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PUC-SP
São Paulo, SP
2018
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
São Paulo, SP
2018
Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou
parcial desta Dissertação de Mestrado por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.
Assinatura _____________________________________
Data__________________________________________
E-mail_________________________________________
Aprovado em ____/___/___
BANCA EXAMINADORA
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Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.
E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da
luz
E corre um silêncio pela erva fora.
Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu
pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas
idéias,
Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu
rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende
o que se diz
E quer fingir que compreende.
Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predileta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural —
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.
O pensamento meditativo, que pensa o sentido do ser e justamente por isso trata de um espaço
de maior intimidade, é proposto por Martin Heidegger como um contraponto ao pensamento
racional, ou como ele denomina, pensamento calculador. Esse pensamento calculador, que
não se restringe apenas aos cálculos, expressa o modo cibernético que está sempre atrás de
uma próxima oportunidade, carregado pelos valores da eficácia, eficiência e desempenho de
resultados, que conquista absolutismo na época vigente da técnica planetária. Ora, se o poder,
controle e cálculo, advindos da Metafísica, dominam a terra inteira, como será que isso
interfere na religião? Intentando buscar compreender as implicações da escassez da meditação
na religião busca-se por meio dessa pesquisa uma aproximação dos conceitos heideggerianos
como chave para leitura do contexto Iurdiano - Igreja Universal do Reino de Deus.
Primeiramente, apresentando a perspectiva heideggeriana como base para aproximação do
pensamento meditativo; depois explanando o desenvolvimento da técnica na teologia, a fim
de entender a tradição metafísica legada à Igreja Universal do Reino de Deus; e por fim, poder
levantar três fenômenos que desvelam a escassez da meditação no contexto Iurdiano.
Meditative thinking, which thinks the sense of being and exactly for this reason, represents a
space of greater intimacy, is proposed by Martin Heidegger as a counterpoint to the rational
thinking, or as he calls it, calculative thinking. This calculative thinking, which is not
restricted to calculations only, expresses the cybernetic mode that is always looking for the
next opportunity, carried by the values of effectiveness, efficiency and performance results,
that conquers the absolutism in the current season of planetary technique. Now, if the power,
control and calculation, coming from Metaphysics, dominate the whole world how does it
interfere with religion? Trying to understand the implications of the scarcity of meditation in
religion, this research seeks to approach Heideggerian concepts as a key to the reading of the
Iurdian context - Universal Church of the Kingdom of God. First presenting the Heideggerian
perspective as a basis for the approximation of meditative thinking; then explaining the
development of technique in theology, in order to understand the metaphysical tradition
bequeathed to the Universal Church of the Kingdom of God; and finally, to raise three
phenomena that reveal the meditative lacking in the Iurdian context.
Keywords: Meditative thinking; Universal Church of the Kingdom of God; Power; Planetary
technique; Metaphysics.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 11
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................... 65
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 68
11
INTRODUÇÃO
Esse trabalho é fruto de uma traição. Explico, traição é elemento embutido na fé,
sendo só possível trair aquilo que a si antes teve con-fiança, confidere do latim, o prefixo con
indica um termo intensificativo, e fidere significa fé. A traição, apesar de dolorosa, tem uma
face frutífera, ela é uma ampliação. A exemplo da relação entre Freud e Jung, apenas Carl
Gustav Jung, como seu pupilo, poderia trair o pai da psicanálise, e ao traí-lo ampliou a
corrente psicológica fundando a psicologia analítica. Minha traição está em criticar os
aspectos metafísicos de uma igreja neopentecostal1, Igreja Universal do Reino de Deus.
Não tenho relação alguma com a Universal do Reino de Deus, o que foi fator
preponderante para ter lhe escolhido como objeto de estudo, por manter a neutralidade
científica. Minha relação é com o meio evangélico, do qual a Universal faz parte. Certa feita,
ouvi uma provocação de um professor, que Jesus Cristo tinha propriedade de criticar os
fariseus, saduceus e outros mestres da lei, porque afinal era alguém de dentro do judaísmo.
Pois bem, eu também estou inserida no meio evangélico desde os cinco anos de idade. Em
alguns momentos nutrindo um envolvimento de admiração, outras vezes sentindo desgosto,
mas desde sempre sendo afetada pelo contexto evangélico.
Após dez anos como pastora presidente de uma igreja independente no município de
Guarujá, que dos seus vinte e cinco anos de fundação traz em sua história a tradição
neopentecostal, referência básica também da igreja Universal, encontrei em Martin Heidegger
uma fundamentação teórica que fomentou minhas inquietações sobre como o processo de
institucionalização técnico pode embotar a existência. Meu contato com Heidegger,
inicialmente, trouxe contribuições para minha prática profissional como psicóloga clínica,
mas no aprofundamento dos seus estudos, principalmente na leitura de Serenidade, pude me
reaver com o pensamento meditativo e, assim, passar a reavaliar minha posição institucional.
Martin Heidegger foi um filósofo alemão comprometido em compreender o próprio
tempo, que apesar de estar datado no século XX nem por isso se tornou obsoleto, pelo
contrário, suas obras têm grande relevância para a compreensão dos dias de hoje. O filósofo
constata que a modernidade está fundamentada pela estrutura enrijecida da Metafísica, mas
Metafísica para ele não se trata de uma simples disciplina filosófica, e sim um padrão de
1
Apesar da definição impressa no termo neopentecostal não dar mais conta de abranger todo paradigma iurdiano
e sua vasta complexidade, por conta das mudanças ocorridas nesses quarenta anos de existência, ele ainda serve
como uma referência para pensar a influência de sua predecessora Pentecostal (Conteúdo discuto no GEPP –
Grupo de Estudo sobre Protestantismo e Pentecostalismo, coordenado pelo Dr. Edin Abumanssur, na PUC/SP
em 04/2017.
12
pensamento constituído inicialmente por Platão e Aristóteles, corroborado com o passar dos
anos pela teologia cristã, o racionalismo de René Descartes, a nova ciência de Francis Bacon
até, por fim, chegar a ‘vontade de potência’ de Nietzsche.
O próprio Heidegger exerce traições em sua jornada acadêmica, dedicando os dois
primeiros capítulos do seu denso livro Ser e Tempo para refutar, e assim ampliar, a tradição
filosófica, e ir apresentando os pré-conceitos de onde parte para a análise fática do Dasein
(ser-aí), no horizonte da cotidianidade. Pré-conceitos, usados aqui, enquanto conjunto de
significações. Durante a elaboração dessa pesquisa fui questionada se ela não partia de pré-
conceitos, haja vista que a Igreja Universal do Reino de Deus, com as inúmeras polêmicas
arroladas em seu nome pode gerar de imediato uma postura discriminatória.
E reconheço que parto de pré-conceitos, porque parto de um conjunto de significações,
como todos possuem. Aliás, me pergunto se é de fato possível se desvencilhar dos pré-
conceitos, já que sempre se parte de um lugar onde se pode avaliar? Pela referência
heideggeriana, ouso dizer que a importância está em identificá-los e cuidá-los para que eles
não obstruam uma nova interpretação. Esse foi o cuidado tomado na costura dessa
dissertação, o que é denominado como suspensão fenomenológica, e refere-se à suspensão
dos juízos morais, mesmo que os tenha, para buscar aproximar-se sem critérios absolutos
intentando compreender o outro. Enquanto a moral sempre reduz o outro aquilo que acho, o
olhar fenomenológico propõe se desembrulhar do absolutismo das constatações, tomando
como premissa a compreensão de que ao homem não cabe a certeza. Em todas essas páginas
de maneira alguma se pretende a certeza ou a verdade absoluta, mas apenas uma outra
perspectiva.
Perspectiva essa que foi cunhada a partir da revisão bibliográfica de duas áreas
distintas: Heidegger e a Igreja Universal do Reino de Deus. Para lidar com o pensamento
hermético de Heidegger, fez-se necessário a leitura de seus comentadores e os pesquisadores
que mais esclarecem sobre a temática são os filósofos contemporâneos: Dulce Mara Critelli,
que colabora para esclarecer os fundamentos mais básicos heideggerianos como a angústia da
finitude ou a estruturação técnica planetária; José Carlos Michelazzo, que contribui para
entender de uma maneira ampliada a análise da historicidade do ser promovida por
Heidegger, consequentemente sendo usado para a compreensão dos aspectos da tradição
desenvolvidos nessa dissertação; e José Augusto Mac Dowell, que coloca em interlocução os
preceitos heideggerianos com a religião. As visões de outros pesquisadores estão presentes,
mas de maneira pontual. Conteúdos das aulas, palestras e grupo de estudo foram bem
aproveitados, mas os livros foram priorizados, principalmente as obras do próprio Heidegger.
13
um pensamento com resultados práticos, nem com receitas prévias de como utilizá-lo, por ser
“pequeno e modesto” não é muito sedutor, mas nada disso o faz menor do que o pensamento
calculador (HEIDEGGER, 1979). Aliás, seu viço é de arejar as restrições impostas pelo
domínio do pensamento calculador. O pensamento meditativo se dispõe a refletir sobre a
verdade do ser, que é também a esfera do Sagrado.
Partindo da hipótese que a onto-teologia está presente nessa instituição e, por
consequência, promove a escassez da meditação, já que mesmo a um olhar leigo pode-se
evidenciar a técnica planetária e seu pensamento calculador entremeado nas instituições
religiosas evangélicas, busca-se por meio dessa pesquisa compreender o cenário Iurdiano a
partir do conceito de meditação heideggeriano enquanto objetivo geral. Evidenciar por meio
do fio condutor histórico o quanto a tradição teológica tem por fundamento a metafísica
efetivando o pensamento calculador na Igreja Universal, além de tomar por referência a
perspectiva técnica para levantar os fenômenos que desvelam a escassez da meditação no
contexto Iurdiano, são os dois objetivos específicos. Suscitar a problemática: ‘Em quais
aspectos Heidegger enxerga a Metafísica presente no processo histórico da teologia?’,
possibilita por meio da reflexão linear conseguir identificar quais são essas influências que
constroem o ethos Iurdiano. Enquanto que a questão: ‘Quais fenômenos desvelam a escassez
da meditação no contexto Iurdiano?’ abre espaço ao aprofundamento dos desdobramentos da
técnica na Igreja Universal pelo parâmetro da presença ou escassez da meditação.
No primeiro capítulo, busca-se desenvolver os conceitos heideggerianos que serão
chave de leitura para o contexto Iurdiano, como a compreensão da técnica planetária, o
pensamento calculador, o pensamento meditativo, e uma breve apresentação da própria igreja
Universal. A ontologia heideggeriana, que denuncia o fortalecimento do ente em detrimento
ao esquecimento do ser, é aproximada a exemplos de vivência Iurdiana e torna-se mais
didático. Inicialmente, são introduzidos elementos que serão mais explorados nos próximos
capítulos, como a Metafísica (desenvolvida no segundo capítulo) e o fenômeno de
ajustamento Iurdiano (que será abordado no terceiro capítulo).
No segundo capítulo, intenta-se compreender melhor o propósito da Metafísica e seu
desdobramento da teologia, a fim de identificar a carga de influência da técnica planetária no
desenvolvimento da igreja Universal do Reino de Deus. Elementos como herança, tradição e
até mesmo o itinerário do pensar, passando pela filosofia antiga, a teologia medieval e o
racionalismo moderno, serão desenvolvidos a partir da perspectiva heideggeriana. O nome da
Igreja Universal também será enfocado, ao questionar se seu nome sugere a pretensão
15
2
Aula ministrada pela Dra. Dulce Critelli, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 07/08/17.
17
Há quem diga que esse seu primeiro livro não tem crédito, defendendo a ideia de ser
impossível estudar um aspecto religioso em interlocução com o pensamento heideggeriano, ao
se basear em uma determinada citação: “a filosofia no seu questionamento radical, que se
apóia em si mesmo, deve ser, por princípio, a-téia. Justamente por causa de sua orientação
fundamental ela não se permite o atrevimento de possuir e determinar Deus” (HEIDEGGER
apud MACDOWELL, 2011, p. 13-14). De fato, Ser e Tempo (1927) vai mostrando um
pensamento laicizado, pois mesmo ainda discorrendo sobre a angústia, trata-lhe não mais
como suscitada pelo final dos tempos, antes, suscitada pela finitude. Ampliando assim,
temáticas que até estão presentes na religião, mas em sua base são inerentes à existência
(HEIDEGGER, [1927] 2012). Entretanto, sua vasta obra tem o caráter da continuidade, sem
rupturas de pensamento. O filósofo contemporâneo Marcos Casa Nova (informação verbal)3
propôs que o pensamento do autor é circular, já que possibilita visualizar o centro de qualquer
ângulo. Então, por mais que seus livros possam ter tônicas diferentes, e ter experimentado
uma viragem após Ser e Tempo, Heidegger ainda trata Deus numa desconstrução da onto-
teologia metafísica, bem como a vigência do Sagrado, deixando uma brecha para aproximar
seus pensamentos do fazer ciência da religião.
O centro do estudo de Heidegger era a questão do “ser”, em que questiona a definição
proposta pela filosofia até aquele momento, a fim de lançar as bases para uma nova
interpretação. Assim, ele passa a propor “ser” no sentido verbal, que pode ser conjugado no
tempo e em diferentes pessoas (eu, tu, ele, nós, vós, eles) e não mais como um substantivo
conforme pensado anteriormente. Ao homem é dada a tarefa de ser e responder por esse ser,
enquanto algo em aberto deve-se decidir a cada vez ser, a exemplo da ilustração de ser como
um texto rico que abre espaço para várias interpretações e revelam sucessivamente diversos
aspectos do texto, ser está em movimento e tem aí várias possibilidades (INWOOD apud
LIMA FILHO, 2011). Inicialmente, em Ser e Tempo seu estudo de “ser” refere-se à existência
do homem (que ele cunha como Dasein, ser-aí) na premissa de um ambiente cotidiano, olhado
de maneira específica e peculiar enquanto alguém singular. Porém, ao perceber que “procurar
o sentido de ser a partir da compreensão do ser, própria do ser-aí, significava continuar preso
nas malhas do subjetivismo moderno, que ele pretendia romper” (MACDOWELL, 2011, p.
16) deixou tal obra inconclusa e foi exatamente esse vazio, que lhe provocou uma viragem
(die Kehre) nos anos 30. A partir daí, apresenta-se “Ser”, com a grafia em letra maiúscula,
que agora retrata a convocação da existência à humanidade, “Ser” que pode ser percebido
3
Conferência Instituto Dasein (SP) realizada em 04/07/2015.
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4
Aula ministrada pela Dra. Dulce Critelli, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 07/08/17.
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Ora, se Heidegger concorda com o apontamento do humanismo e que seu efeito seria
o niilismo5, ele discorda do projeto de suplantação de Nietzsche na figura do “super-homem”
que expressa a “vontade de potência” e só fortalece o antropocentrismo. Nesse “esquecimento
do ser” o ente se fortaleceu, e como característica do domínio do sujeito Heidegger denomina
essa era de técnica planetária.
Desde que o homem no meio do ente (physis) no qual ele é exposto, procure ganhar
uma base e se instalar, e que proceda desta ou daquela maneira para dominar e
superar o ente, seu modo de proceder ao encontro do ente é então levado e dirigido
por um saber que concerne ao ente. E esse é o saber que se nomeia techné
(HEIDEGGER, apud LIMA FILHO, 2011, p. 70).
A “técnica” na cultura grega antiga era entendida como a habilidade para conduzir as
coisas em seu aparecer, por isso, Heidegger que consegue ouvir o apelo epocal do Ser,
compreende que a técnica é uma forma de desencobrimento do ser e de seu esquecimento,
porque se na Grécia a competência técnica estava associada ao poeta e artesão, agora sua
maneira de expressão condiz com a “provocação” (MICHELAZZO, 2001, p. 63). Provocar
tomado em seu sentido etimológico significa “pro” – para fora, “vocare” – chamar, ou seja,
chamar para fora.
5
“Niilismo significa o completo olvido do ser” (NUNES, 2016, p. 105).
20
Heidegger (1972) vai mostrando que essa nova forma de produção, em detrimento ao
abandono da poiésis6, tem por fundamentação o descerramento da energia oculta da natureza,
o que se descerra é armazenado, para que o que estiver estocado seja distribuído e, assim, se
efetive os valores capitalistas vigentes na modernidade. Essa cadeia de ações é denominada
por “interpelação provocadora”, com traços do controle e cálculo. A questão é que nada que o
homem produza está cindido dele mesmo, ou seja, não é apenas o mercado capitalista que está
preso nas amarras da técnica planetária, mas principalmente àquele que o criou.
O próprio homem está, sem disso dar-se conta, interpelado, isto é, provocado a
cultivar racionalmente o mundo ao qual pertence. É provocado a fazê-lo, de modo
geral, enquanto fundo de reserva calculável, e assegurar-se, ao mesmo tempo, sob o
ponto de vista das possibilidades da exploração racional. Assim, o homem
permanece condenado à vontade de cultivar o que é calculável, e de sua
factibilidade. Entregue ao poder de interpelação produtora, o homem barra-se a si
mesmo o caminho para o elemento essencial de sua existência (HEIDEGGER, 1972,
p. 16).
Como no mito de Dédalo o homem se torna refém da sua própria obra, mesmo que por
vezes se iluda pensando que domina o sistema tecnicista que criou. “Tal erro consiste no fato
de se exigir que o homem se torne senhor da técnica, não devendo permanecer, por mais
tempo, seu escravo. Mas o homem jamais se tornará senhor daquilo que determina o elemento
mais próprio da técnica moderna” (HEIDEGGER, 1972, p. 19), porque o fato é que a técnica
domina a Terra inteira (HEIDEGGER, 1959).
Então, a Metafísica ao tentar conhecer o ser por um ente: no período antigo a partir do
ente Deus; na idade média a partir do instrumento; na modernidadea partir do ente homem e
seus artefatos, desaguou no “esquecimento do ser”. É esse fortalecimento do ente, em
detrimento ao enfraquecimento do ser, que instala o sistema técnico planetário como forma
comum de interação entre o homem e seu meio, o homem com outros homens, o homem com
ele mesmo e a forma de pensar pertinente a técnica é caracterizado como o “pensamento
calculador”, conforme explanado a seguir:
6
Poiésis refere-se ao trabalho desenvolvido na era technikós, a técnica que vigorava na antiga cultura grega e
expressava os valores da habilidade artesanal (MICHELAZZO, 2011).
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calcula nunca para, nunca chega a meditar. O pensamento que calcula não é um
pensamento que medita, não é um pensamento que reflete sobre o sentido que reina
em tudo o que existe. Existem, portanto, dois tipos de pensamento, sendo ambos à
sua maneira, respectivamente legítimos e necessários: o pensamento que calcula e a
reflexão (Nachdenken) que medita. É a esta reflexão que nos referimos quando
dizemos que o Homem atual foge do pensamento (HEIDEGGER, 1959, p. 13-14).
A Igreja Universal foi fundada em 1977 na zona norte da cidade do Rio de Janeiro,
onde antes funcionava uma pequena funerária. Em menos de três décadas se
transformou no mais surpreendente e bem-sucedido fenômeno religioso do país,
atuando de forma destacada no campo político e na mídia eletrônica. Nenhuma outra
igreja evangélica cresceu tanto em tão pouco tempo no Brasil. Seu crescimento
institucional foi acelerado desde o início. Em 1985, com oito anos de existência, já
contava com 195 templos em catorze estados e no Distrito Federal. Dois anos
depois, eram 356 templos em dezoito estados. Em 1989, ano em que começou a
negociar a compra da Rede Record, somava 571 locais de culto. Entre 1980 e 1989,
o número de templos cresceu 2.600%. Nos primeiros anos, sua distribuição
geográfica concentrou-se nas regiões metropolitanas do Rio de Janeiro, de São Paulo
e de Salvador. Em seguida, expandiu-se pelas demais capitais e grandes e médias
cidades. Na década de 1990, passou a cobrir todos os estados do território brasileiro,
período no qual logrou taxa de crescimento anual de 25,7%, saltando de 269 mil
(dado certamente subestimado) para 2.101.887 adeptos no Brasil, de onde se
espraiou para mais de oitenta países. Em todos eles, conquista adeptos
majoritariamente entre os estratos mais pobres e menos escolarizados da população
(MARIANO, 2004, p. 124-125).
22
Seria ingênuo considerar que as instituições religiosas, sejam elas de toda sorte de
crenças, não passem pelo mercado capitalista em suas atribuições burocráticas, mas o retrato
da Igreja Universal funciona como uma caricatura que por mostrar a ênfase de seus interesses
econômicos deixa ver o pensamento calculador entremeado em sua maneira de ser.
Visando sua contínua influência a IURD também se arvora na esfera política
partidária, escrevendo uma longa história de participação em todos os pleitos, por vezes numa
representação direta, por outras, indireta. Mas o que sempre é escancarado são as campanhas
para a efetivação dos candidatos, com direito a obreiros distribuindo ‘santinhos’, veículos de
informação da igreja fazendo propaganda eleitoral, faixas com seus respectivos nomes e
números espalhadas pelos templos, além dos pastores e bispos solicitarem abertamente
obediência no que tange aos votos, em cima do púlpito (MARIANO, 1999).
[...] a Universal é a igreja pentecostal com maior sucesso eleitoral. Como as demais
estratégias de inserção social de que se vale, participa da política – lançando
candidaturas próprias desde a eleição de 1982 – para expandir seu crescimento e
defender seus interesses corporativos, entre os quais alardeia o da liberdade
religiosa. Alega que, com representantes no parlamento, no caso de ‘perseguição’,
da qual frequentemente se diz vítima, estará preparada para lutar pela manutenção de
suas concessões de emissoras de rádio e TV. Seu engajamento na esfera política,
como se vê, não é desinteressado nem nobre. Visa basicamente a duas coisas:
conquista de poder e atendimento dos interesses corporativos da denominação e das
causas evangélicas (MARIANO, 1999, p. 91).
Toda essa articulação política tem uma posição partidária, que partindo de um
pensamento calculador restrito aos seus interesses, impõe aos adeptos suas convicções,
furtando-lhes de um pensamento meditativo com apelações de natureza espirituais, como
demonstra o exemplo do Bispo Macedo em uma campanha anti-Lula, com o nome fantasia de
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‘Clamor pelo Brasil’: “disse que, naquela eleição, os crentes teriam de decidir entre a igreja de
Jesus e a do Diabo. Sem pronunciar o nome de Lula em momento algum, advertiu: ‘E vocês
sabem o que eu estou falando’. ‘Eu estou orando e não vai acontecer [...]” (MARIANO, 1999,
p. 94).
Tal padrão se distancia do antigo modelo pentecostal marcado pelo compromisso com
valores puritanos e práticas ascéticas, entretanto revelam uma flexibilização no sistema de
crenças para torná-lo mais atrativo. Ricardo Mariano elucida esse fenômeno de ajustamento:
Primeiro, demonstra que essa religião passou a se interessar por e orientar sua
mensagem para este mundo, não para transformá-lo subitamente por meio de
qualquer revolução de cunho milenarista, nem para desqualificá-lo, mas
simplesmente para se ajustar às demandas sociais das massas interessadas tão
somente na resolução ou mitigação de seus problemas cotidianos e na satisfação de
seus desejos materiais. Com isso, passou a funcionar como um ‘pronto-socorro
espiritual’, especializado na oferta de produtos padronizados de fácil acesso e
consumo. Em segundo lugar, demonstra que os fiéis [...] estão se tornando cada vez
mais individualistas, consumistas, hedonistas e, portanto, cada vez mais afinados
com o que se passa a sua volta (MARIANO, 1999, p. 232-233).
A luta entre os que estão no poder e os que querem o poder é, de ambos os lados,
luta pelo poder. Em toda parte, o poder é o determinante. Com essa luta pelo poder,
a essência do poder se desloca, em ambos os lados, para a essência de uma
dominação incondicional. Todavia, aqui se esconde uma única coisa: que toda luta
está a serviço do poder, sendo por ele querida. Antes de qualquer luta, o poder já se
apoderou de todas elas. Só a vontade de poder consegue apoderar-se dessas lutas. O
poder, entretanto, vai se apoderar de tal forma da humanidade que desapropria o
homem da possibilidade de dispor de um caminho para sair do esquecimento do ser
(HEIDEGGER, 2002, p. 78-79).
O querer (Wollen) aqui nomeado consiste em se impor através de tudo e contra tudo,
com um propósito que já pôs o mundo como o conjunto de objetos suscetíveis de
serem produzidos. É esse querer que determina o ser do homem moderno. [...] É
aqui, no autocomando, que se anuncia o caráter imperativo da vontade
(HEIDEGGER, 1977, p. 266-267 apud LIMA FILHO, 2011, p. 90).
Comece hoje, agora mesmo, a cobrar dele tudo aquilo que Ele tem prometido [...]. O
ditado popular de que ‘promessa é dívida’ se aplica também para Deus. Tudo aquilo
que Ele promete na Sua Palavra é uma dívida que tem para com você [...]. Dar
dízimos é candidatar-se a receber bênçãos sem medida, de acordo com que diz a
Bíblia [...]. Quando pagamos o dízimo a Deus, Ele fica na obrigação (porque
prometeu) de cumprir a Sua Palavra, repreendendo os espíritos devoradores [...].
Quem é que tem o direito de provar a Deus, de cobrar d’Ele aquilo que prometeu? O
dizimista! [...] Conhecemos muitos homens famosos que provaram a Deus no
respeito ao dízimo e se transformaram em grandes milionários, como o Sr. Colgate,
o Sr. Ford e o Sr. Caterpilar (MACEDO, 1990 apud MARIANO, 1999, p. 162).
A desmobilização moralista daqueles que ainda não sabem o que é que está em jogo
visa, com freqüência, a arbitrariedade e a pretensão de dominação dos ‘líderes’, o
que constitui, na verdade, a forma mais fatal de seu reconhecimento contínuo. O
líder é o escândalo que não se cansa de perseguir o escândalo de apenas dar para os
outros a impressão de que não são eles que agem. Acredita-se que os líderes por si
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mesmos, na fúria cega de uma mania egocêntrica de si, instauram e adéquam tudo a
si mesmos, segundo sua própria obstinação. Mas eles são, na verdade, a
consequência necessária do fato de todos os entes terem passado para o modo de
errância em que o vazio se espraia, na avidez de uma ordem e de um asseguramento
único de tudo o que é e está sendo. Daí a necessidade de uma ‘liderança’, isto é, de
um cálculo planificador que assegure a totalidade dos entes. Para isso, devem-se
institucionalizar e mobilizar esses homens capazes de servir à liderança. Os ‘líderes’
são os trabalhadores determinantes da mobilização, aqueles que olham pela
segurança dos abusos dos entes por conseguirem olhar num panorama a totalidade
de toda circunscrição e, assim, dominarem em cálculos a errância. O modo em que
se realiza essa visão panorâmica é a capacidade de calcular (HEIDEGGER, 2002, p.
81-82).
Esse vazio deve ser preenchido. Como, porém, o vazio do ser, sobretudo quando não
pode ser percebido como tal, nunca se preenche pela quantidade de entes, a única
escapatória é a institucionalização ininterrupta dos entes na possibilidade contínua
de ordenamento enquanto forma de assegurar o fazer sem meta (HEIDEGGER,
2002, p. 83).
O filósofo expõe que o recurso que a técnica planetária encontrou para lidar com esse
“vazio de ser” foi lançando mão da institucionalização. Mas o que constituí essa
institucionalização que continua fortalecendo esse ente ao assegurá-lo do fazer? Existem
vários tipos de instituições: família, mercado de trabalho, religiões. Apesar de perfis e áreas
de atuações diferentes, todas as instituições têm algo em comum, sua funcionalidade. Ao
demarcar fronteiras entre direitos e deveres, determinando regras de conduta (de maneira
implícita ou explícita) vão assim pontuando um campo de domínio e organizando o senso
identitário, com uma determinada linguagem e compreensão de mundo. Tudo isso fornece
senso de pertença, ou delimita a posição da marginalização, ou ainda da vizinhança da
comunidade – que pela leitura da ciência da religião, seriam os frequentadores ocasionais.
Toda essa estrutura normativa aplaca a angústia inerente a responsabilidade do “ser”
em ter que decidir o tempo todo, e haver-se com as consequências dessas mesmas decisões.
Ao terceirizar os cuidados do seu existir para a instituição entrega-lhe também poder, e assim
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Aula ministrada pela Mestre Angélica Gawendo, no grupo de estudo DEVIR, realizado em Santos/SP em 2015.
8
Usa-se o termo “utilitarista” não com a intenção pejorativa, mas pensando-se no sentido mais originário da
palavra cunhada por Jhon Stuart Mill, filósofo britânico liberal, que propõe a ética da utilidade – útil é o que te
faz feliz. Essa corrente filosófica é bem contemporânea, ao passo que contribui para a expansão do
individualismo, bem como a intensificação do imediatismo.
28
modo de ser. Uma das consequências para tanto poder calculador é a alienação quanto a
indigência do ser humano, na falta de reconhecer os seus contingentes e fragilidades endossa
tamanha precariedade. “A época indigente não se ressente mais de sua indigência. Essa
incapacidade, pela qual a indigência mesma da penúria cai no esquecimento, nos faz ver bem
a indigência, em si mesma, desse tempo” (HEIDEGGER, apud LIMA FILHO, 2011, p. 49).
Essa “indigência” é uma constituição básica do homem, que é indigente justamente
porque é mortal, como um ser fático restringido por suas limitações de tudo não-poder. A
verdade do ser está em abarcar essa dura realidade, em contrapartida, a IURD contesta
qualquer fragilidade em argumento da falta de fé. Nesse poder que renega o não-poder, no
possível sobrepujar o impossível, o que era indigência chega ao extremo do empobrecimento
do ser.
A dor que se deve sentir e suportar até o fim é a compenetração e o saber de que a
falta de indigência constitui a indigência mais velada e mais extrema, a indigência
que só incide a partir da distância mais distante. A falta da indigência consiste
justamente em achar que se tem na garra o real e a realidade, e que se sabe o que é
verdadeiro, sem que se necessite saber onde vigora a essência da verdade. Na
dimensão do ser, a essência do niilismo é deixar o ser já que aí se dá e acontece que
o ser é deixado em favor dos apoderamentos. Esse deixar arrasta o homem para uma
servidão incondicionada (HEIDEGGER, 2002, p. 79).
A curiosidade liberada, porém, ocupa-se em ver, não para compreender o que vê, ou
seja, para chegar a ele num ser, mas apenas para ver. Ela busca apenas o novo fim
de, por ele renovada, correr para uma outra novidade. Esse acurar em ver não trata
de apreender e nem de ser e estar na verdade através do saber, mas sim das
possibilidades de abandonar-se ao mundo. Por isso, a curiosidade caracteriza-se,
especificamente, por uma impermanência junto ao que está mais próximo. Por isso
também não busca o ócio de uma permanência contemplativa e sim a excitação e
inquietação mediante o sempre novo e as mudanças que vem ao encontro. Em sua
impermanência, a curiosidade se ocupa da possibilidade contínua da dispersão. A
curiosidade nada tem a ver com a contemplação admiradora dos entes [...]. Ela não
se empenha em se deixar levar para o que não compreende através da admiração, do
espanto. Ela se ocupa em providenciar um conhecimento para simplesmente ter-se
tornado consciente. Os dois momentos constitutivos da curiosidade, a
impermanência no mundo circundante das ocupações e a dispersão em novas
possibilidades, fundam a terceira característica essencial desse fenômeno, que
chamamos desamparo. A curiosidade está em toda parte e em parte nenhuma. Este
9
Ver Ricardo Bitun (2011).
30
Heidegger tem uma forma de escrita que pode gerar frustrações a pessoas mais
apressadas, como por exemplo, em sua obra Serenidade, o filósofo não se propõe a
estabelecer sentenças de definições sobre o tema, antes, vai dando sinais para que o leitor
processe o desvelamento. Fazendo uso do mesmo método fenomenológico de aproximação,
esvazia-se a pretensão de conceituar a meditação, buscando apenas esclarecer o que envolve
esse tipo de pensamento. A fim de manter a postura meditativa frente ao estudo do
pensamento em questão, é válido considerar o conselho a seguir:
10
Dasein ou ser-aí.
31
Contudo, “uma coisa é termos ouvido ou lido algo, isto é, termos tomado conhecimento disso,
outra é conhecermos, isto é, refletirmos sobre o que ouvimos e lemos” (HEIDEGGER, 1959,
p. 20-21) – e a meditação parte dessa reflexão sobre toda a informação.
Abrir mão da compreensão imediata é também se desfazer dos rótulos de associação
que, pessoas empenhadas em ofícios que se subentendem a propagação do conhecimento,
como os pastores evangélicos, sejam necessariamente pessoas que desenvolvem o pensamento
meditativo.
Não nos iludamos. Todos nós, mesmo aqueles que pensam por dever profissional,
somos muitas vezes pobres-em-pensamentos; ficamos sem-pensamentos com
demasiada facilidade. A ausência-de-pensamentos é um hóspede sinistro que, no
mundo atual, entra e sai em toda a parte. Pois, hoje toma-se conhecimento de tudo
pelo caminho mais rápido e mais econômico e, no mesmo instante e com a mesma
rapidez, tudo se esquece. Do mesmo modo, os atos festivos sucedem-se uns aos
outros. As comemorações tornam-se cada vez mais pobres-em-pensamentos.
Comemorações e ausência-de-pensamentos andam intimamente associadas
(HEIDEGGER, 1959,p. 11).
Pois, se para as camadas sociais mais altas existe o senso comum da imagem do pastor
ignorante, para pessoas da classe social mais baixa o imaginário do pastor passa pela
construção de um homem que é o detentor do saber, mesmo que “os pastores da Universal não
possuam formação em seminários ou faculdades de teologia” (MARIANO, 1999, p. 63). O
pensamento meditativo não se aprende necessariamente nos bancos acadêmicos, mas o
exercício do estudo pode ser um caminho para encontrar a meditação.
A igreja, que por vários anos manteve, no Rio de Janeiro, a Faculdade Teológica
Universal do Reino de Deus (Faturd), que oferecia cursos básicos (três anos) e de
bacharelado em teologia (quatro anos), desistiu de prover formação teológica aos
pastores quando percebeu que isso, além de gastar inutilmente seu tempo, tenderia a
diminuir seu fervor e distanciá-los das demandas imediatas dos fiéis (MARIANO,
1999, p. 63).
Quais são os ganhos secundários dessa instituição em manter seus líderes leigos?
Primeiramente o valor econômico em poupar os gastos no investimento para a formação, bem
como otimizar o tempo do seu funcionário para o trabalho exercendo o ditado interno de que
“templo é dinheiro” (CAMPOS, 1997). O segundo ganho é manter tal pastor com a mesma
linguagem e ethos desse fiel, provocando assim uma identificação do adepto com seu pastor,
esse processo pode gerar uma retroalimentação de alienação: o pastor tomado pelo habitat
tecnicista que propaga um discurso calculador, em contrapartida o crente sem empunhadura
sobre si, imputa ao líder qualquer capacidade de reflexão.
32
Assim como Heidegger (1959, p. 11) apontava que “as comemorações tornam-se cada
vez mais pobres-em-pensamentos”, as liturgias iurdianas, focadas no domínio de demônios e
na teologia da prosperidade não reforçam a escassez da meditação?
Na Universal, cada culto parece ter como objetivo principal a oferta, estimular o fiel
a ‘dar para receber’. Nas pregações, os personagens bíblicos frequentemente
aparecem firmando relações de troca com Deus, as quais, exortam os pastores,
devem servir de modelo para os cristãos atuais. Passagens e histórias bíblicas,
majoritariamente pinçadas do Antigo Testamento, são interpretadas de molde a
encorajar os fiéis a ofertar com ‘sacrifício’ (MARIANO, 1999, p. 171-172).
Os cultos têm uma tônica teatral e extraem do seu público reações emocionais como
choro, tremores ou até manifestações que caracterizam uma possessão (MARIANO, 2004). O
filósofo contemporâneo Gilles Lipovetsky, em uma leitura da fé na sociedade atual postula
que “hoje, mesmo a espiritualidade funciona em autosserviço, na expressão das emoções e
dos sentimentos, nas buscas animadas pela preocupação com o maior bem estar-pessoal, de
acordo com a lógica experiencial [...]” (LIPOVETSKY, 2007, p. 132). Pode-se entender que a
Igreja Universal ignora o pensamento meditativo na escolha da exploração das emoções?
O pensamento meditativo bem como o pensamento calculador não podem ser
referenciados pela dualidade entre irracional e racional, porque afinal “quem fala contra o
lógico, defende o ilógico?” (HEIDEGGER,[1967] 2009, p. 74) – fazer uso dessa dualidade
seria retomar os pressupostos da Metafísica que propõe a dicotomia entre sujeito x objeto,
razão x emoção. O pensamento meditativo passa pelas sensações na via da estética, assim
como também passa pela reflexão do intelecto, mas tem um equilíbrio entre isso e aquilo, não
podendo ser caracterizado como só isso ou só aquilo.
A “compreensão” sempre acontece numa determinada afinação, isso torna-a afetiva, e
não somente racional (HEIDEGGER, [1927] 2012). Por exemplo, uma oração é marcada por
um determinado estado de ânimo, que engloba o estado de espírito do seu orador naquele
exato momento em que é elaborada a oração, o motivo de sua prece e as emoções que são
suscitadas a partir de então, o envolvimento dos espectadores daquela oração, etc. Frente a
isso se poderia entender que a Igreja Universal do Reino de Deus por fim mostra um traço
meditativo ao passo de não desdenhar do elemento estético, como fazem algumas outras
igrejas evangélicas que dão preferência ao abarcar apenas o âmbito racional. Todavia, logo
essa posição é refutada pela percepção que a esfera das emoções é tão esgarçada na instituição
que não desenvolve a possibilidade da reflexão.
As emoções, impressões e experiências fornecem um desvelamento do ser e por isso
constituem o pensamento meditativo, que se dispõe a pensar o sentido do ser. Justamente por
33
isso a percepção dos estados de ânimo mais frequente na instituição vai desvelando um modo
de ser, ou seja, reconhecer que o poder é a tonalidade afetiva mais presente no contexto
Iurdiano é desvelar o seu modo de ser, enquanto compreensão da sua projeção.
Entrementes, até a estética da Igreja Universal está amalgamada no pensamento
calculador, já que parte de emoções técnicas conforme o esclarecimento de Heidegger (2002):
O pensamento calculador supõe a posse da verdade e da arte, por isso qualquer dúvida
ou contestação é mal vista, a propagação dos Iurdianos é que “a dúvida é do diabo”
(MARIANO, 2004, p. 131) obstruindo o questionamento que constrói o caminho do
conhecimento. Ao falar sobre a tarefa do pensamento, Heidegger propõe:
A partir de sua interpretação bíblica, pastores e fiéis avaliam e criticam tudo à sua
volta. Elegem o mundanismo e as outras religiões como alvos prediletos de ataque.
Isto é, canalizam sua agressividade para os de fora de seu grupo. Tudo que repudiam
nas religiões com as quais se relacionam e concorrem visa a aclamá-los como
detentores exclusivos da verdade e virtude bíblicas que conduzem à salvação. Mas,
quando, para cumprir ordens pretensamente divinas e impor sua verdade, avançam
destemidos além das fronteiras dos templos, correm o risco de desencadear senão a
guerra santa, ao menos uma perversa maré de atos de intolerância explícita
(MARIANO, 1999, p. 116-117).
34
Não são poucos os episódios veiculados nos noticiários que retratam atos de violência
por parte dos Iurdianos com os membros das religiões afro-brasileiras e espíritas, como
ocorrências de agressões físicas aos adeptos de umbanda e candomblé, invasão e depredação
de centros e terreiros, tumulto e vandalismo em festas de outras religiões, além de publicações
com teor hostil que incitam os adeptos ao ódio (MARIANO, 1999). Igualmente, a maneira
como os pastores executam o exorcismo em seus cultos, exigindo com que o ‘possesso’
mantenha suas mãos para trás e cabeça baixa em uma postura de submissão, para que o
exorcista consiga controlá-lo com a mão pesada em sua cabeça ou até puxando seu cabelo,
enquanto associa a condição da possessão demoníaca com o envolvimento a religiões afro,
abre um precedente de animosidade entre os Iurdianos e as demais religiões.
Segundo Macedo, sua ‘igreja foi levantada para um trabalho especial, que se salienta
em todas as reuniões – a libertação de pessoas endemoninhadas (...) [nas quais] os
demônios são humilhados e até mesmo achincalhados, numa prova de que o Senhor
está conosco’. Considera as religiões espíritas, afro-brasileiras e orientais obra e
reduto diabólicos; antros de manifestação de ‘estupidez, ignorância e idolatria’.
Identifica seus ritos e práticas com ‘lodo, imundície, lamaçal’. Afirma que são
freqüentadas por pessoas ingênuas e sinceras, mas sobretudo por ‘prostitutas,
homossexuais e lésbicas’ [possuídos por pomba-giras], por ‘ladrões, criminosos,
contraventores, pederastas e gente destaestirpe’ [para ‘fechar o corpo’], e por
‘pessoas viciadas em tóxico, em bebidas alcoólicas, em cigarro ou jogo’ [possuídas
por ‘zé pilintras’]. Assim, ‘desenvolver-se no espiritismo, significa tornar-se
totalmente submisso aos demônios’. As conseqüências para seus adeptos são
nefastas, pois ‘essa religião que está tão popular no Brasil é uma fábrica de loucos e
uma agência onde se tira o passaporte para a morte e uma viagem para o inferno’
(MACEDO, 1988 apud MARIANO, 1999, p. 119-120).
11
A essência para Heidegger, não é previamente dada, ou seja, não é da ordem subjetiva, ela vai sendo
construída. O filósofo propõe uma essencialização, um caminho de construção da essência por meio do mundo e
da relação com os outros. Aos outros entes isso já é dado (por exemplo: um abacateiro sempre será um
abacateiro), enquanto ao homem foi dada a incumbência de construir sua existência.
35
O que Heidegger está querendo dizer é que a esfera do Sagrado exige humildade dos
mortais para reconhecer a importância da Verdade, enquanto desocultamento, do Ser, ao se
abster da elaboração de sentenças e postulações sobre Deus carregado de conceitos a priori
estabelecidos, que aprisionam o homem e lhe dispõe acriar uma divindade que seja a sua
imagem e semelhança, para atender as suas necessidades e interesses egoístas. João Augusto
MacDowell esclarece:
Mas por mais que isso envolva a perseverança, demonstrada na analogia do semeador
que aguarda o tempo oportuno da meditação acontecer, é necessário reconhecer o vazio de
pensamento que pode permear esse processo. Heidegger (1959) continua dizendo que “só
podemos tornarmo-nos pobres-em-pensamentos ou mesmo sem-pensamentos em virtude de o
homem possuir, no fundo da sua essência, a capacidade de pensar, o espírito e a razão, e em
virtude de estar destinado a pensar” (HEIDEGGER, 1959, p. 12), ou seja, “qualquer pessoa
pode seguir os caminhos da reflexão à sua maneira e dentro dos seus limites” (HEIDEGGER,
1959, p. 14). Mesmo que os adeptos da igreja Universal sejam pessoas do estrato mais pobre
36
ou inculto, isso não os torna incapazesde exercerem o pensamento meditativo, talvez o fator
restritivo esteja na fé técnica da instituição.
Entretanto, o perigo não está necessariamente no mundo estar impregnado cada vez
mais pela técnica e o seu modo de ser vigente do pensamento calculador, a nocividade maior
se instala na escassez de meditação do homem em não pensar o sentido de ser frente a todas
essas coisas. Pois, como propõe Heidegger (1959), só o pensamento meditativo é capaz de
aproximar o que a primeira vista parece inconciliável: acolher o mundo técnico e seus
recursos, mas manter-se na vigilância de que isso não é tudo, lidando como ele chama, de
“serenidade com as coisas”, enxergando com humildade o quanto o mundo técnico também
modifica o homem.
Por isso o importante é salvar essa essência do homem. Por isso o importante é
manter desperta a reflexão. Porém - a serenidade para com as coisas e a abertura ao
mistério (nos mantermos abertos ao sentido oculto no mundo técnico) nunca caem
do céu. Não são frutos do acaso. Ambas medram apenas de um pensamento
determinado e ininterrupto (HEIDEGGER, 1959, p. 25-26).
Ao que parece, não é possível se dispor a valer-se da meditação como via alternativa
do pensamento calculador, se não estiver disposto a compreender as cargas de influências que
determinam a técnica planetária. Compreender o caminho que o pensamento percorreu para
chegar até aqui, passando pela Filosofia e Teologia, demarcadas pelas tintas da Metafísica, é
exercer a meditação e abrir trilhas para a possibilidade do resgate do Ser. Na citação acima,
ele aponta que tal meditação não pode usar as mesmas referências de reflexão usadas até
então pela vigente Filosofia, mas é necessário aproximar-se desta Filosofia a fim de
desconstruir a sua tradição. Essa desconstrução não tem o intuito de desvalidar a tradição, mas
de desvincular-se de respostas já dadas para chegar às origens, compreendendo de onde ela
recebe a sua determinação. A tradição só é uma realidade porque o ser é historicidade, como
Heidegger ([1927] 2012) explana a seguir:
Ele continua explicando que a tradição por vezes esconde o seu legado, ao entregar o
que é legado como óbvio, como o caminho mais evidente, furta o ser do questionamento para
aquilo que já está posto, ofuscado pela convicção da inutilidade de compreender suas origens.
“Caso a questão do ser deva adquirir a transparência de sua própria história, é necessário,
então, que se abale a rigidez e o enrijecimento de uma tradição petrificada e se removam os
entulhos acumulados” (HEIDEGGER, [1927] 2012, p. 60-61). Tal desconstrução não se
12
Em outras versões como “interpelação provocadora”, refere-se à cadeia de ações baseada no controle e cálculo
técnico.
13
Dasein ou ser-aí.
38
centra no passado, antes, volta-se para o hoje, enquanto uma intenção de circunscrever as suas
possibilidades, que podem estar soterradas pelo peso da tradição (HEIDEGGER, [1927]
2012).
Para nós a medida para o diálogo com a tradição historial é a mesma, enquanto se
trata de penetrar na força do pensamento antigo. Mas nós não procuramos a força no
que foi pensado, mas em algo impensado, do qual o que foi pensado recebe seu
espaço essencial. Mas somente o já pensado prepara o ainda impensado, que sempre
de modos novos se manifesta em sua superabundância. A medida do impensado não
conduz a uma inclusão do anteriormente pensado num desenvolvimento e
sistemático sempre mais altos e superadores, mas exige a libertadora entrega do
pensamento tradicional ao âmbito do que dele já foi e continua reservado. Este
passado-presente perpassa originalmente a tradição, constantemente a precede, sem,
contudo, ser pensado propriamente e enquanto o originário (HEIDEGGER, 2006, p.
58).
Nesse retorno a tradição, Martin Heidegger aponta que o espanto com o ‘ser’ estava
preservado nos pensadores pré-socráticos, como exemplifica Heráclito14 de Éfeso, em seus
fragmentos. E qual é a característica que diferencia tais pensadores? Além de reconhecer a
ambiguidade entre identidade e diferença, e manter a tensão incessante do real, sustentavam
que na origem, ser e pensar pertence um ao outro.
Eles falam do real, das coisas que nos cercam, como de uma paisagem que se
apresenta sempre através de dois âmbitos: um, o mais secreto, escondido, obscuro,
que faz brotar de dentro de si mesmo; um outro que se revela, que faz visível. É
como se esses pensadores dissessem que toda coisa, tudo aquilo que é, nunca está
sozinho, no sentido de algo encerrado em si mesmo, mas sempre o é junto a uma
outra coisa, em sintonia com a alteridade, com a qual tanto se relaciona quanto se
opõe, constituindo, assim, a um só tempo, uma identidade e uma distinção
(MICHELAZZO, 1999, p. 85).
14
Ver Heráclito de Martin Heidegger, 2002.
39
15
Ver a República de Platão.
40
qualquer, mas um modo de investigar que possui um propósito e uma direção bem
determinados, qual seja, a de ter acesso àquela sabedoria mediante duas condições
básicas: apreender a entidade do ente (ón), como ideia, noção, conceito – caráter
metafísico; e fundar sua construção no um, como ideia suprema, Deus (theion) –
caráter teológico. Estas duas condições, como traços essenciais da filosofia
ocidental, Heidegger os reuniu numa única palavra: onto-teo-logia (HEIDEGGER,
1968, p. 158-159 apud MICHELAZZO, 1999, p. 42).
arregimentou argumentos a fim de compor a armação do corpo dogmático no que tange aos
valores internos da Igreja, mas também ao aspecto apologético da fé (MICHELAZZO, 1999).
Ora, se Deus era tomado como “a causa motora” como caracteriza São Tomás de
Aquino, o “Deus creator”, como postula Santo Agostinho, entendido como o ponto primeiro
e universal, o homem, enquanto filho de Deus, também conquista uma condição especial.
Essa posição privilegiada, que compreende o homem dicotomizado como possuidor de um
corpo perecível, ao âmbito do sensível, mas diferentemente das demais criaturas, possui uma
alma racional perene, vinculada ao âmbito supra-sensível, vai abrindo espaço para a
efetivação do Humanismo.
Mesmo que séculos tenham se passado da Idade Média até os dias de hoje, e o mundo
tenha sofrido tantas mudanças, ainda são perceptíveis resquícios de características elencadas
na teologia medieval dentro da teologia Iurdiana. Destaca-se: a eleição de um princípio
ordenador, renegando as diferenças, e por isso obstruindo o ‘ser’, enquanto expressão de
vastas possibilidades; enrijecimento do evangelho ao estabelecer um corpo doutrinário que
prevê certeza e controle; um cristianismo homogeneizado com o humanismo, pois o “culto
centrado no ‘homem de Deus’” (FERRARI, 2007, p. 113) é uma forte característica litúrgica
Iurdiana. Sua plausibilidade está em ambos terem o mesmo fundamento, o paradigma
metafísico.
Todo o real está centrado no homem, o qual inicialmente se tornara próximo de Deus
para transcender e conquistar o supra-sensível, depois foi crendo que ele mesmo poderia se
tornar Deus, nem que fosse de alguma área, ao que seus talentos se transformaram em
potência e divindade. Semelhante a mitologia grega, o homem moderno foi se transmutando
em semi-deus. Nietzsche postula que na cultura medieval houve um niilismo negativo,
niilismo do homem com relação a Deus. Enquanto que na época moderna assiste-se um
niilismo reativo, do homem ter poder para esvaziar a Deus (informação verbal)16.
Pode-se dizer que o pensamento moderno tem a sua fundação com o filósofo francês
René Descartes. Para Heidegger, ao contrário do que se poderia imaginar, esse
pensamento não significa uma ruptura radical com a tradição clássica e medieval, e
se ele apresenta perspectivas novas que justifiquem caracterizá-lo como um outro
modo de pensar, suas raízes, contudo, estão assentadas no pensamento que o
precedeu. Nesse sentido, ‘todo conhecedor da Idade Média percebe que Descartes
‘depende’ da escolástica medieval’, e o seu pensamento representa a terceira grande
variação da interpretação do ser na história da filosofia, como metafísica. Assim, a
interpretação dual da realidade, ou seja, os âmbitos do sensível e do supra-sensível
que iniciam com Platão e atravessam a Idade Média têm sua continuidade com
Descartes que denomina cada um deles de res. Àquele âmbito que nomeia o supra-
sensível ajuntou, Descartes o adjetivo cogitans, e àquele que nomeia o sensível,
anexou extensa (HEIDEGGER, 1988, p. 54 apud MICHELAZZO, 1999, p. 58).
16
Aula ministrada pela Dra. Daniela Taibo Ribeiro Xisto, no grupo de estudos DEVIR em Santos/SP em
outubro/2017.
43
homem passa a ser aquele existente no qual se funda todo o existente à maneira de seu ser e
de sua verdade. O homem se converte em meio de referência como tal” (HEIDEGGER, 1979,
p. 78-79 apud MICHELAZZO, 1999, p. 61).
Além disso, com o avanço das ciências e o refinamento do pensamento lógico na
época moderna, a certeza e o cálculo adquirem status de instrumento visando o asseguramento
e controle, na exigência de método e precisão. A fim de estabelecer um procedimento que
pudesse repetir tal padrão de controle, com uniformidade, garantindo a neutralidade científica,
quantas vezes fossem necessárias, foi criada a Técnica.
A uniformidade de tudo o que está sendo tem origem no vazio provocado quando se
deixa o ser. Visa apenas assegurar, por meio dos cálculos, sua própria ordem, a qual
está subordinada à vontade de querer. Por toda parte, antes de qualquer diferença
nacional, impera a uniformidade das lideranças para as quais toda forma de governo
não passa de um instrumento de hegemonia entre outros. Porque a realidade consiste
na uniformidade do cálculo planificador, o homem também deve passar a
uniformizar-se para dominar o real. Um homem sem uni-forme dá hoje a impressão
de irrealidade, de um corpo estranho ao real. Deixado exclusivamente às expensas
da vontade de querer, tudo o que é e está sendo se espalha numa indiferenciação
apenas controlável pelos processos e instituições obedientes ao ‘princípio de
desempenho’. Esse princípio parece ter como consequência uma hierarquia. Mas na
verdade o seu fundamento é a falta de hierarquia, uma vez que a meta de todo
desempenho é o vazio uniforme do abuso de todo e qualquer trabalho, com vistas ao
asseguramento das ordens. A indiferenciação gritante, que resulta desse princípio,
não se identifica de forma alguma com um mero nivelamento em que apenas se
44
desfazem hierarquias vigentes até então. A indiferença do abuso total surge de uma
não-permissão ‘positiva’ de qualquer hierarquia, em conformidade com o primado
do vazio de todas as metas. Essa indiferenciação testemunha a consistência já
assegurada da ausência de mundo por se deixar o ser (HEIDEGGER, 2002, p. 84).
Essa expansão, além de despertar hostilidades locais, gerou problemas quanto aos
recursos humanos. Aparentemente, o emprego de pastores nativos para administrar
essas igrejas, é visto por Edir Macedo como um risco de futura desagregação da
Igreja. Pelo menos para os postos mais importantes como pastorado efetivo dos
maiores templos, administração dos jornais, estações de rádio e programas de
televisão, assim como para o bispado, têm-se nomeado brasileiros. Por outro lado,
emprega-se o rodízio contínuo e a estratégia de ‘desterriotorialização’ dos recursos
humanos para aumentar a dependência dos pastores da organização, técnica
semelhante empregada pelas multinacionais. [...] ‘o território é, antes de tudo, o
espaço no qual se enraíza nossa identidade (...) a desterritorialização (...) é o
conjunto dos mecanismos, que consistem em separar o indivíduo de suas origens
sociais e culturais, em destituí-lo de sua história pessoal para reescrevê-la no código
da organização (...)’ (MAX PAGÉS et all, 1987, p. 119 apud CAMPOS, 1997, p.
413-414).
17
Heidegger usa o termo “desenraizamento” como expressão da crise do habitar. “Habitar é, porém, o traço
essencial do ser de acordo com o qual os mortais são” (HEIDEGGER, 2002, p. 140).
45
tonalidade afetiva iurdiana, o medo se mostra aqui apenas como a outra face da mesma
moeda. Heidegger (2002) escreve como o poder se avizinha da desconfiança:
Tendo em vista o caráter rotineiro de tais práticas, causa estranheza que um bispo da
Universal tenha, em dois programas da rede Record, desferido socos e chutes numa
imagem da padroeira do Brasil, protagonizando o maior incidente religioso na
história recente do país, para combater a idolatria católica. Pois as práticas da
Universal mencionadas encerram crença idêntica à contida no ato de cultuar imagens
de santos (negada pela cúpula da CNBB, mas efetuada largamente pelos católicos):
a crença de que Deus age através de objetos a Ele consagrados por seus
intermediários terrenos. Se é assim, por que o bispo da Universal ironizou a
desfuncionalidade e impotência da imagem da santa católica? Ele o fez porque
defende a exclusividade de sua igreja na intermediação do poder divino e, por
consequência, na dotação de poderes sobrenaturais a objetos. A desqualificação da
concorrência, nesse caso, teve menos a ver com estreiteza dogmática do que com
ação estratégica na disputa pelo mercado religioso (MARIANO, 1996, p. 129-130).
18
Ver ALMEIDA, Ronaldo. Dez anos do ‘chute na santa’: a intolerância com a diferença. In: SILVA, Vagner
Gonçalves da (Org). Intolerância religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro.
São Paulo: EDUSP, 2015.
46
referências, a sociedade atual é caracterizada por sua liquidez19. Em contrapartida a perda dos
parâmetros antigos, o homem moderno se vangloria constantemente da construção de sua
sociedade, ignora o fator do legado e considera que está ‘fazendo nova todas as coisas’20, em
constatação ao rompimento da tradição Zaratustra afirma que Deus morreu.
Porém, mesmo que Nietzsche tenha tido a sensibilidade de constatar o niilismo do
paradigma metafísico, ele ainda é tido como um pensador metafísico por seu projeto de
ultrapassar o niilismo apenas invertendo os valores do platonismo, ao qual, elevou o sensível,
antes marginalizado, à condição de supra-sensível, valorizando as emoções; e considerando o
supra-sensível platônico decadente. Essa inversão estava baseada na força do além-do-homem
(übermensch), também conhecido como, vontade de potência (MICHELAZZO, 2001).
A vontade, seja ela vontade de potência, vontade de querer, vontade de verdade,
assume a posição de princípio ordenador, tão caro a metafísica. Segundo Heidegger, a
metafísica encontrava-se então em suas últimas possibilidades, no radicalismo e por isso em
seu acabamento, tendo o domínio absoluto do sujeito enquanto expressão máxima do
antropocentrismo moderno (MICHELAZZO, 2001). Heidegger (2002) vai dizer que esse
mesmo antropocentrismo em ascensão ao retraimento do ser, traz em seu bojo o consumo
desenfreado, como um sintoma do ‘empoderamento’ das vontades e da crença de ser o
homem o “senhor do elementar”.
19
Ver BAUMAN, Zygmunt. O mal estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
20
Referência ao texto bíblico em Apocalipse 21:5.
48
Além da igreja Universal ter em alguns de seus templos lojas físicas comerciais, Arca
Center21, em que são vendidos DVDs, livros, CDs, capa para celulares, vestuários, itens de
papelaria e outros tantos tipos de produtos, é a prosperidade o principal produto oferecido aos
crentes-consumidores (CAMPOS, 1997).
Pela hermenêutica Iurdiana, a compreensão de ‘prosperidade’ é extensa: trata da cura e
cuidado com o corpo, como a eliminação de vícios, atenção com a estética, desenvolvimento
corporal; possibilidade em realizar viagens e excursões, ampliando seu status; conquistar um
emprego que proporcione melhor salário, de preferência na condição de chefe ou empresário
(CAMPOS, 1997); sem contar na nova faceta que vem sendo trabalhada recentemente como
expressão da prosperidade, que se trata de possuir um ‘relacionamento blindado’22.
Cada um desses significados de prosperidade são largamente explorados dentro da
Universal através de diferentes correntes ou campanhas: as terças e sextas acontecem o culto
de cura e libertação, com a proposta de “descarrego para a cura do corpo e da alma”, é dado
ênfase a libertação dos vícios e doenças; nas segundas as reuniões estão voltadas para a
prosperidade financeira, em um culto denominado de “sucesso financeiro”, que propõe
ensinar vencer as dificuldades financeiras; a prosperidade relacional é desenvolvida as
quintas, na reunião da “terapia do amor”, com “orientação para a vida amorosa”. Já as
realizações de viagens ficam por conta das caravanas promovidas pela igreja, que tem por
destinos principais: Israel, enquanto excursão internacional, e São Paulo (‘Templo de
Salomão’), enquanto excursão nacional23.
A partir de jargões como “não se contente com a pobreza” ou “você vai determinar e
Deus vai atender” (CAMPOS, 1997), a fé passa a ter uma tônica consumista, e como
Heidegger (2002) expressa, essa matéria torna-se uma oportunidade para o desempenho e
anseio de mobilização tão presente no homem moderno, esvaziado do sentido de ser, escasso
21
Disponível em: <https:// www.arcacenter.com.br>. Consultado em dezembro/2017.
22
Trabalho desenvolvido com casais, por Cristiane Cardoso (filha do bispo Edir Macedo) e seu marido Renato
Cardoso. Disponível em: https://www.casamentoblindado.com – consultado em janeiro/2018.
23
Disponível em: <https://www.universal.org>. Consultado em janeiro/2018.
49
Se Deus abençoasse sem que ninguém tivesse que fazer algo em troca, estariam
todos contentes, é ou não é? Mas existe uma lei, é a lei do dar e receber. A lei do
dízimo e da oferta é de Deus, não de homens, pastores, bispos, o Papa. O plantar e
colher, o dar e receber é lei de Deus para os homens. Sem o dar nunca haverá o
receber. Se você quiser ganhar dinheiro tem que trabalhar. Nada é de mão beijada.
Pra receber, precisa dar. O que Deus pede? O dízimo e mais uma oferta. Quando
você dá, pode exigir em troca. Quem não dá desobedece a lei de Deus. A
desobediência é o pecado diante de Deus. [...] Quem quer receber pouco deve dar
pouco. Quem não quer receber nada, não dá nada. [...] Se a pessoa tem muito e dá
pouco, isto não vale nada, isto é um desprezo a Deus. Eu não posso julgar porque
não conheço ninguém, mas Deus conhece. Você deve dar o que for o seu sacrifício e
não as sobras. Deus tem sentimentos, quem despreza a Deus será por Ele
desprezado. Nunca dê o resto para Deus’ (Universal, Santa Cecília, 12.7.89 apud
MARIANO, 1999, p. 168).
24
Reforma Protestante – datado no século XVI.
50
título de um dos bestsellers de Edir Macedo, como também a formulação teológica de que o
homem tem o poder de reconquistar o paraíso perdido se estiver disposto a se tornar um sócio
de Deus (CAMPOS, 1997).
Ele (Jesus) desfez as barreiras que havia entre você e Deus e agora diz – volte para
casa, para o jardim da Abundância para o qual você foi criado e viva a Vida
Abundante que Deus amorosamente deseja para você [...]. Deus deseja ser nosso
sócio [...]. As bases da nossa sociedade com Deus são as seguintes: o que nos
pertence (nossa vida, nossa força, nosso dinheiro) passa a pertencer a Deus; e o que
é d’Ele (as bênçãos, a paz, a felicidade, a alegria, e tudo de bom) passa a nos
pertencer (MACEDO, 1990 apud MARIANO, 1999).
Então, pode-se refletir se a IURD de fato não propõe uma fé-tarefa, que não só dita e
determina suas ações, bem como oculta da fé seu aspecto relacional, existencial, instigando
apenas um caráter instrumental.
Considerando a esfera causal do ‘dar para receber’, a fé torna-se uma tarefa, que tem
em vista oobjetivo da prosperidade. Heidegger escreve que “as tarefas que nos solicitam em
nossa atualidade já são previamente definidas, e é em sua prévia delimitação que impõe à
ação como esta deve ser. Uma tarefa é uma obra e toda obra depende de uma ação que a
plenifique” (HEIDEGGER, 1981, p. 63). Mas afinal, o que já está previamente definido? A
estrutura metafísica que foi delineada por todo o curso histórico esboçado brevemente nesse
segundo capítulo. E o que essas tarefas têm de prévia delimitação? O pensamento calculador,
que torna turvo o pensamento meditativo, que poderia ser tão vizinho da fé.
No próximo capítulo há de se tentar aproximar ainda mais do contexto Iurdiano, a
partir do enfoque de três categorias: proclamação, eclésia, parusia; com a chave de leitura
heideggerianapara, por fim, abrir espaço ao aprofundamento dos desdobramentos da técnica
na Igreja Universal pelo parâmetro da escassez da meditação.
52
O substantivo ‘clareira’ vem do verbo ‘clarear’ [...]. Clarear algo quer dizer: tornar
algo leve, tornar algo livre e aberto, por exemplo, tornar a floresta, em determinado
lugar, livre de árvores. A dimensão livre que assim surge é a clareira. O claro, no
sentido de livre e aberto, não possui nada de comum, nem sob o ponto de vista
lingüístico, nem no atinente à coisa que é expressa, com o adjetivo ‘luminoso’ que
significa claro. [...] A clareira é o aberto para tudo que se presenta e ausenta
(HEIDEGGER,1972, p. 30-31).
25
Teólogo e filósofo alemão, que na epistemologia da Ciência da Religião propõe a fenomenologia da
experiência religiosa com a abordagem de religiões comparadas. Seu livro de maior alcance no Brasil é O
Sagrado.
53
O homem não é apenas um ser vivo, que, entre todas as faculdades, possui também a
linguagem. Muito mais do que isso. A linguagem é a casa do Ser. Nela morando, o
homem ec-siste na medida em que pertence à Verdade do Ser, protegendo-a e
guardando-a (HEIDEGGER, [1967] 2009, p. 55).
26
Ver HEIDEGGER, ([1927] 2012, p. 98.).
27
Ver HEIDEGGER (1959).
54
– Você tem que chegar e dizer: ó pessoal! Você vai ajudar agora na obra de Deus. Se
você quiser ajudar, amém. Se você não quiser ajudar, Deus então vai ajudar outra
pessoa ajudar, amém! Entendeu como é que é? Se quiser, amém. Se não quiser, que
se dane! Ou dá ou desce! Entendeu como é que é? Agora é isso aí. Porque aí o povo
vê coragem em você. O povo tem que ter confiança no pastor. Se você mostrar
aquela maneira ‘chocha’, o povo não vai confiar em você (Gravações, Rede Globo,
1995 apud CAMPOS, 1997, p. 102).
28
Do latim ek-sistir, que significa, ser para fora.
29
Palestra proferida por João Augusto Pompéia, em SP, no dia 11/06/16, no Fórum de
Daseinsanalysepromovido pela Associação Brasileira de Daseinsanalyse.
55
Macedo inicialmente persuade seus subordinados, para que eles então possam
persuadir seus adeptos. Esse é o ciclo do processo entificador, que promove o esquecimento
do ser. Ser enquanto abertura de possibilidades não se torna restrito em uma fala normativa e
imperativa como no discurso da Universal? Sobre a fala normativa ou imperativa, Heidegger
propõe a reflexão ao que denomina de “falação”.
O falado na falação arrasta consigo círculos cada vez mais amplos, assumindo um
caráter autoritário. As coisas são assim porque são assim como são porque é assim
que delas (impessoalmente) se fala. Repetindo e passando adiante a fala, potencia-se
a falta de solidez. Nisso se constitui a falação. [...] A falta de solidez da falação não
lhe fecha o acesso ao que é público, mas o favorece. A falação é a possibilidade de
compreender tudo sem ter se apropriado previamente das coisas. A falação se
previne do perigo de fracassar na apropriação. A falação que qualquer um pode
sorver sofregamente não apenas dispensa a tarefa de um compreender autêntico,
como também elabora uma compreensibilidade indiferente da qual nada é excluído.
[...] O que é sem solo ou fundamento já lhe basta para transformar a abertura em
fechamento. Pois o que foi dito já foi sempre compreendido como algo ‘que diz’, ou
seja, que descobre. A falação é, pois, por si mesma, um fechamento, devido à sua
própria abstenção de retornar à base e ao fundamento do referencial. [...] O
impessoal prescreve a disposição e determina o quê e como se ‘vê’ (HEIDEGGER,
[1927] 2012, p. 232-233).
Alguns exemplos de seus slogans são: “Igreja Universal, onde um milagre espera por
você” ou “Pare de sofrer”. O fato é que faz parte do processo de persuasão o convencimento
de que seus desejos e necessidades se concretizarão única e exclusivamente através da Igreja
Universal, elaborando argumentos que gere a disposição do receptor para aceitar o projeto de
vida proposto pela instituição (CAMPOS, 1997). Em contrapartida, Heidegger criticando a
expansão da técnica com marcas do utilitarismo denuncia a ditadura da publicidade como um
sintoma da linguagem técnica:
A Igreja Universal está em várias estações de rádio, tanto AM quanto FM, com cultos
em diversos canais de televisão sejam regionais, nacionais e até internacionais, e mesmo
priorizando a propagação oral, também investem na propagação escrita por meio de revistas,
livros escritos pelo Bispo Edir Macedo e outros pastores, blogs e jornais. Leonildo Campos
(1997) postula que todos esses veículos servem como aparato publicitário, que não provoca
isoladamente mudança no comportamento e no pensamento da pessoa, mas serve inicialmente
para atraí-lo a uma das reuniões feitas dentro da Igreja Universal. Entretanto, pela perspectiva
heideggeriana pode-se compreender que a propagação do discurso Iurdiano, estando tão
comprometido com a ditadura publicitária, determina de antemão mudanças no
comportamento e pensamento de seus receptores logo no primeiro contato? Sendo assim,
pode-se entender que Martin Heidegger propõe uma ampliação no significado de publicidade
ao associá-la a linguagem, de que ela não serve apenas para atrair, mas também para
previamente determinar as aberturas e restrições daquele que está sendo sugestionado?
Observamos em nossa pesquisa que nessa Igreja, as pessoas ouvem o que lhe é
comunicado, se identificam e obedecem às determinações dessa mídia, a maioria
aparentando muita satisfação e alegria em fazê-lo. A este propósito, recordamos uma
afirmação atribuída a Alexis de Tocqueville: ‘se quisermos conhecer o poder da
imprensa, nunca devemos prestar atenção ao que ela diz, mas ao modo como é
escutada’ (MARIANO, 1999, p. 243).
Essas observações podem nos levar à conclusão de que o culto iurdiano, enquanto
espetáculo de auditório, não constrói comunidades plenas de unidade, como
acontece em outros grupos pentecostais, nas quais os fiéis a organizaram em
pequenas comunidades de louvor e adoração. Dessa maneira, evita-se a perda de
energia e o ônus do viver em situações em que tudo é comum. Pois, a construção de
uma comunidade de pessoas muito próximas exige concessões inadmissíveis ao
moderno individualismo urbano. [...] Os iurdianos, em seus cultos-espetáculos,
assim como os católicos romanos em suas missas, deixam de experimentar o ônus
desse viver comunitário (CAMPOS, 1997, p. 151).
O processo de convivência comunitária de fato tem seus ônus, mas também tem seus
bônus, porque os espaços em que as assimetrias e diferenças pessoais permanecem vigentes
mantêm a estranheza e consequentemente deixa-o aberto para lhe fazer pensar, exercer o
pensamento meditativo sobre o sentido do ser. Por outro lado, a técnica convoca para a zona
de conforto da uniformidade universal. A prisão do ‘todo mundo’, que na verdade é
‘ninguém’, não está necessariamente em se compreender enquanto ser-com-os-outros, mas
antes, é passar a se interessar ser-como-os-outros. Mais uma vez vale ressaltar que se tratando
dos aspectos existenciais propostos por Heidegger ([1927] 2012) não cabe o julgamento entre
bom ou ruim, por isso, não se pode caracterizar a “impessoalidade” como algo nocivo, isso é
apenas uma constatação da qualificação humana. Aliás, o homem descobre seu mundo
justamente através dos outros, desse ambiente público e também impessoal. Entretanto,
quando esse mesmo “impessoal” furta a possibilidade de o homem tomar contato consigo e
responder responsavelmente por sua existência, isso pode se tornar um abrigo aprisionador.
59
30
Dasein ou ser-aí.
60
Iurdianos pela estrutura litúrgica e institucional, a relação entre os pastores e fiéis é bem
marcante, mesmo que seja marcante pela dominação, como demonstra a transcrição do culto a
seguir:
Por mais que a plateia responda que fizeram suas doações de livre e espontânea
vontade ainda se sustenta um traço de dominação nessa situação. Talvez pelo modo apelativo
como a IURD viabilize a coleta dos dízimos e ofertas, talvez a maneira autoritária em que o
pastor induz as pessoas a responderem suas interpelações sugestionadas, talvez por ambas as
hipóteses. Pela perspectiva heideggeriana se propõe que o modo de cuidar do outro é
denominado de “solicitude”, e ela se apresenta nas nuances entre os dois extremos: dominador
ou libertador. Tanto a transcrição do culto acima, como as outras diversas citações
apresentadas nessa dissertação não identificam as vivências relacionais Iurdianas com o
aspecto dominador? Vale explicar melhor o conceito:
percepção compreensiva está muito próximo da noção de libertar o outro, e por mais que a
Universal considere prestar-se à libertação, libertar o ser não parece estar na pauta do seu
espectro de liberdade.
Parusia, do grego Παρουσία, significa ‘presença’, mas que pela tradição cristã está
associada à ideia da segunda vinda de Jesus, o arrebatamento da igreja, o último dia marcado
pelo juízo final. Heidegger trabalha esse conceito no livro Fenomenologia da vida religiosa a
partir das epístolas paulinas, ao identificar que a promessa da vinda de Jesus não se tratava
necessariamente de um episódio futuro ainda que o conceito aborde a temporalidade, antes
trata da consciência de ser finito e por não saber quando esse último dia se dará cuidada vida
de uma maneira vigilante, correspondendo a viver de forma autêntica (HEIDEGGER, 2014).
31
Dasein ou ser-aí.
32
Preocupação, fürsorge, para Heidegger está atrelado ao cuidado com os outros.
33
Ocupação, besorgen, para Heidegger está atrelado ao cuidado com as coisas.
34
Ver O Conceito de Angústia de Søren Kierkegaard (2010).
63
agora mortal, porque abarcou sua condição fática de finitude, também toma contato com a
culpa (HEIDEGGER, [1927] 2012).
A culpa heideggeriana, não é a culpa psicológica que está associada a potência do
fazer, é uma culpa existencial porque ela está na base dos outros desdobramentos da culpa.
Para Heidegger se refere à falta, ao fato do homem já ser fundado na negatividade, não ser
completo. É claro que porque o homem é culpado existencialmente também pode vivenciar a
culpa psicológica ou neurótica. Mas por se tratar de um aspecto que revele tamanha
precariedade, porque deixa ver a falência e “errância” humana, cabe se questionar como a
IURD lida com a culpa?
Com o exacerbado foco na figura do Diabo como princípio justificativo para tudo de
ruim que acontece ou que pode vir a acontecer, sejam doenças, desentendimento familiar,
pobreza, ou qualquer outro infortúnio; a culpa é dirigida vantajosamente às forças
demoníacas, como exemplifica a reportagem a seguir:
Para Cecília Mariz, ‘os pentecostais (...) não veêm o indivíduo como um ser
autônomo. Todos dependem de Deus, sem o qual se tornam vítimas de forças
malignas (...) O pentecostalismo não abraça uma visão individualista no sentido que
não define o indivíduo como ser totalmente autônomo e autodeterminado (...) Daí
não se enfatizar a ideia de culpa ou arrependimento no discurso pentecostal’. Por
outro lado, Maria das Dores Machado observa que a ‘associação dos desvios morais
às forças demoníacas (...) retira do desviante a responsabilidade pelas suas ações’, o
que pode gerar maior ‘compreensão e tolerância entre os familiares’ e, por
conseqüência, atenuar sua culpa e seu sofrimento (MACHADO, 1996 e MARIZ,
1994 apud MARIANO, 1999).
35
Ver SILVA, José Serafim da. Caçadores de demônios: demonização e exorcismo como método de
evangelização no neopentecostalismo. São Paulo, 1998. Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião) –
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
64
Mas ainda que seja demasiadamente humano a tendência para se desculpar, sem
querer se arrepender e bem menos se responsabilizar pelo que faz, a consciência de se
reconhecer mortal e culpado, no sentido de devedor, possibilita a apropriação, se empunhar de
si, porque é exatamente nesse espaço de fragilidade que está a condição do pensamento
meditativo, da vivência ética. Ética no sentido mais original da palavra, ethos em grego, que
significa casa, habitat no latim. Um lugar de intimidade em que se encontra liberdade para se
abrir ao pensamento que pensa o sentido do ser.
65
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como já foi exposto na introdução, essa pesquisa é uma crítica, porque pretendeu-se
cortar o limite do pensamento meditativo, frente ao largo alcance do pensamento calculador,
pela ordem da técnica, que tem por base a Metafísica. Ao reconhecer que a técnica planetária
constitui o mundo moderno, propor que ela só acarreta malefícios seria ingênuo demais. E o
real problema não é a presença do pensamento calculador técnico, haja vista que ele é
legítimo e necessário, afinal, é impossível não reconhecer a usualidade desse tipo de
pensamento em muitas áreas da ciência e até mesmo na praticidade do dia-a-dia, entretanto o
reconhecimento de que ele é só um tipo de pensamento, e não necessariamente a única opção
de pensamento, faz-se caráter fundamental.
Se dispor ao pensamento meditativo é exatamente estabelecer uma relação
suficientemente rica com a essência da técnica, já que técnica não se trata apenas de um
procedimento, mas de um regime de mundo conforme frequentemente abordado nessa
pesquisa, que vigoram valores como a agilidade, felicidade, rendimento de desempenho,
produtividade, que nunca cessa e por causa disso só se amplia, tendo alcançado adesão até
mesmo na religião, como demonstra a Universal. O que essa dissertação tentou propor foi
justamente não se restringir a meditar apenas sobre o arcabouço técnico que alicerça a
Universal, mas a relação que ela tem com a Igreja Universal do Reino de Deus, considerando
como isso atinge seu mundo e suas vivências interpessoais.
Não se buscou aqui dar soluções, porque agir assim seria cair na armadilha da
dominação metafísica que sustenta um princípio ordenador e prescritivo, mas apenas levantar
indagações, se por de novo a pensar mais uma vez (e nesse caso o pleonasmo é intencional),
se preocupar com o sentido do que se faz, bem como apontar outras possibilidades, tentando
contribuir com a ampliação de ser Universal, o qual baseado no desenrolar dessa dissertação
confirma a hipótese de manter escasso o pensamento do sentido do ser aos seus colaboradores
e fiéis, ainda que seja válido ressaltar ser essa conclusão apenas uma de tantas possibilidades
frente ao estudo da Igreja Universal.
A Igreja Universal pode provocar um empobrecimento da fé, ao passo que lhe associa
com uma tarefa, furtando seus conversos a significarem fé no aspecto relacional, e isso é
apenas uma consequência por estar amalgamada com a estrutura Metafísica. Tal paradigma
arregimenta a teologia por longos anos, conforme explanado no capítulo dois, mas essa
tradição não foi apenas aceita como reforçada, e o capítulo três desvela que o comportamento
Iurdiano, sua projeção, é uma resposta a essa destinação. A expansão Iurdiana, tanto para
66
outros lugares, quanto a expansão para outros segmentos, como político, econômico,
entretenimento, comercial, deixam ver a interpelação provocadora, ou seja, a essência da
técnica atuando com seu afã e voracidade.
O poder expresso nos discursos e atitudes, enquanto o estado de ânimo mais presente,
além das relações interpessoais marcada fortemente pela dominação, revela sua proximidade
com o niilismo reativo, o antropocentrismo, e o controle técnico. Cuidado e controle não
parecem estar em posição contrária? Então, a IURD enquanto instituição normativa e
impositiva, que estabelece a prosperidade, com toda sua vasta significação, como valor
absoluto, em detrimento de ignorar assuntos mais complexos, como a morte ou o fim, se
resguardando sobre o pretexto que pôr em dúvida o que a Igreja apresenta é coisa do diabo,
vai paulatinamente tornando escasso o pensamento sobre o sentido do ser.
Ora, o pensamento não engloba a interrogação e o espanto, porque isso seria então
coisa do diabo? Estaria a Igreja Universal impedindo seu membro a pensar? Concordar com
isso seria isentar o adepto da sua responsabilidade existencial, bem como devotar ainda mais
poder a instituição. Por isso, aqui se considera que a Igreja Universal, assentada sobre a
Metafísica, explora em demasia o pensamento calculador técnico, tornando escasso, e só
escasso, o pensamento meditativo, porque ela não seria capaz de impedir o pensamento
meditativo, mesmo que muito lhe restrinja, por se tratar de uma possibilidade pra qualquer
um. Entre o homem e o ser existe uma co-pertença, e o que liga o homem ao ser é o
pensamento. Esse pensar não se trata de uma articulação lógica, antes, trata de uma escuta dos
apelos do ser, ao acolhê-los pode se expressar. Nesse escutar e proferir é onde as relações
acontecem, pois o sentido do ser está envolvido com o mundo, com os outros. Apesar de
serem raras as pessoas dispostas a romperem, mesmo que por alguns instantes, com aquilo
que dita e estabelece uma representação, ao colocarem tudo isso em uma angustiada
meditação, podendo retornar a impessoalidade com uma existência mais própria, esse
movimento de autocompreensão é possível para todo ser humano.
Todavia, o foco dessa pesquisa não foi estudar como o fiel experimenta os preceitos
técnicos Iurdiano, mas como a instituição foi desenvolvendo o modo de ser técnico Universal,
criando assim um embotamento ao pensamento meditativo. Sim, cada um resolve à sua
maneira a relação com Deus, assim como cada instituição resolve a sua maneira seus dogmas,
ideologias e doutrinas, também construídas pela participação dos próprios conversos, sejam
de maneira direta ou indireta. E embora a escolha de sustentarem uma fé técnica, movida pela
vontade de poder, caiba única e exclusivamente a Igreja Universal, que persevera nesse
percurso por 40 anos justamente porque encontra benefícios, a tentativa, entretanto, foi de
67
colaborar para deixar ver quanto um projeto institucional técnico religioso pode empobrecer o
sentido do ser. E que contraditório é pensar que a Igreja que escolhe a prosperidade como
princípio ordenador, pode promover um empobrecimento de fé, um empobrecimento
relacional, um empobrecimento existencial.
A visão de querer sempre mais, do pensamento calculador, embutida na teologia da
prosperidade, distancia-se do solo fértil do pensamento meditativo, que passa pela
simplicidade, gratuidade, acolhimento. Ao quererem sempre mais do que se tem, renegando a
facticidade, se posicionando como controladores do mistério que exerce poder por meio de
palavras de ordem, a Igreja Universal vai desconsiderando a simplicidade de acolher com
gratuidade o dom da vida. Esse é o perigo que todo o homem moderno está exposto, se
distanciar da sua terra natal, a humildade, que carrega o mesmo radical da palavra homem,
humus, terra fértil. Esse é o perigo de se distanciar de si mesmo, estar longe de reconhecer sua
indigência e fragilidade.
Heidegger propõe o ganho, mesmo delicado, de se posicionar como Pastor do ser, e
que tanto faz recordar O guardador de rebanhos de Fernando Pessoa:
A figura desse pastor enfrenta o desabrigo, para além do abrigo aprisionador que a
instituição técnica pode oferecer, onde a voz do ‘todo mundo’ pode ser tão ensurdecedor, que
ouvir a si mesmo é desalentador. E isso não significa que ele perca a liberdade para pertencer
a alguma instituição, ao contrário, justamente por conquistar tamanha intimidade consigo
possa acolher a bênção desse pertencimento, mas mantendo a salvo o ser a si mesmo.
Heidegger (2009) lembra-nos que não somos senhores, mas sim pastores do Ser. “Nesse
‘menos’ o homem não perde nada. Ele ganha por chegar à Verdade do Ser. Ganha a pobreza
Essencial do pastor, cuja dignidade consiste em ser convocado pelo próprio Ser para a guarda
e proteção de sua Verdade”. (HEIDEGGER, 2009, p. 68). Ao assumir sua posição de pastor
do Ser, o homem estará aberto à meditação, religando-se ao seu sentido mais próprio e por
fim, possibilitado a trilhar a paragem do sagrado com terna serenidade.
68
REFERÊNCIAS
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SILVA, Vagner Gonçalves da (Org.). Intolerância religiosa: impactos do
neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. São Paulo: EDUSP, 2015.
FERRARI, Odêmio Antonio. Bispo S/A:A igreja Universal do Reino de Deus e o exercício
do poder. São Paulo: Ave-Maria, 2007.
_______. Sendas Perdidas. Tradução José Rovira Armengol. Buenos Aires: Editorial
Losada, 1979.
_______. Que é isto, a filosofia? identidade e diferença. Tradução Ernildo Stein. Petrópolis:
Vozes; São Paulo: Livraria Duas Cidades, 2006.
_______. Sobre o humanismo. Tradução Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, [1967] 2009.
_______. Já só um deus pode ainda nos salvar. Tradução Irene Borges Duarte. Covilhã,
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_______. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista; São Paulo: Editora
Universitária São Francisco, [1927] 2012.
_______. Fenomenologia da vida religiosa. Tradução Enio Paulo Giachini, Jairo Ferrandin e
Renato Kirchner. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco,
2014.
POMPÉIA, João Augusto; SAPIENZA, Bilê Tatit. Os dois nascimentos do homem: escritos
sobre terapia e educação na era da técnica. Rio de Janeiro: Via Verita, 2011.
SILVA, José Serafim da. Caçadores de demônios: demonização e exorcismo como método
de evangelização no neopentecostalismo. São Paulo, 1998. Dissertação (Mestrado em Ciência
da Religião) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 1998.