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INTRODUÇÃO

À FILOSOFIA
MATEMÁTICA
INTRODUÇÃO
À FILOSOFIA
MATEMÁTICA

Bertrand Russell
Tradução e Introdução
ADRIANA SILVA GRAÇA

2.a edição

FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN


Tradução do original inglês
intitulado
Introduction to Mathematical Philosophy

de
Bertrand Russell

Reservados todos os direitos


de harmonia com a lei.
Edição da
Fundação Calouste Gulbenkian
Av. de Berna. Lisboa
2015
PREFÁCIO

Este livro pretende ser, essencialmente, uma «Introdução»,


pelo que não tem como finalidade apresentar uma discussão
exaustiva dos problemas nele tratados. Pareceu-nos desejável
expor determinados resultados até aqui disponíveis apenas para
aqueles que dominam o simbolismo lógico, e expô-los de maneira
a oferecer o mínimo de dificuldade ao principiante. Foi feito um
enormíssimo esforço no sentido de evitar dogmatismo em ques-
tões que ainda estão abertas a dúvida de monta, e este esforço
determinou, em certa medida, a escolha dos tópicos analisados.
Conhecemos as origens da lógica matemática de uma maneira
menos precisa do que as suas porções mais tardias, mas o inte-
resse filosófico de que se revestem é, pelo menos, idêntico ao
daquelas. Muito do que se apresenta nos seguintes capítulos não
pode ser propriamente considerado <<filosofia», embora as maté-
rias neles abordadas tenham feito parte da filosofia enquanto não
existiu nenhuma ciência satisfatória a elas dedicada. A natureza
do infinito e da continuidade, por exemplo, esteve, outrora, inte-
grada na filosofia; actualmente, porém, faz parte da matemática.
A filosofia matemática, em sentido estrito, talvez não se possa
pedir que inclua resultados científicos precisos, como os que são
obtidos nessa região; da filosofia da matemática esperar-se-á,
naturalmente, que lide com questões situadas na fronteira do
conhecimento e em relação às quais, comparativamente, não é
ainda obtenível uma tal certeza. Todavia, a especulação sobre
estas questões só muito dificilmente virá a ser frutífera se não se
conhecerem as partes mais científicas dos princípios da matemá-
tica. Assim, um livro que aborde essas partes poderá afirmar-se

VII
como uma introdução à filosofia matemática, embora só muito
dificilmente se possa afirmar, salvo quando sai fora da sua
província, que lida, efectivamente, com uma parte da filosofia.
Contudo, e em bom rigor, lida com um corpo de conhecimento
que, para aqueles que o aceitam, parece invalidar muita da filo-
sofia tradicional, e mesmo uma boa parte do que se dá como
adquirido actualmente. Neste sentido, e também por tratar de
problemas ainda não solucionados, a lógica matemática é rele-
vante para a filosofia . Por esta razão, e igualmente em virtude
da importância intrínseca da matéria, pode vir a revelar-se útil
fornecer uma descrição sucinta dos principais resultados da
lógica matemática de uma forma que não exige nem conheci-
mento matemático nem aptidão para o simbolismo matemático.
Todavia, aqui como noutros contextos, do ponto de vista da
continuidade da investigação, o método é mais importante do
que os resultados; e o método não pode ser explicado adequada-
mente quando se circunscreve a um enquadramento como o do
presente livro. É de esperar que alguns leitores fiquem suficien-
temente interessados para avançarem para o estudo do método
através do qual a lógica matemática se revela útil na investi-
gação dos problemas tradicionais da filosofia. No entanto, este
é um tópico que as páginas que se seguem não procuraram
abordar.

Bertrand Russell

VIII
NOTA DO EDITOR

Aqueles que, apoiando-se na distinção entre Filosofia


Matemática e Filosofia da Matemática, consideram que
este livro não se enquadra na presente Biblioteca, reme-
temo-los para o que o próprio autor diz sobre esta matéria
no Prefácio. Não é necessário concordar com o que o autor
aí sugere quanto ao reajustamento do âmbito da filosofia
pela transferência desta para a matemática de problemas
como os da classe, da continuidade, ou da identidade,
para perceber o alcance das definições e das discussões
que delas se seguem para o trabalho da «filosofia tradi-
cional». Se os filósofos não estão dispostos a consentir que
se relegue a crítica destas categorias para uma das ciências
específicas, torna-se essencial, seja como for, que saibam o
significado preciso que a ciência da matemática, em que
estes conceitos desempenham um papel preponderante,
lhes atribui. Se, por outro lado, existem matemáticos para
quem estas definições e discussões se afiguram ser uma
elaboração e uma complicação do que é simples, será
avisado recordá-los, pelo lado da filosofia, que aqui, como
noutros contextos, a simplicidade aparente poderá escon-
der uma complexidade que é mister de alguém, filósofo
ou matemático, ou, como o autor da presente obra, ambos
na mesma pessoa, descortinar.

IX
INTRODUÇÃO

Nesta elegante obra, pela primeira vez trazida ao público


em 1919 e escrita aquando de uma passagem do seu autor pela
prisão, Bertrand Russell apresenta-nos um resumo dos seus
principais resultados na Filosofia da Matemática, em parti-
cular do seu programa Logicista, desenvolvido em detalhe em
Principia Mathematica (uma extensa obra de 3 volumes,
escritos em conjunto com A. N. "Whitehead e publicados entre
1910 e 1913), bem como a articulação que se estabelece entre
estes resultados e àlgumas teses cruciais nos domínios da Filo-
sofia da Linguagem, nomeadamente a sua Teoria das Descrições
Definidas, apresentada pela primeira vez no célebre artigo "On
Denoting" (Mind, 1905), e da Filosofia da Lógica, com desta-
que para a Teoria dos Tipos (desenhada para evitar "A Contra-
dição", de que abaixo falaremos). Ficam de fora, de entre o con-
junto de resultados que constituem um todo filosófico coerente,
dos quais os acima referidos são uma parte crucial, os aspectos
relacionados com a Teoria do Conhecimento e com a Metafisica.

Opto, nesta pequena Introdução, por dar uma visão de


conjunto do panorama filosófico subjacente ao texto que agora
se apresenta em língua portuguesa, bem como do texto ele pró-
prio, e que proporcionará ao leitor algo daquilo que é necessário
para seguir com uma maior facilidade o mesmo. Sacrifico, conse-
quentemente, uma exposição que seguiria a letra do texto, capí-

1
tulo a capítulo, a favor desta visão que me parece ser de maior
utilidade para o leitor.

O Logicismo, toscamente falando, é a doutrina segundo a


qual as frases da matemática pura, em particular da Aritmética
elementar, podem ser reescritas usando apenas a linguagem da
Lógica, em particular, a linguagem do Cálculo de Predicados
com Identidade. A ideia é a de que a Matemática se deixa assim
derivar da Lógica: as suas definições, os seus axiomas e final-
mente os seus teoremas podem ser respectivamente formulados
(os dois primeiros), usando a linguagem da Lógica, e derivados
(o último), a partir destes, usando as regras de inferência da
Lógica. Uma boa parte do livro que agora apresentamos na
língua portuguesa dedica-se a mostrar como isto pode ser feito.
Bertrand Russell foi, juntamente com Gottlob Frege, um dos
principais impulsionadores deste projecto, o qual começou a
ser implementado por este último nos finais do século XIX, e só
30 anos mais tarde viria a ser finalmente abandonado, quando
Kurt GOdel mostrou o Teorema da Incompletude da Aritmética
(1931) e, através dele, o resultado de que o Logicismo está muito
provavelmente condenado ao fracasso. Foi precisamente o con-
junto de axiomas apresentado por Frege em Grundgesetze der
Arithmetik (1893-1903), e analisado por Russell, que levou
este último a identificar aquilo a que viria a chamar "A Contra-
dição", no virar do século, entre a publicação dos dois volumes
da magna obra de Frege, na base do Axioma V aí apresentado e
dos conceitos elementares da Teoria dos Conjuntos, a solução da
qual conduziu à Teoria dos Tipos como sendo uma parte essen-

2
cial para que tal fosse atingido. Numa palavra, esta última,
tomada em conjunto com a Teoria das Descrições Definidas,
deram a Russell os meios de que necessitava para resolver os
problemas levantados pela descoberta de "A Contradição".

A obra Introdução à Filosofia Matemática espelha de


um modo óbvio o conjunto de problemas que acabámos de expli-
citar e que dão muito sucintamente o seu (da obra) enquadra-
mento teórico. Passo de seguida a fundamentar esta afirmação,
proporcionando assim ao leitor os elementos filosóficos essen-
ciais para uma leitura conspícua da mesma.

O Axioma V de Frege, informalmente falando, afirma que


dois conceitos F e G têm a mesma extensão, ou seja, os mesmos
elementos que os satisfazem se e somente se qualquer objecto
que cai debaixo de F cai também debaixo de G e vice-versa.
Os conceitos "ter um fígado" e "ter um coração" têm a mesma
extensão: cada um exprime uma propriedade a qual é satisfeita
por um determinado conjunto de indivíduos, e acontece que o
conjunto de indivíduos que satisfaz a primeira, satisfaz também
a segunda, e .vice-versa; logo, têm a mesma extensão. A ideia
subjacente é a de que qualquer propriedade determina um
conjunto de objectos, a saber, o conjunto de todos e só aque-
les objectos aos quais ela pode ser atribuída com verdade. Ora,
diz Russell, seja P a propriedade "não ser um membro de si
próprio" (por exemplo, se formarmos o conjunto de todas as
coisas que não são colheres de chá obtemos um conjunto com
um certo número de coisas; esse conjunto, ele próprio, não é

3
obviamente uma colher de chá; logo, por não ser uma colher
de chá, é um membro de si próprio). Forme-se agora o con-
junto R de todas as coisas que satisfazem P, ou seja, de todos os
objectos que não são membros de si próprios, e pergunte-se:
é R um membro de R? Isto conduz directamente à Contra-
dição, pois: (i) se R for um membro de R então é um membro do
conjunto que tem como elementos todos e só aqueles objectos que
não são membros de si próprios; logo, R não é um membro de R,
e (ii) se R não for um membro de R então não é um membro
do conjunto que tem como elementos todos e só aqueles objectos
que não são membros de si próprios; logo, R é um membro de R.

Russell resolveu este problema, tecnicamente falando,


através da Teoria dos Tipos e, filosoficamente falando, fazendo
apelo à ideia - que se harmoniza naturalmente com aquela
teoria - de que os conjuntos ou classes não são objectos no pleno
sentido do termo, sendo apenas ''ficções lógicas".
Assim, o que a Teoria dos Tipos nos diz é, intuitivamente,
que há diversos "tipos" de objectos: indivíduos, classes de indi-
víduos, classes de classes de indivíduos e assim sucessivamente.
Aquilo que pode ser legitimamente afirmado de um objecto de
um certo tipo não o pode ser de um objecto de outro tipo; e, se
um objecto for um argumento legítimo de uma dada função
proposicional, que toma como argumentos objectos de um certo
tipo, então não o é de uma função proposicional que toma como
argumentos objectos de um outro tipo. A contradição gerada
pelo conjunto R resulta do facto de se perguntar, como se isso
fosse legítimo, se R é ou não é um membro de si próprio; ora,

4
tal não é legítimo, dado que a totalidade formada por objectos de
um certo tipo, a ser um objecto, é-o de um outro tipo e não pode,
consequentemente, ele próprio, ser ou deixar de ser um membro
da totalidade em questão.

É a Teoria das Descrições Definidas que dá a Russell um


modelo de análise que lhe permite concluir que classes são, em
última análise, ''ficções lógicas", ou seja, que não são objectos
no verdadeiro e primitivo sentido do termo, o que reforça a ideia
subjacente à Teoria dos Tipos indo mais longe ao concluir que
falar de classes como sendo um certo tipo de objectos, ou, melhor,
objectos de um outro "tipo", é apenas "une façon de parler".
O raciodnio de Russell procede por analogia. Detemo-nos aqui
um pouco, pois esta analogia é crucial para entender o espírito
(e a letra) da obra que vamos ler.

Regressemos a um conceito usado há pouco, o qual não


foi elucidado, o de ''função proposicional". Uma função propo-
sicional pode ser vista como uma expressão aberta de uma
linguagem formal, ou seja, como uma expressão que contém
uma ou mais variáveis livres e que se transforma numa pro-
posição logo que uma de duas coisas aconteça: (i) às variáveis
são atribuídos valores (no domínio de objectos subjacente); ou
(ii) é feito o fecho da fórmula, ligando as variáveis então livres
por meio de um dos dois quantificadores. Segundo Russell, e
ao contrário do que a gramática de superfície da linguagem
natural parece sugerir, sempre que uma descrição definida
é usada é introduzida uma Junção proposicional a qual, se a

5
frase que contém a descrição for verdadeira, é satisfeita para
no mínimo e no máximo um valor de x no domínio de objectos
subjacente. Por isso Russell nos diz que uma descrição definida,
ao contrário de um nome próprio que o seja genuinamente, não
tem sentido isoladamente mas unicamente no contexto da frase
da qual é uma parte própria. Assim, a descrição definida própria
"o autor de Introdução à Filosofia Matemática", ao contrário
de o nome "Bertrand Russell" (se tal fosse um nome genuíno,
problema que aqui vamos ignorar supondo que o é), não con-
tribui com o homem físico concreto, Bertrand Russell, para a
proposição expressa por qualquer frase que a contenha (ignora-
mos aqui oJacto de Russell já não se contar entre nós). Bertrand
Russell, se fosse vivo, não seria um constituinte da proposição
expressa por qualquer frase na qual "o autor de Introdução à
Filosofia Matemática" ocorresse, ao contrário do caso gerado
pela circunstância de ser, em vez dela, o nome "Bertrand
Russell" a ocorrer na frase. Quando correctamente analisa~
qualqu~r frase que contenha uma descrição definida dá origem a
uma função proposicional complexa, a qual, se a frase for verda-
deira, é satisfeita de um e um só objecto no domínio de objectos
subjacente, e nada nessa função corresponde à aparente enti-
dade (na verdade inexistente) denotada por "o tal e tal". Simi-
larmente, diz Russell, acontece para o caso de símbolos para
classes. Estas são na verdade ficções lógicas.

Termino com o resgate de algumas dívidas. Agradeço


em primeiro lugar ao Professor Doutor Manuel dos Santos
Lourenço, meu antigo supervisor e orientador de teses de

6
Mestrado e de Doutoramento (ambas muito directamente acerca
de resultados apresentados e discutidos por Bertrand Russell),
o facto de me ter sugerido há alguns anos atrás que fizesse a
tradução desta obra para a nossa língua; à Dr. a Cristina
Carvalho, um agradecimento especial pela solução de um
sem número de questões de tradução; à revisora da Fundação
Gulbenkian, Dr. a Isabel Antunes, o meu muito obrigado.
Aos colegas, professores da UCLA (University of California at
Los Angeles), onde tive o privilégio de estar durante este último
ano lectivo a discutir muitos dos problemas filosóficos levanta-
dos por Russell, um obrigado especial. Finalmente, aos alunos,
colegas (muitos deles meus antigos professores) e amigos, e
muito em especial à minha familia dedico esta tradução.

Lisboa, 21 de Junho de 2007

AD~AS~VAGRAÇA

7
Capítulo I

A SÉRIE DE NÚMEROS NATURAIS

O estudo da matemática é tal que, quando iniciado a


partir das suas porções mais familiares, pode continuar
em uma de duas direcções opostas. A direcção mais fami-
liar é construtiva, avançando gradualmente para uma
complexidade cada vez maior: dos números inteiros para
as fracções, para os números reais, e para os números
complexos; da adição e da multiplicação para a diferen-
ciação e a integração, e daí, prosseguindo, para matemá-
ticas superiores. A outra direcção, menos familiar, procede,
por análise, no sentido de uma abstracção e de uma sim-
plicidade lógica cada vez maiores; em vez de perguntar o
que pode ser definido e deduzido a partir do que é assu-
mido à partida, perguntamos antes que ideias e princípios
mais gerais se podem descobrir, em termos dos quais o
nosso ponto de partida pode ser definido ou deduzido.
É o facto de tomar esta direcção oposta que caracteriza
a filosofia matemática, distinguindo-a da matemática
comum. Todavia, deverá ficar claro que a distinção diz
respeito, não ao objecto da disciplina, mas sim à predis-
posição mental do investigador. Os primeiros geómetras
gregos, ao passarem das regras empíricas do levantamento
topográfico egípcio para as proposições gerais de acordo
com as quais essas regras eram tidas como justificáveis, e
destas proposições gerais para os axiomas e postulados
de Euclides, faziam filosofia matemática, segundo a defi-

9
nição acima apresentada; contudo, uma vez alcançados
os axiomas e postulados, a aplicação dedutiva destes,
como encontramos em Euclides, dizia já respeito à mate-
mática na acepção comum do termo. A distinção entre
matemática e filosofia matemática depende do interesse
que a investigação inspira, do estádio que a investigação
alcançou, e não das proposições às quais a investigação
diz respeito.
Podemos expor esta mesma distinção de outra ma-
neira. Em matemática, as coisas mais óbvias e mais fáceis
não são as que surgem logicamente no início; são coisas
que, do ponto de vista da dedução lógica, surgem algures
a meio. Da mesma forma que os corpos mais fáceis de ver
são os que não estão nem muito perto nem muito longe,
os que não são nem muito pequenos nem muito grandes,
assim também as concepções mais fáceis de apreender são
aquelas que não são nem muito complexas nem muito
simples (utilizando aqui «simples» numa acepção lógica) .
E, do mesmo modo que precisamos de dois tipos de
instrumentos, o telescópio e o microscópio, para aumen-
tar as nossas capacidades visuais, precisamos também de
dois tipos de instrumentos para aumentar as nossas capa-
cidades lógicas: um, para avançar, que nos leva às mate-
máticas superiores, e ·o outro, para retroceder, que nos
leva aos fundamentos lógicos das coisas que estamos incli-
nados a aceitar como dados adquiridos em matemática.
Veremos que, ao adoptar novas linhas de continuidade
depois de empreendida a nossa viagem de retrocesso, ao
analisar as nossas noções matemáticas comuns, adquiri-
mos um olhar renovado, novas capacidades, e os meios
que nos permitirão chegar a novas questões matemáticas.

10
Este livro tem como finalidade explicar filosofia matemá-
tica com simplicidade e sem tecnicismos, sem discorrer
sobre as porções do conhecimento que são de tal maneira
dúbias ou complicadas que é praticamente impossível
dar-lhes um tratamento elementar. Em Principia Mathe-
matica1, encontrará um tratamento completo destas ques-
tões; a abordagem apresentada no presente livro pretende
ser apenas uma introdução.
Para o indivíduo contemporâneo com uma instrução
média, o ponto de partida óbvio da matemática seria a
série de números inteiros,

1~ 2, 3, 4 ... etc.

É provável que só uma pessoa com algum conhecimento


matemático pensasse em começar pelo Oem vez de pelo 1;
contudo, presumiremos aqui este nível de conhecimento,
e tomaremos como ponto de partida a série:

O, 1, 2, 3, ... n, n + 1, ...

e esta é a série a que nos referiremos sempre que falarmos


da «série de números naturais».
A possibilidade de tomar esta série como ponto de
partida só ocorre num estádio de civilização muito avan-
çado. Terão sido necessários muitos anos para descobrir
que um casal de faisões ou um par de dias eram ambos
exemplificações do número 2: o grau de abstracção aqui

1 Cambridge University Press, vol. I, 1910; vol. II, 1911;


vol. II, 1913. Por Whitehead e Russell.

11
envolvido está longe de ser fácil. E a descoberta de que
1 é um número foi, certamente, difícil. No que diz respeito
a O, trata-se de uma aquisição recente; os gregos e os roma-
nos não tinham este algarismo. Se tivéssemos embarcado
na jornada da filosofia matemática aquando dos seus
primeiros tempos, teríamos de ter começado por algo
menos abstracto do que a série de números naturais - um
estádio que alcançaremos no decurso da nossa viagem de
retrocesso. Quando os fundamentos lógicos da matemá-
tica se nos tomarem mais familiares, teremos oportuni-
dade de avançar mais para trás, para o que é, por ora, um
estádio mais tardio da nossa análise. Mas, de momento, os
números naturais parecem representar o que há de mais
fácil e familiar em matemática.
Todavia, muito embora familiares, não são com-
preendidos. São muito poucas as pessoas que se encon-
tram munidas de uma definição do que se entende por
«número», ou «0», ou «1». É fácil perceber que, se come-
çarmos por O, poderemos obter qualquer um dos outros
números naturais através de adições repetidas de 1,
mas teremos que definir o que queremos dizer com «adi-
cionar 1», e o que queremos dizer com «repetidas». Estas
questões estão longe de ser fáceis. Até há pouco tempo,
acreditou-se que algumas, pelo menos, destas primeiras
noções de aritmética teriam de ser aceites como demasia-
damente simples e primitivas para serem definidas. Dado
que todos os termos que são definidos são definidos por
meio de outros termos, é evidente que o conhecimento
humano terá sempre que se contentar em aceitar que há
alguns termos que são inteligíveis sem definição, de modo
a ter um ponto de partida para as suas definições. Não é

12
claro que tenham que existir termos impassíveis de defi-
nição: é possível que, não obstante o quanto reb'ocedamos
no processo de definição, pudéssemos,sempre ir ainda mais
longe. Por ouuo lado, também é possível que, quando a
análise é levada suficientemente longe, possamos obter
termos :realmente simples, logo logicamente impassí-
veis do tipo de definição em que a análise consiste. Não
é necessário que tomemos uma decisão quanto a esta
questão; para os nossos propósitos, basta que observemos
que, sendo as capacidades humanas finitas, as definições
por nós conhecidas têm sempre que começar algures, com
termos que são indefinidos no presente momento, embora
talvez não para sempre.
Pode encarar-se toda a matemática pura tradicional,
incluindo a geometria analítica, como sendo inteiramente
constituída por proposições sobre os números naturais.
Querendo com isto dizer que os termos que nela ocorrem
podem ser definidos através dos números naturais, e que
as proposições podem ser deduzidas das propriedades
dos números naturais - sendo-lhes acrescentadas, em
cada caso, as ideias e proposições da lógica pura.
Que toda a matemática pura tradicional pode ser deri-
vada dos números naturais é uma descoberta bastante
recente, embora há muito se suspeitasse de que assim
fosse. Pitágoras, que acreditava que não só a matemática,
mas tudo o mais, podia ser deduzido de números, foi
quem descobriu o obstáculo mais oneroso àquilo que se
designa por «aritmetização» da matemática. Foi Pitágoras
quem descobriu a existência de incomensuráveis e, em
particular, a incomensurabilidade do lado do quadrado
e da diagonal. Se o comprimento do lado é 1 polegada, o

13
número de polegadas da diagonal é a raiz quadrada de 2,
que tudo indica não ser, de todo, um número. O problema
assim levantado só foi resolvido nos nossos tempos, e só
foi completamente resolvido através da ajuda da redução
da aritmética à lógica, que será explicada em capítulos
seguintes. Por ora, tomaremos como dado adquirido a
aritmetização da matemática, embora esta tenha sido um
feito da mais magna importância.
Tendo reduzido toda a matemática pura tradicional à
teoria dos números naturais, o passo seguinte na análise
lógica seria o de reduzir esta mesma teoria ao conjunto
mais pequeno de premissas e de termos inde~inidos a
partir dos quais pudesse ser derivada. Este feito foi alcan-
çado por Peano, que demonstrou que toda a teoria dos
números naturais podia ser derivada de três ideias primi-
tivas e de cinco proposições primitivas (para além das que
pertencem à lógica pura). Estas três ideias e cinco propo-
sições passaram a ser garantes, por assim dizer, de toda a
matemática pura tradicional. Se podiam ser demonstra-
das e definidas em termos de outras, então também toda
a matemática pura o poderia ser. O seu «peso» lógico, se
assim nos podemos exprimir, é igual ao de toda a série
de ciências que têm sido deduzidas a partir da teoria dos
números naturais; a verdade de toda esta série está asse-
gurada se se garantir a verdade das cinco proposições pri-
mitivas, conquanto que, claro, não haja nada errado no
aparato puramente lógico que também está envolvido.
A tarefa de análise da matemática é extraordinariamente
facilitada por este trabalho de Peano;

14
As três ideias primitivas da arihnética de Peano são:

O, número, sucessor.

Por «sucessor», Peano entende o número seguinte na


ordem natural. O sucessor de O é 1, o sucessor de 1 é 2,
e assim por diante. Por «número», Peano entende, neste
contexto, a classe dos números naturais 2• Peano não
parte do princípio de que conhecemos todos os números
desta classe, mas apenas que sabemos o que estamos a
dizer quando dizemos que isto ou aquilo é um número,
da mesma maneira que sabemos o que estamos a dizer
quando dizemos «}ones é um homem», apesar de não
conhecermos, individualmente, todos os homens.
As cinco proposições primitivas que Peano postula
são:

(1) O é um número.
(2) O sucessor de qualquer número é um número.
(3) Números diferentes nunca têm o mesmo
sucessor.
(4) O não é sucessor de nenhum número.
(5) Qualquer propriedade que pertença a O, e tam-
bém ao sucessor de qualquer número que tenha
essa propriedade, pertence a todos os números.

A última destas proposições é o princípio de indu-


ção matemática. A ela nos dedicaremos mais adiante; por

2No presente capítulo, utilizaremos <<número>>nesta acepção.


Mais tarde, a palavra será utilizada numa acepção mais geral.

15
ora, atendemos-lhe somente na medida em que ocorre na
análise da aritmética levada a cabo por Peano.
Atente-se, resumidamente, no modo como a teoria
dos números naturais resulta destas três ideias e cinco
proposições. Começamos por definir 1 como «O suces-
sor de 0», 2 como «O sucessor de 1» e assim por diante.
Podemos, obviamente, continuar com estas definições
indefinidamente dado que, em virtude de (2), qualquer
número que obtenhamos terá um sucessor e, em virtude
de (3), este sucessor não poderá ser nenhum dos núme-
ros já definidos, porque, se fosse, dois números diferentes
teriam o mesmo sucessor; e, em virtude de (4), nenhum
dos números que obtivemos na série de sucessores pode
ser O. Assim, a série de sucessores dá-nos uma série inter-
minável de números sempre novos. Em virtude de (5),
todos os números aparecem nesta série, que parte de O e
avança percorrendo sucessores sucessivos: pois (a) O per-
tence a esta série, e (b) se um número n lhe pertence, então
o seu sucessor também lhe pertencerá, donde, por indu-
ção matemática, todos os números pertencem a esta série.
Imagine que queremos definir a soma de dois núme-
ros. Pegando em qualquer número m, definimos m +O
como m, e m + (n + 1) como o sucessor de m + n. Em virtude
de (5), isto dá-nos a definição de soma de m e n, seja qual
for o número n. Podemos, analogamente, definir também
o produto de quaisquer dois números. O leitor poderá
facilmente convencer-se de que qualquer proposição
elementar comum da aritmética pode ser demonstrada
através das nossas cinco premissas, e, se tiver dificulda-
des em fazê-lo, poderá sempre encontrar a demonstração
em Peano.

16
É chegado o momento de nos voltarmos para as consi-
derações que fazem com que seja necessário avançar para
lá do ponto de partida de Peano - investigador que repre-
'
senta a última perfeição da aritmetização da matemá-
tica - e olharmos para o de Frege, o primeiro a conseguir
«logicizar» a matemática, i.e., reduzir à lógica as noções
aritméticas que os seus antecessores tinham mostrado ser
suficientes para a matemática. Neste capítulo, apresenta-
remos, em bom rigor, a definição de número e de números
particulares proposta por Frege, mas daremos algumas
das razões por que a abordagem de Peano é menos defi-
nitiva do que aparenta ser.
Em primeiro lugar, as três ideias primitivas de Peano
-a saber, «0», «número» e «sucessor» -prestam-se a uma
quantidade infinita de interpretações diferentes, todas
elas satisfazendo as cinco proposições primitivas. Obser-
vemos alguns exemplos:

(1) Tome-se «O» como querendo significar 100, e


tome-se «número» como querendo significar os núme-
ros de 100 em diante na série de números naturais. Deste
modo, todas as nossas proposições primitivas são satis-
feitas, mesmo a quarta, pois, embora 100 seja o sucessor
de 99, 99 não é um «número» no sentido que estamos
agora a atribuir à palavra «número». E é óbvio que, neste
exemplo, 100 pode ser substituído por qualquer número.

(2) Tome-se «0» como querendo significar o que habi-


tualmente significa, mas tome-se «número» como que-
rendo significar aquilo a que habitualmente chamamos
«números pares», e tome-se o «sucessor» de um número

17
como sendo o que resulta de lhe adicionarmos dois. Deste
modo, «1» figurará como o número dois, «2» figurará
como o número quatro, e assim por diante; a série de
«números» será, agora,

O, dois, quatro, seis, oito ...

Todas as cinco premissas de Peano são, não obstante,


satisfeitas.

(3) Tome-se «0» como querendo significar o número


um, tome-se «número» como querendo significar o
conjunto
1 1 1 1
1'2'4'8'16' ...
e tome-se «sucessor» como querendo significar «metade».
Desta maneira, todos os cinco axiomas de Peano seriam
verdadeiros deste conjunto.
É claro que estes exemplos poderiam ser multipli-
cados indefinidamente. De facto, dada qualquer série

que seja interminável, não contenha repetições, tenha


uma origem, e não tenha termos que não possam ser
obtidos a partir dessa origem seguindo um número finito
de passos, temos um conjunto de termos que verifica os
axiomas de Peano. Podemos constatá-lo com toda a faci-
lidade, embora a demonstração formal seja relativamente
extensa. Tome-se «Ü» como querendo significar xOt tome-

18
-se «número» como querendo significar o conjunto total
de termos, e tome-se o «sucessor» de Xn como querendo
significar Xn + 1 . Assim,

(1) «0 é um número», i.e., x 0 é um membro do


conjunto.
(2) «0 sucessor de qualquer número é um número»,
i. e., para qualquer termo Xn que esteja no conjunto,
xn+t também está no conjunto.
(3) «Números diferentes nunca têm o mesmo suces-
sor», i.e., se Xm e Xn são dois membros diferentes
do conjunto, Xm+t e Xn+t são diferentes; isto resulta
do facto de (pela hipótese) não haver repetições
no conjunto.
(4) «0 não é sucessor de nenhum número», i.e.,
nenhum termo do conjunto vem antes de x0 •
(5) O que resulta em: Qualquer propriedade que
pertença a x0 e que pertença a Xn+v desde que per-
tença a Xn, então pertence a todos os x' s.

Isto segue-se da propriedade correspondente para


números.
A uma série da forma

Xo- Xv X:z, .. . Xn, ...

em que haja um primeiro termo, um sucessor para cada


termo (de modo a que não haja um último termo), em
que não haja repetições, e em que cada termo possa ser
obtido a partir do primeiro seguindo um número finito
de passos, dá-se o nome de progressão. As progressões

19
assumem grande importância nos princípios da matemá-
tica. Como .acabámos de ver, qualquer progressão verifica
os cinco aXiomas de Peano. Pode demonstrar-se, conver-
samente, que qualquer série que cumpra os cinco axiomas
de Peano é uma progressão. Por esta razão, estes cinco
axiomas podem ser utilizados para definir a classe d as
progressões: «progressões» são «as séries que verificam
estes cinco axiomas». Pode tomar-se qualquer progressão
como base para a matemática pura: podemos atribuir o
nome «Ü» ao seu primeiro termo, o nome «número» ao
conjunto total dos seus termos, e o nome «sucessor» ao
termo que se segue na progressão. A progressão não tem
que ser composta por números: pode ser composta por
pontos no espaço, ou instantes de tempo, ou quaisquer
outros termos dos quais haja uma provisão infinita. Cada
progressão distinta dará origem a uma interpretação
distinta de todas as proposições da matemática pura
tradicional; e todas estas interpretações possíveis serão
igualmente verdadeiras.
No sistema de Peano, não há nada que nos permita
distinguir estas diferentes interpretações das suas ideias
primitivas. Presume-se que nós sabemos o que significa
«Ü» e que, portanto, não partiremos do pressuposto de
que este símbolo significa 100, ou a Agulha de Cleópatra,
ou qualquer uma das outras coisas que pudesse significar.
É importante ter em atenção que <<Ü>> e <<número>> e
<<sucessor>> não podem ser definidos através dos cinco
axiomas de Peano, tendo que ser compreendidos de
forma independente. Não se pretende, apenas, que os
nossos números se limitem a verificar fórmulas matemá-
ticas, mas sim que se apliquem correctamente a objectos

20
comuns. Queremos ter vinte dedos, dois olhos e um nariz.
Um sistema em que «h> significa 100, e «2» significa 101,
e assim por diante, pode não oferecer quaisquer proble-
mas no contexto da matemática pura, mas não nos serve
no contexto da vida quotidiana. Nós queremos que «Ü»
e «número» e «sucessor» tenham sentidos que nos dêem
a quantidade certa de dedos, olhos e narizes. Possuímos
já algum conhecimento (embora não suficientemente
articulado ou analítico) do que queremos dizer com
«1» e «2» e assim por diante, e a utilização que fazemos
dos números em aritmética tem que ser conforme a este
conhecimento. Todavia, recorrendo ao método de Peano,
não nos é possível garantir que assim seja; se adoptarmos
esse método, tudo o que podemos fazer é dizer «sabe-
mos o que entendemos por «O» e «número» e «sucessor»,
embora não possamos explicar o que queremos dizer com
eles em termos de outros conceitos mais simples». É per-
feitamente legítimo fazer esta afirmação quando é forçoso
que a façamos e, a determinada altura, todos temos que a
fazer; mas o objectivo da filosofia matemática é adiar esta
afirmação tanto tempo quanto possível. E, recorrendo à
teoria lógica da aritmética, podemos adiá-la por muito,
muito tempo.
Poder-se-ia sugerir que, em vez de assumir «Ü» e
«número» e «Sucessor» corno termos cujos significados
conhecemos apesar de não os conseguirmos definir, pode-
ríamos fazer com que representassem quaisquer três ter-
mos que verificassem os cinco axiomas de Peano. Deste
modo, deixariam de ser termos com significados precisos
mas não definidos: passariam a ser «variáveis», termos
a respeito dos quais colocamos determinadas hipóteses,

21
nomeadamente as afirmadas nos cinco axiomas, mas
que, para todos os outros fins, ·se constituem como ter-
mos indeterminados. Se adoptarmos este plano, os nos-
sos teoremas não serão demonstrados a respeito de um
conjunto estabelecido de termos designados por «OS
números naturais», mas sim a respeito de todos os con-
juntos de termos que tenham determinadas propriedades.
Tal procedimento não é falacioso; na verdade, para certos
fins, representa uma generalização preciosa. No entanto,
há dois pontos de vista segundo os quais este procedi-
mento não fornece uma base adequada para a aritmética.
Em primeiro lugar, não nos permite saber se há ou não
conjuntos de termos que verifiquem os axiomas de Peano;
não nos oferece, sequer, a mais pálida sugestão quanto ao
modo de descobrir se esses conjuntos existem ou não.
Em segundo lugar, e como já observado, queremos que
os nossos números sejam tais que possam ser utilizados
para contar objectos comuns, o que exige que os nossos
números tenham um significado preciso, e não apenas
que tenham determinadas propriedades formais. Este
significado preciso é definido através da teoria lógica da
aritmética.

22
Capitulo II

DEFINIÇÃO DE NÚMERO

A pergunta «O que é um número?», muitas vezes


colocada, só nos nossos dias obteve uma resposta cor-
recta. A resposta foi dada por Frege em 1884, no seu
Grundlagen der ArithmetiP. Muito embora se trate de um
livro pequeno, fácil, e da maior e mais elevada importân-
cia, passou quase despercebido, e a definição de número
nele contida continuou praticamente desconhecida até ser
redescoberta, em 1901, pelo autor do presente livro.
Quando se procura uma definição de número, a pri-
meira coisa a clarificar é aquilo a que podemos chamar a
gramática da nossa investigação. São muitos os filósofos
que, ao procurar definir número, estão na realidade a
trabalhar sobre a definição de pluralidade, o que é uma
questão bastante distinta. Número é aquilo que é caracte-
rístico dos números, da mesma maneira que homem .é
característico dos homens. Uma pluralidade não é uma
exemplificação de número, mas sim uma exemplificação
de um dado número em particular. Um trio de homens,
por exemplo, é uma exemplificação do número 3, e o
número 3 é uma exemplificação de número; mas o trio
não é uma exemplificação de número. Esta distinção pode

· 3 A mesma resposta é apresentada de modo mais completo


e mais desenvolvido no seu Grundgesetze der Arithmetik, vol. I,
1893.

23
parecer elementar e de menção quase desnecessária; con-
tudo, tem provado ser, com raras excepções, demasiado
subtil para os filósofos.
Um número particular não é idêntico a nenhuma
colecção de termos que tenha esse número: o número 3
não é igual ao trio composto por Brown, Jones e Robinson.
O número 3 é algo que todos os trios têm em comum, e
que os distingue de todas as outras colecções. Um número
é algo que caracteriza determinadas colecções, a saber,
aquelas que têm esse número.
Em vez de falarmos em «colecção», falaremos, em
regra, de «classe», ou, algumas vezes, de «conjunto».
Outras palavras que se utilizam em matemática para
designar esta mesma coisa são «agregado» e «espaço
topológico». Teremos muito a dizer sobre classes, mais
adiante. Por ora, diremos o menos possível. Há, todavia,
algumas observações que têm que ser feitas de imediato.
Uma classe, ou colecção, pode ser definida de duas
maneiras que, à primeira vista, parecem completamente
diferentes. Podemos enumerar os seus membros, como
quando dizemos: «A colecção a que me refiro é Brown,
Jones e Robinson». Ou podemos mencionar uma pro-
priedade definidora, como quando falamos de «huma-
nidade» ou de «OS habitantes de Londres». A definição
que enumera designa-se por definição por «extensão», e
a que menciona uma propriedade definidora designa-se
por definição por «intensão». Destes dois tipos, a defi-
nição por intensão é logicamente mais fundamental. Tal
constata-se através de duas observações: (1) o facto de a
definição extensional poder ser sempre reduzida a uma
definição intensional; (2) o facto de, amiúde, a definição

24
intensional não poder, mesmo de um ponto de vista teó-
rico, ser reduzida a uma definição extensional. Estes dois
pontos exigem uma nota explicativa.
(1) Brown, Jones e Robinson possuem, todos eles, uma
determinada propriedade, não atribuível a mais nada no
universo inteiro, nada mais há que a possua, a saber, a
propriedade de ser ou Brown ou Jones ou Robinson. Esta
propriedade pode ser utilizada para fornecer uma defi-
nição por intensão da classe composta por Brown e Jones
e Robinson. Considere a seguinte fórmula: « X é Brown
ou x é Jones ou x é Robinson». Esta fórmula só será ver-
dadeira para três x, a saber, Brown e Jones e Robinson.
A este respeito, assemelha-se a uma equação cúbica, com
as suas três raízes. Pode ser entendida como uma atribui-
ção de uma propriedade que é comum aos membros da
classe composta por estes· três homens e peculiar destes.
Podemos, obviamente, aplicar um tratamento análogo a
qualquer outra classe dada em extensão.
(2) É óbvio que, na prática, acontece frequentemente
sabermos muito sobre uma classe sem, no entanto, sermos
capazes de enumerar os seus membros. Não há homem
nenhum que seja efectivamente capaz de enumerar todos
os homens, nem sequer todos os habitantes de Londres.
Todavia, sabe-se muito sobre estas duas classes. Basta-
-nos isto para mostrar que a definição por extensão não
é necessária para o conhecimento de uma classe. Porém,
quando pensamos em classes infinitas, vemo-nos perante
o facto de a enumeração não ser sequer teoricamente pos-
sível para seres que vivem apenas durante um período
de tempo finito. Não nos é possível enumerar todos os
números naturais: eles são O, 1, 2, 3, e assim por diante.

25
A dada altura, temos de nos dar por satisfeitos com o
«e assim por diante». Não podemos enumerar todas as
fracções, nem todos os números irracionais, nem todos
os membros de qualquer outra colecção infinita. Assim
sendo, o nosso conhecimento a respeito de todas estas
colecções só pode ser derivado de uma definição por
intensão.
Quando o que procuramos obter é a definição de
número, estas observações são relevantes em três acep-
ções distintas. Em primeiro lugar, os números formam
uma colecção infinita, razão pela · qual não podem
ser definidos via enumeração. Em segundo lugar, as
colecções que têm um dado número de termos podem,
presumivelmente, formar uma colecção infinita: é de pre-
sumir, por exemplo, que existe no mundo uma colecção
infinita de trios, dado que, se assim não fosse, o número
total de coisas existentes no mundo seria finito, o que,
embora possível, se afigura improvável. Em terceiro lugar,
o que pretendemos é definir «número» de maneira a que
seja possível existirem números infinitos; assim, temos
que ter a possibilidade de falar do número de termos de
uma colecção infinita, e este tipo de colecção tem que ser
definido por intensão, i.e. por uma propriedade comum a
todos os seus membros, e peculiar destes.
Em muitas situações, uma classe e uma característica
que defina essa classe são praticamente intersubstituí-
veis. A diferença vital entre as duas consiste no facto de
existir apenas uma classe com um determinado número
de membros, embora existam sempre muitas caracte-
rísticas diferentes pelas quais uma dada classe pode ser
definida. Os homens podem ser definidos como bípedes

26
sem penas, ou como animais racionais, ou (mais correc-
tamente) pelos traços com que Swift esboça os Yahoo.
O facto de uma característica definidora nunca ser única
é aquilo que torna as classes úteis; de outra maneira,
dar-nos-íamos por satisfeitos com as propriedades que
são comuns e peculiares aos seus membros 4 • Sempre que
a unicidade não for um aspecto importante, pode utili-
zar-se qualquer uma das propriedades em vez da classe.
Voltando agora à definição de número, torna-se claro
que número é uma maneira de agregar certas colecções, a
saber, as colecções que têm um determinado número de
termos. Podemos imaginar todos os pares num só agru-
pamento, todos os trios noutro, e assim por diante. Desta
maneira, obtemos vários agrupamentos de colecções, cada
um dos quais composto por todas as colecções que têm
um determinado número de termos. Cada agrupamento
é uma classe cujos membros são colecções, i.e. classes;
logo, cada agrupamento é uma classe de classes. O agru-
pamento composto por todos os pares, por exemplo, é
uma classe de classes; cada par é uma classe com dois
membros, e o agrupamento que congrega todos os pares é
uma classe com um número infinito de membros, em que
cada um destes é uma classe de dois membros.
Como podemos nós determinar se duas colecções
devem ou não pertencer ao mesmo agrupamento? Ares-
posta que se nos apresenta de imediato é: «Apurar quan-

4Como explicado mais adiante, as classes podem ser vistas


como ficções lógicas, fabricadas a partir de características defi-
nidoras. Porém, de momento, a nossa exposição ficará simplifi-
cada se as tratarmos como se fossem reais.

27
tos membros tem cada uma dessas colecções e colocá-las
no mesmo agrupamento se tiverem o mesmo número de
membros». Contudo, isto pressupõe que já definimos os
números, e que sabemos como apurar quantos termos
tem uma colecção. Estamos tão habituados à operação de
contar que é fácil que uma pressuposição como esta possa
passar despercebida. No entanto, de facto, a contagem é,
apesar de familiar, logicamente uma operação extrema-
mente complexa; mais, só podemos recorrer à contagem,
enquanto meio que nos permite perceber quantos termos
tem uma colecção, quando a colecção é finita. A nossa
definição de número não poderá pressupor de antemão
que todos os números são finitos; e, seja como for,
não podemos, sem cair num círculo vicioso, recorrer à
contagem para definir os números, isto porque, para
contar, utilizamos números. Precisamos, pois, de um outro
método que nos permita determinar quando é que duas
colecçõestêm o mesmo número de termos.
Em boa verdade, é logicamente mais simples perceber
se duas colecções têm ou não o mesmo número de termos
do que definir o que esse número é. Um exemplo tornará
isto claro. Se não houvesse, em parte alguma do mundo,
poligamia e poliandria, seria evidente que o número de
homens casados existentes, fosse qual fosse o período de
tempo considerado, seria exactamente igual ao número
de mulheres casadas. Não precisamos de nenhum censo
que nos garanta que assim é, tal como não precisamos
de saber qual o número exacto de maridos e de mulheres
casadas existentes. Sabemos que o número tem que ser o
mesmo em ambas as colecções porque cada marido tem
uma única mulher e cada mulher tem um único -marido.

28
A relação de marido e mulher é uma relação que se
designa por «de um para um».
Diz-se que uma relação é «de um para um» quando,
se x está nessa relação com y, nenhum outro termo x' está
nessa relação com y, e x não está nessa relação com qual-
quer outro termo y' diferente de y. Quando só a primeira
destas duas condições é satisfeita, dizemos que a relação
é «de um para muitos»; quando só a segunda é satisfeita,
designamo-la por «de muitos para um». Vale a pena
chamar a atenção para o facto de o número 1 não estar a
ser utilizado nestas definições.
Nos países cristãos, a relação de marido para mulher
é «de um para um»; nos países maometanos, é «de um
para muitos»; no Tibete, é «de muitos para um». A relação
de pai para filho é «de um para muitos»; a de filho para
pai é «de muitos para um», mas a de filho mais velho para
pai é «de um para um». Se n for um número qualquer,
a relação de n para n + 1 é «de um para um»; o mesmo
acontece com a relação de n para 2n ou para 3n. Quando
consideramos apenas números positivos, a relação de
n para n 2 é «de um para um», mas quando admitimos
também números negativos, a relação torna-se «dois para
um», dado que n e- n têm o mesmo quadrado. Estes exem-
plos que acabamos de apresentar deverão ser suficientes
para tornar claras as noções de relação «um para um», de
«um para muitos» e «muitos para um», relações estas que
desempenham um papel de destaque nos princípios da
matemática, não só relativamente à definição de número,
como também relativamente a muitos outros aspectos.
Diz-se que duas classes são «semelhantes» quando há
uma relação de «um para um» que correlaciona, termo a

29
termo, os termos de uma das classes com os termos da
outra classe, da mesma maneira que a relação de casa-
mento correlaciona maridos com mulheres. Algumas
definições preliminares ajudar-nos-ão a formular esta
definição de modo mais rigoroso. À classe dos termos
que têm uma determinada relação para com uma dada
coisa chama-se o domínio dessa relação; assim, os pais
são o domínio da relação de pai para filho, os maridos
são o domínio da relação de marido para mulher, as mulhe-
res são o domínio da relação de mulher para marido, e
maridos e mulheres, conjuntamente, são o domínio da
relação de casamento. A relação de mulher para marido
é chamada a conversa da relação de marido para mulher.
Analogamente, temos que menor é a conversa de maior,
mais tarde é a conversa de mais cedo, e assim por diante.
Em geral, a conversa de uma relação dada é a ·relação que
se estabelece entre y e x sempre que a relação dada se
estabelece entre x e y. O domínio converso de uma relação é
o domínio da sua conversa: assim, a classe das mulheres
é o domínio converso da relação de marido para mulher.
Posto isto, estamos em condições de formular a nossa
definição de semelhança da seguinte maneira:
Diz-se que uma classe é "semelhante" a outra quando há
uma relação de «um para um» da qual uma das classes é o domí-
nio, sendo a outra o domínio converso.
É fácil demonstrar (1) que toda e qualquer classe é
semelhante a si própria, (2) que se uma classe a é seme-
lhante a uma classe {3, então f3 é semelhante a a, (3) que se
a é semelhante a f3 e f3 semelhante a r, então a é seme-
lhante a y. Diz-se que uma relação é reflexiva quando
possui a primeira destas propriedades, que é simétrica

30
quando possui a segunda, e que é transitiva quando
possui a terceira. É evidente que uma relação que seja
simétrica e transitiva tem que ser reflexiva ao longo de
todo o seu domínio. As relações que possuem estas pro-
priedades constituem um tipo importante de relação,
e vale a pena assinalar que a semelhança pertence a
esse tipo.
É evidente para o senso comum que duas classes fini-
tas têm o mesmo número de termos se forem semelhantes,
mas não de outro modo. O acto de contar consiste em esta-
belecer uma correlação de «um para um» entre o conjunto
de objectos contados e os números naturais (excluindo
o O) gastos no processo. Deste modo, o senso comum
conclui que há tantos objectos no conjunto a contar como
números até ao último número utilizado na contagem.
E sabemos também que, se nos restringirmos aos núme-
ros finitos, existem apenas n números de 1 até n. Donde
se segue que, desde que se trate de uma colecção finita, o
último número utilizado na contagem de uma colecção é
o número de termos existentes nessa colecção. Mas este
resultado, além de ser aplicável apenas a colecções finitas,
está dependente de, e pressupõe, o facto de duas classes
que são semelhantes terem o mesmo número de termos
pois aquilo que fazemos ao contar (digamos) 10 objectos
é mostrar que o conjunto destes objectos é semelhante
ao conjunto de números 1 a 10. A noção de semelhança
é logicamente pressuposta na operação de contagem, e
é logicamente mais simples, embora menos familiar. Ao
contar, é necessário tomar os objectos contados segundo
uma determinada ordem - como primeiro, segundo, ter-
ceiro, etc. - mas a ordem não é da essência do número:

31
trata-se de um acrescento irrelevante, uma complicação
desnecessária do ponto de vista lógico. A noção de seme-
lhança não exige uma ordem: por exemplo, vimos que o
número de maridos é o mesmo que o número de mulhe-
res sem ter que estabelecer uma ordem de precedência
entre eles. A noção de semelhança também não exige que
as classes semelhantes sejam finitas. Por exemplo: consi-
dere-se, por um lado, os números naturais (excluindo o O)
e, por outro, as fracções que têm 1 como numerador:
é óbvio que podemos correlacionar 2 com ~, 3 com ~,
e assim por diante, o que prova que as duas classes são
semelhantes.
Assim sendo, podemos recorrer à noção de «seme-
lhança)) para determinar quando é que duas colecções
pertencem ao mesmo agrupamento (na acepção em que,
a dada altura do presente capítulo, colocámos esta per-
gunta). Queremos formar um agrupamento que contenha
a classe que não tem membros: este agrupamento será
para o número O. Depois, queremos um agrupamento
de todas as classes que têm um membro: este Será para o
número 1. Depois, para o número 2, queremos um agru-
pamento composto por todos os pares; depois, um para
todos os trios; e assim por diante. Perante uma colecção
qualquer, podemos definir o agrupamento ao qual ela
deverá pertencer como sendo a classe de todas as colec-
ções que são «semelhantes)) a essa colecção. É muito fácil
ver que se (por exemplo) uma colecção tem três membros,
a classe de todas as colecções que se lhe assemelhará é a
classe dos trios. E seja qual for o número de termos que
uma colecção possa ter, as colecções que se lhe «asseme-

32
lharem» serão as que têm o mesmo número de termos.
Podemos entender isto como uma definição de «ter o
mesmo número de termos». É evidente que, confinando-
-nos apenas a colecções finitas, esta definição fornece-nos
resultados que estão em conformidade com o uso que
dela fazemos.
Até agora, ainda não sugerimos nada que fosse mini-
mamente paradoxal. Porém, quando passamos à verda-
deira definição de números, é-nos impossível evitar algo
que, à primeira vista, parece um paradoxo, muito embora
esta impressão depressa acabe por se dissipar. Pensamos,
naturalmente, que a classe dos pares, por exemplo, é uma
coisa diferente do número 2. Dito isto, a classe dos pares
não nos coloca a mínima dúvida: é indubitável e fácil de
definir; já o número 2, em qualquer outra acepção que não
essa, é uma entidade metafísica sobre a qual nunca pode-
mos ter a certeza de que exista ou de que a apanhámos.
Por esta razão, é mais prudente darmo-nos por satisfeitos
com a classe dos pares, da qual estamos certos, do que
dar caça a um problemático número 2 que permane-
cerá sempre evasivo. De acordo com isto, formulamos a
seguinte definição:
O número de uma classe é a classe de todas as classes que
se lhe assemelham.
Assim, o número de um par será a classe de todos os
pares. Na verdade, de acordo com a nossa definição, a
classe de todos os pares vem a ser o número 2. A expensas
de uma pequena excentricidade, esta definição garante
exactidão e indubitabilidade; e não é difícil demonstrar
que os números assim definidos têm todas as proprie-
dades que esperamos que os números tenham.

33
Podemos agora prosseguir, definindo números em
geral como qualquer um dos agrupamentos nos quais a
semelhança reúne as classes. Um número será, então, um
conjunto de classes tal que quaisquer duas sejam seme-
lhantes entre si, e em que nenhuma fora desse conjunto
seja semelhante a qualquer uma das que se encontra den-
tro do conjunto. Por outras palavras, um número (em
geral) é uma qualquer colecção que seja o número de um
dos seus membros; ou, de maneira ainda mais simples:
Um número é qualquer coisa que seja o número de alguma
classe.
Esta definição tem uma aparência verbal de circu-
laridade mas, na realidade, não é circular. Definimos «O
número de uma classe dada» sem utilizar a noção de
número em geral; logo, podemos definir número em geral
em termos de «O número de uma classe dada» sem estar a
cometer nenhum erro lógico.
As definições deste tipo são, na verdade, muito
comuns. A classe dos pais, por exemplo, teria de ser defi-
nida começando por definir o que significa ser-se pai de
alguém; depois, a classe dos pais seria todos aqueles que
são pais de alguém. De igual modo, se queremos definir
(digamos) números quadrados, temos de começar por
definir o que significa dizer que um número é o quadrado
de outro, e então definir números quadrados como os
números que são os quadrados de outros números. Este
tipo de procedimento é muito comum, e é importante
estar ciente de que se trata de um procedimento legitimo
e mesmo amiúde necessário.
Apresentámos pois uma definição de números que
serve para colecções finitas. Falta agora ver de que modo

34
poderá servir para colecções infinitas. Primeiro, porém,
teremos que determinar o que queremos dizer com
«finito» e «infinito», algo que não pode ser feito no âmbito
do presente capítulo.

35
Capítulo III

FINITUDE E INDUÇÃO MATEMÁTICA

Como vimos no Capítulo I, todas as séries de números


naturais podem ser definidas se soubermos o que quere-
mos dizer com os três termos «0», «número» e «sucessor».
Mas podemos ir mais longe ainda: estamos em condições
de definir todos os números naturais se soubermos o que
queremos dizer com «O» e «sucessor». Ver como se pode
fazer isto, e perceber por que razão o método através
do qual o fazemos não pode estender-se além do finito,
ajudar-nos-á a compreender a diferença entre finito e
infinito. Todavia, não vamos debruçar-nos ainda sobre
o modo como «0» e «sucessor» devem ser definidos: por
ora, partiremos do princípio de que sabemos o que estes
termos significam e mostraremos como, a partir daí, se
podem obter todos os restantes números naturais.
É fácil constatar que podemos chegar a um número
qualquer estipulado à partida, digamos 30.000. Começa-
mos por definir «1» como sendo «O sucessor de 0», depois
definimos «2» como «O sucessor de 1», e assim por diante.
No caso de um número estipulado à partida, como 30.000,
a demonstração de que conseguimos alcançá-lo avan-
çando passo a passo desta maneira pode ser feita, havendo
paciência, por experimentação real: podemos prosseguir
sempre até chegarmos, efectivamente, a 30.000. Contudo,
embora disponhamos do método da experimentação para
cada número natural particular, não dispomos dele para

37
demonstrar a proposição geral de que todos os números
afins podem ser alcançados por esta via, i.e. prosseguindo
a partir de O, passo a passo, de cada número para o seu
sucessor. Haverá uma outra maneira de o demonstrar?
Vejamos a questão ao contrário. Quais são os números
a que podemos chegar dados os termos «0» e «Sucessor?»
Haverá alguma maneira que nos possibilite definir uma
tal classe de números na sua totalidade? Chegamos a 1,
como sendo o sucessor de O; a 2, como sendo o sucessor
de 1; a 3, como sendo o sucessor de 2; e assim por diante.
É este «e assim por diante» que pretendemos substituir
por algo menos vago e impreciso. Podemos sentir-nos
tentados a dizer que «e assim por diante» significa que
o processo de avançar para o. sucessor pode ser repetido
um qualquer número finito de vezes; mas o problema que
temos em mãos é o de definir «número finito» e, como tal,
não podemos usar esta noção na nossa definição. A nossa
definição não pode partir do princípio de que sabemos o
que é um número finito.
A chave para o nosso problema encontra-se na indução
matemática. Devemos relembrar que, no Capítulo I, esta
figurava como a quinta das cinco proposições primiti-
vas que apresentámos a respeito dos números naturais.
Nela se afirmava que qualquer propriedade que pertença
a O, e ao sucessor de qualquer número que tenha essa
propriedade, pertence a todos os números naturais. Esta
afirmação foi, na altura, apresentada como um princípio,
mas adoptá-la-emos agora como uma definição. Não
é difícil ver que os termos que lhe obedecem são os
mesmos que os números a que podemos chegar partindo
de O, e avançando, em passos sucessivos, de um número

38
para o seguinte, mas dada a importância deste ponto,
cumpre que o estabeleçamos de maneira mais detalhada.
Procederemos avisadamente começando por algu-
mas definições, que virão também a ser úteis noutros
contextos.
Diz-se que uma propriedade é «hereditária» na série
de números naturais se, sempre que essa propriedade
pertence a um número n, pertence também a n + 1, o suces-
sor de n. De igual modo, diz-se que uma classe é «here-
ditária» se, sempre que n for um membro dessa classe,
n + 1 também o for. É fácil ver (apesar de ainda não ser
suposto que o saibamos) que afirmar que uma proprie-
dade é hereditária é equivalente a afirmar que pertence a
todos os números naturais não menores do que um deles,
e.g. tem que pertencer a todos os que não são menores
do que 100, ou a todos os que são menores do que 1000,
ou pode talvez ser que pertença a todos os que não são
menores do que O, i.e. a todos sem excepção.
Diz-se que uma propriedade é «indutiva» quando é
uma propriedade hereditária que pertence a O. De igual
modo, uma classe é «indutiva» quando é uma classe here-
ditária da qual O é um membro.
Dada uma classe hereditária da qual O é membro,
segue-se que 1 é membro dessa classe, uma vez que a
classe hereditária contém os sucessores dos seus mem-
bros, e 1 é o sucessor de O. Analogamente, dada uma
classe hereditária da qual 1 seja membro, segue-se que 2
é membro dessa classe; e assím por diante. Deste modo,
podemos demonstrar por meio de um procedimento
passo-a. . passo que qualquer número natural estipulado
à partida, digamos 30.000, é membro de toda e qualquer
classe indutiva.

39
Definiremos a «posteridade» de um número natural
dado com respeito à relação «predecessor imediato» (que
é a conversa de «Sucessor») como sendo todos os termos
que pertencem a toda e qualquer classe hereditária à qual
esse número dado pertence. Uma vez mais, é fácil ver
que a posteridade de um número natural consiste nele
próprio e em todos os números naturais maiores do que
ele; mas isto é, também, algo que, oficialmente, nós ainda
não sabemos.
Pelas definições que acabamos de dar, a posteridade
de O consiste pois nos termos que pertencem a toda e
qualquer classe indutiva.
Neste momento, não é difícil tornar evidente que
a posteridade de O é o conjunto igual ao conjunto for-
mado pelos termos a que podemos chegar partindo de O
e avançando por passos sucessivos de um número para
o seguinte. Isto porque, em primeiro lugar, O pertence a
ambos os conjuntos (na acepção em que os nossos ter-
mos foram definidos); em segundo lugar, se n pertence
a ambos os conjuntos, então n + 1 também lhes pertence.
Vale a pena chamar a atenção para o facto de o género de
matéria com o qual estamos a lidar, a saber, a compara-
ção de uma ideia relativamente vaga com uma ideia rela-
tivamente precisa, não admitir demonstração precisa. A
noção de «Os termos que podem ser alcançados partindo
de O e avançando por passos sucessivos de um número
para o seguinte» é vaga, embora dê a impressão de transmi-
tir um significado rigoroso; por outro lado, «a posteridade
de 0» é precisa e explícita justamente onde a outra ideia é
difusa. Podemos entendê-la como dando--nos o que que-
ríamos dizer quando falámos dos termos que podem ser

40
alcançados partindo de O, prosseguindo por meio de pas-
sos sucessivos.
Especificamos agora a seguinte definição:
Os «números naturais» são a posteridade de O com
respeito à relação «predecessor imediato» (que é a conversa de
«Sucessor»).
Eis-nos, assim, chegados à definição de uma das três
ideias primitivas de Peano em termos das outras duas.
Em resultado desta definição, duas das proposições pri-
mitivas de Peano - a saber, aquela em que se postula que
O é um número, e aquela em que se postula a indução
matemática - tornam-se desnecessárias, uma vez que
resultam da definição. A proposição que estabelece que o
sucessor de um número natural é um número natural só
é necessária na forma mais fraca «todo o número natural
tem um sucessor».
Podemos, claro está, definir com facilidade «0» e
«sucessor» através da definição de número em geral a
que chegámos no Capítulo II. O número O é o número de
termos de uma classe que não tem membros, i.e. da classe
que se designa por «classe vazia». Pela definição geral de
número, o número de termos na classe vazia é o conjunto
de todas as classes semelhantes à classe vazia, i.e. (como
facilmente se demonstra) o conjunto formado unicamente
pela classe vazia, i.e. a classe cujo único membro é a classe
vazia. (Esta classe não é idêntica à classe vazia: possui
um membro, a saber, a classe vazia, ao passo que a classe
vazia, ela mesma, é desprovida de quaisquer membros.
Uma classe que tem um membro nunca é idêntica a
esse membro, como explicaremos quando abordarmos a

41
teoria das classes). Assim, temos a seguinte definição
puramente lógica:
Oé a classe cujo único membro é a classe vazia.
Falta-nos ainda definir «sucessor». Dado um número
qualquer n, seja a uma classe que tem n membros, e seja
x um termo que não é um membro de a. Assim, a classe
formada por a mais x terá n+1 membros. Obtemos, pois,
a seguinte definição:
O sucessor do número de termos na classe a é o número de
termos contidos na classe formada por a juntamente com x, em
que x é um termo qualquer não pert~cente a essa classe.
Para que esta definição fique perfeita, são necessárias
algumas subtilezas, mas não é aqui necessário que nos
preocupemos com elas 5• Cumpre recordar que foi já apre-
sentada (no Capítulo II) uma definição lógica do número
de termos de uma classe, definido como o conjunto de
todas as classes que são semelhantes a uma classe dada.
Reduzimos pois as três ideias primitivas de Peano
a ideias da lógica: fornecemos definições das ideias de
Peano que as tomam precisas, e já não susceptíveis de
uma infinidade de interpretações diferentes, como acon-
tecia quando eram apenas determinadas pelo facto de
obedecerem aos cinco axiomas de Peano. Subtraímo-las
ao aparato fundamental de termos que tem apenas que
ser apreendido, aumentando, desta forma, a articulação
dedutiva da matemática.
No que concerne às cinco proposições primitivas, con-
seguimos já tomar duas delas demonstráveis recorrendo à
nossa definição de «número natural». Em que pé fica esta

5 Ver Principiil Mathematica, vol. II, * 110.

42
definição face às restantes três proposições? É muito fácil
demonstrar que O não é o sucessor de nenhum número,
e que o sucessor de qualquer número é um número. Há,
contudo, uma dificuldade quanto à proposição primi-
tiva que resta, a saber, «números diferentes nunca têm o
mesmo sucessor». A dificuldade não se manifesta salvo
se o número total de indivíduos no universo for finito;
isto porque, dados dois números m e n, em que nenhum
é o número total de indivíduos existentes no universo, é
fácil demonstrar que não podemos ter m + 1 = n + 1 a não
ser que tenhamos m = n. Mas suponhamos que o número
total de indivíduos existentes no universo era (digamos)
10; neste caso, não haveria uma classe de 11 indivíduos,
e o número 11 seria a classe vazia. Tal como o número
12. O que faria com que tivéssemos 11 = 12; logo, o suces-
sor de 10 seria o mesmo que o sucessor de 11, embora
10 não fosse o mesmo que 11. Teríamos, assim, dois
números diferentes com o mesmo sucessor. No entanto,
este cair por terra do terceiro axioma não pode acon-
tecer se o número de indivíduos existentes no mundo não
for finito. Voltaremos a este tópico quando nos acharmos
num estádio mais avançado 6 .
Partindo do princípio de que o número de indiví-
duos existentes no universo não é finito, conseguimos
assim não só definir as três ideias primitivas de Peano,
como também perceber como se demonstram as cinco
proposições primitivas de Peano por meio de ideias e
de proposições pertencentes à lógica. Segue-se que toda
a matemática pura, na medida em que for dedutível da

6 Ver Capítulo XIII.

43
teoria dos números naturais, é apenas um prolongamento
da lógica. A extensão deste resultado a ramos modernos
da matemática (não dedutíveis da teoria dos números
naturais) não coloca dificuldades de princípio, como já foi
demonstrado 7 •
O processo de indução matemática, por meio do qual
definimos os números naturais, pode ser generalizado.
Definimos os números naturais como a «posteridade» de
O com respeito à relação de um número para com o seu
sucessor imediato. Se chamarmos N a esta relação, qual-
quer número m terá esta relação com m+l. Uma proprie-
dade é «hereditária com respeito a N» ou, simplesmente,
«N-hereditária», se, sempre que essa propriedade pertence
a um número m, pertence também a m + 1, i.e. ao número
com o qual m tem a relação N. E dir-se-á que um número
n pertence à posteridade de m com respeito à relação N
se n tiver toda e qualquer propriedade N-hereditária per-
tencente a m. Todas estas definições se aplicam a qualquer
das outras relações tal como se aplicam a N. Assim, se R
é uma relação, seja ela qual for, podemos estabelecer as
seguintes definições 8 :

7
No que concerne à geometria, desde que não puramente
analítica, veja-se Principies of Mathematics, parte VI; no que
concerne à dinâmica racional, ibid., parte VII.
8
Estas definições, bem como a teoria da indução generali-
zada, devem-se a Frege, e foram publicadas há muito tempo, em
1879, no seu Begriffsschrift. Apesar do enorme valor do trabalho
de Frege, creio que terei sido eu a primeira pessoa a lê-lo - mais
de vinte anos depois de ter sido publicado. .

44
Diz-se que uma propriedade é «R-hereditária» quando,
se essa propriedade pertence a um termo x, e x tem a
relação R com y, então essa propriedade pertence a y.
Uma classe é R-hereditária quando a sua propriedade
definidora é R-hereditária.
Diz-se que um termo x é um «R-antepassado» do
termo y, se y tiver toda e qualquer propriedade R-heredi-
tária que x possui, desde que x seja um termo que tem a
relação R com algo, ou com algo que esteja na relação R.
(Isto pretende apenas excluir casos triviais.)
A «R-posteridade» de x é o conjunto de todos os ter-
mos dos quais x é R-antepassado.
Enquadrámos as definições supra de modo tal que se
um termo é o antepassado de algo, então é antepassado
de si próprio, e pertence à sua própria posteridade. Trata-
-se apenas de uma questão de conveniência.
Deve assinalar-se que se entendemos R como sendo
a relação «progenitor», então «antepassado» e «poste-
ridade» conservarão os seus significados habituais,
excepção feita à circunstância de uma pessoa passar a
estar incluída entre os seus antepassados e entre a sua
posteridade. Claro está que é imediatamente evidente
que «antepassado» terá de poder ser definido em ter-
mos de «progenitor»; todavia, até Frege desenvolver a
sua teoria de indução generalizada, ninguém poderia ter
definido «antepassado» em termos de «progenitor» com
precisão. Uma pequena nota sobre este aspecto servirá
para mostrar a importância da teoria. Uma pessoa que
se confronte pela primeira vez com o problema da defi-
nição de «antepassado» em termos de «progenitor» diria,
naturalmente, que A é um antepassado de Z se, entre A

45
e Z, existir um determinado número de pessoas - B, C, ...
- em que B é filho de A, e em que cada uma delas é pro-
genitor da seguinte, até ao último, que seria progenitor
de Z. No entanto, esta definição não é adequada, salvo se
acrescentarmos que o número de termos intermédios tem
que ser finito. Considere, por exemplo, uma série como a
seguinte:
1 1 1 1 1 1
-1--- ---1
'2' 4' 8' ... 8' 4' 2'
Neste caso, temos primeiro uma série, sem fim, de
fracções negativas, e, depois, uma série, sem princípio,
de fracções positivas. Devemos dizer que, nesta série,
-! é antepassado de ! ? Segundo a definição, dada por
um principiante, que acima sugerimos a resposta é afir-
mativa; mas, de acordo com qualquer definição que venha
a dar-nos o género de ideia que pretendemos definir, não.
Para este fim, é essencial que o número de termos inter-
médios seja finito. Porém, como vimos, «finito» virá a ser
definido através de indução matemática, e é mais simples
definir a relação de antepassado em geral desde já, do que
defini-la primeiro apenas para o caso da relação de n com
n + 1, e só então alargá-la a outros casos. Aqui, como acon-
tece constantemente noutros casos, começar pela genera-
lidade, apesar de exigir mais raciocínio ao início, vem a
ser, a longo prazo, uma forma de economizar raciocínio
e de aumentar poder lógico.
No passado, a utilização da indução matemática em
demonstrações era uma coisa um tanto misteriosa. Não
parecia haver dúvidas sérias de que se tratava de um
método de demonstração válido, mas ninguém sabia

46
muito bem o porquê de tal validade. Havia quem acredi-
tasse que se tratava genuinamente de um caso de indução,
no sentido que se dá em lógica a esta palavra. Poincaré 9
considerava-o um princípio da maior importância, por
meio do qual um número infinito de silogismos podia
ser condensado num único argumento. Sabemos hoje
que todas estas concepções estavam erradas, e que a
indução matemática é uma definição, e não um princípio.
Existem alguns números aos quais pode ser aplicada, e
existem outros (como veremos no Capítulo Vlll) aos quais
não pode. Definimos os «números naturais» como aque-
les números aos quais se podem aplicar demonstrações
por indução matemática, i.e. os números que possuem
todas as propriedades indutivas. Daqui se segue que tais
demonstrações podem ser aplicadas aos números natu-
rais, não em virtude de uma intuição, de um axioma ou
de um princípio misteriosos, mas como uma proposição
puramente verbal. Se definimos «quadrúpedes» como
sendo at)im.ais que têm quatro pernas, então os animais
que têm quatro pernas são quadrúpedes; e o caso dos
números que obedecem à indução matemática é exacta-
mente similar.
Utilizaremos a expressão «números indutivos» para
referir o conjunto até agora referido por «números natu-
rais». A expressão «números indutivos» é preferível pois
permite ter presente que a definição deste conjunto de
números é obtida da indução matemática.
A indução matemática proporciona, mais do que
qualquer outra coisa, a característica essencial pela qual

9 Science and Method, cap. N.

47
o finito se distingue do infinito. O princípio de indução
matemática pode ser formulado, popularmente, recor-
rendo a uma forma do género « O que pode ser inferido de
um para o que se lhe segue, pode ser inferido do primeiro
para o último ». Esta afirmação é verdadeira quando o
número de passos intermédios entre primeiro e último
é finito, mas não em outras circunstâncias. Qualquer
pessoa que já tenha observado um comboio de merca-
dorias começar a andar reparou, certamente, no modo
como o impulso é comunicado por meio de um puxão de
um vagão para outro, até, por fim, também o vagão da
ponta da retaguarda estar em marcha. Quando o comboio
é muito comprido, passa-se um longo período de tempo
até que o último vagão se mexa. Se o comboio fosse infi-
nitamente comprido, assistir-se-ia a uma sucessão infinita
de puxões, e nunca se chegaria ao momento em que todo
o comboio está em movimento. Não obstante, se hou-
vesse uma série de vagões que não fosse maior do que a
série de números indutivos (que, como veremos, é uma
exemplificação do mais pequeno dos infinitos), todos os
vagões entrariam em marcha, mais cedo ou mais tarde, se
o motor perseverasse, embora tivéssemos sempre outros
vagões, mais para trás, que ainda não teriam começado a
andar. Esta imagem ajudar-nos-á a esclarecer o argumento
de um número para o seguinte, e a relação deste com a
finitude. Quando chegarmos aos números infinitos, onde
os argumentos da indução matemática deixarão de ser
válidos, as propriedades destes números ajudar-nos-ão,
em contrapartida, a tornar clara a utilização quase incons-
ciente que se faz da indução matemática no que concerne
aos números finitos.

48
Capítulo IV

A DEFINIÇÃO DE ORDEM

Desenvolvemos a nossa análise da série de números


naturais até ao ponto em que obtivemos definições lógi-
cas dos membros desta série, de toda a classe dos seus
membros, e da relação entre um número e o seu sucessor
imediato. Voltamos agora a nossa atenção para o carácter
serial dos números naturais na ordem O, 1, 2, 3, ... Habi-
tualmente, pensamos nos números tal como apresen-
tados nesta ordem, e a tarefa de procurar uma definição de
«ordem» ou «série» em termos lógicos é uma parte essen-
cial do trabalho de análise dos nossos dados.
Em matemática, a noção de ordem é uma das mais
importantes. Não só os números inteiros, como também
as fracções racionais e os números reais, têm uma ordem
de grandeza, e este aspecto é essencial para a maioria
das suas propriedades matemáticas. A ordem dos pontos
numa linha é essencial para a geometria; o mesino acon-
tece com a ordem (ligeiramente mais complicada) das
linhas que atravessam um ponto num plano, ou a ordem
dos planos que atravessam uma linha. Em geometria, as
dimensões constituem um desenvolvimento da ordem.
A concepção de um limite, que subjaz a todas as mate-
máticas superiores, é uma concepção serial. Há partes
da matemática que não estão dependentes da noção de
ordem, mas são muito poucas quando comparadas com
as partes que envolvem esta noção.

49
Ao procurar uma definição de ordem, a primeira
coisa a perceber é que nenhum conjunto de termos tem
apenas uma ordem, com exclusão de outras. Um con-
junto de termos possui todas as ordens que lhe é possível.
Por vezes, acontece haver uma ordem que nos é tão mais
familiar e natural ao raciocínio, que nos sentimos incli-
nados a considerá-la como sendo a ordem desse conjunto
de termos; todavia, isto é um erro. Os números naturais
-ou os números «indutivos», como também os designa-
remos - ocorrem-nos mais prontamente sob a forma de
ordem de grandeza; porém, admitem um número infinito
de outras disposições. Podemos, por exemplo, começar
por considerar todos os números ímpares, e depois todos
os números pares; ou começar por 1, seguido por todos os
números pares, seguidos por todos os múltiplos ímpares
de 3, seguidos por todos os múltiplos de 5, mas não de 2
ou 3, seguidos por todos os múltiplos de 7, mas não de
2 ou 3 ou 5, e assim por diante, ao longo de toda a série
de números primos. Dizer que «dispomos» os números
segundo estas diversas ordens é uma expressão imprecisa:
na verdade, o que fazemos é dirigir a nossa atenção para
certas relações que existem entre os números naturais,
relações essas que, por seu turno, geram esta ou aquela
disposição. A nossa capacidade para «dispor» os números
naturais é tanta quanta a nossa capacidade para dispor os
céus estrelados; contudo, da mesma maneira que, olhando
para as estrelas fixas, podemos constatar a sua ordem de
luminosidade, ou a sua distribuição no céu, assim existem
também várias relações entre os números que se prestam
a ser observadas, e que dão origem a diversas ordens dife-
rentes entre números, todas elas igualmente legítimas.

50
E o que é verdade em relação aos números verifica-se
também a respeito dos pontos numa linha, ou a respeito de
momentos temporais: uma das ordens é-nos mais familiar,
mas existem todavia outras ordens, igualmente válidas.
Poderíamos, por exemplo, dada uma linha, começar por
considerar todos os pontos que têm coordenadas inteiras,
depois todos os que têm coordenadas racionais não-
-inteiras, seguidos por todos os pontos que têm coordena-
das não-racionais algébricas, e assim por diante, ao longo
de qualquer conjunto de complicações que queiramos.
A ordem resultante é, sem sombra de dúvida, uma ordem
que os pontos da linha possuem, independentemente de
nós decidirmos ou não reparar nela; a única coisa arbi-
trária a respeito das diversas ordens de um conjunto de
termos é a nossa atenção, pois os termos, eles mesmos,
têm sempre todas as ordens que lhes é possível ter.
Um resultado importante que se segue desta obser-
vação é que não podemos procurar a definição de ordem
na natureza do conjunto de termos a ordenar, pois um
conjunto de termos tem muitas ordens. A ordem está, não
na classe de termos, mas sim numa relação existente entre
os membros da classe, relação esta de acordo com a qual
alguns membros surgem mais cedo e outros mais tarde.
O facto de uma classe poder ter muitas ordens deve-se a
poderem existir muitas relações que se estabelecem entre
os membros de uma única classe. Que propriedades terá
que ter uma relação para que dê origem a uma ordem?
As características essenciais de uma relação que vêm
a dar origem a uma ordem são detectáveis se tivermos
em mente que, relativamente a essa relação, teremos que
poder dizer, de quaisquer dois termos na classe a ordenar,

51
que um «precede» e que o outro «sucede». Ora, para que
possamos utilizar estas palavras de acordo com a acepção
em que devemos naturalmente entendê-las, é preciso que
a relação de ordenação tenha três propriedades:
(1) Se x precede y, y não pode também preceder x.
Esta é uma característica óbvia do tipo de relações que
conduzem a séries. Se x é menor do que y, y não é,
também, menor do que x. Se x ocorre mais cedo no tempo
do que y, y não ocorre, também, mais cedo do que x.
Se x está à esquerda de y, y não está à esquerda de x.
Por outro lado, é frequente que as relações que não dão
origem a séries não tenham esta propriedade. Se x é irmão
ou irmã de y, y é irmão ou irmã de x. Se x é da mesma
altura que y, y é da mesma altura que x. Se x tem uma
altura diferente da de y, y tem uma altura diferente da
de x. Em todos estes casos, quando a relação se verifica
entre x e y, verifica-se também entre y ex. No caso de rela-
ções seriais, porém, tal não pode acontecer. Uma relação
que tenha a primeira propriedade mencionada designa-se
por assimétrica.
(2) Se x precede y e y precede z, x terá que preceder
z. Esta propriedade pode ser ilustrada pelos exemplos
acima descritos: menor do que, mais cedo do que, à esquerda
de. Contudo, para exemplificar relações que não têm esta
propriedade, só podemos utilizar dois dos três exemplos
apresentados. Se x é irmão ou irmã de y, e y é irmão ou
irmã de z, X poderá não Ser irmão OU irmã de Z, uma vez
que x e z podem ser a mesma pessoa. O mesmo se aplica
às diferenças de altura, mas já não à igualdade entre altu-
ras, que possui esta segunda propriedade, mas não a
primeira. A relação «pai de», por outro lado, possui a pri-

52
meira propriedade, mas não a segunda. Uma relação que
tenha esta segunda propriedade designa-se por transitiva.
(3) Dados quaisquer dois termos da classe a ordenar,
tem que haver um que preceda e outro que suceda. Por
exemplo, dados quaisquer dois números inteiros, ou frac-
ções, ou números reais, um é mais pequeno e o outro é
maior; mas, se considerarmos quaisquer dois números
complexos, isto já não é verdadeiro. Dados quaisquer dois
momentos temporais, um terá que ocorrer mais cedo e o
outro mais tarde; mas dados quaisquer dois eventos, que
poderão ocorrer em simultâneo, já não podemos dizer o
mesmo. Dados quaisquer dois pontos numa linha, um
terá que estar à esquerda do outro. Uma relação que tenha
esta propriedade designa-se por conectada.
Quando uma relação possui estas três propriedades,
é uma relação do tipo das que dá origem a uma ordem
entre os termos entre os quais é válida; e onde quer que
exista uma ordem, é possível encontrar uma relação, que
tenha estas três propriedades, que a origina.
Antes de passar à ilustração desta tese, introduzi-
remos algumas definições.
(1) Diz-se que uma relação é hetero-relativa 10, ou
que está contida em ou que implica diversidade, se nenhum
dos termos possuir esta relação consigo próprio. Assim,
por exemplo, «maiOr do que», «diferente em dimensãO>>,
«irmão», «marido», «pai» são relações hetero-relativas;
mas «igual a», «nascido dos mesmos pais», «estimado
amigo» não o são.

10 Este termo deve-se a C. S. Peirce.

53
(2) O quadrado de uma relação é a relação que se veri-
fica entre dois termos x e z quando existe um termo inter-
médio z tal que a relação dada se estabelece entre x e y e
entre y e z. Assim, «avô paterno de» é o quadrado de «pai
de», «maior por duas unidades» é o quadrado de «maior
por uma unidade», e assim por diante.
(3) O domínio de uma relação é constituído por todos
os termos que estão na relação com alguma coisa, sendo
o domínio converso constituído por todos os termos com os
quais alguma coisa está na relação. Estas palavras foram
já definidas, mas são aqui novamente recordadas em prol
da seguinte definição:
(4) O campo de uma relação é constituído pelos seus
domínio e domínio converso, em conjunto.
(5) Diz-se que uma relação contém ou é implicada por
outra se verifica sempre que a outra se verifica.
Deve notar-se que uma relação assimétrica é o mesmo
que uma relação cujo quadrado seja hetero-relativo. Acon-
tece com frequência que uma relação seja hetero-relativa
sem contudo ser assimétrica; todavia, uma relação que
seja assimétrica é, sempre, hetero-relativa. Por exemplo,
«cônjuge» é uma relação hetero-relativa, mas é simétrica,
dado que se x é o cônjuge de y, y é o cônjuge de x. Toda-
via, entre as relações transitivas, todas as que forem hetero-
relativas são também assimétricas, e vice-versa.
Tendo em atenção estas definições, deve notar-se que
uma relação transitiva é implicada pelo seu quadrado, ou,
como também dizemos, «contém» o seu quadrado. Assim,
«antepassado» é transitivo, pois um antepassado de um
antepassado é um antepassado; mas «pai» não é transi-
tivo, pois um pai de um pai não é um pai. Uma relação

54
hetero-relativa transitiva é uma relação que contém o seu
quadrado e está contida na diversidade; ou, o que vem
dar ao mesmo, uma relação cujo quadrado implica tanto
o quadrado como a diversidade - isto porque, quando
uma relação é transitiva, ser assimétrica equivale a ser
hetero-relativa.
Uma relação é conectada quando, dados quaisquer
dois termos diferentes pertencentes ao seu campo, a rela-
ção estabelece-se entre o primeiro e o segundo, ou entre
o segundo e o primeiro (sem excluir a possibilidade de
ambos poderem ocorrer; embora não possam ocorrer
ambos se a relação for assimétrica).
Deve notar-se que a relação «antepassado», por exem-
plo, é hetero-relativa e transitiva, mas não conectada; é
justamente pelo facto de não ser conectada que não é sufi-
ciente para dispor a espécie humana numa série.
A relação «menor do que ou igual a», entre núme-
ros, é transitiva e conectada, mas não assimétrica ou
hetero-relativa.
A relação «maior ou menor do que», entre números,
é hetero-relativa e conectada, mas não é transitiva, pois·
se x é maior ou menor do que y, e y é maior ou menor do
que z, pode acontecer que x e z sejam o mesmo número.
Assim, as três propriedades- ser (1) hetero-relativa,
(2) transitiva, e (3) conectada - são mutuamente indepen-
dentes, uma vez que uma relação pode possuir quaisquer
das duas sem ter a terceira.
Estamos agora em condições de estabelecer a seguinte
definição:
Uma relação é serial quando é hetero-relativa, transi-
tiva, e conectada; ou, o que é equivalente, quando é assi-
métrica, transitiva e conectada.

55
Uma série é a mesma coisa que uma relação serial.
Poder-se-ia pensar que uma série fosse o campo de
uma relação serial, e não a relação serial ela mesma. Mas
tal seria um erro. Por exemplo,

1, 2, 3; 1, 3, 2; 2, 3, 1; 2, 1, 3; 3, 1, 2; 3, 2, 1

são seis séries diferentes, todas elas com o mesmo campo.


Se o campo fosse a série, só poderia haver uma série por
campo dado. O que distingue as seis séries acima apresen-
tadas é, simplesmente, a relação de ordenação, diferente
nos seis casos. Uma vez dada a relação de ordenação,
o campo e a ordem ficam ambos determinados. Deste
modo, a relação de ordenação pode ser tomada como
sendo a série, mas o campo não pode.
Dada qualquer relação serial, digamos P, diremos que,
com respeito a esta relação, x «precede» y se x está na rela-
ção P com y, que escreveremos, abreviadamente, «xPy».
As três características que P tem que possuir de modo a
ser serial são:

(1) Nunca podemos ter xPx, i.e., nenhum termo pode


preceder-se a si próprio;
(2) P 2 tem que implicar P, i.e., se x precede y e y pre-
cede z, x tem que preceder z.
(3) Se x e y são dois termos diferentes no campo de
P, teremos xPy ou yPx, i.e., um dos dois tem que
preceder o outro.

O leitor poderá facilmente convencer-se de que, sempre


que se encontrem estas três propriedades numa relação
de ordenação, encontrar-se-ão igualmente as caracterís-

56
ticas que esperamos de uma série, e vice-versa. Assim,
temos justificação para considerar o que apresentámos
acima como uma definição de ordem ou de série. E valerá
a pena fazer notar que a definição é efectuada em termos
puramente lógicos.
Embora uma relação conectada assimétrica transitiva
exista necessariamente sempre que existe uma série, a
relação nem sempre é o que se considera mais natural-
mente como o que originou a série. A série de números
naturais pode servir-nos aqui como ilustração. A relação
que presumimos quando considerámos os números foi a
relação de sucessão imediata, i.e. a relação entre números
inteiros consecutivos. Esta relação é assimétrica, mas não
é transitiva nem conectada. Todavia, podemos derivar a
partir dela, recorrendo ao método de indução matemá-
tica, a relação «antepassada» que vimos no capítulo pre-
cedente. Esta relação será igual à relação «menor do que
ou igual a» entre números inteiros indutivos. Para efeitos
de geração da série de números naturais, ater-nos-emos
à relação «menor do que», excluindo «igual a ». Esta é a
relação em que m está com n, quando m é um antepas-
sado de n que não é idêntico a n, ou (o que vem dar ao
mesmo) quando o sucessor de m é um antepassado de n,
no mesmo sentido em que um número é o seu próprio
antepassado. Assim sendo, pode apresentar-se a seguinte
definição:
Diz-se que um número indutivo m é menor do que
outro número n quando n possui todas as propriedades
hereditárias possuídas pelo sucessor de m.
É fácil ver, e não é difícil demonstrar, que a relação
«menor do que», assim definida, é assimétrica, transitiva,

57
e conectada, e que tem como campo os números induti-
vos. Assim, por meio desta relação, os números indu-
tivos adquirem uma ordem no sentido em que definimos
o termo «ordem», e que é a chamada ordem «natural», ou
ordem de grandeza.
A geração de séries por meio de relações mais ou
menos semelhantes àquela em que n está com n + 1
é muito comum. A série dos Reis de Inglaterra, por
exemplo, é gerada por relações entre um termo e o seu
sucessor. Nos casos em que é aplicável, esta é, provavel-
mente, a maneira mais fácil de conceber a geração de uma
série. Neste método, avançamos de cada um dos termos
para o seguinte, desde que haja um termo seguinte, ou
retrocedemos para o anterior, desde que haja u:m termo
anterior. Para que possamos definir «mais cedo» e «mais
tarde» numa série assim gerada, este método exige
sempre a forma generalizada de indução matemática. Por
analogia com «fracções próprias», atribuamos o nome
«posteridade própria de x com respeito a R» à classe dos
termos que pertencem à R-posteridade de algum termo
com o qual x está na relação R, no sentido que conferi-
mos anteriormente a «posteridade», sentido este em que
se incluiu um termo na sua própria posteridade. Regres-
sando às definições fundamentais, descobrimos que a
«posteridade própria» pode ser definida como se segue:
A «posteridade própria» de x com respeito a R con-
siste em todos os termos que apresentem todas as pro-
priedades R-hereditárias possuídas por todo e qualquer
termo com o qual x está na relação R.
Deve notar-se que esta definição tem que ser enqua-
drada de modo tal que seja aplicável não só quando existe

58
apenas um termo com o qual x está na relação R, mas
também em casos (corno, por exemplo, o de pai e filho) em
que possam existir muitos termos com os quais x esteja na
relação R. Definimos ainda que:
Um termo x é um «antepassado próprio» de y com
respeito a R se y pertence à posteridade própria de x com
respeito a R.
Utilizaremos as expressões abreviadas «R-posteri-
dade» e a «R-antepassados» quando estas nos parecerem
mais convenientes.
Regressando agora à geração de séries por meio
da relação R entre termos consecutivos, vemos que, se
se pretende que este método seja possível, a relação
«R-antepassado próprio» tem que ser urna relação hetero-
-relativa, transitiva e conectada. Em que circunstâncias é
que tal ocorrerá? Será sempre transitiva: independente-
mente do tipo de relação que R seja, «R-antepassado» e
«R-antepassado próprio» são, ambas, sempre transitivas.
Porém, só será hetero-relativa e conectada em certas
circunstâncias. Considere-se, por exemplo, a relação
em que um indivíduo está com a pessoa sentada à sua
esquerda à mesa de um jantar no qual estão presentes
doze convivas. Se designarmos por R esta relação, a
R-posteridade própria desse indivíduo consiste em todas
as pessoas a que se possa chegar, avançando à roda da
mesa, da direita para a esquerda. Abrange toda a gente
que se encontra sentada à mesa, incluindo o próprio indi-
víduo, uma vez que, em doze passos, somos trazidos de
volta ao ponto de partida. Assim, neste caso, apesar de a
relação «R-antepassado próprio» ser conectada, e apesar
de R ela mesma ser hetero-relativa, não obtemos urna série

59
porque «R-antepassado próprio» não é hetero-relativa.
É por esta razão que não podemos dizer que um indivíduo
vem antes de outro com respeito à relação «à direita de»
ou com respeito à relação antepassada da qual derivou.
A situação acima descrita exemplifica uma relação
de ancestralidade conectada, mas não contida na diver-
sidade. Um exemplo em que urna relação está contida
na diversidade, mas não conectada, deriva-se do sentido
comum da palavra «antepassado». Se x é um antepassado
próprio de y, então x e y não podem ser a mesma pessoa;
mas não é verdade que, dadas quaisquer duas pessoas,
uma tenha que ser antepassada da outra.
A questão das circunstâncias que tomam possível dar
origem a séries por meio de relações de ancestralidade
derivadas de relações de consecutividade é, amiúde, urna
questão importante. Seguem-se alguns dos casos mais
importantes: Seja R uma relação de «muitos para um», e
restrinjamos a nossa atenção à posteridade de um termo
qualquer x. Urna vez assim restringida, a relação «R-ante-
passado próprio» é, forçosamente, uma relação conec-
tada; logo, tudo o que nos resta para garantir que esta
relação é serial é o estar contida na diversidade. Estamos
aqui perante uma generalização do exemplo da mesa de
jantar. Outra generalização consiste em tornar R por uma
relação de «um para um» e incluir os antepassados, bem
como a posteridade, de x. Aqui, urna vez mais, a única
condição exigida para assegurar a geração de urna série é
que a relação «R-antepassado próprio» esteja contida na
diversidade.
A geração de ordem por meio de relações de conse-
cutividade, embora importante na sua própria esfera,

60
é menos geral do que o método que utiliza uma relação
transitiva para definir a ordem. Acontece amiúde que,
numa série, exista um número infinito de termos inter-
médios entre quaisquer dois termos susceptíveis de serem
seleccionados, não obstante o quão próximos estes dois
termos possam estar. Considere, por exemplo, fracções
dispostas em ordem de grandeza. Entre quaisquer duas
fracções, existem outras - por exemplo, a média aritmética
entre elas. Consequentemente, um par de fracções conse-
cutivas é uma coisa que não existe. Se dependêssemos da
consecutividade para definir ordem, não conseguiríamos
definir a ordem de grandeza entre fracções. Mas, de facto,
as relações de «maior do que» e de «menor do que» entre
fracções não implicam terem sido geradas a partir de rela-
ções de consecutividade, e possuem três características
de que precisamos para definir as relações seriais. Em
todos os casos como este, a ordem tem que ser definida
por meio de uma relação transitiva, urna vez que apenas
uma relação transitiva é capaz de saltar sobre um número
infinito de termos intermédios. O método da consecutivi-
dade, tal como o da contagem para descobrir o número de
termos de uma colecção, adequa-se ao finito; pode até ser
alargado a determinadas séries infinitas, a saber, aquelas
nas quais, apesar de o número total de termos ser infi-
nito, o número de termos entre quaisquer dois termos é
sempre finito; todavia, não deve ser encarado como geral.
E não só não deve ser encarado como geral, como há que
ter o cuidado de erradicar da imaginação todos os hábitos
de raciocínio resultantes de o presumirmos como geral.
Se isto não for feito, séries em que não haja termos conse-
cutivos continuarão a ser difíceis e intrigantes. E as séries

61
deste tipo têm uma importância vital para a compreensão
da continuidade, do espaço, do tempo e do movimento.
Há muitas formas que nos permitem originar séries,
mas todas .e las dependem da descoberta ou da construção
de uma relação assimétrica transitiva conectada. Algumas
destas formas revestem-se de uma importância conside-
rável. A título ilustrativo, consideremos a geração de
séries por meio de uma relação de três termos, que pode-
mos designar por «entre». Este método é muito útil em
geometria, e pode servir como uma introdução às relações
que envolvem mais do que dois termos; a melhor maneira
de apresentar este método é quando surge associado à
geometria elementar.
Dados quaisquer três pontos numa linha recta no
espaço normal, é forçoso que um deles exista entre os
outros dois. Tal não acontece com os pontos de uma
circunferência, ou de qualquer outra curva fechada, na
medida em que, dados quaisquer três pontos numa cir-
cunferência, podemos passar de qualquer um deles para
qualquer outro sem passar pelo terceiro. Na verdade, a
noção de «entre>> é característica de séries abertas - ou
séries, em sentido estrito - por contraste com o que pode-
mos designar por séries «cíclicas», em que, tal como as
pessoas à roda da mesa de jantar, uma volta é suficiente
para nos trazer de novo ao ponto de partida. Poderemos
destacar a noção de «entre» como sendo a noção funda-
mental da geometria comum; mas, por ora, ater-nos-emos
à sua aplicação a uma única linha recta e à ordenação
dos pontos numa linha recta 11 . Tomando quaisquer dois

11 Cf. Revista de Matemática, N, pp. 55 e seguintes; Principies

of Mathematics, p. 394 (§ 375).

62
pontos a, b, a linha (ab) consiste em três partes (além dos
próprios a e b):

(1) pontos entre a e b.


(2) pontos x tais que a está entre x e b.
(3) pontos y tais que b está entre y e a.

Deste modo, podemos definir a linha (ab) em termos da


relação «entre».
De maneira a que a relação «entre» possa dispor os
pontos numa linha, em qualquer ordem, da esquerda
para a direita, precisamos de certos pressupostos, a saber,
os que se seguem:

(1) Se há algo entre a e b, a e b não são idênticos.


(2) O que existe entre a e b existe também entre b e a.
(3) O que existe entre a e b não é idêntico a a (nem,
consequentemente, a b, em virtude de (2)).
(4) Se x está entre a e b, o que existe entre a ex está,
também, entre a e b.
(5) Se x está entre a e b, e b está entre x e y, então b
está entre a e y.
(6) Se x e y estão entre a e b, então ou x e y são idên-
ticos, ou x está entre a e y, ou x está entre y e b.
(7) Se b está entre a e x e também entre a e y, então ou
x e y são idênticos, ou x está entre b e y, ou y está
entre b ex.

Estas sete propriedades verificam-se, obviamente, no


caso de pontos que ocorram numa linha recta no espaço
normal. Qualquer relação de três termos que as verifique
dá origem a uma série, como pode constatar-se a partir

63
das seguintes definições. Em abono da precisão, assuma-
mos que a está para a esquerda de b. Assim, os pontos da
linha (ab) são (1) os pontos entre os quais e b, a se encontra
- a que chamaremos para a esquerda de a; (2) o próprio a;
(3) os pontos entre a e b; (4) o próprio b; (5) os pontos
entre os quais e a se encontra b - a que chamaremos para
a direita de b. Estamos agora em condições de dizer,
em termos gerais, que em relação a dois pontos x, y, na
linha (ab), x está «para a esquerda de» y em qualquer dos
seguintes casos:

(1) Quando x e y estão ambos para a esquerda de a, e


y está entre x e a;
(2) Quando x está para a esquerda de a, e y é a ou b
ou está entre a e b ou para a direita de b;
(3) Quando x é a, e y está entre a e b ou é b ou está
para a direita de b;
(4) Quando x e y estão ambos entre a e b, e y está
entre x e b;
(5) Quando x está entre a e b, e y é b ou está para a
direita de b;
(6) Quando x é b e y está para a direita de b;
(7) Quando x e y estão ambos para a direita de b e x
está entre b e y.

Constatar-se-á que, a partir das sete propriedades


que atribuímos à relação «entre>>, se pode deduzir que
a relação «para a esquerda de>>, como acima definida, é
uma relação serial de acordo com a definição que apresen-
támos para este termo. É importante ter em atenção que
nada nas definições ou no argumento depende de «entre>>
querer dizer a relação real que ocorre no espaço empí-

64
rico e que dá por este nome: qualquer relação de três ter-
mos que possua as sete propriedades puramente formais
acima apresentadas servirá, igualmente bem, a finalidade
do argumento.
A ordem cíclica, tal como a dos pontos numa circun-
ferência, não pode ser gerada por meio de relações de três
termos de «entre>> . Precisamos de uma relação de quatro
termos, que podemos designar por «separação de pares>>.
Podemos ilustrar esta afirmação imaginando uma viagem
à volta do mundo. Um indivíduo pode ir de Inglaterra
à Nova Zelândia pelo Suez ou por São Francisco; não
podemos dizer, com rigor, que qualquer destes dois luga-
res fica «entre>> Inglaterra e Nova Zelândia. Mas se um
indivíduo escolher essa rota para dar a volta ao mundo,
seja qual for a direcção que tome, os momentos em Ingla-
terra e na Nova Zelândia estarão separados um do outro
pelos momentos no Suez e em São Francisco, e conversa-
mente. Generalizando, se considerarmos quaisquer qua-
tro pontos de uma circunferência, podemos separá-los em
dois pares, digamos a e b e x e y, tais que, de maneira a ir
de a para b tenhamos que passar ou por x ou por y, e de
maneira a ir de x para y tenhamos que passar ou por a ou
por b. Nestas circunstâncias, dizemos que os membros do
par (a, b) estão separados pelo par (x, y). A partir desta
relação, é possível gerar uma ordem cíclica seguindo um
procedimento semelhante, ainda que um pouco mais com-
plicado, ao que seguimos para gerar uma ordem aberta a
partir da noção de «entre>> 12 •

12 Cf. Principies of Mathematics, p . 205 (§ 194), e referências

fornecidas nesse ponto.

65
O objectivo da segunda metade do presente capítulo
foi sugerir o tópico que poderemos designar por «geração
de relações seriais». Quando as relações deste tipo estive-
rem definidas, a geração delas a partir de outras relações
que possuam apenas algumas das propriedades exigidas
para as séries toma-se muito importante, especialmente
na filosofia da geometria e da física. Porém, atendendo
aos limites do presente volume, mais não podemos fazer
do que dar a conhecer ao leitor a existência desse tópico.

66
Capítulo V

TIPOS DE RELAÇÕES

Uma parte substancial da filosofia da matemática diz


respeito a relações, sendo que a muitos tipos diferentes
de relações correspondem tipos diferentes de utilizações.
Acontece amiúde uma propriedade pertencente a todas
as relações ser importante apenas em relação a determi-
nados géneros de relações; nestes casos, o leitor não verá
o alcance da proposição que afirma essa propriedade, a
não ser que tenha em mente os tipos de relações para os
quais ela é útil. Por razões deste jaez, bem como pelo inte-
resse intrínseco de que este tópico se reveste, é bom ter
presente uma lista indicativa das variedades de relações
matematicamente mais úteis.
No capítulo anterior abordámos uma classe suma-
mente importante, a saber, as relações seriais. Cada uma
das três propriedades que combinámos na definição de
série - assimetria, transitividade e conectividade - tem a sua
importância específica. Começaremos por tecer alguns
comentários acerca de cada uma delas. ·
A assimetria, i.e. a propriedade de ser incompatível
com a sua conversa, é uma característica do mais elevado
interesse e importância. Para que possamos desenvol-
ver as funções que cumpre, socorrer-nos-emos de alguns
exemplos. A relação marido de é assimétrica, o mesmo
acontecendo com a relação mulher de; i.e., se a é marido de
b, b não pode ser marido de a, e analogamente no caso de

67
mulher de. Por outro lado, a relação «cônjuge» é simétrica:
se a é cônjuge de b, então b é cônjuge de a. Considere-se
agora que, dada a relação cônjuge, pretendemos derivar
a relação marido. Marido é o mesmo que cônjuge do sexo
masculino, ou cônjuge de um indivíduo do sexo femi-
nino; assim, a relação marido pode ser derivada da rela-
ção cônjuge, quer limitando o domínio, constituído pelos
indivíduos do sexo masculino, quer limitando o domínio
converso, constituído pelos indivíduos do sexo feminino.
Este exemplo permite-nos ver que, dada uma relação simé-
trica, é por vezes possível, sem a ajuda de mais nenhuma
relação, separá-la em duas relações assimétricas. Todavia,
os casos em que isto acontece são raros e excepcionais:
trata-se de casos em que existem duas classes mutua-
mente exclusivas, digamos a e f3, tais que, sempre que a
relação ocorre entre dois termos, um dos termos é mem-
bro de a, sendo o outro membro de f3- como acontece no
caso de cônjuge, em que um termo da relação pertence à
classe dos indivíduos do sexo masculino e o outro à classe
dos indivíduos do sexo feminino. Num caso como este, a
relação cujo domínio está restringido a a será assimétrica,
e o mesmo acontece relativamente à relação cujo domí-
nio está restringido a f3. Porém, este não é o tipo de casos
que ocorre quando estamos perante séries de mais de dois
termos; a razão deste facto é que, numa série, todos os
termos, com excepção do primeiro e do último (se existir
um último), pertencem tanto ao domínio como ao domí-
nio converso da relação gerada, de tal maneira que uma
relação como marido, em que domínio e domínio converso
não se sobrepõem, é excluída.

68
Uma questão de importância considerável é a de
como construir relações que tenham alguma propriedade
útil por meio de operações sobre relações que têm apenas
rudimentos da propriedade. A transitividade e a conecti-
vidade são propriedades facilmente construídas em
muitos casos nos quais a relação originalmente dada não
as possui: por exemplo, se R é uma qualquer relação, a
relação antepassada derivada de R por indução genera-
lizada é uma relação transitiva; e se R é uma relação de
«muitos para um», a relação antepassada, se restringida à
posteridade de um termo dado, será uma relação conec-
tada. A assimetria, por outro lado, é uma propriedade
muito mais difícil de obter por construção. O método pelo
qual derivamos marido a partir de cônjuge não está dispo-
nível, como vimos, nos casos mais importantes, como
sejam maior do que, antes de, para a direita de, em que domí-
nio e domínio converso se sobrepõem. Claro está que, em
todos estes casos, podemos obter uma relação simétrica
juntando a relação dada à sua conversa, mas não podemos
reverter desta relação simétrica para a relação assimétrica
original, salvo mediante a ajuda de alguma relação assi-
métrica. Considere, por exemplo, a relação maior do que: a
relação maior ou menor do que - i.e. desigual - é simétrica;
porém, não há nada nesta relação que mostre que ela con-
siste na soma de duas relações assimétricas. Considere
agora uma relação como «diferente quanto ao formato».
Não se trata aqui da soma de uma relação assimétrica com
a sua conversa, pois os formatos
, não constituem uma série
única; porém, não há nada que mostre que esta relação
difere da de «diferente em grandeza» se nós não soubés-
semos de antemão que as grandezas encerram relações de

69
maior e menor do que. Isto ilustra o carácter fundamental
da assimetria como uma propriedade das relações.
Do ponto de vista da classificação das relações, ser
assimétrica é uma característica muito mais importante
do que implicar diversidade. As relações assimétricas
implicam diversidade, mas a conversa não se verifica.
«Desigual», por exemplo, que implica diversidade, é uma
relação simétrica. Em termos gerais, podemos dizer que,
se pretendêssemos levar tão longe quanto possível o acto
de dispensar as relações proposicionais, substituindo-as
por aquelas em que ocorrem atribuições de predicados
a sujeitos, poderíamos ser bem sucedidos desde que nos
restringíssemos a relações simétricas: as relações que não
implicam diversidade, se forem transitivas, podem ser
encaradas como afirmando um predicado comum, ao
passo que aquelas que implicam efectivamente diversidade
podem ser encaradas como afirmando predicados incom-
patíveis. Por exemplo, considere a relação de semelhança
entre classes, por meio da qual definimos os números. Esta
relação é simétrica e transitiva e não implica diversidade.
Seria possível, embora menos simples do que o procedi-
mento que adoptámos, considerar o número de termos
de uma colecção como um predicado da colecção: deste
modo, duas classes semelhantes seriam duas classes que
tivessem o mesmo predicado numérico, ao passo que duas
classes não semelhantes seriam duas classes que tivessem
predicados numéricos distintos. Um tal método de substi-
tuição de relações por predicados é formalmente possível
(embora amiúde muito inconveniente), conquanto que as
relações em questão sejam simétricas; no entanto, é um
método que se revela formalmente impossível quando as

70
relações são assimétricas, uma vez que tanto a mesmei-
dade de predicados como a diferença de predicados são
simétricas. As relações assimétricas são, podemos dizê-lo,
as relações mais caracteristicamente relacionais, e as mais
importantes para o filósofo que pretende estudar a natu-
reza lógica fundamental das relações.
Uma outra classe de relações da maior utilidade é a
classe das relações de «Um para muitos», i.e. as relações
nas quais um termo, no máximo, pode estar na relação
com um termo dado. São exemplos deste tipo de rela-
ções as de pai de, mãe de, marido de (salvo no Tibete),
quadrado de, seno de, e afins. Porém, progenitor de, raiz
quadrada de, e afins, não são relações de «um para
muitos». Formalmente, é possível substituir por meio de
um dispositivo todas as relações por relações de «um para
muitos». Considere (digamos) a relação menor do que entre
os números indutivos. Dado qualquer número n maior
do que 1, não haverá apenas um número que esteja na
relação menor do que com n, embora possamos formar a
classe total de números que são menores do que n. Esta é
uma classe, e a relação em que está com n não é partilhada
por nenhuma outra classe. Podemos designar a classe
dos números menores do que n por «ancestralidade pró-
pria» de n, no sentido que atribuímos a ancestralidade e
a posteridade no contexto da indução matemática. Temos
pois que «ancestralidade própria» é uma relação de «um
para muitos» (de «um para muitos» será sempre utilizado
de modo a incluir de «Um para um »), uma vez que cada
número determina uma só classe de números que consti-
tuem a sua ancestralidade própria. Logo, a relação menor
do que pode ser substituída por ser um membro da ancestra-

71
lidade própria de. Desta maneira, uma relação de «um para
muitos» em que o um é uma classe, juntamente com a per-
tença a essa classe, pode sempre, formalmente, substituir
uma relação que não seja de «Um para muitos». Peano,
que, por qualquer razão, concebe sempre instintiva-
mente uma relação como sendo uma relação de «Um para
muitos», lida desta maneira com as relações que natu-
ralmente não o são. No entanto, a redução das relações
de «um para muitos» por meio deste método, ainda que
possível em termos formais, não representa uma simplifi-
cação técnica, e todas as razões nos levam a crer que esta
redução não representa uma análise filosófica, que mais
não seja porque as classes têm que ser encaradas como
«ficções lógicas». Por isto, continuaremos a encarar as
relações de «um para muitos» como sendo um tipo espe-
cial de relação.
As relações de «um para muitos» estão envolvidas em
todas as expressões da forma «O isto e aquilo de tal e tal».
«0 Rei de Inglaterra», «a mulher de Sócrates», «O pai de
John Stuart Mill», e afins, descrevem uma pessoa por meio
de uma relação de «Um para muitos» relativamente a um
dado termo. Uma pessoa não pode ter mais do que um
pai, logo « O pai de John Stuart Mill» descreveria sempre
alguma, apenas uma, pessoa, mesmo que não soubés-
semos quem. Há muito a dizer sobre o tópico das descri-
ções mas, no presente momento, o que aqui nos interessa
são as relações, sendo as descrições relevantes apenas na
medida em que exemplificam as utilizações das relações
de «Um para muitos». Deve chamar-se a atenção para o
facto de todas as funções matemáticas resultarem de rela-
ções de «um para muitos»: log x, cos x, etc., são, tal como

72
o pai de x, termos descritos por meio de uma relação de
«um para muitos» (logaritmo, co-seno, etc.) relativamente
a um dado termo (x). A noção de fun ção não tem que estar
restringida aos números, ou às utilizações a que os mate-
máticos nos habituaram; pode ser alargada a todos os
casos de relações de «um para muitos», e «O pai de X» é
tão legitimamente uma função da qual x é o argumento
como «O logaritmo de X » . Nesta acepção, as funções são
funções descritivas. Como veremos mais tarde, existem
funções de um tipo mais geral e mais fundamental ainda,
a saber, as funções proposicionais; todavia, por ora, limita-
remos a nossa atenção às funções descritivas, i.e. «O termo
que está na relação R com X » ou, abreviadamente, «O R
de X », em que R é uma relação de «um para muitos».
Note-se que, se «O R de X » pretende descrever um
termo definido, x tem que ser um termo com o qual
alguma coisa está na relação R, e não pode existir mais
do que um termo que esteja na relação R com x, uma
vez que «O», correctamente utilizado, tem que implicar
unicidade. Assim, podemos referir-nos a «o pai de X »
se x for um ser humano outro que não Adão e Eva; mas
não podemos falar de «O pai de X» se x for uma mesa, ou
uma cadeira, ou qualquer outra coisa que não tenha um
pai. Diremos pois que a R de x «existe» quando há ape-
nas um termo, e não mais, que esteja na relação R com x.
Assim, se R é uma relação de «Um para muitos», a R de x
existe sempre que x pertença ao domínio converso de R,
mas não se assim não for. Considerando «a R de X» como
uma função, na acepção matemática de função, dizemos
que x é o «argumento>> da função, e se y for o termo que
está na relação R com x, i.e. se y for a R de x, então y é o

73
«valor» da função para o argumento x. Se R é uma relação
de «um para muitos», o espectro de argumentos possíveis
para a função é o domínio converso de R, e o espectro de
valores é o seu domínio. Assim sendo, o espectro de argu-
mentos possíveis para a função «O pai de X » corresponde
a todas as pessoas que têm pais, i.e. o domínio converso
da relação pai de, sendo o espectro de valores possíveis
para esta função, i.e. o domínio da relação, todos os pais.
'Muitas das noções mais importantes na lógica das
relações são funções descritivas; por exemplo: conversa,
domínio, domínio converso, campo. À medida que formos
avançando, aparecerão outros exemplos.
As relações de «Um para um » constituem uma classe
particularmente importante de relação de «um para mui-
tos». Tivemos já ocasião de falar em relações de «Um para
um» quando abordámos a definição de número; porém, é
necessário que nos familiarizemos com elas, e não apenas
que saibamos a sua definição formal. A definição formal
de relações de «um para um» pode ser derivada da de
relações de «um para muitos»: podemos defini-las como
relações de «um para muitos» que são, também, relações
conversas de relações de «um para muitos», i.e. relações
que são tanto de «um para muitos» como de «muitos para
um». As relações de «um para muitos» podem ser defi-
nidas como relações tais que, se x está na relação em ques-
tão com y, então não existe nenhum outro termo x' que
também esteja nessa relação com y. Ou, de outra maneira,
podemos defini-las como se segue: dados dois termos x e
x', os termos com os quais x está na relação dada e os ter-
mos com os quais x' está na relação dada não têm membros
em comum. Ou, ainda, podem ser definidas como relações

74
tais que o produto relativo de uma delas e da sua conversa
implica identidade, em que o «produto relativo» de duas
relações R e S é a relação que obtém entre x e z quando há
um termo intermédio y, tal que x está na relação R com y
e y está na relação S com z. Assim, por exemplo, se R é a
relação de pai para filho, o produto relativo de R e da sua
conversa será a relação que se obtém entre x e um homem
z em que há um y, tal que x é o pai de y e y é o filho de z.
É óbvio que x e z têm que ser a mesma pessoa. Se, por
outro lado, considerarmos a relação de progenitor para
filho, relação esta que não é de «um para muitos», já não
poderemos argumentar que, se x é um progenitor de y
e y é um filho de z, x e z têm que ser a mesma pessoa,
pois um pode ser o pai de y e o outro a mãe. Este caso
ilustra que isto é característico das relações de «um para
muitos» quando o produto relativo de uma relação e da
sua conversa impliquem identidade. Isto acontece no caso
das relações de «um para um», e, também neste caso, o
produto relativo da conversa e da relação implica iden-
tidade. Dada uma relação R, é conveniente, se x está na
relação R com y, pensar em y como sendo um termo a
que se chega a partir de x por um «passo-R» ou por um
«vector-R». Neste mesmo caso, chegar-se-á a x partindo
de y através de um «passo-R atrás». Assim, podemos esta-
belecer a característica das relações de «um para muitos»
que temos vindo a analisar afirmando que um passo-R
seguido por um passo-R atrás terá que nos trazer de volta
ao nosso ponto de partida. Isto não sucede, de maneira
nenhuma, com outras relações; por exemplo, se R é a rela-
ção de filho para progenitor, o produto relativo de R e da
sua conversa é a relação «O próprio, ou irmão ou irmã», e

75
se R é a relação de neto para progenitor do progenitor, o
produto relativo de R e da sua conversa é «O próprio, ou
irmão ou irmã ou primo direito». Deve chamar-se a aten-
ção para o facto de o produto relativo de duas relações
não ser, em geral, comutativo, i.e. o produto relativo de R
e S não é, em geral, a mesma relação que o produto rela-
tivo de S e R. Exemplo: o produto relativo de progenitor e
irmão é tio, mas o produto relativo de irmão e progenitor
é progenitor.
As relações de <<Um para um» dão-nos uma corre-
lação entre duas classes, termo a termo, de tal forma que
cada um dos termos em cada uma das classes tem o seu
correlato na outra. Estas correlações são mais simples de
apreender quando as duas classes não têm membros em
comum, como a classe dos maridos e a classe das mulhe-
res; isto porque, nesse caso, sabemos desde logo se um
termo deve ser considerado como um termo a partir do
qual a relação de correlação R sai, ou se como um termo
para o qual a relação se dirige. É conveniente utilizar a
palavra referente para o termo a partir do qual a relação
sai, e o termo relatum para o termo para o qual a relação
se dirige. Assim, se x e y são marido e mulher, então, com
respeito à relação «marido», x é o referente e y o relatum,
mas, com respeito à relação <<mulher», y é o referente e
x o relatum. Dizemos que uma relação e a sua conversa
têm <<Sentidos» opostos; assim, o <<sentido>> de uma rela-
ção que parte de x para y é o oposto do sentido da relação,
correspondente, de y para x. O facto de uma relação ter
um <<sentido» é fundamental, e constitui parte da razão
pela qual podemos gerar ordem mediante relações apro-
priadas. Deve chamar-se a atenção para o facto de a classe

76
de todos os referentes possíveis de uma dada relação ser
o seu domínio, e a classe de todos os relata possíveis ser o
seu domínio converso.
No entanto, é muito frequente que o domínio e o
domínio converso de uma relação de <<um para um» se
sobreponham. Considere, a título de exemplo, os primei-
ros dez números inteiros (excluindo O) e adicione 1 a cada
um deles; deste modo, em vez dos primeiros dez números
inteiros que tomámos em consideração, teremos agora:

2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11.

Trata-se dos mesmos números que tínhamos antes,


excepção feita ao facto de 1 ter caído, no início, e 11 ter
sido acrescentado, no fim. Temos, ainda, dez números
inteiros: estão correlacionados com os dez que come-
çámos por tomar em consideração por meio da relação
de n para n + 1, que é uma relação de «Um para um». Em
alternativa, em vez de adicionar 1 a cada um dos nossos
números inteiros originais, poderíamos ter duplicado
cada um deles, assim obtendo os números inteiros

2, 4, 6, 8, 10, 12, 14, 16, 18, 20.

Aqui, ainda temos cinco dos que faziam parte do nosso


conjunto original de números inteiros, a saber, 2, 4, 6, 8,
10. A relação de correlação presente neste caso é a relação
de um número para o seu dobro, relação esta que é, nova-
mente, uma relação de «um para um». Outra alternativa
possível seria termos substituído cada número pelo seu
quadrado, assim obtendo o conjunto

1, 4, 9, 16, 25, 36, 49, 64, 81, 100.

77
Neste caso, restam apenas três do nosso conjunto origi-
nal, a saber, 1, 4, 9. Estes processos de correlação podem
acolher um número infindável de variações.
De entre todos os casos do tipo que acabamos de
apresentar, o mais interessante é aquele em que a nossa
relação de «um para um» tem um domínio converso que
é parte, mas não a totalidade, do domínio. Se, em vez de
restringirmos o domínio aos primeiros dez números intei-
ros, tivéssemos considerado todos os números indutivos,
os exemplos acima apresentados teriam ilustrado este
caso. Podemos dispor os números em questão em duas
filas, colocando o correlato imediatamente abaixo do
número de que é correlato. Assim, quando o correlator é a
relação de n para n + 1, temos as duas filas:

1, 2, 3, 4, 5, ... n ...
2, 3, 4, 5, 6, ... n+1 .. .

Quando o correlator é a relação de um número para o seu


dobro, temos:

1, 2, 3, 4, 5, ... n ...
2, 4, 6, 8, 10, ... 2n ...

Quando o correlator é a relação de um número para o seu


quadrado, as filas são:

1, 2, 3, 4, 5, ... n ...
1, 4, 9, 16, 25, .. . n2 ••.

Em todos estes casos, todos os números indutivos ocor-


rem na fila de cima, sendo que, na fila de baixo, ocorrem
apenas alguns.

78
Os casos deste tipo, em que o domínio converso é uma
«parte própria» do domínio (i.e. parte, mas não o todo),
ocupar-nos-ão novamente quando abordarmos a infini-
tude. Por ora, a nossa intenção é somente a de assinalar
que este tipo de casos existe e requer análise.
Outra classe de correlações amiúde importante é a
classe que se designa por «permutações», em que o domí-
nio e o domínio converso são idênticos. Considere, a título
de exemplo, as seis disposições possíveis de três letras:

a, b, c a, c, b
b, c, a b, a, c
c, a, b c, b, a

Podemos obter cada uma destas disposições a partir


de qualquer uma das outras por meio de uma correla-
ção. Veja-se, por exemplo, a primeira e a última, (a, b, c) e
(c, b, a). Neste caso, a está correlacionada com c, b con-
sigo própria, e c com a. É evidente que a combinação de
duas permutações é, novamente, uma permutação, í.e. as
permutações de uma classe dada formam aquilo a que se
chama um «grupo».
Estes vários tipos de correlações são importantes em
vários contextos, alguns para um determinado propósito,
outros para outro. A noção geral de correlações de «um
para um» reveste-se de uma importância ilimitada na
filosofia da matemática, como vimos já em parte, embora
venhamos a ter ocasião de ver, de modo mais completo,
à medida que formos avançando. No capítulo que se
segue, ocupar-nos-emos justamente de uma das suas
utilizações.

79
Capítulo VI

SEMELHANÇA DE RELAÇÕES

No Capítulo II, vimos que duas classes têm o mesmo


número de termos quando são semelhantes, i.e. quando
há uma relação de «Um para um» cujo domínio é uma
dessas classes e cujo domínio converso é a outra. Nestes
casos, dizemos que há uma «correlação de «um para um»
entre as duas classes.
No presente capítulo, cumpre-nos definir uma rela-
ção entre relações, que desempenhará, para as relações1
o mesmo papel que a semelhança de classes desempenha
para as classes. Designaremos esta relação por «seme-
lhança de relações», ou por «parecença», quando nos
parecer desejável utilizar uma palavra diferente da que
utilizamos para as classes. Como se define «parecença»?
Continuaremos ainda a socorrer-nos da noção de
correlação: partiremos do princípio de que o domínio de
uma das duas relações pode ser correlacionado como o
domínio da outra, e de que o domínio converso de uma
pode ser correlacionado com o domínio converso da
outra; no entanto, isto não é suficiente para o género de
semelhança que pretendemos ter entre as nossas duas
relações. Aquilo que pretendemos é que, quando qualquer
destas duas relações existir entre dois termos, a outra rela-
ção exista também entre os correlatas desses dois termos.
O exemplo mais imediato é um mapa. Quando um sítio
está a norte de outro, a localização correspondente a esse

81
sítio no mapa está acima do sítio em que, no mapa, se
encontra a localização do outro; quando um sítio está a
oeste de outro, a localização que corresponde a esse sítio
no mapa está à esquerda do sítio em que, no mapa, se
encontra a localização do outro; e assim por diante.
A estrutura do mapa corresponde à estrutura do país
representado. As relações espaciais patentes no mapa têm
«parecença» com as relações espaciais patentes no país
cartografado. Este é o tipo de nexo entre relações que pre-
tendemos definir.
Podemos, em primeiro lugar, introduzir vantajosa-
mente uma restrição específica. Para a definição de pare-
cença, restringir-nos-emos às relações que têm «campos»,
i.e. às que permitem a formação de uma classe única a
partir do domínio e do domínio converso. Esta circuns-
tância nem sempre se verifica. Considere, por exemplo,
a relação «domínio», i.e. a relação em que o domínio de
uma relação está com a relação. O domínio desta relação é
constituído por todas as classes, uma vez que toda e qual-
quer classe é o domínio de alguma relação; e o domínio
converso desta relação é constituído por todas as relações,
uma vez que toda e qualquer relação tem um domínio.
Todavia, classes e relações não podem ser reunidas para
formar uma nova classe única, pois são de «tipos» lógicos
diferentes. Não é necessário entrar aqui na difícil dou-
trina dos tipos, mas é bom estarmos cientes de quando
nos estamos a abster de entrar nalguma coisa. Podemos
dizer, sem que tenhamos de entrar nos fundamentos para
esta afirmação, que uma relação só tem um «campo» que
é aquilo designamos por «homogénea», i.e. quando o seu
domínio e o seu domínio converso são do mesmo tipo

82
lógico; e, em jeito de indicação «pronta a usar» do que
queremos dizer com «tipo», podemos afirmar que indi-
víduos, classes de indivíduos, relações entre indivíduos,
relações entre classes, relações de classes para indivíduos,
e assim por diante, constituem tipos distintos. Ora, a noção
de parecença não tem grande utilidade quando aplicada
a relações que não sejam homogéneas; por isso, na defi-
nição de parecença, simplificaremos o nosso problema
referindo-nos ao «campo» de uma das relações em ques-
tão. Esta opção limita, de certa maneira, a generalidade
da nossa definição, mas trata-se de uma limitação que não
tem nenhuma importância prática. E, uma vez estabele-
cida, não precisa de ser recordada. Podemos definir duas
relações P e Q como «semelhantes», ou como tendo «pare-
cença», quando existe uma relação de «Um para um» S
cujo domínio é o campo de P e cujo domínio converso é o
campo de Q e que é tal que, se um termo está na relação
P com outro termo, então o correlato do primeiro está na
relação Q com o correlato do segundo, e vice-versa. Uma
figura ajudar-nos-á a tomar isto mais claro.

X p y

z Q w

Sejam x e y dois termos que estão na relação P. Assim,


existirão dois termos z, w, tais que x.está na relação S com

83
z, y está na relação S com w, e z está na relação Q com w.
Se isto acontece com todos os pares de termos tais como
x e y, e se a conversa acontece com todos os pares de
termos tais como z e w, é então evidente que, para cada
caso em que a relação P se estabelece, haverá um caso
que lhe corresponde em que a relação Q se estabelece, e
vice-versa; e isto é o que pretendemos garantir através da
nossa definição. Podemos eliminar algumas redundâncias
no esboço de definição supra apresentado se observarmos
que, quando as condições acima estipuladas se concre-
tizam, a relação Pé idêntica ao produto relativo de Se
Q e da conversa de S, i.e. o passo-P de x para y pode ser
substituído pela sucessão de passos: passo-S de x para z,
passo-Q dez para w, e passo-S atrás de w para y. Desta
maneira, podemos estabelecer as seguintes definições:
Diz-se que uma relação S é um «correlator» ou um
«correlator ordinal» de duas relações P e Q se S é de «um
para um», tem como domínio converso o campo de Q,
e é tal que P é o produto relativo de S e Q e da conversa
de S.
Diz-se que duas relações P e Q são «semelhantes»,
ou que têm «parecença», quando existe pelo menos um
correlator de P e Q.
Poder-se-á constatar que estas definições nos asse-
guram o que acima definimos como sendo necessário.
Constatar-se-á que, quando duas relações são seme-
lhantes, partilham todas as propriedades que não depen-
dem dos termos concretos que fazem parte dos seus
campos. Por exemplo, se uma implica diversidade, a outra
também o implica; se uma é transitiva, a outra também o
é; se uma é conectada, a outra também o é. Consequen-

84
temente, se uma é serial, a outra também o é. E ainda,
se uma é de «Um para muitos» ou de «um para um», a
outra será de «um para muitos» ou de «Um para um»;
e assim por diante, ao longo de todas as propriedades
gerais das relações. Mesmo as asserções que envolvem os
termos concretos do campo de uma relação, embora pos-
sam não ser verdadeiras, tal como se apresentam, quando
aplicadas a uma relação semelhante, poderão sempre ser
traduzidas para asserções análogas. Estas observações
conduzem-nos a um problema cuja importância na esfera
da filosofia matemática não tem, de forma alguma, sido
adequadamente reconhecida até hoje. O problema a que
nos referimos pode ser formulado da seguinte maneira:
Dada uma asserção numa linguagem cuja gramática
e sintaxe conhecemos, mas cujo vocabulário desconhe-
cemos, quais são os significados possíveis dessa asserção,
e quais são os significados das palavras desconhecidas
que a tomariam verdadeira?
O que faz com que esta pergunta seja importante é
o facto de representar, muito mais aproximadamente do
que se poderia imaginar, o estado do nosso conhecimento
da natureza. Sabemos que determinadas proposições cien-
tíficas - que, nas ciências mais avançadas, se expressam
por meio de símbolos matemáticos - são mais ou menos
verdadeiras acerca do mundo, mas estamos em grande
medida às escuras quanto à interpretação a atribuir aos
termos que ocorrem nestas proposições. Sabemos muito
mais (para utilizar, por momentos, um par de termos
datado) acerca da forma do que acerca da matéria da natu-
reza. Assim sendo, aquilo que realmente sabemos quando
enunciamos uma lei da natureza é tão-só que haverá, pro-

85
vavelmente, alguma interpretação dos nossos termos que
faz com que a lei seja aproximadamente verdadeira. Deste
modo, a pergunta «Quais são os significados possíveis de
uma lei expressa em termos cujo significado substantivo
desconhecemos, e dos quais conhecemos apenas a gramá-
tica e a sintaxe?» reveste-se da maior importância. E esta
foi a pergunta sugerida há pouco.
Por ora, ignoraremos a pergunta geral, da qual vire-
mos novamente a ocupar-nos quando chegarmos a um
estádio mais avançado; primeiro, temos que nos deter um
pouco mais sobre a questão da parecença.
Em virtude do facto de, quando duas relações são
semelhantes as suas propriedades serem as mesmas,
excepto quando estão dependentes de os seus campos
serem compostos apenas pelos termos dos quais na ver-
dade são compostos, é desejável dispor de uma nomen-
clatura que reúna todas as relações que são semelhantes
a uma relação dada. Da mesma maneira que designámos
o conjunto das classes que são semelhantes a uma classe
dada por «número» dessa classe, assim podemos desig-
nar o conjunto das relações que são semelhantes a uma
relação dada por «número» dessa relação. Todavia, de
maneira a evitar confusão relativamente aos números que
se dizem das classes, referir-nos-emos, neste caso, a um
«número-relação». Temos então as seguintes definições:
O «número-relação» de uma relação dada é a classe
de todas as relações que são semelhantes à relação dada.
Os «números-relação» são o conjunto de todas as
classes de relações que são números-relação de várias rela-
ções; ou, o que vem dar ao mesmo, um número-relação é
a classe de relações que consiste em todas as relações que
são semelhantes a um dos membros da classe.

86
Quando for necessário referirmo-nos aos números
das classes de maneira a ser impossível confundi-los com
os números-relação, designá-los-ernos por «números car-
dinais». Ternos, portanto, que os números cardinais são
os números que se dizem das classes. Neles se incluem
os números inteiros vulgares da vida quotidiana, bem
ainda corno certos números infinitos, dos quais falaremos
mais adiante. Quando mencionarmos «números», sem
nenhuma qualificação adicional, deve entender-se que
estamos a referir-nos aos números cardinais. A definição
de número cardinal, recordemo-la, é a seguinte:
O «número cardinal» de urna classe dada é o conjunto
de todas as classes que são semelhantes à classe dada.
A aplicação mais óbvia dos números-relação é a sua
aplicação às séries. Duas séries podem ser consideradas
corno tendo igual extensão quando têm o mesmo número-
-relação. Duas séries finitas terão o mesmo número-rela-
ção quando os seus campos tiverem o mesmo número
cardinal de termos, e somente quando assim for - i.e. urna
série de (digamos) 15 termos terá o mesmo número-rela-
ção que toda e qualquer outra série de quinze termos,
mas não terá o mesmo número-relação que urna série de
14 ou de 16 termos, nem, obviamente, o mesmo número-
-relação que urna relação que não seja serial. Assim, no
caso particularmente especial das séries finitas, existe um
paralelismo entre cardinais e número-relação. Os núme-
ros-relação aplicáveis a séries podem ser designados por
«números seriais» (o que vulgarmente se designa por
«números ordinais» constitui urna subclasse dos núme-
ros seriais); assim, um número serial finito é determinado
quando sabemos o número cardinal de termos que exis-

87
tem no campo de uma série que tenha o número serial
em questão. Se n é um número cardinal finito, o número-
-relação de uma série que tenha n termos designa-se pelo
número «ordinal» n. (Existem também números ordinais
infinitos, mas, destes, falaremos num capítulo poste-rior.)
Quando o número cardinal de termos existentes num
campo de uma série é infinito, o número-relação da série
não é determinado apenas pelo número cardinal; na ver-
dade, existe um número infinito de números-relação para
um número cardinal infinito, como veremos quando abor-
darmos as séries infinitas. Quando uma série é infinita,
aquilo a que podemos chamar a sua «extensão», i.e. o seu
número-relação, pode variar sem que haja alteração no
número cardinal; todavia, quando a série é finita, tal não
pode acontecer.
Podemos definir a adição e a multiplicação para núme-
ros-relação, bem como para números cardinais, havendo
lugar para o desenvolvimento de toda uma aritmética dos
números-relação. O modo como isto é feito vê-se facil-
mente se olharmos para o caso das séries. Suponha, por
exemplo, que pretendemos definir a soma de duas séries
que não se sobrepõem de modo a que o número-relação
da soma possa ser definido como a soma dos números-
-relação das duas séries. Em primeiro lugar, é evidente
que há uma ordem envolvida entre as duas séries: uma
delas tem que ser colocada antes da outra. Assim, se P
e Q são as relações que deram origem às duas séries, na
série que é a soma destas, com P colocado antes de Q,
todos os membros do campo de P precederão todos os
membros do campo de Q. Assim, a relação serial a definir
como sendo a soma de P e Q não é, simplesmente, «P ou

88
Q», mas sim «P ou Q ou a relação de qualquer membro
do campo de P para qualquer membro do campo de Q».
Partindo do princípio de que P e Q não se sobrepõem,
esta relação é serial; porém, «P ou Q» não é serial, e não
está conectada, uma vez que não se estabelece entre um
membro do campo de p e um membro do campo de Q.
Assim, a soma de P e Q, como acima definida, é aquilo de
que precisamos para definir a soma de dois números-rela-
ção. Para os produtos e para as potências são necessárias
modificações semelhantes. A aritmética daqui resultante
não obedece à lei comutativa: a soma ou o produto de
dois números-relação está, regra geral, dependente da
ordem em que são dispostos. Todavia, obedece à lei asso-
ciativa, a uma forma da lei distributiva, e a duas das leis
formais para as potências, não apenas quando aplicadas
a números seriais, mas também quando aplicadas aos
números-relação em geral. A aritmética relacional, embora
recente, é, efectivamente, um ramo inteiramente respei-
tável da matemática.
No entanto, pelo mero facto de as séries nos ofere-
cerem a aplicação mais óbvia da ideia de parecença, não
podemos presumir que não existam outras aplicações
importantes. Já aqui referimos os mapas, e podemos
aplicar os raciocínios que fizemos sobre esta ilustração
à geometria em geral. Se o sistema de relações por meio
do qual a geometria é aplicada a determinados conjun-
tos de termos pode ser inteiramente exportado para rela-
ções de parecença com um sistema aplicado a um outro
conjunto de termos, então a geometria dos dois conjun-
tos é indistinguível da abordagem matemática, i.e. todas
as proposições são idênticas, salvo pelo facto de que são

89
aplicadas, num dos casos, a um conjunto de termos e,
no outro caso, a outro. Podemos ilustrar o que acabamos
de dizer recorrendo às relações do . tipo que podemos
designar por «entre» e que analisámos no Capítulo IV. Na
altura, vimos que, desde que uma relação de três termos
tenha determinadas propriedades lógicas formais, então
dará origem a séries, e pode ser designada por «relação
entre». Dados quaisquer dois pontos, podemos utilizar a
«relação entre» para definir a linha recta que estes dois
pontos determinam; esta linha recta consistirá em a e
b, juntamente com todo os pontos x, tal que a «relação
entre» se estabelece entre os três pontos a, b, x numa ou
noutra ordem. O. Veblen mostrou que podemos enca-
rar todo o nosso espaço como o campo de uma «relação
entre» de três termos, e que podemos definir a geometria
através das propriedades que atribuímos à nossa «relação
entre» 13 . Ora, é tão fácil definir parecença entre relações
de três termos como entre relações de .dois termos. Se B
e B' são duas «relações entre», tais que «xB(y, z) » significa
<<X está entre y e z com respeito a B», designaremos por S
um correlator de B e B' se S tiver o campo de B' para o seu
domínio converso, e for tal que a relação B ocorre entre
três termos quando B' ocorrer entre os seus S-correlatos,
e apenas quando assim acontece. E diremos que B é pare-
cido com B' quando existe pelo menos um correlator de B
com B'. O leitor poderá facilmente convencer-se de que,
se B é parecido com B' nesta acepção, então não poderão

13
Esta proposta não se aplica ao espaço elíptico, mas apenas
aos espaços em que a linha recta é uma série aberta. Modem
Milthematics, editado por J. W. A Young, pp. 3-51 (monografia
por O. Veblen sobre <<Os Fundamentos da Geometria>>).

90
existir diferenças entre a geometria gerada por B e a
geometria gerada por B'.
Segue-se assim que o matemático não precisa de se
preocupar com o ser particular ou com a natureza intrín-
seca dos seus pontos, linhas, e planos, mesmo quando
especula no âmbito da matemática aplicada. Podemos dizer
que dispomos de prova empírica da verdade aproximada
no que concerne às partes da geometria que não consti-
tuem matéria de definição. Todavia, não há evidência
empírica quanto ao que deva ser um «ponto». Terá de ser
algo que satisfaça, tão aproximadamente quanto possível,
os nossos axiomas, mas não tem que ser «muito pequeno»
ou «sem partes». Desde que satisfaça os axiomas, ser ou
não estas coisas é uma questão indiferente. Se, a partir
de material empírico, podemos construir uma estrutura
lógica (não importa quão complicada) que venha a satis-
fazer os nossos axiomas geométricos, podemos então;
com toda a legitimidade, chamar «ponto» a essa estrutura.
Não podemos afirmar que nada mais existe que não
pudesse ser legitimamente chamado «ponto»; temos que
nos limitar a afirmar: «Este objecto que construímos é
suficiente para o geómetra; pode ser um de entre muitos
objectos, em que qualquer deles poderia ser suficiente,
mas isso não já não nos diz respeito, uma vez que este
objecto é suficiente para vindicar a verdade empírica da
geometria, nos limites em que a geometria não é maté-
ria de definição.» O que acabamos de apresentar é apenas
uma ilustração do princípio geral de que o que interessa
em matemática e, em grande medida na ciência física, não
é a natureza intrínseca dos termos, mas sim a natureza
lógica das inter-relações entre eles.

91
Podemos dizer, de duas relações semelhantes, que
têm a mesma «estrutura». Para fins matemáticos (embora
não para os da filosofia pura) o importante acerca de uma
relação são os casos em que ela se verifica, e não a sua
natureza intrínseca. Da mesma maneira que uma classe
pode ser definida por meio de vários conceitos diferentes
mas coextensivos - e.g. «homem» e «bípede sem penas» -,
também duas relações conceptualmente diferentes têm a
possibilidade de obter no mesmo conjunto de exempli-
ficações. Concebe-se uma «exemplificação» em que uma
relação obtém como um par de termos, com uma ordem,
tal que um dos termos aparece primeiro e o outro aparece
a seguir; e, naturalmente, o par é tal que o seu primeiro
termo está na relação em questão com o seu segundo
termo. Considere-se, por exemplo, a relação «pai»: pode-
mos definir aquilo que designaremos por «extensão»
desta relação como sendo a classe de todos os pares orde-
nados (x, y) que são tais que x é o pai de y. De llin ponto
de vista matemático, a única coisa que é importante saber
sobre a relação «pai» é o facto de ela definir este conjunto
de pares ordenados. Falando em termos gerais, dizemos:
A «extensão» de uma relação é a classe dos pares orde-
nados (x, y) em que x está na relação em questão com y.
Podemos agora avançar no processo de abstracção e
examinar o que queremos dizer com «estrutura». Dada
uma relação qualquer, desde que suficientemente sim-
ples, podemos construir um mapa que a representa. Em
abono da precisão, considere-se uma relação cuja exten-
são é constituída pelos seguintes pares: ab, ac, ad, bc, ce,
de, de, em que a, b, c, d, e são cinco termos, não importa
o quê. Podemos traçar um mapa desta relação dispondo

92
cinco pontos num plano e ligando-os por meio de setas,
como se vê na figura. O que o mapa revela é aquilo que
designamos por «estrutura» da relação.

a b

1. 1.
d~/'
e

Torna-se claro que a «estrutura» da relação não


depende dos termos particulares que constituem o campo
da relação. O campo pode sofrer alteração sem que se
altere a estrutura, e a estrutura pode ser alterada sem
causar alteração no campo- por exemplo, se acrescentás-
semos o par ae à ilustração apresentada, alteraríamos a
estrutura, mas não o campo. Duas relações têm a mesma
estrutura, poder-se-á dizer, quando o mesmo mapa servir
para ambas - ou, o que vem dar ao mesmo, quando qual-
quer delas puder ser um mapa da outra (uma vez que
toda e qualquer relação pode ser mapa de si própria).
E este facto, como se percebe se reflectirmos um instante,
é exactamente aquilo a que atribuímos a designação de
«parecença». Querendo com isto dizer que duas relações
têm a mesma estrutura quando têm parecença, i.e. quando

93
têm o mesmo número-relação. Assim, o que definimos
corno o «número-relação» é a mesmíssima coisa que se
pretende obscuramente dizer pela palavra «estrutura»
- urna palavra que, apesar de importante, nunca é (tanto
quanto nos é dado saber) definida em termos precisos por
aqueles que a utilizam.
Na filosofia tradicional, assistiu-se a muita espe-
culação que poderia ter sido evitada se a importância da
estrutura, e a dificuldade de a ultrapassar, tivesse sido
compreendida. Por exemplo, diz-se frequentemente que
o espaço e o tempo são subjectivos, mas que têm contra-
partes objectivas; ou, que os fenómenos são subjectivos,
mas causados por coisas em si mesmas, que terão que
ter diferenças inter se correspondentes às diferenças que
existem nos fenómenos aos quais dão origem. Nas sedes
em que estas hipóteses são colocadas, presume-se, regra
geral, que o conhecimento que podemos ter acerca das
contrapartes objectivas é muito reduzido. Na verdade,
porém, se as hipóteses, tal corno formuladas, fossem cor-
rectas, as contrapartes objectivas formariam um mundo
que teria urna estrutura idêntica à do mundo fenoménica,
e permitir-nos-ia inferir, a partir dos fenómenos, a ver-
dade de todas as proposições que podem ser formuladas
em: termos abstractos, e que se sabe serem verdadeiras a
respeito dos fenómenos. Se o mundo fenoménica tem três
dimensões, três dimensões terá que ter o mundo por trás
dos fenómenos; se o mundo dos fenómenos é euclidiano,
euclidiano terá que ser o outro; e assim por diante. Em
suma, todas as proposições que têm um conteúdo signi-
ficativo comunicável terão que ser verdadeiras de ambos
os mundos, ou de nenhum deles: a única diferença terá

94
que residir apenas nessa essência de individualidade
que não cessa de escapar às palavras e de frustrar todas
as tentativas de descrição, mas que, justamente por esta
razão, é irrelevante para a ciência. Ora, o único objectivo
que os filósofos têm em vista ao condenar os fenómenos
é persuadir-se, e persuadir outros, de que o mundo real
é muito diferente do mundo da aparência. Qualquer um
de nós pode simpatizar com o desejo destes filósofos de
demonstrarem uma proposição tão desejável como a que
propõem, embora não possamos felicitá-los pelo sucesso
obtido. É verdade que muitos deles não afirmam a exis-
tência de contrapartes objectivas para os fenómenos,
escapando assim ao argumento exposto. Aqueles que
afirmam efectivamente a existência de tais contrapartes
mostram-se, em regra, muito reticentes quanto ao assunto,
provavelmente porque sentem instintivamente que,
se o seguirem, revelará muito de rapprochement* entre
o mundo real e o mundo fenoménico. Se seguissem o
tópico, só muito dificilmente conseguiriam evitar chegar
às conclusões que temos vindo a sugerir. Nestas circuns-
tâncias, bem como em muitas outras, a noção de estrutura
ou número-relação é importante.

* Em francês no original [N.T.] .

95
Capítulo VII

NÚMEROS RACIONAIS,
REAIS E COMPLEXOS

Vimos já como definir números cardinais, e também


números-relação, dos quais os números comummente
designados por números ordinais constituem uma espécie
particular. Viremos a constatar que cada um destes tipos
de número pode ser infinito, assim como pode ser finito.
Todavia, nenhum destes tipos se presta às extensões mais
familiares da ideia de número, a saber, as extensões para
números negativos, números fraccionais, números irracio-
nais e números complexos. No presente capítulo, forne-
ceremos, de maneira sucinta, definições lógicas destas
várias extensões.
Um dos erros que tem atrasado a descoberta de defi-
nições correctas nesta área é a ideia comum de que cada
extensão de número incluiria os tipos anteriores como
casos especiais. Pensou-se que, ao lidar com números
inteiros positivos e negativos, os inteiros positivos pode-
riam ser identificados com os inteiros sem sinal originais.
Pensou-se, também, que uma fracção cujo denominador
fosse 1 poderia ser identificada com o número natural
seu numerador. E supôs-se que os números irracionais,
como a raiz quadrada de 2, tivessem o seu lugar entre as
fracções racionais, dado serem maiores do que algumas
delas e menores do que outras, de modo tal que os núme-
ros racionais e os números irracionais pudessem ser agru-
pados numa só classe, designada por «números reais».

97
E quando a ideia de número foi alargada de maneira a
abranger os números «complexos», i.e. números que
envolvem a raiz quadrada de -1, pensou-se que os núme-
ros reais poderiam ser considerados como sendo, entre os
números complexos, aqueles em que a parte imaginária
(i.e. a parte que era um múltiplo da raiz quadrada de -1)
fosse zero. Todas estas suposições estavam erradas, e têm
que ser descartadas, como veremos, uma vez oferecidas
as definições correctas.
Comecemos pois com os números inteiros positivos e
negativos. Bastará pensar um instante para constatar que
é evidente que + 1 e - 1 têm ambos que ser relações e,
na verdade, que têm que ser as conversas um do outro.
A definição óbvia e suficiente é que + 1 é a relação de
n + 1 para n, e -1 é a relação de n para n + 1. Em termos
gerais, se m é um número indutivo, + m será a relação de
n+m para n (para qualquer n), e-m será a relação de n
para n + m. Segundo esta definição, + m é uma relação que
será de «um para um» conquanto que n seja um número
cardinal (finito ou infinito) em um número cardinal indu-
tivo. Todavia, + m não é passível de ser, em circunstância
alguma, identificado com m, sendo que m não é uma rela-
ção, mas sim uma classe de classes. Em bom rigor, + m é
tão rigorosamente distinto de m como-mo é.
As fracções são mais interessantes do que os números
inteiros positivos e negativos. São-nos necessárias para
muitas finalidades, sendo talvez a finalidade mais óbvia
a medição. O Dr. A. N. Whitehead, meu anügo e colabo-
rador, desenvolveu uma teoria das fracções especialmente
adaptada à aplicação de fracções à medição, teoria esta

98
apresentada em Principia Mathematica 14 • No entanto, se
tudo aquilo de que necessitamos é de definir objectos
que tenham as propriedades puramente matemáticas exi-
gidas, podemos alcançá-lo por meio de um método mais
simples, que adoptaremos aqui. Definiremos a fracção
m/n como sendo a relação que se verifica entre dois
números indutivos x, y quando xn =ym. Esta definição
permite-nos demonstrar que mjn é urna relação de «um
para um», desde que nenhum deles - m e n - seja zero.
E, obviamente, njm é a relação conversa de mjn.
A partir desta definição, torna-se claro que a fracção
m/1 é a relação entre dois números inteiros x e y que
consiste no facto de x = my. Esta relação, tal corno a relação
+ m, não se presta de modo algum a ser identificada com
o número cardinal indutivo m, e isto porque urna relação
e urna classe de classes são objectos de tipos completa-
mente distintos 15 . Veremos que 0/n é sempre a mesma
relação, independentemente do número indutivo que n
possa ser; é, sucintamente, a relação de O para qualquer
outro número cardinal indutivo. Podemos chamar-lhe o
zero dos números racionais; porém, é claro que este zero
não é idêntico ao número cardinal O. Conversarnente, a
relação m/0 é sempre a mesma, independentemente do

14 Vol. li, pp. 300 e seguintes, em particular a p. 303.


15 Claro está que, em termos práticos, continuaremos a
referir-nos a uma fracção como (digamos) maior ou menor do
que 1, querendo com isto dizer maior ou menor do que o ratio
1/1. Conquanto que se entenda que o ratio 1/1 e o número car-
dinal 1 são diferentes, é desnecessário adoptar uma postura
pedante, estando constantemente a sublinhar a diferença.

99
número indutivo quem possa ser. Não existe nenhum
cardinal indutivo que corresponda a m/0. Podemos
chamar-lhe «O infinito dos racionais» . Trata-se de uma
exemplificação do tipo de infinito que é tradicional em
matemática, e que se representa por «oo». Este infinito é
de um tipo totalmente distinto do verdadeiro infinito de
Cantor, que abordaremos no próximo capítulo. O infinito
dos racionais não exige, para efeitos da sua definição ou
utilização, nem classes infinitas nem números inteiros infi-
nitos. Em boa verdade, não constitui, uma noção muito
importante, e poderíamos dispensá-la por completo se
houvesse alguma razão para o fazer. O infinito de Cantor,
por outro lado, é de fundamental importância; com-
preendê-lo abre as portas para uma imensidão de novos
domínios da matemática e da filosofia.
Deve notar-se que, entre os ratios, zero e infinito são as
únicas que não são de «Um para um». Zero é de <<um para
muitos» e infinito é de <<muitos para um».
Entre ratios (ou fracções), não se colocam quaisquer
dificuldades às definições de maior do que e menor do que.
Dados dois ratios m/n e p/ q, diremos que mfn é menor do
que p/ q se mq for menor do que pn. A demonstração de
que a relação <<menor do que», tal como definida, é serial,
dado que os ratios formam uma série em ordem de gran-
deza, não coloca quaisquer dificuldades. Nesta série, zero
constitui o termo mais pequeno, sendo infinito o termo
maior. Se omitirmos zero e infinito desta série, deixa de
existir um ratio mais pequeno e um ratio maior; é evidente
que, se m/ n é qualquer ratio que não zero ou infinito,
mf2n é mais pequeno e 2mfn é maior, apesar de nenhum
deles ser zero ou infinito, tal que m/n não é nem o ratio

100
mais pequeno nem o ratio maior, e logo (quando se omite
zero e infinito) não há nem o mais pequeno nem o maior,
uma vez que m/n foi escolhido arbitrariamente. De modo
análogo, podemos demonstrar que, independentemente
de quão aproximadas sejam duas fracções, existem sem-
pre outras fracções entre elas. Senão vejamos: sejam m/ n
e p/ q duas fracções, em que pI q é a maior. Assim, é fácil
ver (ou demonstrar) que (m+p)/(n+q) será maior do que
m/n e menor do que p/ q. Logo, a série de ratios é uma
série em que não há dois termos consecutivos, existindo
sempre outros termos entre quaisquer dois. Uma vez que
existem outros termos entre quaisquer termos, e assim
ad infinitum, é evidente que existe um número infinito de
ratios entre quaisquer dois, independentemente de quão
quase iguais esses dois possam ser 16 • Uma série que tem
a propriedade de existirem sempre outros termos entre
quaisquer dois dos seus termos, tal que dois termos nunca
são consecutivos, designa-se por «compacta». Assim,
os ratios, em ordem de grandeza, formam uma série
«compacta». Este tipo de séries tem muitas propriedades
importantes, e é relevante assinalar que os ratios nos
oferecem uma exemplificação de uma série compacta cuja
geração é puramente lógica, sem nenhuma intervenção de
espaço, tempo, ou qualquer outro dado empírico.
Os ratios positivos e negativos podem ser definidos
de maneira análoga à utilizada aquando da definição de

16 Em sentido estrito, esta afirmação, bem como as que se

seguem até ao final do parágrafo, envolve o que se designa por


<<axioma do infinito>>, que será discutido num dos capítulos
seguintes.

101
números inteiros positivos e negativos. Tendo começado
por definir a soma de dois ratios m/n e p/ q como (mq+pn),
definimos agora +p/ q como sendo a relação de m/ n +p/ q
para mjn, em que m/n é um qualquer ratio dado; sendo
-p/q, obviamente, a conversa de +p/q. Esta não é a única
forma possível de definir ratios positivos e negativos, mas
trata-se de uma forma que, tendo em vista o fim preten-
dido, tem o mérito de ser uma adaptação óbvia da forma
que adoptámos para o caso dos números inteiros.
Eis-nos chegados a uma extensão mais interessante da
ideia de número, i.e. a extensão para o que se designa por
números «reais» - o género que acolhe os números irra-
cionais. No Capítulo I, tivemos ocasião de mencionar os
«incomensuráveis» e a descoberta destes, por Pitágoras.
Foi através deles, i.e. por via da geometria, que os núme-
ros irracionais foram pensados pela primeira vez. Um
quadrado cujo lado meça uma polegada de comprimento
terá uma diagonal cujo comprimento é a raiz quadrada
de 2 polegadas. Porém, e como os antigos descobriram,
não existe nenhuma fracção que tenha 2 como quadrado.
A demonstração desta proposição surge no décimo livro
de Euclides, que é um daqueles livros que os estudan-
tes cuidaram ter-se felizmente perdido nos dias em que
Euclides ainda era utilizado como manual. A demons-
tração é extraordinariamente simples. Se possível, seja
m/n a raiz quadrada de 2, tal que m 2 jn 2 =2, i.e. m2 =2n 2•
Assim, m 2 é um número par, logo m terá que ser um
número par, porque o quadrado de um número ímpar é
um número ímpar. Ora, se m é par, m 2 tem que ser divi-
sível por 4, pois se m=2p, então 2=4p2 • Assim, teremos
4p2 =2n 2, em que pé metade de m. Donde 2p2 =n 2, e logo

102
n/p será, também, a raiz quadrada de 2. Então, assim
sendo, podemos repetir o argumento: se n=2q, p/q será
também a raiz quadrada de 2, e assim por diante, ao
longo de uma série interminável de números em que cada
um é metade do seu antecessor. Mas tal é impossível; se
dividirmos um número por 2, e, dividimos essas metades
por dois, e assim sucessivamente, teremos que, ao cabo de
um número finito de passos, chegar a um número ímpar.
E podemos apresentar o argumento de modo ainda mais
simples, partindo do princípio de que a fracção m/n com
que começámos se encontra nos seus termos mais baixos;
neste caso, m e n não podem ser ambos pares; contudo,
vimos que, se m 2 / n 2 = 2, têm ambos que o ser. Assim, não
pode existir nenhuma fracção m/n cujo quadrado seja 2.
E assim, não pode existir nenhuma fracção que expresse
exactamente o comprimento da diagonal de um quadrado
com 1 polegada de lado. O que parece ser um desafio que
a natureza lançou à aritmética. Por muito que o aritmé-
tico teça grandes laudas (como fez Pitágoras) a respeito
do poder dos números, a natureza parece ser capaz de o
deixar perplexo ao exibir extensões que nenhum número
pode estimar em termos da unidade. O problema, porém,
não se confinou a esta forma geométrica. Assim que a
álgebra foi inventada, levantou-se o mesmo problema em
relação à solução de equações, muito embora assumindo,
neste caso, uma forma mais abrangente, uma vez que
envolve, também, números complexos.
É claro que podem existir fracções que podem apro-
ximar-se progressivamente de ter um quadrado igual a 2.
Podemos formar uma série ascendente de fracções em
que todas elas têm quadrados menores do que 2, mas

103
diferentes de 2 nos últimos membros da série por uma
diferença mínima. Por outras palavras: suponha que
estipulamos de antemão uma dada quantidade muito
pequena, digamos um bilionésimo de unidade. Consta-
tar-se-á que todos os termos da série depois de um deter-
minado termo, por exemplo, um décimo de unidade, têm
quadrados que diferem de 2 por uma diferença menor
do que a expressa por esta quantidade. E se tivéssemos
estipulado uma quantidade ainda mais pequena, poderia
ter sido necessário avançar mais ainda ao longo da série,
mas teríamos sempre chegado, mais cedo ou mais tarde, a
um termo nessa série, digamos um vigésimo de unidade,
depois do qual todos os restantes termos teriam qua-
drados que difeririam de 2 por uma diferença menor do
que a expressa por essa quantidade ainda mais pequena.
Se nos aplicarmos à tarefa de extrair a raiz quadrada de
2 por meio da regra aritmética usual, obteremos um deci-
mal interminável que, levado a tais e tais vários lugares,
preencherá exactamente as condições acima expostas. Em
alternativa, e da mesma maneira, podemos formar uma
série descendente de fracções cujos quadrados são maio-
res do que 2, sendo maiores do que 2 por quantidades
progressivamente mais pequenas à medida que vamos
chegando aos últimos termos da série, e que diferirão,
mais cedo ou mais tarde, por uma diferença menor do
que uma qualquer quantidade estipulada. Desta maneira,
estaríamos a traçar um cerco em redor da raiz quadrada
de 2, podendo parecer difícil de acreditar que ela possa
efectivamente escapar-nos sempre. Não obstante, não é
seguindo este método que viremos de facto a chegar à
raiz quadrada de 2.

104
Se dividirmos todos os ratios em duas classes, de
acordo com o critério de os seus quadrados serem meno-
res do que 2 ou não, constataremos que, entre os ratios
cujos quadrados não são menores do que 2, todos têm
quadrados maiores do que 2. Não há um termo máximo
para os ratios cujo quadrado é menor do que 2, e não há
um termo mínimo para os ratios cujo quadrado é maior do
que 2. Não existe um limite mínimo, à excepção de zero,
para a diferença entre os números cujo quadrado é um
pouco menor do que 2, nem para os números cujo qua-
drado é um pouco maior do que 2. Podemos, em suma,
dividir todos os ratios em duas classes, tais que todos os
termos de uma das classes são menores do que todos os
termos da outra, não existindo um termo máximo para a
primeira destas classes e não existindo um termo mínimo
para a outra. Entre estas duas classes, onde deveria estar
a .fi, não existe nada. Assim, o nosso cerco, apesar de
traçado o mais apertadamente possível, foi traçado no
sítio errado, pelo que não capturou a .fi.
O método que acabamos de descrever, segundo o
qual se dividem todos os termos de uma série em duas
classes, uma delas precedendo inteiramente a outra,
foi destacado por Dedekind 17, sendo por este motivo
designado por «corte de Dedekind». Quanto ao que acon-
tece no ponto de seccionamento, há quatro possibilidades:
(1) poderá haver um termo máximo para a secção infe-
rior e um termo mínimo para a secção superior, (2) poderá
haver um termo máximo para a primeira e não haver um
termo mínimo para a segunda, (3) poderá não haver um

17 Stetigkeit und irrationale Zahlen, 2.• edição, Brunswick, 1892.

105
termo máximo para a primeira, mas haver um termo
mínimo para a segunda, (4) poderá não haver nem um
termo máximo para a primeira, nem um termo mínimo
para a segunda. Destes quatro casos, o primeiro é ilus-
trado por qualquer série em que existam termos conse-
cutivos: na série de número inteiros, por exemplo, uma
secção inferior terá que terminar com um dado número n
e a secção superior terá que começar com n + 1. O segundo
caso será ilustrado pela série de ratios se considerarmos
como secção inferior todos os ratios até 1, inclusive, e
como secção superior todos os ratios maiores do que 1.
O terceiro caso é ilustrado se considerarmos como secção
inferior todos os ratios menores do que 1, e como secção
superior todos os ratios de 1 em diante (incluindo o pró-
prio 1). O quarto caso, tal como vimos, é ilustrado se colo-
carmos na secção inferior todos os ratios cujo quadrado é
menor do que 2 e, na secção superior, todos os ratios cujo
quadrado é maior do que 2.
Podemos negligenciar o primeiro destes quatro casos,
uma vez que ocorre apenas em séries em que existem
termos consecutivos. No segundo dos quatro casos apre-
sentados, dizemos que o termo máximo da secção infe-
rior é o limite inferior da secção superior, ou de qualquer
conjunto de termos escolhidos da secção superior, de
maneira a que nenhum termo da secção superior esteja
antes de todos eles. No terceiro dos quatro casos apon-
tados, dizemos que o termo mínimo da secção superior
é o limite superior da secção inferior, ou qualquer con-
junto de termos escolhidos da secção inferior, de maneira
a que nenhum termo da secção inferior esteja depois de
todos eles. No quarto caso exposto, dizemos que existe

106
um «hiato»: nenhuma das secções- superior e inferior-
tem um limite ou um último termo. Neste caso, podemos
também dizer que temos uma «secção irracional», uma
vez que as secções da série de ratios têm «hiatos» quando
correspondem a números irracionais.
O que atrasou a verdadeira teoria dos irracionais foi
a convicção, errada, de que têm de existir «limites» nas
séries de ratios. A noção de «limite» é da maior importân-
cia, e antes de prosseguirmos, faremos bem em defini-la.
Diz-se que um termo x é um «limite superior>) de
uma classe a com respeito à relação P se (1) a não tem
um termo máximo em P, (2) todo e qualquer membro
de a que pertence ao campo de P precede x, e (3) todo e
qualquer membro do campo de P que precede x, precede
pelo menos um membro de a. (Por «precede)) deve enten-
der-se «está na relação P com))).
Esta definição pressupõe a seguinte definição de um
termo «máximo)):
Diz-se que um termo x é um termo «máximo)) de uma
classe a com respeito à relação P se x é um membro de a
e do campo de P e não está na relação P com nenhum
outro membro de a.
Estas definições não exigem que os termos aos quais
se aplicam sejam quantitativos. Por exemplo, dada uma
série de momentos temporais dispostos segundo o
critério de mais cedo e mais tarde, o termo «máximo))
(se houver um) desta série será o último dos momen-
tos; todavia, se estes mesmos momentos forem dispostos
segundo o critério de mais tarde e mais cedo, o termo
«máximo)) (se houver um) desta série será o primeiro dos
momentos.

107
O termo «mínimo>> de uma classe com respeito a P é
o seu termo «máximo>> com respeito à conversa de P; e o
«limite inferior >> com respeito a Pé o limite superior com
respeito à conversa de P.
As noções de limite e de «máximo >> não exigem,
essencialmente, que a relação com respeito à qual são
definidas sejam seriais, mas têm poucas aplicações
importantes salvo em casos em que a relação é serial ou
quasi-serial. Uma noção amiúde importante é a noção de
«limite superior ou máximo>>, à qual podemos dar o nome
de «fronteira superior>>. Assim, a «fronteira superior>> de
um conjunto de termos escolhido de uma série é o seu
último membro, caso a série tenha um, mas, se não tiver, é
o primeiro termo depois de todos eles, caso exista. Se não
existir nem um termo máximo, nem um limite, não existe
uma fronteira superior. A «fronteira inferior>> é o limite
inferior ou mínimo.
Regressando agora aos quatro tipos de corte de
Dedekind, vemos que, no caso dos primeiros três tipos,
cada secção tem uma fronteira (superior ou inferior con-
soante o caso), ao passo que, no quarto tipo, nenhuma
das secções tem fronteira. Fica também claro que, sempre
que a secção inferior tem uma fronteira superior, a secção
superior tem uma fronteira inferior. Nos segundo e ter-
ceiro casos, as duas fronteiras são idênticas; no primeiro
caso, são termos consecutivos de uma série.
Diz-se que uma série é «dedekindiana>>quando todas
as secções têm uma fronteira, superior ou inferior, con-
soante o caso.
Vimos já que a série de ratios em ordem de grandeza
não é dedekindiana.

108
Em virtude do hábito de serem influenciadas pela ima-
ginação espacial, as pessoas presumiram que as séries têm
que ter limites em casos em que se afiguraria estranho que
não os tivessem. Assim, apercebendo-se de que não havia
um limite racional para os ratios cujos quadrados eram
menores do que 2, concederam-se o direito de «postular»
um limite irracional, que cumpriria o propósito de preen-
cher o hiato dedekindiano. Dedekind, no trabalho atrás
citado, estabeleceu o axioma de que o vazio teria sempre
que ser preenchido, i.e. de que toda e qualquer secção tem
que ter uma fronteira. É por esta razão que as séries em
que os axiomas de Dedekind se verificam são designadas
por «dedekindianas». Todavia, existe um número infinito
de séries em que este axioma não se verifica.
O método de «postular» o que queremos tem muitas
vantagens; trata-se das mesmas vantagens de que o furto
se reveste, quando comparado com trabalho honesto. Dei-
xemo-las pois para outros e prossigamos nós com o nosso
trabalho honesto.
É evidente que um corte dedekindiano irracional é
algo que, de certo modo, «representa» um número irra-
cional. Para que possamos fazer uso desta noção que, à
partida, mais não é do que uma impressão vaga, tere-
mos que conseguir extrair dela uma definição rigorosa;
e, para tal, teremos que nos despersuadir de que o limite
de uma série de ratios tem que ser um número irracional.
Tal como os ratios cujo denominador é 1 não são idên-
ticos a números inteiros, também os números racionais,
que podem ser maiores ou menores do que números irra-
cionais, ou que podem ter números irracionais como seus
limites, não podem ser identificados com ratios. Temos

109
pois que definir um novo tipo de números, designados
por «números reais», dos quais alguns serão racionais
e outros serão irracionais. Os que são racionais «corres-
pondem» a ratios, da mesma maneira em que o ratio
n/1 corresponde ao número inteiro n; porém, não são
a mesma coisa que ratios . Para que possamos decidir o
que eles são, observe-se que um irracional é representado
por um corte irracional, e que um corte é representado
pela sua secção inferior. Restrinjamo-nos a cortes em
que a secção inferior não tem um termo máximo; neste
caso, designaremos a secção por «segmento». Assim, os
segmentos que correspondem a ratios são aqueles que
consistem em todos os ratios menores do que o ratio a que
correspondem, ratio este que constitui a sua fronteira, ao
passo que os segmentos que representam irracionais são
aqueles que não têm fronteira. Os segmentos - tanto os
que têm como os que não têm fronteiras - são tais que, de
quaisquer dois que pertençam a uma série, um tem que
ser parte do outro; segue-se pois que podemos dispô-los
todos numa série por meio da relação de todo e parte.
Uma série em que existem hiatos dedekindianos, i.e. em
que existam segmentos que não têm uma fronteira, dará
origem a mais segmentos do que os termos que possui,
uma vez que cada termo definirá um segmento que tem
esse termo por fronteira, pelo que os segmentos sem fron-
teiras serão extras.
Estamos agora em condições de definir um número
real e um número irracional.
Um «número real» é um segmento de uma série de
ratios segundo uma ordem de grandeza.

110
Um «número irracional» é um segmento de uma série
de ratios que não tem fronteira.
Um «número racional» é um segmento de uma série
de ratios que tem uma fronteira.
Assim, um número real racional consiste em todos os
ratios menores do que um determinado ratio, e é o número
real racional correspondente a esse ratio. O número real 1,
por exemplo, é a classe das fracções próprias.
Nos casos em que presumimos naturalmente que um
número irracional tem que ser o limite de um conjunto de
ratios, a verdade é que esse número irracional é o limite do
conjunto de números reais racionais que lhe corresponde
na série de segmentos ordenados por todo e parte. Por
exemplo, a J2 é o limite superior de todos os segmentos
da série de ratios que corresponde a ratios cujo quadrado é
menor do que 2. Dito de modo ainda mais simples, a J2
é o segmento que consiste em todos os ratios cujo quadrado
é menor do que 2.
É fácil demonstrar que a série de segmentos de qual-
quer série é dedekindiana. Isto porque, dado qualquer
conjunto de segmentos, a sua fronteira será a sua soma
lógica, i.e. a classe de todos os termos que pertencem a
pelo menos um segmento do conjunto 18 •
A definição de números reais acima apresentada cons-
titui um exemplo de <<construção», por oposição a «pos-

ts Para um tratamento exaustivo da questão dos segmentos


e das relações dedekindianas, ver Principia Mathematica, vol. II,
*210-214. Para um tratamento completo dos números reais, ver:
ibid., vol. III, *310 e seguintes, e Principles of Mathematics, capí-
tulos XXXIII e XXXIV.

111
tulação», da qual vimos um outro exemplo aquando da
definição de números cardinais. A grande vantagem deste
método é o facto de não exigir novos pressupostos, per-
mitindo-nos contudo proceder dedutivamente a partir do
aparato original da lógica.
A definição de adição e de multiplicação para núme-
ros reais, como definidos há instantes, não oferece quais-
quer dificuldades. Dados quaisquer dois números reais J1
e v, sendo cada um deles uma classe de ratios, tome qual-
quer membro de J1 e qualquer membro de v e some-os um
ao outro de acordo com a regra para a adição de ratios.
Forme a classe de todas as somas assim compostas, por
variação dos membros seleccionados de J1 e v. Obtemos
assim uma nova classe de ratios, e é fácil demonstrar que
esta nova classe é um segmento da série de ratios. Defi-
nimo-la como a soma de J1 e v. Podemos estabelecer a
definição de maneira mais breve, como se segue:
A soma aritmética de dois números reais é a classe das
somas aritméticas de um membro de um deles com
um membro do outro, escolhidos de todas as formas
possíveis.
Podemos definir o produto aritmético de dois núme-
ros reais exactamente da mesma maneira, multiplicando
um membro de um deles por um membro do outro de
todas as maneiras possíveis. A classe de ratios assim
originada é definida como o produto de dois números
reais. (Em todas as definições, a série de ratios deve ser
definida como excluindo O e infinito).
O alargamento das nossas definições aos números
reais positivos e negativos, e às suas adição e multipli-
cação, não oferece quaisquer dificuldades.

112
Falta-nos ainda fornecer a definição de números
complexos.
Os números complexos, embora passíveis de interpre-
tação geométrica, não são exigidos pela geometria com
o mesmo imperativo com que são os números irracio-
nais. Um número «complexo» significa um número que
envolve a raiz quadrada de um número negativo, seja este
inteiro, fraccionai ou real. Uma vez que o quadrado de
um número negativo é um número positivo, um número
cujo quadrado seja negativo tem que ser um novo género
de número. Utilizando a letra i para a raiz quadrada
de - 1, qualquer número que envolva a raiz quadrada de
um número negativo pode ser expresso pela forma x + yi,
em que x e y são reais. A parte yi é chamada a parte «ima-
ginária» deste número, sendo x a parte «real». (A razão
de ser da expressão «números reais» é estes poderem ser
contrastados com os números que são «imaginários».)
Os números complexos foram, durante muito tempo,
comummente utilizados por matemáticos, não obstante
a ausência de uma definição rigorosa de número com-
plexo. Partiu-se simplesmente do pressuposto de que
estes números obedeceriam às regras aritméticas usuais e,
partindo deste pressuposto, a sua utilização foi conside-
rada vantajosa. Estes números são menos necessários em
geometria do que em álgebra ou análise. Pretendemos,
por exemplo, poder afirmar que toda e qualquer equação
quadrática possui duas raízes, e que toda e qualquer
equação cúbica possui três raízes, e assim por diante.
Porém, se nos restringirmos aos números reais, consta-
tamos que uma equação do tipo x 2 + 1 =O não tem raízes,
e uma equação do tipo x3 -1 =O tem apenas uma. Todas

113
as generalizações de número começaram por se apresen-
tar como sendo necessárias para um problema simples:
os números negativos tomaram-se necessários para que a
subtracção fosse sempre possível, uma vez que, de outra
maneira, a- b seria desprovida de sentido se a fosse menor
do que b; as fracções tomaram-se necessárias para que as
divisões fossem sempre possíveis; e os números com-
plexos tornam-se necessários para que a extracção de
raízes e a solução de equações seja sempre possível.
Todavia, as extensões de números não são criadas pela
mera necessidade delas: são criadas pela definição, e é
para a definição de números complexos que temos agora
que dirigir a nossa atenção.
Um número complexo pode ser encarado e definido
como sendo simplesmente um par ordenado de números
reais. Aqui, como noutros lados, são possíveis muitas
definições. Tudo o que precisamos é de que a definição
adoptada conduza a determinadas propriedades. No caso
dos números complexos, se forem definidos como pares
ordenados de números reais, garantimos de imediato
algumas das propriedades exigidas, a saber, que são neces-
sários dois números reais para determinar um número
complexo; que, entre estes, podemos distinguir um pri-
meiro ~ um segundo; e que dois números complexos só
são idênticos quando o primeiro número real envolvido
num deles é igual ao primeiro número real envolvido no
outro, e o segundo ao segundo. As outras propriedades
necessárias podem ser asseguradas definindo as regras de
adição e de multiplicação. Teremos então:

(x+yi) + (x' +y'i) = (x+ x') + (y+y')i


(x+yi) (x' +y'i) = (xx'-yy') + (xy' + x'y)i.

114
Assim, definiremos que, dados dois pares ordenados
de números reais, (x, y) e (x', y'), a soma de ambos será
o par (x' +x', y+y') e o seu produto será o par (xx' - Jlyy',
xy' + x'y). Por estas definições, garantiremos que os nossos
pares ordenados terão as propriedades pretendidas. Por
exemplo, considere o produto dos dois pares (0, y) e
(0, y'). Este será, pela regra enunciada, o par (-yy', 0).
Temos pois que o quadrado do par (0,1) será o par (-1,0).
Ora, os pares em que o segundo termo é O são aqueles
que, segundo a nomenclatura usual, têm a sua parte ima-
ginária zero; na notação x + yi, são x + Oi, que é natural
escrever, simplesmente, como x. Do mesmo modo que é
natural (mas errado) identificar ratios cujo denominador é
a unidade com números inteiros, também é natural (mas
errado) identificar números complexos cuja parte imagi-
nária é zero com números reais. Muito embora seja, em
teoria, um erro, é, na prática, uma conveniência; «X+ Oi»
pode ser substituído por, simplesmente, «X» e «0 + yi»
por «yi», conquanto que nos lembremos de que « X» não é
realmente um número, mas sim um caso especial de um
número complexo. E quando y é 1, «yi» pode, evidente-
mente, ser substituído por «Í». Assim, o par (0,1) repre-
senta-se por i, e o par (-1, O) representa-se por -1 . Ora,
as nossas regras de multiplicação fazem com que o qua-
drado de (0,1) seja igual a (-1,0), í.e. o quadrado de i é -1.
E isto era o que pretendíamos assegurar. Assim, as nossas
definições servem todas as finalidades necessárias.
É fácil fornecer uma interpretação geométrica dos
números complexos na geometria do plano. Esta matéria
foi adequadamente exposta por W. K. Clifford no seu
Common Sense of the Exact Sciences, um livro de grande

115
mérito, mas escrito antes de se ter percebido a impor-
tância das definições puramente lógicas.
Os números complexos de uma ordem superior,
embora muito menos úteis e importantes do que aqueles
que temos vindo a definir, têm determinadas aplicações
que não são destituídas de importância na geometria,
como pode constatar-se, por exemplo, no Universal Alge-
bra do Dr. Whitehead. Obtém-se a definição de números
complexos de ordem n por meio de uma extensão óbvia
da definição que apresentámos. Definimos um número
complexo de ordem n como uma relação de «Um para
muitos» cujo domínio consiste em determinados números
reais e cujo domínio converso consiste em números
inteiros de 1 a n. 19 Este facto seria habitualmente indicado
pela notação (x 11 x 21 x3, ... xn), em que os sufixos deno-
tam uma correlação com os números inteiros utilizados
como sufixos, e a correlação é de «um para muitos», não
necessariamente de «um para um», porque xr e X 5 podem
ser iguais quando r e s não são iguais. A definição acima
apresentada, com uma regra de multiplicação adequada,
servirá todos os propósitos para os quais os números
complexos de ordens superiores são necessários.
Completámos pois a nossa revisão das extensões
de número que não envolvem infinito. A aplicação de
número a colecções infinitas impõe-se como o nosso
tópico seguinte.

19
Cf. Principies of Mathematics, § 360, p. 379.

116
Capítulo VIII

NÚMEROS CARDINAIS INFINITOS

A definição de números cardinais que apresentámos


no Capítulo II foi aplicada, no Capítulo III, aos números
finitos, i.e. aos números comuns. A estes, demos o nome
de «números indutivos» por termos descoberto que eles
se definem como os números que obedecem à indução
matemática com início em O. Todavia, ainda conside-
ramos as colecções que não têm um número indutivo
de termos, nem examinámos se se pode ou não afirmar
que estas colecções têm, de todo, um número. Este é um
problema antigo, que veio a ser solucionado nos nossos
dias, principalmente por Georg Cantor. No presente capí-
tulo, tentaremos explicar a teoria dos números cardinais
infinitos, ou transfinitos, tal como resulta de uma combi-
nação das descobertas de Cantor com as de Frege sobre a
teoria lógica dos números.
Não se pode afirmar como certo que existam, de facto,
colecções infinitas no mundo. O pressuposto de que
existem é o que designamos por «axioma do infinito» .
Embora se perfilem várias maneiras através das quais
podemos acalentar esperanças quanto à demonstração
deste axioma, há motivo para recear que todas elas sejam
falaciosas, não havendo, portanto, nenhuma razão lógica
conclusiva para acreditar que este axioma seja verdadeiro.
Ao mesmo tempo, não há, de modo algum, nenhuma razão
lógica contra as colecções infinitas, pelo que, em lógica,

117
temos justificação para investigar a hipótese de que essas
colecções existem. Para os nossos objectivos presentes, a
forma prática desta hipótese é o pressuposto de que, se
n é um qualquer número indutivo, n não é igual a n + 1.
A identificação desta forma do pressuposto com a forma
que afirma a existência de colecções infinitas levanta várias
subtilezas; deixá-las-emos, porém, fora da nossa análise
até, num dos capítulos mais adiante, ser chegada a altura
de examinar o axioma do infinito separadamente. Por ora,
limitar-nos-emos a presumir que, se n é um número indu-
tivo, n não é igual a n + 1. Esta afirmação está envolvida no
pressuposto de Peano segundo o qual números indutivos
diferentes nunca têm o mesmo sucessor; isto porque, se
n = n + 1, então n- 1 e n teriam o mesmo sucessor, a saber n.
Por conseguinte, não estamos a presumir nada que não
esteja já envolvido nas proposições primitivas de Peano.
Consideremos agora a colecção dos números indu-
tivos em si mesma. Trata-se de uma classe perfeitamente
bem definida. Em primeiro lugar, um número cardinal
é um conjunto de classes em que todas são semelhantes
umas às outras, e não são semelhantes a nada mais. Defi-
nimos assim como «números indutivos» os números de
entre os cardinais que pertencem à posteridade de O com
respeito à relação de n para n + 1, i.e. os números que
possuem toda e qualquer propriedade possuída por O
e pelos sucessores de possuidores, em que o «sucessor»
de n significa o número n + 1. Temos assim que a classe
dos «números indutivos>> é perfeitamente precisa. Pela
nossa definição geral de números cardiilais, o número de
termos existente na classe de números indutivos vem a
ser definido como «todas as classes que são semelhantes à

118
classe dos números indutivos» - i.e. este conjunto de clas-
ses é, segundo as nossas definições, o número de números
indutivos.
Ora, é fácil ver que este número não é um dos números
indutivos. Se n é um qualquer número indutivo, a quanti-
dade de números de O a n (ambos incluídos) é n + 1; assim,
o número total de números indutivos é maior do que n,
independentemente do número indutivo que n possa
ser. Se dispusermos os números indutivos numa série de
ordem de grandeza, esta série não tem um último termo;
porém, se n é um número indutivo, toda e qualquer série
cujo campo tenha n termos tem um último termo, como
facilmente se demonstra. Diferenças como esta podem ser
multiplicadas ad lib. Assim, o número de números indu-
tivos é um número novo, diferente de todos eles, e que
não possui todas as propriedades indutivas. Pode acon-
tecer que O tenha uma determinada propriedade, e que
se n a tiver, n + 1 também a tenha, e que, ainda assim, este
novo número não a possua. As dificuldades que atrasaram
por tanto tempo a teoria dos números infinitos foram, em
grande medida, devidas ao facto de algumas, pelo menos,
das propriedades indutivas terem sido erroneamente
avaliadas como tendo que pertencer a todos os números;
com efeito, pensou-se que não poderiam ser negadas
sem que uma tal negação implicasse contradição. O pri-
meiro passo a dar para compreender os números infinitos
consiste em tomarmos consciência da erroneidade deste
ponto de vista.
A diferença mais digna de nota e mais assombrosa
entre um número indutivo e este novo número é o facto
de este novo número não se alterar pela adição de 1 ou

119
pela subtracção de 1, nem pela multiplicação por 2 ou
pela divisão por 2, nem em virtude de qualquer outra
das várias operações que consideramos que fazem, neces-
sariamente, com que um número fique maior ou menor.
O facto de não ser alterado pela adição de 1 é utilizado por
Cantor para a definição do que ele designa por números
cardinais «transfinitos»; todavia, por várias razões, algu-
mas das quais surgirão à medida que formos avançando,
é melhor definir um número cardinal infinito como um
número que não possui todas as propriedades indutivas,
i.e. simplesmente como um número que não é um número
indutivo. Não obstante, a propriedade de se manter inal-
terado pela adição de 1 é uma propriedade muito impor-
tante, e temos que nos centrar nela um momento.
Dizer que uma classe tem um número que não é
alterado pela adição de 1 é o mesmo que dizer que, se
tomarmos um termo x que não pertence a essa classe,
podemos encontrar uma relação de «Um para um» cujo
domínio é essa classe, e cujo domínio converso se obtém
por meio da adição de x a essa classe. Isto porque, num
caso destes, a classe é semelhante à soma de si própria
com o termo x, i.e. a uma classe que tem um termo extra,
tal que tem o mesmo número do que uma classe que tem
um número extra; tal que se n for este número, n=n+1.
Neste caso, teremos também n = n -1, i.e. existirão relações
de «Um para um» cujos domínios consistem na totali-
dade da classe, e cujos domínios conversas consistem em
apenas um termo com excepção da totalidade da classe.
Pode mostrar-se que os casos em que isto acontece são
iguais aos casos aparentemente mais gerais em que alguma
parte (outra que não o todo) pode ser colocada numa

120
relação de «Um para um» com o todo. Quando isto pode
ser feito, podemos dizer do correlator utilizado que
«reflecte» a totalidade da classe numa parte de si mesma;
por esta razão, estas classes serão designadas por «refle-
xivas». Assim:
Uma classe «reflexiva» é uma classe semelhante a uma
parte própria de si mesma. (Uma «parte própria» é uma
parte outra que não o todo.)
Temos agora que atentar na propriedade da refle-
xividade.
Uma das exemplificações mais surpreendentes de
«reflexão» é o exemplo do mapa de Royce: Royce imagina
que se decidia fazer um mapa de Inglaterra sobre uma
parte da superfície de Inglaterra. Um mapa, se se trata de
um mapa rigoroso, exibe uma correspondência de «Um
para um>> perfeita com o original cartografado; logo, o
nosso mapa, que é parte, está numa relação de «um para
um» com o todo, e terá que conter um número de pontos
idêntico ao do todo, número esse que terá, por isso, que
ser um número reflexivo. Royce está interessado no facto
de o mapa, se correcto, conter forçosamente um mapa do
mapa que, por seu turno, terá que conter um mapa do
mapa do mapa, e assim por diante ad infinitum. Embora
se trate de um aspecto interessante, não precisamos, de
momento, de nos deter sobre ele. De facto, faremos bem
em passar de exemplos pitorescos para exemplos que
sejam cabalmente precisos e, para este efeito, não existe
melhor do que a série numérica em si mesma.
A relação de n para n + 1, restringida aos números
indutivos, é uma relação de «um para um», tem a tota-
lidade dos números indutivos por domínio, e tem todos

121
estes excepto O por domínio converso. Assim, toda a
classe dos números inteiros é semelhante àquilo em que
ela se transforma se omitirmos o O. Consequentemente,
de acordo com a definição, é uma classe «reflexiva>>, e
o número dos seus termos é um número «reflexivo>>.
De igual modo, a relação de n para 2n, restringida a
números indutivos, é uma relação de «um para um>>, tem
por domínio todos os números indutivos, e tem por domí-
nio converso apenas os números indutivos pares. De onde
se conclui que o número total de números indutivos é o
mesmo que o número de números indutivos pares. Esta
propriedade foi utilizada por Leibniz (e muitos outros)
como prova da impossibilidade dos números infinitos;
entendia-se que «a parte ser igual ao todo>> era autocon-
traditória. Todavia, trata-se de uma daquelas expressões
cuja plausibilidade depende de uma vagueza que passa
despercebida: a palavra «igual>> tem muitas acepções e,
se for entendida como significando aquilo a que cha-
mámos «semelhante>>, não existe contradição, uma vez
que uma colecção infinita pode perfeitamente ter partes
semelhantes a si mesma. Aqueles que encaram isto como
uma impossibilidade atribuíram, em regra inconsciente-
mente, aos números em geral propriedades que só podem
ser demonstradas por indução matemática, e em que é
apenas a sua familiaridade que faz com que as conside-
remos, erradamente, verdadeiras para lá da área do finito.
Sempre que podemos «reflectir>> uma classe numa
parte dessa classe, a mesma relação reflectirá necessa-
riamente essa parte numa parte mais pequena, e assim
por diante ad infinitum. Por exemplo, e como acabámos
de ver, podemos reflectir todos os números indutivos em

122
números pares; podemos, por meio da mesma relação
(a de n para 2n) reflectir os números pares em múltiplos
de 4, reflectir estes em múltiplos de 8, e assim por diante.
Trata-se de um análogo abstracto do problema do mapa
de Royce. Os números pares constituem um «mapa» de
todos os números indutivos; os múltiplos de 4 constituem
um mapa do mapa; os múltiplos de 8 constituem um mapa
do mapa do mapa; e assim por diante. Se tivéssemos apli-
cado o mesmo processo à relação de n para n + 1, o nosso
«mapa» teria consistido em todos os números indutivos
excepto O; o mapa do mapa teria consistido em todos os
números indutivos de 2 em diante, o mapa do mapa do
mapa em todos os números indutivos de 3 em diante;
e assim sucessivamente. O principal objectivo desta ilus-
tração é familiarizar-nos com a ideia de classes reflexivas
de maneira a que proposições aritméticas aparentemente
paradoxais possam ser prontamente traduzidas para a
linguagem das reflexões e das classes, linguagem esta em
que a impressão de paradoxo é muito menor.
É útil fornecer uma definição de número que seja a
dos cardinais indutivos. Com esta finalidade em mente,
começaremos por definir o tipo de séries exemplificadas
pelos cardinais indutivos em ordem de grandeza. O tipo
de séries designado por «progressões» foi já analisado no
Capítulo I. Trata-se de uma série que pode ser gerada por
meio de uma relação de consecutividade: todo e qual-
quer membro da série tem que ter um sucessor, mas há
apenas um que não tem nenhum predecessor, e todo e
qualquer membro da série tem que fazer parte da poste-
ridade deste termo com respeito à relação «predecessor

123
imediato». Estas características podem ser resumidas na
seguinte definição:
Uma «progressão» é uma relação de «um para um» tal
que existe apenas um termo pertencente ao domínio mas
não ao domínio converso, e em que o domínio é idêntico
à posteridade desse termo único.
É fácil ver que uma progressão, assim definida, satis-
faz os cinco axiomas de Peano. O termo que pertence ao
domínio mas não ao domínio converso será aquele que
Peano designa por «Ü»; o termo com o qual um termo
tem a relação de «um para um» será o «sucessor» de um
termo; e o domínio da relação de «Um para um» será o
que Peano designa por «número». Olhando para cada um
dos cinco axiomas separadamente, temos pois as seguin-
tes traduções:

(1) «Ü é um número» passa a: «0 membro do domínio


que não é um membro do domínio converso é um mem-
bro do domínio». O que é equivalente à existência de um
tal membro, que é dada na nossa definição. Designaremos
este número por «O primeiro termo».
(2) «0 sucessor de qualquer número é um número»
passa a: «O termo com o qual um dado termo do domínio
está na relação em questão é, novamente, um membro do
domínio». O que se demonstra como se segue: pela defi-
nição, todo e qualquer membro do domínio é um mem-
bro da posteridade do primeiro termo; donde o sucessor
de um membro do domínio tem que ser um membro da
posteridade do primeiro termo (isto porque, pela defi-
nição geral de posteridade, a posteridade de um termo
contém sempre os seus próprios sucessores), e logo um

124
membro do domínio, pois, pela definição, a posteridade
do primeiro termo é o mesmo que o domínio.
(3) «Números diferentes nunca têm o mesmo suces-
sor». Serve apenas para dizer que a relação é de «um para
muitos», o que é por definição (sendo de «um para um»).
(4) «0 não é sucessor de nenhum número» passa a:
«Ü primeiro termo não é um membro do domínio con-
verso», o que é, uma vez mais, um resultado imediato da
definição.
(5) É a indução matemática, e passa a: «Todo e qual-
quer membro do domínio pertence à posteridade do pri-
meiro termo», que era já parte da nossa definição.

Assim, as progressões, como as definimos, possuem


as cinco propriedades formais a partir das quais Peano
deduz a aritmética. É fácil mostrar que duas progressões
são «semelhantes» na acepção definida para semelhança
de relações no Capítulo VI. Podemos, obviamente, derivar
uma relação que seja serial da relação de «Um para um»
por meio da qual definimos um~ progressão: o método
utilizado é aquele que explicámos no Capítulo IV. E a rela-
ção é a que e~iste entre um termo e um membro da sua
posteridade própria com respeito à relação de «um para
um» original.
Duas relações assimétricas transitivas que dêem ori-
gem a progressões são semelhantes, pelas mesmas razões
pelas quais as relações de «um para um» correspondentes
são semelhantes. A classe de todas essas relações transi-
tivas originadoras de progressões é um «número serial»,
na acepção que lhe foi dada no Capítulo VI; trata-se, na
verdade, do mais pequeno dos números seriais infinitos,

125
o número a que Cantor atribuiu o nome de co, sendo este
o nome pelo qual Cantor o tornou famoso.
Todavia, de momento, estamos interessados nos
números cardinais. Uma vez que duas progressões são
relações semelhantes, segue-se que os seus donúnios (ou
os seus campos, que são o mesmo que os seus donúnios)
são classes semelhantes. Os domínios das progressões
formam um número cardinal, uma vez que se mostra
facilmente que toda e qualquer classe semelhante ao
donúnio de uma progressão é, ela mesma, o donúnio de
uma progressão. Este número cardinal é o mais pequeno
dos números cardinais infinitos; é o número para o qual
Cantor apropriou o alef hebraico com o sufixo O, para o
distinguir dos cardinais infinitos maiores, que recebem
outros sufixos. Assim, o nome do mais pequeno dos car-
dinais infinitos é N0 •
Dizer que uma classe tem N0 termos equivale a dizer
que essa classe é um membro de N0, o que é o mesmo
que dizer que os membros dessa classe podem ser
dispostos numa progressão. É evidente que qualquer
progressão continua a ser uma progressão se dela omi-
tirmos um número finito de termos; ou se omitirmos um
termo sim, termo não; ou se omitirmos todos os termos
excepto um termo de dez em dez, ou um termo de cem
em cem. Estes métodos de rarefacção de uma progressão
não fazem com que uma progressão cesse de o ser, e logo
não diminuem o número de termos que a progressão con-
tém, número este que continua a ser N0 • De facto, qual-
quer selecção de uma progressão é uma progressão se não
tiver um último termo, independentemente de quão espa-
çados possam estar os seus termos. Considerem-se, por

126
exemplo, os números indutivos da forma nn, ou nnn. Este
tipo de números torna-se muito raro nas partes superiores
da série de números mas, ainda assim, existe em número
tão grande quanto os números indutivos tomados no seu
conjunto, a saber, N0 .
Conversamente, podemos acrescentar termos aos
números indutivos sem com isto aumentar o seu número.
Pensemos, por exemplo, nos ratios. Podíamos sentir-nos
inclinados a considerar que têm que existir muitos mais
ratios do que números inteiros, uma vêz que os ratios cujo
denominador é 1 correspondem aos inteiros, parecendo
ser apenas uma proporção infinitesimal de ratios. Todavia,
em boa verdade, o número de ratios (ou fracções) é exacta-
mente igual ao número de números indutivos, a saber, N0.
O que se vê facilmente quando se dispõem ratios em série
no seguinte plano: se a soma do nume-rador com o deno-
minador em um deles é menor do que no outro, coloque-se
aquele antes deste; se a soma é igual em ambos, coloque-
se primeiro aquele cujo numerador é mais pequeno. Isto
dá-nos a série:

1, 1/2, 2, 1/3, 3, 1/4, 2/3,3/2, 4, 1/5, ...

Esta série é uma progressão, e nela ocorrerão, mais cedo


ou mais tarde, todos os ratios. Segue-se que podemos
dispor todos os ratios numa progressão, e o seu número
é, assim, N0 •
Porém, não é verdade que todas as colecções infini-
tas tenham N0 termos. O número de números reais, por
exemplo, é maior do que N~ é, na verdade, 2K0 , e não é
difícil demonstrar que 2n é maior do que n mesmo quando

127
n é infinito. A maneira mais fácil de demonstrar que assim
é consiste em demonstrar, primeiro, que se uma classe
tem n membros, então contém 2n subclasses - por outras
palavras, que existem 2n maneiras de seleccionar alguns
dos seus membros (incluindo os casos extremos em que
seleccionamos todos ou nenhum); e, em segundo lugar,
em demonstrar que o número de subclasses contido numa
classe é sempre maior do que o número de membros
dessa classe. De~tas duas proposições, a primeira é fami-
liar no caso dos números finitos, e não é difícil estendê-la
aos números infinitos. A demonstração da segunda é tão
simples e de tal maneira instrutiva que a apresentamos:
Em primeiro lugar, é evidente que o número de
subclasses de uma classe dada (digamos a) é pelo menos
tão grande como o número de membros existentes
nessa classe, uma vez que cada membro constitui uma
subclasse, o que faz com que tenhamos uma correlação
entre todos os membros com algumas das subclasses.
Daqui se segue que, se o número de subclasses não for
igual ao número dos membros, então terá que ser maior
do que ele. Ora, demonstra-se facilmente que este número
não é igual ao mostrar que, dada qualquer relação de «um
para um» cujo domínio é constituído pelos membros, e
cujo domínio converso está contido no conjunto das sub-
classes, terá que existir pelo menos uma subclasse que
não pertence ao domínio converso. A demonstração é a
seguinte 20: quando se estabelece uma correlação de «um

20Esta demonstração é retirada de Cantor, com algumas


simplificações: ver Jahresbericht der deutschen Mathematiker- Verei-
nigung, I (1892), p. 77.

128
para um>> R entre todos os membros de a e algumas das
subclasses, pode acontecer que um dado membro x esteja
correlacionado com uma subclasse da qual é membro;
ou, de igual modo, pode acontecer que x esteja corre-
lacionado com uma subclasse da qual não é membro.
Formemos agora a totalidade da classe, f3 digamos, dos
membros x que estão correlacionados com subclasses das
quais não são membros. Esta classe é uma subclasse de a,
e não está correlacionada com nenhum membro de a.
Isto porque: consideremos primeiro os membros de {3;
cada um deles está (por definição de {3) correlacionado
com alguma subclasse da qual não é um membro, e logo
não está correlacionado com {3. Consideremos, seguida-
mente, os termos que não são membros de {3, cada um
dos quais (por definição de {3) está correlacionado com
alguma subclasse da qual é membro, e logo, uma vez
mais, não está correlacionado com {3. Assim, temos que
nenhum membro de a está correlacionado com {3. Pelo
facto de R ser qualquer correlação de «um para um» entre
todos os membros com algumas subclasses, segue-se que
não há nenhuma correlação entre todos os membros com
todas as subclasses. Para a demonstração, é irrelevante se
f3 não tem membros: tudo o que acontece nesse caso é que
a subclasse que se mostra estar omissa é a classe vazia.
Logo, seja qual for o caso, o número de subclasses não
é igual ao número de membros e, portanto, em virtude
do que dissemos antes, é maior. Combinando isto com
a proposição de que, se n é o número de membros, 2n é o
número de subclasses, temos o teorema de que 2n é sem-
pre maior do que n, mesmo quando n é infinito.

129
Desta proposição segue-se que não há um máximo
para os números cardinais infinitos. Independentemente
de quão grande possa ser um número infinito n, 2n ser-
lhe-á ainda superior. A aritmética dos números infinitos é
um tanto surpreendente até nos habituarmos a ela. Temos,
por exemplo,
N0 +1= N0
N0 + n = N01 em que n é qualquer número indutivo,
No2= No.

(Isto segue-se do caso dos ratios, pois, uma vez que um


ratio é determinado por um par de números indutivos, é
fácil ver que o número de ratios é o quadrado do número
de números indutivos, i.e. é N02; mas vimos que é, tam-
bém, N0 .)
N0n = N0, em que n é qualquer número
indutivo.
(Que se segue de N02= N0 por indução; pois se N0n= N01
então N0n+t= N02= N0.)
Mas,

De facto, como veremos mais tarde, 2 Ko é um número


muito importante, a saber, o número de termos de uma
série que tem «continuidade», na acepção em que Cantor
utiliza esta palavra. Partindo do princípio de que espaço
e tempo são contínuos nesta acepção (como comummente
fazemos em geometria analítica e em cinemática), este
será o número de pontos no espaço, ou de instantes no
tempo; será também o número de pontos em qualquer
porção finita de espaço, seja esta uma linha, uma área, ou

130
um volume. Depois de N0 , 2 110, é o mais importante e o
mais interessante dos números cardinais infinitos.
Embora a adição e a multiplicação sejam sempre
possíveis com cardinais infinitos, a subtracção e a divisão
não nos levam aqui a resultados precisos, pelo que não
podem ser utilizadas corno as utilizamos na aritmética
elementar. Comecemos pela subtracção: conquanto que
o número subtraído seja finito, não há problemas; se o
outro número for reflexivo, permanece inalterado. Assim,
N0 - n = N 0, se n é finito; até aqui, a subtracção dá um
resultado perfeitamente preciso. Todavia, acontece de
outro modo quando subtraímos N0 de si próprio; neste
caso, podemos obter qualquer resultado, de O a N0 •
Podemos vê-lo facilmente através de exemplos. Dos
números indutivos, suprimam-se as seguintes colecções
de N0 termos:

(1) Todos os números indutivos ,.. resultado: zero.


(2) Todos os números indutivos de n em diante -
resultado: os números de O a n -1, contabilizando
n termos no total.
(3) Todos os números ímpares - resultado: todos os
números pares, contabilizando NOt termos.

Apresentámos três maneiras distintas de subtrair N0


de NOt e todas elas dão resultados diferentes.
No que diz respeito à divisão, obtêm-se resultados
muito semelhantes a estes, que se seguem do facto de N0
se manter inalterado quando multiplicado por 2, ou por
3, ou por qualquer número finito n, ou por N0 . Segi.te-se
que N0 dividido por N0 pode ter qualquer valor de 1 a N0 .

131
Da ambiguidade da subtracção e da divisão resulta
que não podemos estender os números negativos e os
ratios aos números infinitos. A adição, a multiplicação
e a exponenciação decorrem de modo bastante satisfa-
tório, mas as operações inversas - subtracção, divisão e
extracção de raízes - são ambíguas, e as noções que delas
dependem não resultam quando aplicadas aos números
infinitos.
A indução matemática foi a característica pela qual
definimos a finitude, i.e. definimos que um número é
finito quando obedece à indução matemática com início
em O, e definimos que uma classe é finita quando o seu
número é finito. Esta definição garante o tipo de resultado
que uma definição deve garantir, a saber, que os números
finitos são aqueles que ocorrem na série numérica comum
O, 1, 2, 3, ... Todavia, no presente capítulo, os números
infinitos que discutimos não foram meramente não indu-
tivos: foram também reflexivos. Cantor utilizou a reflexi-
vidade como a definição do infinito, e acredita que esta é
equivalente à não indutividade; quer isto dizer, Cantor
acredita que toda e qualquer classe e todo e qualquer
cardinal é ou indutivo ou reflexivo. Pode ser que isto seja
verdade, e pode muito bem ser possível demonstrá-lo;
mas as demonstrações oferecidas até à data por Cantor, e
por outros (incluindo o autor da presente obra em tempos
passados), são falaciosas, por razões que serão explica-
das quando chegarmos à análise do «axioma multipli-
cativo». Por ora, não se sabe se existem ou não classes e
cardinais que não sejam nem reflexivos nem indutivos. Se
n fosse esse cardinal, não devíamos ter n = n + 1; porém,
n não seria um dos «números naturais», e faltar-lhe-iam

132
algumas das propriedades indutivas. Todas as classes e
cardinais infinitos conhecidos são reflexivos; no entanto,
no presente momento, é avisado preservar uma atitude
de abertura face à possibilidade de existirem exemplifi-
cações, até hoje desconhecidas, de classes e de cardinais
que não são nem reflexivos nem indutivos. Entretanto,
adoptamos as seguintes definições:
Uma classe (ou cardinal) finita é a classe (ou cardinal)
que é indutiva.
Uma classe (ou cardinal) infinita é a classe (ou cardi-
nal) que é não indutiva.
Todas as classes e cardinais reflexivos são infinitos;
mas, no presente momento, não sabemos se todas as
classes e cardinais infinitos são ou não reflexivos. Volta-
remos a esta matéria no Capítulo XII.

133
Capítulo IX

SÉRIES E ORDINAIS INFINITOS

Podemos definir uma «Série infinita» como uma série


cujo campo é uma classe infinita. Tivemos já ocasião de
analisar um tipo de série infinita, a saber, as progressões.
No presente capítulo, analisaremos esta matéria de um
modo mais geral.
A característica mais digna de nota de uma série infi-
nita é o facto de o seu número serial poder ser alterado
modificando simplesmente a disposição dos seus ter-
mos. No que diz respeito a esta característica, existe uma
certa oposição entre números cardinais e números seriais.
É possível manter inalterado o número cardinal de uma
classe reflexiva a despeito de lhe adicionarmos termos;
por outro lado, é possível alterar o número de uma série
sem lhe adicionarmos ou suprimirmos quaisquer termos,
simplesmente através de uma alteração da disposição dos
termos. Ao mesmo tempo, e para qualquer série infinita,
é ainda possível, como acontece com os cardinais, adicio-
nar-lhe termos sem com isto alterar o número serial: tudo
depende do modo como são adicionados.
De forma a tornar as coisas claras, o melhor será come-
çarmos por exemplos. Consideremos então vários tipos
de séries que possam ser construídas a partir de números
indutivos dispostos em vários planos. Começamos pela
série
1, 2, 3, 4, ... n, ... ,

135
série esta que, como vimos anteriormente, representa o
mais pequeno dos números seriais infinitos - o tipo que
Cantor designa por m. Prossigamos agora rarefazendo esta
série, para o que executaremos, várias vezes, a operação
de transmutar para o fim da série o primeiro número par
que nela ocorre. Obtemos assim, em sucessão, as várias
séries

1, 3, 4, 5, .. . n, ... 2,
1, 3, 5, 6, ... n + 1, ... 2, 4,
1, 3, 5, 7, ... n + 2, .. . 2, 4, 6,

e assim por diante. Se imaginarmos que este processo se


prolonga tanto quanto possível, acabaremos por chegar à
série

1, 3, 5, 7, ... 2n + 1, ... 2, 4, 6, 8, ... 2n, ...,

em que temos, primeiro, todos os números ímpares e,


depois, todos os números pares.
Os números seriais destas várias séries são m+ 1, m+ 2,
m+ 3, .. ., 2m. Cada um destes números é «maior» do que
qualquer dos seus predecessores, na seguinte acepção:
Diz-se ·que um número serial é «maior» do que outro
se qualquer série que tenha o primeiro número contém
uma parte que possui o segundo número, mas nenhuma
série que tenha o segundo número contém uma parte que
possui o primeiro número.
Se compararmos as duas séries

1, 2, 3, 4, ... n, ... ,
1, 3, 4, 5, ... n + 1, ... 2,

136
vemos que a primeira é semelhante à parte da segunda
que omite o último termo, a saber, o número 2, mas que a
segunda não é semelhante a qualquer das partes da pri-
meira. (Isto é evidente, e facilmente demonstrável.) Assim,
e segundo a definição, a segunda série tem um número
serial maior do que a primeira - i.e. w + 1 é maior do que
w. Todavia, se o termo for adicionado ao início de uma
progressão em vez de ao fim, ainda teremos uma progres-
são. Logo, 1 + w = w. Logo, 1 + w não é igual a w + 1. Isto é,
em geral, característico da aritmética das relações: se J.l e v
são dois números-relação, a regra geral dita que J.l + v não
é igual a v + J.l. O caso dos ordinais finitos, em que existe
igualdade, é deveras excepcional.
A série a que acabámos agora de chegar consiste em,
primeiro, todos os números ímpares e, depois, todos os
números pares, e o seu número serial é 2w. Este número
é maior do que w ou do que w + n, em que n é finito.
Deve observar-se que, de acordo com a definição geral de
ordem, cada uma destas disposições de números inteiros
deve ser encarada como tendo resultado de uma (alguma)
relação precisa. E.g.: a disposição que se limita a trans-
mutar o 2 para o fim da série será definida pela seguinte
relação: «X e y são inteiros finitos e, ou y é 2 e x não é 2,
ou nenhum é 2 ex é menor do que y». A que dispõe em
primeiro lugar todos os números ímpares e depois todos
os pares será definida por: «X e y são inteiros finitos e, ou
x é ímpar e y é par, ou x é menor do que y e ambos são
ímpares, ou ambos são pares». De futuro, e por princí-
pio, não nos preocuparemos em fornecer estas fórmulas;
porém, o facto de que poderiam ser fornecidas é essencial.

137
O número a que chamámos 2co, a saber, o número de
uma série que consiste em duas progressões, é por vezes
designado por co. 2. A multiplicação, tal como a adição,
está dependente da ordem dos factores: uma progressão
de pares dá-nos uma série como a seguinte

X v Yv X;u Y:u X;y y3, · · · Xn, Yw · · .,

série que é, ela mesma, uma progressão; mas um par


de progressões dá-nos uma série que é duas vezes mais
extensa do que uma progressão. É, portanto, necessário
distinguir entre 2co e co. 2. A utilização é variável; utili-
zaremos 2co para um par de progressões e co. 2 para uma
progressão de pares, e esta decisão regula, obviamente,
a interpretação geral que fazemos de «a. f.J» quando a e
{3 são números-relação: «a. /3» terá que representar uma
soma adequadamente construída de a relações, em que
cada uma delas tem {3 termos.
Podemos prosseguir indefinidamente com o processo
de rarefacção dos números indutivos. Por exemplo: pode-
mos começar por dispor os números ímpares, depois os
seus dobros, depois os dobros destes, e assim por diante.
Deste modo, obtemos a série:

1, 2, 5, 7, ... ; 2, 6, 10, 14, ... ; 4, 12, 20, 28, ... ; 8, 24, 40, 56, ... ;

cujo número é co 2, uma vez que se trata de uma progres-


são de progressões. Qualquer uma das progressões desta
nova série pode, evidentemente, ser rarefeita pelo mesmo
processo que levou à rarefacção da progressão original.
Podemos prosseguir para co 3, co 4, .•• co{j), e assim por

138
diante; independentemente de quão longe tenhamos ido
já, podemos sempre ir mais longe.
A série de todos os ordinais que podemos obter desta
maneira - i.e. todos os que possam ser obtidos por meio
da rarefacção de uma progressão - é, ela mesma, mais
extensa do que qualquer série que possa ser obtida por
meio da alteração da disposição dos termos de uma pro-
gressão. (Não é difícil demonstrá-lo.) Podemos mostrar
que o número cardinal da classe destes ordinais é maior
do que No; este é o número que Cantor designou por N1.
O número ordinal, da série de todos os ordinais, que
se pode obter a partir de um N()l em ordem de grandeza,
designa-se por w1 . Assim, uma série cujo número ordinal
seja w1 tem um campo cujo número cardinal é N1 .
A partir de w 1 e N1, podemos prosseguir para w 2 e N2
através de um processo exactamente análogo àquele por
meio do qual avançámos de w e N0 para w 1 e N1 . E nada
impede de prosseguir indefinidamente nesta via para
novos cardinais e novos ordinais. Desconhece-se se 2Ko
é ou não igual a algum dos cardinais existentes na série
dos alefes. Desconhece-se, tão-pouco, se é ou não compa-
rável a estes em grandeza; com base no conhecimento de
que dispomos, pode ser que nem seja igual a, nem maior
do que, nem menor do que, qualquer um dos alefes. Esta
questão está relacionada com o axioma multiplicativo, do
qual falaremos mais tarde.
Todas as séries que temos vindo a considerar até ao
momento neste capítulo são aquilo que designamos por
séries «bem ordenadas». Uma série bem ordenada é a
série que tem um começo, termos consecutivos, e um
termo seguinte depois de qualquer selecção dos seus

139
termos, desde que exista pelo menos um termo a seguir
à selecção. Excluem-se pois, por um lado, as séries com-
pactas, em que existem termos entre quaisquer dois
termos, e, por outro lado, séries que não tenham um
começo, ou em que existem partes subordinadas que não
têm um começo. A série dos números inteiros negativos
em ordem de grandeza, que não tem um começo, mas que
termina em -1, não é uma série bem ordenada; todavia,
se considerada na ordem inversa, caso em que começa
por -1, é uma série bem ordenada, sendo, na verdade,
uma progressão. A definição é:
Uma série «bem ordenada» é uma série em que toda
e qualquer subclasse (excepto, obviamente, a classe vazia)
tem um primeiro termo.
Um número «ordinal» significa o número-relação
de uma série bem ordenada. É, assim, uma espécie de
número serial.
Entre as séries bem ordenadas aplica-se uma forma
generalizada de indução matemática. Pode dizer-se que
uma propriedade é «transfinitamente hereditária» se,
quando pertence a uma determinada selecção dos termos
numa série, pertence ao sucessor imediato destes, con-
quanto que estes tenham um sucessor. Numa série bem
ordenada, uma propriedade transfinitamente hereditária
que pertence ao primeiro termo da série pertence a toda
a série. Este facto toma possível demonstrar muitas pro-
posições a respeito das séries bem ordenadas que não são
verdadeiras de todas as séries.
É fácil dispor os números indutivos em séries que não
são bem ordenadas, e mesmo dispô-los em séries com-
pactas. Por exemplo, podemos adoptar o seguinte plano:

140
considere os decimais de 1 (inclusive) a 1 (exclusive),
dispostos em ordem de grandeza. Estes termos formam
uma série compacta; entre quaisquer dois deles, existe
sempre um número infinito de outros. Agora, omita o
ponto no início de cada um deles; obtém-se uma série
compacta constituída por todos os inteiros finitos com
excepção dos divisíveis por 10. Se pretendermos incluir
os números divisíveis por 10, não há qualquer dificuldade
nisso; em vez de começarmos por1, incluiremos todos os
decimais menores do que 1, mas, quando suprimirmos
o ponto, transferimos para a direita quaisquer zeros que
ocorram no início do nosso decimal. Omitindo estes, e
regressando àqueles que não têm O no início, podemos
estabelecer a regra para a disposição dos nossos inteiros:
de dois inteiros que não comecem pelo mesmo algarismo,
aquele que começar pelo algarismo mais pequeno vem
primeiro. De dois que comecem pelo mesmo algarismo,
mas que difiram quanto ao segundo, aquele que começar
pelo segundo algarismo mais pequeno vem primeiro, mas,
antes de qualquer outro, vem aquele que não tem segundo
algarismo; e assim por diante. Geralmente, se dois inteiros
concordam quanto aos primeiros n algarismos, mas não
quanto ao (n + 1)0 , vem primeiro aquele que não tem um
(n + 1)0 algarismo ou tem um (n + 1)0 algarismo menor do
que o do outro. Como o leitor poderá facilmente conven-
cer-se, esta regra de disposição dá origem a uma série
compacta que contém todos os inteiros não divisíveis
por 10; e, como vimos, a inclusão dos que são divisíveis
por 10 não oferece qualquer dificuldade. Segue-se deste
exemplo que é possível construir séries compactas que
tenham N0 termos. Na verdade, vimos já que existem N0

141
ratios, e os ratios em ordem de grandeza formam uma
série compacta; assim, o que temos aqui é apenas mais um
exemplo. Este tópico será retomado no próximo capítulo.
Os cardinais transfinitos obedecem a todas as leis for-
mais habituais da adição, multiplicação e exponenciação,
mas os ordinais transfinitos só obedecem a algumas delas,
e todos os números-relação obedecem às regras a que os
ordinais transfinitos obedecem. Por «leis formais habi-
tuais» queremos dizer as seguintes:

I. A lei comutativa:

a+f3={3+a e axf3=f3xa

n. A lei associativa:

(a+f3)+r=a+(fl+r) e (axf3)xy=ax(flxr)

lli. A lei distributiva:

a(fl +r)= af3 +ar.

Quando a lei comutativa não se verifica, a forma supra


da lei distributiva tem que distinguir-se de

(fl +r) a= f3a + ya.

Como se constata de imediato, uma forma pode ser


verdadeira e a outra falsa.

IV. As leis da exponenciação:


aP. ar=aP+r, ar. pr=(a{J)r, (aP)Y=aPr.

142
Todas estas leis se verificam para os cardinais, sejam
eles finitos ou infinitos, e para os ordinais finitos. Porém,
quando chegamos aos ordinais infinitos, ou, na verdade,
aos números-relação em geral, umas verificam-se, outras
não. A lei comutativa não se verifica; a lei associativa
verifica-se; a lei distributiva (seguindo a convenção que
adoptámos há pouco relativamente à ordem dos factores
num produto) verifica-se na forma

(j3 +r) a= f3a + yrx,


mas não na forma

a(/3+ r}= aP+ ar;


as leis exponenciais

ainda se verificam, mas não a lei


ar. pr = ( ap)r,
que está obviamente relacionada com a lei comutativa
para a multiplicação.
As definições de multiplicação e de exponenciação
pressupostas nas proposições supra são um tanto com-
plicadas. O leitor que deseje saber em que consistem e
como se demonstram estas definições terá de consultar o
segundo volume de Principia Mathematica, *172-176.
A aritmética dos ordinais transfinitos foi desenvolvida
por Cantor em momento anterior ao do desenvolvimento
da aritmética dos cardinais transfinitos, por ter várias
utilizações matemáticas técnicas que o conduziram a ela.
Todavia, do ponto de vista da filosofia da matemática, é

143
menos importante e menos fundamental do que a teo-
ria dos cardinais transfinitos. Os cardinais são essencial-
mente mais simples do que os ordinais, e o facto de terem
aparecido originalmente como abstracções dos ordinais,
e só gradualmente virem a ser estudados pelo que são
em si, é um acidente histórico curioso. Esta situação não
se aplica ao trabalho de Frege, no qual os cardinais, os
finitos e os transfinitos foram tratados em completa inde-
pendência relativamente aos ordinais. Não obstante, foi
o trabalho de Cantor que fez o mundo tomar consciência
desta matéria, ao passo que o trabalho de Frege perma-
neceu quase desconhecido; é provável que a principal
razão para este facto se prenda com a dificuldade do
simbolismo de Frege. Os matemáticos, como as outras
pessoas, têm mais dificuldade em compreender e utilizar
noções que são comparativamente «simples», na acepção
lógica de «simples», do que em manipular noções mais
complexas que sejam mais afins à sua prática habitual.
Por estas razões, o reconhecimento da verdadeira impor-
tância dos cardinais na matemática foi gradual e não ime-
diato. A importância dos ordinais, que não é de maneira
alguma pequena, é todavia distintamente menor do que
a dos cardinais, e está, em grande medida, fundida com a
concepção mais geral de números-relação.

144
Capítulo X

LIMITES E CONTINUIDADE

Tem sido continuamente reconhecido que a impor-


tância da concepção de um «limite» em matemática é
maior do que aquela que inicialmente se pensara. Todo
o cálculo diferencial e integral, e, em bom rigor, pratica-
mente tudo na matemática superior, depende de limites.
Antes, supunha-se que os infinitesimais estivessem envol-
vidos nos fundamentos destas matérias, mas Weierstrass
mostrou que esta noção estava errada: o que se julgou
serem ocorrências de infinitesimais são, na verdade, ocor-
rências de um conjunto de quantidades finitas em que
zero é o limite inferior. Costumava pensar-se em «limite»
como sendo uma noção essencialmente quantitativa,
nomeadamente como uma quantidade da qual outras se
iam aproximando cada vez mais, de maneira tal que, de
entre essas outras, haveria algumas que difeririam dela
por menos do que uma determinada quantidade estipu-
lada. Porém, efectivamente, a noção de «limite>> é uma
noção puramente ordinal, sendo que não envolve, de todo,
quantidades (excepto acidentalmente, quando sucede que
a série em causa é quantitativa). Um ponto dado numa
linha pode ser o limite de um conjunto de pontos numa
linha sem que esta circunstância tome necessário envol-
ver coordenadas, ou medidas, ou o que quer que seja de
quantitativo. O número cardinal N0 é o limite (em ordem
de grandeza) dos números cardinais 1, 2, 3, ... n, ... ,não

145
obstante a diferença numérica entre N0 e um cardinal
finito ser constante e infinita: de um ponto de vista quan-
titativo, os números finitos não se aproximam mais de N0
à medida que se tornam maiores. O que faz com que N0
seja o limite dos números finitos é o facto de, na série,
N0 vir imediatamente depois deles, o que é um facto
ordinal, e não um facto quantitativo.
Existem várias formas, de complexidade crescente, da
noção de «limite». A forma mais simples e fundamental, e
da qual as restantes se derivam, foi já definida; contudo,
repetiremos novamente as definições que nos condu-
ziram a ela, desta feita de uma forma geral, que as defi-
nições não obrigam a que a relação em causa seja serial.
As definições são as seguintes:

Os «mínimos» de uma classe a com respeito à relação


P são os membros de a e do campo de P (se existirem)
com os quais nenhum membro de a tem a relação P.
Os «máximos» com respeito a P são os mínimos com
respeito à conversa de P.
Os «sequentes» de uma classe a com respeito à relação
P são os mínimos dos «sucessores» de a, e os «sucessores>>
de a são os membros do campo de P com os quais todo e
qualquer membro da parte comum de a e do campo de P
tem a relação P.
Os «precedentes>> com respeito a P são os sequentes
com respeito à conversa de P.
Os «limites superiores>> de a com respeito a P são
os sequentes, conquanto que a não tenha um máximo;
todavia, se a tiver um termo máximo, .então não tem:
limites superiores.

146
Os «limites inferiores» com respeito a P são os limites
superiores com respeito à conversa de P.
Sempre que P tem conectividade, uma classe pode ter,
no máximo, um termo máximo, um termo mínimo, um
sequente, etc .. Assim, nos casos que nos interessam na
prática, poderemos referir-nos a «O limite» (se existir uni).
Quando P é uma relação serial, pode simplificar-se
em muito a definição de um limite agora apresentada.
Pode, nesse caso, definir-se primeiro a «fronteira» de
uma classe, i.e. os seus limites ou máximos, e prosseguir
depois para a distinção entre o caso em que a fronteira é
o limite e o caso em que a fronteira é um termo máximo.
Para este efeito, é mais conveniente utilizar a noção de
«segmento».
Referir-nos-emos ao «segmento de P definido por
uma classe a» como sendo todos os termos que estão na
relação P com um, ou mais do que um, dos membros de a.
Teremos assim um segmento, na acepção definida no
Capítulo VII; na verdade, todo e qualquer segmento na
acepção aí definida é o segmento definido por alguma
classe a. Se P é serial, o segmento definido por a con-
siste em todos os termos que precedem qualquer termo
de a. Se a tem um termo máximo, o segmento consistirá
em todos os predecessores do termo máximo. Porém, se
a não tiver um termo máximo, todo e qualquer membro
de a precederá algum outro membro de a, e a totalidade
de a está, por conseguinte, incluída no segmento definido
por a. Considere, por exemplo, a classe que consiste nas
fracções
1 3 7 15
2' 4' 8'
16' ... ,

147
i.e. a classe que consiste em todas as fracções da forma
1- ;", para diferentes valores finitos de n. Esta série de
fracções não tem um máximo, e é evidente que o segmento
por ela definido (na totalidade da série de fracções em
ordem de grandeza) é a classe de todas as fracções pró-
prias. Ou, de outro modo, considere os números primos,
entendidos como uma selecção dos cardinais (finitos e
infinitos) em ordem de grandeza. Neste caso, o segmento
definido consiste em todos os inteiros finitos.
Presumindo que P é serial, a «fronteira» de uma classe
a será o termo x (se existir um) cujos predecessores sejam
o segmento definido por a.
Um termo «máximo» de a é uma fronteira que é um
membro de a.
Um «limite superior» de a é uma fronteira que não é
um membro de a.
Se uma classe não tem fronteira, então não tem nem
um termo máximo nem um limite. Este é o caso de um
corte de Dedekind «irracional», ou daquilo que se designa
por um «hiato».
Assim, o «limite superior» de um conjunto de termos
a com respeito a uma série P é o termo x (se existir um)
que vem depois de todos os a, mas que é tal que todo e
qualquer termo anterior vem antes de alguns dos a.
Podemos definir todos os «pontos-limite superiores»
de um conjunto de termos Pcomo sendo todos os pontos
que são limites superiores de conjuntos de termos esco-
lhidos de p. Teremos, claro, de distinguir pontos-limite
superiores de pontos-limite inferiores. Se considerarmos,
por exemplo, a série de números ordinais:

148
1, 2, 3, ... ~ m+1, ... 2m, 2m+1, .. . 3m, ... m2, •• • m3, . .. ,

os pontos-limite superiores do campo desta série são os


que não têm predecessores imediatos, i.e.

1, m, 2m, 3w, .. . w 2, w 2 + w, ... 2w2, .•. w3 ...

Os pontos-limite superiores do campo desta nova série


serão

Por outro lado, a série de ordinais - e, com efeito, toda


e qualquer série bem ordenada - não possui pontos-
-limite inferiores, dado que não existem termos, excepto
o último, que não tenham sucessores imediatos. Porém,
se considerarmos uma série como a série de ratios, todo
e qualquer membro desta série é, para conjuntos adequa-
damente escolhidos, tanto um ponto-limite superior
como um ponto-limite inferior. Se considerarmos a série
dos números reais, e dela seleccionarmos os números
reais racionais, este conjunto (os racionais) terá todos os
números reais como pontos-limite superiores e inferiores.
Os pontos-limite de um conjunto são designados por a
«primeira derivada» desse conjunto, os pontos-limite da
primeira derivada designam-se por segunda derivada, e
assim por diante.
No que diz respeito aos limites, podemos distinguir
vários graus do que pode designar-se por «continuidade»
numa série. A palavra «continuidade» tem vindo a ser
utilizada desde há muito, mas permaneceu sem qualquer
definição formal até ao tempo de Dedekind e de Cantor.
Cada um destes dois homens atribui um significado pre-

149
ciso ao termo, mas a definição de Cantor é mais estrita
do que a de Dedekind: uma série que tenha continuidade
cantoriana terá que ter continuidade dedekindiana, mas
a conversa não se verifica.
A primeira defiilição que ocorreria naturalmente a
alguém que procurasse um significado preciso para a con-
tinuidade de uma série seria defini-la como consistindo
naquilo a que chamámos «compactidade», i.e. como con-
sistindo no facto de entre quaisquer dois termos de uma
série existirem outros. Todavia, esta definição seria ina-
dequada em virtude da existência de «hiatos» em séries
como as séries de ratios. Vimos no Capítulo VII que há
inúmeras maneiras de acordo com as quais as séries de
ratios podem ser divididas em duas partes, das quais uma
precede inteiramente a outra, e face às quais temos que,
enquanto a primeira não tem um último termo, a segunda
não tem um primeiro termo. Este estado de coisas parece
ser contrário à nossa impressão vaga quanto ao que devia
caracterizar a «continuidade» e, o que é mais importante~
mostra que a série de ratios não é o tipo de série de que
necessitamos para muitas finalidades matemáticas. Pense-
-se na geometria, por exemplo: pretendemos estar em
condições de poder dizer que, quando duas linhas rectas
se cruzam, estas rectas têm, forçosamente, um ponto em
comum; todavia, se a série de pontos numa linha fosse
semelhante à série de ratios, as duas linhas poderiam cru-
zar-se num «hiato» e, logo, não ter nenhum ponto em
comum. O exemplo exposto não é muito refinado, mas
poder-se-iam apresentar muitos outros que mostram que
a compactidade é inadequada como definição matemática
de continuidade.

150
Foram as necessidades da geometria, tanto quanto
outros factores, que conduziram à definição da continui-
dade «dedekindiana». Recorde-se que definimos que uma
série é dedekindiana quando toda e qualquer subclasse
do campo dessa série tem uma fronteira. (É suficiente
presumir que existe sempre uma fronteira superior, ou
que existe sempre uma fronteira inferior. Presumindo-se
uma delas, pode deduzir-se à outra.) O que é o mesmo
que dizer que uma série é dedekindiana quando não tem
hiatos. A ausência de hiatos pode resultar, quer do facto
dos termos terem sucessores, quer da existência de limites
na ausência de limites máximos. Assim, uma série finita,
ou uma série bem ordenada, é dedekindiana, e este é o
caso da série de números reais. Exclui-se o primeiro tipo
destas séries dedekindianas ao assumir ·que a nossa série
é compacta; nesse caso, a nossa série terá que ter a pro-
priedade que, para muitas finalidades, podemos adequa-
damente designar por continuidade. Deste modo, somos
conduzidos à definição:
Uma série tem «continuidade dedekindiana» quando
é dedekindiana e compacta.
Todavia, esta definição é ainda demasiadamente lata
para muitas finalidades. Suponha, por exemplo, que
pretendemos ter a possibilidade de atribuir ao espaço
geométrico propriedades tais que tomem absolutamente
garantido que todo e qualquer ponto possa ser especifi-
cado por meio de coordenadas que sejam números reais:
a continuidade dedekindiana, por si só, não nos garante
esta possibilidade. Queremos ter a certeza de que todo e
qualquer ponto que não possa ser especificado por coor-
denadas racionais possa ser especificado como o limite de

151
uma progressão de pontos cujas coordenadas sejam racio-
nais, e esta é uma propriedade adicional que a nossa defi-
nição não permite deduzir.
Esta constatação obrigou a que se investigasse mais
minuciosamente as séries no que concerne aos limites.
Esta investigação foi levada a cabo por Cantor e estabe-
leceu a base da definição de continuidade cantoriana,
apesar e, na sua forma mais simples, esta definição enco-
brir, de certa maneira, as considerações que a originaram.
Por esta razão, antes de apresentarmos a definição de
continuidade proposta por Cantor, começaremos por per-
correr algumas das suas concepções sobre esta matéria.
Cantor define uma série como sendo «perfeita» quando
todos os pontos dessa série são pontos-limite e todos os
pontos-limite lhe pertencem. Esta definição não é, todavia,
a expressão mais precisa do que Cantor pretende dizer.
Não é necessária qualquer correcção no que concerne à
propriedade de todos os seus pontos serem pontos-limite;
trata-se de uma propriedade que pertence às séries com-
pactas, e a nenhum outro tipo de séries se todos os pontos
forem pontos-limite superiores, ou se todos forem pontos-
-limite inferiores. Todavia, se se presumir apenas que são
pontos-limite numa direcção, sem especificar qual, então
haverá outras séries que também terão a propriedade em
causa - por exemplo, a série dos decimais, em que um
decimal que termine num 9 recorrente é distinguido do
decimal finito correspondente, e colocado imediatamente
antes dele. Uma série deste tipoé quase completamente
compacta, mas possui termos excepcionais que são con-
secutivos, sendo que o primeiro não tem um predecessor
imediato, e o segundo não tem um sucessor imediato.

152
Excepção feita a estas séries, aquelas em que todo e qual-
quer ponto é um ponto-limite são séries compactas; e isto
verifica-se, sem qualificação, se for especificado que todo
e qualquer ponto é um ponto-limite superior (ou que todo
e qualquer ponto é um ponto-limite irúerior).
Muito embora Cantor não aborde explicitamente esta
matéria, é forçoso que distingamos diferentes tipos de
pontos-limite, segundo a natureza da mais pequena das
subséries pela qual podem ser definidos. Cantor presume
que devem ser definidos por progressões, ou por regres-
sões (que são as conversas das progressões). Quando todo
e qualquer membro da nossa série é o limite de uma pro-
gressão ou de uma regressão, Cantor designa essa série
por «condensada em si mesma» (insichdicht) .
Chegamos agora à segunda propriedade por meio
da qual a perfeição é definida, a saber, a propriedade a
que Cantor chama a de ser «fechada» (abgeschlossen).
Esta, como vimos, foi primeiramente definida como con-
sistindo no facto de todos os pontos-limite de uma série
lhe pertencerem. Mas isto só terá alguma importância
efectiva se a nossa série é dada como estando contida numa
qualquer outra série maior (como sucede, e.g., no caso de
uma selecção de números reais) e se os seus pontos-limite
são considerados relativamente à série maior. De outra
forma, se uma série for considerada simplesmente por
si só, não poderá deixar de conter os seus pontos-limite.
O que Cantor quer dizer não é exactamente aquilo que diz;
na verdade, em outras ocasiões, Cantor diz algo total-
mente diferente, que é o que ele tem em mente. O que
Cantor quer realmente dizer é que toda e qualquer série
subordinada, do tipo de série da qual se poderá esperar

153
que tenha um limite, tem efectivamente um limite dentro
da série dada; i.e. toda e qualquer série subordinada que
não tenha um termo máximo tem um limite, i.e. toda e
qualquer série subordinada tem uma fronteira. Todavia,
Cantor não o afirma de todas as séries subordinadas, mas
apenas das progressões e das regressões. (Não é claro em
que medida Cantor reconhece que isto é uma limitação.)
Assim, e finalmente, constatamos que a definição que pre-
tendemos é a seguinte:
Diz-se que uma série é «fechada » (abgeschlossen)
quando toda e qualquer progressão ou regressão nela
contida tem um limite dentro da série.
Assim sendo, temos a seguinte definição adicional:
Uma série é «perfeita» quando é condensada em si
mesma e fechada, i.e. quando todo e qualquer termo é o
limite de uma progressão ou regressão, e toda e qualquer
progressão ou regressão contida nessa série tem um limite
dentro da série.
Ao procurar uma definição de continuidade, o que
Cantor tem em mente é descobrir uma definição que
a
possa ser aplicada à série dos números reais, e qualquer
série que se lhe assemelhe, mas não a outras séries .. Para
esta finalidade, teremos que acrescentar uma propriedade
adicional. Entre os números reais, alguns são racionais
e outros irracionais; e, embora o número de irracionais
seja maior do que o número de racionais, existem, ainda
assim, números racionais entre quaisquer dois números
reais, independentemente de quão pouco estes dois pos-
sam diferir um do outro. O número de racionais, é, como
vimos, N0 . Este facto fornece uma propriedade adicional
que é suficiente para que caracterizemos completamente a

154
continuidade, a saber, a propriedade de conter uma classe
de N0 membros de maneira tal que alguns dos membros
desta classe ocorrem entre quaisquer dois termos da
nossa série, independentemente de quão perto estejam
um do outro. Esta propriedade, juntamente com a perfei-
ção, é suficiente para definir uma classe de séries em que
todas são semelhantes e que são, na verdade, um número
serial. Cantor define esta classe como a classe das séries
contínuas.
Podemos simplíficar ligeiramente a definição de
Cantor. Começaremos por dizer:
Uma «classe mediana» de uma série é uma subclasse
do campo, tal que encontramos membros desta subclasse
entre quaisquer dois termos da série.
Assim, os números racionais constituem uma classe
mediana da série dos números reais. Claro está que
não podem existir classes medianas excepto em séries
compactas.
Seguidamente, constatamos que a definição de Cantor
é equivalente à seguinte:
Uma série é «contínua» quando (1) é dedekindiana, e
(2) contém uma classe mediana com N0 termos.
De modo a evitar confusão, referir-nos-emos a este
tipo como sendo a «continuidade cantoriana». Veremos
que esta continuidade implica a continuidade dedekin-
diana, mas que a conversa não é o caso. Todas as séries
que tenham continuidade cantoriana são semelhantes, o
que não é verdadeiro de todas as séries que têm continui-
dade dedekindiana.
As noções de limite e de continuidade que temos vindo
a definir não podem de modo algum ser confundidas

155
com as noções de limite de urna função para aproxima-
ções a um argumento dado ou de continuidade de urna
função na vizinhança de um argumento dado. Estas são
noções distintas, muito importantes, mas derivadas das
acima definidas e também mais complicadas. A continui-
dade do movimento (se o movimento for contínuo) é urna
exemplificação da continuidade de urna função; por outro
lado, a continuidade do espaço e do tempo (se forem con-
tínuos) é urna exemplificação da continuidade das séries,
ou (recorrendo a urna formulação mais cautelosa) de um
tipo de continuidade que pode, por meio de manipu-
lação matemática suficiente, ser reduzida à continuidade
das séries. Tendo em vista a importância fundamental
do movimento no âmbito da matemática aplicada, bem
ainda corno por outras razões, será avisado da nossa parte
abordar, ainda que resumidamente, as noções de limites
e de continuidade enquanto noções aplicadas a funções;
dito isto, o melhor será reservar esta matéria para um
capítulo separado.
As definições de continuidade que ternos vindo a
examinar, a saber, a de Dedekind e a de Cantor, não
correspondem muito de perto à ideia vaga que a mente do
homem comum ou do filósofo possam associar à palavra.
Estes concebem a continuidade corno urna ausência de
discrição, corno o tipo de obliteração geral de distinções
que caracteriza um nevoeiro espesso. O nevoeiro trans-
mite urna impressão de vastidão sem multiplicidade, ou
divisão, definidas. Este é o tipo de coisa que um metafí-
sico quer dizer com «continuidade», declarando-a, muito
genuinamente, corno sendo urna característica da sua vida
mental e da vida mental das crianças e dos animais.

156
A ideia geral vagamente indicada pela palavra «Con-
tinuidade» quando utilizada nesta acepção, ou pela pala-
vra «fluxo>>, é, sem dúvida alguma, muito distinta da que
temos vindo a definir. Considere-se, por exemplo, a série
de números reais. Cada qual é o que é, de modo bastante
preciso e intransigente; não passa, por graus imperceptí-
veis, para outro; é uma unidade rígida, discreta, e a dis-
tância entre si própria e toda e qualquer outra unidade é
finita, embora seja possível tomá-la menor do que uma
qualquer quantidade finita dada, estipulada de antemão.
A relação entre o tipo de continuidade que existe entre os
números reais e o tipo evidenciado, e.g. por aquilo que
vemos a dada altura, é uma questão difícil e intrincada.
Não pode sustentar-se que estes dois tipos são simples-
mente iguais, mas, penso eu, pode perfeitamente susten-
tar-se que a concepção matemática que temos vindo a
analisar neste capítulo fornece o esquema lógico abstracto
ao qual tem que ser possível trazer material empírico por
meio de manipulação adequada, se se pretende que esse
material seja designado por «contínuo>> num qualquer
sentido da palavra, definível com precisão. Os limites do
presente volume determinam a impossibilidade de apre-
sentar uma justificação desta tese. O leitor interessado
poderá ler uma tentativa de justificação desta tese, no
que concerne ao tempo em particular, levada a cabo pelo
autor do presente livro em Monist, para 1914-5, bem como
em partes de Our Knowledge of the Externa[ World. Com
estas indicações, e não obstante o interesse de que este
problema se reveste, somos forçados a abandoná-lo, de
modo a podermos regressar a tópicos mais estreitamente
relacionados com a matemática.

157
Capítulo XI

LIMITES E CONTINUIDADE DE FUNÇÕES

Neste capítulo, ocupar-nos-emos da definição do


limite de uma função (se existir um) quando o argumento
se aproxima de um dado valor, e também da definição
daquilo que se pretende dizer com «função contínua».
Ambas estas ideias são um tanto ou quanto técnicas, pelo
que só dificilmente se consideraria necessário abordá-las
no contexto de uma simples introdução à filosofia mate-
mática, não fora o facto de, especialmente por via do cha-
mado cálculo infinitesimal, concepções erradas a respeito
destes nossos tópicos se terem tomado tão firmemente
encastoadas nas mentes dos filósofos profissionais, pelo
que se toma necessário empreender um esforço prolon-
gado e considerável para as extirpar por completo. Desde
o tempo de Leibniz que se pensa que os cálculos dife-
rencial e integral exigem quantidades infinitesimais. Os
matemáticos (Weierstrass, em particular) demonstraram
que tal é um erro; mas os erros incorporados, i.e. no que
Hegel tem a dizer sobre a matemática, custam a desapa-
recer, e os filósofos têm revelado uma tendência para
ignorar a obra de homens como Weierstrass.
Nos trabalhos que se inscrevem no âmbito da mate-
mática comum, os termos em que os limites e a conti-
nuidade das funções são definidos envolvem o número.
Todavia, como o Dr. Whitehead mostrou 21 , não é essencial

· 21 Veja Prindpia Mathematica, vol. II, "230-234.

159
que assim seja. Começaremos, no entanto, pelas defini-
ções dos manuais. Avançaremos, depois, mostrando como
se generalizam estas definições, de modo a poderem ser
aplicadas às séries em geral, e não apenas a séries numé-
ricas ou numericamente mensuráveis.
Pensemos pois em qualquer função matemática
comum fx, em que x e fx são ambos números reais, e fx
tem um único valor - i.e. quando x é dado, existe apenas
um valor que fx pode ter. Chamamos a x o «argumento»
da função e a fx o «valor para o argumento X». Quando
uma função é aquilo que designamos por «contínua», a
ideia geral, para a qual estamos à procura de uma defini-
ção precisa, é a de que a pequenas diferenças em x virão
a corresponder pequenas diferenças em fx, sendo que,
se fizermos com que as diferenças em x sejam suficien-
temente pequenas, então poderemos fazer com que as
diferenças em fx se situem abaixo de uma qualquer quan-
tidade estipulada. Tendo em vista uma função que se pre-
tende contínua, não queremos que haja saltos abruptos,
tal que, para um qualquer valor de x, qualquer altera-
ção, por pequena que seja, venha a causar uma alteração
em fx que exceda uma determinada quantidade finita
estipulada. As funções simples, comuns, da matemá-
tica têm esta propriedade: pertencer, por exemplo, a x 2,
x3, ... log x, sen x, e assim por diante. Contudo, definir
funções descontínuas não é, de modo algum, uma coisa
difícil. Considere-se, como exemplo não matemático,
<<O lugar de nascimento da mais nova das pessoas vivas

no momento t>>. Trata-se de uma função de t; o valor desta


função é constante desde o momento temporal do nasci-
mento de uma pessoa até ao momento temporal em que

160
o nascimento seguinte ocorre, e, nessa altura, o valor da
função muda abruptamente de um lugar de nascimento
para o outro. Um exemplo matemático análogo seria
«O inteiro seguinte abaixo de X», em que x é um número
real. Esta função permanece constante de um inteiro para
o seguinte, e, a dada altura, salta abruptamente. A ver-
dade é que, muito embora as funções contínuas nos sejam
mais familiares, são as excepções: existem infinitamente
mais funções descontínuas do que funções contínuas.
Há muitas funções que são descontínuas para um ou
para vários valores da variável, mas contínuas para todos
os outros valores. Considere, como exemplo, sen 1/ x.
A função sen (} passa por todos os valores de -1 a 1
sempre que (}passa de - tr/2 a tr/2, ou de tr/2 a 3tr/2,
ou, em geral, de (2n-1)tr/2 a (2n + 1)tr/2, em que n é um
número inteiro. Agora, se considerarmos 1/ x em que x
é muito pequeno, vemos que à medida que x diminui,
1/x vai aumentando cada vez mais depressa, de tal modo
que passa, cada vez mais rapidamente, pelo ciclo de valo-
res de um múltiplo de tr/2 para outro, à medida que x
se torna cada vez mais pequeno. Consequentemente,
sen 1/x passa cada vez mais rapidamente de -1 para 1,
e novamente de 1 para -1, à medida que x se toma mais
pequeno. De facto, se considerarmos qualquer intervalo
que contenha O, por exemplo o intervalo entre -E e +E
em que E é um dado número muito pequeno, sen 1/ x
passará por um número infinito de oscilações neste
intervalo, não nos sendo possível diminuir as oscilações
fazendo o intervalo mais pequeno. Assim, a função é des-
contínua a toda a volta do argumento O. É fácil construir
funções que sejam descontínuas em vários lugares, ou em

161
N0 lugares, ou em todos os lugares. Podem encontrar-se
exemplos em qualquer livro sobre a teoria das funções de
uma variável real.
Passando agora à procura de uma definição precisa
do que se pretende dizer quando se diz que uma função é
contínua para um argumento dado, quando o argumento
e o valor são ambos números reais, comecemos por defi-
nir uma «vizinhança» de um número x como sendo todos
os números de x-e a x +e, em que e é um número que, em
casos importantes, será muito pequeno. É evidente que a
continuidade, a determinado ponto, está relacionada com
o que acontece em qualquer vizinhança desse ponto, por
muito pequena que seja.
O objectivo é o seguinte: se a é o argumento para o
qual pretendemos que a nossa função seja contínua, come-
cemos então por definir uma vizinhança (a, por exemplo)
que contenha o valor fa que a função tem para o argu-
mento a; pretendemos que, se considerarmos uma vizi-
nhança suficientemente pequena que contenha a, todos
os valores para argumento, ao longo desta vizinhança,
estejam contidos na vizinhança a,. independentemente
de quão pequena possamos ter feito a vizinhança a. Isto
significa que, se decretarmos que a nossa função não
diferirá de fa por uma diferença superior a uma quanti-
dade muito minúscula, poderemos sempre encontrar uma
extensão de números reais, em que a ocorre, tal que ao
longo desta extensão, fx não diferirá de fa por mais do
que a quantidade minúscula prescrita. E tal deverá con-
tinuar a ser verdadeiro qualquer que seja a quantidade
minúscula que possamos seleccionar. Consequentemente,
somos conduzidos à seguinte definição:

162
Diz-se que a função f(x) é «contínua» para um argu-
mento a se, para qualquer número positivo a, diferente
de O, mas tão pequeno quanto nos aprouver, existe um
número positivo E, diferente de O, tal que, para todos
os valores de ô que sejam numericamente menores do
que E 12, a diferença f(a + b)- f(a) é numericamente menor
do que a.
Nesta definição, a define primeiro uma vizinhança de
f(a), a saber, a vizinhança de f(a)- a a f(a) +a. Depois,
a definição prossegue dizendo que podemos (por meio
de E) definir uma vizinhança, a saber, a de a- E a a+ E,
tal que, para todos os argumentos adentro desta vizi-
nhança, o valor da função encontra-se dentro da vizinhança
de f(a)- a a f(a) +a. Se isto puder ser feito, independen-
temente do modo como a possa ser escolhido, a função é
«contínua» para o argumento a.
Até agora, ainda não definimos o «limite» de uma
função para um argumento dado. Se o tivéssemos feito,
poderíamos ter definido a continuidade de uma função
de uma maneira diferente: uma função é contínua num
ponto em que o seu valor é o mesmo do que o limite do
seu valor para aproximações quer pela direita, quer pela
esquerda. Todavia, a única função que tem um limite
preciso quando o argumento se aproxima de um determi-
nado ponto é a função excepcionalmente «domesticada».
A regra geral é a de que uma função oscila, e que, dada
uma qualquer vizinhança de um argumento dado, por
pequena que seja, ocorrerá, dentro desta vizinhança, uma

22 Diz-se que um número é «numericamente menor do que>>


E quando se encontra entre -E e +E.

163
extensão inteira de valores para argumentos. Uma vez
que esta é a regra geral, comecemos pois por ela.
Atentemos no que pode acontecer quando o argu-
mento se aproxima de um valor a pela esquerda. Por
outras palavras, pretendemos examinar o que acontece a
argumentos contidos no intervalo de a- e a a, em que e
é um dado número que, nos casos importantes, será muito
pequeno.
Os valores da função para argumentos de a- e a a
(excluindo a) serão um conjunto de números reais que
definirão uma determinada secção do conjunto dos núme-
ros reais: a secção constituída pelos números que não são
maiores do que todos os valores para os argumentos de a- e
a a. Dado qualquer número desta secção, há valores pelo
menos tão grandes quanto este número para argumentos
entre a- e e a, i.e. para argumentos que ficam pertíssimo
de a (se a-e for muito pequeno). Consideremos então
todos os e possíveis e todas as secções correspondentes
possíveis. Designaremos a parte comum de todas estas
secções por «Secção terminal» quando o argumento se
aproxima de a. Dizer que um número z pertence à secção
terminal é dizer que, por muito pequeno que estipulemos
que e seja, existem argumentos entre a- e e a para os quais
o valor da função não é menor do que z.
Podemos aplicar exactamente o mesmo processo às
secções superiores, i.e. a secções que vão de um determi-
nado ponto até ao topo, em vez de da base até um deter-
minado ponto. Aqui, utilizamos os números que não são
menores do que todos os valores para argumentos de a- e
a a; isto define uma secção superior que variará à medida
que e varia. Considerando a parte comum de todas estas

164
secções para todos os ê possíveis, obtemos a «secção
terminal superior». Dizer que um número z pertence à
secção terminal superior é dizer que, por muito pequeno
que estipulemos que ê seja, existem argumentos entre a- ê
e a para os quais o valor da função não é maior do que z.
Se um termo z pertence simultaneamente à secção
terminal e à secção terminal superior, então dizemos que
pertence à «oscilação terminal». Podemos ilustrar esta
questão considerando, uma vez mais, a função sen 1/x
quando x se aproxima do valor O. Assumiremos, de modo
a ajustar às definições dadas há momentos, que este valor
se aproxima pela esquerda.
Comecemos pois pela «Secção terminal». Entre - ê e O,
seja qual for o ê, a função assumirá o valor de 1 para
determinados argumentos, mas nunca assumirá um
qualquer valor maior. Logo, a secção terminal consiste
em todos os números reais, positivos e negativos, até 1,
inclusive; i.e. consiste em todos os números negativos
juntamente com O, juntamente com os números positivos
até 1, inclusive.
De igual modo, a «secção superior terminal» consiste
em todos os números positivos juntamente com O, junta-
mente com os números negativos até -1, inclusive.
Assim, temos que a «oscilação terminal» consiste em
todos os números reais de -1 a 1, ambos incluídos.
Podemos dizer, grosso modo, que a «oscilação termi-
nal» de uma função quando o argumento se aproxima de
a vindo pela esquerda consiste em todos os números x tais
que, independentemente de quão perto nos aproximemos
de a, encontraremos ainda valores tão grandes quanto x e
valores tão pequenos quanto x.

165
A oscilação terminal pode não conter nenhum termo,
conter apenas um termo, ou conter muitos termos. Nos
primeiros dois casos, a função tem um limite preciso para
aproximações pela esquerda. Isto é trivialmente evidente
se a oscilação limiar tiver apenas um termo. É igualmente
verdadeiro se não tiver nenhum termo; pois não é difí-
cil demonstrar que, se a oscilação limiar é um conjunto
vazio, a fronteira da secção terminal é a mesma que a da
secção superior terminal, e pode ser definida como sendo
o limite da função para aproximações pela esquerda.
Porém, se a oscilação limiar tem muitos termos, então não
existe um limite preciso para a função para aproximações
pela esquerda. Neste caso, podemos considerar as fron-
teiras inferior e superior da oscilação terminal (i.e. a fron-
teira inferior da secção superior terminal e a fronteira
superior da secção terminal) como sendo os limites infe-
rior e superior dos seus valores «terminais» para aproxi-
mações pela esquerda. De modo semelhante, obtemos os
limites inferior e superior dos valores «terminais» para
aproximações pela direita. Temos pois, no caso geral,
quatro limites para uma função para aproximações a um
argumento dado. O limite para um argumento dado
a existe apenas quando todos estes quatro são iguais,
sendo, assim, o seu valor comum. E se é, também, o valor
para o argumento a, então a função é contínua para este
argumento. O que pode ser considerado como uma defi-
nição de continuidade: é equivalente à nossa definição
anterior.
Podemos definir o limite de uma funÇão para um argu-
mento dado (se existir) sem passar pela oscilação terminal
e pelos quatro limites do caso geral. Nesse caso, a defi-

166
nição procederá tal como procedeu a definição anterior
de continuidade. Definamos pois o limite para aproxima-
ções pela esquerda. Para que exista um limite preciso para
aproximações a a pela esquerda, é necessário e suficiente
que, dado qualquer número pequeno a, dois valores para
argumentos suficientemente próximos de a (mas ambos
menores do que a) difiram por menos do que a; i.e. se e
é suficientemente pequeno, e ambos os nossos argumentos
se encontram entre a-ee a (excluindo a), então a diferença
entre os valores para estes argumentos será menor do
que a. Isto deverá verificar-se para qualquer a, indepen-
dentemente de quão pequeno seja; nesse caso, a função
tem um limite para aproximações pela esquerda. De
modo semelhante, definimos o caso em que há um limite
para aproximações pela direita. Estes dois limites, mesmo
quando ambos existem, não precisam de ser idênticos;
e, se o são, ainda assim não precisarão de ser idênticos
ao valor para o argumento a. É apenas neste último caso
que a função se designa por contínua para o argumento a.
Designa-se uma função por «contínua» (sem qualifi-
cação) quando essa função é contínua para todo e qual-
quer argumento.
Outro método, ligeiramente diferente, que nos per-
mite chegar à definição de continuidade é o seguinte:
Comecemos por dizer que uma função «acaba por
convergir para uma classe a » se existe algum número
real tal que, para este argumento e para todos os argu-
mentos maiores do que este, o valor da função é um mem-
bro da classe a. Analogamente, diremos que uma função
«converge para a quando o argumento se aproxima de
x pela esquerda» se existe algum argumento y menor do

167
que x tal que, ao longo do intervalo compreendido entre
y (inclusive) ex (exclusive), a função tem valores que são
membros de a. Estamos agora em condições de poder
dizer que uma função é contínua para o argumento a,
para o qual tem o valor fa, se satisfaz quatro condições,
a saber:
(1) dado qualquer número real menor do que fa, a
função converge para os sucessores deste número quando
o argumento se aproxima de a pela esquerda;
(2) dado qualquer número real maior do que fa, a fun-
ção converge para os predecessores deste número quando
o argumento se aproxima de a pela esquerda;
(3) e (4) condições semelhantes para aproximações a
a pela direita.

A vantagem desta forma de definição é o facto de


analisar as condições de continuidade em quatro, deri-
vadas de se considerar argumentos e valores respectiva-
mente maiores ou menores do que o argumento e o valor
para os quais a continuidade se define.
Estamos agora em posição de generalizar as nossas
definições de modo a que estas se apliquem a séries que
não são numéricas ou, tanto quanto se saiba, numerica-
mente mensuráveis. Convém ter presente o caso do movi-
mento. Há uma história de H.G. Wells que ilustra, a partir
do caso do movimento, a diferença entre o limite de uma
função para um argumento dado e o seu valor para o
mesmo argumento. O herói da história, que possui, sem
o saber, o poder de concretizar os seus desejos, estava a
ser atacado por um polícia, mas ao exclamar «Vai __ »
descobriu que o polícia desaparecera. Se f(t) fosse a posi-

168
ção do polícia no momento temporal t, e t0 o momento da
exclamação, o limite das posições do polícia quando t se
aproximava de t0 pela esquerda estaria em contacto com
o herói, ao passo que o valor para o argumento t0 foi _ .
Todavia, é suposto que este tipo de ocorrências seja raro
nó mundo real, e presume-se, embora não tenhamos pro-
vas adequadas de que assim é, que todos os movimentos
são contínuos, i.e. que, dado um qualquer corpo, se f(t) é a
posição desse corpo no momento t,f(t) é uma função con-
tínua de t. O que pretendemos agora é definir de maneira
tão simples quanto possível o significado de «continui-
dade» envolvido em afirmações como esta.
As definições apresentadas para o caso de funções em
que o argumento e o valor eram números reais podem ser
prontamente adaptadas para uma utilização mais geral.
Sejam P e Q duas relações, que faremos bem em ima-
ginar como sendo relações seriais, apesar de, para efeitos
da nossa definição, não ser necessário que o sejam. Seja
R uma relação de «um para muitos» cujo domínio está
contido no campo de P, e cujo domínio converso está con-
tido no campo de Q . Assim, R é (numa acepção generali-
zada) uma função, cujos argumentos pertencem ao campo
de Q e cujos valores pertencem ao campo de P. Suponha,
por exemplo, que estamos a lidar com uma partícula em
movimento sobre uma linha: seja Q a série temporal, seja
P a série de pontos na nossa linha da esquerda para a
direita, e seja R a relação da posição da nossa partícula
sobre a linha entre o momento a e o momento a, tal que
«a R de a» é a posição da partícula no momento a. Pode-
mos ter este exemplo presente ao longo da apresentação
das definições.

169
Diremos que a função R é contínua para o argumento
a se, dado qualquer intervalo a na série P que contém
o valor da função para o argumento a, existe um inter-
valo na série Q que contém a, em que a não é um ponto
terminal, e tal que, ao longo deste intervalo, a função tem
valores que são membros de a. (Aqui, «intervalo» signi-
fica todos os termos entre quaisquer dois; i.e. se x e y são
dois membros do campo de P, e x está na relação P com
y, queremos que o «intervalo-P x a y » signifique todos os
termos z tais que x está na relação P com x e z está na
relação P com y - juntamente, quando assim explicitado,
com x ou y eles mesmos).
Podemos facilmente definir a «Secção terminal» e a
«oscilação terminal». Para definir a «secção terminal» para
aproximações ao argumento a pela esquerda, tome qual-
quer argumento y que preceda a (i.e. que está na relação
Q com a), tome os valores da função para todos os argu-
mentos até y inclusive, e constitua a secção de P definida
por estes valores, i.e. os membros da série P que são ante-
riores ou idênticos a alguns destes valores. Constitua
todas as secções deste tipo para todos os y que precedem
a, e tome a parte que lhes é comum; esta será a secção
terminal. A secção superior terminal e a oscilação terminal
são depois definidas exactamente como no caso anterior.
A adaptação da definição de convergência e a defi-
nição alternativa de continuidade daí resultante não colo-
cam nenhum tipo de dificuldade.
Dizemos que uma função R é «em última instância,
convergente em Q para a» se existe um membro y do
domínio converso de R e do campo de Q tal que o valor
da função para o argumento y e para qualquer argumento

170
com o qual y tem a relação Q é um membro de a. Dize-
mos que R «converge em Q para a quando o argumento se
aproxima de um argumento dado a» se existe um termo
y que está na relação Q com a e pertence ao domínio
converso de R e tal que o valor da função para qualquer
argumento no intervalo Q compreendido entre y (inclu-
sive) e a (exclusive) pertence a a.
Das quatro condições que uma função tem que preen-
cher de maneira a ser contínua para o argumento a, a pri-
meira é, colocando b como o valor para o argumento a,
a seguinte:
Dado qualquer termo que tenha a relação P com b, R
converge em Q para o sucessor de b (com respeito a P)
quando o argumento se aproxima de a pela esquerda.
A segunda condição obtém-se substituindo P pela sua
conversa; a terceira e quarta obtêm-se da primeira e da
segunda, substituindo Q pela sua conversa.
Temos pois que não existe nada na noção de limite de
uma função, bem como na noção de continuidade de uma
função, que envolva, essencialmente, o número. Ambas
podem ser definidas em termos gerais, e podem demons-
trar-se muitas proposições acerca delas para quaisquer
duas séries (em que uma é a série de argumentos e a outra
a série de valores). Veremos que as definições não envol-
vem infinitesimais. Envolvem classes infinitas de inter-
valos, que vão diminuindo sem qualquer limite a não ser
zero, mas não envolvem quaisquer intervalos que sejam
não finitos. Isto é análogo ao facto de, se uma linha com
uma polegada de comprimento for dividida ao meio, e,
depois, novamente dividida ao meio, e assim por diante,
indefinidamente, nunca chegarmos, por esta via, a infini-

171
tesimais: ao cabo de n bissecções, o comprimento do boca-
dinho com que ficamos é ;", de uma polegada; e este
valor é finito qualquer que seja o número finito n. O pro-
cesso de bissecção sucessiva não conduz a divisões cujo
número ordinal seja infinito, uma vez que é, essencial-
mente, um processo «um a um». Logo, não é desta maneira
que se poderá chegar aos infinitesimais. As confusões que
se têm gerado quanto a estes tópicos têm sido em grande
parte responsáveis pelas dificuldades com que depara-
mos na discussão acerca da infinidade e da continuidade.

172
Capítulo XII

SELECÇÕES E O AXIOMA
MULTIPLICATIVO

Neste capítulo, dirigiremos a nossa atenção para um


axioma que pode ser enunciado, mas não demonstrado,
nos termos da lógica, e que é conveniente, embora não
indispensável, em determinadas porções da matemática.
É conveniente no sentido em que muitas proposições inte-
ressantes, que parece natural supor como verdadeiras,
não podem ser demonstradas sem a ajuda deste axioma;
não é porém indispensável pois, mesmo sem essas propo-
sições, as matérias nas quais ocorre continuam a existir,
ainda que de uma forma um tanto mutilada.
Antes de enunciarmos o axioma multiplicativo, tere-
mos primeiro que explicar a teoria das selecções e a defi-
nição de multiplicação nos casos em que o número de
factores pode ser infinito.
Quando se trata de definir operações aritméticas, o
único procedimento correcto consiste em construir uma
classe (ou relação, no caso de números-relação) concreta
que tenha o número requerido de termos. Por vezes, este
procedimento exige uma certa dose de engenho, engenho
este que se revela essencial para que possamos demons-
trar a existência do número definido. Considere - trata-
-se do exemplo mais simples - o caso da adição. Suponha
que nos dão o número cardinal Jl, e uma classe a com J1
termos. Como poderemos definir J1 + J1? Para este efeito

173
teremos que ter duas classes, não sobreponíveis, com J-l
termos. Dispomos de várias maneiras através das quais
podemos construir estas classes a partir de a; destas, a
mais simples talvez seja a seguinte: comece por formar
todos os pares ordenados cujo primeiro termo é a classe
que consiste num único membro de a, e cujo segundo
termo é a classe vazia; depois, em segundo lugar, forme
todas os pares ordenados cujo primeiro termo é a classe
vazia e cujo segundo termo é a classe que consiste num
único membro de a. Estas duas classes de pares não têm
membros em comum, sendo que a soma lógica de ambas
tem J-l + J-l termos. Podemos definir J-l + J-l de modo exacta-
mente análogo, dado que J-l constitui o número de alguma
classe a e v é o número de alguma classe [3.
Em regra, definições como esta são meramente uma
questão de aparato técnico adequado. Todavia, no caso da
multiplicação, em que o número de factores pode ser infi-
nito, a definição levanta alguns problemas importantes.
Quando o número de factores é finito, a multiplicação
não coloca dificuldade. Dadas duas classes a e {3, em que
a primeira tem J-l termos e a segunda v termos, podemos
definir J-l x v como sendo o número de pares ordenados
que pode ser formado escolhendo o primeiro termo de
entre os termos de a e o segundo termo de entre os
termos de [3. Constatar-se-á que esta definição não exige
que a e f3 não se sobreponham; com efeito, a definição
continua a ser adequada mesmo quando a e f3 são idên-
ticas. Por exemplo, seja a a classe cujos membros são xv
X:o x3 . Assim, a classe utilizada para definir o produto J-l x J-l
será a classe de pares:

174
Esta definição continua a ser aplicável quando f.1 ou v,
ou ambos, são infinitos, e pode ser alargada, passo por
passo, a três, ou a quatro, ou a qualquer número finito de
factores. Não se encontram quaisquer dificuldades no que
concerne a esta definição, excepto o facto de que não pode
ser alargada a um número infinito de factores.
O problema da multiplicação quando o número de
factores pode ser infinito coloca-se da seguinte maneira:
suponha que temos uma classe K composta por classes;
suponha que o número de termos em cada uma dessas
classes é dado. Como poderemos definir o produto de
todos estes números? Se pudermos enquadrar a nossa
definição de modo geral, ela poderá aplicar-se seja Kfinita
ou infinita. É de realçar que o problema reside em ser
possível lidar com o caso em que K é infinita, e não com
o caso em que os seus membros o são. Se Knão é infinita,
o método definido há instantes é tão aplicável quando
os seus membros são infinitos como quando são finitos.
O caso para o qual temos que descortinar uma solução é
aquele em que K é infinita, mesmo que os seus membros
possam ser finitos.
O seguinte método de definição da multiplicação em
termos gerais deve-se ao Dr. Whitehead. Este método é
explicado e tratado detalhadamente em Principia Mathe-
matica, vol. I, *80 e seguintes, e vol. ll, *114.
Suponhamos, para começar, que K é uma classe de
classes tal que, entre elas, não existem duas classes que se
sobreponham - por exemplo os círculos eleitorais de um
país em que não haja eleições plurais, em que se considera
cada círculo eleitoral como sendo uma classe de eleitores.
Preparemo-nos, então, para escolher, de entre cada classe,

175
um termo que seja o representante dessa classe (tal como
fazem os círculos eleitorais quando elegem membros para
o Parlamento), partindo do pressuposto de que, por lei,
cada círculo eleitoral tem que eleger um homem que seja
eleitor nesse círculo eleitoral. Chegamos assim a uma
classe de representantes, que constituem o Parlamento,
em que cada representante foi escolhido de cada um dos
círculos eleitorais existentes. Quantas maneiras diferentes
possíveis há de escolher um Parlamento? Cada círculo
eleitoral pode seleccionar qualquer um dos seus eleitores,
pelo que, se existirem J1 eleitores num círculo eleitoral,
este poderá fazer um total de J1 escolhas. As escolhas dos
diferentes círculos eleitorais são independentes; logo, é
evidente que, quando o número total de círculos eleito-
rais é finito, obtém-se o número de Parlamentos possíveis
multiplicando conjuntamente os números de eleitores
existentes nos vários círculos eleitorais. Quando não sabe-
mos se o número de círculos eleitorais é finito ou infinito,
podemos considerar o número de Parlamentos possíveis
como sendo a definição do produto dos números dos cír-
culos eleitorais, separadamente tomados. Este é o método
pelo qual se definem os produtos infinitos. Temos agora
que abandonar o nosso exemplo, e avançar para asserções
exactas.
Seja K uma classe de classes, e partamos do princípio
de que, em K, não há dois membros que se sobreponham,
i.e. que se a e f3 são dois membros diferentes de K, então
nenhum membro de uma das classes é um membro da
outra. Diremos que uma classe é uma «selecção» de K
quando essa classe é formada por apenas um termo de
cada um dos membros de K; i.e. J1 é uma «selecção» de

176
K se todo e qualquer membro de J1 pertence a algum dos
membros de K, e se, sendo a qualquer membro de K, J1
e a tiverem exactamente um termo em comum. À classe
de todas as «selecções» de Kchamaremos a «classe multi-
plicativa» de K. Define-se o número de termos existentes
na classe multiplicativa de K, i.e. o número de selecções
possíveis de K, como o produto dos números dos mem-
bros de K. Esta definição é igualmente aplicável quer K
seja finita, quer seja infinita.
Antes de nos podermos dar por inteiramente satis-
feitos com estas definições, temos ainda que remover a
restrição segundo a qual, em K, não existem dois membros
que se sobreponham. Para este efeito, em vez de definir-
mos primeiro uma classe designada por «selecção», come-
çaremos por definir uma relação que designaremos por
«selector». Designamos uma relação R por «selector» de
K se, de todo e qualquer membro de K, R selecciona um
termo como representante desse membro, i.e. se, dado
qualquer membro de a de K, existir apenas um termo x
que é membro de a e está na relação R com a; sendo isto
tudo quanto R faz. A definição formal é :
Um «selector» de uma classe de classes Ké uma relação
de «um para muitos», que tem K por domínio converso,
tal que, se x está na relação R com a, então x é um mem-
bro de a .
Se R é um selector de K e a é um membro de K, e se x
for o termo que está na relação R com a, designamos x por
«representantl» de a com respeito à relação R.
Uma «seltlcção» de K será agora definida como o
domínio de um selector; e a classe multiplicativa será,
como anteriormente, a classe das selecções.

177
Porém, quando os membros de K'se sobrepõem, pode-
rão existir mais selectores do que selecções, uma vez que
um termo x que pertença a duas classes, a e /3, pode ser
seleccionado uma vez em representação de a, e uma vez
em representação de /3, dando assim origem a diferentes
selectores nos dois casos, embora para a mesma selecção.
Para efeitos de definição da multiplicação, é dos selectores,
e não das selecções, que precisamos. Assim, definimos:
«Ü produto dos números dos membros de uma classe
de classes K'» é o número de selectores de K'.
A exponenciação pode ser definida por meio de uma
adaptação do plano que acabámos de expor. Podemos,
claro está, definir J.lv como sendo o número de selectores
de v classes, cada um do quais com J.l termos. Contudo,
há objecções a esta definição, derivadas do facto de o
axioma multiplicativo (do qual falaremos brevemente) ser
desnecessariamente envolvido se for adoptado. Em alter-
nativa, adoptamos a seguinte construção:
Seja a uma classe com J.l termos, e seja f3 uma classe
com v termos.
Seja y um membro de /3, e forme-se a classe de todos
os pares ordenados que têm y como segundo termo e um
membro de a com primeiro termo. Existirão J.l pares assim
formados para um y dado, uma vez que qualquer mem-
bro de a pode ser escolhido para primeiro termo, e a tem
J.l membros. Se formarmos agora todas as classes deste
género que resultam de variarmos y, obtemos um total
de v classes, uma vez que y pode ser qualquer membro
de /3, e f3 tem v membros. Cada uma destas v classes é
uma classes de pares, a saber, a classe de todos os pares
que é possível formar de um membro variável de a e de

178
um membro fixo de [3. Definimos J.lv como o número de
selectores da classe constituída por estas v classes. Em
altemativa, podemos, igualmente bem, definir J.lv como o
número de selecções, pois uma vez que as nossas classes
de pares são mutuamente exclusivas, o número de selec-
tores é o mesmo que o número de selecções. Uma selecção
da nossa classe de classes será um conjunto de pares orde-
nados, dos quais haverá exactamente um que tem qual-
quer membro dado de f3 como segundo termo, e em que o
primeiro termo poderá ser qualquer membro de a. Assim,
J.lv é definido pelos selectores de um determinando con-
junto de v classes em que cada uma tem J1 termos, embora
o conjunto seja tal que tem uma estrutura determinada e
uma composição mais manejável do que é, em regra, o
caso. Em breve veremos qual a relevância deste aspecto
para o axioma multiplicativo.
O que se aplica à exponenciação aplica-se também
ao produto de dois cardinais. Poderíamos definir «J.l x V»
como a soma dos números de v classes, cada uma delas
com J1 termos, mas preferimos defini-lo como o número
de pares ordenados a formar, constituídos por um mem-
bro de a seguido por um membro de [3, em que a tem
J1 termos e f3 tem v termos. Esta definição é, ademais,
construída de maneira a evadir a necessidade de pres-
supor o axioma multiplicativo.
Com estas definições, podemos demonstrar as leis
formais usuais da multiplicação e da exponenciação. Há,
todavia, algo que não é possível: não podemos demons-
trar que um produto é zero apenas quando um dos seus
factores é zero. Podemos demonstrá-lo quando o número
de factores é finito, mas não quando é infinito. Por outras

179
palavras, não podemos demonstrar que, dada uma classe
de classes em que nenhuma é vazia, têm que existir selec-
tores delas; ou que, dada uma classe de classes mutua-
mente exclusivas, tem que existir pelo menos uma classe
constituída por um termo de cada uma das classes dadas.
Estes aspectos não podem ser demonstrados; e, embora
à primeira vista pareçam ser obviamente verdadeiros,
a verdade é que a reflexão releva uma dúvida cada vez
maior, até por fim, nos darmos por satisfeitos por regis-
tar o postulado e as suas consequências, do mesmo modo
que registamos o axioma das paralelas, sem presumir que
nos é possível saber se é verdadeiro ou falso. Recorrendo
a uma formulação vaga, o que o postulado nos diz é que
existem selectores e selecções quando estariámos à espera
que eles existissem. Há muitas maneiras equivalentes de
expressar rigorosamente este postulado. Podemos come-
çar pela seguinte:
«Dada qualquer classe de classes mutuamente exclu-
sivas, das quais nenhuma é vazia, existe pelo menos uma
classe que tem exactamente um termo em comum com
cada uma das classes dadas».
Esta proposição será designada por «axioma multi-
plicativo» 23 • Começaremos por apresentar várias formas
equivalentes da proposição, examinando depois deter-
minados aspectos em que a sua verdade ou falsidade se
reveste de interesse para a matemática.
O axioma multiplicativo é equivalente à proposição:
um produto é zero apenas quando pelo menos um dos

23
Ver Principia Mathematica, vol. I, * 88. E também vol. III,
*257-258.

180
seus factores é zero; i.e. se algum número de números
cardinais for multiplicado conjuntamente, o resultado não
poderá ser O, a não ser que um dos números envolvidos
seja O.
O axioma multiplicativo é equivalente à proposição:
se R for uma qualquer relação, e K for uma classe contida
no domínio converso de R, então existe pelo menos uma
relação de «um para muitos» que implica R e que tem K
por domínio converso.
O axioma multiplicativo é equivalente ao postulado:
se a for uma qualquer classe, e K for todas as subclasses
de a com excepção da classe vazia, então existe pelo
menos um selector de K. Esta foi a forma em que o axioma
captou pela primeira vez a atenção do mundo culto, pela
mão de Zermelo, no seu «Beweis, dass jede Menge wohl-
geordnet werden kann» 24 • Zermelo encara o axioma como
uma verdade inquestionável. Há que confessar que, até
Zermelo o ter explicitado, os matemáticos utilizavam-no
sem a mínima reserva, embora tudo indique que o fizes-
sem inconscientemente. E o crédito devido a Zermelo por
o ter tornado explícito é inteiramente independente da
questão de saber se o axioma é verdadeiro ou falso.
Na demonstração acima referida, Zermelo mostrou
que o axioma multiplicativo é equivalente à proposição
segundo a qual toda e qualquer classe pode ser bem orde-
nada, i.e. pode ser disposta numa série em que todas as
subclasses possuem um primeiro termo (excepto, eviden-
temente, a classe vazia). A demonstração completa desta

24 Mathematische Annalen, vol. LIX, pp. 514-6. Quando sob

esta forma, referir-nos-emos a ele como axioma de Zermelo.

181
proposição é difícil; contudo, não é difícil ver o princípio
geral do qual ela procede. Utiliza a forma a que foi atri-
buído o nome de «axioma de Zermelo>>, i.e. presume que,
dada qualquer classe a, existe pelo menos uma relação
de «um para muitos>> R cujo domínio converso é consti-
tuído por todas as subclasses existentes de a tal que, se
x está na relação R com Ç, então x é um membro de Ç.
Uma tal relação selecciona um «representante>> de cada
subclasse; claro está que sucede amiúde duas subclasses
terem o mesmo representante. Aquilo que Zermelo faz,
efectivamente, é contar, discriminadamente, os membros
de a, um por um, por meio de R e de indução transfinita.
Colocamos primeiro o representante de a; chamemos-
-lhe x 1 . De seguida, tomamos o representante da classe
que consiste na totalidade de a com excepção de x1; cha-
memos-lhe x2 • Terá que ser diferente de x 11 uma vez que
todo e qualquer representante é um membro da sua classe,
e x1 está banido desta classe. Faça-se agora o mesmo de
maneira a afastar x 21 e seja x3 o representante do que resta.
Deste modo, e presumindo que a não é finita, obtemos
primeiro uma progressão x11 x 21 ••• Xn, • • •• Depois, afasta-
mos toda esta progressão; seja Xm o representante do que
resta de a. Os representantes sucessivos formarão uma
série bem ordenada constituída por todos os membros
de a. (O que acabamos de descrever é, obviamente,
apenas um esboço das linhas gerais da demonstração.)
Esta proposição designa-se por «teorema de Zermelo>> .
O axioma multiplicativo é também equivalente ao
postulado: de quaisquer dois cardinais que não são iguais,
um deles tem que ser o maior. Se este axioma é falso, exis-
tirão cardinais J1 e v tais que J1 não é nem menor do que,

182
nem igual a, nem maior do que f.L Vimos já que N1 e 2 Mo
formam, possivelmente, uma exemplificação de um par
correspondente a uma tal descrição.
Poder-se-iam aqui citar muitas outras formas do
axioma multiplicativo, mas as acima mencionadas são as
mais importantes das que presentemente se conhecem.
Quanto à verdade ou falsidade do axioma, sob qualquer
das suas formas, nada se sabe actualmente.
As proposições que dependem do axioma, e que se
desconhece serem equivalentes ao mesmo, são numero-
sas e importantes. Comecemos por considerar a conexão
entre adição e multiplicação. Pensamos, naturalmente,
que a soma de v classes mutuamente exclusivas, cada
uma com J.l termos, terá que ter J.l x v termos. Quando v
é finita, é possível demonstrar que assim é. Todavia,
quando v é infinita, não podemos demonstrá-lo sem recor-
rer ao axioma multiplicativo, excepto quando, em virtude
de alguma circunstância especial, se pode demonstrar a
existência de determinados selectores. O modo como o
axioma multiplicativo intervém é o seguinte: suponha que
temos dois conjuntos de v classes mutuamente exclusivas,
cada uma com J.l termos, e que pretendemos demonstrar
que a soma de um conjunto tem tantos termos quanto a
soma do outro. De modo a demonstrar que assim é, temos
que estabelecer uma relação de «um para um». Ora, uma
vez que há, em cada um dos casos, v classes, conclui-se
existirá uma (alguma) relação de «um para um» entre os
dois conjuntos de classes; no entanto, aquilo que preten-
demos estabelecer é uma relação de «Um para um» entre
os seus termos. Consideremos pois uma relação de «Um
para um» S entre as classes. Assim, se K e À são os dois

183
conjuntos de classes, e a é um algum dos membros de 1(,
então haverá um membro f3 de À. que será o correlato de
a com respeito a S. Ora, a e f3 têm, cada uma, J1 termos,
sendo, portanto, semelhantes. Uma vez que assim é, então
existem correlações «Um para um» de a e {3. O problema
é o facto de existirem demasiadas. Para que consigamos
obter uma correlação «um para um» da soma de K com
a soma de À., temos que escolher uma selecção de um con-
junto de classes de correlatares, sendo uma das classes
do conjunto a classe de todos os correlatares «um para
um» de a com {3. Se K e À. são infinitos, não podemos,
em geral, saber se uma tal relação existe, a não ser que
possamos saber que o axioma multiplicativo é verdadeiro.
Donde, não podemos estabelecer o tipo usual de conexão
entre adição e multiplicação.
Este facto tem várias consequências curiosas. Em pri-
meiro lugar, sabemos que N02 = N0 x N0 = N0 . Comummente,
infere-se daqui que a soma de N0 classes em que cada uma
tem N0 membros tem, ela mesma, que ter N0 membros;
todavia, esta inferência é falaciosa, uma vez que não sabe-
mos que o número de termos numa tal soma é N0 x N0,
nem, consequentemente, que é N0 . Este facto tem impacto
sobre a teoria dos ordinais transfinitos, sendo fácil
demonstrar que um ordinal com N0 predecessores tem
que ser um ordinal do que Cantor designa por a «segunda
classe», i.e. tal que uma série que tenha este número ordi-
nal terá N0 termos no seu campo. É igualmente fácil ver
que, se considerarmos qualquer progressão de ordinais da
segunda classe, os predecessores do seu limite formam,
no máximo, a soma de N0 classes, cada uma delas com N0
termos. Daqui se infere - falaciosamente, a não ser que o

184
axioma multiplicativo seja verdadeiro - que os predeces-
sores do limite são N0 em número e, logo, que o limite é um
número da «segunda classe». Quer isto dizer que se supõe
estar demonstrado que qualquer progressão de ordinais
da segunda classe tem um limite que é, novamente, um
ordinal da segunda classe. Esta proposição, com o coro-
lário de que m1 (o mais pequeno dos ordinais da terceira
classe) não é o limite de qualquer progressão, faz parte
da maioria das teorias dos ordinais da segunda classe
reconhecidas. Tendo em vista o modo como o axioma
multiplicativo está envolvido, a proposição e o seu coro-
lário não podem ser encarados como demonstrados.
Poderão ser verdadeiros, ou poderão não sê-lo. Tudo o que
é possível dizer-se no presente momento é que não se sabe.
Assim, é forçoso que se considere a maior parte da teoria
dos ordinais da segunda classe como demonstrada.
Vejamos outro exemplo que talvez ajude a esclarecer
esta questão. Sabemos que 2 x N0 = N0 . Por conseguinte,
podemos supor que a soma de N0 pares tem que ter N0
termos. Mas, embora possamos demonstrar que isto é,
por vezes, o caso, a verdade é que não é de todo possível
demonstrar que acontece sempre, a não ser que presuma-
mos o axioma multiplicativo. Que assim é, ilustra-o o caso
do milionário que comprava um par de meias sempre
que comprava um par de botas, e nunca em outra circuns-
tância, e que tinha tal paixão pela compra de ambos que,
por fim, possuía N0 pares de botas e N0 pares de meias.
O problema é este: quantas botas tinha o milionário, e
quantas meias? Uma pessoa é naturalmente levada a
pensar que o milionário teria o dobro das botas e o dobro
das meias de que tinha pares (de ambos) e que, portanto, o

185
milionário teria M0 de cada, uma vez que este número não
aumenta com a duplicação. Porém, temos aqui uma exem-
plificação da dificuldade, já notada, de conectar a soma
de v classes em que cada uma tem J.L termos com J.L x v.
Por vezes, podemos fazê-lo, outras não. No caso deste
nosso exemplo, podemos fazê-lo em relação às botas, mas
não em relação às meias, excepto se recorremos a um estra-
tagema muito artificial. A razão para a diferença é esta:
entre as botas, podemos distinguir a direita da esquerda,
pelo que podemos fazer uma selecção de uma bota de
cada par, a saber, podemos escolher todas as botas direi-
tas ou todas as botas esquerdas; mas, no que diz respeito
às meias, não se apresenta nenhum princípio de selecção
idêntico, pelo que não podemos ter a certeza, a não ser
que presumamos o axioma multiplicativo, de que exista
qualquer classe constituída por uma meia de cada par.
Eis pois o problema.
Podemos pôr a questão de outra maneira. Para
demonstrar que uma classe tem M0 termos, é necessário
e suficiente encontrar alguma forma de dispor os seus
termos segundo uma progressão. Não temos qualquer
dificuldade em fazê-lo relativamente às botas. Os pares
são dados sob a forma de M01 e, portanto, como sendo o
campo de uma progressão. Para cada par, considere-se
em primeiro lugar a bota esquerda e, em segundo, a
bota direita, mantendo a ordem do par inalterada; desta
maneira, obtemos uma progressão de todas as botas. Com
as meias, porém, teremos de escolher arbitrariamente,
de entre cada par, qual das duas colocar primeiro; e um
número infinito de escolhas arbitrárias é uma impossi-
bilidade. A não ser que consigamos encontrar uma regra

186
para a selecção, i.e. uma relação que seja selectora, não
saberemos se uma selecção é, sequer, teoricamente pos-
sível. Claro está que, no caso de objectos no espaço, como
meias, podemos sempre encontrar algum princípio de
selecção. Por exemplo, considere os centros de massa das
meias: existirão pontos p no espaço tais que, em qualquer
dos pares, os centros de massa das duas meias não estão
ambos exactamente à mesma distância de p; logo, pode-
mos escolher, de cada par, a meia cujo centro de massa
está mais próximo de p. Todavia, não existe nenhuma
razão teórica que nbs autorize a afirmar que um método
de selecção como este será sempre possível, e o caso das
meias, com um pouco de boa vontade da parte do leitor,
serve para mostrar a impossibilidade de se proceder a
uma selecção.
Deve notar-se que, se fosse impossível seleccionar uma
meia de cada par, seguir-se-ia que as meias não poderiam
ser dispostas numa progressão e, logo, não existiriam N0
meias. Este caso ilustra que, se 11 é um número infinito,
um conjunto de 11 pares pode não conter o mesmo número
de termos que outro conjunto de 11 pares; isto porque,
dados N0 pares de botas, existem seguramente N0 botas;
todavia, não podemos ter a certeza disto no caso das
meias, a não ser que presumamos o axioma multiplica-
tivo, ou que nos escudemos em algum método geométrico
fortuito de selecção como o acima mencionado.
A questão importante que envolve o axioma multipli-
cativo é a relação da reflexividade para a não indutividade.
Valerá a pena recordar que, no Capítulo VIII, salientámos
que um número reflexivo tem que ser não indutivo, mas
que a conversa (tanto quanto sabemos presentemente) só

187
pode ser demonstrada presumindo o axioma multiplica-
tivo. E o modo como tal se manifesta é o seguinte:
É fácil demonstrar que uma classe reflexiva é uma
classe que contém subclasses que possuem M0 termos.
(A própria classe pode, evidentemente, ter M0 termos.)
Assim, temos que demonstrar, se nos for possível fazê-lo,
que, dada qualquer classe não indutiva, é possível esco-
lher uma progressão de entre os seus termos. Ora, não
há qualquer dificuldade em mostrar que uma classe não
indutiva tem que conter mais termos do que qualquer
classe indutiva, ou, o que vem dar ao mesmo, que se a é
uma classe não indutiva e v é um qualquer número indu-
tivo, existem subclasses de a que têm v termos. Assim,
podemos formar conjuntos de subclasses finitas de a:
primeiro, uma classe que não tenha termos, depois,
classes que tenham 1 termo (tantas quantas os membros
existentes em a), seguidamente, classes que tenham 2
termos, e assim por diante. Obtemos assim uma progres-
são de conjuntos de subclasses, cada qual consistindo em
todas aquelas que têm um determinado número finito
de termos. Até ao momento, não utilizámos o axioma
multiplicativo, limitando-nos apenas a demonstrar que
o número de colecções de subclasses de a é um número
reflexivo, i.e. que, se J1 é o número de membros de a,
tal que 22 ~' é o número de colecções de subclasses, então,
conquanto que J1 não seja indutivo, 22 ~' tem que ser refle-
xivo. Com isto, porém, desviámo-nos muitíssimo do que
nos tínhamos proposto demonstrar.
Para que possamos avançar para lá deste ponto, temos
que empregar o axioma multiplicativo. De cada conjunto
de subclasses, escolhamos uma, omitindo a subclasse

188
constituída apenas pela classe vazia. Quer isto dizer que
seleccionaremos uma subclasse que contenha um termo,
digamos iXJ.; uma que contenha dois termos, digamos ~
uma que contenha três, digamos ll~J; e assim por diante.
(Podemos fazê-lo se presumirmos o axioma multipli-
cativo; de outra maneira, não sabemos se podemos ou
não fazê-lo sempre) . Temos agora uma progressão iXJ.,
02, Q3, ... de subclasses de a, em vez de uma progressão
de colecções de subclasses; assim, estamos um passo mais
próximos do nosso objectivo. Sabemos agora que, presu-
mindo o axioma multiplicativo, se J..l é um número não
indutivo, então 2J.l tem que ser um número reflexivo.
O passo seguinte é ter em atenção que, embora não
possamos ter a certeza de que novos membros de a
entrem num qualquer estádio especificado da progressão
iXJ., au Q3, •.• , podemos ter a certeza de que novos mem-
bros continuam a entrar de tempos a tempos. Ilustremos.
A classe iXJ., constituída por um termo, é um novo ponto
de partida; seja o único termo desta classe o termo x1 •
A classe 02, constituída por dois termos, poderá ou não
conter o termo x 1; se sim, introduz um novo termo;
se não, terá que introduzir dois novos termos, digamos
x 21 x3 . Neste caso, é possível que ll3 seja constituída por
x 1, x 21 x3, e, assim sendo, não introduza nenhum termo
novo, mas, nesse caso, a4 terá que introduzir um termo
novo. As primeiras v classes iXJ., 02, Q3, . . . av contêm, no
máximo dos máximos, 1+2+3+ ... +v termos, i.e. v(v+l)/2
termos; logo, seria possível, se não houvesse repetições
nas primeiras v classes, continuar a avançar para a classe
v(v+l)/2a apenas com repetições provindas da classe
(v+l)a. Mas, uma vez aí chegados, os termos velhos já não

189
seriam suficientemente numerosos para formar a classe
seguinte com o número certo de membros, i.e. v(v+1)/
/2 + 1, sendo forçoso que, uma vez chegados a este ponto,
se não antes, tenham que entrar novos termos. Segue-se
assim que, se omitirmos da nossa progressão /3).1 /h., fJ?,,
... todas as classes que são integralmente constituídas por
membros que ocorreram nas classes anteriores, continua-
remos, ainda assim, a ter uma progressão. Seja esta nossa
nova progressão designada por A, /h., fJ?,, . .. (Teremos
~=A e 02 =/h porque ~ e 02 têm que introduzir novos
termos. Poderemos ter, ou não, ~ = fJJ, mas, grosso modo,
f3JJ. será av em que v é algum número maior do que J.l;
i.e. os p serão alguns dos a.) Ora bem, estas f3 são tais
que qualquer uma delas, digamos f3w contém membros
que não ocorreram em nenhuma das f3 anteriores. Seja
~ a parte de f3JJ. constituída por membros novos. Assim,
temos uma progressão nova ~' ~ Y.v ... (Uma vez mais,
~ será idêntica a A e a ~; se 02 não contém o único mem-
bro de ~' teremos ~={h= 02, mas se 02 contiver efecti-
vamente este único membro, ~ será composta pelo outro
membro de Q2.) Esta nova progressão de r é constituída
por classes mutuamente exclusivas. Consequentemente,
uma selecção feita a partir dela será uma progressão;
i.e. se x 1 é o membro de y).l x 2 é um membro de y21 x3 é um
membro de y31 e assim por diante; então y1, x 21 x31 • •• é uma
progressão e é uma subclasse de a. Presumindo o axioma
multiplicativo, podemos fazer uma selecção deste tipo.
Logo, por meio de uma aplicação dupla deste axioma,
podemos demonstrar que, se o axioma é verdadeiro, todo
e qualquer cardinal não indutivo tem que ser reflexivo. O
que também poderia ser deduzido do teorema de Zermelo,

190
segundo o qual, se o axioma é verdadeiro, toda e qualquer
classe pode ser bem ordenada; isto porque uma série bem
ordenada tem que ter ou um número finito de termos, ou
um número reflexivo de termos, no seu campo.
O argumento directo acima apresentado reveste-se
de uma vantagem face à dedução a partir do teorema de
Zermelo, a saber, não exige a verdade universal do
axioma multiplicativo, mas apenas que este seja verda-
deiro quando aplicado a um conjunto de N0 classes. Pode
acontecer que o axioma se verifique para N0 classes, mas
não para números maiores de classes. Por esta razão, é
melhor, quando possível, contentarmo-nos com o postu-
lado mais restrito. O postulado admitido no argumento
directo acima exposto é o de que um produto de N0
factores nunca é zero, a não ser que um dos factores seja
zero. Podemos afirmar este postulado sob a forma: « N0 é
um número multiplicável», em que um número v é defi-
nido como «multiplicável» quando um produto de v
factores nunca é zero, a não ser que um dos factores seja
zero. Podemos demonstrar que um número finito é sem-
pre multiplicável, mas não podemos demonstrar que
qualquer número infinito o seja. O axioma multiplica-
tivo é equivalente ao postulado de que todos os números
cardinais são multiplicáveis. Todavia, para que se identi-
fique o reflexivo com o não indutivo, ou para lidar com
o problema das botas e das meias, ou para mostrar que
qualquer progressão de números da segunda classe é da
segunda classe, precisamos apenas do postulado, muito
mais pequeno, de que N0 multiplicável.
Não é improvável que ainda haja muito a descobrir
a respeito dos tópicos discutidos no presente capítulo.

191
Podem vir a encontrar-se casos em que proposições que
tudo parece indicar que envolvam o axioma multiplica-
tivo possam afinal ser demonstradas sem ele. É concebível
que possa mostrar-se que o axioma multiplicativo, na sua
forma geral, é falso. Deste ponto de vista, é no teorema de
Zermelo que reside a esperança mais promissora: poderá
vir a demonstrar-se que o contínuo, ou alguma série ainda
mais densa, é incapaz de ter os seus termos bem orde-
nados, o que demonstraria a falsidade do axioma multi-
plicativo, em virtude do teorema de Zermelo. Todavia, até
à data, não foi descoberto nenhum método que permita
obter tais resultados, pelo que a questão continua envolta
em obscuridade.

192
Capítulo XIII

O AXIOMA DO INFINITO
E OS TIPOS LÓGICOS

O axioma do infinito é um postulado que podemos


enunciar como se segue:
«Se n for um qualquer número cardinal indutivo,
existe pelo menos uma classe de indivíduos que tem n
termos.»
Se isto for verdadeiro, segue-se, obviamente, que há
muitas classes de indivíduos que têm n termos, e que o
número total de indivíduos existentes no mundo não é
um número indutivo. Isto porque, pelo axioma, existe
pelo menos uma classe que tem n +1 termos, do que se
segue que há muitas classes de n termos e que n não é
o número de indivíduos existentes no mundo. Uma vez
que n é qualquer número indutivo, segue-se que o número
de indivíduos existente no mundo tem que exceder (se o
nosso axioma for verdadeiro) qualquer número indutivo.
Tendo em vista o que aprendemos, no capítulo precedente,
quanto à possibilidade de existirem cardinais que não são
nem indutivos nem reflexivos, não podemos inferir do
nosso axioma que existem pelo menos N0 indivíduos, a
não ser que presumamos o axioma multiplicativo. Toda-
via, sabemos de facto que existem pelo menos N0 classes
de classes, uma vez que os cardinais indutivos são classes
de classes, e formam uma progressão se o nosso axioma
for verdadeiro. Pode explicar-se como surge a necessi-

193
dade deste axioma do seguinte modo: um dos postulados
de Peano diz-nos que dois cardinais indutivos diferentes
nunca têm o mesmo sucessor, i.e. que não teremos
m +1 =n +1 a não ser que m =n, se m e n são cardinais
indutivos. No Capítulo VIII tivemos ocasião de utilizar
uma formulação que é virtualmente idêntica a este postu-
lado de Peano, a saber, que, se n é um cardinal indutivo,
n não é igual a n+1. Poder-se-ia pensar que estaríamos
em condições de o poder demonstrar. Podemos demons-
trar que, se a é uma classe indutiva, e n é o número de
membros de a, então n não é igual a n+1. Esta proposi-
ção é facilmente demonstrada por indução, e poder-se-ia
pensar que implicasse a outra. No entanto, a verdade é
que não implica, uma vez que a classe a pode não existir.
O que a proposição implica, de facto, é o seguinte: se n é
um cardinal indutivo tal que existe pelo menos uma classe
que tem n membros, então n não é igual a n +1. O axioma
do infinito assegura-nos (verdadeira ou falsamente) de
que existem classes que têm n membros e, assim, permi-
te-nos afirmar que n não é igual a n +1. Porém, sem este
axioma, somos deixados perante a possibilidade de n e
n +1 poderem ambos ser a classe vazia.
llustremos pois esta possibilidade através de um
exemplo: suponhamos que existiam exactamente nove
indivíduos no mundo. (Quanto ao significado da palavra
«indivíduo», terei de pedir ao leitor que seja paciente.)
Neste caso, os cardinais indutivos de O a 9 seriam o que
se espera que sejam, mas 10 (definido como 9+1) seria
a classe vazia. Valerá a pena recordar que n +1 pode ser
definido do seguinte modo: n +1 é a colecção de todas as
classes que têm um termo x tal que, quando x é supri-

194
mido, resta uma classe de n termos. Ora, aplicando esta
definição, vemos que, no caso suposto, 9 +1 é uma classe
constituída por nenhuma classe, i.e. é a classe vazia.
O mesmo será verdadeiro de 9+2, bem como, mais geral-
mente, de 9 + n, a não ser que n seja zero. Assim, 10 e todos
os cardinais indutivos subsequentes serão todos idênticos
entre si, uma vez que serão, todos eles, classes vazias.
Num caso destes, os cardinais indutivos não formarão
uma progressão, nem tão pouco se poderá afirmar como
verdade que «cardinais diferentes nunca têm o mesmo
sucessor», pois 9 e 10 serão ambos sucedidos pela classe
vazia (sendo 10, ele mesmo, a classe vazia). É justamente
para que se evitem catástrofes aritméticas como esta que
precisamos do axioma do infinito.
Em boa verdade, desde que nos contentemos com a
aritmética dos inteiros finitos, e não introduzamos inteiros
infinitos, ou classes infinitas de séries de inteiros finitos
ou de ratios, é-nos possível obter todos os resultados dese-
jados sem que recorramos ao axioma do infinito. Por
outras palavras, poderemos lidar com a adição, com a
multiplicação e com a exponenciação de inteiros finitos e
de ratios, mas não poderemos de todo lidar com inteiros
infinitos ou com irracionais. Temos pois que a teoria dos
transfinitos e a teoria dos números reais nos falham. Expli-
caremos agora o modo como estes resultados surgiram.
Partindo do princípio de que o número de indivíduos
.existenté no mundo é n, o número de classes de indiví-
duos será 2". Isto, em virtude da proposição geral men-
t:ionada no Capítulo VIII, de acordo com a qual o número
de classes contido numa classe com n membros é 2". Ora,
2" é sempre maior do que n. Logo, o número de classes

195
existente no mundo é maior do que o número de indi-
víduos nele existente. Supondo agora que o número de
indivíduos é 9, como fizemos há pouco, o número de
classes será 29, i.e. 512. Assim, se aplicarmos os nossos
números à contagem das classes, em vez de os aplicar-
mos à contagem dos indivíduos, a nossa aritmética será
normal até chegarmos a 512: o primeiro número a ser
vazio será o número 513. E se prosseguirmos para classes
de classes, faremos ainda melhor: o número destas será
2512, número este de tal maneira grande que atordoa a
imaginação, dado que tem 153 algarismos. E se prosse-
guirmos para classes de classes de classes, obteremos um
número representado por 2 elevado a uma potência que
terá, ela própria, cerca de 153 algarismos - o número de
algarismos deste número será, aproximadamente, três
vezes 10152 • Em tempos de escassez de papel, é indese-
jável escrever este número, e se quisermos números ainda
maiores, poderemos obtê-los continuando a avançar ao
longo da hierarquia lógica. Deste modo, qualquer car-
dinal indutivo que resolvamos estipular pode ser levado
a encontrar o seu lugar entre números que não são vazios,
bastando para tal que se percorra a hierarquia por uma
distância suficiente 25 •
No que diz respeito aos ratios, constatamos uma
situação bastante semelhante. Para que um ratio J1/V
tenha as propriedades esperadas, terão de existir objectos
suficientes do tipo que está a ser contado (seja ele qual

25Sobre este assunto, veja-se Prindpia Mathematica, vol. II,


*120 e seguintes. Sobre os problemas correspondentes relativa-
mente a ratios, veja-se ibid., vol. III, *303 e seguintes.

196
for), de modo a assegurar que a classe vazia não se impo-
nha subitamente. Podemos porém assegurar que assim é,
para qualquer ratio J.l/V dado, sem o axioma do infinito,
recorrendo a um expediente simples, a saber, o de per-
correr uma distância suficiente ao longo da hierarquia.
Se não formos bem sucedidos na contagem de indivíduos,
podemos tentar contar classes de indivíduos; se, ainda
assim, não formos bem sucedidos, poderemos tentar clas-
ses de classes; e assim por diante. Em última instância,
independentemente de quão poucos indivíduos existam
no mundo, chegaremos a um estádio em que haverá
muitos mais indivíduos do que J1 objectos, qualquer que
possa ser o número indutivo J.l. Mesmo se não ·e xistissem,
de todo, quaisquer indivíduos, esta afirmação continuaria
a ser verdadeira, pois haveria então uma classe, a saber,
a classe vazia, 2 classes de classes (a classe vazia de
classes e a classe cujo único membro é a classe vazia de
indivíduos), 4 classes de classes de classes, 16 no estádio
seguinte, 65.536 no estádio que se seguiria a este, e assim
por diante. Logo, não é necessário nenhum postulado
como o axioma do infinito para alcançar qualquer ratio
dado ou qualquer cardinal indutivo.
É quando pretendemos abordar a totalidade da classe
ou da série dos cardinais indutivos, ou dos ratios, que o
axioma se torna necessário. Precisamos da totalidade da
classe dos cardinais indutivos para estabelecer a exis-
tência No- e precisamos da totalidade da série para esta-
belecer a existência de progressões; para que obtenhamos
tais resultados, é necessário que estejamos em condições
de formar uma classe ou série única em que nenhum
cardinal indutivo seja vazio. Precisamos da totalidade

197
da série de ratios em ordem de grandeza para definir os
números reais como segmentos: esta definição não dará
o resultado desejado a não ser que a série de ratios seja
compacta, o que não poderá acontecer se o número total
de ratios, no estádio em questão, for finito.
Seria natural supor - como eu próprio supus em tem-
pos - que, por meio de construções como as que temos
vindo a analisar, o axioma do infinito pudesse ser demons-
trado. Poder-se-á dizer: suponhamos que o número de
indivíduos é n, em que n pode ser O sem prejuízo para
o argumento; assim, se formarmos o conjunto completo
de indivíduos, classes, classes de classes, etc., todos eles
reunidos num mesmo conjunto, o número de termos da
totalidade do nosso conjunto será

n+2"+22" ••• ad inf,

que é K0 . Logo, considerando todos os tipos de objectos


conjuntamente, e não nos limitando a objectos de um
tipo, poderemos certamente obter uma classe infinita e,
portanto, não precisaremos do axioma do infinito. Eis o
que poderia dizer-se.
Antes de avançarmos para o argumento, o primeiro
aspecto a ter em atenção é que este expediente trans-
mite uma certa aparência de truque: há aqui qualquer
coisa que nos traz à memória o prestidigitador que faz
sair coelhos da cartola. O homem que emprestou a sua
cartola tem a certeza absoluta de que, antes de a ter pas-
sado ao prestidigitador, não havia coelho algum lá dentro,
embora se ache perplexo e sem palavras quanto ao modo
como o coelho lá foi parar. Assim também o leitor, se
for uma pessoa com um firme sentido de realidade, se

198
sentirá convencido de que é impossível fabricar uma
colecção infinita de indivíduos, embora possa não ser
capaz de dizer onde se encontra a falha na construção que
acabámos de expor. Seria um erro dar demasiada ênfase
a tais sentimentos de prestidigitação; como acontece com
outras emoções, também estes podem, com facilidade,
desviar-nos. Todavia, fornecem prima facie uma razão para
que examinemos meticulosamente qualquer argumento
que os evoque. E quando examinarmos meticulosamente
o argumento apresentado, ver-se-á, em minha opinião,
que se trata de um argumento falacioso, muito embora
a falácia em questão seja subtil e de modo algum fácil de
evitar consistentemente.
A falácia envolvida poderá ser designada por «con-
fusão de tipos». Para explicar cabalmente o tópico dos
«tipos» seria necessário um livro inteiro; mais ainda,
o presente livro tem por objectivo evitar as partes dos
tópicos que ainda são obscuras e matéria de controvér-
sia, isolando, para benefício dos principiantes, as partes
que podem ser aceites como manifestações de verdades
matematicamente estabelecidas. Ora, podemos afirmar,
enfaticamente, que a teoria dos tipos não pertence à parte
acabada e inequívoca da nossa matéria de estudo: muita
desta teoria é ainda incipiente, confusa e obscura. Mas a
necessidade de que haja alguma doutrina dos tipos é menos
dubitável do que a forma precisa que esta doutrina deve
tomar; e a necessidade de uma doutrina deste género é
particularmente fácil de constatar quando pensamos no
axioma do infinito.
Esta necessidade resulta, por exemplo, da «contra-
dição do maior dos cardinais». Vimos no Capítulo VIII

199
que o número de classes contido numa classe dada é
sempre maior do que o número de membros dessa classe,
e inferimos daqui que não existe o maior número cardinal.
Todavia, como sugerimos há momentos, se estivéssemos
em condições de reunir, numa só classe, os indivíduos,
as classes de classes de indivíduos, etc., obteríamos uma
classe da qual as suas subclasses seriam membros. A classe
que consiste em todos os objectos que podem ser contados,
sejam quais forem os seus géneros, tem que, a existir, uma
tal classe, possuir um número cardinal que seja o maior
possível. Uma vez que todas as suas subclasses serão seus
membros, não poderá haver mais destas do que há mem-
bros. Eis-nos pois chegados a uma contradição.
Quando deparei com esta contradição pela primeira
vez, no ano de 1901, procurei encontrar alguma falha na
demonstração, de Cantor, de que não existe o maior car-
dinal - demonstração esta apresentada no Capítulo VIII.
Aplicando esta demonstração à suposta classe de todos
os objectos imagináveis, fui levado a uma nova, e mais
simples, contradição, a saber, a seguinte:
A classe maximamente abrangente que estamos a
considerar, que se presume abarcar tudo, terá que abar-
car-se a si própria como um dos seus membros. Dito de
outro modo, se existe uma coisa a que possamos chamar
«tudo», então «tudo» é alguma coisa, sendo, assim, um
membro da classe «tudo». Todavia, normalmente, uma
classe não é membro de si própria. A humanidade, por
exemplo, não é um homem. Formemos agora a reunião
de todas as classes que não são membros de si próprias.
Temos uma classe: agora, ela é, ou não, um membro de
si própria? Se é, então é uma classe do tipo «classes que

200
não são membros de si próprias», i.e. não é um membro
de si própria. Se não é, então não é uma classe do tipo
«classes que não são membros de si próprias», i.e. é um
membro de si própria. Logo, cada uma das duas hipóte-
ses - a hipótese de que é, e a de que não é, um membro
de si própria - implica a sua contraditória. Isto é uma
contradição.
Não existe dificuldade alguma em fabricar contradi-:
ções semelhantes ad lib. A solução achada para contra-
dições como esta por meio da teoria dos tipos é cabal-
mente exposta em Principia Mathematica 26, e também, sob
forma mais resumida, em. artigos, pelo presente autor,
publicados no American Journal of Mathematics 27 e n~ Revue
de Metaphysique et de Morale 28 • De momento, bastará uma
exposição das linhas gerais da solução.
A falácia consiste na formação do que podemos
designar por classes «impuras», i.e. classes que não são
puras relativamente ao «tipo». Como veremos num dos
capítulos posteriores, as classes são ficções lógicas, pelo
que uma afirmação que parece ser sobre uma classe só
terá sentido se puder ser traduzida numa forma em que
não é feita menção da classe. Isto coloca uma limitação
aos modos através dos quais podem ocorrer, com sentido,
o que são nominalmente, embora não na realidade, nomes
para classes: uma frase ou conjunto de símbolos em que
tais pseudo-nomes ocorram de maneiras erradas não é

26 Vol. I, Introdução, cap. II, * 12 e * 20; Vol. II, Prefação.


27
«Mathematical Logic as based on the Theory of Types>>,
vol. XXX, 1908, pp. 222-262.
28 «Les paradoxes de la logique>>, 1906, pp. 627-650.

201
falsa, mas sim estritamente desprovida de significado.
A suposição de que uma classe é, ou não, um membro
de si própria é desprovida de significado, na acepção que
acabamos de enunciar. E, de modo mais geral ainda, supor
que uma classe de indivíduos é um membro, ou não é um
membro, de uma outra classe de indivíduos, será supor
um absurdo; e construir simbolicamente qualquer classe
cujos membros não sejam, todos, do mesmo grau na
hierarquia lógica é estar a utilizar símbolos de maneira
tal que estes deixam de simbolizar o que quer que seja.
Assim, se existem n indivíduos no mundo, e 2n classes
de indivíduos, não podemos de modo algum formar uma
nova classe, constituída simultaneamente por indivíduos
e por classes, e que tenha n + 2n membros. Desta maneira,
a tentativa de nos furtarmos à necessidade do axioma do
infinito cai por terra. Não presumo ter explicado a dou-
trina dos tipos, ou ter feito mais do que indicar, em traços
muitos gerais, o porquê da necessidade de tal doutrina.
A minha intenção foi apenas a de dizer tanto quanto
necessário para mostrar que não podemos demonstrar a
existência de números e de classes infinitos através de
métodos de prestidigitação como os que temos estado
a analisar. Existem, no entanto, determinados métodos
possíveis, diferentes destes, que têm que ser examinados.
Em Principies of Mathematícs, § 339 (p. 357), são dados
vários argumentos que professam demonstrar a existência
de classes infinitas. Na medida em que se tratar de argu-
mentos que postulam que, se n é um cardinal indutivo,
então n não é igual a n +1, consideramos que se trata de
argumentos já abordados. Existe um argumento, sugerido
por uma passagem do Parménides de Platão, segundo o

202
qual, se existe um número que é 1, então 1 tem ser; mas 1
não é idêntico a ser, e logo 1 e ser são dois, logo existe um
número que é 2, e 2 juntamente com 1 e ser perfaz uma
classe de três termos, e assim por diante. Este argumento
é falacioso, em parte porque «Ser» é um termo que não
tem um significado preciso e, sobretudo, porque, mesmo
que se inventasse um significado preciso para «ser», cons-
tatar-se-ia que os números não têm ser - os números são,
na verdade, aquilo a que chamamos «ficções lógicas»,
como veremos quando nos debruçarmos sobre a defi-
nição de classes.
O argumento de que o número de números de O a n
(ambos incluídos) é n +1 depende do postulado de que até
n, e incluindo n, nenhum número é igual ao seu sucessor,
postulado que, como vimos, nem sempre será verdadeiro
se o axioma do infinito for falso. Há que compreender que
a equação n = n +1, que poderá ser verdadeira para um n
finito se n exceder o número total de indivíduos existentes
no mundo, é bastante diferente da mesma equação quando
esta se aplica a um número reflexivo. Quando aplicada
a um número reflexivo, esta equação significa que, dada
uma classe de n termos, esta classe é «semelhante» à classe
se adicionando outro termo. Todavia, quando aplicada a
um número demasiado grande para o mundo existente,
significa tão só que não existe uma classe de n indivíduos,
nem uma classe de n +1 indivíduos; não significa que,
se formos suficientemente longe na hierarquia de modo
a assegurar a existência de uma classe de n termos, que
então encontremos esta classe «semelhante» a uma classe
de n +1 termos, pois se n for indutivo, tal não acontecerá,
seja o axioma do infinito verdadeiro, ou falso.

203
Há um argumento utilizado tanto por Bolzano 29 como
por Dedekind 30 para demonstrar a existência de classes
reflexivas. O argumento, em poucas palavras, é este: um
objecto não é idêntico à ideia do objecto, mas há (pelo
menos no domínio do ser) uma ideia de qualquer objecto.
A relação de um objecto para com a ideia desse objecto
é uma relação de <<um para um», e as ideias são apenas
alguns de entre os objectos. Assim, a relação «ideia de»
constitui uma reflexão da totalidade da classe de objectos
numa parte dela própria, a parte que consiste em ideias.
De acordo com isto, a classe de objectos e a classe de
ideias são ambas infinitas. Trata-se de um argumento
interessante, não só em si mesmo, mas também porque
os erros que contém (ou aquilo que julgo serem erros) são
de um tipo qll:e é instrutivo assinalar. O erro principal
consiste em presumir que há uma ideia para todo e qual-
quer objecto. Claro está que é extremamente difícil decidir
o que se pretende dizer com «ideia»; mas partamos dó
princípio de que o sabemos. Posto isto, teremos que supor
que, começando com Sócrates, por exemplo, há a ideia de
Sócrates, e assim por diante ad inf Ora, é evidente que,
no sentido de todas estas ideias terem existência empírica
efectiva nas mentes das pessoas, isto não se verifica. Para
lá do terceiro ou quarto estádio, tomam-se míticas. Para
que o argumento se sustenha, as «ideias» intencionadas
terão que ser as ideias platónicas expostas no céu, uma vez
que é certo que não se encontram na terra. Todavia, aqui
chegados, toma-se de imediato dubitável se tais ideias

29
Bolzano, Paradoxien des Unendlichen, 13.
30 Dedekind, Was sind und was sollen die Zahlen? N. 0 66.

204
existem. Para que constatemos que existem, é forçoso
que o façamos com base em alguma teoria lógica, na
qual se demonstre que é necessário, para uma coisa, que
haja uma ideia dela. Não podemos, seguramente, obter
este resultado empiricamente, nem aplicá-lo, como faz
Dedekind, ao «meine Gedankenwelt» - o mundo dos
meus pensamentos.
Se a nossa preocupação fosse analisar cabalmente a
relação entre ideia e objecto, teríamos de enveredar por
uma série de investigações psicológicas e lógicas que não
são relevantes para o nosso objectivo principal. Toda-
via, faremos algumas considerações adicionais. Caso se
entenda «ideia» logicamente, esta poderá ser idêntica ao
objecto, ou poderá representar uma descrição (em sentido
a explicar num capítulo subsequente) do objecto. No pri-
meiro destes dois casos, o argumento cai por terra, uma
vez que era essencial para a demonstração da reflexivi-
dade que objecto e ideia fossem distintos. No segundo
caso, o argumento também cai por terra, uma vez que a
relação entre o objecto e a descrição não é de «um para
um»: para qualquer objecto dado, há inúmeras descrições
correctas. Sócrates (e.g.) pode ser descrito como «O mestre
de Platão», ou como «O filósofo que bebeu a cicuta», ou
como «O marido de Xântipa». Se- considerando a outra
hipótese - «ideia» for interpretada psicologicamente, é
forçoso que se sustente que não há nenhuma entidade
psicológica precisa que possa ser designada por a ideia
do objecto: existem inúmeras crenças e atitudes, sendo
possível chamar a cada uma delas uma ideia do objecto,
no sentido em que dizemos, por exemplo, «a minha ideia
de Sócrates é bastante diferente da sua», mas não existe

205
nenhuma entidade central (excepto o próprio Sócrates)
que .cimente uma ligação entre várias «ideias de Sócra-
tes» e, portanto, não existe nenhuma relação de «um para
um» entre ideia e objecto como a que o argumento pre-
sume. E, como já fizemos ver, claro está que também não é
psicologicamente verdadeiro que existam ideias (por
muito lato que seja o sentido dado à palavra) acerca de
mais do que uma ínfima proporção das coisas que há no
mundo. Por todas estas razões, o argumento acima apre-
sentado a favor da existência lógica das classes reflexivas
terá que ser rejeitado.
Poder-se-ia pensar que, independentemente do que
possa ser dito quanto aos argumentos lógicos, os argu-
mentos empíricos deriváveis do espaço e do tempo, da
diversidade das cores, etc., são suficientes para demons-
trar a existência efectiva de um número infinito de parti-
culares. Não acredito nisto. Não dispomos de razões,
salvo o preconceito, para acreditar na extensão infinita do
espaço e do tempo, ou pelo menos não na acepção em
que espaço e tempo são factos físicos, e não ficções mate-
máticas. Encaramos, naturalmente, o espaço e o tempo
como contínuos, ou, pelo menos, como compactos; isto é,
porém, uma vez mais, sobretudo preconceito. A teoria dos
«quanta», em física, seja ela verdadeira ou falsa, ilustra
o facto de a física jamais poder comportar a demonstra-
ção da continuidade, embora possa, muito possivelmente,
comportar a sua refutação. Os sentidos não são suficien-
temente exactos para distinguir entre movimento con-
tínuo e sucessão discreta rápida, como qualquer um de
nós pode constatar indo ao cinema. Um mundo em que
todo o movimento consistisse numa série de pequenos

206
solavancos finitos seria empiricamente indistinguível de
um mundo em que o movimento fosse contínuo. A defesa
adequada destas teses tomaria demasiado espaço; por ora,
limito-me apenas a sugeri-las para consideração do leitor.
Se forem válidas, segue-se que não há, nem nunca poderá
haver, razão empírica para acreditar que o número de par-
ticulares existente no mundo é infinito; não há, também,
actualmente, qualquer razão empírica para acreditar que
este número é finito, embora seja teoricamente concebível
que, um dia, possa haver provas que apontem, ainda que
não conclusivamente, nessa direcção.
Pelo facto de o infinito não ser autocontraditório, mas
também por não ser logicamente demonstrável, somos
forçados a concluir que nada se pode saber a priori quanto
ao número de coisas existente no mundo ser finito ou infi-
nito. A conclusão é, portanto, e adoptando uma fraseo-
logia leibniziana, a de que alguns dos mundos possíveis
são finitos, alguns são infinitos, e não temos maneira de
saber a qual destes dois tipos pertence o nosso mundo
actual. O axioma do infinito será verdadeiro em alguns
mundos possíveis e falso em outros; quanto a ser verda-
deiro ou falso neste mundo, nada podemos dizer.
Ao longo deste capitulo, os sinónimos «indivíduo» e
«particular» foram utilizados sem qualquer explicação.
Seria impossível explicá-los adequadamente sem elaborar
uma longa dissertação sobre a teoria dos tipos, longa
demais face ao que consideramos ser apropriado no con-
texto do presente livro. Assim, dedicar-lhe-errios algumas
palavras, apenas para minorar a obscuridade que, de
outro modo, envolveria o sentido destas palavras.

207
Numa afirmação comum, podemos distirtguir o verbo,
que expressa um atributo ou uma relação, dos substan-
tivos, que expressam o sujeito do atributo ou os termos
da relação. «César viveu» confere um atributo a César;
«Brutus matou César» expressa uma relação entre Brutus
e César. Utilizando a palavra «sujeito» em sentido gene-
ralizado, podemos chamar tanto a Brutus como a César
sujeitos desta proposição: o facto de, gramaticalmente,
Brutus ser o sujeito e César ser o objecto é, logicamente,
irrelevante, uma vez que é possível expressar a mesma
ocorrência por meio das palavras «César foi morto por
Brutus», em que César é o sujeito gramatical. Assim,
perante o tipo mais simples de proposição, temos um
atributo ou relação que se verifica relativamente a, ou
entre, um, dois, ou mais «sujeitos», no sentido lato desta
palavra. (Uma relação pode ter mais do que dois termos:
e.g. «A oferece B a C» é uma relação de três termos.) Acon-
tece amiúde que, numa análise mais minuciosa, se constata
que o que são, aparentemente, sujeitos não são realmente
sujeitos, mas algo que pode ser analisado; no entanto, o
único resultado disto é novos sujeitos ocuparem os seus
lugares. Sucede também que o verbo pode, gramatical-
mente, tomar-se sujeito: e.g. podemos dizer «Matar é uma
relação que se estabelece entre Brutus e César». Porém,
nestes casos, a gramática é enganadora e, perante uma
afirmação directa, se seguirmos as regras que devem guiar
a gramática filosófica, Brutus e César aparecerão como os
sujeitos e matar aparecerá como o verbo.
Somos assim levados à concepção de termos que,
quando ocorrem em proposições, podem ocorrer apenas
como sujeitos, e nunca de outra maneira. Isto é parte da

208
antiga definição escolástica de substância; porém, a persis-
tência ao longo do tempo, que pertencia a essa noção, não
faz parte da noção que aqui nos diz respeito. Definiremos
«nomes próprios» como sendo os termos que só podem
ocorrer como sujeitos em proposições (utilizando «sujeito»
no sentido lato que acabámos de explicar). Definiremos
ainda «indivíduos» ou «particulares» como sendo os
objectos que podem ser nomeados por nomes próprios.
(Seria melhor defini-los directamente, ao invés de por
meio dos tipos de símbolos através dos quais são simbo-
lizados; mas, para que o pudéssemos fazer, teríamos que
mergulhar na metafísica mais profundamente do que é
desejável que façamos no presente contexto). Claro está
que é possível haver um retrocesso interminável: que o
que quer que apareça como um particular seja na reali-
dade, quando meticulosamente examinado, uma classe
ou algum tipo de complexo. Se for este o caso, o axioma
do infinito terá, evidentemente, que ser verdadeiro. Mas
se não for este o caso, terá que ser teoricamente possível,
por análise, chegar a sujeitos irredutíveis, e são estes que
fornecem o significado de «particulares» ou «indivíduos».
É ao número destes que se pressupõe que o axioma do
infinito se aplique. Se o axioma for verdadeiro acerca
destes indivíduos, então é verdadeiro acerca das classes
deles, e das classes das classes deles, e assim por diante;
de igual modo, se for falso acerca deles, então é falso ao
longo de toda a hierarquia. Por esta razão, é natural enun-
ciar o axioma a respeito deles, em vez de a respeito de
qualquer outro estádio da hierarquia. Todavia, quanto a
saber se o axioma é verdadeiro ou falso, não parece existir
nenhum método conhecido que permita descobri-lo.

209
Capítulo XIV

INCOMPATIBILIDADE
E A TEORIA DA DEDUÇÃO

Até este momento, explorámos, um tanto apressada-


mente, é verdade, a parte da filosofia da matemática que
não exige um exame crítico da ideia de classe. No entanto,
no capítulo anterior, confrontámo-nos com problemas
que tornam imperativo proceder a tal exame. Antes de
nos lançarmos a tal tarefa, temos porém que considerar
determinadas partes da filosofia da matemática que, até
agora, escolhêramos ignorar. Num tratamento sintético,
as partes que passamos agora a abordar vêm primeiro:
são mais fundamentais do que qualquer das matérias
discutidas até ao momento. Antes de chegarmos à teoria
das classes, ocupar-nos-emos de três tópicos: (1) a teoria
da dedução, (2) as funções proposicionais, e (3) as descri-
ções. Destas, a terceira não está logicamente pressuposta
na teoria das classes, mas constitui um exemplo mais sim-
ples do tipo de teoria de que necessitamos quando lidamos
com classes. O primeiro tópico - a teoria da dedução -
é aquele que nos ocupará ao longo do presente capítulo.
A matemática é uma ciência dedutiva: partindo de
determinadas premissas, chega, por meio de um processo
de dedução rigoroso, aos vários teoremas que a cons-
tituem. É verdade que, no passado, sucedia amiúde as
deduções matemáticas não serem muito rigorosas; é ver-
dade, também, que o rigor perfeito é um ideal raramente

211
atingível. Não obstante, sempre que uma demonstração
matemática careça de rigor, a demonstração é defeituosa;
apelar para que o senso comum mostre que o resultado é
correcto não constitui defesa para a demonstração, dado
que, se nos dispuséssemos a confiar nisto, seria melhor
dispensar totalmente o argumento, em vez de trazer a
falácia ao resgate do senso comum. Em matemática, a
partir do momento em que as premissas são expostas,
nenhum apelo ao senso comum, nenhuma «intuição»,
nada, à excepção da lógica dedutiva estrita, deve ser
necessário.
Kant, tendo observado que os geómetras do seu tempo
não conseguiam demonstrar os seus teoremas recorrendo
ao argumento sem mais expedientes, mas .necessitando
da figura como auxiliar, inventou uma teoria do raciocí-
nio matemático de acordo com a qual a inferência nunca
é estritamente lógica, exigindo sempre o suporte daquilo
que é designado por «intuição». Toda a tendência da
matemática moderna, na sua crescente demanda por rigor,
tem sido contrária a esta teoria kantiana. Aquilo que, na
matemática do tempo de Kant, não pode ser demonstrado,
não pode ser conhecido - por exemplo, o axioma das para-
lelas. O que pode ser conhecido, em matemática e através
de métodos matemáticos, é o que pode ser deduzido da
lógica pura. Tudo o mais que possa pertencer ao conheci-
mento humano terá que ser estabelecido de outra maneira
- empiricamente, por meio dos sentidos ou por meio de
alguma forma de experiência, mas não a priori. Os fun-
damentos positivos para esta tese encontram-se em Prin-
cipia Mathematica, passim; em Principies of Mathematics é
apresentada uma defesa controversa desta tese. Aqui, não

212
podemos fazer mais do que encaminhar o leitor para estas
obras, uma vez que o assunto é demasiado vasto para
poder ser abordado precipitadamente. Entretanto, parti-
remos do princípio de que toda a matemática é dedu-
tiva, prosseguindo agora no sentido de investigar o que
envolve a dedução.
Na dedução, temos uma ou mais proposições desig-
nadas por premissas, a partir das quais inferimos uma
proposição designada por conclusão. Tendo em vista os
nossos objectivos, será conveniente, quando houver, ori-
ginalmente, diversas premissas, amalgamá-las numa
única proposição, de maneira a ser possível falarmos de
a premissa, bem como de a conclusão. Assim, podemos
encarar a dedução como sendo um processo através do
qual passamos do conhecimento de uma proposição espe-
cífica, a premissa, para o conhecimento de uma outra pro-
posição específica, a conclusão. No entanto, este processo
não será encarado como sendo uma dedução lógica a não
ser que esteja correcto, i.e. a não ser que exista uma rela-
ção entre premissa e conclusão tal que tenhamos o direito
de acreditar na conclusão se sabemos que a premissa é
verdadeira. Na da teoria lógica da dedução, o principal
interesse centra-se precisamente sobre esta relação.
Para que se possa inferir validamente a verdade de
uma proposição, temos que saber que alguma outra pro-
posição é verdadeira, e que existe, entre estas duas, uma
relação do tipo que designamos por «implicação», i.e. que
(como nós dizemos) a premissa «implica» a conclusão.
(Definiremos esta relação daqui a instantes.) Em alterna-
tiva, podemos saber que uma outra determinada propo-
sição é falsa, e que existe entre as duas proposições uma

213
relação designada por «disjunção», que se expressa por
«p ou q» 31, de tal modo que o conhecimento de que uma
é falsa nos permite inferir que a outra é verdadeira. Dito
isto, pode acontecer que aquilo que pretendemos inferir
seja a falsidade de uma dada proposição, e não a verdade
dela. Esta falsidade poderá ser inferida da verdade de
outra proposição, conquanto que saibamos que as duas
são «incompatíveis», i.e. que se uma é verdadeira, a outra
é falsa. Tal como pode, também, ser inferida da falsidade
de outra proposição, exactamente nas mesmas circuns-
tâncias em que a verdade de uma segunda proposição
pode ser inferida da verdade de uma primeira; i.e. da
falsidade de p, podemos inferir a falsidade de q, quando
q implica p. Estes quatro constituem, todos eles, casos
de inferência. Quando as nossas mentes se encontram
centradas sobre a inferência, parece natural tomar a
«implicação» como sendo a .relação primitiva fundamen-
tal, uma vez que esta é a relação que tem que se estabe-
lecer entre p e q para que possamos inferir a verdade de q
da verdade de p. Todavia, por razões t~cas, esta não é a
melhor escolha de ideia primitiva. Antes de avançar para
ideias primitivas e definições, detenhamo-nos um pouco
mais nas várias funções de proposições sugeridas pelas
relações de proposições supra mencionadas.
Entre essas funções, a mais simples é a negativa -
«não-p». Esta é a função de p que é verdadeira quando
p é falsa, e falsa quando p é verdadeira. É conveniente
referirmo-nos à verdade de uma proposição, ou à sua

31
Utilizaremos as letras p, q, r, s, t para denotar proposições
arbitrárias.

214
falsidade, como sendo o «valor de verdade» dessa pro-
posição32; i.e. verdade é o «valor de verdade» de uma pro-
posição verdadeira, e falsidade é o «valor de verdade» de
uma proposição falsa. Logo, não-p tem o valor de verdade
oposto do de p.
Depois, podemos considerar a disjunção - «p ou q».
Esta é a função cujo valor de verdade é verdade quando p
é verdadeira e quando q também é verdadeira, mas que é
uma falsidade quando tanto p como q são falsas.
Seguidamente, podemos considerar a conjunção -
«p e q». Esta função tem verdade como valor de verdade
quando p e q são ambas verdadeiras; de outro modo, tem
falsidade como valor de verdade.
Considere-se agora a incompatibilidade, i.e. «p e q não
são ambas verdadeiras». Trata-se da negação da conjun-
ção; trata-se, também, da disjunção das negações de p e q,
i.e. é «não-p ou não-q». O valor de verdade desta função
é verdade quando p é falsa e, de igual modo, quando q é
falsa; o seu valor de verdade é falsidade quando p e q são
ambas verdadeiras.
Por último, considere-se a ímplicação, i.e. «p implica
q», ou .«Se p, então q». Isto deve ser entendido no sen-
tido mais lato possível que nos permita inferir a verdade
de q se sabemos a verdade de p. Assim, interpretamo-la
como querendo dizer: «a não ser que p seja falsa, q é ver-
dadeira», ou «OU pé falsa, ou q é verdadeira». (O facto
de «implica» poder ter outros significados é-nos comple-
tamente alheio; o significado apresentado é aquele que
nos é conveniente.) Querendo isto dizer que «p implica q»

32 É a Frege que se deve esta expressão.

215
significa «não-p ou q»: o seu valor de verdade será ver-
dade se p for falsa, tal como se q for verdadeira, e será
falsidade se p for verdadeira e q for falsa.
Temos pois cinco funções: negação, disjunção, con-
junção, incompatibilidade e implicação. Poderíamos ter
acrescentado outras, por exemplo falsidade conjunta
- «não-p e não-q», mas bastar-nos-ão as cinco referidas.
A negação distingue-se das outras quatro pelo facto de
ser função de uma proposição, ao passo que as restantes
são funções de duas . Todavia, as cinco funções concordam
quanto aos seus valores de verdade dependerem dos dqs
proposições que ocorrem como seus argumentos. Dada
a verdade ou a falsidade de p, ou de p e q (conforme o
caso), é-nos dada a verdade ou a falsidade da negação,
da disjunção, da conjunção, da in<;ompatibilidade, ou da
implicação. Uma função de proposições que tenha esta
propriedade designa-se por «função de verdade».
A totalidade do sentido de uma função de verdade
esgota-se na afirmação das circunstâncias nas quais é falsa
ou verdadeira. «Não-p», por exemplo, é simplesmente
aquela função de p que é verdadeira quando p é falsa, e
falsa quando p é verdadeira: não há mais nenhum sentido
adicional a atribuir-lhe. O mesmo se aplica a «p ou q» e
às restantes. Segue-se que duas funções de verdade que
têm o mesmo valor de verdade para todos os valores do
argumento são indistinguíveis. Por exemplo, «p e q» é a
negação de «não-p ou não-q» e vice-versa; logo, qualquer
delas pode ser definida como sendo a negação da outra.
Numa função de verdade, não há mais nenhum sentido
além das condições nas quais é verdadeira ou falsa.
É evidente que as cinco funções de verdade há pouco
mencionadas não são todas independentes. Podemos

216
definir algumas delas em termos de outras. Não há grande
dificuldade em reduzir o número a duas; as duas escolhi-
das nos Principia Mathematica são a negação e a disjun-
ção. A implicação é então definida como «não-p ou q»;
a incompatibilidade como «não-p ou não-q»; a conjun-
ção como a negação da incompatibilidade. No entanto,
Sheffer 33 mostrou que podemos contentar-nos com uma
ideia primitiva para todas as cinco, e Nicod 34 mostrou que
isso nos permite reduzir as proposições primitivas exigi-
das na teoria da dedução a dois princípios não formais e
a um princípio formal. Para este efeito, podemos adoptar
ou a incompatibilidade ou a falsidade conjunta como a
nossa ideia indefinível. Escolheremos a primeira.
A nossa ideia primitiva, agora, é uma certa função de
verdade, designada por «incompatibilidade», que denota-
remos por p/q. A negação pode ser de imediato definida
como a incompatibilidade de uma proposição com ela
mesma, i.e. «não-p» é definida como «p/p». A disjunção
é a incompatibilidade de não-p e não-q, i.e. é (p/p) I (q/q).
A implicação é a incompatibilidade de p e não-q, i.e.
p I (q/ q). A conjunção é a negação da incompatibilidade,
i.e. é (p/ q) I (p/ q). Deste modo, temos que todas as outras
quatro funções são definidas em termos da função de
incompatibilidade.
É óbvio que não existe limite para a produção de fun-
ções de verdade, através da introdução de mais argumen-
tos, quer pela repetição dos argumentos. Aquilo que nos
interessa é a ligação entre esta matéria e a inferência.

33 Trans. Am. Math. Soe., vol. XIV, pp. 481-488.


34 Proe. Camb. Phil. Soe., vol. XIX, I, Janeiro de 1917.

217
Se sabemos que p é verdadeira e que p implica q,
podemos prosseguir para a afirmação de q. Há sempre,
inevitavelmente, qualquer coisa de psicológico quanto à
inferência: a inferência é um método através do qual che-
gamos a novo conhecimento, e o que há nisso de não psi-
cológico é a relação que nos permite inferir correctamente;
todavia, a passagem da afirmação de p para a afirmação de
q, ela mesma, é um processo psicológico, e não devemos
procurar representá-lo em termos puramente lógicos.
Na prática matemática, quando inferimos, temos
sempre alguma expressão que contém proposições arbi-
trárias, digamos p e q, que se sabe, em virtude da sua
forma, serem verdadeiras para todos os valores de p e q;
teremos também alguma outra expressão, que é parte da
anterior, que também sabemos ser verdadeira para todos
os valores de p e q; e, em virtude do princípio de infe-
rência, podemos deixar cair essa parte da nossa expres-
são original, e afirmar a parte restante. Podemos clarificar
esta descrição um tanto ou quanto abstracta recorrendo a
alguns exemplos.
Partamos do pressuposto de que sabemos os cinco
princípios formais da dedução enumerados nos Principia
Mathematica. (M. Nicod reduziu-os a um, mas dado que se
trata de uma proposição complicada, começaremos pelos
cinco.) As cinco proposições em causa são as seguintes:

(1) «p ou p» implica p- i.e. se ou pé verdadeira ou pé


verdadeira, então p é verdadeira.
(2) q implica «p ou q» - i.e. a disjunção «p ou q» é
verdadeira quando um dos seus disjuntos é verdadeiro.
(3) «p ou q» implica «q ou p». Esta proposição seria

218
dispensável se tivéssemos uma notação teoricamente
mais perfeita, pois não há ordem envolvida na concepção
de disjunção, razão pela qual «p ou q» e «q ou p>> deviam
ser idênticas. Porém, uma vez que os nossos símbolos, sob
qualquer forma conveniente, introduzem inevitavelmente
uma ordem, carecemos de pressupostos adequados para
mostrar que a ordem é irrelevante.
(4) Se ou p é verdadeira ou «q ou r» é verdadeira,
então ou q é verdadeira ou «p ou r» é verdadeira. (A troca
patente nesta proposição serve para aumentar o seu poder
dedutivo.)
(5) Se q implica r, então «p ou q» implica «p ou r».

Estes são os princípios formais da dedução utilizados


nos Principia Mathematica.Um princípio formal de dedu-
ção tem uma utilização dupla, e foi para o tomar claro
que citámos as cinco proposições supra. Pode ser utili-
zado como uma premissa de uma inferência, e pode ser
utilizado como aquilo que estabelece o facto de a pre-
missa implicar a conclusão. No esquema de uma inferên-
cia, temos uma proposição p, e uma proposição «p implica
q», das quais inferimos q. Ora, relativamente aos princí-
pios da dedução, o aparato de proposições primitivas terá
que garantir, nas inferências, tanto p como «p implica q».
Quer isto dizer que as nossas regras de dedução terão ·
que ser utilizadas não só como regras - uso que têm para
estabelecer «p implica q» -, mas também como premissas
substantivas, i.e. como o p do nosso esquema. Imagine-
-se, por exemplo, que pretendemos demonstrar que, se p
implica q, e se q implica r, então p implica r. Temos aqui
uma relação de três proposições na qual se afirmam impli-

219
cações. Coloquemos:

p1 =p implica q, p 2 =q implica r, e p3 =p implica r.

Temos pois que demonstrar que p1 implica que p2 implica


p3• Considerando agora o quinto princípio acima apresen-
tado, substitua não-p por p, e tenha presente que «não-p
ou q» é; por definição, o mesmo que «p implica q». Assim,
o nosso quinto princípio dá-nos:

«Se q implica r, então 'p implica q' implica 'p implica


r'», i.e. «p2 implica que p1 implica p3 ». Designe-se esta pro-
posição por A.

Todavia, quando substituímos não-p, não-q, por p e q,


e tendo presente a definição de implicação, o quarto dos
nossos princípios passa a:

«Se p implica que q implica r, então q implica que p


implica r.»

Escrevendo p2 lugar de p, p1 em lugar de q, e p3 em lugar


de r, esta proposição transforma-se em:

«Se P2 implica que p1 implica p3, então p1 implica que


p2 implica p3». Designe-se esta proposição por B.

Agora, por meio do nosso quinto princípio, demonstra-


mos que

«p2 implica que p1 implica p3», a que chamámos A.


Assim, temos aqui uma exemplificação do esquema de

220
inferência, uma vez que A representa a proposição p do
nosso esquema, e B representa a proposição «p implica q».
Assim chegamos a q, a saber:

que é a proposição que pretendíamos demonstrar. Nesta


demonstração, a adaptação do nosso quinto princípio,
que nos dá A, ocorre como premissa substantiva; ao passo
que a adaptação do nosso quarto princípio, que nos dá B,
é utilizada para fornecer a forma da inferência. As utiliza-
ções formal e material de premissas na teoria da dedução
encontram-se estreitamente interligadas, e não é parti-
cularmente importante mantê-las separadas, desde que
estejamos cientes de que são, em teoria, distintas.
A dedução que acabámos de apresentar constitui
o método mais antigo para chegar a novos resultados a
partir de uma premissa; todavia, em si mesmo, só muito
dificilmente se poderá chamar-lhe uma dedução. As
proposições primitivas, quaisquer que sejam, devem ser
encaradas como sendo asserções de todos os valores pos-
síveis das proposições arbitrárias p, q, r que nelas ocorrem.
Podemos pois substituir por (digamos) p qualquer expres-
são cujo valor seja sempre uma proposição, e.g. não-p,
«S implica t» e assim por diante. Através de substituições
deste tipo obtemos, na verdade, conjuntos de casos espe-
ciais da nossa proposição original, embora, de um ponto
de vista prático, obtenhamos o que são, virtualmente,
novas proposições. A legitimidade de substituições deste

221
tipo tem que ser assegurada por meio de um princípio de
inferência não formal 35 •
Estamos agora em condições de estabelecer o princí-
pio de inferência não formal ao qual M. Nicod reduziu os
cinco princípios dados há pouco. Para este efeito, come-
çaremos por mostrar de que modo determinadas funções
de verdade podem ser definidas em termos da incompati-
bilidade. Vimos já que

p I (ql q) significa <<p implica q».


Constatamos agora 'J.Ue

p I (qlr) significa <<p implica tanto q como r» .

Isto porque esta expressão significa «p é incompatível com


a incompatibilidade de q e r», i.e. «p implica que q e r não
são incompatíveis», i.e. «p implica que q e r são ambas ver-
dadeiras» - na medida em que, como vimos, a conjunção
de q e r é a negação da sua incompatibilidade.
Atente agora no facto de tI (tlt) significar que t se
implica a si mesmo. Trata-se de um caso particular de
PI (qlq) .
Escrevamos p para a negação de p; deste modo, temos
que pI s significará a negação de pI s, i.e. significará a
conjunção de p e s. Segue-se que

(slq) I pls

35
Um tal principio não é enunciado nem nos Principiil
Mathematica nem no artigo de M. Nicod a que há pouco fizemos
referência. No entanto, tudo leva a crer que se tenha tratado de
uma omissão.

222
expressa a incompatibilidade de s/ q com a conjunção de
p e s; por outras palavras, estabelece que, se p e s são
ambas verdadeiras, s/ q é falsa, i.e. se q são ambas verda-
deiras; dito de modo mais simples ainda, estabelece que
p e s conjuntamente implicam s e q conjuntamente.

Agora, coloquemos P=p I (q/r),


~r= tI (t/t),
Q=(s/q) I p/s.

Então, o único princípio formal de dedução de M. Nicod é

p l~r/Q

por outras palavras, P implica tanto 1r como Q.


M. Nicod utiliza adicionalmente um princípio não
formal pertencente à teoria dos tipos (no qual não preci-
samos de nos deter) e um outro, correspondente ao prin-
cípio de que, dada p, e dado que p implica q, podemos
afirmar que q. Este princípio é:

«Se p I (r/ q)» é verdadeira, e p é verdadeira, então q é ver-


dadeira.». A partir deste aparato, segue-se toda a teoria
da dedução, excepto na medida em que o nosso objectivo
disser respeito à dedução a partir de, ou para, a existência
ou a verdade universal de «funções proposicionais», que
examinaremos no próximo capítulo.
Se não estou em erro, há, nas mentes de alguns
autores, uma certa confusão quanto à relação, entre pro-
posições, em virtude da qual uma inferência é válida. Para
que a inferência de q a partir de p seja válida, é apenas

223
necessário que p seja verdadeira e que a propostçao
«não-p ou q» seja verdadeira. Quando isto for o caso,
torna-se claro que q tem que ser verdadeira. No entanto,
a inferência só terá efectivamente lugar quando se
conhece a proposição «não-p ou q» por outra via que não
pelo conhecimento de não-p ou pelo conhecimento de q.
Sempre que p é falsa, «não-p ou q» é verdadeira, mas tal
não tem qualquer utilidade para a inferência, sendo que
esta requer que p seja verdadeira. Sempre que se saiba a
verdade de q, sabe-se também, evidentemente, que «não-p
ou q» é verdadeira; porém, uma vez mais, tal não tem
utilidade para a inferência, uma vez que q já é sabido e,
portanto, não carece de ser inferido. Na verdade, a infe-
rência só surge quando podemos saber que «não-p ou q»
sem sabermos, de antemão, qual das duas alternativas
torna a disjunção verdadeira. Ora, as circunstâncias nas
quais isto ocorre são aquelas que existem em determina-
das relações de forma entre p e q. Por exemplo, sabemos
que, se r implica a negação de s, então s implica a nega-
ção de r. Entre «r implica não-s» e «S implica não-r» existe
uma relação formal que nos permite saber que a primeira
implica a segunda, sem que tenhamos primeiro que saber
que a primeira é falsa, ou que a segunda é verdadeira.
É em circunstâncias como esta que a relação de impli-
cação tem utilidade prática para estabelecer inferências.
Todavia, esta relação formal só é exigida para que
possamos estar em condições de saber que ou a premissa
é falsa ou a conclusão é verdadeira. Para a validade da
inferência, o requerido é a verdade de «não-p ou q»; para
além disto, tudo o que possa ser requerido é-o apenas
para a exequibilidade prática da inferência. O Professor

224
C. I. Lewis 36 estudou em especial a relação mais estreita,
formal, a que podemos chamar «dedutibilidade formal».
Lewis apela para que deixemos de chamar «implicação»
à relação mais lata- a que se expressa por «não-p ou q».
Trata-se, porém, de uma questão de palavras. Conquanto
que a nossa utilização das palavras seja consistente,
pouco importa o modo como as definimos. O aspecto
essencial da diferença entre a teoria que eu defendo e a
teoria defendida pelo Professor Lewis é esta: Lewis
sustenta que, quando uma proposição q é «formalmente
dedutível» de uma outra proposição p, a relação que
detectamos entre elas designa-se por «implicação estrita»,
relação esta que não é a expressa por «não-p ou q», mas
sim uma relação mais estreita, que só se estabelece quando
existem determinadas conexões formais entre p e q. Eu
sustento que, existindo ou não uma relação como aquela
a que Lewis se refere, trata-se, seja como for, de uma
relação de que a matemática não carece e, por isso, de
uma relação que, por uma questão de economia, não deve
ser admitida no nosso aparato de noções fundamentais;
e, ainda, sempre que a relação de «dedutibilidade for-
mal» se estabelece entre duas proposições, o caso é tal
que podemos constatar que, ou a primeira é falsa ou a
segunda é verdadeira, e que, além deste facto, não é
necessário admitir mais nada nas nossas premissas; e que,
por último, as razões de pormenor que o Professor Lewis
aduz contra a perspectiva que eu defendo podem, todas

36 Veja-se Mind, vol. XXI, 1912, pp. 522-531; e vol. XXIII,


1914, pp. 240-247.

225
elas, ser acomodadas, ao detalhe, e5tando a plausibilidade
delas dependente de um pressuposto encoberto e incons-
ciente do ponto de vista que eu rejeito. Concluo, assim;
que não há necessidade de admitir como noção funda-
mental qualquer forma de implicação que não se expresse
sob a forma de uma função de verdade.

226
Capítulo XV

FUNÇÕES PROPOSICIONAIS

No capítulo anterior, ao discutirmos proposições, não


nos propusemos oferecer uma definição para a palavra
«proposição». Todavia, muito embora a palavra não possa
ser formalmente definida, é necessário dizer alguma coisa
quanto ao seu significado, de modo a evitar a confusão
- muito comum - entre «proposições» e «funções propo-
sicionais». Estas últimas constituirão o tópico do presente
capítulo.
Por «proposição» queremos significar, primariamente,
uma forma de palavras que expressa aquilo que é verda-
deiro ou falso. Digo «primariamente» na medida em que
não é minha intenção excluir outros que não símbolos
verbais, ou mesmo meros pensamentos se estes tiverem
um carácter simbólico. Dito isto, penso que a palavra
«proposição» deve ser limitada àquilo que pode, em certo
sentido, designar-se por «símbolos», e, mais ainda, aos
símbolos na medida em que dão expressão a verdades e
falsidades. Deste modo, «dois e dois são quatro» e «dois
e dois são cinco» serão proposições, tal como serão pro-
posições «Sócrates é um homem» e «Sócrates não é um
homem». A afirmação: «Quaisquer que sejam os números
a e b, (a+b) 2 =a2 +2ab+lJ2» é uma proposição; no entanto,
a fórmula despida «(a+b) 2 =a2 +2ab+b2», sozinha, não o
é, uma vez que não afirma nada definido, a não ser que,
adicionalmente, nos seja dito, ou sejamos levados a supor,

227
que a e b têm todos os valores possíveis, ou que têm este
e aquele valores. A primeira destas duas alternativas é,
como regra, tacitamente pressuposta na enunciação de
fórmulas matemáticas, o que as toma proposições; mas, se
nada fosse pressuposto, seriam «funções proposicionais».
Uma «função proposicional» é, de facto, uma expressão
que contém um ou mais constituintes indeterminados tais
que, quando se atribuem valores a esses constituintes, a
expressão passa a ser uma proposição. Por outras palavras,
é uma função cujos valores são proposições. Dito isto, a
definição que acabámos de fornecer tem que ser utilizada
com cautela. Uma função descritiva, e.g. «a proposição
mais difícil no tratado matemático de A» não constitui
uma função proposicional, embora os seus valores sejam
proposições. No entanto, em casos como este, as propo-
sições são apenas descritas; numa função proposicional,
os valores têm efectivamente que enunciar proposições.
É fácil dar exemplos de funções proposicionais: «X é
humano» é uma função proposicional; enquanto x per-
manecer indeterminada, não é nem verdadeira nem falsa,
mas assim que lhe é atribuído um valor, x passa a ser uma
proposição verdadeira ou uma proposição falsa. Qual-
quer equação matemática é uma função proposicional.
Enquanto as variáveis não tiverem nenhum valor defi-
nido, a equação é, tão só, uma expressão à espera de ser
determinada, de modo a poder tomar-se uma proposição
verdadeira ou uma proposição falsa. Se se trata de uma
equação contendo uma variável, tomar-se-á verdadeira
quando a variável passar a ser igual a uma raiz da equa-
ção; de outro modo, tomar-se-á falsa. Porém, se se tratar
de uma «identidade», será verdadeira quando a variável

228
for um número qualquer. A equação para uma curva num
plano, ou para uma superfície no espaço, é uma função
proposicional, verdadeira para valores das coordenadas
pertencentes a pontos nessa curva (ou nessa superfície), e
falsa para outros valores. Expressões da lógica tradicional,
como sejam «todo o A é B» são funções proposicionais:
A e B terão que ser determinadas como classes definidas
antes de as expressões se tomarem verdadeiras ou falsas.
A noção de «casos» ou «exemplificações» está depen-
dente de funções proposicionais. Considere-se, por exem-
plo, o tipo de processo sugerido por aquilo que se designa
por «generalização», e tome-se um exemplo bastante pri-
mitivo, digamos, «a um relâmpago segue-se um trovão».
Dispomos de um determinado número de exemplifica-
ções deste facto, i.e. de um determinado número de pro-
posições como: «isto é um clarão de um relâmpago, e é
seguido por um trovão». São «exemplificações» de quê,
estas ocorrências? São exemplificações da função pro-
posicional: «Se x é um clarão de um relâmpago, então x
é seguido por um trovão». O processo de generalização
(com cuja validade não estamos, felizmente, agora preo-
cupados) consiste em passar de um determinado número
de exemplificações deste tipo para a verdade universal da
função proposicional: «Se x é um clarão de um relâmpago,
então x é seguido por um trovão». Constatar-se-á que, de
modo análogo, de todas as vezes que falamos de exempli-
ficações, ou de casos, ou de exemplos, há sempre funções
proposicionais envolvidas.
Não é preciso que interroguemos, ou que procure-
mos dar resposta, à pergunta: «O que é uma função pro-
posicional?». Uma função proposicional que se apresente

229
sozinha, sem mais, pode ser encarada como um mero
esquema, uma simples concha, um receptáculo vazio
para um significado, e não como algo que é já, à partida,
significativo. As funções proposicionais interessam-nos,
em termos gerais, em duas vertentes: em primeiro lugar,
enquanto envolvidas nas noções de «verdadeira em todos
os casos» e «verdadeira em alguns · casos»: em segundo
lugar, enquanto envolvidas na teoria das classes e rela-
ções. Quanto ao segundo destes tópicos, adiá-lo-emos
para um dos capítulos seguintes. Deter-nos-emos agora
sobre o primeiro.
Quando dizemos que uma coisa é «sempre verda-
deira» ou «verdadeira em todos os casos», é evidente que
essa «Coisa» não pode ser uma proposição. Uma propo-
sição limita-se a ser ou verdadeira ou falsa - e o assunto
encerra aqui. Não existem exemplificações, ou casos, de
«Sócrates é um homem» ou de «Napoleão morreu em
Santa Helena». Estas são proposições, e seria totalmente
desprovido de sentido referirmo-nos a elas como sendo
verdadeiras «em todos os casos». Esta expressão só é apli-
cável a funções proposicionais. Atentemos, por exemplo,
no que se diz, amiúde, quando se discute a casualidade.
(O que aqui nos importa não é a verdade ou falsidade
do que é dito, mas sim, e apenas, a sua análise lógica.)
É-nos dito que A é, em toda e qualquer exemplificação,
seguido por B. Ora, se existem «exemplificações» de A,
então A terá que ser algum conceito geral do qual faz sen-
tido dizer «x 1 é A», «X 2 é A », «X3 é A», e assim por diante,
em que x 1, x2, x3 são particulares não idênticos entre si. Isto
aplica-se, por exemplo, ao caso dos relâmpagos que refe-
rimos há pouco. Dizemos que o relâmpago (A) é .seguido

230
pelo trovão (B). Todavia, os clarões, separadamente
tomados, são particulares, não idênticos, que partilham
no entanto a propriedade comum de serem relâmpagos.
A única maneira de expressar uma propriedade comum
em termos gerais é dizer que uma propriedade ·comum
a um determinado número de objectos é uma função
proposicional que se torna verdadeira quando qualquer
um desses objectos é assumido como o valor da variável.
Neste caso, todos os objectos são «exemplificações» da
verdade da função proposicional - pois uma função pro-
posicional, apesar de não poder, por si só, ser verdadeira
ou falsa, é verdadeira em certos casos e falsa em deter-
minados outros, a não ser que seja «sempre verdadeira»
ou «sempre falsa». Voltando ao nosso exemplo, quando
dizemos que A é, em todas os casos, seguido por B,
queremos com isto dizer que, independentemente do
que x possa ser, se x é um A, então é seguido por um B;
estaremos assim a afirmar que uma determinada função
proposicional é «sempre verdadeira».
A interpretação de frases que envolvam palavras
ou expressões como «todos/ as», «todo/ a e qualquer»,
«um/ a », «O/ a », «alguns/ algumas» exige funções pro-
posicionais. Podemos explicar o modo como as funções
proposicionais ocorrem por meio de duas das palavras
mencionadas, a saber, «todos/ as» e «alguns/ algumas».
Na última análise, há apenas duas coisas que podem
ser feitas com uma função proposicional: uma, afirmar
que a função proposicional é verdadeira em todos os casos;
outra, afirmar que é verdadeira em pelo menos um caso,
ou em alguns casos (formulação que utilizaremos dora-
vante, presumindo que não tem que haver uma implica-

231
ção necessária de pluralidade de casos). Todos os restantes
usos de funções proposicionais podem ser reduzidos a
estes dois. Quando d izemos que uma função proposi-
cional é verdadeira «em todos os casos», ou «sempre»
(como também diremos, sem qualquer sugestão temporal),
queremos com isto dizer que todos os seus valores são ver-
dadeiros. Se «tP X » for a função, então tP a será verdadeira,
independentemente de como a tenha sido escolhida. Por
exemplo, «Se a é um ser humano, então a é mortal» é ver-
dadeira, quer a seja um ser humano, quer não; de facto,
qualquer proposição desta forma é verdadeira. Assim, a
função proposicional «Se x é um ser humano, então x é
mortal» é «sempre verdadeira», ou «verdadeira em todos
os casos». Ou, para fornecer outro exemplo, a frase «não
existem unicórnios» é idêntica à frase «a função propo-
sicional 'x não é um unicórnio' é verdadeira em todos os
caSOS». As asserções que apresentámos no capítulo ante-
rior sobre proposições, e.g. «'p ou q' implica 'q ou p' »,
são, na realidade, asserções de que determinadas funções
proposicionais são verdadeiras em todos os casos. Não
afirmamos o princípio supra, por exemplo, como sendo
verdadeiro apenas deste ou daquele p ou q particulares,
mas como sendo verdadeiro de qualquer p ou q em rela-
ção aos quais o princípio possa ser afirmado significati-
vamente. A condição de uma função ser significativa para
um dado argumento é idêntica à condição de que terá um
valor para esse argumento, seja ele verdadeiro ou falso .
O estudo das condições de significado pertence à doutrina
dos tipos, pela qual não avançaremos para lá do esboço
fornecido no capítulo anterior.

232
Não só os princípios da dedução, como todas as pro-
posições primitivas da lógica, consistem em asserções
de que determinadas funções proposicionais são sempre
verdadeiras. Se assim não fosse, teriam por força que
mencionar coisas particulares ou conceitos - Sócrates, ou
vermelhidão, ou leste, ou oeste, ou fosse o que fosse -
e, muito claramente, não é da província da lógica fazer
asserções que sejam verdadeiras a respeito de uma deter-
minada coisa ou conceito e não a respeito de outra. Faz
parte da definição de lógica (embora não esgote a defini-
ção) que todas as suas proposições sejam completamente
gerais, i.e. todas consistem na asserção de uma função
proposicional que não contém termos constantes e é
sempre verdadeira. No último capítulo, voltaremos a dis-
cutir funções proposicionais que não contêm termos cons-
tantes. Por ora, prosseguiremos para a outra coisa que
se faz com uma função proposicional, a saber, a asserção
de que é «por vezes verdadeira», i.e. verdadeira em pelo
menos um caso.
Quando dizemos «existem homens», isto significa que
a função proposicional « X é um homem» é por vezes ver-
dadeira. Quando dizemos «alguns homens são gregos», tal
significa que a função proposicional «X é um homem e um
grego» é por vezes verdadeira. Quando dizemos «ainda
existem canibais em África», isto significa que a função
proposicional « X é um canibal actualmente em África» é
por vezes verdadeira, i.e. é verdadeira para alguns valores
de x. Dizer «existem pelo menos n indivíduos no mundo»
é dizer que a função proposicional «a é uma classe de
indivíduos e um membro do número cardinal n » é por
vezes verdadeira, ou, dito de outro modo, é verdadeira

233
para determinados valores de a. Esta forma de expressão
é mais conveniente quando se torna necessário indicar
qual a variável constituinte assumida como argumento
para a nossa função proposicional. Por exemplo, a fun-
ção proposicional supra, que podemos abreviar para
«a é uma classe de n indivíduos», contém duas variáveis-
a e n. Na linguagem das funções proposicionais, o axioma
do infinito é: «a função proposicional 'se n é um número
indutivo, então é verdadeiro para alguns valores de a que
a é uma classe de n indivíduos' é verdadeira para todos os
valores possíveis de n». Temos, aqui, uma função subordi-
nada - «a é uma classe de n indivíduos» - que se diz ser,
com respeito a a, por vezes verdadeira; e a-asserção de que
isto acontece se n é um número indutivo diz-se ser, com
respeito a n, sempre verdadeira.
A afirmação de que uma função <P x é sempre verda-
deira é a neg;;tção da afirmação de que não-fP x é por vezes
verdadeira, e a afirmação de que <P x é por vezes verda-
deira é a negação da afirmação de que não-<P x é sempre
verdadeira. Assim, a afirmação «todos os homens são
mortais» é a negação da afirmação de que a função «X é
um homem imortal» é por vezes verdadeira. E a afirma-
ção «existem unicórnios» é a negação da afirmação de que
a função «X não é um unicórnio» é sempre verdadeira 37•
Dizemos que <P x é «jamais verdadeira» ou «sempre falsa»
se não-<P x é sempre verdadeira. Podemos, se assim o
quisermos, assumir um dos termos do par «sempre»/
«por vezes» como ideia primitiva, e definir o outro por

37
O método de dedução é fornecido em Principia Mathema-
tica, vol. I *9.

234
meio do termo escolhido e da negação. Deste modo, se
escolhermos «por vezes» para nossa ideia primitiva,
podemos definir: «' fP x é sempre verdadeira' quererá dizer
'é falso que não-fPx seja por vezes verdadeira' » 38 • Toda-
via, por razões que se prendem com a teoria dos tipos,
tudo indica que seja mais correcto assumir tanto «sem-
pre)) como «por vezes)) como ideias primitivas, e definir
por meio delas a negação das proposições nas quais ocor-
rem. Quer isto dizer, assumindo que definimos já (ou que
adoptámos como ideia primitiva) a negação de proposi-
ções do tipo ao qual x pertence, definiremos: «a negação
de 'sempre fP x' é 'por vezes não-fP x'; e a negação de 'por
vezes fP x' é 'sempre não-fP x' )). Utilizando um método
análogo, podemos redefinir a disjunção, e as outras fun-
ções de verdade, enquanto aplicáveis a proposições que
contenham variáveis aparentes, em termos das definições
e ideias primitivas a que recorremos para proposições que
não contenham variáveis aparentes. Proposições que não
contenham variáveis aparentes designam-se por «propo-
sições elementares)). Partindo destas, podemos avançar,
passo a passo, utilizando métodos como os que acabam
de ser indicados, para a teoria das funções de verdade
enquanto aplicáveis a proposições que contenham uma,
duas, três( ... variáveis, ou qualquer número de variáveis
até n, em que n é um qualquer número finito estipulado
à partida.

38 Por razões linguísticas, para evitar sugerir quer o plural


quer o singular, é amiúde conveniente dizer «qJ x nem· sempre
é falsa» em vez de dizer <<por vezes qJ X» ou «qJ x é por vezes
verdadeira>>.

235
As formas que a lógica formal tradicional encara como
sendo as mais simples estão, na verdade, longe de o serem,
e todas elas envolvem a asserção de todos os valores, ou
de alguns valores, de uma função proposicional composta.
Considere-se, para começar, «todo oS é P». Determinare-
mos que S é definida por uma função proposicional ~ x, e
P por uma função proposicional 'lfX. E.g., seS for homens,
~x será « X é um ser humano»; se P for mortais, 'lfX será «há
uma altura em que x morre». Assim, «todo oS é P» quer
dizer: «' ~ x implica 'lfX' é sempre verdadeira». Deve assi-
nalar-se que «todo o Sé P » não se aplica apenas aos termos
que são efectivamente S; o que é dito aplica-se também
a termos que não são S. Imagine-se que deparamos com
um x que desconhecemos se é ou não um S; ainda assim,
a nossa afirmação «todo o S é P» diz-nos algo sobre esse
x, a saber, que se x for um S, então x é um P. E isto é tão
rigorosamente verdadeiro quando x não é um S como
quando x é um S. Se não fosse igualmente verdadeiro
em ambos os casos, a reductio ad absurdum não seria um
método válido; isto porque a essência deste método con-
siste em utilizar implicações em casos em que (como vem
a verificar-se depois) a hipótese é falsa. Podemos pôr a
questão de outro modo. Para compreender «todo o S
é P », não é necessário ser capaz de enumerar os termos
que são S; desde que saibamos o que se pretende dizer
com ser um S e o que se pretende dizer com ser um P,
podemos compreender cabalmente o que está na realidade
a afirmar-se em «todo oS é P », independentemente de
quão diminuto seja o nosso conhecimento relativamente
a exemplificações concretas de qualquer deles. Isto mos-
tra que, na afirmação «todo oS é P», não são relevantes

236
apenas os termos que são efectivamente S, mas sim todos
os termos a respeito dos quais a suposição de que são S
é significativa, i.e. todos os termos que são S, juntamente
com todos os termos que não são S - i.e. a totalidade do
«tipo» lógico apropriado. O que se aplica a afirmações
sobre todos/as aplica-se também a afirmações sobre alguns/
/algumas. «Existem homens», por exemplo, significa «X é
um ser humano» é verdadeiro para alguns valores de x.
Aqui, todos os valores de x (i.e. todos os valores para
os quais «X é um ser humano» é significativa, indepen-
dentemente de ser verdadeira ou falsa) são relevantes,
e não só aqueles que são, efectivamente, humanos. (Isto
toma-se evidente se considerarmos o modo como poderia
demonstrar-se a falsidade de uma afirmação deste tipo.)
Toda e qualquer asserção sobre «todos/ as» ou «alguns/
I algumas» envolve, pois, não só os argumentos que
tomam uma determinada função verdadeira, mas todos
os que a tomam significativa, i.e. todos aqueles para os
quais a função tem realmente um valor, seja este verda-
deiro ou falso.
Podemos prosseguir agora com a nossa interpretação
das formas tradicionais da lógica formal antiga. Parti-
remos do princípio de que S representa os termos x para
os quais l/J x é verdadeira, e P os termos para os quais lj!X
é verdadeira. (Como teremos ocasião de ver num dos
capítulos seguintes, todas as classes são derivadas desta
maneira, a partir de funções proposicionais.) Assim:
«Todo oS é P» significa «'l/Jx implica ljlx' é sempre
verdadeira».
«Algum S é P» significa «' f/J x e lj!X' é por vezes
verdadeira».

237
«Nenhum Sé P» significa «'l/J x implica não- 'lfX' é sem-
pre verdadeira».
«Algum S não é P » significa «' l/J x e não- 'lfX' é por
vezes verdadeira».

Deverá observar-se que as funções proposicionais aqui


afirmadas, para todos ou para alguns valores não são l/J x
e 'lfX, elas mesmas, mas sim funções de verdade de l/J x e
de 'lfX para o mesmo argumento x. A maneira mais fácil
de conceber o que se pretende é começar não por l/J x e
'lfX em geral, mas por l/J a e 'lfa, em que a é uma (alguma)
constante. Suponha que estamos a examinar «OS homens
são mortais»: Começaremos então por:

«Se Sócrates é um ser humano, Sócrates é mortal»,

posto o que consideraremos «Sócrates» como sendo


substituído por uma variável x onde quer que «Sócrates»
ocorra. O objectivo a assegurar é que, muito embora x
continue a ser uma variável, sem qualquer valor definido,
ainda assim terá o mesmo valor em «l/J X» que tem em
« 'lfX» quando afirmamos que «l/J x implica 'lfX» é sempre
verdadeira. Isto requer que comecemos com uma função
cujos valores sejam tais como «l/J a implica 'lfa » , em vez
de começarmos com duas funções separadas l/J x e 'lfX .
Isto porque, se começarmos com duas funções separadas,
nunca podemos garantir que o x, enquanto permanecer
indeterminado, terá o mesmo valor em ambas.
Por uma questão de economia, dizemos «l/J x implica
sempre 'lfX» quando queremos dizer que «l/J x implica
'lfX» é sempre verdadeira. As proposições da forma «l/J x

238
implica sempre 'lfX» designam-se por «implicações for-
mais»; utiliza-se, igualmente, esta designação em casos
em que existam várias variáveis.
As definições supra mostram como propo!?ições do
tipo «todo o S é P» estão muito longe de serem as for-
mas simples, com as quais a lógica tradicional principia.
É típico da falta de análise envolvida que a lógica tradi-
cional trate «todo o S é P» como uma proposição de forma
idêntica à da proposição «X é P» - e.g., trata «todos os
homens são mortais» como sendo da mesma forma que
«Sócrates é mortal». Como acabámos de ver, a primeira
é uma proposição da forma «f/> x implica sempre 'lfX», ao
passo que a segunda é da forma «'lfX». A separação enfá-
tica destas duas formas, efectuada por Peano e por Frege,
constituiu um avanço deveras vital na lógica simbólica.
Constatar-se-á que «todo o S é P» e «nenhum S é P»
não são realmente diferentes quanto à forma, excepto
pela substituição de não- 'lfX por 'lfX, e que o mesmo se
aplica a «algum Sé P» e «algum S não é P». Deverá tam-
bém notar-se que as regras tradicionais de conversão são
imperfeitas, se adoptarmos a perspectiva - a única tecni-
camente tolerável - de que proposições como «todo o S é
P» não envolvem a «existência» de S, i.e. não exigem que
tenha que haver termos que sejam S. As definições supra
resultam em que, se f/> x é sempre falso, i.e. se não houver
S, então «todo o S é P>> e «nenhum S é P>> serão ambas
verdadeiras, independentemente do que P possa ser. Isto
porque, segundo a definição dada no capítulo anterior,
«f/> x implica 'lfX» significa «não-f/> x ou 'lfX>>, que é sempre
verdadeira se não-f/> x é sempre verdadeira. Num primeiro
momento, este resultado pode levar o leitor a desejar defi-

239
nições diferentes, mas um pouco de experiência prática
depressa nos mostra que quaisquer definições diferentes
seriam inconvenientes e esconderiam ideias importantes.
A proposição «i/J x implica sempre '1/X e f/J x é por vezes
verdadeira» é, essencialmente, compósita, e seria deve-
ras esquisito fornecê-la como definição de «todo oS é P»,
na medida em que, se o fizéssemos, não teríamos mais
nenhuma linguagem para «f/J x implica sempre 'lfX», pro-
posição esta que é necessária numa proporção de cem
vezes para uma, quando comparada com aquela. Toda-
via, com as nossas definições, «todo o S é P» não implica
«algum Sé P », uma vez que a primeira permite a não
existência de S e a segunda não; assim, a conversão per
accidens torna-se inválida, e alguns modos do silogismo
são falaciosos, e.g. Darapti: «todo o M é S, todo o M é P,
logo existe pelo menos um S que é P», que falha se não
existir nenhum M .
A noção de «existência» assume várias formas, uma
das quais nos ocupará no próximo capítulo; porém, a
forma fundamental é a imediatamente derivada da noção
de «por vezes verdadeira>>. Dizemos que um argumento a
«satisfaz>> a função f/J x se f/J a é verdadeira; este sentido é o
mesmo em que se diz que as raízes de uma equação satis-
fazem a equação. Agora, se f/J x é por vezes verdadeira,
podemos dizer que há x para os quais ela é verdadeira,
ou podemos dizer «existem argumentos que satisfazem
f/J X >>. Este é o significado fundamental da palavra «exis-
tência>>. Os outros significados são, ou derivados deste,
ou materializações de mera confusão de pensamento.
Podemos dizer, correctamente, «existem homens>>, signi-
ficando isto que « X é um homem>> é por vezes verdadeira.

240
No entanto, se fizermos um pseudo-silogismo - «Existem
homens, Sócrates é um homem, logo Sócrates existe» -
estamos a dizer uma coisa desprovida de sentido, uma
vez que «Sócrates» não é, como «homens», simplesmente
um argumento indeterminado para uma função proposi-
cional dada. A falácia é estritamente análoga à do argu-
mento: «OS homens são numerosos, Sócrates é um homem,
logo Sócrates é numeroso». Neste caso, é evidente que a
conclusão não faz qualquer sentido, mas, no caso da exis-
tência, não temos esta evidência, por razões que se apre-
sentarão mais detalhadamente no próximo capítulo. De
momento, limitemo-nos apenas a assinalar o facto de que,
embora seja correcto dizer «existem homens», é incorrecto,
ou melhor, é desprovido de sentido atribuir existência a
um dado x particular que, por acaso, é homem. Em geral,
«existem termos que satisfazem tP X» significa «tP x é por
vezes verdadeira»; mas «a existe» (em que a é um termo
que satisfaz tP x) mais não é do que um mero ruído, ou
mancha, desprovido de significado. Constatar-se-á que,
pelo facto de termos em mente esta simples falácia, pode-
mos resolver muitos puzzles filosóficos antigos que dizem
respeito ao sentido da existência.
Um outro conjunto de noções face às quais a filo-
sofia se tem deixado afundar em confusões sem solução
possível em virtude de uma separação insuficiente entre
proposições e funções proposicionais são as noções de
<<modalidade»: n ecessário/ a, possível, e impossível. (Por
vezes, utilizam-se contingente ou assertórico em vez de
possível.) A visão tradicional era a de que, entre as propo-
sições verdadeiras, algumas eram necessárias, enquanto
que outras eram meramente contingentes ou assertóricas,

241
ao passo que entre as proposições falsas, algumas eram
impossíveis, a saber, aquelas cujas contraditórias eram
necessárias, enquanto outras eram proposições que ape-
nas acontecia não serem verdadeiras. No entanto, ·em boa
verdade, nunca houve qualquer descrição clara relativa-
mente ao que a concepção de necessidade acrescentava à
noção de verdade. No caso das funções proposicionais, a
divisão tripartida é óbvia. Se «t/J X» é um valor indetermi-
nado de uma determinada função proposicional, é neces-
sária se a função é sempre verdadeira, possível se a função
é por vezes verdadeira, e impossível se nunca é verdadeira.
Este género de situação surge em relação à probabilidade,
por exemplo. Imagine que uma bola x é tirada de um
saco que contém um determinado número de bolas: se
todas as bolas forem brancas, «X é branca» é necessária; se
algumas das bolas forem brancas, é possível; se nenhuma
for branca, é impossível. Neste caso, tudo o que se sabe
sol:>re x é que x satisfaz uma determinada função propo-
sicional, a saber, «X era uma bola que estava dentro do
saco». Trata-se de uma situação habitual em problemas
de probabilidade e comum na vida prática - e.g. quando
aparece uma pessoa sobre quem nada sabemos, excepto
que traz uma carta de apresentação de um nosso amigo.
Em todos os casos deste género, bem como no que con-
cerne à modalidade em geral, a função proposicional é
relevante. Para raciocinar claramente, em muitas e muito
diversas orientações, o hábito de manter funções propo-
sicionais rigorosamente separadas de proposições é da
maior importância, e o facto de não o ter feito no passado
tem sido um infortúnio para a filosofia.

242
Capítulo XVI

DESCRIÇÕES

No capítulo anterior, ocupámo-nos das palavras todo/


a e algum/a; no presente capítulo, examinaremos a pala-
vra o/a (singular) e, no capítulo seguinte, examinaremos a
palavra os/as (plural). Pode parecer excessivo dedicar dois
capítulos a uma palavra; porém, para o filosófico mate-
mático, trata-se de uma palavra de grande importância:
como o Gramático de Browning face ao enclítico ÕE, eu
daria a doutrina desta palavra se estivesse «morto da
cintura para baixo» e não apenas numa prisão.
Tivemos já ocasião de fazer referência a «funções des-
critivas», i.e. expressões como «O pai de X» ou «O seno de
x~~. Estas expressões serão definidas começando primeiro
por definir «descrições».
Uma «descrição» pode ser de dois tipos: definida ou
indefinida (ou ambígua). Uma definição indefinida é uma
expressão da forma «Um tal e tal», e uma descrição defi-
nida é uma expressão da forma «O tal e tal». Comecemos
pela primeira.
«Quem é que encontrou?>> «Encontrei um homem.>>
«Trata-se de uma descrição deveras indefinida». Não esta-
mos, portanto, a desviar-nos do uso na nossa terminolo-
gia. A nossa pergunta é: o que afirmo eu, de facto, quando
afirmo «encontrei um homem»? Partamos do princípio,
por ora, de que a minha asserção é verdadeira, e que, na
realidade, encontrei Jones. É por demais evidente que

243
o que eu afirmo não é «Encontrei Jones». Poderia dizer
«Encontrei um homem, mas esse homem não era Jones»;
neste caso, embora minta, não me contradigo, coisa que
acontece se, quando digo que encontrei um homem,
quero realmente dizer que encontrei Jones. É também por
demais evidente que a pessoa com quem estou a falar
pode compreender o que eu digo, mesmo que se trate
de um estranho e que nunca tenha ouvido falar de Jones.
No entanto, podemos ir mais longe: na minha afir-
mação, não só não entra Jones, como não entra nenhum
homem concreto. Tal torna-se evidente quando a afir-
mação é falsa, uma vez que, sendo esse o caso, não temos
mais razões para que fosse suposto que Jones entrasse na
proposição do que para qualquer outra pessoa. Efectiva-
mente, a afirmação continuaria a ser significativa, apesar
de não poder, de modo algum, ser verdadeira, mesmo
dando-se o caso de não existirem, de todo, homens.
«Encontrei um unicórnio» ou «Encontrei uma serpente
marinha» é uma asserção perfeitamente significante,
presumindo que sabemos o que seria ser um unicórnio
ou uma serpente marinha, i.e. qual a definição destes
monstros míticos. Assim, é somente aquilo a que pode-
mos chamar o conceito que entra na proposição. No caso
de «Unicórnio», por exemplo, há apenas o conceito: não
existe, algures no meio das sombras, algo irreal a que
possamos chamar «Um unicórnio». Assim sendo, uma vez
que é significativo (embora falso) dizer «Encontrei um
unicórnio», é evidente que esta proposição, correctamente
analisada, não contém, nos seus constituintes, «Um uni-
córnio», embora contenha o conceito «unicórnio».

244
A questão da «irrealidade», com que nos confron-
tamos neste ponto, é uma questão muito importante.
Deixando-se levar pela gramática, a grande maioria dos
lógicos que abordaram esta questão fizeram-no segundo
linhas erradas. Encararam a forma gramatical como sendo,
para efeitos de análise, um guia mais seguro do que na
verdade é. E não tiveram consciência de quais as dife-ren-
ças que, na forma gramatical, são importantes. Tradicio-
nalmente, «Encontrei Jones» e «Encontrei um homem»
contariam como proposições da mesma forma, mas, em
bom rigor, são de formas bastante diferentes: a primeira
nomeia uma pessoa concreta- Jones; a segunda, por seu
turno, envolve uma função proposicional, e, quando expli-
citada, transforma-se em: «a função 'encontrei x e x é um
ser humano' é por vezes verdadeira». (Deve recordar-se
que adoptámos a convenção de utilizar «por vezes» sem
que esta expressão implique mais do que uma vez.) Esta
proposição não é, obviamente, da forma «encontrei X»,
que dá conta da existência da proposição «encontrei um
unicórnio», não obstante o facto de não haver nenhuma
coisa que seja «Um unicórnio».
Na ausência do aparato das funções proposicionais,
houve muitos lógicos que foram conduzidos à conclu-
são de que há objectos irreais. Meinong 39, entre outros,
defende que podemos falar sobre «a montanha de ouro»,
«O quadrado redondo», e afins; podemos construir pro-
posições verdadeiras das quais estes são sujeitos; donde
se segue que terão tido algum tipo de ser lógico, uma
vez que, de outro modo, as proposições em que ocor-

39 Untersuchungen zur Gegenstandstheorie und Psyclwlogie, 1904.

245
rem seriam desprovidas de significado. Em tais teorias,
parece-me, há uma incapacidade no que diz respeito
àquele tipo de intuição para a realidade que deve ser pre-
servado mesmo nos estudos mais abstractos. A lógica,
sustento-o, não deve admitir um unicórnio mais do que
o pode admitir a zoologia; isto porque a lógica diz tão
genuinamente respeito ao mundo real como a zoologia,
embora se interesse pelas características mais abstractas
e gerais desse mundo. Dizer que os unicórnios têm uma
existência na heráldica, ou na literatura, ou na imagi-
nação, é uma evasão verdadeiramente lamentável e soez.
O que existe na heráldica não é um animal, de carne e
osso, que se movimenta e respira de sua livre iniciativa.
O que existe é uma imagem, ou uma descrição verbal.
De igual modo, defender que Hamlet, por exemplo, existe
no seu próprio mundo, a saber, no mundo da imagina-
ção de Shakespeare, tão genuinamente quanto (digamos)
Napoleão existiu no mundo comum, é estar a afirmar uma
coisa deliberadamente confusa, ou, em alternativa, con-
fusa a ponto de ser tão-só remotamente credível. Existe
apenas um mundo, o mundo «real»: a imaginação de
Shakespeare faz parte desse mundo, e o que Shakespeare
pensou ao escrever Hamlet é real. Da mesma maneira
que são reais os pensamentos que temos ao ler a peça.
Todavia, é da essência intrínseca da ficção que apenas os
pensamentos, sentimentos, etc., em Shakespeare e nos
leitores de Shakespeare, sejam reais, e que não haja, a
complementá-los, um Hamlet objectivo. Mesmo que se
tenha em consideração todos os sentimentos provocados
por Napoleão em escritores e leitores de história, não se
chegou a beliscar o homem concreto; mas, no caso de

246
Hamlet, chegou-se efectivamente ao fim dele. Se ninguém
pensasse em Hamlet, nada restaria dele; se ninguém
tivesse pensado em Napoleão, ele não tardaria a asse-
gurar que alguém o fizesse. O sentido de realidade é vital
na lógica, e quem quer que faça malabarismos com ele,
fazendo crer que Hamlet tem outro tipo de realidade, está
a prestar um péssimo serviço ao pensamento. Um sentido
de realidade robusto é deveras necessário para o enqua-
dramento de uma análise correcta de proposições acerca
de unicórnios, montanhas de ouro, quadrados redondos e
outros pseudo-objectos afins.
Em obediência a esta intuição de realidade, insistire-
mos em que, na análise de proposições, nada «irreal» seja
admitido. Mas se, ao fim e ao cabo, não há nada irreal,
como, poder-se-á perguntar, poderíamos nós admitir algo
irreal? A resposta é a seguinte: quando se lida com pro-
posiçõ.e s, lida-se, em primeiro lugar, com símbolos, e se
atribuímos significado a grupos de símbolos que não têm
significado, então caímos no erro de admitir irrealidades
- no único sentido em que tal é possível, a saber, no sen-
tido de objectos descritos. Na proposição «Encontrei um
unicórnio», o conjunto destas três palavras constitui Uma
proposição significativa, e a palavra «unicórnio», por si só,
é significativa, na mesmíssima acepção em que a palavra
«homem>> o é. Todavia, as duas palavras «um unicórnio>>
não constituem um grupo subordinado que tenha signi-
ficado próprio. Assim, se atribuirmos, falsamente, signi-
ficado a estas duas palavras, deparar-nos-emos com «um
unicórnio>>, e com o problema de explicar como pode
acontecer tal coisa num mundo em que não existem uni-
córnios. «Um unicórnio>> é uma descrição indefinida que

247
não descreve coisa alguma. Não é uma descrição indefi-
nida que descreve uma coisa irreal. Uma proposição como
«X é irreal» só tem significado quando «X» é uma descri-
ção, definida ou indefinida; nesse caso, a proposição será
verdadeira se «X» é uma descrição que não descreve coisa
alguma. Todavia, quer a descrição «X» descreva alguma
coisa, quer descreva nada, não é, seja qual for o caso,
um constituinte da proposição na qual ocorre; da mesma
maneira que «um unicórnio», como acabámos de ver, não
é um grupo subordinado que possua significado próprio.
Tudo isto resulta do facto de, quando «X» é uma descrição,
«X é irreal» ou «X não existe» não é desprovida de sentido,
sendo sempre significativa e, por vezes, verdadeira.
Podemos passar agora à definição geral do signifi-
cado de proposições que contenham descrições ambíguas.
Suponha que pretendemos fazer uma afirmação sobre
«um tal e tal», em que «tais e tais» são os objectos que têm
uma determinada propriedade t/J, i.e. todos os objectos
x para os quais a função proposicional t/Jx é verdadeira.
(E.g. se considerarmos «Um homem» como a nossa exem-
plificação de «um tal e tal», t/Jx será «X é um homem».)
Imagine-se agora que pretendíamos afirmar a proprie-
dade 'lf de «um tal e tal», i.e. pretendemos afirmar que
«um tal e tal» tem aquela propriedade que x tem quando
'lfX é verdadeira. (E.g. no caso de «encontrei um homem»,
'lfX será «encontrei X».) Agora, a proposição de que «um
tal e tal» tem a propriedade '1/ não é uma proposição da
forma «'lfX» . Se fosse, «Um tal e tal» teria de ser idêntica
a x para um x adequado; e embora (em certo sentido) isto
possa ser verdadeiro em alguns casos, não é certamente

248
verdadeiro em casos como o de «um unicórnio>>. É apenas
este facto - o de que a afirmação de que um tal e tal tem
a propriedade lfl não é da forma lf!X - que torna possí-
vel que «Um tal e tal» seja, num certo sentido definível,
«irreal>>. A definição é como se segue:

A afirmação de que «um objecto que tenha a proprie-


dade t/J tem a propriedade lfl»

significa:

«A asserção conjunta de f/Jx e lf!X nem sempre é


falsa».

No que à lógica diz respeito, esta é a mesma proposição


que poderia expressar-se por «alguns t/J são lfl»; porém,
do ponto de vista retórico, existe uma diferença, na
medida em que, no primeiro caso, há uma sugestão de
singularidade, ao passo que, no segundo, há uma suges-
tão de pluralidade. No entanto, tal não constitui o aspecto
importante. O aspecto importante é o de, quando cor-
rectamente analisadas, se constatar que proposições
verbalmente sobre «Um tal e tal>> não contêm qualquer
constituinte que seja representado por esta expressão.
E é por esta razão que as proposições deste tipo podem
ser significativas mesmo quando não há coisa nenhuma
que seja um tal e tal.
A definição de existência, enquanto aplicada a descri-
ções ambíguas, resulta do que dissemos no final do capítulo
precedente. Dizemos que «existem homens» ou «existe um
homem» se a função proposicional « X é um ser humano»

249
é por vezes verdadeira; e, em geral, «um tal e tal» existe
se « X é tal e tal» é por vezes verdadeira. Podemos expres-
sá-lo numa outra linguagem. A proposição «Sócrates é um
homem» é sem dúvida equivalente a «Sócrates é um ser
humano», mas não se trata exactamente da mesmíssima
proposição. O é de «Sócrates é um ser humano» expressa
a relação entre sujeito e predicado; o é de «Sócrates é um
homem» expressa identidade. É um infortúnio para a
raça humana o ter escolhido utilizar a mesma palavra «é»
para estas duas ideias completamente diferentes - infor-
túnio este que, claro está, uma linguagem lógica simbólica
rectifica. A identidade em «Sócrates é um homem» é a iden-
tidade entre um objecto nomeado (aceitando «Sócrates»
como um nome, sujeito a qualificações que explicaremos
mais adiante) e um objecto descrito de maneira ambígua.
Um objecto descrito de maneira ambígua virá a <<existir»
quando pelo menos uma tal proposição for verdadeira,
i.e. quando há pelo menos uma proposição da forma
<<X é um tal e tal» em que <<X » é um nome. É característico
das descrições ambíguas (por contraste com as definidas)
que possa existir um número indeterminado de propo-
sições verdadeiras da forma supra indicada - Sócrates é
um homem, Platão é um homem, etc .. Assim, <<existe um
homem» segue-se de Sócrates, ou Platão, ou de uma outra
pessoa qualquer. Por outro lado, no que concerne às des-
crições definidas, a forma da proposição correspondente,
a saber, <<X é o tal e tal» (em que x é um nome), só pode
ser verdadeira para, no máximo, um valor de x. O que nos
leva à questão das descrições definidas, que serão defini-
das de um modo análogo ao utilizado para as descrições
ambíguas, embora um tanto mais complexo.

250
Eis-nos agora chegados à questão principal do pre-
sente capítulo: a definição da palavra o/a. Há um aspecto
extremamente importante na definição de «um tal e tal>>
que se aplica igualmente à de «O tal e tal>>; a definição
que procuramos não é uma definição da expressão em
si mesma, tomada isoladamente, mas sim uma definição
de proposições em que essa expressão ocorre. No caso de
«Um tal e tal>>, isto é por demais evidente: ninguém poderá
supor que «Um homem>> seja um objecto definido, que
pudesse ser definido à custa de si próprio. Sócrates é um
homem, Platão é um homem, Aristóteles é um homem,
mas não podemos inferir que «um homem>> significa o
mesmo que «Sócrates>>significa, e também o mesmo que
«Platão>> significa, e também o mesmo que «Aristóteles>>
significa, uma vez que estes três nomes têm significados
diferentes. Não obstante, quando tivermos enumerado
todos os homens existentes no mundo, não restará mais
nada do qual se possa dizer: «Isto é um homem, e não só
isso, como é o 'um homem', a entidade que corporiza a
quintessência do que é nem mais nem menos do que um
homem, sem ser uma pessoa em particular>>. É por demais
evidente que o que quer que seja que existe no mundo é
definido: se se trata de um homem, é um homem definido
e não outro qualquer. Assim, não pode existir no mundo,
para que se possa descobri-la, uma entidade como «um
homem >>, por contraposição com um homem especí-
fico. E, de acordo com isto, é natural que não definamos
«um homem>>, em si, mas apenas as proposições em que
ocorre.
No caso de «O tal e tal>>, constata-se exactamente o
mesmo, embora seja, à primeira vista, ligeiramente menos

251
evidente. Podemos demonstrar que isto tem que ser o
caso, recorrendo para este efeito a urna análise da dife-
rença entre um nome e urna descrição definida. Considere a
proposição «Scott é o autor de Waverley». Ternos aqui um
nome- «Scott» - e urna descrição- «O autor de Waverley»,
que se afirma aplicarem-se à mesma pessoa. Podemos
explicar a distinção entre um nome e todos os restantes
símbolos da seguinte maneira:
Um nome é um símbolo simples cujo significado
é urna coisa que só pode ocorrer corno sujeito, i.e. urna
coisa do género da que, no Capítulo XIII, definimos corno
um «indivíduo» ou um «particular». E um símbolo «Sim-
ples» é um símbolo que não tem partes que sejam sím-
bolos. Logo, <<Scott» é um símbolo simples, na medida
em que, embora tenha partes (a saber, letras discretas),
essas partes não são símbolos. Por outro lado, <<O autor de
Waverley» não é um símbolo simples, dado que as pala-
vras separadas que compõem a expressão são partes que
são símbolos. Se, corno poderá acontecer, o que quer que
pareça ser um <<indivíduo» puder, na realidade, ser ainda
analisado, teremos de nos contentar com o que podemos
designar por <<indivíduos relativos», termos que, ao longo
do contexto em causa, nunca são analisados e nunca ocor-
rem senão corno sujeitos. E, nesse caso, teremos, corres-
pondentemente, que nos dar por satisfeitos com <<nomes
relativos». Do ponto de vista do problema que ternos de
momento em mãos, a saber, a definição de descrições, esta
questão - de saber se se trata de nomes absolutos ou de
nomes relativos - pode ser ignorada, urna vez que diz
respeito a diferentes estádios na hierarquia dos <<tipos»,
ao passo que ternos que comparar pares corno <<Scott» e

252
«O autor de Waverley», que se aplicam ambos ao mesmo
objecto, e não levantam o problema dos tipos. Podere-
mos portanto, por ora, tratar os nomes como podendo ser
absolutos; nada do que temos a dizer depende deste pres-
suposto, mas a formulação do que temos a dizer ficará
ligeiramente abreviada se o pressupusermos.
Temos, então, duas coisas a comparar: (1) um nome,
que é um símbolo simples, que designa directamente um
indivíduo que constitui o seu significado, e que possui
este significado por direito próprio, independentemente
dos significados de todas as demais palavras; (2) uma
descrição, que consiste em várias palavras, cujos signifi-
cados se encontram estabelecidos de antemão, e a partir
dos quais resulta o que quer que possa ser considerado
como sendo o «significado» da descrição.
Uma proposição que contenha uma descrição não
é idêntica àquilo em que essa proposição se transforma
quando um nome é substituído, mesmo se o nome
nomeia o mesmo objecto que a descrição descreve. «Scott
é o autor de Waverley» é evidentemente uma proposição
diferente de «Scott é Scott»: a primeira é um facto da
história literária, a segunda é um truísmo trivial. E se
pusermos qualquer outro que não Scott no lugar de
«o autor de Waverley», a nossa proposição tornar-se-ia
falsa, e deixaria portanto de ser, sem sombra de dúvida,
a mesma proposição. Mas - poder-se-á dizer - a nossa
proposição é essencialmente da mesma forma que (diga-
mos) «Scott é Sir Walter>>, na qual é dito de dois nomes
que se aplicam à mesma pessoa. A resposta é a seguinte:
se «Scott é Sir Walter>> significa efectivamente «a pessoa
chamada 'Scott' é a pessoa chamada 'Sir Walter'>>, então

253
os nomes estão a ser utilizados como descrições: i.e. o
indivíduo, em vez de ser nomeado, está a ser descrito
como sendo a pessoa que tem aquele nome. Esta é uma
maneira em que os nomes são frequentemente utilizados
na prática e, como regra, não haverá nada na fraseologia
que mostre se estão a ser utilizados desta maneira ou se
como nomes. Quando um nome é utilizado directamente,
apenas para indicar aquilo de que estamos a falar, não faz
parte do facto afirmado, ou da falsidade, se se der o caso
de a nossa asserção ser falsa: faz parte, apenas, do simbo-
lismo através do qual expressamos o nosso pensamento.
O que queremos expressar é algo que pode (por exemplo)
ser traduzido para uma língua estrangeira; é algo para o
qual as palavras concretas constituem um veículo, mas
do qual não fazem parte. Por outro lado, quando afir-
mamos uma proposição sobre «a pessoa chamada 'Scott'»,
o nome concreto «Scott» entra naquilo que estamos a afir-
mar, e não apenas na linguagem utilizada para fazer a
asserção. A nossa proposição será agora uma proposição
diferente, se a substituirmos por «a pessoa chamada 'Sir
Walter' ». Todavia, conquanto que utilizemos os nomes
como nomes, dizermos «Scott» ou dizermos «Sir Walter» é
tão irrelevante para o que estamos a afirmar como o facto
de o dizermos em inglês ou em francês. Assim, conquanto
que os nomes sejam utilizados como nomes, «Scott é Sir
Walter» é a mesma proposição trivial que «Scott é Scott».
Com isto completamos a demonstração de que «Scott é o
autor de Waverley» não é a mesma proposição que resulta
de substituirmos um nome por «O autor de Waverley», seja
qual for o nome que possa ser substituído.

254
Quando utilizamos uma variável, falando de uma
função proposicional, digamos f/Jx, o processo de aplicar
frases gerais acerca de x a casos particulares consistirá
em substituir um nome por uma letra «X», partindo do
princípio de que f/J é uma função que possui indivíduos
para os seus argumentos. Suponha, por exemplo, que f/Jx
é «sempre verdadeira»; seja ela, digamos, a «lei da iden-
tidade>> x = x. Então, podemos substituir por «X>> qual-
quer nome que escolhamos, e obteremos uma proposição
verdadeira. Presumindo por momentos que «Sócrates>>,
«Platão >> e «Aristóteles >> são nomes (um pressuposto
deveras precipitado), podemos inferir a partir da lei da
identidade que Sócrates é Sócrates, Platão é Platão, e Aris-
tóteles é Aristóteles. Todavia, incorreríamos numa falácia
se tentássemos inferir, na ausência de mais premissas,
que o autor de Waverley é o autor de Waverley. Isto resulta
do que acabámos de demonstrar: que, se substituirmos
um nome por «O autor de Waverley>> numa proposição, a
proposição que obtemos é diferente. Quer isto dizer, apli-
cando o resultado ao nosso caso presente, que: se «X>> é
um nome, «X = X>>, não é a mesma proposição que «O autor
de Waverley é o autor de Waverley>>, independentemente
do nome que «X>> possa ser. Assim, do facto de todas as
proposições da forma «X = X>> serem verdadeiras, não
podemos inferir, sem mais, que o autor de Waverley é o
autor de Waverley. De facto, proposições da forma «O tal e
tal é o tal e tal>>nem sempre são verdadeiras: é necessário
que o tal e tal ex ista (um termo que explicaremos dentro
de momentos). É falso que o actual rei de França seja o
actual Rei de França, ou que o quadrado redondo seja
o quadrado redondo. Quando substituímos uma descrição

255
por um nome, funções proposicionais que são «sempre
verdadeiras» podem tornar-se falsas, se a descrição não
descrever coisa alguma. Deixa de haver qualquer mistério
assim que nos apercebemos (o que foi demonstrado no
parágrafo anterior) de que, quando substituímos uma
descrição, o resultado não é um valor da função proposi-
cional em questão.
Estamos agora em condições de definir proposições
em que ocorre uma descrição definida. O único aspecto
que distingue «O tal e tal» de «um tal e tal>> é a implica-
ção de unicidade. Não podemos falar de «O habitante de
Londres>> porque habitar em Londres é um atributo que
não é único. Não podemos falar sobre «O actual Rei de
França>>, porque não há nenhum; podemos todavia falar
de «O actual Rei de Inglaterra>>. Assim, as proposições
acerca de «O tal e tal>> implicam sempre as proposições
correspondentes acerca de «um tal e tal>>, com a adenda de
que não existe mais do que um tal e tal. Uma proposição
como «Scott é o autor de Waverley>> não poderia ser verda-
deira se Waverley nunca tivesse sido escrito, ou se tivesse
sido escrito por várias pessoas; o mesmo aconteceria a
qualquer outra proposição que resultasse de uma função
proposicionál x pela substituição de «O autor de Waver-
ley>> por «X>>. Podemos dizer que «O autor de Waverley>>
significa «O valor de x para o qual 'x escreveu Waverley' é
verdadeira. Assim, a proposição «O autor de Waverley era
escocês>>, por exemplo, envolve:

(1) «X escreveu Waverley>> nem sempre é falsa;


(2) «se x e y escreveram Waverley, x e y são idênticos>>
é sempre verdadeira;

256
(3) <<Se x escreveu Waverley, x era escocês» é sempre
verdadeira;

Estas três proposições, traduzidas para inglês comum,


estabelecem que:

(1) pelo menos urna pessoa escreveu Waverley;


(2) uma pessoa, no máximo, escreveu Waverley;
(3) quem quer que tenha escrito Waverley era escocês.

Todas estas três são implicadas por <<O autor de Waver-


ley era escocês». Conversarnente, as três conjuntamente
(mas não duas delas) implicam que o autor de Waverley
era escocês. Daí que estas três, juntas, possam ser consi-
deradas corno a definição do que significa a proposição <<O
autor de Waverley era escocês».
Podemos simplificar de certa maneira estas três pro-
posições. A primeira e segunda juntas são equivalentes a:
<<existe um termo c tal que 'x escreveu Waverley' é verda-
deira quando x é c, e falsa quando x não é C». Por outras
palavras, <<existe um termo c tal que 'x escreveu Waverley'
é sempre equivalente a 'x é c' ». (Duas proposições são
<<equivalentes» quando são ambas verdadeiras ou quando
são ambas falsas.) temos aqui, antes de mais, duas fun-
ções de x, << X escreveu Waverley» e <<X é C», e formamos
urna função de c ao considerarmos a equivalência destas
duas funções de x para todos os valores de x; posto isto,
avançamos para a afirmação de que a função resultante
de c é <<por vezes verdadeira», i.e. que é verdadeira para
pelo menos um valor de c. (É evidente que não pode~á ser
verdadeira para mais do que um valor de c.) Estas duas

257
condições juntas definem-se como fornecendo o signifi-
cado de «O autor de Waverley existe».
Podemos agora definir «O termo que satisfaz a função
f/Jx existe». Esta é a forma geral da qual a forma acima
mencionada é um caso particular. «Ü autor de Waverley»
é «O termo que satisfaz a função 'x escreveu Waverley' ».
E «O tal e tal» envolverá sempre uma referência a uma
(alguma) função proposicional, a saber, aquela que define
a propriedade que toma uma coisa um tal e tal. A nossa
definição é a seguinte:
«O termo que satisfaz a função f/Jx existe» significa:
«existe um termo c tal que f/Jx é sempre equivalente a
'xé c' ».
De modo a definir «O autor de Waverley era escocês»,
temos ainda que considerar a terceira das nossas três pro-
posições, a saber, «quem quer que tenha escrito Waverley
era escocês». Tal será satisfeito por meio da simples
adição de que o c em questão vem a ser escocês. Assim,
«O autor de Waverley era escocês» é:
«existe um termo c tal que (1) 'x escreveu Waverley' é
sempre equivalente a 'x é c', (2) c é escocês».
E, no caso geral: «O termo que satisfaz f/Jx satisfaz 'lfX»
é definido como significando:
«existe um termo c tal que (1) f/Jx é sempre equivalente
a ' x é é, (2) ytC é verdadeira».
Eis, pois, a definição de proposições em que ocorrem
descrições.
É possível saber muito sobre um termo descrito, e.g.
ter conhecimento de muitas proposições acerca de «O tal
e tal», sem saber, efectivamente, o que é o tal e tal, i.e.
desconhecendo qualquer proposição da forma <<X é o tal e

258
tal», em que x é um nome. Numa história de ficção poli-
cial, as proposições sobre «O homem que praticou o feito»
são acumuladas, na esperança de que, por fim, venham a
ser suficientes para demonstrar que foi A quem praticou
o feito. Podemos mesmo ir mais longe e afirmar que, em
todo o conhecimento que pode ser expresso através de
palavras - com a excepção de «isto» e «aquilo» e mais um
pequeno número de palavras cujos significados variam
em diferentes circunstâncias - não ocorrem nenhuns
nomes (em sentido estrito), mas sim que o que parecem ser
nomes são, na verdade, descrições. Poderíamos perguntar
- e a pergunta faz todo o sentido - se Homero existiu ou
não, o que não poderíamos fazer se «Homero» fosse um
nome. A proposição «O tal e tal existe» é significativa, seja
verdadeira ou falsa; porém, se a é o tal e tal (em que «a>>
é um nome), as palavras «a existe» são desprovidas de
significado. A existência só pode ser significativamente
afirmada de descrições - definidas ou indefinidas; isto
porque, se «a» é um nome, então tem que nomear alguma
coisa: o que não nomeia coisa alguma não é um nome
e, por isso, se intencionado como nome, é um símbolo
desprovido de significado, ao passo que uma descrição,
como «O actual Rei de França», deixa de poder ocorrer
significativamente não apenas em virtude de não descre-
ver coisa alguma, mas por motivo de ser um símbolo com-
plexo, cujo significado é derivado do dos seus símbolos
constituintes. E assim, quando perguntamos se Homero
existiu ou não, estamos a usar a palavra «Homero» como
uma descrição abreviada: podemos substituí-la por (diga-
mos) «O autor da Ilíada e da Odisseia». Estas mesmas obser-

259
vações aplicam-se a quase todos os usos do que se afigura
serem nomes próprios.
Quando as descrições ocorrem em proposições, é
necessário distinguir as ocorrências que podemos designar
por «primárias» das que podemos designar por «secun-
dárias». A distinção abstracta é como seguidamente se
indica. Uma descrição tem uma ocorrência «primária>>
quando a proposição na qual ocorre resulta de se substituir
a descrição por «X>> numa dada função proposicional (jJx;
uma descrição tem uma ocorrência «secundária>> quando
o resultado de se substituir a descrição por x em (jJx nos
dá apenas parte da proposição em causa. Clarifiquemos
esta distinção recorrendo a um exemplo. Considere-se
«O actual Rei de França é careca>>. Aqui «O actual Rei de
França>> tem uma ocorrência primária, e a proposição é
falsa. Todas as proposições nas quais uma descrição que
não descreve coisa alguma tem uma ocorrência primária
são falsas. Mas considere-se agora «O actual Rei de França
não é careca>>. É ambígua. Se começarmos por considerar
«X é careca>>, substituirmos «O actual Rei de França>> por

«X>>, e depois negarmos o resultado, a ocorrência de «O

actual Rei de França>> é secundária e a nossa proposição


é verdadeira; porém, se considerarmos « X não é careca>> e
substituirmos «O actual Rei de França» por «X>>, então «O
actual Rei de França>> tem uma ocorrência primária e a
proposição é falsa. A confusão entre ocorrências primárias
e ocorrências secundárias é uma fonte certa de falácias
quando há descrições envolvidas.
Em matemática, as descrições ocorrem principalmente
sob a forma de funções descritivas, i.e. «O termo que está na
relação R com y» como podemos dizer, apelando à ana-

260
logia com «O pai de y» e expressões semelhantes. Dizer
«O pai de y é rico», por exemplo, é dizer que a seguinte
função proposicional de c: «C é rico, e ' x gerou c' é sem-
pre equivalente a 'x é c' » é «por vezes verdadeira», i.e. é
verdadeira para pelo menos um valor de c. E não pode
evidentemente ser verdadeira para mais do que um valor.
A teoria das descrições, resumidamente apresentada
no presente capítulo, é da maior importância tanto em
lógica como na teoria do conhecimento. Porém, para efei-
tos de matemática, as partes mais filosóficas da teoria não
são essenciais, razão por que foram omitidas na descrição
apresentada, que se limitou aos requisitos matemáticos
mínimos.

261
Capítulo XVII

CLASSES

No presente capítulo, dedicar-nos-emos a os/as: os


habitantes de Londres, os filhos de homens ricos, e assim
por diante. Por outras palavras, ocupar-nos-emos de clas-
ses. No Capítulo II, vimos que um número cardinal se
define como uma classe de classes e, no Capítulo III, que
o número 1 se define como a classe de todas as classes
singulares, i.e. de todas as classes que têm apenas um
membro, como diríamos não fora o círculo vicioso. Claro
está que, quando o número 1 é definido como sendo a
classe de todas as classes singulares, «classes singulares»
terá que ser definida de um modo tal que não presuma
que sabemos o que significa «Um»; na verdade, estas clas-
ses são definidas de um modo muito análogo ao utili-
zado para as descrições, a saber: diz-se que uma classe
a é uma classe «unitária» se a função proposicional
«'x é uma a' é sempre equivalente a 'x é c'» (considerada
como uma função de c) nem sempre é falsa, i.e., em lin-
guagem mais comum, se existe um termo c tal que x será
um membro de a quando x é c, mas não se assim não
for. Isto dá-nos uma definição de uma classe unitária se
soubermos de antemão o que uma classe, em geral, é. Até
este momento, sempre que lidámos com aritmética, temos
tratado «classe>> como uma ideia primitiva. Todavia, que
mais não fosse pelas razões expostas no Capítulo XIII, não
podemos aceitar que «classe>> seja uma ideia primitiva.

263
Temos pois que procurar uma definição segundo as mes-
mas linhas em que obtivemos a definição de descrições,
i.e. uma definição que atribua um significado a proposi-
ções em cujas expressões verbais ou simbólicas ocorram
palavras ou símbolos que, aparentemente, representam
classes, mas que atribua um significado que elimine com-
pletamente de uma análise correcta de tais proposições
toda e qualquer menção a classes. Posto isto, estaremos
em condições de poder dizer que os símbolos para classes
são meras conveniências, que não representam objectos
chamados «classes», e que as classes são, de facto, como
descrições, ficções lógicas, ou (como dizemos) «símbolos
incompletos>>.
A teoria das classes é menos completa do que a teoria
das descrições, e há razões (que apresentaremos em traços
gerais) para encarar a definição de classes que sugerire-
mos como não sendo definitivamente satisfatória. Tudo
indica que seja necessária uma subtileza adicional; dito
isto, são esmagadoras as razões que levam a que a defini-
ção que ofereceremos seja encarada como sendo aproxima-
damente correcta e estabelecida segundo as linhas certas.
O primeiro passo é tomarmos consciência do porquê
de as classes não poderem ser consideradas como parte
da mobília fundamental do mundo. É difícil explicar rigo-
rosamente o que se pretende dizer com esta frase, mas
podemos fazer uso de uma das consequências que ela
implica para elucidar o seu significado. Se dispuséssemos
de uma linguagem simbólica completa, que possuísse uma
definição para todas as coisas definíveis, e um símbolo
indefinido para todas as coisas indefiníveis, os símbolos
indefinidos desta linguagem representariam simbolica-

264
mente o que pretendo dizer com «a mobília fundamen-
tal do mundo>> . Defendo que nenhum símbolo, quer para
«classe>> em geral, quer para classes particulares, estaria
incluído nesse aparato de símbolos indefinidos. Por outro
lado, todas as coisas particulares existentes no mundo
teriam que possuir nomes que estariam incluídos entre
os símbolos indefinidos. Podemos tentar evitar esta con-
clusão por meio da utilização de descrições. Considere-se
(digamos) «a última coisa que César viu antes de morrer>>.
Trata-se de uma descrição de um (algum) particular; pode-
mos utilizá-la (em um sentido perfeitamente legítimo)
como uma definição desse particular. Todavia, se «a>> for
um nome para o mesmo particular, uma proposição em
que «a>> ocorra não é (como vimos no capítulo anterior)
idêntica a aquilo em que esta proposição se transforma
quando substituímos «a>> por «a última coisa que César
viu antes de morrer». Se a nossa linguagem não contiver
o nome «a>>, ou qualquer outro nome para o mesmo parti-
cular, não teremos meios que nos permitam expressar a
proposição que expressámos por meio de «a>>, por contra-
posição com a que expressámos por meio da descrição.
Logo, as descrições não capacitariam uma linguagem
perfeita a dispensar nomes para todos os particulares.
A este respeito, sustentamos nós, as classes diferem dos
particulares, e não precisam de ser representadas por sím-
bolos indefinidos. A nossa primeira tarefa é apresentar as
razões que abonam em favor desta opinião.
Tivemos já ocasião de ver que as classes não podem
ser consideradas como espécies de indivíduos, devido
às contradições sobre classes que não são membros de si
próprias (explicadas no Capítulo XIII), e porque podemos

265
demonstrar que o número de classes é maior do que o
número de indivíduos.
Não podemos considerar as classes segundo um
modo puramente extensional, como meros amontoados
de conglomerações. Se tentássemos fazê-lo, depararíamos
com a impossibilidade de compreender a existência de
uma classe como a classe vazia, que não tem membros,
de todo, e que não pode portanto ser considerada um
«amontoado»; constataríamos também que seria extre-
mamente difícil compreender como pode uma classe que
tem apenas um membro não ser idêntica a esse membro.
Não pretendo afirmar, ou negar, que existam as entida-
des que aqui refiro como «amontoados». Na qualidade de
lógico matemático, não sou chamado a ter uma opinião
sobre esta matéria. Tudo o que aqui defendo é que, a exis-
tirem coisas como os amontoados, o facto é que não as
podemos identificar com as classes compostas pelos seus
constituintes.
Aproximar-nos-emos muito mais de uma teoria satis-
fatória se tentarmos identificar classes com funções pro-
posicionais. Toda e qualquer classe, como explicámos no
Capítulo II, é definida por uma (alguma) função propo-
sicional que é verdadeira dos membros da classe, e falsa
de outras coisas. Mas, se uma classe pode ser definida
por uma função proposicional, então poderá, com igual
correcção, ser definida por qualquer outra que seja ver-
dadeira nos casos em que a primeira é verdadeira, e falsa
nos casos em que a primeira é falsa. Por esta razão, a
classe não pode ser identificada com uma função proposi-
cional qualquer em vez de com uma outra - e, dada uma
função proposicional, existem sempre muitas outras fun-

266
ções proposicionais que são verdadeiras quando aquela
é verdadeira e falsas quando aquela é falsa. Quando
isto acontece, dizemos que duas funções proposicionais
são «formalmente equivalentes». Duas proposições são
«equivalentes» quando são ambas verdadeiras ou ambas
falsas; duas funções proposicionais f/>x, lfiX são «formal-
mente equivalentes» quando f/>x é sempre equivalente a
lfiX. É o facto de existirem outras funções proposicionais
equivalentes a uma função dada que faz com que seja
impossível identificar uma classe com uma função; isto
porque pretendemos que as classes sejam tais que nunca
aconteça que duas classes distintas tenham exactamente
os mesmos membros e, por esta razão, que duas funções
formalmente equivalentes determinem necessariamente a
mesma classe.
A partir do momento em que decidimos que as
classes não podem ser coisas de tipo idêntico ao dos seus
membros, que não podem ser apenas amontoados ou
agregados, e ainda que não podem ser identificadas com
funções proposicionais, torna-se muito difícil ver o que
poderão, afinal, ser as classes, se o que se pretende é que
sejam mais do que ficções simbólicas. E se conseguirmos
descobrir uma maneira de lidar com as classes enquanto
ficções simbólicas, aumentamos a segurança lógica da
nossa posição, uma vez que evitaremos a necessidade de
pressupor que existem classes sem nos sentirmos obriga-
dos a afirmar o pressuposto, contrário, de que não existem
classes. Limitamo-nos a abster-nos de ambos os pressu-
postos. Trata-se de um exemplo da navalha de Occam, a
saber, «não devem multiplicar-se entidades desnecessa-
riamente». Porém, quando nos recusamos a afirmar que

267
existem classes, não pode esperar-se que estejamos com
isso a afirmar dogmaticamente que não há classes. Somos
simplesmente agnósticos no que diz respeito à existência
de classes: como Laplace, podemos dizer <
<je n'ai pas besoin
de cette hypothese».
Apresentemos, pois, as condições que um símbolo
tem que preencher para que possa servir como classe.
Penso que se constatará que as condições seguidamente
expostas são necessárias e suficientes:
(1) Toda e qualquer função proposicional tem que
determinar uma classe, constituída pelos argumentos
para os quais a função é verdadeira. Dada qualquer pro-
posição (verdadeira ou falsa), sobre Sócrates por exemplo,
podemos imaginar Sócrates substituído por Platão, ou por
Aristóteles, ou por um gorila, ou pelo homem na lua, ou
por qualquer outro indivíduo que exista no mundo. Em
geral, algumas destas substituições originarão uma pro-
posição verdadeira e outras originarão uma proposição
falsa. A classe determinada consistirá em todas as substi-
tuições que originam uma proposição verdadeira. Claro
está que teremos ainda que decidir o que pretendemos
dizer com «todas as que, etc.». De momento, tudo o que
estamos a constatar é que uma classe é determinada por
uma função proposicional, e que toda e qualquer função
proposicional determina uma classe apropriada.
(2) Duas funções proposicionais formalmente equiva-
lentes determinam forçosamente a mesma classe, e duas
funções proposicionais que não sejam formalmente equi-
valentes determinam forçosamente classes diferentes. Isto
é, uma classe é determinada pelo conjunto dos seus mem-
bros, e duas classes diferentes não podem ter o mesmo

268
conjunto de membros. (Se uma classe é determinada por
uma função rpx, dizemos que a é um «membro» da classe
se rpa for verdadeira.)
(3) Teremos que encontrar maneira de definir não
só classes, como também classes de classes. Vimos no
Capítulo II que os números cardinais são definidos como
sendo classes de classes. A expressão comum da matemá-
tica elementar «As combinações de n coisas m num dado
instante temporal» representa uma classe de classes, a
saber, a classe de todas as classes de termos m que podem
ser seleccionados de entre os termos de uma classe de ter-
mos n. Sem um método simbólico para lidar com classes
de classes, a lógica matemática desintegrar-se-ia.
(4) Em todas as circunstâncias, é forçoso que seja des-
provido de significado (não falso) supor que uma classe é
membro de si própria ou que uma classe não é membro
de si própria. Tal segue-se da contradição que discutimos
no Capítulo XIII.
(5) Por último - e esta é a condição mais difícil de
preencher -, tem que ser possível construir proposições
acerca de todas as classes que são compostas por indiví-
duos, ou acerca de todas as classes que são compostas por
objectos de qualquer um dos «tipos» lógicos. Se assim não
fosse, perder-se-iam muitas das utilizações das classes
- por exemplo, a indução matemática. Ao definir a poste-
ridade de um termo dado, é necessário que possamos
dizer que um membro da posteridade pertence a todas
as classes hereditárias às quais o termo dado pertence, o
que exige o tipo de totalidade em questão. A razão pela
qual há uma dificuldade quanto a esta condição reside
em poder demonstrar-se que é impossível falar de todas

269
as funções proposicionais que podem ter argumentos de
um tipo dado.
Para começar, ignoraremos esta última condição e os
problemas que ela levanta. As duas primeiras condições
podem ser consideradas conjuntamente. Nelas se afirma
que haverá uma classe, nem mais nem menos, para cada
grupo de funções proposicionais formalmente equiva-
lentes; e.g. a classe dos homens será igual à dos bípedes
sem penas, ou animais racionais, ou Yahoos, ou qualquer
outra característica (não importa qual) que se preferira
para definir um ser humano. Agora, quando dizemos que
é possível que duas funções proposicionais formalmente
equivalentes não sejam idênticas, embora definam a
mesma classe, podemos demonstrar a verdade da asserção
chamando a atenção para o facto de que uma afirmação
pode ser verdadeira de uma função e falsa de outra;
e.g. «Eu acredito que todos os homens são mortais» pode
ser verdadeira, ao passo que «Eu acredito que todos os
animais racionais são mortais» pode ser falsa, uma vez que
eu acredito, falsamente, que a Fénix é um animal racional
imortal. Assim, somos levados a examinar afirmações sobre
funções, ou (mais correctamente) funções de funções .
Algumas das coisas que podem ser ditas sobre uma
função podem ser encaradas como coisas ditas sobre
a classe definida pela função; outras não. A afirmação
«todos os homens são mortais» envolve as funções «X é um
ser humano» e «X é mortal»; ou, se o preferirmos, pode-
remos dizer que envolve a classe homens e a classe mortais.
Podemos interpretar a afirmação quer de uma maneira,
quer de outra, porque o seu valor de verdade perma-
nece inalterado se substituirmos « X é um ser humano» ou

270
«X é mortal» por qualquer função formalmente equivalente.
Todavia, como acabámos de ver, não podemos encarar a
afirmação «Eu acredito que todos os homens são mortais»
como sendo uma afirmação acerca da classe determinada
por qualquer das duas funções, na medida em que o seu
valor de verdade pode ser alterado pela substituição por
uma função formalmente equivalente (que deixa a classe
inalterada). Designaremos por função «extensional» da
função fPX uma afirmação que envolva uma função fPX,
se for como «todos os homens são mortais», i.e. se o seu
valor de verdade não for alterado pela substituição por
qualquer função formalmente equivalente; e quando uma
função de uma função não for extensional, designá-la-
-emos por «intensional», tal que «Eu acredito que todos os
homens são mortais» é uma função intensional de «X é um
ser humano» ou «X é mortal>>. Temos assim que as funções
extensionais de uma função x poderão, para efeitos prá-
ticos, ser consideradas como funções da classe determi-
nada por x, o que não acontece no que diz respeito às
funções intensionais.
Deve notar~se que todas as funções específicas de fun-
ções que temos oportunidade de introduzir em lógica
matemática são extensionais. Assim, por exemplo, as duas
funções fundamentais são: « fPX é sempre verdadeira» e
« fPX é por vezes verdadeira». Cada uma delas mantém o
seu valor de verdade inalterado se fP X for substituído por
uma função formalmente equivalente. Na linguagem das
classes, se a é a classe determinada por fP X, « fP X é sem-
pre verdadeira» é equivalente a «tudo é membro de a», e
« fP X é por vezes verdadeira» é equivalente a «a tem mem-
bros» ou (melhor ainda) «a tem pelo menos um membro».

271
Considere-se, novamente, a condição (que abordámos no
capítulo anterior) para a existência de «O termo que satis-
faz f/Jx». A condição é a de que exista um termo c tal que
f/Jx seja sempre equivalente a « X é C» - que é obviamente
extensional. É equivalente ã asserção segundo a qual a
classe definida pela função f/Jx é uma classe unitária, i.e.
uma classe que tem um membro; por outras palavras,
uma classe que é um membro de 1.
Dada uma função de uma função que poderá ou não
ser ex tensional, podemos sempre derivar a partir dela uma
função conectada e seguramente extensional da mesma
função, observando o seguinte plano: seja a nossa função
original de uma função tal que atribua a f/Jx a proprie-
dade f; considere-se agora a asserção «há uma função que
tem a propriedade f e é formalmente equivalente a f/J x» .
Trata-se de uma função extensional de f/Jx; é verdadeira
quando a nossa função original é verdadeira, e é formal-
mente equivalente ã função original de f/Jx se esta função
original for extensional; porém, quando a função original
é intensional, a nova função é mais amiúde verdadeira do
que a função original. Por exemplo, voltemos novamente
a «Eu acredito que todos os homens são mortais», enca-
rada como uma função de « X é um ser humano». A função
extensional derivada é: «existe uma função formalmente
equivalente a 'x é um ser humano' e é tal que eu acre-
dito que o que quer que a satisfaça é mortal». Esta função
continua a ser verdadeira quando substituímos «X é um
ser humano» por « X é um animal racional», mesmo se
eu acreditar, falsamente, que a Fénix é racional e imortal.
Atribuímos o nome de «função extensional derivada»
ã função construída segundo o procedimento que acabá-

272
mos de mostrar, a saber, à função: «existe uma função que
tem a propriedade f e é formalmente equivalente a f/Jx>>,
em que a função original era a função «a função f/Jx tem a
propriedade f>>.
Podemos considerar a função extensional derivada
como tendo por argumento a classe determinada pela
função f/Jx, e como afirmando f dessa classe. Isto pode ser
tomado como a definição de uma proposição sobre uma
classe. I.e. podemos definir:
Afirmar que «a classe determinada pela função f/Jx
tem a propriedade f>>é afirmar que f/Jx satisfaz a função
extensional derivada a partir de f
Isto confere sentido a qualquer afirmação acerca de
uma classe que se possa construir, significativamente,
acerca de uma função; e constatar-se-á que, tecnicamente,
produz os resultados exigidos para que se construa uma
teoria simbolicamente satisfatória 40 .
O que acabámos de dizer a respeito da definição de
classes é suficiente para satisfazer as nossas quatro pri-
meiras condições. A maneira como assegura a terceira e
a quarta condições - a saber, a possibilidade de classes
de classes, e a impossibilidade de uma classe ser ou não
ser um membro de si própria - é um tanto ou quanto
técnica; é explicada nos Principia Mathematica, mas pode-
mos aqui dá-la como adquirida. Temos pois que, não fora
a nossa quinta condição, poderíamos dar a nossa tarefa
por concluída. Todavia, esta condição - a um tempo a
mais importante e a mais difícil - não é preenchida em
virtude de nada do que tenhamos dito até ao presente

40 Veja Principia Mathematica, vol. I, pp. 75-84 e * 20.

273
momento. A dificuldade prende-se com a teoria dos tipos,
e terá que ser discutida resumidamente 41 .
No Capítulo XIII, vimos que existe urna hierarquia de
tipos lógicos, e que permitir que um objecto que pertence
a um tipo seja substituído por um objecto pertencente a
outro constitui urna falácia. Ora, não é difícil mostrar que
as várias funções que podem ter corno argumento um
objecto a dado não são todas de um tipo. Designemo-las,
todas, por funções-a. Comecemos por considerar as fun-
ções que, de entre estas, não envolvem referência a qual-
quer colecção de funções; charnar-lhe-ernos «funções-a
predicativas». Se avançarmos agora para as funções que
envolvem referência à totalidade das funções-a predi-
cativas, incorreremos numa falácia se as considerarmos
corno sendo do mesmo tipo que as funções-a predica-
tivas. Considere-se urna afirmação banal corno «a é um
francês típico». De que modo definiremos nós um francês
«típico>>? Podemos defini-lo corno um francês que «pos-
sua todas as qualidades que são possuídas pela maioria
dos franceses>> . Todavia, a não ser que limitemos «todas as
qualidades>> àquelas que não envolvem referência a qual-
quer totalidade de qualidades, seremos forçados cons- a
tatar que a maioria dos franceses não é um francês típico
na acepção que acabamos de indicar e, por conseguinte,
que a definição mostra que ser não típico é essencial a um
francês típico. Não estamos aqui perante urna contradição
lógica, urna vez que não há nenhuma razão para que deva

41
O leitor interessado numa d iscussão mais completa deverá
consultar Principia Mathematica, Introdução, cap. II; e também
* 12.

274
existir qualquer francês típico; todavia, trata-se de uma
situação que ilustra a necessidade de separar as quali-
dades que envolvam referência a uma totalidade das
qualidades das que não o fazem.
Sempre que, em virtude de afirmações sobre «todos>>
ou «alguns» dos valores que uma variável pode assumir
significativamente, produzimos um novo objecto, este
novo objecto não poderá nunca encontrar-se entre os
valores que a variável anterior pode assumir, uma vez
que, se pudesse, a totalidade de valores cujo âmbito a
variável poderia percorrer só seria definível em termos de
si própria, o que nos remeteria para um círculo vicioso.
Por exemplo, se eu disser «Napoleão tinha todas as quali-
dades que fazem um grande general», tenho que definir
«qualidades» de maneira tal que a definição não inclua
o que estou agora a afirmar, i.e. «ter todas as qualidades
que fazem um grande general» não pode, em si, ser uma
qualidade no sentido suposto. Isto é claramente evidente,
e é o princípio que conduz à teoria dos tipos por meio da
qual se evitam os paradoxos gerados por círculos vicio-
sos. Quando aplicadas a funções-a, podemos supor que
«qualidades» tem o significado de «funções predicativas».
Assim, quando afirmo «Napoleão tinha todas as quali-
dades, etc.», estou a afirmar «Napoleão satisfazia todas
as funções predicativas, etc.». Esta asserção atribui uma
propriedade a Napoleão, mas não lhe atribui uma pro-
priedade predicativa; desta maneira, obviamos o círculo
vicioso. Dito isto, onde quer que a expressão «todas as
funções que» ocorra, as funções em questão têm que ser
limitadas a um tipo, sob pena de não se evitar o círculo
vicioso; e, como Napoleão e o francês típico mostraram,

275
a determinação do tipo não é dada pelo do argumento.
Para estabelecer cabalmente este aspecto, seria neces-
sário enveredar por uma discussão muito mais completa
do que esta, mas o que acabámos de expor poderá ser
suficiente para tomar claro que as funções que podem
assumir um argumento dado são de uma série infinita de
tipos. Recorrendo a vários dispositivos técnicos, podería-
mos construir uma variável que percorresse os primeiros
n destes tipos, sendo n finito, mas não podemos de modo
algum construir uma variável que percorra todos eles,
e, se o pudéssemos fazer, este simples facto geraria de
imediato um novo tipo de função, com os mesmos argu-
mentos, e desencadearia novamente todo o processo.
Designamos as funções-a predicativas por primeiro
tipo de funções-a; às funções-a que envolvem referência
à totalidade do primeiro tipo chamamos segundo tipo;
e assim por diante. Não há nenhuma função-a variável
que possa percorrer todos estes diferentes tipos: terá de
parar abruptamente em um (algum) tipo definido.
Estas observações são relevantes para a nossa defi-
nição de função extensional derivada. Quando introduzi-
mos esta expressão, falámos de «Uma função formalmente
equivalente a </Jx». É necessário decidir sobre o tipo da
nossa função. Qualquer decisão servirá, mas é inevitável
que tomemos uma. Designemos por 'I' a alegada função
formalmente equivalente. 'I' aparece então como uma vari-
ável, e terá que ser de um determinado tipo. Tudo o que
sabemos necessariamente sobre o tipo de </J é que assume
argumentos de um tipo dado - sabemos que é (diga-
mos) uma função-a . Porém, como acabámos de ver, isso
não determina o seu tipo. Se pretendemos (como exige o

276
nosso quinto requisito) ser capazes de lidar com todas as
classes cujos membros são do mesmo tipo que a, temos
que estar em condições de definir todas essas classes por
meio de funções de um dado tipo; quer isto dizer, tem que
existir um determinado tipo de função-a, digamos o n°,
tal que qualquer função-a seja formalmente equivalente
a uma (alguma) função-a do tipo n°. Sendo este o caso,
então qualquer função extensional que se verifique para
todas as funções-a do n° tipo verificar-se-á para qualquer
função-a seja ela qual for. A principal utilidade das clas-
ses é o facto de serem um meio técnico que incorpora um
pressuposto que conduz a este resultado. O pressuposto
é designado por «axioma da reducibilidade» e pode ser
formulado como se segue:
«Existe um tipo (r, digamos) de funções-a tal que,
dada qualquer função-a, esta é formalmente equivalente
a alguma função do tipo em causa».
Presumindo este axioma, utilizamos funções deste
tipo na definição das nossas funções extensionais asso-
ciadas. Podemos reduzir as afirmações acerca de todas as
classes-a (i.e. todas as classes definidas por funções-a) a
afirmações sobre todas as funções-a do tipo 't. Na prática,
conquanto que só estejam envolvidas funções extensio-
nais de funções, isto permite-nos obter resultados que, de
outro modo, exigiriam a noção, impossível, de «todas as
funções-a». A indução matemática é um domínio especí-
fico em que isto é vital.
O axioma da reducibilidade envolve tudo o que é
efectivamente essencial na teoria das classes. Deste modo,
valerá a pena perguntar se há alguma razão para supor a
sua verdade.

277
Este axioma, como o axioma multiplicativo e o
axioma do infinito, é necessário para determinados resul-
tados, mas não para a existência, sem mais, do raciocínio
dedutivo. Como explicado no Capítulo XIV, a teoria da
dedução e as leis para proposições que envolvam <<todos/
/as» e <<alguns/ algumas» constituem a textura essencial
do raciocínio matemático: sem elas, ou algo que se lhes
assemelhe, não nos limitaríamos apenas a não obter os
mesmos resultados; com efeito, não obteríamos quaisquer
resultados. Não podemos utilizá-las como hipóteses, e
delas deduzir consequências hipotéticas, na medida em
que elas tanto são regras de dedução como premissas.
É forçoso que sejam absolutamente verdadeiras, sob pena
de o que deduzimos de acordo com elas nem sequer se
seguir das premissas. Por outro lado, o axioma da redu-
cibilidade, como os nossos dois axiomas matemáticos
anteriores, poderia perfeitamente ser afirmado como uma
hipótese sempre que é utilizado, em vez de ser pressu-
posto como sendo de facto verdadeiro. Podemos deduzir
as suas consequências hipoteticamente; podemos também
deduzir as consequências de presumir a sua falsidade.
É, portanto, um axioma apenas conveniente, não neces-
sário. E, face à complicação da teoria dos tipos, e à incer-
teza de todos os seus princípios com excepção dos mais
gerais, ainda não nos é possível dizer se haverá ou não
alguma maneira que nos permita dispensar completa-
mente o axioma da reducibilidade. Não obstante, partindo
do princípio de que a teoria acima esboçada está correcta,
que podemos nós dizer quanto à verdade ou falsidade do
axioma?

278
Podemos constatar que o axioma é uma forma gene-
ralizada da identidade dos indiscerníveis de Leibniz.
Leibniz pressupôs, como princípio lógico, que dois sujei-
tos diferentes têm que diferir quanto aos predicados. Ora,
os predicados são apenas alguns de entre os objectos que
designámos por «funções predicativas», que incluirão
também relações com termos dados, e várias proprie-
dades que não são consideradas como predicados. Assim,
o pressuposto de Leibniz é bastante mais rigoroso e mais
estrito do que o nosso. (Não, claro está, segundo a lógica
de Leibniz, na qual todas as proposições são consideradas
redutíveis à forma sujeito-predicado.) Todavia, tanto
quanto me é dado perceber, não há boas razões para acre-
ditar na forma de Leibniz. Em termos de possibilidade
lógica abstracta, podem perfeitamente existir duas coisas
que tenham exactamente os mesmos predicados, no
sentido estrito em que temos estado a utilizar a palavra
«predicado». Em que pé fica então o nosso axioma quando
avançamos além deste sentido estrito de predicados? No
mundo actual, tudo indica não haver maneira de duvidar
da sua verdade empírica no que respeita a particulares,
devido à diferenciação espácio-temporal: dois particula-
res nunca têm exactamente as mesmas relações espaciais
e temporais face a todos os outros particulares. Todavia,
isto é, por assim dizer, um acidente, um facto sobre o
mundo no qual, por acaso, nos achamos. A lógica pura,
e a matemática pura (que é a mesma coisa), almeja a ser
verdadeira, utilizando a fraseologia de Leibniz, em todos
os mundos possíveis, e não apenas nesta amálgama de
bricabraque caótica de mundo em que o acaso nos apri-
sionou. Há uma certa altivez que o lógico deve preservar:

279
não deve condescender a derivar argumentos das coisas
com que depara à sua volta.
Desta perspectiva estritamente lógica, não vejo razão
nenhuma para acreditar que o axioma da reducibilidade
seja logicamente necessário, que é o significado que teria
se se dissesse que é verdadeiro em todos os mundos
possíveis. A admissão deste axioma num sistema de lógica
é, portanto, um defeito, mesmo sendo o axioma empiri-
camente verdadeiro. É por esta razão que a teoria das
classes não pode ser considerada tão completa quanto
a teoria das descrições. É preciso trabalhar mais sobre
a teoria dos tipos, na esperança de que seja alcançada
uma doutrina das classes que não requeira um postu-
lado dúbio como o axioma da reducibilidade. Todavia, é
razoável considerar que a teoria esboçada no presente
capítulo é correcta quanto às suas linhas gerais, i.e. no que
respeita à redução de proposições nominalmente sobre
classes a proposições sobre as funções que as definem.
A circunstância de se evitarem as classes como entidades
através deste método terá que ser, tudo indica, sólida em
princípio, muito embora ainda sejam necessários ajusta-
mentos a nível do pormenor. O facto de isto parecer indu-
bitável é a razão pela qual incluímos a teoria das classes,
não obstante o nosso desejo de excluir deste livro, tanto
quanto possível, tudo o que pareça estar aberto a dúvidas
de monta.
A teoria das classes, como acabámos de a apresentar
em traços gerais, reduz-se a um axioma e a uma definição.
Em abono da clareza, repeti-las-emos aqui. O axioma é:
Existe um tipo 't tal que se Q> é uma função que pode assumir
como argumento um objecto a dado, então existe uma função 'I'
do tipo 't que é formalmente equivalente a Q>.

280
A definição é:
Se cjl é uma função que pode assumir como argumento um
objecto a dado, e 'to tipo mencionado no axioma supra, então
dizer que a classe determinada por cjl tem a propriedade f é dizer
que existe uma função do tipo 't, formalmente equivalente a cjl,
e que tem a propriedade f.

281
Capítulo XVIII

MATEMÁTICA E LÓGICA

Numa perspectiva histórica, a matemática e a lógica


têm sido áreas de estudo inteiramente distintas. A mate-
mática tem estado ligada à ciência; a lógica, ao grego.
Todavia, ambas se desenvolveram na era moderna:
a lógica tomou-se mais matemática e a matemática tor-
nou-se mais lógica. A consequência que daqui resulta é
ser hoje completamente impossível traçar uma linha entre
elas; em boa verdade, as duas são uma só. Diferem uma
da outra da mesma maneira que um homem e um rapaz
diferem entre si: a lógica é a juventude da matemática e
a matemática é a maturidade da lógica. Esta caracteri-
zação ofende os lógicos que, tendo dedicado o seu tempo
ao estudo dos textos clássicos, são incapazes de seguir
uma linha de raciocínio simbólico, e ofende os matemá-
ticos que, tendo aprendido uma técnica, não se deram ao
incómodo de aprofundar o significado ou a justificação
da técnica aprendida. Ambos os tipos são, felizmente,
cada vez mais raros. Muito do trabalho da matemática
moderna está, flagrantemente, na linha de fronteira da
lógica, e muito do trabalho da lógica moderna é simbólico
e formal; tanto assim é que a estreitíssima relação entre
lógica e matemática passou a ser evidente aos olhos de
qualquer estudioso instruído. A demonstração da iden-
tidade entre ambas é, bem entendido, uma questão de
pormenor: partindo de premissas universalmente admi-

283
tidas como pertencendo à lógica, e chegando por dedução
a resultados que, de modo igualmente evidente, perten-
cem à matemática, constatamos que não existe um ponto
sobre o qual possa traçar-se uma linha divisória precisa, à
esquerda da qual fique a lógica e à direita da qual fique a
matemática. Se ainda houver quem não admita a identi-
dade entre lógica e matemática, desafiamo-lo a indicar em
que ponto, ao longo das sucessivas definições e deduções
dos Principia Mathematica, entende ele que acaba a lógica
e começa a matemática. Tomar-se-ia óbvio que qualquer
resposta dada seria, forçosamente, arbitrária.
Nos capítulos iniciais deste livro, partindo dos núme-
ros naturais, começámos por definir «número cardinal»
e por mostrar como generalizar a concepção de número;
passámos depois à análise das concepções envolvidas na
definição, e acabámos por nos achar perante os funda-
mentos da lógica. Numa abordagem sintética, dedutiva,
estes fundamentos aparecem primeiro, e os números
naturais só são alcançados depois de um longo percurso.
Este tipo de abordagem, embora formalmente mais
correcto do que aquele que adoptámos, é mais difícil
para o leitor, pois os conceitos e as proposições lógicos
fundamentais com os quais principia são remotos e pouco
familiares quando comparados com os números naturais.
Além disto, representam a fronteira actual do conheci-
mento, para lá da qual se encontra o ainda desconhecido,
pelo que o domínio do nosso conhecimento sobre eles não
é, à data, muito seguro.
Costumava dizer-se que a matemática é a ciência
da «quantidade». «Quantidade» é uma palavra vaga,
mas, tendo em vista o objectivo do argumento, podemos

284
substituí-la pela palavra «número». Afirmar que a mate-
mática é a ciência do número seria uma falsidade, e isto
por duas ordens de razão. Por um lado, existem ramos
perfeitamente estabelecidos da matemática que nada têm
que ver com o número - toda a geometria que não uti-
liza coordenadas ou medidas, por exemplo: a geometria
projectiva e descritiva, até ao momento em que as coor-
denadas são introduzidas, não diz respeito ao número,
ou mesmo à quantidade, no sentido de maior ou de menor
do que. Por outro lado, graças à definição de cardinais,
à teoria da indução e das relações de ancestralidade, à
teoria geral das séries, e às definições das operações
aritméticas, tornou-se possível generalizar muito do
que, até então, só podia ser demonstrado recorrendo a
números. Como resultado, temos que o que foi outrora o
estudo exclusivo da Aritmética passa agora a estar divi-
dido em várias áreas de estudo separadas, nenhuma das
quais especificamente dedicada aos números. As proprie-
dades mais elementares dos números dizem respeito às
relações de «um para um» e à semelhança entre classes.
A adição diz respeito à construção de classes mutuamente
exclusivas, classes estas respectivamente semelhantes a
um conjunto de classes que se desconhece serem mutua-
mente exclusivas. A multiplicação funde-se na teoria
das «selecções>>, i.e. de um tipo particular de relações de
«um para muitos>>. A finitude funde-se no estudo geral
das relações de ancestralidade, que gera toda a teoria da
indução matemática. As propriedades ordinais dos vários
tipos de números seriais, os elementos da teoria da con-
tinuidade de funções, e os limites de funções podem ser
generalizados de maneira a deixarem de envolver qual-

285
quer referência essencial a números. A generalização
máxima é um princípio que subjaz a todo o raciocínio
formal; e isto porque, por meio dela, asseguramos que
os resultados de um dado processo de dedução terão um
campo de aplicação mais abrangente; logo, ao genera-
lizar o raciocínio da aritmética, estamos apenas a seguir
um preceito universalmente admitido em matemática.
E, ao generalizarmos assim, criámos efectivamente um
conjunto de novos sistemas dedutivos nos quais, a um
tempo, a aritmética tradicional se dissolveu e se expan-
diu; todavia, no que concerne à questão de determinar se
algum destes novos sistemas dedutivos - por exemplo, a
teoria das selecções - deve pertencer à lógica ou à aritmé-
tica, a resposta é completamente arbitrária, e impossível
de ser decidida racionalmente~
Vemo-nos, assim, confrontados com a pergunta: que
matéria de estudo é esta à qual é indiferente chamar mate-
mática ou lógica? Há alguma forma por meio da qual
possamos defini-la?
Determinadas características desta matéria de estudo
são inequívocas. Para começar, não lidamos com coisas
particulares ou com propriedades particulares; lidamos
formalmente com o que pode ser dito sobre qualquer coisa
ou qualquer propriedade. Estamos preparados para dizer
que um e um são dois, mas não que Sócrates e Platão são
dois; isto porque, enquanto lógicos, ou matemáticos que
se dedicam à matemática pura, nunca ouvimos falar de
Sócrates e de Platão. Um mundo em que estes dois indi-
víduos não existissem continuaria, não obstante, a ser um
mundo em que um e um são dois. Enquanto matemáticos
que se dedicam à matemática pura, ou lógicos, não nos

286
cabe a nós mencionar o que quer que seja; isto porque, se o
fizéssemos, estaríamos a introduzir algo irrelevante e não
formal. Podemos tornar isto claro aplicando-o ao caso do
silogismo. A lógica tradicional diz: «todos os homens são
mortais, Sócrates é um homem, logo Sócrates é mortal».
Ora, é evidente que o que se pretende dizer, antes de mais,
é tão-só que as premissas implicam a conclusão, e não que
as premissas e a conclusão são efectivamente verdadeiras;
mesmo a lógica mais tradicional chama a atenção para o
facto de a verdade factual das premissas ser, no que diz
respeito à lógica, irrelevante. Assim, a primeira alteração a
operar sobre o silogismo tradicional referido é apresentá-
-lo se_gundo a forma: «Se todos os homens são mortais e
Sócrates é um homem, então Sócrates é mortal». Posto
isto, podemos constatar que esta afirmação visa trans-
mitir que este argumento é válido em virtude da sua
forma, e não em virtude dos termos particulares que nela
ocorrem. Se tivéssemos omitido «Sócrates é um homem»
das nossas premissas, teríamos diante de nós um argu-
mento não formal, admissível apenas porquanto Sócrates
é, de facto, um homem e, fora este o caso, não poderíamos
ter generalizado o argumento. Mas quando, corno vimos
há pouco, o argumento é formal, nada depende dos termos
que nele ocorrem. Assim, podemos substituir homens
por a, mortais por {3, e Sócrates por x, em que a e f3 são
quaisquer duas classes, não importa quais, e x é um
qualquer indivíduo arbitrário. Chegamos, deste modo, à
seguinte asserção: «sejam quais forem os valores possíveis
que x, a e f3 possam ter, se todos os a são f3 e x é um a,
então x é um {3»; por outras palavras, «a função proposi-
cional 'se todos os a são f3 e x é um a, então x é um /3' é

287
sempre verdadeira». E eis aqui, finalmente, uma proposi-
ção da lógica - proposição esta que é apenas sugerida pela
asserção tradicional sobre Sócrates e homens e mortais.
Claro está que se aquilo a que almejamos é o racio-
cínio formal, chegaremos sempre, em última instância, a
asserções como a que acabámos de mencionar, nas quais
não há menção a coisas ou propriedades concretas; isto
acontece graças ao mero desejo de não perder tempo a
demonstrar de um caso particular o que pode ser demons-
trado em geral. Seria ridículo dedicarmo-nos a estabelecer
um longo argumento sobre Sócrates e, posto isso, voltar a
estabelecer precisamente o mesmíssimo argumento sobre
Platão. Se o argumento em causa é (digamos) um argu-
mento que se verifica para todos os homens, demons-
trá-lo-emos a respeito de «X», com a hipótese «Se x é um
homem». Com esta hipótese, o argumento conservará
a sua validade hipotética, mesmo quando x não é um
homem. Neste caso, porém, constataremos que o nosso
argumento continua a ser válido se, em lugar de supor-
mos que x é um homem, supusermos que x é um macaco,
ou um ganso, ou um Primeiro-Ministro. Assim sendo, não
perderemos tempo escolhendo «X é um homem» como
premissa, adoptando sim «X é um a», em que a é uma
classe de indivíduos, ou «tPX», em que rp é uma qualquer
função proposicional de um (algum) tipo estipulado de
antemão. Segue-se pois que, em lógica, ou em matemática
pura, a ausência de toda e qualquer menção a coisas ou
propriedades particulares é um resultado necessário do
facto de esta área de estudo ser, como dizemos, «pura-
mente formal».

288
Uma vez chegados a este ponto, deparamos com
um problema mais fácil de exprimir do que de resolver.
O problema é: «quais são os constituintes de uma propo-
sição lógica?» Desconheço a resposta a esta pergunta, mas
proponho-me explicar como surge o problema.
Considere-se (por exemplo) a proposição «Sócrates
veio antes de Aristóteles». Aqui, parece evidente que
estamos em presença de uma relação entre dois termos,
e que os constituintes da proposição (bem como do facto
correspondente) são, apenas, os dois termos e a relação, i.e.
SÓcrates, Aristóteles, e antes de. (Ignoro o facto de Sócrates
e Aristóteles não serem simples; ignoro também o facto
de aquilo que se afigura serem os nomes deles serem, na
verdade, descrições truncadas. Nenhum destes factos é
relevante para a presente questão.) Podemos representar
a forma geral de proposições como esta por «X R y», que
pode ser lida como «X está na relação R com y». Esta forma
geral pode ocorrer em proposições lógicas, mas exemplifi-
cações particulares desta forma não o podem. Deveremos
então inferir que a forma geral é, ela mesma, um consti-
tuinte deste tipo de proposições lógicas?
Dada uma proposição como «Sócrates vem antes de
Aristóteles», temos determinados constituintes e, tam-
bém, uma determinada forma. No entanto, a forma não
é, ela mesma, um novo constituinte; se fosse, precisaría-
mos de uma nova forma que abarcasse tanto a própria
forma como os demais constituintes. Podemos, com
efeito, transformar todos os constituintes de uma propo-
sição em variáveis, mantendo a forma inalterada. É o que
fazemos quando utilizamos um esquema- como «X R y»,
por exemplo - que está em lugar de uma qualquer propo-

289
sição pertencente a uma determinada classe de proposi-
ções, a saber, as que afirmam relações entre dois termos.
Podemos avançar para asserções gerais, como «X R y é
por vezes verdadeira» - i.e. existem casos em que relações
binárias se estabelecem. Esta asserção pertence à lógica
(ou à matemática), na acepção em que a palavra está a
ser utilizada. No entanto, não estamos a mencionar coisas
ou relações particulares nesta asserção; coisas ou relações
particulares jamais podem entrar numa proposição da
lógica pura. Assim, como constituintes possíveis das pro-
posições lógicas, restam-nos unicamente as formas puras.
Não pretendo afirmar positivamente que as formas
puras - e.g. a forma «X R y» - entram, de facto, em propo-
sições do tipo das que estamos a analisar. A análise deste
tipo de proposições é uma questão difícil, com conside-
rações antagónicas de um lado e de outro. Não pode-
remos embarcar agora nesta questão, mas podemos
aceitar, como uma primeira aproximação, a visão segundo
a qual as formas são aquilo que entra nas proposições
lógicas como constituintes destas. E podemos explicar
(muito embora não o possamos definir formalmente) o
que queremos dizer com a «forma» de uma proposição da
seguinte maneira:
A «forma» de uma proposição é o que nela permanece
inalterado mesmo quando cada um de todos os consti-
tuintes da proposição é substituído por outro.
Deste modo, «Sócrates é anterior a Aristóteles»
tem a mesma forma que «Napoleão é maior do que
Wellington», embora os constituintes das duas proposi-
ções sejam distintos.

290
Podemos pois estabelecer, como característica neces-
sária (embora não suficiente) das proposições lógicas ou
matemáticas, que se trata de proposições que podem ser
obtidas a partir de proposições que não contêm variáveis
(i.e. sem palavras como todos/as, alguns/algumas, um/a,
oja, etc.), transformando cada um dos constituintes em
uma variável e afirmando que o resultado é sempre verda-
deiro ou por vezes verdadeiro, ou que é sempre verda-
deiro a respeito de uma das variáveis que o resultado é
por vezes verdadeiro a respeito das outras, ou qualquer
variante destas formas. Outra maneira de formular a
mesma coisa é dizer que a lógica (ou a matemática) se
ocupa exclusivamente com formas, e com estas apenas no
que concerne a estabelecer que são sempre, ou que são
por vezes, verdadeiras - com todas as permutações de
«sempre» e «por vezes>> que possam ocorrer.
Todas as línguas possuem algumas palavras cuja única
função é indicar a forma. De maneira geral, tais palavras
são mais comuns em línguas que têm menos inflexões.
Voltemos a «Sócrates é um ser humano>>. Neste caso, «é>>
não é um constituinte da proposição, mas um mero indi-
cador da forma sujeito-predicado. De igual modo, em
«Sócrates é anterior a Aristóteles>>, «é>> e «_a>> estão apenas
a indicar a forma; a proposição é idêntica a «Sócrates
precede Aristóteles>>, em que aquelas palavras desaparece-
ram, sendo a forma indicada de outra maneira. Em regra,
a forma pode ser indicada de outra maneira que não por
palavras específicas: a ordem das palavras pode assegurar
em grande medida o que se pretende. Dito isto, não pode-
mos forçar este princípio. Por exemplo, é difícil ver como
poderíamos exprimir convenientemente formas mole-

291
culares de proposições (i.e. aquilo que designamos por
funções de verdade) sem quaisquer palavras de todo.
Vimos, no Capítulo XIV, que basta uma palavra ou um
símbolo para cumprir este propósito, a saber, uma palavra
ou símbolo que exprima incompatibilidade. Todavia, sem
dispor de pelo menos uma palavra ver-nos-íamos numa
situação difícil. De momento, porém, esta não é a ques-
tão importante. Para o que temos em mente demonstrar,
o importante é constatar que a forma poderá ser o único
aspecto a ter em conta numa proposição geral, mesmo
quando, nessa proposição, nenhuma palavra ou símbolo
designe a forma. Se for sobre a forma em si mesma que
pretendemos falar, teremos de ter uma palavra para a
referir; mas se, como sucede em matemática, preten-
dermos falar sobre todas as proposições que têm essa
forma, então, habitualmente, não é indispensável uma
palavra para a forma; é provável que, em teoria, nunca
seja indispensável.
Partindo do princípio - como penso que podemos
partir - de que as formas das proposições podem ser
representadas pelas formas das proposições em que
são exprimidas sem que haja uma palavra especial para
formas, chegaríamos a uma língua em que tudo o que é
formal pertenceria à sintaxe e não ao vocabulário. Numa
linguagem como esta, poderíamos exprimir todas as pro-
posições da matemática mesmo se não soubéssemos uma
única palavra da língua. A linguagem da lógica matemá-
tica, se fosse aperfeiçoada, seria essa «língua». Teríamos
símbolos para as variáveis, como sejam «X» e «R» e «y»,
dispostos de várias maneiras; e a disposição em que se
apresentassem indicar-nos-ia que se estava a dizer algo

292
que era verdadeiro de todos, ou de alguns, dos valores
das variáveis. Não precisaríamos de saber quaisquer pala-
vras, na medida em que estas só seriam necessárias para
atribuir valores às variáveis, o que é mister do matemá-
tico que trabalha em matemática aplicada, e não do mate-
mático que trabalha em matemática pura ou do lógico.
Uma das marcas distintivas de uma proposição da lógica
é o facto de, dada uma linguagem adequada, a proposição
poder ser afirmada nessa linguagem por uma pessoa que
conheça a sintaxe da linguagem sem contudo saber uma
única palavra do vocabulário que a constitui.
Dito isto, a verdade é que existem palavras que expri-
mem forma, como por exemplo «é» e «do que». E,· em
todos os simbolismos que até hoje se inventaram para
a lógica matemática, há símbolos que têm significados
formais constantes. Podemos escolher, a título de exem-
plo, o símbolo para incompatibilidade que é utilizado na
construção de funções de verdade. Palavras ou símbolos
como este podem ocorrer em lógica. A pergunta que se
coloca é: como os definimos?
Tais palavras ou símbolos exprimem aquilo a que cha-
mamos «constantes lógicas». Podemos definir constantes
lógicas exactamente da mesma maneira em que defi-
nimos formas; na verdade, constantes lógicas e formas
são, em essência, a mesma coisa. Uma constante lógica
fundamental é aquilo que há em comum de entre um
cer.t o número de proposições, qualquer das quais pode
resultar de uma das outras por substituição dos termos
de uma pelos termos da outra. Por exemplo, «Napoleão é
maior do que Wellington» resulta de «Sócrates é anterior
a Aristóteles» por meio da substituição de «Sócrates» por

293
«Napoleão», «Aristóteles» por «Wellington», e «maior do
que» por «anterior a». Algumas proposições podem ser
obtidas desta maneira a partir do protótipo «Sócrates é
anterior a Aristóteles»; outras não. As que podem são pro-
posições da forma «X R y», i.e. exprimem relações binárias.
Partindo do protótipo mencionado, não podemos obter,
por substituição de termo por termo, proposições como
«Sócrates é um ser humano» ou «OS atenienses deram a
cicuta a Sócrates»; isto porque a primeira é uma propo-
sição da forma sujeito-predicado e a segunda exprime
uma relação temária. Se a nossa linguagem lógica pura
vier a ter palavras, estas terão que ser tais que exprimam
«constantes lógicas», e as «constantes lógicas» serão sem-
pre, ou serão sempre derivadas de, o que há em comum
de entre um grupo de proposições deriváveis umas das
outras segundo o método que acabámos de descrever
- por substituição de termo por termo. E isto que há em
comum é aquilo que designamos por «forma».
Neste sentido, todas as «constantes» que ocorrem em
matemática pura são constantes lógicas. O número 1, por
exemplo, é derivado a partir de proposições da forma:
«existe um termo c tal que ,Px é verdadeira quando, e
somente quando, x é C». Trata-se de uma função de ;,
sendo que de diferentes atribuições de valores a t/J resul-
tarão várias proposições diferentes. Podemos (com uma
pequena omissão de passos intermédios, não relevantes
para a questão em apreço) considerar a função de ,P supra
apresentada como sendo o significado de «a classe deter-
minada por t/J é uma classe unitária», ou «a classe deter-
minada por t/J é um membro de 1» (sendo 1 uma classe de
classes). Desta maneira, as proposições em que 1 ocorre

294
adquirem um significado que é derivado a partir de uma
determinada forma lógica constante. E verificar-se-á que o
mesmo acontece em relação a todas as constantes matemá-
ticas: são, todas elas, constantes lógicas, ou abreviaturas
simbólicas cuja utilização cabal num contexto adequado é
definida por meio de constantes lógicas.
No entanto, muito embora todas as proposições lógi-
cas (ou matemáticas) possam ser plenamente exprimidas
em termos de constantes lógicas juntamente com variáveis,
não se dá o caso de, conversamente, todas as proposições
exprimíveis desta maneira serem proposições lógicas. Até
este momento, encontrámos um critério necessário, mas
não suficiente, de proposições matemáticas. Definimos de
modo suficiente o carácter das ideias primitivas em termos
das quais todas as ideias da matemática podem ser defi-
nidas, mas não o das proposições primitivas a partir das
quais todas as proposições da matemática podem ser
deduzidas. Esta é uma matéria mais difícil, face à qual se
desconhece ainda a resposta completa.
Podemos considerar o axioma do infinito como sendo
um exemplo de uma proposição que, apesar de enun-
ciável em termos lógicos, não pode ser afirmada como
verdadeira pela lógica. Todas as proposições da lógica
possuem uma característica em virtude da qual eram
habitualmente designadas por analíticas, ou designando
as suas contraditórias por autocontraditórias. Todavia,
esta formulação não é satisfatória. A lei da contradição é,
simplesmente, uma de entre as proposições lógicas; não
tem preponderância especial; e é provável que a demons-
tração de que a contraditória de uma proposição dada é
autocontraditória requeira outros princípios de dedução

295
além da lei da contradição. Não obstante, a caracterís-
tica das proposições lógicas de que andamos à procura
é a que foi sentida, e cuja definição foi procurada, por
aqueles que afirmaram que consistia na dedutibilidade
a partir da lei da contradição. Esta característica que, de
momento, podemos designar por tautologia, não pertence
evidentemente à asserção de que o número de indivíduos
existente no universo é n, seja qual for o número que n
possa ser. Não fora a diversidade de tipos, seria possível
demonstrar logicamente que existem classes de n ter-
mos, em que n é um inteiro finito; ou mesmo que existem
classes de N0 termos. Mas, como vimos no Capítulo XIII,
tais demonstrações são, por causa dos tipos, falaciosas.
Assim, dispomos apenas da observação empírica para
determinar se existe ou não um número n de indivíduos
no mundo. Entre mundos «possíveis», na acepção leibni-
ziana, haverá mundos que têm um, dois, três, ... indiví-
duos. Não parece haver tão-pouco qualquer necessidade
lógica para a existência de um indivíduo 42 - em bom
rigor, tão-pouco para a existência de um mundo. O argu-
mento ontológico em que se demonstra a existência de
Deus, se fosse válido, estabeleceria a necessidade lógica
da existência de pelo menos um indivíduo. Contudo,
este argumento é consensualmente reconhecido como
inválido, estando, com efeito, assente numa perspectiva
errada de existência - i.e. na não compreensão de que a

42
As proposições primitivas, tal como apresentadas nos
Principia Mathematica, permitem inferir a existência de pelo
menos um indivíduo. Todavia, hoje encaro isto como sendo
defeituoso em pureza lógica.

296
existência só pode ser afirmada de algo descrito, e não de
algo nomeado, razão pela qual uma demonstração que,
partindo de «isto é o tal e tal» e «O tal e tal existe», con-
clua que «isto existe» é desprovida de sentido. Se rejei-
tarmos o argumento ontológico, tudo indica que sejamos
forçados a concluir que a existência de um mundo é um
acidente - i.e. não é logicamente necessária. Se assim for,
então nenhum princípio da lógica pode afirmar «existên-
cia», excepto sob a forma de hipótese, i.e. não pode haver
nenhum princípio da forma «a função proposicional tal e
tal é por vezes verdadeira». Quando ocorrem em lógica,
as proposições desta forma têm que ocorrer como hipó-
teses, ou como consequências de hipóteses, e não como
proposições afirmadas. Todas as proposições afirmadas
da lógica afirmam que uma dada função proposicional é
sempre verdadeira. Por exemplo, é sempre verdadeiro que
se p implica q e q implica r, então p implica r, ou que, se
todos os a são f3 e x é um a, então· x é um [3. Proposições
como estas podem ocorrer em lógica, e a verdade delas é
independente da existência do universo. Podemos estabe-
lecer que, se não existisse universo, todas as proposições
gerais seriam verdadeiras; isto porque a contraditória de
uma proposição geral (como vimos no Capítulo XV) é
uma proposição que afirma existência, donde seria sem-
pre falsa se nenhum universo existisse.
· As proposições lógicas podem ser conhecidas a priori,
sem estudar o mundo real. Só podemos saber que Sócrates
é um homem mediante o estudo de factos empíricos,
mas sabemos da correcção de um silogismo na sua forma
abstracta (i.e. quando é formulado em termos de variá-
veis) sem precisarmos de recorrer à experiência. Não se

297
trata de uma característica das proposições lógicas, em si
mesmas, mas sim de uma característica da maneira como
as conhecemos. No entanto, tem consequências quanto a
qual possa ser a natureza das proposições lógicas, uma
vez que há determinados tipos de proposições que seria
muito difícil supor que pudéssemos . conhecer sem a
experiência.
É evidente que teremos que procurar a definição de
«lógica» ou «matemática» tentando fornecer uma nova
definição da velha noção de proposições «analíticas».
Muito embora já não possamos dar-nos por satisfeitos
com uma definição que estabeleça que as proposições
lógicas são aquelas que se seguem da lei da contradição,
podemos admitir, e temos ainda que admitir, que estas
proposições constituem uma classe completamente dis-
tinta da das proposições que conhecemos empiricamente.
Todas as proposições lógicas possuem a característica
que, há momentos, concordámos em designar por «tauto-
logia». Esta característica, juntamente com o facto de serem
exprimíveis exclusivamente em termos de variáveis e de
constantes lógicas (sendo uma constante lógica algo que
permanece constante numa proposição mesmo quando
todos os seus constituintes são alterados), dar-nos-á a defi-
nição de lógica ou matemática pura. Presentemente, não
sei como definir «tautologia» 43 • Seria fácil apresentar uma
definição que pudesse parecer satisfatória durante algum

43 A importância da <<tautologia>> para uma definição da


matemática foi-me apontada pelo meu antigo aluno Ludwig
Wittgenstein, que estava a trabalhar este problema. Não sei se
ele o resolveu, ou tão-pouco se ele se encontra vivo ou morto.

298
tempo; mas não conheço nenhuma que se me afigure
satisfatória, não obstante o facto de sentir uma total fami-
liaridade com a característica para a qual procuro uma
definição. Assim, é neste ponto que, de momento, alcan-
çamos a fronteira do conhecimento a que a nossa viagem
de retrocesso aos fundamentos lógicos da matemática nos
conduziu.
Eis-nos pois chegados ao fim da nossa (um tanto)
breve introdução à filosofia matemática. É impossível
transmitir adequadamente as ideias que dizem respeito
a esta matéria quando nos abstemos de utilizar símbolos
lógicos. Uma vez que a linguagem comum não tem pala-
vras que exprimam naturalmente e com exactidão o que
pretendemos exprimir, toma-se necessário, na medida em
que aderimos à linguagem comum, espartilhar palavras
dando-lhes significados pouco habituais; e é certo que
o leitor, passado algum tempo, se não mesmo desde o
início, resvale para a atribuição dos significados habitu-
ais às palavras, chegando por isso às noções erradas face
ao que se pretendia estar a dizer. Para mais, a gramática
e a sintaxe comuns são extraordinariamente enganado-
ras. É o caso, por exemplo, em relação aos números; «dez
homens» tem a mesma forma gramatical que «homens
brancos», pelo que se pode ser levado a pensar que 10 é
um adjectivo que qualifica «homens». É o caso, também,
sempre que há funções proposicionais envolvidas, sobre-
tudo quando se lida com existência e com descrições. Pelo
facto de a linguagem ser enganadora, bem como pelo
facto de ser difusa e inexacta quando aplicada à lógica
(para a qual nunca foi intencionada), o simbolismo lógico
é absolutamente necessário a qualquer abordagem exacta

299
e exaustiva da matéria. Assim, os leitores que desejem
adquirir pleno conhecimento dos princípios da matemá-
tica não se escudarão, assim o esperamos, ante o labor de
aprender os símbolos - um labor que é, na verdade, muito
mais diminuto do que se poderá supor. Como decerto
ficou claro pela súmula que acabámos de apresentar,
há inúmeros problemas por resolver nesta área, e muito
trabalho a fazer. Se algum estudioso se sentir motivado
para vir a estudar lógica matemática seriamente após a
leitura deste pequeno livro, este terá cumprido o objectivo
principal para o qual foi escrito.

300
ÍNDICE REMISSIVO

Alef, 126. Botas e meias, 139, 140, 149, 151,


Alefes, 139. 181, 182, 191.
Alguns/algumas, 231, 278, 291. BRUTUS, 208.
Análise, 5, 9, 12, 13, 14, 16, 49, 72, 79,
113, 118, 132, 208, 209, 230, 231, Campos de uma relação, 54, 56, 81,
239,245,247,252,264,284,290. 82-86, 89-90, 93.
Antepassado, 45, 46, 54, 55, 57, 59, CANToR, Gerorg, 100, 117, 120, 126,
60. 128, 130, 132, 136, 139, 143-144,
Argumento da função, 73, 160. 149-150, 152-156, 184, 200, 301.
Argumento da função, 73, 160. Cardinais infuútos, 117.
Argumento ontológico, 296, 297. QsAR, 208, 265.
ARisróTEI.Es, 251, 255, 268, 289, 290, Classe mediana, 155.
291, 293, 294. Classe reflexiva, 135, 188.
Aritmetização da matemática, 13, 14. Classe semelhante, 30.
Axioma da reducibilidade, 277, 278, Classe vazia, 41- 43, 129, 140, 174,
280. 181,189,194,195,197,266.
Axioma do infuúto, 101, 117, 118, Classe, IX, 15, 20, 24-27, 30, 32-34,
193, 194, 195, 197, 198, 199, 202, 38-43, 45; 49, 51, 53, 58, 67, 68,
203,207,209,234,278,295. 71-72, 74, 76-77, 79, 82, 86-87,
Axioma multiplicativo, 132, 139, 92, 97-99, 107, 108,111-112, 118-
173,178,179,180,181,182,183, -122, 125-126, 128-129, 132-133,
184, 185, 186, 187, 188, 189, 190, 135, 139-140, 146-148, 155, 167,
191,192,193,278,305. 173-182, 184-186, 188-191, 193-
Axiomas, 2, 9, 10, 18, 20, 21, 22, 42, -195, 197-198, 200-204, 209, 211,
91, 109, 124, 278. 233-234, 263, 265-273, 281, 288,
290, 294, 298.
Bem ordenada, 139, 140, 149, 151, Classes semelhantes, 29, 303.
181,182, 191. CL!FFORD, W. K., 115, 301.
BoLZANO, 204, 301. Colecção infuúta, 26, 122, 199.

301
Conjunção, 215, 216, 217, 222, 223. Definição extensional, 24, 25.
Consecutividade, 60, 61, 123. Definição intencional, 24, 26.
Constantes, 233, 293-295, 298. Definição, 9, 12-13, 16-17, 23-30, 33,
Construção, 62, 69, 111, 178, 199, 34,38,41-43,45-47,49-51,~55,

285,293. 57-58, 64, 67, 74, 82-84, 87, 91,


Construção, método de, 62, 69, 111, 98-101, 107, 109, 111-114, 116-
178,199,285,293. -118, 120,122-125,129,132, 137,
Contagem, 28, 31, 61, 196, 197. 140, 147, 149, 150-152, 1~155,
Contagem, 31. 159-160, 162-163, 166-170, 173-
Continuidade na filosofia, VII, VIII, -179,195,198,209,220,227-228,
[X,10,62,130,145,149-152,154, 233, 239-240, 243-244, 248-249,
155-157, 159, 162-163, 166-172, 251-252, 257-258, 2~265, 273-
206,285,301,305. -275,277,~281,284-285,296,

Continuidade cantoriana, 152. 298-299.


Continuidade cautoriana, 152. Derivadas, 13, 14, 68, 69, 74, 149,
Continuidade de funções, 159, 305. 240, 272, 273, 276.
Continuidade dedekindiana, 150, ~ções, VIII,1,3,5-6,72,95,183,
151,155. 205, 211, 218, 242-243, 246-250,
Continuidade na filosofia, VII, VIII, 252-256, 258-261, 263-265, 280,
[X,10,62,130,149-152,1~157, 289,299,301,305.
159, 162-163, 166-172; 206, 285. Dimensões, 49, 94.
Contradição, 4, 119, 122, 199-201, Disjunção, 214, 215, 216, 217, 218,
269,274,295-296,298. 219,224,235:
Contrapartes, objectivas, 94, 95. Donúnio, 5, 6, 30-31, 54, 68-69, 73,
Convergência, 170. 74,77-79,81-84,90,116, 120-1~
Conversa; 30,40,41, 54, 67-70; 73-79, 12~126, 128, 169-171, 177, 181-
81-84, 90, 99, 102, 108, 116, 120, -182,204,277,284.
122, 124-125, 128, 146-147, 150,
155, 169-171, 177, 181-182, 187. Equivalências, 180, 183, 257, 267,
Correlatoras, 78, 84, 90, 121. 268, 270.
Espaço e tempo, 130, 206.
DEDEKlND, 105, 108-109, 148-150, Espaço, 20, 24, 62-64, 90, 94, 101,
156, 204-205, 301. 130, 151-156, 187, 206-207, 229.
Dedução,211,301,305. Estrutura, 82, 91, 92, 93, 94, 95, 179.

302
EucuoFS, 9, 10, 102, 301. Função extensional, 271.
Exemplificações, 11, 92, 121, 229-231, Função intensional, 271.
236,289. Funções descritivas, 73-74, 243, 260.
Existe, 73, 241, 248, 258, 259, 297. Funções predicativas, 275, 279.
Existência, 13, 66, 73, 95, 118, 124, Funções proposicionais, 73, 211, 223,
150-151, 173, 183, 197, 202-204, 227-234, 237-238, 241-242, 245,
206, 223, 239, 240-241, 245-246, 256,266-268,270, 299.
248-249, 258-259, 266, 268, 272, Funções, 4-6, 73-74, 156, 159-171,
278, 296-297, 299. 214-217, 226, 228-229, 231-234,
Exponenciação, 132, 142-143, 178, 236-238, 240-242, 245, 248-249,
179,195.
255-258, 260-261, 263, 266-273,
Extensão de uma relação, 92.
276-277, 280-281, 287-288, 291,
Extensão de uma relação, 92.
294, 297,301,304.

Ficções lógicas, 4-6, 27, 72, 201, 203,


~e~ção,22,60,229,286.
264.
Geómetras, 9, 212.
Filosofia matemática, VII-VIll, 9-12,
Geometriá, 9, 13; 44, 49, 62, 66, 89,
21, 85, 159, 299.
90, 91, 102, 113, 115, 116, 130,
Fluxo, 157.
150, 151,.212, 285.
Forma, Vlll, 10, 19-20, 41-42, 46, 48,
Geração de relações seriais, 66.
50, 58, 72, 76, 85, 89, 102-103,
113, 118, 127, 135, 140, 142-143,
HEGEL, 159, 302.
146, 148; 152-153, 168, 173, 181-
-182,186,191-192, 199, 201, 212, Hetero-relativa, 53, 54, 551 59, 60.
218-219, 221, 224, 226-227, 232, Hiato, dedekindiano, 107, 109, 148;
234, 238-240, 243, 245, 248-250, 150.
253,255, 258, 260, 279,286-287,
289-295, 297, 299. Ideias e proposições primitivas, 9,
Fracções, 9, 26, 32, 46; 49, 53, 58, 10, 13-17, 20, 38, 41-43, 85, 89,
61, 97-98, 100-101, 103-104, 111, 94, 118, 123, 128, 140, 143, 171,
114, 127, 147-148. 173, 183, 192, 208, 209, 213-214,
FREGE, 2. 3, 17, 23, 44, 45, 117, 144, 216-219, 221, 223, 225, 227-230,
215, 239, 302. 232-233, 235, 238-239, 241-242.
Fronteira, VII; 108-111,147-148,151, 245, 247-251, 255-260, 264, 267,
154,166,283,284, 299. 269, 278-280, 284, 289-298, 303.

303
Ideias primitivas, 14, 15, 17, 20, 41, Limite de funções, 156, 159, 166,
42,43,214,235,295. 168,171.
Implicação, 213, 214, 215, 216, 217, Limite, 49, 105-109, 111, 145-149,
220,224,225,226,231,256. 151-156, 159, 163, 166-169, 171,
Implicações formais, 239. 184, 185, 217, 302.
Incomensurabilidade, 13. Lógica matemática, VII, VIII, 269,
Incomensuráveis, 13, 102. 271,292,293,300.
Incompatibilidade, 215, 216, 217, Lógica, VII, Vlll, 9, 10,13-14,17,21,
222, 223, 292, 293. 22,42-44, 47,71,74,91,101,111-
Indiscemíveis, 279. -112, 117, 144, 173-174, 196, 202,
Indivíduos, 3, 4, 11, 43, 59-60, 65, 68, 205-206, 212-213, 229-230, 233,
83, 193-200, 202-203, 207, 209, 236-237, 239, 246-247, 249-250,
233-234, 252-255, 265-266, 268- 261,267,269,271,274,279-280,
-269, 286-288, 296. 283-284, 286-300.
Indução matemática, 15-16, 37-38, Logicização da matemática, 17.
41, 44, 46-48, 57, 58, 71, 117, 122,
125, 132, 140, 269, 277, 285, 305. Maior do que e menor do que, 100.
Inferência, 2, 184, 212, 214, 217, 218, Maior do que, 136.
219, 221, 222, 223, 224. Maior número cardinal, 200.
Infinito de Cantor, 100. Mapas, 81-84, 86, 89-90, 92-93, 121;
Infinito dos racionais, 100. 123.
Inteiros positivos e negativos, 97, Máximo, 6, 71, 105-108, 110, 130,
98,102. 146-148,151,154,184,189,250,
Intervalo~161, 164, 168,170,171. 257,302.
Intuição, 47, 2.12, 246, 247. Meias, 139, 140, 149, 151, 181, 182,
Irrealidade, 245. 191.
MElNONG, 245, 302.
KANT, 212, 302. Método, Vlll, 21, 28, 37, 46, 57-59,
61-62, 69-70, 72, 99, 104-105,
Lei associativa, 89, 142, 143. 109, 112, 125, 167, 175-176, 187,
Lei comutativa, 89, 142-143. 192,209,218,221,~236,269;

Lei distributiva, 89, 142-143. 280, 294, 301.


llrr8N[Z,122,159,279,302. Mínimo, VII, 6, 105, 106, 108, 146,
LEWJS, C. I., 225, 302. 147,261.

304
Modalidade, 241-242. 285.
Multiplicação, 9, 88, 112, 114-116, Número, 3, 7, 11-12, 14-21, 23-24,
120, 131-132, 138, 142-143, 173- 26-29, 31-34, 37-44, 46-50, 55,
-175, 178-179, 183-184, 195, 285. 57, 61, 70-71, 74, 77-78, 81, 86-
-88, 94-95, 97-103, 106, 109-111,
Necessidade, 114, 179, 193, 199, 202, 113-132, 135-141, 145, 154-155,
226,242,267,275,296. 159, 161-165, 167-168, 171-179,
NICOD,M., 217-218, 222-223, 302. 181, 184-191, 193-198, 200, 203,
Nomes, 201, 209, 251-255, 259, 260, 206-207,209,217,229,231,233-
264-265, 289. 235,242,250,259,263,266,284-
Número cardinal, 87-88,97,99,112, 285, 293-294, 296, 303.
117-118, 120, 123, 126, 130-133, Número .. . indutivo, 47-48, 58, 71,
135, 139, 142-145, 148, 173, 179, 78, 99, 117-119, 121-123, 127,
181, 182, 191, 193-195, 197, 199, 130-131,135,138,140.
200,233,263,269,284-285,302. Número... irracional, 26, 97, 102,
Número finito, 18-19, 38, 103, 126, 107, 109-110, 113,154, 195.
131,172,175,188,191, 235. Número ... natural, 37, 39-42, 97.
Número indutivo, 47-48, 57, 71, 78, Número ... real, 9, 49, 53, 97-98, 102,
98-100, 117-123, 127, 130-131, 110-115, 127, 149, 151, 153-155,
135,138,140,188,193,197,234. 157, 160, 162, 164-165, 169, 195,
Número irracional, 109, 110, 111. 198.
Número máximo, 200. Números naturais, 11-17, 22, 25, 31,
Número multiplicável, 191. 32, 37-41, 44, 47, 49-50, 57, 132,
Número não indutivo, 132, 187, 189, 284.
190,191. Números .. . complexos, 9, 53, 97, 98,
Número não indutivo, 132, 187, 103, 113, 114, 115, 116.
189-191. Números-relação, 86-89, 97, 137-
Número real, 9, 49, 53, 97-98, 110-115, -138, 142-144,173.
127, 149, 151, 153-155, 157, 160-
-162,164-165, 167-169, 195, 198. o/a, 231, 243, 251, 291.
Número reflexivo, 121, 187-189, ÜCCAM, 267, 302.
191,203. Ocorrência primária, 260.
Número relação, 86-88, 94-95, 140. Ocorrências secundárias, 260.
Número serial, 87, 89, 125, 135-136, Ordem cíClica, 65.

305
Ordem, 49, 303, 305. Proposições, 9-10, 13-17, 20, 38, 41,
Ordinais finitos, 137, 143. 42-43, 85, 89, 94, 118, 123, 128,
Oscilação terminal, 165-166, 170. 140, 143, 171, 173, 183, 192, 208,
209, 213-214, 216-219, 221, 223,
Parecença,81~,86,89-90,93. 225, 227-230, 232-233, 235, 238,
Pannénides, 202-303. 239, 241-242, 245, 247-251, 255-
Particular, 1-2, 13, 23-24, 37, 91, 97, -260, 264, 267,269,278-280,284,
99, 157, 159, 207, 209, 222, 241, 289-298, 303.
251-252,258,265,285,288. Propriedade hereditária, 39.
PEANo, 14-18, 20, 21-22, 41-43, 72, Propriedade indutiva, 39.
118,124-125,194,239,303.
PEIRCE, C. S., 53. Quantidade, 17, 21, 104, 119, 145,
Permutações, 79, 291. 157,160,162,284,285.
PiTÁGORAS, 13,102-103,303.
PLATÃ0,202, 205,~251, 255,268, Riltios, 100-102, 105-112, 115, 127,
286, 288, 303. 130, 132, 142, 149-150, 195-198.
Pluralidade, 23: 232, 249. Referente, 76.
PonJCA!ffi, 47, 303. Relação assimétrica, 52, 54, 55, 57,
Pontos, VIII, 9-12, 17, 25, 32, 39, 49, 62, 67, 68, 69, 70.
59, 62, 65, 70, 75, 91-92, 105, 119, Relação conectada, 53, 55,57-60,62,
141, 143, 145-146, 149-151, 153, 69, 84, 89, 272.
162-164, 170, 188-190, 192, 221, Relação de muitos para um, 29, 303.
226,245-246,249,252, 284, 289, Relação de um para muitos, 29, 303.
299. Relação de um para um, 29-30, 60,
Pontos-limite, 148, 149, 152, 153. 77-78, 81, 83, 99, 120-122, 124,
Posteridade própria, 58, 59, 125. 125, 128,183,204,206,303.
Postulados, 109, 111. Relação reflexiva, · 30-31, 121-122,
Precedente, 146. 135, 188.
Premissas da aritmética, 14, 16, 18, Relação serial, 56, 64, 88, 147.
211-213, 219, 221, 225, 255, 278, Relação simétrica, 30, 31, 54, 68-70.
283,287. Relação transitiva, 31, 53-55, 57, 59,
Progressões, 19-20, 123, 125-126, 61-62,69, 70, 84.
135, 138, 153-154, 197. Relação ... quadrado de uma, 54.
Proposições analfticas, 298. Relações de um para muitos, 71-75,
Proposições elementares, 235. . 285.

306
Relações de um para um, 74-76, 120, 130, 132, 135-142, 145-146, 148-
125,285. -155, 157, 169-171, 181-182, 184,
Relatum, 76. 191-192, 197-198, 205-206, 276.
Representante, 176, 177, 182. Séries compactas, 101, 141, 142, 150,
Rigor, vm, 17, 65, 98, 145, 211-212, 151, 152, 198.
245, 296. Séries compactas, 1~141, 150, 152,
ROYCE, 121, 123, 303. 153,155.
SHEFFER, 217, 303.
Secção de Dedekind, 105, 108, 148. Sil~mo,240,241,287,297.

Secção terminal, 164, 165, 166, 170. Símbolos incompletos, 264.


Se~entos, 11~112, 147,148. SócRATES, 72, 204-206, 227, 230, 233,
Selecções, 173, 303, 305. 238-239, 241, ~251, 255, 268,
Semelhança de relações, 81, 125, 305. 286-291,293-294,297.
Semelhanças de classes, 4-6, 24-25, Subclasses, 128-129, 181-182, 188,
27, 29-34, 41-42, 68, 70, 72, 76, 189, 200.
81-83, ~. 98-100,105,118-119, Subtracção, 114, 120, 131, 132.
121, 123, 126, 132-133, 155, 171, Sucessor de um número, 15-21, 37-
174-180, 183-184, 186, 188-198, -44, 49, 57-58, 118, 123-125, 140,
2~204, 206, 209, 211, 229-230, 152, 171, 194-195, 203.
237,~269,271,273,277,280, Sujeitos, 70, 208, 209, 245, 252, 279.
285,287,294,296,303.
Sequente, 147. Tautologia, 296, 298.
Série bem ordenada, 139, 140, 149, Tempo, 12, 2~21, 25, 28, 44, 48, 52,
151, 181,182,191. 62, 94, 101, 113, 117, 119, 130,
Série condensada em si mesma, 135, 149, 156-157, 159, 206, 209,
153, 154. 212,273,283,286, 288, 299.
Série dedekindiana, 108, 111, 150, Tipos, lógicos, 4, 10, 24, 67, 79, 82,
151, 155. 83,97, 99, 108,135, 153,157, 198,
Série fechada, 154. 199, 201-202, 207, 209, 223, 232,
Série infinita, 135, 276. 235, 243, 252-253, 269, 274-276,
Série perfeita, 154. 278, 280, 283,285, 296, 298.
Série, 11-12, 14, 16-20, 39, 46, 48-50, Todo~as,231,237,291 .

55-61, 63, 67-69, 87-88, 90, 100,


101, 103-112, 119, 121, 123, 127, Uma classe reflexiva, 121.

307
Valor da função, 74, 160-161, 163- WEIERsrRAss, 145, 159, 304.
-165,167,170-171,256. WELI.S, H. G., 168,304.
Valor de verdade, 215-216, 270-271. WHITEHEAD, A. N., 1, 11, 98, 116, 159,
Variáveis, 5, 21, 228, 234-235, 239, 175, 304.
289, 291-293, 295, 297-298. WmGENSTEJN, 298, 304.
V'EBuiN, o., 90, 304.
Verbo,208. ZERMELO, 181-182, 190-192, 304.
VIZinhança, 156,162-163. Zero, 100, 304.

308
ÍNDICE

Prefácio oooooooo····oooo• • oo• ooooo •oo·· · oo • oo•oo •oo• oo•oo ·ooooo oo ooooo •• ooooooo···oo·oo····ooooo ooo o ooooo o oooo oo oo VII

Nota do Editor oooooooooOOooOooOooooo o oo.oo••••oo······•oooo•oo•• · oo•oo······oo···•oooo•oo••••oo•oo••oooooo•• IX

Introdução ooooooo• •oooooooooo····oooooooooooooooo····oo••oooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooo.. 1

CAPITuLo I. A Série de Números Naturais 0 0 0 0 0 0 0000 0 0 0 0 0 0 0 0 00 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 9

CAPITuLo II. Definição de Número 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 00 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 . . . . . 23

CAPITuLo fi. Finitude e Indução Matemática 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 00 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 00 0000 00 37


CAPITuLo IV. A Definição de Ordem oo oo oooooooooooo oooooooo oooooooooooooooooooooo• 49
CAPITuLo V. Tipos de Relações ooooooooOOOOooooOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO 67
CAPITuLo VI. Semelhança de Relações oooooooo OOOO ooOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO 81
CAPITuLo VII. Números Racionais, Reais e Complexos 0 0 0 0 0 0 0 0 0 00 00 00 00 97

CAPITuLo vm. Números Cardinais Infinitos OOooooOOOOooooOOOOooOOOOOOOOOOOOOOOO 117

CAPITuLo IX. Séries e Ordinais Infinitos oooooooooooooooooooo oooooooooooooooooooo· 135


CAPITuLo X. Limites e Continuidade 0000 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 . . 0 0 0 0 0 0 0 0 0 145
CAPITuLo XI. Limites e Continuidade de Funções 000000000000000000000000 159
CAPITuLo XII. Selecções e o Axioma Multiplicativo 0000 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 173
CAPITuLo XID. O Axioma do Infinito e os Tipos Lógicos 0000 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 193
CAPITuLo XIV. Incompatibilidade e a Teoria da Dedução 00000000000000 211

CAPITuLo XV. Funções proposicionais . oo • ••••• •• oo •• · · · · · · · · · · · · · · · ·oooo•oo•oo·oo· 227

CAPITuLo XVI. Descrições .. oooo•• oo•· · · · · o o · · · o o · · · · · · · · · · · oo···· •• oo • •• • • • oo •• · · · · · · · · o o · · · · 243


CAPITuLo XVII. Classes · · o o · · · · · · · · · · · · · · · · · • o o o o · · · · ··oo···oo · oo · · · · · · · · · · · · · ·oo····oo·oo• oo··· · 263

CAPITuLo XVID. Matemática e Lógica oo oooo ooooooooooooooooooOOoooo oo ooooOOOOOOooooOOOO 283

índice Remissivo 301

309
Esta edição de /ntrodufáo à Fiwsofia Matemática
foi impressa e encadernada para a
FuntÚlfáo Cawust~ Gu/bmkian,
na Gráfica ACD PRINT, SA.
www.acdprim.pt

A tiragem é de 750 exemplares

Novembro de 2015

Depósito Legal n.0 400639/15

ISBN 978-972-31-1195-8

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