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Dawn Ades (University of Essex-UK)
Ricardo Basbaum (UERJ, Fasm-SP)
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Revisão ortográfica
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Agradecimentos
Benjamin Seroussi (Centro da Cultura Judaica)
Capa e contra-capa
Cristina Ribas
Projeto gráfico
Roberta Guedes
Impressão e acabamento
Expressão & Arte - Editora e Gráfica
MARCELINA. Revista do Mestrado em Artes Visuais da Faculdade Santa Marcelina. - Ano 3, v. 4 (1. sem.
2010). – São Paulo: FASM, 2010.
Semestral
ISSN: 1983-2842
CDU-7(05)
Marcelina é uma publicação da Fasm. As opiniões expressas nos artigos são de inteira responsabilidade de seus
autores. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio, sem a prévia autorização do
autores. Para os critérios de publicação acesse: http://www.fasm.edu.br
4 E dito r ia l
MESTRADO EM REVISTA
90 Banalidades | Mariana Rocha
V SEMINÁRIO DE CURADORIA
99 Conferência dialógica entre Denise Mattar e Lisette Lagnado
Marilá Dardot, hic et nunc, 2002. Videoinstalação. Projeção sobre lousa branca de 60x43 cm. 11’ Cor, sem som.
Para cada especialista, há uma proposição dominante na obra de Walter Benjamin.
E D I TO R I A L
Por onde então abordar esse autor, quando todas as homenagens prosperam
de vento em popa; quando a celebração arrisca prestar antes um desserviço à sua co-
munidade de leitores; quando a figura em questão antecipa toda sorte de traição em
nome da interpretação?1
1 marcelina | hic et nunc agradece as observações da Profª Drª Jeanne Marie Gagnebin, presente aqui por meio de
artigos assinados por ex-orientandas, a nos lembrar cotidianamente que “Benjamin se tornou uma mercadoria que
vende bem demais” e objeto de um “processo de ‘fetichização’ que ele próprio denunciou”.
2 A versão brasileira, da qual os editores selecionaram o trecho utilizado, tem o título de Passagens/Walter Benjamin.
Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. A versão brasileira teve
como editores Willi Bolle e editora convidada, Olgária Matos.
5
Sér ie Walter B e n jam in , 2 0 02
Fernando Bryce*
* Fernando Bryce nasceu em 1965 em Lima. Atualmente, vive e trabalha entre Lima e
Berlim. Participou da 28ª Bienal de São Paulo (2008). Sobre a Série Walter Benjamin,
consultar: http://www.frieze.com/issue/article/fernando_bryce/
Key words Abstract: This essay seeks to expand the understanding possibilities
aura; psychoanalysis; of Benjamin’s concept of aura and, in a dialogue with psychoanalysis,
gaze; subject; to explore its connections with the gaze and the subject’s place in
contemporary art. contemporary art.
17
Em Los Velázquez (1993), reproduzido posteriormente no Livro Velázquez (1996),
Waltercio Caldas “apaga” as personagens do grande clássico da história da arte Las
Meninas (1656), apresentando, em pequeno quadro a óleo, apenas a sala do palácio
que abriga a cena da corte. O quadro não tem, é claro, a intenção de fazer-se passar
pelo original – bem maior do que ele, inclusive –, mas se afirma como reprodução
assumida ou, antes, mero lembrete daquela cena que se reconhece de saída, apesar da
estranheza de sua “manipulação”. O que é um quadro, um grande quadro, uma obra-
-prima como Las Meninas? Se não consiste nas personagens e no arranjo cênico entre
elas, residirá ele em uma certa composição de luz? Uma arquitetura?
***
É essa a sutil dialética convocada por Waltercio: ele opera sobre uma obra
de “existência única”, aurática no sentido da tradição, para fazer dela uma perda. A
reprodução serve, mais do que ao propósito de re-apresentar a obra, para que ela seja
evocada como perda. Reproduzir é fazer perder e, no entanto, nessa perda – ou um
instante antes dela –, dá-se uma aparição única. Só em perda, algo pode apresentar-se
ao olhar; apenas à distância, uma mera visão pode tornar-se aparição única. Tal é a
temporalidade do olhar: só retroativamente, após a perda, uma vez estabelecida uma
certa distância, acontece o instante aurático.
19
presentação, como em repouso em uma paisagem. Habitar a representação é torná-la
uma apresentação, ou seja, é vivê-la como uma aparição.
***
Talvez a aura possa ser aproximada da efêmera beleza de que fala Freud em
seu texto “A transitoriedade”, de 1915. Para o psicanalista, é justamente a transitorieda-
de da beleza, seu caráter passageiro, que aumenta seu valor. “O valor da transitorieda-
de”, diz ele, “é o valor de escassez no tempo”. E prossegue: “a limitação da possibilidade
de uma fruição eleva o valor dessa fruição” (Freud, 1915/1996, p. 317). Fruir a beleza
de uma paisagem, ou das mais elevadas obras da civilização, implica, portanto, um
luto antecipado por elas. Só é belo o que está fadado à destruição, logo posto à distân-
cia de nós, mesmo quando se encontra muito próximo.
Por isso “a arte contemporânea será tanto mais eficaz quanto mais se
orientar em função da reprodutibilidade”, ou seja, “quanto menos colocar em seu
centro a obra original” (ibid., p. 180). A reprodutibilidade não diz respeito ape-
nas à possibilidade de copiar uma obra, mas desestabiliza a própria ideia de um
original a se representar. De fato, a reprodutibilidade técnica é uma operação que
ganha um alcance político, nesse sentido: ela desdobra-se em gesto transformador
da realidade, ao questionar o fundamento mimético da arte. Deixando definitiva-
mente para trás o uso ritual ou mágico dos seus primórdios, ela alcança uma outra
esfera fundamental. Como diz Benjamin, “em vez de fundar-se no ritual, ela passa
a fundar-se em outra práxis: a política”. (Ibid., p. 171-172).
21
apenas um instante mais tarde ela pode ter acontecido (Benjamin fala, a respeito da fo-
tografia, de um “choque póstumo”). Essa operação temporal revira-se ainda, contudo,
para visar o futuro. Sobre a fotografia, Benjamin já falava de uma centelha de acaso, de
“aqui e agora”, com a qual “a realidade chamuscou a imagem”. O espectador o procura,
esse “lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos,
há muito extintos, e com tanta eloquência que podemos descobri-lo, olhando para
trás” (Benjamin, 1931/1994, p. 94). O “aqui e agora” continua pulsando, há nele uma
promessa de futuro localizada no passado. Algo virá, numa “aura” como aquela que o
vocabulário médico conjuga à epilepsia: discretos sinais anunciando a crise declarada.
E é esse o fulcro do “inconsciente ótico”: algo já aconteceu, deu-se uma aparição e, no
entanto, ela vai se reproduzir, deve se repetir, portanto, nos mantém diante desse obje-
to, dessa imagem, em uma suspensão tão angustiosa quanto gozosa.
***
Através é uma instalação de Cildo Meireles que tem quinze metros de lado e,
em seu centro, uma grande bola de papel celofane de cerca de três metros de diâmetro.
O artista localiza a origem da concepção deste trabalho no fato de um dia, em seu ate-
liê, ter chamado sua atenção um ruído vindo da cesta de lixo. Era um papel de presen-
te, uma folha de celofane que ali ainda se expandia. A bola ao centro da instalação não
se expande, mas irradia uma luz própria, fazendo, tal como a folha descartada, com
que se levante o olhar, ou se movimente o sujeito. Um barulho semelhante ao de sua
expansão é assumido por nós, espectadores, convidados a caminhar sobre dezesseis
toneladas de vidro quebrado, que vai se partindo e reacomodando sob o peso de nos-
sas passadas. Em volta da bola, andamos por entre planos retangulares de superfícies
diversas: tela de náilon, grade, cerca de madeira, aquário de vidro onde nadam pei-
xinhos transparentes, numa espécie de labirinto, mas um labirinto que o olhar pode
atravessar quase totalmente.
Há uma nostalgia, portanto, que “tende à imagem”, “de longe”: o desejo enche de aura, então, o
objeto, tornando-o uma verdadeira imagem (ou seja, um objeto para o olhar). Mas existe um
“além” da imagem, no nome da coisa, que acaba sendo o refúgio de toda imagem. Uma ope-
ração aqui faz da imagem aurática, digamos, uma outra coisa que, graças à linguagem, a uma
potência literal, e não mais imagética, é capaz de transformar a imagem.
O olhar revira-se entre sujeito e objeto, e é então este último que parece olhar o sujeito,
retirando-o do lugar de senhor da representação, brincando com sua ex-centricidade.
Mas tal jogo de olhares não é recíproco. Assim como dizem do amor, o olhar é cego.
“Poder-se-ia dizer”, escreve Benjamin, “que é tanto mais subjugante um olhar quanto
mais profunda é a ausência de quem olha.” (Ibid., p. 67).
Em seguida, o filósofo comenta: “Quanto mais se dá conta Baudelaire deste fato, mais
claramente se percebe a decadência da aura em sua poesia” (ibid., p. 66). Entre as coi-
sas nos vendo como nós as vemos, no sonho de Valéry, e a inquietante floresta de Bau-
delaire, há uma diferença sutil, porém importante: na segunda, a aura só se apresenta
ao decair. Os símbolos formam florestas pelas quais o homem apenas passa, flâneur,
incapaz de atravessá-las do início ao fim, e os olhares lançados sobre ele pelos símbo-
los tornaram-se inquietantes em sua “familiaridade”. Uma palavra pode então desmo-
ronar sobre si mesma, como aconteceria na poesia do escritor francês, diz Benjamin
(ibid., p. 45). Em vez de roçar nossa pele como a sombra do galho na cena campestre
da aura, a palavra baudelairiana cairia sobre nossas cabeças como o céu dos gauleses,
derrubando-nos, sem dúvida. Ou apenas desestabilizando, com esse choque, a posição
do sujeito. Como mostrando sua própria engrenagem, a aura denuncia sua própria
1 “O homem passa através de florestas de símbolos/ Que o observam com olhares familiares” (tradução nossa).
25
impossibilidade – ela não deixa, apesar de tudo, e paradoxalmente, de performar o
encontro com a coisa, a vivência da cena do olhar, mesmo que ali o sujeito não tenha
mais lugar garantido (ou justamente por isso).
Fazer da técnica, um objeto humano. O aparelho técnico do nosso tempo não seria
mais do que um algo intermediário entre mim e o outro, não para que formemos, a
partir daí, uma massa coesa e compacta, sempre em torno de um líder, como na céle-
bre descrição freudiana de “Psicologia das massas e análise do ego” (Freud, 1921/1976).
Mas um meio no qual se podem introduzir desvios, brechas onde o desejo possa fu-
gidiamente aparecer, e o sujeito se apresente numa aura incerta, bruxuleante, sob o
modo do mal-estar na cultura de que falava o psicanalista.
Baudelaire, visionário, concebia como tarefa artística em geral “que toda mo-
dernidade deva ter valor para se tornar futuramente antiguidade” (apud Benjamin,
2000a, p. 17).
27
Notas s ob re na rrativa,
experiência e po breza e m Wal te r
Benjamin e s uas re l aç õ e s co m a
contemporaneid ad e
Luisa Duarte*
1 W. Benjamin, “Sobre alguns temas em Baudelaire”. In: Obras escolhidas, vol. III. São Paulo:
Brasiliense, 1989, p. 108.
2 S. Freud, “Jenseits des Lustprinzips”. Viena:..., 1923, p. 31.
29
sistemas psíquicos, porém como que se esfumaça no fenômeno da conscientização”.3
A conclusão desta hipótese reside no fato de que a conscientização e a permanência de
um traço mnemônico são incompatíveis entre si para um mesmo sistema.
3 Id., ibid.
Benjamin enxerga com acuidade a chegada desse novo tempo, no qual já não é
possível trocar experiências. Tudo mudou tanto, e de maneira tão drástica, que as
experiências passam a não ter mais sentido coletivo. O rompimento entre passado
e futuro lega um tempo sem referências para os homens modernos. A experiência
de um pai já não vale para o filho. Chegou o tempo das experiências individuais
ou, como afirmou Benjamin, da vivência.
4 W. Benjamin, “Experiência e pobreza”. In: Obras escolhidas, vol. I. São Paulo: Brasiliense, 1989,
p. 114.
31
dessa impossibilidade de troca que já vinha se anunciando há tempos. A tecnologia
que se volta contra o próprio homem e o silêncio dos combatentes que voltam da
guerra mais pobres em experiências comunicáveis são exemplos extremamente repre-
sentativos, para Benjamin, dessa ruína. Os diversos livros escritos por esses mesmos
combatentes, nos anos que se seguiram à guerra, são um sinal de que aquelas histórias
não poderiam ser contadas de boca em boca. Cada livro é a vivência de cada um da-
quele episódio. Essa versão de cada um só pode ser contada na forma de livro que, por
sua vez, será também lido por um leitor, individualmente, num gesto de interioridade
que é exemplar desse novo tempo.
A queda da narrativa
Tanto o camponês, que nunca saiu de sua terra, quanto o marinheiro, que já
caminhou por diversas, possuem uma certa experiência a ser transmitida. É justamen-
te essa necessidade de solucionar o problema da distância que a narrativa irá cumprir.
Assim, é possível entrever que a experiência é coletiva, pressupõe um encontro, ao
mesmo tempo em que está vinculada a um modo mais artesanal de estar no mundo,
típico do que podemos chamar de uma era pré-moderna.
Esse processo a que Benjamin se refere de forma alguma tem sua origem na
modernidade. Não estamos aqui nos referindo a uma “característica moderna”, mas
sim a um processo que vem se desenvolvendo “concomitantemente com toda uma
evolução secular das forças primitivas”, e encontra na modernidade um ápice.
A pobreza da modernidade
Com “O narrador”, vimos que os novos tempos já não podem mais abrigar
uma forma de arte como a narrativa, cuja vida dependia de um outro mundo. Mundo
este que, por sua vez, encontrava-se ligado a um modo de produção artesanal, em que
a experiência coletiva entre os homens ainda se fazia presente, e as distâncias eram
superadas através do ato de contar histórias.
A falência da experiência
6 W. Benjamin, “Sobre alguns temas em Baudelaire”. In: Obras escolhidas, vol. III, op. cit., p. 107.
7 W. Benjamin, “O narrador”. In: Obras escolhidas, vol. I, op. cit., p. 200.
8 W. Benjamin, ibid., p. 201.
33
Neste texto não estamos nos ocupando de uma importante questão, ou seja, a da des-
truição da aura das obras de arte, assunto esse profundamente discutido por Benjamin
em seu ensaio “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica” (escrito em
1955, publicado pela primeira vez em 1965). Porém, cabe aqui assinalar que este é mais
um fenômeno – junto com a queda da narrativa, a deterioração da validade contida
nos conselhos e tantos outros aspectos – que aponta para o mesmo diagnóstico, isto é,
o do fim da experiência na modernidade.
Talvez este seja um prisma adequado para compreender a pobreza que Ben-
jamin menciona, em seu texto de 1933, que a miséria de seu tempo não é uma miséria
privada, mas sim de toda a humanidade. É sob o efeito de dois fatos de enorme im-
portância sociopolítica que abalaram os antigos parâmetros de racionalidade – as duas
Guerras Mundiais – que Benjamin sentencia o auge dessa pobreza.
Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas
que a experiência pela guerra de trincheiras, a experiência econômica
pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral
pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde
puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem
diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo
de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e
minúsculo corpo humano.9
Assim, trata-se de um ápice que possui como resultado o rompimento do fio da tra-
dição. Nesse turbilhão de forças, encontra-se um covarde embate entre o frágil e mi-
núsculo corpo humano e a torrente brutal protagonizada pela tecnologia. “Uma nova
forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepon-
do-se ao homem.”10
9 W. Benjamin, “Experiência e pobreza”. In: Obras escolhidas, vol. I, op. cit., p. 115.
10 W. Benjamin, ibid., p. 115.
Ou seja, não se trata de pouca coisa o que se passa naquele início de século
XX. As condições históricas são totalmente diversas das anteriores, exceto pelas nuvens
no céu. Esta sentença sinaliza para as mudanças ocorridas na passagem do século XIX
para o XX. Debaixo daquele céu, por sua vez, encontra-se uma pobreza que é de toda
a humanidade, e por ela deve ser assumida.
A pobreza da contemporaneidade
Benjamin relatou com precisão aguda as transformações radicais pelas quais o Oci-
dente passou no início do século passado. Hoje vivemos transformações tão profundas
quanto. Estas, atuais, disseminam também o seu tipo de “pobreza”, que, assim como
aquela delineada pelo autor, diz respeito a todos, e por nós deve ser assumida.
Se Benjamin foi o filósofo da modernidade, hoje essa etapa deu lugar à con-
temporaneidade. Assim, retornar ao início disso que chamamos de contemporâneo
torna-se pertinente. “Soyons réalistes, demandons l’impossible!” – uma articulação
entre o tempo da “realidade” e o tempo do “im-possível” – era o grito que inundava
as ruas de Paris em maio de 1968. Esse clamor que mesclava realidade e sonho, que
é parente do utópico, continha o desejo de rechaçar o poder vigente, ditatorial, em
diversas partes do planeta, bem como a vida alienada pelo consumismo, o culto da
produtividade semeado pelo capitalismo, a tendência à uniformização e segregação do
diferente que gerava uma padronização igualmente alienante.
Um pensador como Michel Foucault advogava então não por utopias, mas
por heterotopias,11 pelo local, o setorial, para que o pequeno e o cotidiano não se-
guissem sepultados pela política em letras maiúsculas e pelas razões de Estado. Teste-
munhava-se também o surgimento das chamadas micropolíticas. As práticas sociais
reiniciam-se em um nível micro. Nas palavras de Félix Guattari: “Tudo que eram for-
mações políticas, sociais e sindicais na época de Sartre desmoronaram. (…) Na época
11 Ver ensaio “Outros espaços”, de Michel Foucault. In: Michel Foucault, Ditos e escritos III –
Estética: literatura e pintura, música e cinema. Forense Universitária, 2001, p. 415.
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de Michel Foucault o que aparece de pronto são problemáticas em todos os níveis do
social: no plano da educação, das prisões, da psiquiatria, sobre a homossexualidade e
a prostituição. Essa problemática é irreversível, apesar de sua capa de chumbo, apesar
dos anos invernais pelos quais passamos. Mas notamos que há uma micropolítica, um
nível microssocial que é um lugar onde operam e se reiniciam as práticas sociais”.12
Somado ao que já foi dito, cabe recordar que o ano de 1968 marca o mo-
mento de revoluções radicais mundo afora. Argentina, Brasil, Chile, China, Cuba,
EUA, França e muitos outros países viviam momentos decisivos, fossem de golpes
ditatoriais sangrentos, fossem de luta por conquistas no território da sociedade
civil. Homens e mulheres lutavam por seus direitos, jovens tomavam como alvo as
instituições em busca de mais liberdade. A década de 1970 inicia-se abrigando não
um mundo de plena realização das ambições antes pretendidas, mas sim de desilu-
sões no contexto macropolítico e conquistas no universo micropolítico. A famosa
crise do petróleo em 1973 gera uma mudança na economia mundial que coincide
com o aparecimento do termo “pós-moderno” nos estudos de J. F. Lyotard, e o
início do fim da era das grandes narrativas.
Agamben recorda que, para os gregos antigos, não havia um termo único
para exprimir o que queremos dizer com a palavra vida. Na Grécia antiga, ela se divi-
dia em dois: zoé, que significa o mero fato da vida biológica, de se estar vivo, valendo
para animais, homens ou deuses; e um outro termo, bíos, “que indicava a forma ou
maneira de viver própria de um indivíduo ou um grupo”.13
Grosso modo, Agamben mostra como o biopoder, o poder sobre a vida, teria
conseguido colonizar de tal forma as vidas, as nossas vidas, que elas se tornaram “vida
nua”, ou seja, vida como simples fato biológico, subtraída de toda a sua potência de
singularidade, autenticidade. A vida empobrecida, essa “vida besta”, está indissocia-
velmente ligada a uma dissolução do caráter político de nossas relações, da queda da
experiência da qual já falava Benjamin no começo do século passado. A experiência
capaz de ser transmitida. Uma vivência torna-se experiência no momento em que se
torna passível de ser comunicada, partilhada. Quando essa qualidade do que vivemos
se rompe, temos tão somente vivência, e não experiência.
13 G. Agamben, “Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I”. Editora UFMG, p. 10. 2002
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que o sociólogo Richard Sennett batizou em um de seus livros de “corrosão do caráter”.
Alguém mais otimista poderia advogar que as redes digitais constituem-se hoje
em um ponto de entrelaçamento, de vínculo, entre as pessoas. Para além de todas as faci-
lidades e formas democráticas de distribuição de conteúdo que elas proporcionam, penso
que as redes são hoje um receptáculo de inúmeros sintomas das compulsões contempo-
râneas. Receptáculo do vício de enviar e receber mensagens – espécies de choques con-
temporâneos, tais como aqueles diagnosticados por Benjamin. A novidade agora não é a
quantidade de informação que uma metrópole despeja em cada um de nós ao sair da rua,
mas sim a quantidade de informação, de tempo gasto, de mensagens e aparições (Ser é ser
visto) que envolvem a rede (Internet) dentro de nossas casas ou nos locais de trabalho.
Ou mesmo na hora do “lazer”. Estamos envoltos naquilo que o teórico alemão Christoph
Türcke chama hoje de “distração concentrada”.14 Em um contexto como esse, o ato de re-
sistência seria conseguir filtrar a quantidade de envios e a nossa compulsão por responder
aos mesmos. A conquista que pode advir daí, dessa diminuição na voltagem de envios e re-
cebimentos de mensagens e informações, pode-se supor, é um silêncio que nos coloca em
contato com nós mesmos (reside aí um grande medo? O que ocorreria se “parássemos”?)
e, por consequência, podemos supor, poderia se abrir um caminho para uma vida mais
densa, permeada por uma concentração no sentido forte do termo. A fuga da “distração
concentrada” torna-se assim um dos grandes desafios da nossa época.
14 Ver o livro Sociedade excitada – filosofia da sensação, de Christoph Türcke. Editora Unicamp.
15 M. R. Kehl, O tempo e o cão – a atualidade das depressões. Boitempo, p. 13.
O materialista histórico é aquele que tem os olhos voltados numa direção: a do que
precisa ser salvo. Aqui ele aparece transfigurado como o anjo da história. Ele está vol-
tado para o passado, e não enxerga sem espanto a realidade que tem a sua frente. Pois,
onde o historiador clássico vê uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma grande ca-
tástrofe, onde aquele vê uma sucessão de vitórias, ele vê um amontoado de ruínas. Ele
quer parar, recolher os destroços, juntar os fragmentos, acordar os mortos, salvar. Mas
não pode. A tempestade que o impede é demasiadamente forte. Essa tempestade o leva
em direção ao futuro. Futuro que se chama progresso.
O ímpeto progressista vai deixando para trás ruínas sobre ruínas. Essas ruínas são a
transfiguração do acúmulo de sofrimento dos perdedores, dos não incluídos. É para reverter
esse processo, e transformar a história num campo de luta, e não de complacência, que trabalha
o materialista histórico. A nova temporalidade proposta por Benjamin é o mecanismo que
propicia essa transformação. Aqui, o ato de acessar o passado tem como bússola a urgência do
presente. Pois só tendo em vista este prisma é que a retirada do objeto histórico do continuum
do tempo pode significar uma modificação do presente, ou seja, pode ser útil a esse presente.
16 W. Benjamin, “Teses sobre o conceito de história”. In: Obras escolhidas, vol. I, op. cit., p. 226.
39
Mas o materialista histórico escuta não só o presente, mas também o passado.
Esse também é sujeito. Ao dirigir apelos ao presente, o alvo é a “frágil força messiânica”
presente nos homens.
O passado traz consigo um misterioso índice, que o impele à redenção.
Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes?
(…) Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas nem chegaram
a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as
gerações precedentes e as nossas. Alguém na Terra está à nossa espera.
Nesse caso, como a cada geração, foi-nos concedida uma frágil força
messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode
ser rejeitado impunemente. O materialista histórico sabe disso.17
“Alguém na Terra está à nossa espera.” Cabe a nós responder a esta convocação. Esta
não pode ser rejeitada impunemente. O preço de se ignorar as ruínas e seguir em fren-
te é um retorno do recalcado sob a forma de uma barbárie negativa, catastrófica, geral
e irrestrita. É preciso parar, através do “tempo agora”, e nos voltar para o passado, à luz
do presente, a fim de juntar os fragmentos, acordar os mortos. Esta é uma possibilida-
de que se abre para a saída do ciclo fantasmagórico de repetição do mesmo, que nas
Teses tem o selo da perpetuação de uma história contada sempre sob o ponto de vista
dos vencedores. É nesta nova relação com a história, tecida no reenvio entre presente
e passado, que habita a esperança de um futuro diferente do sempre-igual. Cabe a nós,
munidos de uma “frágil força messiânica”, não só contemplar as ruínas, mas também
transformá-las. Estas palavras, escritas há exatos setenta anos soam hoje extremamen-
te atuais e necessárias. Elas incluem o modo de lidar com o tempo que é nosso, que nos
foi dado, de maneira política, de forma responsável. A busca por esse lugar que solicita
e deseja um senso de coletividade é uma saída possível para este estado de Vida Nua,
de zumbis distraidamente concentrados, supostamente conectados e verdadeiramente
solitários, e tantas vezes indiferentes. Reler Walter Benjamin nos recorda a um só tem-
po a sua dimensão política e humana. Em um tempo despolitizado e desumano como
o nosso, o seu pensamento torna-se, sem dúvida, ainda mais necessário e urgente.
17 W. Benjamin, “Teses sobre o conceito de história”. In: Obras escolhidas, vol. I, op. cit., p. 223.
41
O novo b arb áro, o n arrad o r e o
anjo da his tóri a
Sybil Safdie Douek*
Palavras-chave Resumo: Teria Benjamin algo a nos ensinar hoje? Esta é a questão
memória; história; central deste artigo. Inspirando-se nos escritos de Walter Benjamin,
tradição; salvar o parte-se da problemática da perda da memória e da tradição no
passado; tempo século XX, problemática que vem acompanhada de uma pergunta:
do agora; tempo teria a tradição ainda algo a ensinar ao homem do século XX? A
descontínuo; concepção benjaminiana da história, fruto de uma inusitada aliança
rememoração; entre a teologia judaica e o materialismo histórico, consiste em ‘salvar’
renovação; criação o passado, convocando-o no solo de hoje para recriá-lo e renová-lo,
do passado a partir do tempo presente, de um ‘agora’ que para o fluxo contínuo
do tempo, evidenciando um tempo, portanto, descontínuo e tecido
Key words de rupturas. A memória benjaminiana realiza-se no Eingedenken, na
memory; history; rememoração: não é retomada passiva de um passado tal como de
tradition; saving fato aconteceu, mas é renovação e criação.
the past; present
time (now); Abstract: Does Benjamin still have something to teach us today? This is
discontinuous the core question in this article. Inspired by Walter Benjamin’s writings,
flow of time; it starts from the problem of loss of memory and tradition in the 20th
remembrance; century, a problem accompanied by a question: Does tradition have
renovation; creation something to teach to 20th-century mankind yet? The Benjaminian
of the past conception of history, result of an unusual alliance between Jewish
theology and historical materialism, consists in ‘saving’ the past,
convoking it on the grounds of today, to recreate and renovate it in the
present time, in a ‘now’ that stops the continuous flow of time; therefore,
it renders evident a discontinuous time, interlaced with ruptures.
Benjaminian memory realizes itself in Eingedenken, in remembrance:
it is not a passive retaking of the past just as it really happened, but it
is renovation and creation.
* Sybil Safdie Douek é psicóloga e doutora em filosofia pela PUC-SP. Publicou Memória
e exílio, pela Editora Escuta, em 2003, e publicará Paul Ricoeur e Emmanuel Lévinas: Um
elegante desacordo, pela Editora Loyola (no prelo).
Em todos esses textos, uma mesma indagação parece voltar com insistência:
o que fazer a partir dessa ruptura que o homem do século XX operou com o passado?
Seria ainda possível, ou até mesmo desejável, recuperá-lo? Poder-se-ia definitivamente
esquecer a memória e começar de novo? Ou dever-se-ia chamá-la novamente? Teria a
tradição ainda algo a nos ensinar?
Tantas questões que, bem ao estilo benjaminiano, não foram resolvidas: não
se encontra nele uma resposta conclusiva. Sua obra não forma um sistema fechado e
coerente, constituindo-se mais em fragmentos e elementos heterogêneos, a partir dos
quais se pode formar um desenho, como no mosaico, ou no caleidoscópio: nestes, a
cada vez, um novo desenho pode ser inventado a partir do jogo de espelhos e cores.
Assim também acontece em seus textos: os mesmos elementos combinam-se sob dife-
rentes formas, as mesmas questões reaparecem a cada vez iluminadas sob nova ótica.
Esta bela parábola pode ser interpretada de muitas maneiras, entre as quais
se destaca a imagem do tesouro: este não está nem no ouro não encontrado, nem
nos vinhedos que deram frutos, mas nas palavras do pai e nos ouvidos dos filhos, ou
seja, na palavra transmitida de pai para filho, de geração em geração, palavra que diz
respeito à transmissão de uma experiência: esta pode ser assim compartilhada e ter
43
continuidade, atravessando, de certo modo, a morte do pai. A experiência podia en-
tão ser comunicada sob diferentes formas: provérbios, histórias e/ou narrativas. Mas,
“Que foi feito de tudo isso?” (Ibid.). Morreu, diz Benjamin: ninguém mais sabe nem
contar, nem ouvir histórias, ninguém mais se interessa por aquilo que os velhos e
moribundos têm a dizer. A imagem paradigmática do velho moribundo rodeado de
seus descendentes atentos a suas palavras, encontra-se hoje, tal como uma amarelada
e desbotada fotografia, apagada pelo tempo. Não somente por não se ouvirem mais as
histórias que os velhos contam, tampouco por não se lhes pedirem conselhos (afinal
de que serve sua experiência?), mas também pelo fato de que a morte hoje é vivida so-
litária e secretamente, quase clandestinamente: do quarto do moribundo ao asséptico
quarto do hospital, não é apenas o local da morte que muda, mas, entre outras coisas, a
possibilidade de não mais ver a morte de perto, de escondê-la, cercando-a de silêncio:
“Em espaços que ficaram purificados de morte, os cidadãos hoje são habitantes enxu-
tos de eternidade e, quando seu fim se aproxima, eles são dispostos pelos herdeiros em
sanatórios ou hospitais” (Benjamin, 1985b, p. 64). É na hora da morte, entretanto, que
a palavra assume sua transmissibilidade: com a recusa do espetáculo da morte, joga-se
fora também a palavra do ancião em seu leito de morte.
As experiências não mais podem ser transmitidas “de boca em boca”, e isso
porque a experiência radical e incomunicável da guerra emudeceu os homens e, as-
sim, empobreceu-os, privando-os do tesouro da experiência. Este foi enterrado nas
trincheiras da Primeira Guerra. Proféticas palavras, quando se pensa nos relatos dos
sobreviventes dos campos de concentração, onde a palavra se paralisou diante do hor-
ror: algum trágico tempo depois, Primo Levi tenta descrever isto em É isto um homem?
Nova barbárie da qual Benjamin pouco fala em “O narrador”, talvez pelo fato
de a barbárie nazista ter levado às últimas consequências essa desumanização e des-
personificação: a impensável barbárie real, na qual desaparece o homem enquanto tal,
para dar lugar ao puríssimo ariano, interrompe o desejo benjaminiano da “nova bar-
bárie”. Em “O narrador”, Benjamin não fala mais em barbárie, nem em apagar os ras-
tros ou fazer tábula rasa do passado, mas detém-se mais demoradamente no conceito
de experiência, desta vez, pensado sob o prisma de um gênero literário: a narração, em
oposição ao romance clássico. Nesse texto, em que analisa a obra de Nikolai Leskow,
Benjamin lamenta o fim da narração. Assim como em “Experiência e pobreza” a pala-
vra emudece na voz do ancião às portas da morte, também se cala a voz do narrador:
“a arte de narrar caminha para o fim” (Benjamin, 1985b, p. 57). E, com isso, “uma
faculdade, que nos parecia inalienável, a mais garantida entre as coisas seguras, nos [é]
retirada. Ou seja: a de trocar experiências.” (Ibid.). Após esta constatação, Benjamin
retoma quase ipsis litteris o trecho de “Experiência e pobreza”, no qual dizia que este
silêncio é fruto da experiência da Primeira Guerra, experiência incomunicável, que
silenciou os que voltaram do campo de batalha.
45
de suas longínquas viagens com algo para contar, e o povo quer ouvi-lo, mas o lavrador
também conhece as histórias e tradições da sua terra. A esse respeito, lembra Jeanne-Marie
Gagnebin que “a palavra Erfahrung vem do radical fahr – usado no antigo alemão no seu
sentido literal de percorrer, de atravessar uma região durante uma viagem” (Gagnebin,
1994, p. 66) . Aquele que viaja, no espaço ou no tempo, este é o autêntico narrador, que
transmite aos seus ouvintes o conhecimento do passado ou do lugar distante, superando,
por assim dizer, a distância espacial e/ou temporal. A experiência, material da narração, é
assim compartilhada pelo narrador e seus ouvintes. Mas faltam hoje narradores e ouvintes:
não só a arte de narrar caminha para o fim, mas também a arte de escutar. A questão da
escuta é fundamental no processo de transmissão da experiência: sem a escuta, as palavras
perdem-se ao vento, e as narrativas não são mais retidas, não podendo mais ser recontadas
(Benjamin, 1985b, p. 62).
Esta imagem do Anjo na gravura de Paul Klee, adquirida por Benjamin em 1921, tor-
nou-se, de certa forma, sua marca registrada – pode-se dela extrair a sua filosofia da
história: esta não é uma cadeia de acontecimentos rumo ao progresso, mas uma catás-
trofe, um amontoado de ruínas, de fragmentos e despojos.
47
Paul Klee
1879, Munchenbuchsee, Suiça - 1940, Muralto, Suiça
Angelus Novus, 1920
Oil transfer and watercolor on paper
31,8 x 24,2 cm
Presente de Fania e Gershom Scholem, Jerusalem; John Herring, Marlene e Paul
Herring, Jo Carole e Ronald Lauder, Nova York © VG Bild-Kunst, Bonn
O Angelus Novus não se deixa seduzir por essa causalidade: “Onde nós vemos
uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavel-
mente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés” (Tese 9); tampouco pelo progresso
na história, que o arrasta, malgrado seu desejo, mas ao qual ele dá as costas. “Essa tem-
pestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto
o amontoado de ruínas cresce até o céu.” (Tese 9). A tempestade arrasta o Anjo para
longe: aqui está claramente figurada a impotência do Anjo, cuja força é menor do que
a do progresso. No entanto, num certo sentido, esse afastamento figura não só uma
impotência, mas também uma necessidade: a necessidade do Anjo de afastar-se de tal
perspectiva, na qual a história é uma cadeia de acontecimentos, inscrita na continui-
dade e linearidade do tempo.
Mas a crítica de Benjamin não para aí: pois é esta mesma concepção de tempo
que permite ao historicista um mergulho no passado, de tal modo que ele o capte em
sua integridade ou “como ele de fato foi” (Tese 6). O historicista acredita que há uma
verdade do passado que pode ser objetivamente apreendida hoje. A atividade essencial
do intérprete é sua capacidade de compreensão, isto é, de transportar-se para aquele
momento passado, colocando-se no lugar do outro, identificando-se com ele, tentando
compreendê-lo como de fato foi, sem que o presente o atrapalhe nessa empreitada, em
que o presente, de certa forma, se anula diante do passado para recuperá-lo enquanto
tal. Esta suposta empatia passa ao largo do verdadeiro diálogo, na medida em que
anula as diferenças entre seus interlocutores: o passado, que supostamente deveria ser
ressuscitado, é na realidade negado em sua alteridade e diferença. Ao mesmo tempo, o
presente é colocado em suspensão: anula-se a presença daquele que escreve a história.
Mistificadora empatia que, anulando a presença daquele que escreve a história, anula
também sua capacidade de autorreflexão crítica. O resultado de tal empatia só pode
ser empatia com o vencedor (Tese 7). O método historicista de compreensão mostra-
-se, assim, menos inocente do que parece, pois sua pretensa neutralidade faz com que
compactue com a história dos vencedores, a história oficial da qual não constam a dor
e o sofrimento dos vencidos e/ou oprimidos:
Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que
os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados
no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses
despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista histórico
os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que
ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror.
Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que
os criaram, como à corveia anônima dos seus contemporâneos. Nunca
houve um documento da cultura que não fosse também um monumento
da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é,
tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida
do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa
escovar a história a contrapelo. (Tese 7)
Os bens culturais são despojos que nascem do sofrimento da “corveia anônima”, dos
“corpos prostrados no chão”. Por isso, como já estava indicado no texto “Experiência e
pobreza”, a cultura, inseparável do processo de sua transmissão, é barbárie. Por isso o
Angelus Novus não vem apenas como redentor, aquele que gostaria de juntar os cacos
e fragmentos da história, mas também como destruidor.
Não se trata de substituir uma história por outra, escrevendo a história dos ven-
cidos, como negativo da fotografia da história oficial: não somente é outra história que
deve ser contada, mas, principalmente, e esse ponto é essencial, esta nova história deve
ser contada de um outro jeito: a partir do “tempo de agora” (Jetztzeit). “Articular histo-
ricamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’” (Tese 6). Não há um
tempo passado puro, mas um passado recriado, ou melhor, capturado pelo presente: “A
verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem
que relampeja irreversivelmente no momento em que é reconhecido”. (Tese 5). O passado
só pode ser reconhecido no presente, enquanto se torna presente hoje.
51
Parar o tempo, ‘salvar’ o passado, acordar os mortos, juntar os fragmentos: eis
uma definição bastante inusitada da tarefa do historiador materialista, que só pode ser
compreendida à luz da primeira Tese: a aliança entre teologia e materialismo histórico.
Um autômato ou fantoche joga xadrez e ganha sempre: suas jogadas são conduzidas,
através de cordéis atados à sua mão, por um anão corcunda, escondido na mesa do
tabuleiro. “O fantoche chamado ‘materialismo histórico’ ganhará sempre. Ele pode
enfrentar qualquer desafio, desde que tome a seu serviço a teologia” (Tese 1): a teologia
é este anão. Pode-se imaginar a celeuma que causou tal metáfora: os amigos da teolo-
gia a dizer que ela conduz o fantoche, enquanto os marxistas a ostentar que ela está a
serviço do materialismo. Nem uma nem outra, mas ambas.
53
‘materialismo histórico’ ganhará sempre. Ele pode enfrentar qualquer desafio, desde
que tome a seu serviço a teologia”. (Tese 1). Trata-se de uma luta: de um lado, o Mes-
sias, de outro, o Anticristo. Por isso certamente ‘salvar’ o passado não é tarefa que se
possa deixar ao sabor do acaso, mas decisão ética e política. É isto que Benjamin tem
a nos ensinar…
Refe r ê n c i a s b ib liográficas
BENJAMIN, Walter. “Experiência e pobreza”. In: Obras escolhidas, volume I, Magia
e técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense,
1985a.
. “O narrador: Observações sobre a obra de Nikolai Leskow”. In: Benja-
min, Adorno, Horkheimer, Habermas. Coleção Os pensadores. Tradução de Modesto
Carone. São Paulo, Abril Cultural, 2ed.,1983. Há também a tradução de Sérgio Paulo
Rouanet, in: Obras escolhidas, volume I, Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Bra-
siliense, 1985b.
______________. “Sobre o conceito da história”. In: Obras escolhidas, volume I, Magia e
técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. Há
também a tradução de Jeanne-Marie Gagnebin e Marcos Luiz Muller, in: Michael Löwy.
Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.
GAGNEBIN, Jeanne-Marie. “Prefácio: Walter Benjamin ou a história aberta”. In: Walter
Benjamin, obras escolhidas I, Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
_____________________. Walter Benjamin: Os cacos da história. São Paulo: Brasilien-
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_____________________. História e narração em W. Benjamin. Campinas, São Paulo:
Fapesp, Perspectiva, 1994.
MOSÈS, Stéphane. L’Ange de L’Histoire: Rosenzweig, Benjamin, Scholem. Paris: Seuil,
1992.
REHFELD, Walter. Tempo e religião: A experiência do homem bíblico. São Paulo: Edusp,
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SCHOLEM, Gershom. “Pour comprendre le Messianisme Juif ”. In: The Messianic Idea
in Judaism and other Essays on Jewish Spirituality. Nova York: Shocken Books, 1971.
Tradução francesa de Bernard Dupuy, Le Messianisme Juif: Essais sur la Spiritualité du
Judaïsme. Paris: Presses Pocket, Calmann-Lévy, 1974.
55
C A D E R N O DA A R T I S TA : C R I S T I N A R I B A S
Há pouco mais de um ano, resolvi voltar para algumas imagens que pareciam
inócuas em meu arquivo pessoal de negativos. O corte da tesoura abre uma brecha
como espaço novo nas fotografias de construções destruídas, feitas cerca de dez
anos atrás. Com o projeto Protótipos/Prototypes, convidei pessoas para realizarmos
colagens. Usamos as imagens de meu arquivo pessoal, assim como convido os par-
ticipantes a trazerem imagens de seus repertórios visuais. Conversas acompanham
a formação de novos cenários, lugares, paisagens e, logo, situações novamente in-
classificáveis, oscilantes entre realidades e tempos históricos distintos. Há imagens
de guerra (bombardeios aéreos e quarteirões inteiros destruídos), demolições e
reconstruções, escavações arqueológicas; operações que deformam as cidades, tais
como a “regeneração” de cidades europeias.
Para marcelina | hic et nunc, somaram-se imagens de outra ordem (ou outro
arquivo): resolvi usar o mesmo procedimento da colagem ou montagem para foto-
grafias já amassadas de situações de exposição de meu trabalho como artista, como as
instalações e objetos que, dispostos nos ambientes, desenham sombras. O espaço da
imagem, aqui “explodido”, destaca a estrutura de cada elemento. Com os fragmentos,
começa a surgir uma composição móvel de imagens. E a câmera fotográfica reaparece
como ferramenta para registrar montagens temporais. No movimento das mãos que
mixam os recortes, fica em aberto o que será a próxima “colagem”.
Referências bibliográficas
ALBUQUERQUE, Fernanda. “Sobre arquivos vivos e outras emergências”. Número
Nove (revista), São Paulo, dezembro de 2006, pp. 14-16.
OLIVA, Fernando. “As paredes estão ruindo ou estão sendo pintadas?” Número Quatro
(revista), São Paulo, 2004, p. 12.
SANTOS, Alexandre dos. “Da cidade como resposta à cidade como pergunta: a foto-
grafia como dispositivo de representação/apresentação do espaço urbano”. In: SAN-
TOS, Alexandre dos e SANTOS, Maria Ivone dos (orgs.). A fotografia nos processos
artísticos contemporâneos. Porto Alegre: Unidade Editorial SEC, editora da UFRGS,
2004, pp. 38-60.
57
À sombra da teo ria crítica
Vinicius Spricigo*
[…] desde que o critério de autenticidade não é mais aplicável à produção artística, toda a
função da arte fica subvertida. Em lugar de se basear sobre o ritual, ela se funda, doravante,
sobre outra forma de praxis: a política.
(Walter Benjamin)
1 No ensaio, Walter Benjamin identifica a secularização do campo artístico na perda da “aura” da obra arte. O objeto
artístico que primeiramente se prestava ao culto, e encontrava-se sempre fora do alcance do espectador, gradualmente
vai se desprendendo do seu significado religioso e torna-se acessível a todos, através da sua reprodutibilidade técnica.
Walter Benjamin, “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural,
1975, pp. 10-34.
2 Peter Buerger, Teoria da vanguarda. Lisboa: Vega, 1993.
65
nea, abarcando questões como a massificação da cultura, transformações na experiência
estética, reprodução da obra de arte, autonomia e função social da arte, entre outras.
Contudo, resta uma indagação: quem são os inimigos e os combatentes nos dias
de hoje? Numa época de perspectiva revolucionária, os intelectuais depositaram suas ex-
pectativas em classes revolucionárias. Primeiramente nas classes operárias, depois nos es-
tudantes e demais arautos da contracultura. Já o inimigo foi sempre o mesmo: a classe
dominante. Quem são esses personagens nos dias de hoje? Sobrou algum deles, quando o
avanço do capitalismo e da tecnologia atingiu seu estágio mais avançado?
sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 223-232.
5 “Há um momento em que os gestos de ruptura dos artistas que não conseguem converter-se em atos (intervenções
eficazes em processos sociais) tornam-se ritos. O impulso originário das vanguardas levou a associá-las com o
projeto secularizador da modernidade: suas irrupções procuravam desencantar o mundo e dessacralizar os modos
convencionais, belos, complacentes, com que a cultura burguesa o representava. Mas a incorporação progressiva das
insolências aos museus, sua digestão analisada nos catálogos e no ensino oficial da arte, fizeram das rupturas uma
convenção. […] Não é estranho, então, que a produção artística das vanguardas seja submetida às formas mais frívolas
da ritualidade: os vernissages, as entregas de prêmios e as consagrações acadêmicas.” Nestor Canclini, Culturas híbridas:
Estratégias para entrar e sair da modernidade. 2 ed. São Paulo: Edusp, 2003. (Ensaios Latino-americanos, 1).
6 Vilém Flusser, op. cit.
7 Barbara Freitag, A teoria crítica: ontem e hoje. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1990.
8 Arlindo Machado, Repensando Flusser e as imagens técnicas. Disponível em: http://www.arteuna.com/critica/flusser.
htm. Acesso em: 29 set. 2003.
9 Vilém Flusser, op. cit., p. 76.
67
No livro A filosofia da caixa preta, que reúne “ensaios para uma futura filosofia
da fotografia”, Vilém Flusser, define as imagens como “superfícies que pretendem repre-
sentar algo [o mundo]. […] [As imagens] devem a sua origem à capacidade específica de
abstração que podemos chamar de imaginação. […] Imaginação é a capacidade de fazer e
decifrar imagens”10. A decifração das imagens, para o autor, ocorre num espaço interpre-
tativo – imagens são símbolos conotativos – e num tempo circular e mágico – o eterno
retorno: “O tempo que circula e estabelece relações significativas é muito específico: tempo
de magia […] No tempo de magia, um elemento explica o outro, e este explica o primeiro
[tempo circular]. O significado das imagens é o contexto mágico das relações reversíveis”11.
Esta magicização das imagens para o pensador tcheco é um problema, pois reverbera na
percepção que temos da realidade. As imagens que inicialmente deveriam representar o
mundo, na medida em que apresentam uma realidade mágica, impedem o acesso do ho-
mem ao mundo: “Imagens são mediações entre homem e mundo. […] Imagens têm o
propósito de representar o mundo. Mas, ao fazê-lo, entrepõem-se entre mundo e homem.
Seu propósito é serem mapas, mas passam a ser biombos. […] Podemos observar, hoje,
de que forma se processa a magicização da vida: ilustram a inversão da função imagética e
remagicizam a vida”12. Tal fenômeno é intitulado pelo autor de idolatria da imagem.
Quando esta alucinação (idolatria), que faz o homem acreditar que o mundo das
imagens é o mundo real, alcançou o seu ápice, “surgiram pessoas empenhadas no ‘relem-
bramento’ da função original das imagens, que passaram a rasgá-las, a fim de abrir a visão
para o mundo concreto escondido pelas imagens. […] Eis como foi inventada a escrita
linear. Tratava-se de transcodificar o tempo circular em linear, traduzir cenas em proces-
sos. Surgiu assim a consciência histórica, consciência dirigida contra as imagens”13. Flusser
propõe inicialmente uma oposição entre pensamento conceitual (escrita) e pensamento
imaginativo (imagem). A escrita teria o papel de conscientizar o homem da magicização
das imagens. Entretanto, o efeito de rasgar as imagens foi contrário ao pretendido, “ao in-
ventar a escrita, o homem se afastou ainda mais do mundo concreto quando, efetivamente,
pretendia dele se aproximar. […] Os textos, não significam o mundo diretamente, mas
através de imagens rasgadas”14. A oposição entre escrita e imagem se desfaz, porém, com
a magicização do texto: “Embora textos expliquem imagens a fim de rasgá-las, imagens
são capazes de ilustrar textos, a fim de remagicizá-los. Graças a tal dialética, imaginação
e conceituação que mutuamente se negam, vão mutuamente se reforçando. As imagens
tornam-se cada vez mais conceituais e os textos, cada vez mais imaginativos”15.
10 Id., ibid., p. 7.
11 Id., ibid., p. 8.
12 Id., ibid., p. 9.
13 Id.
14 Id., ibid., p. 10.
15 Id., ibid.
16 Id., ibid., p. 11.
Por tomarmos as imagens técnicas como impressões automáticas do real sobre su-
perfícies, temos a impressão de que as imagens técnicas não precisam ser decifradas, o que torna
mais difícil decifrá-las. “O caráter aparentemente não simbólico, objetivo das imagens técnicas
faz com que seu observador as olhe como se fossem janelas, e não imagens. O observador con-
fia nas imagens técnicas tanto quanto confia em seus próprios olhos. […]”18
69
as imagens técnicas e reinserir a arte na vida cotidiana, alterando esse estado?
Arlindo Machado, numa leitura da obra de Vilém Flusser, acredita que cabe
justamente aos artistas tal labor:
71
Entretanto, o impulso utópico das vanguardas artísticas se esvaneceu na me-
dida em que ela foi institucionalizada. O retorno da arte para os museus não impede
essa experiência do mundo, mas elimina a sua continuidade com a vida cotidiana. Ou
seja, a arte de vanguarda teve o poder de desmagicizar a imagem, e o fez; contudo, teve
o seu lugar no mundo substituído pelas imagens técnicas, como afirma Flusser, e teve
que se recolher novamente no seu gueto.
Refe r ê n c i a s b ib liográficas
BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito da história”. In: Obras escolhidas, volume I, Ma-
gia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo:
Brasiliense, 1994, pp. 223-232.
_____. “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”. In: Os pensadores. São
Paulo: Abril Cultural, 1975, pp. 10-34.
BUERGER, Peter. Teoria da vanguarda. Lisboa: Vega, 1993.
CANCLINI. Nestor. Culturas híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade.
2 ed. São Paulo: Edusp, 2003. (Ensaios Latino-americanos, 1)
FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
FREITAG, Barbara. A teoria crítica: ontem e hoje. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1990.
MACHADO, Arlindo. Repensando Flusser e as imagens técnicas. Disponível em: http://
www.arteuna.com/critica/flusser.htm. Acesso em: 29 set. 2003.
Abstract: The teaching of art has been marked by the contrast of two
postures. The education of the artist can be seen both as a natural
consequence of possession of a gift or as a learning process in accordance
with criteria designed to give everyone a broad understanding of artistic
phenomena and their history. The paper discusses some aspects of this
situation and highlights some commuting characteristics of teaching
art that can be identified in academies and schools of different periods
and sociocultural contexts.
73
I have been led from an understanding of creative work derived from an
observation of the processes of my own work and from discussions with
my fellow artists to a wider interest in the psychological and sociological
basis of the arts.
In the last two years I have done considerable reading in the psychology
of the arts. I would now like to add a formal training in psychology to the
insight into the interpretation of visual forms given me by my personal
experience of the last fifteen years.
As palavras de Louise Bourgeois marcam o início deste texto com a afirmação de que o pro-
cesso de aquisição de conhecimento teórico é, tanto quanto a produção artística em si, englo-
bado pelas reflexões da artista sobre a criação e a inserção da arte no sistema da cultura. Intro-
duzem, portanto, duas posições antagônicas. Por um lado, durante muito tempo, e ainda hoje,
considera-se que o contato com a arte só é frutífero quando tem por base a posse de um dom
natural, espontâneo. Em contraposição a essa visão, que reconhece o aprendizado no campo
da arte apenas quando este ocorre segundo uma tendência biológica, podemos perguntar:
se a arte é um dom, o que se pode esperar de um projeto institucional para o ensino de arte?
75
pode tanto se deixar guiar unicamente pelas contingências objetivas de uma situação de comu-
nicação quanto pela necessidade de escolher e combinar os elementos de sua obra para imprimir
marcas subjetivas de autoria ou de originalidade. Por outro lado, diante da obra, o destinatário
pode acreditar que a experiência que essa lhe proporciona é excepcional e inigualável, ainda que
esteja inserida em um amplo sistema cultural em que todas as qualidades aparentemente únicas
podem também parecer, sob outros pontos de vista, previsíveis. Conforme a funcionalidade das
situações geradas por objetos do campo da arte, o uso correto dos elementos de uma linguagem
plástica, ou o “bom uso”, é, portanto, irrelevante.
7 Jakobson (2003, p. 28) descreve a existência de leis gerais de estruturação das línguas como as que guardam “o valor
de uma constatação artística de peso”. Para o campo da arte, as constatações são, em uma dinâmica própria, voláteis.
8 Pressupomos que a relação interlocutor/interlocutário é reversível e, portanto, ambos são ativamente engajados
no processo comunicacional. Poderia parecer que estamos favorecendo a posição ativa do sujeito que responde à
mensagem, e ignorando o papel do sujeito que a criou. Não é assim. Utilizamos o termo interlocutor para definir um
tipo de relação intersubjetiva, assim como utilizaremos neste texto a expressão “destinatário” em referência a um campo
conceitual diferente. Segundo Jakobson (2003, p. 37), quem fala “não é de modo algum um agente completamente livre
na sua escolha de palavras: a seleção (exceto nos raros casos de efetivo neologismo) deve ser feita a partir do repertório
lexical que ele próprio e o destinatário da mensagem possuem em comum”.
Qual é, afinal, a relação entre a visão de Porcher e a reflexão atual sobre a formação
do artista? Tendo em vista que, de fato, a dicotomia entre “talentosos” e “esforçados” acom-
panha todo o sistema de avaliação dos estudantes dos cursos superiores de arte, não é difícil
imaginar a pertinência das reflexões que citamos anteriormente sobre o papel do sistema
9 Porcher (1982, p. 20) estende sua crítica do modo pelo qual as posições antagônicas parecem, de fato, interdependentes:
“Os métodos tradicionais e os métodos liberais representam, aliás, sob este aspecto, as duas faces de uma mesma
moeda. Como acontece mais frequentemente do que se pensa, estas duas igrejinhas concorrentes, e que se excomungam
mutuamente, acreditam no mesmo Deus da arte, e estão pelo menos de acordo quanto à natureza sagrada das relações
que é preciso cultivar com ele. As diferenças residem apenas nos exercícios do culto, mas a finalidade perseguida é
idêntica nos dois casos. Essas lutas – essenciais, sem dúvida, sob outros pontos de vista – não passam na verdade de
uma briga entre irmãos rivais”.
10 Conforme foi publicado no Brasil, a edição do livro omite dados contextuais essenciais. Sua apresentação, como
se espelhasse uma constatação universal sobre o ensino de arte nas escolas e que, portanto, poderia servir a qualquer
educador, é ingênua. Talvez fosse hoje mais adequado e produtivo oferecer ao leitor brasileiro uma edição comentada.
77
educacional na superação de barreiras socio-culturais para o esboço de uma visão crítica da
missão educacional que os cursos superiores em arte têm assumido. Entretanto, qualquer
tentativa de revisão dos procedimentos pedagógicos pode tornar-se circunstancial ou equi-
vocada, na medida em que está condicionada às posturas intelectuais e artísticas do corpo
docente que o implementa. Por esta razão, as reflexões que este texto apresenta podem pa-
recer inespecíficas. O conjunto de ideias que se apresenta aqui reflete a possibilidade atual
de elencar aspectos gerais, que emergem com maior ou menor intensidade no ambiente
acadêmico, conforme diretrizes internas ou externas que lhe são impostas.
O ensino superior é gerenciado segundo princípios gerais e, por esta razão, não
é difícil imaginar que o sistema curricular deve privilegiar uma pedagogia racional. O uso
desta expressão, no campo da arte causa, geralmente, certo estranhamento, e até mesmo
desconforto. Alguns podem contra-argumentar que, ao atribuir uma importância desme-
dida a uma atitude mental, pode-se sufocar o florescimento de uma sensibilidade plena.
Entretanto, o argumento em favor da pedagogia racional apoia-se na convicção de que
é necessário, para implantar um sistema de ensino universal resistente às pressões de um
contexto socioeconômico que gera formas desiguais de acesso à arte, encontrar um deno-
minador comum, um caminho reto. Porcher (1982, p. 17) defende a transmissão de conhe-
cimento regulada exclusivamente pela razão e nos faz pensar nos desafios que emergem da
reflexão sobre um currículo que deve contemplar as expectativas de formação de indivídu-
os criativos e, ao mesmo tempo, verificar os resultados dos métodos empregados por meio
de sistemas de avaliação que, desde o ingresso, atribuem nota a habilidades individuais11.
11 Referimo-nos aqui especificamente à Prova de Habilidade Específica para a seleção de candidatos aos cursos de artes
plásticas (bacharelado e licenciatura) da Universidade de Brasília. Essa prova não avalia, de fato, o domínio de técnicas
de desenho que o candidato possa ter adquirido previamente, mas sim o modo pelo qual realiza um exercício que deve
solucionar em um tempo limitado.
12 A implantação do Reuni é um sinal inequívoco da expansão do ensino superior de modo apressado, merecedor de
Se nos últimos quarenta anos a importância antes atribuída à obra passa gra-
dualmente a se voltar para o artista, o indivíduo criador, o ateliê, por sua vez, deixa de ser
o espaço entre quatro paredes em que a obra de arte se materializa para ser um espaço
mental, radicalmente íntimo. A ocorrência da criação deixa de depender diretamente
de uma infraestrutura física, e o lócus de criação e produção de arte torna-se, portanto,
ambulante, independente, também, dos espaços das instituições de ensino.
Outro aspecto importante a ser mencionado aqui é que, não obstante a per-
tinência de um princípio racional para o ensino de arte, este não pode ser reduzido a
um modelo técnico, em que a execução de tarefas mecânicas e quantificáveis dispensa a
reflexão crítica sobre o papel da arte na veiculação de valores, individuais ou universais.
O racionalismo não é uma via estreita na qual o estudante de arte carrega o fardo da
tradição, a que deve dar continuidade, mas sim a abertura de um terreno livre da visão
mística do dom, em que a investigação das soluções poéticas seja proporcionada, indis-
tintamente, a todos os que busquem na linguagem plástica um meio de expressão.
É comum exemplificar o modo pelo qual, nas artes, o gênio nasce e se desenvolve li-
vremente à margem de sistemas de ensino com uma menção a Vincent Van Gogh e sua busca
obstinada por um domínio da linguagem pictórica. Esse artista, tanto quanto Paul Gauguin
e outros românticos que o antecederam, não se considerava um eleito, agraciado com um
dom natural. Em vez disso, considerava-se um condenado ao trabalho árduo e incansável
que o tornaria digno de ser considerado um pintor. Notamos nas cartas que escreveu a seu
irmão Theo que via o desenvolvimento de habilidades artísticas como o caminho que, na sua
opinião, lhe permitiria ser o instrumento para a expressão de uma verdade que lhe escapava,
uma análise aprofundada que escapa ao objetivo central deste texto.
13 Com a finalidade de tranqüilizar os que temem a razão, Porcher (1982, p. 17) defende seu papel na implantação
de um sistema que deve incluir também estratégias de avaliação e a formulação de uma “propedêutica necessária à
emoção artística”, independentemente das pré-disposições individuais dos estudantes.
79
sempre. Então, laboriosamente, insistiu. Em que pese a tradição pictórica holandesa que,
desde o século XVII havia consolidado a participação da arte e do artista em um mercado
de bens culturais muito amplo, Van Gogh parece querer restaurar, e por isso sua obra está
em sintonia com o século em que viveu, um modo de fazer arte autônomo, individual. Em-
bora não estivesse subjugado a uma escola ou a um mercado, Van Gogh estava condenado à
sua visão, ao seu conhecimento sobre arte persistentemente ampliado pelo estudo das obras
dos mestres que admirava com profunda humildade. Valorizava a observação das obras de
outros pintores, inclusive de seus contemporâneos, bem como o estudo obstinado do
modo pelo qual estes se tornaram – pelo domínio técnico e expressivo – instrumento de
uma voz divina. A visão autocrítica de suas limitações, que lhe pareciam mais evidentes
na medida em que confrontava suas pinturas com as de outros artistas, levava-o a bus-
car as fontes “teóricas” de um aprendizado que não havia recebido, como neste episódio
narrado em uma carta a seu irmão:
Lo que ha puesto fin a mi duda es la lectura del libro, muy comprensivo
sobre la perspectiva, de Cassagne: La Guía del A.B.C. del dibujo, y el
hecho de que ocho días después he dibujado el interior de una pequeña
cocina con sartén, silla, mesa y ventana, todo en su sitio y bien plantado,
mientras que antes atribuía a un milagro o a un acaso el que un dibujo
tuviera profundidad y una perspectiva exacta O que pôs fim à minha
dúvida foi a leitura do livro, muito abrangente sobre a perspectiva, de
Cassagne: A guia do ABC do desenho, e o fato de que oito dias depois
desenhei o interior de uma pequena cozinha com frigideira, cadeira,
mesa e janela, cada coisa em seu lugar e bem situada. Antes eu atribuía
a um milagre ou a um acaso que o desenho tivesse profundidade e uma
perspectiva exata14. (Van Gogh, 1975, p. 67).
No artigo “Van Gogh and the Problem with Tradition”, o pintor norte-americano Ross
Neher15 analisa a obra de Van Gogh como o resultado da dedicação ao estudo da pintura
e da disciplina que impôs a si mesmo com a finalidade de dominar os meios que lhe
permitiriam expressar sua visão da realidade. Um conjunto de atitudes fornecia a Van
Gogh as condições que fariam deste um artista menos intuitivo e mais consciente de suas
conquistas pictóricas. Para compreender o modo pelo qual Van Gogh construiu, com
extrema humildade, sua obra pictórica, é necessário estudar com atenção a maneira pela
qual em suas cartas ele expressa uma visão extremamente lúcida e analítica das obras
que tem a seu alcance, inclusive das gravuras japonesas que eram admiradas pelos pin-
tores franceses de sua época. Tal como Louise Bourgeois, que citamos na abertura deste
texto, além do estudo das obras, Van Gogh buscava as fontes que lhe poderiam ajudar a
conhecer melhor a linguagem:
14 O que pôs fim à minha dúvida foi a leitura do livro, muito abrangente sobre a perspectiva, de Cassagne: Guia do
ABC do desenho, e o fato de que oito dias depois desenhei o interior de uma pequena cozinha com frigideira, cadeira,
mesa e janela, cada coisa em seu lugar e bem situada. Antes eu atribuía a um milagre ou a um acaso que o desenho
tivesse profundidade e uma perspectiva exata. (Tradução da autora.)
15 Cf. Neher, 1989.
O exemplo de Van Gogh tem sido reduzido a um dos clichês mais utilizados quando se
pretende afirmar que nenhum indivíduo depende de um sistema de arte para tornar-se
artista. É, também, exemplo estereotipado de um modo de ser artista que ignora as coer-
ções do mercado de arte e a influência do colecionismo sobre sua produção. A esses dois
aspectos pode-se acrescentar um terceiro, a ser desenvolvido nas próximas páginas: con-
siderando que existem três instituições com poder de sancionar a produção artística – a
academia, o mercado de arte e a história da arte – qual destas exerce seu papel com maior
ou menor flexibilidade? Como um desdobramento desta questão, podemos perguntar
também se alguma dessas instituições pode ser considerada anticoercitiva.
16 Tenho a intenção de aprender seriamente a teoria. Não considero em absoluto que isto seja inútil, e creio que o que
sentimos ou captamos instintivamente torna-se claro e seguro quando estamos guiados em nossas buscas por alguns
textos que tenham sentido real prático. (Tradução da autora.)
17 Em um texto escrito por F. G. Stevens em 1859 e citado por Pevsner (2005, p. 62), o sistema de ensino acadêmico
“desprovido de inteligência e entendimento sempre foi o protetor da mediocridade e o inimigo do gênio”. Ainda
que o “gênio” seja um contraponto interessante no debate sobre a pertinência de um modelo de ensino universal,
consideramos, neste texto, “genialidade” uma palavra que, em nossa opinião, não expressa uma visão crítica de um
modo “natural” que, segundo o senso comum, é o único responsável pela formação de um artista.
81
Brasil, o candidato ao ingresso em um curso de nível superior em arte, é avaliado tanto
em seus conhecimentos gerais quanto na habilidade que demonstra por meio de um tes-
te específico, que pode ser complementado com a apresentação de um portfólio. Após a
aprovação, o estudante é submetido a outras avaliações ao longo do curso que, mediante
aprovação, garantem a ele o direito de receber um diploma.
Embora o termo academia tenha sido amplamente utilizado para definir ape-
nas o ensino de arte na universidade19, em sua origem, a academia20 não era um centro
de ensino formal. Por meio da leitura de Academias de arte (Pevsner, 2005), obtém-se um
panorama histórico abrangente da instituição “academia”21 como lócus para o ensino de
arte, assim como dos diversos usos da palavra “academia”, que historicamente têm sido
associados a diferentes sistemas de ensino, condizentes com as condições socio políticas
em que se desenvolvem. Interessa-nos resgatar do texto de Pevsner o modo pelo qual o
sistema de ensino de arte reflete em cada período um conjunto de valores que define a
situação da produção e da circulação de bens culturais.
18 Na “Introdução à edição italiana (1982)” incluída na edição brasileira de Academias de arte, seu autor, Antonio
Pinelli, fornece um amplo contexto de relações para o desenvolvimento das pesquisas e da obra de Pevsner, e apresenta
uma importante ressalva. No contexto da Geistesgeschichte, a relevância do Zeitgeist é inegável, o que não se pode dizer
do conceito que, aparentemente, o complementa: o Volkgeist. O espírito de um povo ou de uma “entidade étnico-
histórica”, que pode conduzir a apreciação do contexto cultural de uma época ao risco de “tocar perigosamente no a
priori do preconceito, da mitologia, do determinismo vulgar ou, pior, do racismo” (Pevsner, 2005, p. 27).
19 Sobre o uso dos temos, Pevsner (2005, p. 72) afirma: “Embora no sentido vernacular o termo universidade se
mantenha até o presente, a palavra academia foi adotada como sua tradução latina. Ainda hoje, em alguns lugares, os
dois termos são usados indistintamente”.
20 Segundo Pevsner (2005, p.100) “não sabemos nem quando nem como a palavra ‘academia’ foi usada pela primeira
vez para designar um lugar dedicado à educação de artistas”.
21 Assim como na Grécia antiga, no Quattrocento a palavra “academia” foi usada de início para designar um lugar,
depois um grupo de filósofos e, por fim, um sistema filosófico (Pevsner, 2005, p. 71). É também no Renascimento que
a palavra academia passa a ser adotada como a tradução latina de “universidade” (ibid., p. 72).
Apesar desse quadro, em que a opção por um curso superior em artes parece
ser uma atitude que reflete uma certa radicalidade de escolha, isenta de qualquer tipo de
pressão socio-cultural para que se alcance o sucesso profissional, um fantasma ronda a
consciência dos estudantes de arte. É o velho medo de que o fluxo sagrado de intuição, es-
pontaneidade e força criativa seja corrompido pela compreensão intelectual dos processos
artísticos. Para responder à pergunta “Pode-se ensinar arte?”, Rudolf Arnhein apresenta
uma posição que se funda num único princípio: embora tanto a produção quanto a apre-
ciação de obras de arte sejam decorrentes do cultivo da intuição, toda a argumentação em
sua defesa é, paradoxalmente, intelectual. Para Arnhein, a campanha iniciada pelos Ro-
mânticos, de ataque aos vários aspectos de uma abordagem intelectual da arte, teve como
alvo principal no século XX a interpretação de manifestações visuais das tendências da
mente humana segundo a psicanálise. Desse modo, a interpretação psicanalítica foi vista
como ameaça ao fluxo livre da criatividade, na medida em que os exemplos22 retirados da
história da arte desempenhavam um papel ilustrativo de conceitos teóricos23. Esse contex-
to, que predominou no século passado24 é diferente do atual, em que parece ter ocorrido
uma inversão na relação de subordinação. Com a intenção de demonstrar uma erudição
que não possuem, alguns artistas e estudantes de artes têm utilizado livremente conceitos
retirados de outros campos teóricos, das ciências biológicas à filosofia, e os transformam
aleatoriamente em temas que parecem pertencer ao senso comum.
Seja como for, é surpreendente que os estudantes de um curso não queiram ser
contaminados pelo contato com o conhecimento e prefiram manter, diante da possibi-
lidade de ampliar seus horizontes para compreender a linguagem e os códigos da arte,
um estado de falsa inocência. Esse resquício do Romantismo dos séculos XVIII e XIX
parece alimentar-se nos dias atuais do narcisismo que é permitido aos artistas a partir do
momento em que a fetichização de seus atos mais banais parece descartar a importância
22 Como exemplo, podemos citar o ensaio “Eine Kindheitserinnerung des Leonardo da Vinci”, de Sigmund Freud,
traduzido para o inglês com o título Leonardo da Vinci and a Memory of His Childhood, traduzido por Alan Tyson, na
primeira edição publicada nos Estados Unidos (Nova York: W. W. Norton & Company, 1964).
23 Para exemplificar a rejeição de seus alunos ao estudo teórico, Arnhein (1989, p. 57) comenta sua experiência no
ensino de psicologia da arte, em que alguns estudantes disseram que “they could not continue their attendance because
some of the rules and explanations I had given them turned up as disturbances during their studio work, interfering
with the freedom of their intuitive decisions” (não podiam continuar a frequentar [meus cursos], porque algumas das
regras e explicações que eu lhes dava se tornaram perturbadoras do trabalho de ateliê, interferindo na liberdade de suas
decisões intuitivas). (Tradução da autora.) ”
24 Embora também seja possível encontrar exemplos da utilização de obras de arte para “ilustrar” conceitos de vários
outros campos teóricos, como se estes pudessem substituir as teorias da arte.
83
do conhecimento de códigos e processos historicamente consolidados, como se estes
nunca tivessem existido.
A influência das proposições de Leonardo para o ensino de artes perdurou até o século
XIX25, ainda que não existam provas de que elas tenham sido implementadas sob sua
25 Segundo Pevsner (2005, p. 149), vigorava nas academias dos séculos XVII, XVIII e boa parte do século XIX “[a]
sequência de desenhos a partir de desenhos, desenhos a partir de modelos em gesso e desenhos a partir de modelo-
vivo era considerada o fundamento do currículo acadêmico”. Além de refletir uma forte influência do velho currículo
de Leonardo, os currículos também incluíam “aulas teóricas sobre perspectiva, geometria e anatomia” e, na academia
francesa, formou-se, pouco a pouco, uma biblioteca de apoio.
26 Desse modo, a Academia del Disegno, fundada em Florença por Cosimo de Médici sob a influência de Vasari “está
na origem do desenvolvimento das modernas academias de arte” (Pevsner, 2005, p. 105).
27 Segundo Pevsner (2005, p. 137): “O aprendizado nas oficinas dos mestres foi mantido como uma fase preliminar
da educação do artista, talvez visto como ainda mais fundamental depois que as academias privadas suplantaram as
governamentais”.
28 O modelo rígido implantado pela academia do século XVII era, com o objetivo de concretizar finalidades educativas
abrangentes, diferente da formação das confrarias do século XVI, em que artistas falavam para um público de artistas
para “suscitar, pelo debate e pelo mútuo esclarecimento, uma compreensão mais clara da Arte e de seus princípios”
(Pevsner, 2005, p. 149).
29 Leonardo da Vinci, Rafael e Miguelangelo fazem parte de um pequeno conjunto de referências artísticas divinizado
em decorrência do modo pelo qual suas obras se apoiam nos cânones da antiguidade clássica, cultuados como se
fossem eternos.
30 O objetivo, segundo Pevsner (2005, p. 149), era apenas “suscitar, pelo debate e pelo mútuo esclarecimento, uma
compreensão mais clara da Arte e de seus princípios”, diferentemente das atividades que integravam o modelo
implantado pela academia com o intuito de concretizar finalidades educativas abrangentes.
85
atualidade é facilmente reconhecida quando observamos que algumas reformas curriculares
parecem ignorar as condições internas e externas em que serão implementadas31. A reforma
de um currículo, depende de um contexto em que é gestada, do grau de rigidez ou de flexibi-
lidade que caracteriza sua estrutura geral e dos objetivos que estabelece para a formação ar-
tística, que pode ser mais ou menos convergente. A correspondência entre rigidez acadêmica
e contexto socio-político é sinalizada por Pevsner ao descrever o vínculo que existiu entre o
modo autoritário com que os Estados absolutistas se impuseram na Europa e a criação de
academias nos séculos XVII e XVIII.
31 Para constatá-lo, bastaria percorrer as instalações em que funcionam alguns cursos de artes em nível superior e ver
que algumas salas ainda são mobiliadas como ateliês exclusivos para o aprendizado de técnicas que vão do desenho às
manipulações de recursos eletrônicos.
32 Outro fator importante para as academias do século XVII foi a necessidade de construir e decorar igrejas e edifícios
sacros, tarefa condizente com os ideais da Contrarreforma. Por outro lado, o objetivo comum das instituições italianas
do século XVII era “desenhar ‘dal nudo’ ou ‘dal naturale’, o que desde o Renascimento era considerado fundamental
na educação artística” (Pevsner, 2005, p. 131), e parece ter seu exemplo mais antigo na academia dos Carracci, em
Bolonha, a Accademia degli Incamminati.
33 Essas atividades segundo Pevsner (2005, p. 149), “[v]istas como mais imediatamente indispensáveis para o progresso
da arte na França do que uma biblioteca e aulas de perspectiva ou geometria, até mesmo, talvez, que o desenho, eram as
conferências proferidas durante as reuniões semanais para uma plateia de acadêmicos e estudantes”.
34 “O rei (ou melhor, Colbert) podia impor mais facilmente seus desejos e intenções aos membros de uma academia
real do que a uma sociedade particular, uma guilda ou uma universidade” (Pevsner, 2005, p. 145).
Se é fácil admitir que o sistema que adota um cânone é autoritário, seria este
mais coercitivo do que o modelo de ensino que temos nos dias atuais? No passado, o
reconhecimento acadêmico significou, na Itália e, posteriormente, na França, a conso-
lidação do poder da instituição educacional no campo das artes segundo regras que,
apesar de engessadas, prometiam ao estudante o desenvolvimento de habilidades que
o qualificariam para produzir conforme o sistema de valores hegemônicos e, portanto,
alcançar o sucesso. Diferentemente dessa situação, o poder de legitimação hoje parece
estar concentrado no mercado de arte, a terra prometida, e em uma rede de eventos de
apoio a esse sistema. Para conquistá-lo, o curso de bacharelado não é suficiente e, cientes
disso, alguns artistas se associam a pequenos grupos, que comungam modos de pensar e
agir em sintonia com as “tendências” que, ainda que provisoriamente, recebem apoio da
crítica e do mercado. Desse modo, seu comportamento é muito parecido com aquele dos
artistas que, no passado, desprezavam o exercício de uma musculatura intelectual para
se dedicar à reprodução de um elenco pre definido de soluções formais de boa aceitação.
Desvinculada do mercado, a formação nos cursos superiores em artes pode oferecer
liberdade de experimentação, ainda que esteja estruturada em uma grade curricular. En-
tretanto, não há como evitar que um estudante de arte que, ainda na graduação, vê seu
trabalho exposto ao lado de artistas com longa trajetória profissional passe a desprezar o
que o sistema de ensino formal tem a oferecer, e a reproduzir mecanicamente o mesmo
trabalho bem-sucedido. Esse processo é inevitável porque a projeção no mercado é mais
sedutora, e parece mais promissora, do que a do reconhecimento acadêmico. O risco é
transformar a coerência de um estilo rentável em camisa de força para a produção artís-
tica, o que pode ocorrer tanto dentro quanto fora dos muros da academia.
87
atribuído à arte latino-americana. Nessa mesma época, encontrava-se já nas escolas de
arte na América Latina uma abordagem de arte contemporânea que se distanciava dos
modelos consagrados pela história da arte escrita no continente.
A distância que separa, seja porque suas finalidades são divergentes ou porque são
incompatíveis, o ambiente eclético de formação do artista no ensino superior do mercado
de arte pode também ser considerada negativa. Não existe formação que possa garantir ao
estudante sua inserção em um mercado ou a adequação de seu trabalho ao gosto de uma
classe de clientes, como ocorreu com algumas academias do passado. Diante disso, o jovem
estudante passa, ansiosamente, a buscar uma maneira de enquadrar seu trabalho segundo
uma “tendência” de mercado – tal qual um estudante de design – ou busca associar-se a uma
confraria, um grupo de apoio no qual seu trabalho é aceito incondicionalmente, o que difi-
cilmente ocorre no ambiente acadêmico em que seu trabalho é avaliado a partir de critérios
comparativos. Os objetivos curriculares de um curso superior em arte não estão a reboque
das coerções do mercado, tampouco é desejável que estejam. A inquietação experimental
e a visão prospectiva ocorrem quando o espaço de criação – o ateliê – se abre, deixa de ser
exclusivo do universo privado e migra para o local de convivência que está, e talvez perma-
neça assim por muito tempo, sujeito a todos os tipos de conflito que as diferentes posturas,
pensamentos e práticas artísticas podem gerar.
89
Pass agens . Wa l te r B e n jam in , as
galerias cob er t as e o fetic h e d a
m ercadoria
Mariana Rocha*
* Mariana Rocha é mestre em artes visuais pela Faculdade Santa Marcelina (Fasm, 2009),
além de professora de estilismo no bacharelado de desenho de moda da instituição desde
2002. Sua dissertação foi orientada pela Profª Drª Mirtes Marins de Oliveira, coordenadora
do mestrado em artes visuais da Fasm.
Se, por um lado, a moda nos mostra uma face banal e corriqueira, que pode nos levar
a discursos fúteis e vazios, por outro, ela pode vir a oferecer leituras e sentidos mais
densos para a compreensão das experiências humanas, já que sua linguagem é perce-
bida, cada vez mais, como um elemento significativo na construção da identidade de
uma sociedade. A percepção de que não apenas a economia ou a política, mas também
a estética, possa fazer parte da construção da história amplia as perspectivas de obser-
vação dos significados dessa linguagem.
Para isso, dois autores surgem como indispensáveis.: Charles Baudelaire e, prin-
cipalmente, a meticulosa leitura da Paris baudelaireana realizada por Walter Benjamin.
Se, para Baudelaire, no século XIX, a moda configurava-se como um detalhe da cul-
tura, colhido pelo olhar atento do artista menor Constantin Guys, para Benjamin, no
século posterior, ela já podia ser configurada como uma matéria através da qual se
poderia refletir sobre as consequências do progresso industrial, como a valorização da
mercadoria, a relação entre as classes sociais e os novos valores do homem.
1 Walter Benjamin, in Patrice de Moncan, Les Passages Couverts de Paris, Le guide. Plans, promenades, histoire, littérature.
4ème. edition. Paris: Les Éditions Du Mécène. 2003, p. 67.
2 Passagens é o título da edição brasileira, que contou com a organização de Willi Bolle e a colaboração de Olgária
Matos. A primeira publicação da obra, de 1982, é alemã, e recebeu o título Das Passagen Werk. Esse título, escolhido
pelo organizador e editor da obra, Rolf Tiedemann, tem sentido ambíguo, pois Werk refere-se mesmo a um trabalho,
mas também carrega os sentidos de obra de rua e reforma, relacionando-se, assim, às obras de Haussmann no século
XIX. Mesmo que bem “arquitetado”, tal título não encontra registro correspondente na obra em si: daí a preferência
dos editores brasileiros pelo título Passagens.
3 Escola de Frankfurt é o nome pelo qual ficou conhecido o Instituto de Pesquisa Social, instituição ligada à
Universidade de Frankfurt voltada ao pensamento marxista, da qual faziam parte Theodor Adorno, Max Horkheimer,
Herbert Marcuse e Jürgen Habermas, entre outros.
91
seu estado de espírito, repleto de angústia e encantamento.
Uma embriaguez apodera-se daquele que, por um longo tempo, caminha
a esmo pelas ruas. A cada passo, o andar adquire um poder crescente; as
seduções das lojas, dos bistrôs e das mulheres sorridentes vão diminuindo,
cada vez mais irresistível torna-se o magnetismo da próxima esquina, de
uma longínqua massa de folhagem, de um nome de rua4.
Leitura de Passagens, percebemos que Benjamin não somente colecionou uma infi-
nidade de pensamentos de outros autores inspirados por Paris, como também se dedicou a
observar fatos corriqueiros da capital francesa, percorrendo ruas e monumentos, tal qual um
flâneur, e dessa maneira livre e descompromissada olhava para detalhes que normalmente
não são percebidos, utilizando um método de observação que tudo absorvia, interiorizando
as experiências para depois “pintar o quadro” da cidade mítica. Quando Benjamin trouxe de
volta o flâneur de Baudelaire e seu método de apreensão da realidade urbana, experimentou,
em seus dias de Paris, o olhar dândi do poeta, deslumbrando-se com a magia da cidade, sem,
no entanto, esquecer as consequências do progresso e o horror nazista.
O trabalho das Passagens nunca foi finalizado por seu autor, tendo sido publi-
cado muitos anos depois de sua morte5.
Motivado por sua paixão por mapas e lugares e por seu interesse em arte e cole-
ções, Benjamin configurou a obra Passagens como um banco de dados, organizado a partir
de símbolos e cores que estabeleceu para cada assunto. Trata-se de uma obra inacabada,
um work in progress, que ninguém sabe ao certo quando ou como seria finalizado. Iniciado
como um arquivo de notas para a realização de uma história social da Paris do século XIX,
esse texto, que ocupou Benjamin durante os últimos treze anos de sua vida, foi tomando
vida própria e distanciando-se de seu formato original. Pela grandiosidade e pela ambição
do projeto, tornou-se naquele momento um trabalho inviável.
4 Walter Benjamin, Passagens. Willi Bolle (org.). Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2007, p. 462.
5 Encontrado na Biblioteca Nacional de Paris, o conjunto de anotações foi escrito entre 1927 e 1940, e publicado em
1982, em alemão, com edição de Rolf Tiedemann, discípulo de Adorno.
6 Segundo reflexões de Willi Bolle no curso “Representação da metrópole”, sobre as Passagens de Walter Benjamin, que
Um dos maiores interesses do pensador em relação à Paris do século XIX – e que aca-
bou dando nome ao seu trabalho – foram as passagens. Galerias cobertas por telhados
aconteceu no Centro Universitário Maria Antonia, de 7 a 28 de agosto de 2007.
7 Id.ibid.
8 Walter Benjamin, “Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo”. In: Obras escolhidas, volume 3. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1989, p. 117.
9 Todas as informações sobre as passagens foram extraídas do livro Les Passages Couvert de Paris, de Patrice de Moncan,
2003.
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envidraçados, tinham um objetivo urbanístico civilizador, por oferecerem uma opção
às alamedas enlameadas, às agruras do tempo chuvoso, aos veículos apressados, à po-
eira e aos entulhos, restos da construção da modernidade que atrapalhavam pedestres
e consumidores. Estabelecimentos comerciais criados entre o final do século XVIII e
meados do XIX, surgiram no momento em que as cidades começavam a crescer em
ritmo desordenado e tiveram sua condição favorecida pelo comércio têxtil10.
Refúgios da modernidade
Para um ambiente ser considerado uma passagem, era preciso ser reservado aos
pedestres; unir duas ruas movimentadas, oferecendo-lhes um atalho; ser cercado
por lojas; ter, em sua estrutura e em suas lojas, arquitetura e detalhes de luxo; ter
uma cobertura envidraçada, que deixasse passar a luz natural durante o dia, e que,
As passagens logo se tornaram uma grande atração: eram uma boa resposta
ao burburinho das ruas abarrotadas e estreitas, que não ofereciam comodidade nem
segurança. O apogeu dessas construções ocorreu entre os anos de 1786 e 1860 – quan-
do a última delas, a Passage des Princes, foi criada – e obtiveram sucesso principal-
mente durante a Restauração, entre os anos 1814 e 1830.
Anos depois do período de glória das passagens, já na década de 1920, um grupo bizarro
de escritores e artistas passou a se reunir na Passage de l’Opéra, fugindo dos locais da
13 Cf. Luchet, apud Benjamin, op. cit. <há mais de uma obra do Benjamin citada anteriormente, a qual se refere?>,
não sei mais. É necessária referência nesse caso?p. 29.
14 Como curiosidade, havia em Paris, em 1780, apenas 250 banhos públicos, e durante o Segundo Império apenas seis
salas de banho para cada mil pessoas.
15 O jogo e a prostituição eram livres até o reinado de Luís Filipe, que proibiu essas práticas em locais públicos. Como
as passagens eram locais privados, podiam abrigar tais atividades. Moncan, p. 60.
16 Na Passage Choisel havia a editora e livraria Lamerre, onde foram editados os primeiros poemas do jovem Verlaine.
Hoje lá ainda se encontram editores e sebos.
17 Descrição de Philibert Audebrand sobre o poeta Baudelaire contida em Henri Troyart, Baudelaire, trad. Renata
Cordeiro. Coleção Persona. São Paulo: Scritta, 1995, p. 250.
95
moda: “Os poetas do movimento dadá estão reunidos ao redor de uma mesa: estes são
meus amigos”18. André Breton, Paul Éluard, Francis Picabia, Tristan Tzara e Man Ray, entre
outros, eram os amigos de Louis Aragon, que costumavam marcar seus encontros ali, pois
apreciavam o ambiente decadente. Em O camponês de Paris, este descreve a atmosfera do
local, associando-a a uma paisagem sobrenatural: “A luz do insólito (...) reina de forma
bizarra nessas galerias cobertas (...) que levam o nome (...) de passagens, como se nesses
corredores (...) não fosse permitido a ninguém parar por mais que um instante”19.
Além de vidros, as passagens eram forradas por espelhos, que criavam reflexos e brilhos, e garan-
tiam a elegância dos pedestres, que podiam verificar a ordem dos penteados ou a posição de seus
chapéus20. É de Benjamin a observação: “Paris, cidade dos espelhos. As mulheres aqui se veem
18 Moncan, p. 66.
19 No original: La lumière de l’insolite... règne bizarrement dans ces sortes de galeries couvertes... que l’on nome d’une
façon troublante dês passages, comme si dans ces coloirs dérobés au jour, il n’était pás permis à personne de s’arrêter plus
d’um instant. Louis Aragon, Le paysan de Paris. Paris: Gallimard, 1996, p. 64. Tradução livre.
20 Id., ibid., p. 24.
Com lojas distribuídas nos dois lados da galeria, algumas passagens serviam
de grandes escoadouros de artigos, com expositores abarrotando os corredores de ba-
dulaques. Guarda-chuvas, meias, luvas, chapéus, botas, bengalas. Os comerciantes se
especializaram na distribuição dos produtos recém-lançados pela indústria e tiveram
como tarefa “Satisfazer o luxo, a sedução, os prazeres”23. Não apenas uma grande varie-
dade de mercadorias era exposta aos olhares curiosos dos passantes, mas também uma
paisagem humana diversificada se mostrava no interior de passagens como a Galerie
Delorme, uma das mais apreciadas na primeira metade do século XIX.
Descrito em inúmeras obras e perscrutado por diversos pesquisadores, o flâ-
neur se mostra como uma resistência fantasmagórica a algumas inovações da moder-
21 No original: Ah! c’est charmant puis que dans un passage, Les femmes sont comme dans leur boudoir. Guide, 2003:24
In Patrice de Moncan, op. cit., p. 24. Tradução livre.
22 Gilda de Mello e Souza, O espírito das roupas: A moda no século dezenove. São Paulo: Companhia das Letras, 1987,
p. 12.
23 Cf. Richard, em seu guia de Paris, apud Moncan, op. cit., p. 27.
97
nidade. Personagem característico de seu tempo, que vive “mergulhado neste tanque
de eletricidade”, caminha com liberdade e vagar, num elogio à calma e à ociosidade,
estranha aos tempos produtivos do século XIX. Mas seu caminhar não tem fim. Per-
segue a realidade do antigo sonho humano do labirinto, materializado pela cidade:24
“Tenho medo de parar; é o instinto de minha vida”.25 À visão leve e doce daquele
caminhante pacífico e sem rumo que transforma a rua em sua casa, acrescenta-se a
imagem definida por Benjamin, bem mais próxima da ideia da modernidade: “o lobi-
somem a vagar irrequieto em uma selva social”.
Uma embriaguez apodera-se daquele que, por um longo tempo, caminha
a esmo pelas ruas. A cada passo, o andar adquire um poder crescente; as
seduções das lojas, dos bistrôs e das mulheres sorridentes vão diminuindo,
cada vez mais irresistível torna-se o magnetismo da próxima esquina, de
uma longínqua massa de folhagem, de um nome de rua26.
24 Walter Benjamin, “Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo”, op. cit., p. 203.
25 Máxime Du Camp, Les chants modernes (Paris, 1855, p. 104), apud Walter Benjamin, ibid., p. 203.
26 Benjamin, “Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo”, p. 186
99
Conferência dial ó gic a e n tre
Denise Mattar* e Lisette Lagnado**
V Seminário de Curadoria
Denise Mattar: Aceitei seu convite com grande interesse, pois creio que a questão da
curadoria merece ser discutida. Curador é uma designação relativamente nova para
uma função que existia, mas que ganhou projeção e derivou para novas posturas. An-
tes de qualquer coisa, esclareço que o texto que mandei para você foi escrito para o
Seminário Internacional realizado no Museu Imperial (outubro/2009), cujo tema era
a “Relação curadoria-cenografia”. Fui convidada a participar, porque em meu trabalho
curatorial a cenografia tem muito peso. O título do texto é “Estratégias de sedução”,
pois vejo a cenografia como uma forma de tornar os conceitos curatoriais mais aces-
síveis ao público.
No texto, não fui direto dos museus para a Bienal, porque durante anos a
Bienal de São Paulo copiou a Bienal de Veneza usando uma divisão por países, em
101
montagens quase simplórias. As fotos da II Bienal, por exemplo, até hoje considera-
da internacionalmente uma das grandes exposições de arte já realizadas no mundo,
impressionam pelas obras apresentadas, mas não pelas montagens. Tudo era muito
amador: a seleção das obras, por exemplo, foi realizada como uma ação entre amigos.
Sérgio Milliet era o diretor artístico, mas todos palpitavam, especialmente Yolanda
Penteado e a artista (e embaixatriz) Maria Martins. Picasso emprestou Guernica a pe-
dido de Cícero Dias e contra a vontade de Alfred Barr que dirigia o MoMA, onde a
obra estava. Existia um grande entusiasmo em trazer os artistas mais conhecidos, por
causa do IV Centenário de São Paulo, e todos se uniram nessa luta.
LL: É importante sinalizar uma mudança de discurso em relação aos anos 1970,
no que diz respeito ao papel do museu, enquanto instituição artística capaz de dinami-
zar a cultura e comunicar-se com o público. A crítica institucional surge inclusive desse
período de descrença, tanto na história como na coleção. Parece-me interessante seguir o
raciocínio de Boris Groys, quando aponta para uma época que se emancipou da necessi-
dade do “novo” a todo custo. Cito-o [os grifos são meus]:
When and under what conditions does art appear to be most alive? There
is a deep-rooted tradition in modernity of history bashing, museum
bashing, library bashing, or more generally, archive bashing in the name
of real life. The library and the museum are the preferred objects of
intense hatred for a majority of modern writers and artists. Rousseau
admired the destruction of the famous ancient Library of Alexandria;
Goethe’s Faust was prepared to sign a contract with the devil if he could
escape the library (and the obligation to read its books). In the texts of
modern artists and theoreticians, the museum is repeatedly described as a
graveyard of art, and museum curators as gravediggers. According to this
tradition, the death of the museum—and of the art history embodied by
the museum—must be interpreted as a resurrection of true, living art, as
a turning toward true reality, life, toward the great Other: If the museum
dies, it is death itself that dies. We suddenly become free, as if we had
escaped a kind of Egyptian bondage and were prepared to travel to the
Promised Land of true life.1
Gostaria que você falasse a respeito do lugar do curador na passagem de um museu que
era declarado “morto”, nos anos 1970, para um museu “mais vivo”. Conseguimos superar
a febre pelo novo e desacelerar os “ismos”? Isso permite maior metabolização ante a mu-
dança de critérios?
1 Cf. Boris Groys, Art Power, 2008. Quando e em quais condições é que a arte parece estar mais viva? Há uma
tradição profundamente enraizada na modernidade de bater com força na história, no museu, na biblioteca ou, mais
comumente, no arquivo em nome da vida real. A biblioteca e o museu são os objetos preferenciais de ódio intenso
para a maioria dos escritores modernos e artistas. Rousseau admirava a destruição da antiga e famosa Biblioteca de
Alexandria. O Fausto de Goethe estava disposto a assinar um contrato com o diabo, se ele pudesse escapar da biblioteca
(e da obrigação de ler seus livros). Nos textos de artistas e teóricos modernos, o museu é repetidamente descrito como
um cemitério de arte, e curadores de museus, como coveiros. Segundo essa tradição, a morte do museu – e da história
da arte encarnada pelo museu – deve ser interpretada como uma ressurreição da verdade, da arte viva, como uma volta
para a verdadeira realidade, vida, em direção ao grande Outro. Se o museu morre, é a própria morte que morre. Nós,
repentinamente, tornamo-nos livres, como se tivéssemos escapado de um tipo de escravidão egípcia e estivéssemos
preparados para viajar à Terra Prometida da vida verdadeira.
103
do futurismo de Marinetti e sua proposta da tabula rasa. E apesar de todos os gritos
e insurreições, uma das missões de um museu continua sendo a de preservar as obras
de arte. Não se pode esquecer que uma das características, que é específica das artes
plásticas, é a de que elas geram um “produto”, que permanece e que, embora seja pro-
priedade do pensamento humano, é também um valor, e um patrimônio, que exige
cuidados e conservação. Os novos caminhos empreendidos com a chamada desmate-
rialização da arte não aboliram esse pressuposto e, mesmo em obras totalmente con-
ceituais, o “fetiche” continua. Ninguém quer ver um simples urinol, as pessoas querem
ver “o” urinol do Duchamp discute-se à exaustão sobre a autenticidade dos Bichos de
Lygia Clark (que ela queria que fossem vendidos na feira) todos querem mostrar os
parangolés “originais” de Hélio Oiticica, e por aí vai. Preservar custa caro, é preciso
ter equipamento, pessoal, espaço etc. Naturalmente o valor da obra de arte leva a uma
complexa imbricação com o mercado de arte, mas isso é outro assunto.
Conciliar todos esses aspectos já seria em si uma tarefa bastante árdua, mas
devemos somar ainda uma constante crise financeira, só driblada com um efetivo de-
sempenho perante as autoridades e os patrocinadores. Os anos 1970 trouxeram uma
exigência de profissionalização que chegou aos museus com a criação de toda uma
estrutura de proteção às obras (uso de luvas, elaboração de laudos técnicos, caixas es-
peciais, museólogos), de divulgação das atividades do museu (departamentos de pro-
gramação visual, criação de uma identidade visual, publicidade), de comunicação com
o público (programas educativos, atendimento a deficientes etc.) e de uso criativo do
acervo (aí é que entra o curador).
DM: Os museus brasileiros têm uma situação muito diversa daquela dos mu-
seus americanos. Embora muito criticada, a inter-relação entre artistas, galerias, co-
lecionadores e museus dos EUA é o que forma o seu circuito de arte – e não se pode
dizer que o resultado seja mau. O Brasil está engatinhando e esbarra no erro crucial
de deixar seus museus sem poder aquisitivo para adquirir obras. Instituições, como o
MAC-USP e Niterói, os MAM do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Rio Grande do Sul
não conseguem resolver problemas básicos; fica difícil pensar em algo novo.
105
criações inovadoras do design brasileiro. Foi possível mostrar de maneira criativa o acervo
do museu, que, como quase todos no Brasil, havia sido constituído de maneira arbitrária,
não permitindo por si quase nenhum tipo de leitura.
Assim que saí, fui convidada a trabalhar no Museu de Arte Moderna de São
Paulo, que tinha na época como presidente o Aparício Basílio da Silva. Os museus pri-
vados brasileiros têm muitos problemas financeiros; Aparício batalhava pelo museu,
mas sua gestão era bastante pessoal. Quando entrei, já havia exposições marcadas para
todo o ano, e as mostras tinham qualidade irregular. O Museu tinha uma Comissão de
Arte que selecionava a programação e que era constituída de pessoas não muito ante-
nadas na produção contemporânea, assim, dirigi meus esforços para trazer algumas
pessoas. Isso nos permitiu mudar o perfil da tradicional exposição chamada Panora-
ma, uma das poucas mostras produzidas pela instituição. É um perigo que ronda os
museus: serem apenas uma casa/casca para exposições prontas e já patrocinadas.
Por razões pessoais, mudei para o Rio no final de 1989 e lá fui convidada a tra-
balhar no MAM, que estava fechado ao público. Marcus de Lontra Costa era o curador
geral. A gestão anterior, de Paulo Herkenhoff, havia criado uma estrutura de funciona-
mento muito interessante, que foi mantida. Paulo pretendia abrir o museu apenas quando
tudo estivesse pronto. Mais pragmáticos, Marcus e eu abrimos o museu imediatamente.
Criamos muitas exposições e cursos bastante interessantes no Galpão das Artes. O Museu
voltou à vida, e em nossa gestão é que se concretizou o comodato da Coleção Gilber-
to Chateaubriand. O Museu recebia exposições já prontas, que eram selecionadas com
muito critério, e produzia outras tantas (com muita dificuldade). A chegada da coleção
do Gilberto foi importantíssima, pois, reunindo artistas desde o período modernista até
contemporâneos, ela permite muitos recortes. Diferentemente da maior parte dos acer-
vos brasileiros, a coleção teve, na sua constituição, o acompanhamento do crítico Roberto
Pontual, o que resultou num conjunto com poucas lacunas.
DM: Para quem se monta uma exposição? Para o público em geral, letrado
ou não. Por que condenar o público comum a se sentir excluído em mostras sem uma
única explicação, sem nenhuma ponte, sem nenhuma estratégia de sedução? A mon-
tagem de uma exposição é um enunciado em si, mas que deve sair das obras ou dos
objetos de arte, e assim necessariamente estará no seu contexto de origem.
107
Quanto ao texto crítico, ele se destina necessariamente a um público mais res-
trito, e permite ao curador levar longe seu pensamento. Mas é preciso tomar um certo
cuidado para que o curador não escreva apenas para seus pares, como a defesa de tese
para uma banca, que considero algo meio medieval, quase um resquício da Inquisição,
um processo que se prende a detalhes que geralmente não importam. A criatividade
não é bem-vista na academia…
LL: Por que essa mania de separar a escrita da espacialização das obras, como se
as questões teóricas não pudessem se explicitar dentro de um espaço físico, no qual nosso
corpo teria um contato direto com conceitos, mesmo que estes sejam materializados em
instalação, filme, escultura? Como se o display dispensasse qualquer fundamento teórico e
pertencesse apenas à engrenagem da arte…
DM: Atribuo essa transferência de foco aos teóricos das vanguardas, e não
aos artistas. Pegando um exemplo bem brasileiro, Tarsila fez o Abaporu lembrando-se
das histórias de terror que sua babá contava. A obra foi realizada e depois dela veio o
Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade. Os neoconcretos se reuniam, discutiam,
faziam seu trabalho e, depois, Gullar escreve a “Teoria sobre o não objeto”. Mas nossa
historiografia faz pensar que Tarsila criou suas obras a partir do manifesto de Oswald,
o que não é verdade. Essa inversão é um perigo.
LL: A partir da constatação de que vivemos o tempo das exposições com cura-
doria – entendo a exposição sem curadoria como aquela que ou bem segue a “linha do
tempo” ou bem procura ser acrítica e evitar um partido –, seria necessário que cada um
inscrevesse, simultaneamente, os paradigmas de sua pauta para podermos seguir seu ra-
ciocínio. O curador deve explicitar o levantamento que reuniu para expor um (entre mil
outros possíveis) estado estético. E, ainda assim, acho que a função crítica deve permane-
cer, qualquer que seja a tipologia e a missão de cada mostra.
DM: Particularmente não gosto de nada acrítico – nem jornalismo. Como pode
um apresentador de televisão anunciar um fato escandaloso, triste ou chocante sem ma-
nifestar sua opinião? Um curador está para as artes plásticas como um diretor está para
o cinema. Se fosse possível ver os mesmos atores representando uma mesma peça, porém
LL: Espacialidade e escritura são dois suportes distintos, com muita ambigui-
dade, pois a escritura tem espacialidade, bastaria evocar O lance de dados de Mallarmé,
os poetas concretos, o teatro seco de Beckett, tantos lugares de experimentação cênica,
lúdico-linguística. Seria interessante ouvi-la por meio de exemplos de trabalhos que você
fez ou até de salas em museus que você considera marcantes.
A Bienal de 1985 foi marcada por uma proposta curatorial inovadora. Ao selecio-
nar os artistas, a curadora Sheila Leirner tinha como proposta instalar uma visão reflexiva
sobre a arte contemporânea, que naquele momento assistia à volta da pintura em movi-
mentos como a transvanguarda e o neoexpressionismo. Essa reflexão foi criada através da
espacialidade. A curadora colocou lado a lado, num grande corredor, quase sem respiração,
a exuberante produção pictórica do período. O resultado, chamado por ela de “Grande
Tela”, foi contundente. A montagem foi considerada por alguns como a apologia de uma
tendência e, por outros, como seu enterro. Ela explica como nasceu a ideia:
A Grande Tela nasceu da náusea e da fascinação. Aquele era um período no
qual, mais enjoativo do que o cheiro e a textura da tinta em excesso, era a
saturação de imagens. Em 1985, como se sabe, a pintura renascia de todas as
maneiras, os seus filhotes cresciam como cogumelos, chegavam às centenas
e se acumulavam de uma forma assustadora no pavilhão da Bienal. Muitos
deles com a tinta ainda fresca. Tal fenômeno de multiplicação de imagens
impedia a visão individual e propunha uma abordagem radicalmente
coletiva. Isso era tanto mais possível quanto maior fosse a noção de que o
verdadeiro crítico pode e deve ser também um artista, e de que uma Bienal
não é um museu. De que a Bienal é uma plataforma da mais absoluta
liberdade crítica e do mais íntegro e categórico compromisso com o público.
Eu conduzia o meu carro, como todos os dias, pela avenida 23 de Maio,
109
que leva ao parque do Ibirapuera, mas estava dominada pelas sensações que
me causavam aquela invasão pictórica, plena de luz e de sombras. Como
um desfilar de almas, emanavam delas umas energias mescladas, estranhas.
Todas as problemáticas do mundo pareciam se espelhar naquela produção
feérica. Não se podia compreendê-la ou exprimi-la espacialmente, senão
pela figura de um grande e único conjunto. Eu olhei para a avenida que eu
percorria com o carro e imaginei o grande tecido esticado em chassi, cujas
imagens vistas em alta velocidade animavam-se em toda a sua extensão. Essa
instalação imaginária praticamente se nomeou por si própria: Grande Tela.
DM: Flavio de Carvalho foi uma das exposições que mais me fez sentir o peso
das escolhas. Tudo me interessava, e continua interessando, mas um espaço expositivo
tem tamanho, e os orçamentos, também. Como Flavio fez cenários, figurinos, projetos
arquitetônicos e encenações teatrais, utilizei na montagem alguns desses elementos,
como as cortinas coloridas, o aço inoxidável e sua forma de dispor os quadros. O
resultado foi bastante expressivo e fiel a um espírito tão pouco ortodoxo. Há muitas
maneiras de apresentar Flavio de Carvalho, mas certas peças essenciais figurariam em
qualquer seleção. É uma obra tão potente que sobreviveria até ao cubo branco.
LL: Você poderia citar uma exposição que tenha sido um erro, em termos de
formato adotado, e uma que tenha marcado você a ponto de reconhecer uma vontade
similar de usar o espaço?
DM: Penso muito nessa questão, que considero tão importante quanto a escolha
das obras, e não me lembro de ter errado o formato. Mas já vi mostras que, querendo ser
charmosas, comprometem as obras. Um exemplo clássico foi a Brasil 500 anos. O barroco
desapareceu entre as belas flores de crepom de Bia Lessa. A instalação era linda, mas as
obras sumiram. Sem falar nos problemas de conservação advindos da cenografia Parade,
do curador Laurent Le Bon, do Pompidou, na Oca do Ibirapuera. Era uma montagem ino-
vadora, que traçava um panorama cronológico da arte no século XX. Pintada por Picasso,
em 1917, para o balé de Jean Cocteau e Erik Satie, a cortina Parade era o grande símbolo e
pano de fundo da exposição. Parade representava a integração de todas as artes. Era uma
exposição interdisciplinar, composta de desenho, pintura, escultura, fotografia, cinema,
instalação, videoarte, arquitetura e design. A mostra elegeu uma obra – ou mais – para
cada ano do século passado. De 1900 – representado por Douanier Rousseau – a 2001, com
obras do artista francês Franck Scurti e do arquiteto Jean Nouvel, o percurso avançava de
maneira coerente e vertiginosa, levando o público a uma sucessão de corredores e galerias
seguindo a sinuosidade do edifício. A torre de Tatlin e o filme mudo Viagem à lua, abriam
a mostra. Telas de Picasso, Braque e Juan Gris flutuavam contra o teto da Oca; cabeças
escultóricas de Modigliani e Brancusi giravam sobre pedestais; corpos de Yves Klein eram
LL: A Documenta é um tipo de exposição que, aos olhos do Brasil, parece antever
tendências e pautar o futuro, quando, na sua origem, ela é fruto de um forte debate de
reconstrução da identidade alemã, que sai humilhada do pós-guerra. É evidente que não
há como se lembrar dessa mostra sem imaginar, por trás, um projeto intelectual. É um
princípio problemático para justificar uma mostra a cada cinco anos?
111
{Ócio e Ociosidade1}
<fase tardia>
Entrecruzamento notável: na Grécia antiga, o trabalho prático era reprovado e proscrito; embora fosse
executado essencialmente por mãos escravas, era condenado principalmente por revelar uma aspira-
ção vulgar por bens terrenos (riquezas); ademais, esta concepção serviu para a difamação do comer-
ciante, apresentando-o como servo de Mammon: “Platão prescreve, nas Leis (VIII, 846), que nenhum
cidadão deve exercer profissão mecânica; a palavra banausos, que significa artesão, torna-se sinonimo
de desprezível...; tudo o que é artesanal ou envolve trabalho manual traz vergonha e deforma a alma e
o corpo ao mesmo tempo. Em geral, os que exercem tais ofícios...só se empenham para satisfazer....o
‘desejo de riqueza, que no priva de todo o tempo de ócio....’ Aristóteles, por sua vez, opõe aos excessos
da crematística [arte de adquirir riquezas]... a sabedoria da economia doméstica...Assim, o desprezo
que se tem pelo artesão estende-se ao comerciante; em relação à vida liberal, ocupada pelo ócio de
estudo (scolé, otium), o comércio e ‘os negócios’ (neg-otium, ascolía) não têm, na maioria das vezes,
senão um valor negativo.” Pierre-Maxime Schuhl, Machinisme et Philosophie, Paris, 1938, pp 11-12.
[m 1, 1]
1 Neste arquivo temático, o “ócio” tradicional, aristocrático, criativo (o otium dos Romanos; o alemão Muße; o francês
loisir, o inglês leisure) é confrontado com a “ociosidade” moderna (respectivamente Müßiggang, oisiveté e idleness). No
sistema de valores burguês, baseado no “negócio” (de necotium, “negação do ócio”), o ócio dos antigos e da sociedade
aristocrática - isto é, o privilégio de estar livre da obrigação de trabalhar - é visto como algo superado e depreciado
como “ociosidade”, ou seja, “indolência” e “preguiça”. Por outro lado, a “ociosidade” moderna é um protesto contra a
fetichização burguesa do trabalho. Nossa distinção entre “ociosidade” e “ócio” procura reproduzir a diferenciação entre
Müßiggang e Muße, tentando expressar, ao mesmo tempo, através da afinidade fonética, a dialética da mudança e da
continuidade históricas. (J.L.; w.b.)
26 fotografias
24 x 30 cm, cada
113
Quem desfruta do ócio, escapa da Fortuna; quem se rende à ociosidade, não lhe esca-
pa. A Fortuna que o aguarda na ociosidade é, contudo, uma deusa menor do que aque-
la da qual escapou quem se entregou ao ócio. Esta Fortuna não se sente mais em casa na
vita activa; seu quartel general é a vida mundana. “Os imaginários da Idade Média re-
presentam os homens que se dedicam à vida ativa ligados à roda da Fortuna, elevando-
-se ou rebaixando-se segundo o sentido em que ela gira, enquanto o contemplativo per-
manece imóvel no centro.”P.-M. Schuhl, Machinisme et Philosophie, Paris, 1938, p. 30.
[m 1, 2]
Na sociedade burguesa, a preguiça - para usar uma palavra de Marx - tinha deixado de ser “heróica”
(Marx fala da “vitória... da indústria sobre a preguiça heróica”. Bilanz der preußischen Revolution, em
Gesammelte Schriften von Karl Marx und Friedrich Engels, vol. III, Stuttgart, 1902, p. 211.)
[m 1a, 1]
Na figura do dândi, Baudelaire procura encontrar para a ociosidade uma utilidade como aquela
que o ócio tinha anteriormente. A vita contemplativa é representada e substituída por algo que se
poderia chamar de vita contemptiva. (Comparar com a parte III de meu manuscrito “<Das Paris
114
115
des Second Empire bei Baudelaire>.)2
[m 1a, 2]
O correlato intencional da “vivência” não permaneceu igual. No século XIX, era “a aventura”. Em
nossos dias, ele aparece sob a forma de “destino”.4 No destino, esconde-se a noção da “vivência to-
tal”, que é mortal por natureza. A guerra é sua prefiguração insuperável. (“Pelo fato de ter nascido
alemão, eu morro” - o trauma do nascimento já contém o choque que é mortal. Esta coincidência
define o “destino”.)
[m 1a, 5]
Seria a empatia com o valor de troca o que capacita o ser humano à “vivência total”?
[m 1a, 6]
Com o rastro, a “vivência” adquire uma nova dimensão. Ela não é mais obrigada a esperar pela
“aventura”; aquele que vivencia pode seguir o rastro que o conduz até ela. Quem segue um rastro
não apenas deve estar atento; ele precisa, principalmente, já ter prestado muita atenção em tudo.
(O caçador precisa conhecer a marca da pata do animal que está rastreando; precisa conhecer a
hora em que o animal vai beber água; precisa saber qual é o curso do rio para onde se dirige sua
presa, e onde fica a parte rasa pela qual ele mesmo pode atravessá-lo.) Manifesta-se deste modo a
maneira específica na qual a experiência aparece traduzida para a linguagem da vivência. As expe-
riências podem, de fato, ser inestimáveis para quem persegue um rastro. Trata-se, porém, de expe-
riências de um tipo particular. A caça é a única formade trabalho em que elas são intrinsecamente
úteis. E a caça é uma forma de trabalho muito primitiva. As experiências de quem persegue um
rastro provêm só muito remotamente de uma atividade de trabalho, ou são totalmente desvincu-
ladas dele. (Não é à toa que se fala de “caça à fortuna”.) Elas não possuem nem sequencia, nem sis-
tema. São um produto do acaso e carregam em si a marca do essencialmente inacabável, que ca-
A ociosidade possui poucos elementos representativos, embora seja muito mais exibida que o
ócio. O burguês começou a envergonhar-se do trabalho. Ele, para quem o ócio não tem mais um
significado em si mesmo, gosta de exibir sua ociosidade.
[m 2, 2]
Estudante e caçador. O texto é uma floresta na qual o leitor é o caçador. Rumores na floresta: a idéia - a
presa arisca; a citação - uma peça do quadro (Nem todo leitor consegue encontrar a idéia.)
[m 2a, 1]
Existem duas instituições sociais das quais a ociosidade é parte integrante: o serviço notícias e a vida notur-
na. Ambas exigem uma forma específica de disponibilidade de trabalho. Esta forma é a ociosidade.
[m 2a, 2]
O que distingue a experiência da vivência é o fato de que a primeira não pode ser dissociada da
idéia de uma continuidade, de uma sequencia. O acento que recai sobre a vivência torna-se tanto
mais importante quanto mais seu substrato for independente do trabalho de quem a vivenciou
- trabalho que se caracteriza justamente por levar ao conhecimento da experiência, lá onde o
outsider chega no máximo a ter uma vivência.
[m 2a, 4]
A ociosidade procura evitar qualquer relação com o trabalho de quem é ocioso, e mesmo qual-
119
quer relação com o processo de trabalho em geral. Isto diferencia a ociosidade do ócio.
[m 3, 1]
“Todas as idéias religiosas, metafísicas e históricas são, em última análise, produtos de grandes
vivências do passado - representações delas.” Wilhelm Dilthey. Das Erlebnis und die Dichtung,
Leipizig-Berlim, 1929, p.198.
O abalo da experiência relaciona-se intimamente com o abalo das certezas jurídicas. “No período
liberal, o poder economico estava intimamente ligado à propriedade jurídica dos meios de pro-
dução...Mas a rápida concentração....do capital no século passado, impulsionada pelo desenvolvi-
mento da técnica, fez com que a maior parte dos proprietários, em termos legais, fosse afastada da
direção dos negócios...Uma vez que os meros detentores de títulos de propriedade são separados
da produção efetiva..., restringe-se o seu horizonte...e, por fim, o benefício que ainda obtêm de
sua propriedade...parece socialmente inútil...A idéia de um direito autonomo, com um conteúdo
estável e independente da sociedade como um todo, perde sua força.” Ocorre assim “a abolição
de todo direito determinado pelo conteúdo..., que é levada a cabo nos Estados autoritários”. Max
Horkheimer, “traditionelle und kritische Theorie”, Zeitschirift für Sozialforschung, ano VI, 1937,
nº 2, pp. 285-287;cf. Horkheimer, “Bemerkungen zur philosophischen Anthropologie”, op.cit.,
ano IV, nº 1, p.12.
[m 3, 3]
A rígida ética do trabalho e das obras, própria do Calvinismo, está certamente en estreita corre-
lação com o desenvolvimento da vita contemplativa. Essa ética procurava colocar uma barragem
para impedir que o tempo congelado na contemplação se esvaísse na ociosidade.
[m 3a, 1]
Sobre o folhetim. Tratava-se, por assim dizer, de injetar na experiência, por via intravenosa, o
veneno da sensação; isto quer dizer: ressaltar na experiência comum o caráter de vivência. A isto
se prestava, em primeiro lugar, a experiência do habitante das grandes cidades. O folhetinista tira
proveito disso. Ele torna a grande cidade estranha para os seus habitantes. Desta forma, ele é um
dos primeiros técnicos convocados pela necessidade premente de vivências. (A mesma necessi-
dade manifesta-se com a teoria da “beleza moderna”, tal como proposta por Poe, Baudelaire e
Berlioz. A surpresa constitui-se nela como um elemento dominante.)
[m 3a, 2]
121
O processo de estiolamento da experiência começa já na manufatura. Em outras palavras: ele
coincide, em seus primórdios, com os primórdios da produção de mercadorias. (Cf. Marx, Das
Kapital, vol. I ed. Korsch, Berlim, 1932, p. 336.)
[m 3a, 3]
O “estudo” é um álibi para as relações que o ocioso gosta de manter com o demi-monde. Em espe-
cial, pode-se afirmar a respeito da boêmia que ela estuda seu próprio meio durante a vida inteira.
[m 3a, 6]
A ociosidade pode ser considerada uma forma precursora da distração ou do divertimento. Ela
se funda na disposição do indivíduo de saborear sozinho uma sucessão aleatória de sensações.
Porém, tão logo o processo de produção começou a mobilizar grandes massas de pessoas, surgiu
entre aqueles que “tinham tempo livre” a necessidade de se distinguir da massa dos que traba-
lhavam. A esta necessidade respondeu a indústria do entretenimento, a que logo passou a con-
frontar-se com seus próprios problemas. Já faz tempo que Saint-Marc Girardin foi obrigado a
constatar que “o homem consegue se divertir por tão pouco tempo”. (O ociosos não se cansa tão
depressa quanto aquele que se diverte.)
[m 4, 1]
A imitatio dei do ocioso: como flâneur, ele é onipresente; como jogador, onipotente; e como estu-
dante, onisciente. A jeunesse dorée 6 foi a primeira a encarnar esse tipo de ocioso.
[m 4, 3]
A “empatia” ocorre por um déclic, uma espécie de comutação [Umschaltung]. Com ela, a vida
interior se torna um correspondente do elemento de choque na percepção sensorial. (A empatia
é uma sincronização [Gleichschaltung]7 no sentido íntimo.)
5 W. Benjamin, “Der Erzähler”, GS II, 447, linhas 13-20; e 448, linhas 16-33; “O Narrador”, OE I, p. 205, linhas 15-22,
e p. 206, linhas 14-29. (R.T.;w.b.)
6 A juventude rica e alinhada com a moda; na França, especialmente a juventude contra-revolucionária de 1794. (E/M)
7 Articulada em forma de um trocadilho entre Umschaltung e Gleichschaltung, a crítica benjaminiana da empatia
123
[m 4, 4]
Os hábitos são a armadura das experiências. Esta armadura é atacada pelas vivências.
[m 4, 5]
Deus terminou a tarefa da Criação; ele descansa e se refaz. É este Deus do sétimo dia que o bur-
gues tomou como modelo da ociosidade. Na flânerie, ele tem a onipresença de Deus, no jogo,
sua onipotência; e no estudo, sua onisciência. - Esta trindade está na origem do satanismo em
Baudelaire. - A semelhança do ociosos com Deus indica que a fórmula (protestante) que diz que
“o trabalho é o ornamento do cidadão”8 começou a perder a importância.
[m 4, 6]
As exposições universais foram a escola superior ondeas massas, afastadas do consumo, aprende-
ram a sentir empatia pelo valor de troca. “Olhar tudo, não tocar nada.”
[m 4, 7]
A descrição clássica da ociosidade em Rousseau. Esta passagem indica, ao mesmo tempo, que a exis-
tência do ocioso tem algo de divino e que a solidão é um estado essencial do ocioso. No último livro
das Confessions lê-se o seguinte: “Tendo passado a idade dos projetos romanescos, e tendo a fumaça da
vanglória mais me aturdido que lisonjeado, não me restava, como última esperança, senão viver...num
ócio eterno. É a vida dos bem-aventurados no outro mundo, e ela constituiria minha felicidade supre-
ma, dali em diante, neste mundo aqui./ Os que me recriminam por tantas contradições não deixarão
de me reprovar por mais uma. Eu disse que a ociosidade dos círculos tornava-os insuportáveis para
mim, e eis-me procurando a solidão unicamente para me entregar à ociosidade. A ociosidade dos cír-
culos é mortífera, porque é uma necessidade. A da solidão é encantadora, porque é livre e voluntária.”
Jean-Jacques Rousseau, Les Confessions, Paris, Éd. Hilsum, 1931, vol. IV, p. 173.
[m 4a, 1]
Quando todos os fios se rompem, quando no horizonte deserto não surge nenhuma vela, e quan-
do cessa toda ondulação da vivência, só resta uma coisa ao sujeito solitário, acometido pelo tae-
dium vitae: a empatia.
[m 4a, 3]
Pode-se deixar em suspenso a questão de saber se em que sentido o ócio é determinado pela
ordem de produção que o torna possível. Em vez disso, deve-se procurar elucidar o quão pro-
fundamente arraigados na ociosidade estão os traços da ordem econômica capitalista em que
ela viceja. - Por outro lado, a ociosidade na sociedade burguesa - que desconhece o ócio - é uma
é também uma crítica política, na medida em que o segundo termo (“sincronização” ou “alinhamento”) foi um
eufemismo usado pelo regime nazista para eliminar pessoas indesejáveis da vida pública e profissional. (J.L.;E/M)
8 Verso do poema de Schiller, “Das Lied von der Clocke” (A canção do sino). (J.L.)
125
condição da produção artística. E frequentemente é a própria ociosidade que marca aquela pro-
dução artística de forma drástica com os traços que evidenciam seu parentesco com o processo
de produção econômico.
[m 4a, 4]
O estudante “nunca termina de aprender”, o jogador “nunca se contenta com o que tem”, o flâneur
“sempre tem algo a mais para ver”. A ociosidade traz em si o desígnio de uma duração ilimitada, que a
distingue do simples prazer sensorial de qualquer natureza. (Seria correto dizer que o “mau infinito”,
que predomina na ociosidade, aparece em Hegel como marca da sociedade burguesa?)
[m 5, 1]
A espontaneidade comum ao estudante, ao jogador e ao flâneur talvez seja a mesma do caçador,
quer dizer, a da forma mais antiga de trabalho, que, entre todas, é certamente a mais estreitamente
ligada à ociosidade.
[m 5, 2]
As palavras de Flaubert - “poucas pessoas serão capazes de imaginar como foi preciso estar triste
para ressuscitar Cartago”9 - tornam transparente a correlação entre estudo e melancolia. (Esta,
decerto, ameaça não somente esta forma de ócio, como também toda forma de ociosidade.) Cf.
“mon âme est triste et j’ai lu tous les livres” [minha alma está triste e li todos os livros] (Mallar-
mé); “Spleen II” e “La voix” (Baudelaire); Habe nun ach [Ai de mim!] (Goethe).10
[m 5, 3]
A propósito do tipo de caçador contido no flâneur: “A massa dos locatários e dos hóspedes de
passagem começa a vagar de teto em teto neste marde casas, como o caçador e o pastor da pré-
-história; a educação intelectual do nômade também já se completou.” Oswald Spengler, Le Déclin
de l’Occident, vol. II, parte 1, Paris, 1933, p. 140.
[m 5, 5]
“O civilizado, nômade intelectual, torna-se puro microcosmo, absolutamente sem pátria e espiri-
tualmente livre, assim como o caçador e o pastor o eram corporalmente.” Spengler, op. cit., p. 125.
9 Cf. a tese VII de W. Benjamin, “Über den Begriff der Geschichte”, GS I, 696; Teses, p. 70. (w.b.)
10 Benjamin cita de memória um verso do poema “Brise Marine”, de Mallarmé: “La chair est triste, hélas! et j’ai lu
tous les livre.”; cf. J 87,5. - A citação de Goethe é o inicio do primeiro monólogo (“Noite”) de Fausto: “Ai de mim!Da
filosofia/ Medicina, jurisprudência,/ E, mísero eu! da teologia,/ O estudo fiz, com máxima insistência.” Fausto, ed. org.
por Marcus Mazzari, trad. de Jenny Klabin Segal, São Paulo, Editora 34, 2004, p. 63. (J.L.;w.b.)
127
BH é um alfabeto que foi descoberto,
extraído de uma insignificância ante-
rior. Não fosse um esforço minucioso
de investigação da parte de seus auto-
res, permaneceria mudo e sujo, pre-
servado desse prazer particular que
sentimos em arrancá-lo da ausência
de valor, do nonsense de uma paisa-
gem urbana invariavelmente coberta
de impurezas. Esse trabalho - recons-
trução de uma ordem - só foi possível
após uma espécie de caça, que exigiu
tanto um deslocamento por espaços
onde encontrar algum signo gráfico
à espera da captura de seu sentido,
como uma predisposição para um
olhar atento ao detalhe, ao mínimo e
desprezível. marcelina convida o leitor
a se tornar cúmplice de um passeio fe-
cundo, entregue à ociosidade. [L L]