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Maria Alexandre Lousada - “Paisagens musicais em Lisboa no início do século XIX.

Leituras policiais,
satíricas e iconográficas”, Manuel Morais (coord.), A Guitarra Portuguesa, Lisboa, Ed. Estar/Centro de
História de Arte da Universidade de Évora, 2002, pp. 17-32.

PAISAGENS MUSICAIS EM LISBOA NO INÍCIO DO SÉCULO XIX.


Leituras policiais, satíricas e iconográficas.

Maria Alexandre Lousada


(Dep. Geografia / Centro de Estudos Geográficos, Univ. de Lisboa)

Os estudos musicológicos sobre o passado têm privilegiado ou as instituições régias,


clericais e de elite ou os músicos profissionais. A esta orientação não é alheia a natureza da
documentação disponível, pois os arquivos utilizados pelos musicólogos e historiadores da música
são maioritariamente arquivos de instituições - o que significa que uma boa parte das informações
que facultam são dominadas pelas preocupações e objectivos dessas mesmas instituições e dizem
respeito a músicos profissionais. A música tocada por “músicos populares” ou simples amadores
fica de fora, do mesmo modo que a música tocada e escutada nas cidades, ausente dos espaços
institucionais (corte, igrejas, festividades públicas) ou individuais (casas de grandes senhores, por
ex.) é escassamente contemplada nessa documentação 1. O estudo das práticas musicais do passado
(e restrinjo aqui esse passado aos séculos XVIII-XIX) ficou assim encerrado no quadro de uma
sociabilidade régia, aristocrática, e burguesa (tratada esta, muitas vezes, como uma sociabilidade
de imitação). A música e os músicos populares/tradicionais eram encarados como objecto de
estudo de antropólogos e etnólogos (e dos “curiosos das coisas do passado”) 2. A renovação dos

1
Sobre os problemas colocados pelas fontes arquivísticas, assim como sobre os limites da maior parte dos estudos de
musicologia urbana, veja-se a síntese de Tim Carter, “The sound of silence: models for an urban musicology”, Urban
History, 29, 1 (2002), pp. 15-17.
2
Não é apenas um problema arquivístico. Veja-se, por exemplo, o que sucede na Geografia Cultural, cujas
preferências pela “alta cultura” ou “cultura das elites” só recentemente começou a ser contrabalançada com estudos
sobre a cultura popular, em particular sobre a música popular, durante muito tempo considerada como efémera, de
simples diversão, sem grande complexidade musical, etc. Uma análise desta questão, completada por um “roteiro” de
temas passíveis de serem explorados pela Geografia no domínio da música, uma reflexão sobre os métodos a utilizar e
a defesa de uma contextualização sócio-política das práticas musicais, pode ser lida em A. Leyshon, D. Matless e G.
Revill, “The place of music”; Transactions of the Institute of British Geographers, 20 (1995), 423-433 e Lily Kong,
“Popular music in geographical analyses”, Progress in Human Geography, 19, 2 (1995), 183-198. Sobre o elitismo
nos estudos culturais e a “hipócrita” distinção entre forma (alta cultura) e função (baixa cultura), cf. a crítica de Simon

17
chamados “estudos culturais”, o desenvolvimento da “nova história urbana” e da “nova geografia
cultural” por um lado, e a extraordinária explosão da música popular contemporânea por outro
lado, provocaram um renascimento do interesse pela cultura popular do passado em geral e, no
caso que aqui nos interessa, pela música popular em particular. Interesse a que não é alheio – em
singular diálogo com os folcloristas e antiquaristas do século XIX- o debate sobre as relações entre
cultura erudita, popular e de massas e a discussão entre formais culturais tradicionais e populares.
É no âmbito deste novo quadro teórico, aqui referido de um modo obviamente lacunar, e em
associação com o alargamento do objecto de estudo da musicologia, que se inserem os trabalhos
recentes sobre música e o uso de outro tipo de documentação. O campo de estudo alargou-se de tal
modo que passou a ser dada uma particular atenção não apenas à música popular mas a todo o
género de sons (ruídos, por exemplo) que atravessam quer a vida quotidiana quer os momentos
festivos, tanto na cidade como no mundo rural 3. Em consequência surgiram novos conceitos, como
paisagem sonora e identidade sonora, que fazem hoje parte do vocabulário habitual de geógrafos,
historiadores, sociólogos, antropólogos e musicólogos.

O texto que se segue pretende ser um pequeno contributo para o conhecimento das práticas
e paisagens musicais em Lisboa, entre os finais do século XVIII e as primeiras décadas do século
XIX, com um enfoque particular no universo popular. Não se discutirão aqui as questões que têm
sido abordadas na estimulante produção historiográfico-musical portuguesa dos últimos anos,
mormente as relacionadas com as origens, características musicais e sociais, difusão das modinhas
e da guitarra 4, nem tão pouco se reflectirá sobre o interminável debate acerca das relações entre
cultura erudita e cultura popular. Procurou-se apenas, através sobretudo de fontes menos
utilizadas, menos acessíveis ou não directamente relacionadas com o universo da música, compilar
algumas informações que permitam uma melhor compreensão da paisagem musical popular

Frith, "The good, the bad, and the indifferent: defending popular culture from the populists", in J. Munns e G. Rajan
(eds.), A cultural studies reader, Londres-N.York, 1995, pp. 352-366 (originalmente publicada em Diacritics, 1991)
3
É o caso, por exemplo, dos estudos sobre os sinos ou sobre os ruídos urbanos na perspectiva da relação entre
identidade sonora e identidade territorial. Entre outros, A. Corbin, Les cloches de la terre. Paysage sonore et culture
sensible dans les campagnes au XIXe siècle, Paris, 1994 e Miguel Ángel Marín, “Sound and urban life in a small
Spanish town during the ancien régime”, Urban History, 29 (1), 2002, 49-59. Um bom ponto da situação acerca das
relações entre música e história urbana, acabou de sair num número especial da revista Urban History, vol. 29, 1
(2002).
4
Texto introdutório de M.S.Kastner à reed. de António da Silva Leite, Estudo de Guitarra, Lisboa, 1983 (1ª ed.,
Porto, 1796). Prefácio de G. Doderer a Modinhas Luso-Brasileiras, Lisboa, 1984. Gabriela Gomes da Cruz, “A
modinha, o quotidiano e a tradição musical portuguesa em finais do século XVIII”, Revista Portuguesa de
Musicologia, 1 (1991), 67-74. José Paulo T. Vaz de Carvalho, António da Silva Leite (1759-1833). Aspectos
seleccionados da vida e obra, diss. de mestrado em Ciências Musicais, Fac. Letras, Univ. Coimbra, 1993, polic., parte
IV. Introdução de Mª João Durães Albuquerque à ed. fac-similada do Jornal de Modinhas, ano I, Lisboa, 1996 (1ª ed.
1792-93) e prefácio de Rui V. Nery a Modinhas, lunduns e cançonetas : com acompanhamento de viola e guitarra
inglesa : séculos XVIII-XIX / selecção, revisão e notas de Manuel Morais, Lisboa, 2000.

18
lisboeta, dando uma atenção particular à utilização da viola e da guitarra. Nesta óptica, as
referências e opiniões dos viajantes estrangeiros serão negligenciadas (mas não as ilustrações que
acompanham algumas destas obras), dado que são já hoje uma fonte relativamente conhecida,
explorada e analisada com sucesso em diversos trabalhos. Em contrapartida, far-se-á uma
apresentação de dados recolhidos fundamentalmente em dois tipos de documentos, uns de origem
policial, outros de natureza iconográfica (com larga presença estrangeira), complementados com
uma utilização pontual da abundante literatura satírica e de cordel da época. Os primeiros
documentos registam situações do quotidiano popular da capital em que, por variados motivos
relacionados com a vigilância, a Intendência Geral da Polícia ou a Guarda Real da Polícia
intervieram. Os segundos, permitem-nos uma aproximação visual dessas mesmas situações. Claro
que se trata de representações, de leituras da realidade, elas próprias construtoras da realidade. Mas
os cuidados que devem existir na utilização “realista” do material iconográfico são similares aos
que devem presidir ao manuseamento da informação policial ou do registo literário. Os filtros do
olhar, os canônes, etc, que os historiadores de arte descodificam, também existem nos registos
policiais e na literatura, desenhando um mapa mental da cidade que é parte constituitiva da mesma.
Da escrita satírica da época, privilegiou-se esse singular livro de costumes que é O Piolho
Viajante, obra de notável “equilíbrio entre a sátira e a tendência para a descrição do pitoresco
lisboeta” 5. Vejamos então o que se apurou.

Impõe-se em primeiro lugar uma brevíssima nota sobre o lugar da música em alguns
ambientes sociais da época. Durante o período aqui abordado, a vida musical lisboeta foi bastante
intensa, tendo ficado marcada pela inauguração do teatro de S.Carlos, por algumas temporadas
notáveis e pelo surgimento da prática de concertos públicos e de algumas “academias” e
“sociedades” de música onde se destacam a sociedade filarmónica de Bomtempo e o teatro privado
das Laranjeiras (Barão de Quintela). Por outro lado, os acontecimentos políticos (invasões
francesas, presença inglesa, lutas liberais) foram acompanhados do florescimento de músicas e
cantigas de teor político e de manifestações e comemorações onde a música, erudita e popular,
tinha um lugar de destaque. Estas novidades assinalam também, do ponto de vista social, a

5
Assim o classifica João Palma-Ferreira no prefácio à reedição desta obra, proposta à Censura em 1802 e com edições
em 1821, 1837, 1846 e 1857. António Manuel Policarpo da Silva, O Piolho Viajante divididas as viagens em mil e
uma carapuças, Prefácio e notas por J.Palma-Ferreira, Lisboa, 1973.

19
emergência de um espaço musical burguês, autónomo, a que não terá sida alheia a ida da Corte
para o Brasil 6.
Em 1818-19, a fazer fé na memória do marquês de Fronteira, “o gosto dominante era então
a música” 7, gosto que se prolongou pelos anos revolucionários. Pela pena do mesmo marquês,
fica-se a saber que os saraus musicais faziam parte do quotidiano aristocrático e da alta burguesia:
em casa dos Castelo Melhor, na do Marquês de Borba ou na dos Anadia, por exemplo, tinham
lugar repetidos concertos de amadores “onde a aristocracia se misturava com a democracia”, que
alternavam com as idas ao teatro de S. Carlos; no verão, no palácio de Benfica, as manhãs dos
domingos e dias santos eram ocupadas com a prática ou a audição de concertos entre amigos e
alguns professores, apenas não cumprida pelos impetinentes jogadores de voltarete e de whist.
A música também estaria presente no quotidiano daqueles que podemos designar como os
estratos sociais intermédios – entre a elite e o povo – embora, por enquanto, se disponha de
informações menos ricas. A edição portuguesa das alemãs Crónicas da vida musical portuguesa
na primeira metade do século XIX 8 permitiu alargar o conhecimento sobre as práticas musicais da
burguesia portuguesa, e revelou a importância dos negociantes estrangeiros também neste
domínio. A literatura de costumes e os livrinhos de passatempos da época abrem a possibilidade
de, indirectamente, saber um pouco mais. Dois exemplos, entre muitos possíveis,
indiscutivelmente ligados às novas práticas urbanas de sociabilidade. No primeiro, em Cartas
sobre as Modas, o anónimo autor dos finais do século XVIII informa que é moda as senhoras
pedirem, aos pais ou aos maridos, um mestre de dança e uma professora ou mestre de música,
acrescentando que neste caso era necessário ter cravo em casa; e prossegue dizendo que se é moda
“terem as Senhoras Mestres de solfa, também o é nas que são mais da sécia não a quererem
aprender, contentando-se com que se lhe ensinem de cór algumas árias, assim como se ensinam os
papagaios a falar” 9. O segundo exemplo remete para os jogos e passatempos propostos como
“entretenimento para passar divertidas as grandes noites de Inverno”, publicados em um dos
muitos livrinhos do género que surgiram na época 10. Três dos jogos propostos incluem

6
Sobre a evolução das práticas de sociabilidade em Lisboa na transição do século XVIII, cf. Maria Alexandre
Lousada, Espaços de sociabilidade em Lisboa: finais do século XVIII a 1834, Universidade de Lisboa, Lisboa, 1986,
tese policopiada.
7
Memórias do Marquês de Fronteira e d’Alorna, D. José Trazimundo ..., revistas e coord. por E. Campos de Andrada,
parte primeira e segunda, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1926, p. 191.
8
Publicadas e comentadas por Manuel Carlos de Brito e David Cranmer, Crónicas da Vida Musical Portuguesa na
primeira metade do século XIX, Lisboa, 1990.
9
Cartas sobre as Modas, Lisboa, Typ. Rolandiana, 1789, pp. 55-56.
10
Passatempo honesto, e familiar, ou collecção de quarenta e outo jogos geralmente conhecidos pela denominação de
jogos de prendas; entretenimento para passar divertidas as grandes noites de Inverno ..., segunda edição correcta.
Lisboa, Typ. Rollandiana, 1818.

20
instrumentos musicais ou o seu som: num, com a designação “Da Orquestra”, simula-se uma
orquestra com 17 instrumentos, devendo cada jogador simular o som do seu instrumento com a
voz e a execução com as mãos, tal como se ensina na explicação do jogo; os instrumentos
propostos são os seguintes, de acordo com a ordem indicada no texto: violino, rabecão, guitarra,
bandolim, harpa, saltério, cravo, trompa, flauta, clarim, fagote, pífano, tímbale, tambor, pandeiro,
castanholas e triângulo (anexo 1). O segundo passatempo musical proposto é muito semelhante a
este, pois cada jogador deve também pantominar o instrumento que escolheu para tocar, mas em
silêncio. O terceiro jogo, “Da Guitarrinha”, é uma espécie do jogo infantil da cadeira e implica a
existência de uma guitarra que vai rodando pelos jogadores. As duas situações mencionadas – a
aprendizagem feminina de um instrumento musical e do canto, passatempos nas reuniões de
familiares e amigos – ilustram quadros de sociabilidade burguesa que apontam para a banalização
do conhecimento de instrumentos e músicas que não se restringem aos do universo popular e
indiciam a sua prática em espaços domésticos.

Mas a música instrumental, as cantigas e as danças ouviam-se também nas ruas e nos cais
de Lisboa, nas tabernas, nas tendas e nas hortas dos arredores. Ou seja, nos espaços da vida
quotidiana das classes populares. Eram parte constituitiva da paisagem sonora da cidade,
misturavam-se com os barulhos do trabalho, dos transportes, dos copos de vinho das tabernas, dos
pregões. As gravuras, estampas e outro material iconográfico onde se representam cenas da vida
urbana da capital, revelam a presença da música durante o dia-a-dia. A documentação policial que
aqui se utiliza, devido à natureza das funções policiais em matéria de ordem e segurança, regista
sobretudo as práticas musicais nocturnas. Num dos armazéns de vinhos da Ribeira Velha, às onze
horas da noite do dia 19 de Maio de 1828, a patrulha da Guarda Real da Polícia ouviu “uns saloios
e barqueiros cantando a Borda de Água; foram mandados calar; e o sossego ficou restabelecido” 11.
Na noite de 3 de Julho do ano seguinte, na casa de pasto da Fonte do Ouro, ao Loreto, a polícia
encontrou dezasseis homens em “tocatas de viola” 12. Pelas 21 horas do dia 5 de Janeiro de 1817,
só conseguira apanhar dois homens de um grupo de vários galegos que estavam tocando gaita-de-
foles perto do Cruzeiro da Esperança 13. Em Setembro do mesmo ano, prendeu “um Preto com uma
Rebeca quebrada com que andava fazendo desordens”, quando o mesmo entrou numa casa de
pasto à Boavista 14. Em 1825, na noite de S.João, foi preso um aguadeiro por “ser achado pelas

11
Torre do Tombo (TT), Intendência Geral da Polícia (IGP), Correspondência dos Ministros dos Bairros (CMB),
maço 141, doc. 96.
12
TT, IGP, CMB, maço 220, doc. 300.
13
TT, IGP, maço 623, s.n..
14
TT, IGP, maço 623, s.n..

21
onze horas da noite a tocar gaita de fole com grande ajuntamento, na Praça da Figueira” 15. Poucos
meses antes, haviam sido presos vários soldados, um fabricante de sedas e um empregado do
terreiro por haverem sido “encontrados em descantes [...] com instrumentos de frauta e
cavaquinho” na rua da Lapa, pelas dez e meia da noite, vindos de uma tenda 16. Os exemplos
podem multiplicar-se. A vigilância da Polícia sobre a música e os descantes, na rua como na
taberna, radica tanto nas preocupações com o sossego público, como na necessidade de controlar a
sua utilização política. Embora já sensível nos finais do século XVIII, foi principalmente após as
Invasões Francesas, e em particular durante o reinado de D. Miguel, que a desconfiança policial
perante a música se tornou uma constante. Em 1829, dois pobres galegos e uma mulher foram
presos sob a acusação de estarem “cantando cantigas constitucionais”, numa taberna da Ribeira
Nova, ainda o sino da cidade não tinha dado o sinal das 20 horas; as testemunhas dividiram-se,
umas afirmando que apenas haviam sido cantadas “cantigas honestas e de seu estilo” [dos
galegos], outras dizendo que as cantigas tinham letras alusivas a D. Miguel “mas que as cantavam
ao estilo do Hino Constitucional” 17. Semelhante caso sucedeu com um carpinteiro, no mesmo ano,
acusado de “estando em uma Taberna cantando ao desafio com outros homens, entre as cantigas
que cantava, cantara também uma que dizia – venha D. Pedro ajudar-nos” 18.
A documentação policial, assim como os registos iconográficos, ajudam a situar o lugar da
música na construção das identidades, o papel dos instrumentos e dos géneros musicais na
produção cultural dos espaços e das identidades sociais. Os espaços da música estão embebidos
num contexto social e cultural, há repertórios e sons específicos de certos tempos e certos
lugares 19. As músicas executadas e as características sonoras naturais dos instrumentos criam
paisagens musicais com as quais os grupos e os indivíduos estabelecem relações simbólicas 20. E os
lugares ajudam a perpetuar determinados comportamentos e perfis sociológicos dos seus
frequentadores. Assim, por exemplo, a ópera é a música e o lugar do refinamento e do bom-gosto,
símbolo de urbanidade, riqueza, prestígio social e cultura sofisticada; a gaita-de-foles, o tambor e a

15
TT, IGP, CMB, maço 217, doc. 80.
16
TT, IGP, maço 500, docs. 15-16.
17
TT, IGP, CMB, maço 230, doc. 256.
18
TT, IGP, CMB, maço 115, docs. 213 e 243.
19
Sobre o papel que a música desempenha na produção do espaço na actualidade, bem como sobre a existência de
estratégias espaciais na produção, execução e consumo da música, vejam-se alguns dos trabalhos recentes de
geógrafos como por exemplo Sara Cohen, “Sounding out the city: music and the sensuous production of place”,
Transactions of the Institute of British Geographers, 20 (1995), 434-446 ou Susan J. Smith, “Beyond geography’s
visible worlds: a cultural politics of music”, Progress in Human Geography, 21, 4 (1997), 502-529.
20
Do mesmo modo que a paisagem “física” é constituída não apenas pelos factores naturais e pelos elementos
edificados mas também pela posição do observador (características sociais, culturais, etc), como foi sublinhado pela
Nova Geografia Cultural (entre outros, Cosgrove, Relph e Lynch). Sobre as relações entre música e estatuto social
vejam-se, para além do clássico P. Bourdieu, La distinction. Critique sociale du jugement, Paris, 1979, os estimulantes
textos de W. Weber, Music and the middle class: the social structure of concert life in London, Paris and Vienna,
1830-1848, Londres, 1975 e S. Frith, Sound effects: youth, leisure and the politics of rock and roll, Londres, 1983.

22
rua são, por seu turno, símbolos dos modos e comportamentos pouco polidos do povo, associados
à pobreza, à ruralidade, ao barulho. Senão vejamos: que instrumentos surgem nas mãos dos
populares e nas suas festividades? Gaitas, flauta, tambor, pandeiro, rabeca, viola e guitarra. Em
que locais e ocasiões são executados e ouvidos? Na rua, nas lojas de bebidas, nos bordéis, nos
terreiros, animando as feiras e os arraiais dos santos populares, acompanhando o vinho e a
aguardente da taberna urbana ou da venda dos arredores, preenchendo as pausas do trabalho.
Quem toca esses instrumentos? Amadores e curiosos, como os galegos (aguadeiros, criados,
carvoeiros, etc) que parecem monopolizar a gaita-de-foles; soldados, como os acima mencionados,
caminhando pela rua a tocar flauta e cavaquinho; saloios, como o referido no Piolho Viajante, que
"bailava o fandango trocado, cantava a desgarrada ao desafio que ninguém o desbancava e tocava
21
a fofa em pontos, na viola" ; caixeiros como o do Piolho, que “sabia dançar toda a qualidade de
dança [...] tocava todos os instrumentos, mas as marimbas é que era o seu forte”22; criadas que
tocavam berimbau, cantavam a comporta, sabiam bailar o fandango e gostavam de “ouvir cantar a
desgarrada a uns aguadeiros que moravam defronte e tocavam, num maxinho, um vilão sem ser
ruim” 23. Mas também músicos profissionais que andavam de função em função e que animavam o
consumo do vinho nas tabernas. Três referências, entre outras possíveis: José Salgueiro, de 21
anos, morador em Lisboa, que “é sapateiro de que vive e de tocar tambor e gaita de foles e que
costuma ir a várias funções” preso quando fora a Santarém “ajustar uma função” 24. Ou outro
gaiteiro que também tocava em funções, sobretudo aos domingos e dias santos e “nas despedidas
de galegos para a terra”. Segundo António Policarpo da Silva, “havia dias que tocava em cinco e
seis funções” e também tocava bailando, tendo por vezes um rapaz que o acompanhava com
tambor. Mas a dada altura não tinha onde tocar. Experimentou então “tocar num machinho que lhe
dava muito coice de forma que se aborreceu logo dele. Os amigos aconselhavam-lhe que tocasse
berimbau mas ele escandalizou-se disso porque era um instrumento de preto e cada vez ia a pior.
Até que aprendeu a tocar piano, e forte, e era um gosto vê-lo ao cravo. O que nunca pôde entender
era a razão do nome. Porque chamando-lhe piano acabava em forte, e isto deu-lhe que fazer e
quase ia endoidecendo. [...] Levaram-no então para fora da terra, a tomar ares. Lá pôde tornar à
gaita, que de todo o desvaneceu e restabeleceu do estado em que se achava." Casou com uma
rapariga que tocava pandeiro. Passado tempo vieram para Lisboa e ele resolveu-se a ensinar. "Pôs
escritos com uma gaita pintada em cima, acudiu muita gente a ver, entre os quais um caixeiro de

21
O Piolho Viajante … , carapuça XIV, p. 59.
22
O Piolho Viajante … , carapuça XXI, p. 75.
23
O Piolho Viajante … , carapuça Xl, pp. 148-9.
24
Preso em Setembro de 1828. TT, IGP, CMB, maço 95, docs. 223 e segs.

23
uma loja" e ajustaram para dar lições 25. Ou, finalmente, o caso do ex Fr. Manuel de Santa Rosália,
que deixou o hábito e, “com desdouro seu, opróbio e vilipêndio do sacerdócio”, em 1831 andava
em “trajes de secular com suiças até a ponta da barba, levando uma guitarra do qual instrumento
faz vida, divertindo os rústicos nos corrilhos e saraus, e os homens de vinho nas tabernas” 26.

A gaita de foles, a flauta, o tambor, a viola e a guitarra parecem ser nesta época os
instrumentos mais apreciados pelas classes populares. O lugar central dos cordofones nos espaços
musical e social lisboeta (popular e talvez, também, feminino) de finais de setecentos e na primeira
metade de oitocentos, bem como a sua associação com o canto, surge de modo inequívoco na
documentação consultada. Dado que o tema, apesar dos estudos recentes, continua a ter algumas
arestas pouco claras, pareceu útil descrever as situações em que a viola e a guitarra aparecem, bem
como tentar perceber o seu lugar na paisagem simbólica musical de então. Estaria já a guitarra
claramente acantonada à cultura popular urbana, a meio caminho entre o piano ou o orgão por um
lado, e o tambor e a gaita-de-foles por outro? Estaria em curso um processo de descida social (com
uma fase intermédia de feminização nas classes altas) similar ao verificado noutros domínios?
Integrar-se-á o percurso da viola e da guitarra, de modo não linear é certo, no processo de longa
duração, ocorrido entre os séculos XVI e XVIII, durante o qual as elites urbanas se afastaram da
cultura popular e que conduziu, na segunda metade do século XIX, à clara distinção entre cultura
27
de elite e cultura popular diferente da anterior separação entre cultura letrada e cultura popular ?
Parece, por outro lado, que os instrumentos de corda dedilhados eram o acompanhamento
predominante desse género lírico novo, em voga na segunda metade do século XVIII, que recebeu
o nome de modinhas. Eram canções escritas para voz e acompanhadas à guitarra, à viola, ao cravo,
ao piano-forte e mesmo ao alaúde, resultado de uma “mestiçagem cultural” onde se cruzam a
influência brasileira, a tradição lírica de raiz popular e as influências da música europeia (ópera,
música de câmara e de dança) 28. Através das recordações de estrangeiros que passaram por Lisboa,
Rui Nery apresenta os ambientes em que a modinha era cantada: nos salões da grande aristocracia
(onde Beckford as ouviu deliciado), nas assembleias familiares de outros grupos sociais, nos
conventos e mosteiros, nos teatros. Não é claro se em ambientes e locais populares o lundum tinha
preferência sobre as modinhas. De qualquer modo é interessante verificar, mesmo que se coloque a
hipótese de nas casas nobres e burguesas as modinhas executadas serem mais “eruditas” e o

25
O Piolho Viajante … , carapuça XX, pp.73-74.
26
TT, IGP, Correspondência das Autoridades Civis, maço 153, doc. 258.
27
Peter Burke, La cultura popular en la Europa moderna, Madrid, 1991 e Jacques Revel, “A beleza do morto: o
conceito de cultura popular” (com Michel de Certeau e D. Julia) e “Formas de especialização: os intelectuais e a
cultura «popular» em França (1650-1800)” in J. Revel, A invenção da sociedade, Lisboa, 1990, pp.43-98.
28
Cf. a bibliografia citada na nota 4, supra, em particular G. Doderer e R.Nery.

24
lundum menos “lascivo”, que os olhares estrangeiros, todos eles de gente instruída, encarem essas
canções e danças como exóticas e fascinantes, as apreciem com prazer e registem a sua circulação
em todos os meios sociais. Segundo esses testemunhos, a viola e a guitarra também atravessavam
todas as classes sociais, sendo que nas famílias nobres e burguesas a imagem transmitida é a de
uma prática sobretudo feminina. E é provável que aí dominassem as modinhas compostas a partir
de áreas de óperas conhecidas, enquanto que nos meios populares talvez imperassem as compostas
sobre pregões de vendedeiras, como a referida por Tinop 29. Talvez que estas últimas adaptações
façam parte do início do processo de descoberta da cultura popular como algo de exótico,
pitoresco e até mesmo fascinante, que proporcionava prazer e era digno de ser registado 30, como
aliás é perceptível nos comentários de Beckford, de Ruders ou dos correspondentes da Gazeta
musical alemã 31. Ou talvez não, e então está-se ainda em presença de uma sensibilidade comum às
elites e ao povo, um gosto por uma sonoridade que provoca emoções intensas, faz bater o coração
e soltar as lágrimas, uma sonoridade dependente do gosto local (lisboeta, português) e não
marcada por uma estética musical de carácter universal e cosmopolita como sucede com a
designada música clássica.
De qualquer modo, os executantes, o público e o lugar afectam o modo como a música é
executada, recebida e apreciada. Neste sentido, existem pelo menos dois espaços bem
diferenciados para os mesmos instrumentos, a viola e a guitarra. Um de cariz aristocrático-
burguês, em lugares privados ou domésticos, em processo de feminização na execução. Outro,
popular, em ambientes públicos, ao ar livre, em que os praticantes pertencem aos dois sexos (ainda
que deva estranhar-se, dado a sonoridade destes instrumentos ser pouco adequada a uma audição
ao ar livre; e o ambiente barulhento das tabernas não é também o mais propício). Desenham-se
assim duas paisagens sonoras que os testemunhos dos estrangeiros, a literatura da época, os
registos policiais e a iconografia permitem definir melhor. A presença da viola e da guitarra nas
sociabilidades de elite é assinalada quase que exclusivamente pelas primeiras fontes. E é revelador
da evolução o facto de na iconografia mais conhecida escassearem representações de elementos da
nobreza (femininos ou masculinos, aliás) tocando viola, seja em ambientes fechados seja ao ar

29
Escreveu Tinop que na Praça do Comércio se cantava “a letra do lundum do Monroy, uma peça musical que fez
tanto furor como a modinha As Azeitonas Novas, composta sobre o pregão das vendederias de Lisboa por Pedro
Anselmo Marchal”. Pinto de Carvalho (Tinop), Lisboa d’outros tempos. II. Os cafés, Lisboa, 1991 (1ª ed. 1889), p.73-
74.
30
Sobre o processo de “descoberta” da cultura popular tradicional e o nascimento do exotismo nos finais do século
XVIII veja-se, por exemplo, P. Burke, La cultura popular ..., pp. 390 e 395-6 e J. Revel, A invenção ... , pp. 52 e segs..
31
Sobre a descoberta (ideológica) de uma especificidade nacional das culturas musicais, e sobre os efeitos da ideia da
suposta superioridade do germanismo em relação ao italianismo na musicologia portuguesa, leia-se a reflexão de
Paulo Ferreira de Castro, “O que fazer com o século XIX? Um olhar sobre a historiografia musical portuguesa”,
Revista portuguesa de musicologia, vol.2 (1992), 171-183. Sobre os julgamentos culturais (académicos e críticos
musicais) da música erudita e da popular no século XX, cf. Simon Frith, “The good, the bad, and ...”.

25
livre, ao invés do que sucede na iconografia do século XVII e da primeira metade do século XVIII
(azulejos do Palácio Fronteira, grav. de A. Quillard). O mesmo parece suceder com os burgueses,
pois quer nas cenas de recreio ao ar livre (em 1794, na quinta Devisme, por exemplo) quer nas de
rua, associadas ou não a momentos políticos (v.g. na gravura que retrata a chegada da junta
provisional a Lisboa, em 1820) esses cordofones ou não se vêem ou estão nas mãos de elementos
do povo. Pelo contrário, nas representações visuais da capital na transição do século XVIII, onde
dominam as paisagens urbanas e cenas da vida quotidiana, é habitual a aliança entre populares e a
viola ou guitarra (o que se afigura menos vulgar na iconografia de épocas anteriores). No anexo 2,
apresenta-se a relação, não exaustiva mas razoavelmente ilustrativa, de uma recolha de imagens
deste período em que estão presentes a viola ou a guitarra (e não restrita a Lisboa, embora centrada
nesta cidade).
Os registos policiais completam estas imagens, com a vantagem de nos introduzirem na
linguagem popular. Pelas sete horas da tarde dos finais de Novembro de 1820, a polícia prendeu
num armazém de vinhos ao Limoeiro, Manuel José Afonso, aguadeiro natural da Vila de Arcos,
por ser encontrado a tocar viola passadas as Avé Marias. Conta o preso que ao passar pelo dito
armazém vira uns soldados de Infantaria 10 a tocar, pelo que “por casualidade entrou a ver, e no
mesmo instante por um acaso pegando na Viola (ainda que não sabe tocar) apareceu o Alcaide ....
e outros oficiais com soldados da Polícia, perguntando de quem era a viola, ao que respondeu um
dos ditos soldados que era sua, e assim mesmo, naquele acto, como a viram na mão do suplicante,
não obstante todos dizerem que era de um dos soldados, o prenderam ... e ao caixeiro do
armazém”; alega em sua defesa que, “como rústico” ignorava que não se podia tocar depois das
Avé-Marias 32. Em Julho de 1830 foram presos duas mulheres e três homens por estarem “em
descantes tocando e cantando” em casa de “Rosa Tomásia, que é mulher pública”. Segundo se
pode apurar do sumário de testemunhas, a dita Rosa, tendo saído de uma taberna muito
embriagada, recolhera a casa onde, com outros indivíduos e “um Manuel Maria que é tocador de
guitarra levaram até à uma da manhã a cantar e a tocar”; todas as testemunhas confirmam que as
mulheres são públicas (uma “porta-se bem e não tem nota alguma mais que ser mulher publica”) e
que o dito Manuel Maria “vive de tocar guitarra” ou “se emprega a tocar guitarra”, pois “por ser
aleijado não trabalha pelo seu ofício” (de pintor), adiantam outras testemunhas 33. Na noite de
Natal do mesmo ano, a polícia deparou com a casa de pasto de Veríssimo José Martins, aberta e
com gente dentro a beber vinho e a tocar guitarra fora de horas; por ser dia de festa, não foram

32
TT, IGP, maço 623, s.n.
33
TT, IGP, CMB, maço 106, docs. 191-222.

26
presos e o dono foi solto pagando multa 34. E em Março de 1820, Manuel Raimundo, homem
pardo, fora preso numa “loja de louça que também vende aguardente” na Calçada de Sta. Ana, por
estar “tocando em uma Cytara”, “que vive disso por ser pobre, e igualmente estava cantando
modinhas” 35. Os arraiais dos santos populares eram uma das ocasiões em que a música invadia as
ruas da capital, mesmo à noite, bastando para isso uma resposta favorável da polícia ao
requerimento dos festeiros. Regra geral, estes apenas mencionam “um arraial de música”, um
“coreto de música” ou algo semelhante; encontraram-se, no entanto, alguns pedidos de autorização
em que se mencionam instrumentos, o que dá uma indicação, ainda que muito genérica, da
sonoridade desses arraiais: “dizem os moradores da Travessa de N. Sra. do Monte, que os
Suplicantes pretendem divertir-se nas noites de Sam João, e Sam Pedro próximo futuro com
Fogueiras, Torrinhas e outros divertimentos, não entrando Máscaras nem Mulheres, fogos e outros
atractivos que possam fazem tumulto, à excepção de algum instrumento tocante de guitarra, viola,
flauta rebeca e outros iguais” 36.
Uma última nota: o universo social da guitarra e da viola – tocadores e público - na Lisboa
popular não se restringe ao meio dos ribeirinhos e dos trabalhadores mais ou menos
indiferenciados; inclui o mundo dos ofícios e dos pequenos funcionários – alfaiates, carpinteiros,
impressores, confeiteiros, barbeiros, empregados nas secretarias e até um professor de primeiras
letras foram encontrados pela polícia em “tocatas de Viola” ou “cantando e tocando guitarra”, em
casas de pasto ou na rua, vindos da feira ou do arraial 37. E é de crer que também a utilizassem nas
conquistas amorosas, como o galanteador pobre do Piolho Viajante que, coitado, foi “dar
descantes ... com a guitarrinha e outro que fazia versos da mão para o pé ” a uma rapariga que não
lhe ligava e quando “começava a abrir a boca para entoar a modinha” o pai da amada deu-lhe com
a espada, fazendo-lhe cair “a escaravelha da viola” ...38

O caminho percorrido pelos instrumentos musicais indica que a evolução musical não se
pode dissociar dos canônes estéticos, das hierarquias de valores e dos códigos de distinção social
que em cada época afectam a criação musical. O repertório, os instrumentos e os seus executantes
criam, em conjunto, um som particular a que estão associados tempos, espaços e identidades
sociais. Trata-se de um caminho ao longo do qual se fixam (e se alteram) os lugares físicos e
sociais das práticas musicais, ao mesmo tempo que estas concorrem de uma maneira activa para a

34
TT, IGP, CMB, maço 144, doc. 183.
35
TT, IGP, CMB, maço 110, docs. 44-53.
36
Requerimento feito em 22 de Junho de 1826. TT, IGP; Requerimentos, maço 5, doc. 395.
37
TT, IGP, CMB, maço 220, doc. 300, completado com J.H. Pires de Lima, Processos políticos no Reinado de D.
Miguel, Coimbra, 1972, pp. 967-8. TT, IGP, CMB, maço 116, doc. 28.
38
O Piolho Viajante ..., carapuça XXXVII, p. 132.

27
definição dos grupos sociais 39 e para a transformação da sensibilidade cultural. As paisagens
musicais são feitas de tudo isso. Os grupos de cordas, o piano ou a ópera construiram sonoridades,
que ainda vigoram, quase inseparáveis dos lugares salão - sala de concertos - teatro e dos grupos
sociais de elite. A viola e a guitarra parece terem trocado o palácio pelos estabelecimentos
populares e a rua, participando da sonoridade popular ao lado da gaita, da gaita-de-foles e do
tambor, embora reservadas para momentos lúdicos e situações líricas 40, e fixando-se
posteriormente no imaginário social como instrumentos associados ao mundo popular e juvenil. O
período aqui abordado é o período onde ocorre essa mudança, um período de troca e circulação
cultural de que a música foi parte constituitiva.

ANEXOS

Anexo 1. Jogo de prendas, 1818.

“Da Orquesta
Dispostos todos os jogadores em um círculo, e advertidos de que prestem a maior atenção,
mandará o Presidente a cada um deles, que faça eleição do instrumento que deve tocar, e segundo
o que elegerem, lhes ensinará o som que devem fazer com a voz, e acção que às mãos lhes
corresponde; tudo da maneira que se segue:
Violino. Repetirá com a voz muito a compasso, Sigurrim, Sigurrim, Sigurrim, etc e a acção
das mãos sobre o sangradouro do braço esquerdo, fingindo que toca Rebeca.
Rabecão. Dirá com a voz, Sonoson, Sonoson, Sonoson,etc e com a mão direita há-de fingir
o arco sobre a perna esquerda.
Guitarra. Ferranfan, Ferranfan, Ferranfan, etc deverá ter o braço esquerdo curvo, e em
acção de quem dá pontos no da Guitarra, e a mão direita sobre o ventre fingindo com os dedos que
fere as cordas.
Bandolim. Ferlimfim, Ferlimfim, Ferlimfim, etc o mesmo movimento que na Guitarra, com
a diferença de encostar mais o braço esquerdo, e tocar com a direita sobre o peito; para evitar
equivocações.

39
Como W. Weber (The music and the middle class ... ) demonstrou a propósito das origens e do desenvolvimento do
mundo dos concertos na primeira metade do século XIX em Londres, Paris e Viena. Ou a escola de Birmingham
acerca da associação entre música rock e cultura juvenil.
40
Ver a este respeito, tanto em meio urbano como rural, a obra de Ernesto Veiga de Oliveira, Instrumentos musicais
populares portugueses, 3ª ed., Lisboa, 2000, p. 42-51, 58-60, 67-69 e caps. sobre os instrumentos referidos.

28
Arpa [sic]. Perlemplen, Perlemplen, Perlemplen, etc com os braços estendidos para diante,
um mais alto, outro mais baixo, e as mãos em acção de arranhar o ar.
Salterio. Criminí, Criminí, Criminí, etc e as mãos dando unhadas sobre as cochas das
pernas.
Cravo. Tilintim, Tilintim, Tilintim, etc e as mãos sobre as pernas, movendo-se como quem
toca nas teclas.
Trompa. Tromb, Tromb, Tromb, etc o braço direito levantado, e feito em arco até à altura
do ombro, e a mão fechada, e chegada à boca; o braço esquerdo quieto, e estendido.
Flauta. Furulá, Furulá, Furulá, etc o braço esquerdo curvado, e quasi arrimado ao peito,
tocando com os dedos junto da barba, e o direito mais baixo, na mesma acção, e os dedos como
quem tira sons, e dá pontos.
Clarim. Tarará, Tarará, Tarará, etc a mesma posição que para a Trompa, mas deve ser com
o braço esquerdo por diferençar-se melhor o tocador deste Instrumento.
Fagote. Fafanam, Fafanam, Fafanam, etc ambas as mãos uma mais baixa que a outra, quasi
em frente do peito, porém a esquerda com o dedo polegar na boca, movendo-se todos os mais,
como quem dá pontos.
Pifano. Tirolí, Tirolí, Tirolí, etc posição de Flauta, trocada unicamente a configuração das
mãos, para não haver confusão entre este Instrumento, e aquele.
Timbale. Blororom, Blororom, Blororom, óm, óm, etc levantados ambos os braços até
altura dos ombros, deixando-os depois cair sobre as pernas, trocando com a maior velocidade as
mãos já para a direita já para a perna esquerda, continuando a levantar os braços de espaço a
espaço.
Tambor. Terrontom, Terrontom, Terrontom, , etc levantando, e abaixando os braços, como
faz quem costuma tocar.
Pandeiro. Padamdão, Padamdão, Padamdão, etc levantando muito a mão, e braço
esquerdo, e de quando em quando, fingir que lhe dá a mão direita para o fazer andar de roda.
Castanholas. Trailalá, Trailalá, Trailalá, etc os braços levantados, tanto quanto arqueados,
e em cruz, e as mãos movendo-se, como quem toca deveras.
Triângulo. Tintintim, Tintintim, Tintintim, etc o braço esquerdo levantado até à barba em
forma de arco, e desviado da cara cousa de um palmo, e o direito estendido, e a mão fechada, à
excepção do index, com o qual fingirá que toca o imaginado Triângulo.
Além destes Instrumentos, se lhe ajuntam para maior harmonia os sete sons da música, e a
pessoa, a quem cada um deles pertencer, baterá continuamente o compasso com a mão direita,
como mestre de Capela; e são estes:

29
Gsolreut, gsolreut, gsolreut, etc
Alamiré, alamiré, alamiré,
Bfami, bfami, bfami,
Csolfaut. Csolfaut, csolfaut,
Dlasolré, dlasolré, dlasolré,
Elami, elami, elami
Faut, faut, faut,

Com estes sete tons, e os dezassete Instrumentos se podem muito bem entreter até vinte e
quatro pessoas.
Não havendo mais de doze, ou quatorze, deve sempre procurar-se que entrem os sete tons
fundamentais da musica, e até será mui conveniente que na distribuição da Orquesta, pertençam
estes às senhoras, e não aos homens; porque elas ordinariamente excedem a estes na doçura das
vozes. Do mesmo modo havendo por onde escolher, se fará a eleição dos instrumentos, que mais
analogia tiverem com os tons; pois sendo assim, até se poderá formar um concerto, posto que
estranho, harmonioso, e agradável ao ouvido; uma vez que não haja desafinação, nem se altere o
compasso.
O Presidente costuma também fazer escolha de um Instrumento, que ordinariamente é o
Cravo, por ser ele quem rege toda a Orquesta, e regula todos os mais; e tendo explicado a cada um
o modo de dar a conhecer, mediante a voz, e as acções, o Instrumento que lhe pertence, a qual
deve ser repetida de três em três vezes, modulando com tom mui concertado, e o melhor que cada
um puder, tudo isto tanto tempo, quanto for o que o Presidente se demorar sem fazer sinal de parar
a música, o qual será uma palmada: e esta mesma o deve ser para se principiar, ajuntando-lhe a
voz – una.
Estando pois dispostos, e concertados, ouvindo o sinal começarão todos a tocar, cantar,
movendo os braços, e mãos, como a cada um pertencer, e fica expendido; e aquele que se enganar,
ou seja no som da voz, ou no manejo dos braços, dará prenda.
(continua a explicação do jogo)

Passatempo honesto, e familiar, ou collecção de quarenta e outo jogos geralmente


conhecidos pela denominação de jogos de prendas; entretenimento para passar divertidas as
grandes noites de Inverno ..., segunda edição correcta. Lisboa, typ. Rollandiana, 1818, pp. 21-30.

30
Anexo 2. Iconografia dos finais do século XVIII e primeira metade do século XIX, onde a
guitarra ou a viola estão representadas.

Data Título / legenda Descrição sumária Autor


1789 Cais do Sodré No lado esquerdo da praça, grupo de pretos, Joaquim
dançando e tocando pandeiros, tambor e viola. Marques (1)
óleo
[179?- Les recreations du peuple portugais Cena de rua, junto a casa. Militar em pé, tocando F.D.Zacharie (2)
1806] guitarra, mulheres à volta, homem à janela Têmpera sobre
observando. cartão
[1792-93] Vista da torre de Belém e da Barco no Tejo, a atracar ou a partir; populares, um A.J. Noël (3)
entrada do porto de Lisboa burguês e um militar.. Nas rochas, homem
popular, sentado, a tocar viola, mulher ao lado, a
ouvir.
1792 Vista do porto de Lisboa Barcos no rio, com populares (mulheres, A.J. Noël (3)
catraeiros, mariolas). Num deles, homem em pé a Gravura
tocar viola, homem sentado a tocar viola, par a
dançar. Os outros, observam.
1793-97 [Grupo à beira mar, Lisboa] Grupo de homens e mulheres, de pé e sentados. Noël (4)
Entre eles, de pé, homem tocando viola óleo
1795 [Camponeses dançando o Par de camponeses a dançar o fandango. À direita, Murphy (5)
fandango] velho a ver com terço na mão e rapaz sentado a
tocar guitarra, com a cabeça envolta em lenço.
1798 [Senhora em liteira] Senhora dentro de liteira puxada por burros, escuta Murphy (6)
o condutor que está a tocar guitarra, sentado ao
contrário no animal da frente.
1801, c. O Bordel Cena de interior de bordel. Em 1º plano, duas N. Delevire (7)
mulheres a dançar. Atrás, á esquerda, mulher (?) Óleo s/ madeira
sentada a tocar guitarra.
1807, c. Vista da praia de Santos [Lisboa] Barcos na praia. No cais, grupo de homens, A.Dufourcq (8)
populares, sentados. Um deles está a tocar viola ou Desenho
violão.
1809 [Grupo merendando] Cena ao ar livre (jardim, campo?). Grupo de L’Évêque (9)
homens e mulheres sentados. Entre eles, uma Desenho
mulher dançando e um homem de bicórnio,
sentado, a tocar guitarra.
1814 Chanteurs a la place du Rocio/ Homem, de pé, a tocar guitarra, parecendo estar a L’Évêque (10)

31
Ballad singers in the place du cantar, acompanhado de mulher com criança ao Gravura
Rocio colo. (L’Évêque chama-lhes “cantadores
ambulantes”)
1816 Vista do convento de S. Jerónimo Em frente aos Jerónimos, na praia, taberna e L’Evêque (9)
de Belém barraca de madeira. Família sentada a comer em Gravura
mesa ao ar livre e à direita, encostado à parede da
taberna, cego cantador sentado a tocar viola,
acompanhado de crianças e de um rapaz.
1821 [Madeira. Músicos de aldeia, com Três camponeses madeirenses a tocar, dois com Anónimo (11)
violas e violino] viola e um com violino
1822 Lisbon street musicians Dois homens de capa e chapéu, de pé, cada um a Marianne Baillie
tocar a sua guitarra, na rua. Rapaz com chapéu na desenho
mão, do lado direito. aguarelado (12)
1822 - Filarmónicos da Província/ Mulher de perfil, com viola debaixo do braço, Anónimo (13)
1826 Phylarmony from the country seguida de homem , a ¾, com violino e seu arco na aguarela
[região ria de Aveiro] mão esquerda, pondo-lhe a mão nas costas, como
que a empurrar.
1822 - Filarmónicos da Província/ Mulher de costas com sanfona debaixo do braço, Anónimo (13)
1826 Phylarmony from the country seguida de homem, a ¾, com viola debaixo do aguarela
[região ria de Aveiro] braço.
[1825- Despedida de um marinheiro, Marinheiro com guitarra pendurada às costas, Joubert (14)
1830] Lisboa despede-se de mulher litografia
1826 O cego filarmónico Um cego com violino na mão, em posição de Manuel da Silva
descanso, acompanhado por mulher a tocar viola Godinho (15)
(ou violão?) gravura
1827 Peasant playing a guitar Homem novo, com capa e chapéu, tocando Kinsey (16)
guitarra, presa ao pescoço com fita. vinheta
1827, c. The litanies at Coimbra. Portugal Irmãos de confraria, com a bandeira e lampiões, J. Taylor (17)
saco de esmolas e imagem para beijar. Do lado estampa
esquerdo, duas mulheres e um “grupo de
cantadores”, i.é, mulher com filho ao colo e
homem a tocar guitarra, em pé. (A estampa é
acompanhada de texto)
1830 Lisbon from the chapel hill of Cena ao ar livre. Junto a um muro da cidade, R. Batty (18)
Nossa Senhora do Monte mulher caminhando com criança pela mão; um Gravura
pouco à frente, parado, homem de pé a tocar viola.
[1853 -58] Homem e mulher dos arrabaldes Homem e mulher (populares), a andar, ele a tocar Palhares (19)
do Porto, vindo da romaria do sr. viola e parecendo cantar, ela de sombrinha ao Litografia
de Matosinhos ombro.
1857 O Marujo Marujo de pé a tocar guitarra E.J.Maia (20)

32
Desenho
[1858 -86] Typos característicos de mascaras Em 1º plano, dois homens mascarados, um de Palhares (21)
populares do carnaval na cidade de castanholas, a dançar. Ao fundo, homem e mulher Litografia
Lisboa de pé, cada um com sua guitarra, em posição de
tocar.

(1) Reproduzido em Alberto de Souza (plano e ilustrações), Alfacinhas. Os Lisboetas do passado e do


presente, Lisboa, s.d, p. 34 e p. 125 (pormenor).
(2) Félix Doumet Zacharie, têmpera reproduzida em O Povo de Lisboa, catálogo da exposição, Lisboa, nº
83.
(3) Alexandre Jean Noël, Grav. J. Wells, gravuras a água-tinta, Museu da cidade de Lisboa, invº 1354 e
1355. Reprodução em D. João VI e o seu tempo, catálogo da exposição, Lisboa, 1999, p. 262, 264.
(4) Noël,reproduzido em Alberto de Sousa, O trajo popular em Portugal nos séculos XVIII e XIX, Lisboa,
1924, p.49.
(5) James C. Murphy, Travels in Portugal …, Londres, 1795.
(6) James C. Murphy, A general view of the state of Portugal …, Londres, 1798.
(7) Nicolas Louis Albert Delerive, Série das profissões lisboetas, óleo sobre madeira, Fundação Ricardo
Espírito Santo Silva. Reproduzida em D. João VI e o seu tempo, catálogo da exposição, Lisboa, 1999, p.
267.
(8) Alberto Dufourcq, Desenho a tinta da China com aguada, Museu da cidade de Lisboa, invº
1667.Reproduzida em D. João VI e o seu tempo, catálogo da exposição, Lisboa, 1999, p. 262.
(9) Henry L’Evêque reproduzido em Alberto de Sousa, O trajo popular... , p.70.
(10) Henry L’Evêque, Portuguese costumes, Londres, 1814 (ed. fac-similada, Lisboa, 1993).
(11) Reprodução em Alberto de Sousa, O trajo popular..., p. 131.
(12) Marianne Baillie, Original Sketches of Portuguese Costumes, 1821-23 reproduzido em Lisboa nos
anos de 1821, 1822 e 1823, Lisboa, 2002, “sketche” nº 9 (na p. 34 desta edição recente, a autora descreve a
cena que desenhou)
(13) Costumes portugueses. Aguarelas inéditas. Novos contributos para o estudo do trajo popular em
Portugal. Século XIX, Lisboa, 1999. Comentários de Ana Paula Assunção, que fez a datação a partir das
marcas de água.
(14) Colecção Joubert, s/n, s/d, litografia reproduzida em O Povo de Lisboa ..., nº 12.
(15) Ruas de Lisboa. Fac-simile da edição de 1826, com prefácio de Mª da Graça Garcia, Lisboa, 1994.
(16) W. M. Kinsey, Portugal Illustrated, in a series of letters ..., Londres, 1829, p. 338.
(17) J. Taylor, A picturesque tour in Spain, Portugal and along the coast of Africa …, Paris, 1827.
(18) Robert Batty, Cities of Europe. Oporto and Lisbon. Reprodução fac-similada do original (Selecte view
of some of the principal cities of Europe, Londres, 1832), Lisboa, 1996.
(19) Litografia de Palhares, 1ª série, nº 8, reproduzida em António G. Rocha Madahil, Trajos e costumes
populares portugueses do século XIX, em litografias de Joubert, Macphail e Palhares, Lisboa-Porto, 1968.
(20) E.J.Maia, desenho aguarelado, incl. em Fado. Vozes e Sombras, Lisboa, 1994, p.183.
(21) Litografia de Palhares, 3ª série, nº 4A, reproduzida em António G. Rocha Madahil, Trajos e costumes
populares ... .

33

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