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A jurisprudência modera a liberdade contratual?

Manuel Lopes Madeira Pinto


(Juiz Desembargador, Tribunal da Relação do Porto)

I – Introdução(1)
No mundo contemporâneo, a vida em comunidade suscita uma infinidade
de conflitos de interesses entre pessoas singulares entre si e com outras pessoas
colectivas ou entidades públicas.
O Direito Civil tem de servir de afirmação prática entre a ideia da Justiça
em sentido jurídico, ou seja, como virtude atinente à constante vontade de dar a
cada um o seu direito, na fórmula de Ulpiano (Digesto), “constans et pertetua
voluntas ius suum cuique tribuendi”2 e a vida real em comunidade de acordo com
a consciência jurídica geral.
Esta é a metodologia jurídica da jurisprudência dos interesses, que se
impôs no mundo civilizado desde meados do século passado e assenta no

1
O texto corresponde à intervenção do autor no Congresso Internacional de Direito Civil (CIDC)
– Contributos para uma reflexão sobre a autonomia privada, realizado em 23/11/2018 no ISCET,
Instituto Superior de Ciências Empresariais e do Turismo.
Texto escrito na ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.
2
Decorrente da experiência prática e científica do direito romano.

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primado da investigação da vida e da valoração da vida, nas palavras de Philipp


Heck3.
Esse papel cabe em última ratio ao juiz, chamado a dirimir os litígios
apresentados ao Tribunal competente, apurando os factos e sobre os mesmos
aplicando o direito positivado nas leis, através de decisão devidamente
fundamentada4, para tal devendo fazer a sua justa interpretação e integração das
lacunas que a lei padeça, de acordo com a legitimidade democrática e
independência conferidas pelos artigos 202.º, n.os 1 e 2,5 e 203.º6 da Constituição
da República Portuguesa de 1976.
Ao contrário do sistema jurídico anglo-saxónico do common law, onde as
decisões judiciais concretas valem como precedentes vinculantes nas decisões
judiciais posteriores similares, é sabido que no nosso ordenamento jurídico
apenas existia a figura do assento, enquanto decisão judicial obrigatória, nos
termos do artigo 2.º do Código Civil de 1966. Após uma longa querela
doutrinária7, com a declaração da inconstitucionalidade do artigo 2.º do Código
Civil de 1966 pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 743/96, de 28.05 e a
subsequente revogação desta norma pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12.12, a
jurisprudência deixou de ser fonte de Direito e apenas é permitido a prolação de
Acórdãos para Uniformização de Jurisprudência pelo pleno das secções cíveis do
Supremo Tribunal de Justiça8.
A jurisprudência, na acepção jurídica do conceito, constitui a orientação
que as decisões proferidas pelos tribunais em casos concretos, nomeadamente as

3
Abandonada que foi a jurisprudência dos conceitos, assente na concepção da ciência jurídica nos
princípios da lógica formal, sistemática e dedutiva, que fez escola na Europa e em muitos cantos
do mundo durante fins do século XIX até meados do Século XX.
4
De acordo com as disposições dos artigos 8.º a 11.º do Código Civil de 1966 e artigos 154.º, n.º 1, e
607.º, n.º 3, do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/20113, de 26.06.
5
“1. Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome
do povo. 2. Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e
interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e
dirimir os conflitos de interesses públicos e privados”.
6
“Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei”.
7
Na qual teve especial relevância o nosso saudoso mestre Prof. Doutor Castanheira Neves.
8
Nos termos do disposto nos artigos 686.º e 688.º do CPC.

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que merecem publicação pública, imprimem à interpretação e integração do


Direito.
Isto posto, é indubitável que a jurisprudência hoje tem um papel
fundamental na modelação9 das normas jurídicas e na moderação10 da aplicação
prática do Direito, não podendo o jurista de qualquer área e em qualquer das
actividades profissionais específicas, dispensar-se de conhecer as correntes
jurisprudenciais firmadas sobre as diversas questões jurídicas, sob pena de se ver
ultrapassado no conhecimento do Direito com os inerentes prejuízos
profissionais.
Acresce que a publicação das decisões dos Tribunais Superiores nas mais
variadas plataformas, quer em papel, quer por meios informáticos e a cada vez
mais assídua e reconhecida como importante partilha de conhecimentos entre a
doutrina e a jurisprudência nos mais diversos fóruns (como este), tem vindo a
revelar-se uma contribuição generosa para tal.

II – Liberdade contratual
Descendo ao tema da minha intervenção, procuraremos apontar situações
da prática judicial onde a jurisprudência tem vindo a ter um papel moderador
fundamental da liberdade contratual.
Aponta-se o negócio jurídico como instrumento principal da realização da
autonomia privada.
Nesta existem duas valorações jurídicas e normativas diferentes: uma
correspondente à valoração pelo legislador acerca do comportamento das partes e
outra anterior que as partes fazem dos seus próprios interesses.
O princípio da autonomia da vontade, tutelado constitucionalmente, está
ligado ao valor de autodeterminação da pessoa, à sua liberdade, como o direito de
conformar o mundo e conformar-se a si próprio.

9
Conformar, retocar, Dicionário da Língua Portuguesa, Academia das Ciências de Lisboa, Verbo
Editora, 2001.
10
Fazer diminuir a intensidade de algo que é excessivo ou exagerado.

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Como princípio não tem valor absoluto: há que combiná-lo com outros e,
quando estes entrem em oposição, tem que se ajustar ou até sacrificar, quando na
ponderação dos interesses aqueles apresentem peso igual ou superior. Entre estes
termos os princípios da confiança e da boa fé.
Corolário daquela autonomia da vontade apresenta-se no direito civil o
princípio da liberdade contratual. Desdobra-se em liberdade de celebração ou
conclusão dos contratos – liberdade de contratar, como faculdade de realizar ou
não determinado contrato – e liberdade de modelação do conteúdo contratual –
perspectivando a escolha do tipo de negócio atinente à melhor e mais eficaz
satisfação dos seus interesses e à maneira de preencher o seu conteúdo concreto.
Tem consagração no artigo 405º do Código Civil de 1966 e dele resultam
quatro faculdades:
– livre opção de escolha de qualquer tipo contratual, com submissão às
suas regras imperativas – 1.ª parte do n.º 1;
– livre opção de celebrar contratos diferentes dos típicos, designados por
contratos atípicos – 2.ª parte do n.º 1;
– possibilidade de introdução no tipo contratual de cláusulas defensivas
dos interesses das partes, mas que não quebram a função sócio económica
assumida pelo respectivo tipo – 3.ª parte do n.º 1; e
– reunião no mesmo contrato de dois ou mais contratos típicos (contratos
mistos) – n.º 211.
No mundo económico-finaceiro contemporâneo, a tensão entre a
autonomia e a heteronomia contratual apresenta-se muito intensa, revelando
uma tentativa de equilíbrio nem sempre fácil de alcançar. A composição
espontânea ou paritária dos interesses a que se referia Orlando de Carvalho
(Teoria Geral do Direito Civil, 2012, pp. 16 ss., 90 ss., 227 ss.), regra no direito
privado, aparece-nos nestes domínios temperada por interferências de natureza

11
"Sem embargo da eventual existência de normas imperativas próprias, no regime de ambos ou
de um deles apenas" – Prof. A. Varela, ob. cit., pg. 46, e na globalidade das anteriores
considerações – Revista de Legislação e de Jurisprudência (RLJ), n.º 128, pgs. 370 e seg..

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heterónoma, no sentido de reequilibrar a autonomia da vontade com princípios


de justiça contratual, quer a montante, através de disposições legais imperativas
que se impõem aos contraentes, quer a jusante, mediante a intervenção
modeladora dos tribunais perante textos contratuais iníquos ou excessivamente
desequilibrados.
A autonomia da vontade é posta em causa e uma ingerência de tipo
hierárquico começa a emergir sempre que é questionada a “eficácia económica da
liberdade contratual”, gerando-se “falhas do mercado”12. Quando os resultados de
uma actividade de natureza privada contendem com os princípios enformadores
do ordenamento jurídico, contrariando aquelas que são as “traves mestras” do
nosso sistema, é desencadeada uma reacção “superior” que trava os efeitos da
autocomposição. Evidentemente que, em regra, o exercício da liberdade
contratual traduz um jogo de forças do qual, com toda a probabilidade, sai
vencedor o contraente mais hábil, mais experiente, o mais preparado económica
e juridicamente, em suma, o mais forte. Mas o prejuízo de um dos contraentes e a
vantagem do outro, em si mesmos, não põem em causa a subsistência do
contrato. A essência do contrato comporta ganhos e perdas, e a sua recondução à
vontade dos contraentes transforma as vantagens de alguns em vantagens de
todos. Ainda assim, cumpre-se, nestas hipóteses, a liberdade contratual.
Nessa área económica, o exercício pelos contraentes de um poder
regulamentar paralelo à normação positiva, está limitado, em primeiro lugar, pelo
disposto em matéria de cláusulas contratuais gerais, de negócios usurários, de
vícios da vontade e por diversa regulamentação legal específica relativa às
actividades bancárias e financeiras e, em segundo lugar, poderá ser limitado
sempre que viole os princípios jurídicos vigentes no direito português.
Desde logo, a cláusula geral da ordem pública prevista no artigo 280.º, n.º
2, do Código Civil, integrada pelos princípios fundamentais constitucionalmente
consagrados e que tem hoje na sua base uma economia de mercado conformada

12
Claus-Wilhelm Canaris, A liberdade e a justiça contratual na «sociedade de direito privado,
“Contratos: actualidade e evolução”, 1997, pg. 57.

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pelas regras europeias, permite uma grande plasticidade e consequente


declaração da nulidade total ou a redução e conversão dos negócios jurídicos
financeiros, mesmo oficiosamente pelos tribunais13, de acordo com o disposto nos
artigos 286.º, 289.º, n.º 1, 292.º e 293.º do Código Civil.

III – Impugnação pauliana


Nas relações contratuais entre particulares e empresas, assume grande
importância a protecção dos credores através da garantia patrimonial do
património dos devedores com os quais contrataram aquando da celebração do
negócio jurídico.
Frequentemente ocorre a perda ou diminuição dessa garantia patrimonial
por actos jurídicos realizados posteriormente pelos devedores.
A impugnação pauliana consiste na faculdade que a lei concede aos
credores de atacarem judicialmente certos actos válidos ou mesmo nulos
celebrados pelos devedores em seu prejuízo (artigo 610.º do Código Civil).
Nos termos desta disposição legal e do artigo 612.º do mesmo diploma,
essa impugnação depende da verificação simultânea destes requisitos:
– a existência de determinado crédito;
– que esse crédito seja anterior à celebração do acto ou, sendo posterior,
tenha sido o acto realizado dolosamente visando impedir a satisfação do
direito do credor;
– resultar do acto a impossibilidade para o credor de obter a satisfação
plena do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade;
– que tenha havido má fé, tanto da parte do devedor como do terceiro,
tratando-se de acto oneroso, entendendo-se por má fé a consciência do
prejuízo que o acto causa ao credor.

13
É vasta a recente jurisprudência sobre contratos de swap (swap de taxa de juros: troca da taxa de
juros prefixados por juros pós-fixados ou o inverso, para quem quer evitar o risco de uma futura
alta nos juros e swap cambial: troca de taxa de variação cambial, v.g., variação do preço do dólar
americano, por taxa de juros pós-fixados) de depósito bancário, mútuo, desconto bancário,
locação financeira mobiliária e imobiliária, factoring, leasing, garantias bancárias acessórias e
autónomas, cartas de conforto, etc..

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Como resulta do n.º 2 do artigo 612.º, a má fé consiste apenas na


consciência do prejuízo que o acto causa ao credor, não se exigindo a intenção de
prejudicar o credor.
É sabido que não basta para a existência de má fé do devedor e de terceiro,
partes no acto impugnado, que tenham conhecimento da situação precária do
devedor. Por outro lado, a má fé não se identifica com a intenção de prejudicar ou
com o conhecimento da insolvência do devedor. Essencial é que o devedor e
terceiro tenham consciência do prejuízo que a operação causa aos credores.
Esta é jurisprudência que foi sendo firmada nos nossos tribunais
superiores14.
O requisito da má fé é dispensável se o acto impugnado for um acto
gratuito, conforme resulta a contrario do disposto no citado artigo 612.º.
Se o acto for gratuito, e verificando-se os demais requisitos, a impugnação
pauliana procede sempre, ainda que o devedor e o terceiro adquirente estejam de
boa-fé, pelo que não há que averiguar da existência desta.
A diferença de soluções legais para o acto oneroso e o acto gratuito assenta
precisamente no facto de neste último não entrar no património do devedor uma
contrapartida. Afigurou-se, assim, ao legislador como mais digno de protecção o
interesse do credor (que procura evitar um prejuízo) do que o interesse do
terceiro (que procura uma vantagem).
Nos termos do artigo 616.º, n.º 1, do Código Civil, julgada procedente a
impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu
interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar
os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei.

14
V., entre muitos, os acórdãos do STJ de 25.11.2014 (Pinto de Almeida) e de 28.06.2018 (Olindo
Geraldes), do TRP de 19.03.2009 (por nós relatado) e do TRL de 04-10-2018 (Carla Mendes).

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IV – Boa fé
A boa-fé é um princípio primordial da nossa ordem jurídica, enquanto
impõe a criação de deveres acessórios que não foram expressamente pactuados
aquando da contratação e identifica quais os comportamentos a serem seguidos.
Apesar de invadir todas as áreas do Direito, revela-se com grande impacto
no âmbito dos contratos.
Impõe que as partes do contrato ajam de modo honesto, correcto e leal, e
que se comportem de modo a não frustrar a posição da contraparte. É, portanto,
um padrão normativo de conduta que conforma toda a relação contratual desde o
seu surgimento até à sua extinção (e até mesmo depois). Esta é a dimensão
objectiva do princípio da boa fé, patente no artigo 227.º, n.º 1, do Código Civil:
“[q]uem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve (…) proceder
segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente
causar à outra parte”.
Em termos subjectivos, reporta-se ao estado de um sujeito que considera
estar a actuar em conformidade com o Direito, como acontece no artigo 243.º, n.º
2, do Código Civil, por exemplo: “[a] boa fé consiste na ignorância da simulação ao
tempo em que foram constituídos os respectivos direitos”. Neste prisma, como
afirma Almeida Costa, (Direito das Obrigações, 2006, pág. 120), a boa fé reconduz-
se a um conceito técnico-jurídico utilizado numa multiplicidade de normas para
descrever ou delimitar um pressuposto de facto da sua aplicação.
Há uma grande semelhança entre o primado da boa fé e o princípio da
confiança dos contraentes, na medida em que que se impõe que ajam e acreditem
na actuação séria do outro e na mútua cooperação para a realização dos fins
contratuais.
Com este princípio o juiz contemporâneo tem em conta valorações que
não estão legalmente contempladas, ultrapassando uma visão estrita e formal do
Direito, procurando que a virtude da Justiça a que aludimos ab initio (distribuir a
cada um o que lhe pertence) atinja o fim social e económico do Direito.

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A jurisprudência nacional recente vem dando relevância neste âmbito aos


deveres acessórios de conduta, ou seja, aqueles que, “não respeitando
directamente, nem à perfeição, nem à correcta realização da prestação principal,
interessam todavia ao regular desenvolvimento da relação obrigacional, nos termos
em que ela deve processar-se entre os contraentes que agem honestamente e de
boa-fé nas suas relações recíprocas”15.
Tem especial acuidade no âmbito dos contratos de adesão sujeitos a
cláusulas contratuais gerais, enquanto se exige que a interpretação dessas
cláusulas privilegie sempre o sentido mais conforme à lealdade e à honestidade
entre as partes, sendo vasta a jurisprudência publicada nessa matéria.

V – Abuso do direito
Finalmente, não podemos deixar de referir como campo essencial da
actividade jurisprudencial no equilíbrio dos interesses em litígio e na realização
da ideia de Justiça, o instituto do abuso do direito na vertente da conduta
contraditória de uma parte no percurso contratual (venire contra factum
proprium).
Assim, citemos alguns acórdãos nesta matéria, até para alívio dos
destinatários desta já longa exposição.
No acórdão do STJ de 12-11-2013 (Nuno Cameira), in www.dgsi.pt, que versa
sobre uma oposição à execução, agora embargos de executado, em que estava em
causa um aval numa livrança em branco, decidiu-se, por unanimidade, que: “I – A
proibição do comportamento contraditório configura actualmente um instituto
jurídico autonomizado, que se enquadra na proibição do abuso do direito (artigo
334.º do Código Civil), nessa medida sendo de conhecimento oficioso; no entanto,
não existe no direito civil um princípio geral de proibição do comportamento
contraditório. II – São pressupostos desta modalidade de abuso do direito: a
existência dum comportamento anterior do agente susceptível de basear uma
situação objectiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e
15
Citando o douto acórdão do TRP de 27.11.2017 (Jorge Seabra).

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actual) ao agente; a boa fé do lesado (confiante); a existência dum “investimento de


confiança”, traduzido no desenvolvimento duma actividade com base no factum
proprium; o nexo causal entre a situação objectiva de confiança e o “investimento”
que nela assentou. III – O princípio da confiança é um princípio ético fundamental
de que a ordem jurídica em momento algum se alheia; está presente, desde logo, na
norma do artigo 334.º do Código Civil, que, ao falar nos limites impostos pela boa fé
ao exercício dos direitos, pretende por essa via assegurar a protecção da confiança
legítima que o comportamento contraditório do titular do direito possa ter gerado
na contraparte. IV – Actua com abuso do direito, na modalidade de venire contra
factum proprium, o banco que acciona uma livrança, que os executados avalizaram
em branco, oito anos depois de estes se terem afastado da sociedade subscritora, na
qual tinham interesse, tendo o exequente conhecimento que estes só avalizaram a
livrança por serem pessoas com interesse na sociedade subscritora, sendo que, na
altura do afastamento (meados de 2003), a conta caucionada de que a sociedade
era titular encontrava-se regularizada e, posteriormente (já depois de 2004), o
exequente, sabendo que os executados se sentiam desobrigados e que era bastante a
garantia dos restantes avalistas, continuou a conceder crédito à sociedade através
da renovação do contrato de abertura de crédito que tivera início em 03-07-2002. V
– Perante estes dados de facto, verifica-se que os executados podiam fundadamente
confiar que, tanto tempo depois de se terem apartado da sociedade subscritora, o
banco não accionaria o aval que prestaram: é inadmissível e contrária à boa fé a
conduta assumida pelo exequente, na exacta medida em que trai a confiança
gerada nos executados pelo seu comportamento anterior, confiança essa
objectivamente reforçada pelo decurso de um tão dilatado lapso de tempo”.
No Acórdão do TRP, de 21-02-2018 (Filipe Caroço), in www.dgsi.pt, sobre a
interpretação do invocado contrato de seguro facultativo, decidiu-se, por
unanimidade que, “[t]endo a R. aceitado o contrato nas condições em que o fez,
podendo e devendo ter colhido da tomadora elementos detalhados, relativos a
aspectos muito relevantes para a apreciação do risco, não pode agora, ante a
verificação do sinistro, pretender a declaração da sua nulidade para se desobrigar

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do pagamento de indemnizações que resultem do accionamento da respectiva


apólice. A inobservância da diligência mínima, com vista ao exacto conhecimento
do risco a que aceitou dar cobertura, implica, por aplicação dos princípios da boa fé
e do abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, que aquela
deverá suportar as inerentes consequências, não podendo, para se desvincular da
execução do contrato, escudar-se posteriormente numa nulidade do contrato para
a qual, com a sua omissão, contribuiu e teve oportunidade (e o dever) de evitar,
solicitando informação essencial e mais detalhada à tomadora. Com efeito, não
pode a R. seguradora prevalecer-se da nulidade do contrato, quando facilmente
poderia conhecer, por meras declarações que solicitasse à tomadora, aspectos
indispensáveis da cobertura do risco, como era a identificação do segurado e a
definição da titularidade do interesse digno de protecção legal no âmbito da
cobertura, principalmente ao saber que o condutor habitual do veículo não era a
tomadora do seguro”.
No Acórdão do TRC, de 24-04-2012 (Carlos Querido), in www.trc.pt,
decidiu-se que: “[t]endo os réus (locadores) assumido numa transacção judicial
celebrada com os autores (locatários), o compromisso de autorizar a realização de
obras no arrendado indispensáveis ao regular funcionamento do estabelecimento
comercial ali sedeado, recusando mais tarde conceder autorização para a
realização dessas obras, o que justificou o indeferimento camarário do pedido de
licenciamento, vindo depois peticionar a resolução do contrato com fundamento na
falta de licenciamento do estabelecimento (motivada pela sua recusa de
autorização de obras), mostram-se verificados todos os pressupostos da litigância
de má fé por abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium”.
*
Concluindo, creio que a resposta à pergunta “a jurisprudência modera a
liberdade contratual?” (que dá o título a esta minha exposição) é afirmativa, mas
“não se é bom juiz em causa própria”.

(Porto, 23.11.2018)

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