo de canibalização do saber fílmico
atue no sentido desejado, o poder que um filme pode ter no sentido de tornar-se argumento e
instrumento fundamental para as suas reivindicações políticas. Sobre esta negociação em
cena, conforme assinala Brasil, é um momento privilegiado para pensarmos este dentro e fora

72Coloco aqui o termo entre aspas para compreender que esta é uma categoria branca e que não necessariamente
carregam esta mesma compreensão da palavra pelos próprios. Mas isto seria assunto para uma outra
investigação.
149
ocupado pelo cinema, pois, ao mesmo tempo em que filma a realidade, também produz novas
outras realidades.

O filme aparece como enunciação coletiva, discurso cuja autoria deve ser necessariamente
compartilhada, negociada, e cuja negociação é colocada em cena. O trabalho do cinema
precisa lidar com esse duplo lugar que lhe é reservado: de fora (mas nunca totalmente),
filma-se a vida na aldeia; mas “dentro”, o filme já é, ele, parte dessa vida – como questão
que interessa à comunidade – e, como tal, precisa filmar a si mesmo, em meio às outras
práticas. (BRASIL, 2012, 113)

Ao final desta sequência, vemos a avó e um homem trabalhando uma madeira para a
produção de algum artefato. Por fim, o realizador sai da casa e mostra à câmera o crucifixo
que ganhou de sua avó para entregá-lo ao seu filho. O crucifixo foi feito com um pedaço da
madeira da árvore que foi atingida pelo raio durante as tempestades que foram mostradas no
início do filme. Um o crucifixo talhado na madeira do raio enviado por Tupã para ser entregue
a uma criança, não poderia ser mais simbólico a respeito das formas como estes Guarani se
elaboram. São índios, são brancos, são onça, e buscam tornarem-se deuses. Estão, portanto,
neste constante processo de compreenderem-se e explicarem-se Guarani para eles e,
principalmente, para as crianças, mas também para os brancos. Este processo não se dá a
partir de oposições ou analogias, que conforme já vimos buscam igualar as diferenças. Mas
sim através das assimilações, apropriações e canibalizações que, aqui, em nada se aproximam
dos processos de aculturação ou messianismos. Estas imagens representam a própria forma
como se inventam culturalmente, compreendido aqui no sentido reverso proposto por Wagner
(2010). Esta cena demonstra o imbricado processo de construção da Pessoa para os Guarani,
nas delicadas e complexas relações localizadas nestas zonas de contato interétnico. Neste
mesmo contexto, Brasil (2012, 111) explica este processo de “invenção” da cultura Guarani
através da articulação entre os dois elementos que segundo o autor compoem o extracampo do
filme, o mítico ou cosmológico e o geopolítico ou cultural:

Afinal, o que nos parece mais rico em Bicicletas de Nhanderu é justamente o fato de evitar
o esquematismo das oposições, apostando nas metamorfoses e transformações, em uma
lógica que não é das dicotomias mas das multiplicidades: os dois extracampos – o mítico e
o cultural – vão-se atravessando, se alinhavando, se dobrando e se alienando um no outro,
ainda que sob a aparente banalidade do cotidiano e das conversas à beira da fogueira. O
raio enviado pelos espíritos transforma-se em artesanato feito pela avó; as primeiras
guabirobas colhidas pelas crianças recebem a benção antes de serem saboreadas; Michael
Jackson, figura mítica de nossa cultura, ganha imitação desabusada de Palermo e Neneco; o
sonho dos índios torna-se mutirão de construção da casa de reza; a festa noturna, filmada
em tons sombrios, se transforma em festa diurna, com direito à guerra de barro entre

150
crianças e adultos. São vários os eventos e os agentes, e são várias as relações entre os
planos cosmológico, geopolítico e o cotidiano.

Vemos o início dos trabalhos para a construção da Opy, desde a derrubada de árvores
na mata, o carregamento dos troncos feito por muitos homens até a preparação do terreno
onde será construída a casa de reza. Os primeiros pilares para a edificação da construção são
colocados e vemos Solano trabalhando com a ajuda de outros homens. As últimas sequências
do filme mostram muitas pessoas envolvidas com a finalização da Opy no processo já da
barreada (o emboço da construção feito de barro). Uma verdadeira farra se inicia no
carregamento do barro até a casa que culmina com uma grande guerra de barro entre crianças
jovens e adultos. Ao final, vemos a casa de reza finalizada e uma grande roda de Xondaro é
formada pelas crianças. Neste ponto encontramos um importante fato: a conclusão da
construção da casa de reza que se dá neste universo profundamente impregnado de
imperfeições. É o resultado deste contato com um mundo repleto de impurezas, que aqui
incluem o filme na sua relação também ambígua entre o limite de canibalizar e tornar-se o
outro, como o principal motivador que os levam a construir este espaço. É preciso canibalizar
e purificar, tudo ao mesmo tempo, numa mediação infinita deste devir que culmina com a
construção da opy, pois quanto mais se projeta, mais é preciso abster, meditar e dançar. Para
que possam seguir no seu eterno devir branco, devir Guarani, devir Deuses, e para que, por
fim, consigam aceder à terra sem mal. O filme é, em si, um devir Guarani, ele é a própria
cosmologia em ação. Nem interpretação, nem apenas representação. Um verdadeiro devir-
fílmico.

Em um dos diálogos travados na festa de “inauguração” da casa de reza, uma das mulheres
diz: “Pode parecer que fizeram isso só para o filme, mas não é assim. No final, deu tudo
certo. Eles não fizeram sozinhos, Nhanderu ajudou.” Nessa breve fala, entrelaçam-se os
vários planos do filme: o campo (a construção ficcional da casa de reza) e o antecampo (a
construção de fato, motivada ou não pelo filme); o campo (a mobilização da comunidade
para construir a casa) e o extracampo (as mensagens e o auxílio dos deuses); o extracampo
cosmológico (a demanda, anunciada por meio dos sonhos, de construção da casa de reza) e
o extracampo geopolítico (a “resposta” dos Guarani – no filme, fora do filme – à ameaça da
festa, da bebida e da jogatina). Ao final, terminados o mutirão e a festa, ainda dançando,
todos recebem a benção da avó, inclusive o diretor do filme, com sua câmera à mão.
(BRASIL, 2012, 111)

Cabe aqui retomarmos a discussão proposta por Caixeta (2008) no artigo publicado
sob o título “Cineastas indígenas e pensamento selvagem”. Neste artigo, Caixeta procura
encontrar nos filmes produzidos pelo projeto Vídeo nas Aldeias aonde e quando o pensamento

151
indígena se apropria das ferramentas do cinema para produzirem um “autêntico” cinema de
índio, utilizando por analogia a construção de Lévi-Strauss (2007) sobre o pensamento
selvagem. Conforme já destacado no capítulo anterior, a questão de Caixeta pode ser
resumida da seguinte forma: quando o cinema indígena se apropria (ou se apropriará) destes
elementos dados (bricouleur) para produzirem o seu próprio cinema? Neste sentido, Caixeta
busca compreender em que sentido/formato estes filmes produzidos pelos cineastas indígenas
podem ser vistos como filmes autênticos. Será que estes cineastas indígenas estão produzindo
um cinema indígena ou um cinema indigenizado?
Coutinho (et al in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2006) dizia gostar de ver as “impurezas”
do mundo dos brancos invadirem os filmes dos cineastas indígenas, gostava de ver, por
exemplo, as relações monetárias explicitadas na própria relação com o filme, quando os
índios cobravam para serem registrados nas imagens, mesmo que de brincadeira, ou como no
caso do Shomotsi, que recebe a aposentadoria e gasta tudo rapidamente comprando tecidos e
pagando dívidas. Coutinho afirma também gostar de ver a cultura material dos brancos
invadirem as imagens, como as bacias de alumínio, os celulares e relógios. Buscava, através
destas, compreender até que ponto esta invasão das “impurezas” eram permitidas de
participarem e permearem os filmes. A partir desta invasão das impurezas, Coutinho parecia
aprender mais sobre as culturas indígenas do que propriamente a partir das descrições
minuciosas dos rituais. E para isso pedia mais, pedia que estas cenas saíssem do segundo
plano e de fato ocupassem a cena principal do filme. Por fim, Escorel (et al in VÍDEO NAS
ALDEIAS, 2006, 43) comenta: “Acho que está ficando cada vez mais evidente que esse
documentário que o Coutinho exige que vocês façam, tem que ser feito. Pelo menos um
documentário em que esse processo, e todas essas questões… Isso, garanto a vocês, para
pessoas que trabalham nessa área, é fascinante, importante…”
Ao retomarmos as questões levantadas por Coutinho e Escorel, nos encontramos com
uma questão que faz-se necessária: a atualização deste panaroma a partir da produção do
coletivo de cinema Guarani Mbyá. Nestes filmes parece que vemos os anseios de Caixeta,
Coutinho e Escorel convergirem para um mesmo ponto. Se por um lado Caixeta tenta
enxergar onde e como estes cineastas indígenas se apropriam destas ferramentas para
produzirem um cinema autêntico, Escorel e Coutinho tentam responder a esta pergunta

152
através da estética destas imagens, supondo que este cinema autenticamente indígena ainda
não foi produzido.
No entanto, quando as tais “impurezas” de Coutinho invadem a cena do cinema
Guarani e os vemos neste processo intenso de canibalização destas ferramentas e
conhecimento, percebemos que este autêntico cinema indígena acontece exatamente aí. Não
exatamente como uma bricolagem, através da rearrumação de informações e dados, proposto
por Caixeta, que sugere a construção de um mosaico de informações sobrepostas. Mas sim,
neste próprio processo de assimilação e tentativa de fazer um cinema palatável a todos os
públicos. Os Guarani, portanto, precisam canibalizar esta “magia” do branco para que
possam, de fato, aprender a saber fazer cinema. Brasil (2012, 116), na conclusão de seu artigo
“Bicicletas de Nhanderú: Lascas do extracampo”, propõe que esta autenticidade do cinema
Guarani talvez esteja localizado exatamente nesta capacidade de reelaboração desta tradição
“escópia ocidental”, assim como vêm fazendo com outras tradições desde que temos notícias
destes povos. É a partir desta tradição cosmológica de assimilação e antropofagização que
este cinema consegue de fato assumir novas perspectivas73 e que a tradição do cinema parece
se (re)inaugurar. É neste processo de canibalização que os cineastas Guarani constroem seus
autênticos filmes indígenas.

Arrisquemos, por fim, uma hipótese: é como se o cinema indígena re-elaborasse a tradição
escópica ocidental a partir de sua própria cosmologia, de sua própria perspectiva; como se
os Guarani, ao acolher o cinema, continuassem agindo como outrora, quando acolhiam as
religiões trazidas pelos missionários sem perder sua condição de “incrédulos”: continuam
incrédulos, ainda depois de crer 74. Acolhem-se as tecnologias, as poéticas e as categorias
vindas do cinema – aquelas em que o dentro e o fora se definem, ainda que não
absolutamente, pelo enquadramento e pelo campo – e reelaboram, reinventam estas
categorias em suas próprias práticas. Ao afirmar uma “incompletude ontológica essencial”,
a filosofia indígena subordina o interior e a identidade à exterioridade e à diferença,
prevalecendo-se, nesse caso, o devir e a relação ao ser e à substância (VIVEIROS DE
CASTRO, 2002).

73 A expressãoperspectivismo deve ser entendida aqui no sentido elaborado por Viveiros de Castro (2002). Sobre
a elaboração deste conceito para os povos ameríndios, no qual resumidamente sugere que a cosmologia dos
povos ameríndios só pode ser compreendida a partir de dois princípios, o primeiro é que todos os seres são
dotados de consciência e cultura, onde cada uma das espécies vê a si própria como humanos e as outras todas
como não-humanos, que seriam representados como animais ou espíritos.

74 O autor refere-se aqui à leitura do Sermão do Espírito Santo (de Pe. Antônio Vieira), por Eduardo Viveiros de
Castro. “Entre os pagãos do Velho Mundo, o missionário sabia as resistências que teria que vencer: ídolos e
sacerdotes, liturgias e teologias – religiões dignas desse nome, mesmo que raramente tão exclusivistas como a
sua própria. No Brasil, em troca, a palavra de Deus era acolhida alegremente por um ouvido e ignorada com
displicência pelo outro. O inimigo aqui não era um dogma diferente, mas uma indiferença ao dogma, uma recusa
de escolher.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, 185).
153
(...) Trata-se então efetivamente de alargar, ou mesmo recriar, a imaginação limitada que
abriga nossas expectativas de inclusão (ou de exclusão, como se percebe ainda em muitos
discursos) da cultura indígena: para incluir esta “cultura” e o cinema produzido por ela não
seria preciso, paradoxalmente, reinventar – como eles o fazem na prática – a própria
categoria da inclusão?

Voltemos agora brevemente ao filme Duas aldeias uma caminhada. Na cena final
deste documentário, Ariel e Patrícia, ao final de um dia intenso de filmagens nas ruínas de São
Miguel das Missões acompanhando a venda de artesanato pelos Guarani das aldeias de
Koenju e Anhenguetá, os grupos de turistas atentos às explicações dos guias locais brancos e a
interação entre os turistas e os Guarani no momento das vendas, constatam que uma das
senhoras não estava se esforçando para vender. E muitas vezes, quando perguntada sobre o
preço de alguns de seus produtos dizia: “Não, este não está a venda”. Ariel por fim comenta:
“Hoje eu percebi o que acontece aqui. É chocante mesmo. Experimente vir sem vender e só
ficar observando. Aí você vai ver como o rosto dos Mbyá muda.” Vemos aqui o processo de
construção fílmica reflexiva destes cineastas que elaboram dentro da própria cena o processo
do fazer fílmico e refletem sobre suas posições diante do mundo a partir da mis-en-scène.
Nesta constante elaboração de si, percebemos que esta canibalização não compõe apenas este
devir-branco, devir-fílmico. O processo de canibalização aqui impõe uma outra condição, a
mesma descrita por Lévi-Strauss (2004) quando afirma que existem comidas boas para
pensar. Neste processo de canibalizar a ciência de fazer filmes, através desta prática
cosmológica antropofágica dos Guarani, estes filmes são, essencialmente, “bons para pensar”.
A câmera aparece aqui novamente como um terceiro elemento em cena, que
intensifica e enquadra a performance, dando uma visão ampliada e destacada de situações não
apenas para o espectador, mas também para os realizadores que podem, a partir deste
enquadramento e deste terceiro elemento, assistirem e comentarem esta performance numa
posição que os coloca como liminar. Ou seja, nem dentro, nem fora; nem ativo, nem passivo.
São os elementos da mis-en-scène que compõem a cena do filme. Conforme destacou Brasil
(2012, 111), são os elementos do extracampo invandindo a cena a partir deste enquadramento
e deste olhar da câmera, são as tais lascas do extracampo. “Tudo isso se complexifica quando
não negligenciamos a mediação do filme, seu trabalho de mise-en-scène e montagem, por
meio do qual estas relações se traduzem em termos de campo e extracampo.” Sobre a
presença da câmera no universo Guarani, Ariel comenta:

154
Ariel: A gente não escolhe o personagem, a gente não fica dizendo a vamos fazer isso, vai
surgindo o personagem. Mas todos os personagens parecem que já sabem muito bem o que
é o filme, então isso ajuda muito. Esse filme que a gente tá finalizando agora, os meninos
principalmente, tem alguns meninos que a gente vai filmando e eles ficam brincando com a
gente, só que sem olhar para a câmera, “cuidado não vai filmar sem som”, essas coisas,
então eles já tão muito dentro, mas sem dar muita importância, levando na brincadeira.
Então até quando a gente tá filmando, por exemplo uma vez no Bicicletas de Nhanderú, um
karaí, um líder espiritual ele fica assim, a gente tá filmando e ele bem profundo, olha lá no
fundo da lente, essas coisas sabe, ele se relaciona, ele tá sabendo, não vê uma câmera como
uma coisa muito estranha que é ruim, eu acho que é isso que a gente tenta fazer um pouco,
a própria câmera é um pouco guarani também. Nós queremos transformar um pouco
também essa ferramenta, essa coisa material do ocidental, quando isso tá na aldeia a gente
transforma isso, como uma outra pessoa, que é guarani também. Então mesmo assim, as
crianças, mulheres ou os velhos, não ficam assim muito desconcentrados porque tem uma
câmera, eu é que to com a câmera e a câmera também é guarani. Então é mais ou menos
isso.75

Tava, a casa de pedra (2013) é o último filme produzido pelo coletivo de cinema
Mbyá Guarani, finalizado em 2012. O filme foi realizado dando continuidade ao processo de
inventariação realizado pelo IPHAN em parceria com as lideranças Mbyá Guarani do Rio
Grande do Sul. O documentário é como uma continuação/atualização desta busca de Ariel em
trazer os assuntos da espiritualidade Guarani para as esferas fílmicas. Os realizadores, Ariel
Ortega, Patrícia Ferreira, Vincent Carelli e Ernesto de Carvalho percorrem muitas aldeias
Mbyá desde a Argentina até o Rio de Janeiro ao encontro dos velhos karaís, para que eles
comentem sobre o significado das reduções jesuíticas, especificamente, sobre o sitio
arqueológico de São Miguel das Missões, para os Guarani Mbyá. Visitam museus e
construções erguidas em homenagem aos mortos na Guerra Guaranítica e novamente trazem
para a cena, o exercício constante da antropologia reversa. Neste filme, Ariel e Patrícia
assumem uma função central de interlocutores das personagens para buscarem compreender o
que estas ruínas representam na memória e construção cosmológica dos Guarani.
Em um evento realizado pela New York University entre os dias 03 e 05 de Outubro
de 2013, para celebrar os trinta anos do Vídeo nas Aldeias76, Ariel comenta sobre o processo
de produção deste filme e seus objetivos enquanto realizador de cinema:

75 VIDEO IN THE VILLAGES / Vídeo nas Aldeias: Celebrating Three Decades of Indigenous Filmmaking in
the Amazon: Screenings and discussions with Amazonian filmmakers celebrates three decades of Indigenous
media making from this ground breaking Brazilian collective. (http://www.crmnyu.org/event/video-in-the-
villages-celebrating-three-decades-of-indigenous-filmmaking-in-the-amazon/)

76 VIDEO IN THE VILLAGES / Vídeo nas Aldeias: Celebrating Three Decades of Indigenous Filmmaking in
the Amazon: Screenings and discussions with Amazonian filmmakers celebrates three decades of Indigenous
media making from this ground breaking Brazilian collective. (http://www.crmnyu.org/event/video-in-the-
villages-celebrating-three-decades-of-indigenous-filmmaking-in-the-amazon/)
155
Na verdade esse filme a gente queria colocar muito mais coisas. Só que a gente tinha um
prazo para terminar em tal momento então a gente queria viajar para o Paraguai também,
mas não conseguimos porque tínhamos um prazo para terminar o filme. Tem outro filme
que mostra um pouquinho sobre a nossa relação guarani com aquelas ruínas, aquela
construção que nós chamamos de Tava 77.
A gente fez esse segundo filme que fala sobre isso também, porque é uma coisa tão
complexa para os guarani que a gente tinha que ter pelo menos um ano filmando e falando
com outras pessoas do Paraguai. Então era um filme muito complicado. Porque a gente
quer continuar fazendo, ainda não está daquele jeito que é mesmo. Porque envolve também
todo o processo político que aconteceu lá nas Missões, tanto na Argentina no Brasil e no
Paraguai.
Mas além disso, para nós os Guarani não é nada disso sabe, é uma coisa mais profunda, fala
muito sobre a espiritualidade de seguir esse caminho para alcançar a terra sem mal. Então
isso não é tão simples de mostrar no filme quando você tem um prazo.
Mas já deu pra mostrar bastante, porque os Guarani, nós estamos nas ruínas. Sempre ali.
Muitos turistas vão lá, têm as pessoas que trabalham ali e eles contam a história de outra
forma é a história da visão do historiador. Então nunca vê a realidade de hoje, qual é a
nossa relação, por que a gente está lá. Então eu queria explicar um pouquinho sobre isso
mesmo.
Foi importante fazer o filme apesar de não estar completo como a gente queria, foi bom
para que tenham mais respeito com os Guarani porque a gente sofria muito preconceito.
Porque os Guarani estão lá, as pessoas não tinham noção de por que estávamos lá. De
alguma forma tínhamos ligação, principalmente os mais velhos, que sempre vêm lá do
outro lado do rio, da Argentina para pra ficar ali, para sentir alguma coisa que eles têm, que
aconteceu no passado porque os grandes karaí estiveram ali. E eu acho que é isso, por isso
também que (durante o filme) viajamos bastante, mostrando Argentina, São Paulo, Rio
Grande do Sul... Porque o filme para os Guarani fala muito da caminhada mesmo. Então
faltou um pouquinho mais caminhar.78

Este filme, para além de todas as características já extensamente comentadas a respeito


desta produção cinematográfica realizada pelo coletivo de cinema Mbyá Guarani, noto como
destaque nesta produção mais uma atualização (ou devir) desta cosmologia para dentro da
própria esfera fílmica representada neste constante caminhar do filme. Que para os Guarani
representam algo marcante em sua tradição, conforme já visto extensivamente, é neste
caminhar, conforme afirma H. Clastres, para se alcançar a terra sem mal que se realiza a
religião Guarani. No filme, os realizadores caminham, atualizam esta caminhada
ancestralmente realizada por este povo, para encontrar respostas à representação simbólica
das ruínas de São Miguel das Missões. Caminhar para encontrar com os grandes karaís que
podem falar a respeito do significado deste lugar, mas também para compreender o que fez
com que os Guarani caminhassem até ali. E, principalmente, caminhar porque somente
caminhando podem compreender o que representa o próprio caminhar.
Vemos mais uma vez nesta produção a cosmologia Guarani impressa no filme, não
somente através do discurso, mas na forma fílmica e no processo de feitura do mesmo.

77 Este filme a que Ariel refere-se é Desterro Guarani, de 2011, realizado por Patrícia Ferreira e Ariel Ortega.

78 https://vimeo.com/81409549
156
Quando Ariel afirma que o filme não está pronto, pois deveriam caminhar muito mais, revela
um dado fundamental deste fazer, ou melhor, deste devir fílmico. Assim como H. Clastres e
Viveiros de Castro já haviam afirmado, esta é uma caminhada sem fim, é no próprio percurso
que se atualizam e se constroem enquanto sociedades e indivíduos Guarani. Este é o devir.
Durante o evento de Celebração dos três décadas de Vídeo nas Aldeias promovido
pela NYU, Carelli comenta sobre a tradição nômade dos Guarani no contexto de políticas de
demarcação de terras indígenas no Brasil e as dificuldades encontradas por estes em dar
legitimidade aos seus territórios no atual contexto das políticas para a demarcação de terras
indígenas no país:

O povo guarani é o povo excluído do Brasil, porque mesmo com a constituição não foram
reconhecidos os seus direitos a terra, porque a constituição diz que para ser território
indígena a terra deve ser permanentemente ocupada pelos indígenas e os Guarani estão
sempre em movimento, dessa forma o tempo passou e eles acabaram ficando sem nada.
Este é o sexto filme que produzimos com eles. Para fazer entender que há um mal
entendido sobre a civilização. Essa visão mística sobre a terra que a terra não pode ser
apropriada pelas pessoas, a terra é algo divino, de todos e nesse processo eles foram
deixados sem nada. Então quando o ministério da cultura decidiu reconhecer a versão
Guarani sobre os fatos históricos sobre as missões jesuíticas e a Guerra Guaranítica no
século XVIII, para nós foi uma proposta muito generosa e nós estávamos muito
entusiasmados em fazer esse filme e sabíamos disso através do Ariel e da Patrícia e todos
os jovens que estão trabalhando conosco.”79

Conforme destacou Macedo (2009, 298), esta incompatibilidade da lógica de


representação cultural entre brancos e guarani é algo que historicamente presenciamos nas
políticas públicas voltadas a esta população:

Desde a época do SPI até os projetos de hoje, ou do discurso da “integração à comunhão


nacional” até o discurso das “culturas como patrimônio nacional”, os Guarani continuam se
havendo com a imposição de modelos juruá, antes para que viessem a ser e agora muitas
vezes para que voltem a ser o que nunca foram. Davi Yanomami disse aos brancos: “o que
vocês chamam de meio-ambiente é o que resta do que vocês destruíram” (apud ALBERT,
2001a, 259), e talvez os Guarani dissessem isso em relação ao que os juruá chamam
“cultura”. Mas, assim como o SPI nunca conseguiu estancar os deslocamentos Mbyá, os
atuais projetos e políticas tampouco, e cada vez mais vão sendo reformulados para tentar se
adequar, sempre de modo incompleto, à fluidez de pessoas, posições e disposições entre os
Guarani.

Este filme de autoria assumidamente compartilhada introduz novos elementos nesta


produção do VNA. Tava é assinado por brancos instrutores do projeto VNA e por cineastas
indígenas. Apesar de não ser o primeiro filme de autoria compartilhada realizado pelo projeto,

79 VIDEO IN THE VILLAGES / Vídeo nas Aldeias: Celebrating Three Decades of Indigenous Filmmaking in
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Mari Corrêa já havia inaugurado este movimento em Pirinop, Meu Primeiro Contato. Que, no
entanto, não é um filme realizado em contexto de oficina, foi um projeto compartilhado com
um realizador indígena com o qual havia desenvolvido uma parceria e encontra uma série de
especificidades na sua produção que estão fora da esfera deste contexto de formação. Por
outro lado, já refletimos sobre a experiência da autoria compartilhada em As Hiper Mulheres
(2009), fruto de uma longa pesquisa dos antropólogos Carlos Fausto e Bruna Fanchetto que se
inicia anos antes da chegada do VNA aos Kuikuro e sobre o qual já destacamos suas
especificidades no capítulo anterior.
O documentário com sua autoria compartilhada perece representar um “outro tempo”
neste contexto, que talvez esteja mais próximo daquilo que Escorel (“Conversa a cinco” in
VÍDEO NAS ALDEIAS, 2006, 35) também reivindicava, quando questionara a ausência da
assinatura dos cineastas indígenas na montagem dos filmes. “Se é um projeto em que eles
aprendem a usar a câmera e passam a ser diretores é importante indicar que eles participam da
edição. A meu ver, isso não diminui em nada a importância e a contribuição de quem estiver
ali como editora ou como editor.” Compreender, portanto, o papel que cada um destes
instrutores ocupam nestes espaços de formação e também compreender qual o papel que cada
um destes cineastas indígenas ocupam no processo de produção destes filmes faz-se de fato
uma questão relevante. Aqui mais uma vez se faz notar este amadurecimento do projeto,
especificamente no que se refere ao processo de produção dos filmes realizados no contexto
de formação destes cineastas. Parece que mais uma vez vemos os “toques” dados por
Coutinho e Escorel, para que esta produção pudesse provocar o impacto esperado, seja no
público branco ou indígena, surtirem efeitos. Carelli, a respeito desta produção compartilhada
em Tava, a casa de pedra comenta:

Eu acho que esse filme é muito significativo no processo do projeto Vídeo nas Aldeias, ele
é todo colaborativo entre índigenas e não indígenas. Eu particularmente sou fascinado pelo
povo Guarani, mas eu nunca acessaria todos esses pensamentos. Então esta é realmente
uma colaboração com este casal. Eu não sei se vocês sabem, mas todos os velhos que
entrevistamos tenham passado em algum momento pela história do avô do Ariel. Ele é um
líder muito importante na Argentina, então Ariel tinha os créditos para chegar em um curto
tempo e fazer ficarem disponíveis para falarem de uma história tão particular que é a
religião. Nessa produção, Ernesto e eu contribuímos com nossas habilidades em fazer
filmes, mas Ariel e Patrícia têm uma participação muito específica. Todo mundo neste
grupo tem contribuições muito específicas para fazer o filme. Na realidade toda a produção
do Vídeo nas Aldeias é feita em colaboração. Eu nunca vou me esquecer George Stoney
quando voltou do Brasil ele disse “quando eu cheguei lá eu constatei que o país é

158
construído junto. Então é isso. Isto é sobre como o Vídeo nas Aldeias trabalha, uma
colaboração entre índios e não índios.80

Se nos propusermos o mesmo exercício feito por Ariel e o coletivo de cineastas


Guarani Mbyá de produção de uma antropologia reversa, utilizando-nos dos mesmos
referenciais bibliográficos com os quais elaboramos esta construção da Pessoa Guarani ao
longo deste capítulo e estendermos este olhar ao branco, à cosmologia e à cultura do branco,
perceberemos rapidamente que o Brancos ocidentais de tradição judaico/cristã também
constroem-se socialmente a partir de uma perspectiva completamente assimilacionista. Ou,
conforme destacou Viveiros de Castro (1986), perceberemos que os buracos negros
cosmológicos dos Tupi-guarani estão muito mais próximos dos buracos cosmológicos
brancos, do que de fato deste buraco negro que se espera encontrar na cosmologia dos povos
ameríndios. Desta forma, façamos um exercício de elaborar a seguinte construção: se estes
brancos (nós indivíduos inseridos nesta sociedade ocidental judaico/cristã), podemos
consumir artesanato indígena, comida japonesa, porcelana chinesa e continuarmos a sermos o
que somos, com nossas identidades bem delimitadas e, mais do isso, nos tornarmos “cultos”
no sentido de estarmos cheios de “cultura”, significa que também estamos neste processo
antropofágico e de canibalização das coisas “boas para pensar”. Ser, neste sentido, é uma
relação antropofágica de transversalidade das diferenças, onde ser é estar em relação com o
Outro. Estes brancos que compõem a equipe do Vídeo nas Aldeias, sabem, portanto, que um
Guarani pode comer comida japonesa, frequentar o museu do Louvre e consumir porcelana
chinesa que ainda assim serão Guarani.

Ernesto: Como eu mencionei no início, esse filme é muito diferente dos outros filmes que
estão saindo neste contexto e essa diferença é o resultado da expressão de um desejo de
fazer um filme sobre um assunto que é muito difícil de colocar em imagens eu acho. É um
assunto que passa através da cabeça das pessoas, que é muito complexo, é muito
complicado de traduzir mesmo em palavras muito mais em imagens, é um filme
particularmente difícil. Eu acho que quando nós nos envolvemos com a complexidade e
quando vemos como esta é uma questão crucial para as pessoas envolvidas, começamos a
perceber que o filme, com a forma que ele tem, que ele tem essa necessidade e esse valor, e
mesmo esse valor do filme é algo que precisamos considerar também dentro da
comunidade e das pessoas que estão retratadas. Os Guarani são um povo profundamente
filosóficos e as questões nesse filme não são apenas questões, no sentido de serem dúvidas,
elas são verdadeiros dilemas, são questões verdadeiramente perturbadoras, são verdadeiras
questões. Tendo participado da realização deste filme eu posso dizer que estas questões que
me fizeram perder o sono muitas noites após uma das entrevistas, não era apenas talvez isso

80 VIDEO IN THE VILLAGES / Vídeo nas Aldeias: Celebrating Three Decades of Indigenous Filmmaking in
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talvez aquilo, eram questões profundas e que nos deixaram impressionados ao longo da
produção do filme, e por isto continuamos impressionados. Estes sentimentos de fato
permaneceram durante a realização.81

Neste sentido podemos entender este Cinema Guarani realizando dois dos principais
pedidos de Coutinho, são filmes autenticamente indígenas, assim como se apresentam como
um cinema autêntico, inaugurando, de fato, uma nova forma de fazer cinema. São os Guarani
fazendo cinema e antropologia Guarani, assim como são brancos fazendo cinema e
antropologia Guarani, bem como são os brancos e os índios fazendo cinema e antropologia de
branco. Os filmes realizados por este coletivo, carregam escolhas estéticas profundamente
inseridas nas escolhas e caminhos traçados pela antropologia e pelo cinema documental
contemporâneos. E parecem, de fato, atravessar a fronteira que marca os estudos etnológicos
que se resumem a nós e eles. Trata-se, de fato, de uma construção cultural a partir de
fronteiras transculturais fluidas e profundamente borradas.

81 VIDEO IN THE VILLAGES / Vídeo nas Aldeias: Celebrating Three Decades of Indigenous Filmmaking in
the Amazon: Screenings and discussions with Amazonian filmmakers celebrates three decades of Indigenous
media making from this ground breaking Brazilian collective. (http://www.crmnyu.org/event/video-in-the-
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160
POSFÁCIO
AS NOVAS DIRETRIZES DO CINEMA DO VNA

Durante a minha estadia em Olinda, no meu breve campo, nas conversas com Thiago e
Ernesto, muito se falou sobre a autoria destes filmes, a vontade destes novos instrutores de
inserirem as produções do Vídeo nas Aldeias na cena cinematográfica brasileira e,
principalmente, na pernambucana, que nos últimos anos vem apresentado uma safra
riquíssima de filmes. Muitos deles, realizados por alguns do colaboradores mais recentemente
envolvidos com o projeto, como é o caso de Gabriel Mascaro82, Marcelo Pedroso83, Leonardo
Sette e Thiago Torres (que conquistou o prêmio principal do Festival de Brasília com O
Mestre e o Divino em 2013).
Ao analisarmos extensivamente esta produção do Vídeo nas Aldeias ao longo destas
três décadas de trabalho, percebemos que a partir dos anos 2000 muitas coisas mudaram no
percurso deste projeto. Por um lado, encontraram a verdadeira “vocação” do projeto, na
formação dos Cineastas indígenas, conforme assinala Carelli (CARELLI in VÍDEO NAS
ALDEIAS, 2004, 7):
Para mim, a passagem de realizador para professor foi extremamente estimulante. Hoje
temos o privilégio de compartilhar a intimidade das cenas que eles filmam e nos mostram e
podemos observar como cada povo responde de uma maneira particular aos exercícios
propostos. O processo de tradução das falas e dos depoimentos que eles recolhem nas suas
línguas nos revela toda uma nova compreensão de suas respectivas culturas. Nunca aprendi
tanto sobre cinema e sobre os povos com os quais trabalhamos. É gratificante ver que as
sementes que plantamos germinaram e passaram a dar seus próprios frutos. É gratificante
ver que o projeto finalmente encontrou a sua vocação.

82Vive e trabalha no Recife, Brasil. Pesquisa a negociação do poder em suas mais diversas manifestações. Entre
o cinema e as artes visuais, seu trabalho já circulou na 31ª Bienal de São Paulo, no Guggenheiem, o Museu de
Arte Contemporânea de Barcelona, no MOMA Documentary Fortnight - Nova York, AB4 Bienal de Atenas, 32º
Panorama da Arte Brasileira – MAM SP, Videobrasil, e esteve em importantes festivais de cinema como
Locarno, San Sebastian, IDFA, BFI Londres, IFFR - Roterdã, CPH:DOX, Oberhausen, Clermont Ferrand,
BAFICI, Miami e Indielisboa, e teve destaque nas revistas Screen International (UK), Sight&Sounds (UK),
IndieWire (USA), Variety (EUA) e Cahiers du Cinema (FRA). Mascaro esteve no Programa de Residência
Artística Videobrasil /Videoformes - Clermont Ferrand (FRA) e foi premiado com mais uma residência no
Wexner Center for Arts - Ohio (EUA). http://pt.gabrielmascaro.com/Bio

83 Entre os filmes que realizou estão os longas “KFZ-1348″ (Prêmio do Júri – Mostra de São Paulo) e
“Pacific” (Melhor longa no CineEsquemaNovo) e os curtas “Câmara Escura” (Melhor filme no Curta Cinema –
RJ) e “Corpo Presente” (Melhor montagem na Mostra de Londrina). Atualmente trabalha na realização do longa-
metragem “Brasil S.A.” e desenvolve mestrado em cinema documental pela Universidade Federal de
Pernambuco. http://www.aicinema.com.br/professor/marcelo-pedroso/#sthash.2enxyEaI.dpuf
161
Parece que o amadurecimento desta forma física dos filmes em si demoraram um
pouco a aparecer, fruto naturalmente da necessidade de construção e adequação de uma
metodologia, mas também de perceberem em que sentido deveria caminhar este
“amadurecimento” estético neste contexto de formação.
Por outro lado, o projeto que há vinte anos vinha contando com o financiamento
sistemático através da embaixada da Noruega, com a saída de Mari Corrêa do VNA teve este
orçamento cortado pela metade. E ainda, com a guinada do projeto na direção de focar as
atividades na formação dos cineastas indígenas, o projeto multiplicou e acumulou ações e este
patrocínio fixo, que no passado conseguia financiar praticamente 100% das atividades do
VNA, deixou de ser suficiente. Desta forma, a busca por recursos em editais públicos,
articulações entre instituições privadas e trabalhos de contrapartida social são uma constante
para a sobrevivência do projeto.
Por alguns anos o VNA pôde contar com o financiamento dos editais dos pontos e do
pontão de cultura, mas ao término deste programa em 2008, o VNA se insere definitivamente
nas estratégias de financiamento de grande parcela das produtoras de cinema do Brasil, que se
restringe quase que exclusivamente à captação de recursos em diversos setores através de
editais públicos. Foi assim com as oficinas de formação com os Mbyá Guarani, foi assim
também com o financiamento dos filmes As Hiper Mulheres (2009)84, O Mestre e o Divino
(2013)85 e com Iaraueté: cachoeira das onças (2010). Recentemente, em Agosto de 2014, o
Vídeo nas Aldeias teve alguns projetos aprovados através do 7º edital do programa de
fomento à produção audiovisual de Pernambuco, o FUNCULTURA 2013-2014. O projeto do
documentário A transformação de Canuto, de Ernesto de Carvalho, foi aprovado com
orçamento de R$ 254.877,60 para a produção e finalização do longa metragem que terá a
direção compartilhada com Ariel Ortega. Vincent Carelli e Wewito Piyãko. Também neste
mesmo edital aprovaram o projeto de realização do documentário Antônio e Peti, com
orçamento aprovado de R$ 71.990,45.

84 O filme contou com o patrocínio do IPHAN através do edital de seleção de projetos técnicos para o apoio e
fomento ao patrimônio imaterial. E ainda com apoios do Museu do Índio, Ministério do Meio Ambiente, através
do Projeto Demonstrativo de Povos indígenas (PDPI), CNPQ, FAPERJ, FINEP e do Programa Cultura Viva,
através do Ponto de Cultura na aldeia Ipatsé.

85 Realizado com o patrocínio da Fundação CSN através do Programa “Histórias que Ficam”.
162
Mas não somente através do financiamento feito por editais públicos vêm
sobrevivendo a militância e a produção do Vídeo nas Aldeias. Em 2013, Vincent Carelli
decidiu partir em busca de outras estratégias de financiamento para a realização do
documentário Martírio, através da estratégia de Crowdfunding, ou, em português,
financiamento coletivo86. O filme trata do massacre que vêm ocorrendo aos índios Guarani
Kaiowá do Mato Grosso do Sul por latifundiários monocultores de soja da região87. A respeito
desta nova forma de realização Vincent comenta em entrevista concedida a revista Carta
Capital88:

Essa é minha primeira experiência na área do crowdfunding, foi a nossa única saída. Depois
do desmonte da política revolucionária do Gil e Juca no Ministério da Cultura ficamos com
o varejo dos editais de companhias, que certamente não vão financiar um filme como esse.
Começamos por conta, mas já gastamos muito e acabaram-se nossos recursos e ainda tem
muito trabalho pela frente. E não é só o filme “Martírio”, a proposta é equipar os
acampamentos em situação de risco e permanente ameaça, para que eles possam revelar

86 Estratégia de financiamento coletivo (crowdfunding) consiste na obtenção de capital para iniciativas de


interesse coletivo através da agregação de múltiplas fontes de financiamento, em geral pessoas físicas
interessadas na iniciativa. É usual que seja estipulada uma meta de arrecadação que deve ser atingida para que o
projeto seja viabilizado. Caso os recursos arrecadados sejam inferiores à meta, o projeto não é financiado e o
montante arrecadado volta para os doadores. No Brasil, o site mapadocrowdfunding.tumblr.com faz um
mapeamento colaborativo das plataformas de crowdfunding existentes no país. Um aspecto comum a iniciativas
de crowdfunding é a concessão de recompensas aos financiadores, em escala proporcional à grandeza do
incentivo concedido. As recompensas estão de certa forma associadas ao objetivo final, mas isso não é
necessariamente uma obrigação: a captação de recursos para a realização de um filme, por exemplo, pode prever
recompensas como fotos das locações nas quais a obra será rodada. (http://pt.wikipedia.org/wiki/
Financiamento_coletivo)

87 As terras dos Guarani Kaiowá começaram a ser ocupadas pelos brancos no início do século XX. Entre 1915 e
1928, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI, órgão federal criado em 1910) demarcou pequenas reservas
destinadas ao recolhimento de milhares de Kaiowá que viviam em seus territórios tradicionais, no sul do estado
de Mato Grosso do Sul. Enquanto eram confinados na pequena área demarcada, suas terras sagradas eram
expropriadas por fazendeiros e comercializadas pelo Governo Federal, num processo que acarretou a dizimação
de centenas de comunidades indígenas. Era prática comum aos novos fazendeiros, apoiados pelos militares do
SPI, deportar os Guarani Kaiowá para o confinamento sempre que estes davam continuidade às caminhadas
sagradas de seus ancestrais, em seus territórios tradicionais (progressivamente desmatados para dar lugar à
criação de gado e à monocultura). Frente à falta de perspectivas, enclausurados num pedaço de terra sem
qualquer relação com sua ancestralidade, em meio a uma natureza degradada, sem condições para a manutenção
de sua cultura e de seu modo de vida, os Kaiowá iniciaram uma penosa sequência de suicídios. Os sobreviventes
indígenas ficaram sem terras, abrigados em acampamentos nas margens das rodovias, ameaçados pelos
pistoleiros das fazendas. Isolados nesses pequenos espaços, os idosos estão morrendo, as crianças encontram-se
desnutridas e doentes, as lideranças foram assassinadas e os que restaram continuam a viver sob ameaças.
É nesse contexto de absoluto colapso da existência, e impulsionados pela prática dos rituais religiosos Jeroky
Guasu, que os pajés e líderes políticos Guarani Kaiowá resolvem lutar, de forma sistemática, pela retomada de
uma parcela de seus territórios sagrados. Nos últimos 30 anos, eles passaram a investir em táticas pacíficas de
reocupação das terras, mas, até os dias atuais, apenas mil hectares foram recuperados, enquanto quarenta
lideranças Guarani Kaiowá foram assassinadas e os mandantes e autores dos crimes continuam impunes. (http://
www.cartacapital.com.br/blogs/blog-do-milanez/martirio-um-filme-que-o-brasil-precisa-ver-7549.html)

88Publicado em 20/11/2013. http://www.cartacapital.com.br/blogs/blog-do-milanez/martirio-um-filme-que-


o-brasil-precisa-ver-7549.html
163
para o Brasil o que eles estão passando. Agora tem outro aspecto muito interessante, foi a
sociedade civil que levou o governo a uma tentativa de negociação com os ruralistas. A
grande corrente que se formou nas redes sociais em torno da causa Guarani Kaiowá, e de
tantas outras pelo Brasil afora, Belo Monte, Terena, Munduruku, Tupinambá, é uma coisa
inédita. E o crowdfunding é justamente isso, estar informando essa rede do que acontece no
Brasil profundo, fazer com que ela participe, porque não podemos mais contar com a
grande mídia que defende a ideologia das elites e é profundamente anti-indígena.

O financiamento coletivo deste filme foi um sucesso, o período da campanha era de


sessenta dias, o valor solicitado de financiamento era de R$ 80.000,00, que de acordo com o
orçamento correspondia a 47% do custo total do projeto. O restante do montante, R$
90.000,00 já havia sido previamente investido pelo Vídeo nas Aldeias com recursos próprios
nas seguintes etapas já concluídas do projeto: duas etapas de filmagem no Mato Grosso do
Sul, primeira etapa de tradução do guarani para o português, digitalização do material de
arquivo (Umatic, S-VHS, Betacam), organização e consolidação do material filmado na
plataforma de edição, início da pesquisa de acervo de noticiários de TV e pronunciamentos na
Câmara Federal e no Senado. Através do site de financiamento coletivo catarse89, o projeto
alcançou 107% de sua meta, arrecadando de 990 doadores R$ 85.910,00. O projeto visa não
somente a finalização do documentário Martírio mas também a realização de oficinas de
formação de cineastas indígenas e a implementação de equipamentos de registros e produção
audiovisual nos acampamentos localizados em áreas de intenso conflito. O filme está em fase
de realização.
Há ainda um importante canal que foi aberto pelo Vídeo nas Aldeias, inaugurado partir
da fase de formação de Cineastas Indígenas e que começou a ganhar grandes proporções
dentro do projeto VNA. A produção de material didático sobre o universo indígena para
distribuição nas redes de escolas públicas e privadas, voltados principalmente ao público
infantil e viabilizado através do Programa Petrobrás Cultural. Este material foi editado por
Vincent Carelli, Ernesto de Carvalho, Rita Carelli90 (Filha de Vincent com Virgínia Valadão) e
Ana Carvalho91, esta colaboradora do Vídeo nas Aldeias há alguns anos, trabalha no
desenvolvimento de projetos, pesquisa e redação de textos e, recentemente, tornou-se membro

89 http://www.catarse.me/pt/kaiowa#about

90 Rita Carelli é escritora e ilustradora, atriz e diretora. Nasceu em São Paulo, em 1984, e viveu parte de sua
infância entre os índios, de uma aldeia a outra, acompanhando seus pais em filmagens e pesquisas.

91 Ana Carvalho é formada em Rádio e Televisão pela UFMG, com pós-graduação em Jornalismo. Desde 2001,
atua como educadora em projetos de formação em mídia comunitária e cinema junto a jovens da periferia de
Belo Horizonte e comunidades indígenas. Compõe a diretoria da Associação Filmes de Quintal e é uma das
curadoras do festival Forumdoc.bh.
164
do conselho diretor da instituição. Sobre esta produção voltada à jovens estudantes, Carelli (in
VÍDEOS NAS ALDEIAS, 2011, 51) comenta:

Sabendo que os filmes dos índios permitirão um acesso mais direto à realidade indígena
contemporânea, o Vídeo nas Aldeias tem voltado grande parte de suas energias na produção
de filmes e livros didáticos para escolas. Em 2010, o Vídeo nas Aldeias fez um projeto
piloto, subsidiado pela Petrobrás Cultural, distribuindo três mil kits pra três mil escolas no
Brasil com uma coletânea de 20 filmes da coleção “Cineastas Indígenas” e um guia para
assessorar o professor no uso e nas discussões dos filmes em sala de aula. Esperamos agora
trabalhar, com o apoio da UNESCO, numa compilação de filmes sobre crianças indígenas
para o jovem público escolar... É preciso criar no país um ambiente mais favorável em
relação aos índios, e permitir que eles, nos lugares mais distantes do Brasil, deixem para
trás a vergonha de ser quem são, a vergonha pela qual muitos tiveram de passar em
gerações passadas, e passar ao orgulho de ser brasileiro, pertencendo a um povo indígena
específico!

Recentemente foi lançado pela editora de livros Cosac Naif a coleção “Um dia na
aldeia”. Uma coleção de três livros com histórias adaptadas de filmes do projeto Vídeo nas
aldeias com temáticas voltadas para o público infantil e/ou com histórias narradas por
personagens infantis92. Esta coleção conta também com o patrocínio do programa Petrobrás
Cultural 2013 e, assim como a coletânea Cineastas Indígenas, foi editado por Ana Carvalho e
Rita Carelli.
Por fim, notamos também que os filmes do projeto Vídeo nas Aldeias, ampliaram seus
espaços de exibição, não somente no que se refere aos festivais de cinema, que deixaram de
circular somente no circuito restrito de festivais de filmes documentários etnográficos ou com
temáticas ambientais e passaram a circular nos mais importantes festivais de cinema do Brasil
e do Mundo. Mas também conquistaram espaço de exibição na TV. Um exemplo foi o
Program A’Uwe93, apresentado pelo ator Marcos Palmeira, produzido pela TV Cultura e
veiculado para todo Brasil através de rede de TV pública nacional, a TV Brasil, entre junho de

92 O título dos livros são: A história de Akykysia, O dono da caça – Um dia na aldeia Wajãpi, Das crianças
Ikpeng para o mundo – Um dia na aldeia Ikpeng, Depois do ovo, A guera – Um dia na aldeia Pnanará. Há ainda
a previsão de lançamento em 2015 de mais três títulos que completarão a coleção: A história do monstro Khápty,
No tempo do verão e Palermo e Neneco, ambientados nos povos indígenas Kisêdjê, Ashaninka e Mbya-Guarani.

93 Produzido pela TV Cultura de São Paulo, A’Uwe exibe documentários sobre as diversas etnias indígenas
espalhadas pelo Brasil e produções sobre povos nativos do mundo todo. A série pretende atingir um público
amplo e levantar o debate sobre temas relacionados à forma como os índios vivem hoje. Realizados por
documentaristas ou pelos próprios índios, os programas aproximam o público dos rituais, conflitos, das tradições
e histórias das diferentes etnias do Brasil. Além disso, A’Uwe também leva o telespectador a diversas regiões do
planeta, para mostrar a singularidade de cada etnia e a forma como países e governos lidam com os povos
nativos. Essa diversidade instiga a refletir, por exemplo, sobre a convivência entre o moderno e o ancestral, ou
sobre a tecnologia e a natureza.(http://www.tvbrasil.org.br/auwe/sobre/)
165
2008 e Dezembro de 2009. O programa apresentou 40 títulos do catálogo de filmes do VNA e
contou ainda com a participação de muitos cineastas indígenas como entrevistados.

Vinte anos atrás, os filmes que a gente produzia eram recusados pela televisão pública: não
eram do formato adequado, não tinham a duração certa para a grade, não possuíam a
linguagem própria da televisão. Nos últimos três anos, trazido pelos bons ventos da
valorização da diversidade cultural, surgiu o programa Auw’ê de documentários sobre a
realidade indígena. Apresentado pelo ator “global”, Marcos Palmeira, o programa da TV
Cultura exibiu e reprisou 40 títulos do nosso catálogo. Difundido em horário nobre, todo
domingo, às 18 horas, os nossos alunos, Brasil afora, nos davam testemunhos sentindo a
repercussão dessa difusão. Ser descoberto pelos seus vizinhos com os quais convivem há
décadas, sem ter jamais tido a oportunidade de se conhecerem realmente. Muitos
telespectadores escreviam para o site do programa, comentando e parabenizando pela
iniciativa. Imaginem então a emoção dos moradores das aldeias que tiveram seus filmes
exibidos em cadeia nacional! Infelizmente, com a mudança de direção, a TV Cultura
encerrou o programa Auw’ê, e assim, os índios se viram excluídos da televisão brasileira, já
que essa era a sua única janela. (CARELLI in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2011, 50)

Atualmente este panorama começa novamente a se reconfigurar, a nova legislação


brasileira para TVs por assinatura94 aprovada em Agosto de 2011 pelo Congresso Nacional,
determinou, entre outras ações, que os canais pagos destinassem no mínimo três horas e meia
diárias à exibição de produções nacionais. Neste contexto, podemos hoje ver os filmes
produzidos pelo VNA circulando ainda em uma outra esfera da TV brasileira, nos canais por
assinatura que destinam sua programação a um público que busca especificidade na
programação.
A partir deste breve panorama feito sobre os atuais contextos de produção do VNA e
ambientes de circulação desta produção, percebemos que este, mais uma vez para além do
alinhamento com as diretrizes políticas vigentes, acompanha também as tendências
contemporâneas no que se refere à captação de recursos - tanto no contexto de editais
públicos, como a partir de estratégias demandadas à sociedade civil. E, aqui, reencontramos
mais uma vez a militância do projeto imbricada nas suas estruturas.
Por outro lado, esta verve à educação, para qual o projeto voltou-se a partir do final da
década de 1990 e o qual Carelli afirma perceber ser o “caminho natural” ou a “verdadeira
vocação” do VNA, trazem novamente esta trajetória em plena sintonia com os rumos da
política e desenvolvimento do país de forma ampliada. Visto que este caminho de “oficinas” e
o empoderamento das populações historicamente impossibilitadas de darem voz a si próprios

94Lei da TV Paga 12.485/2011 aprovada no Congresso Nacional em agosto de 2011 e passou a vigorar a partir
de 02 setembro de 2011. (http://www.ancine.gov.br/sala-imprensa/noticias/nova-lei-da-tv-paga-estimula-concorr-
ncia-e-liberdade-de-escolha)
166
se dá através da via da educação. Seja através do vídeo, da imagem, ou da escrita. Quando
vemos que muitos destes cineastas indígenas também fizeram as suas trajetórias pessoais
voltarem-se para as vias da educação, seja como educadores/ professores indígenas, seja como
monitores de oficinas da nova geração de cineastas e mesmo na busca dos seus próprios
aperfeiçoamento técnico. Cito aqui como exemplo o caso de Takumã Kuikuro, que recém
concluiu a formação no curso de montagem e edição de imagem e som na Escola de Cinema
Darcy Ribeiro, no Rio de Janeiro, com duração de dois anos e meio e que atualmente trabalha
também como monitor de oficinas de vídeo.
O que pretendo destacar aqui é o quanto esta militância política associa-se ao
desenvolvimento educacional, não necessariamente através da inserção destes atores políticos
no sistema tradicional de ensino, mas muitas vezes através de vias de aprendizagem que eles
próprios ajudaram a construir e elaborar. Nesta perspectiva da educação, é como se os
indígenas desvendassem e se apropriassem, de fato, da magia do branco, enquanto o Vídeo
nas Aldeias percebesse que a magia não está exatamente na apropriação e elaboração da
imagem, mas no próprio processo que chamamos de educacional ou pedagógico. Portanto, o
conceito de “aprender a saber” aparece aqui novamente como fundamental, pois foi nesta
demanda de aprender a saber que este caminho se tornou uma via de mão dupla entre brancos
e índios que pretendem escrever suas trajetórias a partir de agora sob novos paradigmas. E
onde brancos engajados podem aprender a saber como fazem os índios e índios podem
aprender a saber como fazem os brancos, para, quem sabe, a política indigenista brasileira
possa caminhar num sentido da democratização de fato.
Todas estas questões extensamente levantadas ao longo deste texto, me levam a pensar
sobre uma discussão proposta por Gersem Luciano Baniwa95 na conferência “Os

95Gersem José dos Santos Luciano, indígena do povo Baniwa, é professor da Faculdade de Educação da UFAM,
admitido por concurso em novembro de 2009. Nos últimos dois anos e meio esteve cedido ao Ministério da
Educação, no qual exerceu a função de coordenador da Coordenadoria de Educação Escolar Indígena da
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI). Retornou à UFAM em
maio desde ano, para atuar como professor do Curso de Licenciatura Formação de Professores Indígenas, da
FACED. A tese do Prof. Dr. Gersem José dos Santos Luciano, intitulada “Educação para manejo e domesticação
do mundo: entre a escola ideal e a escola real. Os dilemas da educação escolar indígena no Alto Rio Negro”, foi
elaborada sob a orientação do Prof. Dr. Stephen Grant Baines recebeu Menção Honrosa na edição 2012 do
Prêmio Capes de Tese, por indicação da Comissão da Área de Antropologia/Arqueologia. (http://
www.ufam.edu.br/index.php/comunicacao/92-tese-de-professor-da-ufam-e-premiada-pela-capes)
167
Antropólogos Indígenas: desafios e perspectivas”96 da qual participou na 29ª Reunião
Brasileira de Antropologia. Gersem inaugurou sua fala com o seguinte questionamento: na
sua opinião, esta conferência não deveria ser intitulada antropólogos indígenas, mas sim
indígenas antropólogos. Pois do seu ponto de vista, a sua identidade indígena sobrepunha-se à
sua profissão de antropólogo. E a antropologia é, para ele, o instrumento encontrado para dar
conta das demandas de realização deste Ser indígena para seu povo no contexto político atual.
Neste mesmo sentido podemos pensar esta produção realizada no contexto de formação dos
cineastas indígenas ligados ao projeto Vídeo nas Aldeias. Se invertermos as ordem das
palavras e colocarmos estes como indígenas cineastas, talvez muitas coisas se esclareçam a
respeito desta produção, visto que esta formação está intensamente ligada à articulação desta
formação e afirmação de identidades indígenas no atual contexto político.
Ainda sobre a 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, no simpósio “Povos isolados e
de contato recente: políticas públicas e experiências de proteção”, Terri Aquino97 apresentou
um caso recente de contato de índios isolados com jovens antropólogos da FUNAI, que
registraram todo o processo de tentativa de comunicação com estes índios em vídeo.
Estas imagens caíram nas redes sociais e provocaram grande alarde a respeito do
despreparo destes antropólogos em lidar com a situação. Terri comenta os desdobramentos e
repercussões que estes primeiros contatos causaram na região. O caso aconteceu na Aldeia
Simpatia da Terra Indígena Kampa, com índios isolados do Alto Rio Envira, no Estado do
Acre, na região de fronteira do Brasil com o Peru. Os jovens antropólogos da FUNAI
contaram com a ajuda dos Ashaninka, que colaboraram na comunicação gestual e no sentido
de acalmar os ânimos deste encontro. O primeiro contato com os índios isolados, sem auxílio
de intérprete, foi estabelecido pelo índio Fernando Kampa de forma pacífica. Os Ashaninka
da Aldeia Simpatia se aproximaram e os isolados gesticulavam pedindo a calça de um

96 Conferência ocorrida em 04 de agosto de 2014 em Natal/ RN. Conferencistas: Gersem Luciano Baniwa
(UFAM) e Tonico Benites (Guarani-kaiowá, Doutor em Antropologia Social pela UFRJ instituição onde hoje
realiza seu pós doutoramento). Apresentação: João Pacheco de Oliveira (MN-UFRJ).

97 Graduado em Antropologia pela Universidade de Brasília (UNB). Em meados dos anos de 1970, iniciou sua
pesquisa de campo junto aos Kaxinawá, índios seringueiros acreanos, o que resultou em sua dissertação de
mestrado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, também pela UNB. Antropólogo da Fundação
Nacional do Índio (FUNAI), Terri foi o primeiro profissional da área a subir vários rios do Alto Juruá para
realizar levantamentos socioeconômicos e fundiários sobre os povos indígenas do Acre. A partir de 2009, Terri
passa a se interessar por populações indígenas isoladas. Desde então, realiza oficinas de informação e
sensibilização sobre esses povos em tribos e comunidades de moradores brancos que compartilham seus
territórios com as populações isoladas. A finalidade é harmonizar o convívio na região dos altos rios acreanos,
localizada na fronteira Brasil-Peru.
168
servidor da FUNAI, que se aproximou juntamente com os Ashaninka apenas de cueca. Os
Ashaninka ao transmitirem estas imagens e sons para outras aldeias da região, receberam o
comunicado por rádio de Zé Correia, da etnia Jamináwa, que se disponibilizou a ajudar na
tradução, identificando a língua falada por estes isolados como pertencentes a um subgrupo
do tronco linguístico Pano. Zé Correia foi posteriormente contactado pela FUNAI e solicitado
para que ajudasse na tradução destes diálogos, para que enfim pudessem compreender as
condições em que este contato estava sendo realizado.
Terri utiliza-se deste evento para concluir, dentre uma série de outras discussões, que o
trabalho do antropólogo em campo, se antigamente era a realização de pesquisas, onde
compreende-se entrevistas, imersão, etc., hoje em dia isto já não faz mais sentido, pois,
conforme afirma, o trabalho do antropólogo em campo hoje é de realizar oficinas. No sentido
de que se oferecem ferramentas para que os indígenas possam realizar os seus próprios
processos e trabalhos antropológicos.
Seguindo a mesma lógica de canibalização das ferramentas e instrumentos oferecidos
pelos brancos no caso dos cineastas indígenas, este processo de realização antropológica se dá
em parceria e de forma compartilhada, antropofagizada nos dois extremos, traçando um
caminho de transversalidade cultural entre brancos e índios que devem estar em profundo
diálogo e articulação. Penso que desta mesma forma devemos compreender a autoria
compartilhada deste cinema realizado pelo Vídeo nas Aldeias.

Todas as vezes que projetamos o programa (de índio) nas aldeias, os olhos da
audiência brilharam de satisfação. O professor indígena Leonardo Tukano, do Rio Negro,
me disse a este respeito: “De todos os filmes de índio que nós passamos para os alunos, foi
o Programa de Índio que gerou o maior interesse. Meus alunos não querem nem ouvir falar
em tradição, para eles isto é a encarnação do atraso. Nem os pais dos alunos querem que
seus filhos “andem para trás”. Mas um índio apresentador de televisão, repórter,
cinegrafista, despertou neles um súbito interesse: então era possível ser “moderno”,
“civilizado”, e ser “índio” ao mesmo tempo! (CARELLI in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2004,
28)

169
CONCLUSÃO

Ao chegar ao fim desta trajetória do Vídeo nas Aldeias, através deste recorte por três
tipos fílmicos, que atravessam as três décadas de atuação do projeto cronologicamente,
percebemos que estes filmes acabam por construir também uma trajetória da imagem do índio
no Brasil de forma ampla. Atingiram os órgãos governamentais, atingiram pesquisadores
interessados nas questões indígenas, atingiram cineastas interessados nas formas de
representações implícitas ao documentário e atingiram as crianças e adultos no âmbito
educacional, alunos e professores, indígenas e brancos, brasileiros e estrangeiros.
No primeiro capítulo vimos a construção desta tática, os primeiros impulsos, a tática
de guerrilha, representada não só na forma de se posicionar politicamente naquele período de
transição democrática do país, como também algo que se passa antes mesmo do próprio
projeto acontecer. A militância indigenista engajada no período de ditadura militar e privação
de direitos indígenas, brancos, enfim, um período como dizia Ailton Krenak (apud
GONÇALVES, 2010, 41) que representou “o tempo excessivo de proibição de tudo”. Quando
a abertura política se torna uma realidade, retoma-se diálogo sobre os direitos constitucionais
civis, naturalmente a “cultura” daqueles que lutavam ainda está impregnada desse belicismo
imposto pelo período militar. O que de fato ainda fazia-se necessário visto que esta “cultura”
da ditadura não estava apenas impregnada aos que militavam, mas também aos que
representavam os poderes constitucionais na época, assim como a todos que estavam
subordinados a este poder. Foi elaborada a nova Constituição, mas era necessário ainda mudar
a própria cultura para que a legislação pudesse passar a vigorar de fato.
No segundo tempo do projeto VNA, com o início do processo de formação de
cineastas indígenas, percebemos que esta nova legislação passa a ser absorvida então pela
“cultura”, e os direitos indígenas passam a circular também nesta nova esfera de “constituição
cultural”. Neste sentido, aquela militância da década anterior surge neste momento nas
imagens que agora evidenciam as formas de representação e afirmação de identidades. Neste
movimento de ampliação dos direitos constitucionais era necessário, então, fazer-se índio para
que estes direitos pudessem valer também para os indígenas. Neste momento, aprender a
manipular as ferramentas produtoras de imagem tornava-se urgente.

170
Mas é no terceiro tempo do projeto VNA, com os filmes dos cineastas Guarani, que
vemos os frutos colhidos por esta apropriação de conceitos e ferramentas dos brancos. Se no
momento anterior (na primeira fase de formação dos cineastas indígenas) não existia um
questionamento de fato destes conceitos, era, portanto, sim ou não, quero ou não quero,
vemos neste momento a reelaboração deste processo, tanto de apropriação de direitos, como
de conceitos como educação e cultura de fato reverberarem num sentido para além da
burocracia do mundo legislativo e dos projetos. Estes filmes apresentam-se como questões a
serem discutidas e não como fatos dados. Neste momento, vemos como se dá, de fato, esta
apropriação e reelaboração de conceitos para que façam sentido não apenas no âmbito
institucional, mas, principalmente, que façam parte da elaboração das demandas sociais e das
constituições do ser.
Neste processo vemos revelar-se o que Vincent Carelli atribuiu à verdadeira missão do
projeto, a educação. Notamos que estes resultados vieram através de um amadurecimento do
entendimento a respeito do conceito de educação. Compreendemos também que, se há uma
defasagem histórica no que se refere aos direitos indígenas, este é fruto de uma relação
também histórica de hierarquia e sobreposições de valores. Compreender a “invenção das
culturas” é sobretudo um amplo e inesgotável exercício de aprendizado e, como vimos, o
processo educacional é lento e gradual. Leva-se tempo para “saber aprender”. Desta forma,
este deve ser compreendido também com um processo inacabável, um eterno Devir.
Ao chegar no final deste texto, pareço agora encontrar o início de tudo ou me
encontrar nesta história. Em 2004 tive os primeiros contatos com estes filmes indígenas, neste
mesmo ano iniciei também um processo de aprendizagem pessoal e profissional. Entre 2004 e
2007 trabalhei e fui sócia da ONG Nós do Cinema, este era um projeto que (nesta época ainda
engatinhava no mundo dos projetos) oferecia oficinas de audiovisual para jovens moradores
de comunidades de baixa renda no Rio de Janeiro. O projeto nasceu com o término das
filmagens do filme Cidade de Deus e contava com parcerias bem interessantes na sua
execução, os cineastas Katia Lund e Fernando Meirelles foram dois pilares da construção
desta história, que nasceu do desejo de algumas das personagens dos filmes (jovens “atores
não atores” moradores de favelas cariocas). O Grupo Estação de Cinema abrigava-nos no
prédio de seu escritório localizado na rua Voluntários da Pátria, no bairro de Botafogo, zona
sul do Rio de Janeiro. Os alunos vinham de todas as partes da cidade para fazerem suas

171
formações. Foi lá que percebi o poder da imagem e da linguagem audiovisual. Foi lá que vi
muitos destes jovens se transformarem em editores, atores, fotógrafos, designers,
historiadores e cineastas. Lá também conheci o mundo dos projetos, os processos de
apropriação da “cultura” e dos projetos educacionais para além dos espaços formais das
escolas. Depois desse período trabalhei em alguns outros projetos educacionais que
utilizavam as ferramentas audiovisuais destinados a jovens moradores de periferias urbanas.
Passei a coordenar o projeto educativo da Mostra Internacional do Filme Etnográfico e
realizei um documentário no Complexo do Alemão.
Quando em 2012 elaborei este projeto de mestrado, meu principal questionamento era:
Será que a “magia” que se dá partir do uso da imagem, no sentido de apropriação e elaboração
de identidades e invenções culturais a partir da utilização de ferramentas (re)produtoras de
imagens, que vejo acontecer nestes contextos de periferias urbanas, se dá da mesma forma em
contextos indígenas? Minha busca era compreender se estes indígenas realizadores se
impregnavam desta cultura visual tal qual via acontecer com estes jovens de periferia. Meu
objetivo era compreender qual era, afinal, o poder da imagem que colocava tantos universos
distantes em articulação, através de uma mesma linguagem: a cinematográfica.
Ao chegar ao final deste trabalho, verifico que a imagem em si, sem dúvida é uma
variável importante neste contexto de produção, que certamente merece uma discussão
amplificada e pormenorizada, a qual infelizmente não me coube aqui. Pois diante da extensa
reflexão e análises em pormenores que estes filmes produzidos pelo projeto Vídeo nas Aldeias
solicitam, não restou espaço neste trabalho para que o foco da discussão se desviasse.
Ao relacionar, portanto, esta minha trajetória e inquietação acerca destas produções
audiovisuais “periféricas” com os filmes realizados pelo projeto Vídeo nas Aldeias, se
justifica não propriamente na imagem em si, como havia imaginado quando propus este tema
como projeto de pesquisa, mas exatamente no que vem antes da realização desta. Que poderia
aqui ser resumidamente apontada como a magia descrita por Viveiros de Castro (1986) do
“aprender a saber”. Construção de identidade e cultura não podem ser respondidas e
elaboradas através de questionários de múltipla escolha, é preciso repensar as formas como se
aprende e se elabora o conhecimento nestes contextos de assimilação, transversalidade e
multiculturalismo. O ponto em comum destas duas trajetórias não está, portanto, somente na
imagem, antes dela encontramos a demanda pedagógica. O que liga, portanto, estas duas

172
questões é exatamente o desejo de “saber aprender” o Outro: brancos, índios, negros,
favelados, etc. Aqui a imagem surge como linguagem acessível a brancos e índios neste
processo pedagógico que possibilita a criação cultural e social através de uma ferramenta que
certamente merece uma análise melhor prestigiada no futuro. Pois resta ainda responder a
pergunta, porque através da imagem?

173
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2006. Sobre processos de “ambientalização” e dos conflitos e sobre dilemas da
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Porto Alegre.

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2004. O cru e o cozido: Mitológicas I. São Paulo: Cosac Naify.

2007. O Pensamento Selvagem. Campinas: Papirus Editora.

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2009. Nexos da Diferença: Cultura e afecção em uma aldeia guarani na Serra do
Mar. Tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
São Paulo.

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2009. Exposições e invisíveis na antropologia de Lux Vidal. In Revista de
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1976. Argonautas do pacifico ocidental: Um relato do empreendimento e da
aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné melanesia. São Paulo: Abril
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177
MONTE-MOR, Patrícia e PARENTE, José Inácio (Org.).
1994. Cinema e Antropologia, Horizontes e Caminhos da Antropologia Visual.
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2013. O cinema indigenizado de Divino Tserewahú. Dissertação de Mestrado no
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1979. La caméra et les hommes. In: FRANCE, Claudine. Pour une anthropologie
visuelle. Paris, La Haye, New York: Mouton Éditeur.

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1997. O pessimismo sentimental e a experiência etnográfica: por que a cultura não
é um objeto em via de extinção (parte l), 41-73. Rio de Janeiro: MANA.

2003. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

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2010.Ponto de cultura: o Brasil de baixo para cima. São Paulo: Ed. Anita
Garibaldi.

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1986. Os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
2002. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify.

WAGNER, Roy.
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2011. Ashaninka. In: Vídeo nas Aldeias 25 anos: 1986-2011 (Org.) Ana Carvalho
Ziller Araújo, pp. 70-91. Olinda.

178
REFERÊNCIAS FÍLMICAS*

*A filmografia que segue abaixo está catalogada por ordem cronológica e


dividida conforme os três tipos fílmicos citados no texto, Filmes do Vincent,
Cineastas Indígenas (nesta parte a filmografia foi dividida entre etnias) e
Cinema Guarani. Por fim estão as referências fílmicas que não seenquadram
aos tipos fílmicos conforme descritos no texto.

FILMES DO VINCENT

A FESTA DA MOÇA
1987, 18' | Direção e fotografia: Vincent Carelli | Roteiro: Gilberto Azanha e
Virgínia Valadão | Edição: Valdir Afonso, Antônio Jordão e Cleiton Capellossi |
Locução: Luiz Eduardo Nascimento. Tradução: Donaldo Mãmãinde.

O ESPÍRITO DA TV
1990, 18’ | Direção e fotografia: Vincent Carelli | Consultoria antropológica para
diálogos, tradução e roteiro: Dominique Gallois | Edição: Tutu Nunes | Som e
finalização: Cleiton Capellossi | Prêmios: Sol de Ouro no 8º Festival Rio Cine,
Rio de Janeiro, outubro de 1992. Terceiro Prêmio no 9º Vídeo Brasil, São Paulo,
setembro de 1992. Prêmio no Latin American Video Festival, EUA, 1992. Prêmio
no IV Festival Americano de los Povos Indígenas, Peru, junho de 1992. Prêmio
em Vídeo e Televisão no VIII Festival de Cinema Latino Americano, Trieste,
Itália, outubro de 1993.

A ARCA DOS ZO'É


1993, 21' | Direção: Vincent Carelli e Dominique Gallois | Fotografia: Vincent
Carelli |Som e tradução: Dominique Gallois | Edição: Tutu Nunes | Imagens em
VHS: Kasiripinã Waiãpi | Caracteres: Cleiton Capellossi

EU JÁ FUI SEU IRMÃO


1993, 32' | Direção e fotografia: Vincent Carelli | Som e produção: Cleiton
Capellossi, Pedro Correia e Luis Topramti | Edição: Tutu Nunes |Assessoria
antropológica: Gilberto Azanha

ANTROPOFAGIA VISUAL
1995, 17' | Direção: Vincent Carelli | Roteiro e texto: Mylton Severiano |
Fotografia: Altair Paixão, Vincent Carelli e Virgínia Valadão | Som e produção:
Fausto Campoli, Os invasores: Altair Paixão | Desenhos: Ciça Fittipaldi | Edição
e pós-produção: Estevão Nunes Tutu | Locução: Virgínia Valadão.

179
PROGRAMA DE ÍNDIO
2000 | Direção: Vincent Carelli | Fotografia: Vincent Carelli e Altair Paixão |
Edição: Tuto Nunes | Realização: TV ESCOLA/MEC/Vídeo nas Aldeias | Epsódio
1: Quem são eles: (18’) | Epsódio 2 Nossas Línguas (20’) | Epsódio 3: Boa
viagem Ibantu (18’); | Epsódio 4: Quando Deus visita a aldeia (18’) | Epsódio 5
Uma outra história (17’); | Epsódio 6: Primeiros contatos (19’) | Epsódio 7:
Nossas terras (20’) | Epsódio 8: Filhos da terra (18’) | Epsódio 9: Do outro lado
do Céu (18’) | Epsódio 10: Nossos Direitos (17’).

IARAUTÊ, CACHOEIRA DAS ONÇAS


2006, 48’ | Direção: Vincent Carelli | Fotografia: Vincent Carelli, Altair Paixão |
Edição: Joana Collier | Realização: IPHAN, Vídeo nas Aldeias, Instituto Socio
Ambiental e FOIRN | Prêmios: Menção Honrosa na XXXIII Jornada Internacional
de Cinema da Bahia, setembro 2006. Menção Honrosa na 1ª Mostra Amazônica
do Filme Etnográfico. Manaus, dezembro 2006. Prêmio Anaconda de melhor
documentário, Anaconda 2006, Bolívia. Prêmio Especial do Juri, Tulane Latino
Environmental Media Festival, New Orleans, USA, 2007. Prêmio do Júri Popular,
4º Festival Internacional de Cinema dos Direitos Humanos de Sucre, Bolívia,
junho 2008

CORUMBIARA
2009, 120' | Direção, fotografia e narração: Vincent Carelli | Consultoria
antropológica: Virginia Valadão | Edição: Mari Corrêa | Finalização e correção de
cor: Tiago Campos Tôrres | Imagens adicionais: Altair Paixão | Imagens entrevista
com Marcelo Santos: Tiago Campos Tôrres | Som Direto em 1987: Beto Ricardo |
Imagem Vincent em 2006: Carolina Aragon | Equipe de indigenistas: Marcelo
Santos, Altair Algaier, Inês Hargreaves, Pedro Rodrigues, Paulo da Silva, Gigi
Santos, Adonias, Ceariba | Intérpretes: Monuzinho Canoê, Passaká Mequém,
Vicência Mequém, Pedro Mequém, Manoel Mequém | Finalização: Ernesto
Ignácio de Carvalho | Mixagem e finalização de som: Gera Vieira, Estúdio
Carranca | Assistentes de produção: Olívia Sabino, Mariana Lilian.

180
CINEASTAS INDÍGENAS

ASHANINKA

UM DIA NA ALDEIA
2003, 40' | Direção e imagens: Araduwá Waimiri, Iawysu Waimiri, Kabaha
Waimiri, Sanapyty Atroari, Sawá Waimiri e Wamé Atroari | Edição: Leonardo
Sette, Kabaha, Sanapyty, Sawá e Wamé | Tradução: Sanapyty, Sawá e Kabaha

NO TEMPO DAS CHUVAS


2000, 38' | Participantes da oficina de vídeo: Isaac Pianko Ashaninka, Valdete
Pianko Ashaninka, Jaime Llullu Manchineri, Maru Kaxinawa, Tsiritsi Ashaninka,
Nelson Kulina, Fernando Katukina e André Kanamari | Professores: Vincent
Carelli e Mari Corrêa | Tradução: Isaac Pianko Ashaninka e Valdete Pianko
Ashaninka | Edição: Isaac Pianko Ashaninka, Valdete Pianko Ashaninka, Jaime
Llullu Manchineri, Maru Kaxinawa e Mari Corrêa | Correção de Cor: Tiago
Campos Tôrres | Mixagem: Gera Vieira e Júnior Evangelista

SHOMÕTSI
2001, 42' | Direção, imagens e locução: Valdete Pinhanta Ashaninka | Edição:
Mari Corrêa | Correção de Cor: Tiago Campos Tôrres | Mixagem: Gera Vieira

A GENTE LUTA MAS COME FRUTA


2006, 40’ | Direção: Wewito Piyãko, Isaac Pinhata | Fotografia: Valdete, Isaac,
Benki, Tsirotsi, Hatã, Enisson | Edição: Tiago Pelado | Música: Katari, Autor:
Wãtsire | Produção: Fora do Eixo e Associação Apiwtxa | Prêmios: Prêmio
Panamazônia 2007 de Melhor produção áudiovisual da Action Aid Americas,
março 2007. Melhor Documentário no Cine Gaia, 2008, Rio de Janeiro, Brasi.

IKPENG

MARANGMOTXÍNGMO MÏRANG: DAS CRIANÇAS IKPENG PARA O MUNDO


2001, 45' | Direção e imagem: Natuyu Yuwipo Txicão, Karaní Txicão e Kumaré
Txicão. | Crianças: Yuwipo, Yampï, Kamatxi e Eruwo | Edição: Mari Corrêa |
Tradução: Korotowi Txicão, Maiua Txicão e Kumaré Txicão.

MOYNGO: O SONHO DE MARAGAREUM


2003, 46' | Direção e imagens: Kumaré Txicão, Natuyu Txicão e Karané Txicão |
Atores: Melobo, Oiope e Yawalu | Depoimentos: Melobo, Kapot, Iawulu e Pïkeni |
Figurantes: Penewo Ikpeng, Furila Ikpeng, Porompi Ikpeng, Arawe Txicão,
181
Kuane Txicão, Tawarerõ Ikpeng, Aringka Ikpeng, Maktanpo Ikpeng, Pakpako
Ikpeng, Yakawi Ikpeng, Managu Txicão, Nugare Ikpeng, Takpuru Ikpeng,
Kawyago Txicão, Oreme Ikpeng, Yukwari Ikpeng, Pikeni Ikpeng, Pitoga Ikpeng,
Atuke Ikpeng, Nogori Ikpeng,
Tximagu Ikpeng, Panani Ikpeng, Tukto Ikpeng, Magaro Txicão, Kona Ikpeng,
Tximairu Ikpeng, Enmangru Ikpeng, Pitoga Ikpeng, Ariwo Ikpeng, Arí Txicão,
Kalimama Ikpeng Wayge Ikpeng e Kapiuka Ikpeng | Edição: Leonardo Sette.

KUIKURO

NGUNÉ ELÜ: O DIA EM QUE A LUA MENSTRUOU


2004, 28' | Direção: Coletivo Kuikuro de Cinema | Imagens: Takumã Kuikuro,
Mariká Kuikuro, Amunegi Kuikuro, Jairão Kuikuro, Maluhi Kuikuro e Ahukaká
Kuikuro | Depoimentos: Tehuko Kuikuro, Tapualu Kalapalo e Jawapá Kuikuro |
Coordenação das oficinas Kuikuro: Vincent Carelli e Carlos Fausto | Edição:
Leonardo Sette | Tradução e legendas: Bruna Franchetto, Jamalui Kuikuro e
Carlos Fausto | Edição de som e mixagem: Aurélio Dias | Consultoria de
fotografia: Flávio Ferreira. | Assistente de produção: Olívia Sabino | Efeito
especial (eclipse): Cláudio Fernandes | Coordenação DKK: Bruna Franchetto e
Carlos Fausto

IMBÉ GIKEGÜ: CHEIRO DE PEQUI


2006, 36' | Direção: Coletivo Kuikuro de Cinema | Imagens: Takumã Kuikuro,
Mariká Kuikuro, Amunegi Kuikuro, Jairão Kuikuro, Maluhi Kuikuro e Ahukaká
Kuikuro | Narradores: Tapualu Kalapalo, Jawapá Kuikuro e Kalusi Kuikuro |
Atores: Mutua Mehinaku, Kanu Kuikuro, Sedê Kuikuro, Jahugi Kuikuro,
Kajutahá Kuikuro, Samuagü Kuikuro e Sepê Ragati Kuikuro | Coordenação das
oficinas Kuikuro: Vincent Carelli e Carlos Fausto | Edição: Leonardo Sette e
Vincent Carelli | Assistente de produção: Olivia Sabino | Tradução e legendas:
Jamalui Kuikuro Mehinaku e Mutua Kuikuro Mehinaku | Edição de som e
mixagem: Aurélio Dias | Consultoria de fotografia: Flávio Ferreira | Coordenação
DKK: Bruna Franchetto e Carlos Fausto.

AS HIPERMULHERES
2011, 80' | Direção: Takumã Kuikuro, Carlos Fausto e Leonardo Sette | Fotografia
e som direto: Takumã Kuikuro, Mahajugi Kuikuro e Munai Kuikuro | Edição:
Leonardo Sette | Produção executiva: Carlos Fausto e Vincent Carelli | Cantores:
Kanu Kuikuro, Ajahi Kuikuro, Amanhatsi Kuikuro, Aulá Kuikuro, Kamankgagü
Kuikuro, Kehesu Kuikuro e Tapualu Kalapalo | Outros personagens: Kamaluhé
Matipu, Kamihu Kuikuro e Tugupé Kuikuro | Povos convidados: Mehinaku,
Wauja e Yawalapiti | Assistentes de produção: Elena Welper, Fábio Menezes, Julia
Tandeta, Juliana Lapa, Luana Almeida, Milene Migliano, Olívia Sabino, Renata
182
Ribeiro | Coordenação Aikax: Afukaká Kuikuro, Mutua Mehinaku e Sepe Ragati
Kuikuro | Coordenação Coletivo Kuikuro de Cinema: Takumã Kuikuro |
Coordenação DKK – Museu Nacional: Bruna Franchetto e Carlos Fausto |
Coordenação Vídeo nas Aldeias: Vincent Carelli | Edição de som e mixagem:
Carlos Montenegro e Leonardo Sette | Colorista: Daniel Leite.

XAVANTE

TEM QUE SER CURIOSO


1997, 16' | Direção e fotografia: Caimi Waiassé | Roteiro e edição: Caimi Waiassé
e Tutu Nunes.

HEPARIIDUB’RADÁ: OBRIGADO IRMÃO


1998, 17' | Direção: Divino Tserewahú | Fotografia: Divino Tserewahú | Edição:
Tutu Nunes e Divino Tserewahú

WAPTÉ MNHÕNÕ: INICIAÇÃO DO JOVEM XAVANTE


1999, 52' | Roteiro e direção: Divino Tserewahú | Imagens: Jorge Protodi, Winthi
Suyá,Caimi Waiassé e Divino Tserewahú | Edição: Estevão Nunes Tutu, Marcelo
Pedroso e Divino Tserewahú | Produção na aldeia: Bartolomeu Patira. | Correção
de cor: Tiago Campos Tôrres | Mixagem: Gera Vieira | Produção na aldeia:
Bartolomeu Patira | Prêmios: Troféu Jangada, prêmio da OCIC – Brasil
(Organização Católica Internacional de Cinema) na 6ª Mostra Internacional do
Filme Etnográfico, Rio de Janeiro, 1999. Prêmio Manuel Diégues Júnior na 6ª
Mostra Internacional do Filme Etnográfico, Rio de Janeiro, 1999. Prêmio no X
Internacional Festival of Ethnographical Films, Nuoro, Itália (2000). Gran Prêmio
Anaconda, Bolívia (2000). Prêmio do 1° Festival de Filme Etnográfico da
Sardenha (2000).

WAIÁ RINI: O PODER DO SONHO

2001, 48' | Direção, fotografia e roteiro: Divino Tserewahú | Edição: Valdir


Afonso, Divino Tserewahú e Marcelo Pedroso | Coordenação: Vincent Carelli |
Imagens adicionais: Takoda Kazutaka | Assistente de câmera: César Xavante |
Imagens Wai'a 1987: Paulo César Soares | Produção na aldeia: Bartolomeu Patira |
Depoimentos: Alexandre Tsereptsé, Bartolomeu Patira, Floriano Matsa, Genésio
Oribiwe e Hipólito Tsahobo | Elenco: Celestino Tsererób'õ, Cesário Pari'õwa
Dzéwa, Felix Nõmõtsé, Patrício 'Rãirõri, Pierina Wa'utó, José Meirelles, Lucas
'Ruri'õ, Márcio Buru'ré, Mariano Tsimhoné, Raimindo Tsererudu e Tiago
Tsererudu | Tradução: Divino Tserewahú e Bartolomeu Patira | Finalização e
Correção de cor: Tiago Campos Tôrres | Mixagem: Gera Vieira | Prêmios: Prêmio
Nacionalidade KICHWA, IV Festival Continental de Cinema e Vídeo das

183
Primeiras Nações de ABYA YALA, Equador, 2001. Prêmio Anaconda no
ANACONDA 2002, Bolívia.

MERUNTIKUPAINIKONMAN: VAMOS À LUTA.


2002, 18’ | Diretor: Divino Tserewahú | Fotografia e Câmera: Divino Tserewahú |
Edição: Leonardo Sette

DARĨTIDZÉ: APRENDIZ DE CURADOR


2003, 36' | Direção, imagens e edição: Divino Tserewahú | Imagens adicionais:
Márcio Buru'ré. | Oficina de edição: Leonardo Sette | Assistente de produção:
Olívia Sabino.

CINEMA GUARANI

MOKOI TEKOÁ PETEI JEGUATÁ: DUAS ALDEIAS E UMA CAMINHADA


2008, 63’ | Direção: Ariel Duarte Ortega, Jorge Ramos Morinoco, Germano
Beñites | Edição: Ernesto Ignácio de Carvalho | Produção: Vídeo nas Aldeias,
IPHAN | Prêmios: Melhor filme do ForumDoc, Belo Horizonte, 2008.

BICICLETAS DE NHANDERÚ
2011, 46' | Direção geral: Ariel Ortega | Realização e imagens: Coletivo Mbya-
Guarani de Cinema: Ariel Ortega, Patrícia Ferreira, Alexandre Ferreira, Germano
Benites, Jorge Morinico, Cirilo Vilhalba e Léo Ortega | Imagens adicionais: Tiago
Campos Tôrres, Ernesto Ignácio de Carvalho e Vincent Carelli | Edição: Tiago
Campos Tôrres | Finalização: Tatiana Almeida e Vincent Carelli | Participação na
finalização: Ana Carvalho | Som e mixagem: Carlos Montenegro – Estúdio
Carranca | Correção de cor: Tiago Campos Tôrres | Tradução: Ariel e Leo Ortega,
Alexandre Verá, Patrícia e Aldo Ferreira | Músicos: Cristino Franco, Nicanor
Oliveira e Alfonso Benites | Produção: Ernesto Ignácio de Carvalho, Patrícia
Ferreira e Olívia Sabino.

TAVA, A CASA DE PEDRA


2012, 78’ | Direção e fotografia: Ariel Duarte Ortega, Ernesto Ignácio de
Carvalho, Vincent Carelli e Patrícia Ferreia (Keretxu) | Edição: Tita (Tatiana
Soares de Almeida)

DESTERRO GUARANI

2011, 38‘ | Direção, Imagens e Som Direto: Ariel Duarte Ortega e Patrícia Ferreia
(Keretxu) | Direção e fotografia: Ernesto Ignácio de Carvalho, Vincent Carelli |
Prêmios: Menção Honrosa no FICA

184
OUTRAS REFERÊNCIAS

A GUERRA DO FOGO
1981, 100' | Realização: Jean-Jacqes Annaud | Montagem: Yves Langlois |
Fotografia: Claude Agostini | Musica: Philippe Sarde | Co-Produtores: Jacques
Dorfmann e Vera Belmont | Cenário: Gérard Brach | Produção Executiva: Michael
Gruskoff | Produção: John Kemeny e Denis Heroux.

O CORPO E OS ESPÍRITOS
1996, 54' | Direção: Mari Corrêa | Imagem: Dado Aguiar | Som: Myaú Kayabi |
Edição: Mari Corrêa | Consultor artístico: Yann Lardeau | Consultor Científico:
Patrick Menget | Finalização: Phillippe Chesneau | Mixagem: José Baptista |
Produção: Yves Billon e Sabine Naccache.

YÃKWÁ: O BANQUETE DOS ESPÍRITOS


1995, 54' | Direção e roteiro: Virgínia Valadão | Fotografia: Altair Paixão e
Vincent Carelli | Produção, som e tradução: Fausto Campoli | Edição: Estevão
Nunes Tutu | Colaboração: Cleacir de Alencar Sá, Dorothéia de Paula, Inês
Hargreaves, Pedro Dias Correa.

PÏRINOP: MEU PRIMEIRO CONTATO


2007, 82' | Direção: Mari Corrêa e Karané Ikpeng | Com a participação de:
Kumaré Ikpeng e Natuyu Ikpeng | Imagens: Karané Ikpeng e Mari Corrêa | Som
direto: Natuyu Ikpeng | Câmera adicional: Vincent Carelli, Kumaré Ikpeng e
Natuyu Ikpeng | Montagem: Aurélie Ricard, Mari Corrêa e Karané Ikpeng |
Textos: Karané Ikpeng e Mari Corrêa | Citações: Cláudio e Orlando Villas Boas |
Narração: Karané Ikpeng e Pascoal da Conceição | Tradução: Korotowï Ikpeng,
Maiua Ikpeng, Karané Ikpeng, Natuyu Ikpeng e Mumaré Ikpeng | Assistentes de
tradução: Dora Nascimento e André Cristo | Produção executiva: Mari Correa. |
Assistentes de produção: Olívia Sabino, Dora Nascimento, Daniel Castelo Branco
de Sá, Paloma Granjeiro e Mariana Lilian S. Cruz | Pós-produção: Tiago Pelado,
Olivier Borgo e Philippe Chesneau | Consultor de fotografia: Flávio Ferreira |
Colorista: Tiago Pelado | Still: Vincent Carelli | Mixagem: André Oliveira e Jean-
Christophe Caron | Trilha sonora: Yuri Queiroga

OS MESTRES LOUCOS
1955. 30' | Direção: Jean Rouch | Fotografia: Jean Rouch | Montagem: Suzanne
Baron | Direção de som: André Cotin | Trilha: Ibrahima Dia | Som Direto:
Damouré Zika.

185
ROUCH’S GANG
1998, 70’ | Realização: Steef Meyknecht, Dirk Nijland and Joost Verhey | Prêmios
e Festivais: Margaret Mead Film Festival. IWF International Film Festival.
ICAES Film Festival

MADAME L'EAU
1993, 120’ | Direção: Jean Rouch | Roteiro: Philo Bregstein e Jean Rouch |
Elenco: Damouré Zika, Lam Ibrahim Dia, Tallou Mouzourane, Wineke
Onstwedder e Frans Brughuis | Produção: Menno van der Molen | Produtor: Andre
Singer | Co-Produtor: Guy Séligmann | Trilha Sonora: Tallou Mouzourane |
Fotografia: Jean Rouch e Eugene Van Den Bosch | Montagem: Françoise Belloux
| Direção de Som: Moussa Hamidou | Edição de Som: Bert van den Dungen

O MESTRE E O DIVINO
2013, 85’ | Diretor: Tiago Campos Torres | Fotografia: Ernesto Ignácio de
Carvalho | Som direto: Nicolas Hallet | Edição: Amandine Goisbault | Produção
Executiva: Vincent Carelli

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