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AC UESLEGOFF
NDlIE. &lI entrevista roi transcrita, trldu:rid. e editad. por Monique Augru.
material específico, que são os doalmen ro, mas partir do ponto de cbegada me
tos. parece essencial. É por isso que concordo
Logo, o próprio fato de partir de uma com Mare Bloch, que denunciava "a ido
questão problemática já introduz alguma latria das origens". Muitas vezes, os histo
racionalidade. Depois, se o historiador pre riadores das origens fazem o caminho in
tende realizar uma obra científica - ainda verso. Parlem daquilo que começou, e
que a história seja uma ciência muito pecu descem o rio. Ora, penso que se a gente se
liar, acredito que seja uma ciência - tam satisfaz em descer o rio, duas coisas podem
bém deve levar em conta o movimento da acontecer. em vez de entender por que o
história, a sua diversidade, sua irracionali rio corre, a gente acaba sendo levada por
dade, sua flexibilidade. Pessoalmente, te ele; ou então, corre o risa> de perder o
nho grande interesse na história do imagi contato com o rio e ir para longe dele. O
nário e, no imaginário, há muita irraciona método, o trabalho do historiador, a meu
lidade. Portanto, introduzir a racionalidade ver, consistem necessariamente em uma
na história não significa excluir o irracional, constante ida-e-volta entre passado e pre
o impreciso, o flutuante, muito pelo contni sente. Sendo que o presente é obviamente
rio. Significa que a gente tenta explicar as o futuro. O futuro do passado.
mudanças históricas a partir da resposta a \bu citar uma frase conhecida, que foi
uma questão que, por sua vez, é racional. repetida por vários cientistas e, particular
mente, pelo filósofo italiano Benedello
- Não ac"" que a história, como as Croce: "Toda história é contempornnea."
demais ciências sociais, tem como um dos O passado continua sendo interpretado,
seus problemas fondamentais o fato de sempre é uma leitura contempornnea que
sempre propor interpretações ex post fae se faz e, na compreensão do passado, te
to? mos de illtegrar essa leitura renovada, sem
pre recomeçada.
- De pleno acordo, isso é para mim
essencial, eu diria até que é uma das bases -Não se poderia aproximar essa obser
científicas das ciências sociais e, particu vação da perspectica ali/Topológica, quan
larmente, da história. Penso - e olhe que do, ao descrever sociedades OUIras, esta
eu não estou sozinho nisso - que o histo mos retratalldo também a 1I0ssa própria
riador se senle pouco à vontade quando a sociedade?
gente cbega ao imediatamente contempo
râneo. Um dos motivos pelos quais é mui -Concordo inteiramente, mas, vocêsa�
to difícil estudar a história contempornnea be, há um número bastante grande de his
é que não sabemos o que vai acontecer toriadores que discordam. Para mim, é o
mais tarde. É preciso dizer isso claramen ponto crítico que me permite distinguir os
te. Muitas vezes, os historiadores não que historiadores que pretendem renovar a his
rem assumir isso, colocam-se como se [os· tória daqueles que se satisfazem com a
sem os descobridores da evolução históri história tradicional. Acredito que, tanto na
ca. Nada disso! Eles devem partir daquilo antropologia como na história, há esse mo
que aconteceu para tentar compreender co vimento de ida-e-volta. É claro que as
mo e por que aconteceu. sociedades de que trata o historiador não
Para mim, o fato de partir do ponto de são as mesmas sociedades que o antropó
chegada é o que garante a seriedade do logo estuda, e mesmo quando eles acabam
Ir.lbalho do historiador. Além disso, há pesquisando as mesmas sociedades -o que
outras condições, outras qualidades, é cla- acontece cada vez mais - eles têm pontos
264 ESTUDOS HISTôRIOOS -199118
(não gosto muito desta terminologia, que Oxford, para trabalhar em um college, e
me parece inutilmente provocante, mas não outro alio lia Escola Francesa de Roma, da
sei como substituí-la) estão voltando para qual fui membro. Meu pai era professor de
um certo número de orientações que ha inglês no liceu e minha mãe, professora de
viam deixado de lado oomo, por exemplo, plallo.
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teria sido: OIsamento impossível. Mas ho -o sellhor COSnlma afirmar que a Idade
mens e mulheres são minimamente dirigi Médio começa 110 século II e acaba 110
dos por idéias. Eles são condu7Jdos por século XlX. Porque o século XlX'?
sensibilidades, por mentalidades, e é por
isso que acho excelente ter inventado uma - A periodização dos historiadores é
"história das mentalidades", que nos per essencialmente fundamentada na história
mite compreender melbor o que acontece, das sociedades ocidentais. Por ocidentais,
e o que aconteceu nas sociedades. entendo também as sociedades geradas pe
lo Ocidente, como é o caso, é claro, das
-Porque a Idade Média? sociedades americanas. A dominação dos
conquistadores foi tal que, ainda que al
-Sabe que não sei ao certo? Só sei que, guns elementos indígenas tenham sobrevi
muito cedo, eu devia ter uns 10 anos, já vido, a marca essencial dessas sociedades
queria estudar história. Lembro que logo é uma marca ocidental. Digo que as socie
foi a Idade Média que me interessou mais. dades ocidentais sofreram choques deter
Vejo duas influências muito importantes. minantes no decorrer do século XIX. Sem
A primeira foi de um professor do 3· ano estabelecer uma ordem hierárquica entre
ginasial, eu estava com 13 anos, c ele me eles, posso enumerar alguns desses fenô
levou a gostar ainda mais da história. Na menos: em primeiro lugar, o choque tecno
quele tempo, no 3· ginasial, a gente estu lógico, as descobertas, é claro, a revolução
dava a Idade Média. A outra influência foi industrial; e também o choque social e
o fascínio pelos romances de Walter SeOIl. político oriundo em grande parte da Revo
Neles, não encontrava apenas o exotismo lução Francesa que, acredito, marcou o fim
que obviamente seduzia o adolescente, de um mundo e o começo de outro. Em
mas também devo dizer que já percebia em hora certos grandes pensadores, tais como
Walter SCOII uma verdadeira atitude de Tocqueville, vejam também as continuida
.historiador. Via-o como historiador, por des do Antigo Regime na Revolução, a
que ele procurava dar uma explicação do modificação me parece fundamental. A
funcionamento das sociedades das quais mesma coisa acontece no campo religioso
falava. e no campo cultural.
Por exemplo, o mais célebre, entre nós, 'Iklltando ao campo econômico, diga
dos romances de Walter Scotl,lvalúlOé, dá mos, há um fenômeno ao qual atribuo
uma explicação da história que se situa na grande importância, queé a fome(famine).
perspectiva da oposição entre normandos As grandes fomes são típicas da Idade
e anglo-saxôes. Há no romance uma pro Média e da época moderna, e vão até o fim
blemática da história. Há um certo número do século XVIII. Elas expressam um es
de outros fatos que recebem tratamento tado arcaico da economia rural, mas impli
literário, é claro, mas com uma carpintaria cam também um tremendo abalo mental.
que é digna de um historiador. Por exem No século XIX, há fome ainda em certos
plo, o papel dos judeus, a importância e a países da Europa, na Rússia por exemplo,
significação dos torneios etc. etc. Essa mas no conjunto esse fenômeno não existe
obra não só me levou a amara Idade Média mais.
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sobre o tempo. É Paul Ricoeur. porque ele não teve a oportunidade de fazer
a revisão. Por i&so tudo, ele permanece
- Em suo formação universitdria,quais pouco conhecido, até no seu campo espe
foram os mestres l[IIe o impressiollaram? cífico ficou um pouco à margem. Mas para
mim é, de longe, o grande mestre.
- Devo confe=r que não são muitos. Fui aluno de Lombard e, mais tarde, ele
Os professores da Sorbonne me decepcio- teve a bondade de me tomar como seu
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assistente. Nesse meio tempo fui, durante ponante. O que acho notável é que não
CIVXl anos, professor-assistente na Uni foram convidar apenas historiadores oon
velSidade de Lille, e lá pude acompanhar temporâneos, nem, o que seria evidente,
um excelente historiador, Michel Mollal. sociólogos ou psicólogos, mas chamaram
Ele me ensinou que o verdadeiro historia um historiador do passado. Julgaram que,
dor é um historiador completo. Michel em Paris, a presença do passado era tama
MoUatlIatava igualmente de história eco nha, que devia ser levada em conta para
nômica, de história das técnicas, história esclarecer a relação do fenômeno urbano
religiosa... Foi um grande historiador das com a pessoa do citadino. Realizamos três
navegações, fez sua tese sobre O comércio colóquios, e durante quatro anos participa
de Rouen, aliás fora aluno de Marc Blocb. mos de seminários mensais compostos
O seu outro grande campo de pesquisa metade de tét1licos dos transportes e meta
eram os pobres, o ideal de pobreza, e isso de de pesquisadores, historiadores, geó
para mim foi muito animador, muito esti grafos etc. Era apaixonaote. Deu para en
mulante, de ver que a história podia ser, de tender que a história, pela sua própria re
maneiIa tão boa, história econômica e tam nexão e seu papel na cidade, só pode enri
bém religiosa. Estou convicto de que, para quecer-se ao trabalhar junto oom o mundo
compreender determinada sociedade em das empresas.
determinada época, é p reciso o esforço de
oonbecê-Ia em todos os seus aspectos. -E a Europa?
RATP (Administração dos Tra/lSpartes Pa a realidade histórica era a cristandade, isto
risienses). Em que cO/lSistia. a suo atua é, a Europa cristã, latina e romana. A
ção? constituição da Europa deve levar em con
ta aquilo que também separava os povos,
-Ainda estou IIabalbando com a RATP. as nações, os estados, aquilo que os levava
Fui solicitado, de modo surpreendente, pe ao confronto. Não acho que seja possível
lo diretor geral adjunto, que sabia mais ou construir um conjunto, como dizer? artifi
menos o que eu estava fazendo. Eu tinha cial. Vou tomar como exemplo o esperan
acabado de publicar um volume sobre a to: é um fracasso lingüístico. Muita gente
história da cidade medieval, e parece que simpática ainda é a favor do esperanto, mas
foi isso que o incitou a me procurar. A o fato é que o esperanto não deu certo. É
RATP estava iniciando uma semana de uma pena, mas não deu. Não faremos a
renexão sobre a cidade. Eles estavam in Europa nesses moldes. Não faremos um
teressados nos usuários dos transportes pa país·esperJnto.
risienses, e achavam que para entender Estou muito apegado à herança euro
Paris, a pelSpectiva histórica era muito im- péia, mas não concebo esta herança como
UMA ENTREVISTA COM JACQUES USGOFf 269
situada em oposição aos outros grandes episódios negativos que têm em sua histó
mnjuntos que existem no mundo: conjun ria, como todos os povos. É uma grande
to muçulmano - aliás, há muitas coisas tristeza, tanto para o historiador como para
muçulmanas na Europa -, conjunto asiáti o cidadão, ver q uc COiS.1S insatisfalÓrias de
m, ou mnjuoto americano. Nesse último nossa história são recuperadas, proclama
OIS0, insisto, o conjunto americano é, em das, reivindicadas. Aquela gente, para
grande parte, oriundo da Europa. Penso mim, é a anti-França.
até que a mnstituição da Europa vai propi Estou muito preocupado com a junção
ciar melbores diálogos com os demais con de tantos movimentos turvos do passad o
juntos internacionais. em um só. Aqui, estamos confrontados
É verdade que vários projetos, antes com um problema gravíssimo, que dizres
animadores, não estão indo muito bem das peito às relações entre democracia e dita
pernas. As ideologias estão em crise. O dura. Receio, num futuro próximo, as
socialismo acabou completamente desmo ameaças dos totalitarismos e dos racismos.
ralizado pela sua fomla soviética. Verifi Ainda que o estudo do movimento da his
camos que ainda há terríveis injustiças, tória possa mc conrortar, mc tranqüilizar
muita violência, e porconscguinte estamos quanto à Sua evolução.
nos desiludindo. O capitalismo tampouco
nos traz satisfações. Para a maioria das - Apesar de rodos esses problemJlS,
pessoas, é mais fácil viver em regime ca acha o balanço posirivo, em relação à
pitalista do que comunista, mas vemos, cO/lSriruição da Europo?
com todo esse desemprego, que não é o
regime ideal. - lbdas essas dificuldades, o historia
Além da crise das ideologias, há tam dor já as conhece. Estamos em período de
bém ameaças concretas. Falando como mutações e toda mutação se faz na dor.
cidadão e não apenas como historiador, em Estou convicto de que um novo mundo
meio a todas as injustiças, todas as desgra está nascendo, um mundo apaixonante.
ças que há no mundo, da fome à tortura, há, Para mim, a Europa é um grande projeto,
na própria Europa, duas fontes de grande onde podemos investir os desejos, os es
preocupação. A primeira, que é nova, em forços, as paixões, pormeio das quais cada
bora O historiador já pudesse prevê-la, é o homem se deve investir na história. Não
despertar das nacionalidades sob forma de podemos assistir passivamente ao espetá
um nacionalismo exacerbado. Acredito na culo de nossa própria vida. lemos de nos
legitimidade das nações e de certos nacio inserir modestamente no conjunto onde
nalismos. Para certo número de povos, a sentimos que há vontade de criação. É
independência que não tiveram no século isso, a Europa.
XIX nem no século XX é obviamente um A Europa s6 pode se constituir levando
progJesso. Mas que isso se faça - não em conta a sua história, assumindo tanto os
podemos deixar de pensar na Iugoslávia - conflitos, as oposições. como também
na violência e no ódio, é terrível, arrasador. aquilo que os estados têm em comum. E
A segunda preocupação, ainda que eu per têm muita coisa em comum: a herança da
maneça otimista, é a efervescência racista, Antiguidade greco-latina, a Idade Média,
e aqui na França, particularmente. Para o Renascimento, o classicismol o iluminis
mim, é um retrocesso no movimento da mo, o romantismo... Thdo isso foi pratica
história, é o contnirio daquilo que permite mente vivido de modo europeu, e nisso
que os franceses se sintam relativamente incluo a Europa do Leste. Penso que a
satisfeitos com eles próprios, apesar dos Europa é uma bela aventura.
270 ESTUDOS I-USTÓRJCOS - 199118
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' 1985. O maravilhoso e o quotidiano no