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Análise Psicológica (2001), 2 (XIX): 237-252

O papel do funcionamento projectivo na


alergia infantil (*)

ANA MARIA PINA MARTINS (**)

Frequentemente nos deparamos na clínica dade de separação ou perturbação instrumental


infantil com crianças trazidas à consulta por (Misés et al., 1988) e que coabita então com a
queixas relacionadas com separações difíceis. doença alérgica em processos que parecem falar
Muitas vezes adaptam-se mal à entrada ou a pela concretude e pela factualidade ao invés de
mudanças de escola ou de rotina. Outras vezes a pela polissémia que lembrem ocultar.
indicação da consulta parte dos professores de- A sintomatologia das crianças que sabemos
vido a problemas de aprendizagem, demonstram sofrerem de alergia (e que não são, é claro, con-
então, aquando da avaliação, largas dificuldades sultadas por este motivo) faz realçar as dificulda-
nos campos das estruturações espaço-temporais des de separação. O funcionamento avaliado
e da motricidade. Uma investigação da história pelos testes projectivos põe em evidência o vazio
clínica destas crianças reporta-nos muitas vezes desenhando-se no lugar das referências objectais,
a presença da patologia alérgica. Patologia pre- a permanência da relação bidimensional. Face a
sente mas desligada, segundo a tradicional divi- este quadro seduz, impõe-se e satisfaz a explica-
são de saberes: ao saber médico a doença orgâni- ção pela carência. Porém as crianças são exis-
ca, ao entendimento psicológico o funciona- tentes, ainda que o não sejam em ipseidade, em
mento mental. Reapreciar o reverso da medalha alteridade. Existentes pela sua realidade corpo-
implica, a nosso ver, uma lógica do negativo, ral, pela sua história, pelas suas formas particu-
como adiante lhe chamaremos. Implica questio- lares de sentir e pensar, ainda que as não possa-
nar a coexistência destas perturbações, equacio- mos captar individualizadas. E, à contraluz,
ná-la sob o ponto de vista do funcionamento pro- omnipresente, continua a insinuar-se a carência,
jectivo. O que ali se patenteia como impossibili- a falha. De mentalização, de elaboração. Aquilo
que ficou aquém do simbolizável.
Daqueles parâmetros em falta poderemos falar
com acerto e extensão, todavia, o nosso discurso
não irá encontrar o que lá está, o que é presente,
(*) Trabalho realizado no âmbito da Bolsa de Dou- o que se acha no lugar da «ausência de»: ausên-
toramento concedida pela Fundação para a Ciência e a cia do material interno, amadurecido na gestação
Tecnologia, ao abrigo do 2.º Quadro Comunitário de
Apoio.
relacional, constituinte do psiquismo, marca in-
(**) Instituto Superior de Psicologia Aplicada, Lis- delével do que é pessoal e único. Para ir ao en-
boa. contro do que é existente há que entender as suas

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manifestações, as formas pelas quais se apresen- de onde a alteridade está excluída. Uma espécie
ta. Então poderemos ver surgir, no negativo da de permanência num estado indistinto onde as
carência, lugar virtual da ausência, o relevo do características sensório-motoras do desenvolvi-
funcionamento projectivo e defensivo da criança mento permanecem em toda a sua importância
alérgica. na relação estabelecida. A aproximação do tridi-
Então, uma operação há que largamente se mensional faz avizinhar o impasse relacional. A
manifesta, uma conduta de redução ao idêntico importância da imagem especular assume aqui
que se pode equiparar a uma generalização arbi- diferentes proporções. Da reduplicação do pró-
trária e que possibilita à criança uma manuten- prio à introdução da presença do outro a estra-
ção esforçada, sob o império do materno, de um nheza, basculando os mecanismos de redução ao
aplanamento e equalização relacional. idêntico e transformando em estranho o outrora
No lugar transformador da metáfora o dispen- familiar.
dioso e árduo reencontrar com objectos parcela- A problemática da diferença é, de facto, o
res, fugazes, mutantes, que não fornecem cons- centro das vivências da criança alérgica: é im-
tância nem conferem estabilidade ou coerência à possível a separação e o adquirir de uma identi-
representação. Coordenadas indistintas e impre- dade autónoma pois que se trata de uma questão
cisas de um corpo que de si não consegue sequer de não existência de objecto espelhante. Acon-
referenciar a realidade tangível. tece então, paradoxalmente, um objecto único,
Coloca-se perante este quadro a questão da de dimensões cegas, intoleráveis mas imprescin-
depressão. Depressão particular, muda quanto ao díveis. Cegas para o outro/criança, nas suas ca-
afecto depressivo mas bem evidente quanto ao racterísticas, necessidades pessoais e significa-
efeito atrofiante no desenvolvimento do self. A ção afectiva, intoleráveis porque abarcam tudo,
criança alérgica não está deprimida, ela é depri- não deixando espaço para o devir da autonomia.
mida. O afecto não pôde entretecer a trama e a A criança alérgica vive uma relação indistinta
teia dos impossíveis desdobramentos e multipli- e indistinguível, no limite da tensão defensiva.
cidades a emergirem da relação primeira. Ele fi- Ela usa mecanismos de redução ao idêntico que
cou coagulado na matriz, espaço imanente que visam manter a ilusão do objecto único, da iden-
aprisiona e retém. tidade inalterável e universal. A criança alérgica
Perante esta latência paralisada do devir a vive a não existência de um objecto diferencia-
criança alérgica mantém-se beirando o desequi- dor e diferenciável.
líbrio, perpetuado pela emergência incontornável A temática do rosto, da face e de tudo quanto
do estranho, pela inoperância intransponível dos por ela vive e nela se desenha, que surge com tão
processos reequilibradores postos perante um particular premência no funcionamento projecti-
rosto outro que não o rosto, aquele que corpóreo vo da criança alérgica, repousa na questão do
e pela corporalidade capta, desatento e pela au- olhar enquanto existência relacional que cons-
sência captura. Impossibilitada da diferenciação, trói, desde a mais tenra infância, a natureza pre-
e sem outros meios de construção de si que os dicativa da identidade humana. A qualidade da
que lhe são impostos, a criança alérgica edifica interacção entre a mãe e a criança está relaciona-
todo um sistema relacional que não considera o da com a qualidade do contacto visual que entre
outro na sua alteridade, reduzindo por isso a di- ambas se estabelece (Keller & Gauda, 1987). Se-
versidade à percepção do idêntico. Ela permane- rá um olhar atento, contingente (Lebovivi,
ce, mercê da sua elaboração projectiva, presa de 1983), olhar banhado pela rêverie materna
uma etapa em que o rosto da mãe constitui (Bion) que pode edificar naquela relação uma
ainda uma totalidade indestrinçável com o seu atribuição qualificativa, atribuição de sentido
próprio rosto. Enquanto poder funcionar sob a que comporta a co-construção de significantes,
égide desta prevalência estará ao abrigo de pro- na matriz do pensamento materno, por processos
duzir uma crise alérgica. Consiste então a estra- que têm como veículo primeiro as modulações
tégia em apagar as diferenças, reduzindo todos afectivas que temperam as trocas relacionais
os rostos a um rosto único. Predomina assim diádicas.
uma relação espacial bidimensional, marcada Se a criança for tida em conta na relação pri-
pela prevalência do materno, numa proximidade mária o processo de adaptação será mútuo – ao

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exercer um papel sincronizador dos ritmos de vi- indistintas, e, sendo o self formado pelas repre-
da da criança a mãe irá, ao mesmo tempo, apren- sentações internalizadas que as figuras de vincu-
dendo as características únicas da individuali- lação têm da criança, o que se constitui não é
dade nascente do seu filho. Irá aprender a dar-lhe uma trama familiar triangular, propiciatória da
as respostas adequadas, a permitir-lhe que ele individualidade, campo potencial onde se am-
exerça as suas potencialidades de aprendizagem pliaria a edificação íntima da história pessoal,
e exploração do seu meio e, portanto, de conhe- mas sim um espaço aglutinante, sem lugar ao en-
cimento de si e dos resultados das suas acções riquecimento e diversidade do fantasma. Não se
transformadoras – «representações de transfor- trata de uma questão da concretude do número
mação» (Bollas, 1978) – organizadoras e cons- de elementos da família nuclear, nem sequer da
trutoras dos conceitos de alteridade objectal e da assunção de papéis. O seu resultado é, antes,
afirmação de si. Estes ficarão prejudicados se os uma indistinção essencial na unidade originária
ritmos de vida e o funcionamento corporal forem como relação diferenciada que a criança estabe-
espartilhados. E o próprio corpo ficará desapos- lece com cada um dos pais. O fulcro do caso re-
sado se, instrumentalizado, não permitir o desen- monta a um nível mais básico, o de uma verda-
volver de uma organização corporal pessoal e deira indefinição das identidades parentais.
autêntica. Constitui-se com isso um espaço atractor, que
Identificada à mãe cuidadora uma criança po- funciona como conglomerado e percipitado de
derá unificar as suas experiências conferindo- uma cadeia relacional de alastramento transge-
-lhes um significado cimentado pelo afecto, que racional. Patologia do destino, como lhe chama
então conhece e reconhece. Estabelecerá liga- Gauthier (1993) em cuja construção os pais cola-
ções, conexões, poderá pensar. Articula-se no boram. Face àquele espaço não pode haver a in-
seu corpo, a constituir um espaço e um tempo, e tegração do todo, apenas são apreendidas partes,
ao objecto – diferenciado e separado. Está pois não unificadas pala tessitura do afecto que, de
colocada em causa uma relação que remonta aos outro modo, teria podido criar a função simboli-
primeiros tempos de vida. Algo que, constituin- zante, em co-construção (porque advinda e cru-
do a criança, constitui o seu corpo, pela relação zada por diferentes pólos) de significações e
diádica, por interposição de um espaço de ilusão sentidos. Estas partes funcionam à semelhança
materno em que a criança é o bebé expectativa do objecto parcial, como objectos desligados, ca-
da mãe mediatizado por tudo o que ela em si recendo de significação. Designamo-los por
transporta das suas próprias relações infantis. Al- objectos flutuantes, dada a sua não inserção
go que é eminentemente relacional. Gauthier ideativa e o seu não acesso à categoria de mate-
(1999) refere-se-lhe como um processo de cons- riais criadores, geradores do imaginário. De par
tituição de um «corpo relacional», onde residem com aqueles, outros encontramos que são como
biológico e imaginário: «a organização corporal lampejos fugazes, remanescentes mnésicos es-
[da criança] é assim o reflexo da organização parsos, a constituir representações que, logo que
psíquica da mãe, em função dos laços que esta se vislumbram se transformam, dando lugar a su-
estabeleceu com a sua mãe e a sua cultura» (p. cedâneos de dimensões incoerentes e espacia-
131). Trata-se, na alergia, de um conjunto espe- lidades reversíveis e interpenetráveis. São aqui-
cial mãe/bebé onde cada um parece conviver lo a que chamamos objectos mutantes, de uma
com um espaço outro: mãe com conteúdos psí- qualidade aplanadora e niveladora da diferença.
quicos arredados da criança, esta com um pseu- Entender o adoecer somático à luz da psicaná-
do-continente, espaço não cicatricial da falha, lise clássica revela-se um procedimento que se
mas antes o negativo da inter-relação com o par- depara com um obstáculo epistemológico, pois
ceiro diádico, com o objecto narcisante. que a psicanálise, que teve início no estudo da
Igualmente se coloca a questão do funciona- histeria e dos seus fenómenos expressivos e al-
mento triangular, tríade narcísica. A indiferen- cançou o seu corolário na definição do papel da
ciação na relação primária não resulta apenas de sexualidade psíquica, erigiu todo o seu edifício
uma qualidade do materno mas reflecte também metapsicológico e teórico-clínico através da
a não existência do elemento terceiro, diferen- construção de laços de sentido. Sobre essas for-
ciador. Assim as sedes da parentalidade ficam mulações Dejours (1989), recorrendo ao concei-

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to freudiano de apoio da pulsão sobre a função castração, anulando essa falta e, com isso, a sua
fisiológica, fala em «subversão libidinal», re- própria presença. Segundo Szwec esta configura-
criação metafórica do corpo erógeno sobre a ção equipara-se ao que Fain (1969) designa
funcionalidade original do corpo físico: perante a como o cumprimento do fantasma de manuten-
literalidade do fisiológico a curvatura do desejo. ção do feto in utero que atribui à mãe da criança
Nesta perspectiva, as doenças somáticas não asmática. Pensamos que, mais do que uma iden-
mais constituirão «o resultado exclusivo de ano- tificação à falta existente no psiquismo materno,
malias fisiopatológicas», mas passarão a poder se trata de uma identificação pela falta, das fun-
ser encaradas «como o resultado de processos ções propiciatórias da identificação não exerci-
psicopatológicos marcados pela desorganização das por esse mesmo psiquismo. Uma introjecção
da economia erótica» (p. 124), num cruzamento em falha, identificação não ao vazio fantasmá-
com a escolha do órgão atingido pela sua vulne- tico mas antes de natureza corporal, à presença
rabilidade constitutiva. Assim, Dejours, numa remanescente do corpo, alheio e alheado.
espécie de nostalgia do Projecto (Freud, 1966 João dos Santos (1971), salienta o papel do
[1897]) vaticina que um diálogo entre a psicaná- conhecimento e da experiência espaço-temporais
lise, a biologia e as neurociências conduza à nas primeiras aprendizagens escolares (cálculo,
criação de uma metapsicologia que a Freud não leitura e escrita): «o que é objectivamente inves-
chegou a ser possível elaborar. tido, sentido e percebido, é primeiro uma expe-
Meta-entendimento que continua a ser conti- riência corporal (incorporar) para se tornar
nente não mapeado sujeito a explicações que se depois uma experiência interior ou subjectiva
antagonizam. Com efeito, a compreensão e ca- (introjectar)» (p. 58). A introjecção é, segundo
racterização dos processos psicológicos envol- Ferenczi (1912), um mecanismo de defesa neu-
vidos na psicossomática em geral, como na rótico, que ressurge terapeuticamente na análise
alergia infantil, depara-se com uma dificuldade, através do processo transferencial, e que visa
a do encontro de uma terminologia que atenda à captar e integrar no Eu a maior parte possível do
especificidade de uma patologia que tem sede no mundo exterior, uma forma relacional constituí-
corpo. Como se a abordagem conjunta de ver- da por uma avidez integrativa. Tal como os in-
tentes há muito desligadas no plano conceptual e vestimentos objectais são extensões do próprio, a
prático, o psíquico e o somático, tropeçasse a to- introjecção é um alongamento do Eu alicerçada
do o passo num obstáculo incontornável, o da nas relações objectais primárias. No caso da
inexistência léxica de um terreno comum. Pen- criança alérgica o que existe é uma excessiva
samos que esse território do encontro se poderá força de captação pelo objecto materno que lhe
situar provavelmente no lado da prática clínica configura corpo e psiquismo, não lhe permitindo
antes que possa ser encontrado no da meta- desenvolver um self distinto. Aquilo que Marty
construção teórica e que no primeiro reside o (1963) designa como investimento próprio à
perigo de se poder achar prejudicado pelos a- relação objectal alérgica, de todo o objecto como
-prioris nefastos que de uma incorrecta e faccio- bom até prova em contrário e que conduz, no
sa utilização do segundo possam advir. processo terapêutico e transferencial, à chamada
O intuito de compreensão do que está em cau- relação branca, constitui então uma pseudo-in-
sa na criança alérgica encontra nas vicissitudes trojecção, uma forma de identificação mimética
porque passam os processos identificatórios o que actua por absorção e colagem, num meca-
seu fulcro principal de atenção e descobre as nismo de direcção semelhante ao designado
formas particulares de esta se colocar perante si como identificação heteropática e centrípeta por
e o mundo. A propósito da identificação da cri- Laplanche e Pontalis (1990). Constituirá nessa
ança alérgica, Szwec (1993), num conceito que medida um alongamento particular da identifi-
diz ter-lhe sido sugerido por Denise Braunsch- cação primária.
weig classificou-as como identificação por mi- Na infância precoce a criança tem uma depen-
metismo. Com este termo designa uma moda- dência absoluta dos cuidados físicos e afectivos
lidade em que a criança se identifica, de uma for- prestados pela mãe, ambas estão mergulhadas
ma quase alucinatória, ao objecto em falta na num «banho» comum e, nessa idade, «a unidade
mãe com o fim de servir a negação materna da não é o indivíduo, a unidade é um contexto de

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ambiente-indivíduo» (Winnicott, 1958, p. 99). ao desejo que é transformador, e apenas a reco-
Nesse meio a sustentação, além de física tem que locação dos laços afectivos onde habite o desejo
ser afectiva, que proporcionar à criança as expe- de outrém, cadinho de transformações, poten-
riências de modificação do self. De outro modo ciador e propiciador de internalizações mutati-
ser-lhe-á dificultada ou mesmo impedida a inte- vas, poderá demudar a cadeia estéril da repetição
gração psique-soma, o desenvolvimento. Dito de e impasse relacional.
outra forma, para que o processo de maturação e Quando os afectos desenham formas de cuida-
integração psico-fisiológica tenha lugar a criança dos materno-infantis desligados do encontro
terá que alguma vez poder ter tido a ilusão de transformacional (Bollas, 1978) com os conteú-
haver criado o objecto, e para que esse objecto dos pré-conceptuais da criança, o que se lhe pro-
ganhe existência separada, consistência e fiabi- porciona são imperativos corporais exterioriza-
lidade, é necessário que ele possa sobreviver à dos que conformam, em toda a acepção da pala-
sua própria destruição, demonstrando existir e vra, o seu funcionamento, físico e projectivo. Es-
permanecer para além do controlo omnipotente te duplo funcionamento figura duas instâncias,
que inicialmente o «criou». corpo-real e corpo imaginário (Sami-Ali, 1977).
A associação entre a motricidade e as repre- Em psicossomática, definir um funcionamento,
sentações imagéticas ficou patente quando Fritsh terá necessariamente de ter em conta estes vecto-
e Hitzig, nos finais do século XIX (1870), estu- res, e o encontro com as patologias que têm lu-
davam o córtex cerebral, deparando-se com áreas gar no corpo real terá que passar por uma pos-
que concatenavam intrinsecamente movimento e tura que vá ao encontro desse mesmo lugar do
pensamento. Esta combinação de factores, entre corpo e não numa tradução explicativa baseada
o físico e o psicológico, viria a ser reforçada e no modelo das psiconeuroses (buscar o significa-
repensada por novos autores, nomeadamente do latente do sintoma, se adoptarmos o modelo
Wallon e Piaget. Se o corpo não criar a partir do da histeria, onde o corpo fala a linguagem do
seu interior as suas próprias coordenadas tempo- sonho, procurar a lacuna de simbolização se
ro-espaciais ficarão comprometidos, numa pers- seguirmos o modelo da psicose, ou indagar as
pectiva fenomenológica e de desenvolvimento, o carências de elaboração mental se atendermos
conhecimento, a evolução e a sensorialidade. ao modelo da neurose actual). Amaral Dias, à luz
O bebé recém-nascido encontra-se, nos seus da teoria bioniana, considera o sintoma psicosso-
primeiros tempos imerso num universo onde o mático como «anti-significação ou desistência
seu vivido corporal engloba a mãe e onde não de um significado ou como significado mentiro-
existe a diferença. Da progressiva integração so» (p. 44). Consideramos que há, de facto, que
funcional e do enriquecimento gradual que parte introduzir neste entendimento uma lógica do
da conjugação dos primeiros esquemas sensório- negativo, acrescentando que o reverso do imagi-
-motores, o aparelho cognitivo-afectivo do bebé nário a configurar o sintoma só pode ter lugar na
integra-se, alarga-se e consolida-se (Piaget). A outra face que é constituída pelo corpo real e pe-
transformação do vivido corporal em representa- los avatares da sua constituição. Essa compreen-
ções executa-se através de uma projecção corpo- são permitirá perceber que ao que a criança
ral primordial que tem o corpo como esquema alérgica se identifica é a um ritmo e significação
inicial de todas as representações temporais, es- outros que lhe são fornecidos por uma instância
paciais e, como corolário, objectais. Deste modo, externa que lhe ordena corpo e psiquismo.
a integração funcional da criança, dá-se gradual Ao apreciarmos o Rorschach de crianças alér-
e progressivamente pela apropriação e redesco- gicas verificamos então uma dificuldade funda-
berta do seu corpo libidinizado (banhado pelos mental em configurar coordenadas espaciais só-
afectos) e é condição fundamental para o funcio- lidas perante a ausência ou a inconstância ou in-
namento do processo projectivo. Não é inopor- consistência de referências internas disponíveis,
tuno ter presente que «um grau razoável de a impossibilidade de integração de referências
adaptação às necessidades do bebé oferece as corporais dispersas num esquema pessoal uno,
melhores hipóteses possíveis à edificação preco- uma custosa e periclitante conduta defensiva
ce de uma relação sólida entre a psique e o so- que visa manter a ilusão de um objecto único,
ma» (Winnicott, 1969, p. 195). É o afecto ligado uma sensibilidade marcada à experiência táctil e

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aos ritmos, a prevalência da temática do rosto para além delas, na resposta Rorschach, da pre-
como lugar de perplexidade perante a constitui- sença do outro. Nas respostas dadas estende-se a
ção de uma impossível identidade. A angústia, possibilidade/impossibilidade do sonho (ainda
muitas vezes intensa nestas crianças, tem um prolongamentos...). Assim, é a relação que habi-
assento assinalável no corpo, manifestando-se ta o Rorschach e é por ele habitada. E é ela a
pela agitação motora ou pela sideração da quie- única que lhe dá sentido. Ainda que aquela dei-
tude, e residindo frequentemente na tonicidade e xa, de que falámos há pouco, venha a encontrar
coordenação do movimento, de um modo (já as- apenas a sideração ou a factualidade.
sinalado por Gauthier, 1993, ao estudar crianças A situação Rorschach tem os seus protagonis-
com dermatite atópica) e que permite pensar nos tas, os dois que se movimentam no aqui – e –
pólos da actividade/passividade como promoto- agora e aqueles, das marcas da presença ou ves-
res ou dificultadores da diferenciação corporal e tígios da ausência. O que nela é dito, agido, o
psíquica. que nela tem lugar, é quota-parte de todos.
Acentuamos uma perspectiva sobre a constru- Acontece pois aí a configuração do sujeito na
ção das modalidades de resposta da criança alér- relação. Na urdidura da relação, uma expressão
gica no Rorschach, prestando atenção às suas os- profunda que é o precipitado de uma dimensão
cilações entre corpo imaginário e corpo real e, comum. E é porque a marca do outro nunca está
muito particularmente, à sua conduta projectiva em absoluto ausente que a resposta Rorschach
em relação com as peníveis tentativas de referen- comporta em si um funcionamento e uma situa-
ciação num corpo que não conjuga, não integra, ção de vida. Comum e porém própria, interna
em última análise: que não lhe pertence. Acre- mas relacional. Nessa resposta, sempre mais
ditamos ser necessário alargar o estudo da situa- larga que o verbalizado, está o aparente e o
ção Rorschach e da sua interpretação tendo em ignoto, mesmo o desconhecido e o indecifrável
conta a existência de particularidades do funcio- (e esse, o que assim deve permanecer: o âmago).
namento psicossomático que não se manifestam E, por dentro de tudo isto, os alicerces mais bá-
no plano dos conteúdos mas no plano formal, sicos e primevos. Tão básicos que são os primei-
dos continentes. Pensamos que, para compreen- ros constituintes do sujeito na relação. Tão inici-
der o Rorschach em psicossomática, há que inte- ais que, se não constituídos, deles apenas se en-
grar uma atenção às modalidades preceptivas e contra a planura de uma pobremente ilusória
relacionais que precedem a génese da verbaliza- definição de volumetria; ou a aridez infértil do
ção e, às suas formas de se exprimirem por que não pôde, à falta de meios, ser construído
meio de um material com características senso- como casa; ou a errância esgotante na senda de
riais tão fortes quanto o Rorschach. Constituindo uma reduplicação fictícia do objecto tornado
aí processos nascentes mais do que conteúdos único. É por isso necessário poder entender na
emergentes. resposta Rorschach que também existe, aquém
Espaço formal e ao mesmo tempo informe o da espessura fantasmática e da dimensão simbó-
Rorschach comporta uma ambiguidade intrínse- lica, esta outra e mais antiga, que é a da repre-
ca, convida à expressão sugerindo pistas: uma sentação, primordial, onde aquela assenta: o
forma sobre um fundo – a presença de algo, va- corpo como esquema de representação mental do
gamente, confusamente figurativo – ele está lá; espaço e do tempo. Há que poder estar apto a en-
e, expressando, configurando a forma, cores, contrar também, nas respostas Rorschach, toda
em gradientes subtis ou manchas espessas, de di- essa expressão do processo projectivo. Para ele
ferentes definições – ele permite a referenciação, concorre a projecção condutora e guia da senso-
quiçá a enunciação ou a evocação. rio-motricidade como actividade do conheci-
Na apresentação dos cartões fica sempre uma mento e construtora da subjectividade.
deixa (um prolongamento): «o que é que isto po- A fantasia implica a pertença, o desdobramen-
dia ser?» Fica também, sempre, um acolhimento, to a assunção da individualidade. Conheço na
o do clínico, convite a um espaço interior de medida em que me conheço, ou isto a que chamo
transformação. Mais individual embora ainda e conhecimento não radicará num processo inter-
sempre relacional posto que habitado pelas pala- no. Porém, a forma como me expresso conterá
vras e pelo que ficou, como memória ou afecto, sempre o traço da matriz em que foi forjada, e é

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sempre ela que vai configurar aquilo que deno- já em consulta, coadjuvado e secundado pela
mino ou sinto. As dimensões do corpo prolon- mãe que relata de imediato factos ou sonhos
gando-se na organização subjacente à resposta idênticos semelhantes aos do filho e ocorridos
Rorschach: patenteando as qualidades da repre- com ela própria. A mãe refere frequentemente
sentação da sua própria espacialidade, nas loca- associações pessoais a factos passados com o
lizações no cartão (com o seu alto e baixo, es- filho, e este, por sua vez, com a mãe, de tal mo-
querda e direita, zonas central e periférica), da do que chegam a induzir confusão sobre quem
sua temporalidade (na sequência das respostas – está a contar a história de quem. É neste pro-
regrediente ou progrediente, dispersa ou integra- cesso que tomamos conhecimento da dermatite
da, podendo oscilar entre as diversas modalida- atópica de que a criança sofre.
des por que a projecção se exerce). A mãe apresenta uma angústia visível que a
Na criança alérgica a questão central é a da faz relatar a sua história pessoal, em conjunção
identidade, e a articulação projectiva fica captu- com a do filho, chegando a afirmar procurar uma
rada num espaço fechado que não permite a con- ajuda psicoterapêutica junto com o filho, sem
frontação com um terceiro: é o impasse, que blo- distinção assumida de pessoas, locais ou horá-
queia o acesso à autonomia, onde para «existir» rios. Da história que relata avulta a relação qua-
há que «não ser» e qualquer esboço deste equi- se simbiótica que manteve com a sua própria
vale à perda de si. As estratégias empregues con- mãe, falecida aquando da gravidez do Bernardo.
sistem em reduzir e anular a diferença. Operando Avulta também a depressão em que submergiu
por sucessivas reduções elabora-se a conforma- então, reavivada na altura do nascimento da
ção ao primado do materno. Destaca-se quanto a filha mais nova (quatro anos mais nova que o
este aspecto uma nota sobre o lugar ocupado Bernardo), devido ao suicídio do irmão, de quem
pelo primeiro e pelo último cartões na relação a família era particularmente próxima, mas de-
com o clínico e, por consequência, no desenrolar vido, essencialmente, ao segundo casamento do
de uma possível situação de confronto com o es- pai, de quem se confessa a preferida. Cabe aqui
tranho. O espaço da indiferenciação anuncia o referir a existência de uma tia materna, alguns
pólo alergia/psicose, prefigurando por vezes an- anos mais nova que a mãe do Bernardo.
gústias de destruição muito arcaicas. O menino apresenta resultados escolares ra-
Passamos então a examinar um protocolo de zoáveis que se ressentem contudo na área da
Rorschach de uma criança que sofre de dermatite aritmética. Diz não saber desenhar «os outros
atópica. O Bernardo tem 9 anos de idade. Depois sim!», diz-se ainda pouco habilidoso e confessa
de alguns anos de preocupações maternas com as a sua pena de «não ser engenhocas como os co-
condutas do filho sem que qualquer iniciativa legas». Conta que quando crescer há-de ter o seu
fosse tomada, sempre com uma reticência que «automóvel veloz», com que há-de «sair para
impedia de procurar directamente ajuda, os pro- fora em viagem, conhecer o mundo».
blemas agravaram-se e a criança foi finalmente A relação com a irmã é conflituosa, com a
encaminhada pelo seu pediatra para uma psicote- mãe a indistinção marca-se no tempo, no espaço
rapia. e no imaginário, e assim a mãe confessa que o
Centra-se então a questão em torno dos sonos. Bernardo a tem que acompanhar para todo o lado
O Bernardo tem medo de dormir sozinho, de tal onde vai «pois aterra-se e angustia-se em extre-
forma que agora lhe é impossível dormir sem ser mo quando está sozinho», que de outro modo fi-
na cama dos pais. Qualquer tentativa em contrá- cam «ambos aflitos» pois não suporta «imaginar
rio por parte da mãe é acompanhada de tal choro que ele possa estar mal». No campo da pertença
e aflição que, ao cabo de algum tempo, esta de- das temporalidades a mãe aponta, junto da
siste esgotada e angustiada. professora ou do médico, o filho como causa dos
Não é aquele o único medo do Bernardo pois atrasos aos seus compromissos. A indistinção de
não suporta também permanecer sem companhia papéis fica também patente na tomada das
numa divisão da casa, ainda que por pouco tem- decisões, por uma reversão de papéis é sempre à
po. Tem medo do escuro e começara a demons- criança que cabe a última palavra. Se o tentam
trar receio em relação à escola e aos colegas. contrariar o desespero e o choro logo ocorrem.
A criança tem pesadelos terríveis que refere, O Rorschach que se passa a considerar é re-

243
colhido no início da observação. Não se inte- tos. Só depois virá a palavra, a unificação difi-
grarão na sua apreciação os elementos decor- cultosa (a posteriori) do todo. Agora, é o espaço
rentes das entrevistas clínicas que aqui figuram a da ausência que se apresenta. Com sentido, com
título ilustrativo. nome, mas por si só. Coisa desligada, que se
abre sobre o vazio. Objecto flutuante que se des-
taca da penumbra do representável. Esse, espaço
PROTOCOLO DE RORSCHACH DE BERNARDO, nominável sobrepondo-se, mesclando-se, na re-
9 ANOS: ANÁLISE CARTÃO POR CARTÃO lação com o clínico, o estranho (parceiro estra-
nho numa relação estranhamente próxima e es-
tranhamente distante): espaço potencial de mui-
tas interrogações sem formulação, espaço de
Cartão I perda do familiar, comporta esta súmula de inde-
finição, trama de vazios, teia de afectos porven-
1 – ^ Uma janela. Podia ser uma janela. tura desatempados ou perdidos.
Dbl F- Arq. A «casa» é ainda a expressão da imago mater-
→D/G na pré-genital, que surge perante a vivência do
vazio, vivência que se acentua na insistência so-
Inquérito: Aqui. (Aponta vários Dbl centrais). bre o vazio dos espaços. O sentimento de segu-
E o resto era a casa. rança anda daqui ausente. Logo em seguida, en-
tão, a angústia deste vazio que se fez sentir, de-
sencadeada por essa imago de uma viscosidade
2 – ^ Um cão, com dentes. inicial, encontra expressão na temática da orali-
Gbl F+ Ad dade.
Configura-se o objecto após a estranheza ini-
Ai!... + cial. Configura-se como coisa inteira «um cão»,
que foi construída de retalhos, significações
Inquérito: (G) As orelhas, o cabelo, os dentes, paulatinamente reconhecíveis e integráveis num
os olhos (Dbl) e a pontinha do nariz. (?) A todo primeiro, senhor de uma totalidade, «outra-
cabeça do cão. lidade» perturbante, consubstanciada na face,
lugar capital do reconhecimento. Desta, nesta,
3 – ^ Uma cara de um morcego. «os dentes» são aquelas marcas da oralidade nu-
G bl F+ Ad (Ban) ma relação com o materno que engloba, incor-
→D/G pora, aprisiona. As marcas do rosto são os luga-
res dos sentidos que neles têm sede.
Inquérito: (G) Os olhos (Dbl), as asas. Aqui o todo, «um cão», é definido pela parte,
«a cabeça do cão». Esboça-se essa configuração
da face como o habitáculo de processos internos
O espaço vazio da figura impõe-se, «uma ja- de regulação que resultam num equacionar do
nela», mas vêm posteriormente a ser apontados diverso, que não do distinto.
vários detalhes (Dbl), é o detalhe que dá o nome Manifesta-se então a angústia acompanhada
à coisa. O objecto parcelar, o que se apresenta por uma expressão somática, a leve agitação
perante o vislumbre do reconhecimento, que motora que dá mostras do desconforto contido
não pode ser concebido na sua unidade essencial. na situação.
A denominação do singular (o conteúdo apon- É agora a parte, «uma cara» que define o to-
tado – «janela») confunde-se com a do plural (a do, «um morcego». E ambos os espaços, sendo
das localizações – os vários Dbl centrais). Impre- incongruentes, não são incompatíveis, «os
cisão de identidade. Onde não reside a possibili- olhos» e «as asas» podem coexistir na mesma
dade do comutativo da nomeação, está ausente a dimensão. Na bi-dimensionalidade daquela rela-
do recíproco da identificação. ção primeira onde se ficou, aprisionado.
«A casa» virá depois, depois de percorrida to- Este cartão representa a entrada em contacto
da uma panóplia de nomeações/reconhecimen- com o material da prova, material que aqui é o

244
mediador da comunicação, da relação com o cer para eles uma relação de complementaridade,
clínico. O que acontece é o patentear da disse- ilusória porque forçada, com a primeira designa-
melhança num espaço de grande proximidade ção formulada. «Uma coisa que se espetava no
com a mancha, retrato da inquietante proximi- chão para pôr a bola em cima». De novo a «coi-
dade relacional. Os olhos e o próprio rosto são as sa», material incerto para uma representação
janelas, numa «casa» imagem do corpo que incerta.
logo após se transforma em rosto. Os espaços O comentário, «não sei mais nada» denota o
vazios da mancha continuam a ser os organiza- afastamento de uma conduta interpretativa, re-
dores da percepção. É o corpo que se condensa presentação outra que vem de fora, que restringe
no rosto e o rosto que assume as dimensões do o jogo cruzado da percepção e da projecção, e
corpo. É a ausência de um rosto como lugar da com a qual estas se procuram coadunar.
identidade, como lugar do reconhecimento idios- Na resposta adicional reduz-se ainda mais o
sincrático e da atribuição individual de sentido. campo preceptivo e é unicamente interpretado o
O que de outro modo teria sido olhado, em rela- espaço vazio central, «uma bolacha», onde se re-
ção ao qual teria sido respeitada a contribuição toma a temática da oralidade, agora de forma
pessoal e única para uma organização significan- passiva, impessoal, sem ressonância objectal
te. afectiva.
O confronto com o estranho causa agora um
fechamento ao espaço relacional, patenteando-se
Cartão II uma impossibilidade de diferenciação, uma re-
gressão formal. Parece dar-se um processo de re-
(Respira fundo). ++ gulação da focagem de lentes, num esgotamento
de recursos que faz ressaltar o espaço atractor do
4 – V Uma bola... que tem manchas verme- objecto materno, continente alheado que espar-
lhas. tilha o conteúdo, sem atenção nem regozijo.
D D bl F- C Obj
→G →E
Não sei mais nada. Cartão III

Inquérito: A bola era isto. (D negros e D V^V +


verm. inf.). Aqui também (D bl entral). Isto
(aponta D verms. laterais), é que eu não con- 5 – V Um vestido com um laço... Ao lado
segui saber qual era a finalidade... Ah, já sei! tem dois cabides.
Era uma coisa que se espetava no chão para D / G F- Obj
pôr a bola em cima. Não sei mais nada.

Adicional – Parece uma bolacha também. Inquérito: O vestido (D negros lats.), o laço
(Dbl central)]. [Dbl F- Alim.] (habitual), os botões (D negros infs. centrais), e
I.L. – [(Animais?) Não.] os cabides (D verms. sups.) de onde ele tirou a
roupa. (?) Está a vestir-se a si próprio. Só que a
cabeça não aparece.
Desenha-se neste cartão uma nivelação de I.L. – [(Pessoas?) – Não vejo.]
estruturas espaciais que prefigura uma individua-
lidade inalcançada.
Existem no início da resposta indicadores Retoma a necessidade de reunificação da figu-
corporais da angústia. Começa por fazer uma ra (mancha acentuadamente bipartida) numa
tentativa de reunificação da mancha bilateral, e interpretação única, «um vestido com um laço».
isto a partir do seu centro, integrando o espaço Imagem de cobertura, despida de vida, que col-
vazio, «uma bola». Os pedaços da mancha não mata o vazio interior, o espaço central que assim
integráveis são os que se encontram na periferia é recoberto pelo conteúdo evocado.
desse espaço central. Apenas é possível estabele- Os detalhes laterais estão desligados «dois ca-

245
bides», numa relação funcional, por similitude central)... Parece um tapete. Um animal... Da-
de conteúdo, que alastra o teor e o espaço da re- queles dos filmes de desenhos animados... Por
presentação, estabelecendo uma sucessão de res- causa destas manchinhas (E no negro).
postas por derrame da resposta inicial.
A diferenciação só se estabelece quando exis-
tem objectos que se destacam pela significação, Toda a resposta é um conjunto de defesas er-
de outro modo serão englobados num todo úni- guido contra uma representação super-egóica
co. A percepção globalizante, como mecanismo ansiogénica: um animal forte mas desvitalizado,
de redução ao idêntico aqui operado, e a impre- evocado com precaução verbal «parece pele, de
cisão de que dá nota em termos de identidade, um urso», imagem que não se mantém e é atra-
estão relacionadas com uma não individualidade vessada por algo que balanceia, «ou qualquer
do materno: rosto que não se destaca pelo olhar coisa. Qualquer animal», algo indefinido, sem
que não olha, pelos olhos que não foram olha- um suporte sólido da condição vivente, mas que
dos, e por essa relação de mutualidade indivi- é, realmente, animado de vitalidade, «animal».
sível onde se revê aquele que olha nesse que é Dá-se aqui um esboço imagóico compósito
olhado, até ao infinito, em múltiplas transmu- onde as tonalidades do paterno são leves e fuga-
tações criadoras de profundidade e propiciadoras zes. Mais do que esse nível «é difícil», tão difícil
das ramificações e cruzamentos do espaço psí- quanto a sua impossível separação.
quico. As «mandíbulas», que são de novo a marca de
Não existe verdadeira complementaridade, uma oralidade ligada a um espaço materno en-
apenas aderência de conteúdos: «um vestido globante, porventura agressivo, devorador, mos-
com um laço» que foram tirados dos «cabides», tram também contra o quê as sucessivas defesas
em disparidade de correspondência numérica, são erigidas (a desvitalização, o isolamento, o
onde os elementos da realidade (as duas man- afastamento espaço-temporal).
chas laterais) se impõem como coisas em si, não Se o material e a situação da prova recriam
se integrando na significação. um espaço/tempo de confrontação com o desco-
Num segundo tempo (inquérito), a enumera- nhecido e o diferente, eles provocam conse-
ção dos detalhes perante a retomada da resposta. quentemente a necessidade de um reajustamento
Por último vem a inclusão do anónimo onde se interno defensivo. A criança mantém o seu nível
entrecruzam as difíceis ligações, «ele» – «...de de adequação formal e adaptação, porém à custa
onde ele tirou a roupa» o inominado e sem rosto de um dispêndio considerável de energia. O ní-
cuja «cabeça não aparece». Assim as pessoas, vel progrediente da resposta está ligado ao ca-
resposta frequentemente dada neste cartão (bana- rácter compacto da mancha que, como factor ex-
lidade), de forma aparentemente contraditória terior, ajudou a configurar o todo.
não são vistas, porque o problema se recoloca na
inexistência de um rosto amante, presença anó-
nima e indistinta que não atenta nem confere in- Cartão V
dividualidade.
Ah, este é fácil!
7 – ^ Parece-me um morcego... preto. +
Cartão IV Um morcego. Parece um morcego.
G Kan C’ A Ban
V<^>V
Inquérito: Está a voar.
6 - ^ Parece pele, de um urso, ou qualquer
coisa, Qualquer animal.
G FE A Ban É com alívio que surge a resposta global: «Ah,
→Clob esta é fácil!», globalidade que, apesar de tudo,
Não sei mais nada! É difícil! (Diz entoando). não se mantém sem esforço pois não se impõe
com nitidez. O apoio na realidade (na cor), as
Inquérito: As mandíbulas (Dd no D sup. repetições e as verbalizações de dúvida disso dão

246
nota: «Parece-me um morcego... preto. (...) Um 9 – V Assim parece uma menina. Com per-
morcego. Parece um morcego». A abolição do nas, braços e cabeça.
pronome reflexo na última afirmação acentua o G F+ H
carácter da dúvida, a impessoalidade e o vago da
resposta. Inquérito: Aqui os olhos (Dd nos D infs. do
A confrontação com o alheamento afectivo do terceiro 1/3). O cabelo eu imaginei. A cabeça
objecto, bem como a reorganização, são tributá- aqui em cima (mesma localização em D). Não
rias e dependentes da acção exterior, não permi- se vê lá muito bem... Os braços (D centrais do
tindo lugar para a individualidade. segundo 1/3), as pernas (D sups. do primeiro
1/3).

Cartão VI 10 – ^ E assim também parece um corta-


nozes.
^>V^< G F- Obj

8 – V Um gato, todo esticado. No chão, a dor- Inquérito: A parte do meio (Dbl central) e as
mir. + partes que cortam as nozes (D negros).
G F+ A
→Kan
Prontos, não sei mais nada! O grande vazio central a provocar a angústia
do vazio, a necessidade de acentuar a resposta
Inquérito: Os bigodes, as patinhas... O gato,
pela globalidade, «Parece uma menina», a enu-
esticado.
meração é o recurso aos detalhes como forma de
conferir sentido. Referenciação corporal num
movimento especular de complementaridade e
De novo a ansiedade com expressão corporal
projecção da imagem do corpo.
é a nota de abertura (através das reviravoltas do
A «cabeça» que «não se vê lá muito bem»
cartão), talvez a procura das referências pre-
está para esta figura na razão da sua relação com
ceptivas da mancha como elementos essenciais
o materno, imagem interna que se desenha pela
ao processo de criação da resposta, «Um gato,
todo esticado». É aliás neste sentido que funcio- negativa e pela ausência. O «corta-nozes» é
nam as referências a pormenores, pequenos de- uma imagem indistinta, agressiva e sem marca
talhes ou características menos pessoais e pro- de eco afectivo, de um continente que não con-
jectivas do estímulo (tais como a cor – C – ou os tém mas antes se fecha e se espartilha, ignorando
seus gradientes – E): defesas pela realidade no a carência, desconhecendo a qualificação da
sentido da adesão/colagem sem elaboração. individualidade.
O conteúdo descreve uma vida latente, movi-
mento embrionário mas cristalizado de reconhe-
cimento das solicitações dinâmicas do cartão, Cartão VIII
«no chão, a dormir». A seguir a placagem: «não
sei mais nada!». 11 – V Parece uma cara de um palhaço. Com
Também este «gato esticado», de vitalidade cabelo. Cabelo cor-de-rosa, com uma peruca
inexistente, se inscreve no quadro das condutas cor-de-laranja, olhos azuis, uma boca azul mais
de redução das diferenças. clarinho. Olhos cor-de-rosa, também.
G F- C Hd

Inquérito: Aqui são os olhos dele (D cinzas


Cartão VII sups.), aqui é a máscara que ele pôs, são os
olhos da máscara (D azuis centrais). Aqui é o
V ... ^ + + + cabelo dele (D laranjas lats.), e aqui é a peruca
(D laranja sup.). Eu não gosto de ele ter estes

247
dois olhos (Aponta as duas localizações diferen- veis pois que o outro termo se trata de um lugar
tes e faz ar de estranheza). virtual de ausência, espaço do negativo reificado,
I. L. – [(Animais?) – Não vejo.] de um lugar da não-existência.

O elemento cor, que aparece neste cartão, Cartão X


contribui para a identificação, como referência
do real concreto, das partes no todo da figura 13 – ^ Parece uma torre, com foguetes à vol-
construída: «uma cara de um palhaço.» Porém, a ta, a amandar. E a torre é toda às cores, e os fo-
sua variedade comporta um apelo de multiplici- guetes também.
dade que resulta numa interposição da diferença, G KobC Pais / Elm
anulada por duplicação de conteúdos e localiza-
ções e dando conta do mal-estar que sobressai Inquérito: A torre (D cinzas sups.), e os fo-
desta confrontação com o estranho; «Aqui são os guetes é o resto tudo.
olhos dele, aqui é a máscara que ele pôs, são os I. L. – (Aranhas?) – Não.
olhos da máscara (...) Eu não gosto de ele ter es- (Caranguejos?) – Não.
tes dois olhos.» Assistiu-se a este mesmo pro- Adicional – [Aqui é que me parecem passa-
cesso de focagem de lentes, e que foi por metá- rinhos. (D amarelos centrais infs,)].
fora referido no cartão II (cartão de introdução [D F+ A]
de uma nova cor, no caso o vermelho).

A prova termina (e a situação é uma situação


Cartão IX de finalização) por uma conduta ténue de restru-
turação narcísica (em volta do eixo central),
12 – V Isto parece um desenho às cores. «uma torre», logo abandonada em detrimento de
Com muitas cores, com cor-de-laranja, verde, e uma explosão pulsional em que sujeito e objecto
com cor-de-rosa. são indistintos: «com foguetes à volta, a aman-
G CF Abst / H dar». A situação conduziu acentuado desconfor-
Já está. to e recolocação de toda a problemática da iden-
tidade.
Inquérito: (Olha atentamente). O desenho de
um menino. Os braços (D azuis laterais), as Neste psicograma o número de respostas apa-
pernas (D laranjas sups.), o corpo (D central), a rece francamente diminuido, denotando uma
cabeça (D rosas infs.). abordagem limitada quanto aos conteúdos apre-
sentados. Apesar disso verifica-se, em termos
qualitativos, um tipo de resposta com verbaliza-
A dificuldade de estruturação da resposta ine- ção mais extensa, aonde por vezes as imagens
rente à interpenetração de cores e fluidez do car- projectadas alternam, dando nota de uma impre-
tão apenas permite uma nomeação de cores in- cisão em termos de imagem corporal. Uma reali-
cluídas em conteúdo impreciso «Um desenho às dade dificilmente integrável, que não se apre-
cores. Com muitas cores (...)». Num segundo senta com contornos estáveis.
tempo dá um conteúdo humano, «Um menino», Há uma acentuação das respostas de configu-
que é visto em espelho num gradiente de aproxi- ração global. A projecção é exercida sobre a glo-
mação e afastamento com o corpo próprio (com balidade dos perceptos evocados e, quando alte-
o cartão em posição inversa). rada, altera-se também no seu conjunto. Não se
Existe nesta criança um vislumbre muito em- trata de uma imagem corporal una mas de uma
brionário para além de um espaço materno sim- impossibilidade de que se exerça maleabilidade
biótico e aprisionante, mas trata-se de um terreno projectiva em relação a uma imagem do corpo
armadilhado pelo perigo da despersonalização: que não é autónoma do «objecto»: na indistinção
destino e vicissitude da identidade quando tanto corpo e objecto são um só e apenas é possível
a aproximação como o afastamento são impossí- que se configurem sob a mesma medida. Parale-

248
Prova das Escolhas:

Escolhas + : Escolhas – :

IeX III e VII

[Posso dizer as que gostei mais ou menos? (Podes.) Foram destas: IX e V. As


outras não foi nada.

IX – (?) Gostei menos por causa da cabeça.

V – (?) Por causa disto. (Aponta D infs. centrais). (?) Parece umas pernas. (?)
De um homem, transformado... em morcego. Não gosto!]

Escolhas + : Escolhas – :

I – A preta. (?) Por causa da cor. (?) III – Tinha o pescoço muito largo, e não
O cão está a tramar alguma coisa. (?) tinha cabeça. Era esquisito. (?) O que
Vai saltar para cima de uma pessoa. Tem eu não gosto é de não ter cabeça.
cara de mau. (Porque é que vai saltar?)
Porque lhe estavam a fazer mal.

X – Por causa das cores. Tem muitas cores, VII – Não gosto dos olhos aqui (Manchas
muitas cores, variadas. E eu adoro cores! Dd E no D inf. central), e da cabeça.

249
250
lamente verifica-se um empobrecimento das res- Ferenczi, S. (1968). Transfert et introjection, Psychana-
postas de detalhe, grande detalhe, inversamente lyse, I. Paris: Payot. [Obra original publicada,
proporcional ao acentuado investimento nas res- 1912].
Freud, S. (1966). Project for a Scientific Psychology. In
postas globais. É a maleabilidade de representa- J. Strachey (Ed. e Trad.), The standard edition of
ção corporal que resulta empobrecida. the complete psychological works of Sigmund
Verifica-se uma existência muito diminuta de Freud (Vol. 1, pp. 281-397). London: Hogarth
outras respostas para além das formais. A única Press. (Obra original publicada, 1950 [1897]).
prevalência para além daquelas é a da cor, deno- Gauthier, J.-M. (1993). L’enfant malade de sa peau. Ap-
tando a sensibilidade às referências provenientes proche psychosomatique de l’allergie précoce. Pa-
ris: Dunod.
da realidade externa. Reforçando esta aprecia- Gauthier, J.-M. (1999). Pour un redéploiement de la no-
ção, o tipo de ressonância íntima é extratensivo. tion d’étayage en psychanalyse. In J.-M. Gauthier
Trata-se de um protocolo sem introdução pro- (Ed.), Le corps de l’enfant psychotique. Approche
jectiva do movimento mas com expressão do pó- psychosomatique de la psychose infantile (pp. 130-
lo cor. -134). Paris: Dunod.
A abordagem projectiva fica presa das confi- Keller, H., & Gauda G. (1987). Eye contact in the first
months of life and its developmental consequences.
gurações que assumem as manchas e, é apenas
Psychobiology and Early Development, 23 (2),
quando integra as suas outras determinantes, 129-143.
que as respostas alcançam níveis de qualidade Lebovici, S. (1983). Le nourrisson, la mère et le psy-
formal. Esta não deixa, no entanto, de ser fraca. chanalyste. Les interactions précoces. Paris: Paï-
À imprecisão projectiva alia-se uma grande res- dos.
tritividade na adequação à conformidade social Marty, P., David, C., & M’uzan, M. (1963). L’investi-
gation psychosomatique. Paris: PUF.
das imagens evocadas. Há uma mutabilidade
Misès, R., Fortineau, J., Jeammet, Ph., Lang, J.-L., Ma-
que não encontra possibilidade interna de manter zet, Ph., Plantade, A., & Quémada, N. (1988).
uma representação estável e coerente de si. O Classification française des troubles mentaux de
uso diminuto das banalidades tem a ver com o l’enfant et de l’adolescent. Psychiatrie de l’Enfant,
movimento (regrediente ou progrediente) das 31 (1), 67-191.
respostas. Sami-Ali (1977). Corps réel. Corps imaginaire. Pour
O conteúdo humano é uma resposta possível une épistémologie psychanalytique. Paris: Dunod.
Santos, J. (1971). A Casa da Praia. O psicanalista na
mas dificultosa em termos de integração das re- escola. Lisboa: Livros Horizonte.
ferências corporais. Szwec, G. (1993). La psychosomatique de l’enfant
asthmatique. Apport des psychothérapies psycha-
Não há neste protocolo uma busca de identifi- nalytiques à la connaissance d’un déséquilibre
cação, como seria próprio à idade da criança em psychosomatique. Paris: PUF.
causa, mas sim um movimento anterior e muito Winnicott. D. W. (1958). Collected papers. London:
Tavistock Pub..
mais passivo, que se relaciona ainda com a Winnicott. D. W. (1969). La première année de la vie.
identidade primária: o «ser-se», um corpo repre- De la pédiatrie à la psychanalyse. Paris: Payot.
sentado, uma amplitude de representação, uma
identidade.
RESUMO

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Para a autora não é possível basear o estudo da psi-


cossomática em conceitos psicanalíticos clássicos da-
Bollas, C. (1978). The transformational object. Interna- do estes permanecerem estreitamente associados à
tional Journal of Psycho-Analysis, 60, 97-107. sua fonte: à investigação dos traços de significação
Dejours, C. (1989). Recherches psychanalytiques sur le que formam os sintomas histéricos.
corps. Répression et subversion en psychosomati- A apreciação de protocolos de Rorschach de crian-
que. Paris: Payot. ças alérgicas permite considerar a projecção corporal e
Dias, C. A. (1992). Aventuras de Ali-Babá nos túmulos os processos de redução das diferenças que aí têm
de Ur, Ensaio psicanalítico sobre a somatopsicose. lugar, como constituindo o aspecto principal do fun-
Lisboa: Fenda. cionamento destas crianças.
Fain, M. (1969). Réflexions sur la structure allergique. Considera-se que para identificar esta espécie par-
Revue Française de Psychanalyse, 33 (2), 227-241. ticular de funcionamento há que construir uma forma

251
diferente de apreciar as produções Rorschach. Apre- closely associated to their source: the study of symbo-
senta-se ainda uma possível contribuição para esta no- lic characteristics of hysterical symptoms.
va metodologia. The assessment of Rorschach protocols obtained
Palavras-chave: Psicossomática, alergia, crianças, from allergic children allows her to consider corporal
Rorschach, projecção, identidade. projection and reduction of differences as the main
characteristics of their functioning.
The author beliefs that to identify this particular
kind of achievement one as to construct a different
ABSTRACT approach in order to understand Rorschach producti-
ons. She also advances a suitable contribution for a
The author stands that in order to study psychoso- possible new methodology.
matics it is not valid to use a theoretical model suppor- Key words: Psychosomatic, allergy, children, Rors-
ted by classic psychoanalytic concepts which remain chach, projection, identity.

252

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