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ISBN 978-85-99527-16-0

ISSN 1981-6987

volume 08
Perspectivas da
Análise do Discurso
Fundada por Michel
Pêcheux na França:
uma retomada
de percurso

Ana Zandwais

PPGL - UFSM
2009
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

REITOR
Clóvis Silva Lima

PRÓ-REITOR DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA


Hélio Leaes Hey

DIRETOR DO CENTRO DE ARTES E LETRAS


Edemur Casanova

COORDENADORA DO PROGRAMA DE
PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
Amanda Eloina Scherer

EDITOR
Programa de Pós-Graduação em Letras

DIREÇÃO DA SÉRIE COGITARE


Mirian Rose Brum-de-Paula
Sílvia Paraense
Giovana Ferreira-Gonçalves

REVISÃO
Rejane M. Arce Vargas

PROJETO GRÁFICO
Bianca Ruviaro Tolfo, Carolina Isabel Gehlen

Z27p Zandwais, Ana


Perspectivas da análise do discurso fundada por
Michel Pêcheux na França: uma retomada de percurso /
Ana Zandwais – Santa Maria: UFSM, Programa de
Pós-Graduação em Letras, 2009.

50 p. ; 30 cm. – (Série Cogitare ; v. 8)

ISBN 978-85-99527-16-0
ISSN 1981-6987

1. Lingüística 2. Discurso 3. Análise do discurso


4. Dialética 5. Pêcheux, Michel I. Título. II. Série.

CDU 801


Ficha catalográfica elaborada por Josiane S. da Silva
CRB-10/1858, Biblioteca Central - UFSM.
SUMÁRIO

Apresentação ......................................... 07

Perspectivas da Análise do Discurso Fun-


dada por Michel Pêcheux na França: Uma
Retomada de Percurso ......................... 13

Bibliografia ............................................... 43

Política Editorial ........................................ 47

Volumes Publicados ................................ 49


APRESENTAÇÃO

“... é o campo da prática concreta,


da experiência, do vivido, que determina
como o real precisa ser representado e
significado como discurso”.
Ana Zandwais

No ano em que o Laboratório Corpus,


Laboratório de Fontes de Estudos da Lingua-
gem, vinculado do Programa de Pós-Graduação
em Letras da UFSM, completou 06 anos desde
a inauguração de sua sede, em junho de 2008,
recebeu como presente a importante preleção
de Aula Magna, pela Profª Dr. Ana Zandwais,
da UFRGS. Um presente porque o Corpus foi
idealizado sob a égide teórica que visa a tratar
das materialidades dos discursos, das teorias e
dos sujeitos dessas e a essas teorias, em uma
perspectiva que acolhe as manifestações de lin-
guagem situadas na historicidade, na ideologia,
no real das práticas linguageiras cotidianas. Por
essa razão, a aula-conferência que aqui com-
partilhamos trata-se de um percurso teórico que
faz jus à vida política e partidária e, sobretudo,
teórica daquele que, para nós, é o grande ícone
da teoria materialista do discurso, da teoria não
separada da práxis, não separada da vida, não
distanciada de nós. É com alegria que apresen-
tamos o texto de Ana Zandwais sobre a teoria-
vida de Michel Pêcheux.
Ao retomar o percurso teórico de Michel
Pêcheux, a professora Ana Zandwais traz à baila
a controversa história do conceito de ideologia e
sua difícil definição, seja no interior do materia-
lismo histórico, seja na teoria materialista do dis-
curso. Gesto importante este, especialmente por
nos lembrar que não foi Pêcheux, nem mesmo
Althusser, que primeiro teorizaram e problemati-
zaram acerca da(s) ideologia(s).

08
De início, pensado por Destutt de Tracy,
depois retomado e transformado radicalmente
por Marx, o conceito de ideologia foi abordado e
repensado por outros importantes autores mar-
xistas antes de ser definido por Althusser como
uma forma específica de materialidade. É a partir
de uma trajetória téorico-conceitual estabelecida
bem antes que Pêcheux irá tomar seu lugar ao
articular a materialidade ideológica com a mate-
rialidade discursiva.
Outra contribuição que a retomada do
percurso pecheuxtiano traz, em sua relação com
o marxismo-leninismo de Althusser, é o vínculo
da Análise de Discurso (AD) com a teoria da prá-
tica em geral ou, em outras palavras, a dialética
materialista. Embora a categoria da contradição
e seus modos de funcionamento se façam pre-
sentes nos trabalhos de análise em toda a histó-
ria da AD franco-brasileira, a menção à teoria da
prática teórica ou materialismo dialético (na defi-
nição althusseriana) é irrisória, sobretudo na atu-
alidade. Será que persistindo neste esquecimen-
to não corremos o risco, por um lado, de apagar

09
a especificidade crítica da filosofia materialista e, de
outro, de não mais distinguirmos materialismo histó-
rico (ciência da história) de materialismo dialético (a
filosofia materialista enquanto teoria geral daquela
ciência)?
É claro que tomar uma distância crítica fren-
te à dialética materialista e a teoria dos Aparelhos
Ideológicos de Estado de Althusser pode ser uma
alternativa para a AD hoje, desde que se tenha em
conta que conceitos como ‘estrutura com dominan-
te’, ‘sobredeterminação’, além de outros, são tribu-
tários da elaboração teórica da dialética materialista.
Zandwais também discorre sobre essa tensão entre
a vinculação a outrem e a independência teórica
da AD. É notável como uma série de movimentos
de ajustes e retificações teóricas conferiram maior
autonomia para a teoria materialista do discurso de
Pêcheux em relação à filosofia de seu mestre, Al-
thusser. Sem sombra de dúvida, retificações como a
do caráter (dialético!) de reprodução/transformação
das formações ideológicas e discursivas assegura-
ram um ganho de conhecimento, por via dessa auto-
nomia. Com a única ressalva de também não esque-
cermos de que nem o próprio Althusser se manteve

10
inerte em suas primeiras posições (cf. Ce qui ne
peut plus durer dans le Parti Communiste,
1978; e A Corrente Subterrânea do Materialis-
mo do Encontro, 1982).
Nas páginas seguintes, Zandwais nos ensi-
na que um percurso teórico é sobretudo a mudança
de posição, em contraposição a outras. Em suma, é
um movimento dialético.

Maurício Beck e Rejane Arce Vargas


Setembro de 2008.

11
Perspectivas da Análise
do Discurso Fundada por
Michel Pêcheux na França:
Uma Retomada de Percurso

Este estudo parte da proposta de retomar


alguns aspectos da trajetória de Michel Pêcheux,
desde suas primeiras incursões pelos campos de
conhecimentos os quais ele propõe articular para
constituir a área de estudos de Análise do Discur-
so até seus escritos, digamos, da maturidade de
um filósofo marxista.
Comecemos, então, pelo contexto histó-
rico no qual Michel Pêcheux se insere quando ini-
cia formalmente seus estudos e suas críticas em


Conferência proferida em 25 de junho de 2008, no IV Encontro do
GEL e II Colóquio do Grupo de Estudos M. Pêcheux, promovido pelo
Laboratório Corpus (PPGL/UFSM).
torno das concepções epistemológicas dominantes
no campo das Ciências Sociais e Humanas.
Um dos primeiros escritos de Michel
Pêcheux, entre os que passam a ser difundidos
no meio acadêmico, é publicado em Les Cahiers
Pour l’Analyse (Ecole Normale Supérieure),
datado de 1966, cujo título é Reflexões sobre a
Situação Teórica das Ciências Sociais e espe-
cialmente da Psicologia Social e que circula sob
o pseudônimo de Thomas Herbert. Neste artigo, Mi-
chel Pêcheux questiona o modo como as Ciências
Sociais, que deveriam debruçar-se, de forma per-
manente, sobre “questões de fronteira”, dialogando
com outras áreas de conhecimento, interagem com
a teoria – sobretudo a Filosofia – de modo a legiti-
mar uma concepção de ciência neutra (id., p. 142) e,
em conseqüência, cega às relações de desigualda-
de social que permeiam as condições de produção
das práticas teóricas, técnicas, políticas, sociais,
ideológicas, etc.

2
Trata-se do volume 2 de uma publicação organizada pelo Círculo de Episte-
mologia da Ecole Normale Supérieure, cujo tema é “Qu’est-ce que la psycho-
logie?”

14
Ao tratar, desta forma, do fechamento
de fronteiras entre a Psicologia, a Sociologia e o
próprio campo experimental da sociedade como
um lugar de práxis, Thomas Herbert (Michel
Pêcheux) já começa a delinear suas primeiras
concepções marxistas de ciência, buscando
desalojar o campo das Ciências Sociais de um
estatuto positivista, em que a ciência se reduz a
uma ciência dos fatos tomados fora de qualquer
contexto histórico, banindo também de seus do-
mínios tanto as relações entre questões ligadas
aos estudos da linguagem, e questões sociais
interligadas ao campo das práticas, como ques-
tões voltadas às formas de subjetivação do su-
jeito nas relações de poder, de desigualdade e
de confronto entre as classes. É, pois, a partir
de Reflexões sobre a Situação Teórica das
Ciências Sociais que Pêcheux começa a es-
tabelecer alguns alicerces indispensáveis para
desalojar as Ciências Sociais de paradigmas
positivistas e inscrevê-las, à luz de uma refle-
xão marxista, nos domínios do humanismo,
onde questões sobre subjetividade, ideologia,

15
confrontos e lutas de classe ocupam lugares es-
senciais.
Cabe ressaltar, por outro lado, que ao
estabelecer uma tipologia de práticas (prática
técnica, política, científica, etc.), na tentativa de
reverter o caráter de abstração das Ciências
Sociais, Pêcheux, inicialmente, compartimenta
tais práticas e, sobretudo, isola as práticas ideo-
lógicas das demais, especificando, inclusive, as
primeiras, como se as ideologias não fossem
constitutivas do modo de produção de todas as
práticas.
Assim, neste processo de busca de um
outro paradigma, Michel Pêcheux parece (id., p.
143-4) mostrar-nos estar de alguma forma ainda
preso a uma concepção de ideologia que se pre-
sentifica em A Ideologia Alemã, concepção
idealista de influência hegeliana, que pensa a
ideologia em oposição à ordem do real, como
uma inversão deste último na consciência hu-
mana. É graças à concepção de ideologia apre-
sentada em A Ideologia Alemã, portanto, que
se pode falar em uma “falsa consciência”, uma

16
vez que as representações ideológicas são to-
madas, desde tal ótica, como falsas em relação
à realidade objetiva e é isto, portanto, que pode-
ria justificar a apresentação de uma “tipologia de
práticas” proposta por Pêcheux.
Pode-se, por outro lado, sublinhar tam-
bém que tal concepção de ideologia represen-
tou, sem dúvida, um problema, um obstáculo,
do qual Pêcheux teria de livrar-se a fim de apro-
fundar suas reflexões acerca do próprio estatuto
de ciência que estava buscando, já que tomar a
ideologia em oposição à ordem do real implicava
pensar suas condições de existência, ou aparta-
das da ordem da história, ou de uma concepção
de ciência, trabalhando, assim, teoricamente,
sob o ângulo do positivismo que ele buscou, de
modo incessante, combater.
Já em Observações para uma Teoria
Geral das Ideologias, publicado em 1967, Tho-

3
É a partir da releitura de Lênin acerca da concepção marxista de ideo-
logia presente em A Ideologia Alemã que se pode dizer que esta noção
passa a ser ressignificada. Para Lênin (1986), a concepção de ideologia
como reflexo inverso da ordem do real não se sustenta. É, pois, a partir
de suas redefinições do conceito, que pode ser desfeita a oposição entre
ciência e ideologia, o que também aproxima Pêcheux de Lênin e lhe per-
mite tratar de uma teoria das ideologias enquanto teoria científica.

17
mas Herbert (Michel Pêcheux) propõe a adoção
de uma teoria geral das ideologias (id., p. 66), ob-
servando que esta torna-se possível e até mes-
mo necessária, em função de razões de diversas
ordens tais como:
a) a necessidade de investigação dos
efeitos do conhecimento de “tipo científico”;
b) a possibilidade de construção de uma
ciência das formações sociais, comportando ca-
tegorias de base marxista, como o materialismo
histórico e o materialismo dialético;
c) uma terceira razão também importan-
te, que consiste em reportar a ideologia à leitura
do modo de produção das relações sociais de
produção, na medida em que ela (a ideologia)
inscreve os agentes da produção em seu interior
e ao mesmo tempo reconhece seus modos de
produção.
Cabe ressaltar, sobre esse artigo, que a
relação sujeito versus ideologia, versus sentido é
apresentada, digamos, ainda sob uma abordagem
“preliminar”, considerando que Thomas Herbert
(id., p. 65) (Michel Pêcheux), ao tratar do homem

18
como animal ideológico, caracteriza também as
ideologias como sendo: a) produtos da prática
técnica empírica; b) “cimento” da sociedade”,
atuando como condições indispensáveis à prática
política. No primeiro caso, tratar-se-iam ainda de
falsas ideologias (uma ideologia tenta se passar
por ciência), visão mais próxima de A Ideologia
Alemã (id., p. 65), e no segundo, de ideologias
já com caráter orgânico e representativo da
ordem do real.
É a partir de tais concepções que Pêcheux
também configura as ideologias pautadas em
suas dominâncias:
I) a dominância metafórico-semântica,
em que o sujeito ao deslocar propriedades dos
significantes para significados, isto é, metaforizá-
los, marca sua posição em relação a um sistema
de sinais que balizam seu “comportamento”;
II) a dominância sintático-metonímica,
em que a ideologia reflete as relações entre os

4
Cabe lembrar, aqui, que para Gramsci (1989) é condição da linguagem
funcionar metaforicamente, de modo que a oposição linguagem literal/
metafórica somente poderia ser aceita desde uma ótica lingüística de
tipo positivista.

19
discursos e as instituições através de operações
sintagmáticas, opondo, por fim, o comportamen-
to ideológico, presente nas dominâncias metafó-
rico-semânticas (corporais, gestuais, de fala), ao
discurso ideológico, presente nas dominâncias
metonímico-sintáticas.
Conforme se pode observar, ainda que
Pêcheux, nestes estudos, confira um estatuto
distinto à noção de ideologia já apresentada em
1966, apontando para a necessidade de uma
nova trajetória a ser percorrida, permanecem, to-
davia, definições que precisam ser reelaboradas,
criticadas: a) de um lado, a busca de tipologias
capazes de atestar os trabalhos semântico-discur-
sivos da linguagem; b) de outro lado, o rigor formal
da classificação que mais se aproxima de uma
perspectiva descritivista do que de pressupostos
da Filosofia da Práxis.
É somente em 1969, portanto, que
Pêcheux, ao aproximar-se ainda de Althusser,
mas, ao mesmo tempo, demonstrando uma certa
independência em relação à influência que so-

20
fre deste, no que diz respeito a seu processo
de elaboração de uma ‘teoria materialista do
discurso’, passa a definir, de forma concreta, os
tipos de articulações necessárias para “dar vida”
à Análise do Discurso como uma disciplina que
deve apresentar uma certa autonomia em rela-
ção à Lingüística. No texto intitulado Análise
Automática do Discurso, ainda que o título
seja bastante polêmico para uma teoria do dis-
curso que se pretende não formalista, Pêcheux
já estabelece alguns conceitos importantes que
visam a afastar as bases epistemológicas que
dão sustentação à Lingüística daquelas que dão
sustentação à Análise do Discurso.
Ao criticar a concepção estruturalista,
presente na teoria saussureana, em que a lín-
gua é tomada, de forma abstrata, como conven-
ção e como produto da história, o autor trata ao

5
É importante assinalar a forte influência sofrida de Althusser em todo o
percurso de Pêcheux, ainda que em determinado período de sua teoria,
Pêcheux se afaste de algumas concepções do mestre. É preciso pontuar
também que as relações entre materialismo histórico, materialismo dia-
lético e o campo da práxis advêm de reflexões althusserianas. Assim, do
mesmo modo, as noções de formação ideológica e de interpelação dos
indivíduos em sujeito propostas por Pêcheux são inicialmente tomadas
de Althusser para, posteriormente, serem reformuladas.

21
mesmo tempo das noções de base lingüística e
processo discursivo, buscando mostrar que lín-
gua e discurso têm materialidades distintas e, ao
mesmo tempo, intercomplementares, de modo
que, enquanto a base lingüística seria tomada
como a materialidade necessária para a realiza-
ção da ideologia, os processos discursivos reme-
teriam para os lugares nos quais as ideologias
funcionam e produzem determinados efeitos de
sentidos a partir de seus modos de inscrição em
determinadas ordens histórico-simbólicas, confi-
gurando o modo como as formações imaginárias
funcionam nos processos discursivos, não ale-
atoriamente, mas a partir de um outro conceito
fundamental para a AD: o conceito de condições
de produção tomado do materialismo histórico, e
que viria a criar as condições para inscrever, de
modo concreto, a história na ordem do discurso e
o discurso no campo da práxis. É, pois, por este
viés inicial que Pêcheux começa a fragilizar as
“fronteiras” entre as Ciências Sociais e Huma-
nas, e a delinear as bases para a constituição

22
de uma disciplina antipositivista e antiformalista
de linguagem.
É preciso ressaltar, entretanto, que mes-
mo buscando alicerçar-se em fundamentos de
base marxista a fim de constituir noções capazes
de desalojar determinados procedimentos posi-
tivistas, tais como as antinomias, as oposições
de valores marcadas no interior do sistema da
língua, as relações de segmentação entre os
componentes morfológico, sintático e semântico,
Pêcheux, neste período de sua produção, ainda
está atado tanto a referenciais teóricos funciona-
listas e distribucionalistas de linguagem, como a
procedimentos analíticos descritivistas e forma-
listas que dominam em suas práticas de análise
de discursos, acreditando, quiçá, que pudesse
lançar mão de dispositivos mais ou menos “au-

6
Lembramos que as primeiras noções de redes de paráfrases propos-
tas por Pêcheux estão muito mais próximas da noção de paráfrase lin-
güística do que, propriamente, de uma noção de paráfrase discursiva.
7
Um exemplo ilustrativo da afirmação acima poderia ser referenciado
pelo artigo intitulado A Respeito do Movimento Estudantil e das Lutas
da Classe Operária: 3 Organizações Estudantis em 1968 produzido por
Pêcheux e J. Wesselius, publicado em Histoire et Linguistique. ROBIN,
Régine (1973), cuja versão em Língua Portuguesa aparece em 1977.

23
tomáticos” para “conciliar” questões discursivas
e estruturais.
Ao articular, por outro lado, três regiões
do conhecimento que ele designa como científico,
em 1975, ou seja, o materialismo histórico, a Lin-
güística e a teoria semântica, Pêcheux começa
a configurar as bases de uma disciplina com ali-
cerces em uma concepção materialista histórica
de Ciências Humanas. Sobre esta determinação,
talvez seja interessante salientar que o mate-
rialismo histórico, ao ser definido como “teoria
das formações sociais e de suas transforma-
ções”, compreendendo “a teoria das ideologias”
passa a operar na teoria pecheuxtiana como um
componente global, que irá demandar, a partir
desta definição de um campo teórico específico,
as múltiplas reflexões que serão feitas posterior-
mente, já que ele inicia operando a partir de um
processo de “dilatação” das relações que podem
ser postuladas, desde uma ótica marxista, entre

8
É preciso rememorar o fato de que as teorias sobre ideologias são
inúmeras e bem heterogêneas, remontando a Destutt de Tracy (1801)
durante o período napoleônico e, posteriormente, sendo repensadas por
Marx, Lênin, Volochinov, Gramsci e Althusser sobretudo.

24
materialismo histórico, materialismo dialético e
ideologia, abrigando todas estas questões den-
tro da categoria do materialismo histórico.
É na esteira, ainda, desse processo de
desconstrução das bases tanto das teorias ob-
jetivistas (estruturalistas, formalistas) e subje-
tivistas (enunciativas) que Pêcheux, ao tratar a
Lingüística como teoria dos mecanismos sintá-
ticos e dos processos de enunciação, busca es-
tabelecer uma ponte entre ideologia, discurso
e subjetividade, de modo a refletir sobre a con-
versão do indivíduo em sujeito pela interpelação
(captura) deste como sujeito de uma formação
social, e que se reconhece como sujeito pelas
práticas que o interpelam no interior das forma-
ções ideológicas, as quais se referendam através
de uma ou outra formação discursiva a que es-
tão ligadas. Ao tratar, portanto, do modo como a
ideologia “apreende” o sujeito e se corporifica na
materialidade discursiva, Pêcheux entende tam-

9
É importante ressaltar que é através da categoria do materialismo
dialético, explorando o funcionamento da contradição, que Pêcheux irá
aprofundar as noções de heterogeneidade que afetam a formação dis-
cursiva e o sujeito.

25
bém que o componente sintático precisa adquirir
um outro estatuto bem diverso do que teria na
Lingüística, precisa deixar de ser apenas formal
para constituir uma nova materialidade – a base
lingüística – que integra os processos discursivos
e que se ressemantiza a cada instância de inscri-
ção no discurso e na história. Eis que a distância
entre o que se pode denominar discurso, como
objeto teórico, e discurso como objeto empírico,
começa a tornar-se menos visível e a relação
entre ambos mais concreta.
Por fim, ao tratar da teoria do discurso
como teoria da determinação histórica dos pro-
cessos semânticos, Pêcheux se aparta da óti-
ca do historicismo-comparatista, que colocou a
história no centro de suas investigações10, para
recolocar uma história não linear, não homogê-
nea, não contínua no centro dos processos de
significação que são produzidos pelos discursos
em determinadas condições de produção. Desde

10
Reportamo-nos sobretudo à visão de Michel Bréal (1992) que tra-
ta das leis e dos processos de transformação do léxico e da gramática
desde uma ótica historicista-comparatista, em que o olhar do filólogo é
determinante.

26
esta ótica, portanto, as relações do sujeito com
a história e com os sentidos não podem mais
ser tomadas como “representações” subjetivas
que os sujeitos constroem sobre o real, mas, ao
contrário, é o campo da prática concreta, da ex-
periência, do vivido, que determina como o real
precisa ser representado e significado como dis-
curso.
É preciso enfatizar, sobre este período,
ainda algumas questões que entendemos serem
de fundamental importância. Se Pêcheux con-
tinua próximo de Althusser, no que diz respeito
à sua teoria sobre o processo de interpelação
do indivíduo em sujeito, o que o incita a pensar
na possibilidade de ter construído uma teoria
não-subjetiva da subjetividade11, vai se afastan-
do gradualmente deste, na medida em que, ao
refletir sobre as condições de significância da

11
Cabe observar que, ao afirmar que trata de uma teoria não-subjetiva
do sujeito, ou seja, “de uma análise não-subjetiva dos efeitos de senti-
do, que atravessa a ilusão efeito-sujeito” (id., p. 240), sem fazer alusão
às teorias subjetivistas não marxistas, onde o sujeito é tomado em sua
individualidade, Pêcheux acaba não conseguindo tornar clara sua crí-
tica voltada para um distanciamento de uma relação opositiva de tipo
estruturalista, entre uma teoria objetiva da subjetividade, por oposição
à subjetiva.

27
ideologia, isto é, suas materialidades, introduz
o conceito de formação discursiva com vistas a
conferir à ideologia não somente materialidades
em termos de ação, ritos, práticas institucionais,
inscritas nas formações ideológicas, mas tam-
bém materialidades discursivas, tomadas na
base lingüística. Assim, ao estabelecer uma rela-
ção de complementaridade entre base lingüística
e processo discursivo, Pêcheux (1975, p. 233)
concebe o discurso como um dos aspectos ma-
teriais da ideologia, aprofundando, portanto, uma
questão fundamental – a da linguagem – que não
teria sido senão superficialmente pensada por
Marx12 ou Althusser, mas já pensada por Volo-
chinov/Bakhtin em 192913, na medida em que a
relação entre signo e ideologia parece ser cons-
titutiva tanto da noção de sentido, já que “o do-

12
É preciso observar que as questões lingüísticas são tratadas de modo
muito genérico em Marx, A Ideologia Alemã (1846), e Pêcheux conscien-
te dessa lacuna inicia suas discussões em Semântica e Discurso (p. 20),
questionando não somente a compreensão de Adam Schaff acerca dos
escritos marxistas, mas também os próprios limites dos Manuscritos e A
Ideologia Alemã em relação ao tratamento da linguagem.
13
É importante ressaltar que Pêcheux (1980) reflete sobre as contribui-
ções de Volochinov, produzidas em 1929, como sendo ímpares, para os
estudos lingüísticos de base materialista histórica em Remontemonos
de Foucault a Spinoza.

28
mínio do ideológico coincide com o domínio dos
signos” (1986, p. 32), como da noção de consci-
ência, uma vez que a consciência está sempre
“impregnada de signos ideológicos e adquire for-
ma e existência nas relações sociais e históricas”
(id., p. 35).
A noção de formação discursiva, a partir
daí, ganha uma especificidade que lhe é própria
e que torna inviável o fato de que esta possa ser
confundida com o discurso simplesmente, o qual
poderia ser objeto de outras análises de discur-
so, tais como a funcionalista, a anglo-saxã, etc.
Ao afirmar que toda formação discursiva
depende de condições de produção, Pêcheux
(id., p. 234) insere o objeto discursivo, isto é, a
materialidade significante do discurso, na mate-
rialidade histórica, de tal modo que é pelo viés
da inscrição do discurso em uma ordem ao mes-
mo tempo simbólica e histórica que a linguagem
carrega os “pesos” das diferentes ideologias em
seu interior. Neste ponto, podemos afirmar ainda
que Pêcheux também se afasta da concepção de
formação discursiva foucaultiana (a partir da qual

29
ele se inspira para delimitar as bases de uma teo-
ria materialista histórica), já que para Foucault14
(1987) uma unidade ou formação discursiva,
embora possa ser constituída por saberes dis-
persos em diferentes épocas, é sempre tomada
como objeto de investigação na emergência dos
acontecimentos, nas contingências em que pro-
duz sistematicidades, efeitos. Para Pêcheux, por
outro lado, a formação discursiva não somente
está diretamente articulada à formação ideoló-
gica, às condições de produção, como também
a um determinado tipo de subjetividade tomada
da/na história, e sob este aspecto a distância tor-
na-se bem marcante entre Foucault e Pêcheux,
uma vez que para Foucault (1987, p. 107) o su-
jeito é uma posição que pode ser ocupada
por qualquer indivíduo, de modo alternado,
em uma série de enunciados produzidos em di-
ferentes momentos. Assim, se para Pêcheux, no
processo de interpelação, o sujeito é “capturado”
pelas determinações históricas que “o falam” an-
tes que ele fale de si mesmo, torna-se necessário
14
Reportamo-nos às leituras de A Arqueologia do Saber.

30
convir que os lugares de sujeito a serem “ocu-
pados” por determinados indivíduos ao invés de
outros, em Pêcheux, não podem ser pensados
como lugares de “câmbio acessível”.
Há também uma outra questão que as-
sume relevância ímpar nesse período: trata-se da
forma como ele reflete acerca do funcionamento
dos aparelhos ideológicos, reconfigurando, desta
forma, a própria leitura de Althusser15 (1999) so-
bre as condições através das quais ocorrem as
relações de produção no interior dos aparelhos
de Estado.
Parece-nos que é justamente sobre este
ponto que começa a delinear-se a apresentação
de Pêcheux como um marxista-leninista16, e não
simplesmente como um marxista, tendo em vista
o modo como ele retoma a noção de formação
ideológica althusseriana para recolocá-la tanto

15
Fazemos referência ao texto clássico de Althusser A Propósito da Re-
produção das Relações de Produção publicado em Sobre a Reprodução
(1999).
16
É fundamental salientar que Pêcheux vem a assumir-se, de forma
explícita, como marxista-leninista em Les Verités de la Palice - Semânti-
ca e Discurso: Uma Crítica à Afirmação do Óbvio (1987), texto no qual
praticamente todas as suas reflexões remontam aos escritos e à prática
política de Lênin.

31
de forma articulada à noção de formação discur-
siva e, por fim, poder tratar sobre como os apare-
lhos ideológicos podem ser vistos no interior de
uma sociedade de classes. Em outras palavras,
ao tratar da função da formação ideológica que
consiste em desempenhar, no seio das forma-
ções sociais, papéis desiguais que tanto podem
pender para a reprodução como para a transfor-
mação (1975, p. 167), e das formações discursi-
vas como mutáveis, instáveis, podendo “fornecer
elementos que se integram em novas formações
discursivas, no interior de novas relações ideoló-
gicas” (id., p. 168), Pêcheux começa a configu-
rar os Aparelhos de Estado como “palcos” tanto
para a perpetuação das relações de produção,
como para as relações de transformação das
formações ideológicas e das formações discur-
sivas, enfim, ele abre um espaço para tratar das
relações de ruptura no campo da prática política,
adotando, por isso, uma ótica mais crítica do que
a de Althusser que limita o alcance da análise das
formações ideológicas à prática da reprodução.

32
É, por esta mudança de postura, por res-
significar o pensamento de seu mentor intelectual
que Pêcheux avança em relação à leitura de Al-
thusser e passa a complexificar, em Semântica
e Discurso (1987) não somente sua concepção
de transformação, como também suas concep-
ções sobre as formas de subjetivação do sujeito,
englobando no interior destas, reflexões sobre
“o mau sujeito”, a prática política revolucionária,
e, ainda, sobre a materialidade dos processos
discursivos de ruptura, configurando, desde aí,
uma ponte entre o funcionamento da polissemia
como processo significante e a prática política da
transformação.
É, pois, em Semântica e Discurso
que Pêcheux aproxima-se e assume, de modo
concreto, sua ótica marxista-leninista. Ao tratar
dos aparelhos ideológicos de Estado, ele passa a
observar que estes não são “puros instrumentos
da classe dominante”, “máquinas ideológicas”,
mas que comportam, ao contrário, um conjunto
bem complexo de relações de contradição-desi-
gualdade-subordinação, de tal modo que as lutas
33
de classe, a contradição de interesses que se pro-
cessam em seu interior, podem contribuir tanto para
a reprodução, como para a transformação das práti-
cas, dos saberes ideológicos dominantes, servindo a
interesses de classe diferentes, e configurando, em
síntese, a “cena própria da luta ideológica de clas-
ses” (id., p. 146). Desde esta perspectiva, portanto,
Pêcheux já sinaliza para uma outra leitura, em que
o enfoque para relações de antagonismo (entre as
classes, no interior dos aparelhos de Estado) e con-
tradição (no interior de uma formação discursiva) lhe
permitem voltar-se não somente para a heterogenei-
dade das FDs, para o sujeito dividido, mas também
para o sujeito que questiona os saberes das FDs
com as quais se reconhece, e para os discursos de
ruptura produzidos a partir de “perdas de referên-
cias” no interior das FDs.
Em relação às modalidades de subjetivação
do sujeito, ao tratar da segunda modalidade (id., p.
215) por oposição a da aceitação livremente con-
sentida, isto é, do “mau sujeito”, a qual pode ser ca-
racterizada como uma “operação de confronto”, em
que o sujeito da enunciação se volta contra o sujeito

34
universal, colocando a dúvida, o questionamen-
to, a contestação, a revolta contra os saberes
próprios da FD, torna-se fundamental enfatizar
que é, exatamente, através da reflexão sobre o
funcionamento desta modalidade que Pêcheux
configura o espaço da contradição no interior
da forma-sujeito, correlacionando-a com mo-
dalidades de subjetivação que questionam, he-
sitam, duvidam da efetividade dos saberes que
compõem uma dada FD, explicitando, em última
instância, por meio do contra-discurso, o modo
orgânico de funcionamento do materialismo dia-
lético no interior de uma teoria discursiva.
Ao apontar, por outro lado, para uma
terceira modalidade de sujeito, que ele designa
de desidentificação, Pêcheux afirma tratar com
conhecimentos e com uma prática política que
integram dispositivos de experimentação-trans-
formação históricos e que vêm a constituir um
trabalho de desarranjo-rearranjo da forma-sujei-
to, de tal modo que, sob tais condições, a ideolo-
gia funciona sobre si e contra-si, exibindo o real
como “uma necessidade pensada” para que o

35
modo de produção das relações de produção possa
ser transformado. Trata-se, portanto, aqui, de uma
modalidade de subjetivação que rompe com os sa-
beres próprios das FDs, estilhaça pré-construídos,
substituindo-os por outros, reverte saberes e práti-
cas, reconfigurando, assim, tanto a formação ideo-
lógica como a formação discursiva que apresentam
o indivíduo como sujeito em uma dada conjuntura
histórico-social, para que se instaurem novas prá-
ticas sociais, capazes de identificar a formação
ideológica, novas ideologias e discursos, em que
os sentidos apontam para efeitos interditados ou
castrados pela instituição, pela lei, pelo Estado, em
virtude das desigualdades sociais, ou ainda sentidos
impensados em função da cristalização de saberes,
da dominância das condições de reprodução sobre
as condições de transformação. Trata-se, portanto,
aqui, de uma modalidade de subjetivação que confi-
gura tanto a identidade do sujeito da prática política
revolucionária, como as formas através das quais
ele intervém sobre os universos logicamente esta-
bilizados.

36
Neste momento de suas reflexões teóricas
totalmente engajadas a uma concepção marxista-le-
ninista de prática política revolucionária, mas apro-
fundando, revisando o conceito leninista de transfor-
mação17, Pêcheux consegue articular suas reflexões
em torno do materialismo histórico e do materialismo
dialético, considerando as formas através das quais
a reprodução e a transformação convivem sob per-
manentes relações de tensão.
Ao tratar sobre como as modalidades dos
sujeitos da contradição – o sujeito da dúvida, do
questionamento – e do sujeito da desidentificação
(id., p. 226) operam, o autor reflete, de modo concre-
to, em torno do funcionamento do materialismo dia-
lético no interior da teoria, bem como sobre o que se
pode qualificar como sendo o limite da contradição,
traduzindo, assim, a prática revolucionária como um

17
É importante considerar que, em torno da relação teórico-prática de dita-
dura do proletariado, emergiram algumas brechas significativas, que suscita-
ram em Gramsci (1982), enquanto um pensador de tendência marxista-leni-
nista, a necessidade de refletir não somente sobre o estatuto que deveriam
ter os intelectuais no seio do mezzogiorno, como também sobre o que deveria
significar a noção de hegemonia na prática política revolucionária e ainda
sobre como os intelectuais poderiam tornar-se orgânicos no seio dos partidos
e da sociedade civil como formadores e transformadores.

37
processo de ruptura, de desarranjo e rearranjo, em
outro sítio ideológico, daquilo que precisa ser desar-
ranjado.
Com base nas observações acima feitas,
parece-nos, então, que a escrita do texto Dis-
course: Structure or Event? apresentado na
Conferência “Marxismo e Interpretação da Cultura”,
na Universidade de Illinois Urbana-Champaign, em
1983, é que vem responder a algumas necessida-
des de reflexão mais crítica, em torno de questões já
postas em Les Verités de la Palice (1975).
Ao investigar a modalidade do sujeito do dis-
curso de ruptura, do desarranjo-rearranjo, Pêcheux
precisa tratar, em conseqüência, de outra questão;
isto é, do acontecimento como uma relação de es-
paço-tempo e de produção de sentidos que irrompe
no discurso, mas não está marcado na base lin-
güística, a não ser através de uma relação posta
entre a emergência do acontecimento histórico que
se discursiviza e uma memória discursiva a que ele
remete. Mas não basta a teoria para aprofundar a
questão, é preciso questioná-la desde a ordem dos
acontecimentos empíricos.

38
Quando Pêcheux trata, portanto, em Dis-
curso: Estrutura ou Acontecimento?, do
enunciado “On a gagné”, proferido no dia 10 de maio
de 1981, com o fim de comemorar a vitória eleito-
ral de François Mitterand na França, o autor remete
este enunciado, ao mesmo tempo, às circunstâncias
de seu acontecimento, e a uma memória discursi-
va que retoma momentos históricos do passado em
que comunistas e socialistas foram eleitos pelo povo
na França, desde Jaurés até Maurice Thorez e Leon
Blum18.
Cabe observar que é a partir deste acon-
tecimento, que ilustra de modo concreto como se
produz a descontinuidade na ordem da história, na
medida em que simboliza o retorno de uma aliança
do governo com a esquerda francesa, já sem repre-
sentatividade na esfera política do país, que se pode
pensar na singularidade de uma relação transversa
entre as materialidades discursiva e lingüística.

18
Reportamo-nos à vitória da Frente Popular em 1936, articulada a partir de
uma aliança entre o Partido Comunista Francês, representado por Maurice
Thorez e o Partido Socialista, representado por Leon Blum.

39
“On a gagné” é um enunciado, um profe-
rimento que pode ser caracterizado como opaco,
em termos de sua espessura semântico-lingüística;
introduz-se por meio de uma pronominalização dêi-
tica (Nós ganhamos) e não tem complementos. Daí
porque é preciso remetê-lo para sua materialidade
discursiva.
Da perspectiva da materialidade discursiva,
é preciso convocar a história e o acontecimento,
isto é, a irrupção do descontínuo, do inesperado na
ordem da história como um fato que emerge pela
desestabilização do que parecia estar estabilizado
sob o ponto de vista lógico. Mas não há, por outro
lado, como convocar a história e o acontecimento,
sem considerar o modo com ele se discursiviza, ou
seja, a estrutura, o proferimento que permite ativar a
memória da esquerda francesa.
É somente, então, a partir desta relação par-
ticular de entrecruzamento, que o enunciado pode
ser descrito e interpretado através de uma anáfora

40
discursiva19, por remeter a uma anterioridade e a
uma exterioridade, no campo da prática política. Isto
é, a acontecimentos que já tiveram lugar no cená-
rio político e que somente significam se transpostos
para o discurso da atualidade. Deste modo, é em
Discurso: Estrutura ou Acontecimento? que
encontramos o filósofo da maturidade, o Pêcheux
que não somente articula o materialismo histórico
ao materialismo dialético, mas que também come-
ça a responder as suas próprias questões teóricas,
tomando o campo da práxis como objeto de questio-
namento da própria teoria. “On a gagné”, portanto,
pode ser caracterizado como um proferimento per-
formativo que evoca as correlações de força entre
os liberais e os socialistas, que ecoa nas ruas e é
inesperado pelas forças conservadoras da França,
constituindo-se em uma notificação da reconquista
do poder pelas alianças de esquerda (socialistas,
comunistas), enfim, um acontecimento político em
um cenário onde comunistas e socialistas já teriam
19
Fazemos menção simultânea aos atos de descrever e interpretar, con-
siderando que a materialidade estrutural do pronome (on) é tomada como
anáfora, é lingüística e faz parte da descrição semântica, mas aquilo a que
ela remete é exterior ao que se enuncia, inscrevendo-se, portanto, no inter-
discurso.

41
perdido o espaço e a representatividade há muito
tempo.
Por fim, pode-se dizer que ao se considerar
que a estrutura do enunciado nada diz de si
mesma, não definindo quem são os destinatários,
os interlocutores que compõem, juntamente com
os locutores, o “nós” (ganhamos), Pêcheux acaba
por demonstrar a impossibilidade de se pensar no
funcionamento do discurso de ruptura sem que
haja uma relação transversa entre a estrutura, a
base lingüística, o acontecimento, e os processos
históricos através dos quais os acontecimentos se
discursivizam.

42
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Michel Pêcheux e a Análise do Discurso: Uma
Relação de nunca Acabar. São Carlos, Ed. Claraluz,
2006, p.143-156.

46
POLÍTICA EDITORIAL

A Série Cogitare foi criada com o objetivo de


divulgar a contribuição de pesquisadores que tenham
participado de atividades junto aos cursos de Mestrado
e Doutorado em Letras da UFSM, na forma de palestras,
conferências e outros trabalhos de pequena extensão.
Também visam à produção de textos teóricos ou críticos
produzidos por professores vinculados às linhas de
pesquisa do PPGL - UFSM.
Esses trabalhos devem ser resultado de projetos
vinculados às linhas de pesquisa do Programa de Pós-
Graduação em Letras, permitindo, assim, a divulgação
de alguns resultados produzidos pela investigação nas
áreas de Estudos Lingüísticos e Literários da UFSM.
A publicação de traduções deverá comple-
mentar os textos já pertencentes ao domínio público,
relacionados à pesquisa desenvolvida pelo Programa,
e que contribuam para fomentar novas perspectivas.
Devem apresentar prefácio que justifique a importância
do texto e sua vinculação com o trabalho de pesquisa
desenvolvido pelo tradutor.
VOLUMES PUBLICADOS

Volume 01 A Dama, a Dona e uma Outra Sóror


(Maria Lúcia Dal Farra)

Volume 02 Sartoris: A História na Voz de Quem


conta a História
(Vera Lucia Lenz Vianna)

Volume 03 A Fronteira e a Nação no Séc. XVIII:


Os Sentidos e os Domínios
(Eliana Rosa Sturza)

Volume 04 O Outro no (In)traduzível / L’Autre dans


l’Intraduisible (Edição Bilingüe)
(Mirian Rose Brum-de-Paula)

Volume 05 Pero Sigo Siendo El Rey: Referente e


Forma de Representação
(Fernando Villarraga Eslava)

Volume 06 Aquisição, Representação e Atividade


(Marcos Gustavo Richter)

Volume 07 Da Corpografia: Ensaio sobre a


Língua/Escrita na Materialidade Digital
(Cristiane Dias)
PPGL
Universidade Federal de Santa Maria
Centro de Educação, Letras e Biologia
Prédio 16, Sala 3222 – Bloco A2
Programa de Pós-Graduação em Letras
Campus Universitário – Camobi
97105-900 – Santa Maria, RS – Brasil
Fone: 0xx 55 32208025
http://www.ufsm.br/ppgletras
e-mail: ppgl@mail.ufsm.br

Gráfica Universitária
2009

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