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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

SARAH FERNANDES SANTANA BERNARDO

A ESCASSEZ DO PENSAMENTO MEDITATIVO HEIDEGGERIANO NO


CONTEXTO IURDIANO

São Paulo, SP
2018
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP

SARAH FERNANDES SANTANA BERNARDO

A ESCASSEZ DO PENSAMENTO MEDITATIVO HEIDEGGERIANO NO


CONTEXTO IURDIANO

Dissertação apresentada à banca examinadora


da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo como exigência parcial para obtenção do
título de MESTRE em Ciência da Religião,
dentro da área de concentração:
Comportamentos e representações religiosas,
sob orientação do Professor Doutor Ênio José
da Costa Brito.

São Paulo, SP
2018
Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou
parcial desta Dissertação de Mestrado por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.
Assinatura _____________________________________
Data__________________________________________
E-mail_________________________________________

S518e Bernardo, Sarah Fernandes Santana


A Escassez do Pensamento Meditativo Heideggeriano no Contexto
Iurdiano / Sarah Fernandes Santana Bernardo. São Paulo – 2018.
71 p.

Orientador: Prof. Dr. Ênio José da Costa Brito


Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião) – Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em
Educação: Currículo, São Paulo, 2018.

1. Pensamento meditativo. 2. Igreja Universal do Reino de Deus. 3.


Metafísica. I. Brito, Ênio José da Costa. II. Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. III. Título.
SARAH FERNANDES SANTANA BERNARDO

A ESCASSEZ DO PENSAMENTO MEDITATIVO HEIDEGGERIANO NO


CONTEXTO IURDIANO

Dissertação apresentada à banca examinadora


da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo como exigência parcial para obtenção do
título de MESTRE em Ciência da Religião,
dentro da área de concentração:
Comportamentos e representações religiosas,
sob orientação do Professor Doutor Ênio José
da Costa Brito.

Aprovado em ____/___/___

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________

__________________________________________

__________________________________________
Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.
E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da
luz
E corre um silêncio pela erva fora.
Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu
pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas
idéias,
Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu
rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende
o que se diz
E quer fingir que compreende.
Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predileta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural —
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.

“Eu nunca guardei rebanhos”


O guardador de rebanhos – Fernando Pessoa
A aluna foi bolsista pela CAPES (de 05/2016 a 02/2018), modalidade 02, sob o nº do
processo 8888.149958/2017-00, com apoio da FUNDASP.
AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente ao Eterno, a quem sou grata pelo dom da vida.


Agradeço também ao meu marido e melhor amigo, Allan Bernardo, com quem dos
nossos 31 anos de idade, celebramos 25 anos de amizade, cumplicidade e investimento
mútuo. Por seu incentivo cheguei até aqui, meu Preto!
Sou grata à minha família. Meus pais, Nálio Santana e Silvia Fernandes, que me
ensinaram desde cedo sobre a importância dos estudos. Foi através deles que fui apresentada
ao meio evangélico e com apenas 5 anos de idade tive de compartilhar o novo projeto familiar
de fundarmos uma igreja, com todo o peso da responsabilidade de crescer como a ‘filha dos
pastores’. A força com que firmaram certas estacas de referência em minha criação foi intensa
demais, mas foi exatamente por ter a delimitação tão clara de tais limites que extraí forças
para transgredir, e a partir daí, trilhar meu próprio caminho, sempre guardando no peito seus
princípios e valores. Minha irmã caçula, Rachel, que foi companheira nessas transgressões,
que me ensina por ter conquistado um espaço de liberdade mais rápido do que eu.
Sou grata à minha doce e cuidadosa terapeuta, Maíra Mendes Clini, por ter me ajudado
tanto no esforço contínuo de efetivar espaços de liberdade e intimidade comigo mesma, ao
compartilhar da minha história em cada sessão, com seu olhar de testemunha e tão pertinente
intervenções, fui aos poucos conseguindo me descolar das aderências e ter o acolhimento
propício para rearticular a minha vida. Faltam-me palavras para agradecer sua solicitude,
Maíra!
Agradeço à querida mestre Angélica Fernandes Gawendo, que me apresentou ao
mundo da fenomenologia, e me encanta pela profissão a cada vez que estamos juntas. Bem
como minha querida supervisora Maevi Rubido, com quem tenho aprendido sobre a
delicadeza do olhar fenomenológico.
Sou imensamente grata ao Professor, Doutor, Orientador, Ênio Brito, que me abraçou
de forma tão carinhosa no Programa de Ciência da Religião, estendendo a mim sua suave
paciência, quando tudo o que eu tinha era um turbilhão de ansiedade. Além do Doutor Edin
Abumanssur e do Doutor Paulo Evangelista, que com suas críticas construtivas tanto
colaboraram para o desenvolvimento dessa pesquisa. Ter os senhores em minha banca é uma
honra!
Agradeço imensamente à CAPES pela disponibilidade da bolsas de estudo, e o apoio
da FUNDASP.
RESUMO

BERNARDO, Sarah Fernandes Santana. A Escassez do Pensamento Meditativo


Heideggeriano no Contexto Iurdiano. 2018. 71 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da
Religião) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em
Educação: Currículo, São Paulo, 2018.

O pensamento meditativo, que pensa o sentido do ser e justamente por isso trata de um espaço
de maior intimidade, é proposto por Martin Heidegger como um contraponto ao pensamento
racional, ou como ele denomina, pensamento calculador. Esse pensamento calculador, que
não se restringe apenas aos cálculos, expressa o modo cibernético que está sempre atrás de
uma próxima oportunidade, carregado pelos valores da eficácia, eficiência e desempenho de
resultados, que conquista absolutismo na época vigente da técnica planetária. Ora, se o poder,
controle e cálculo, advindos da Metafísica, dominam a terra inteira, como será que isso
interfere na religião? Intentando buscar compreender as implicações da escassez da meditação
na religião busca-se por meio dessa pesquisa uma aproximação dos conceitos heideggerianos
como chave para leitura do contexto Iurdiano - Igreja Universal do Reino de Deus.
Primeiramente, apresentando a perspectiva heideggeriana como base para aproximação do
pensamento meditativo; depois explanando o desenvolvimento da técnica na teologia, a fim
de entender a tradição metafísica legada à Igreja Universal do Reino de Deus; e por fim, poder
levantar três fenômenos que desvelam a escassez da meditação no contexto Iurdiano.

Palavras-chave: Pensamento meditativo; Igreja Universal do Reino de Deus; Poder; Técnica


planetária; Metafísica.
ABSTRACT

BERNARDO, Sarah Fernandes Santana. A Escassez do Pensamento Meditativo


Heideggeriano no Contexto Iurdiano. 2018. 71 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da
Religião) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em
Educação: Currículo, São Paulo, 2018.

Meditative thinking, which thinks the sense of being and exactly for this reason, represents a
space of greater intimacy, is proposed by Martin Heidegger as a counterpoint to the rational
thinking, or as he calls it, calculative thinking. This calculative thinking, which is not
restricted to calculations only, expresses the cybernetic mode that is always looking for the
next opportunity, carried by the values of effectiveness, efficiency and performance results,
that conquers the absolutism in the current season of planetary technique. Now, if the power,
control and calculation, coming from Metaphysics, dominate the whole world how does it
interfere with religion? Trying to understand the implications of the scarcity of meditation in
religion, this research seeks to approach Heideggerian concepts as a key to the reading of the
Iurdian context - Universal Church of the Kingdom of God. First presenting the Heideggerian
perspective as a basis for the approximation of meditative thinking; then explaining the
development of technique in theology, in order to understand the metaphysical tradition
bequeathed to the Universal Church of the Kingdom of God; and finally, to raise three
phenomena that reveal the meditative lacking in the Iurdian context.

Keywords: Meditative thinking; Universal Church of the Kingdom of God; Power; Planetary
technique; Metaphysics.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 11

1 CAPÍTULO 1: O PENSAMENTO MEDITATIVO HEIDEGGERIANO ......... 16

1.1 Igreja Universal do Reino de Deus ......................................................................... 21

1.2 O pensamento calculador ........................................................................................ 23

1.3 O pensamento meditativo ........................................................................................ 30

2 CAPÍTULO 2: O DESENVOLVIMENTO DA TÉCNICA NA TEOLOGIA .... 37

3 CAPÍTULO 3: UMA LEITURA DO CONTEXTO IURDIANO ........................ 52

3.1 Técnica como Proclamação ..................................................................................... 53

3.2 Técnica como Eclésia................................................................................................ 57

3.3 Técnica como Parusia .............................................................................................. 61

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................... 65

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 68
11

INTRODUÇÃO

Esse trabalho é fruto de uma traição. Explico, traição é elemento embutido na fé,
sendo só possível trair aquilo que a si antes teve con-fiança, confidere do latim, o prefixo con
indica um termo intensificativo, e fidere significa fé. A traição, apesar de dolorosa, tem uma
face frutífera, ela é uma ampliação. A exemplo da relação entre Freud e Jung, apenas Carl
Gustav Jung, como seu pupilo, poderia trair o pai da psicanálise, e ao traí-lo ampliou a
corrente psicológica fundando a psicologia analítica. Minha traição está em criticar os
aspectos metafísicos de uma igreja neopentecostal1, Igreja Universal do Reino de Deus.
Não tenho relação alguma com a Universal do Reino de Deus, o que foi fator
preponderante para ter lhe escolhido como objeto de estudo, por manter a neutralidade
científica. Minha relação é com o meio evangélico, do qual a Universal faz parte. Certa feita,
ouvi uma provocação de um professor, que Jesus Cristo tinha propriedade de criticar os
fariseus, saduceus e outros mestres da lei, porque afinal era alguém de dentro do judaísmo.
Pois bem, eu também estou inserida no meio evangélico desde os cinco anos de idade. Em
alguns momentos nutrindo um envolvimento de admiração, outras vezes sentindo desgosto,
mas desde sempre sendo afetada pelo contexto evangélico.
Após dez anos como pastora presidente de uma igreja independente no município de
Guarujá, que dos seus vinte e cinco anos de fundação traz em sua história a tradição
neopentecostal, referência básica também da igreja Universal, encontrei em Martin Heidegger
uma fundamentação teórica que fomentou minhas inquietações sobre como o processo de
institucionalização técnico pode embotar a existência. Meu contato com Heidegger,
inicialmente, trouxe contribuições para minha prática profissional como psicóloga clínica,
mas no aprofundamento dos seus estudos, principalmente na leitura de Serenidade, pude me
reaver com o pensamento meditativo e, assim, passar a reavaliar minha posição institucional.
Martin Heidegger foi um filósofo alemão comprometido em compreender o próprio
tempo, que apesar de estar datado no século XX nem por isso se tornou obsoleto, pelo
contrário, suas obras têm grande relevância para a compreensão dos dias de hoje. O filósofo
constata que a modernidade está fundamentada pela estrutura enrijecida da Metafísica, mas
Metafísica para ele não se trata de uma simples disciplina filosófica, e sim um padrão de
1
Apesar da definição impressa no termo neopentecostal não dar mais conta de abranger todo paradigma iurdiano
e sua vasta complexidade, por conta das mudanças ocorridas nesses quarenta anos de existência, ele ainda serve
como uma referência para pensar a influência de sua predecessora Pentecostal (Conteúdo discuto no GEPP –
Grupo de Estudo sobre Protestantismo e Pentecostalismo, coordenado pelo Dr. Edin Abumanssur, na PUC/SP
em 04/2017.
12

pensamento constituído inicialmente por Platão e Aristóteles, corroborado com o passar dos
anos pela teologia cristã, o racionalismo de René Descartes, a nova ciência de Francis Bacon
até, por fim, chegar a ‘vontade de potência’ de Nietzsche.
O próprio Heidegger exerce traições em sua jornada acadêmica, dedicando os dois
primeiros capítulos do seu denso livro Ser e Tempo para refutar, e assim ampliar, a tradição
filosófica, e ir apresentando os pré-conceitos de onde parte para a análise fática do Dasein
(ser-aí), no horizonte da cotidianidade. Pré-conceitos, usados aqui, enquanto conjunto de
significações. Durante a elaboração dessa pesquisa fui questionada se ela não partia de pré-
conceitos, haja vista que a Igreja Universal do Reino de Deus, com as inúmeras polêmicas
arroladas em seu nome pode gerar de imediato uma postura discriminatória.
E reconheço que parto de pré-conceitos, porque parto de um conjunto de significações,
como todos possuem. Aliás, me pergunto se é de fato possível se desvencilhar dos pré-
conceitos, já que sempre se parte de um lugar onde se pode avaliar? Pela referência
heideggeriana, ouso dizer que a importância está em identificá-los e cuidá-los para que eles
não obstruam uma nova interpretação. Esse foi o cuidado tomado na costura dessa
dissertação, o que é denominado como suspensão fenomenológica, e refere-se à suspensão
dos juízos morais, mesmo que os tenha, para buscar aproximar-se sem critérios absolutos
intentando compreender o outro. Enquanto a moral sempre reduz o outro aquilo que acho, o
olhar fenomenológico propõe se desembrulhar do absolutismo das constatações, tomando
como premissa a compreensão de que ao homem não cabe a certeza. Em todas essas páginas
de maneira alguma se pretende a certeza ou a verdade absoluta, mas apenas uma outra
perspectiva.
Perspectiva essa que foi cunhada a partir da revisão bibliográfica de duas áreas
distintas: Heidegger e a Igreja Universal do Reino de Deus. Para lidar com o pensamento
hermético de Heidegger, fez-se necessário a leitura de seus comentadores e os pesquisadores
que mais esclarecem sobre a temática são os filósofos contemporâneos: Dulce Mara Critelli,
que colabora para esclarecer os fundamentos mais básicos heideggerianos como a angústia da
finitude ou a estruturação técnica planetária; José Carlos Michelazzo, que contribui para
entender de uma maneira ampliada a análise da historicidade do ser promovida por
Heidegger, consequentemente sendo usado para a compreensão dos aspectos da tradição
desenvolvidos nessa dissertação; e José Augusto Mac Dowell, que coloca em interlocução os
preceitos heideggerianos com a religião. As visões de outros pesquisadores estão presentes,
mas de maneira pontual. Conteúdos das aulas, palestras e grupo de estudo foram bem
aproveitados, mas os livros foram priorizados, principalmente as obras do próprio Heidegger.
13

Em contrapartida, para compreender o contexto Iurdiano as referências principais são


dos cientistas da religião Leonildo Silveira Campos, Odêmio Antonio Ferrari e o sociólogo
Ricardo Mariano. Vale ressaltar, que as análises da Igreja Universal do Reino de Deus estão
datadas entre os anos 90 aos anos 2000, já que depois das primeiras pesquisas científicas que
elegeram a instituição como objeto de estudo deixou sua liderança resistente quanto a novas
aproximações, comprometendo, consequentemente, o trabalho acadêmico. Entretanto, por
mais que a leitura se dê a partir de publicações antigas, considero que a relevância dessa
pesquisa está justamente em trazer um novo olhar para aquilo que já se sabe. Sua
originalidade centra-se em percorrer um trajeto não explorado, ao aproximar conceitos
heideggerianos para compreender as práticas e vivências da Universal.
Esse trabalho, além de fruto de uma traição é também uma crítica. Crítica em seu
sentido mais original, do grego krísis, que significa delimitar um corte, cortar; mesma raiz das
palavras crise e critério. Essa é uma crítica ao imperialismo da Metafísica, da técnica
planetária, do pensamento calculador. A Metafísica elaborada por Platão que leva em sua
tônica a transcendência, postulada pela dicotomia do ‘mundo sensível’ versus ‘mundo
inteligível’, conforme expressado na alegoria da caverna, assim como o ‘res cogitans’ versus
‘res extensa’ de Descartes, vão inaugurando a ideia do Humanismo. Uma corrente de
pensamento que confere ao homem o centro dos entes, centro do real, e se enxergue como
capaz de dominar o ser das coisas, por meio de uma linguagem lógica, científica e conceitual
(MICHELAZZO, 2001). É esse mesmo Humanismo que vai estabelecer o subjetivismo.
Nesse antropocentrismo em paralelo ao modo cibernético de viver, Heidegger (1959)
denomina essa como a época da ‘técnica planetária’, norteada pelo que chama de
“pensamento calculador”. A técnica planetária se tornou o modo de ser mais vigente na
cultura ocidental, pautado por um processo produtivo que garante o asseguramento por meio
de um pensamento que tem sempre em vista o maior benefício, lucro, eficiência e controle.
Na mensuração calculadora o homem vai inebriando o seu olhar ao Ser, ao passo que
‘entifica’ seu projeto de vida. Ora, se o homem passa a enxergar a natureza de uma forma tão
interesseira e dessacralizada, como será que esse processo interfere na religião?
O mesmo Heidegger que causa incômodo por ter mostrado a arrogância do ‘além do
homem’ (übermensch) pertinente a sociedade atual também aponta uma possibilidade para
fora desse padrão, que surge como uma oportunidade de um novo pensar, denominado como
‘meditação’. A meditação não se arvora em negar a técnica, mas se propõe a pensar o sentido,
até mesmo o sentido que a técnica tem para o homem e sob o homem. Entende-se que o
pensamento meditativo é então o pensamento do sentido, o pensamento do ser. Não se trata de
14

um pensamento com resultados práticos, nem com receitas prévias de como utilizá-lo, por ser
“pequeno e modesto” não é muito sedutor, mas nada disso o faz menor do que o pensamento
calculador (HEIDEGGER, 1979). Aliás, seu viço é de arejar as restrições impostas pelo
domínio do pensamento calculador. O pensamento meditativo se dispõe a refletir sobre a
verdade do ser, que é também a esfera do Sagrado.
Partindo da hipótese que a onto-teologia está presente nessa instituição e, por
consequência, promove a escassez da meditação, já que mesmo a um olhar leigo pode-se
evidenciar a técnica planetária e seu pensamento calculador entremeado nas instituições
religiosas evangélicas, busca-se por meio dessa pesquisa compreender o cenário Iurdiano a
partir do conceito de meditação heideggeriano enquanto objetivo geral. Evidenciar por meio
do fio condutor histórico o quanto a tradição teológica tem por fundamento a metafísica
efetivando o pensamento calculador na Igreja Universal, além de tomar por referência a
perspectiva técnica para levantar os fenômenos que desvelam a escassez da meditação no
contexto Iurdiano, são os dois objetivos específicos. Suscitar a problemática: ‘Em quais
aspectos Heidegger enxerga a Metafísica presente no processo histórico da teologia?’,
possibilita por meio da reflexão linear conseguir identificar quais são essas influências que
constroem o ethos Iurdiano. Enquanto que a questão: ‘Quais fenômenos desvelam a escassez
da meditação no contexto Iurdiano?’ abre espaço ao aprofundamento dos desdobramentos da
técnica na Igreja Universal pelo parâmetro da presença ou escassez da meditação.
No primeiro capítulo, busca-se desenvolver os conceitos heideggerianos que serão
chave de leitura para o contexto Iurdiano, como a compreensão da técnica planetária, o
pensamento calculador, o pensamento meditativo, e uma breve apresentação da própria igreja
Universal. A ontologia heideggeriana, que denuncia o fortalecimento do ente em detrimento
ao esquecimento do ser, é aproximada a exemplos de vivência Iurdiana e torna-se mais
didático. Inicialmente, são introduzidos elementos que serão mais explorados nos próximos
capítulos, como a Metafísica (desenvolvida no segundo capítulo) e o fenômeno de
ajustamento Iurdiano (que será abordado no terceiro capítulo).
No segundo capítulo, intenta-se compreender melhor o propósito da Metafísica e seu
desdobramento da teologia, a fim de identificar a carga de influência da técnica planetária no
desenvolvimento da igreja Universal do Reino de Deus. Elementos como herança, tradição e
até mesmo o itinerário do pensar, passando pela filosofia antiga, a teologia medieval e o
racionalismo moderno, serão desenvolvidos a partir da perspectiva heideggeriana. O nome da
Igreja Universal também será enfocado, ao questionar se seu nome sugere a pretensão
15

dominadora da técnica planetária, bem como se a teologia da prosperidade já não sinaliza a


escassez da meditação.
Por fim, no terceiro e último capítulo, há uma tentativa de se aproximar do sentido de
ser Universal, enquanto destinação e projeção, cartografando seu mundo a partir de três
elementos atrelados aos conceitos heideggerianos: proclamação – linguagem; eclésia – ser-no-
mundo-com-os outros; parusia – ser-para-a-morte. Tais fenômenos, deixam ver o que a IURD
valoriza, como o poder, a linguagem publicitária, e outros aspectos que ela desvaloriza como
o vínculo das relações comunitárias e assuntos complexos como a morte. Entender melhor
seus valores possibilita uma compreensão dos seus limites e alcances na perspectiva
institucional, considerando que essa pesquisa não se concentra na experiência de fé do adepto,
mas na estrutura da instituição. E o quanto um projeto institucional técnico metafísico na
religião, como a Igreja Universal, pode comprometer o processo contínuo de apropriação
existencial que envolve o pensamento meditativo.
Quando costumeiramente refere-se à religião, associa ter ali as intenções mais
sinceras, e se tem mesmo. Como em todas as instituições, na Igreja Universal existem pessoas
engajadas, comprometidas, que fielmente acreditam em seus dogmas e doutrinas, enquanto
outros, assim também como na maioria das instituições, possuem interesses sórdidos ou
secundários, mas isso é inerente ao humano. O fato é que essa pesquisa pode gerar desilusões,
como gerou principalmente a mim. Nos próximos capítulos, o leitor encontrará palavras que
podem soar duras como pedras, mas esse é o processo penoso da desconstrução daquilo que
está arraigado, porque só desentulhando as pedras dos seus fundamentos podem-se encontrar
novas passagens para um novo pensar.
16

1 CAPÍTULO 1: O PENSAMENTO MEDITATIVO HEIDEGGERIANO

Martin Heidegger (26/09/1889 - 26/05/1976) nasceu em Messkirch, Alemanha, na


Floresta Negra. Após sete anos estudando como seminarista abandonou o projeto de tornar-se
padre a fim de ingressar na faculdade de filosofia na Universidade de Freiburg, onde foi aluno
de Edmund Husserl, o precursor da fenomenologia e com quem percorreu um longo caminho
(MACDOWELL, 2011).
Em meados de 1913 se debruça a estudar o pensamento de Martinho Lutero, o que lhe
provoca uma crise em sua fé católica. Também por influência da luterana Elfrid Petri, com
quem se casa em 1917, migrou para o protestantismo, contexto esse em que escreve
Fenomenologia de uma vida religiosa, um livro que na primeira parte aborda seu método que
já estava em construção e em outro momento foca-se nas epístolas de Paulo e no livro
autobiográfico Confissões de Santo Agostinho,em que o filósofo percebe temáticas
existenciais desenvolvidas no discurso religioso. Dentre tais questões existenciais, a de maior
destaque nessa obra é a finitude, conceituada como ser-para-a-morte. Tanto o apóstolo Paulo,
como Santo Agostinho têm algo em vista: o fim dos tempos. E a partir desse fim deve-se
considerar o sentido da vida, ao se aproximar da reflexão: o que você fez com sua vida e o
que você fez com o seu mundo, propiciam a consciência de ser mortal em uma angustiada
análise de si (informação verbal)2.

Na verdade, tais estudos já não visam à justificação da mundivisão cristã e da


afirmação da existência de Deus. O que Heidegger busca evidenciar através deles é
uma nova perspectiva global de interpretação ontológica da realidade humana. [...] A
perspectiva que ele designará como ‘existencial’, focaliza, ao invés, o ser humano
como aquele ente que se compreende na sua história singular, ao responder à
pergunta ‘quem é você?’. Heidegger mostra, analisando trechos da carta de S. Paulo,
que esta é a autocompreensão da vida própria da experiência cristã originária. A
pregação apostólica visa despertar a atenção de cada um para a vinda do Senhor, ou
seja, para o fim da existência terrena, que pode acontecer a qualquer momento. Daí a
necessidade de assumir a própria responsabilidade diante da possibilidade radical de
ganhar ou perder a sua vida, realizar-se ou frustrar-se, salvar-se ou condenar-se.
Heidegger não se interessa aqui pelo conteúdo específico da salvação segundo a fé
neotestamentária. Tal consideração, segundo ele, pertence à fé e escapa inteiramente
ao âmbito do pensar filosófico. O que quer evidenciar é a estrutura ontológica
subjacente a esta compreensão da existência como liberdade e temporalidade
histórica; compreensão, que não é especificamente cristã, mas simplesmente
humana, embora a experiência cristã originária a manifeste com incomparável vigor.
É esta maneira de encarar a essência do ser humano como existência fática, a ser
assumida autenticamente na resolução, pela qual se compreende a partir de sua
finitude, como ser-para-a-morte, que será desenvolvida na Analítica Existencial de
‘Ser e Tempo’ (MACDOWELL, 2011, p. 12).

2
Aula ministrada pela Dra. Dulce Critelli, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 07/08/17.
17

Há quem diga que esse seu primeiro livro não tem crédito, defendendo a ideia de ser
impossível estudar um aspecto religioso em interlocução com o pensamento heideggeriano, ao
se basear em uma determinada citação: “a filosofia no seu questionamento radical, que se
apóia em si mesmo, deve ser, por princípio, a-téia. Justamente por causa de sua orientação
fundamental ela não se permite o atrevimento de possuir e determinar Deus” (HEIDEGGER
apud MACDOWELL, 2011, p. 13-14). De fato, Ser e Tempo (1927) vai mostrando um
pensamento laicizado, pois mesmo ainda discorrendo sobre a angústia, trata-lhe não mais
como suscitada pelo final dos tempos, antes, suscitada pela finitude. Ampliando assim,
temáticas que até estão presentes na religião, mas em sua base são inerentes à existência
(HEIDEGGER, [1927] 2012). Entretanto, sua vasta obra tem o caráter da continuidade, sem
rupturas de pensamento. O filósofo contemporâneo Marcos Casa Nova (informação verbal)3
propôs que o pensamento do autor é circular, já que possibilita visualizar o centro de qualquer
ângulo. Então, por mais que seus livros possam ter tônicas diferentes, e ter experimentado
uma viragem após Ser e Tempo, Heidegger ainda trata Deus numa desconstrução da onto-
teologia metafísica, bem como a vigência do Sagrado, deixando uma brecha para aproximar
seus pensamentos do fazer ciência da religião.
O centro do estudo de Heidegger era a questão do “ser”, em que questiona a definição
proposta pela filosofia até aquele momento, a fim de lançar as bases para uma nova
interpretação. Assim, ele passa a propor “ser” no sentido verbal, que pode ser conjugado no
tempo e em diferentes pessoas (eu, tu, ele, nós, vós, eles) e não mais como um substantivo
conforme pensado anteriormente. Ao homem é dada a tarefa de ser e responder por esse ser,
enquanto algo em aberto deve-se decidir a cada vez ser, a exemplo da ilustração de ser como
um texto rico que abre espaço para várias interpretações e revelam sucessivamente diversos
aspectos do texto, ser está em movimento e tem aí várias possibilidades (INWOOD apud
LIMA FILHO, 2011). Inicialmente, em Ser e Tempo seu estudo de “ser” refere-se à existência
do homem (que ele cunha como Dasein, ser-aí) na premissa de um ambiente cotidiano, olhado
de maneira específica e peculiar enquanto alguém singular. Porém, ao perceber que “procurar
o sentido de ser a partir da compreensão do ser, própria do ser-aí, significava continuar preso
nas malhas do subjetivismo moderno, que ele pretendia romper” (MACDOWELL, 2011, p.
16) deixou tal obra inconclusa e foi exatamente esse vazio, que lhe provocou uma viragem
(die Kehre) nos anos 30. A partir daí, apresenta-se “Ser”, com a grafia em letra maiúscula,
que agora retrata a convocação da existência à humanidade, “Ser” que pode ser percebido

3
Conferência Instituto Dasein (SP) realizada em 04/07/2015.
18

epocalmente frente ao convite de “abandonar qualquer pretensão dominadora da realidade


para tornar-se atento, obediente, acolhedor, para corresponder com gratidão aos apelos do ser
que são também a dádiva que constitui o ser-humano na sua essência” (MACDOWELL,
2011, p. 16).
Nessa sua empreitada de se dispor a ouvir os apelos do Ser, revisita os trajetos
percorridos pela filosofia ocidental e assim constata que a Metafísica provoca um
“esquecimento do ser”.

Por metafísica Heidegger se refere ao pensamento filosófico ocidental desde Platão,


quando se determinou definitivamente a verdade do conhecimento como
representação imutável, absoluta e única da essência (universal) das coisas,
desembocando na ciência moderna, na técnica moderna e na tecnologia
(EVANGELISTA, 2016, p. 39).

O significado de Metafísica pela perspectiva heideggeriana será mais explorado no


segundo capítulo, mas como traço característico de sua abordagem circular é válido um breve
esclarecimento sobre isso mesmo que de maneira sucinta, para depois retomar a questão e
abrir a ciranda que explorará melhor tal paradigma.
A Metafísica (meta = além, ou seja, ‘além da física’) arregimentada por Platão e
Aristóteles é um projeto de concepção do conhecimento humano que em torno do contexto
antigo, os conceitos não são postulados por homens, mas tomados como revelados por Deus.
Entretanto, na idade moderna e a ascensão da ciência, Descartes foi se dando conta do abalo
das firmes convicções impostas por pseudo revelações, reformulando a definição da
conceituação. Mediada agora pela importância da aferição, que duvida da capacidade
autônoma da consciência, mas se valida do advento do instrumento que se dispunha assim a
assegurar-se da verdade. Na fundamentação de tal método de conhecimento, surge a expansão
e refinamento do instrumento, que na idade moderna granjeou seu absolutismo. E todas essas
são tentativas de poupar o homem a tomar contato com a angústia: de não saber tudo e de não
poder tudo, porque é mortal; bem como superar os limites da consciência. Surgem
concomitantemente ao radicalismo da Metafísica, primeiramente Kierkegaard e depois
Nietzsche, como pensadores que já estavam se questionando sobre o paradigma instaurado.O
filósofo dinamarquês teve uma grande influência no pensamento de Heidegger, em
contrapartida, encontra em Nietzsche pontos de refutação (informação verbal)4.

De seu estudo sobre Nietzsche resultou a convicção de que a metafísica, ao procurar


captar pela razão humana o fundamento último da realidade, identificado com Deus,
acabou por colocá-la acima do próprio Deus, provocando assim a sua morte no

4
Aula ministrada pela Dra. Dulce Critelli, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 07/08/17.
19

pensamento por ela plasmado. A proclamação de Zaratustra ‘Deus morreu’ equivale,


na verdade, à constatação de que o Deus cristão já não tem qualquer influência no
modo de pensar do homem moderno, enquanto tal. Daí o niilismo da cultura atual.
Com efeito, e esta é propriamente a intuição certeira e premonitória de Nietzsche,
removido o fundamento divino, rui todo o edifício de valores absolutos, próprio do
humanismo ocidental. Ainda que plenamente de acordo com este diagnóstico,
Heidegger já não segue, porém, o autor do ‘Anticristo’ na proposta de enfrentamento
do vazio de sentido pela afirmação do super-homem, situado ‘para além do bem e do
mal’. Ao contrário, ele julga que a subversão nietzscheana dos valores
transcendentes em favor da imanência da vida permanece ainda enredada, apenas
com sinais trocados, nas malhas da distinção metafísica entre o sensível e o
inteligível, o temporal e o eterno (MACDOWELL, 2011, p. 17-18).

Ora, se Heidegger concorda com o apontamento do humanismo e que seu efeito seria
o niilismo5, ele discorda do projeto de suplantação de Nietzsche na figura do “super-homem”
que expressa a “vontade de potência” e só fortalece o antropocentrismo. Nesse “esquecimento
do ser” o ente se fortaleceu, e como característica do domínio do sujeito Heidegger denomina
essa era de técnica planetária.

Desde que o homem no meio do ente (physis) no qual ele é exposto, procure ganhar
uma base e se instalar, e que proceda desta ou daquela maneira para dominar e
superar o ente, seu modo de proceder ao encontro do ente é então levado e dirigido
por um saber que concerne ao ente. E esse é o saber que se nomeia techné
(HEIDEGGER, apud LIMA FILHO, 2011, p. 70).

A “técnica” na cultura grega antiga era entendida como a habilidade para conduzir as
coisas em seu aparecer, por isso, Heidegger que consegue ouvir o apelo epocal do Ser,
compreende que a técnica é uma forma de desencobrimento do ser e de seu esquecimento,
porque se na Grécia a competência técnica estava associada ao poeta e artesão, agora sua
maneira de expressão condiz com a “provocação” (MICHELAZZO, 2001, p. 63). Provocar
tomado em seu sentido etimológico significa “pro” – para fora, “vocare” – chamar, ou seja,
chamar para fora.

Esta é a maneira básica de a técnica moderna interpretar a natureza e se relacionar


com ela. A natureza não é senão um gigantesco reservatório, a fonte dos recursos a
serem controlados e manipulados pela indústria. Com a técnica, o homem provoca a
natureza, obrigando-a a liberar as suas forças, mas a natureza também provoca o
homem ao esconder as suas energias, obrigando o homem a encontrá-las. Nessa
recíproca provocação, Heidegger identifica a essência da técnica moderna que ele
denomina ‘armação’ (Gestell), uma espécie de estrutura onde homem e natureza
encontram-se profundamente enredados num processo de disputa altamente
destrutiva. Preso às engrenagens vorazes da Razão instrumental, com a qual dá-se o
saque à natureza, o homem acha-se refém das planificações globais e das indústrias
de processamento automático, nivelador e desenfreado. A criatura parece ter-se
desprendido do criador, tornando-se cada vez mais potente e auto-suficiente,
seguindo um caminho próprio, perigoso e devastador (MICHELAZZO, 2001, p. 63).

5
“Niilismo significa o completo olvido do ser” (NUNES, 2016, p. 105).
20

Heidegger (1972) vai mostrando que essa nova forma de produção, em detrimento ao
abandono da poiésis6, tem por fundamentação o descerramento da energia oculta da natureza,
o que se descerra é armazenado, para que o que estiver estocado seja distribuído e, assim, se
efetive os valores capitalistas vigentes na modernidade. Essa cadeia de ações é denominada
por “interpelação provocadora”, com traços do controle e cálculo. A questão é que nada que o
homem produza está cindido dele mesmo, ou seja, não é apenas o mercado capitalista que está
preso nas amarras da técnica planetária, mas principalmente àquele que o criou.

O próprio homem está, sem disso dar-se conta, interpelado, isto é, provocado a
cultivar racionalmente o mundo ao qual pertence. É provocado a fazê-lo, de modo
geral, enquanto fundo de reserva calculável, e assegurar-se, ao mesmo tempo, sob o
ponto de vista das possibilidades da exploração racional. Assim, o homem
permanece condenado à vontade de cultivar o que é calculável, e de sua
factibilidade. Entregue ao poder de interpelação produtora, o homem barra-se a si
mesmo o caminho para o elemento essencial de sua existência (HEIDEGGER, 1972,
p. 16).

Como no mito de Dédalo o homem se torna refém da sua própria obra, mesmo que por
vezes se iluda pensando que domina o sistema tecnicista que criou. “Tal erro consiste no fato
de se exigir que o homem se torne senhor da técnica, não devendo permanecer, por mais
tempo, seu escravo. Mas o homem jamais se tornará senhor daquilo que determina o elemento
mais próprio da técnica moderna” (HEIDEGGER, 1972, p. 19), porque o fato é que a técnica
domina a Terra inteira (HEIDEGGER, 1959).
Então, a Metafísica ao tentar conhecer o ser por um ente: no período antigo a partir do
ente Deus; na idade média a partir do instrumento; na modernidadea partir do ente homem e
seus artefatos, desaguou no “esquecimento do ser”. É esse fortalecimento do ente, em
detrimento ao enfraquecimento do ser, que instala o sistema técnico planetário como forma
comum de interação entre o homem e seu meio, o homem com outros homens, o homem com
ele mesmo e a forma de pensar pertinente a técnica é caracterizado como o “pensamento
calculador”, conforme explanado a seguir:

A sua particularidade consiste no fato de que, quando concebemos um plano,


investigamos ou organizamos uma empresa, contamos sempre com condições
prévias que consideramos em função do objetivo que pretendemos atingir.
Contamos, antecipadamente, com determinados resultados. Este cálculo caracteriza
todo o pensamento planificador e investigador. Este pensamento continua a ser um
cálculo, mesmo que não opere com números, nem recorra à máquina de calcular,
nem a um dispositivo para grandes cálculos. O pensamento que calcula (das
rechnende Denken) faz cálculos. Faz cálculos com possibilidades continuamente
novas, sempre com maiores perspectivas e simultaneamente mais econômicas. O
pensamento que calcula corre de oportunidade em oportunidade. O pensamento que

6
Poiésis refere-se ao trabalho desenvolvido na era technikós, a técnica que vigorava na antiga cultura grega e
expressava os valores da habilidade artesanal (MICHELAZZO, 2011).
21

calcula nunca para, nunca chega a meditar. O pensamento que calcula não é um
pensamento que medita, não é um pensamento que reflete sobre o sentido que reina
em tudo o que existe. Existem, portanto, dois tipos de pensamento, sendo ambos à
sua maneira, respectivamente legítimos e necessários: o pensamento que calcula e a
reflexão (Nachdenken) que medita. É a esta reflexão que nos referimos quando
dizemos que o Homem atual foge do pensamento (HEIDEGGER, 1959, p. 13-14).

Parece contraditório propor a escassez do pensamento frente a uma sociedadeque tem


assistido avanços em larga escala nas áreas das ciências e tecnologias. Ainda assim, Martin
Heidegger defende que o homem está em fuga do pensamento, mesmo que mascare isso por
meio da justificativa:

afirmará o contrário. Dirá – e com pleno direito – que em época alguma se


realizaram planos tão avançados, se realizaram tantas pesquisas, se praticaram
investigações de forma tão apaixonada como atualmente. Com toda certeza. Esse
dispêndio de sagacidade e reflexão foi de extrema utilidade. Um tal pensamento será
sempre indispensável. Mas convém precisar que será sempre um pensamento de um
tipo especial (HEIDEGGER, 1959, p. 13).

O filósofo aponta a diferença entre dois tipos de pensamentos: o calculador –


fundamentado pela época da técnica; e o pensamento meditativo – o qual permite a reflexão.
Bom, a religião poderia ser uma forma de desenvolver o pensamento meditativo, que pensa o
sentido do Ser, conforme explanou no livro Fenomenologia de uma vida religiosa, entretanto,
elementos como a prosperidade, individualização do crente e legitimidade das vontades – tão
presentes na Igreja Universal do Reino de Deus, não caracterizam uma escassez do
pensamento meditativo em paralelo ao absolutismo do pensamento calculador?

1.1 Igreja Universal do Reino de Deus

A Igreja Universal foi fundada em 1977 na zona norte da cidade do Rio de Janeiro,
onde antes funcionava uma pequena funerária. Em menos de três décadas se
transformou no mais surpreendente e bem-sucedido fenômeno religioso do país,
atuando de forma destacada no campo político e na mídia eletrônica. Nenhuma outra
igreja evangélica cresceu tanto em tão pouco tempo no Brasil. Seu crescimento
institucional foi acelerado desde o início. Em 1985, com oito anos de existência, já
contava com 195 templos em catorze estados e no Distrito Federal. Dois anos
depois, eram 356 templos em dezoito estados. Em 1989, ano em que começou a
negociar a compra da Rede Record, somava 571 locais de culto. Entre 1980 e 1989,
o número de templos cresceu 2.600%. Nos primeiros anos, sua distribuição
geográfica concentrou-se nas regiões metropolitanas do Rio de Janeiro, de São Paulo
e de Salvador. Em seguida, expandiu-se pelas demais capitais e grandes e médias
cidades. Na década de 1990, passou a cobrir todos os estados do território brasileiro,
período no qual logrou taxa de crescimento anual de 25,7%, saltando de 269 mil
(dado certamente subestimado) para 2.101.887 adeptos no Brasil, de onde se
espraiou para mais de oitenta países. Em todos eles, conquista adeptos
majoritariamente entre os estratos mais pobres e menos escolarizados da população
(MARIANO, 2004, p. 124-125).
22

A análise sociológica de Ricardo Mariano emparelha com a conceituação do


pensamento calculador que se pauta pelo projeto da expansão iurdiana. O alcance a estados
mais remotos de sua igreja sede, chegando até em outros países, não é obra do acaso ou de
uma benesse sobrenatural, antes expressa à perspectiva técnica em uma “interpelação
provocadora”, que se solidificou de tal maneira no ethos da instituição ao ponto da religião ser
apenas um dos nichos dessa enorme empresa, que possui um Banco de Crédito Metropolitano,
emissoras de TV, estações de rádio, jornais, entre outros segmentos (MARIANO, 1999):

[...] A Universal possui diversas outras empresas, entre elas: Unimetro


Empreendimentos, Cremo Empreendimentos, New Tour (agência de viagens), Uni
Line (processamento de dados), Unitec (construtora), Uni Corretora (seguradora),
Line Records (gravadora), Frame (editora de vídeos), Investholding Limited (com
sede nas ilhas Cayman), Editora Gráfica Universal Ltda, Ediminas S/A (BH), uma
fábrica de móveis (que faz os bancos da igreja) (MARIANO, 1999, p. 67).

Seria ingênuo considerar que as instituições religiosas, sejam elas de toda sorte de
crenças, não passem pelo mercado capitalista em suas atribuições burocráticas, mas o retrato
da Igreja Universal funciona como uma caricatura que por mostrar a ênfase de seus interesses
econômicos deixa ver o pensamento calculador entremeado em sua maneira de ser.
Visando sua contínua influência a IURD também se arvora na esfera política
partidária, escrevendo uma longa história de participação em todos os pleitos, por vezes numa
representação direta, por outras, indireta. Mas o que sempre é escancarado são as campanhas
para a efetivação dos candidatos, com direito a obreiros distribuindo ‘santinhos’, veículos de
informação da igreja fazendo propaganda eleitoral, faixas com seus respectivos nomes e
números espalhadas pelos templos, além dos pastores e bispos solicitarem abertamente
obediência no que tange aos votos, em cima do púlpito (MARIANO, 1999).

[...] a Universal é a igreja pentecostal com maior sucesso eleitoral. Como as demais
estratégias de inserção social de que se vale, participa da política – lançando
candidaturas próprias desde a eleição de 1982 – para expandir seu crescimento e
defender seus interesses corporativos, entre os quais alardeia o da liberdade
religiosa. Alega que, com representantes no parlamento, no caso de ‘perseguição’,
da qual frequentemente se diz vítima, estará preparada para lutar pela manutenção de
suas concessões de emissoras de rádio e TV. Seu engajamento na esfera política,
como se vê, não é desinteressado nem nobre. Visa basicamente a duas coisas:
conquista de poder e atendimento dos interesses corporativos da denominação e das
causas evangélicas (MARIANO, 1999, p. 91).

Toda essa articulação política tem uma posição partidária, que partindo de um
pensamento calculador restrito aos seus interesses, impõe aos adeptos suas convicções,
furtando-lhes de um pensamento meditativo com apelações de natureza espirituais, como
demonstra o exemplo do Bispo Macedo em uma campanha anti-Lula, com o nome fantasia de
23

‘Clamor pelo Brasil’: “disse que, naquela eleição, os crentes teriam de decidir entre a igreja de
Jesus e a do Diabo. Sem pronunciar o nome de Lula em momento algum, advertiu: ‘E vocês
sabem o que eu estou falando’. ‘Eu estou orando e não vai acontecer [...]” (MARIANO, 1999,
p. 94).
Tal padrão se distancia do antigo modelo pentecostal marcado pelo compromisso com
valores puritanos e práticas ascéticas, entretanto revelam uma flexibilização no sistema de
crenças para torná-lo mais atrativo. Ricardo Mariano elucida esse fenômeno de ajustamento:

Primeiro, demonstra que essa religião passou a se interessar por e orientar sua
mensagem para este mundo, não para transformá-lo subitamente por meio de
qualquer revolução de cunho milenarista, nem para desqualificá-lo, mas
simplesmente para se ajustar às demandas sociais das massas interessadas tão
somente na resolução ou mitigação de seus problemas cotidianos e na satisfação de
seus desejos materiais. Com isso, passou a funcionar como um ‘pronto-socorro
espiritual’, especializado na oferta de produtos padronizados de fácil acesso e
consumo. Em segundo lugar, demonstra que os fiéis [...] estão se tornando cada vez
mais individualistas, consumistas, hedonistas e, portanto, cada vez mais afinados
com o que se passa a sua volta (MARIANO, 1999, p. 232-233).

Com pregações orientadas para acomodação a este mundo, acomete-se no converso


um crepúsculo da esperança de transformar o mundo, de se responsabilizar por seu mundo,
deixando a cargo da religiosidade mágica a organização da sua vida. Justamente por conta
desse discurso planificado tal igreja tem arrebanhado multidões, ao se manter no nível das
massas.
Segundo Ricardo Mariano (1999) a cosmovisão da Igreja Universal do Reino de Deus
está apoiada em três pilares: a guerra espiritual contra o diabo, a teologia da prosperidade e a
liberação dos usos e costumes de santidade que vigoravam da predecessora pentecostal.
Porém é possível elencar tais atributos em apenas duas instâncias: a guerra espiritual e a
teologia da prosperidade na acomodação ao mundo, já que o discurso da prosperidade revela a
assimilação da sociedade capitalista, e que essa mesma acomodação produz a legitimidade
dos prazeres na flexibilização de sua identidade. Mas se o mundo está tomado pela vigência
da técnica planetária, a proposta Iurdiana não abarcaria assimilar o discurso religioso ao
pensamento calculador? E o quanto de elementos pseudo espirituais, como a guerra santa,
também não desvela o pensamento calculador? O caminho para o esclarecimento é uma
aproximação a esse conceito.

1.2 O pensamento calculador


24

Convicto de que vivemos ‘em plena era do demonismo’ e de que ‘evangelho é


poder’ a ser exercido para derrotar Satanás, Edir Macedo, bispo primaz da
Universal, radicalizou o cumprimento da obra de esconjuração. Crítico atroz das
igrejas crentes que pregam um evangelho ‘água com açúcar’, afirma ter erguido sua
denominação para fazer ‘um trabalho especial’: a ‘libertação de pessoas
endemoninhadas’. No empenho de reforçar a tropa do Senhor dos Exércitos, fez do
exorcismo o núcleo dramático de seus cultos, desencadeando a malfadada ‘guerra
santa’ (MARIANO, 1996, p. 126).

O discurso dos Iurdianos está abarrotado com o termo“poder”, segundo as palavras de


Edir Macedo: “evangelho é poder, e poder tem de ser exercido, para a derrota de Satanás [...]
e a glória de Deus” (apud Mariano, 1999, p. 115). Tal poder se desdobra na guerra contra o
diabo, na busca por ascensão social e na manifestação de curas (MARIANO, 1999), mas todas
as suas expressões de poder se aproximam exclusivamente do sentido proposto pelo
pensamento calculador. “Pertence assim à vontade de poder o predomínio incondicional da
razão calculadora [...]” (HEIDEGGER, 2002, p. 70).
Em contraponto, Heidegger (2002) postula a importância do “poder-ser” e isso pode
gerar associações precipitadas, para esclarecimento é válido diferenciar: enquanto o
pensamento calculador propõe o poder como controle, Heidegger trata do “poder-ser” como
possibilidade. O filósofo denuncia que a vigência do poder calculador vai furtando o homem
das possibilidades de “poder-ser”:

A luta entre os que estão no poder e os que querem o poder é, de ambos os lados,
luta pelo poder. Em toda parte, o poder é o determinante. Com essa luta pelo poder,
a essência do poder se desloca, em ambos os lados, para a essência de uma
dominação incondicional. Todavia, aqui se esconde uma única coisa: que toda luta
está a serviço do poder, sendo por ele querida. Antes de qualquer luta, o poder já se
apoderou de todas elas. Só a vontade de poder consegue apoderar-se dessas lutas. O
poder, entretanto, vai se apoderar de tal forma da humanidade que desapropria o
homem da possibilidade de dispor de um caminho para sair do esquecimento do ser
(HEIDEGGER, 2002, p. 78-79).

Heidegger aponta que a postura impositiva é a característica marcante para reconhecer


aquele que se considera constituído de poder:

O querer (Wollen) aqui nomeado consiste em se impor através de tudo e contra tudo,
com um propósito que já pôs o mundo como o conjunto de objetos suscetíveis de
serem produzidos. É esse querer que determina o ser do homem moderno. [...] É
aqui, no autocomando, que se anuncia o caráter imperativo da vontade
(HEIDEGGER, 1977, p. 266-267 apud LIMA FILHO, 2011, p. 90).

As palavras de ordem e de comando, tanto para si mesmo quanto para entidades


espirituais então reforçam a prevalência do pensamento calculador, conforme depoimento do
Bispo Macedo:
25

Comece hoje, agora mesmo, a cobrar dele tudo aquilo que Ele tem prometido [...]. O
ditado popular de que ‘promessa é dívida’ se aplica também para Deus. Tudo aquilo
que Ele promete na Sua Palavra é uma dívida que tem para com você [...]. Dar
dízimos é candidatar-se a receber bênçãos sem medida, de acordo com que diz a
Bíblia [...]. Quando pagamos o dízimo a Deus, Ele fica na obrigação (porque
prometeu) de cumprir a Sua Palavra, repreendendo os espíritos devoradores [...].
Quem é que tem o direito de provar a Deus, de cobrar d’Ele aquilo que prometeu? O
dizimista! [...] Conhecemos muitos homens famosos que provaram a Deus no
respeito ao dízimo e se transformaram em grandes milionários, como o Sr. Colgate,
o Sr. Ford e o Sr. Caterpilar (MACEDO, 1990 apud MARIANO, 1999, p. 162).

Ao ‘empoderar’ o ente em detrimento do esquecimento do ser, lhe municia


ferramentas que intentam dominar, superar a si mesmo e a outros entes, como entidades
sobrenaturais ou até outras pessoas. Aliás, a estrutura hierárquica da igreja Universal, em uma
gestão centralizadora, também revela a importância do poder para a instituição não apenas no
que tange a área espiritual. A espinha dorsal do poder: Bispo Macedo, outros bispos, pastores
consagrados, pastores nomeados, líderes estaduais, líderes regionais, obreiros (MARIANO,
1999); encorajam os fiéis a exercerem poder sobre os outros.

O governo eclesiástico da Universal é centralizado em torno de seu líder


carismático. Sua estrutura de poder é vertical, despótica até. [...] Na prática, porém,
o bispo primaz, escudado em seu poder vitalício e ancorado no discurso de que o
próprio Deus o escolheu para exercer tal autoridade, que não pode ser questionada,
decide e comanda. Pastores e congregações não possuem autonomia alguma. [...]
Paulo De Velasco, secretário-geral da Universal, assegura que sua igreja cresce
muito por ter como líder um ‘ditador’, tipo de dominação eclesiástica que defende
como a mais eficaz. Desconfiado, talvez inseguro, o que este ‘ditador’ mais odeia
fazer, como declarou, é ‘depender de terceiros’, delegar poderes. Roberto Lopes
ressalta a ausência de mecanismos democráticos na tomada de decisões da igreja.
‘Nunca existiram assembléias-gerais do presbitério para decidir os destinos da
igreja. Macedo tomava as decisões, mandava fazer ata e os componentes da diretoria
assinavam junto com alguns pastores. O que o Bispo decidia estava decidido’
(MARIANO, 1999, p. 63-64).

Primeiro vale ressaltar a dinâmica do fortalecimento do ente, presente no discurso


difundido da autoridade inquestionada do Bispo Edir Macedo, constituída pelo próprio Deus:
o ente homem fortalece o poder do ente Deus, para alegar que esse mesmo ente Deus tem
poder para constituir o ente homem, Bispo Macedo. Esse é o círculo vicioso do poder
entificado calculador. Segundo aspecto importante dessa citação é reconhecer o
chancelamento dos subordinados ao exercício de poder unilateral, sem nenhum indício de
resignação. Martin Heidegger trata de como uma liderança é bem quista no planejamento
calculador:

A desmobilização moralista daqueles que ainda não sabem o que é que está em jogo
visa, com freqüência, a arbitrariedade e a pretensão de dominação dos ‘líderes’, o
que constitui, na verdade, a forma mais fatal de seu reconhecimento contínuo. O
líder é o escândalo que não se cansa de perseguir o escândalo de apenas dar para os
outros a impressão de que não são eles que agem. Acredita-se que os líderes por si
26

mesmos, na fúria cega de uma mania egocêntrica de si, instauram e adéquam tudo a
si mesmos, segundo sua própria obstinação. Mas eles são, na verdade, a
consequência necessária do fato de todos os entes terem passado para o modo de
errância em que o vazio se espraia, na avidez de uma ordem e de um asseguramento
único de tudo o que é e está sendo. Daí a necessidade de uma ‘liderança’, isto é, de
um cálculo planificador que assegure a totalidade dos entes. Para isso, devem-se
institucionalizar e mobilizar esses homens capazes de servir à liderança. Os ‘líderes’
são os trabalhadores determinantes da mobilização, aqueles que olham pela
segurança dos abusos dos entes por conseguirem olhar num panorama a totalidade
de toda circunscrição e, assim, dominarem em cálculos a errância. O modo em que
se realiza essa visão panorâmica é a capacidade de calcular (HEIDEGGER, 2002, p.
81-82).

Em um cenário de esvaziamento do sentido do ser a técnica planetária articula o


pensamento calculador que visa extinguir a errância, mas como isso acontece em termos
práticos? O ser é propriedade do homem, responder responsavelmente por esse ser é
incumbência pessoal num processo denominado por Heidegger como “apropriação”, enquanto
apropria-se de si. Mas assumir-se como um escolhedor e realizador, dando conta desse ser, é
penoso, por isso na maior parte o homem entrega essa responsabilidade a terceiros,
preferindo, assim, viver de forma “imprópria” (HEIDEGGER, [1927] 2012). Na terceirização
dos seus cuidados anseia encontrar algo/alguém que lhe assegure a ordem, e é nesse vácuo
que a instituição e sua uniformização correspondem ao apelo do esvaziamento de ser.

Esse vazio deve ser preenchido. Como, porém, o vazio do ser, sobretudo quando não
pode ser percebido como tal, nunca se preenche pela quantidade de entes, a única
escapatória é a institucionalização ininterrupta dos entes na possibilidade contínua
de ordenamento enquanto forma de assegurar o fazer sem meta (HEIDEGGER,
2002, p. 83).

O filósofo expõe que o recurso que a técnica planetária encontrou para lidar com esse
“vazio de ser” foi lançando mão da institucionalização. Mas o que constituí essa
institucionalização que continua fortalecendo esse ente ao assegurá-lo do fazer? Existem
vários tipos de instituições: família, mercado de trabalho, religiões. Apesar de perfis e áreas
de atuações diferentes, todas as instituições têm algo em comum, sua funcionalidade. Ao
demarcar fronteiras entre direitos e deveres, determinando regras de conduta (de maneira
implícita ou explícita) vão assim pontuando um campo de domínio e organizando o senso
identitário, com uma determinada linguagem e compreensão de mundo. Tudo isso fornece
senso de pertença, ou delimita a posição da marginalização, ou ainda da vizinhança da
comunidade – que pela leitura da ciência da religião, seriam os frequentadores ocasionais.
Toda essa estrutura normativa aplaca a angústia inerente a responsabilidade do “ser”
em ter que decidir o tempo todo, e haver-se com as consequências dessas mesmas decisões.
Ao terceirizar os cuidados do seu existir para a instituição entrega-lhe também poder, e assim
27

efetiva-se a influência dessa organização. A Igreja Universal do Reino de Deus é essa


instituição que já traça uma compreensão de mundo, mundo esse que por já ser dito e
interpretado fornece segurança aos seus fiéis. Porque um mundo repetido e repetível isenta da
responsabilidade de inventar-se. Mesmo tendo como característica a liberação dos usos e
costumes das predecessoras Pentecostais, a IURD tem outros elementos regradores e por isso
aprisionadores.
Compreende-se esse decurso a partir da seguinte ilustração: ao estar em um campo
aberto em um dado momento é surpreendido por uma tempestade, em procura de um abrigo
encontra uma cabana, mas é só ao entrar que percebe que essa mesma porta em que entrou só
tem maçaneta do lado de fora, assim, o abrigo ficou aprisionador (informação verbal)7. Esse é
um bom exemplo para o processo de institucionalização, porque afinal a instituição tem o seu
valor em se tornar abrigo, mas ao exacerbar nas regras e normatizações, furtando o membro
de responder pelo seu “ser” torna-se uma prisão.
O converso assume o formato daquilo que foi previsto pela instituição ao ponto desse
não ter mais espaço para uma atitude “autêntica”, assim se dá a institucionalização, repetindo
tarefas sem pensar e sem ao menos perceber. Em uma atitude automática que antecipa o
pensamento meditativo, e por isso o restringe. E no transcurso da uniformidade presente na
institucionalização, desenvolve a produção de massa.

Contudo, na verdade, o ‘substitutivo’ e sua produção em massa não constituem um


paliativo passageiro mas, sim, a única forma possível em que a vontade de querer, o
asseguramento ‘incansável’ do ordenamento das ordens, mantém-se em atividade,
podendo ser ‘ela mesma’ o ‘sujeito’ de tudo. Desenvolve-se o crescimento planejado
das massas a fim de nunca se perder a oportunidade de reivindicar maiores ‘espaços
vitais’ para as grandes massas. Para a sua institucionalização, a grandeza desses
espaços exige uma massificação ainda maior dos homens. Essa circularidade entre o
abuso e o consumo é o único processo que caracteriza o destino de um mundo que
deixou de ser mundo. ‘Naturezas de líderes’ são aquelas que, em razão de sua
segurança instintiva, se deixam usar por esse processo enquanto seus órgãos
condutores. Eles são os primeiros empregados nesse negócio do abuso incondicional
dos entes a serviço do asseguramento do vazio provocado quando se deixa o ser
(HEIDEGGER, 2002, p. 83).

Anestesiado quanto ao “esvaziamento do ser”, porque se encontra submerso nas


implicações da técnica planetária elencadas até aqui como, a planificação de uma religião
massificada, marcada pelo caráter utilitarista8, subjugada pela regência das mãos poderosas de
uma liderança unilateral, o homem não se dá conta das sérias consequências imbricadas nesse

7
Aula ministrada pela Mestre Angélica Gawendo, no grupo de estudo DEVIR, realizado em Santos/SP em 2015.
8
Usa-se o termo “utilitarista” não com a intenção pejorativa, mas pensando-se no sentido mais originário da
palavra cunhada por Jhon Stuart Mill, filósofo britânico liberal, que propõe a ética da utilidade – útil é o que te
faz feliz. Essa corrente filosófica é bem contemporânea, ao passo que contribui para a expansão do
individualismo, bem como a intensificação do imediatismo.
28

modo de ser. Uma das consequências para tanto poder calculador é a alienação quanto a
indigência do ser humano, na falta de reconhecer os seus contingentes e fragilidades endossa
tamanha precariedade. “A época indigente não se ressente mais de sua indigência. Essa
incapacidade, pela qual a indigência mesma da penúria cai no esquecimento, nos faz ver bem
a indigência, em si mesma, desse tempo” (HEIDEGGER, apud LIMA FILHO, 2011, p. 49).
Essa “indigência” é uma constituição básica do homem, que é indigente justamente
porque é mortal, como um ser fático restringido por suas limitações de tudo não-poder. A
verdade do ser está em abarcar essa dura realidade, em contrapartida, a IURD contesta
qualquer fragilidade em argumento da falta de fé. Nesse poder que renega o não-poder, no
possível sobrepujar o impossível, o que era indigência chega ao extremo do empobrecimento
do ser.

A dor que se deve sentir e suportar até o fim é a compenetração e o saber de que a
falta de indigência constitui a indigência mais velada e mais extrema, a indigência
que só incide a partir da distância mais distante. A falta da indigência consiste
justamente em achar que se tem na garra o real e a realidade, e que se sabe o que é
verdadeiro, sem que se necessite saber onde vigora a essência da verdade. Na
dimensão do ser, a essência do niilismo é deixar o ser já que aí se dá e acontece que
o ser é deixado em favor dos apoderamentos. Esse deixar arrasta o homem para uma
servidão incondicionada (HEIDEGGER, 2002, p. 79).

Segundo Heidegger (1959), a indiferença quanto a sua indigência se instala na


prepotência avassaladora da técnica. E para designar o termo prepotência, ele usa o recurso da
palavra alemã ‘übermacht’, talvez a fim de sugerir que a técnica é um desdobramento do
‘übermensch’, o além do homem, tão caro a Nietzsche.
“[...] A técnica é um destino – instaurado na História do Ser – da Verdade do Ser
relegada ao esquecimento” (HEIDEGGER, [1967] 2009, p. 66), e ‘destino’ aqui não se trata
apenas da direção final, mas inclui o ponto de partida, o horizonte de compreensão,
perceptível pelo imediatismo, a busca desenfreada pela eficiência, eficácia, resultados, tudo
em nome do pretenso comedimento da racionalização.

A racionalização técnico-científica que domina a era atual, justifica-se, sem dúvida,


de maneira cada vez mais surpreendente através de sua inegável eficácia. Mas tal
eficácia nada diz ainda daquilo que primeiro garante a possibilidade do racional e
irracional. A eficácia demonstra a retitude da racionalização técnico-científica [...].
Talvez exista um pensamento mais sóbrio do que a corrida desenfreada da
racionalização e o prestígio da cibernética que tudo arrasta consigo. Justamente esta
doida disparada é extremamente irracional.Talvez exista um pensamento fora da
distinção entre racional e irracional, mais sóbrio ainda do que a técnica apoiada na
ciência, mais sóbrio e por isso à parte, sem a eficácia e, contudo, constituindo uma
urgente necessidade provinda dele mesmo (HEIDEGGER, 1972, p. 38).
29

Estaria o filósofo já dando sinais sobre o pensamento meditativo? Pensamento esse


que não está nos padrões do racional ou irracional, mas rompe com os conceitos prévios da
dicotomia entre razão e emoção. Mais adiante essas questões serão retomadas, resta ainda
pontuar sobre outros aspectos do pensamento calculador. Descrito na citação acima como a
“corrida desenfreada da racionalização”, também é caracterizado como o “desenraizamento”
do homem.
Em sua obra Serenidade, o autor postula que o homem está sujeito ao desenraizamento
pela influência dos meios de comunicação, que “excitam, surpreendem, estimulam a
imaginação do Homem” (HEIDEGGER, 1959, p.16), deixando-lhe distante do que acontece
em sua volta. Será esse o papel da propagação iurdiana nos meios de comunicação? Excitar,
surpreender com suas novas ofertas de campanhas e bens religiosos disponíveis ao consumo?
O pensamento calculador está sempre em busca de uma novidade, nunca para e por isso não
cria raízes. Adeptos sem raízes trazem um novo fenômeno nessa igreja, denominado por
“trânsito religioso”9, pois se antes um crente era reconhecido como fiel de determinada
denominação, a técnica e seu pensamento calculador imbricado na religião fragilizou o
vínculo do adepto com a comunidade.
Heidegger ([1927] 2012) em outro momento vai tratar de algumas maneiras
impróprias de ser como a “falação”, a “curiosidade”, e a “ambiguidade”. Explicado de forma
sucinta, o modo de ser impróprio refere-se ao modo impessoal, posturas adotadas pelo ‘todo
mundo’, condutas da massa e por isso bem pertinente as regras doutrinárias institucionais
iurdianas. É válido recorrer a uma extensa citação que esclarece o conceito de “curiosidade”
deixando rastros sobre sua fundamentação, o pensamento calculador:

A curiosidade liberada, porém, ocupa-se em ver, não para compreender o que vê, ou
seja, para chegar a ele num ser, mas apenas para ver. Ela busca apenas o novo fim
de, por ele renovada, correr para uma outra novidade. Esse acurar em ver não trata
de apreender e nem de ser e estar na verdade através do saber, mas sim das
possibilidades de abandonar-se ao mundo. Por isso, a curiosidade caracteriza-se,
especificamente, por uma impermanência junto ao que está mais próximo. Por isso
também não busca o ócio de uma permanência contemplativa e sim a excitação e
inquietação mediante o sempre novo e as mudanças que vem ao encontro. Em sua
impermanência, a curiosidade se ocupa da possibilidade contínua da dispersão. A
curiosidade nada tem a ver com a contemplação admiradora dos entes [...]. Ela não
se empenha em se deixar levar para o que não compreende através da admiração, do
espanto. Ela se ocupa em providenciar um conhecimento para simplesmente ter-se
tornado consciente. Os dois momentos constitutivos da curiosidade, a
impermanência no mundo circundante das ocupações e a dispersão em novas
possibilidades, fundam a terceira característica essencial desse fenômeno, que
chamamos desamparo. A curiosidade está em toda parte e em parte nenhuma. Este

9
Ver Ricardo Bitun (2011).
30

modo de ser-no-mundo desvela um novo modo de ser da presença10 cotidiana em


que ela se encontra constantemente desenraizada (HEIDEGGER, [1927] 2012, p.
236-237).

A massificação do pensamento calculador esgotou nossa capacidade de contemplação,


enquanto interrogação e espanto, dois elementos tão necessários nas paragens do sagrado.
Enquanto o espanto mantém o homem receptivo a gratuidade da vida, a inter-rogação roga por
novas compreensões por meio do pensamento reflexivo.
Mas, apesar de todas as características elencadas à técnica planetária, que empobrecem
o exercício da religião, Martin Heidegger (1959) não nega a relevância do pensamento
calculador. Ele reconhece sua utilidade pela praticidade do dia-a-dia, bem como sua
importância nas produções científicas, médicas, tecnológicas. O problema se instala no
esgarçamento de tal pensamento, ao se tornar a única forma de agir, restringe novas
possibilidades de ser, obliterando o pensamento meditativo explanado a seguir.

1.3 O pensamento meditativo

Heidegger tem uma forma de escrita que pode gerar frustrações a pessoas mais
apressadas, como por exemplo, em sua obra Serenidade, o filósofo não se propõe a
estabelecer sentenças de definições sobre o tema, antes, vai dando sinais para que o leitor
processe o desvelamento. Fazendo uso do mesmo método fenomenológico de aproximação,
esvazia-se a pretensão de conceituar a meditação, buscando apenas esclarecer o que envolve
esse tipo de pensamento. A fim de manter a postura meditativa frente ao estudo do
pensamento em questão, é válido considerar o conselho a seguir:

Neste caso deveríamos abandonar também aqui a compreensão imediata. E não


obstante se imporia um escutar atento, já que se trata de pensar algo incontornável,
ainda que provisório [...] Não se trata de ouvir uma série de frases que enunciam
algo; o que importa é acompanhar a marcha de um mostrar (HEIDEGGER, 1972, p.
40-41).

O convite de abandonar a compreensão imediata diferencia a informação do


conhecimento. Hoje todos têm acesso a informação, por meio da internet, televisão e tantos
outros veículos; de crianças a adultos, pessoas de todas as classes sociais são depositários de
informações constantes de diversas áreas como política, entretenimento, cultural. Mas a
vastidão de tanta informação não tornou a sociedade mais sábia. Heidegger (1959) propõe que
pelo mundo técnico, as informações são rapidamente difundidas e admiradas publicamente.

10
Dasein ou ser-aí.
31

Contudo, “uma coisa é termos ouvido ou lido algo, isto é, termos tomado conhecimento disso,
outra é conhecermos, isto é, refletirmos sobre o que ouvimos e lemos” (HEIDEGGER, 1959,
p. 20-21) – e a meditação parte dessa reflexão sobre toda a informação.
Abrir mão da compreensão imediata é também se desfazer dos rótulos de associação
que, pessoas empenhadas em ofícios que se subentendem a propagação do conhecimento,
como os pastores evangélicos, sejam necessariamente pessoas que desenvolvem o pensamento
meditativo.

Não nos iludamos. Todos nós, mesmo aqueles que pensam por dever profissional,
somos muitas vezes pobres-em-pensamentos; ficamos sem-pensamentos com
demasiada facilidade. A ausência-de-pensamentos é um hóspede sinistro que, no
mundo atual, entra e sai em toda a parte. Pois, hoje toma-se conhecimento de tudo
pelo caminho mais rápido e mais econômico e, no mesmo instante e com a mesma
rapidez, tudo se esquece. Do mesmo modo, os atos festivos sucedem-se uns aos
outros. As comemorações tornam-se cada vez mais pobres-em-pensamentos.
Comemorações e ausência-de-pensamentos andam intimamente associadas
(HEIDEGGER, 1959,p. 11).

Pois, se para as camadas sociais mais altas existe o senso comum da imagem do pastor
ignorante, para pessoas da classe social mais baixa o imaginário do pastor passa pela
construção de um homem que é o detentor do saber, mesmo que “os pastores da Universal não
possuam formação em seminários ou faculdades de teologia” (MARIANO, 1999, p. 63). O
pensamento meditativo não se aprende necessariamente nos bancos acadêmicos, mas o
exercício do estudo pode ser um caminho para encontrar a meditação.

A igreja, que por vários anos manteve, no Rio de Janeiro, a Faculdade Teológica
Universal do Reino de Deus (Faturd), que oferecia cursos básicos (três anos) e de
bacharelado em teologia (quatro anos), desistiu de prover formação teológica aos
pastores quando percebeu que isso, além de gastar inutilmente seu tempo, tenderia a
diminuir seu fervor e distanciá-los das demandas imediatas dos fiéis (MARIANO,
1999, p. 63).

Quais são os ganhos secundários dessa instituição em manter seus líderes leigos?
Primeiramente o valor econômico em poupar os gastos no investimento para a formação, bem
como otimizar o tempo do seu funcionário para o trabalho exercendo o ditado interno de que
“templo é dinheiro” (CAMPOS, 1997). O segundo ganho é manter tal pastor com a mesma
linguagem e ethos desse fiel, provocando assim uma identificação do adepto com seu pastor,
esse processo pode gerar uma retroalimentação de alienação: o pastor tomado pelo habitat
tecnicista que propaga um discurso calculador, em contrapartida o crente sem empunhadura
sobre si, imputa ao líder qualquer capacidade de reflexão.
32

Assim como Heidegger (1959, p. 11) apontava que “as comemorações tornam-se cada
vez mais pobres-em-pensamentos”, as liturgias iurdianas, focadas no domínio de demônios e
na teologia da prosperidade não reforçam a escassez da meditação?

Na Universal, cada culto parece ter como objetivo principal a oferta, estimular o fiel
a ‘dar para receber’. Nas pregações, os personagens bíblicos frequentemente
aparecem firmando relações de troca com Deus, as quais, exortam os pastores,
devem servir de modelo para os cristãos atuais. Passagens e histórias bíblicas,
majoritariamente pinçadas do Antigo Testamento, são interpretadas de molde a
encorajar os fiéis a ofertar com ‘sacrifício’ (MARIANO, 1999, p. 171-172).

Os cultos têm uma tônica teatral e extraem do seu público reações emocionais como
choro, tremores ou até manifestações que caracterizam uma possessão (MARIANO, 2004). O
filósofo contemporâneo Gilles Lipovetsky, em uma leitura da fé na sociedade atual postula
que “hoje, mesmo a espiritualidade funciona em autosserviço, na expressão das emoções e
dos sentimentos, nas buscas animadas pela preocupação com o maior bem estar-pessoal, de
acordo com a lógica experiencial [...]” (LIPOVETSKY, 2007, p. 132). Pode-se entender que a
Igreja Universal ignora o pensamento meditativo na escolha da exploração das emoções?
O pensamento meditativo bem como o pensamento calculador não podem ser
referenciados pela dualidade entre irracional e racional, porque afinal “quem fala contra o
lógico, defende o ilógico?” (HEIDEGGER,[1967] 2009, p. 74) – fazer uso dessa dualidade
seria retomar os pressupostos da Metafísica que propõe a dicotomia entre sujeito x objeto,
razão x emoção. O pensamento meditativo passa pelas sensações na via da estética, assim
como também passa pela reflexão do intelecto, mas tem um equilíbrio entre isso e aquilo, não
podendo ser caracterizado como só isso ou só aquilo.
A “compreensão” sempre acontece numa determinada afinação, isso torna-a afetiva, e
não somente racional (HEIDEGGER, [1927] 2012). Por exemplo, uma oração é marcada por
um determinado estado de ânimo, que engloba o estado de espírito do seu orador naquele
exato momento em que é elaborada a oração, o motivo de sua prece e as emoções que são
suscitadas a partir de então, o envolvimento dos espectadores daquela oração, etc. Frente a
isso se poderia entender que a Igreja Universal do Reino de Deus por fim mostra um traço
meditativo ao passo de não desdenhar do elemento estético, como fazem algumas outras
igrejas evangélicas que dão preferência ao abarcar apenas o âmbito racional. Todavia, logo
essa posição é refutada pela percepção que a esfera das emoções é tão esgarçada na instituição
que não desenvolve a possibilidade da reflexão.
As emoções, impressões e experiências fornecem um desvelamento do ser e por isso
constituem o pensamento meditativo, que se dispõe a pensar o sentido do ser. Justamente por
33

isso a percepção dos estados de ânimo mais frequente na instituição vai desvelando um modo
de ser, ou seja, reconhecer que o poder é a tonalidade afetiva mais presente no contexto
Iurdiano é desvelar o seu modo de ser, enquanto compreensão da sua projeção.
Entrementes, até a estética da Igreja Universal está amalgamada no pensamento
calculador, já que parte de emoções técnicas conforme o esclarecimento de Heidegger (2002):

No conceito de vontade de poder, ambos os ‘valores’ constitutivos (a verdade e a


arte) não passam da circunscrições da ‘técnica’, no sentido essencial da
disponibilização planejadora e calculadora para um desempenho capaz de trazer para
a ação de criar da ‘criatividade’, sempre além de cada vida em particular, um novo
estímulo do vivo e assim assegurar o êmulo da cultura (HEIDEGGER, 2002, p. 71).

O pensamento calculador supõe a posse da verdade e da arte, por isso qualquer dúvida
ou contestação é mal vista, a propagação dos Iurdianos é que “a dúvida é do diabo”
(MARIANO, 2004, p. 131) obstruindo o questionamento que constrói o caminho do
conhecimento. Ao falar sobre a tarefa do pensamento, Heidegger propõe:

O título nomeia uma tentativa de meditação que se demora no questionamento. As


questões são caminhos para sua resposta. Estas questões deveriam, caso um dia
realmente tomem forma, consistir numa transformação do pensamento e não se
reduzir a simples enunciação de um estado de coisas (HEIDEGGER, 1972, p. 20).

A “transformação de pensamento” se refere a conceber a “verdade” em seu significado


mais original, enquanto “alethéia”, que se traduz como um desocultamento. Esse significado
mais original para a palavra verdade ficou ocultado pela tradução romana por “veritas”, “nós
dizemos ‘verdade’ e a compreendemos costumeiramente como exatidão da representação”
(HEIDEGGER, 1997, p. 53). Partindo dessa premissa a “verdade” Metafísica é uma
concordância entre a ideia com um ente. A postura proselitista iurdiana, que crer ser a
possuidora da verdade, demonstra sua fundamentação Metafísica e nessa prerrogativa age
violentamente com outras religiões e até mesmo com instituições da mesma religião
evangélica, mas que por terem uma denominação diferente tornam-se concorrentes e por isso
menores.

A partir de sua interpretação bíblica, pastores e fiéis avaliam e criticam tudo à sua
volta. Elegem o mundanismo e as outras religiões como alvos prediletos de ataque.
Isto é, canalizam sua agressividade para os de fora de seu grupo. Tudo que repudiam
nas religiões com as quais se relacionam e concorrem visa a aclamá-los como
detentores exclusivos da verdade e virtude bíblicas que conduzem à salvação. Mas,
quando, para cumprir ordens pretensamente divinas e impor sua verdade, avançam
destemidos além das fronteiras dos templos, correm o risco de desencadear senão a
guerra santa, ao menos uma perversa maré de atos de intolerância explícita
(MARIANO, 1999, p. 116-117).
34

Não são poucos os episódios veiculados nos noticiários que retratam atos de violência
por parte dos Iurdianos com os membros das religiões afro-brasileiras e espíritas, como
ocorrências de agressões físicas aos adeptos de umbanda e candomblé, invasão e depredação
de centros e terreiros, tumulto e vandalismo em festas de outras religiões, além de publicações
com teor hostil que incitam os adeptos ao ódio (MARIANO, 1999). Igualmente, a maneira
como os pastores executam o exorcismo em seus cultos, exigindo com que o ‘possesso’
mantenha suas mãos para trás e cabeça baixa em uma postura de submissão, para que o
exorcista consiga controlá-lo com a mão pesada em sua cabeça ou até puxando seu cabelo,
enquanto associa a condição da possessão demoníaca com o envolvimento a religiões afro,
abre um precedente de animosidade entre os Iurdianos e as demais religiões.

Segundo Macedo, sua ‘igreja foi levantada para um trabalho especial, que se salienta
em todas as reuniões – a libertação de pessoas endemoninhadas (...) [nas quais] os
demônios são humilhados e até mesmo achincalhados, numa prova de que o Senhor
está conosco’. Considera as religiões espíritas, afro-brasileiras e orientais obra e
reduto diabólicos; antros de manifestação de ‘estupidez, ignorância e idolatria’.
Identifica seus ritos e práticas com ‘lodo, imundície, lamaçal’. Afirma que são
freqüentadas por pessoas ingênuas e sinceras, mas sobretudo por ‘prostitutas,
homossexuais e lésbicas’ [possuídos por pomba-giras], por ‘ladrões, criminosos,
contraventores, pederastas e gente destaestirpe’ [para ‘fechar o corpo’], e por
‘pessoas viciadas em tóxico, em bebidas alcoólicas, em cigarro ou jogo’ [possuídas
por ‘zé pilintras’]. Assim, ‘desenvolver-se no espiritismo, significa tornar-se
totalmente submisso aos demônios’. As conseqüências para seus adeptos são
nefastas, pois ‘essa religião que está tão popular no Brasil é uma fábrica de loucos e
uma agência onde se tira o passaporte para a morte e uma viagem para o inferno’
(MACEDO, 1988 apud MARIANO, 1999, p. 119-120).

Em contrapartida, a despudorada discriminação baseada no controle da verdade, a


meditação heideggeriana propõe a “proximidade calma de um vigor que não se impõe à
força” (HEIDEGGER, [1967] 2009, p. 54), mas se “recolhe na escuta do consentimento que
nos diz o que, para o pensamento, se dá a pensar” (HEIDEGGER apud LIMA FILHO, 2011
p. 108). Uma postura que envolve dar um passo atrás da verdade explicativa e representativa,
e se exercitar no pensamento meditativo que “prepara a questão sobre a Verdade do Ser”
(HEIDEGGER, [1967] 2009, p. 61). Até porque, “somente a partir da Verdade do Ser pode-se
pensar a Essência11 do sagrado” (HEIDEGGER, [1967] 2009, p. 81).

Somente a partir da Essência do sagrado pode-se pensar a essência da divindade.


Somente na luz da Essência da divindade pode-se pensar e dizer o que a palavra
‘Deus’ pretende significar. Ou, será que não devemos, primeiro, saber ouvir e
compreender cuidadosamente todas essas palavras, para podermos como homens,

11
A essência para Heidegger, não é previamente dada, ou seja, não é da ordem subjetiva, ela vai sendo
construída. O filósofo propõe uma essencialização, um caminho de construção da essência por meio do mundo e
da relação com os outros. Aos outros entes isso já é dado (por exemplo: um abacateiro sempre será um
abacateiro), enquanto ao homem foi dada a incumbência de construir sua existência.
35

isto é, como seres ecsistentes, fazer a experiência da re-ferência de Deus com o


homem? Como o homem da História atual do mundo poderia simplesmente
questionar de modo sério e rigoroso, se Deus se aproxima ou se afasta, se se omite
pensar primeiro dentro da dimensão do sagrado, que, até já como dimensão,
permanece inacessível, se a abertura (das Offene) do Ser não se tiver clareado e em
sua clareira não estiver próxima do homem. Talvez o que distingue nossa época
(dieses Weltater) é ser-lhe inacessível a dimensão da graça (des Heilen). Talvez seja
a única desgraça (Unheil) (HEIDEGGER, [1967] 2009, p. 81).

O que Heidegger está querendo dizer é que a esfera do Sagrado exige humildade dos
mortais para reconhecer a importância da Verdade, enquanto desocultamento, do Ser, ao se
abster da elaboração de sentenças e postulações sobre Deus carregado de conceitos a priori
estabelecidos, que aprisionam o homem e lhe dispõe acriar uma divindade que seja a sua
imagem e semelhança, para atender as suas necessidades e interesses egoístas. João Augusto
MacDowell esclarece:

A relação com o divino se transforma em vivência religiosa. O ser humano, em


última análise, cada indivíduo, coloca-se no centro do mundo, como o verdadeiro
absoluto, que faz girar tudo à sua volta. Em vez de servir a Deus na humilde
adoração ou no júbilo festivo, ele tende a pôr Deus a seu serviço, a serviço de suas
ideologias e de seus caprichos. A gratuidade da autêntica relação com o sagrado é
pervertida por uma atitude interesseira. Se não tem sentido rezar ou oferecer
sacrifícios ao Deus representado pela razão metafísica, diz Heidegger, diante dele
prostar-se de joelhos, reverente, ou tocar e dançar, é ainda mais descabido recorrer a
uma divindade feita sob medida de acordo com os anseios e as fantasias de cada um
(MACDOWELL, 2011, p. 19).

Se dispor a conceber a verdade do Ser sem associá-la ao conceito metafísico da


exatidão exige disciplina e treino, já que a sociedade ocidental não está familiarizada ao
exercício do silêncio de pressupostos, antes, tenta explicar e comprovar a tudo, até mesmo os
mistérios inerentes à religião.

[...] um pensamento que medita surge tão pouco espontaneamente quanto o


pensamento que calcula. O pensamento que medita exige, por vezes, um grande
esforço. Requer um treino demorado. Carece de cuidados ainda mais delicados do
que qualquer outro verdadeiro ofício. Contudo, tal como o lavrador, também tem de
saber aguardar que a semente desponte e amadureça (HEIDEGGER, 1959, p. 14).

Mas por mais que isso envolva a perseverança, demonstrada na analogia do semeador
que aguarda o tempo oportuno da meditação acontecer, é necessário reconhecer o vazio de
pensamento que pode permear esse processo. Heidegger (1959) continua dizendo que “só
podemos tornarmo-nos pobres-em-pensamentos ou mesmo sem-pensamentos em virtude de o
homem possuir, no fundo da sua essência, a capacidade de pensar, o espírito e a razão, e em
virtude de estar destinado a pensar” (HEIDEGGER, 1959, p. 12), ou seja, “qualquer pessoa
pode seguir os caminhos da reflexão à sua maneira e dentro dos seus limites” (HEIDEGGER,
1959, p. 14). Mesmo que os adeptos da igreja Universal sejam pessoas do estrato mais pobre
36

ou inculto, isso não os torna incapazesde exercerem o pensamento meditativo, talvez o fator
restritivo esteja na fé técnica da instituição.
Entretanto, o perigo não está necessariamente no mundo estar impregnado cada vez
mais pela técnica e o seu modo de ser vigente do pensamento calculador, a nocividade maior
se instala na escassez de meditação do homem em não pensar o sentido de ser frente a todas
essas coisas. Pois, como propõe Heidegger (1959), só o pensamento meditativo é capaz de
aproximar o que a primeira vista parece inconciliável: acolher o mundo técnico e seus
recursos, mas manter-se na vigilância de que isso não é tudo, lidando como ele chama, de
“serenidade com as coisas”, enxergando com humildade o quanto o mundo técnico também
modifica o homem.

Por isso o importante é salvar essa essência do homem. Por isso o importante é
manter desperta a reflexão. Porém - a serenidade para com as coisas e a abertura ao
mistério (nos mantermos abertos ao sentido oculto no mundo técnico) nunca caem
do céu. Não são frutos do acaso. Ambas medram apenas de um pensamento
determinado e ininterrupto (HEIDEGGER, 1959, p. 25-26).

Nesse pensamento determinado e ininterrupto o filósofo faz uma revisão da filosofia, a


fim de entender pelos pensamentos articulados desde então como se construiu o modo de ser
metafísico, já que uma forma de pensar é também uma forma de ser (HEIDEGGER, 1981).
Ao seguir seus passos, tem-se em vista no próximo capítulo uma breve revisão dos
fundamentos marcantes da teologia cristã, que passa pela patrística e escolástica, a fim de
compreender a influência de tal arcabouço teórico nos dogmas Iurdiano, colocando em prática
o próprio pensamento meditativo ao pensar o sentido do ser Universal do Reino de Deus.
Como pontua Heidegger ([1927] 2012) no parágrafo seis de Ser e Tempo, a tradição por vezes
subtrai a conduta, em um legado de posturas constantemente repetidas e por isso tradicionais,
obstruindo a maneira autêntica e legítima de ser, mas é pelo viés da meditação que é possível
confrontar a tradição e se abrir a novas oportunidades.
Apesar de propiciar novas oportunidades, tal pensamento não tem a pretensão
prepotente de novas ações. O homem está sempre em busca de um novo conhecimento para
fazer algo a partir dele, contrariamente, é o próprio pensamento meditativo que faz algo com a
gente, não a maneira da técnica planetária e o pensamento calculador, mas criando uma
disposição na gratuidade da reflexão que abre sulcos para novas sementes serem plantadas e
germinarem.
37

2 CAPÍTULO 2: O DESENVOLVIMENTO DA TÉCNICA NA TEOLOGIA

A necessidade do controle atesta justamente o poder da interpelação produtora12,


revela o reconhecimento deste poder, trai a impotência do agir humano para dominá-
lo, mas contém, ao mesmo tempo, um aceno para, mediante a reflexão, nos
inserirmos no mistério ainda velado do poder [...]. Uma tal meditação não pode ser
realizada através da atual Filosofia ocidental-européia, mas também não sem ela,
quer dizer, sem que se busque descobrir um caminho próprio, pela renovada
conquista da tradição filosófica (HEIDEGGER, 1972, p. 19).

Ao que parece, não é possível se dispor a valer-se da meditação como via alternativa
do pensamento calculador, se não estiver disposto a compreender as cargas de influências que
determinam a técnica planetária. Compreender o caminho que o pensamento percorreu para
chegar até aqui, passando pela Filosofia e Teologia, demarcadas pelas tintas da Metafísica, é
exercer a meditação e abrir trilhas para a possibilidade do resgate do Ser. Na citação acima,
ele aponta que tal meditação não pode usar as mesmas referências de reflexão usadas até
então pela vigente Filosofia, mas é necessário aproximar-se desta Filosofia a fim de
desconstruir a sua tradição. Essa desconstrução não tem o intuito de desvalidar a tradição, mas
de desvincular-se de respostas já dadas para chegar às origens, compreendendo de onde ela
recebe a sua determinação. A tradição só é uma realidade porque o ser é historicidade, como
Heidegger ([1927] 2012) explana a seguir:

Explicitamente ou não, a presença13 é sempre o seu passado e não apenas no sentido


do passado que sempre arrasta ‘atrás’ de si, desse modo, possui, como prioridades
simplesmente dadas, as experiências passadas que, às vezes, agem e influem sobre a
presença. Não. A presença ‘é’ o seu passado no modo de seu ser, o que significa, a
grosso modo, que ela sempre ‘acontece’ a partir de seu futuro. Em cada um de seus
modos de ser e, por conseguinte, também em sua compreensão de ser, a presença
sempre já nasceu e cresceu dentro de uma interpretação de si mesma, herdada de
tradição. De certo modo e em certa medida, a presença se compreende a si mesma de
imediato a partir da tradição. Essa compreensão lhe abre e regula as possibilidades
de seu ser. Seu próprio passado, e isso diz sempre o passado de sua ‘geração’, não
segue, mas precede a presença, antecipando-lhe os passos (HEIDEGGER, [1927]
2012, p. 57-58).

Ele continua explicando que a tradição por vezes esconde o seu legado, ao entregar o
que é legado como óbvio, como o caminho mais evidente, furta o ser do questionamento para
aquilo que já está posto, ofuscado pela convicção da inutilidade de compreender suas origens.
“Caso a questão do ser deva adquirir a transparência de sua própria história, é necessário,
então, que se abale a rigidez e o enrijecimento de uma tradição petrificada e se removam os
entulhos acumulados” (HEIDEGGER, [1927] 2012, p. 60-61). Tal desconstrução não se

12
Em outras versões como “interpelação provocadora”, refere-se à cadeia de ações baseada no controle e cálculo
técnico.
13
Dasein ou ser-aí.
38

centra no passado, antes, volta-se para o hoje, enquanto uma intenção de circunscrever as suas
possibilidades, que podem estar soterradas pelo peso da tradição (HEIDEGGER, [1927]
2012).

Para nós a medida para o diálogo com a tradição historial é a mesma, enquanto se
trata de penetrar na força do pensamento antigo. Mas nós não procuramos a força no
que foi pensado, mas em algo impensado, do qual o que foi pensado recebe seu
espaço essencial. Mas somente o já pensado prepara o ainda impensado, que sempre
de modos novos se manifesta em sua superabundância. A medida do impensado não
conduz a uma inclusão do anteriormente pensado num desenvolvimento e
sistemático sempre mais altos e superadores, mas exige a libertadora entrega do
pensamento tradicional ao âmbito do que dele já foi e continua reservado. Este
passado-presente perpassa originalmente a tradição, constantemente a precede, sem,
contudo, ser pensado propriamente e enquanto o originário (HEIDEGGER, 2006, p.
58).

Nesse retorno a tradição, Martin Heidegger aponta que o espanto com o ‘ser’ estava
preservado nos pensadores pré-socráticos, como exemplifica Heráclito14 de Éfeso, em seus
fragmentos. E qual é a característica que diferencia tais pensadores? Além de reconhecer a
ambiguidade entre identidade e diferença, e manter a tensão incessante do real, sustentavam
que na origem, ser e pensar pertence um ao outro.

Eles falam do real, das coisas que nos cercam, como de uma paisagem que se
apresenta sempre através de dois âmbitos: um, o mais secreto, escondido, obscuro,
que faz brotar de dentro de si mesmo; um outro que se revela, que faz visível. É
como se esses pensadores dissessem que toda coisa, tudo aquilo que é, nunca está
sozinho, no sentido de algo encerrado em si mesmo, mas sempre o é junto a uma
outra coisa, em sintonia com a alteridade, com a qual tanto se relaciona quanto se
opõe, constituindo, assim, a um só tempo, uma identidade e uma distinção
(MICHELAZZO, 1999, p. 85).

Os pensadores usavam a figura de dois deuses da mitologia grega para ilustrar a


condição trágica do humano: Dionísio, que representa a noite/obscuridade, o impulso, a
aparência, a exaltação; e Apolo, que por sua vez representa o dia/luminosidade, o equilíbrio, a
verdade, a impassibilidade (MICHELAZZO, 2001). É justamente essa fusão entre essas duas
figuras, com suas respectivas particularidades que compõe o homem e sua realidade. “Ter que
ser indivíduo sem poder se separar dos outros, ou ter que ser os outros sem perder sua
individualidade” (MICHELAZZO, 2001, p. 56).
O fato é que começa a emergir um novo modo de pensar, consolidado principalmente
por Platão, que acreditava que os contrastes apresentados até então como perspectivas de uma
única situação, seriam fatos discrepantes, efetivando a cisão presente principalmente na

14
Ver Heráclito de Martin Heidegger, 2002.
39

Alegoria da Caverna15: sensível, que representa a emoção, o mito, a transitoriedade, a


aparência; versus, o supra-sensível, que representa a razão, o conhecimento, a permanência, a
verdade. Com essa ruptura, se estabelece a crença de que o pensamento tem o poder de
segurar, de algum modo, o ser das coisas. “Se o pensamento não pode reter os entes sensíveis
(transitórios e ilusórios como um mero sonho), por causa da sua impermanência, ele pode,
contudo, retê-los na ideia, na noção, no conceito – todos supra-sensíveis [...]”
(MICHELAZZO, 2001, p. 59).
Na prerrogativa de se manter no lado Apolínico, ou depois denominado supra-
sensível, toma-se por inferior as características Dionísica ou sensíveis, visando um mundo de
vida sem morte, de verdade sem mistério, de luz sem sombras. O conceito de
“transcendência” foi ganhando forças, para expressar a transposição do homem prisioneiro
das ilusões catapultado para o homem criador dos ideais. Assim o padrão dicotômico entre
sensível em oposição ao supra-sensível, bem como, o traço do controle que começa a
despontar pela eleição da referência supra-sensível como a matriz, desencadeia a
absolutização do ente.

O supra-sensível ‘representa a entidade do ente de duas maneiras: de um lado, (...)


no sentido dos traços mais gerais [...]’, isto é, diz respeito àquelas ideias que detêm
as noções ou os conceitos mais amplos e genéricos sobre a entidade do ente e, ‘de
outro (...) no sentido do ente supremo e por isso divino [...]’, ou seja, refere-se, neste
caso, apenas a uma única ideia, a ideia das ideias, o ente dos entes, o ente número
um, isto é, o protótipo, o único, o maior, a causa primeira e universal de tudo aquilo
que vem a ser o que ‘é’ (HEIDEGGER, 1969, p. 76 apud MICHELAZZO, 1999, p.
40-41).

Essa é a Metafísica, um projeto de permanência, controlado pelas normas do um como


princípio fundamental, que ignora a diferença e por isso provoca um “esquecimento do ser”,
já que o ser se esconde frente à apreensão do ente. Ou como sugere Benedito Nunes (2016),
“metafísica invoca uma ordenação a princípios superiores ou a um só princípio ordenador”
(NUNES, 2016, p. 86). O ser que propõe o reconhecimento de várias possibilidades e que
concilia as diferentes faces de um mesmo fenômeno torna-se embotado, e o pensamento
meditativo, enquanto aquele que pensa o sentido do ser fica escasso.

Toda construção metafísica pretende, portanto, alcançar uma espécie de Sophia


superior. Para Heidegger, esta sophia, ‘ao contrário daquela que acontece lá no
interior da caverna, é caracterizada pelo desejo de ultrapassar as coisas
imediatamente presentes para encontrar um ponto de apoio no Permanente’. Cultivar
uma proximidade e uma amizade (philia) junto a esta sophia situada fora da caverna
seria, então, a tarefa da philo-sophia. Deste modo, a filosofia ocidental, segundo a
sua origem, não é, portanto, uma simples busca em direção a uma sabedoria

15
Ver a República de Platão.
40

qualquer, mas um modo de investigar que possui um propósito e uma direção bem
determinados, qual seja, a de ter acesso àquela sabedoria mediante duas condições
básicas: apreender a entidade do ente (ón), como ideia, noção, conceito – caráter
metafísico; e fundar sua construção no um, como ideia suprema, Deus (theion) –
caráter teológico. Estas duas condições, como traços essenciais da filosofia
ocidental, Heidegger os reuniu numa única palavra: onto-teo-logia (HEIDEGGER,
1968, p. 158-159 apud MICHELAZZO, 1999, p. 42).

O homem medieval, influenciado por Platão e Aristóteles, vai buscar o domínio de


forma indireta, ao se justificar que sua intenção está em ser dominado pelo Espírito Santo, na
intenção de se aproximar do Deus todo-poderoso, assim alcançando a transcendência
metafísica. Seu instrumento para galgar o paradigma racional e por isso verdadeiro, do supra-
sensível, era a Filosofia que estava a essa altura ainda imbricado com a Teologia, e é
justamente essa fusão que Heidegger vai denominar de onto-teo-logia. “A ontologia, porém, e
a teologia são ‘logias’ na medida em que exploram o ente enquanto tal e o fundam no todo.
Elas prestam contas do ser, enquanto fundamento do ente. Prestam contas ao logos [...], quer
dizer, à lógica do lógos” (HEIDEGGER, 2006, p. 65).
O filósofo contemporâneo José Carlos Michelazzo (1999), propõe que a distinção
entre evangelho e teologia, postulada por Heidegger, ajudam a entender a passagem do fim do
período antigo ao aparecimento do mundo medieval. Ele explica a distinção de suas
características:

O primeiro, segundo o filósofo refere-se a um conjunto de ensinamentos que traz em


seu bojo uma interpretação da vida do homem sob uma perspectiva fática, onde o
tempo da existência humana é tomado no seu sentido kairológico, isto é, ele se
desdobra dentro de um acontecer histórico humano que possui traços de
imprevisibilidade e subtaneidade. A teologia, por seu turno, é a interpretação dos
evangelhos à luz do saber metafísico que procura lhe assegurar justificação
filosófica, atribuir validade aos seus ensinamentos e onde o tempo histórico é
interpretado no sentido cronológico, isto é, a existência humana acontece e se
desenvolve dentro de um âmbito de certeza e previsibilidade (MICHELAZZO,
1999, p. 49-50).

Enquanto o mundo antigo estruturava sua cosmovisão no evangelho, a Idade Média


concebe a Teologia, que tem por arcabouço teórico o paradigma metafísico. A Bíblia, e os
ensinamentos do evangelho foram também engessados por enunciados e dogmas que
compunham a doutrina da Igreja, o ser mais uma vez é ofuscado pelo domínio do ente. A
estrutura do pensamento medieval, consolidado pelo movimento patrístico, entre os séculos II
e VIII, representado principalmente por Santo Agostinho de Hipona, e o movimento
escolástico, com seu ápice no século XIII, representado principalmente por São Tomás de
Aquino, foram preponderante para a edificação da teologia cristã. Essa mesma estrutura
41

arregimentou argumentos a fim de compor a armação do corpo dogmático no que tange aos
valores internos da Igreja, mas também ao aspecto apologético da fé (MICHELAZZO, 1999).
Ora, se Deus era tomado como “a causa motora” como caracteriza São Tomás de
Aquino, o “Deus creator”, como postula Santo Agostinho, entendido como o ponto primeiro
e universal, o homem, enquanto filho de Deus, também conquista uma condição especial.
Essa posição privilegiada, que compreende o homem dicotomizado como possuidor de um
corpo perecível, ao âmbito do sensível, mas diferentemente das demais criaturas, possui uma
alma racional perene, vinculada ao âmbito supra-sensível, vai abrindo espaço para a
efetivação do Humanismo.

O início da metafísica, ao que se observa no pensamento de Platão é, ao mesmo


tempo, o início do ‘humanismo’. Esta palavra deve aqui ser pensada de modo
essencial, ou seja, em sua acepção mais ampla. ‘Humanismo’ designa, então, o
processo – ligado ao início, ao desenvolvimento e ao fim da metafísica – pelo qual o
homem, em perspectivas cada vez diferentes, mas sempre conscientemente, se
coloca em um centro do ente, sem ser ainda, ele mesmo, para tanto o Ente supremo.
O ‘homem’ quer dizer aqui: seja a humanidade ou uma de suas culturas, seja o
indivíduo ou uma comunidade, seja o povo ou um grupo de povos, trata-se sempre
[...] de permitir ao ‘homem’ [...] de libertar suas possibilidades, de chegar à certeza
de sua destinação e de colocar-se a salvo de sua ‘vida’. Isto que tem lugar como
definição dum comportamento ‘moral’, ou como libertação de uma alma imortal,
desenvolvimento de poderes criativos, desabrochamento da Razão, cultura da
personalidade, despertar do sentido da comunidade, disciplina ascética ou, enfim,
união apropriada de quaisquer um desses ‘humanismos’ ou deles todos. Gravita-se,
em cada um deles, em torno do homem de uma maneira metafisicamente
determinada e sobre órbitas mais ou menos largas (HEIDEGGER, 1968, p.160-161
apud MICHELAZZO, 1999, p. 48).

Mesmo que séculos tenham se passado da Idade Média até os dias de hoje, e o mundo
tenha sofrido tantas mudanças, ainda são perceptíveis resquícios de características elencadas
na teologia medieval dentro da teologia Iurdiana. Destaca-se: a eleição de um princípio
ordenador, renegando as diferenças, e por isso obstruindo o ‘ser’, enquanto expressão de
vastas possibilidades; enrijecimento do evangelho ao estabelecer um corpo doutrinário que
prevê certeza e controle; um cristianismo homogeneizado com o humanismo, pois o “culto
centrado no ‘homem de Deus’” (FERRARI, 2007, p. 113) é uma forte característica litúrgica
Iurdiana. Sua plausibilidade está em ambos terem o mesmo fundamento, o paradigma
metafísico.

Nesse sentido amplo, também o Cristianismo é um humanismo de vez que, na


doutrina cristã, tudo se dirige à salvação (salusaeterna) do homem, e a história da
humanidade aparece dentro da história da salvação. Por mais diversas que sejam,
segundo suas finalidades e seus fundamentos, quanto aos modos e meios de suas
realizações específicas ou consoante a forma de suas doutrinas, essas espécies de
humanismo, na realidade, coincidem no fato de todas elas determinarem a
humanitas do homo humanus a partir de uma interpretação já assente da natureza, da
42

história do mundo, do fundamento do mundo, isto é, a partir de uma interpretação já


assente do ente em sua totalidade. Todo humanismo ou se funda numa metafísica ou
se converte a si mesmo em fundamento de uma metafísica (HEIDEGGER, [1967]
2009, p. 37).

Todo o real está centrado no homem, o qual inicialmente se tornara próximo de Deus
para transcender e conquistar o supra-sensível, depois foi crendo que ele mesmo poderia se
tornar Deus, nem que fosse de alguma área, ao que seus talentos se transformaram em
potência e divindade. Semelhante a mitologia grega, o homem moderno foi se transmutando
em semi-deus. Nietzsche postula que na cultura medieval houve um niilismo negativo,
niilismo do homem com relação a Deus. Enquanto que na época moderna assiste-se um
niilismo reativo, do homem ter poder para esvaziar a Deus (informação verbal)16.

Pode-se dizer que o pensamento moderno tem a sua fundação com o filósofo francês
René Descartes. Para Heidegger, ao contrário do que se poderia imaginar, esse
pensamento não significa uma ruptura radical com a tradição clássica e medieval, e
se ele apresenta perspectivas novas que justifiquem caracterizá-lo como um outro
modo de pensar, suas raízes, contudo, estão assentadas no pensamento que o
precedeu. Nesse sentido, ‘todo conhecedor da Idade Média percebe que Descartes
‘depende’ da escolástica medieval’, e o seu pensamento representa a terceira grande
variação da interpretação do ser na história da filosofia, como metafísica. Assim, a
interpretação dual da realidade, ou seja, os âmbitos do sensível e do supra-sensível
que iniciam com Platão e atravessam a Idade Média têm sua continuidade com
Descartes que denomina cada um deles de res. Àquele âmbito que nomeia o supra-
sensível ajuntou, Descartes o adjetivo cogitans, e àquele que nomeia o sensível,
anexou extensa (HEIDEGGER, 1988, p. 54 apud MICHELAZZO, 1999, p. 58).

Na transição dessa “terceira grande variação da interpretação do ser”, concebida por


Descartes, a Filosofia e a Teologia passam a tomar distância e trilhar caminhos independentes.
“Pensar e saber vieram a se distinguir da fé” (HEIDEGGER, 1978, p. 212). Ainda que
inicialmente Deus estivesse presente na ontologia cartesiana, enquanto o ente supremo que
fundamenta tanto o res extensa e o res cogitans, com o passar do tempo, “a razão humana
predomina e se impõe” (HEIDEGGER, 1978, p. 212), assim, a relação entre Deus e o homem
vai se abalando, e dando espaço para que a racionalização torne-se o instrumento de
transcendência pela perspectiva do pensamento moderno (MICHELAZZO, 1999).
A partir daqui ‘ser’ é interpretado por res (coisa). Todo o real, então, é dividido em
duas categorias: res cogitans, o sub-jectum que sub-jaz no pensamento e na razão do homem;
e res extensa, o ob-jectum, tudo aquilo que está lançado fora do homem” (MICHELAZZO,
2001, p. 60). A ontologia cartesiana inaugura o conceito de sujeito e ratifica a posição do
homem como centro do real, assentando as bases para o antropocentrismo moderno. “O

16
Aula ministrada pela Dra. Daniela Taibo Ribeiro Xisto, no grupo de estudos DEVIR em Santos/SP em
outubro/2017.
43

homem passa a ser aquele existente no qual se funda todo o existente à maneira de seu ser e
de sua verdade. O homem se converte em meio de referência como tal” (HEIDEGGER, 1979,
p. 78-79 apud MICHELAZZO, 1999, p. 61).
Além disso, com o avanço das ciências e o refinamento do pensamento lógico na
época moderna, a certeza e o cálculo adquirem status de instrumento visando o asseguramento
e controle, na exigência de método e precisão. A fim de estabelecer um procedimento que
pudesse repetir tal padrão de controle, com uniformidade, garantindo a neutralidade científica,
quantas vezes fossem necessárias, foi criada a Técnica.

Se pensarmos a técnica a partir da palavra grega ‘téchne’ e de seu contexto, técnica


significa: ter conhecimentos na produção. ‘Téchne’ designa uma modalidade de
saber. Produzir quer dizer: conduzir à sua manifestação, tornar acessível e disponível
algo que, antes disto, ainda não estava aí como presente. Este produzir, vale dizer o
elemento próprio da técnica, realiza-se de maneira singular, em meio o Ocidente
europeu, através do desenvolvimento das modernas ciências matemáticas da
natureza. Seu traço básico é o elemento técnico, que pela primeira vez apareceu, em
sua forma nova e própria, através da física moderna (HEIDEGGER, 1972, p. 14).

A técnica é um instrumento poderoso para a dominação da realidade, e mesmo que


tenha se originado no Ocidente europeu, com um significado específico para as ciências
matemáticas, sua pretensão está em ser universal. Em uma época em que a fluência torna-se
negativa, e o absoluto demonstra confiança e estabilidade, a intenção centra-se em extrair as
assimetrias buscando a uniformidade. Essa mesma técnica que antes, parte da física, foi se
estendendo como paradigma também para outras áreas, inclusive humanas, como por
exemplo, na psicologia, medicina, e até na religião. Então, a técnica propõe um padrão
uniforme e o exercício é apenas repetir seus preceitos, porque como isso já foi testado e
aprovado diversas vezes, tal pensamento calculador garante o controle do sucesso.
Sendo assim, será que a escolha do nome da igreja, Universal do Reino de Deus, tem
alguma conotação da técnica planetária proposta por Heidegger?

A uniformidade de tudo o que está sendo tem origem no vazio provocado quando se
deixa o ser. Visa apenas assegurar, por meio dos cálculos, sua própria ordem, a qual
está subordinada à vontade de querer. Por toda parte, antes de qualquer diferença
nacional, impera a uniformidade das lideranças para as quais toda forma de governo
não passa de um instrumento de hegemonia entre outros. Porque a realidade consiste
na uniformidade do cálculo planificador, o homem também deve passar a
uniformizar-se para dominar o real. Um homem sem uni-forme dá hoje a impressão
de irrealidade, de um corpo estranho ao real. Deixado exclusivamente às expensas
da vontade de querer, tudo o que é e está sendo se espalha numa indiferenciação
apenas controlável pelos processos e instituições obedientes ao ‘princípio de
desempenho’. Esse princípio parece ter como consequência uma hierarquia. Mas na
verdade o seu fundamento é a falta de hierarquia, uma vez que a meta de todo
desempenho é o vazio uniforme do abuso de todo e qualquer trabalho, com vistas ao
asseguramento das ordens. A indiferenciação gritante, que resulta desse princípio,
não se identifica de forma alguma com um mero nivelamento em que apenas se
44

desfazem hierarquias vigentes até então. A indiferença do abuso total surge de uma
não-permissão ‘positiva’ de qualquer hierarquia, em conformidade com o primado
do vazio de todas as metas. Essa indiferenciação testemunha a consistência já
assegurada da ausência de mundo por se deixar o ser (HEIDEGGER, 2002, p. 84).

O nome da igreja, Universal do Reino de Deus, aliado ao projeto de expansão da


instituição, ganha um peso semântico do pensamento técnico calculador. Como aponta
Heidegger (2002), tal universalidade é provocada pelo esquecimento do ser, a escassez da
meditação. Na proposta de crescimento mundial, em implementação de uma nova igreja
Universal, as diferenças nacionais ou simplesmente regionais são negligenciadas, a fim que se
impere a uniformidade da liderança. Silveira Campos (1997) aborda a transição da igreja
“local” que se tornou “Universal”, elencando os dilemas suscitados nesse ousado afã:

Essa expansão, além de despertar hostilidades locais, gerou problemas quanto aos
recursos humanos. Aparentemente, o emprego de pastores nativos para administrar
essas igrejas, é visto por Edir Macedo como um risco de futura desagregação da
Igreja. Pelo menos para os postos mais importantes como pastorado efetivo dos
maiores templos, administração dos jornais, estações de rádio e programas de
televisão, assim como para o bispado, têm-se nomeado brasileiros. Por outro lado,
emprega-se o rodízio contínuo e a estratégia de ‘desterriotorialização’ dos recursos
humanos para aumentar a dependência dos pastores da organização, técnica
semelhante empregada pelas multinacionais. [...] ‘o território é, antes de tudo, o
espaço no qual se enraíza nossa identidade (...) a desterritorialização (...) é o
conjunto dos mecanismos, que consistem em separar o indivíduo de suas origens
sociais e culturais, em destituí-lo de sua história pessoal para reescrevê-la no código
da organização (...)’ (MAX PAGÉS et all, 1987, p. 119 apud CAMPOS, 1997, p.
413-414).

A impessoalidade também é determinante para se exercer a técnica, já que quanto mais


impessoal for uma técnica mais universal ela é. Ao fazerem uso do recurso de
“desenraizamento”17 dos pastores, separando os mesmos do seu local de origem para mantê-
los em dependência da organização, mantêm também a impessoalidade da gestão. Não são
raros os casos em que um pastor assume uma igreja, longe de seus familiares e amigos, e ao ir
conquistando afinidades e construindo relações, é logo transferido para outra região a mando
de autoridades superiores (MARIANO, 1999). Relatos como esses não sugerem a preservação
da impessoalidade?
É interessante notar a desconfiança presente na direção da organização. Tanto o receio
que pastores nativos administrem as unidades da Igreja Universal em seus respectivos países,
bem como o receio que pastores migrados para assumir a IURD em outra região, destaca-se,
longe de sua familiaridade, consolide vínculos e se considere capaz de dirigir a igreja com
autonomia. Se no capítulo anterior ficou claro a vigência do ‘poder’como maior expressão da

17
Heidegger usa o termo “desenraizamento” como expressão da crise do habitar. “Habitar é, porém, o traço
essencial do ser de acordo com o qual os mortais são” (HEIDEGGER, 2002, p. 140).
45

tonalidade afetiva iurdiana, o medo se mostra aqui apenas como a outra face da mesma
moeda. Heidegger (2002) escreve como o poder se avizinha da desconfiança:

Na forma de uma realização do que se ambiciona, a vontade já é em si mesma o


acabamento da ambição. Nessa forma, o que se ambiciona é colocado
essencialmente no conceito, ou seja, como o que se sabe e conscientiza numa re-
presentação universal. A consciência pertence à vontade. A vontade de querer é a
consciência suprema e incondicional do asseguramento calculador de todo cálculo
de si mesma. Por isso, pertence-lhe em todos os níveis a procura contínua e
incondicionada dos meios, dos fundamentos, dos obstáculos, dos ajustes de contas,
do jogo de metas, da ilusão, das manobras, do inquisitorial. A vontade de querer
desconfia, portanto, até de si mesma, ficando sempre em estado de alerta e de
exclusiva concentração para assegurar o seu próprio poder (HEIDEGGER, 2002, p.
77).

Mas se o nome da instituição fala do significado de romper as fronteiras culturais e se


estabelecer como uma igreja de fato universal, seu embasamento está em se posicionarem
como detentores da verdade universal, que desbanca todas as outras culturas e religiões, como
no repercutido episódio “chute na santa”18.

Tendo em vista o caráter rotineiro de tais práticas, causa estranheza que um bispo da
Universal tenha, em dois programas da rede Record, desferido socos e chutes numa
imagem da padroeira do Brasil, protagonizando o maior incidente religioso na
história recente do país, para combater a idolatria católica. Pois as práticas da
Universal mencionadas encerram crença idêntica à contida no ato de cultuar imagens
de santos (negada pela cúpula da CNBB, mas efetuada largamente pelos católicos):
a crença de que Deus age através de objetos a Ele consagrados por seus
intermediários terrenos. Se é assim, por que o bispo da Universal ironizou a
desfuncionalidade e impotência da imagem da santa católica? Ele o fez porque
defende a exclusividade de sua igreja na intermediação do poder divino e, por
consequência, na dotação de poderes sobrenaturais a objetos. A desqualificação da
concorrência, nesse caso, teve menos a ver com estreiteza dogmática do que com
ação estratégica na disputa pelo mercado religioso (MARIANO, 1996, p. 129-130).

Enquanto os romanos conceberam a palavra verdade como ‘veritas’, conforme


apontado no capítulo anterior, sua tradução estava calcada na ‘orthótes’ grega, que significa
‘exatidão’. Anos se passaram e Descartes interpretou a ‘verdade’ como certeza, para expressar
não apenas a garantia do conhecimento como a posse de um saber assegurando a
representação, destituindo a dúvida já que esse pensamento calculador é admitido como claro
e distinto (MICHELAZZO, 1999). É nesse esteio que a Igreja Universal compreende a
verdade, e justamente por tomá-la como concordância (homoíosis) ou adequação
(adaequatio), que se considera capaz de possuir a verdade.

18
Ver ALMEIDA, Ronaldo. Dez anos do ‘chute na santa’: a intolerância com a diferença. In: SILVA, Vagner
Gonçalves da (Org). Intolerância religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro.
São Paulo: EDUSP, 2015.
46

A exatidão da vontade de querer é o asseguramento completo e incondicional de si


mesma. O que para ela é querer mostrar-se correto, exato e em ordem porque a
própria vontade de querer permanece a única ordem. Nesse auto-asseguramento da
vontade de querer perde-se a essência originária da verdade. A correta exatidão da
vontade de querer é pura e simplesmente o não-verdadeiro. No âmbito da vontade de
querer, a exatidão do não verdadeiro possui uma irresistibilidade própria e única.
Mas a correção do não-verdadeiro, que como tal mantém-se encoberto, é ao mesmo
tempo o que há de mais estranho na distorção da essência da verdade. O correto e
exato domina o verdadeiro e marginaliza a verdade. A vontade do asseguramento
incondicional faz aparecer a insegurança em todos os níveis (HEIDEGGER, 2002, p.
76-77).

Retomando o fio condutor histórico, Heidegger propõe uma marcha em ambos os


lados: partindo do ser da história, bem como, partindo da história do ser (NUNES, 2016).
Haja vista que é válido preservar o pensamento meditativo, mesmo que meditação esteja mais
associado a contemplação inerte na perspectiva do senso comum, para Heidegger isso sugere
o contrário, ele diz: “o pensar não é inatividade; é ele mesmo o agir (handeln) que, em si
mesmo, está em diálogo com o destino do mundo (weltgeschick)” (HEIDEGGER, 2009, p.
37), recorre-se a tradição histórica a fim de descobrir o que ela lega repondo a liberdade para
decidir o que fazer com ela (CRITELLI, 2011).
Benedito Nunes resume bem o que se tentou abordar até aqui sobre o legado histórico,
acrescentando novos elementos à reflexão:

As variações do ente anteriormente referidas inauguram ‘épocas’ e correspondem a


tradições e práticas, a correntes formadoras e a sínteses de orientação ética, enfim, a
linhas de força da cultura ocidental. Eidos e ousia se concetam com a cultura grego-
latina e com a tradição do pensamento platônico-aristotélico, formando, também, o
quadro da justificação metafísica ‘da crença bíblica e cristã da criação [...]’ enquanto
o sujeito pensante como fundamento se conecta com a primazia antropológica,
afirmativa da soberania da humanidade do homem, ratificando a postulação moderna
do humanismo, confirmada pela indagação crítica kantiana, e da razão calculadora,
apanágio da certeza do Cogito, estendida do sujeito pensante à representação das
coisas que resistem à prova dos nove da evidência matemática. Sem essa soberania
da humanidade do homem não poderíamos compreender que o saber tenha se
tornado vontade de potência, assim conduzindo a vontade de verdade, ambas,
vontade de verdade e vontade de potência, sublimadas no fastígio da técnica,
planetariamente expansiva, e que traria consigo, como seu bem de raiz, pois que essa
expansividade radica numa intrínseca necessidade do próprio ser, a plenitude do ente
e, por conseguinte, em máximo grau, o esquecimento do mesmo ser, com a sua corte
escatológica [...] (NUNES, 2016, p. 87-88).

As diferentes épocas têm algo em comum: a escassez do ser em domínio do ente,


demonstrada pela ideia (eidos) platônica, essência (ousia) aristotélica, sujeito cartesiano, e
finalmente, vontade de potência nietzschiana. Ora, Nietzsche é tratado por Heidegger como o
último pensador metafísico, porque foi ele o primeiro a apontar o declínio dos ideais de
mundo do supra-sensível (a razão, a verdade, a moral, o belo, entre outros) ao homem
contemporâneo (NUNES, 2016). Com o desgaste dos valores e o enfraquecimento das
47

referências, a sociedade atual é caracterizada por sua liquidez19. Em contrapartida a perda dos
parâmetros antigos, o homem moderno se vangloria constantemente da construção de sua
sociedade, ignora o fator do legado e considera que está ‘fazendo nova todas as coisas’20, em
constatação ao rompimento da tradição Zaratustra afirma que Deus morreu.
Porém, mesmo que Nietzsche tenha tido a sensibilidade de constatar o niilismo do
paradigma metafísico, ele ainda é tido como um pensador metafísico por seu projeto de
ultrapassar o niilismo apenas invertendo os valores do platonismo, ao qual, elevou o sensível,
antes marginalizado, à condição de supra-sensível, valorizando as emoções; e considerando o
supra-sensível platônico decadente. Essa inversão estava baseada na força do além-do-homem
(übermensch), também conhecido como, vontade de potência (MICHELAZZO, 2001).
A vontade, seja ela vontade de potência, vontade de querer, vontade de verdade,
assume a posição de princípio ordenador, tão caro a metafísica. Segundo Heidegger, a
metafísica encontrava-se então em suas últimas possibilidades, no radicalismo e por isso em
seu acabamento, tendo o domínio absoluto do sujeito enquanto expressão máxima do
antropocentrismo moderno (MICHELAZZO, 2001). Heidegger (2002) vai dizer que esse
mesmo antropocentrismo em ascensão ao retraimento do ser, traz em seu bojo o consumo
desenfreado, como um sintoma do ‘empoderamento’ das vontades e da crença de ser o
homem o “senhor do elementar”.

Os indícios de como ultimamente se deixa o ser encontram-se nas proclamações das


‘ideias’ e dos ‘valores’, na vai-e-vem compulsivo da celebração do ‘agir’ e da
necessidade absoluta do ‘espírito’. Tudo isso já está implantado no mecanismo de
mobilização dos processos de ordenamento e organização. Estes já se determinam
em si mesmos pelo vazio propiciado quando se deixa o ser. É no meio desse vazio e
abandono que o homem, ávido de si mesmo, encontra como única saída para salvar a
subjetividade no super-homem o consumo dos entes no fazer da técnica, a que
também pertence a cultura. Sub-humanidade e super-humanidade são o mesmo.
Pertencem uma à outra, da mesma maneira que, no animal rationale da metafísica, o
‘sub’ da animalidade e o ‘super’ da ratio estão insoluvelmente aclopados numa
correspondência. Deve-se pensar aqui sub e super-humanidade metafisicamente e
não como valores morais. Com tal e em decurso disso, o consumo dos entes
determina-se pela mobilização em sentido metafísico, onde o homem se faz ‘senhor’
do ‘elementar’. O consumo inclui o uso regulamentado dos entes, que se tornam
oportunidade e matéria para os desempenhos e sua intensificação. Usa-se, por sua
vez, esse consumo para a utilidade da mobilização. À medida, porém, que a
mobilização só consegue chegar na intensificação incondicional e no auto-
asseguramento, tendo como única meta a falta de meta, o uso se torna abuso
(HEIDEGGER, 2002, p. 79-80).

19
Ver BAUMAN, Zygmunt. O mal estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
20
Referência ao texto bíblico em Apocalipse 21:5.
48

A teologia da prosperidade, base fundamental da Igreja Universal, não sinaliza a


expressão da vontade de potência pela categoria do consumo? Silveira Campos conceitua a
teologia da prosperidade:

Tem se dado o nome de ‘teologia da prosperidade’ a um conjunto de crenças e


afirmações, surgidas nos Estados Unidos, que afirma ser legítimo ao crente buscar
resultados, ter fortuna favorável, enriquecer, obter o favorecimento divino para sua
vida material ou simplesmente progredir (CAMPOS, 1997, p. 363).

Além da igreja Universal ter em alguns de seus templos lojas físicas comerciais, Arca
Center21, em que são vendidos DVDs, livros, CDs, capa para celulares, vestuários, itens de
papelaria e outros tantos tipos de produtos, é a prosperidade o principal produto oferecido aos
crentes-consumidores (CAMPOS, 1997).
Pela hermenêutica Iurdiana, a compreensão de ‘prosperidade’ é extensa: trata da cura e
cuidado com o corpo, como a eliminação de vícios, atenção com a estética, desenvolvimento
corporal; possibilidade em realizar viagens e excursões, ampliando seu status; conquistar um
emprego que proporcione melhor salário, de preferência na condição de chefe ou empresário
(CAMPOS, 1997); sem contar na nova faceta que vem sendo trabalhada recentemente como
expressão da prosperidade, que se trata de possuir um ‘relacionamento blindado’22.
Cada um desses significados de prosperidade são largamente explorados dentro da
Universal através de diferentes correntes ou campanhas: as terças e sextas acontecem o culto
de cura e libertação, com a proposta de “descarrego para a cura do corpo e da alma”, é dado
ênfase a libertação dos vícios e doenças; nas segundas as reuniões estão voltadas para a
prosperidade financeira, em um culto denominado de “sucesso financeiro”, que propõe
ensinar vencer as dificuldades financeiras; a prosperidade relacional é desenvolvida as
quintas, na reunião da “terapia do amor”, com “orientação para a vida amorosa”. Já as
realizações de viagens ficam por conta das caravanas promovidas pela igreja, que tem por
destinos principais: Israel, enquanto excursão internacional, e São Paulo (‘Templo de
Salomão’), enquanto excursão nacional23.
A partir de jargões como “não se contente com a pobreza” ou “você vai determinar e
Deus vai atender” (CAMPOS, 1997), a fé passa a ter uma tônica consumista, e como
Heidegger (2002) expressa, essa matéria torna-se uma oportunidade para o desempenho e
anseio de mobilização tão presente no homem moderno, esvaziado do sentido de ser, escasso

21
Disponível em: <https:// www.arcacenter.com.br>. Consultado em dezembro/2017.
22
Trabalho desenvolvido com casais, por Cristiane Cardoso (filha do bispo Edir Macedo) e seu marido Renato
Cardoso. Disponível em: https://www.casamentoblindado.com – consultado em janeiro/2018.
23
Disponível em: <https://www.universal.org>. Consultado em janeiro/2018.
49

da meditação. É nesse vácuo de meditação ponderada que a figura de líderes salvíficos,


personalidades messiânicas, como o Bispo Macedo, encontram visibilidade. “As instituições
nascem da imperiosa exigência de atendimento das necessidades humanas porque,
necessidades insatisfeitas impulsionam as pessoas em direção a novos ‘gurus’ e outras
promessas de soluções” (CAMPOS, 1997, p. 227).
Zygmunt Bauman (1998), em um diagnóstico da era atual, aponta a ebulição desses
‘gurus’:

Os homens e mulheres pós-modernos realmente precisam do alquimista que possa,


ou sustente que possa, transformar a incerteza de base em preciosa auto-segurança, e
a autoridade da aprovação (em nome do conhecimento superior ou do acesso à
sabedoria fechado aos outros) é a pedra filosofal que os alquimistas se gabam de
possuir. A pós modernidade é a era dos especialistas em ‘identificar problemas’, dos
restauradores da personalidade, dos guias de casamento, dos autores dos livros de
‘auto-afirmação’: é a era do ‘surto de aconselhamento’ (BAUMAN, 1998, p. 221).

Ora, a teologia da prosperidade, que muito se aproxima do paradigma cristão


medieval, mantém elementos importantes que também marcaram o período pré-reforma24,
como a venda de produtos simbólicos, a mercantilização da fé, bem como a figura do
mediador entre deus e o homem, que suplanta toda insegurança (CAMPOS, 1997). Toda essa
estrutura presente na IURD se propaga pela lógica dos dízimos e das ofertas. Uma transcrição
da pregação realizada na ‘Campanha do Cheque da Abundância’, explicita tal lógica na
prática:

Se Deus abençoasse sem que ninguém tivesse que fazer algo em troca, estariam
todos contentes, é ou não é? Mas existe uma lei, é a lei do dar e receber. A lei do
dízimo e da oferta é de Deus, não de homens, pastores, bispos, o Papa. O plantar e
colher, o dar e receber é lei de Deus para os homens. Sem o dar nunca haverá o
receber. Se você quiser ganhar dinheiro tem que trabalhar. Nada é de mão beijada.
Pra receber, precisa dar. O que Deus pede? O dízimo e mais uma oferta. Quando
você dá, pode exigir em troca. Quem não dá desobedece a lei de Deus. A
desobediência é o pecado diante de Deus. [...] Quem quer receber pouco deve dar
pouco. Quem não quer receber nada, não dá nada. [...] Se a pessoa tem muito e dá
pouco, isto não vale nada, isto é um desprezo a Deus. Eu não posso julgar porque
não conheço ninguém, mas Deus conhece. Você deve dar o que for o seu sacrifício e
não as sobras. Deus tem sentimentos, quem despreza a Deus será por Ele
desprezado. Nunca dê o resto para Deus’ (Universal, Santa Cecília, 12.7.89 apud
MARIANO, 1999, p. 168).

Pode-se perceber nesse discurso a sombra da lógica causal metafísica, ao propor


controlar as causas para assim controlar seus efeitos, exercita o pensamento calculador. Mas
apesar da Igreja Universal tratar de maneira aberta sobre os dízimos e ofertas, justifica essa
lógica pela doutrina da “aliança com Deus”. A expressão “aliança com Deus” não é apenas o

24
Reforma Protestante – datado no século XVI.
50

título de um dos bestsellers de Edir Macedo, como também a formulação teológica de que o
homem tem o poder de reconquistar o paraíso perdido se estiver disposto a se tornar um sócio
de Deus (CAMPOS, 1997).

O homem foi colocado na Terra para viver em abundância, sobre a fartura e a


prosperidade. Adão não tinha escassez de água, nem alimentos, e nem precisava
levar Eva, sua mulher, ao médico. Eles eram perfeitos e gozavam da perfeição de
Deus, sem que lhes faltasse absolutamente nada (MACEDO, 1993 apud CAMPOS,
1997, p. 367).

Ele (Jesus) desfez as barreiras que havia entre você e Deus e agora diz – volte para
casa, para o jardim da Abundância para o qual você foi criado e viva a Vida
Abundante que Deus amorosamente deseja para você [...]. Deus deseja ser nosso
sócio [...]. As bases da nossa sociedade com Deus são as seguintes: o que nos
pertence (nossa vida, nossa força, nosso dinheiro) passa a pertencer a Deus; e o que
é d’Ele (as bênçãos, a paz, a felicidade, a alegria, e tudo de bom) passa a nos
pertencer (MACEDO, 1990 apud MARIANO, 1999).

Porém, o aspecto calculador presente na ideologia da prosperidade, em estar sempre


inclinado ao desempenho, vislumbrando conquistar, possuir, com uma visão de mundo em
simetria a interpelação provocadora, desembocando em uma fé-consumista, só é possível
porque a fé Iurdiana é também uma fé-tarefa. O que mais uma vez deixa ver o
antropocentrismo moderno e por isso, o paradigma metafísico como fundamento dessa
instituição. Para Heidegger (2002),“a vontade de querer assume então o discurso da ‘tarefa’.
Não se pensa a tarefa na perspectiva do originário e de sua preservação, mas como a meta
atribuída do ponto de vista do ‘destino’, e que assim justifica a vontade de querer”
(HEIDEGGER, 2002, p. 78).
Ele explica que na tentativa de enobrecer a anarquia das catástrofes, vontade de
querer, o homem adota o discurso da ‘tarefa’, enquanto meta em sua etimologia original
‘além, mais alto’. Em outras palavras, a fim de não parecer debilmente emocional, levado
simplesmente pelos seus desejos, haja vista, que por sua racionalidade recrimina ser alguém
‘inteiramente’ emocional, o homem moderno maquia suas vontades na justificativa de se
impulsionar agora pela tarefa (HEIDEGGER, 2002).
Em outro texto Martin Heidegger (1981, p. 63) esclarece que uma tarefa “dita e
determina a ação que a realiza”, e que no período atual a educação, política e porque não
dizer, até a religião, tem sido tomada como tarefa. E ele dá um exemplo, ao tomar a educação
como tarefa compreende-se seu realizar enquanto ‘instrução, adestramento’, ocultando a
possibilidade de compreender educação como ‘condução’, ou seja, envolvimento afetivo entre
duas existências. Além disso, essa interpretação da educação a partir da tarefa denuncia a
valorização da instrumentalização (HEIDEGGER, 1981).
51

Então, pode-se refletir se a IURD de fato não propõe uma fé-tarefa, que não só dita e
determina suas ações, bem como oculta da fé seu aspecto relacional, existencial, instigando
apenas um caráter instrumental.

Como afirma Macedo, ‘a fé está associada à obediência e está à ação; logo, fé é


ação’. Assim, fé é ação instrumental, meio para atingir determinado fim ou
resultado. Deus prometeu bênçãos, mas para recebê-las o fiel tem de contribuir
financeiramente para demonstrar sua fé, canal exclusivo para restabelecer a
sociedade com o Todo-Poderoso, afastar os demônios e ser agraciado com sua vida
feliz, saudável e próspera (MARIANO, 2004, p. 131).

Considerando a esfera causal do ‘dar para receber’, a fé torna-se uma tarefa, que tem
em vista oobjetivo da prosperidade. Heidegger escreve que “as tarefas que nos solicitam em
nossa atualidade já são previamente definidas, e é em sua prévia delimitação que impõe à
ação como esta deve ser. Uma tarefa é uma obra e toda obra depende de uma ação que a
plenifique” (HEIDEGGER, 1981, p. 63). Mas afinal, o que já está previamente definido? A
estrutura metafísica que foi delineada por todo o curso histórico esboçado brevemente nesse
segundo capítulo. E o que essas tarefas têm de prévia delimitação? O pensamento calculador,
que torna turvo o pensamento meditativo, que poderia ser tão vizinho da fé.
No próximo capítulo há de se tentar aproximar ainda mais do contexto Iurdiano, a
partir do enfoque de três categorias: proclamação, eclésia, parusia; com a chave de leitura
heideggerianapara, por fim, abrir espaço ao aprofundamento dos desdobramentos da técnica
na Igreja Universal pelo parâmetro da escassez da meditação.
52

3 CAPÍTULO 3: UMA LEITURA DO CONTEXTO IURDIANO

A proposta dessa leitura do contexto Iurdiano é estender um olhar e uma escuta


fenomenológica às entrevistas, transcrições de cultos e interpretações dos cientistas da
religião que estudaram a Igreja Universal do Reino de Deus. Na área da Ciência da Religião o
termo ‘fenomenologia’ pode gerar certa resistência, já que está associado a um método etéreo,
como proposto por Rudolf Otto25, entretanto, tomado em seu sentido original, da etimologia
grega phainesthai, ter um olhar e/ou escuta fenomenológica não passa de estar atento àquilo
que se mostra, e consequentemente àquilo que também se esconde.
É exercitar o pensamento meditativo, preservando o espaço da ‘clareira’ do ser. Como
propõe Heidegger:

O substantivo ‘clareira’ vem do verbo ‘clarear’ [...]. Clarear algo quer dizer: tornar
algo leve, tornar algo livre e aberto, por exemplo, tornar a floresta, em determinado
lugar, livre de árvores. A dimensão livre que assim surge é a clareira. O claro, no
sentido de livre e aberto, não possui nada de comum, nem sob o ponto de vista
lingüístico, nem no atinente à coisa que é expressa, com o adjetivo ‘luminoso’ que
significa claro. [...] A clareira é o aberto para tudo que se presenta e ausenta
(HEIDEGGER,1972, p. 30-31).

Heidegger estabelece a diferença entre clareira e o iluminismo, tão característico do


racionalismo, ao usar a analogia de uma floresta, que em meio ao velamento (léthe) das copas
fechadas pelo volume de muitas árvores, tem alguns feixes de luz pela abertura das clareiras.
“O ocultar-se, o velamento, a Léthe faz parte da A-létheia, não como um puro acréscimo, não
como a sombra faz parte da luz, mas como o coração da Alétheia” (HEIDEGGER, 1972, p.
37), o coração da verdade.
Frente ao absolutismo do pensamento metafísico calculador e da dificuldade de pensar
fora do esquema de representação e instrumentalidade da razão técnica, que estão tão
imbricados no processo histórico da cultura ocidental e nisso inclui a religião, o pensamento
meditativo aqui proposto, pensando o sentido das coisas, abrindo os ouvidos ao inaudito e os
olhos ao imperceptível, toma a meditação como a clareira, já que “é a clareira que outorga a
proximidade do Ser” (HEIDEGGER, [1967] 2009, p. 61) ao abrir espaço de claridade para
algo até então velado, consentindo com a liberdade.
Isso envolve o processo de abarcar o destino, ao passo que compreende o limite que
aparece como contingente e por isso como contorno do desenrolar histórico, mas que também

25
Teólogo e filósofo alemão, que na epistemologia da Ciência da Religião propõe a fenomenologia da
experiência religiosa com a abordagem de religiões comparadas. Seu livro de maior alcance no Brasil é O
Sagrado.
53

aponta caminhos possíveis para se destinar (HEIDEGGER, 1972). O capítulo anterior


mostrou justamente os limites e contingentes do processo histórico da teologia que legaram a
metafísica à Igreja Universal do Reino de Deus, por fim, aqui se atentará o que ela escolhe
incorporar da tradição e como irá se destinar a partir de então.
Assim, ao analisar os discursos e comportamentos da Universal não se busca o mérito
do que é certo ou errado, porque se agisse dessa forma tal pesquisa também estaria presa a
dualidade metafísica, antes, intenta-se a análise do sentido, já que a expressão humana como a
fala ou comportamento, manifestam o ser. Por isso, não existe certo ou errado, mas
simplesmente condizente com o ser. Na aproximação das expressões colhidas por outros
pesquisadores que estudaram a Universal, busca-se compreender, qual é a forma de Ser
Universal? Nesse modo de Ser está escasso o pensamento meditativo?
Cartografar o ser de alguém, ou nesse caso, de uma instituição, é cartografar o seu
‘mundo’26, enquanto totalidade significativa. Ao que foram eleitas três categorias para
entendimento de tal rede significativa da IURD: proclamação, em que se inserem suas
pregações, discursos e linguagem; eclésia, a fim de entender os relacionamentos interpessoais,
bem como a noção de comunidade (característica do cristianismo); e parusia, que trata da
visão do fim.
Como já se percebeu até aqui, o modo de Ser Universal está tão envolvido com a
metafísica e seu pensamento calculador, que a técnica planetária será a referência
hermenêutica de cada um desses conceitos elencados. Mas o pensamento meditativo será
salvaguardado pela clareira dentro dessa reflexão, mantendo um lugar aberto para poder ver o
que talvez se tente esconder, com a distância para pôr as coisas em questão, e tendo nos
questionamentos levantados uma sinalização de possibilidade para outro caminho.

3.1 Técnica como Proclamação

O discurso27 é um fenômeno amplamente explorado por Heidegger, haja vista que se


trata de um dos fundamentos mais básicos da existência humana como expressa na conhecida
citação:

O homem não é apenas um ser vivo, que, entre todas as faculdades, possui também a
linguagem. Muito mais do que isso. A linguagem é a casa do Ser. Nela morando, o
homem ec-siste na medida em que pertence à Verdade do Ser, protegendo-a e
guardando-a (HEIDEGGER, [1967] 2009, p. 55).

26
Ver HEIDEGGER, ([1927] 2012, p. 98.).
27
Ver HEIDEGGER (1959).
54

Discurso para ele é a conexão entre a compreensão e as emoções, denominada pelo


filósofo como disposição afetiva. O discurso articula o sentido, e o encadeamento do sentido é
o todo de significações, que brotam as palavras. A linguagem, por sua vez, é uma das formas
de expressão do discurso, referida como a “casa do Ser”, por ser a expressão máxima do
modo de Ser, enquanto ex-istência28, ou seja, abertura (HEIDEGGER, [1927] 2012).
Baseado na premissa heideggeriana de que falar é mostrar, o psicólogo e escritor João
Augusto Pompéia (informação verbal)29 propõe a diferença de falar para o outro e falar com o
outro. No primeiro modo, a fala se expressa pela demonstração e comprovação. Aqui se busca
o limite da liberdade do seu interlocutor, porque de certa forma, incita-se a concordar com
aquilo que foi dito. Esse falar em que um fala para o outro, é exemplificado tanto pelas
comprovações científicas, quanto pelas opiniões e argumentos do senso comum. E porque não
caracterizar como a expressão da fala técnica? Em contrapartida, e quase não usual, a fala
com o outro tem um caráter mais indigente e sensível. Já que aqui se preserva a liberdade para
o outro compreender ou não aquilo que foi dito, sendo apenas convidativo ao entendimento. É
uma fala mais vulnerável porque é uma fala da intimidade, sobre questões pessoais,
existenciais. Aquilo que se fala nesse modo, pode gerar ecos, reverberações, afetos no outro, e
é também aqui que a compreensão do sentido do ser pode acontecer. Seria essa uma fala da
meditação?
Se o discurso da Igreja Universal tem a finalidade da conversão e adesão, tem em sua
retórica a persuasão. “Para nossos objetivos é importante lembrar que o discurso articulado
pela Igreja Universal pretende convencer, excitar, provocar e inibir ações de um público, que
ela tenta atrair ou manter sob seu domínio” (CAMPOS, 1997, p. 300). Não seria esse o modo
de falar técnico?
Em uma reunião em que o Bispo Macedo instruía incisivamente seu corpo pastoral
para recolher dízimos e ofertas, foi filmada secretamente e quando vazada teve uma ampla
repercussão midiática, transcrita por Leonildo Silveira Campos:

– Você tem que chegar e dizer: ó pessoal! Você vai ajudar agora na obra de Deus. Se
você quiser ajudar, amém. Se você não quiser ajudar, Deus então vai ajudar outra
pessoa ajudar, amém! Entendeu como é que é? Se quiser, amém. Se não quiser, que
se dane! Ou dá ou desce! Entendeu como é que é? Agora é isso aí. Porque aí o povo
vê coragem em você. O povo tem que ter confiança no pastor. Se você mostrar
aquela maneira ‘chocha’, o povo não vai confiar em você (Gravações, Rede Globo,
1995 apud CAMPOS, 1997, p. 102).

28
Do latim ek-sistir, que significa, ser para fora.
29
Palestra proferida por João Augusto Pompéia, em SP, no dia 11/06/16, no Fórum de
Daseinsanalysepromovido pela Associação Brasileira de Daseinsanalyse.
55

Macedo inicialmente persuade seus subordinados, para que eles então possam
persuadir seus adeptos. Esse é o ciclo do processo entificador, que promove o esquecimento
do ser. Ser enquanto abertura de possibilidades não se torna restrito em uma fala normativa e
imperativa como no discurso da Universal? Sobre a fala normativa ou imperativa, Heidegger
propõe a reflexão ao que denomina de “falação”.

O falado na falação arrasta consigo círculos cada vez mais amplos, assumindo um
caráter autoritário. As coisas são assim porque são assim como são porque é assim
que delas (impessoalmente) se fala. Repetindo e passando adiante a fala, potencia-se
a falta de solidez. Nisso se constitui a falação. [...] A falta de solidez da falação não
lhe fecha o acesso ao que é público, mas o favorece. A falação é a possibilidade de
compreender tudo sem ter se apropriado previamente das coisas. A falação se
previne do perigo de fracassar na apropriação. A falação que qualquer um pode
sorver sofregamente não apenas dispensa a tarefa de um compreender autêntico,
como também elabora uma compreensibilidade indiferente da qual nada é excluído.
[...] O que é sem solo ou fundamento já lhe basta para transformar a abertura em
fechamento. Pois o que foi dito já foi sempre compreendido como algo ‘que diz’, ou
seja, que descobre. A falação é, pois, por si mesma, um fechamento, devido à sua
própria abstenção de retornar à base e ao fundamento do referencial. [...] O
impessoal prescreve a disposição e determina o quê e como se ‘vê’ (HEIDEGGER,
[1927] 2012, p. 232-233).

“Falação” é a forma impessoal do discurso se apresentar, é aquilo que ‘todo mundo’


fala, e à medida que vai se repetindo e passando de um ao outro vai encorpando o coro da
falação e tornando-o a palavra de ordem, ao se arriscar dizer algo discrepante da falação lhe
sujeita um lugar marginalizado, isolado. Já foram abordados nessa dissertação os ganhos,
mesmo que secundários, do processo de institucionalização, ao sujeito ser poupado de se
responsabilizar pelas escolhas de sua vida e poder legá-las a quem tenha determinado uma
compreensão de mundo. Pois bem, mais uma vez a Igreja Universal se dispõe a ocupar esse
espaço de institucionalização, propondo uma proclamação com características da falação,
potencializa a falta de solidez existencial dos seus adeptos, que ao compreenderem tudo sem
ao menos experimentarem a apropriação, ganham a vantagem de se prevenirem do perigo de
fracassar na experiência angustiada da apropriação, mas por outro lado se encontram em um
regime fechado da prescrição dominadora.
Benedito Nunes fala sobre a importância da linguagem e o que envolve a falação, ou
como caracteriza “fala anônima e impessoal”:

Gostaríamos de acrescentar: conforme Heidegger nos ensina, o mundo que tal


ancoragem pressupõe é algo verbalizado e só perceptível porque verbal, isto é,
suscetível de enunciação e de passagem do falado ao escrito. Antes de ser racional, o
homem é um falante. As mudanças de experiência acompanham as mudanças de
linguagem, sujeitos a constante movimento de despersonalização ou de
objetificação. Quem fala sou eu, mas a minha fala pode ser anônima e impessoal
ressonância do outro ou dos outros que me invadem, expulsando-me de mim,
substituído pelo sujeito coletivo no qual me anonimizo (NUNES, 2016, p. 30).
56

Na liturgia Iurdiana os testemunhos são um dos pontos altos, principalmente quando


os cultos são veiculados nas redes de televisão e internet. O procedimento é sempre o mesmo,
com uma música de fundo bem emotiva, o pastor chama uma pessoa e pede para ele (a) contar
o que Jesus fez em sua vida, aproveitando as oportunidades da entrevista para salientar que a
mudança aconteceu na Igreja Universal. O fato é que essa propagação dos testemunhos
também expressa a falação, de histórias com sucesso repetidas, como em ressonância ao
sucesso que a igreja já prevê e prescreve.
Além dos testemunhos, os slogans e palavras de ordem proferida pelos bispos e
pastores, mas por vezes solicitado a ser repetido pelos membros, compõe a retórica da
proclamação Iurdiana. “Os slogans rompem a barreira da racionalidade ao provocarem mais
ação do que reflexão, mexem com a ‘criança escondida em cada adulto’, despertam a
imaginação e provocam no receptor a irrupção daquelas forças míticas [...]” (CAMPOS, 1997,
p. 317). É essa capacidade de mobilização ideológica, promovida pela área da publicidade e
marketing, que a Igreja Universal lança mão.

A Igreja Universal redescobriu o sucesso e a força dos slogans em suas ações


retóricas. Seus agentes incluem no discurso conjunto de palavras, verdadeiros
torpedos destinados a sacudirem as amarras, que cada destinatário mantém com seus
universos simbólicos de origem. Essas frases, pelo que elas dizem ou deixam de
dizer, assim como pelas suas ambigüidades, se constituem ‘pacotes’ prontos para
uso imediato, ou [...] kits montados para cada ‘consumidor’, segundo a lógica de
suas necessidades (CAMPOS, 1997, p. 317-318).

Alguns exemplos de seus slogans são: “Igreja Universal, onde um milagre espera por
você” ou “Pare de sofrer”. O fato é que faz parte do processo de persuasão o convencimento
de que seus desejos e necessidades se concretizarão única e exclusivamente através da Igreja
Universal, elaborando argumentos que gere a disposição do receptor para aceitar o projeto de
vida proposto pela instituição (CAMPOS, 1997). Em contrapartida, Heidegger criticando a
expansão da técnica com marcas do utilitarismo denuncia a ditadura da publicidade como um
sintoma da linguagem técnica:

Na porfia da concorrência, tais ocupações se apresentam publicamente como ismos e


procuram sobrepujar uma à outra. [...] Baseia-se, principalmente nos tempos
modernos, na ditadura toda particular da publicidade. Mas a chamada ‘existência
privada’ também não constitui o ser-homem essencial, quero dizer, livre. Ela,
simplesmente, se enrijece numa negação do que é público. É um despojo dependente
que se nutre da simples fuga diante dele. Assim, contra a própria vontade, dá
testemunho de sua escravidão ao que é público. Esse, por sua vez, não é outra coisa
do que a instituição e absorção, condicionadas metafisicamente, - de vez que
proveniente do domínio da subjetividade – da abertura do ente na objetivação
incondicionada de tudo. Por isso, a linguagem é posta a serviço da transmissão dos
meios de troca. Aqui, desconhecendo qualquer limite, a objetivação, como o acesso
57

uniforme de tudo para todos, se expande. A linguagem cai sob a ditadura da


publicidade. É essa que, de antemão, decide o que é compreensível e o que deve ser
rejeitado como incompreensível (HEIDEGGER, [1967] 2009, p. 31).

A Igreja Universal está em várias estações de rádio, tanto AM quanto FM, com cultos
em diversos canais de televisão sejam regionais, nacionais e até internacionais, e mesmo
priorizando a propagação oral, também investem na propagação escrita por meio de revistas,
livros escritos pelo Bispo Edir Macedo e outros pastores, blogs e jornais. Leonildo Campos
(1997) postula que todos esses veículos servem como aparato publicitário, que não provoca
isoladamente mudança no comportamento e no pensamento da pessoa, mas serve inicialmente
para atraí-lo a uma das reuniões feitas dentro da Igreja Universal. Entretanto, pela perspectiva
heideggeriana pode-se compreender que a propagação do discurso Iurdiano, estando tão
comprometido com a ditadura publicitária, determina de antemão mudanças no
comportamento e pensamento de seus receptores logo no primeiro contato? Sendo assim,
pode-se entender que Martin Heidegger propõe uma ampliação no significado de publicidade
ao associá-la a linguagem, de que ela não serve apenas para atrair, mas também para
previamente determinar as aberturas e restrições daquele que está sendo sugestionado?

Observamos em nossa pesquisa que nessa Igreja, as pessoas ouvem o que lhe é
comunicado, se identificam e obedecem às determinações dessa mídia, a maioria
aparentando muita satisfação e alegria em fazê-lo. A este propósito, recordamos uma
afirmação atribuída a Alexis de Tocqueville: ‘se quisermos conhecer o poder da
imprensa, nunca devemos prestar atenção ao que ela diz, mas ao modo como é
escutada’ (MARIANO, 1999, p. 243).

E como ela é escutada? Heidegger (2012) escreve: “somente onde se dá a


possibilidade existencial da fala e escuta é que alguém pode ouvir” e depois, “somente quem
já compreendeu é que poderá escutar” (p. 227). Que a propagação Iurdiana é ouvida, no
sentido stricto da palavra, ob-audire em latim, que significa dar ouvidos à, ou obedecer, isso é
evidente. Mas será que ela de fato é escutada? Ou seja, será que a propagação Iurdiana é
compreendida na ventura e no revés que ela abarca?

3.2 Técnica como Eclésia

Eclésia, do grego eκκλησία, significa assembléia, reunião, e que por alguns


dicionários, como o Houaiss, relaciona com a palavra “igreja”. Meditar sobre a eclésia é se
propor a pensar: como a Igreja Universal experimenta os relacionamentos interpessoais? Por
anos a noção de igreja esteve associada a uma vida comunitária, porém, com o advento da
subjetividade e noção de sujeito da modernidade técnica, isso interferiu na igreja Iurdiana?
58

Apesar da vida comunitária estar embotada pela supervalorização do individualismo,


Heidegger (2012) salienta que “ser-no-mundo-com-os-outros” é uma estrutura essencial do
homem.
Odêmio Ferrari (2007) faz uma leitura sobre a eclésia Iurdiana:

Ocorre um ‘individualismo de massas’ oriundo do ‘nomadismo religioso’, visto que,


em grande parte, essas pessoas já experimentaram outras ofertas religiosas. A Igreja
Universal aglomera um público de perfil anônimo e estabelece um atendimento
religioso segmentado, usando uma linguagem cristã de cunho popular com técnicas
aperfeiçoadas de comunicação e nutrindo uma visão privativa da religião. [...] Pela
fraca coesão e enfoque individualista no atendimento, ocorre muito mais uma
relação ligada à técnica da magia, do que da constituição de uma igreja (Durkheim)
(FERRARI, 2007, p. 232).

Na igreja em que seus próprios frequentadores associam como “pronto-socorro


espiritual” (MARIANO, 1999) é compreensível o comportamento do trânsito, da fluidez e até
da fraca coesão comunitária, haja vista que um ‘pronto-socorro’ sugere a imagem de um
ambiente em que se busca única e exclusivamente atenção para uma emergência, e não um
espaço de acolhimento em que possa desenvolver laços afetivos.

Essas observações podem nos levar à conclusão de que o culto iurdiano, enquanto
espetáculo de auditório, não constrói comunidades plenas de unidade, como
acontece em outros grupos pentecostais, nas quais os fiéis a organizaram em
pequenas comunidades de louvor e adoração. Dessa maneira, evita-se a perda de
energia e o ônus do viver em situações em que tudo é comum. Pois, a construção de
uma comunidade de pessoas muito próximas exige concessões inadmissíveis ao
moderno individualismo urbano. [...] Os iurdianos, em seus cultos-espetáculos,
assim como os católicos romanos em suas missas, deixam de experimentar o ônus
desse viver comunitário (CAMPOS, 1997, p. 151).

O processo de convivência comunitária de fato tem seus ônus, mas também tem seus
bônus, porque os espaços em que as assimetrias e diferenças pessoais permanecem vigentes
mantêm a estranheza e consequentemente deixa-o aberto para lhe fazer pensar, exercer o
pensamento meditativo sobre o sentido do ser. Por outro lado, a técnica convoca para a zona
de conforto da uniformidade universal. A prisão do ‘todo mundo’, que na verdade é
‘ninguém’, não está necessariamente em se compreender enquanto ser-com-os-outros, mas
antes, é passar a se interessar ser-como-os-outros. Mais uma vez vale ressaltar que se tratando
dos aspectos existenciais propostos por Heidegger ([1927] 2012) não cabe o julgamento entre
bom ou ruim, por isso, não se pode caracterizar a “impessoalidade” como algo nocivo, isso é
apenas uma constatação da qualificação humana. Aliás, o homem descobre seu mundo
justamente através dos outros, desse ambiente público e também impessoal. Entretanto,
quando esse mesmo “impessoal” furta a possibilidade de o homem tomar contato consigo e
responder responsavelmente por sua existência, isso pode se tornar um abrigo aprisionador.
59

O impessoal encontra-se em toda parte, mas no modo de sempre ter escapulido


quando a presença30 exige uma decisão. Porque prescreve todo julgamento e
decisão, o impessoal retira a responsabilidade de cada presença. O impessoal pode,
por assim dizer, permitir que se apóie impessoalmente nele. Pode assumir tudo com
a maior facilidade e responder por tudo, já que não há ninguém que precise
responsabilizar-se por alguma coisa. O impessoal sempre ‘foi’ que... e, no entanto,
pode-se dizer que não foi ‘ninguém’. Na cotidianidade da presença, a maioria das
coisas é feita por alguém de quem se deve dizer que não é ninguém. O impessoal tira
o encargo de cada presença em sua cotidianidade. E não apenas isso; com esse
desencargo, o impessoal vem ao encontro da presença na tendência da
superficialidade e facilitação. Uma vez que sempre vem ao encontro de cada
presença, dispensando-a de ser, o impessoal conserva e solidifica seu domínio
teimoso. Todo mundo é o outro e ninguém é si mesmo. O impessoal, que responde à
pergunta de quem da presença cotidiana, é ninguém, a quem a presença já se
entregou na convivência de um com o outro (HEIDEGGER, [1927] 2012, p. 185).

Se o cientista da religião Odêmio Ferrari postula que na IURD “ocorre um


‘individualismo de massas’”, Heidegger refutaria quando esclarece que o impessoal, das Man,
“não é alguém, nem aquele, nem um certo alguém, nem um certo povo, nem mesmo a soma
de todos; o ‘quem’ é o impessoal, a gente” (HEIDEGGER, 1981, p. 49, grifo nosso). Ora, mas
se a impessoalidade é um atributo da existência humana, ao se lançar na impropriedade, o que
seria técnico na eclésia Iurdiana? Campos propõe um caminho para essa pergunta:

Na Igreja Universal, o peso da comunicação pública e padronizada abafa e


desestimula as tentativas de respostas individuais e a comunicação entre os
participantes da liturgia. O poder dos alto-falantes, os exercícios devocionais
comunitários de oração e movimentos ritmados do corpo impedem a interação das
pessoas, a formação de pequenos grupos de oração, estratégias empregadas com
sucesso em outras igrejas pentecostais, para a criação de uma comunidade de
relacionamentos primários. Essa falta de uma ligação maior entre as pessoas provoca
um fenômeno, [...]‘relações de clientela’, em que as pessoas estão unidas mais por
interesses utilitários. A hipótese de trabalho defendida por Monteiro, prevê a
dificuldade, senão a impossibilidade de se criarem comunidades nesses ambientes
saturados de utilitarismo e até de magia, justamente por causa da fluidez e trânsito
das pessoas (MONTEIRO, 1979 apud CAMPOS, 1997, p. 152).

O aspecto técnico na vivência da eclésia Iurdiana centra-se em estar afinado com as


propostas de mercado, estando mais próximo a imagem de um “shopping center”, como
caracteriza Leonildo Campos (1997), do que com uma reunião de fraternos. A noção de
pertencimento Iurdiana está criada ao redor da própria Universal e não criada ao redor dos
vínculos interpessoais, ou seja, como existem várias unidades da Igreja Universal espalhadas
pelo Brasil, na maioria das vezes tendo mais de uma na mesma cidade, com cultos em
diversos horários todos os dias da semana, isso facilita o trânsito fluido e os desencontros dos
fiéis, porque o que se preza é a fidelidade à instituição e não a fidelidade a comunidade local.
Todavia, se está velada a possibilidade de um estreitamento das relações entre os adeptos

30
Dasein ou ser-aí.
60

Iurdianos pela estrutura litúrgica e institucional, a relação entre os pastores e fiéis é bem
marcante, mesmo que seja marcante pela dominação, como demonstra a transcrição do culto a
seguir:

A reportagem mostrava cenas de pessoas indo à frente e colocando sobre a mesa


numa Bíblia aberta, dinheiro, cheques e até objetos de uso pessoal como relógios.
Algumas pessoas faziam gestos de desafio às câmeras de televisão, e acompanhada
por um órgão e bateria, a platéia cantava: ‘Esta alegria não vai mais sair / de dentro
do meu coração’. Terminada a coleta, o pastor perguntou, em tom de desafio, às
câmeras de televisão e à platéia:
- ‘Eu pergunto agora para vocês: alguém foi obrigado a fazer isso?’
- ‘Não!’, respondeu a massa.
- ‘Você deu então, por quê?’
- ‘Porque eu quis!’ (sic) responderam várias pessoas postadas ao lado da câmera de
TV (TV MANCHETE, 11.05.90 apud CAMPOS,1997, p. 154).

Por mais que a plateia responda que fizeram suas doações de livre e espontânea
vontade ainda se sustenta um traço de dominação nessa situação. Talvez pelo modo apelativo
como a IURD viabilize a coleta dos dízimos e ofertas, talvez a maneira autoritária em que o
pastor induz as pessoas a responderem suas interpelações sugestionadas, talvez por ambas as
hipóteses. Pela perspectiva heideggeriana se propõe que o modo de cuidar do outro é
denominado de “solicitude”, e ela se apresenta nas nuances entre os dois extremos: dominador
ou libertador. Tanto a transcrição do culto acima, como as outras diversas citações
apresentadas nessa dissertação não identificam as vivências relacionais Iurdianas com o
aspecto dominador? Vale explicar melhor o conceito:

Este modo de solicitude é o que assume o encargo que é do outro de cuidar de si


mesmo. O outro é lançado fora de seu próprio lugar; ele retrocede quando algo
precisa de sua atenção, ou mesmo pode tomá-lo como alguma coisa já acabada e à
sua disposição, ou ainda desencarregar-se dele completamente. Em tal solicitude o
outro pode tornar-se alguém que é dominado e dependente, mesmo que esta
dominação seja, para ele, tácita, ou lhe permaneça oculta. Esse modo de solicitude,
que consiste em ‘saltar sobre o outro’ e em tomar conta dele e por ele [...]
(HEIDEGGER, 1981, p. 41).

Na eclésia Iurdiana o ser-com-os-outros parece ficar cristalizado pelo ser-sobre-os-


outros, enquanto a possibilidade de abrir-se à liberdade, que diante do vazio das respostas
prontas e uniformes serve como passagem para o pensamento meditativo, fica escasso. A
instituição valoriza a noção de autoridade, mas será que o exercimento de tal papel está
atrelado ao significado de autoridade ou de autoritarismo? “Autoridade é uma palavra que
provém do latim algere, que significa aumentar. A autoridade é um aumentador, Aumentador
é aquele que aumentando alguma coisa, ampliando-a, como uma lente, deixa ver”
(POMPÉIA; SAPIENZA, 2011, p. 65). Deixar ver sua vida, suas escolhas, mostrar o mundo,
sua realidade permeada por facticidades e possibilidades, ampliando o aprofundamento da
61

percepção compreensiva está muito próximo da noção de libertar o outro, e por mais que a
Universal considere prestar-se à libertação, libertar o ser não parece estar na pauta do seu
espectro de liberdade.

3.3 Técnica como Parusia

Parusia, do grego Παρουσία, significa ‘presença’, mas que pela tradição cristã está
associada à ideia da segunda vinda de Jesus, o arrebatamento da igreja, o último dia marcado
pelo juízo final. Heidegger trabalha esse conceito no livro Fenomenologia da vida religiosa a
partir das epístolas paulinas, ao identificar que a promessa da vinda de Jesus não se tratava
necessariamente de um episódio futuro ainda que o conceito aborde a temporalidade, antes
trata da consciência de ser finito e por não saber quando esse último dia se dará cuidada vida
de uma maneira vigilante, correspondendo a viver de forma autêntica (HEIDEGGER, 2014).

O decisivo aqui é como Paulo responde à pergunta pelo ‘quando’ da παρουσία, ou


seja, é a partir disso que é possível sopesar o que ele diz. Não há segurança alguma
para a vida cristã; a contínua insegurança é também o que caracteriza as
significações fundamentais da vida fática. O inseguro não é casual, mas necessário.
Essa necessidade não é lógica nem natural. Para ver com claridade, deve-se refletir
sobre a própria vida e sua realização. Os ‘que dizem paz e segurança’, entregam-se
ao que a vida lhes dá, ocupam-se de qualquer tarefa da vida. Deixam-se absorver por
aquilo que a vida oferece; eles estão na escuridão no que diz respeito ao saber sobre
eles mesmos. Em contrapartida, os crentes são filhos da luz e do dia. A resposta de
Paulo à pergunta pelo quando da παρουσία é, portanto, exigir que permaneçam
vigilantes e sóbrios. Nisso refreia-se aqui o entusiasmo daqueles que andam atrás de
perguntas pelo ‘quando’ da παρουσία e especulam demasiadamente a esse respeito.
Eles apenas se preocupam pelo ‘quando’, pelo ‘que’, pela determinação objetiva;
não possuem interesse pessoal genuíno algum. Eles permanecem totalmente presos
ao mundano” (HEIDEGGER, 2014, p. 93-94).

Entretanto, para corresponder ao processo de modernização técnica a Igreja Universal


reformula a mensagem cristã visando à demanda que ansiava por ascensão social. Com
pregações voltadas para acomodação a este mundo passa a negligenciar temáticas com teores
mais complexos como morte, abnegação, rendição, para inaugurar uma tônica em assuntos
antes marginalizados como prosperidade, autoconfiança, a legitimidade dos prazeres
(MARIANO, 1999). Onde não há mais espaço para a consciência do “ser-para-a-morte”
(HEIDEGGER, [1927] 2012), esgota-se também o sentido da vida.

[...] Os pastores neopentecostais iurdianos, simplesmente se calam diante da morte.


Examinando mais de cinqüenta números da Folha Universal não encontramos uma
nota sequer de falecimento de membros da Igreja. [...] Possivelmente a Igreja
Universal encarne o comportamento típico da sociedade urbana e industrial, na qual
ocorreu um esvaziamento e a escamoteação da morte [...]. A morte, a dor e o
sofrimento, situações-limites da vida humana, na cosmovisão neopentecostal está
62

associada à atuação das forças demoníacas. A teologia da prosperidade prega que


Deus fez o homem para gozar das coisas boas da vida, usufruir da saúde, da riqueza
e do bem estar. Assim, essa ideologia exclui, a priori, de seu universo de discurso, a
teimosia e inconveniente realidade da morte (CAMPOS, 2007, p. 402-403).

Na assimilação de um mundo técnico moderno que está a cada vez se despedindo do


fato de ser mortal, no crescente interesse por gozar de uma vida próspera e feliz, a ideia
apocalíptica diminuiu. Transmutando valores antes pecaminosos como a avareza, cobiça,
inveja, egoísmo, agora em virtudes e desejos legítimos, como consumir bens de luxos, ser
abastado, ter posses materiais; a justificação para isso está na própria Palavra de Deus,
segundo a interpretação triunfalista Iurdiana, pelo fato de se enxergarem ‘herdeiros das
promessas divinas’, ‘mais do que vencedores’. A escatologia Iurdiana se deslocou da
soberania dos céus para o imediatismo do ‘aqui e agora’.
Pela perspectiva heideggeriana pode-se dizer que a parusia é a possibilidade de tornar
a vida mais intensiva, por ser uma experiência que o coloca em antecipação à morte serve
também como um termômetro ou balizador de avaliação da vida. Se a impessoalidade for
tamanha que aliene o homem de responder responsavelmente por sua existência, o contato ou
a reflexão sobre a morte ainda pode ser a abertura da possibilidade de vivenciar o pensamento
meditativo. Mas, se a IURD não só esgarce a impessoalidade como também oblitere a
condição de ser-para-a-morte, de que forma ela contribui para dar espaço ao pensamento do
sentido do ser?

Pode-se resumir a caracterização de ser que, existencialmente se projeta para a morte


em sentido próprio, da seguinte forma: o antecipar desvela a presença31 a perdição
no impessoalmente-si-mesmo e, embora não sustentada primariamente na
preocupação32 das ocupações33; a coloca diante da possibilidade de ser ela própria:
mas isso na liberdade para a morte que, apaixonada, fática, certa de si mesma e
desembaraçada das ilusões do impessoal, se angustia (HEIDEGGER, [1927] 2012,
p. 343).

É justamente essa angústia desenvolvida por Heidegger, ou trabalhada por


Kierkegaard34, e fruto da compreensão da finitude que possibilita a apropriação da existência,
por um chamado da consciência mesmo que ele seja silencioso, e por ser silencioso pode calar
a voz da falação impessoal. Na angústia não tem falatório, porque o homem está cara a cara
consigo, suas escolhas e ações, sejam erros ou acertos, aquilo que gostaria de ter feito mas não
conseguiu, aquilo que poderia ter feito mas não quis, e por fim, o que almeja ser e realizar.
Nessa experiência angustiada, também denominado como instante de resolução ou decisão, o

31
Dasein ou ser-aí.
32
Preocupação, fürsorge, para Heidegger está atrelado ao cuidado com os outros.
33
Ocupação, besorgen, para Heidegger está atrelado ao cuidado com as coisas.
34
Ver O Conceito de Angústia de Søren Kierkegaard (2010).
63

agora mortal, porque abarcou sua condição fática de finitude, também toma contato com a
culpa (HEIDEGGER, [1927] 2012).
A culpa heideggeriana, não é a culpa psicológica que está associada a potência do
fazer, é uma culpa existencial porque ela está na base dos outros desdobramentos da culpa.
Para Heidegger se refere à falta, ao fato do homem já ser fundado na negatividade, não ser
completo. É claro que porque o homem é culpado existencialmente também pode vivenciar a
culpa psicológica ou neurótica. Mas por se tratar de um aspecto que revele tamanha
precariedade, porque deixa ver a falência e “errância” humana, cabe se questionar como a
IURD lida com a culpa?
Com o exacerbado foco na figura do Diabo como princípio justificativo para tudo de
ruim que acontece ou que pode vir a acontecer, sejam doenças, desentendimento familiar,
pobreza, ou qualquer outro infortúnio; a culpa é dirigida vantajosamente às forças
demoníacas, como exemplifica a reportagem a seguir:

Sônia Oliveira, 18 anos, procurou Paulo Gomes de Oliveira, pastor da Universal,


para resolver problemas espirituais. Ele levou-a para a sede da igreja na Vila Galvão
e a estuprou. Preso em flagrante, alegou que não teve a intenção de estuprar: ‘Fui
possuído por espíritos, que me obrigaram ao ato’ (FOLHA DE S. PAULO, 26.09.90
apud MARIANO, 1999, p. 140).

Percebe-se o movimento da técnica de forma pendular de um extremo ao outro, ora


servindo de prepotência aos Iurdianos para negligenciarem a finitude, sustentarem um
discurso triunfalista e exercerem a dominação sobre os outros, ora servindo de impotência
para assumir seus desejos, ações e se responsabilizar por sua existência. Assim também é sua
relação com o Diabo35, pois se peca ou é acometido por problemas, se reconhece como vítima
da tirania do Diabo, entretanto, visando alcançar bênçãos desferem palavras de ordem e
autoridade contra os demônios.

Para Cecília Mariz, ‘os pentecostais (...) não veêm o indivíduo como um ser
autônomo. Todos dependem de Deus, sem o qual se tornam vítimas de forças
malignas (...) O pentecostalismo não abraça uma visão individualista no sentido que
não define o indivíduo como ser totalmente autônomo e autodeterminado (...) Daí
não se enfatizar a ideia de culpa ou arrependimento no discurso pentecostal’. Por
outro lado, Maria das Dores Machado observa que a ‘associação dos desvios morais
às forças demoníacas (...) retira do desviante a responsabilidade pelas suas ações’, o
que pode gerar maior ‘compreensão e tolerância entre os familiares’ e, por
conseqüência, atenuar sua culpa e seu sofrimento (MACHADO, 1996 e MARIZ,
1994 apud MARIANO, 1999).

35
Ver SILVA, José Serafim da. Caçadores de demônios: demonização e exorcismo como método de
evangelização no neopentecostalismo. São Paulo, 1998. Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião) –
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
64

Mas ainda que seja demasiadamente humano a tendência para se desculpar, sem
querer se arrepender e bem menos se responsabilizar pelo que faz, a consciência de se
reconhecer mortal e culpado, no sentido de devedor, possibilita a apropriação, se empunhar de
si, porque é exatamente nesse espaço de fragilidade que está a condição do pensamento
meditativo, da vivência ética. Ética no sentido mais original da palavra, ethos em grego, que
significa casa, habitat no latim. Um lugar de intimidade em que se encontra liberdade para se
abrir ao pensamento que pensa o sentido do ser.
65

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como já foi exposto na introdução, essa pesquisa é uma crítica, porque pretendeu-se
cortar o limite do pensamento meditativo, frente ao largo alcance do pensamento calculador,
pela ordem da técnica, que tem por base a Metafísica. Ao reconhecer que a técnica planetária
constitui o mundo moderno, propor que ela só acarreta malefícios seria ingênuo demais. E o
real problema não é a presença do pensamento calculador técnico, haja vista que ele é
legítimo e necessário, afinal, é impossível não reconhecer a usualidade desse tipo de
pensamento em muitas áreas da ciência e até mesmo na praticidade do dia-a-dia, entretanto o
reconhecimento de que ele é só um tipo de pensamento, e não necessariamente a única opção
de pensamento, faz-se caráter fundamental.
Se dispor ao pensamento meditativo é exatamente estabelecer uma relação
suficientemente rica com a essência da técnica, já que técnica não se trata apenas de um
procedimento, mas de um regime de mundo conforme frequentemente abordado nessa
pesquisa, que vigoram valores como a agilidade, felicidade, rendimento de desempenho,
produtividade, que nunca cessa e por causa disso só se amplia, tendo alcançado adesão até
mesmo na religião, como demonstra a Universal. O que essa dissertação tentou propor foi
justamente não se restringir a meditar apenas sobre o arcabouço técnico que alicerça a
Universal, mas a relação que ela tem com a Igreja Universal do Reino de Deus, considerando
como isso atinge seu mundo e suas vivências interpessoais.
Não se buscou aqui dar soluções, porque agir assim seria cair na armadilha da
dominação metafísica que sustenta um princípio ordenador e prescritivo, mas apenas levantar
indagações, se por de novo a pensar mais uma vez (e nesse caso o pleonasmo é intencional),
se preocupar com o sentido do que se faz, bem como apontar outras possibilidades, tentando
contribuir com a ampliação de ser Universal, o qual baseado no desenrolar dessa dissertação
confirma a hipótese de manter escasso o pensamento do sentido do ser aos seus colaboradores
e fiéis, ainda que seja válido ressaltar ser essa conclusão apenas uma de tantas possibilidades
frente ao estudo da Igreja Universal.
A Igreja Universal pode provocar um empobrecimento da fé, ao passo que lhe associa
com uma tarefa, furtando seus conversos a significarem fé no aspecto relacional, e isso é
apenas uma consequência por estar amalgamada com a estrutura Metafísica. Tal paradigma
arregimenta a teologia por longos anos, conforme explanado no capítulo dois, mas essa
tradição não foi apenas aceita como reforçada, e o capítulo três desvela que o comportamento
Iurdiano, sua projeção, é uma resposta a essa destinação. A expansão Iurdiana, tanto para
66

outros lugares, quanto a expansão para outros segmentos, como político, econômico,
entretenimento, comercial, deixam ver a interpelação provocadora, ou seja, a essência da
técnica atuando com seu afã e voracidade.
O poder expresso nos discursos e atitudes, enquanto o estado de ânimo mais presente,
além das relações interpessoais marcada fortemente pela dominação, revela sua proximidade
com o niilismo reativo, o antropocentrismo, e o controle técnico. Cuidado e controle não
parecem estar em posição contrária? Então, a IURD enquanto instituição normativa e
impositiva, que estabelece a prosperidade, com toda sua vasta significação, como valor
absoluto, em detrimento de ignorar assuntos mais complexos, como a morte ou o fim, se
resguardando sobre o pretexto que pôr em dúvida o que a Igreja apresenta é coisa do diabo,
vai paulatinamente tornando escasso o pensamento sobre o sentido do ser.
Ora, o pensamento não engloba a interrogação e o espanto, porque isso seria então
coisa do diabo? Estaria a Igreja Universal impedindo seu membro a pensar? Concordar com
isso seria isentar o adepto da sua responsabilidade existencial, bem como devotar ainda mais
poder a instituição. Por isso, aqui se considera que a Igreja Universal, assentada sobre a
Metafísica, explora em demasia o pensamento calculador técnico, tornando escasso, e só
escasso, o pensamento meditativo, porque ela não seria capaz de impedir o pensamento
meditativo, mesmo que muito lhe restrinja, por se tratar de uma possibilidade pra qualquer
um. Entre o homem e o ser existe uma co-pertença, e o que liga o homem ao ser é o
pensamento. Esse pensar não se trata de uma articulação lógica, antes, trata de uma escuta dos
apelos do ser, ao acolhê-los pode se expressar. Nesse escutar e proferir é onde as relações
acontecem, pois o sentido do ser está envolvido com o mundo, com os outros. Apesar de
serem raras as pessoas dispostas a romperem, mesmo que por alguns instantes, com aquilo
que dita e estabelece uma representação, ao colocarem tudo isso em uma angustiada
meditação, podendo retornar a impessoalidade com uma existência mais própria, esse
movimento de autocompreensão é possível para todo ser humano.
Todavia, o foco dessa pesquisa não foi estudar como o fiel experimenta os preceitos
técnicos Iurdiano, mas como a instituição foi desenvolvendo o modo de ser técnico Universal,
criando assim um embotamento ao pensamento meditativo. Sim, cada um resolve à sua
maneira a relação com Deus, assim como cada instituição resolve a sua maneira seus dogmas,
ideologias e doutrinas, também construídas pela participação dos próprios conversos, sejam
de maneira direta ou indireta. E embora a escolha de sustentarem uma fé técnica, movida pela
vontade de poder, caiba única e exclusivamente a Igreja Universal, que persevera nesse
percurso por 40 anos justamente porque encontra benefícios, a tentativa, entretanto, foi de
67

colaborar para deixar ver quanto um projeto institucional técnico religioso pode empobrecer o
sentido do ser. E que contraditório é pensar que a Igreja que escolhe a prosperidade como
princípio ordenador, pode promover um empobrecimento de fé, um empobrecimento
relacional, um empobrecimento existencial.
A visão de querer sempre mais, do pensamento calculador, embutida na teologia da
prosperidade, distancia-se do solo fértil do pensamento meditativo, que passa pela
simplicidade, gratuidade, acolhimento. Ao quererem sempre mais do que se tem, renegando a
facticidade, se posicionando como controladores do mistério que exerce poder por meio de
palavras de ordem, a Igreja Universal vai desconsiderando a simplicidade de acolher com
gratuidade o dom da vida. Esse é o perigo que todo o homem moderno está exposto, se
distanciar da sua terra natal, a humildade, que carrega o mesmo radical da palavra homem,
humus, terra fértil. Esse é o perigo de se distanciar de si mesmo, estar longe de reconhecer sua
indigência e fragilidade.
Heidegger propõe o ganho, mesmo delicado, de se posicionar como Pastor do ser, e
que tanto faz recordar O guardador de rebanhos de Fernando Pessoa:

Os pastores moram de modo inaparente fora do baldio da terra devastada, da terra


que serve somente para assegurar a dominação do homem. Toda obra desse homem
limita-se a avaliar se alguma coisa é ou não é importante para vida. Uma vida que,
enquanto vontade de querer, pré-condiciona o movimento de todo saber à forma do
cálculo e do juízo assegurador. [...] Uma coisa é usar a terra, outra acolher a sua
bênção e familiarizar-se na lei desse acolhimento de modo a resguardar o segredo do
ser e encobrir a inviolabilidade do possível (HEIDEGGER, 2002, p. 85).

A figura desse pastor enfrenta o desabrigo, para além do abrigo aprisionador que a
instituição técnica pode oferecer, onde a voz do ‘todo mundo’ pode ser tão ensurdecedor, que
ouvir a si mesmo é desalentador. E isso não significa que ele perca a liberdade para pertencer
a alguma instituição, ao contrário, justamente por conquistar tamanha intimidade consigo
possa acolher a bênção desse pertencimento, mas mantendo a salvo o ser a si mesmo.
Heidegger (2009) lembra-nos que não somos senhores, mas sim pastores do Ser. “Nesse
‘menos’ o homem não perde nada. Ele ganha por chegar à Verdade do Ser. Ganha a pobreza
Essencial do pastor, cuja dignidade consiste em ser convocado pelo próprio Ser para a guarda
e proteção de sua Verdade”. (HEIDEGGER, 2009, p. 68). Ao assumir sua posição de pastor
do Ser, o homem estará aberto à meditação, religando-se ao seu sentido mais próprio e por
fim, possibilitado a trilhar a paragem do sagrado com terna serenidade.
68

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