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AE REVISTA COM

AC UESLEGOFF

medievista Jacques Le Go[[ é um depoimento sobre a constituição da Europa


dos principais expoentes da história e a tarefa do historiador.
das mentalidades. Nascido na França em
1924, fonnou-se em história e logo se in­ - Ao receber a medaU,a de ouro do
tegrou à escola dita das (a palavra é femi­ CNRS, o senhor definiu o hisroriador, em
nina)Annales, revista da qual é atualmente seu discurso, como um U especialista dos
co-diretor. mudanças das sociedades" e disse que a
Plesidente, de 1972 a 1977, da VI Seção [ullção da história é Uinlroduzir alguma
da École.Pratique des Hautes Études, hoje raciol/nlidade na história vivido e na me­
École des Hautes Études en Sciences So­ mórÍll". Mudanças, muitas vezes, signifi­
ciales, é diretor de pesquisa no grupo de cam crises. Como é poss(vel introduzir
antropologia l\istórica do Ocidente medie­ alguma racionalidade no seio do tempes­
val dessa mesma inStituição. Entre outras tade?
altas distinções, Le Goff acaba de receber a
medalha de ouro do Centre National de la

- É possível, pela mediação daquilo que
Recberebe Scientifique (CNRS), pela pri­ hoje tem o nome rebarbativo de problemd­
meira vez atribuída a um historiador. tica. Como sabe, pertenço à tradição das
Boa parte de sua obra está ao alcance do AlUlilles, cujos fundadores, Lucien Febvre
leitor brasileiro, traduzida para o português e Mare Bloch, definiram um tipo específi­
(ver lista bibliográfica no final da entrevis­ co de história, a história-problema. Isso é
ta). fundamental para nós. Julgamos que o
Nesta entrevista, concedida em Paris em historiador tem o dever de colocarquestões
janeiro de 1992a MoniqueAugras, Le Goff como eixo do seu trabalbo. Em seguida,
sintetiza a sua concepção da história, des­ ele vê como respondê-Ias, apoiando-se na­
creve a sua fonnação, e dá um vibrante quilo que, é claro, continua sendo o seu

NDlIE. &lI entrevista roi transcrita, trldu:rid. e editad. por Monique Augru.

E.studos Hist6rü:os, Rio de Janeiro. vei. 4, n. 8, 1991, p. 262-210


UMA ENfR.EV1STA COM JAC'QUES LE GOFF 263

material específico, que são os doalmen­ ro, mas partir do ponto de cbegada me
tos. parece essencial. É por isso que concordo
Logo, o próprio fato de partir de uma com Mare Bloch, que denunciava "a ido­
questão problemática já introduz alguma latria das origens". Muitas vezes, os histo­
racionalidade. Depois, se o historiador pre­ riadores das origens fazem o caminho in­
tende realizar uma obra científica - ainda verso. Parlem daquilo que começou, e
que a história seja uma ciência muito pecu­ descem o rio. Ora, penso que se a gente se
liar, acredito que seja uma ciência - tam­ satisfaz em descer o rio, duas coisas podem
bém deve levar em conta o movimento da acontecer. em vez de entender por que o
história, a sua diversidade, sua irracionali­ rio corre, a gente acaba sendo levada por
dade, sua flexibilidade. Pessoalmente, te­ ele; ou então, corre o risa> de perder o
nho grande interesse na história do imagi­ contato com o rio e ir para longe dele. O
nário e, no imaginário, há muita irraciona­ método, o trabalho do historiador, a meu
lidade. Portanto, introduzir a racionalidade ver, consistem necessariamente em uma
na história não significa excluir o irracional, constante ida-e-volta entre passado e pre­
o impreciso, o flutuante, muito pelo contni­ sente. Sendo que o presente é obviamente
rio. Significa que a gente tenta explicar as o futuro. O futuro do passado.
mudanças históricas a partir da resposta a \bu citar uma frase conhecida, que foi
uma questão que, por sua vez, é racional. repetida por vários cientistas e, particular­
mente, pelo filósofo italiano Benedello
- Não ac"" que a história, como as Croce: "Toda história é contempornnea."
demais ciências sociais, tem como um dos O passado continua sendo interpretado,
seus problemas fondamentais o fato de sempre é uma leitura contempornnea que
sempre propor interpretações ex post fae­ se faz e, na compreensão do passado, te­
to? mos de illtegrar essa leitura renovada, sem­
pre recomeçada.
- De pleno acordo, isso é para mim
essencial, eu diria até que é uma das bases -Não se poderia aproximar essa obser­
científicas das ciências sociais e, particu­ vação da perspectica ali/Topológica, quan­
larmente, da história. Penso - e olhe que do, ao descrever sociedades OUIras, esta­
eu não estou sozinho nisso - que o histo­ mos retratalldo também a 1I0ssa própria
riador se senle pouco à vontade quando a sociedade?
gente cbega ao imediatamente contempo­
râneo. Um dos motivos pelos quais é mui­ -Concordo inteiramente, mas, vocêsa�
to difícil estudar a história contempornnea be, há um número bastante grande de his­
é que não sabemos o que vai acontecer toriadores que discordam. Para mim, é o
mais tarde. É preciso dizer isso claramen­ ponto crítico que me permite distinguir os
te. Muitas vezes, os historiadores não que­ historiadores que pretendem renovar a his­
rem assumir isso, colocam-se como se [os· tória daqueles que se satisfazem com a
sem os descobridores da evolução históri­ história tradicional. Acredito que, tanto na
ca. Nada disso! Eles devem partir daquilo antropologia como na história, há esse mo­
que aconteceu para tentar compreender co­ vimento de ida-e-volta. É claro que as
mo e por que aconteceu. sociedades de que trata o historiador não
Para mim, o fato de partir do ponto de são as mesmas sociedades que o antropó­
chegada é o que garante a seriedade do logo estuda, e mesmo quando eles acabam
Ir.lbalho do historiador. Além disso, há pesquisando as mesmas sociedades -o que
outras condições, outras qualidades, é cla- acontece cada vez mais - eles têm pontos
264 ESTUDOS HISTôRIOOS -199118

de vista um tanto diferentes. O que os te reacionárias, anedóticas, narrativas, de


aproxima é sobretudo o fato de ambos um psioologismo que não leva a nada! Na
oonsiderarem as sociedades de modo glo­ França, está ocorrendo um fenômeno bem
bal, sem fragllk!ntá-las oonfonne OS velbos significativo. Há uma editora, à qual estou
escaninbos da história tradicional. ligado - faço questão de dizer, é a Fayard­
que publica grande número de biografias.
- A "nova história" parece ter obtido Pois bem, publica tanto biografias renova­
grande sucesso junto ao público cllllo. das, ao novo estilo, como biografias ultra­
Mas, enlre os historiadores, será que não tradicionais.
está ocol/endo uma reação contrária?
-Falando em biografia, poderia dizer
- Está ocorrendo sim. Em primeiro lu­ algo de sllas origensfamiliares eCII/turais?
gar, há um certo número de historiadores, O seu sobrenome é bretão?
com seus discípulos - nisso conoordo oom
a teoria dc Bourdieu, da reprodução, eles - Sou bretão por parte de pai e proven­
vivcm se reproduzindo! -que pennanecem çal por parte de mãe. Nasci em Toulon e
hostis à "nova história" (entre aspas, por passei toda a illfância e a adolescência na
favor). E houve também certa reação, que Provença, em Toulon e depois MarseiUe.
põe em evidência a presença de ouas OOt­ Depois da guerrJ fui para Paris de onde não
.
rentes paralelas. Os "novos historiadores" mais sal, a nao ser para passar um ano em
. -

(não gosto muito desta terminologia, que Oxford, para trabalhar em um college, e
me parece inutilmente provocante, mas não outro alio lia Escola Francesa de Roma, da
sei como substituí-la) estão voltando para qual fui membro. Meu pai era professor de
um certo número de orientações que ha­ inglês no liceu e minha mãe, professora de
viam deixado de lado oomo, por exemplo, plallo.

a história política. Mas acredito que estão


renovando esse tipo de história, já que lhe - Por qlle a história?
estão aplicando a experiência, o método, já
elahorados em outras áreas. Não vou me - Minha mãe era católica muito prati­
deter nisso, mas não é tanto a história fÚl cante, meu pai era anticlerical muito feroz,
política, como a história do polítioo, do e o casamento deles foi excelente, daí tive
poder, que por exemplo atribui importân­ de refletir sobre isso, o que me levou à
cia, a meu ver justificada, à dimensão sim­ história ...
bólica do poder ctc.
Rá portanto um retomo, que de fato é - Como assim?
uma renovação, que poderíamos até cha­
mar de renascimento. Mas há também uma -TIve de rcfletirsobre o fato de que não
história política vcrdadeirameme reacioná­ se pode fazer história a priori, porque se
ria, que volta para os velhos tipos, que se alguém tivesse colocado essa questão sem
interessa essencialmente pelos aconteci­ verificaçâo, teria concluído ser impossível
mentos, pelas instituições, e pelos grandes existir um casamento bem ajustado entre
hollk!ns. Continua grassando. Veja por esses dois tipos de pessoas, e no entanto,
exemplo a biograr... Hoje em dia, há uma esse casamento deu muito certo. Vi que o
biografia renovada que se p rocessa, que mundo da scnsibilidade, das mentalidades,
está comeguindo superar a oposição entre dos comportamentos, era um mundo muito
grandes homens e sociedade. Mas há tam­ peculiar. Se o problema fosse colocado do
bém biografias que sâo pura e simplesmen- ponto de vista das idéias apenas, a resposta
UMA El'nREVISTA COM JACQUES LEGOFF 265

teria sido: OIsamento impossível. Mas ho­ -o sellhor COSnlma afirmar que a Idade
mens e mulheres são minimamente dirigi­ Médio começa 110 século II e acaba 110
dos por idéias. Eles são condu7Jdos por século XlX. Porque o século XlX'?
sensibilidades, por mentalidades, e é por
isso que acho excelente ter inventado uma - A periodização dos historiadores é
"história das mentalidades", que nos per­ essencialmente fundamentada na história
mite compreender melbor o que acontece, das sociedades ocidentais. Por ocidentais,
e o que aconteceu nas sociedades. entendo também as sociedades geradas pe­
lo Ocidente, como é o caso, é claro, das
-Porque a Idade Média? sociedades americanas. A dominação dos
conquistadores foi tal que, ainda que al­
-Sabe que não sei ao certo? Só sei que, guns elementos indígenas tenham sobrevi­
muito cedo, eu devia ter uns 10 anos, já vido, a marca essencial dessas sociedades
queria estudar história. Lembro que logo é uma marca ocidental. Digo que as socie­
foi a Idade Média que me interessou mais. dades ocidentais sofreram choques deter­
Vejo duas influências muito importantes. minantes no decorrer do século XIX. Sem
A primeira foi de um professor do 3· ano estabelecer uma ordem hierárquica entre
ginasial, eu estava com 13 anos, c ele me eles, posso enumerar alguns desses fenô­
levou a gostar ainda mais da história. Na­ menos: em primeiro lugar, o choque tecno­
quele tempo, no 3· ginasial, a gente estu­ lógico, as descobertas, é claro, a revolução
dava a Idade Média. A outra influência foi industrial; e também o choque social e
o fascínio pelos romances de Walter SeOIl. político oriundo em grande parte da Revo­
Neles, não encontrava apenas o exotismo lução Francesa que, acredito, marcou o fim
que obviamente seduzia o adolescente, de um mundo e o começo de outro. Em­
mas também devo dizer que já percebia em hora certos grandes pensadores, tais como
Walter SCOII uma verdadeira atitude de Tocqueville, vejam também as continuida­
.historiador. Via-o como historiador, por­ des do Antigo Regime na Revolução, a
que ele procurava dar uma explicação do modificação me parece fundamental. A
funcionamento das sociedades das quais mesma coisa acontece no campo religioso
falava. e no campo cultural.
Por exemplo, o mais célebre, entre nós, 'Iklltando ao campo econômico, diga­
dos romances de Walter Scotl,lvalúlOé, dá mos, há um fenômeno ao qual atribuo
uma explicação da história que se situa na grande importância, queé a fome(famine).
perspectiva da oposição entre normandos As grandes fomes são típicas da Idade
e anglo-saxôes. Há no romance uma pro­ Média e da época moderna, e vão até o fim
blemática da história. Há um certo número do século XVIII. Elas expressam um es­
de outros fatos que recebem tratamento tado arcaico da economia rural, mas impli­
literário, é claro, mas com uma carpintaria cam também um tremendo abalo mental.
que é digna de um historiador. Por exem­ No século XIX, há fome ainda em certos
plo, o papel dos judeus, a importância e a países da Europa, na Rússia por exemplo,
significação dos torneios etc. etc. Essa mas no conjunto esse fenômeno não existe
obra não só me levou a amara Idade Média mais.

do ponlo de vista da licor local", mas me No campo cultural, vejamos o caso de


reforçou na opinião que há um certo núme­ instituições que aparentemente mantêm a
ro de fenômenos essenciais que em grande continuidade, como a instituição universi­
parte explicam como viveram os homens, tária. Ora, se a continuidade permanece em
como funcionaram as sociedades. certos países - na Inglaterra, por exemplo,
266 ES11JDOS HlSroRIOOS 1991"
-

Oxforde Cambridgenão mudam-naFran­ as estruturas profundas pennanecem até o


ça ocorre a ruptura da Revolução e do início do século XIX.
Império, com grandes modificaÇÕes na ins­
tituição universitária. Mas, sobretudo, no - O senhor é considerado como o pai
inicio do século XIX, aparece um novo fúndador da antropalogia histórica. Em
modelo, o da Universidade de Berlim, e recellle estudo, Jean Andreau e François
e<se modelo vai se impor em todo o mundo. Hartog a definem como sendo essencial­
No campo religioso, a mudaoça vai mente francesa, e escrevem textualmellle
ocorrer de maneira mais lenta, com ritmo que" seu primeiro campa, e o mais impor­
diferente confonne as regiões, mas m esmo tame, foi a história medieva� em tomo de
assim o século XIX marca o início da Jacques Le GoIT". Concorda?
descristianização. Pode-se dizer que ela já
havia começado um pouco no Renasci­ - Não é verdade! Digo isso sem falsa
mento, e com o iluminismo etc., mas em , modéstia, a antropologia histórica propria­
• nível profundo, as sociedades pennanece­ mente dita apareceu primeiro num grupo
ram cristãs. No século XIX, o cristianismo francês, mas era um grupo de helenistas.
ainda mantém um peso considerável, mas
as sociedades deixam de ser realmente so­ - Ver/"lII t ?
ciedades cristãs. Tomemos um exemplo:
o milagre. Na Idade Média, o milagre é - Vemant, e antes dele, Gemel. Devo
algo fundamental. Há alguns abalos nessa muito a ambos.
creoça relativamente cedo, no século XVI,
mas o milagre continua sendo considerado -Nesse campo, par que não citar tam­
como fenômeno real, verdadeiro, pela bém Meyerson?
grande maioria das pessoas. Depois do
século XIX, haverá quem ainda acredite - Devo dizer que conheço pouco á obra
em milagJes. Haverá até mesmo certo re­ dele. Eu o conheci pessoalmente, ele foi o
nascimento dessa creoça por meio dos mi­ mestre de Jean-Pierre Vemant, viveu mui­
lagJes da Virgem, já que o grande movi­ tos anos e, quase até o fim de sua vida,
mariano do século XIX se acompa­ ministrou seu seminário. Vernant sempre
nha de rnilagJes: Lourdes, Loreto etc. Mas me falava dele. Mas vou confessar algo que
o conjunto da população não acredita mais deve ser um preconceito meu: dispenso os
em milagJes. Veja a última sagração de filósofos! �u explicar a minha posição.
tipo medieval: é a do rei Carlos X em 1825, Creio sinceramente que a filosofia é uma
na Fraoça. Os outros países nem mais manifestação do espírito humano, é uma
faziam sagrações naquela época. Até mes­ disciplina que deve terum lugar importante
mo a Inglaterra anglicana, ainda próxima na fonnação dos jovens, na universidade,
do catolicistno, já não tinha mais esse tipo mas enquanto a história me parece ser um
de ritual no início do século XIX. dos objetos sobre os quais é não só legítimo
Não nego que tenha havido, entre o mas ainda necessário que os fIlósofos refli­
século m e o século XIX , mudanças im­ tam, penso que o historiador não tem que
portantes o bastante para que se conside­ se entregar à filosofIa da história.
rem SUbperfod08. Há a Antiguidade tardia, Recuso toda filosofIa da história. Veja
'depois, a Idade J;tédia propriamente dita, bem: não quero r�zer pesquisa sem saber O
Tempos Modtmos, que na que estou fazendo. Não ter consciência dos
verdade é um jíerfodo com ca'tacterísticas pllesu
s postos implIcitos nos métodos que
novas. MIIS creio que, fundamentalmente, utilizamos seria pprigoso demais. Por isso
..
UMA I3N1REVlST A COM JACQUES LE GOFF 267

considero que a metodologia e a epistemo­ naram muito. Apesar disso, lá tive um


logia são importantí&Simas. Mas a filoso­ mestre pelo qual tenho muita gratidão e
fia, não. muito respeito, Cbarles Montperrin. Ele
Uma das poucas exceÇÕes que eu faria, me deu sobretudo rigor metodológico, mas
seria em relação a Michel Foucault. Eu o não foi ele que influenciou a minha con­
freqüentei bastante, conversamos muitas cepção da história.
vezes, mas aoedito que ele foi um caso Devo honestamente dil.er que não fui
raro: tomou-se historiador, permanecendo discípulo de Braudel. Eu o conheci muito
mósofo! Creio que se Michel Foucauh de perto em certa época, de 1960 a 1972,
pôde ser Ião importante para um historia­ (reqüentei-<> 8&siduamente, fiquei impres­
dor como eu -e não estou sozinho ni&so­ sionadíssimo com o que ele dizia, mas
é porque ele se tinha tomado um historia­ assisti muito pouco às suas aulas. Sua tese
dor. sobre o Mediterrâneo despertou minha ad­
Em compensação, não sou chegado aos miração mas, por a&sim dizer, acbo que eu
ftIósofos. Não nego que haja nisso uma já estava fonnado naquela época.
grande parte de preconceito. Acabo agora Resta alguém que, em definitivo, foi
de descobrir -aliás, estou me perguntando meu único mestre no sentido pleno da pa­
se já o tinha lido antes, e registrado incons­ lavra. Por vários motivos, é um historia­
cientemente-pois bem, eu que tenho tanto dor pouco conhecido, Maurice Lombard.
interesse pelo imaginário, há quinze dias Era especialista do !sIão, i&so pode parecer
me deparei com um texto de Bachelard, o esquisito, mas era o principal medievista
filósofo, totalmente empolgante, a esse da VI Seção da ÉcoleNationale des Hautes
respeito! Isso significa, provavelmente, Études c, embora trabalhando em campos
que a minha reserva em relação aos filóso­ distintos, tivemos contatos estreitos. A sua
fos é um tanto exagerada. Mas quando falo visão da história, no que diz respeito ãs
neles, penso sobretudo nos metafísicos, relaçõcs entre as sociedades no tempo e no
que se apresentaram como a quinta-essên­ espaço, teve grande importância para mÍI1l,
cia dos ftJósofos. Ora, devo dizer, nem a&sim como os seus métodos de análise da
Plalão, nem Descartes -que admiro muito cultum, tanto cultura material como cultu­
-, nem Hegel - que não suporto -, nem ra no sentido de civilizaÇ"do. Lembro por
Niel2scbe - ainda que muitos ftIósofos exemplo de um curso deslumbrante que ele
agora o considerem como o pai da ftloso­ deu sobre os palácios do mundo muçulma­
fia, e que eu acbe seus textos muito belos no. Lá ele marcou mesmo, foi um mestre.
-, nem Heidegger-deixando de lado qual­ Infelizmente, Lombard era rigoroso
quer implicação ideológica -, nenhum de­ demais, exigente e delalhista demais, só
les me parece interessar ao historiador. De publicou uns poucos artigos. Houve um
fato, me provocaram verdadeira repulsa. manuscrito dele que foi publicado, é um
Além de Michel Foucault, no entanto, livro belíssimo, L 'Is/am dalls 50 premiere
há um ftIósofo vivo, contemporãneo, que gralldeur. Mais tarde publicaram também
escreve COISas extremamente Interessantes notas de aulas, acho que foi uma pena,
• •

sobre o tempo. É Paul Ricoeur. porque ele não teve a oportunidade de fazer
a revisão. Por i&so tudo, ele permanece
- Em suo formação universitdria,quais pouco conhecido, até no seu campo espe­
foram os mestres l[IIe o impressiollaram? cífico ficou um pouco à margem. Mas para
mim é, de longe, o grande mestre.
- Devo confe=r que não são muitos. Fui aluno de Lombard e, mais tarde, ele
Os professores da Sorbonne me decepcio- teve a bondade de me tomar como seu
268 ESllJOOS IUSTORlCOS -1991J!1

assistente. Nesse meio tempo fui, durante ponante. O que acho notável é que não
CIVXl anos, professor-assistente na Uni­ foram convidar apenas historiadores oon­
velSidade de Lille, e lá pude acompanhar temporâneos, nem, o que seria evidente,
um excelente historiador, Michel Mollal. sociólogos ou psicólogos, mas chamaram
Ele me ensinou que o verdadeiro historia­ um historiador do passado. Julgaram que,
dor é um historiador completo. Michel em Paris, a presença do passado era tama­
MoUatlIatava igualmente de história eco­ nha, que devia ser levada em conta para
nômica, de história das técnicas, história esclarecer a relação do fenômeno urbano
religiosa... Foi um grande historiador das com a pessoa do citadino. Realizamos três
navegações, fez sua tese sobre O comércio colóquios, e durante quatro anos participa­
de Rouen, aliás fora aluno de Marc Blocb. mos de seminários mensais compostos
O seu outro grande campo de pesquisa metade de tét1licos dos transportes e meta­
eram os pobres, o ideal de pobreza, e isso de de pesquisadores, historiadores, geó­
para mim foi muito animador, muito esti­ grafos etc. Era apaixonaote. Deu para en­
mulante, de ver que a história podia ser, de tender que a história, pela sua própria re­
maneiIa tão boa, história econômica e tam­ nexão e seu papel na cidade, só pode enri­
bém religiosa. Estou convicto de que, para quecer-se ao trabalhar junto oom o mundo
compreender determinada sociedade em das empresas.
determinada época, é p reciso o esforço de
oonbecê-Ia em todos os seus aspectos. -E a Europa?

- O que nos leva à interdisciplillorilÚl­ -Penso que o contato, o diálogo com os


de. outros é fundamental. É um dos motivos
de minha satisfação hoje, quando me diri­
- É isso mesmo. É essa a linha das jo aos pesquisadores brasileiros, que re­
ANIIlles, com a noção de história total ou presentam outro mundo, longe daqui, im­
história global. portante e apaixonante.
A Europa é também o outro, o estran­
- Mudando um pouco de perspectiva, geiro próximo. Além disso, no meu traba­
consta que o sefÚlOr trabalhou jUlllo com lho de historiador da Idade Média, nunca
algumas empresas, e particularmente a pensei limitar-me a um só país. Para mim ,

RATP (Administração dos Tra/lSpartes Pa­ a realidade histórica era a cristandade, isto
risienses). Em que cO/lSistia. a suo atua­ é, a Europa cristã, latina e romana. A
ção? constituição da Europa deve levar em con­
ta aquilo que também separava os povos,
-Ainda estou IIabalbando com a RATP. as nações, os estados, aquilo que os levava
Fui solicitado, de modo surpreendente, pe­ ao confronto. Não acho que seja possível
lo diretor geral adjunto, que sabia mais ou construir um conjunto, como dizer? artifi­
menos o que eu estava fazendo. Eu tinha cial. Vou tomar como exemplo o esperan­
acabado de publicar um volume sobre a to: é um fracasso lingüístico. Muita gente
história da cidade medieval, e parece que simpática ainda é a favor do esperanto, mas
foi isso que o incitou a me procurar. A o fato é que o esperanto não deu certo. É
RATP estava iniciando uma semana de uma pena, mas não deu. Não faremos a
renexão sobre a cidade. Eles estavam in­ Europa nesses moldes. Não faremos um
teressados nos usuários dos transportes pa­ país·esperJnto.
risienses, e achavam que para entender Estou muito apegado à herança euro­
Paris, a pelSpectiva histórica era muito im- péia, mas não concebo esta herança como
UMA ENTREVISTA COM JACQUES USGOFf 269

situada em oposição aos outros grandes episódios negativos que têm em sua histó­
mnjuntos que existem no mundo: conjun­ ria, como todos os povos. É uma grande
to muçulmano - aliás, há muitas coisas tristeza, tanto para o historiador como para
muçulmanas na Europa -, conjunto asiáti­ o cidadão, ver q uc COiS.1S insatisfalÓrias de
m, ou mnjuoto americano. Nesse último nossa história são recuperadas, proclama­
OIS0, insisto, o conjunto americano é, em das, reivindicadas. Aquela gente, para
grande parte, oriundo da Europa. Penso mim, é a anti-França.
até que a mnstituição da Europa vai propi­ Estou muito preocupado com a junção
ciar melbores diálogos com os demais con­ de tantos movimentos turvos do passad o
juntos internacionais. em um só. Aqui, estamos confrontados
É verdade que vários projetos, antes com um problema gravíssimo, que dizres­
animadores, não estão indo muito bem das peito às relações entre democracia e dita­
pernas. As ideologias estão em crise. O dura. Receio, num futuro próximo, as
socialismo acabou completamente desmo­ ameaças dos totalitarismos e dos racismos.
ralizado pela sua fomla soviética. Verifi­ Ainda que o estudo do movimento da his­
camos que ainda há terríveis injustiças, tória possa mc conrortar, mc tranqüilizar
muita violência, e porconscguinte estamos quanto à Sua evolução.
nos desiludindo. O capitalismo tampouco
nos traz satisfações. Para a maioria das - Apesar de rodos esses problemJlS,
pessoas, é mais fácil viver em regime ca­ acha o balanço posirivo, em relação à
pitalista do que comunista, mas vemos, cO/lSriruição da Europo?
com todo esse desemprego, que não é o
regime ideal. - lbdas essas dificuldades, o historia­
Além da crise das ideologias, há tam­ dor já as conhece. Estamos em período de
bém ameaças concretas. Falando como mutações e toda mutação se faz na dor.
cidadão e não apenas como historiador, em Estou convicto de que um novo mundo
meio a todas as injustiças, todas as desgra­ está nascendo, um mundo apaixonante.
ças que há no mundo, da fome à tortura, há, Para mim, a Europa é um grande projeto,
na própria Europa, duas fontes de grande onde podemos investir os desejos, os es­
preocupação. A primeira, que é nova, em­ forços, as paixões, pormeio das quais cada
bora O historiador já pudesse prevê-la, é o homem se deve investir na história. Não
despertar das nacionalidades sob forma de podemos assistir passivamente ao espetá­
um nacionalismo exacerbado. Acredito na culo de nossa própria vida. lemos de nos
legitimidade das nações e de certos nacio­ inserir modestamente no conjunto onde
nalismos. Para certo número de povos, a sentimos que há vontade de criação. É
independência que não tiveram no século isso, a Europa.
XIX nem no século XX é obviamente um A Europa s6 pode se constituir levando
progJesso. Mas que isso se faça - não em conta a sua história, assumindo tanto os
podemos deixar de pensar na Iugoslávia - conflitos, as oposições. como também
na violência e no ódio, é terrível, arrasador. aquilo que os estados têm em comum. E
A segunda preocupação, ainda que eu per­ têm muita coisa em comum: a herança da
maneça otimista, é a efervescência racista, Antiguidade greco-latina, a Idade Média,
e aqui na França, particularmente. Para o Renascimento, o classicismol o iluminis­
mim, é um retrocesso no movimento da mo, o romantismo... Thdo isso foi pratica­
história, é o contnirio daquilo que permite mente vivido de modo europeu, e nisso
que os franceses se sintam relativamente incluo a Europa do Leste. Penso que a
satisfeitos com eles próprios, apesar dos Europa é uma bela aventura.
270 ESTUDOS I-USTÓRJCOS - 199118

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