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VIDA ESCRITA

POR SI MESMO
Gravura de Giambattista Vico que acompanhava a edição de 1744 da Ciência nova.
VIDA ESCRITA
POR SI MESMO

Giambattista Vico

FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN


Reservados todos os direitos
de harmonia com a lei.
Edição da
Fundação Calouste Gulbenkian
Av. de Berna. Lisboa
ÍNDICE

Introdução ............................... .. ....................................... 9

Cronologia breve da vida e das obras de Vico ................. 49

Giambattista Vico, Vida escrita por si mesmo ......... ........ 57

7
INTRODUÇÃO

O projecto

Para o leitor contemporâneo, o interesse e o fascí-


nio de uma obra como a autobiografia de Giambattista
Vico (1668-1744)- a Vida escrita por si mesmo (1728)
- residem talvez na possibilidade de conhecer o percurso
humano e filosófico que conduziu à Ciência nova, a obra
pela qual ficou conhecido o seu autor, e que se conta entre
os grandes textos filosóficos de todos os tempos. Por outro
lado, além de dar a conhecer a história de um filósofo e de
uma obra, a Vida abre uma janela com vista ampla para
o panorama intelectual das primeiras décadas do século
XVIII- italiano, mas não só. Embora Vico tenha vivido
em Nápoles praticamente durante toda a vida, as suas
ambições tinham na mira não apenas a cidade natal e a
Itália, mas sobretudo a Europa, como atestam a dedica-
tória da primeira edição da Ciência nova, em 1725, «às
academias da Europa», e a autobiografia. Com efeito,
se nos detivermos na génese da Vida, ou seja, no ambi-
cioso projecto do conde friulano Giovanartico di Porcla,
reconhece-se aí um aspecto de grande modernidade no que
se refere à transmissão das ideias e dos saberes, indissociá-
vel do contexto cultural que levou à publicação da Vida.

9
Esclareça-se desde logo que a ideia de escrever a autobio-
grafia não partiu de Vico; diga-se, aliás, que uma iniciativa
do género muito dificilmente teria passado pela cabeça de
um pensador setecentista tão zeloso da sua boa reputação,
tão preocupado com possíveis acusações de imodéstia ou
de sobranceria por parte da maldizente elite dos letrados
de Nápoles, como o autor da Ciência nova.
O projecto de Giovanartico di Porcia, intelectual
ligado aos meios mais cultos da sociedade véneta-friulana,
foi ideado com o objectivo de promover a publicação de
um conjunto de autobiografias de intelectuais italianos de
mérito e idoneidade indisputáveis. Deverá remontar pelo
menos a 1721, ano em que começou a circular privada-
mente entre alguns deles, com o acolhimento favorável de
figuras como Scipione Maffei, Apostolo Zeno, Benedetto
Bacchini, Antonio Vallisneri e, em especial, Ludovico
Antonio M uratori. O autor dos Rerum italicarum scriptores
tinha já expressado, em 1706, a sua simpatia pela prática
da narrativa autobiográfica, afirmando que seria de grande
utilidade que os melhores poetas «pusessem também por
escrito o modo através do qual tinham encontrado os con-
ceitos».1 A aceitar-se, porém, a conjectura de Benedetto
Croce, na base da ideia de Porcia estaria uma carta de

' «E nel vero farebbe a mio credere un ' impresa utilissima alia Repubblica
de' Letterati, se piu Poeti valorosi, oltre allasciarci i !oro nobilissimi componi-
menti, ponessero anche in iscritto ii modo, con cui eglino han trovati i concetti,
disoterrate !e Verità ascose dentro a quella Materia». Ludovico Antonio Mura-
tori, De !la perfeita poesia italiana spiegata, e dimostrata con varie osservazioni,
Modena, Bartolomeo Soliani, 1706, p. 575.

10
Leibniz de 22 de Março de 1714, enviada de Viena ao geó-
logo e matemático francês Louis Bourguet, residente em
Veneza à época. Nessa carta, o filósofo alemão sugeria que
Descartes exagerara ao fazer crer que mal tinha lido livros
(numa referência ao Discurso do método, bem entendido),
e manifestava o desejo de que os autores divulgassem «a
história das suas descobertas e os progressos pelos quais
chegaram até elas». 2 Dado que Leibniz endereçava alguns
elogios ao abade veneziano Antonio Conti, era verosímil
que Louis Bourguet tivesse comunicado a Conti o conteúdo
da referida carta, dando início em Veneza a uma discussão
frutuosa sobre o tema. Sabe-se que o padre Carlo Lodoli,
censor eclesiástico daquela república (e que desempe-
nha, à semelhança do abade Conti, um papel de relevo na
publicação da Vida), tinha um apreço particular pelo pro-
jecto de Porcia. Lodo li designava a «louvável empresa» de
escrever sobre si mesmo por «periautografia», neologismo
formado a partir dos termos gregos, e por «periautógrafos»
os seus praticantes, como relata o monge camaldulense
Angelo Calogerà no prefácio ao primeiro tomo da nova
revista veneziana por si curada, onde são publicadas a Vida
e o projecto de Porcia- a Raccolta d'opuscoli scientifici e

2 Benedetto Croce, «Nuove ricerche sulla vita e le opere dei Vico e sul

vichianismo», in La critica, XVI, 1918, p. 216. Escreve Leibniz a Louis Bour-


guet: «je voudrois que les Auteurs nous donassent I'Histoire de leur découvertes
et les progres parles quels ils y sont arrivés», in Die Philosophischen Schriften
von Gotifried Wilheim Leibniz, vol. III, C. I. Gerhardt (ed.), Hildesheim, Olms
[reedição], 1965, p. 568.

11
.filologici -, sob a forma de uma carta endereçada a Anto-
nio Vallisneri, com data de 12 de Setembro de 1728.3
A ideia de Pareia era então há já alguns anos
conhecida em Veneza quando, presumivelmente ainda em
1723, Vico foi abordado para escrever a sua autobiogra-
fia. Andrea Battistini apresenta razões convincentes para
corrigir a datação de Benedetto Croce e Fausto Nicolini,
de acordo com a qual o convite teria chegado a Vico no
início de 1725 e uma primeira porção de texto teria sido
mandada para Veneza em Junho desse ano. Por um lado,
o facto de a primeira fase de redacção da Vida terminar no
relato do infortúnio do concurso universitário de 1723, não
fazendo Vico nenhuma menção à Ciência nova, e ainda a
carta de 5 de Janeiro de 1724 de Pareia a Antonio Vallis-
neri, na qual o nobre friulano comunica ao cientista ter
enviado ao padre Cario Lodoli a Vida de Vico juntamente
com o seu projecto, para que se imprimissem conjunta-
mente, permitem conjecturar que o filósofo napolitano terá
terminado de escrever a primeira parte da Vida até finais
de 1723 (portanto, antes da Ciência nova). 4
Após toda a espécie de obstáculos editoriais, a 14
de Dezembro de 1727 Pareia escrevia a Vico a informá-

3 Veja-se a reprodução fac-similada do prefácio de Angelo Calogerà em

Giambattista Vico, Vita scritta da se medesimo, introduzione e cura di Fabrizio


Lomonaco, Napoli, Diogene Edizioni, 2012, pp. 116-130.
4 Sobre esta datação, veja-se o texto introdutório de Battistini à sua edição

das obras de Vico: Giambattista Vico, Opere, Milano: Arnoldo Mondadori, 2007,
pp. 1231-1242. Sobre as circunstâncias da publicação da autobiografia, veja-se
ainda o ensaio de Gustavo Costa, «An Enduring Venetian Accomplishment: the
Autobiography of G. B. Vico», in ltalian Quarterly, XXl, n. 0 79, Inverno de
1980, pp. 45-54.

12
-lo de que a publicação da obra estaria para breve; o filó-
sofo apressou-se então a redigir uma continuação, que
conseguiu expedir para Veneza a 10 de Março de 1728.
A segunda fase de redacção da autobiografia compreende
as peripécias referentes à publicação da primeira Ciência
nova, acontecimento que, como se verá, irá conferir uma
visão de conjunto e um desígnio providencial à vida de
Vico. Só em 1728 (antes de Outubro, dizem os biógrafos
mais avisados) é que a Vi ta di Giambattista Vico scritta
da se medesimo vê finalmente a luz, no primeiro tomo da
Raccolta d'opuscoli scientifici e .filologici; precedia-a o
texto de Pore ia intitulado Progetto ai letterati d 'Italia per
scrivere le !oro Vite. 5
Numa época em que ganhavam cada vez mais peso
as grandes empresas colectivas, estimuladas pela criação
de novos jornais e academias, pela proliferação de episto-
lários e por uma grande variedade de iniciativas editoriais,
no rescaldo de uma crise seiscentista de controlo doutriná-
rio e ideológico decorrente da Contra-Reforma, o tópico
da renovação da cultura e da sociedade italianas estava na
ordem do dia. 6 Nesse sentido, o projecto concebido por

5 Para que se tenha uma ideia da miscelânea que constituía a «Raccolta», no

mesmo número em que é publicada a Vida de Vico saíram na revista veneziana


artigos como: Relação de uma víbora que deu à luz as suas crias pela boca, do
médico romano G. Paolo Limperani; Da origem, dos progressos e do estado
actual da cidade de Prato, de Giovambattista Casotti; Carta de Tubalco Pani-
chio, pastor árcade. Em defesa do uso promíscuo de 'VS. 'e 'Vós'.
6 Sobre os objectivos do projecto de Pareia e o seu contexto sociocultural

veja-se em particular o artigo de Cesare De Michelis, «L' autobiografia intelle-


tuale e il "Progetto" di Giovanartico di Porcia», in Vico e Venezia, a cura di Cesare
de Michelis e Gilberto Pizzamiglio, Firenze, Leo S. Olschki, 1982, pp. 91-106.

13
Porcia- cujo produto final devia compor as Notizie d'al-
cuni Letterati viventi d 'Italia, e de' !oro Studj - coaduna-
va-se com o ideal de edificação de um saber enciclopédico
que começava a nascer na Europa. Constituía, além disso,
uma resposta a um estado de insatisfação em face de uma
situação cultural específica, a saber, um certo sentimento
de inferioridade dos intelectuais italianos em relação às
produções do espírito vindas de países protestantes como
a Inglaterra, a Alemanha e a Holanda, do qual derivava
uma vontade assumida de mostrar aos vizinhos europeus
que também naquela península havia homens de mérito e
obras dignas de nota. Não deixa de ser significativo, aliás,
que o projecto de Porcia e a Vida de Vico sejam publicados
no mesmo ano em que sai a Cyclopaedia, or, an Universal
Dictionary ofArts and Sciences, de E. Chambers, que virá
a servir de base, anos mais tarde, para a Encyclopédie, ou
Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers
(1751-1772), de Diderot e D' Alembert.
Entre os principais objectivos do nobre friulano
encontrava-se assim a redefinição do papel social e polí-
tico do letterato italiano - o savant, o intelectual. Como
esclarece o autor do Progetto, as autobiografias deviam
narrar as histórias de formação dos seus autores, de modo
a constituir modelos pedagógicos com vista à renovação
das elites pensantes. São decerto reveladoras as numerosas
indicações de Porcia aos seus interlocutores, que funcio-
navam como linhas de orientação, e cuja leitura permite

14
iluminar alguns aspectos da retórica da Vida. Nas pala-
vras de Porcia, os autores das autobiografias deviam dar
conta do ano de nascimento, do nome dos pais e da pátria,
bem como das «aventuras que tornavam a sua vida mais
admirável e curiosa», desde que tal narração não fizesse
«ruborizar o mundo e a posteridade». 7 Devia seguir-se a
narração do percurso dos seus estudos desde os primei-
ros anos de escola, com uma reflexão crítica acerca dos
métodos de ensino, da escola e dos professores, incluindo
os respectivos méritos, abusos ou lacunas. Após terem
ascendido de «Arte em Arte, de Ciência em Ciência», não
deixando de assinalar os problemas com que se debateram
no ensino das diversas matérias, os autores eram convida-
dos a discorrer sobre aquelas às quais se tinham dedicado
de modo mais aprofundado, indicando as obras publica-
das e por publicar, bem como os autores que lhes tinham
servido de modelo. O projecto, cuja motivação maior era,
nas palavras do seu promotor, o «amor pelo progresso
das letras na ilustre pátria italiana», incluía ainda várias
advertências de carácter ético. Movidos por uma «heróica
indiferença», os autores deviam aplicar toda a sinceridade
possível na narração do seu itinerário intelectual, sem

7 Pode ler-se a transcrição integral do Progetto ai letterati d 'Jtalia per iscri-

vere le !oro vite no apêndice ao ensaio de Rosario Diana, «Ragione narrativa ed


elaborazione dialogica dei sapere. L' autobiografia di Giambattista Vico e ii suo
contenuto problematico», no Bolletino del Centro di Studi Vichiani, XXXIV,
2004, pp. 113-167. Veja-se ainda uma reprodução fac-similada do projecto em
Giambattista Vico, Vita scritta da se medesimo (introduzione e cura di Fabrizio
Lomonaco), ed. cit., pp. 135-149.

15
ceder à tentação de fazer uma apologia e não se inibindo
de referir os erros e as falhas em «coisas de engenho e
de letras». Deviam, enfim, manter-se fiéis à finalidade de
ser úteis a toda uma nação, «libertando-se das amarras do
amor-próprio», armando-se, para tal propósito, de uma
«generosa neutralidade» no modo de falar de si, e vestindo
o papel de <~uízes, censores ou apologistas» consoante a
natureza das coisas tratadas. 8
Obra que se pretendia colectiva, o projecto de Por-
ela devia constituir um «tratado prático universal» de
tudo quanto «se deve saber em todos os géneros de lite-
ratura». Apesar de ter sido recebido favoravelmente pelos
seus interlocutores, o auspicioso projecto acabou por se
revelar um fiasco. Antonio Muratori, que em 1721 chega
a enviar a Porcia a sua autobiografia, sob a forma de uma
carta com o título cartesiano de Intorno ai metodo seguito
ne 'suai studi, acaba por retroceder e decide não a publi-
car por escrúpulos religiosos e por temer que o texto fosse
interpretado como uma demonstração de vaidade. 9 A auto-
biografia de Pier Jacopo Martello, por seu lado, será publi-
cada só em 1729, no segundo tomo da Raccolta d 'opuscoli
scientifici e.filologici. 10 Já a de Antonio Vallisneri, enviada,
à semelhança da de Vico, em 1723, é publicada postuma-

8 Cfr. «Progetto», in Rosario Diana, op. cit., pp. 163-165.


9 Cfr. Ludovico Antonio Muratori, Scritti autobiografici, a cura di Tomm aso
Sorbelli, Vignola, Comitato vignolese per le onoranze a L. A. Muratori, 1950,
pp. 29-71.
1° Ctr. Vila di Pier Jacopo Marte/lo scritta da lu i stesso fino l 'anno 1718,

in Raccolta d'opuscoli scient!fici efilologi, a cura di Angelo Calogerà, II, 1729,


pp. 275-92.

16
mente em 1733, sob a forma de uma biografia da autoria
de Pareia. 11
A Vida de Vico foi assim o único resultado tangível do
projecto de Pareia, sendo descrita por este como a que mais
se aproximava da ideia concebida, pelo que podia servir de
norma aos que ponderassem ainda escrever uma autobio-
grafia intelectual. De facto, a Vida mostra-se de tal maneira
fiel aos critérios minuciosos de Pareia que, como sugere
Andrea Battistini, quase se poderia levantar a suspeita de
que o nobre friulano, após ter proposto aos intelectuais
italianos a escrita das próprias vidas, tivesse formulado o
seu projecto com base no texto que Vico lhe enviara. 12 Seja
como for, o filósofo napolitano não deixou, claro está, de
tomar pequenas liberdades narrativas. Por exemplo, logo
na primeira frase da obra, lapidar pelo modo sintético e
imponente como são dadas a proveniência e a genealogia
do autor, Vico omite os nomes dos progenitores e erra a
própria data de nascimento. 13 E na frase seguinte, em vez

11 Cfr. Giovanni Artico di Pareia, Notizie della vita, e degli studi dei Kava-

lier Antonio Val/isneri, a cura di D. Generali, Bolonha, Pàtron editare, 1986.


12 Andrea Battistini, La degnità de/la retorica. Studi su G. B. Vico, Pisa,

Pacini Editare, 1975, p. 18. Ainda de Battistini, veja-se, para uma apresentação
sucinta das vicissitudes do projecto, a secção «Le autobiografie intellettuali e ii
"Progetto" di Giovan Artico di Pareia», incluída no capítulo «L' io e la memo-
ria», in Manuale di letteratura italiana. Storia p er gene ri e problemi, a cura di
Franco Brioschi e Costanzo di Girolamo, vol. II (Da! Cinquecento alia metà dei
Settecento), Torino, Bollati Boringhieri, 1994, pp. 481-486.
13 Na frase inaugural da Vida, Vico declara ter nascido em 1670, quando,

na verdade, nasceu em 1668, a 23 de Junho; foi baptizado no dia seguinte, na


paróquia de San Gennaro all'Olmo, em Nàpoles, onde ainda hoje se conserva
o registo do seu baptismo. O nome de baptismo de Vico teria sido escolhido
em honra do seu avô materno, Giambattista Masullo, e possivelmente também

17
dos nomes daqueles, descreve-lhes os temperamentos: «o
senhor Giambattista Vico» era filho de pai de «humor ale-
gre» e de mãe de «temperamento assaz melancólico». 14
Apesar dos protestos que fez chegar aos promotores
venezianos da autobiografia quando soube que a sua seria a
única a ser publicada (e que, como se não bastasse, era tida
como exemplo para as que se lhe seguissem), Vico nunca
desistiu do projecto de Porcia, e com boas razões. O filó-
sofo, que em 1709 publicou em latim o opúsculo De nostri
temporis studiorum ratione, onde discutia as vantagens e
os inconvenientes dos métodos de estudo dos antigos e dos
modernos, viu na ideia de Porcia uma excelente ocasião de
expor as suas teorias pedagógicas perante um público mais
vasto do que o dos discursos solenes proferidos em ocasião
da abertura do ano académico, na Universidade de Nápo-
les. A publicação da autobiografia constituía para Vico uma
oportunidade de se dar a conhecer fora da capital do reino e
de conquistar a atenção dos intelectuais de Veneza e além-
-fronteiras- aquela Europa mítica e idealizada onde o filó-
sofo napolitano esperava encontrar os seus leitores mais
competentes. Por outro lado, escrever a autobiografia deu
a Vico, em particular durante a segunda fase de redacção,
concluída em 1727, a possibilidade de justificar a fraca

em homenagem a São João Baptista, cuja festa se celebra no dia a seguir ao do


nascimento de Vico.
14 O pai do autor da Ciência nova era Antonio de Vico, nascido por volta de

1630 na localidade de Maddaloni, e proprietário de uma livraria na movimentada


Via San Biaggio dei Librai, em Nápoles; a mãe era Candida Masullo, nascida
em 1633 em Nápoles. Cfr. Fausto Nicolini, La giovinezza di Giambattista Vico.
Saggio biogra.fico. Napoli, Societá Editrice II Mulino, 1992, pp. 15-16.

18
recepção que a Ciência nova estava a ter na pátria e fora
dela, permitindo-lhe esclarecer e resumir os seus pontos
essenciais perante frequentes e, não raras vezes, desinfor-
madas acusações de ininteligibilidade e obscurantismo.
À semelhança do que se verificara em relação ao texto
autobiográfico publicado em 1728 na revista veneziana,
também no caso do aditamento de 1731 foi graças a uma
solicitação externa que Vico pegou na pena para retomar a
escrita da sua vida. Em 1730, após ter sido abordado por
Muratori para integrar a academia dos Assorditi de Urbino,
Vico foi convidado a enviar um compêndio da Vida a Gian
Prospero Bulgarelli, erudito de Módena responsável pela
reconstituição dessa academia, que preparava uma colectâ-
nea de biografias dos seus membros, como era prática cor-
rente. Dos materiais que Vico produziu nessa altura com
vista a uma segunda edição do texto publicado na Raccolta,
em que se incluía uma revisão da editio princeps de 1728,
sobreviveu o esboço de uma continuação da obra, redigido
algures na Primavera de 1731, à qual se convencionou
chamar aggiunta. O volume organizado por Bulgarelli
nunca foi publicado e este «aditamento» só veio a público
em 1818, quando o marquês de Villarosa o publicou na sua
edição dos Opuscoli de Vico, juntamente com a edição da
Vida de 1728 e um texto da sua autoria sobre os últimos
anos do autor da Ciência nova. 15

15 A tradução inglesa da autobiografia de Vico, publicada pela primeira vez

em 1944 por Max Harold Fisch e Thomas Goddard Bergin, inclui o texto de
Villarosa. Pelo facto de este relato se basear em fontes orais e, como tal , ter uma

19
O aditamento de 1731, espécie de apêndice e última
parte da autobiografia viconiana, dá conta de certos «estu-
dos amenos» a que Vico se dedicou, vários deles em datas
anteriores à da publicação da Vida e quase todos de inte-
resse questionável, como se Vico se estivesse a valer da
ironia para mostrar que, embora merecesse ser reconhe-
cido como filósofo sério, era procurado na sua cidade
sobretudo pelos dotes de latinista, para amenidades como
a composição de inscrições fúnebres (que depois, por
qualquer motivo, não eram erigidas). Vico narra ainda a
desventura da péssima recensão à Ciência nova publicada
no jornal Acta eruditorum lipsiensia, em 1727, à qual res-
pondeu no opúsculo de I 729 conhecido habitualmente
como Vici vindiciae. Se no segundo momento de redac-
ção da autobiografia Vico teve ensejo de acrescentar infor-
mações referentes à primeira edição da Ciência nova, no
aditamento de 1731 o filósofo concentra-se sobretudo nas
atribuladas negociações venezianas que dizem respeito à
segunda edição do seu magnum opus, que, à semelhança
da primeira, acabou por sair em Nápoles. De resto, tudo o
que no aditamento diz respeito às peripécias dessa edição
malograda tinha sido já enunciado por Vico na sua adver-
tência à Ciência nova de 1730, com o título de «Occasione
di meditarsi quest'opera». O aditamento lança assim luzes

natureza especulativa, não se considerou razoável incluí-lo na nossa tradução,


consagrada por inteiro ao texto de Vico. Para uma sistematização da história da
publicação das várias partes da Vida, veja-se a introdução de Rita Verdirame a
La vila e gli «affetti» di G. B. Vico. Gli «acerbi martiri» ele «delizie oneste» nel
racconto di sé di un «savant», Catania, c.u.e.c.m., 2010, pp. 13-25.

20
importantes não só sobre a relação do filósofo napolitano
com os intelectuais de Veneza, mas também sobre a histó-
ria e a fortuna inicial da Ciência nova, de cuja redacção a
Vida é, a partir de 1725, contemporânea. 16 Na medida em
que Vico dedica aí várias páginas a explicitar e promover
as ideias-chave da Ciência nova, a Vida pode considerar-
-se, no seu todo, a melhor introdução a este texto funda-
mental, bem como um testemunho privilegiado da história
do pensamento de Vico.

A vida e a ciência

A Vida, uma autobiografia intelectual, trata da «repu-


tação de letrado» do seu autor, que não escreve senão sobre
o curriculum studiorum, as leituras, as obras compostas ou
por compor, e o desenvolvimento da sua filosofia. O lei-
tor da autobiografia de Vico não encontra aí exames de
consciência, ou buscas autocontemplativas de um «em>
essencial; nada na Vida se assemelha, enfim, a um «Vico
juiz de Giambattista». 17 Os escassos acontecimentos priva-
dos ou domésticos que Vico introduz na narrativa têm uma
função estratégica, na medida em que lhe permitem ilustrar
ou iluminar determinado aspecto do seu percurso intelec-
tual. Assim, em duas das referências mais relevantes que

16 Veja-se, sobre todas estas peripécias, o ensaio de Vincenzo Placella, «La

mancata edizione della Scienza nuova», in Vico e Venezia, pp. 143-182.


17 A analogia com a obra Rousseau juge de Jean-Jacques é feita por Alain

Pons na introdução à sua tradução da autobiografia de Vico: Vie de Giambattista


Vico écrite par lui-même, Paris, Grassei, 1981 , p. 32.

21
Vico faz à sua vida familiar, o foco da descrição recai sobre
a actividade de estudioso: a primeira diz respeito à elabora-
ção da biografia histórica de Antonio Carafa, De rebus ges-
tis Antonii Caraphaei, composta durante os anos de 1714
e 1715 e publicada no ano seguinte; a segunda concerne
à preparação para o concurso universitário de 1723. Estas
características podem entender-se, antes de mais, tendo em
consideração os modelos de discurso autobiográfico então
disponíveis. Sob esse aspecto, o projecto de Pareia, defi-
nido por Andrea Battistini como a «carta constitucional»
das primeiras autobiografias setecentistas (sobretudo meri-
dionais),18 é por si só revelador do estado da arte. Como se
viu, a autobiografia de Vico foi pensada como um contri-
buto individual para uma empresa colectiva, com vista ao
progresso da «república das letras».
Não cabendo nesta breve introdução fazer uma revi-
sitação da história do discurso autobiográfico, é todavia
profícuo considerar a Vida e os seus traços distintivos à luz
de um dos axiomas- ditos «dignidades»- mais citados da
Ciência nova, por se considerar elucidativo do historicismo
associado ao pensamento viconiano, ou seja, aquele em que
o filósofo esclarece que a «natureza das coisas não é senão
o seu nascimento em certos tempos e em certas circunstân-
cias que, sempre que são tais, as coisas nascem tais e não
outras». 19A Vida é o produto necessário de um contexto, de

" Andrea Battistini, Lo specchio di Dedalo. Autobiografia e biografia,


Bologna, 1990, p. 81.
19 Sn44, §147. As citações da Sn44 são retiradas da edição portuguesa da

obra: Giambattista Vico, Ciência nova (tradução de Jorge Vaz de Carvalho),

22
circunstâncias específicas. Nas primeiras décadas do século
XVIII, a autobiografia não tinha ainda adquirido autono-
mia enquanto género, nem o prestígio que viria a obter nas
décadas seguintes. 20 No tempo de Vico, sintetiza Andrea
Battistini, a prática da escrita sobre si era ainda «ancilar na
simbiose com formas já consolidadas como o emblema, o
encómio, o diálogo, a carta, a lírica». 21 Nesse sentido, Bat-
tistini chama a atenção para o papel que o modelo de edu-
cação jesuíta, por ter familiarizado as classes cultas com
a reflexão escrita sobre a própria vida, pode ter desempe-
nhado na constituição do novo género literário. São então
identificados dois percursos culturais distintos: o dos países
protestantes, em que a substituição do sacramento da peni-
tência pelo diário íntimo culmina no confessionalismo de
Rousseau e no romance burguês setecentista; 22 o dos países

Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2005. Indica-se, após a designação


abreviada da obra, o número do parágrafo, conforme a organização, ainda hoje
utilíssima, de Fausto Nicolini.
20 O termo «autobiografia», aliás, só entra nos léxicos das línguas europeias

a partir de finais do século XVlll (Georges Gusdorf localiza o termo alemão


Autobiografie num escrito de Friedrich Schlegel de 1798). Cfr. G. Gusdorf, «De
l'autobiographie initiaque au geme littéraire», in Revue d'Histoire Littéraire de
la France, n. 0 6, Nov.-Dec., 1975, p. 963, n. 6.
21 A. Battistini, «L' autobiografia e i modelli narrativi secenteschi», in Cul-

tura meridiana/e e letteratura italiana. I modelli narrativi dell'età moderna.


Atti deii'Xl Congresso deli ' Associazione intemazionale per gli studi di lingua e
letteratura italiana (Napoli- Salerno- Lancusi, 14-18 aprile 1982), a cura di P.
Giannantonio, Napoli, Loffredo, 1985, p. 156.
22 Relembre-se, a este respeito, a teoria de Ian Watt em The Rise of the

Nove!, que relaciona o nascimento do romance com o protestantismo, o indivi-


dualismo político e algumas formas de discurso autobiográfico, como a carta e
o diário; vejam-se, em particular, os capítulos «Robinson Crusoe, individualism
and the nove!» (pp. 60-92) e «Private experience and the nove!» (pp. 174-207).
Cfr. Ian Watt, The Rise ofthe Nove!, London, The Hogarth Press, 1987.

23
católicos, em que a Autobiografia e os Exercícios espiri-
tuais de Santo Inácio de Loyola, ao assumirem a forma
de uma experiência iniciática, constituem um modelo
narrativo passível de ser imitado por todos. Este modelo
seculariza-se - paradoxalmente, sugere Battistini - com
Descartes. Enquanto em Loyola o fim da auto-reflexão é a
salvação da alma, comum a todos os homens, Descartes, no
Discurso do método, defende que os homens não diferem
na posse das faculdades racionais, apresentando por isso as
mesmas condições para «bem conduzir a razão e procurar
a verdade nas ciências», caso sigam o caminho proposto. 23
Embora Vico repudie reiteradamente o cartesianismo
ao longo da Vida- não há dúvida de que o filósofo napoli-
tano conhecia bem o Discurso do método -, a autobiogra-
fia de Vico está mais próxima do modelo de Descartes24
do que do de Rousseau. Dito de outra forma, a Vida está
historicamente longínqua do tipo de discurso autobiográ-
fico disseminado na Europa após a publicação póstuma
das Corifissões - obra a partir da qual, na formulação de
Georges Gusdorf, a autobiografia assume a forma de um
romance escrito na primeira pessoa2 S, e a qual terá contri-
buído para a noção modema de que qualquer indivíduo
pode ser autor de uma narrativa autobiográfica, bastando

23 A. Battistini, «L' autobiografia e i modelli narrativi secenteschi», pp. 157-

-161. Veja-se ainda a introdução de Battistini à sua edição da autobiografia de


Vico, em Opere, pp. 1231-1242.
24 Ou, segundo a fórmula italianizada de que Vico se serve na Vida, «Renato

deli e Carte»; o adjectivo viconiano correspondente é renatista, por «cartesiano».


25 G. Gusdorf, op. cit., p. 994.

24
para tal ter sentimentos ou opiniões. Na Nápoles setecen-
tista de Vico, pelo contrário, vigorava ainda o juízo de
Dante segundo o qual «não parece lícito que alguém fale
de si mesmo», uma vez que não é possível fazê-lo sem que
aquele que fala «não louve ou censure aqueles de quem
fala». 26 Pense-se, a esse respeito, na recusa de Muratori de
publicar a autobiografia, bem como nas reservas, embora
ligeiras, do próprio Vico em relação à publicação da sua.
Dante concede, contudo, que alguém fale de si por dois
motivos necessários: um, «quando não se pode fazer ces-
sar uma grande infâmia ou perigo sem reflectir sobre si»;
o outro, quando de tal reflexão «resulta para outrem uma
grandíssima utilidade por meio da doutrina». 27 No caso de
Vico, escrever sobre si era justificável por ambos os moti-
vos enunciados por Dante, coincidindo o segundo com
uma das premissas do projecto de Porcia, isto é, com a sua
missão didáctica. Quanto ao primeiro motivo, é possível
identificar a infâmia de que Vico se procuraria defender na
ameaça de incompreensão das suas obras pelos conterrâ-
neos - na verdade, uma sombra que perpassa toda a Vida.
As ambições intelectuais de Vico podiam ter a exten-
são da Europa, mas o filósofo napolitano nunca deixou
de procurar na cidade natal o reconhecimento dos seus

26 Dante Alighieri, Convivia, a cura di Franca Brambilla Ageno, Casa

Editrice Le Lettere, Firenze, 1995, I, II 2-3, pp. 7-8. Já Aristóteles, na Ética a


Nicómaco , estabelecera que o magnânimo «não deve falar de si nem dos outros».
Cfr. Aristóteles, Nicomachean Ethics, translated (with introduction, notes, and
glossary) by Terence Irwin, 2nd. ed., Indianapolis and Cambridge, Hackett Pub-
lishing, 1999, IV, 1125a, §31 , p. 59.
27 Dante Alighieri , Convivia, I, II, 12-14, p. 11 .

25
méritos intelectuais e a legitimação da sua filosofia. Desse
modo, se a primeira fase de redacção da Vida evidencia o
ressentimento de Vico após o «golpe de fortuna adversa»
que constituiu o insucesso do concurso universitário de
1723, a que se juntava o mau acolhimento em Nápoles
da obra Direito universal, é a publicação da Ciência nova
que assume o protagonismo na autobiografia quer na sua
segunda fase de redacção, quer no aditamento de 1731.
Em certa medida, é mesmo em resposta às acusações de
ilegibilidade e obscuridade dirigidas contra a única obra
pela qual gostaria de ser lembrado que Vico escreve a Vida.
É também nos escritos autobiográficos de Vico, em
particular na Vida, que se pode localizar a fonte primária de
um mito que florescerá a partir do século XIX e dará frutos
pelo menos até meados do século seguinte: o mito român-
tico de um Vico solitário, isolado no seu tempo e afastado
dos seus pares, veiculado através da retórica da solidão
e da excepcionalidade que o próprio cultivou. Abundam
na Vida as referências ao carácter autodidacta do autor,
aos estudos empreendidos por sua conta e à capacidade
de seguir as próprias inclinações intelectuais (aquilo a que
Vico chama o seu «bom génio»), mesmo quando estas são
vistas como datadas ou inusitadas. Aos dez anos de idade,
conta Vico, o professor da escola de gramática já o consi-
derava «uma criança mestra de si mesma». Já o período
de cerca de nove anos passado em Vatolla, uma pequena
localidade na província de Salerno, é mencionado duas
vezes, destacando Vico quer a importância dessa tempo-

26
rada para a sua formação, quer a solidão a ela associada,
que terá beneficiado também o desenvolvimento dos seus
estudos. Assim, ao recordar os tempos em que estudou
por sua conta, sem mestres, os clássicos gregos e latinos,
agradece às florestas de Vatolla a solidão e a autonomia
concedidas para estudar o que mais lhe aprazia, opondo-as
à cidade, onde os gostos literários mudavam de ano a ano
como modas de vestuário. E quando dá conta do regresso
a Nápoles, declara que se sentiu um estrangeiro na própria
pátria, lamentando ter de viver naquela cidade como um
desconhecido, por não se rever no culto das correntes filo-
sóficas mais em voga: a cartesiana (o cogito e a mate mati-
zação dos campos do saber) e a gassendiana (a «moda» do
epicurismo e do atomismo que a Vida destaca). Ao verifi-
car que a física de Descartes se tinha tornado tão popular
em Nápoles- ao contrário do estudo do grego e do latim,
cuja boa prosa Vico se propusera cultivar-, é com orgulho
que o autor da Vida reafirma a sua solidão. Por volta dessa
época, merecia do cartesiano Gregorio Caloprese o epíteto
de «autodidacta».
Há, no entanto, alguma ambiguidade na Vida entre o
orgulho de Vico no seu isolamento intelectual, manifesto
na retórica da solidão a que se aludiu, e as queixas de
incompreensão que também proliferam na obra, as quais
evidenciariam o desejo de Vico de participar num diálogo
com a mesma comunidade que o rejeitava. 28 Esse desejo é

28 Dante Della Terza, Forma e memoria. Saggi e ricerche sul/a tradizione

letteraria da Dante a Vico, Roma, Bulzoni, 1979, pp. 277-278.

27
especialmente evidente num outro escrito autobiográfico de
Vico, uma carta de 25 de Outubro de 1725 ao padre capu-
chinho Bernardo Maria Giacco, com a qual o filósofo napo-
litano lhe envia a primeira edição da Ciência nova. Vico
lamenta a ausência de ressonância da obra em Nápoles,
relacionando a metrópole partenopeia com o lugar bíblico
do deserto: «Nesta cidade, faço de conta que a enviei para
o deserto e evito todos os lugares frequentados para não
embater naqueles aos quais a enviei; se, por necessidade,
um deles me aparecer, saúdo-o de fugida: acto através do
qual, não me dando eles qualquer indício de a ter recebido,
me confirmam a opinião de tê-la eu enviado para o deser-
to».29 A Ciência nova tinha acabado de ser publicada e já se
impacientava o filósofo com a ausência de celebração que
sentia em seu redor, o que terá contribuído para agravar a
sensação ambígua de isolamento. 30
Sem esquecer que o próprio Vico defendia que os
mitos e as fábulas eram uma expressão de verdades civis31
- isto é, admitindo que o mito da solidão de Vico tivesse
origem num facto histórico e que o filósofo estaria inte-
lectualmente isolado em Nápoles -, a verdade é que o seu
pensamento se desenvolveu sob o estímulo das corren-

29 Giambattista Vico, Opere, p. 308.


30 Num dos parágrafos finais da obra De ratione, escrevia Vico que um dos
seus maiores temores de sempre foi o de ser o único a saber, o que lhe parecia
perigoso, como coisa própria de um deus ou de um estulto: «Nam id in omni vi ta
unum maxime formidavi: ne ego solus saperem, quae res plenissima discriminis
sempre mihi visa est, ne aut deus fierem, aut stultus» (cfr. Opere, p. 214).
31 Cfr. Sn44, § 198: «as primeiras fábulas deviam conter verdades civis e,

por isso, ter sido as histórias dos primeiros povos».

28
tes filosóficas mais vitais da época, como mostra a Vida.
É sabido que Vico esteve inscrito em várias academias: na
dos Uniti, em 1693; na de Medinacoeli, em 1698; na Arca-
dia, em 1710; na dos Assorditi de Urbino, em 1730; e na
dos Oziosi, em 1735. Frequentou, além disso, em jovem,
os salões de vários letrados napolitanos, e manteve uma
correspondência estreita com filósofos, teólogos e cientis-
tas de Itália e de além-fronteiras. Gustavo Costa apresenta
a hipótese de que tenha sido o próprio filósofo napolitano a
criar, mais ou menos intencionalmente, a «lenda do seu iso-
lamento».32Assim, em parte por temperamento - uma certa
tendência apolítica, não incompatível com um carácter
sociável -, em parte por prudência e por receio da censura
eclesiástica, o filósofo não terá sido capaz de comunicar
com sucesso a sua filosofia aos contemporâneos. O isola-
mento de Vico explicar-se-ia, em suma, pela impossibili-
dade de as suas principais ideias serem usadas como armas
eficazes nas polémicas literárias, filosóficas e religiosas em
que se tinham empenhado os intelectuais napolitanos entre
o final do século XVII e o início do século XVIII. 33
É curioso que as declarações de independência inte-
lectual presentes na Vida coloquem Vico por vezes do lado
de Descartes. Na sua demarcação veemente das diferenças
que o separam do filósofo francês, Vico aproxima-se dele

32 Gustavo Costa, <<Vico e ii Settecentm>, in Forum ltalicum. A Journal of

ltalian Studies, March/June i976, i O, pp. 10-30; cfr. p. i2.


33 Gustavo Costa, «Preilluminismo meridionaie: Giannone e Vico», cap. VI,

in Storia della Letteratura Italiana, Eurico Maiato (dir.), vol. VI, ll Settecento,
Roma, Saierno Editrice, 1998, p. 346.

29
em alguns pontos, decerto mais propriamente retóricos do
que filosóficos. Em particular, a descrição simbólica dos
nove anos em Vatolla parece ecoar a do exílio de Descartes,
que declara ter vivido, durante nove anos, «tão solitário e
retirado como nos desertos mais distantes»? 4 Na verdade,
a retórica da Vida assenta em grande medida na defesa da
franqueza e do respeito pela verdade dos factos associados
à «ingenuidade que convém ao historiador», em referência
polémica ao texto cartesiano. Logo no início da autobio-
grafia, Vico acusa Descartes de ter escrito uma ficção no
Discurso do método, dando «astutamente» uma ideia falsa
acerca do método dos seus estudos para «exaltar» a própria
filosofia. Por seu lado, o autor da Vida propõe narrar os
erros cometidos «em coisas de engenho e de letras», de
acordo com as indicações de Porcia. No entanto, embora
tenha pretendido narrar todos os passos do seu percurso
intelectual, Vico desvalorizou alguns deles - é o caso das
suas incursões poéticas iniciais, desprezadas como erros de
juventude- quando não omitiu outros- é o caso, ainda em
matéria de poesia, do livroAffetti di un disperato, publicado
em 1693, e da obra historiográfica Principum neapolitano-
rum coniurationis anni MDCCI historia, de 1703, escrita
sob um ponto de vista franco-espanhol, quando, durante

34 Descartes, Discurso do método, tradução de Pinharanda Gomes, 4." edi-

ção, Lisboa, Guimarães Editores, 2004, p. 34. Veja-se o ensaio de António José
Pereira Filho, «0 discurso e o método: Vico leitor de Descartes e a "Autobio-
grafia", in Embates da razão. Mito e filosofia na obra de Giambattista Vico.
Humberto Guida, José M. Sevilla, Sertório de A. e Silva Neto (org.), Uberlãndia,
Edufu, 2012, pp. 179-202.

30
todas as fases de composição da autobiografia, Nápoles se
encontrou sob domínio austríaco.
Outro aspecto em que Vico se afasta do modelo car-
tesiano, tendo-o porém sempre presente, é na escolha da
terceira pessoa para narrar a própria vida. Na primeira frase
da autobiografia, Vico faz uma síntese das suas genea-
logia e proveniência, apresentando-se como «O senhor
Giambattista Vico»; pouco depois, refere-se a si como
«Giambattista»; a partir desse momento, e até ao final,
como <<Vico» («ii Vico» ). É preciso esperar pelo final do
aditamento para que o filósofo, exibindo uma maior proxi-
midade em relação ao leitor, forneça uma espécie de auto-
-retrato em que, sob a forma de um epitáfio, o destino do
autor da Vida é assimilado ao de Sócrates. É nesse momento
que, pela primeira vez, recorrendo às palavras de outro, é
usada a primeira pessoa do singular. A terceira pessoa cons-
tituiu para Vico uma solução retórica, permitindo-lhe expor
os episódios que exaltam os seus méritos ou sucessos com a
aparência de objectividade, bem como citar opiniões lison-
jeiras sem ser acusado de imodéstia. Desse ponto de vista,
Vico mostra ter seguido à letra a lição de Aristóteles, que
na Retórica postulara que, «relativamente à expressão de
carácter moral, uma vez que dizer algo acerca de si próprio
pode tornar-se quer odioso, quer prolixo, quer contradi-
tório, assim como, acerca de outrem, injurioso ou gros-
seiro, é preciso colocar outra pessoa a dizer tais coisas.» 35

35 Aristóteles, Retórica, tradução e notas de Manuel Alexandre Júnior, Paulo

Farmhouse Alberto, Abel do Nascimento Pena (2." ed. rev.), Lisboa: Imprensa

31
Através do uso da terceira pessoa, Vico procurou salvaguar-
dar a intenção didáctica do projecto de Porcla, que aconse-
lhara aos seus interlocutores uma «generosa neutralidade».
Por outro lado, a terceira pessoa deu ao autor da Vida
a possibilidade de falar de si como de um topos do passado,
um lugar poético e heróico. Nesse sentido, o historiador de
si mesmo está próximo do poeta épico que toma a pró-
pria vida como assunto da epopeia que escreve. O «Vico»
que protagoniza a Vida torna-se um tópico heróico, um
lugar do passado que deve ser investigado, reconstituído
e interpretado. Foi talvez tendo em mente estas caracte-
rísticas do texto viconiano que Pietro Giannone - poucos
anos mais novo do que Vico, autor de uma polémica Isto-
ria civile del regno di Napoli (1723) e, à semelhança do
filósofo napolitano, de uma autobiografia- definiu a Vida
como «a coisa mais desenxabida e ao mesmo tempo mais
fanfarrona que alguma vez se leu»? 6 Enquanto o primeiro
atributo enunciado por Giannone diz respeito à obediência
da autobiografia viconiana aos preceitos da retórica clás-
sica (o que garantiria que a Vida se pudesse instituir como
modelo a seguir), o segundo parece referir-se à exibição,
da parte de Vico, da certeza de ter dado à luz uma obra
genial: a Ciência nova.

N acional-Casa da Moeda, 2005, III, 17, 1418 b.


36 Numa carta de 29 de Julho de 1729 ao seu irmão Cario, Pietro Giannone

descreve a autobiografia de Vico como «la cosa piu sciapita e trasonica [da per-
sonagem de Trasão, na comédia O Eunuco, de Terêncio] insieme che si potesse
mai leggere». Cíf. Carteggio di lettere scritte da Pietro Giannone giureconsulto
e avvocato napoletano a suo fratello in Napoli (apud Andrea Battistini, La deg-
nità della retorica, p. 19).

32
Disse-se um pouco acima, a propósito da natureza
estritamente intelectual da Vida, que não havia na obra
lugar para exames de consciência. Diga-se também que
tais não seriam necessários, pois Vico mostra quem é
naquilo que escolhe narrar. Os críticos têm falado de um
Vico sombrio, desconfiado, orgulhoso, taciturno e melin-
droso, que frequentemente se vitimiza; é o próprio que
declara, no final da Vida, ter pecado pela cólera. Estes são
atributos que o leitor identificará, e que se reconhecem
sobretudo no vigor com que Vico defende a sua «repu-
tação de letrado», bem como na ferocidade e no «modo
desabrido» com que responde aos detractores. Vico trans-
creve cartas e cita os elogios de pessoas reputadas, cujos
nomes, em muitos casos, só sobrevivem na memória dos
tempos graças à Vida. Dir-se-ia, não sem razão, que Vico
parece quase demasiado cioso do seu bom nome, do bom
acolhimento da sua filosofia.
A este respeito, Alain Pons ensaia uma análise socio-
lógica pertinente, observando que um lugar na «república
das letras» não podia ser senão uma conquista árdua para
alguém que, como o autor da Vida, não possuía familia-
res instruídos ou endinheirados. Pons localiza aí parte da
explicação para uma defesa tão acérrima (dentro dos limi-
tes retóricos da modéstia) das próprias qualidades intelec-
tuais, e até para o declarado «pouco espírito em questões
que concernem às utilidades»: como se lê na Vida, Vico
ponderou não concorrer à vaga na cátedra de Retórica na
Universidade de Nápoles (cargo que lhe daria o pão quo-

33
tidiano por mais de quarenta anos) por não ter vencido,
tempos antes, um concurso para o lugar de secretário da
cidade. No entanto, observa ainda Pons, apesar de não ter
nascido em berço de ouro, Vico nasceu em Nápoles, «não
em Marrocos», e na rua dos livreiros, o que lhe permitiu
conviver desde cedo com alguns dos clientes mais cultos
da Via San Biaggio dei Librai. 37 Aliás, as livrarias são, na
autobiografia, o palco privilegiado de muitos encontros
providenciais com homens notáveis «di spada, di chiesa,
di toga, di studio», para evocar um título famoso de Fausto
Nicolini, constituindo a matéria pitoresca de episódios em
que, como em pequenos quadros, se entrevê a vida civil
da metrópole partenopeia. O próprio pai de Vico, livreiro,
representa nesta história um papel significativo, não só
pelo conhecimento directo ou indirecto de pessoas que
podiam ser de utilidade para o futuro do filho, mas tam-
bém pelo zelo com que tenta levá-lo a enveredar pelos
caminhos da melhor educação - embora, como afirma um
dos notáveis que Vico encontra por acaso numa livraria,
com quem mantém um interessante diálogo, os homens de
letras sejam para as suas famílias «mais um fardo do que
um auxílio».
Enquanto itinerário intelectual, a Vida apresenta o
retrato de um pensador que, não pertencendo à elite polí-
tica ou profissional da cidade natal, tem o desejo de con-
tribuir para a glória dela através das suas obras, ou de uma

37 Veja-se a introdução de Alain Pons aVie de Giambattista Vico, p. 37.

34
em particular, como se adiantou. A autobiografia de Vico
exalta a exemplaridade de uma vida, que se manifesta na
defesa da singularidade do rumo escolhido, dos estudos
empreendidos e da vocação precoce do seu autor. É esta
defesa que dá coerência à série dos eventos narrados, orga-
nizados por uma visão totalizante que os compreende e
justifica. Por outras palavras, a lógica narrativa da Vida,
o que lhe confere unidade, é o talento retórico de Vico
posto ao serviço da demonstração da excepcionalidade
de um percurso intelectual que culmina na descoberta da
Ciência nova. Desse modo, na Vida, pequenos aconteci-
mentos quotidianos ganham a dimensão de grandes ver-
dades morais e contribuem para compor, como nota Mario
Fubini, uma «história mítica» da própria vida. 38 É também
essa a razão pela qual Vico partilha repetidamente as opi-
niões dos doutos que cruzam o seu caminho, dividindo-os
em dois grupos: o dos que menosprezam o seu génio filo-
sófico e o vêem como um autor menor - um professor de
Retórica com talento para compor opúsculos em latim- e
o dos que lamentam que em Nápoles não se faça melhor
uso das suas qualidades. São os últimos que confirmam
não só o valor de Vico mas também, ou especialmente, o
valor da sua vocação.
Nesse sentido, constata-se que a Vida é uma obra
muito mais demonstrativa do que a Ciência nova. Esta
última não assenta tanto na tentativa de persuadir o leitor

38 Veja-se o prefácio de Mario Fubini a G. B. Vico, Autobiografia. Segui ta

da una scelta di lettere, orazioni e rime, Torino, Einaudi, 1977, p. XIII.

35
de um dado argumento - no caso da autobiografia, seria a
natureza prodigiosa de uma vida dedicada à descoberta da
Ciência nova- quanto na agregação de provas filológicas
e de teorias filosóficas. A juntar à sua estrutura intricada,
com repetições e excursos de toda a espécie, este é um dos
traços mais barrocos da Ciência nova: a acumulação de
fragmentos. Talvez tenha sido por isso que Peter Burke
a descreveu, com termos que quase se pode duvidar de
serem lisonjeiros, como um livro tão atulhado de ideias
que «quase rebenta pelas costuras». 39 À luz da Vida, obra
bem mais contida e organizada, a complexidade estrutural
e o excesso de ideias da Ciência nova podem ser vistos em
contiguidade com a cidade do seu autor, de elevadíssima
densidade populacional e vasto repertório filológico. Na
Vida, Nápoles é apresentada como o lugar onde a vida civil
e a memória das tradições humanas estão nas ruas e nas
casas que com essas comunicam. O escritório de Vico era,
aliás, a cozinha da pequena casa onde vivia com a mulher
e os numerosos filhos, e onde frequentemente entravam
amigos e alunos do filósofo - o qual escrevia, segundo
conta, no meio de toda a espécie de estrépitos domésticos.
No início da autobiografia, Vico anuncia a intenção
de escrevê-la na qualidade de historiador; no final do adi-
tamento, declara tê-lo feito como filósofo. As duas atitudes
ou modos de discurso fundem-se na narração da história
de um filósofo que, na Ciência nova, se estende à história
da humanidade e à própria história da filosofia. Conside-

39 Peter Burke, Vico, New York, Oxford University Press, 1985 , p. 32.

36
rando que, enquanto sistema, o pensamento de Vico edifica
uma história da filosofia, a Vida pode ser entendida como a
primeira fase de projecção desse edifício, que só na Ciên-
cia nova alberga toda a humanidade. O discurso autobio-
gráfico da Vida é fundado numa investigação histórica e
filosófica que incide sobre os próprios princípios, segundo
uma intuição forte do pensamento viconiano, expressa na
dignidade CVI da Ciência nova: «As doutrinas devem
começar desde que começam as matérias de que tratam». 4 0
Na Vida, como na Ciência nova, o fim da investigação é
o autoconhecimento, que é, para Vico, um projecto his-
tórico e filosófico. Esta é a abordagem especulativa de
Vico à questão dos princípios comuns da humanidade- a
ciência de todas as coisas humanas - de que se ocupa a
Ciência nova, investigados, nas palavras do autor, a partir
das «modificações da mente humana». 41 Na autobiografia,
a narração da vida é a investigação das modificações da
mente do narrador. A tarefa do investigador da ciência das
coisas humanas mostra-se, assim, análoga à do narrador
da autobiografia, na medida em que, como explicita Vico,
«quando acontece que quem faz as coisas é o mesmo que
as narra, não pode aí ser mais certa a história». 42 Cabe ao
filósofo-historiador, com os recursos da idade da reflexão
-a reflexão necessária também a qualquer discurso auto-

4° Cfr. Sn44, § 314. Sobre esta dignidade em particular, veja-se N icola

Badaloni, Introduzione a Vico , Bari, Laterza, 1984, pp. 41-42.


41 Cíf. Sn44, § 331.

42 Cfr. Sn44, § 349.

37
biográfico -, investigar a natureza comum das nações, isto
é, as suas origens comuns.
Na Ciência nova, Vico defende que o pensamento
humano não se pode libertar dos seus princípios obscuros
e indefinidos, uma vez que a mente humana, por permane-
cer «imersa e sepultada no corpo, é naturalmente inclinada
a sentir as coisas do corpo e deve usar demasiado esforço
e fadiga para se compreender a si mesma, como o olho
corporal que vê todos os objectos fora de si e necessita
do espelho para se ver a si próprio». 43 A narração da vida
de Vico, tal como a história da humanidade na Ciência
nova, começa na infância, um estado de ignorância ou de
inconsciência inicial. A Vida começa justamente com o
episódio do rapazinho de sete anos que caiu de cabeça do
cimo de uma escada e ficou inconsciente. São os próprios
princípios do pensamento que são postos em causa quando
Vico cai das escadas e fractura gravemente o crânio. Vico
sobrevive a uma queda que podia ter sido fatal, mas que
teve como consequência a aquisição de um carácter melan-
cólico e saturnino, comum nos homens de letras. Seja qual
for a interpretação que se faça do episódio, Vico confere-
-lhe um dramatismo que só terá par na equiparação do seu
destino ao de Sócrates, no final da Vida.
Uma vez que a filosofia, à semelhança de qualquer
instituição humana, teve princípios fabulosos e poéticos
- e esta é uma das grandes teses da Ciência nova - , Vico
escolhe começar a sua autobiografia intelectual com a his-

43 Cfr. Sn44, § 331.

38
tória da criança que caiu de umas escadas, ficou incons-
ciente e, contra todas as expectativas, viveu para estudar
a origem e os limites do pensamento humano. A possibi-
lidade de o rapazinho que caiu das escadas ficar «idiota»
identifica-se assim com a condição inicial dos primei-
ros homens que Vico descreve na Ciência nova. Estes
homens eram gigantes, com reduzidíssimas capacidades
de raciocínio e uma imaginação tão desmedida e corpu-
lenta quanto os seus corpos. São tidos como as crianças do
género humano e, devido à grandeza da sua imaginação,
são considerados poetas. Criaram ainda as religiões - as
quais, como todas as instituições humanas, tiveram prin-
cípios poéticos. Os gigantes viconianos não conheciam o
verdadeiro Deus, mas, pela necessidade de uma qualquer
cognição de Deus, 44 criaram - «fingiram» - os deuses
pagãos. Viram a natureza como um grande corpo animado,
e do temor que lhes inspirava a natureza nasceu neles o
pensamento pavoroso de uma divindade castigadora.
Vico defende assim que, quando não entende o mundo (a
natureza e os seus fenómenos), o homem «faz de si essas
coisas e, ao transformar-se nelas, vem a sê-lo». 45 Esta é a
definição viconiana da poesia: a poesia é um erro criador. 46

44 Vico demonstra que «o homem, caído no desespero de todos os socorros

da natureza, deseja uma coisa superior que o salve» (Sn44, § 339).


45 Cfr. Sn44, § 405. Na mesma passagem da Ciência nova, Vico considera

existir talvez mais verdade na asserção «homo non intelligendo jit omnia», que
exprime a metafísica íàntástica ou poética dos primeiros homens, do que na
que exprime a metafisica da idade, mais tardia, da razão, «homo intelligendo
jit omnia».
46 Ideia que Harold Bloom recuperou na obra The Anxiety of Injluence.

A TheoryofPoetry, de 1973.

39
Pode encontrar-se aqui a explicação para o facto de Vico
desvalorizar, na Vida, as suas incursões poéticas juvenis.
Ao interpretá-las como erros (os erros de quem ainda não
entendia o mundo), Vico estaria a proteger-se da acusa-
ção de ser detentor de uma imaginação tão ímpia e ferina
quanto a dos poetas gigantes que fundaram as nações gen-
tias. Mas enquanto na Vida menospreza a sua actividade
poética, na Ciência nova Vico eleva a poesia dos primeiros
homens ao papel de chave-mestra da obra.
Não será audacioso afirmar que a citação virgiliana
que serve de epígrafe ao Livro I da Ciência nova de 1725,
«lgnari hominumque locorumque erramus», 47 com a qual
Vico ilustra o error ferino dos primeiros homens da gentili-
dade- néscios, rudes e gigantescos-, é apta para descrever
também o início do seu percurso na senda da filosofia, um
percurso que a Vida constrói de modo eloquente, e onde
se reconhece, in nuce, uma indagação fundamental sobre
o lugar do filósofo na pátria e na república das letras.
O narrador da Vida coloca a si mesmo as seguintes ques-
tões: que lugar pode Vico ocupar em Nápoles - de que
forma pode contribuir para a glória de Itália e ser-lhe útil?
À medida que a narração se desenvolve, o leitor vai tendo
acesso às respostas provisórias, desde professar as letras
humanas nas academias ou ser professor de Direito na
Universidade de Nápoles, até chegar à resposta definitiva:
o lugar de Vico (em Nápoles, na Itália, na Europa e na

47 «Vagueamos sem conhecer nem homens nem lugares», Virgílio, Eneida

(I, 332-333).

40
sua república das letras) é a Ciência nova. A investigação
da sua vida - «uma áspera e contínua meditação» 48 - é a
Ciência nova. Por outras palavras, como mostra a Vida,
Vico é a Ciência nova. 49
No primeiro momento de redacção da autobiografia,
Vico, que acabara de sofrer o «golpe de fortuna adversa»
do insucesso no concurso universitário de 1723, mostra
ainda alimentar algumas ambições académicas. A Vida é
ostensiva, aliás, de quão importantes teriam sido para Vico
as recensões positivas do teólogo genebrino Jean Leclerc
aos dois tomos do Direito universal, bem como do con-
solo que delas retirou após o insucesso no concurso uni-
versitário.50 No segundo momento de redacção da Vida,
como se viu, Vico assume a sua dedicação exclusiva e
definitiva à filosofia. A substituição da ambição académica
ou social pela ambição filosófica ou intelectual configura
uma das imagens mais investidas de pathos na Vida, a de
Vico sentado à sua mesa de trabalho, como numa «alta e
inexpugnável fortaleza», a compor a Ciência nova- uma
imagem de reclusão quase cartesiana. Na já citada carta de
Vico ao padre Giacco, após expor as suas queixas perante a
frieza com que os letrados napolitanos reagiram à primeira
edição da Ciência nova, Vico sublinha o carácter prodi-

48 Cfr. Sn25 , § 261 e Sn44, § 338.


49 Faz-se aqui uma analogia com a declaração de Fernando Pessoa, num
artigo publicado no Diário de Lisboa de 4 de Fevereiro de 1924, de que «Camões
é Os Lusíadas».
50 O lugar de professor de Direito era não só uma ambição académica e

social de Vico, mas também uma necessidade económica: em 1723, Vico tinha
uma família de cinco filhos para sustentar.

41
gioso de tal empresa e declara que, a partir do momento
em que decidiu levar a cabo o projecto de escrever aquela
obra, se sentiu trajar um novo homem. As novas roupa-
gens de que se cobre são, entende-se, a própria obra, que
mostra no título o sinal da novidade. Vico associa a com-
posição da Ciência nova à aquisição de «um certo espírito
heróico», que já não o fazia temer a morte nem dar impor-
tância às opiniões dos émulos. Anuncia ainda que a sua
grandeza era confirmada pelo reconhecimento de obras
de engenho por parte de um número reduzido de sábios,
entendido tal reconhecimento como uma manifestação do
juízo divino, «de uma alta e adamantina fortaleza». 51 Quer
na Vida, quer na carta ao padre Giacco, a fortaleza, inex-
pugnável ou adamantina, é alta, o que remete para a supe-
rioridade que Vico, do alto da sua confiança na Ciência
nova, experimentava, assim como para a sua intenção de
alcançar com ela um lugar cimeiro na história da filosofia.
Se na carta a fortaleza representa a elevação do lugar a
partir do qual Vico via confirmado o reconhecimento do
juízo divino da obra, na Vida aquela é o termo de com-
paração da mesa de trabalho, sendo atribuída à Ciência
nova a capacidade de justificar os obstáculos que barraram
o caminho do seu autor, interpretados como estímulos de
escrita. Que a Ciência nova seja vista como um prémio
de consolação (um doce prémio, como Vico bem sabia)
atesta-o a bendição de todos os reveses da fortuna pelos

51 Giambattista Vico, Opere, p. 309.

42
quais o filósofo passou: o concurso universitário, o recuo
do cardeal Corsini no financiamento da primeira edição
da Ciência nova, a crítica do jornal de Leipzig, ou o fra-
casso da edição veneziana da obra. É esta ideia que se
encontra também por trás da descrição da composição de
obras como «vinganças generosas» contra os detractores,
ou seja, um acerto de contas com o passado direccionado
para a posteridade - intuição viconiana em que Giuseppe
Mazzotta reconhece a própria essência da literatura. 5 2
É famosa a asserção de Benedetto Croce de que a
autobiografia de Vico «é a extensão da Ciência nova à bio-
grafia do seu autor». 53 Para Croce, Vico teria interpretado
a sua vida à luz da Ciência nova; mais concretamente,
à luz da primazia da providência divina na história das
nações. K. J. Weintraub, por seu lado, defende que, mais
do que a história de um homem, a Vida é a história de
um livro, identificando na estrutura da narrativa três uni-
dades temáticas: os elementos tradicionais na apresenta-
ção de um estudioso (os pais, os primeiros anos de vida,
os professores); a descrição do nascimento e da matura-
ção do pensamento filosófico do autor, onde é revelado
como é que a Ciência nova veio a constituir um sistema;
finalmente, a relação providencial entre os factos circuns-

52 Giuseppe Mazzotta, The New Map of the World. The Poetic Philosophy

ofGiambattista Vico, Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1999,


p. 37.
53 Benedetto Croce, La filosofia di Giambattista Vico, [1911], Napoli,

Bibliopolis, 1997, pp. 276-277.

43
tanciais da vida de Vico e a evolução da sua filosofia. 54
Aceitando-se a divisão de Weintraub, pode inserir-se no
segundo núcleo temático o tópico da evolução da mente
humana contido na dignidade Lili da Ciência nova, a
saber, que os homens «primeiro sentem sem reconhecer,
depois reconhecem com ânimo perturbado e comovido e,
finalmente, reflectem com mente pura». 55 Na autobiogra-
fia, o modo como são enunciados os passos de Vico, desde
que «um certo assunto novo e grande» se começou a agitar
no seu espírito até ao momento em que reconheceu com
nitidez os fundamentos da nova ciência das coisas huma-
nas, é a confirmação eloquente desta dignidade.

A tradução

A presente tradução foi feita a partir do texto publi-


cado por Andrea Battistini na sua edição das Opere de
Vico de 1990, que se segue às edições de Villarosa (1818),
de Benedetto Croce (1911) e de Croce-Nicolini (1919). 56
Guiaram-na duas regras ou critérios práticos que se pre-
tenderam indissociáveis: ser tão literal quanto possível,
e, sem detrimento da literalidade, preservar a legibilidade

54 Karl Joachim Weintraub, <<Vico and Gibbon: The Historical Mode of

Understanding Self-Development», in The Value of the Individual: Seif and


Circumstance in Autobiography, Chicago and London, University of Chicago
Press, 1978, pp. 265-266.
55 Cfr. Sn44, § 218.

56 Giambattista Vico, Opere, a cura di Andrea Battistini, Milano, Monda-

dori, 2007.

44
do texto. Isso fez-se, por exemplo, através de alterações
residuais na pontuação, que no entanto não comprometem
a extensão das frases ou dos períodos. Procurou-se deste
modo respeitar o pensamento de Vico e tornar manifestas
as características da sua prosa e do seu estilo sem compro-
meter a fluidez da leitura.
O pensamento de Vico é indissociável da sua forma
de expressão, da sua sintaxe - em que se destaca a pre-
ferência pela hipotaxe em relação à parataxe - e da sua
língua, simultaneamente erudita e popular. Na autobio-
grafia, Vico observa que foi na Ciência nova que usou a
língua vulgar «em todo o seu esplendor>>, mas foi a partir
da Vida que o filósofo napolitano começou a escrever con-
sistentemente em italiano. Na dedicatória da Ciência nova
de 1725, dirigindo-se às «academias da Europa», faz uma
alusão quase apologética à escrita em italiano, como que
justificando a escolha de uma língua que, ao contrário do
latim, não estava acessível à maioria dos letrados euro-
peus.57 Ainda assim, o italiano de Vico é altamente latini-
zado, o que se verifica não só na preferência do filósofo
pelas construções sintéticas, mas também na escolha do
vocabulário: por exemplo, certos termos italianos são mui-
tas vezes usados com um significado próximo do da sua
matriz latina (como fermare [«estabelecem] ou permettere
[«confiam, «entregar»]). Não são raros, de resto, os ter-
mos italianos usados numa acepção particular do dialecto

57 Cfr. Opere, p. 1760.

45
napolitano. 58 Em todo o caso, as escolhas feitas procuram
preservar os matizes de significado implícitos no original;
todos os possíveis lapsos ou deselegâncias são, evidente-
mente, da responsabilidade da tradutora.
Embora se tenha evitado sobrecarregar o texto de
notas de tradução, entendeu-se que seria importante sobre-
levar as de natureza histórica e filosófica, tendo em conta
quer a proliferação de referências na Vida a figuras obscu-
ras da sociedade napolitana da época, quer o ainda largo
desconhecimento do pensamento de Vico - que, com esta
tradução, se espera ajudar a combater. Por essa razão,
considerou-se também que não seria ocioso remeter, sem-
pre que justificável, para outras obras do autor, em parti-
cular para a Ciência nova de 1744, na qual Vico trabalhou
até à sua morte, na noite de 22 para 23 de Janeiro desse
ano.

*
Agradeço à Fundação Calouste Gulbenkian pela
oportunidade de publicar a tradução da autobiografia de
Giambattista Vico, até este momento inédita em língua
portuguesa. Devo um agradecimento especial aos inves-
tigadores do Istituto per la storia del pensiero filosofico e
scientifico moderno (ISPF) do Consiglio nazionale delle

58 Cíf. Mario Fubini, «La lingua dei Vico» , in Stile e umanità di Giambat-

tista Vico, Milano-Napoli, Riccardo Ricciardi Editore, 1965, pp. 83-134.

46
ricerche», em Nápoles, e em particular à sua directora,
Manuela Sanna, pela gentileza com que me recebeu ao
longo dos últimos anos, e pela disponibilidade com que
respondeu às dúvidas que lhe fui apresentando durante o
trabalho de tradução. Ainda no ISPF, agradeço a Alessan-
dro Stile pelas conversas estimulantes sobre Vico, cinema
e outras coisas «de engenho e de letras», e a Rosario Diana
pelas indicações bibliográficas que me forneceu. Agradeço
ao Francesco Tirro, à Marcella Sollinas e ao Andrea Pezze
pela amizade, e por me terem hospedado em Nápoles, no
Verão de 2015. De regresso a Lisboa, agradeço ao profes-
sor João R. Figueiredo pela amizade e pelo interesse com
que desde o início acompanhou este projecto. Agradeço ao
professor Jorge Vaz de Carvalho, com quem tive a opor-
tunidade de discutir a ideia de traduzir a autobiografia de
Vico, por me ter incentivado a pôr mãos à obra. Deixo aqui
expressa a minha gratidão ao professor Henrique Leitão,
que generosamente me ajudou a resolver alguns problemas
de tradução em passagens que tratavam de matérias cien-
tíficas, e com quem muito aprendi. Agradeço ao professor
Humberto Guida, do outro lado do Atlântico, pelo diálogo
frutuoso que temos mantido sobre a filosofia. Agradeço
enfim à Joana Meirim pela ajuda na tradução dos termos
gregos, e ao Nuno Amado pela leitura do manuscrito.

47
Cronologia breve da vida e das obras de Vico

1668- Nasce em Nápoles, no dia 23 de Junho, o sexto


dos oito filhos de Antonio de Vico, livreiro, e de Candida
Masullo, fi lha de um construtor de carroças.

1675- Cai de umas escadas e fractura gravemente o crânio.


A queda é o primeiro episódio narrado na autobiografia.

1675-1677- Anos de convalescença.

1678- Frequenta a escola de gramática.

1680 - Estuda na escola dos padres jesuítas, no Collegio


Massimo, no Gesu Vecchio, em Nápoles, tendo por mestre
o filósofo nominalista Antonio Dei Balzo.

1681 -Abandona a escola dos jesuítas e começa a estudar


sozinho Manuel Álvares e Pedro Hispano.

1683 - Regressa ao Collegio Massimo e estuda filosofia


com Giuseppe Ricci.

1684- Abandona de vez a escola dos jesuítas e estuda em


casa as obras de Francisco Suarez.

1684-1685- Estuda direito civil e canónico, frequentando


por um breve período a escola privada de Francesco Verde.

49
1686 - Trabalha no escritório do advogado Fabrizio del
Vecchio. Discute e vence a sua primeira causa em tribu-
nal, defendendo o pai contra outro livreiro. É convidado
por Geronimo Rocca a desempenhar a função de preceptor
dos quatro filhos do seu irmão Domenico Rocca, na loca-
lidade de Vatolla, na província de Salerno. Entre visitas
ocasionais a Nápoles e a Portici, é em Vatolla que passa os
nove anos seguintes, lendo os clássicos gregos e latinos e
exercitando-se na arte de fazer versos.

1689- Inscreve-se na Universidade de Nápoles, onde es-


tuda Jurisprudência.

1693- Publica o poemaAffetti di un disperato e Canzone


in morte di Antonio Carafa.

1694- Obtém o grau de licenciado em Direito Civil e Ca-


nónico (doctor in utroque jure).

1695- Regressa definitivamente a Nápoles e começa a fre-


quentar o salão literário e filosófico de Niccolà Caravita.

1697 - Publica a oração fúnebre dedicada a Catarina de


Aragão ln Junere excellentissimae Catharinae Aragoniae
Segorbiensis ducis. Concorre, sem sucesso, ao lugar de se-
cretário do município de Nápoles.

1698- Concorre à cátedra de Retórica na Universidade de


Nápoles, que fica vaga por morte do professor catedrático
Giuseppe Toma.

50
1699- Vence o concurso e, com pouco mais de trinta anos,
dá início à carreira de professor de Retórica, que só termi-
nará em 1742. Profere o primeiro dos discursos inaugurais
(as chamadas Orazioni inaugura/i) na Universidade de
Nápoles: Suam ipsius cognitionem ad omnem doctrinarum
orbem brevi absolvendum maximo cuique esse incitamen-
to. A 2 de Dezembro casa com Teresa Caterina Destito, de
quem terá oito filhos.

1700- Profere o segundo discurso: Hostem hosti infensio-


rem infestioremque quam stultum sibi esse neminem.

1702 - Profere o terceiro discurso: A litteraria societa-


te omnem malam fraudem abesse oportere, si nos vera
non simulata, solida non vana eruditione ornatos esse
studeamus.

1703 - Escreve a obra Principum neapolitanorum coniu-


rationis anni MDCCI historia, de que existe ainda uma
primeira versão de título De parthenopea coniuratione.

1705 - Profere o quarto discurso: Si quis ex litterarum


studiis maximas utilitates easque semper cum honestate
coniunctas percipere velit, is reipublicae seu communi ci-
vium bono erudiatur.

1706- Profere o quinto discurso: Respublicas tum maxime


belli gloria inclytas et rerum imperio potentes, quum ma-
xime litteris floruerunt.

51
1707 -Profere o sexto discurso: Corruptae hominum na-
turae cognitio ad universum ingenuarum artium scientia-
rumque absolvendum orbem invitat incitatque, ac rectum,
jacilem ac perpetuum in iis addiscendis ordinem exponit.

1709- Publica a obra De nostri temporis studiorum ratio-


ne. Escreve o Liber physicus, que se perdeu.

1710- Publica a obra De antiquíssima Italorum sapientia


ex linguae latinae originibus eruenda, dedicando-a ao fi-
lósofo e matemático napolitano Paolo Mattia Doria.

1711 - Escreve as Institutiones oratoriae. Publica a pri-


meira resposta (Risposta nella quale si sciolgono tre oppo-
sizioni fatte da dotto signore contra il Primo Libra «De
antiquíssima Italorum sapientia) às objecções feitas por
um recenseador anónimo à obra De antiquíssima.

1712- Publica a segunda resposta, Risposta all 'articolo X


del tomo VIII del «Giornale de' Letterati d'Italia».

1713- Escreve De aequilibrio corporis animantis.

1714-1715 - Trabalha na biografia de Antonio Carafa.

1716- Publica a obra De rebus gestis Antonii Caraphaei


libri quatuor.

1720- Publica em Julho um ensaio curto, sem título, a


que se convencionou chamar Sinopsi del «Diritto univer-

52
sale» . Publica em Setembro a obra De uno universi iuris
principio et fine uno, primeiro dos três livros conhecidos
conjuntamente por Diritto universale.

1721- Publica o longo epitalâmio Giunone in danza e o


segundo tomo do Diritto universale, De constantia iuris-
prudentis.

1722- Publica as Notae às obras De uno e De constantia.


Lê aprofundadamente os poemas homéricos à luz de uma
teoria mitológica e antropológica que será desenvolvida
em pleno anos mais tarde, na Ciência nova. Recebe uma
elogiosa carta de Jean Leclerc, que promete recensear o
Diritto universale na Bibliotheque ancienne et moderne.

1723 - Participa no concurso para a cátedra matutina de


Direito Civil na Universidade de Nápoles. Retira a sua
candidatura após a prova. Começa a trabalhar na obra que
o próprio definiu como Scienza nuova informa negativa.
Datará deste ano a primeira fase de redacção da autobio-
grafia.

1724 - O cardeal Corsini aceita que Vico lhe dedique a


Scienza nuova negativa, comprometendo-se tacitamente a
custear as despesas de publicação da obra.

1725- A 20 de Julho, o cardeal Corsini informa Vico de


que não poderá financiar a obra. Entre finais de Julho e
inícios de Setembro, Vico vê-se obrigado a reformulá-la.

53
Esta versão mais condensada, com um método positivo,
será conhecida como Scienza nuova prima, de título com-
pleto Principj di una scienza nuova d'intorno alla comune
natura delle nazioni per la quale si ritrovano i principj di
altro sistema de! diritto natura/e delle genti.

1728 - Recebe de Cario Lodo li e de Antonio Conti a pro-


posta para uma reimpressão (revista, aumentada e anotada)
da Scienza nuova prima. Sai em Veneza a Vi ta di Giamba-
ttista Vico scritta da se medesimo, no primeiro tomo da
revista Raccolta d'opuscoli scientifici e filologici, curada
por Angelo Calogerà.

1729- Publica um opúsculo intitulado Notae in <<Acta eru-


ditorumn lipsiensia», respondendo à recensão negativa e
anónima à Ciência nova que saíra nos Acta eruditorum
lipsiensia, de 1727.

1730- Publica em Nápoles os Cinque libri de' Giambat-


tista Vi co de 'principj d 'una Scienza nuova d 'intorno alia
comune natura delle nazioni, obra também conhecida por
Scienza nuova seconda, em que se baseará a edição revista
e definitiva de 1744.

1731 - Compõe um aditamento à autobiografia publicada


em 1728. Começa a anotar e a aumentar a Ciência nova
de 1730.

1732 -Publica o discurso inaugural De mente heroica.

54
1735 - É nomeado historiógrafo régio. Continua a traba-
lhar na Ciência nova.

1742 -Abandona a actividade docente na Universidade


de Nápoles.

1743- Prepara-se para publicar a terceira edição da Ciên-


cia nova.

1744- Na noite de 22 para 23 de Janeiro morre em Nápo-


les. Em Julho é publicada postumamente, nessa cidade, a
sua obra-prima, Principj di scienza nuova d'intorno alia
comune natura delle nazioni.

55
I

(1723-1728)

O senhor Giambattista Vico nasceu em Nápoles no


ano de 1670, 1 de pais honestos, que deixaram muito boa
fama de si. O pai era de humor alegre, a mãe de tempe-
ramento assaz melancólico, e ambos contribuíram assim
para a natureza do seu filho, que foi uma criança de espírito
vivíssimo e avessa ao repouso. Mas aos sete anos de idade,
tendo caído de cabeça do cimo de uma escada, e perma-
necendo não menos do que cinco horas imóvel e sem sen-
tidos, partiu o lado direito do crânio sem romper o couro
cabeludo, e a fractura provocou-lhe um tumor disforme.
Devido aos muitos e profundos cortes, a criança esvaiu-
-se em sangue, de modo que o cirurgião, ao observar o
crânio partido, e considerando o longo desfalecimento, fez
o seguinte prognóstico: ou ele morreria ou ficaria idiota.
No entanto, o juízo não se verificou, com a graça de Deus,
de nenhuma das duas formas; seguiu-se do mal curado,
porém, que daí em diante ele crescesse de índole melan-
cólica e áspera, qual deve ser a dos homens engenhosos e

' Como se esclareceu na «Introdução», Vico nasceu em 1668, no dia 23 de


Junho.

57
profundos que, pelo engenho, apreendem as agudezas de
modo fulgurante e, pela reflexão, não se deleitam com as
argúcias e com o falso?
Após uma longa convalescença que durou não menos
de três anos, reingressou na escola de gramática. Como
em casa executava rapidamente o que o mestre lhe man-
dava fazer, o pai tomou essa rapidez por negligência e um
dia perguntou-lhe se o seu filho fazia os deveres como um
bom aluno; tendo-lhe aquele dito que sim, o pai rogou-lhe
que lhe duplicasse as tarefas. Mas o mestre recusou por-
que tinha de se regular pelo nível dos outros alunos, e não
podia organizar uma classe só para um, sendo que a outra
era muito avançada. Então, ao presenciar essa conversa,
a criança rogou-lhe com grande alento que lhe permitisse
passar para a classe superior, posto que supriria por sua
conta o que lhe faltava ainda aprender. O mestre, mais para
pôr à prova aquilo de que seria capaz um engenho infan-
til determinado a ser bem-sucedido, permitiu-lho e, para
sua grande surpresa, deparou-se em poucos dias com uma
criança mestra de si mesma.

2 A distinção viconiana entre ditos agudos e ditos argutos remonta a Cícero;

veja-se, em De optimo genere oratorum l, 2, 5: «[Sententiae] sunt enim docendi


acutae, delectandi quasi argutae». Outra fonte, esta seiscentista, é o tratado de
Matteo Peregrini, Delle acutezze, che altrimenti spiriti, vivezze e concetti vol-
garmente si appellano (1639), que Vico cita na obra Jnstitutiones Oratoriae
(1711). Já em De antiquissima (1710), VII,§ III (De ingenio), Vico caracteriza
o ingenium, classicamente considerado o pai da inventio, como a faculdade que
une coisas diversas e longínquas entre si. Na mesma obra, estabelece que a facul-
dade do conhecimento não é a razão, mas o engenho, origem das agudezas; as
argúcias, por sua vez, são equiparadas a falácias ou sofismas.

58
Após ter perdido este primeiro mestre, foi condu-
zido a outro, com o qual ficou pouco tempo, já que o pai
foi aconselhado a mandá-lo para os padres jesuítas, que
o admitiram na classe média. 3 Ali, apercebendo-se das
suas grandes capacidades, o mestre fê-lo defrontar suces-
sivamente os seus três melhores alunos. Naquilo a que os
padres chamam as «diligências», isto é, tarefas escolares
extraordinárias, humilhou um deles, fez adoecer um outro
que o tentava emular, e, quanto ao terceiro, por ser bem
visto pela Companhia, fizeram-no passar para a classe
superior com o privilégio do «bom aproveitamento», antes
de a «lista», como dizem eles, ter sido lida. Resultou daí
que, ressentido como que por ofensa que lhe tivessem
feito, e percebendo que ia ter de repetir no segundo semes-
tre o que já tinha feito no primeiro, Giambattista saiu
daquela escola. Fechando-se em casa, aprendeu sozinho
no Álvares 4 o que os padres ainda não tinham ensinado na
classe superior e na de humanidades, e passou o Outubro
seguinte a estudar lógica. Durante esse período, como era
verão, ele sentava-se de noite à sua mesa, e a boa mãe,
despertada do primeiro sono e suplicando-lhe que fosse
dormir, por mais de uma vez o encontrou a estudar até de

3 O sistema de estudos das escolas jesuítas previa os cursos «inferiores» de

gramática. de humanidades e de retórica. e os cursos «superiores» de filosofia, de


matemática e de teologia. O curso de gramática (frequentado por Vico) dividia-
-se por sua vez em três classes ou «escolas»: a inferior, a média e a superior. Cfr.
Ratio studiorum, a cura di M. Salomone, Milano, Feltrinelli, 1979.
4 Referência à obra De institutione grammatica libri tres, publicada em Lis-

boa, em 1572, da autoria do jesuíta português Manuel Álvares (1526-1582), e


cujo uso era obrigatório naquelas escolas.

59
manhã; o que era sinal de que, ao avançar em idade no
estudo das letras, ele havia de defender com vigor a sua
reputação de letrado.
Coube-lhe em sorte ter como mestre o padre jesuíta
Antonio dei Balzo, 5 filósofo nominalista. Ao ouvir dizer
nas escolas que um bom sumulista6 era um exímio filó-
sofo, e que o melhor escritor de súmulas tinha sido Pedro
Hispano, 7 dedicou-se a estudá-lo com todo o afinco.
Depois, ao saber pelo seu mestre que Paulo V éneto 8 era
o mais agudo de todos os sumulistas, passou a estudá-lo
também para dele retirar proveito. Mas ao seu engenho,
demasiado débil ainda para dominar aquela espécie de
lógica «crisipeia», 9 pouco faltou para que não se perdesse
nela; de modo que, com grande pesar, teve de a abandonar.
O desespero que sentiu fez com que desistisse dos estudos
(tão perigoso é levar os jovens a estudar ciências que não
estão ao alcance da sua idade!), tendo-se mantido afastado
deles por um ano e meio. Não se fingirá aqui como astuta-
mente o fez René Descartes a respeito do método dos seus

5 Antonio dei Balzo (1650-1725), padre jesuíta napolitano que ensinou

durante toda a vida no Collegio Massimo dos Jesuítas, em Nápoles.


6 Autor de summulae («pequenas sumas»), ou seja, compêndios de obras

filosóficas ou teológicas abreviadas.


7 Pedro Hispano (c. 121 0-1277), médico e teólogo português que chegou

a papa em 1276 com o nome de João XXI, devendo no entanto a fama ao seu
manual de lógica aristotélica Summulae logicales, em doze livros (Dante refe-
re-o no Paraíso, XII, 134).
s Paolo Nicoletti de Udine (c. 1370-1429), filósofo da Ordem dos Eremitas
de Santo Agostinho, foi professor na Universidade de Pádua. Publicou em 14 72
as suas Summulae logicales.
9 Logica crisippea, no original. Referente ao grego Crisipo de Sol is (século

III a.C.), filósofo estóico.

60
estudos, somente para exaltar a sua filosofia e matemática
e deitar por terra todos os outros estudos que fazem parte
da erudição divina e humana. 10 Pelo contrário, com a inge-
nuidade que convém ao historiador, narrar-se-á passo a
passo e com franqueza a série de todos os estudos de Vico,
para que se conheçam as causas próprias e naturais pelas
quais o seu êxito como letrado foi este e não outro.
la ele errando assim, afastado do caminho certo de
uma primeira juventude bem regulada. Porém, tal como
acontece a um cavalo generoso e bem treinado para a
guerra que, deixado durante muito tempo a pastar pelos
campos entregue a si mesmo, sente despertar em si o ape-
tite militar após ouvir uma trombeta guerreira e mostra
com gestos que quer ser montado pelo cavaleiro e con-
duzido para a batalha, da mesma forma, Vico, por ocasião
da reabertura, ao fim de muitos anos, da célebre Acade-
mia dos Infuriati em San Lorenzo, 11 onde letrados notá-
veis se reuniam com os principais advogados, senadores e
nobres da cidade, foi espicaçado pelo seu génio a retomar
o caminho abandonado e fez-se de novo à estrada. É este
o belíssimo fruto que as luminosas academias restituem às

10 Vico acusa Descartes de ter escrito uma ficção no Discurso do método.

Como se verá, esta é apenas a primeira de várias acusações que Vico dirigirá a
Descartes ao longo da Vida.
11 Segundo Fausto Nicolini, uma vez que a reabertura da Academia dos

Iníuriati ocorreu em 1690 (dando origem, no ano seguinte, à Academia dos


Uniti, na qual Vico ingressou em 1692 com o nome de «Raccoltm>), ou seja,
cerca de dez anos após os acontecimentos aqui narrados, é muito provável que
Vico a tivesse confundido com outra (cfr. La giovinezza di Giambattista Vico,
pp. 21 e 86).

61
cidades, para que os jovens (cuja idade, em virtude do bom
sangue e da falta de experiência, é toda plena de confiança
e de grandes esperanças) se inflamem com os estudos por
meio dos louvores e da glória; e a fim de que, mais tarde,
quando chega a idade do discernimento, que se ocupa das
utilidades, eles honestamente as procurem para si em vir-
tude do próprio valor e do próprio mérito. 12 Assim, Vico
entregou-se de novo à filosofia, sob a orientação do padre
Giuseppe Ricci, 13 também ele jesuíta, homem de engenho
agudíssimo, pertencente à seita escotista 14 mas, no fundo,
zenonista, 15 e ao qual ouvia dizer, com grande prazer, que
as «substâncias abstractas» possuíam mais realidade do
que os «modos» do nominalista Balzo. Isto era um pressá-
gio de que, a seu tempo, ele se deleitaria, mais do que com
qualquer outra, com a filosofia platónica, da qual nenhuma

12 É pertinente remeter aqui para o curto discurso intitulado Le Accademie e


i rapporti tra la filosofia e l"eloquenza, que Vico proferiu em 1737, onde defende
a importância das academias na educação dos jovens.
13 Giuseppe Ricci (1650-1713) ensinou Filosofia, Teologia Moral e Esco-

lástica no Collegio Massimo de Nápoles e foi reitor do Collegio di Sant'lgnazio.


Foi autor da obra Fundamentum theologiae mora/is seu de conscientia probabili
(1702).
14 Referente á escola do teólogo e filósofo escolástico escocês João Duns

Escoto (c. 1265-1308).


15 Discípulo de Zenão. Vários críticos concordam que Vico estaria a con-

fundir, fundindo-as numa só, as figuras distintas de Zenão de Eleia (séc. V a.C.),
filósofo pré-socrático, e de Zenão de Cítio (335-263 a.C.), o estóico. Nesta pas-
sagem, Vico estaria a pensar propriamente em Zenão de Eleia. Em todo o caso,
veja-se em De antiquissima, IV, § I (De Punctis metaphysicis et Conatibus),
o desenvolvimento da teoria dos pontos metafísicas deste pseudo-Zenão, que
Vico retoma na «Prima risposta» ao artigo publicado no Giornale de' letterati
d'Italia (vol. V, artigo VI, 1711, pp. 119-30). Veja-se, sobre tudo isto, o ensaio
de Roberto Mazzola, <<Vico e Zenone», in Vico Ira l'Italia e la Francia, a cura di
Manuela Sanna e Alessandro Stile, Napoli, 2000, pp. 311-341 .

62
filosofia escolástica se aproxima tanto como a escotista; e
de que, mais tarde, ele viria a discorrer- como fez na sua
Metafisica 16 - acerca dos «pontos» de Zenão com senti-
mentos distintos daqueles que resultam das alterações fei-
tas por Aristóteles. Mas parecendo-lhe que Ricci se detinha
demasiado na explicação do ente e da substância nas suas
distinções em graus metafísicas, Vico, uma vez que era
ávido de novos conhecimentos, e tendo ouvido dizer que o
padre Suarez, na sua Metafísica, 17 discorria acerca de todo
o saber filosófico de maneira eminente, como convém a
um metafísico, e com um estilo sumamente claro e fácil
- com efeito, ele destaca-se por uma eloquência incom-
parável -, deixou a escola com melhor utilidade do que
da outra vez, e fechou-se em casa por um ano a estudar a
obra de Suarez.
Durante esse período, dirigiu-se uma vez só à Uni-
versidade Régia dos Estudos. O seu bom génio conduziu-o
à aula de D. FeliceAquadia, 18 excelente professor catedrá-
tico de Direito, no momento em que este dava aos seus

16 O Liber metaphysicus é o primeiro dos três livros que deveriam constituir

a obra De antiquissima !ta/orum sapientia ex /inguae /atinae originibus eruenda


/ibri Ires ( 171 0), onde Vico pretendia reconstruir a civilização dos povos pré-
-latinos através do estudo da etimologia, não apenas gramatical, mas também
histórica. Ao primeiro livro seguir-se-iam um Liberphysicus (cujo manuscrito
se perdeu) e um Liber mora/is (que Vico nunca chegou a escrever). O Liber
metaphysicus foi o único a ser publicado, coincidindo portanto com o De anti-
quissima que conhecemos.
17 Referência às Disputationes metaphysicae (1597) do espanhol Francisco

Suarez (1548-1617), padre jesuíta, herdeiro e disseminador do pensamento


tomista.
18 Felice Aquadia (1635-1695), jurista e professor catedrático da cadeira

matutina de Direito Canónico na Universidade de Nápoles.

63
alunos o seguinte juízo sobre Hermann Vultejus: 19 que era
o melhor de todos os que alguma vez tinham escrito sobre
as instituições civis. Esta frase, que Vico conservou na
memória, foi uma das principais causas da melhor ordem
dos seus estudos, e disso retirou proveito. Com efeito,
tendo sido mais tarde encaminhado pelo pai para o estudo
do direito, foi mandado a D. Francesco Verde, 20 em parte
pela proximidade [da escola] mas sobretudo pela celebri-
dade do professor, com quem ficou dois meses apenas, fre-
quentando aulas preenchidas na totalidade com os casos
da prática mais minuciosa dos dois tribunais, 21 e de que o
jovem não via os princípios, uma vez que, graças à meta-
física, tinha já começado a adquirir uma mente universal e
a reflectir acerca dos particulares por meio de axiomas, ou
seja, de máximas. Disse ao pai que já não queria estudar ali,
pois sentia que nada tinha a aprender com Verde. Fazendo
então uso da frase de Aquadia, rogou ao pai que pedisse
emprestada uma cópia de Hermann Vultejus a um doutor
em Direito de nome NicolC> Maria Gianattasio22 - obscuro
nos tribunais mas muito douto em boa jurisprudência, que
com tempo e grande diligência reunira uma preciosíssima

19 Hermann Vultejus (1565-1634), autor de um ln «lnstitutiones iuris civi-

lis>> a Justiniano compositas commentarius (1590), usado como manual para


estudantes universitários.
2° Francesco Verde (1631-1706), professor de Direito Canónico, tinha uma

escola privada muito frequentada em Nápoles. Foi autor da obra Institutionum


canonicarum libri quatuor, publicada postumamente em 1735.
21 Ou seja, civil e eclesiástico.

22 Do jesuíta napolitano Nicolà Maria Gianattasio pouco se sabe, uma vez

que não deixou obra publicada.

64
biblioteca de livros de direito -, pois seria através daquele
autor que estudaria por si as instituições civis. Coisa de
que o pai, embaraçado pela grande fama de que gozava
publicamente o professor Verde, muito se admirou; mas,
como era de grande discernimento, quis contentar o filho
nesse ponto e pediu o livro a Nicolo Maria. E, enquanto
o filho lhe pedia o Vultejus, livro muito difícil de obter
em Nápoles, o pai, como livreiro que era, lembrou-se de
em tempos ter dado um a Nicolo Maria, o qual quis saber
pelo próprio filho a razão de ser de tal pedido. Tendo-lhe
Vico dito que nas aulas de Verde não fazia senão exerci-
tar a memória em detrimento do intelecto, que sofria por
andar desocupado, aquele homem bom e entendido em tais
matérias apreciou tanto o juízo, ou melhor, o bom senso,
que nada tinha de juvenil, do jovenzinho que, formulando
ao pai certo presságio acerca do êxito do filho, não lhe
emprestou o Vultejus mas deu-lho, juntamente com as Ins-
tituições canónicas de Henricus Canisius, 23 pois este pare-
cia ao tal Nicolo Maria o melhor dos canonistas que tinha
escrito sobre elas. E foi assim que o bom dito de Aquadia
e a boa acção de Nicolo Maria direccionaram Vico para os
bons caminhos de ambos os direitos.
Ora, ao examinar em particular as passagens do
direito civil, ele sentia um sumo prazer em duas coisas:
uma, em reflectir acerca de como, nos sumários das leis,

23 Nome latinizado de Henrik (van) Hondt (1548-1610?), professor de

Direito Canónico na universidade de Ingolstad, autor da obra Summajuris cano-


nici in quatuor institutionum libris contracto (1594), que é dada a Vico.

65
os intérpretes agudos 24 abstraíram em máximas gerais de
justiça as razões particulares de equidade que os juriscon-
sultos e os imperadores tinham reconhecido para ajustiça
das causas; o que o levou a afeiçoar-se aos intérpretes anti-
gos, que depois reconheceu e julgou serem os filósofos da
equidade natural. A outra, em observar a diligência com
que os próprios jurisconsultos examinavam a formulação
das leis, dos decretos do senado e dos éditos dos pretores
que interpretavam; o que o conciliou com os intérpretes
eruditos, 25 que depois reconheceu e considerou serem os
puros historiadores do direito civil romano. Esses dois pra-
zeres eram também sinais: um, do estudo que ele havia de
dedicar à indagação dos princípios do direito universal; o
outro, do proveito que havia de retirar da língua latina, em
particular dos usos da jurisprudência romana, cuja parte
mais difícil consiste em saber definir os termos legais.
Após ter estudado as duas instituições nos textos de
direito civil e de direito canónico, sem se importar com
as ditas «matérias» que se ensinam durante os cinco anos
de estudos jurídicos, quis encaminhar-se para os tribunais.
O senhor D. Cario Antonio de Rosa, 26 senador de grande
probidade e protector da casa dos Vico, conduziu-o a apren-
der a prática do foro com o senhor Fabrizio del Vecchio, 27

24 Os «intérpretes agudos» correspondem aos «intérpretes antigos», como

Vico dirá logo a seguir. A referência é a Francesco Accursio (1185-1263?) e aos


«glosadores», e aBártolo de Sassoferrato (1314-1357) e aos «bartolistas».
25 Refere-se aAndreaAlciato (1492-1550) e aos juristas franceses do século

XVI, como Jacques Cujas (1522-1590) e François Hotman (1524-1590).


26 Carl antonio de Rosa (1638-1717), jurista e membro do Sacro Conselho.

27 Sobre Fabrizio dei Vecchio, Nicolini observa que era um advogado tão

66
um advogado honestíssimo, que depois, em velho, mor-
reu na maior pobreza. E, para o fazer conhecer melhor os
procedimentos judiciais, quis a sorte que, pouco tempo
depois, tivesse sido intentada uma acção judicial contra
o seu pai no Sacro Conselho, comissionada pelo senhor
D. Geronimo Acquaviva, 28 que Vico, com dezasseis anos
de idade, 29 preparou sozinho e defendeu em tribunal com
a assistência desse mesmo senhor Fabrizio dei Vecchio, e
a qual acabou por vencer. A sua argumentação nesse caso
mereceu os louvores do senhor Pier Antonio Ciavarri, 30
doutíssimo jurisconsulto e conselheiro daquele tribunal; e,
à saída, recebeu os abraços do senhor Francesco Antonio
Aquilante, 31 velho advogado daquele tribunal, que tinha
sido seu adversário.
Mas daqui, como de muitos outros casos similares, se
pode facilmente compreender que haja homens bem enca-
minhados em determinados campos do saber e que noutros
andam às voltas e erram miseravelmente, por lhes faltar
serem guiados e conduzidos por uma sabedoria completa e
correspondente em todas as suas partes. Com efeito, Vico,

pouco conhecido que nunca foi mencionado nos documentos da época (cfr. La
giovinezza di Giambattista Vico, p. 25).
28 Giovanni Geronimo Acquaviva ( 1663-1709), duque de Atri.

29 Na verdade, remontando a acção judicial a Junho de 1686, Vico teria 18

anos, o que está em conformidade com o erro da data de nascimento que ocorre
no início da obra.
30 Pedro Antonio Ciavarri Eguya, magistrado espanhol, autor do compêndio

Didascalia multiplex veteris. mediae et infimae iurisprudentiae (1680).


31 Francesco Antonio Aquilante (c. 1630-?), advogado napolitano. Segundo

informa Nicolini, era prática comum entre os advogados adversários a troca de


abraços após qualquer caso importante.

67
que possuía já uma mente metafísica, cujo trabalho con-
siste inteiramente em compreender o verdadeiro por géne-
ros, e, por meio de divisões exactas conduzidas passo a
passo através das espécies desses géneros, reconhecê-lo
até às suas últimas diferenças, vicejava32 nas maneiras mais
corruptas da poesia moderna, que não se deleita senão com
erros e com o falso. 33 Essa forma de poesia convenceu-o
ainda mais graças a este acontecimento: dirigindo-se um
dia ao padre Giacomo Lubrano, 34 jesuíta de infinita eru-
dição, conhecido naquela época pela eloquência sagrada,
em decadência por quase toda a parte, para obter dele um
juízo acerca dos avanços que tinha feito em poesia, Vico
submeteu às suas correcções uma canção sobre a rosa da
sua autoria. Esta agradou tanto ao padre que ele (aliás, um
homem generoso e gentil), não obstante a idade avançada
e a alta reputação de grande orador sagrado à qual se tinha
elevado, não hesitou por sua vez em recitar a um jovenzi-
nho que nunca tinha visto antes um idílio que tinha com-
posto sobre o mesmo tema. Porém, Vico tinha tomado esse
tipo de poesia por um exercício de engenho em obras de

32 Spampinava, no original. Para a tradução deste verbo peculiaríssimo,

foram preciosas as observações de Mario Fubini, que esclarece que Vico confe-
riu ao verbo italiano «spampanare» (que pode assumir o significado de «gabar-
-se» ou «ostentar de modo exagerado») o valor do verbo latino luxuriar i, cujo
sentido se adequa à exuberância da poesia barroca, em analogia com os pâmpa-
nos da videira em relação à uva (cfr. Stile e umanità di G. B. Vico, p. 100; veja-se
também a nota de Andrea Battistini em Opere, p. 1250).
33 Referência à poesia ultrabarroca seiscentista então em voga.

34 Giacomo Lubrano (1619-1693), padre jesuíta, autor de vários panegíricos

e orações fúnebres, conhecido quer como pregador, quer como poeta (e alto
expoente, neste último campo, do barroquismo meridional).

68
argucm, a qual se deleita unicamente com o falso, apre-
sentado de forma extravagante de modo a surpreender as
expectativas justas dos ouvintes; pelo que, tal como desa-
gradaria aos graves e severos, da mesma forma deleita as
mentes ainda débeis dos jovens. E, na verdade, um erro
do género poderia ser considerado uma distracção quase
necessária para os engenhos dos jovens, excessivamente
subtilizados e endurecidos pelo estudo da metafísica, numa
altura em que o engenho deve poder vaguear com o vigor
inflamado próprio da idade, para que não enregele e seque
por completo, e para evitar que, obtida antes do tempo a
grande severidade do juízo própria da maturidade, aquele
nunca mais ouse fazer nada depois.
Entretanto, a sua constituição já delicada ia-se debili-
tando com a tísica; 35 e via o património familiar reduzir-se e
estreitar-se; e tinha um desejo ardente de ócio para prosse-
guir os estudos; e o seu espírito aborrecia-se grandemente
com os estrépitos do foro- quando quis a sorte que encon-
trasse numa livraria o monsenhor Geronimo Rocca, 36 bispo
de Ísquia e ilustríssimo jurisconsulto (como o demonstram
as suas obras), com quem teve uma conversa sobre o método
correcto de ensinar jurisprudência. O monsenhor ficou tão
satisfeito que o incitou a aceitar que fosse ensiná-la aos
seus sobrinhos num castelo do Cilento, um sítio belíssimo

35 Dita também «queixa de peito» (mal d 'eticia. no original). Nicola

Capasso (1671-1745). um dos colegas de Vico na Universidade de Nápoles.


chamava-lhe maldosamente Mas ter Tisicuzzus.
36 Geronimo Rocca (1623-1691). monsenhor. advogado nos tribunais ecle-

siásticos e laicos em Roma e em Nápoles. Foi eleito bispo de Ísquia em 1672.

69
e de ar puríssimo, que pertencia a um irmão seu, o senhor
D. Domenico Rocca 37 (em quem Vico encontrou depois
um mecenas muito gentil, que se deleitava igualmente
com o mesmo tipo de poesia), pois seria tratado por ele
como um filho (como depois, com efeito, aquele o tratou),
recuperaria a saúde com o bom ar da região e teria todas as
condições para estudar.
E assim aconteceu, pois tendo ali vivido não menos
do que nove anos/ 8 fez nesse lugar a maior parte dos seus
estudos, aprofundando o direito civil e o direito canónico,
como era sua obrigação. E após se ter iniciado no estudo
dos dogmas com o direito canónico, encontrou-se no justo
meio da doutrina católica em matéria de graça, em particu-
lar através da leitura de Richardus, 39 teólogo da Sorbonne
(cujo livro, por sorte, tinha trazido consigo da livraria do
pai). Este autor, através de um método geométrico, mos-
tra que a teoria de Santo Agostinho está situada no meio,
como entre dois extremos, em relação à doutrina calvinista
e à pelagiana, e em relação às outras opiniões que se apro-
ximam de uma ou outra destas duas. Essa disposição aca-
bou por lhe ser eficaz para meditar depois num princípio

37 Domenico Rocca (c. 1640-1699), marquês de Vatolla, mecenas e poeta.


38 É quase certo que, durante esse período de nove anos (de 1686 a 1695),
Vico tivesse acompanhado várias vezes a família Rocca nas suas deslocações a
Nápoles e a Portici. Sobre Vato lia, veja-se o pitoresco capítulo «Vato lia alia fine
dei Sei cento» que Fausto Nicolini lhe dedica em La giovinezza di Giambattista
Vico, pp. 29-37.
39 Etienne Deschamps (1613-170 1), jesuíta francês, publicou sob o pseu-

dónimo de Antonius Richardus uma Disputatio theologica de libero arbitrio


(1645) e um De haeresi ianseniana ab apostolica Sede proscripta (1654).

70
de direito natural das gentes que lhe permitisse explicar as
origens do direito romano, e de qualquer outro direito civil
gentílico, no que diz respeito à história, e que fosse con-
forme à sã doutrina da graça no que diz respeito à filosofia
moral. Ao mesmo tempo, Lorenzo Valla, 40 por ter repreen-
dido os jurisconsultos romanos em matéria de elegância
latina, levou-o a cultivar o estudo dessa língua, que Vico
iniciou a partir das obras de Cícero.
Porém, encontrando-se ainda comprometido quanto à
poesia, deu-se o feliz caso de, numa biblioteca dos padres
Menores Observantes daquele castelo, lhe ter vindo parar
às mãos um livro no fim do qual havia uma crítica ou uma
apologia - não se lembra bem - de um epigrama de um
homem de bem, cónego, de apelido Massa, 41 onde se dis-
cutiam metros poéticos maravilhosos, observados espe-
cialmente em Virgílio. E foi tomado por uma tal admiração
que lhe deu vontade de estudar os poetas latinos, a começar
pelo príncipe desses. Começando então a desagradar-lhe a
sua maneira moderna de fazer poesia, dedicou-se a cultivar
a língua toscana na obra dos seus príncipes, Boccaccio na
prosa, Dante e Petrarca no verso; e por dias inteiros estu-

40 Lorenzo Valia (1407-1457), humanista, filólogo e filósofo, foi secretário

do rei Afonso de Aragão, em Nápoles. A obra a que Vico se refere é Elegantiae


linguae latinae (1435-1444), onde Valia propõe restituir à língua latina a sua
pureza primordial, numa polémica contra os juristas medievais.
41 A obra de que Vico não se recorda bem é a edição de 1589 de Piazza

universale di tutte le professioni de! mondo (1585) de Tommaso Garzoni, que


fazia a apologia da poesia de Lorenzo Massa; cfr. Paolo Cherchi, «Un episodio
dell"'Autobiografia" dei Vico e una polemica dei tardo Cinquecento», in Convi-
vium, XXXVII (1969), n. 4, pp. 463-469.

71
dava Cícero, Virgílio ou Horácio, confrontando o primeiro
com Boccaccio, o segundo com Dante e o terceiro com
Petrarca, com a curiosidade de ver com juízo imparcial as
diferenças entre eles. E daí reteve quanto, em cada um dos
três casos, a língua latina superava a italiana, lendo sempre
os seus escritores mais cultos três vezes, de acordo com
esta ordem: a primeira vez, para compreender a unidade
da composição; a segunda, para observar as ligações e o
desenvolvimento das coisas; a terceira, com maior detalhe,
para recolher as belas formas do conceber e do expressar-
-se, que anotava nos próprios livros em vez de as compilar
em cadernos de lugares-comuns ou de frases. Prática, esta,
que, segundo estimava, o conduzia a fazer um bom uso
delas quando tinha necessidade, uma vez que as recordava
nos seus lugares próprios, o que é a única medida do bem
conceber e do bem expressar-se.
Lendo depois na Arte Poética de Horácio que a baga-
gem mais abundante da poesia se obtém com a leitura dos
filósofos morais, 42 dedicou-se seriamente ao estudo da
moral dos gregos antigos, começando pela de Aristóteles,
a que muito frequentemente faziam referência as autorida-
des que lia sobre os vários princípios de instituições civis.
Neste estudo, reconheceu que a jurisprudência romana era

42 Horácio, Arte poética, 309-311: «Ser sabedor é o princípio e a fonte

do bem escrever. Os escritos socráticos já te deram ideias e agora as palavras


seguirão, sem esforço, o assunto imaginado» (Horácio, Arte poética, introdução,
tradução e comentário de R. M. Rosado Fernandes, Editorial Inquérito, 4." edi-
ção, 2001, p. 93). Anos mais tarde, Vico citará directamente o verso horaciana
«Verbaque provisam rem non invita sequentur» (311) no discurso Le Accademie
e i rapporti Ira la .filosofia e l 'eloquenza (1737).

72
uma arte da equidade ensinada por inumeráveis e pequenos
preceitos de direito natural, que os jurisconsultos tinham
indagado nas razões das leis e na vontade dos legisladores.
Mas a ciência do justo que ensinam os filósofos morais,
essa, procede de poucas verdades eternas, ditadas em meta-
física por uma justiça ideal que, no trabalho das cidades,
ocupa o lugar de arquitecta e ordena às duas justiças par-
ticulares, a comutativa e a distributiva, como a dois arte-
sãos divinos, que meçam as utilidades com duas medidas
eternas, a aritmética e a geométrica, que são as duas pro-
porções demonstradas em matemática. 43 E daí começou a
perceber que não se aprendia sequer a metade da disciplina
legal com o método de estudar comum que se utilizava.
Por essa razão, teve de se voltar de novo para a metafí-
sica; mas, não o podendo auxiliar nisto a de Aristóteles (a
qual tinha aprendido em Suarez), sem que conseguisse ver
uma razão para tal, e guiado somente pela fama que tinha
Platão de ser o príncipe dos filósofos divinos, começou a
estudar a metafísica a partir deste último. Só muito depois
de ter feito progressos na matéria é que percebeu a razão
pela qual a metafísica de Aristóteles não lhe fora de auxí-
lio nos estudos da moral, tal como de nada lhe servira a
de Averróis, cujo Comentário não tornou os árabes mais
humanos e civilizados do que tinham sido antes. É que
a metafísica de Aristóteles conduz a um princípio físico,
que é a matéria, da qual se extraem as formas particulares,

43 Vico retoma esta formulação em Sn44, § 1042.

73
e assim faz de Deus um oleiro que trabalha as coisas fora
de si mesmo. Por outro lado, a metafísica de Platão con-
duz a um princípio físico, que é a ideia eterna, que de si
extrai e cria a própria matéria, como um espírito seminal
que forma ele mesmo o seu próprio ovo. Em conformidade
com esta metafísica, Platão funda uma moral sobre uma
virtude ou justiça ideal, ou seja, arquitecta, a partir da qual
se dedicou a meditar uma república ideal, à qual conferiu,
com as suas leis, um direito também ele ideal. Pelo que, a
partir do momento em que Vico se sentiu insatisfeito com
a metafísica de Aristóteles como meio para compreender
bem a moral e se deixou instruir pela de Platão, começou
a despertar nele, sem que se apercebesse, o pensamento de
meditar num direito ideal eterno que se cumprisse numa
cidade universal na ideia ou no desenho da providência,
ideia sobre a qual são depois fundadas todas as repúblicas
de todos os tempos e de todas as nações. 44 Eis a república
ideal que Platão, como consequência da sua metafísica,
deveria ter meditado, mas que, por ignorar a queda do pri-
meiro homem, não pôde fazer. 45
Ao mesmo tempo, as obras filosóficas de Cícero, de
Aristóteles e de Platão, todas elas elaboradas tendo em

44 Vico antecipa aqui uma das teorias que sustentará a Ciência nova, a saber,

que a dita ciência deve constituir a demonstração de um facto histórico da provi-


dência, ou seja, de uma história das ordens que aquela deu à «grande cidade do
género humano» (Sn44, § 342) - ou, noutra formulação, «a grande cidade das
nações íi.mdada e governada por Deus» (Sn44, § 1107).
45 Ou seja, ignorando o pecado original de Adão e o consequente percurso

de um estado ferino ao estado propriamente humano, como Vico narrará na


Ciência nova.

74
vista a boa regulação do homem na sociedade civil, fize-
ram com que ele tivesse nenhum ou muito pouco apreço
quer pela moral dos estóicos quer pela dos epicuristas, já
que são ambas uma moral de solitários: 46 a dos epicuristas,
por ser própria de ociosos fechados nas suas hortinhas; a
dos estóicos, por ser própria de meditativos que se esfor-
çavam por não sentir as paixões. E o salto que tinha dado
anteriormente da lógica à metafísica fez com que Vico
pouco se interessasse depois pela física de Aristóteles,
pela de Epicuro e finalmente pela de René Descartes. Por
isso se encontrou disposto a receber com prazer a física
de Timeu aceite por Platão, a qual pretende que o mundo
seja feito de números, e se refreou de desprezar a física
estóica, que pretende que o mundo conste de pontos, não
havendo entre estas duas nenhuma diferença substancial,
como procurou depois estabelecer no seu livro De anti-
quissima italorum sapientia. 47 Finalmente, foi também por
isso que não aceitou nem por brincadeira nem a sério as
físicas mecânicas de Epicuro e de Descartes, pois partem
ambas de posições falsas.
No entanto, tendo observado que quer Aristóteles
quer Platão usavam muito frequentemente provas matemá-
ticas para demonstrar as matérias que discutiam em filoso-
fia, Vico achou-se pouco preparado para os entender bem
nesse ponto. Por essa razão, quis dedicar-se à geometria e

46 Cíf. Sn44, § 130.


47 Veja-se a nota 16.

75
avançar até à quinta proposição de Euclides. 48 Ao reflec-
tir sobre o facto de que aquela demonstração continha, em
suma, uma congruência de triângulos, em que cada um
dos lados e ângulos de um triângulo se examina separada-
mente, demonstrando-se que coincidem com cada um dos
lados e ângulos de outro triângulo, apercebia-se de que era
mais fácil entender aquelas verdades minuciosas todas jun-
tas, como num género metafísico, do que entender aque-
las quantidades geométricas particulares. Percebeu então à
sua custa que aquele estudo, apropriado aos engenhos mais
minuciosos, não se revelava favorável para as mentes que
já se tinham tornado universais graças à metafísica, e desis-
tiu de o levar por diante, pois agrilhoava e constrangia a
sua mente já acostumada pelo longo estudo da metafísica
a estender-se pelo infinito dos géneros. E através da lei-
tura frequente de oradores, de historiadores e de poetas, o

" Vico não especifica a qual dos treze livros dos Elementos de Euclides
se reporta a quinta proposizione. Tendo em conta o resumo que apresenta de
seguida, há duas hipóteses consistentes, que dependem do modo como se inter-
preta o verbo inoltrarsi: ou Vico se ficou pela quinta proposição do livro I, ou
chegou até à quinta proposição do livro IV, dado que ambas as demonstrações
usam argumentos que partem da definição de congruência de triângulos apresen-
tada na quarta proposição do livro I dos Elementos- razão pela qual, na nota a
esta passagem, os tradutores espanhóis da autobiografia remetem para a quarta
proposição do livro I, concedendo talvez demasiado facilmente que a exposição
de Vico seria inepta (cfr. Giambattista Vico, Autobiografia, edición de Moisés
González Garcia y Josep Martínez Bisbal, Siglo XXI, Madrid, 1998, p. 96, n.
37). Em todo o caso, sabemos que, no que concerne ao estudo da geometria,
Vico nunca passou do limiar; é, aliás, o próprio a afirmá-lo no início daDigressio
sobre o engenho, as agudezas, as argúcias e o riso, incluída nas Vici Vindiciae:
«Geometria autem, etsi ego a limine salutavi» (cír. Teodosio Armignacco, «Per
l'edizione critica delle Vici Vindiciae», com a edição bilingue, no Bollettino de!
Centro di Studi Vichiani XII-XIII, 1982-83, pp. 237-315).

76
seu engenho deleitava-se com a observação de laços que
aproximassem entre si, em alguma relação comum, coisas
muito longínquas; laços, esses, que são os belos nastros da
eloquência que tornam deleitáveis as agudezas.
Por isso, 49 estimaram os antigos com razão que a geo-
metria era um estudo ao qual se deviam dedicar as crian-
ças, e julgaram-na uma lógica apropriada para aquela tenra
idade, que tanto aprende bem os particulares e os dispõe
sucessivamente quanto tem dificuldade em compreender
os géneros das coisas. E o próprio Aristóteles, conquanto
tivesse abstraído a arte silogística do método usado pela
geometria, convém neste ponto quando afirma que às
crianças se devem ensinar as línguas, as histórias e a geo-
metria, na medida em que são as matérias mais apropriadas
para exercitar a memória, a fantasia e o engenho. Daí se
pode facihnente entender com quanto prejuízo- e com que
cultura da juventude - são hoje em dia usadas por alguns
duas práticas perniciosíssimas no método de estudar. A pri-
meira consiste em pôr crianças que mal saíram da escola
de gramática a estudar filosofia começando pela lógica dita
«de Amauld», 50 cheia de juízos severíssimos acerca de

49 O parágrafo que se segue- uma «digressão um tanto longa». como Vico

dirá na sua nota - constitui parte de um discurso inaugural do ano académico.


que o autor decide intercalar na autobiografia. e cujo texto original não chegou
até nós. Muitos dos argumentos pedagógicos aqui expostos tinham já visto a luz
nas chamadas Orazioni inaugura/i e em De nostri temporis studiorum ratione.
Fausto Nicolini considera que o discurso perdido deverá remontar a 1713.
50 La logique ou l 'art de penser. Contenant, outre les regles communes, plu-

sieurs observations nouvelles propres à forme r le jugement, também conhecida


como Logique de Port-Royal, publicada anonimamente em 1662 por Antoine
Arnauld (1612-1694) e Pierre Nicole (1625-1695), de influência jansenista e
cartesiana.

77
matérias recônditas 51 de ciências superiores, e completa-
mente afastadas do senso comum vulgar. Com isso, vêm a
convelir-se nos jovens aqueles dotes da mente juvenil que
deveriam ser regulados e fomentados cada um por meio de
uma arte própria, como a memória pelo estudo das línguas,
a fantasia pela leitura dos poetas, historiadores e oradores,
e o engenho pela geometria linear. 52 Esta última é, num
certo modo, uma pintura que revigora a memória graças ao
grande número dos seus elementos, refina a fantasia com
as suas figuras delicadas, que são como desenhos traça-

5 1 Materie riposte, no original. O adjectivo riposto (particípio passado do

verbo italiano riporre, do latim ripositus) é recorrente na Vida, mas sobretudo na


Ciência nova, onde caracteriza um tipo de sabedoria (sapienza riposta) que se
opõe à sabedoria vulgar e poética dos primeiros povos. Em italiano, riposto pos-
sui os significados de «recôndito», «afastado» ou «secreto». A opção de traduzir
riposto por «recôndito» justifica-se pela maior proximidade entre os significados
deste termo em português e em italiano, considerando-se, além disso, ser esta
uma opção que representa de modo fiel o pensamento de Vico. Nas traduções da
Vida que pudemos consultar, Alan Poins opta pelo termo abscons, García e Bis-
pal por refiejo, e Fisch e Bergin por esoteric. Na tradução portuguesa da Ciência
nova, Jorge Vaz de Carvalho opta por «secreto». Uma alternativa pertinente a
«recôndito» seria também «reservado», apresentada por Humberto Guido, termo
pelo qual, no entanto, não se optou (crr. «A vénus pudica, a natureza libidinosa.
Notas para um confronto entre Vico e Lucrécio», in Embates da razão: mito e
filosofia na obra de Giambattista Vico, p. 101 , n. 8).
52 Em De ratione, II, e em De antiquíssima, VII, §IV (De certafacultate

sciendi) , Vico exalta a geometria linear sintética de Euclides, que constrói as


próprias figuras (sendo, portanto, inventiva e engenhosa), contrastando-a com a
geometria analítica de Descartes, que é incerta, na medida em que parte do todo
(do infinito) sem o questionar, e procede à sua divisão em pequenos elementos.
Veja-se o § 349 da Sn44, onde Vico afirma que, quanto ao método, a sua ciência
procede como a geometria, na medida em que constrói o próprio mundo de gran-
dezas. Esta última afirmação (aparentemente estranha, dada a estrutura barroca
da Ciência nova) deve ser entendida tendo em vista aquilo em que consiste, para
Vico, a geometria sintética, e a relação entre esta e o princípio da convertibili-
dade entre o verum e o fac tum, segundo o qual a condição para se conhecer uma
verdade é fazê-la. Assim, em De ratione, IV, contra Descartes e a introdução do
método geométrico na física, Vico declara: «Geometrica demonstramus, quia
facimus; si physica demonstrare possemus, faceremus» (cfr. Opere, p. 116).

78
dos com linhas subtilíssimas, e torna o engenho expedito
ao ter de percorrê-las todas e entre todas recolher aquelas
necessárias à demonstração da grandeza que é pedida;53
tudo isto para que frutifique, na época em que o juízo é
maduro, uma sabedoria eloquente, viva e aguda. Mas, com
tais lógicas, conduzidos os jovens antes do tempo para a
crítica (o mesmo é dizer, levados a querer julgar bem antes
de terem aprendido bem, contra o curso natural das ideias,
segundo o qual primeiro devem aprender, depois julgar e
finalmente reflectir),54 a juventude toma-se árida e seca na
forma de se expressar, e, sem nunca fazer nada, quer jul-
gar acerca de tudo. Se, pelo contrário, na idade do enge-
nho, que é a juventude, eles se dedicassem à tópica, que é
a arte de descobrir, privilégio exclusivo dos engenhosos
(como Vico o fez na sua [juventude], guiado por Cícero),
disporiam a matéria para depois julgarem bem, pois não
se pode julgar bem se não se conhece a totalidade de uma
coisa, e a tópica é a arte de descobrir em cada coisa tudo
quando nela está; e assim , graças à própria natureza, os
jovens viriam a formar-se filósofos e eloquentes. 5 5 A outra
prática consiste em dar aos jovens os elementos da ciência
das grandezas através do método algébrico, que enregela
tudo o que há de mais fértil nas índoles juvenis, lhes cega
a fantasia, extenua a memória, torna o engenho pregui-
çoso e abranda o entendimento, sendo estas quatro coisas
absolutamente necessárias para a cultura da melhor hum a-

53 Cfr. Platão, República. livro VII, 526c-527c.


54 É o que postula a dignidade Lili da Ciência nova, a saber, que os homens
primeiro sentem sem considerar, depois consideram com ânimo perturbado e
comovido e, finalmente, reflectem com mente pura (cfr. Sn44, § 218).
55 Vico defende a prioridade da tópica em relação à crítica, assunto tratado

primeiramente em De ratione (cap. III) e desenvolvido na Ciência nova (cfr.


Sn44, §§ 218, 219, 497, 498).

79
nidade: a primeira para a pintura, a escultura, a arquitec-
tura, a música, a poesia e a eloquência; a segunda para
a erudição das línguas e das histórias; a terceira para as
invenções; a quarta para a prudência. Esta álgebra parece
ser uma descoberta árabe para reduzir os signos naturais
das grandezas a certas cifras por convenção, conforme
os árabes reduziram a dez pequeníssimas cifras os signos
dos números, que foram para os gregos e para os latinos
as letras do alfabeto, as quais, para ambos, pelo menos as
maiúsculas, são linhas geométricas regulares. E, assim, a
álgebra aflige o engenho, porque não vê senão aquilo que
está diante dela; atordoa a memória, porque assim que des-
cobre o segundo signo já não se preocupa com o primeiro;
ofusca a fantasia, porque não imagina absolutamente nada;
destrói o entendimento, porque professa a adivinhação. 56
Deste modo, os jovens que se lhe dedicaram durante muito
tempo descobrem-se depois, para seus sumos pesar e arre-
pendimento, menos aptos na prática da vida civil. Pelo
que, para que trouxesse alguma utilidade e não provocasse
nenhum destes grandes danos, a álgebra deveria ser apren-
dida durante pouco tempo no final do curso de Matemática,
como faziam os romanos com os números, que nas somas
imensas os descreviam por pontos; assim, quando, para
encontrar as grandezas que são pedidas, o nosso entendi-
mento humano tivesse de suportar esforços desesperados
com o método sintético, recorreríamos então ao oráculo
do método analítico. Pois no que concerne ao bom racio-

56 Em De ratione, no final do capítulo V, a álgebra (analysis) é tida como

ars divinandi (Opere, p. 124). Em De antiquissima, I,§ I (De origine et veritate


scientarum), Vico usa o termo divinatoria para caracterizar o método lógico da
via resolutiva, que, na álgebra, o filósofo napolitano associa á magia e á adivi-
nhação, numa crítica aos processos algorítmicos usados no método algébrico.

80
cínio com esta espécie de método, é melhor habituar-se a
ele com a análise metafísica e, em cada questão, procurar
o verdadeiro no infinito do ente; depois, ir gradualmente
pelos géneros da substância removendo aquilo que a coisa
não é para todas as espécies dos géneros, até chegar à
diferença última que constitua a essência da coisa que se
deseja conhecer. 57

Voltemos agora ao nosso propósito. Após ter desco-


berto que todo o segredo do método geométrico consistia
nisto: em primeiro lugar, definir os termos com os quais se
tenha de raciocinar; depois, estabelecer algumas máximas
comuns nas quais convenha aquele com quem se racio-
cina; finalmente, se necessário, pedir com discernimento
uma coisa que por natureza possa ser concedida, a fim de
poder dar saída aos raciocínios que, sem uma qualquer pro-
posição, não se conseguiriam resolver; e, com estes prin-
cípios, proceder passo a passo das verdades mais simples
já demonstradas para as mais compostas, e não afirmar as
verdades compostas sem que antes se examinem separa-
damente as partes que as compõem - Vico estimou então
ser útil saber como procedem os geómetras nos seus racio-
cínios somente para que, se alguma vez tivesse de se ser-
vir dessa maneira de raciocinar, o soubesse fazer. E, com
efeito, usou-a depois com rigor na obra De universi iuris
uno principio, que o senhor Jean Leclerc julgou «ser com-

57 «Esta digressão um tanto longa é uma lição inaugural de Vico dada aos

jovens, para que saibam escolher e fazer uso das ciências para a eloquência»
[Nota de Vlco].

81
posta com um estrito método matemático», como em lugar
próprio se dirá. 58
Ora, para conhecer por ordem os progressos de Vico
em filosofia, há que voltar aqui um pouco atrás: pois, na
altura em que ele partiu de Nápoles, começara a cultivar-se
a filosofia de Epicuro através de Pierre Gassendi. 59 E, dois
anos mais tarde, teve notícia de que a juventude se dedicara
a celebrá-la com grande entusiasmo; donde despertou nele
a vontade de percebê-la através de Lucrécio. 60 Ao lê-lo,
aprendeu que Epicuro - por negar que a mente fosse de
outro género de substância que o corpo e, por ausência de
uma boa metafisica, tendo ficado com uma mente limitada
-teve de estabelecer como princípio de filosofia o corpo
já formado e dividido em partes últimas multiformes com-
postas por outras partes, que imaginou serem indivisíveis
por não existir vazio entre elas: o que é uma filosofia para
satisfazer as mentes curtas das crianças e as mentes débeis
das mulherinhas. E, embora não soubesse nada de geome-
tria, por uma sucessão bem ordenada de consequências,
[Epicuro] edifica sobre a sua física mecânica uma meta-

58 Jean Leclerc (1657-1736), teólogo e intelectual genebrino, dirigiu a

publicação da Bibliotheque ancienne et moderne (29 vols., 1714-1726). Na Vida,


Vico reproduz a carta em que Leclerc promete fazer uma recensão ao Direito
universal para a referida obra. Cumprida a promessa, Vico citará ainda a recen-
são de Leclerc não menos do que três vezes.
59 Pierre Gassendi (1592-1655), sacerdote, teólogo, astrónomo, físico , filó-

sofo anti-aristotélico (Exercitationes paradoxicae adversus aristoteleos [1624])


e anti-cartesiano (Disquisitio metaphysica seu Dubitationes et Instantie adver-
sus Renati Cartesii Metaphysicam et Responsa [1644]).
60 De notar a reserva com que Vico fala deste período conturbado da história

das ideias filosóficas em Nápoles.

82
física toda dos sentidos - como seria precisamente a de
John Locke61 - e uma moral do prazer, boa para homens
que devem viver em solidão - como ele, com efeito, orde-
nou àqueles que professavam a sua doutrina. E, para que
se reconheça o seu mérito, se Vico o via explicar as for-
mas da natureza corpórea com deleite, com igual derisão
ou compadecimento o via posto na dura necessidade de
se servir de mil ninharias e tolices para explicar os modos
pelos quais opera a mente humana. 62 Pelo que este estudo
lhe serviu apenas para se convencer ainda mais dos dogmas

6 1 A referência a John Locke (1632-1704) tem na base a crítica geral de Vico

ao materialismo epicurista, amplamente celebrado na Nápoles de finais do século


XVII. Na Ciência nova de 1725, o nome de Locke vem associado á negação da
providência divina (cfr. Sn25, § 45); numa carta de 1726 ao abade Giuseppe
Luigi Esperti, Vico declara que Locke quis «casar» Epicuro com a metallsica
platónica (cfr. Opere, p. 324). Já nas «Correzioni, meglioramenti e aggiunte
terze» á Ciência nova de 1730, Vico junta o nome do filósofo inglês aos de Des-
cartes e Espinosa, numa crítica á sua metafísica; esse capítulo, no entanto, não é
integrado na edição de 1744, talvez pelo facto de o papa Clemente XII (a quem
Vico dedica a Ciência nova de 1730) ter condenado ao Índice An Essay Con-
cerning Human Understanding (1690). Sobre a influência de Locke em Vico,
veja-se o ensaio de Gustavo Costa «Psicologia lockiana e gnoseologia vichiana»,
in Vico e /'Europa. Contra la «boria dei/e nazioni», Milano, Guerini e Associati,
1996, pp. 39-64. Veja-se ainda o ensaio de Manuela Sanna, <<Vico e lo "scandalo"
deli a "metafisica alia moda" Lockiana», in BCSV, XXX, 2000, pp. 31-50.
62 Vico faz questão de sublinhar que o período em que se cultivava com

fervor em Nápoles o atomismo epicurista/lucreciano coincide com o seu «exí-


lio» em Vatolla, além de fazer remontar a essa época uma rejeição da filosofia
de Lucrécio que, em Vico, só se verificará muito mais tarde. Pense-se que tal
período coincidiu com um ruidoso processo da Inquisição contra os intelectuais
napolitanos, sectários da <<nova filosofia» , acusados de ateísmo (1688-1697),
entre os quais se encontravam não poucos amigos de Vico, como Giacinto de
Cristoíàro e Basilio Giannelli. Do mesmo modo, não é por acaso que Vico não
faz nenhuma referência na Vida ao seu poema Affetti d'un disperato, publi-
cado em 1693, onde adopta um classicismo arcádico, com claras influências de
Lucrécio. Veja-se o capítulo «Crisi giovanile e dualismo» do livro de Enzo Paci,
Ingens sylva, Mil ano, Bompiani, 1994, pp. 9-21.

83
de Platão, que, da forma mesma da nossa mente humana,
e sem hipótese alguma, estabelece como princípio de todas
as coisas a ideia eterna, com base na ciência e na cons-
ciência que temos de nós mesmos. Porque na nossa mente
há certas verdades eternas que não podemos ignorar ou
negar e que, por conseguinte, não são feitas por nós. Mas,
quanto ao resto, sentimos em nós uma liberdade de fazer,
entendendo-as, todas as coisas que dependem do corpo, e
por isso as fazemos no tempo, ou seja, quando nelas nos
queremos aplicar, e todas as fazemos ao conhecê-las, e
todas as contemos dentro de nós: como as imagens, com a
fantasia; as recordações, com a memória; as paixões, com
o apetite; os cheiros, sabores, cores, sons e tacto, com os
sentidos; e assim todas as contemos dentro de nós. Mas,
quanto às verdades eternas que não são feitas por nós e não
dependem do nosso corpo, devemos entender que o prin-
cípio de todas as coisas é uma ideia eterna completamente
separada do corpo, que, na sua cognição, quando quer,
cria todas as coisas no tempo e as contém dentro de si, e,
contendo-as, as sustém. 63 Deste princípio filosófico estabe-
lece [Platão], em metafísica, que as substâncias abstractas
têm mais realidade do que as corpulentas - do que deriva
uma moral perfeitamente adequada à civilização, pelo que
a escola de Sócrates, por si mesma e pelos seus sucesso-

63 Vico transcreverá, com algumas variantes, esta síntese filosófica nas suas

«correzioni terze» à Sn30. Cfr. G. Vico, Scienza nuova 1730, Correzioni, miglio-
ramenti e aggiunte seconde, terze e quarte, a cura di P. Cristofolini con la collab.
di M. Sanna (Napoli, 2004), edizione elettronica a cura di L. Pica Ciamarra, in
Laboratorio dell'JSPF, I, 2005, p. XXXV.

84
res, deu as maiores luzes da Grécia em ambas as artes da
paz e da guerra. E aplaude a física de Timeu, isto é, a de
Pitágoras, que pretende que o mundo conste de números,
que são, em certo modo, mais abstractos do que os pon-
tos metafísicos, 64 de que se serviu Zenão para explicar as
coisas da natureza - como Vico demonstra depois na sua
Metafisica, 65 por aquilo que mais à frente se dirá.
Ao fim de pouco tempo, Vico soube do crescente
apreço de que gozava a física experimental, clamando-se
por toda a parte o nome de Robert Boyle. 66 Mas embora ele
a julgasse proveitosa para a medicina e para a espagírica,67
quis manter-se afastado dela, porque nada trazia à filoso-
fia do homem e porque tinha de ser explicada com for-
mas bárbaras, 68 enquanto ele se dedicava principalmente
ao estudo das leis romanas, cujos princípios fundamentais
são a filosofia dos costumes humanos e a ciência da língua
e do governo romanos, o que se aprende unicamente nos
escritores latinos.
Perto do final do seu período de solidão, que durou
não menos de nove anos, teve notícia de que a física de

64 Cfr. Sn44. § 713, onde Vico afirma que Pitágoras situou a essência da

alma humana nos números por não conceber nada que se abstraísse mais da
substância do corpo.
65 A obra De antiquissima ( 171 0), conforme se esclareceu na nota 16.

66 Robert Boyle (1627-1691), químico inglês, residiu em Florença em 1641,

onde teve contactos com cientistas galileanos. Era considerável a sua influência
em Nápoles entre os membros da Academia dos Investiganti.
67 Termo do latim científico introduzido por Paracelso (1493-1541), com

o qual se designava a «alquimia», a que Vico dá aqui o sentido específico de


«farmacologia>>.
68 Referência ao latim científico.

85
René Descartes obscurecera a fama de todas as físicas
do passado, pelo que desejou ardentemente conhecê-la -
quando, devido a um gracioso engano, ele já tinha tomado
conhecimento dela, pois trouxera consigo da livraria do
pai, entre outros livros, a Filosofia natural de Regius, sob
a máscara do qual começara Descartes a publicá-la em
Utreque. 69 E ao passar do estudo de Lucrécio para o de
Regius, filósofo e médico de profissão, que não demons-
trava erudição senão na matemática, julgou-o homem não
menos ignaro em metafísica do que Epicuro, que de mate-
mática nunca quis saber. Porque ele [Regius] postula, na
natureza, um princípio também ele falso - o corpo já for-
mado-, que só difere do de Epicuro na medida em que este
termina a divisibilidade do corpo nos átomos, enquanto

69 Trata-se da obra Phi/osophia natura/is (1654), segunda edição dos Fun-

damenta Physices, publicados em Amesterdão, em 1646, pelo médico holan-


dês Hendrik van Roy (1598-1679), cujo nome latinizado era Henricus Regius.
Regius considerava-se cartesiano e a obra em questão pretendia ser uma expres-
são do pensamento de Descartes, gerando-se então o equívoco, em que Vico
(convenientemente, diga-se, dada a sua fortíssima oposição ao credo cartesiano)
mostra ter caído, de que aquela era da autoria do próprio Descartes. Este, por seu
lado, na carta-prefácio ao tradutor francês dos Principia philosophiae (1647),
desmente tal ideia, desaprovando Regius: «Com efeito, publicou este autor, o
ano passado, um livro intitulado Fundamenta physices, onde aparenta nada ter
opinado respeitante à física e à medicina que não seja extraído dos meus escri-
tos, tanto dos que já publiquei como de um outro, ainda incompleto, sobre a
natureza dos animais, que lhe foi parar às mãos. Entretanto, por haver efec-
tuado uma transcrição inexacta e alterado a ordem e até negado algumas verda-
des de metafísica, sobre a qual toda a física convém ser apoiada, sou obrigado
a desaprová-lo inteiramente, e rogar aqui aos leitores que nunca me atribuam
qualquer opinião que não encontrem expressamente nos meus escritos, e até
nenhuma aceitem como verdadeira, quer nos meus escritos quer em outro lugar,
se não verificarem ser claramente deduzida dos verdadeiros princípios»; René
Descartes, Os principias da filosofia (tradução de Alberto Ferreira), Lisboa, Gui-
marães Editores, 1998, pp. 43-44.

86
Regius faz os seus três elementos divisíveis até ao infi-
nito. Um [Epicuro] coloca o movimento no vazio, o outro
[Regius] no pleno. Um começa a formar os seus mundos
infinitos por uma declinação casual de átomos [que se
desviam] do movimento para baixo devido aos seus pró-
prios peso e gravidade; 70 o outro começa a formar os seus
vórtices indefinidos por um ímpeto impresso a um pedaço
de matéria inerte e, portanto, ainda não dividida, e a qual,
por efeito do movimento que lhe é impresso, se divide em
partículas/ 1 impedida pela sua massa, esta coloca-se na
necessidade de se esforçar por se mover rectilineamente
e, não o podendo fazer devido ao pleno, começa, dividida
que está em partículas, a mover-se de modo a fazer girar
cada partícula em torno do seu centro. Pelo que, tal como
pela declinação casual dos seus átomos Epicuro abandona
o mundo à discrição do acaso, assim parecia a Vico que,
pela necessidade de os primeiros corpúsculos de Descartes
se tentarem mover rectilineamente, um tal sistema seria

7° Corresponde à teoria do clinamen. que Lucrécio expõe em De rerum

natura (veja-se a nota 62). Veja-se, em particular, H. 217-220 (« ... quando os


corpos se deslocam verticalmente para baixo através do vazio, I devido ao seu
próprio peso, se desviam um pouco do seu trajecto, I num momento não deter-
minado e num lugar incerto, I apenas o suficiente para dizer que houve uma
oscilação no seu percurso») e, mais precisamente, ll, 289-293 (« ... mas o que
leva a que a própria mente I não tenha uma necessidade interna para todas as
suas acções I e, forçada, não seja como que obrigada a sofrer e aguentar, I é um
pequeno desvio dos àtomos I que não tem um lugar certo nem um tempo deter-
minado»). Lucrécio, Da Natureza das Coisas (tradução de Luís Manuel Gaspar
Cerqueira), Lisboa, Relógio D'Água, 2015, pp. 89 e 93.
71 Quadrelli, no original. Traduziu-se o termo por «partículas», seguindo a

tradução inglesa de Fisch & Bergin, pelo íàcto de ser este o termo que o próprio
Regius usa («particulae») na sua Philosophia natura/is (livro I, cap. III).

87
cómodo para aqueles que sujeitam o mundo ao fado. E
deste seu juízo se regozijou Vico tempos depois, quando,
regressado a Nápoles, e tendo sabido que a física de Regius
era a de Descartes, se começaram a cultivar as Meditações
metafísicas deste último. Porque Descartes, ambiciosís-
simo de glória, se por um lado aspirou a ficar célebre entre
os professores de Medicina com a sua física engendrada
com um desenho semelhante àquela de Epicuro, fazendo
com que fosse apresentada pela primeira vez nas cátedras
de uma muito celebrada universidade da Europa, como é a
de Utreque, por um físico médico, 72 por outro lado esboçou
depois algumas primeiras linhas de metafísica à maneira
de Platão, onde se industriou a estabelecer dois géneros
de substâncias, uma extensa, a outra inteligente, 73 para
demonstrar a existência de um agente superior à matéria
que não seja matéria, como é o «Deus» de Platão- para um
dia reinar também entre os claustros, nos quais tinha sido
introduzida desde o século XI a metafísica de Aristóteles.
Pois conquanto, por aquilo que este filósofo lhe conferiu de
seu, ela tivesse servido anteriormente aos ímpios averroís-
tas, por ter como raiz a de Platão, a religião cristã moldou-a
facilmente aos sentimentos pios do seu Mestre; daí que, tal
como essa reinou com a [metafísica] platónica desde o iní-
cio até ao século XI, do mesmo modo reinou daí em diante

72 Veja-se a nota 69.


73 Referência à res extensa e à res cogitans, dicotomia que, para Vico, con-
siste num oportunismo da parte do «arnbiciosíssimo» Descartes. Este pretenderia
que a sua metafísica fosse bem recebida pelos teólogos cristãos, compensando
assim uma física de inspiração epicurista.

88
com a metafísica aristotélica. E, com efeito, no momento
em que a física cartesiana se celebrava com maior ardor,
Vico, regressado a Nápoles, por várias vezes o ouviu [este
juízo] do senhor Gregorio Caloprese, 74 grande filósofo car-
tesiano, a quem Vico foi muito caro. No entanto, no que
diz respeito à unidade das suas partes, a filosofia de Des-
cartes não forma de todo um sistema, pois à sua física con-
viria uma metafísica que estabelecesse um só género de
substância corpórea, operante, como se disse, por necessi-
dade, tal como àquela de Epicuro convinha um só género
de substância corpórea, operante por acaso. Do mesmo
modo, Descartes convém com Epicuro em que todas as
infinitas e variadas formas dos corpos são modificações da
substância corpórea, que, substancialmente, não são nada.
Nem a sua metafísica fruteou qualquer moral acomodada
à religião cristã, pois não só não a constituem as poucas
coisas que esparsamente escreveu sobre o assunto (e o tra-
tado sobre as Paixões 75 serve mais a medicina do que a
moral), como nem o padre Malebranche soube edificar a
partir dela um sistema de moral cristã, e os Pensamentos
de Pascal mais não são do que luzes esparsas. E nem da
sua metafísica resulta uma lógica própria, uma vez que
Arnauld 76 elabora a sua a partir daquela de Aristóteles. E
não serve sequer a própria medicina, já que os anatomis-

74 Gregorio Caloprese (1650-1715), pedagogo e figura de destaque da filo-

sofia e da cultura napolitanas entre finais do século XVII e inícios do século


XVIII.
75 Les passions de l'âme , que Descartes publicou em Paris em 1649.

76 Veja-se a nota 50.

89
tas não encontram o homem de Descartes na natureza, 77
tanto assim que, comparada com a de Descartes, forma um
sistema mais consistente a filosofia de Epicuro, que não
sabia nada de matemática. Por todas estas razões, que Vico
reconheceu, muito se regozijou ele mais tarde, pois se a
leitura de Lucrécio o aproximou da metafísica platónica, a
de Regius mais ainda o fez convencer-se dela.
Estas físicas eram para Vico como que distracções
das meditações severas que dedicava aos metafísicas pla-
tónicos, e permitiam-lhe que a sua fantasia se expandisse
na prática do poetar, em que amiúde se exercitava através
da elaboração de canções, durando ainda o seu hábito ini-
cial de compor em língua italiana, mas com a atenção de
introduzir nelas luminosas ideias latinas de acordo com a
conduta dos melhores poetas toscanos. Assim, com base
no panegírico que Cícero dedicou a Pompeu Magno no
discurso sobre a Lei Manília, 78 de que não existe exemplar
mais grave neste género em toda a língua latina, Vico, imi-
tando as «três irmãs» de Petrarca, 79 urdiu um panegírico
dividido em três canções, ln !ode dell 'elettor Massimiliano
di Baviera, que vêm publicadas na Scelta de' poeti ita-
liani do senhor Lippi, impressa em Lucca no ano de 1709.
E na colectânea do senhor Acampara dos Poeti napoletani,
impressa em Nápoles no ano de 1701, vem publicada outra

77 L 'Hornme, tratado escrito entre 1632 e 1633, publicado postumamente

em 1662, em edição latina, e em 1664, em edição ífancesa.


" Cícero, Pro lege Manilia, ou De irnperio Cn. Pornpei (66 a.C.).
79 As canções 71 , 72 e 73 de Petrarca: «Perché la vi ta e breve», «Gentil mia

donna, i' veggio» e «Poi che per mio destino».

90
canção por ocasião das bodas da senhora D. Ippolita Can-
telmi,80 dos duques de Popoli, com D. Vincenzo Carafa,
duque de Bruzzano e agora príncipe de Roccella, a qual
compôs cotejando o airosíssimo carme de Catulo Vesper
adest, 81 e o qual, como leu depois, já antes Torquato Tasso
tinha imitado numa canção sobre o mesmo assunto. 82 Vico
regozijou-se por não ter tido conhecimento disso antes,
em parte pela reverência que tinha por tão grande poeta,
mas também porque se tivesse sabido que já o tinham
precedido não teria tido a ousadia, nem retirado prazer,
de elaborar aquela canção. Além destas, sobre a ideia do
«Grande Ano» de Platão, 83 a partir da qual Virgílio tinha
redigido a doutíssima écloga Sicelides musae, 84 compôs
Vico uma outra canção por ocasião das bodas do senhor
duque da Baviera com Teresa Real da Polónia, 85 que vem
no primeiro volume da Scelta de' poeti napoletani do
senhor Albano, impressa em Nápoles no ano de 1723.

80 Ippolita Cantelmi Stuart (1677-1754), nobre napolitana, poetisa árcade e

protectora de homens de letras; foi madrinha de uma das filhas de Vico.


' 1 O carme 62 de Catulo.

" O epitalâmio «Già ii nottumo sereno» de Torquato Tasso.


" A teoria cosmológica do magnus annus, com base numa concepção cir-
cular do tempo, é apresentada no Timeu, 39 b-d. De acordo com esta teoria, as
catástrofes recorreriam em grandes intervalos de tempo, devidos à declinação
ou ao desvio dos corpos planetários (Timeu, 22 d), após os quais o universo se
renovaria. O momento da reunião de todos os planetas constituiria o «tempo
perfeito», ou seja, o fim do «Grande Ano».
" O incipit da Écloga IV de Virgílio.
ss Maximiliano II Emanuel de Wittelsbach (1662-1726), duque e eleitor da
Baviera, contraiu matrimónio com Teresa Cunegonda Sobieska (1676-1730)
em 1694.

91
Com este saber e com esta erudição, Vico foi recebido
em Nápoles como um forasteiro na própria pátria, onde foi
encontrar a física de Descartes no auge da sua celebração
por parte dos homens de letras notáveis. A física de Aristó-
teles, por si só mas mais ainda pelas alterações excessivas
feitas pelos escolásticos, tinha-se tomado já uma fábula.
A metafísica- que, no século XVI, tinha colocado no nível
mais sublime da literatura figuras como Marsilio Ficino,
Pico della Mirandola, ambos os Agostinhos (Nifo e Steu-
chio), Giacopo Mazzoni, Alessandro Piccolomini, Matteo
Acquaviva, Francesco Patrizi, 86 e que tinha contribuído
de modo tal para a poesia, a história e a eloquência que
a Grécia inteira, na época em que foi mais douta e elo-
quente, parecia ter ressurgido em Itália- era considerada
digna apenas de estar encerrada nos claustros; e a Platão
só se ia buscar alguma passagem para uso poético, ou para
ostentar uma erudição fundada na memória. Condenava-
-se a lógica escolástica e aceitava-se que, em lugar dela, se
repusessem os Elementos de Euclides. A medicina, devido
às frequentes mudanças dos sistemas de física, tinha caído

"" Autores do Renascimento italiano. Entre os que quase dispensam apre-


sentação encontram-se Marsilio Ficino (1433-1499), filósofo neoplatónico,
tradutor e comentador de Platão e de Plotino; Giovanni Pico della Mirandola
(1463-1494), autor do célebre discurso De hominis dignitate (1486); Jacopo
Mazzoni (1548-1598), intelectual e professor de Filosofia em Pisa, autor do Dis-
corso in difesa della Comedia dei divino poeta Dante (1473); Alessandro Pic-
colomini (1508-1578), astrónomo e dramaturgo; Francesco Patrizi (1529-1597),
também ele filósofo do neoplatonismo renascentista, comentador de Proclo. Os
outros autores, porventura menos estudados, são Agostino Nifo (1473-1538),
professor de Filosofia, averroísta e comentador de Aristóteles; Agostino Steuco
(1497-1548), filósofo e grande conhecedor de hebraico; Andrea Matteo Acqua-
viva de Aragão (1458-1529), intelectual napolitano, tradutor de Plutarco.

92
no cepticismo, e os médicos tinham começado a professar
a acatalepsia, ou seja, a impossibilidade de compreender
a verdade acerca da natureza das doenças, e a praticar a
epoché, ou seja, a suspensão do assentimento para emi-
tir juízos e aplicar remédios eficazes. 87 E a [medicina]
galénica, que, cultivada anteriormente com a filosofia e a
língua gregas, tinha dado tantos médicos incomparáveis,
foi votada a um sumo desprezo devido à grande ignorância
dos seus sequazes nesta época. 88 Os intérpretes antigos do
direito civil tinham caído da sua alta reputação na acade-
mia, ascendendo ao lugar deles os eruditos modernos, com
grande prejuízo do foro; porque se estes são necessários
para a crítica das leis romanas, da mesma forma os primei-
ros o são para a tópica legal nas causas de equidade dúbia.
O doutíssimo senhor D. Carlo Buragna89 tinha reintroduzido
a maneira louvável de poetar; mas tinha-a restringido com
demasiada estreiteza à imitação de Giovanni della Casa,90
não extraindo nada de delicado ou de robusto das fontes
gregas ou latinas, nem dos límpidos riachos das rimas de

87 O termo «acatalepsia» remonta a Pirro e aos cépticos gregos; designa. em

medicina, a incerteza no diagnóstico e no prognóstico. O termo epoché, do grego


snoxÍJ, designa a suspensão do juízo, como explica Vico.
88 Vico alude provavelmente à obra de Leonardo Di Capua (1617-1695),

Parere de! signor Lionardo di Capoa divisato in otto ragionamenti ne ' quali
partitamente narrandosi !'origine e '!progresso delta medicina, chiaramente
l'incertezza della medesima sifa manifesta, publicada em Nàpoles em 1681, de
orientação galileana, em polémica contra os defensores das teorias galenistas.
" Cario Buragna (1632-1679), poeta e filósofo, autor de um comentàrio ao
Timeu, epígono e tradutor latino do poeta Giovanni della Casa.
90 Giovanni della Casa (1503-1556), arcebispo de Benevento, poeta floren-

tino célebre pelas rimas petrarquistas e pelo manual de boas maneiras Galateo,
overo de' costumi, publicado postumamente em 1558.

93
Petrarca ou das grandes torrentes das canções de Dante.
O eruditíssimo senhor Leonardo Di Capua91 tinha restabe-
lecido a boa língua toscana em prosa, toda vestida de graça
e de airosidade; mas, apesar destas virtudes, não se ouvia
um discurso que fosse animado pela sabedoria grega no
modo de manejar os costumes, ou robustecido pela gran-
deza romana no modo de mover os afectos. E, finalmente,
o latiníssimo senhor Tommaso Comelio, 92 com os seus
puríssimos Progymnasmata, tinha apavorado os engenhos
dos jovens mais do que os tinha encorajado a cultivar a
língua latina daí em diante. 93 De modo que, por todas estas
razões, Vico bendisse o facto de não ter tido mestre por
cujas palavras tivesse jurado, 94 e agradeceu àquelas flores-
tas, entre as quais, guiado pelo seu bom génio, fizera a
maior parte dos seus estudos sem se apegar a nenhuma
seita, e não na cidade, onde, como modas de vestuário, se
mudava de gosto literário a cada dois ou três anos. Assim,
a negligência generalizada da boa prosa latina determi-
nou-o a cultivá-la em maior medida. E, ao saber que Cor-

9 1 Leonardo Di Capua encabeçou, com Tommaso Cornelio, a Academia dos

lnvestiganti. Foi poeta, dramaturgo e defensor do purismo toscano e neopetrar-


quista contra o barroquismo dominante em poesia, matéria sobre a qual teorizou.
92 Tommaso Cornelio (1614-1684), médico, matemático e autor dos Pro-

gymnasmata physica, publicados em 1663, em Veneza, e em 1688, em Nápoles,


onde discute os progressos da ciência. Foi um dos responsáveis pela difusão em
Nápoles das teorias de Gassendi, Galileu e Descartes.
93 Para uma visão panorâmica da situação aqui descrita por Vico, veja-se

o capítulo «Uno sguardo alla vita letteraria napolitana negli ultimi decenni del
Seicento», inFausto Nicolini, La giovinezza di Giambattista Vico, pp. 51-57.
94 Afirmação que remete para a sentença de Horácio «nullius addictus iurare

in verba magistri» (Ep. I, 1, 14). «Nullius in verba» é, aliás, a divisa da Royal


Society.

94
nelio não era muito competente na língua grega, nem se
tinha ocupado da toscana, e pouquíssimo ou nada se tinha
deleitado com a crítica - talvez por ter reconhecido que
os poliglotas, pela multiplicidade de línguas que sabem,
nunca usam nenhuma na perfeição, e que os críticos não
obtêm das línguas as virtudes porque se detêm sempre a
assinalar os defeitos dos escritores - Vico decidiu aban-
donar o grego, em que tinha feito progressos a partir dos
Rudimenta de Gretser, 95 que aprendera na segunda classe
dos jesuítas, bem como a língua toscana (razão pela qual
também nunca quis aprender a francesa), 96 e entregar-se
inteiramente à latina. Ao observar ainda que, com o apa-
recimento dos léxicos e dos comentários, a língua latina
tinha entrado em decadência, resolveu nunca mais pegar
nesse tipo de livros (com excepção apenas do Nomencla-
tore de Adriano Junius) 97 para a compreensão dos termos
técnicos, e ler os autores latinos sem o auxílio de notas,
entrando no espírito desses por meio de uma crítica filosó-
fica, tal como tinham feito os escritores latinos do século
XVI, entre os quais admirava Giovio, 98 pela eloquência,

95 Jacob Gretser (1562-1625), filósofo e jesuíta alemão, autor dos Rudi-

menta linguae graecae pro iTrfima et pro media Schola Grammatices (1593),
redigidos para os alunos daquelas escolas.
% Como se verá, há provas para duvidar da veracidade desta asserção. Em

todo o caso, veja-se como, em De ratione, VII, Vico critica o excesso de abstrac-
ção da língua francesa e o fraco serviço que esta presta à eloquência.
97 Adriano Junius (1512-1575), erudito holandês, autor do célebre Nomen-

clator omnium rerum propria nomina variis linguis explicata indicans.


9 ' Paolo Giovio (1483-1552), historiógrafo humanista e estudioso de retó-

rica clássica, bispo de Nocera, foi autor das obras Historiarum sui temporis libri
XLV, Elogia de viris illustribus e, em italiano, do Dialogo dell'imprese militari
e amorose (1555), que deverá ter sido uma fonte para a Ciência nova de Vico.

95
e, dentro do pouco que nos deixou, Navagero, pela deli-
cadeza e pelo seu gosto tão elegante, que tanto nos faz
lamentar a grande perda que foi a da sua História. 99
Por estas razões, Vico vivia na sua pátria não só
como um estrangeiro mas também como um desconhe-
cido. Conquanto fosse detentor de tais sentimentos, de tais
práticas solitárias, ele não deixava de venerar de longe,
como numes da sabedoria, os anciãos que se distinguiam
pelo seu conhecimento das letras, invejando com verda-
deiro pesar os outros jovens que tinham a sorte de con-
versar com eles. Foi com esta disposição, necessária aos
jovens para que façam progressos e não permaneçam toda
a vida, por estarem apegados à palavra de mestres mali-
ciosos ou ignorantes, satisfeitos com um saber ao gosto
e à medida de outrem, que ele chegou primeiramente ao
conhecimento de dois homens notáveis. O primeiro foi
o padre teatino D. Gaetano D' Andrea, que mais tarde
morreu bispo santíssimo, irmão dos senhores Francesco
e Gennaro D'Andrea, 100 ambos de nome imortal. Aquele,
numa conversa que teve com Vico numa livraria sobre a

99 Andrea Navagero (1483-1529), historiador, poeta e diplomata veneziano,

autor de uma História da Itália que não foi acabada.


100 Gaetano D'Andrea (?-1702), nomeado bispo de Monopoli em 1699, era

o menos influente dos três irmãos. Gennaro D' Andrea ( 163 7-171 O) e Francesco
D' Andrea (1625-1698) foram advogados e representantes de uma nova classe de
intelectuais napolitanos, próxima dos interesses da burguesia; o último frequen-
tava o círculo dos Investiganti e foi autor das memórias Avvertimenti ai nipoti
(1696), que circulavam manuscritas em Nápoles e que Vico terá com certeza
lido. Sobre a interessante figura de Francesco D' Andrea, cíf. Vittor Ivo Campa-
rato, «Retorica forense e ideologia nel giovane D'Andrea», in BCSVVI, 1976,
pp. 41-75.

96
história das colecções de cânones, perguntou-lhe se era
casado. Respondendo-lhe Vico que não o era, o padre
perguntou-lhe se queria tornar-se teatino; tendo-lhe este
respondido que não possuía antepassados nobres, aquele
replicou que tal não teria qualquer importância, pois tê-lo-
-ia ajudado a obter uma dispensa de Roma. Aí, sentindo-se
Vico sob obrigação perante a honra tamanha que o padre
lhe concedia, saiu-se com esta: que os seus pais eram
pobres e velhos, desprovidos de qualquer outra esperança.
E, embora o padre replicasse que, para as suas famílias, os
homens de letras eram mais um fardo do que um auxílio,
Vico rematou que talvez no seu caso acontecesse o contrá-
rio. Então o padre acabou por dizer: «Não é esta a vossa
vocação.» O outro foi o senhor D. Giuseppe Lucina, 101
homem de imensa erudição em grego, latim e toscano,
e em todas as espécies do saber humano e divino. Este
tinha posto à prova quanto valia o jovem e lamentava-se
com gentileza de não se fazer melhor uso dele na cidade,
quando se lhe ofereceu uma boa ocasião de o promover:
o senhor D. Niccolo Caravita, 102 que, pela agudeza do
engenho, pela severidade do juízo e pela pureza do estilo

101 Giuseppe Lucina foi poeta, membro da Academia de Medinacoeli e

sequaz de Leonardo di Capua.


102 Niccolà Caravita (1647-1717), advogado, professor de Direito, car-

tesiano, antijesuíta e membro da Academia de Medinacoeli, promovia salões


literários, frequentados pelo então jovem Vico, que ganharam a reputação de
neles se propagarem ideias ateístas. O seu tratado Nullumjus romani pontificis in
Regnum neapolitanum ( 1707), colocado no Índice do Santo Oílcio em 1714, foi
em 1790 traduzido para italiano por Leonor da Fonseca Pimentel (1752-1799),
conhecida popularmente como «a portuguesa de Nápoles».

97
toscano, era advogado principal nos tribunais e grande
protector dos letrados, quis fazer uma colectânea de tex-
tos em louvor do senhor conde de Santostefano, vice-
-rei de Nápoles, 103 em ocasião da sua partida. Esta foi a
primeira [colectânea] que, pela nossa memória, saiu em
Nápoles, e devia estar impressa dentro do prazo estreito
de poucos dias. Então, Lucina, que gozava entre todos
de suma autoridade, propôs-lhe Vico para o discurso que
tinha de preceder os outros textos; e, quando recebeu de
Caravita o encargo, passou-o a Vico, mostrando-lhe que
era uma oportunidade de se fazer conhecer favoravelmente
a um protector das letras que ele mesmo comprovara ser
muito influente- coisa de que o jovem não podia estar mais
desejoso. E assim, uma vez que tinha renunciado às coisas
toscanas, elaborou um discurso em latim para aquela colec-
tânea, na tipografia do próprio Giuseppe Roselli, no ano de
1696. 104 A partir desse momento, começou a crescer a sua
fama de letrado; e, entre outros, o senhor Gregorio Calo-
prese, por nós já honrosamente mencionado, costumava
chamar-lhe, tal como se dizia de Epicuro, «autodidacta», 105
ou seja, o mestre de si mesmo. Mais tarde, nas Pompas
fúnebres de Dona Catarina de Aragão, mãe do senhor

103 O espanhol Francisco de Benavides ( 1640-1716) foi vi ce-rei do reino de

Nápoles de 1687 a 1695.


104 A antologia de Caravita intitula-se Vari componimenti in lode dell'ecce-

llentissimo signore don Francesco Benavides conte di Santostefano, grande in


Spagna, viceré del regno di Napoli. O discurso de Vico acerca do regresso de
Benavides a Espanha intitula-se Oratio pro auspicatissimo in Hispaniam reditu
Francisci Benavidii.
105 Autodidascalo, no original.

98
duque de Medinacoeli, vice-rei de Nápoles, para as quais o
eruditíssimo senhor Carlo Rossi escreveu o discurso grego
e D. Emmanuel Cicateli, célebre orador sagrado, o italiano,
Vico escreveu o discurso latino, que se imprimiu junta-
mente com os outros textos num volume in-folio publicado
no ano de 1697. 106
Pouco tempo depois, a cátedra de Retórica, que ren-
dia não mais do que cem escudos por ano, a que acrescia
outra soma, menor e incerta, proveniente dos direitos pelas
certidões com as quais um professor habilita os alunos
para os estudos jurídicos, vagou devido à morte do pro-
fessor, 107 e o senhor Caravita disse a Vico que concorresse
illico a essa cátedra. Ele recusou, uma vez que, poucos
meses antes, uma outra candidatura que tinha apresentado
para o lugar de secretário da cidade não tinha tido sucesso .
Então, o senhor D. Niccolà, repreendendo-o com gentileza
por ele ser um homem de pouco espírito (como efectiva-
mente o é a respeito das coisas que concernem às utilida-
des), disse-lhe que se ocupasse apenas de preparar a lição,
que ele mesmo lhe trataria da candidatura. Vico concor-
reu com uma lição de uma hora sobre as primeiras linhas

106 O volume, que apresentava a data de 1697, ano da morte de Catarina

de Aragão, saiu em 1699 também dos prelos de Giuseppe Rosselli, curado por
Federico Pappacoda. Cario Rossi e Emanuel e Cicatelli, participantes na referida
colectânea, bem como Vico, vieram a fazer parte da Academia de Medinacoeli,
fundada em 1698 pelo filho de Catarina de Aragão, Luigi della Cerda (1660-
-1711), o vice-rei de Nápoles que sucedeu a Benavides.
10 7 Giuseppe Toma, o professor de Retórica cuja morte em 1697 fez vagar

a cátedra á qual se candidatou Vico, participara com ele na colectânea de poesia


dedicada a Benavides.

99
do longuíssimo capítulo de Fábio Quintiliano De statibus
caussarum, 108 limitando-se à etimologia e à distinção de
«estado». E foi essa lição, repleta de erudição e de crítica
grega e latina, que lhe valeu a obtenção da cátedra com um
número abundante de votos. 109
Entretanto, o senhor duque de Medinacoeli, vice-rei,
tinha restituído às belas-letras um brilho que nunca mais se
vira em Nápoles desde os tempos de Afonso de Aragão, no
ao fundar uma academia pensada para as cultivar, com-
posta pela fina-flor dos letrados, que lhe tinha sido pro-
posta por D. Federico Pappacoda, cavalheiro napolitano
de bom gosto em letras e grande admirador daqueles, e por
D. Niccolo Caravita. Pelo que, uma vez que a reputação da
literatura mais culta tinha começado a crescer sumamente
entre a nobreza, Vico, impelido sobretudo pela honra de
ter sido incluído entre tais académicos, consagrou-se por
inteiro a professar as letras humanas.
Costuma dizer-se que a fortuna é amiga dos jovens,
porque estes elegem o seu modo de vida a partir das artes ou
profissões que florescem durante a juventude deles. Mas,
como é da natureza do mundo mudar de gostos de ano a
ano, eles encontram-se mais tarde, em velhos, competentes
num saber que já não apraz e que, por conseguinte, já não

108 Quintiliano, lnstitutio oratoria XII, 2, 26.


109 No mesmo ano em que recebe a cadeira de Retórica na Universidade de
Nápoles, 1699, Vico casa com Teresa Caterina Destilo, de quem teve oito filhos.
11 0 Afonso (V) de Aragão (1396-1458), O Magnânimo , ascendeu ao trono

do reino de Nápoles em 1416 e atraiu para a sua corte grandes humanistas e


sábios.

100
dá frutos. Deu-se então de repente uma grande revolução
na cena literária em Nápoles, pois, quando se acreditava
que a melhor literatura do século XVI se iria restabele-
cer aí por muito tempo, a partida do vice-rei fez surgir
uma nova ordem de coisas que a arruinou completamente
em pouquíssimo tempo, e contra todas as expectativas.111
Pelo que aqueles excelentes letrados, que dois ou três
anos antes diziam que a metafísica devia estar encerrada
nos claustros, começaram a cultivá-la com todo o entu-
siasmo, já não a partir das obras de Platão e de Platino,
como Marsilio Ficino e outros - razão por que, no século
XVI, tantos grandes letrados floresceram - mas a partir
das Meditações de René Descartes, às quais se seguiu o
seu livro Do método, 112 onde ele desaprova os estudos das
línguas, dos oradores, dos historiadores e dos poetas, e,
exaltando somente as suas metafísica, física e matemática,
reduz a literatura ao saber dos árabes, que em todos estes
três domínios tiveram tantos homens doutíssimos, como
Averróis em metafísica, e tantos astrónomos e médicos
famosos, que nos deixaram, numa e noutra ciência, até
os termos necessários para as expor. Por isso, aos enge-
nhos, conquanto doutos e grandes, que de início se tinham
ocupado inteiramente, e durante muito tempo, de físicas

11 1 A partida do vice-rei de Nápoles, em 1702, coincide com a dissolução

da Academia de Medinacoeli. A este respeito, veja-se o capítulo «La formazione


di Vico e l' accademia di Medinacoeli», in Mario Agrimi, Ricerche e discussioni
vichiane, Editrice Itinerari, 1984, pp. 59-86.
11 2 O Discurso do método é publicado em 1637, enquanto as Meditationes

de primaphilosophia são publicadas em 1641, em latim, e em 1647, em francês.

101
corpusculares, de experiências e de máquinas, as Medi-
tações de Descartes deviam parecer demasiado abstrusas
para que pudessem apartar dos sentidos as suas mentes e
nelas meditar; de modo que o elogio com que se distinguia
um grande filósofo era: «Este entende as Meditações de
Descartes». Nessa altura, Vico frequentava assiduamente
a casa do senhor Caravita, que era um reduto de homens
de letras, juntamente com o senhor D. Paolo Daria. Foi
com este grande cavalheiro, e também grande filósofo, que
Vico pôde começar a reflectir sobre metafísica. 113 Aquilo
que Daria considerava sublime, grande e novo em Des-
cartes, Vico reconhecia como velho e vulgar entre os pla-
tónicos. Mas, nos raciocínios de Daria, ele observava uma
mente que amiúde se alumiava de clarões fulgurantes de
divindade platónica, pelo que, desde aí, permaneceram
ligados por uma leal e nobre amizade.
Até este momento, Vico admirava apenas dois sábios
acima de quaisquer outros, que foram Platão e Tácito, pois
este, com uma mente metafísica incomparável, contempla
o homem tal como é, e Platão tal como ele deve ser. E, da
mesma forma que, com a sua ciência universal, Platão se
estende por todos os aspectos da honestidade que tornam
o homem sábio do ponto de vista das ideias, Tácito desce
a todos os conselhos da utilidade para que, entre os infini-
tos acontecimentos irregulares da malícia e da fortuna, o

11 3 Paolo Mattia Daria (1667-1746), matemático e cartesiano devoto,

converter-se-à mais tarde à filosofia platónica. Foi coetâneo e amigo de Vico,


dedicando-lhe este o Liber metaphysicus.

102
homem de sabedoria prática se conduza da melhor forma.
E a admiração que, deste ponto de vista, tinha por estes
dois grandes autores era em Vico um esboço do desenho
a partir do qual elaborou depois uma história ideal eterna
sobre a qual transcorresse a história universal de todos os
tempos, e a qual conduzisse, segundo certas propriedades
eternas das coisas civis, os surgimentos, estados e decadên-
cias de todas as nações. Pelo que o homem sábio deveria
ser formado quer por sabedoria recôndita, 114 como é o de
Platão, quer por sabedoria vulgar, como é o de Tácito.
Até que finalmente veio a conhecer Francis Bacon, senhor
de Verulâmio, de sabedoria vulgar e recôndita igualmente
incomparáveis, que foi um homem universal na teoria e
na prática em simultâneo, bem como um filósofo raro e
um grande homem de Estado da Inglaterra. Deixando de
parte os outros livros dele, cujos assuntos outros trataram
tão bem ou melhor, nos que compunham De augmentis
scientiarum Vico apreendeu que, tal como Platão é o prín-
cipe do saber grego e os gregos não têm um Tácito, assim
falta um Bacon aos latinos e aos gregos; apreendeu que
um homem tinha conseguido ver por si só o que faltava
descobrir ou desenvolver no mundo das letras, bem como
a quantidade e a qualidade dos defeitos que deviam ser
corrigidos no que já existia; e apreendeu que, sem mani-
festar inclinação por uma profissão particular ou pela
própria seita, à excepção de poucas coisas que ofendiam

114 Sapienza riposta, no original (veja-se a nota 51).

103
a religião católica, [Bacon] tinha feito justiça a todas as
ciências, sempre com o propósito de que cada uma confe-
risse algo de seu à soma que constitui a república universal
das letras. E, propondo-se a ter sempre diante dos olhos
estes três autores singulares quando meditasse ou escre-
vesse, Vico foi assim aperfeiçoando as suas obras de enge-
nho, que levaram depois à última, De universi iuris uno
principio, etc. 115
Por essa razão, nos discursos que proferiu por ocasião
da abertura dos estudos na Universidade Régia, teve sem-
pre por hábito propor argumentos universais oriundos da
metafísica para aplicação à vida civil. E sob este aspecto
tratou ou dos fins dos estudos, como nos primeiros seis, ou
do método de estudar, como na segunda parte do sexto e em
todo o sétimo. Os primeiros três tratam principalmente dos
fins que convêm à natureza humana, os outros dois princi-
palmente dos fins políticos, e o sexto do fim cristão. 116

11 5 O nome completo da obra é De uno universi iuris principio etfine uno,

que foi publicada em 1720 e é o primeiro dos três tomos que constituem o Direito
universal.
116 Os textos originais destes seis discursos de abertura do ano académico,

aos quais a tradição crítica se tem referido como orazioni inaugura/i, não chega-
ram até nós. Existe, no entanto, um volume que Vico deixou inédito, intitulado
De studiorumfinibus naturae humanae convenientibus, que só veio a público na
segunda metade do século XIX, e onde se incluíam os seis discursos referidos,
juntamente com aquele que foi publicado autonomamente em 1709, De nostri
temporis studiorum ratione. No entanto, os textos publicados nesse volume não
correspondem exactamente ao resumo que Vico aqui apresenta. Por outro lado,
Fausto Nicolini dá razões fundadas para defender que algumas das datas dos dis-
cursos indicadas no texto autobiográfico não estão correctas. Assim, o terceiro
discurso teria sido proferido não em 1701 mas em 1702; o quarto discurso teria
sido proferido não em 1704 mas em 1703; e o sexto discurso teria sido proferido
não em 1707 mas em 1706. Veja-se, a este respeito, o medaglione intitulado «Le

104
O primeiro discurso, proferido a 18 de Outubro de
1699, propõe que cultivemos a força da nossa mente divina
em todas as suas faculdades, com base neste argumento:
«Suam ipsius cognitionem ad omnem doctrinarum orbem
brevi absolvendum maximo cuique esse incitamento». 117
E prova que a mente humana é, por analogia, o deus do
homem, como Deus é a mente do Todo. Mostra as mara-
vilhas das faculdades da mente tomadas separadamente,
como sejam os sentidos, a fantasia, a memória, o engenho
ou o raciocínio, e como realizam ao mesmo tempo, com
forças de rapidez, facilidade e eficácia divinas, muitíssi-
mas coisas e coisas muito diversas. Mostra que as crian-
ças, desprovidas de afeições perversas e de vícios, aos três
ou quatro anos dão por si a ter aprendido já, divertindo-
-se, o léxico inteiro das suas línguas nativas. Mostra que
Sócrates, mais do que ter trazido a filosofia moral do céu,
elevou até lá o nosso espírito, e aqueles que, pelas suas
invenções, foram erguidos ao céu entre os deuses são o
engenho de cada um de nós. Mostra que é de pasmar que
existam tantos ignorantes quando, tal como o fumo é con-
trário aos olhos e o mau cheiro ao nariz, assim é contrário à
mente o não saber, o ser enganado, o cair em erro, pelo que
a negligência deve ser sumamente vituperada. Mostra que
só não somos doutíssimos em tudo porque não o queremos

cosiddette Orazioni inaugurali e ii De studiorum ratione», in Giambattista Vico,


Autobiografia (a cura di Fausto Nicolini), Società Editrice II Mulino, 1992, pp.
227-234.
117 «0 conhecimento de si mesmo é para cada um de máximo incentivo para

percorrer rapidamente o orbe inteiro dos saberes».

105
ser, quando, bastando apenas a eficácia do nosso querer, e
transportados pela inspiração, fazemos coisas que, depois
de feitas, admiramos não como obra nossa mas de um
deus. E conclui, portanto, que se um jovem não percorreu
em poucos anos todo o orbe das ciências, tal aconteceu ou
porque não o quis ou, se o quis, por falta de professores ou
de uma boa ordem de estudos, ou por dar aos seus estudos
outro fim que não o de cultivar uma espécie de divindade
do nosso espírito.
O segundo discurso, proferido no ano de 1700, trata
de que alimentemos o espírito com as virtudes, seguindo as
verdades da mente, segundo este argumento: «Bostem hosti
infensiorem infestioremque quam stultum sibi esse nemi-
nem».118 E faz ver este universo como uma grande cidade,
na qual Deus condena os estultos a fazer uma guerra contra
si mesmos, por uma lei eterna concebida desta forma: «Eius
legis tot sunt digito omnipotenti perscripta capita, quot sunt
rerum omnium naturae. Caput de homine recitemos. Homo
mortali corpore, aeterno animo esto. Ad duas res, verum
honestumque, sive adeo mihi uni, nascitor. Mens verum
falsumque dignoscito. Sensus menti ne imponunto. Ratio
vitae auspicium, ductum imperiumque habeto. Cupiditates
rationi parenta ... Bonis animis artibus laudem sibi parato.
Virtute et constantia humanam felicitatem indipiscitor.
Si quis stultus, sive per malam malitiam sive per luxum
sive per ignaviam sive adeo per imprudentiam, secus faxit,

118 «Nenhum inimigo é mais hostil e adverso para o seu inimigo do que o

estulto para si mesmo».

106
perduellionis reus ipse secum bellum gerito» .119 E oferece
uma descrição trágica da guerra. Por esta passagem se vê
claramente que, já desde essa altura, se agitava no espírito
de Vico o argumento que depois desenvolveu no Direito
universal.
O terceiro discurso, proferido no ano de 1701, é
como que um apêndice prático aos dois discursos prece-
dentes, com base neste argumento: «A litteraria societate
omnem malam fraudem abesse oportere, si vos vera non
simulata, solida non vana, eruditione ornari studeatis». 120
Demonstra que, na república das letras, é necessário viver
com justiça, e condenam-se os críticos complacentes que,
com iniquidade, recebem os tributos do erário das letras;
os obstinados das seitas que o impedem de aumentar; e
os impostores que defraudam as suas contribuições a esse
erário.
O quarto discurso, proferido no ano de 1704, propõe
este argumento: «Si quis ex litterarum studiis maximas
utilitates easque semper cum honestate coniunctas per-

119 «Desta lei foram tantos os capítulos escritos pelo dedo omnipotente

quantas são as naturezas de todas as coisas. Recitemos o capítulo sobre o homem.


Que o homem seja mortal no corpo e imortal na alma. Que nasça orientado para
duas coisas, o verdadeiro e o honesto, ou seja, para Mim só. Que a sua mente
distinga o verdadeiro e o falso. Que os sentidos não se imponham à mente. Que
a razão detenha o comando, a direcção e o domínio da sua vida. Que os desejos
obedeçam à razão ... Que granjeie os louvores através das boas qualidades da sua
alma. Que alcance a felicidade humana pela virtude e pela constãncia. Se algum
estulto, seja por maldade perversa, ou por devassidão, ou por preguiça, ou até
por imprudência, agir diferentemente, culpado do crime de alta traição, que seja
condenado a íàzer a guerra contra si mesmo.»
120 «Deve ser afastada da sociedade literária todo o tipo de fraude desonesta,

se desejais uma erudição verdadeira e não simulada, sólida e não vã.»

107
cipere velit, is gloriae sive communi bono erudiatur». 121
É dirigido contra os falsos doutos que estudam tendo em
vista somente a própria utilidade, pela qual procuram mais
parecer doutos do que sê-lo, e os quais, uma vez conse-
guida a utilidade a que se propuseram, se tornam pre-
guiçosos e fazem uso de péssimas artes para preservar a
sua reputação de doutos. Tinha Vico proferido já metade
deste discurso quando chegou o senhor D. Fel ice Lanzina
Ulloa, 122 presidente do Sacro Conselho, o Catão dos minis-
tros espanhóis, em honra de quem, com grande presença
de espírito, Vico retomou de modo mais breve o que já
tinha dito e juntou-o àquilo que faltava dizer. Semelhante
viveza de engenho empregara Clemente XI, quando era
abade, ao falar em italiano na academia dos Umoristi em
honra do cardeal de Estrées, seu protector; foi assim que
teve início, sob Inocêncio XII, a boa fortuna que o levou
ao Sumo Pontificado. 123
No quinto discurso, proferido no ano de 1705, Vico
propõe: «Respublicas tum maxime belli gloria inclytas
et rerum imperio potentes, quum maxime litteris fio-

121 «Se alguém quiser retirar dos estudos Iiterários os maiores proveitos,

sempre ligados á honestidade, deve ser instruído para a glória, ou seja, para o
bem comum.»
122 Felice Lanzina Ulloa (1619-1703), nascido em Salamanca, magistrado,

juiz no tribunal da Vicaria de Nápoles e presidente desde 1668 do Sacro Conse-


lho. Uma vez que Lanzina morre em 1703, é possível que o discurso inaugural
a que se reporta Vico tenha sido proferido noutra data, ou que o episódio diga
respeito a um outro discurso, anterior a 1704.
123 O papa Clemente XI- Giovanni FrancescoAibani- (1649-1721), mem-

bro da famosa Academia dos Umoristi, ascendeu ao pontificado em 1700. César


d'Estrées (1628-1714), bispo de Laon, foi eleito cardeal em 1672.

108
ruerunt». 124 O que é vigorosamente provado com boas
razões, e confirmado depois com esta contínua sucessão
de exemplos. Na Assíria surgiram os Caldeus, os pri-
meiros sábios do mundo, e aí se estabeleceu a primeira
grande monarquia. 125 Quando a Grécia exibia uma sabe-
doria nunca antes vista, a monarquia da Pérsia foi der-
rubada por Alexandre. Roma estabeleceu o império do
mundo sob Cipião, que tanto sabia de filosofia, eloquência
e poesia, como o demonstram as inimitáveis comédias de
Terêncio, que aquele elaborou com o seu amigo Lélio e
as quais, estimando-as indignas de serem publicadas sob
o seu grande nome, fez publicar sob aquele pelo qual são
conhecidas (que com alguma coisa de seu deve ter con-
tribuído ). 126 A monarquia romana estabeleceu-se decerto
com Augusto, em cuja época resplandeceu em Roma toda
a sabedoria da Grécia, com o esplendor da língua romana.
O mais luminoso reino de Itália brilhou sob Teodorico,
aconselhado por homens como Cassiodoro. 127 Com Carlos
Magno ressurgiu o Império Romano na Alemanha, pois
as letras, com efeito já mortas nas cortes reais do Oci-
dente, recomeçaram a aparecer na sua com homens como

124 «Os Estados foram tanto mais ilustres em glória militar e mais poderosos

nos seus domínios quanto mais as letras floresceram.»


125 Cfr. Sn44, § 55, onde Vico estabelece que os Caldeus foram os primeiros

sábios das nações gentias.


126 Vico volta a fazer referência à alegada autoria de Cipião Africano das

comédias de Terêncio em Sn44, § 967.


127 Teodorico, o Grande (454?-526), rei dos Ostrogodos. Flávio Magno

Aurélio Cassiodoro (c. 485-c. 583), político e intelectual, autor de obras como
Historia gothica, Historia ecclesiastica triparti/a e Institutiones divinarum et
saecularium litterarum.

109
Alcuíno. 128 Foi Homero que fez Alexandre, pois este ardia
por se conformar em valor com o exemplo de Aquiles, e
Júlio César despertou para os grandes feitos seguindo o
exemplo do mesmo Alexandre; pelo que estes dois gran-
des capitães, de entre os quais ninguém ousou dizer qual
fosse o maior, são alunos de um herói de Homero. 129 Dois
cardeais, Jiménez e Richelieu, ambos grandíssimos filó-
sofos e teólogos, e um deles, além disso, grande orador
sagrado, 130 traçaram os planos das monarquias de Espa-
nha, o primeiro, e de França, o segundo. O Turco fundou
um grande império sobre a barbárie, seguindo porém o
conselho de Sérgio, um sábio e ímpio monge cristão, que
deu ao estúpido Maomé a lei sobre a qual este o fundou. 131
E, enquanto os gregos, começando pela Ásia e depois em
toda a parte, tinham caído na barbárie, os árabes cultiva-
ram a metafisica, a matemática, a astronomia e a medicina;
e graças a este saber de doutos, conquanto não fosse o da

128 Alcuíno de York (735-804), erudito e teólogo, director da escola de York,

reorganizou, a convite de Carlos Magno, a Escola Palatina, tornando-se um dos


protagonistas da chamada renascença carolíngia.
129 Cfr. Plutarco, Vida de César e Vida de Alexandre.

13 ° Francisco Jiménez de Cisneros (1436-1517), franciscano , cardeal


e inquisidor, foi regente de Espanha desde 1516. Armand Jean du Plessis de
Richelieu (1585-1642), cardeal, diplomata e político, foi primeiro-ministro de
Luís Xlll desde 1624 e fundador da Academia Francesa. É Richelieu o «grande
orador sagrado» a que Vico se refere.
13 1 Vico sustém a hipótese de que um monge cristão (um «Sérgio, sábio

e ímpio») tenha contribuído para a íi.mdação da doutrina muçulmana. Sobre a


fonte de Vico nesta passagem- um comentário ao Corão de Ludovico Marracci,
Alcorani textus universos in latinum translatus; appositis unicuique capiti notis,
et refittatione (1698) -, veja-se o artigo de Antonio Garzya, <<Vico, l'empio Ser-
gio e lo stupido Maometto», in BCSV, X, 1980, pp. 138-143.

110
humanidade mais culta, despertaram para uma suma glória
de conquistas homens como Almançor, 132 todos bárbaros e
selvagens, e permitiram que o Turco fundasse um império
em que se proibiram todas as letras. Porém, se não fosse
pelos pérfidos cristãos, primeiro gregos e depois latinos,
que lhes ministraram de tempos a tempos as artes e os con-
selhos da guerra, este vasto império ter-se-ia arruinado por
st mesmo.
No sexto discurso, proferido no ano de 1707, Vico
trata este argumento, que é simultaneamente sobre o fim
dos estudos e sobre a ordem de estudar: «Corruptae homi-
num naturae cognitio ad universum ingenuarum artium
scientiarumque absolvendum orbem invitat incitatque, ac
rectum, facilem ac perpetuum in iis perdiscendis ordinem
proponit exponitque» .133 Aqui, ele leva os ouvintes a entrar
numa meditação sobre si mesmos, sobre o facto de que
o homem, como punição pelo pecado, está separado do
homem pela língua, pela mente e pelo coração: pela lín-
gua, que frequentemente não ajuda e frequentemente trai
as ideias por meio das quais o homem quereria, mas não
pode, unir-se ao homem; pela mente, pela variedade de
opiniões nascidas da diversidade dos gostos dos sentidos,
em que o homem não concorda com outro homem; e, final-

132 Almançor, ou Al-Mansur («o vitorioso»), cognome de Abu 'Amir

Muhammad (939-1 002), protagonista de grandes campanhas militares contra os


reinos cristãos e chefe político do califado de Córdova desde 976 até à sua morte.
133 «0 conhecimento da natureza corrupta do homem convida e incita a

completar o orbe inteiro das artes liberais e das ciências, e propõe e expõe a
ordem correcta, fácil e perpétua pela qual devemos aprendê-las.»

111
mente, pelo coração, pelo qual, por estar corrompido, nem
sequer com a uniformidade dos vícios concilia o homem
com o homem. A partir daí, Vico prova que a pena da nossa
corrupção se deve corrigir com a virtude, com a ciência
e com a eloquência, pois só por meio destas três coisas
pode o homem sentir o mesmo que outro homem. Isto no
que diz respeito ao fim dos estudos. Naquilo que concerne
à ordem de estudar, prova que, uma vez que as línguas
foram o meio mais potente para estabelecer a sociedade
humana, os estudos devem começar pelas línguas, pois
todas dependem da memória, faculdade em que é admi-
ravelmente forte a infância. A idade das crianças, débil
em raciocínio, não se regula senão com exemplos que, de
modo a comoverem, devem ser aprendidos com viveza de
fantasia, em que é maravilhosa a infância; razão pela qual
devem as crianças dedicar-se à leitura da história, tanto a
fabulosa como a verdadeira. A idade das crianças é dotada
de razão, mas não possui matéria sobre a qual reflectir:
devem então adestrar-se na arte do bom raciocínio com as
ciências das medidas, que requerem memória e fantasia
e, ao mesmo tempo, lhes esgotam a corpulenta faculdade
imaginativa, a qual, robusta como é, é a mãe de todos os
nossos erros e misérias. Na primeira juventude prevale-
cem os sentidos, que arrastam consigo a mente pura: que
se dediquem as crianças à física, que leva à contemplação
do universo dos corpos e necessita da matemática para a
ciência do sistema do mundo. Que se disponham depois,
pelas vastas e corpulentas ideias físicas e pelas delicadas

112
ideias das linhas e dos números, a compreender o infinito
abstracto em metafísica por meio da ciência do ente e do
uno, graças à qual, conhecendo os jovens a sua mente, se
disponham a reconhecer o seu espírito, e, em consequência
das verdades eternas, vejam que está corrompido, para que
possam dispor-se a emendá-lo naturalmente com a moral,
numa idade em que já tiveram alguma experiência do mal
a que podem conduzir as paixões, que na infância são vio-
lentíssimas. E quando aprenderem que a moral pagã não
é, por natureza, suficiente para amansar e domar a filáu-
cia, ou seja, o amor-próprio, e aprenderem por experiência
que, em metafísica, o infinito é mais certo do que o finito,
a mente do que o corpo, Deus do que o homem- pois este
não sabe como se move, como sente, como conhece-, que
se disponham então, com o intelecto humilhado, a receber
a teologia revelada, desçam à moral cristã em consequên-
cia disso e, assim purgados, se encaminhem finalmente
para a jurisprudência cristã.
Vê-se claramente, pelo primeiro discurso que se refe-
riu, por todos os que se lhe seguiram e sobretudo por este
último, que desde essa altura se agitava no espírito de Vico
um certo assunto novo e grande, que unisse num só prin-
cípio todo o saber humano e divino. Mas, como todos os
assuntos que tinha tratado estavam demasiado afastados
desse, ele regozijou-se por não ter dado a lume aqueles dis-
cursos, estimando que não se deveria sobrecarregar com
mais livros a república das letras, que já não se sustém sob
tamanha carga, e para a qual só se deveriam trazer livros

113
de descobertas importantes e de utilíssimas invenções. No
entanto, no ano de 1708, tendo a Universidade Régia deci-
dido fazer uma sessão solene de inauguração dos estudos
e dedicá-la ao rei, 134 com um discurso a ser proferido na
presença do cardeal Grimani, vice-rei de Nápoles, 135 e que
por isso se devia dar à estampa, Vico teve a feliz opor-
tunidade de meditar sobre um argumento que trouxesse
alguma descoberta nova e útil ao mundo das letras, o que
teria sido um desejo digno de se contar entre aqueles que
Bacon exprime no seu Novum organum scientiarum. 136
O argumento gira em torno das vantagens e desvantagens
da nossa maneira de estudar, em comparação com aquela
dos antigos em todas as espécies do saber, e quais são as
desvantagens da nossa e com que meios se poderiam evitar,
e por que vantagens dos antigos se poderiam compensar
aquelas desvantagens que não se podem evitar - de modo
que uma universidade inteira dos nossos dias fosse, por
exemplo, um só Platão com tudo aquilo que possuímos a
mais do que os antigos. Isto para que todo o saber humano
e divino reinasse por toda a parte com um espírito único e
constasse de todas as suas partes, para que as ciências des-
sem as mãos uma à outra, sem que nenhuma constituísse

134 Carlos de Habsburgo (1685-1740), cujas tropas austríacas tomaram o

reino de Nápoles durante a guerra de sucessão espanhola, tomou-se imperador


em 1711, com o nome de Carlos VI.
135 Vincenzo Grimani ( 1655-171 0), cardeal desde 1697 e vi ce-rei de Nápo-

les de 1708 a 1710.


136 Referência à lista de desiderata que Bacon apresenta no apêndice a De

dignitate et augmentis scientiarum («Novus orbis scientiarum sive desiderata»).


No proémio a De antiquissima, Vico declara que o estudo filosófico da lingua-
gem deveria incluir-se no conjunto dos desiderata de Bacon.

114
impedimento para a outra. A dissertação sam no mesmo
ano, in-12, dos prelos de Felice Mosca. 137 Esse argumento
é, com efeito, um esboço da obra que mais tarde compôs,
De universi iuris uno principio, etc., de que é apêndice De
constantia iurisprudentis. 138
Uma vez que Vico teve sempre em mira adqui-
rir méritos na universidade no campo da jurisprudên-
cia, mas por outra via que não a de a ensinar aos jovens,
nessa dissertação focou-se no arcano das leis dos antigos
jurisconsultos romanos e fez um ensaio de um sistema de
jurisprudência que interpretasse as leis, ainda que priva-
das, segundo o aspecto das normas do governo romano.
A respeito dessa parte, o monsenhor Vincenzo Vidania, 139
director dos estudos régios, homem muito instruído nas
antiguidades romanas, especialmente no que se refere às
leis, e que nessa altura se encontrava em Barcelona, fez,
por meio de uma dissertação honrosa, uma objecção a
propósito de algo que Vico tinha estabelecido - a saber,
que os antigos jurisconsultos romanos teriam sido todos
patrícios - à qual este respondeu então em privado, e
mais tarde publicamente na obra De universi iuris, etc.,
em cujas notas se pode ler a dissertação do ilustríssimo
Vidania, juntamente com as respostas de Vico. Contudo,

137 A obra De nostri temporis studiorum ratione é publicada em 1709. Felice

Mosca, tipógrafo napolitano, foi amigo de Vico e impressor das suas obras desde
De ratione até à reedição de 1730 da Ciência nova.
138 Cfr. De ratione, cap. XI.

13 9 O eclesiástico e estudioso espanhol Diego Vincenzo Vidania foi capelão

maior do reino de Nápoles e director da universidade.

115
o senhor Hendrik Brenckmann, 140 doutíssimo juriscon-
sulto holandês, comprouve-se muito nas considerações
de Vico acerca da jurisprudência; e, enquanto residia em
Florença a reler as Pandectas florentinas, falou daque-
las de modo bastante elogioso com o senhor Antonio
Rinaldi, 141 que viera de Nápoles para defender a causa de
um magnata napolitano. Saída a lume esta dissertação,
acrescida daquilo que não se pôde dizer na presença do
cardeal vice-rei (para não abusar do tempo que tão neces-
sário é para os príncipes), deu ela ocasião a que o senhor
Domenico d' Aulisio, 142 professor da cadeira vespertina
de Direito, homem universal nas línguas e nas ciências
(o qual, até esse momento, não via Vico com bons olhos na
universidade, não por culpa sua, mas por ele ser amigo dos
letrados partidários de Di Capua contra d 'Aulisio, numa
grande contenda literária que tinha estalado em Nápoles,
e que não vem aqui ao caso relatar), 143 num dia de exercí-
cio público de concursos de cátedras, chamasse e convi-
dasse Vico a sentar-se junto dele. Disse-lhe que tinha lido

140 Hendrik Brenckmann (1680-1736). estudioso de direito romano e advo-

gado, dedicou-se à recomposição de fragmentos das Pandectas, deslocando-se


a Florença em 1709 para trabalhar nas de Justiniano, conhecidas como Digesto.
141 Antonio Rinaldi (1685-?), advogado napolitano que, por encargo de

Vico, entregou a H. Brenckmann, em Florença, uma cópia do De ratione.


142 Domenico d' Aulisio (1639-1717), erudito napolitano, jurisconsulto e

professor de Direito Civil (sucessor de Felice Aquadia). Um dos seus alunos foi
Pietro Giannone.
143 A contenda, cujo conteúdo Vico opta por não desvendar, remontava a

1681, com d' Aulisio a atacar Di Capua a propósito de uma teoria deste acerca
da natureza do arco-íris. Assim se explica a antipatia de d' Aulisio, contràrio aos
Investiganti, em relação a Vico, amigo de Di Capua e membro desta academia.
A polémica, que durou quase dez anos, incluiu mesmo duelos e bastonadas.

116
«aquele livrinho» (devido a um conflito de precedência
com o professor catedrático de Direito Canónico, ele não
intervinha nas inaugurações), 144 o qual «estimava ser obra
de um homem que não se limitava a folhear índices, e do
qual cada página poderia dar a outros matéria para elabo-
rar amplos volumes». Um gesto tão cortês e um juízo tão
benigno da parte de um homem de mais a mais áspero de
maneiras e parco em louvores demonstraram a Vico uma
singular grandeza de espírito para consigo. E desde aquele
dia contraiu com ele uma estreitíssima amizade, que se
prolongou até à morte daquele grande homem de letras.
Entretanto, a leitura do tratado de Bacon de Veru-
lâmio De sapientia veterum, mais engenhoso e sábio do
que verdadeiro, incitou Vico a procurar os princípios de
tal sabedoria para além das fábulas dos poetas. Movido,
ao fazê-lo, pela autoridade de Platão (que, no Crátilo,
tinha ido investigá-los nas origens da língua grega), e
impelido pela disposição, em que tinha já entrado, de lhe
começarem a desagradar as etimologias dos gramáticos,
dedicou-se a procurar tais princípios nas origens das pala-
vras latinas, quando sem dúvida o saber da seita itálica
floresceu, na escola de Pitágoras, muito tempo antes e
mais profundamente do que aquele que depois começou
na própria Grécia. 145 Da palavra coe/um, que significa ao

144 O professor de Direito Danónico com quem Domenico d'Aulisio, pro-

fessor de Direito Civil, tinha tido um conflito por razões de «precedência» era
Nicola Capasso (veja-se a nota 35).
145 Referência a De antiquissirna (veja-se a nota 16). Até ao resto deste

parágrafo, Vico apresenta um resumo do Liber physicus, que, segundo Fausto


Nicolini, teria sido escrito ainda antes do Liber metaphysicus (cfr. Giambattista
Vico, Autobiografia, pp. 235-246).

117
mesmo tempo «buril» e «grande corpo do ar», ele conjec-
turava que os egípcios, com os quais estudara Pitágoras,
tivessem talvez sido da opinião de que o instrumento com
o qual a natureza tudo faz era a cunha, e que era isto que
os egípcios queriam significar com as suas pirâmides. 146
E os latinos chamaram à natureza «engenho», cuja prin-
cipal propriedade é a agudeza, de maneira que a natureza
forma e deforma todas as formas com o buril do ar; 147 e
formaria a matéria cavando-a ligeiramente, e deformá-
-la-ia penetrando-a com o buril, por meio do qual o ar
devasta tudo; e a mão que movia este instrumento seria
o éter, cuja mente todos criam que fosse Júpiter. E os lati-
nos designaram o «ar» por anima, como princípio a partir
do qual o universo obtém o movimento e a vida, sobre o
qual operaria, como o masculino no feminino, o éter, que,
introduzindo-se no animal, foi chamado animus pelos lati-
nos.148 Daí deriva aquela distinção comum usada em latim:
«anima vivimus, animo sentimos»; de modo que a alma,
ou o ar introduzindo-se no sangue, seria no homem o prin-

146 Ao identificar o termo latino coe/um com o grego KO\Àov, «concavidade»

e «buril», ou «cinzel», Vico, no disperso Liber physicus, conjecturava que a


natureza (o «grande corpo do ar») operasse, segundo os egípcios, como opera o
buril - o qual, dada a sua forma pontiaguda, seria representado nas pirâmides.
A dedução de Vico depende da afinidade fonética entre o termo latino e o termo
grego, que na verdade possuem significados distintos. A fonte directa desta parte
do resumo de Vico, de acordo com o qual a matriz do pensamento pitagórico
estaria na cosmologia egípcia, é o próprio Bacon (cfr. On the Wisdom of the
Ancients, XII, «Coelum, or the Origin ofThings»).
147 Cír. De antiquissima, VII, § III (De ingenio ). A analogia é feita com base

no carácter penetrante (em sentido físico) da agudeza.


148 Lucrécio (cfr. De rerum natura III, 136-140) usa os termos anima e ani-

mus como sinónimos, ligando-se ambos ao termo grego anemos («vento»).

118
cípio da vida, e o éter introduzido nos nervos seria o prin-
cípio da sensação. E, na proporção em que o éter é mais
activo do que o ar, assim os espíritos animais seriam mais
móveis e rápidos do que os vitais; e tal como sobre a alma
opera o ânimo, assim sobre o ânimo operaria aquela que
os latinos designam por mens, que é equivalente ao «pen-
samento», donde quedou aos latinos o dito mens animi, e
este pensamento ou mente seria enviado aos homens por
Júpiter, que é a mente do éter. 149 Pois, se isto fosse assim, o
princípio operante de todas as coisas da natureza deveriam
ser corpúsculos de forma piramidal; e o éter condensado é
certamente o fogo. Foi acerca destes princípios que Vico
teve um dia uma conversa em casa do senhor D. Lucia di
Sangro 150 com o senhor Daria, em que observou que talvez
os efeitos do íman que os físicos consideram estranhos e
lhes causam admiração sejam, se eles o ponderarem, bas-
tante comuns no fogo. E são três os fenómenos magnéticos
mais surpreendentes: a atracção do ferro; a comunicação
ao ferro da virtude magnética; e a direcção para o pólo.
E não há coisa mais comum do que a matéria combustível
gerar, a uma distância proporcional, o fogo e, ao afiar-se, a
chama, que nos comunica a luz, e dirigir-se a chama para o
vértice do seu céu. De modo que, se o íman fosse rarefeito
como a chama e a chama densa como o íman, este não

149 Cfr. De antiquissima, V, De animo et anima, e a secção «Física poética»

do Livro II da Ciência nova (especialmente: Sn44, §§ 695 e 696).


150 Lucia di Sangro era tio paterno do célebre Raimondo di Sangro, príncipe

de Sansevero (171 0-1771 ), cientista e alquimista a quem Vico dedicou, em 1735,


dois sonetos por ocasião do seu matrimónio com D. Carlotta Gaetani.

119
se dirigiria para o pólo mas para o seu zénite, e a chama
dirigir-se- ia para o pólo e não para o seu vértice: dar-se-á o
caso de o íman se dirigir para o pólo por ser aquela a parte
mais alta do céu em direcção à qual ele se poderia elevar?
Isto observa-se claramente nos ímanes colocados na ponta
de agulhas um tanto longas, que, quando se dirigem para
o pólo, são vistos a tentar erguer-se em direcção ao zénite.
De modo que o íman, observado sob este aspecto, e deter-
minando os viajantes o lugar onde ele se ergueria mais alto
do que em qualquer outro, poderia talvez dar a medida
certa das larguras 151 das terras, que tanto se vai procurando
para conduzir a geografia à sua perfeição. 152

151 Larghezze, no original.


152 Vico faz aqui uma curiosa analogia entre a chama que se ergue em direc-
ção ao vértice daquilo a que, de acordo com a física aristotélica-ptolemaica, se
acreditava ser a esfera do fogo e o comportamento da agulha magnética que
aponta para o norte. Em 1600, no mesmo ano em que Giordano Bruno fora
condenado à morte pela fogueira, William Gilbert (1544-1603), físico e cientista
inglês, tinha publicado De magnete, obra onde discutiu a propriedade de os cor-
pos magnetizados se alinharem na direcção norte-sul (sendo essa a razão pela
qual as bússolas apontavam para norte), concluindo que a Terra se comportava
como um grande íman. Sabemos, por outro lado, pelo próprio Vico, que ainda se
encontravam difundidos ecos da interpretação animista do fenómeno do magne-
tismo, entendido em termos de atracção ou simpatia (que remonta, na filosofia
ocidental, a Tales de Mileto), de acordo com a qual o íman «atrai» o ferro: veja-
-se na Ciência nova a asserção axiomática (dignidade XXXII) segundo a qual
«os homens ignorantes das causas naturais que produzem as coisas, quando não
as podem explicar nem mesmo por coisas similares, atribuem às coisas a sua
própria natureza, como o vulgo, por exemplo, diz que o íman está enamorado
do ferro» (Sn44, § 180), assim como a observação de que «quando admiram os
estupendos efeitos [affetti, na edição original, corrigida como effetti nas edições
de Nicolini e de Battistini] do íman no ferro, mesmo nesta idade de agora, de
mentes mais avisadas e até eruditas pelas filosofias, saem-se com esta: que o
íman tem uma simpatia oculta pelo ferro» (Sn44, § 377). Quanto ao uso do íman
pela geografia, Nicolini defende que Vico teria intuído a importãucia da incli-
nação da agulha magnética (isto é, o ãugulo que forma em relação ao plano

120
Este pensamento agradou sumamente ao senhor
Daria, pelo que Vico se dedicou a expandi-lo ao serviço
da medicina. 153 Com efeito, os mesmos egípcios, que
representaram a natureza através da pirâmide, tiveram
uma medicina mecânica particular, aquela do «lasso» e do
«estreito», que o doutíssimo Prospero Alpino 154 adornou
com sumo conhecimento e erudição. 155 Vendo também que
nenhum médico tinha feito uso do calor e do frio tal como
os define Descartes - sendo o frio um movimento de fora
para dentro, e o calor, pelo contrário, um movimento de
dentro para fora - , Vico foi levado a fundar com base nessa
ideia um sistema de medicina. Talvez as febres ardentes
fossem causadas pelo ar nas veias que vai do centro do
coração à periferia e que alarga, mais do que é conveniente
para estar bem de saúde, os diâmetros dos vasos sanguí-
neos obstruídos na parte oposta, externa; e, pelo contrário,
talvez as febres malignas fossem um movimento do ar nos

horizontal, ou magnetic dip) quer para a geodesia quer para o cálculo da longi-
tude - o que talvez seja ir um pouco longe demais (cfr. Autobiografia, p. 243).
153 Vico apresenta aqui um resumo de De aequilibrio corporis animantis,

curto texto redigido presumivelmente pouco depois de 171 O, como apêndice ou


corolário ao Liber physicus. Foi publicado em finais do século XVIII, mas perdeu-
-se no século XIX, não antes de ter sido lido por Vincenzo Cuoco (1770-1823),
que afirmava que algumas das suas proposições se assemelhavam aos E/ementa
medicinae (1780) do tisico escocês John Brown (cfr. Autobiografia, p. 245).
154 Prospero Alpino (1553-1617), médico e botânico, autor das obras De

Medicina aegyptiorum (1591) e Medicina metodica (1611).


155 De acordo com a teoria fisiológica dos processos patológicos, segundo a

qual a vida do corpo era concebida como um complexo de fenómenos mecânicos


e materiais, as doenças teriam como origem um status laxus (lasco, em italiano),
ou seja, um excesso de relaxamento ou lassidão, ou um status strictus (stretto),
ou excessiva contracção ou estreitamento, dos vasos sanguíneos.

121
vasos sanguíneos de fora para dentro, que alarga, para além
daquilo que convém à boa saúde, os diâmetros dos vasos
obstruídos na parte oposta, interna. Pelo que, faltando ao
coração, que é o centro do corpo animado, o ar necessário
para que este se mova tanto quanto convenha à boa saúde,
e debilitando-se o movimento do coração, o sangue pode
coagular, que é no que consistem principalmente as febres
agudas. O que talvez seja aquele quid divini que Hipócra-
tes dizia causar tais febres. 156 Concorrem para o apoiar
conjecturas razoáveis oriundas da natureza inteira, uma
vez que o frio e o calor contribuem igualmente para a gera-
ção das coisas: o frio para a germinação das sementes dos
cereais, a geração de vermes nos cadáveres e a de outros
animais nos lugares húmidos e escuros; o frio excessivo,
à semelhança do fogo causa gangrenas, e na Suécia as
gangrenas curam-se com gelo. Concorrem também para
o apoiar os sintomas, nas febres malignas, do tacto frio
e dos suores coliquativos, 157 que evidenciam um grande
alargamento dos vasos excretores; nas febres ardentes, o
tacto abrasador e áspero, significando a aspereza que os
vasos se corrugaram e estreitaram demasiado nas suas
extremidades. Seria então que quedou aos latinos a redu-
ção de todas as doenças ao género supremo ruptum por ter
existido em Itália uma antiga medicina que estimava que

156 Referência ao tratado Da doença sagrada, incluído no Corpus Hippo-

craticum.
157 Suores causados pela fluidificação de partes sólidas devido a processos

degenerativos.

122
todas as enfermidades começariam por um vício das partes
sólidas e conduziriam finalmente àquilo que os mesmos
latinos designam por corruptum? 158
Assim, pelas razões exibidas naquele livrinho, 159 que
depois veio a lume, Vico aventurou-se a estabelecer esta
física com base numa metafísica própria. De acordo com
o mesmo procedimento que usou para as origens das locu-
ções latinas, purgou os pontos de Zenão 160 da exposição
adulterada que Aristóteles fez deles, e mostrou que os pon-
tos zenonistas eram a única hipótese de descer das coisas
abstractas às corpóreas, tal como a geometria é a única via
para ir cientificamente das coisas corpóreas às abstractas,
de que constam os corpos. E, sendo o ponto definido como
aquilo que não tem partes (o que equivale a fundar um prin-
cípio infinito de extensão abstracta), tal como o ponto, que
não é extenso, faz por meio de um excurso 161 uma extensão
da linha, do mesmo modo deve existir uma substância infi-
nita que, por meio de uma espécie de excurso seu, que seria
a geração, dê forma às coisas finitas. E, tal como Pitágoras,
que pretende que o mundo conste de números, que são de
certa forma como linhas mas mais abstractos - pois o um,

158 Cfr. Sn44. § 698. Vico aplica à medicina as teorias e o método etimoló-

gico de De antiquissima: a hipótese da existência de uma remota escola médica


dos povos pré-itálicos, influenciada pela medicina egípcia, segundo a qual a
degeneração de tecidos era consequência da ruptura simultânea das partes sóli-
das que compõem o corpo, seria atestada pelo significado do termo latino cor-
ruptum (cum + ruptum).
159 O Liber metaphysicus, isto é, De antiquissima.

160 Veja-se a nota 15.

161 Escorso, no original, no sentido de «prolongamento» ou «extensão».

123
que não é um número, gera o número e está presente indi-
visivelmente em cada número ímpar (razão pela qual Aris-
tóteles disse que as essências são como os números, pois
dividi-las é destruí-las) - assim o ponto, que está igual-
mente sob linhas de extensão desigual (pelo que a diagonal
e o lado do quadrado, por exemplo, que quanto ao resto
são linhas incomensuráveis, se cortam nos mesmos pon-
tos), é uma hipótese de uma substância inextensa que está
igualmente sob corpos desiguais e igualmente os sustém. 162
A esta metafísica deveria assim seguir-se a lógica dos estói-
cos, de acordo com a qual estes aprendiam a raciocinar
por meio do sorites, que era uma maneira própria de eles
argumentarem quase como se usassem um método geomé-
trico,163 e também a física, que postula como princípio de
todas as formas corpóreas a cunha, da mesma maneira que
a primeira figura composta que se gera em geometria é o
triângulo, tal como a primeira figura simples é o círculo,
símbolo de Deus perfeitíssimo. E, assim, daí se extrairia
facilmente a física dos egípcios, que interpretaram a natu-
reza como sendo uma pirâmide, que é um sólido de quatro
faces triangulares, e com ela concordaria a medicina egíp-
cia do lasso e do estreito. Sobre esta última escreveu Vico

162 Cfr. De antiquissima IV,§ I (De punctis metaphysicis et conatibus).


163 Ao Liber metaphysicus deveria seguir-se um apêndice sobre a lógica, ao
qual Vico faz referência nesta passagem. Fausto Nicolini conjectura que a tese
desenvolvida nesse apêndice (que, à semelhança do Liber physicus, se perdeu)
vem a reaparecer na Ciência nova (cfr. Sn44, § 499), num dos capítulos da sec-
ção sobre a lógica poética, onde Vico afirma que o sorites de Zenão encontra
correspondência no método dos filósofos modernos (referindo-se aqui a Descar-
tes) , subtilizando os engenhos em vez de os aguçar. Cfr. Autobiografia, p. 243.

124
um livro de poucos fólios, intitulado De aequilibrio corpo-
ris animantis, 164 que enviou ao senhor Domenico d' Aulisio,
doutíssimo como nenhum outro em matéria de medicina.
E sobre isso teve também conversas frequentes com o
senhor Lucantonio Porzio, 165 o que lhe granjeou da parte
deste um grande apreço aliado a uma estreita amizade, que
cultivou até à morte deste último filósofo italiano da escola
de Galileu, o qual costumava dizer aos seus amigos que as
coisas meditadas por Vico, para usar a sua própria expres-
são, «o intimidavam». Mas só a Metafisica 166 foi publicada
em Nápoles, in-12, no ano de 1710, por Felice Mosca, e
dedicada ao senhor D. Paolo Doria, como primeiro livro
do De antiquíssima italorum sapientia ex linguae latinae
originibus eruenda. A este livro está ligada uma disputa
entre os jornalistas de Veneza e o autor, e para ele foram
publicadas, também por Mosca, uma Resposta no ano de
1711 e uma Réplica no ano de 1712; disputa, essa, que
ambas as partes afrontaram de modo honroso, e que se
concluiu com muita cortesia. 167 Mas a insatisfação com
as etimologias gramaticais que se tinha começado a fazer
sentir em Vico era um indício daquilo que o levou mais

164 Veja-se a nota 153.


165 Lucantonio Porzio (1639-1724), médico, aluno de Tommaso Cornelio e
professor de Anatomia na Universidade de Nápoles, contestou a ciência tradicio-
nal; foi membro das academias dos Investiganti e de Medinacoeli; presidiu em
Roma à Academia Fisico-Matematica; viveu ainda em Veneza e na Alemanha.
166 O Liber metaphysicus.

167 Em 1711, foram publicadas no Giornale de' letterati d'Italia (t. V, art.

VI, pp. 119-130 e t. VIII, art. X, pp. 309-338) várias objecções anónimas ao De
antiquissima. A polémica concluiu-se com uma nota desse jornal de 1712 (t. XII,
art. XIII, pp. 417-418).

125
tarde, nas últimas obras, a descobrir as origens das línguas,
extraindo-as de um princípio de natureza comum a todas,
sobre o qual estabeleceria os princípios de uma etimolo-
gia universal que fornecesse as origens de todas as línguas
mortas e vivas. E a pouca satisfação que lhe dava o livro de
Verulâmio, 168 em que este se dedica a procurar a sabedoria
dos antigos a partir das fábulas dos poetas, foi outro sinal
daquilo que levou Vico, também nas suas últimas obras, a
descobrir princípios da poesia diferentes daqueles que os
gregos, os latinos e os outros depois deles tinham até então
aceitado. A partir destes, estabelece outros princípios de
mitologia, de acordo com os quais as fábulas eram unica-
mente portadoras dos significados históricos das primeiras
antiquíssimas repúblicas gregas, e com elas explica toda a
história fabulosa das repúblicas heróicas. 169
Pouco tempo depois, teve a honra de receber do
senhor O. Adriano Carafa, duque de Traetto, de cuja ins-
trução se tinha ocupado durante muitos anos, a solicitação
de escrever a vida do marechal Antonio Carafa, seu tio. 170

168 Francis Bacon, De sapientia veterum (1609).


169 Cfr. Sn44, § 198, onde Vico afirma que as primeiras fábulas continham
verdades civis sobre os primeiros povos.
170 Adriano Antonio Carafa (1696-1765), sobrinho de Antonio Carafa, foi

aluno de Vico. Em ocasião do seu matrimónio com Teresa Borghese, em 1719,


Vico curou uma colectânea intitulada Vari componimenti per /e nozze degl'illus-
triss. et eccellentiss. Signori D. Adriano Carafa e D. Teresa Borghesi. Antonio
Carafa (1642-1693), marechal e general, ficou célebre durante a campanha mili-
tar que conduziu, entre 1683 e 1689, contra o império otomano e os rebeldes
magiares que se insurgiram contra a Áustria pelo controlo da Transilvânia. Em
sua honra, Vico escreveu a canção fúnebre ln morte de! Maresciallo Antonio
Carafa (1693) e a obra De rebus gestis Antonii Caraphaei libri quatuor (1716),
a que se refere nesta passagem da Vida .

126
Vico, que cultivava um ânimo veraz, aceitou o encargo
por receber do duque uma quantidade desmedida de
documentos bons e verdadeiros, que ele conservava. Tendo
em conta o tempo requerido pelas tarefas diurnas, restava-
-lhe apenas a noite para trabalhar nessa obra, em que empre-
gou dois anos: um, a preparar os seus comentários a partir
daqueles documentos muito esparsos e confusos; o outro,
a compor a história. Durante todo esse tempo foi atormen-
tado por crudelíssimos espasmos hipocondríacos no braço
esquerdo. E, como qualquer um podia vê-lo, durante todo
o tempo em que a escreveu, de noite, não teve jamais
outra coisa em cima da sua mesa a não ser os comentários,
como se estivesse a escrever na língua materna, no meio
dos estrépitos domésticos 171 e muitas vezes conversando
com os amigos. Apesar de tudo, trabalhou nessa obra com
a dose certa de honra pelo assunto, de reverência pelos
príncipes e de justiça para com a verdade. A obra saiu
magnífica dos prelos de Felice Mosca, num volume in
quarto, no ano de 1716, e foi o primeiro livro dado à
estampa em Nápoles à maneira dos que se publicavam na
Holanda. 172 Enviada pelo duque ao Sumo Pontífice Cle-
mente XI, este, num breve em que a agradeceu, atribuiu-lhe
o louvor de «história imortal»; ademais, a obra granjeou a
Vico a estima e a amizade de um ilustríssimo letrado de

171 Em 1715, ano que dedicou à composição da biografia de Antonio Carafa,

Vico tinha três filhos: Luisa, de 15 anos, Ignazio, de 9, e Angela Teresa, de 6.


172 Provàvel referência às famosas edições Elzevier.

127
Itália, o senhor Gianvincenzo Gravina, 173 com o qual culti-
vou uma estreita correspondência até à sua morte.
Ao preparar-se para escrever esta vida, Vico viu-se na
obrigação de ler De iure belli ac pacis de Hugo Grócio. 174
E nele achou o quarto autor a juntar aos outros três que
se propusera ter sempre diante de si. Com efeito, Platão
adorna, mais do que confirma, a sua sabedoria recôndita
com a sabedoria vulgar de Homero; Tácito espalha a sua
metafísica, a sua moral e a sua política pelos factos, que
através dos tempos lhe chegam esparsos, confusos e des-
providos de sistema; Bacon vê que todo o saber humano
e divino que existia à época devia ser complementado
naquilo que lhe faltava e emendado naquilo que já possuía,
porém, em relação às leis, não se elevou o suficiente, com
os seus cânones, para abranger o universo das cidades, o
curso de todos os tempos e a extensão de todas as nações. 175
Hugo Grócio, porém, reúne num sistema de direito univer-
sal toda a filosofia e a filologia, incluindo ambas as partes
desta última- quer a história das coisas, fabulosa ou certa,
quer a história das três línguas, hebraica, grega e latina,
que são as três línguas doutas da Antiguidade que chega-

173 Gianvincenzo Gravina ( 1664-1718),jurista e letrado, fundador das acade-

mias da Arcadia e dos Quirini; frequentava com Vico a casa de Niccoló Caravita.
174 Hugo Grócio (1583-1654), jurista, teólogo e jusnaturalista holandês, é o

quarto autor a que Vico atribui a qualidade de mestre. A sua o braDe iure bel/i ac
pacis foi publicada pela primeira vez em Paris, em 1625.
175 Nesta síntese mitificada, Platão simboliza, para Vico, a filosofia que ainda

não se «acertou» com a filologia, Tácito a filologia que ainda não foi examinada
pela filosofia, e Bacon o profeta que intui o estabelecimento de uma enciclopédia
das ciências, não a realizando, porém, devido às limitações do seu empirismo
(representado, aqui, pela ausência de uma visão universalizante das leis).

128
ram até nós pela mão da religião cristã. E, de seguida, Vico
embrenhou-se ainda mais nesta obra de Grócio, quando
lhe foi pedido, por ocasião da sua reimpressão, que escre-
vesse algumas anotações sobre ela. Ele começou a fazê-lo
menos para corrigir Grócio do que as anotações de Grono-
vius, 176 que as escrevera mais para agradar aos governos
livres do que para honrar ajustiça. Vico tinha já percorrido
o primeiro livro e a metade do segundo quando se deteve
aí, reflectindo no facto de não convir a um homem de reli-
gião católica adornar com anotações a obra de um autor
herético.
Com estes estudos, com estes conhecimentos, com
estes quatro autores que ele admirava acima de todos os
outros e com o desejo de os colocar ao serviço da reli-
gião católica, Vico entendeu enfim que não existia ainda
no mundo das letras um sistema em que a melhor filosofia,
que é a filosofia platónica subordinada à religião cristã, se
conciliasse com uma filologia que mostrasse proceder com
necessidade de ciência em ambas as suas partes, que são
as duas histórias, a das línguas e a das coisas. Acertando-
-se a história das coisas com a das línguas, um tal sistema
harmonizaria as máximas dos sábios das academias e as
práticas dos sábios das repúblicas. E, quando o percebeu,
soltou-se da mente de Vico aquilo que ele tinha andado
a procurar nos primeiros discursos inaugurais e esboçara
ainda grosseiramente na dissertação De nostri temporis

176 Johann Friedrich Gronov (1611-1671), filólogo e historiador de direito

alemão, autor do comentário a uma edição anotada de De jure bel/i ac pacis.

129
studiorum ratione e, com um pouco mais de afinamento, na
Metafisica. Então, numa sessão pública solene de inaugu-
ração dos estudos, no ano de 1719, propôs este argumento:
«Ümnis divinae atque humanae eruditionis elementa tria:
nosse, velle, posse; quorum principium unum mens, cuius
oculus ratio, cui aeterni veri Iumen praebet Deus». 177
E repartiu o argumento do seguinte modo: «Nunc haec
tria elementa, quae tam existere et nostra esse quam nos
vivere certo scimus, una illa re de qua omnino dubitare
non possumus, nimirum cogitatione, explicemus. Quod
quo facilius faciamus, bane tractationem universam divido
in partes tres: in quarum prima omnia scientiarum princi-
pia a Deo esse; in secunda, divinum Iumen sive aeternum
verum per haec tria quae proposuimus elementa, omnes
scientias permeare, easque omnes una arctissima comple-
xione colligatas alias in alias dirigere et cunctas ad Deum,
ipsarum principium, revocare; in tertia, quicquid usquam
de divinae ac humanae eruditionis principiis scriptum
dictumve sit quod cum his principiis congruerit, verum;
quod dissenserit, falsum esse demonstremus. Atque adeo
de divinarum atque humanarum rerum notitia haec agam
tria: de origine, de circulo, de constantia; et ostendam
origines omnes a Deo provenire, circulo ad Deum redire
omnes, constantia omnes constare in Deo omnesque eas

177 «São três os elementos de todo o saber divino e humano: saber, conhecer,

poder; dos quais o único princípio é a mente, cujo olho é a razão, à qual Deus
confere a luz da verdade eterna.»

130
ipsas praeter Deum tenebras esse et errares». 178 E sobre ele
discorreu durante mais de uma hora.
O argumento pareceu a alguns, principalmente na
terceira parte, mais grandioso do que eficaz; diziam esses
que nem Pico della Mirandola se tinha comprometido
com tanto quando propôs defender conclusiones de omni
scibili, 179 uma vez que deixou de fora a maior e mais
importante parte da filologia, que, uma vez que trata das
inumeráveis matérias das religiões, línguas, leis, costumes,
propriedades, comércios, impérios, governos, ordens, e
outras, é, nos seus começos, truncada, obscura, irracional,
inacreditável, e sem qualquer esperança de poder ser redu-
zida a princípios de ciência. Pelo que Vico, para dar uma
ideia prévia que demonstrasse que um tal sistema podia
ser levado a cabo, publicou no ano de 1720 um ensaio 180

178 «Estes três elementos. os quais sabemos que existem e que são nossos

com a mesma certeza que temos de viver. expliquemo-los agora pela única coisa
da qual não podemos de modo algum duvidar. ou seja. pelo pensamento. Por
isso, para tornar as coisas mais fáceis, divido toda a minha abordagem em três
partes. Na primeira, demonstremos que todos os primeiros princípios das ciên-
cias vêm de Deus; na segunda, demonstremos que a luz divina, ou a verdade
eterna, pelos três elementos que propusemos, permeia todas as ciências, que as
conduz a todas em direcção umas ás outras ligadas por laços estreitissimos, e que
as reconduz até Deus, que é o seu princípio; na terceira, demonstremos que tudo
aquilo que alguma vez foi escrito ou dito sobre os princípios do saber divino e
humano, se com estes princípios concorda, é verdadeiro, e falso se deles difere.
Ou melhor, tratarei, em relação ao conhecimento das coisas humanas e divi-
nas, destes três pontos: da sua origem, da sua circularidade e da sua constância.
E mostrarei que a origem de todas as coisas provém de Deus; que, quanto à
circularidade, todas voltam a Deus; que, quanto à constância, todas assentam em
Deus, e que, para lá de Deus, todas elas são trevas e erros.»
179 Referência às Conclusiones sive theses DCCCC de Giovanni Pico della

Mirandola (1496).
180 Trata-se de um opúsculo que resumia o conteúdo da obra que estava

131
que circulou pelas mãos dos letrados de Itália e de além-
-fronteiras, e sobre o qual alguns emitiram juízos desfavo-
ráveis. Porém, uma vez que não os sustentaram quando a
obra saiu 181 adornada com juízos muito honrosos de dou-
tíssimos homens de letras, que a louvaram de modo eficaz,
não devem aqui ser mencionados. O senhor Anton Sal-
vini, 182 grande glória de Itália, dignou-se a contrapor-lhe
algumas dificuldades filológicas (as quais lhe fez chegar
através de uma carta escrita ao senhor Francesco Valletta,
homem doutíssimo e digno herdeiro da célebre biblioteca
vallettiana que lhe fora deixada pelo avô Giuseppe), 183 às
quais Vico respondeu gentilmente na obra De constantia
philologiae. 184 Outras dificuldades filosóficas, do senhor
Ulrich Hüber e do senhor Christian Thomasius, homens

prestes a sair, ao qual , por não possuir título, a tradição crítica viconiana conven-
cionou chamar Sinopse do «direito universal».
181 Em Setembro de 1720 é publicado De uno universi iuris principio etfine

uno; entre Agosto e Setembro de 1721, sai De constantia iurisprudentis; final-


mente, em Agosto de 1722, vêm a lume as Notae a De uno e a De constantia,
que formam uma espécie de apêndice a estes dois. Os três volumes constituem
a obra Direito universal.
182 Anton Maria Salvini (1653-1729), professor de Grego em Florença,

cidade natal, profundo conhecedor de línguas antigas e modernas, além de repu-


tado tradutor. Vico enviou-lhe a Sinopse e o De uno, que Salvini leu, como atesta
o exemplar que se encontra hoje na Biblioteca Riccardiana de Florença.
183 Francesco Valletta (1680-1760), magistrado, estudioso de arqueologia e

antiquário. Giuseppe Valletta (1636-1714), avô de Francesco, advogado e inte-


lectual napolitano, sequaz de Descartes, conforme atesta a obra Lettera in difesa
delta moderna filosofia e de ' coltivatori di essa (1691 ), e um dos fundadores
da academia dos Investiganti. O seu salão era frequentado por Vico, e a sua
biblioteca possuía as obras mais recentes da filosofia europeia. O riquíssimo
fundo da biblioteca vallettiana foi adquirido em 1727 pelos padres do Oratório,
integrando então a biblioteca oratoriana dos Girolamini.
184 De constantia philologiae é a segunda parte de De constantiajurispru-

dentis, sendo a primeira De constantia philosophiae, como Vico esclarecerá.

132
de reputado saber na Alemanha, foram-lhe trazidas pelo
senhor Ludwig, barão de Gemmingen, 185 às quais Vico
descobriu ter já respondido na mesma obra, como se pode
ver no final do livro De constantia iurisprudentis.
Quando saiu, nesse mesmo ano de 1720, também dos
prelos de Felice Mosca, in quarto, o primeiro livro com o
título De uno universi iuris principio et fine uno, no qual
Vico prova a primeira e a segunda parte da dissertação,
chegaram aos ouvidos do autor objecções feitas de viva
voz por desconhecidos, e outras feitas por alguns tam-
bém em privado, nenhuma das quais abalava o sistema,
dizendo antes respeito a particularidades de pouco peso,
e derivando a maior parte delas de velhas opiniões con-
tra as quais o sistema tinha sido ideado. Para não pare-
cer que forjava inimigos para de seguida os atacar, Vico
respondeu a tais oponentes, sem os nomear, no livro que
publicou depois, De constantia iurusprudentis, a fim de
que, permanecendo desconhecidos, se alguma vez a obra
lhes chegasse às mãos, eles percebessem, todos sozinhos e
em privado, que lhes tinha sido dada resposta. Saiu depois
dos prelos do mesmo Mosca, também in quarto, no ano
seguinte, em 1721, o outro volume, com o título De cons-
tantia iurisprudentis, em que se prova mais minuciosa-

185 O jurisconsulto holandês Ulrich Hüber (1636-1694) não poderia ter

sido o autor das referidas objecções à Sinopse, uma vez que falecera em 1694.
Assume-se que tenha sido Ludwig von Ghemmingen (1685-1743) a íàzê-las
(numa carta que enviou a um amigo de Vico, Tommaso Alfani, que lha fez che-
gar), baseando-se em textos quer de Hüber quer do filósofo, teólogo e perito
em direito natural Christian Thomasius (1655-1728), autor da obra Fundamenta
juris naturae ac gentium (1705).

133
mente a terceira parte da dissertação, que neste livro se
divide em duas partes: De constantia philosophiae e De
constantia philologiae. Nesta segunda parte, desaprouve
a alguns um capítulo concebido como Nova scientia ten-
tatur, onde a filologia começa a ser reduzida a princípios
de ciência. 186 Ao descobrirem que, com efeito, a promessa
que Vico tinha feito na terceira parte da dissertação não era
de modo algum vã não só em relação à parte da filosofia
mas também, mais importante ainda, em relação à parte da
filologia, e que, além disso, a partir de um tal sistema se
faziam muitas e importantes descobertas de coisas intei-
ramente novas e completamente longínquas da opinião de
todos os sábios de todos os tempos, não ouviu a obra outra
acusação senão a de que era incompreensível. Mas atesta-
ram ao mundo que ela se compreendia muito bem homens
doutíssimos da cidade, os quais a aprovaram publicamente
e a louvaram com seriedade e eficácia, e cujos elogios se
podem ler na mesma obra.
No meio destes acontecimentos, foi escrita ao autor
uma carta pelo senhor Jean Leclerc, com o seguinte teor:
Accepi, vir clarissime, ante perpaucos dies ab ephoro
illustrissimi comitis Wildenstein opus tuum de origine iuris
etfilologia, quod, cum essem Ultraiecti, vix leviterevolvere
potui. Coactus enim negotiis quibusdam Amstelodamum
redire, non satis mihi fuit temporis ut tam limpido fonte

'"' Trata-se do primeiro capítulo de De constantia philologiae, cujo título


prenuncia o nascimento iminente da obra à qual Vico se dedicará para o resto
da vida, a Ciência nova. Cfr. Raftàelle Ruggiero, Nova scientia tentatur: intro-
duzione al Diritto universal e di Giarnbattista Vico, Roma, Edizioni di Storia e
Letteratura, 2010.

134
me proluere possem. Festinante tamen oculo vidi multa et
egregia, tum philosophica tum etiam filologica, quae mihi
occasionem praebebunt ostendendi nostris septentrionali-
bus eruditis acumen atque eruditionem non minus apud ita-
los inveniri quam apud ipsos; imo vero doctiora et acutiora
dici ab italis quam quae a frigidiorum orarum incolis expec-
tari queant. Cras vero Ultraiectum rediturus sum, ut illic
perpaucas hebdomadas morer utque me opere tu o satiem in
illo secessu, in quo minus quam Amstelodami interpellor.
Cum mentem tuam probe adsequutus fuero, tum vero in
voluminis XVIII Bibliotecae antiquae et hodiernae parte
altera ostendam quanti sit faciendum. Vale, vir clarissime,
meque inter egregiae tuae eruditionis iustos aestimatores
numerato. Dabam, festinanti manu, Amstelodami, ad diem
VIII septembris MDCCXXII. 187

Esta carta alegrou tanto os homens de bem que


tinham julgado favoravelmente a obra de Vico quanto desa-
prouve àqueles que tinham tido sentimentos contrários.

187 «Recebi, mui distinto senhor, há poucos dias, do administrador do ilus-

tríssimo conde Wildenstein, a sua obra sobre a origem do direito e da filologia, a


qual, como eu estava em Utreque, mal pude folhear ao de leve. Forçado, então,
por certos assuntos a regressar a Amesterdão, não tive tempo suficiente para con-
seguir beber de tão límpida fonte. Contudo, dando uma olhadela apressada, vi
muitas e notáveis coisas, quer filosóficas quer filológicas, que me deram ocasião
de mostrar aos nossos eruditos do norte que a agudeza e a erudição não se encon-
tram menos nos italianos do que neles mesmos; e que, pelo contrário, os italianos
dizem coisas mais agudas e mais eruditas do que aquelas que se podiam esperar
dos habitantes de regiões mais frias. Amanhã vou voltar a Utreque, para ali ficar
durante algumas semanas e me saciar com a sua obra, naquele retiro onde sou
menos perturbado do que em Amesterdão. Quando tiver abarcado perfeitamente
o seu pensamento, mostrarei, na segunda parte do volume XVIII da Biblioteca
antiga e moderna, o quanto deve ser apreciado. Passe bem, mui distinto senhor,
e conte-me entre aqueles que estimam justamente a sua notável erudição. Escrito
à pressa, de Amesterdão, no dia 8 de Setembro de 1722.»

135
Convenciam-se então de que se tratava apenas de um elogio
privado de Leclerc, mas que, quando este tivesse de fazer o
seu juízo público na Biblioteca, aí então a julgaria tal como
àqueles parecia de justiça. Diziam que era impossível que
por ocasião dessa obra de Vico quisesse Leclerc cantar a
palinódia daquilo que, ao longo de quase cinquenta anos,
sempre dissera, a saber, que em Itália não se faziam obras
que, pelo engenho e pela erudição, pudessem ombrear com
aquelas que se publicavam além-fronteiras. Entretanto,
para provar ao mundo que, embora ele apreciasse muito
a estima dos homens distintos, tal não constituía o fim
e a meta dos seus trabalhos, Vico leu os dois poemas de
Homero à luz dos seus princípios de filologia e, de acordo
com certos cânones mitológicos que tinha concebido, fê-
-los ver sob um aspecto diferente daquele a partir do qual
tinham sido até então observados. E mostrou que, de modo
divino, em torno a dois argumentos diferentes tinham sido
tecidos dois grupos de histórias gregas, que pertenciam aos
tempos obscuro e heróico, segundo a divisão de Varrão. 188
Estas leituras homéricas, juntamente com os referidos
cânones, saíram in quarto no ano seguinte, 1722, tam-
bém dos prelos de Mosca, sob o seguinte título: Iohannis
Baptistae Vici Notae in duas libras, alterum De universi
iuris principio, alterum De constantia iurisprudentis.

'" Antecipam-se aqui os elementos basilares das teorias desenvolvidas no


livro ao qual, na Ciência nova, Vico dará o nome de «Da descoberta do verda-
deiro Homero». A tripartição do tempo obscuro, fabuloso e histórico, enunciada
por Varrão na obra perdida Antiquitates rerum divinarum, fora transmitida à
idade moderna através da obra de Censorino De die nata/i (238 d.C.).

136
Pouco tempo depois, a cátedra matutina de Direito,
menos importante do que a vespertina, e com um salário
de seiscentos escudos anuais, ficou vaga. Despertou então
em Vico a esperança de conseguir obtê-la em virtude dos
méritos que têm sido narrados, particularmente em matéria
de jurisprudência, e com os quais ele se tinha apetrechado
com vista à sua carreira na universidade, onde é o mais
velho de todos no que diz respeito à possessão da cáte-
dra, uma vez que apenas ele possui a sua por nomeação de
Carlos II, enquanto todos os outros a possuem por nomea-
ções mais recentes. Fiava-se, além disso, na vida que tinha
levado na sua pátria, onde com as suas obras de engenho
todos honrara, muitos favorecera e nenhum prejudicara.
No dia anterior ao concurso, como é habitual, depois de
se ter aberto o Digesto velho, de onde se deviam dessa vez
sortear as leis, couberam-lhe em sorte estas três: uma sob
o título De rei vindicatione, outra sob o título De peculio, e
a terceira era primeira a lei sob o título De praescriptis
verbis. Uma vez que todas as três constituíam textos
abundantes, Vico, para mostrar ao monsenhor Vidania,
director dos estudos, que estava pronto e apto para fazer
aquela prova (conquanto nunca tivesse ensinado jurispru-
dência), rogou-lhe que lhe fizesse a honra de determinar
uma das três passagens acerca da qual, ao fim de vinte e
quatro horas, ele devia dar a lição. Mas como o director
se recusou, ele escolheu a última lei, 189 apresentando como
razão o facto de essa ser de Papiniano, um jurisconsulto

189 Digesto, XIX, 5, 1.

137
que superava todos os outros na grandeza das suas qua-
lidades, e de ter como matéria as definições dos termos
legais, que é a tarefa mais difícil de desempenhar bem
em jurisprudência. Previu que só um ignorante de grande
audácia poderia caluniá-lo por ter escolhido aquela lei, pois
tal seria o mesmo que repreendê-lo por ter escolhido uma
matéria tão difícil. Pelo que Cujas, quando define os termos
legais, se ensoberbece justamente e convida toda a gente a
vir aprender com ele, como faz nos Paratitlos do Digesto
(De codicillis). 190 E, de resto, se Cujas reputa Papiniano
como o príncipe dos jurisconsultos romanos é porque
nenhum definiu melhor do que ele, e nenhum forneceu, em
jurisprudência, definições melhores e em maior quantidade.
Os outros concorrentes tinham posto as suas esperan-
ças em quatro coisas, que eram como escolhos contra os
quais Vico devia naufragar. Todos, conduzidos pela estima
interna que tinham por ele, decerto acreditavam que iria
fazer uma introdução grandiosa e longa sobre os seus
méritos na universidade. Poucos, aqueles que percebiam
aquilo de que era capaz, pressagiavam que iria interpretar o
texto servindo-se dos seus Princípios do direito universal,
violando desse modo, para agitação da audiência, as leis
estabelecidas nos concursos de jurisprudência. A maioria,

190 As obras do jurista francês Jacques Cujas (1520-1590), um dos «intér-

pretes eruditos» com que Vico se deleitara na juventude (veja-se a nota 25),
circulavam em Nápoles desde finais do século XVII. Nesta passagem, Vico faz
referência à epístola-dedicatória que Cujas endereça ao nobre genovês Gregorio
Lomellino, que precede a obra Paratitla in libras quinquaginta Digestorum sive
Pandectarum (1569) (cfr. Alain Pons, Notes a Vie de Giambattista Vico écrite
par lui-même, Paris, Grasse!, 1981 , p. 140).

138
os que consideravam que são mestres de uma disciplina
somente os que a ensinam aos jovens, iludia-se esperando
que, já que a lei escolhida era uma das que Hotman 19 1 tinha
interpretado com muita erudição, Vico baseasse toda a sua
intervenção em Hotman; ou, então, uma vez que Favre 192
tinha atacado todos os primeiros intérpretes ilustres dessa
lei e não existiu nenhum que lhe tivesse respondido depois,
que preenchesse a lição com Favre e não o atacasse. Mas
a lição de Vico foi contra todas as expectativas daqueles,
pois começou por uma breve, grave e tocante invocação;
recitou de imediato o princípio da lei, ao qual restringiu a
sua lição, deixando de fora os outros parágrafos; e, depois
de resumida e dividida em partes, imediatamente, numa
maneira tão inaudita nesse tipo de provas quanto habitual
entre os jurisconsultos romanos, que repetem por toda a
parte <<Ait lex», <<Ait senatusconsultum», <<Ait praetor»,
com a fórmula semelhante <<Ait iurisconsultus» Vico inter-
pretou as palavras da lei uma por uma, separadamente,
para obviar a acusação (que se ouve muitas vezes em tais
concursos) de se ter desviado do texto o mínimo que fosse.
Só um ignorante malévolo teria querido menosprezar a
sua lição pelo facto de ele a ter baseado no princípio de
um título, pois as leis das Pandectas não estão dispostas

191 François Hotman (1524-1590), huguenote, historiador, professor de

Direito Romano e jurisconsulto írancês, autor de Novus commentarius de verbis


iuris (1564).
192 Antoine Favre (1557-1624), jurisconsulto saboiano, autor de lurispru-

dentiae papinianeae scientia (1607), e do polémico De erroribus pragmatico-


rum et interpretum iuris ( 1598), que Vico traz para a sua lição.

139
segundo qualquer método escolástico usado por autores
de instituições; além disso, tal como naquele princípio foi
citado Papiniano, bem podia Vico ter citado outro juriscon-
sulto, que com outros termos e outros sentidos teria dado a
definição da acção aí tratada. De seguida, extraiu da inter-
pretação dos termos o sentido da definição de Papiniano,
ilustrou-a com Cujas, e depois mostrou que era conforme
àquela dos intérpretes gregos. Imediatamente depois, foi
ao encontro de Favre e demonstrou quão ligeiras, cavi-
losas ou vãs eram as razões com que este repreendia
Accursio, 193 depois Paolo di Castro, 194 logo os intérpretes
antigos de além-fronteiras, 195 e de seguidaAndreaAlciato. 196
E, embora previamente tivesse anteposto Hotman a Cujas
na ordem dos que foram repreendidos por Favre, ao segui-
-la esqueceu-se de Hotman, e, após Alciato, começou
a defender Cujas; ao dar-se conta do seu erro, interpôs
estas palavras: «Sed memoria lapsos Cuiacium Othmano
praeverti; at mox, Cuiacio absoluto, Hotmanum a Fabro
vindicabimus». 197 Tantas eram as esperanças que ele tinha

193 Francesco Accursio (1182-1263), jurisconsulto e glosador, professor de

Direito em Bolonha, autor de uma magna glossa ao Corpus iuris civi/is de Jus-
tiniano.
194 Paolo di Castro (1360?-1441), um dos mais importantes juristas da pri-

meira metade do século XV, ensinou em Florença, Siena, Bolonha e Pádua.


195 Vico alude aqui à escola francesa dos «pós-glosadores», que nos finais

do século XIII estudavam direito romano segundo o método inspirado pela


escola de Bolonha de Accursio, nomeadamente as escolas de Orleães (Jacques
de Révigny) e de Montpellier (Pierre d'Aurillac).
I% AndreaAiciato (1492-1550), jurisconsulto e humanista.
197 «Por uma falha de memória antepus Cujas a Hotman; mas, já de seguida,

após ter finalizado Cujas, vamos defender Hotman contra Favre.»

140
depositado em participar com Hotman no concurso! Final-
mente, no momento de chegar à defesa de Hotman, a hora
da lição terminou.
Ele tinha-a preparado até às cinco horas da noite ante-
rior, conversando com amigos e no meio do estrépito dos
seus filhos, 198 como era seu hábito sempre que lia, escrevia
ou meditava. Reduzira-a a linhas gerais, que cabiam numa
página, e apresentou-a com tanta facilidade como se nunca
tivesse ensinado outra coisa na vida, com um discurso tão
copioso que daria para outros fazerem dali uma arenga de
duas horas, com a fina flor das elegâncias legais da juris-
prudência mais culta e até com os termos técnicos gregos
-e quando foi preciso usar um termo escolástico, preferiu
o termo grego ao bárbaro. Só uma vez, pela dificuldade
do termo npoycypa)l)lévwv, 199 ele se deteve um momento;
mas acrescentou de seguida: «Ne miremini me substitisse,
ipsa enim verbi ávrnunía me remorata est» 200 - tanto que
a muitos pareceu que aquele aturdimento momentâneo
tivesse sido propositado, para que ele depois se pudesse
recompor com outro termo grego tão apropriado e ele-
gante. No dia seguinte, escreveu a lição tal como a tinha
apresentado e deu exemplares dela, entre outros, ao senhor

198 O «estrépito» na casa de Vico tinha aumentado em relação aos tempos da

redacção da biografia de Antonio Carafa, posto que em 1720 lhe tinha nascido
o filho Filippo, que por alturas do concurso universitário (1723) teria três anos.
199 IlpoyEypaJlJlÉVWv: corresponde ao latino praescriptis, termo que figu-

rava no título do fragmento de Papiniano que Vico escolhera comentar.


200 «Não vos surpreendais se me detenho; foi a própria aspereza da palavra

que me fez parar.»

141
D. Domenico Caravita, 201 advogado principal nos supre-
mos tribunais e digníssimo filho do senhor D. Nicolà, que
não pôde ir assistir ao concurso.
Vico estimou que podia candidatar-se àquela cátedra
em virtude apenas dos seus méritos e da prova da lição,
cujo aplauso universal o deixou com esperanças de que
certamente a obteria. Mas quando teve notícia do infe-
liz resultado 202 - tal como se verificou, de facto, também
para aqueles que estavam imediatamente classificados
para obter essa cátedra-, para não parecer melindrado ou
soberbo por não andar por ali a fazer solicitações e por
não cumprir os outros deveres honestos dos candidatos,
Vico seguiu o conselho autorizado desse mesmo senhor
D. Domenico Caravita, homem sábio e de grande bene-
volência para consigo, que lhe mostrou que lhe convinha
renunciar, e, com grandeza de espírito, foi então declarar
que retirava a sua candidatura.
Esta desventura de Vico, que o fez perder a esperança
de vir a ter alguma vez um lugar digno na sua pátria, foi

201 Domenico Caravita (c.1670-1770), filho de Niccolo Caravita (veja-se a

nota I 02) e, como o pai, protector de Vico.


202 É com estes termos lacónicos que Yico resume o insucesso no concurso

universitário. Dos dois candidatos apoiados por duas facções da comissão que
avaliava as provas, Domenico Gentile e Pietro Antonio de Turris, venceu o
primeiro, apoiado pelo vice-rei da altura, o cardeal Michael Friedrich Althann
(veja-se a nota 248). Vico e os restantes candidatos foram excluídos do concurso
por unanimidade. Veja-se o ensaio de Fausto Nicolini, «Sulla dispersa lezione
di prova preparata dal Vico per il concorso alla cattedra matutina di diritto civil e
presso l'Università di Napoli», in Saggi vichiani, Napoli, Giannini, 1955, pp.
297-309. Veja-se ainda o capítulo que Barbara Ann Naddeo dedica à derrota no
concurso universitário: «From Law to 'Philosophy': The University Competi-
tion of 1723», in Vico and Naples: The Urban Origins ofModern Social Theory,
N .Y. : Cornell University Press, 2011 , pp. 170-180.

142
consolada pelo parecer do senhor Jean Leclerc, que, como
se tivesse ouvido as acusações que alguns tinham feito à
sua obra e se dirigisse àqueles que diziam que não se com-
preendia, na segunda parte do volume XVIII da Biblioteca
antiga e moderna, no artigo VIII, com estas palavras, tra-
duzidas do francês com exactidão, julga de modo geral:
que a obra está «cheia de matérias recônditas, de consi-
derações bastante diversas, escrita num estilo muito cer-
rado»; que, para infinitas passagens, seria necessário fazer
extractos bem longos; que é urdida segundo um «método
matemático», que «de poucos princípios extrai uma infini-
dade de consequências»; que é necessário lê-la com aten-
ção, sem interrupção, do princípio ao fim, e habituar-se
às suas ideias e ao seu estilo; e que, assim, ao meditá-la,
os leitores «encontrarão, além disso, à medida que se vão
embrenhando mais nela, muitas descobertas e observações
curiosas que não esperavam». 203 Quanto àquilo que tanto
ruído causou na terceira parte da dissertação, no que diz

203 Trata-se de excertos dos artigos de Jean Leclerc, vindos a lume em 1722,

sobre a obra De uno universi iuris principio etfine uno, primeiro tomo do Direito
universal. Traduz-se a tradução «exacta» de Vico (que desmente aqui a decla-
ração de ignorar a língua francesa) do artigo de Leclerc, conforme é apresen-
tada na Vida. Confronte-se, no entanto, o texto original: «C'est un Ouvrage si
plein de matiéres abstruses, de considérations si diverses, et écrit en un style si
serré, qu'on ne sauroit en faire d'Extrait exact, sans une longueur excessive. [ ... ]
L' Auteur vient à cette conclusion, par un ordre Mathématique, en posant d 'abord
peu de Principes, d 'ou il tire dans la suite une infinité de conséquences [ ... ]. [ ... ]
ceux qui se seront un peu accoütumez à son langage, et qui méditeront, avec
quelque soin, ce qu' il dit [ ... ]. Ils y trouveront de plus, en chemin íàisant, beau-
coup de recherches et de remarques curieuses, auxquelles ils ne s'étoient pas
attendus [ ... ]». Apud Rita Verdirame, La vila e gli affetti di G. B. Vico . Catania,
c.u.e.c.m, 2010, Appendice II, pp. 163-164.

143
respeito à filosofia, diz o seguinte: «Tudo aquilo que antes
se disse dos princípios da erudição divina e humana, e que
se encontra conforme a quanto se escreveu no livro prece-
dente, é por necessidade verdadeiro». No que diz respeito
à filologia, emite o seguinte juízo: «Ele dá-nos abreviada-
mente as principais épocas desde o dilúvio até ao tempo
em que Aníbal levou a guerra a Itália; porque ele discorre
em todo o corpo do livro sobre diversas coisas que ocor-
reram neste espaço de tempo, e faz muitas observações de
filologia sobre um grande número de matérias, emendando
uma quantidade de erros comuns, aos quais homens muito
entendidos não tinham prestado suficiente atenção». E,
finalmente, conclui para todas [as partes da obra]: «Vê-se
nela uma mistura contínua de matérias filosóficas, jurídi-
cas e filológicas, pois o senhor Vico dedicou-se particular-
mente a estas três ciências e meditou-as bem, como nisto
convirão todos aqueles que lerem as suas obras. Existe
entre estas três ciências uma ligação tão forte que nenhum
homem pode gabar-se de ter aprofundado uma e de a ter
conhecido em toda a sua extensão sem ter também um
grande conhecimento das outras. Tanto assim é que no
final do volume se vêem os elogios que os sábios italia-
nos dedicaram a esta obra, pelo que se pode compreender
que consideram o autor muito entendido em metafísica,
em direito e em filologia, e a sua obra um trabalho original
cheio de descobertas importantes». 204

204 Trata-se, desta vez, de excertos do artigo de Jean Leclerc a respeito de

De constantiajurisprudentis, segundo tomo do Direito universal. Confronte-se,

144
Mas 205 nada permite compreender tão claramente que
Vico tenha nascido para a glória da sua pátria e, conse-
quentemente, de Itália (pois tendo nascido aqui, e não em
Marrocos, tornou-se letrado), como o facto de, após este
golpe de fortuna adversa, que teria levado outros a renun-
ciar completamente às letras, quando não a arrepender-se
de as ter jamais cultivado, ele nunca ter deixado de traba-
lhar noutras obras. E, com efeito, tinha já trabalhado numa,
dividida em dois livros, que teriam cabido justamente em
dois volumes in quarto. No primeiro deles procurava os
princípios do direito universal das gentes nos princípios da
humanidade das nações, por meio das inverosimilhanças,
inadequações e impossibilidades de tudo aquilo que antes

de novo, com o texto original da recensão: «Ainsi tout ce qui a été jamais publié
des Principes de l'Erudition Divine et de l'Humaine, et qui se trouve conforme
à ce qui a été écrit au Livre précédent, est nécessairement vrai [ ... ].II donne en
abrégé les principales Epoques, depu is Ie Déluge, jusqu'au temps auquel Anni-
bal porta la guerre en ltalie; parce qu'il raisonne, dans toute la suite du Livre,
sur diverses choses, qui se passerent en cet espace de temps, et fait beaucoup de
remarques de Philologie, sur un grand nombre de matieres, ou ii réleve quan-
tité d'Erreurs Vulgaires, auxquelles les plus habiles gens n'ont pas fait assez
d'attention. [... ] On y voit un mélange perpétuel de matieres Philosophiques,
Juridiques, et Philologiques; car M. Dei Vico s' est particulierment appliqué
a ces trois Sciences, et les a bien méditées; comme tous ceux, qui liront ses
Ouvrages, en conviendront. II y a une si grande liaison, entre ces sciences, qu 'on
ne peut pas se vanter d 'en avo ir pénetré une, et de la connoltre, dans toute son
étendue, sans avoir une assez grande connoissance des autres. Aussi voit-on, à
la fin du volume, des éloges que Savans ltaliens ont donné à cet Ouvrage; par
ou l'on peut comprendre qu ' ils regardent l'Auteur, comme un tres habile home
en Métaphysique, en Droit et en Philologie, et son Ouvrage comme une piece
original e et pleine de Découvertes importantes». Apud Rita Verdirarne, op. cit. ,
pp. 165-169.
205 É com esta longa citação de Leclerc que termina a primeira porção do

texto autobiogràfico, que Vico redigiu, muito provavelmente, até finais de 1723
(veja-se a nossa «<ntrodução» ).

145
os outros tinham mms imaginado do que reflectido. Por
conseguinte, no segundo explicava a geração dos costumes
humanos segundo uma certa cronologia reflectida dos tem-
pos obscuro e fabuloso dos gregos, dos quais nos chegou
tudo aquilo que temos da antiguidade gentílica. 206 Já a obra
tinha sido revista pelo senhor D. Giulio Torno, 207 doutís-
simo teólogo da igreja napolitana, quando Vico considerou
que essa forma negativa de demonstrar tanto abala a fan-
tasia quanto é desagradável para o entendimento, uma vez
que em nada contribui para o desenvolvimento da mente
humana. Por outro lado, um golpe de fortuna adversa colo-
cou-o na impossibilidade de a dar à estampa,208 e uma vez
que, por ter prometido publicá-la, era obrigado a fazê-lo
por uma questão de honra, Vico concentrou todo o seu

206 Referência à obra a que se convencionou chamar, segundo a termino-

logia do próprio Vico, a Ciência nova em forma negativa, que consistia numa
crítica das grandes teses do direito natural. Vico trabalhou nessa obra (cujo texto
se perdeu) desde o insucesso no concurso universitàrio, por volta de Abril de
1723, até Junho de 1725.
207 Giul io Tomo ( 1672-1756) foi censor eclesiàstico das obras de Vico desde

o De uno (1720) até ao discurso De mente heroica (1732). Consultar, sobre ele,
o artigo de Antonio Gisondi, «Aproposito di un teologo e giurista dei settecento.
Giulio Niccolà Torno (1672-1756)», in Bolletino dei Centro di Studi Vichiani,
XXXIV, 2004, Rubbettino Editore.
20 ' Por este segundo «golpe de fortuna adversa» Vico alude à desistência

do cardeal Lorenzo Corsini (a partir de 1730, papa Clemente XII) de custear a


publicação da Ciência nova em forma negativa, com a qual se comprometera,
segundo o costume da época, quando aceitou que a obra lhe fosse dedicada.
Encontrando-se de repente desprovido de financiamento para a impressão, Vico
teve de reduzir drasticamente os custos da edição; decidiu então abreviar a obra,
ao eliminar a parte «negativa» (a crítica), e escrevê-la de novo. Numa nota no
verso da carta de 20 de Julho de 1725 em que Corsini informa que afinal não
pode financiar a obra, Vico escreveu que, para fazer face às despesas de impres-
são, teve de vender um anel «que tinha um diamante de cinco grãos de puríssima
àgua» (i.e., de um quilate e um quarto).

146
espírito numa áspera meditação para encontrar um método
positivo, mais conciso e, portanto, ainda mais eficaz.
E no final do ano de 1725 publicou em Nápoles,
dos prelos de Felice Mosca, um livro in-12 de não mais
de doze fólios, em caracteres de pequeno formato, com o
título: Princípios de uma ciência nova acerca da natureza
das nações, pelos quais se encontram outros princípios do
direito universal das gentes; 209 e dedicou-o, com uma ins-
crição em epígrafe, às universidades da Europa. Nesta obra
Vico desenvolve finalmente, na sua totalidade, aquele prin-
cípio que, nas obras precedentes, tinha compreendido ainda
confusamente e não com completa distinção. Comprova,
com efeito, ser uma necessidade indispensável, e também
humana, indagar as primeiras origens de uma tal ciência a
partir dos princípios da história sagrada. E, perante o deses-
pero, demonstrado quer por filósofos quer por filólogos,
de encontrar os progressos dessa história nos primeiros
autores das nações gentias, Vico faz um uso mais amplo,
aliás, um vasto uso, de um dos juízos que o senhor Jean
Leclerc emitira acerca da sua obra anterior, segundo o qual
o autor, «pelas principais épocas dadas abreviadamente
desde o dilúvio universal até à segunda guerra cartaginesa,
discorrendo sobre diversas coisas que sucederam neste
espaço de tempo, faz muitas observações de filologia sobre
um grande número de matérias, emendando uma quanti-
dade de erros comuns aos quais homens muito entendi-

209 Principi di una scienza nuova d'intorno a/la natura delle nazioni, per li

quali si ritruovano altri principi de/ diritto natura/e delle genti

147
dos não tinham prestado suficiente atenção». 210 E descobre
assim esta nova ciência em virtude de uma nova arte
crítica para julgar a verdade sobre os autores das nações
mesmas dentro das tradições vulgares das nações que eles
fundaram- após os quais, milhares de anos depois, vieram
os escritores, dos quais se tem ocupado a crítica habitual.
E, à luz da chama desta nova arte crítica, descobre que as
origens de quase todas as disciplinas, sejam elas ciências
ou artes, necessárias para discutir com ideias claras e lin-
guagem apropriada o direito natural das nações, são muito
diferentes das que até agora se tinham imaginado.
De seguida, divide estes princípios em duas partes:
uma das ideias, e outra das línguas. No que concerne à
das ideias, descobre outros princípios históricos de cro-
nologia e geografia, que são os dois olhos da história, 211 e
por conseguinte os princípios da história universal que até
agora têm faltado. Descobre outros princípios históricos
da filosofia e, em primeiro lugar, uma metafísica do género
humano, isto é, uma teologia natural de todas as nações,
de acordo com a qual cada povo naturalmente fingiu por
si mesmo os próprios deuses, por um certo instinto natu-
ral que o homem tem da divindade, e cujo temor levou
os primeiros autores das nações a unir-se com mulheres
certas numa perpétua companhia para a vida, que foi a

210 Este passo da recensão de Leclerc, que tinha sido já citado, volta a ser

usado perto do final da Vida.


211 Cfr. Sn44, § 17.

148
primeira sociedade humana dos matrimónios. 212 E desco-
bre assim que o grande princípio da teologia dos gentios
foi o mesmo que aquele da poesia dos poetas teólogos,
que foram os primeiros do mundo e de toda a humanidade
gentílica. A partir dessa metafísica, descobre uma moral e,
por conseguinte, uma política comum às nações, e funda
sobre elas a jurisprudência do género humano, que varia
de acordo com certas «seitas dos tempos», 213 uma vez que
as nações vão continuamente desenvolvendo as ideias
da sua natureza e, como consequência de tal desenvolvi-
mento, vão variando os governos, cuja forma última Vico
demonstra ser a monarquia - na qual, por natureza, vão
finalmente repousar as nações. Preenche assim o grande
vazio existente nos princípios da história universal, que
começa com Nino e a monarquia dos Assírios. Na parte
das línguas, descobre outros princípios da poesia, do canto
e dos versos, e demonstra que aquela e estes nasceram por
necessidade de natureza uniformes em todas as primeiras
nações. No seguimento de tais princípios, descobre outras
origens dos emblemas heróicos, que foram um falar mudo
de todas as primeiras nações na época em que as palavras

212 Referência aos princípios das religiões e dos matrimónios que, na Ciên-

cia nova, constituem aquilo em que «perpetuamente concordaram e ainda con-


cordam todos os homens» (Sn44, § 332), partindo da constatação de que «ideias
uniformes, nascidas no seio de povos inteiros, desconhecidos entre si, devem
possuir um fundamento comum de verdade» (Sn44, § 144).
m Por não existir nenhum equivalente satisfatório em português, traduz-se
literalmente a expressão sette de' ternpi, decalcada do latim secta ternporurn, por
«seitas dos tempos», através da qual Vico designa todas as manifestações (cultu-
rais, sociais, políticas, morais) de determinado período do percurso histórico de
um povo. Veja-se, a propósito, Sn44, §§ 915 , 975, 979.

149
articuladas não tinham sido ainda formadas. Depois, des-
cobre outros princípios da ciência do brasão, que descobre
serem os mesmos que os da ciência das medalhas, onde
observa as origens heróicas, com quatro mil anos de con-
tínua soberania, das duas casas da Áustria e da França.
Entre os efeitos da descoberta das origens das línguas,
encontra certos princípios comuns a todas e, por meio de
um ensaio, descobre as verdadeiras causas da língua latina,
deixando com este exemplo aos eruditos a tarefa de fazer o
mesmo para todas as outras. Dá uma ideia de uma etimo-
logia comum a todas as línguas nativas, e uma outra ideia
de outra etimologia dos termos de origem estrangeira, para
explicar enfim uma ideia de uma etimologia universal para
a ciência da língua, necessária para reflectir com proprie-
dade sobre o direito natural das gentes.
Através desses princípios quer de ideias quer de lín-
guas, ou seja, através dessas filosofia e filologia do género
humano, desenvolve uma história ideal eterna com base
na ideia da providência, a partir da qual, como demons-
tra ao longo de toda a obra, foi ordenado o direito natu-
ral das gentes. Sobre esta história eterna decorrem no
tempo todas as histórias particulares das nações nos seus
surgimentos, progressos, estados, decadências e fins. 214
É assim que Vico vai buscar e aproveitar dois fragmen-
tos215 de antiguidade aos egípcios, que zombavam dos

214 Formulação recorrente na Ciência nova; veja-se, em particular, Sn44,


§ 349.
215 Rottami, no original, termo que, no léxico de Vico, é sinónimo de fran-

tume, que pode significar «estilhaço», «destroço» ou, de modo mais amplo,
«fragmento». Vejam-se as Note de Andrea Battistini, pp. 1505 e 1553.

150
gregos por não saberem nada da antiguidade, dizendo-lhes
que eram sempre crianças. Um desses fragmentos é a divi-
são de todos os tempos decorridos antes deles em três épo-
cas: a primeira, a idade dos deuses; a segunda, a idade dos
heróis; a terceira, a idade dos homens. O outro consiste em
que, que de acordo com estas mesmas ordem e divisão, e
na mesma extensão de séculos, se falaram antes deles três
línguas: uma, divina, por hieróglifos, ou seja, caracteres
sagrados; a segunda, simbólica, ou seja, por metáforas,
como é a língua heróica; a terceira, epistolar, por falares
estabelecidos por convenção de acordo com os usos da
vida corrente. Demonstra então que a primeira época e a
primeira língua se verificaram no tempo das famílias, que
certamente existiram, em todas as nações, antes das cida-
des, e a partir das quais, como todos reconhecem, surgi-
ram as cidades. Famílias, essas, que os pais regiam como
príncipes soberanos sob o governo dos deuses, ordenando
todas as coisas humanas segundo os auspícios divinos;
e, com sumas naturalidade e simplicidade, explica a his-
tória daquelas recorrendo às fábulas divinas dos deuses.
Observa aí que os deuses do Oriente, que depois os Cal-
deus elevaram às estrelas, levados pelos Fenícios para a
Grécia (o que Vico demonstra ter ocorrido depois da época
de Homero), encontraram lá os nomes dos deuses gregos
adequados para os receber, tal como, mais tarde, levados
para o Lácio, encontraram adequados os nomes dos deu-
ses latinos. Demonstra de seguida que esse estado de coi-
sas ocorreu igualmente (conquanto um depois do outro)
entre os latinos, os gregos e os asiáticos. Depois, demons-

151
tra que a segunda época e a segunda língua, a simbólica,
se verificaram no tempo dos primeiros governos civis,
que, como demonstra, foram de certos reinos heróicos,
ou seja, de ordens reinantes de nobres - a que os gregos
antiquíssimos chamaram «raças hercúleas», reputando-as
de origem divina -, às quais se submeteram as primeiras
plebes, consideradas por aqueles como de origem bestial.
Com suma facilidade, Vico explica que essa história nos
foi inteiramente descrita pelos gregos no carácter do seu
Hércules tebano, certamente o maior dos heróis gregos,
e a cuja raça pertenceram certamente os Heraclidas, que
governaram, sob dois reis, o reino espartano, que foi sem
dúvida aristocrático. E tendo os egípcios e os gregos igual-
mente observado um Hércules em cada nação -tal como,
entre os latinos, Varrão chegou a enumerar não menos de
quarenta -, demonstra que depois dos deuses reinaram
os heróis por todas as nações gentias. E, através de um
grande fragmento de antiguidade grega, a saber, que os
Curetes saíram da Grécia em direcção a Creta, a Satúrnia
(ou seja, Itália) e à Ásia, descobre que estes Curetes foram
os Quirites latinos, de que os Quirites romanos constituí-
ram uma espécie, ou seja, homens armados de lanças e
reunidos em assembleia. 216 Pelo que o direito dos Quirites
foi o direito de todas as gentes heróicas. Demonstra a vani-

216 Cír. Sn25, §§ 76, 156. Os Curetes, filhos de Reia, eram os sacerdotes de

Júpiter em Creta, depois identificados com os coribantes, sacerdotes de Cibele.


É possível que Vico os associe aos quirites romanos pela etimologia de quiris
- asta, em italiano lança - uma vez que os Curetes eram representados com
lanças.

152
dade da fábula segundo a qual a lei das XII tábuas teria
vindo de Atenas, e descobre que os princípios do governo,
a virtude e ajustiça romanas (durante a paz, com as leis,
durante a guerra, com as conquistas) se fundamentam em
três direitos nativos das gentes heróicas do Lácio, introdu-
zidos e observados em Roma e depois fixados nas tábuas.
Pois, caso contrário, lida à luz das ideias actuais, a história
romana antiga seria mais incrível do que a história fabu-
losa dos gregos. E à luz de tais descobertas explica os ver-
dadeiros princípios da jurisprudência romana. Finalmente,
demonstra que a terceira época, a da idade dos homens e
das línguas vulgares, se verificou no tempo das ideias da
natureza humana completamente desenvolvida e, portanto,
reconhecida como uniforme em todos os homens. Pelo que
essa natureza conduziu a formas de governos humanos,
que Vico comprova serem o popular e o monárquico, e
a cuja «seita dos tempos» pertenceram os jurisconsultos
romanos, sob os imperadores. Vem assim a demonstrar que
as monarquias são os últimos governos em que se detêm
finalmente as nações; e que as repúblicas 217 não poderiam
de facto ter começado se, como se fantasia, os primeiros
reis tivessem sido monarcas como são os actuais. Nem
as nações poderiam ter começado com a fraude e com a
força, como se imaginou até agora. 218

217 No sentido genérico de respublica.


218 Cfr. Sn25. § 119. Vico posiciona-se quer contra Carnéades e os cépticos,
aos quais atribui a opinião de que as leis teriam nascido da ífaude exercida pelos
ricos sobre os pobres, quer contra Hobbes, pelo facto de este defender que são
as armas e a violência que estão na origem do nascimento dos estados e das leis.

153
Com estas e outras descobertas menores, feitas em
grande número, ele reflecte sobre o direito natural das
gentes, demonstrando em que momentos precisos e de
que modos determinados nasceram pela primeira vez os
costumes que constituem toda a economia de tal direito,
que são: religiões, línguas, domínios, comércios, ordens,
impérios, leis, armas, juízos, penas, guerras, pazes, alian-
ças. E a partir desses momentos e modos desenvolve as
propriedades eternas que comprovam ser essa e não outra
a natureza de tais costumes, ou seja, o modo e o momento
do seu nascimento. Consideraram-se sempre as diferenças
essenciais entre os hebreus e os gentios: enquanto aque-
les, desde o início, surgiram e permaneceram assentes em
práticas de uma justiça eterna, as nações pagãs, conduzi-
das unicamente pela providência divina, foram variando
com uniformidade constante por três espécies de direitos,
correspondentes às três épocas e línguas dos egípcios: o
primeiro, um direito divino, sob o governo do verdadeiro
Deus entre os hebreus e de falsos deuses entre os gentios; o
segundo, um direito heróico, ou próprio dos heróis, situa-
dos no meio entre os deuses e os homens; e o terceiro, um
direito humano, ou da natureza humana completamente
desenvolvida e reconhecida igual em todos. É unicamente
deste último direito que se podem nas nações originar
os filósofos, que sabem realizá-lo por meio de reflexões,
a partir das máximas de uma justiça eterna. Nisso erra-
ram conjuntamente Grócio, Selden e Pufendorf, que, por
ausência de uma arte crítica sobre os autores das nações,

154
crendo que estes eram possuidores de sabedoria recôndita,
não viram que, para os gentios, a providência foi a mestra
divina da sabedoria vulgar, da qual surgiu, ao cabo de mui-
tos séculos, entre eles, a sabedoria recôndita. 219 Pelo que
os três confundiram o direito natural das nações, que sur-
giu com os costumes dessas mesmas nações, com o direito
natural dos filósofos, que estes conceberam por força de
reflexões, sem distinguir aí por um qualquer privilégio um
povo eleito por Deus para o seu verdadeiro culto, perdido
por todas as outras nações. A ausência dessa mesma arte
crítica tinha induzido em erro, antes, os intérpretes erudi-
tos do direito romano, os quais, através da fábula de que
as leis [das XII tábuas] tinham vindo de Atenas, introduzi-
ram, contra o seu próprio génio, na jurisprudência romana,
as seitas dos filósofos, e especialmente as dos estóicos e
epicuristas, cujos princípios não podiam ser mais contrá-
rios não só aos princípios dessa jurisprudência, mas tam-
bém aos de toda a civilização. E não souberam tratá-la de
acordo com as seitas que lhes eram próprias, que foram
aquelas dos tempos, como declaram abertamente tê-lo
feito os próprios jurisconsultos romanos. 220

219 O holandês Hugo Grócio (veja-se a nota 174), o inglês John Selden

(1584-1654) e o alemão Samuel Pufendorf(l637-l694), aos quais Vico chamará


os «príncipes do direito natural». Estes erraram pelo íàcto de atribuírem a épocas
remotas concepções de direito que só poderiam ter surgido muito mais tarde,
ignorando assim as contingências das diversas «seitas dos tempos».
220 Veja-se a nota 213. Enquanto as seitas dos tempos são espontâneas, coe-

rentes e unitárias, as doutrinas das «seitas dos filósofos» são formuladas através
de princípios racionais, e, portanto, construídas.

155
Com esta obra, Vico, para glória da religião cató-
lica, deu à nossa Itália o proveito de não ter de invejar à
Holanda, à Inglaterra e à Alemanha protestantes os seus
três príncipes dessa ciência [do direito natural], e de nesta
nossa idade, no seio da verdadeira Igreja, se descobrirem
os princípios de toda a erudição humana e divina dos gen-
tios. Por tudo isto, teve o livro a fortuna de merecer do emi-
nentíssimo cardeal Lorenzo Corsini, a quem é dedicado, a
sua aprovação, juntamente com este louvor, que não é dos
mais desprezíveis: «Obra que, certamente, por antiguidade
de linguagem e por solidez de erudição basta para dar a
conhecer que vive ainda hoje nos espíritos italianos não só
uma aptidão inata para a eloquência toscana mas também
uma feliz e robusta audácia para realizar novas produções
nas disciplinas mais difíceis; pelo que eu me congratulo
com esta sua ilustríssima pátria». 221

221 Excerto de uma carta de 8 de Dezembro de 1725 do cardeal Corsini, em

resposta à carta de 20 de Novembro com a qual Vico lhe envia a Ciência nova.
Termina aqui o texto autobiográfico publicado em 1728 na Raccolta d'opuscoli
scient!fici e filologici curada por Angelo Calogerà. A dita aggiunta à Vida, escrita
em 1731, após ter saído a segunda edição da Ciência nova (1730), só verá a luz
em 1818. Veja-se, sobre tudo isto, a nossa «Introdução» ..

156
II

Aditamento feito por Vico à sua autobiografia


(1731)

Quando saiu a lume a Ciência nova, cuidou o autor


de enviá-la, entre outros, ao senhor Jean Leclerc, elegendo
como via mais segura a de Livorno, para onde a enviou
com uma carta àquele endereçada, num pacote dirigido ao
senhor Giuseppe Athias 222 (com quem tinha estabelecido
amizade aqui em Nápoles), o mais reputado sábio entre
os hebreus desta época no conhecimento da língua santa,
como o demonstra o Antigo Testamento que publicou em
Amesterdão, obra que se tornou célebre na república das
letras. 223 Este recebeu gentilmente o encargo, ao qual res-
pondeu da seguinte forma:
Não saberia exprimir o prazer que experimentei ao
receber a afectuosíssima carta de V. S." Ilustríssima de
3 de Novembro, que renovou a memória da minha feliz
permanência na vossa cidade tão encantadora. Basta dizer
que aí me encontrei sempre cumulado dos favores e graças
que me foram concedidos pelos seus célebres letrados e,

222 Giuseppe Athias (1672-1745), hebreu de origem espanhola, erudito filó-

logo da Bíblia, além de estudioso de matemática, filosofia, música e direito.


Fundou em Livorno, em 1738, a primeira loja maçónica italiana. Entregou uma
cópia da Ciência nova de 1725 a Newton.
223 Vico atribui a paternidade desta obra a Giuseppe Athias, quando na ver-

dade fora publicada em 1661 (ainda o primeiro não era nascido) por um seu
homónimo, originário de Córdova, de nome Giuseppe ben Abraham Athias.

157
em particular, pela sua gentilíssima pessoa, que me hon-
rou com as suas obras excelentes e sublimes; do que me
vangloriei entre o meu círculo de amigos e os homens de
letras com quem convivi depois durante as minhas viagens
a Itália e a França. Enviarei o pacote e a carta do senhor
Leclerc a um amigo meu de Amesterdão, que lhos fará
chegar por mão própria; e terei então cumprido os meus
deveres e executado as prezadas ordens de Vossa Senhoria
Ilustríssima, a quem agradeço infinitamente a gentileza de
me dar um exemplar [da obra], o qual foi lido pelo meu
círculo de amigos e admirado pela sublimidade do assunto
e abundância de pensamentos novos, e que, como diz o
senhor Leclerc [ele deve tê-lo lido na referida Bibliote-
ca]224, além do deleite e proveito que se extrai de todas
as suas obras quando lidas atentamente, oferece motivo
para pensar em numerosas coisas inusitadas e grandes pela
rareza e sublimidade que possuem. Termino rogando-lhe
que envie os meus mais obsequiosos cumprimentos ao
padre Sostegni. 225

A carta de Vico não obteve porém nenhuma resposta,


talvez porque o senhor Leclerc tivesse morrido, ou porque
a velhice o tivesse feito renunciar às letras e à correspon-
dência literária. 226

224 Parênteses acrescentados por Vico, em referência às duas recensões de

Leclerc ao Direito universal publicadas na Biblioteca antiga e moderna.


225 Excerto da carta de 25 de Fevereiro de 1726, em que G. Athias aceita

levar uma cópia da Ciência nova a Jean Leclerc. Fora o cónego florentino
Roberto Luigi Sostegni, amigo de Vico e seu admirador desde a leitura do
Direito universal, que apresentara G. Athias ao filósofo.
226 Tratar-se-ia, à partida, da segunda hipótese, já que Leclerc só morreu

em 1736.

158
Entre estes estudos severos, não faltaram a Vico
ocasiões de se exercitar também nos mais amenos, como
aquela em que, tendo vindo a Nápoles o rei Filipe V, 227
recebeu ordem do senhor duque de Escalona228 (que gover-
nava então o Reino de Nápoles), por intermédio do senhor
Serafino Biscardi, 229 excelso advogado que se tornara
regente de chancelaria, de escrever, enquanto professor
régio de Retórica, um discurso em honra da vinda do rei.
Como recebeu essa ordem apenas oito dias antes da partida
do rei, teve de escrever o discurso praticamente ao mesmo
tempo que se ia imprimindo. Este saiu in-12, com o título
Panegyricus Philippo V Hispaniarum regi inscriptus. 230
Depois, estabelecido o reino sob o domínio austríaco,
Vico recebeu do senhor Wierich von Daun, 231 então gover-
nador do exército imperial do reino, a seguinte ordem que
lhe chegou com esta honrosa carta:
Ao mui magnífico senhor Giovan Battista de Vico,
catedrático nos Estudos Régios de Nápoles.
Tendo-me ordenado Sua Majestade católica (que Deus
guarde) que fizesse celebrar os funerais dos senhores

227 Filipe V (1683-1746) de Espanha, neto de Luís XIV de França. A sua

visita a Nápoles tem lugar de Abril a Junho de 1702.


228 Juan Manuel Fernández Pacheco (1650-1725), marquês de Vilhena e

duque de Escalona, foi o último vice-rei espanhol do reino de Nápoles.


229 Serafino Biscardi (1643-1711), jurista, aluno de Francesco d'Andrea,

mestre de Gianvincenzo Gravina, membro da Academia de Medinacoeli, onde


provavelmente conviveu com Vico.
230 Veja-se a edição crítica e bilingue desse discurso, curada por Rosalinda

D' Angelo publicada no BCSV, XI, 1981, pp. ll2-145.


231 Phillip Lorenz Wierich von Daun (1669-1741) foi vice-rei de Nápoles

entre 1707-1708 e 1713-1719.

159
D. Giuseppe Capece e D. Carlo di Sangro232 com a pompa
adequada à sua real magnificência e ao sumo valor dos
cavaleiros defuntos, o padre D. Benedetto Laudati, 233 prior
beneditino, foi encarregue de compor a oração fúnebre.
Uma vez que têm de ser feitas outras composições para as
inscrições, pensei, persuadido pelo prezado estilo de Vossa
Senhoria, em encarregar de tal matéria o seu reconhecido
engenho, assegurando-lhe que, além da honra que obterá
com essa digna obra, permanecerá viva em mim a memó-
ria dos seus nobres esforços. Esperando poder vir a ser-lhe
útil em qualquer benefício, desejo que o céu lhe conceda
todas as suas mercês. Sou de Vossa Senhoria, mui magní-
fico senhor,
Deste Palácio, em Nápoles, a 11 de Outubro de 1707
(de própria mão),
o afeiçoado servidor, Conde de Daun.

Vico fez assim as inscrições, os emblemas, as divi-


sas e a relação daqueles funerais, e o padre prior Laudati,
homem de nobres costumes e muito instruído em teologia
e direito canónico, recitou a sua oração. Todos estes tex-
tos foram publicados num livro in folio ilustrado, magni-

232 Giuseppe Capece e Cario di Sangro participaram e foram mártires (o

primeiro foi morto, o segundo decapitado) na dita Conspiração de Macchia (cujo


nome deriva de Giacomo Giambacorta, príncipe de Macchia, que a encabeçou)
em 1701, que teve como objectivo, sem sucesso, libertar Nápoles do domínio
espanhol, a favor dos austríacos. Dado que a dinastia de Absburgo reinou em
Nápoles de 1707 a 1734, Vico não faz qualquer referência na Vida à obra que
escreveu em 1701, por encargo do vice-rei espanhol da época, de um ponto de
vista tranco-espanhol e borbónico, intitulada Principum neapolitanorum coniu-
rationis anni MDCCJ historia.
233 O padre Benedetto Laudati foi revisor eclesiástico das obras de Vico De

antiquissima, das respostas ao Giornale de ' Letterati e da biografia De rebus


gestis Antonii Caraphaei.

160
ficamente impresso a expensas do erário real, com o título
Actafuneris Caro/i Sangrii et Iosephi Capycii. 234
Passado não muito tempo, por honroso encargo do
vice-rei, o senhor conde Carla Borromeo, 235 Vico compôs
as inscrições para os funerais que se celebraram na capela
real por ocasião da morte do imperador José. 236
De seguida, a fortuna adversa quis feri-lo na sua repu-
tação de letrado. 237 Porém, uma vez que não era assunto da
sua conta, a adversidade granjeou-lhe uma honra que não
era sequer lícito desejar enquanto súbdito de uma monar-
quia. Recebeu do senhor cardeal Wolfgang von Schrat-
tenbach, vice-rei, 238 por ocasião dos funerais da imperatriz
Leonor, 239 o encargo de compor as seguintes inscrições,
que ele concebeu de maneira tal que, em separado, cada

234 O título completo da obra, curada e escrita quase inteiramente por Vico,

editada por Felice Mosca em 1708, é: Publicum Caro/i Sangrii et Josephi Capy-
cii nobilium neapolitanorumfimus a Caro/o Austrio III. Hispan. lndiar. et Neap.
rege indictum.
235 Cario Borromeo Arese (1657-1734) foi vice-rei de Nápoles de 1710 a

1713.
236 José I (1678-1711), imperador do Sacro Império Romano-Germânico.

Em Nápoles, as exéquias tiveram lugar de li a 20 de Maio de 1711 (morrera em


Viena a 17 de Abril), na capela do Palácio Real. As inscrições que Vico escreveu
para essa ocasião não chegaram até nós.
237 As inscrições redigidas por Vico acabaram por não ser publicadas, possi-

velmente por não terem agradado aos comitentes. O encargo foi depois atribuído
a Matteo Egizio (1674-1745), arqueólogo que ocupou em Nápoles os cargos de
secretário da cidade e de bibliotecário régio.
238 Wolfgang von Schrattenbach (1660-1738), vi ce-rei austríaco de Nápoles

del719al721.
23 9 Leonor Madalena de Neoburgo (1655-1720), terceira mulher do impe-

rador Leopoldo I e mãe de Carlos VI da Áustria. Em Nápoles, as exéquias da


imperatriz tiveram lugar entre o final de Fevereiro e o início de Março de 1720.

161
uma bastasse por si só e todas juntas formassem uma ora-
ção fúnebre. Aquela que devia colocar-se em cima da porta
da capela real, no exterior, contém o proémio:
HELIONORAE AUGUSTAE- E DUCUM NEOBURGENSIUM DOMO

- LEOPOLDI CAES. UXORI LECTISSIMAE - CAROLUS VI AUSTRIUS

ROMAN. IMPERATOR HISPAN. ET NEAP. REX - PARENTI OPTIMAE

- IUSTA PERSOLVIT- REIP. HILARITAS PRINCEPS- LUGET- HUC-

PUBLICI LUCTUS OFFICIA CONFERTE- CIVES. 240

A primeira das quatro que deviam ser afixadas em


cima dos quatro arcos da capela contém os louvores:
QUI OCULIS HUNC TUMULUM I NANEM SPECTAS- REM MENTE

!NANEM COGITA - NAMQUE INTER REGIAE FORTUNAE DELICIAS

FLUXAE VOLUPTATIS FUGA - lN FASTIGIO MULIEBRIS DIGNITATIS

SUl AD IMAM USQUE CONDITIONEM DEMISSIO - INTER GENERIS

HUMANI MORTALES CULTUS AETERNARUM RERUM DILIGENTIA -

QUAE - HELIONORA AUGUSTA DEFUNCTA - UBIQUE lN TERRIS

IACENT- HEIC- SUPREMIS HONORIBUS CUMULANTUR. 241

240 «À imperatriz Leonor - da casa dos duques de Neoburgo - esposa

distintíssima do imperador Leopoldo- Carlos VI da Áustria, imperador romano,


rei de Espanha e de Nápoles- á óptima mãe- presta as suas honras.- O príncipe,
alegria do Estado, chora. - Ó cidadãos,- contribuí aqui para as honras do luto
público.»
24 1 «Tu, cujos olhos observam este túmulo inane - com a mente pensa uma

coisa inane- pois, entre as delícias da fortuna régia, a fuga do prazer efémero-;
no cume da dignidade feminina, o abaixamento até á condição mais inferior -;
entre os cultos mortais do género humano, o esmero nas coisas eternas, - aque-
las coisas que, - morta a imperatriz Leonor, - jazem em toda a parte - aqui são
acumuladas com honras supremas.»

162
A segunda esclarece a grandeza da perda:
SI DIGNI lN TERRIS REGES- QUI EXEMPLIS MAGIS QUAM LEGI-

BUS - POPULORUM AC GENTIUM CORRUPTOS EMENDANT MORES

- ET REBUSPP. CIVILEM CONSERVANT FELICITATEM - HELIONORA

- UT AUGUSTI CONIUGII SORTE ITA VIRTUTE- FOEMINA lN ORBE

TERRARUM VERE PRIMARIA - QUAE UXOR MATERQUE CAESARUM

- VITAE SANCTIMONIA IMPERII CHRISTIAN! BEATITUDINI - PRO

MULIEBRI PARTE QUAMPLURIMUM CONTULIT - ANIMITUS EHEU

DOLENDA OPTIMO CUIQUE IACTURA! 242

A terceira suscita a dor:


QUI SUMMAM - EX CAROLO CAESARE PRINCIPE OPTIMO -

CAPITIS VOLUPTATEM - CIVES - EX HELIONORA EIUS AUGUSTA

MATRE DEFUNCTA - AEQUE TANTUM CAPIATIS DOLOREM - QUAE

FELICI FOECUNDITATE - QUOD ERAT OPTANDUM - EX AUSTRIA

DOMO VOBIS PRINCIPEM DEDIT- ET RARIS AC PRAECLARIS REGIA-

RUM VIRTUTUM EXEMPLIS - QUOD ERAT MAXIME OPTANDUM -

VOBIS OPTIMUM DEDIT. 243

242 «Se há na terra reis dignos - que mais com os exemplos do que com as

leis - corrigem os costumes corruptos dos povos e das gentes - e conservam a


felicidade civil dos Estados- Leonor- pelo seu augusto matrimónio e também
pela sua virtude- verdadeiramente a primeira entre todas as mulheres no orbe
das terras-, e a qual, esposa e mãe de imperadores,- com a santidade da vida-
contribuiu, o mais que podia uma mulher, - para a felicidade do império cristão.
- Ah, a perda deve ser lamentada com toda a alma por todos os homens de bem!»
243 «Ó cidadãos- vós que extraís do imperador Carlos, príncipe óptimo- o

maior prazer - extraí também a maior dor - da morte da sua augusta mãe, Leo-
nor, - que, com a sua feliz fecundidade,- vos deu um príncipe da casa da Áustria
- o que era desejável - e, por raros e admiráveis exemplos de virtudes régias - o
que era o mais desejável - vo-lo deu óptimo.»

163
A quarta e última oferece a consolação:
CUM LACHRYMIS - NUNCUPATE CONCEPTISSIMA VOTA -
CIVES- UT- HELIONORAE- RECEPTA COELO MENS- QUALEM EX

SE DEDIT LEOPOLDO - TALEM EX ELISABETHA AUGUSTA CAROLO


IMP. - A SUMMO NUMINE - IMPETRET SOBOLEM - NE SUl DESI-

DERIUM PERPETUO AMARISSIMUM - CHRISTIANO TERRARUM ORBI

- RELINQUAT. 244

Estas inscrições não foram depois erigidas. No


entanto, mal tinha passado o primeiro dia dos funerais,
o senhor D. Niccolà d' Afflitto, 245 nobilíssimo cavalheiro
napolitano, que fora anteriormente um eloquente advo-
gado e era, à época, auditor do exército (estava, além disso,
ao serviço do senhor cardeal, e os grandes trabalhos asso-
ciados a um cargo de tanta confiança levaram-no depois à
morte, a qual foi lamentada por todos os homens de bem),
quis em todo o caso que Vico se encontrasse de noite em
casa para lhe fazer uma visita, durante a qual lhe disse
estas palavras: «Eu interrompi a discussão de um assunto
gravíssimo com o senhor vice-rei para vir aqui, e dentro de
pouco tempo voltarei ao Palácio para a retomar». Durante
a conversa, que durou muito pouco tempo, disse-lhe:

244 «Com as lágrimas - pronunciai os votos mais solenes, - ó cidadãos, -

para que, - recebido no céu o espírito de Leonor, - tal como ela deu descendên-
cia a Leopoldo - assim consiga - do sumo Deus - que a augusta Isabel a dê ao
Imperador Carlos - para que não deixe para sempre - o mundo cristão - numa
amaríssima saudade de si.»
245 Niccoló d' Affiitto, advogado e íimdador da academia dos Uniti, da qual

fez parte Vico. Cfr. Fausto Nicolini, Uomini di spada, di chiesa, di toga, di studio
al tempo di Giambattista Vico, Milano, Hoepli, 1942, pp. 96-101.

164
«Ü senhor cardeal disse-me que lamentava sobremaneira
esta desgraça que imerecidamente vos aconteceu». Ao que
Vico respondeu que agradecia infinitamente ao senhor car-
deal tamanha grandeza de espírito, própria de um homem
superior, usada com um súbdito, para quem a maior glória
é a de obsequiar o seu príncipe.
Entre tantas ocasiões lutuosas chegou-lhe uma ale-
gre, aquando das bodas do senhor D. Giambattista Filoma-
rino, 246 um cavalheiro pio e generoso, de graves costumes
e mente muito prendada, com Dona Maria Vittoria Carac-
ciolo, dos marqueses de Sant'Eramo; e, na colectânea das
Composições feitas para esta ocasião, impressa in quarto,
compôs um epitalâmio num conceito novo. Trata-se de
um poema monódico intitulado Giunone in danza, no qual
Juno, a deusa dos matrimónios, é a única a falar e con-
vida à dança os outros deuses maiores; a propósito desse
assunto, discorre sobre os princípios da mitologia histórica
desenvolvida ao longo de toda a Ciência nova.
Sobre esses mesmos princípios compôs uma canção
pindárica, mas em verso livre, sobre a História da poe-
sia,247 desde que nasceu até aos nossos dias, dedicada à
excelente e sábia Dona Marina della Torre, nobre geno-
vesa, duquesa de Carignano.

246 Giambattista Filomarino della Rocca tinba sido discípulo de Vico. Em

1721, ano do seu casamento, Vico publicou a referida colectânea, onde se incluía
o poema Giunone in danza. Vico dedica-lhe ainda, em 1722, as Notae ao Direito
universal.
247 A canção intitulava-se Origine, progresso e caduta della poesia, e foi

publicada em 1723.

165
Aqui, o estudo dos bons escritores em língua vulgar
que tinha feito em jovem, embora interrompido durante
tantos anos, deu-lhe a faculdade, em velho, de não só
elaborar estes poemas mas também de compor duas ora-
ções naquela língua e, finalmente, usando-a em todo o seu
esplendor, de escrever a Ciência nova. A primeira dessas
orações foi por ocasião da morte de Anna von Aspermont,
condessa d' Althann e mãe do senhor cardeal d' Althann,
na altura vice-rei. 248 Vico escreveu-a como forma de
agradecer um favor que lhe tinha sido feito pelo senhor
D. Francesco Santoro, então secretário do reino. Este, na
qualidade de juiz da vicaria civil, foi comissário de uma
acção judicial contra um genro de Vico, 249 que se decidiu
conjuntamente nos dois tribunais, em duas quartas-feiras
seguidas (dia em que a vi caria criminal se transferia para o
Conselho Colateral Régio para expor os casos). Para favo-
recer Vico, compareceu ali de propósito o senhor O. Anto-
nio Caracciolo, marquês de Amorosa, à época regente da
vi caria (e que no governo da cidade, pelas suas integridade
e prudência, conseguiu contentar nada menos do que qua-
tro vice-reis). O senhor Santoro expôs o caso a D. Antonio
de uma forma tão completa, clara e exacta que lhe poupou
o apuramento dos factos, o que teria feito com que a acção
se tivesse prolongado em demasia e fosse arrebatada pelo
adversário. Vico improvisou um argumento tão copioso

248 Anna von Aspermont (1645-1723), mãe do cardeal Michael Friedrich

von Althann (1682-1734), que foi vi ce-rei de Nápoles de 1722 a 1728.


249 Antonio Servillo (1696-1750), marido de Luisa Vico.

166
que descobriu, contra uma escritura de um notário vivo,
nada menos do que trinta e sete presunções de falsidade,
que teve de reduzir a determinados pontos para dar uma
ordem à argumentação e, em virtude dessa ordem, retê-
-los todos na memória. E fê-lo com tal colorido de paixão
que os juízes, na sua suma bondade, não só não abriram
a boca durante todo o tempo em que ele fundamentou o
caso como nem sequer se olharam nos olhos. No final, o
senhor regente sentiu-se tão comovido que, temperando o
sentimento com a gravidade que era requerida a tão alto
magistrado, fez um gesto que combinava dignamente
compaixão pelo réu e desdém pelo queixoso. Pelo que a
vicaria, que é um tanto rigorosa a pronunciar sentenças,
sem que a falsidade tenha sido criminalmente provada,
absolveu o arguido.
Foi esse o motivo pelo qual Vico escreveu a oração
supramencionada, que vem na colectânea de Composições
feita por esse mesmo senhor Santoro, impressa in quarto. 250
Aí, a propósito de dois senhores, filhos dessa santa princesa,
que participaram na guerra de sucessão da monarquia de
Espanha, faz uma digressão com um estilo a meio caminho
entre o da prosa e o do verso - qual deve ser o estilo histó-
rico, na opinião expressa por Cícero na breve e substancial
observação que faz acerca do modo de escrever a histó-
ria, segundo a qual esta deve empregar verba ferme poeta-
rum,251 talvez para que os historiadores se mantenham no

250 A Orazione in morte di Anna d 'Asperrnont foi publicada em 1724.


251 Usar «quase sempre que possível as palavras dos poetas». Cfr. De ora-
tore (I, 28, 128): «verba prope poetarurn».

167
seu antiquíssimo domínio, uma vez que, como plenamente
se demonstrou na Ciência nova, os primeiros historiadores
das nações foram os poetas. Abrange aí a guerra por inteiro,
nas suas causas, deliberações, ocasiões, factos e conse-
quências, e põe-na em exacto confronto, sob todos estes
aspectos, com a segunda guerra púnica (que foi a maior
que alguma vez se fez segundo a memória dos séculos),
demonstrando que aquela foi ainda maior. Acerca dessa
digressão, o príncipe senhor D. Giuseppe Caracciolo dos
marqueses de Sant'Eramo, cavalheiro de graves costumes,
sabedoria e bom gosto nas letras, dizia com muita graça
que queria encerrá-la num grande volume em papel branco,
em cujo exterior se lesse o título: História da guerra pela
monarquia de Espanha.
A outra oração foi escrita em ocasião da morte de
donaAngela Cimmino, marquesa da Petrella. 252 Essa dama
nobre e sábia, nas conversas cheias de dignidade que eram
mantidas naquela casa (frequentada em grande parte por
homens de saber), emanava e inspirava de modo imper-
ceptível, tanto nos actos como nos discursos, gravíssimas
virtudes morais e civis; pelo que aqueles que conversavam
com ela eram naturalmente levados, sem se aperceberem,
a reverenciá-la com amor e a amá-la com reverência. Por
isso, para tratar com verdade e, ao mesmo tempo, com
dignidade este assunto íntimo, a saber, «que pela sua vida
ela ensinou a doce austeridade da virtude», Vico quis tes-

252 Angela Cimmino (1699-1726), letrada napolitana que recebia no seu

salão os intelectuais do reino (entre os quais Vico ), morrera de parto.

168
tar, na sua oração, se a delicadeza dos sentidos gregos
podia conter a grandeza das expressões romanas, e se a
língua italiana era capaz de uma e da outra. A oração foi
incluída numa colectânea in quarto, magnífica e engenho-
samente impressa, onde as primeiras letras de cada autor
são gravadas em cobre, com emblemas descobertos por
Vico que aludem ao tema. A introdução foi escrita pelo
padre D. Roberto Sostegni, 253 cónego lateranense floren-
tino, homem que pela melhor cultura e pelos amabilíssi-
mos costumes fez as delícias desta cidade. Ele pecava pelo
humor excessivamente colérico (o que amiúde lhe provo-
cou doenças mortais e, finalmente, devido a um abcesso
que se lhe formara na ilharga direita, a morte, para dor
geral de todos os que o conheceram), mas corrigia-o tão
bem com a sua sabedoria que parecia ser calmíssimo por
natureza. Do ilustríssimo abade Anton Maria Salvini, 254 de
quem tinha sido aluno, [o padre Sostegni] aprendeu lín-
guas orientais e grego, sendo também muito competente
na língua latina, particularmente nos versos; em toscano,
escrevia com um estilo muito robusto à maneira de Casa; 255
e, quanto às línguas vivas, além da francesa, que agora se
tornou quase comum, era versado na inglesa, na alemã e
até um pouco na turca. Na prosa era muito raciocinativo e
elegante. Dirigiu-se a Nápoles, como tinha a bondade de
declarar publicamente, por ter lido o Direito universal, que

253 Veja-se a nota 225.


254 Veja-se a nota 182.
255 Giovanni deli a Casa (veja-se a nota 90).

169
Vico enviara a Salvini; soube desse modo que em Nápoles
as letras eram cultivadas de modo profundo e severo, e
Vico foi o primeiro que ele quis conhecer, e com o qual
estabeleceu uma estreita correspondência, em lembrança
da qual ele o honra agora com este elogio.
Por volta dessa época, o senhor conde Giovanartico
di Porcia, 256 irmão do senhor cardeal Leandro di Porcia, 257
homem ilustre quer pela sua cultura quer pela nobreza,
concebeu um projecto para guiar com mais segurança a
juventude no curso dos seus estudos, com base na vida
literária de homens célebres por erudição e saber. Entre os
napolitanos que considerou dignos, que eram em número
de oito (os quais não se nomeiam para não ofender outros,
doutíssimos, que, talvez por não terem chegado ao seu
conhecimento, foram omitidos), ele dignou-se a incluir
Vico. E com uma carta honorabilíssima escrita de Veneza,
que seguiu por via de Roma através do senhor abade Giu-
seppe Luigi Esperti, 258 incumbiu o senhor Lorenzo Cicca-
relli259 de obter a vida literária de Vico. Este, em parte por

256 Giovanni Artico di Porcia (1682-1743), do Friul , foi autor de tragédias

(Medea e Seiano) e promotor do Progetto ai letterati d 'ltalia per iscrivere !e


!oro vi te.
257 Leandro di Porei a (1673-1740), irmão mais velho de Giovanartico, bispo

de Bérgamo e cardeal. Foi ele quem, através do abade Esperti, pôs Vico em
contacto com Giovanartico.
258 Giuseppe Luigi Esperti, advogado, abade em Nápoles e monsenhor em

Roma. Vico entregou-lhe cópias da Ciência nova para distribuição em Roma


(uma das quais para o cardeal Corsini) e em Veneza (para Giovanartico di Porcia,
Antonio Conti e Cario Lodo li).
259 Lorenzo Cicarelli, enfant terrible da cultura napolitana, editou em Nápo-

les, sob o pseudónimo anagramático de Cellenio Zacclori, várias obras censura-


das pela Igreja, entre as quais o Dialogo sopra i due massimi sistemi dei mondo

170
modéstia, em parte pela sua fortuna [adversa], negou-se
muitas vezes a escrevê-la; mas graças às repetidas e gentis
solicitações do senhor Ciccarelli, dispôs-se finalmente a
fazê-lo. E, como se vê, escreveu-a enquanto filósofo; pelo
que meditou sobre as causas, tanto naturais como morais, e
sobre as ocasiões da fortuna; meditou sobre as inclinações
ou aversões que teve, desde criança, por certas espécies
de estudo mais do que por outras; meditou sobre as opor-
tunidades e adversidades que favoreceram ou atrasaram
os seus progressos; meditou, enfim, sobre certos esforços
seus para seguir as inclinações certas, que depois haviam
de dar origem às reflexões a partir das quais elaborou a sua
última obra, a Ciência nova, que comprovaria que a sua
vida literária devia ter sido esta e não outra.
Entretanto, a Ciência nova tinha-se já tornado céle-
bre pela Itália, em particular em Veneza, cujo residente
[diplomático] em Nápoles à época tinha adquirido todos
os exemplares que restavam a Felice Mosca, onde se
imprimira a obra, impondo-lhe que lhe entregasse todos os
que poderia ainda ter, devido ao grande número de pedidos
que lhe tinha sido feito naquela cidade. Com efeito, em
três anos a obra tinha-se tornado tão rara que um livrinho
de doze fólios in-12 se comprava amiúde por dois escu-

de Galileu (em 171 0), a tradução latina do Traité de physique de Jacques Rohault
(em 1713), os Parere sul/a incertezza della medicina de Leonardo Di Capua (em
1714), a tradução de Alessandro Marchetti de De rerum natura de Lucrécio, e
o texto original do Decameron de Bocaccio (em 1718). Veja-se Gustavo Costa,
«Cultura italiana e cultura europea nella età di Vico», in Vico e l 'Europa. Contra
la «boria delle nazioni», Milano, Guerini e Associati, 1996, pp. 17-38.

171
dos ou mais ainda. Foi então que Vico soube finalmente
que na estação postal, lugar que não tinha por hábito fre-
quentar, havia cartas a ele endereçadas. Uma destas era do
padre Cario Lodoli, 260 dos Menores Observantes, teólogo
da sereníssima república de Veneza, com data de 15 de
Janeiro de 1728, que tinha sido retida na estação postal
durante quase sete serviços dos correios. Nessa carta, do
teor que se segue, o padre Lodoli convidava Vico a reim-
primir aquele livro em Veneza:
Aqui em Veneza circula, com indizível aplauso, entre
as mãos dos homens mais distintos, o vosso profundíssima
livro sobre os Princípios de uma ciência nova acerca da
natureza das nações: quanto mais o lêem, mais admiração
e estima ganham pela mente que o compôs. Difundindo-
-se cada vez mais a sua fama graças aos louvores e dis-
cussões que tem suscitado, é cada vez mais procurado, e
quando não se encontram exemplares na cidade mandam-
-se vir alguns de Nápoles. Mas como isto gera alguns
incómodos devido à distância, houve quem deliberasse
que a obra se devia imprimir em Veneza. Sendo também
eu dessa opinião, pareceu-me conveniente consultar antes
Vossa Senhoria, o autor, em primeiro lugar para saber se
isso seria do vosso agrado e, depois, para ver se teria ainda
alguma coisa a acrescentar ou a alterar, e se faria a cortesia
de gentilmente mo comunicar.

260 Cario Francesco Lodoli (1690-1761), menor observante, revisor oficial

dos livros publicados em Veneza ou que aí entravam. Foi ele quem conseguiu
resolver o impasse em que se encontrava a publicação da autobiografia de Vico,
talvez para o incentivar a fazer a segunda edição da Ciência nova em Veneza.

172
O padre Lodoli reforçou o seu pedido ao incluir uma
carta do senhor abade Antonio Conti, 261 nobre véneto,
grande metafísico e matemático, dotado de erudição
recôndita, e que alcançou, graças às viagens culturais que
fez, elevada estima por parte de Newton, de Leibniz e de
outros grandes sábios da nossa época, tendo ficado famoso
na Itália, na França e na Inglaterra pela sua tragédia César.
Este, com cortesia igual à grande nobreza, ciência e eru-
dição que possuía, escreveu-lhe a seguinte carta, com data
de 3 de Janeiro de 1728:
Não podia Vossa Senhoria Ilustríssima encontrar um
correspondente mais versado em todos os géneros de estu-
dos e mais influente entre os livreiros do que o reverendís-
simo padre Lodoli, que se oferece para fazer imprimir o
livro dos Princípios de uma ciência nova. Fui eu um dos
primeiros a lê-lo, a apreciá-lo e a fazê-lo apreciar pelos
meus amigos, que convêm todos em que não temos na lín-
gua italiana um livro que contenha mais matérias eruditas
e filosóficas, e todas originais na sua espécie. Mandei para
França um pequeno excerto dele, para dar a conhecer aos
franceses que muito se pode acrescentar ou corrigir nas
ideias da cronologia e da mitologia não menos do que nas
da moral e da jurisprudência, que eles tanto estudaram.
Os ingleses serão obrigados a confessar o mesmo quando
virem o livro. Mas há que torná-lo mais universal com
outra impressão e com caracteres mais cómodos. Vossa
Senhoria ilustríssima está ainda a tempo de lhe juntar tudo

261 Antonio Conti (1677-1749), filósofo, escritor e tradutor, figura de relevo

da cultura italiana setecentista, correspondia-se com Leibniz e Newton. Foi autor


de tragédias, entre as quais Giulio Cesare (1726) , a que Vico faz referência.

173
aquilo que estimar vir a propósito, seja para acrescentar a
erudição e a ciência, seja para desenvolver certas ideias
referidas de modo resumido. Eu aconselhá-lo-ia a pôr no
início do livro um prefácio que expusesse os diversos prin-
cípios das várias matérias tratadas, bem como o sistema
harmónico que daí resulta, o qual se deveria estender às
coisas futuras, que dependem todas das leis daquela his-
tória eterna da qual transmitiu uma ideia tão sublime e tão
fecunda. 262

A outra carta que jazia também na estação postal era


do senhor conde Giovanartico di Pareia, que em cima lou-
vámos, e que a 14 de Dezembro de 1727 tinha escrito a
Vico o seguinte:
Assegura-me o padre Lodoli (que, juntamente com o
senhor abade Conti, presta reverências a Vossa Senhoria,
confirmando ambos a grande estima que têm pela sua vir-
tude) que encontrará quem imprima a sua admirável obra
dos Princípios de uma ciência nova. Se Vossa Senhoria
quiser acrescentar alguma coisa, tem plena liberdade para
o fazer. Enfim, tem agora campo para se poder alargar
nesse livro, acerca do qual os homens de ciência afirmam
compreender mais do que aquilo que vem expresso, con-
siderando-o uma obra-prima. Felicito-a por isso, Vossa
Senhoria, e asseguro-a de que tenho um prazer infinito em
ver que finalmente produções do espírito com o vigor e
a densidade das suas vêm mais cedo ou mais tarde a ser

262 Sabe-se que Vico seguiu o conselho de Antonio Conti, pois, embora a

edição veneziana da Ciência nova não se tenha levado a termo, a edição napo-
litana de 1730 (bem como a de 1744) apresentará no início uma gravura e a
respectiva explicação, assim como um livro inteiramente dedicado ao estabele-
cimento dos princípios da obra.

174
conhecidas, e que a essas não falta fortuna enquanto não
faltarem leitores com discernimento e inteligência.

Perante os convites gentis e os encorajamentos auto-


rizados de tantos homens de tamanha importância, Vico
julgou-se obrigado a consentir essa reimpressão e a escrever-
-lhe as devidas anotações e aditamentos. Ao mesmo tempo
que chegavam a Veneza as suas primeiras respostas (pois,
pela razão supramencionada, tinham tardado demasiado), o
senhor abade Antonio Conti, por uma afeição particular que
tinha por Vico e pelas suas obras, honrou-o com esta outra
carta datada de 10 de Março de 1728:
Escrevi há dois meses uma carta a Vossa Senhoria
ilustríssima, que lhe terá chegado, juntamente com uma
outra do reverendíssimo padre Lodo li. Não tendo recebido
nenhuma resposta, ouso incomodá-lo de novo, movendo-
-me apenas a intenção de que Vossa Senhoria ilustríssima
saiba quanto admiro e desejo tirar proveito das luzes que
abundantemente espalhou nos seus Princípios de uma
ciência nova. Acabado de regressar de França, li-o com
sumo prazer, e as descobertas críticas históricas e morais
pareceram-me tão novas quanto instrutivas. Algumas pes-
soas querem empreender a reimpressão do mesmo livro
com caracteres mais cómodos e numa forma mais ade-
quada. O padre Lodoli tinha este desígnio e disse-me que
tinha escrito a Vossa Senhoria ilustríssima suplicando-
-lhe que adicionasse outras dissertações sobre o mesmo
assunto ou ilustrações dos capítulos do livro, se porven-
tura as tivesse preparado. O senhor conde Porcla enviou
ao mesmo padre Lodoli a Vida de si mesmo que compôs,
e que contém várias matérias de erudição respeitantes ao

175
progresso do sistema histórico e crítico estabelecido nos
seus outros livros. Esta edição é muito desejada, e mui-
tos franceses, aos quais apresentei uma ideia resumida do
livro, pedem-na com premência.
Por conseguinte, Vico sentiu-se ainda mais estimu-
lado a escrever as devidas anotações e comentários para
esta obra. E, durante o tempo em que trabalhava nela, que
durou cerca de dois anos, aconteceu que o senhor conde de
Porcia, numa ocasião que não é necessário narrar aqui, lhe
escreveu a dizer que queria imprimir um Projecto dirigido
aos letrados de Itália mais distintos pelas obras publicadas
ou mais ilustres por renome de erudição e de saber, como
se disse acima, para que escrevessem as próprias Vidas
literárias, a partir de uma sua ideia, de modo a promover
um outro método, mais acertado e eficaz, do qual a juven-
tude pudesse tirar proveito no curso dos seus estudos.
Disse ainda que queria juntar como exemplo a de Vico,
que este lhe tinha já enviado, uma vez que, das muitas que
lhe tinham chegado, parecia-lhe ser a única que servira que
nem uma luva ao seu desígnio. De seguida, Vico, que jul-
gara que Porcia ia imprimir a sua Vida juntamente com as
de todos os outros, e que tinha declarado, ao enviar-lha, que
se atribuía a grande honra de ser o último de todos em tão
gloriosa colectânea, suplicou-lhe com todas as suas forças
que não o fizesse sob nenhuma condição, pois aquele não
atingiria o seu fim, e Vico, sem ter qualquer culpa, seria
alvo da inveja dos outros. Como, apesar de tudo, o senhor
conde se mantinha firme na sua proposta, Vico fez-lhe

176
chegar os seus protestos não só desde Roma, através do
senhor abade Giuseppe Luigi Esperti, mas também desde
Veneza, através do próprio padre Lodoli, que soubera pelo
senhor conde que este se ocuparia de imprimir o Projecto
e a Vida de Vico. Com efeito, o padre Calogerà, 263 que os
imprimiu no primeiro tomo da sua Colectânea de opúscu-
los eruditos, tornou públicos estes protestos de Vico numa
carta ao senhor Va11isneri, 264 que ocupa na obra o lugar de
prefácio. Mas se o procedimento do padre foi favorável a
Vico, desaprouve-lhe o impressor, que arruinou a edição
devido a um grande número de erros, até nas passagens
fundamentais. Além disso, no final do catálogo das obras
de Vico, que vem logo a seguir à sua Vida, publicou-se o
seguinte: «Princípios de uma ciência nova acerca da natu-
reza das nações, em reimpressão, com as Anotações do
autor, em Veneza».
Ademais, aconteceu que, por volta desse mesmo
período, Vico foi alvo de uma vil impostura a propósito
da Ciência nova, que vem entre as Notícias literárias das
Actas de Leipzig, do mês de Agosto de 1727.265 Essa notí-
cia omite o título do livro, que é o principal dever de um

263 Angelo Calogerà (1699-1766), monge camaldulense, filósofo e tradu-

tor, foi revisor das obras que circulavam na república de Veneza e promotor da
Raccolta d'opuscoli scientifici e filologici onde vem publicada a autobiografia
de Vico.
264 Antonio Vallisneri (1661-1730), naturalista, autor de várias obras dedica-

das ao estudo dos insectos, foi médico, professor de Medicina na Universidade


de Pàdua e membro da Royal Society.
265 Os Acta eruditorum lipsiensia publicaram esta «notícia literária» sobre a

Ciência nova no número de Outubro de 1727.

177
recenseador literário (uma vez que lhe chama somente
Ciência nova, sem dizer acerca de que matéria). Fornece
informação falsa acerca do formato do livro, dizendo que
é in octavo (quando é in-12). Mente a respeito do autor
e afirma que um certo amigo italiano assegura tratar-se
de um «abade» da família Vico (quando Vico é pai de
filhos e filhas, e até avô). Relata que a obra trata de um
sistema, ou melhor, de «fábulas» do direito natural (sem
distinguir o direito natural das gentes, que é aí discutido,
do direito natural dos filósofos, discutido pelos nossos teó-
logos morais, como se fosse esse o tema da Ciência nova,
quando não é mais do que um corolário seu). Comunica
que é deduzida a partir de princípios distintos daqueles de
que se têm até agora servido os filósofos (com o que, sem
querer, confessa a verdade, pois não seria «ciência nova»
aquela que se deduzisse dos mesmos princípios). Nota que
é conforme ao gosto da Igreja católica romana (como se
o facto de se fundar sobre a providência divina não fosse
próprio de toda a religião cristã, e mesmo de qualquer
religião: pelo que o recenseador se denuncia como epi-
curista ou espinosista e, ao pensar estar a acusá-lo, faz ao
autor o maior dos louvores, isto é, o de ele ser piedoso).
Observa que nessa obra se empreendem muitos esforços
para impugnar as doutrinas de Grócio e de Pufendorf (e
omite Selden, que foi o terceiro príncipe dessa doutrina
[do direito natural], talvez porque era instruído na língua
hebraica). Ajuíza que ela satisfaz mais o engenho do que
a verdade (e aqui Vico faz uma digressão, onde trata dos

178
princípios mais profundos do engenho, do riso e dos ditos
agudos e argutos: diz que o engenho gira sempre em torno
do verdadeiro e é o pai dos ditos agudos, e que a fantasia
débil é a mãe das argúcias, e prova que a natureza dos deri-
sórios é mais bestial do que humana). Declara que o autor
fraqueja perante a grande dimensão das suas conjecturas
(e, ao mesmo tempo, reconhece que é grande a dimensão
das suas conjecturas) e que exerce a sua nova arte crítica
fundamentando-se nos autores das nações (mas se só ao
fim de mil anos apareceram nelas os escritores, não podia
a nova arte crítica servir-se da autoridade destes). Con-
clui, enfim, que a obra foi recebida com mais tédio do que
aplauso pelos próprios italianos (quando, três anos após a
sua impressão, ela se tinha tornado tão rara em Itália que
se algum exemplar se encontrava este era vendido por um
preço altíssimo, como acima se relatou). E foi assim que
um italiano, através de uma mentira ímpia, informou os
letrados protestantes de Leipzig que um livro que con-
tém doutrina católica desagradava à sua nação inteira! 266
Vico teve de responder, coisa que fez num livrinho in-12,
intitulado Notae in Acta lipsiensia, 267 na mesma altura em
que, devido a uma úlcera gangrenosa na garganta (pois
foi nesse momento que lhe chegou a notícia) - ele, um

266 Sendo dirigida por protestantes, os Acta lipsiensia insinuavam que a

Ciência nova fosse uma obra de apologia da Igreja Católica Romana.


267 A obra saiu em 1729, editada por Felice Mosca, e é habitualmente conhe-

cida por Vici vindiciae (o título completo é J Baptistae Vici Notae in «Acta eru-
ditorum» lipsiensia mensis augusti a. MDCCXXVII, ubi inter <<Nova !iteraria»
unum extat de ejus libra, cui titulus «Principj di una scienza nuova dintorno alla
natura de l/e nazioni» ).

179
velho de sessenta anos -, foi obrigado pelo senhor Dome-
nico Vitolo, 268 um médico muitíssimo sábio e experiente,
a submeter-se ao perigoso remédio dos fumos de cinábrio,
que, se por azar alcança os nervos, até nos jovens provoca
a apoplexia. Por motivos numerosos e relevantes, Vico
trata quem urdiu essa impostura por «vagabundo desco-
nhecido»?69 Penetra no fundo da sórdida calúnia e prova
que foi fabricada com cinco objectivos: o primeiro, para
fazer algo que desgostasse ao autor; o segundo, para que
os letrados de Leipzig considerassem negligenciável pro-
curar um livro tido como vão, falso, católico, e de um autor
desconhecido; o terceiro, para que, caso lhes viesse a von-
tade de o obter, dificilmente o encontrassem pelo facto de
o título, o formato e a condição do autor terem sido omiti-
dos e falseados; o quarto, para que mesmo que se alguma
vez o conseguissem encontrar o julgassem obra de outro
autor devido a tantas outras circunstâncias verdadeiras; o
quinto, para continuar a ser tido como um bom amigo por
aqueles senhores alemães. Vico trata os senhores jorna-
listas de Leipzig com a civilidade devida a um grupo de
homens de letras de uma nação famosa, e avisa-os que de
futuro se guardem de um amigo do género, que lesa aque-
les de quem se diz amigo, e que os colocou nas péssimas
circunstâncias de serem acusados de duas coisas: uma, a

268 Médico e colega de Vico na universidade de Nápoles, onde ensinou

Medicina.
269 Vico terá pensado que o ignotus erro, ou seja, o italiano anónimo que

transmitira aos recenseadores dos Acta informações íàlsas acerca da Ciência


nova e do seu autor, fosse Pietro Giannone, que frequentemente se ausentava
de Nápoles.

180
de incluírem nas Actas relações e opiniões acerca de livros
que não leram; outra, a de julgarem uma mesma obra com
juízos efectivamente contrários entre si . Àquele que trata
pior os amigos do que os inimigos, revelando-se um falso
difamador da própria nação e um vil traidor das nações
estrangeiras, Vico faz uma exortação séria a que abandone
o mundo dos homens e vá viver entre as feras nos desertos
de África. Tinha decidido enviar para Leipzig um exem-
plar da sua resposta com a seguinte carta, endereçada ao
senhor Burchard Mencke,270 director daquela assembleia e
primeiro ministro do actual rei da Polónia:
Praeclarissimo eruditorum lipsiensium collegio eius-
que praefecto excellentissimo VIRO BURCARDO MENCKENIO,
IOHANNES BAPTISTA VICUS S. d.
Satis graviter quidem indolui quod mea infelicitas vos
quoque, clarissimi viri, in eam adversam fortunam per-
traxisset, ut a vestro simulato amico italo decepti omnia
vana, falsa, iniqua de me meoque libro cu i titulus Principi
d'una Scienza nuova dintorno all'umanità delle nazioni,
in vestra eruditorum Acta referretis; sed dolorem ea mihi
consolatio lenivit quod sua natura sponte ita res nascere-
tur ut per vestram ipsorum innocentiam, magnanimitatem
et bonam fidem , istius malitiam, invidiam perfidiamque
punirem; et hic perexiguus liber, quem ad vos mitto, una
opera et illius delicta et poenas et ipsas vestras civiles
virtutes earumque laudes complecteretur. Cum itaque

270 Johann Burchard Mencke (1674-1732), historiador e homem de letras,

foi primeiro-ministro de Frederico Augusto II, eleitor da Saxónia e soberano da


Polónia. Dirigiu entre 1707 e 1732 os Acta eruditorurn lipsiensia, publicação
fundada pelo seu pai Otto, em 1682.

181
has Notas bona magnaque ex parte vestra eruditi nomi-
nis caussa evulgaverim, eas nedum nullius offensionis sed
multae mihi vobiscum ineundae gratiae occasionem esse
daturas spero, tecumque in primis, excellentissime Bur-
carde Menckeni, qui praestantissimae eruditionis merito in
isto praeclarissimo eruditorum collegio principem locum
obtines. Bene agite plurimum. Dabam Neapoli, XIV kal.
Novembris anno MDCCXXIX.271

Embora esta carta, como se pode ver, tivesse sido


escrita com toda a dignidade, Vico considerou que, ainda
assim, teria acusado abertamente aqueles letrados de esta-
rem em grande falta no seu dever- uma vez que, ocupando-
-se eles de recolher os livros que continuamente são dados
à estampa na Europa, deviam conhecer principalmente
aqueles que lhes diziam respeito- e absteve-se de enviá-la
por cortesia.

271 «Ao ilustríssimo colégio dos eruditos de Leipzig e ao seu director, o

excelentíssimo senhor Johann Burckhard Mencke, Giambattista Vico dirige as


suas saudações.
Decerto me afligiu bastante que o meu infortúnio vos tenha arrastado tam-
bém, ilustríssimos senhores, na fortuna adversa de, enganados por um vosso
falso amigo italiano, terdes referido nos vossos Acta eruditorum coisas com-
pletamente vãs, falsas e injustas sobre mim e sobre o meu livro, com o título
Principias de uma ciência nova acerca da humanidade das nações. Mas a minha
dor foi aliviada pelo consolo de saber que o assunto nasceu, pela sua própria
natureza, de modo tal que por meio da vossa mesma inocência, magnanimi-
dade e boa-fé podia eu punir a maldade, a inveja e a perfídia daquele. E este
pequeníssimo livro que vos remeto é uma obra capaz de abarcar os dei itos dele
juntamente com as suas punições, e as vossas virtudes civis juntamente com os
louvores dessas. Por isso, tendo publicado estas Notas em graude parte por causa
do vosso bom nome de eruditos, espero que estas não vos ofendam mas que me
possam dar a ocasião de cair nas vossas boas graças, principalmente nas suas,
excelentíssimo Burckhard Mencke, que por uma extraordinária erudição obteve
o cargo de director deste ilustríssimo colégio de eruditos. Passai bem o melhor
possível. Nápoles, 19 de Outubro de 1729.»

182
Voltando agora ao ponto de onde surgiu esse assunto,
uma vez que Vico tinha de responder aos senhores jorna-
listas de Leipzig, e porque na resposta era necessário fazer
menção à reimpressão desse seu livro que se preparava em
Veneza, escreveu ao padre Lodoli para lhe pedir permis-
são para o fazer, a qual com efeito obteve. Por essa razão,
na sua resposta, voltou a anunciar-se publicamente que os
Princípios da ciência nova, com as anotações do autor,
iam ser reimpressos em Veneza.
Nesse momento, os impressores venezianos, sob a
máscara de homens de letras, e por intermédio de Gessari
e de Mosca (um, livreiro, o outro, impressor, napolitanos),
trataram de requerer a Vico todas as suas obras, publicadas
e inéditas, descritas no catálogo já referido, dizendo que
queriam enriquecer com elas os seus «museus», quando na
realidade as tencionavam imprimir num só volume, com a
esperança de que a Ciência nova facilitasse a sua venda.
Para lhes mostrar que sabia quem eram na realidade, Vico
deu a entender que, de todas as débeis obras do seu afa-
nado engenho, a Ciência nova era a única que queria dei-
xar ao mundo -obra que, como deviam eles saber, estava
a ser reimpressa em Veneza. Aliás, por generosidade sua,
querendo proteger o impressor dessa edição até depois da
sua morte, ofereceu ao padre Lodoli um manuscrito de
cerca de quinhentos fólios, no qual Vico tinha andado a
investigar os seus Princípios pela via negativa, 272 e com o
qual se poderia acrescer em muito o livro da Ciência nova.

272 Veja-se a nota 206.

183
O senhor D. Giulio Torno, 273 cónego e doutíssimo teólogo
da igreja napolitana, dada a grandeza de espírito com que
encara os assuntos de Vico, queria imprimir esse manus-
crito aqui em Nápoles, com alguns associados, mas foi o
próprio Vico a demovê-lo com as suas súplicas, uma vez
que tinha já descoberto esses Princípios pela via positiva.
Finalmente, no mês de Outubro do ano de 1729,
chega às mãos do padre Lodoli, a Veneza, o material com-
pleto com as correcções ao livro já editado, as anotações
e os comentários, que formam um manuscrito de cerca de
trezentos fólios. 274
Ora, após ter saído a público por escrito, nada menos
do que duas vezes, que a Ciência nova se ia reimpri-
mir com aditamentos em Veneza, e tendo já chegado lá
o manuscrito completo, a pessoa que fazia o comércio
dessa reimpressão começou a tratar Vico como se ele
tivesse necessariamente de a fazer imprimir ali. Por esse
motivo, considerando que se tratava de uma questão de
amor-próprio, Vico reclamou que tudo o que tinha enviado
viesse para trás; restituição, essa, que foi feita finalmente
seis meses depois, quando já se tinha imprimido [em
Nápoles] mais de metade da obra. Uma vez que, pelas
razões expostas pouco antes, não se encontrava nem em
Nápoles nem noutro lugar um impressor que a publicasse
a expensas próprias, Vico dedicou-se a meditá-la sob outra

m Veja-se a nota 207.


274 A edição veneziana da Ciência nova consistiria numa reimpressão do
texto de 1725, a que se juntariam mais «trezentos fólios» com correcções, ano-
tações e comentários.

184
configuração, que é talvez aquela que a obra devia ter, e
na qual não teria pensado se não fosse esta necessidade.
Com efeito, ao comparar esta nova configuração com a do
livro já publicado, vê-se com clareza que é inteiramente
diferente da anterior. 275 Tudo aquilo que, nas Anotações,
para seguir o fio daquela obra, se lia dividido e disperso,
pode ver-se agora nesta edição composto e ordenado por
um só espírito, com muitos aditamentos novos, e com uma
tal força de ordem (que é, juntamente com a propriedade
de expressão, uma das principais causas da brevidade) que
esta tem só mais três fólios do que o livro já impresso mais
o manuscrito. O que pode ser comprovado, por exemplo,
quanto às propriedades do direito natural das gentes, que,
com o primeiro método, no capítulo I, § VII, Vico discutiu
ao longo de cerca de seis fólios, enquanto nesta edição dis-
corre sobre elas em poucas linhas.
No entanto, Vico deixou intacta a primeira edição
do livro devido a três passagens que o deixaram plena-
mente satisfeito, e pelas quais a primeira edição da Ciên-
cia nova continua a ser necessária. É a essa que se refere
quando cita a «Ciência nova», ou ainda «a obra com as
Anotações», enquanto quando cita «outra obra sua» está
a referir-se aos três livros do Direito universal. Pelo que a
Ciência nova primeira se deve imprimir após a [Ciência
nova] segunda, caso esta venha a ser reeditada, ou então,

275 Pelas razões apontadas, Vico decidiu abdicar da edição veneziana e res-

crever a obra. O resultado é a Ciência nova de 1730, que estará na base da edição
póstuma de 1744.

185
pelo menos, devem imprimir-se as referidas três passagens
para que não fiquem a faltar. 276 Por outro lado, para que
também não fiquem em falta os livros do Direito univer-
sal, que o contentavam menos do que a Ciência nova pri-
meira, uma vez que eram um esboço desta, e posto que os
considerava necessários só por causa de duas passagens
(a primeira, sobre as fábulas acerca da vinda da lei das XII
tábuas de Atenas, a segunda, sobre a fábula da lei régia de
Triboniano ), reimprimiu-as também, em duas Discussões
tratadas com maiores unidade e vigor. Estas duas fábulas
fazem parte daqueles erros a que se refere o senhor Jean
Leclerc, ao recensear esses livros na Biblioteca antiga e
moderna, quando diz que «num grande número de maté-
rias emenda-se uma grande quantidade de erros comuns,
aos quais os homens mais entendidos não prestaram sufi-
ciente atenção». 277
Que não seja tomado como sobranceria o facto de que
Vico, não contente com os juízos favoráveis emitidos por
certos homens sobre as suas obras, de seguida as desaprove
e rejeite, porque essa é a prova da veneração e estima que
tem por eles, e não o contrário. Do mesmo modo, escri-
tores rudes e orgulhosos defendem as suas obras até das
acusações justas e das correcções razoáveis; e outros, que

276 A Ciência nova primeira é a de 1725, e a Ciência nova segunda a de

1730. As passagens da Sn25 a que Vico se refere encontram-se no livro III, §§


329-341; 368-341; 368-373; 387-389; na Sn30 (e também na Sn44), aparecem
em §§ 28, 33 e 35. De notar que a edição das Opere de Vico curada por Andrea
Battistini é a única que, pelo que sabemos, publica a Sn25 logo após à Sn44,
respeitando desse modo o desejo expresso por Vico.
277 Veja-se a nota 204.

186
são porventura pusilânimes, 278 sacmm-se com os JUizos
favoráveis emitidos sobre as suas obras e, por causa dos
mesmos, já não ousam aperfeiçoá-las. Quanto a Vico,
os louvores dos grandes homens aumentaram a sua von-
tade de corrigir, completar e até melhorar a forma desta
sua obra. Assim, condena as Anotações, que procuravam
estes Princípios pela via negativa, pois essa via realiza
as suas demonstrações por meio das inadequações, dos
absurdos e das impossibilidades, que, pela sua fealdade,
afligem em vez de nutrirem o entendimento- o qual, por
sua vez, percepciona como agradável a via positiva, que
representa o que é adequado, conveniente e uniforme,
e forma a beleza do verdadeiro com que unicamente se
deleita e da qual se nutre a mente humana. Não o satis-
fazem os livros do Direito universal, porque Vico ten-
tava neles descer da mente de Platão e de outros filósofos
esclarecidos até às mentes estúpidas e simples dos auto-
res da gentilidade, quando devia ter seguido o caminho
completamente oposto; daí que tenha cometido erros em
algumas matérias. Na Ciência nova primeira, se não nas
matérias, errou Vico certamente na ordem, uma vez que
tratou separadamente os princípios das ideias e os prin-
cípios das línguas, que por natureza estavam unidos.
E discutiu também separadamente o método segundo o
qual, a partir de uns e de outros princípios, se deviam con-
duzir as matérias desta ciência, quando elas deviam ser

278 Di cuor picciolo, no original.

187
deduzidas de ambos os princípios e segundo outro método;
e daí lhe advieram muitos erros na ordem.
Tudo isto foi corrigido na Ciência nova segunda.
Mas Vico foi constrangido a meditar e a escrever esta
obra num período de tempo brevíssimo, quase como se
estivesse já no prelo; assim, impelido por um estro quase
fatal, meditou-a e escreveu-a tão depressa que começou na
manhã de Natal e acabou às vinte e uma horas do domingo
de Páscoa. Ademais, quando mais de metade da obra já se
tinha imprimido, uma notícia de última hora que lhe che-
gou de Veneza279 obrigou-o a mudar quarenta e três fólios
impressos (que continham uma Notícia literária280 em que
se expunham completas e por ordem todas as cartas que
ele e o padre Lodoli trocaram acerca desse assunto, com
as reflexões convenientes); em lugar dela, antepôs uma
gravura no frontispício daqueles livros 281 e, na Explica-
ção dessa gravura, escreveu os fólios que preencheriam
o vazio deixado nesse pequeno volume. A juntar a isso, a
longa e grave doença que contraiu durante a epidemia de
catarro [gripe] que afectou toda a Itália. E, enfim, a soli-
dão em que Vico vive: por todas estas razões, não lhe foi
permitido usar a diligência, virtude que forçosamente se
perde quando se trabalha em assuntos de alguma grandeza,
uma vez que se trata de uma virtude de minúcia e, por isso

279 Muito possivelmente, uma carta conciliatória do padre Lodoli.


" 0 Nove !la letteraria, no original.
281 A célebre dipintura alegórica, colocada no frontispício das edições de

1730 e de 1744 da Ciência nova.

188
mesmo, de uma virtude tardia. Por tudo isso não lhe foi
possível atentar em algumas expressões que deviam ser
ordenadas, se confusas, ou refinadas, se rudimentares, ou
alongadas, se curtas. Nem atentou numa grande quanti-
dade de ritmos poéticos que se devem evitar na prosa, nem,
enfim, em algumas transposições de memória, que porém
não constituíam mais do que erros de vocabulário, sem
prejuízo para a compreensão. Por isso, no final da obra,
nas Primeiras anotações, juntamente com as correcções
dos erros de impressão (que, pelas razões já mencionadas,
deveriam ser muitíssimos), introduziu, através das letras M
e A, os melhoramentos e as adições. 282 E fez o mesmo com
as Segundas anotações, que escreveu poucos dias após a
obra ter vindo a lume, por ocasião de o senhor D. Fran-
cesco Spinelli, príncipe de Scalea,283 um sublime filósofo
ornado de culta erudição, particularmente em grego, lhe
ter chamado a atenção para três erros que observara após
ter percorrido em três dias toda a obra. Vico transmitiu-lhe
generosamente os seus agradecimentos por aquele parecer
benigno na seguinte carta, que se imprimiu com estas últi-
mas anotações, e onde convida tacitamente outros sábios
a fazer o mesmo, uma vez que receberia com gratidão as
suas correcções.
Dou graças infinitas a Vossa Excelência, pois três dias
apenas após eu lhe ter humildemente feito apresentar por

"' Miglioramenti e aggiunte, no original.


283 Francesco Spinelli (1686-1752), filósofo de escola cartesiana, foi amigo

de Vico e discípulo de Gregorio Calo prese.

189
um filho meu um exemplar da Ciência nova recentemente
impressa, V. Ex. a já a tinha lido toda, privando-o do tempo
precioso que dedica a sublimes meditações filosóficas ou
à leitura de seríssimos escritores, em particular gregos.
Tal é a maravilhosa agudeza do seu engenho e a elevada
compreensão do seu entendimento que lhe bastou lê-la
de um fôlego para ter penetrado nela até à medula e a ter
compreendido em toda a sua extensão. Remetendo a um
modesto silêncio os juízos favoráveis que fez sobre a obra,
com a magnanimidade própria da vossa elevada estatura,
declaro-me sumamente favorecido pela vossa bondade,
pois V. Ex.a dignou-se também a assinalar-me as seguin-
tes passagens, nas quais tinha observado alguns erros que,
para me consolar, dizia que eram erros de memória, que
em nada prejudicavam o propósito das matérias tratadas,
onde tinham ocorrido.
O primeiro erro está na página 313, linha 19, onde digo
que Briseida pertence a Agamémnon e Cri sei da a Aquiles,
e que Agamémnon teria ordenado que Criseida fosse res-
tituída ao seu pai Crises, sacerdote de Apolo, o qual, por
isso, massacrava o exército grego com a peste, e Aquiles
não teria querido obedecer; episódio, esse, que Homero
narra completamente ao contrário. 284 Mas este erro da
minha parte era, de facto, sem que me tivesse apercebido,
uma correcção a Homero na parte importantíssima dos
costumes, pois Aquiles não teria querido obedecer, e Aga-
mémnon ter-lhe-ia ordenado que o fizesse para salvação do
exército. Mas foi Homero que, nessa matéria, verdadeira-
mente preservou o decoro, pois, tal como fez sábio o seu

'"' A passagem da Ilíada que induziu Vico em erro corresponde ao canto I,


181-185. Na Ciência nova, o erro corresponde ao§ 667, que vem corrigido na
edição de 1744.

190
capitão, também o imaginou forte. Com efeito, tendo Aga-
mémnon devolvido Criseida como se tivesse sido forçado
por Aquiles, e estimando que se tratava de uma questão de
honra, para a recuperar ele retirou injustamente a Aqui-
les a sua Briseida, com o que arruinou um outro grande
número de gregos. Pelo que, na Ilíada, Homero vem a can-
tar um capitão muito estúpido. Portanto, este nosso erro
prejudicava-nos verdadeiramente, pois não nos tinha feito
ver esta outra grande prova contra a sabedoria até agora
atribuída a Homero, que nos confirmava a descoberta do
verdadeiro Homero. 285 Quanto a Aquiles, a quem Homero
atribui no seu canto o epíteto perpétuo de «irrepreensível»,
apresentando-o aos povos da Grécia como exemplo da vir-
tude heróica, ele não se coaduna com a ideia de herói qual
o definem os doutos. Isto porque, embora a dor de Aqui-
les fosse justificada, a sua vingança é, porém, demasiado
célere: ao partir do campo com a sua gente e ao retirar os
seus navios da armada comum, faz o voto impio de que
Heitor destrua os Gregos que tinham sobrevivido à peste,
e regozija-se por tal lhe ser concedido (como naquela pas-
sagem que Vossa Excelência me apontou, ao discutirmos
juntos estas coisas, em que Aquiles expressa a Pátroclo o
desejo de que morressem todos os gregos e os troianos, e
de que só eles os dois sobrevivessem àquela guerra).
O segundo erro está na página 314, linha 38, e na
página 315, linha 1, onde me adverte que o Mânlio que
preservou a fortaleza do Capitólio dos Gálios foi Mânlio

285 O erro de Vico teria consistido em não perceber que, na verdade, Aga-

mémnon era um capitão estúpido, e não sábio, o que é uma prova de que a Ilíada
é obra da mentalidade própria da época heróica, de sabedoria vulgar e não recôn-
dita, que reflecte a verdadeira história da Grécia antiga. Cfr. Sn44, § 896: «Na
idade da memória vigorosa, da fantasia robusta e do engenho sublime, [Homero]
não foi de modo algum filósofo.»

191
Capitolino, ao qual se seguiu o outro que se apelidou de
Torquato, que fez decapitar o filho; 286 e que não foi este,
mas o primeiro, que, por ter querido introduzir uma nova
lei de contas a favor da pobre plebe, foi alvo da suspeita
por parte dos nobres de que se quisesse tornar tirano de
Roma graças ao favor popular, e, condenado, foi preci-
pitado do cimo da rocha Tarpeia. Essa transposição de
memória prejudicou-nos, ao privar-nos de uma vigorosa
prova da uniformidade do estado aristocrático em Roma
antiga e em Esparta, onde o valoroso e magnânimo rei
Ágis, qual Mânlio Capitolino lacedemónio, por uma nova
lei de contas semelhante - mas não nenhuma lei agrária -
e por outra lei testamentária, foi mandado enforcar pelos
éforos. 287
O terceiro erro está no final do livro V, p. 445, linha
37, onde se deve ler «Numantinos», pois é a esses que o
argumento se circunscreve. 288
Graças aos vossos benignos avisos, dediquei-me a reler
a obra e escrevi a segunda série de correcções, melhora-
mentos e aditamentos.

A primeira e a segunda série de anotações, bem como


outras, poucas mas importantíssimas, que Vico ia escre-
vendo de modo interrupto, de tempos a tempos, ao discutir
a obra com amigos, poderão ser incorporadas nas passagens
que as reclamam, quando essa se imprima pela terceira vez.
Enquanto Vico ia escrevendo e imprimindo a Ciência
nova segunda, o cardeal Corsini, a quem a primeira edi-

'"' O erro corresponde ao § 668 da Sn44, aí já corrigido.


'" Cfr. Sn44, §§ 592, 668, 985, 1021. O episódio sobre o rei Ágis encontra-
-se em Plutarco, Vida de Agis.
288 Cfr. Sn44, § 1088.

192
ção da obra tinha sido dedicada, ascendeu ao sumo pon-
tificado; como tal, também esta edição foi dedicada a Sua
Santidade, o Papa. Este, quando a obra lhe foi oferecida,
pediu ao senhor cardeal Neri Corsini,289 seu sobrinho, o
favor de, quando agradecesse ao autor o exemplar que ele,
sem carta de acompanhamento, lhe tinha mandado, lhe
responder em seu nome com a carta que se segue:
Muito ilustre senhor,
A obra de Vossa Senhoria dos Princípios de uma ciên-
cia nova tinha já obtido na sua primeira edição todos os
louvores do Nosso Senhor, quando era então cardeal; e,
dada de novo à estampa, acrescida de maiores luzes e
erudição pelo vosso claro engenho, encontrou no clemen-
tíssimo ânimo de Sua Santidade toda a aprovação. Quis
dar-Lhe a consolação desta notícia no acto mesmo que me
move a agradecer-lhe o livro que me ofereceu, e pelo qual
tenho toda a consideração que merece. Expressando-lhe a
minha atenção em qualquer ocasião que vos possa servir,
rogo a Deus que o faça prosperar. De Vossa Senhoria,
Sempre afeiçoado,
N. Card. Corsini
Roma, 6 de Janeiro de 1731.

Cumulado de tamanha honra, Vico não tinha mais


nada a esperar do mundo. De modo que, pela idade avan-
çada, consumida por tantos trabalhos, afligida por tantas
preocupações domésticas e atormentada por dores espas-

'" O cardeal Neri Corsini (1685-1770), homem de letras, contribuiu para a


ampliação da Biblioteca Corsiniana, fundada pelo seu tio, Lorenzo, na qual se
conservou a cópia da Ciência nova enviada por Vico.

193
módicas nas coxas e nas pernas, e por um mal extrava-
gante que lhe devorou quase tudo o que está entre o osso
inferior da cabeça e o palato, renunciou completamente
aos estudos. 290 Ao padre Domenico Ludovico, 291 incom-
parável poeta elegíaco latino, de costumes candidíssimos,
doou o manuscrito das anotações escritas para a Ciência
nova primeira, com a seguinte inscrição:
Ao TIBULO CRISTAO - PADRE DoMENICO LuDOVICO - ESTES

MÍSEROS- RESTOS- DA INFELIZ CttNCIA NOVA- SACUDIDOS POR


TERRA E POR MAR - GIAMBATTISTA VICO - AGITADO E AFLITO

- PELAS TEMPESTADES CONTfNUAS DA FORTUNA - LACERADO E

CANSADO - FINALMENTE - COMO A UM ÚLTIMO PORTO SEGURO


-DEVOLVE.

Enquanto professor, Vico interessou-se muitíssimo


pelo progresso dos jovens e, para os desenganar e pro-
teger dos enganos dos falsos doutores, nunca se impor-
tou de atrair a inimizade dos doutos de profissão. Nunca
discorreu sobre os assuntos da retórica sem a relacionar
com a sabedoria, dizendo que a retórica não é mais do que
a sabedoria que fala, e por isso a sua cátedra era aquela
que devia dirigir os engenhos e torná-los universais, pois

290 Na verdade, Vico continuou a leccionar a cadeira de Retórica até 1742,

tendo ainda composto alguns discursos académicos (entre os quais o fabuloso


De mente heroica, de 1732). De resto, Vico nunca deixou de trabalhar na Ciência
nova, que foi alvo de revisões até aos seus últimos dias. O sentido da afirmação
é, porém, sincero se for interpretado como a declaração de que, concluída a
Ciência nova, Vico cumprira o seu dever.
29 1 Domenico Ludovico (1676-1745), jesuíta, professor e reitor do Collegio

Massimo, em Nápoles.

194
enquanto as outras cátedras atendiam às partes do saber,
a sua devia ensinar o saber na sua totalidade, em que as
partes se correspondem entre si e estão de acordo com o
todo. Pelo que discorria sobre qualquer matéria particular
que dissesse respeito à retórica de um modo tal que essa
parecesse animada, como que por um espírito, por todas
as ciências que com ela se relacionassem. Foi isto que
Vico escreveu no livro De ratione studiorum, a saber, que
um Platão, para dar um exemplo ilustríssimo, era, para os
antigos, uma inteira universidade nossa, completamente
organizada num sistema. E, assim, todos os dias discor-
ria com esplendor e profundidade sobre vários assuntos
de erudição e doutrina, como se ilustres homens de letras
estrangeiros se tivessem dirigido à sua aula para o ouvir.
Vico pecava pela cólera, da qual se guardou o melhor
que pôde com os seus escritos. E confessava publicamente
ter este defeito, pois investia de modo demasiado desa-
brido contra os erros de engenho ou de doutrina, ou contra
os maus costumes, dos letrados que o emulavam - quando
devia, com caridade cristã e como um verdadeiro filósofo,
disfarçá-los ou desculpá-los. Mas se ele foi áspero com
aqueles que procuravam diminuí-lo ou às suas obras, não
foi menos respeitoso com quem os tinha na devida conta,
que foram sempre os melhores e os mais sábios homens
da cidade. Entre os semidoutos ou falsos doutos (ambos
maus doutos), os mais desavergonhados chamavam-lhe
louco, ou, com termos um pouco mais civilizados, diziam
que era extravagante e de ideias singulares, ou obscuro.

195
Os mais maliciosos atacavam-no com estes louvores: uns
diziam que Vico era um bom professor para os jovens
depois de estes terem seguido todo o curso dos seus estu-
dos, ou seja, quando já estavam satisfeitos com o saber
que tinham- como se fosse falso o voto de Quintiliano292
de que os filhos dos grandes, como Alexandre Magno, fos-
sem desde pequenos confiados a mestres como Aristóteles.
Outros atreviam-se a um louvor que, quanto maior, mais
perigoso era, o de que ele era competente a orientar os pró-
prios mestres. Mas Vico bendizia todas estas adversidades
como ocasiões para se retirar para a sua mesa, como para
uma alta e inexpugnável fortaleza, para meditar e escre-
ver outras obras, às quais chamava «generosas vinganças
contra os seus detractores»; obras, essas, que finalmente
o conduziram a descobrir a Ciência nova. Após o que,
gozando de vida, de liberdade e de honra, ele se tomava
por bem mais afortunado do que Sócrates, acerca de quem
o bom Fedro 293 fez este voto magnânimo:
cuius non fugi o mortem, si jamam assequar,
et cedo invidiae, dummodo absolvar cinis. 294

292 Quintiliano, lnstitutio oratoria, I, 1, 23-24.


293 Fedro, Fabulae III, 9: «Socrates ad amicos», vv. 3-4.
294 «Se eu igualar a sua fama, não rejeito morrer como ele, I E submeto-me

à inveja, desde que seja absolvida com as minhas cinzas.»

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Esta Edição de
VIDA EscRITA PoR SI MEsMo
foi impressa e encadernada para a
Fundação Calouste Gulbenkian,
na Gráfica ACD Print, S.A.
www.acdprint.pt

A tiragem é de SOO exemplares

Março de 20 17

Depósito Legal n. 0 422889/17

ISBN: 978-972-31-1594-9

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