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I – Introdução(1)
No mundo contemporâneo, a vida em comunidade suscita uma infinidade
de conflitos de interesses entre pessoas singulares entre si e com outras pessoas
colectivas ou entidades públicas.
O Direito Civil tem de servir de afirmação prática entre a ideia da Justiça
em sentido jurídico, ou seja, como virtude atinente à constante vontade de dar a
cada um o seu direito, na fórmula de Ulpiano (Digesto), “constans et pertetua
voluntas ius suum cuique tribuendi”2 e a vida real em comunidade de acordo com
a consciência jurídica geral.
Esta é a metodologia jurídica da jurisprudência dos interesses, que se
impôs no mundo civilizado desde meados do século passado e assenta no
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O texto corresponde à intervenção do autor no Congresso Internacional de Direito Civil (CIDC)
– Contributos para uma reflexão sobre a autonomia privada, realizado em 23/11/2018 no ISCET,
Instituto Superior de Ciências Empresariais e do Turismo.
Texto escrito na ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.
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Decorrente da experiência prática e científica do direito romano.
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Abandonada que foi a jurisprudência dos conceitos, assente na concepção da ciência jurídica nos
princípios da lógica formal, sistemática e dedutiva, que fez escola na Europa e em muitos cantos
do mundo durante fins do século XIX até meados do Século XX.
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De acordo com as disposições dos artigos 8.º a 11.º do Código Civil de 1966 e artigos 154.º, n.º 1, e
607.º, n.º 3, do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/20113, de 26.06.
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“1. Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome
do povo. 2. Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e
interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e
dirimir os conflitos de interesses públicos e privados”.
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“Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei”.
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Na qual teve especial relevância o nosso saudoso mestre Prof. Doutor Castanheira Neves.
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Nos termos do disposto nos artigos 686.º e 688.º do CPC.
II – Liberdade contratual
Descendo ao tema da minha intervenção, procuraremos apontar situações
da prática judicial onde a jurisprudência tem vindo a ter um papel moderador
fundamental da liberdade contratual.
Aponta-se o negócio jurídico como instrumento principal da realização da
autonomia privada.
Nesta existem duas valorações jurídicas e normativas diferentes: uma
correspondente à valoração pelo legislador acerca do comportamento das partes e
outra anterior que as partes fazem dos seus próprios interesses.
O princípio da autonomia da vontade, tutelado constitucionalmente, está
ligado ao valor de autodeterminação da pessoa, à sua liberdade, como o direito de
conformar o mundo e conformar-se a si próprio.
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Conformar, retocar, Dicionário da Língua Portuguesa, Academia das Ciências de Lisboa, Verbo
Editora, 2001.
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Fazer diminuir a intensidade de algo que é excessivo ou exagerado.
Como princípio não tem valor absoluto: há que combiná-lo com outros e,
quando estes entrem em oposição, tem que se ajustar ou até sacrificar, quando na
ponderação dos interesses aqueles apresentem peso igual ou superior. Entre estes
termos os princípios da confiança e da boa fé.
Corolário daquela autonomia da vontade apresenta-se no direito civil o
princípio da liberdade contratual. Desdobra-se em liberdade de celebração ou
conclusão dos contratos – liberdade de contratar, como faculdade de realizar ou
não determinado contrato – e liberdade de modelação do conteúdo contratual –
perspectivando a escolha do tipo de negócio atinente à melhor e mais eficaz
satisfação dos seus interesses e à maneira de preencher o seu conteúdo concreto.
Tem consagração no artigo 405º do Código Civil de 1966 e dele resultam
quatro faculdades:
– livre opção de escolha de qualquer tipo contratual, com submissão às
suas regras imperativas – 1.ª parte do n.º 1;
– livre opção de celebrar contratos diferentes dos típicos, designados por
contratos atípicos – 2.ª parte do n.º 1;
– possibilidade de introdução no tipo contratual de cláusulas defensivas
dos interesses das partes, mas que não quebram a função sócio económica
assumida pelo respectivo tipo – 3.ª parte do n.º 1; e
– reunião no mesmo contrato de dois ou mais contratos típicos (contratos
mistos) – n.º 211.
No mundo económico-finaceiro contemporâneo, a tensão entre a
autonomia e a heteronomia contratual apresenta-se muito intensa, revelando
uma tentativa de equilíbrio nem sempre fácil de alcançar. A composição
espontânea ou paritária dos interesses a que se referia Orlando de Carvalho
(Teoria Geral do Direito Civil, 2012, pp. 16 ss., 90 ss., 227 ss.), regra no direito
privado, aparece-nos nestes domínios temperada por interferências de natureza
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"Sem embargo da eventual existência de normas imperativas próprias, no regime de ambos ou
de um deles apenas" – Prof. A. Varela, ob. cit., pg. 46, e na globalidade das anteriores
considerações – Revista de Legislação e de Jurisprudência (RLJ), n.º 128, pgs. 370 e seg..
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Claus-Wilhelm Canaris, A liberdade e a justiça contratual na «sociedade de direito privado,
“Contratos: actualidade e evolução”, 1997, pg. 57.
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É vasta a recente jurisprudência sobre contratos de swap (swap de taxa de juros: troca da taxa de
juros prefixados por juros pós-fixados ou o inverso, para quem quer evitar o risco de uma futura
alta nos juros e swap cambial: troca de taxa de variação cambial, v.g., variação do preço do dólar
americano, por taxa de juros pós-fixados) de depósito bancário, mútuo, desconto bancário,
locação financeira mobiliária e imobiliária, factoring, leasing, garantias bancárias acessórias e
autónomas, cartas de conforto, etc..
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V., entre muitos, os acórdãos do STJ de 25.11.2014 (Pinto de Almeida) e de 28.06.2018 (Olindo
Geraldes), do TRP de 19.03.2009 (por nós relatado) e do TRL de 04-10-2018 (Carla Mendes).
IV – Boa fé
A boa-fé é um princípio primordial da nossa ordem jurídica, enquanto
impõe a criação de deveres acessórios que não foram expressamente pactuados
aquando da contratação e identifica quais os comportamentos a serem seguidos.
Apesar de invadir todas as áreas do Direito, revela-se com grande impacto
no âmbito dos contratos.
Impõe que as partes do contrato ajam de modo honesto, correcto e leal, e
que se comportem de modo a não frustrar a posição da contraparte. É, portanto,
um padrão normativo de conduta que conforma toda a relação contratual desde o
seu surgimento até à sua extinção (e até mesmo depois). Esta é a dimensão
objectiva do princípio da boa fé, patente no artigo 227.º, n.º 1, do Código Civil:
“[q]uem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve (…) proceder
segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente
causar à outra parte”.
Em termos subjectivos, reporta-se ao estado de um sujeito que considera
estar a actuar em conformidade com o Direito, como acontece no artigo 243.º, n.º
2, do Código Civil, por exemplo: “[a] boa fé consiste na ignorância da simulação ao
tempo em que foram constituídos os respectivos direitos”. Neste prisma, como
afirma Almeida Costa, (Direito das Obrigações, 2006, pág. 120), a boa fé reconduz-
se a um conceito técnico-jurídico utilizado numa multiplicidade de normas para
descrever ou delimitar um pressuposto de facto da sua aplicação.
Há uma grande semelhança entre o primado da boa fé e o princípio da
confiança dos contraentes, na medida em que que se impõe que ajam e acreditem
na actuação séria do outro e na mútua cooperação para a realização dos fins
contratuais.
Com este princípio o juiz contemporâneo tem em conta valorações que
não estão legalmente contempladas, ultrapassando uma visão estrita e formal do
Direito, procurando que a virtude da Justiça a que aludimos ab initio (distribuir a
cada um o que lhe pertence) atinja o fim social e económico do Direito.
V – Abuso do direito
Finalmente, não podemos deixar de referir como campo essencial da
actividade jurisprudencial no equilíbrio dos interesses em litígio e na realização
da ideia de Justiça, o instituto do abuso do direito na vertente da conduta
contraditória de uma parte no percurso contratual (venire contra factum
proprium).
Assim, citemos alguns acórdãos nesta matéria, até para alívio dos
destinatários desta já longa exposição.
No acórdão do STJ de 12-11-2013 (Nuno Cameira), in www.dgsi.pt, que versa
sobre uma oposição à execução, agora embargos de executado, em que estava em
causa um aval numa livrança em branco, decidiu-se, por unanimidade, que: “I – A
proibição do comportamento contraditório configura actualmente um instituto
jurídico autonomizado, que se enquadra na proibição do abuso do direito (artigo
334.º do Código Civil), nessa medida sendo de conhecimento oficioso; no entanto,
não existe no direito civil um princípio geral de proibição do comportamento
contraditório. II – São pressupostos desta modalidade de abuso do direito: a
existência dum comportamento anterior do agente susceptível de basear uma
situação objectiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e
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Citando o douto acórdão do TRP de 27.11.2017 (Jorge Seabra).
(Porto, 23.11.2018)