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“A VIDA É SÓ UM DETALHE”

DIEGO DIAS
NOTA DO COMPOSITOR/DRAMATURGO

Este trabalho foi composto como uma livre inspiração a partir da canção “Crisântemo”, de Emicida.
Embora também se remeta a outras partes de sua obra, a presente composição não possuí a menor
pretensão de se constituir enquanto nenhuma espécie de biografia do cantor. De forma destacada e
notória, reforço que não é de modo algum retórica a afirmação de que os eventuais acertos e
méritos desta dramaturgia devem ser integralmente divididos com aqueles que ao longo do
caminho contribuíram com suas leituras, opiniões, críticas e debates, pois sem os mesmos a
realização deste texto não seria de maneira alguma possível.

(Niterói, Dez/2017)
“Esse é meu caminho e nele eu vou!

Eu gosto de pensar que a luz do sol vai iluminar

o meu amanhecer

Mas se na manhã o sol não surgir

Por trás das nuvens cinza tudo vai mudar

A chuva passará e o tempo vai abrir

A luz de um novo dia sempre vai estar

Pra clarear você pra iluminar você

Pra proteger pra inspirar e alimentar você”

(“That’s my way” – Edi Rock)


ESPAÇO

“Milhares de casas amontoadas. Ruas de terra”.

TEMPO

“O amanhã é ilusório, porque ainda não existe. O hoje é real, é a realidade que você pode
interferir”.

PERSONAGENS

Joana / MÃE

Léosinho

Jandira / MÃE

Dionathã

MÃE

Miguel

ZÉ DO DOCE – A representação do Estado no lugar. Ele não aparece.

Luís

Um caixão.
PRÓLOGO

Uma voz invisível recita o poema/narração contido no final da música “Mãe”, de Emicida, enquanto
Joana assiste, ou tenta assistir, à TV no sofá da sala.

‚O terceiro filho nasceu: é homem!

Não... Ainda é menino.

Miguel bebeu por três dias de alegria

‘Eu disse que ele viria, nasceu!’

E eu nem sabia como seria.

Alguém prevenia: filho é pro mundo.

Não! O meu é meu!

Sentia a necessidade de ter algo na vida,

Buscava o amor das coisas desejadas.

Então pensei que amaria muito mais

Alguém que saiu de dentro de mim e mais nada.

Me sentia como a terra: sagrada!

E que barulho, que lambança...

Saltou do meu ventre, contente, e parecia dizer:

É sábado gente!

A freira que o amparou tentava reter seus dois pezinhos sem conseguir

E ela dizia: mas que menino danado!

Como vai chamar ele, mãe?...‛


I – ELA É BEM FORTE.

“Pare e pense no que já se viu. Pense e sinta o que já se fez.”

(Cidade Negra)

JOANA: Léosinho!

(Pausa)

JOANA: Léosinho!!!

LÉOSINHO: Benção, Mãe.

JOANA: Bom dia, meu filho. Que Deus lhe dê boa sorte. Onde está a sua mãe?

LÉOSINHO: Mainha deve tá no quintal cuidando das plantas. Eu tô indo pegar doce
lá na barraca do Seu Zé.

JOANA: E cadê Miguelzinho?

LÉOSINHO: Já deve tá lá “tamém”. Ele falou que já ia começar os trabalhos antes do


almoço pra comemorar.

JOANA: Hum...

(Pausa)

JOANA: Jandira! Jandira!

JANDIRA: (grita de longe) O que é?


JOANA: Cadê o controle da televisão?

JANDIRA: (grita de longe) Num sei! Pede pro Léosinho ajudar à senhora. Tô ocupada.

JOANA: E tá fazendo o que aí?

JANDIRA: (grita de longe) Arrumando o canteiro que o Dogg destruiu.

JOANA: Léosinho já tá indo pro campo, minha filha. Me ajude você. Ponha aqui no
jogo do Paris que eu quero ver o o o... esse minino... u NEYMAR! jogar.

(entra Jandira)

JANDIRA: Tem que fazer uma cobertura nesse quintal, que a vizinha não para de
olhar cá pra dentro...

Posso saber aonde o senhorzinho pensa que vai?

LÉOSINHO: Pegar doce.

JANDIRA: Você nem lavou a louça do café ainda. A pia está cheia de copos e eu já te
falei que...

(Um barulho forte e confuso ao fundo)

JANDIRA: Que barulho foi esse? É tiro?

LÉOSINHO: Não, mãe. São fogos. Em homenagem ao Santo.

JANDIRA: Mas hoje é dia de Cosme e não de São Jorge. Vai logo e volta pra
almoçar. E fica atento na rua que na mesma hora que as coisas aqui estão boas...
Você sabe. E traz seu pai pra casa.

LÉOSINHO: (zoando) “E a história terminou assim, a banana se casando com o


aipim”.

JANDIRA: Quê?! Ahn?!

Vai logo menino, antes que eu mude de ideia. Eu, hem! Se não quiser aquietar o
facho em casa!
Frente a essa ameaça, Léosinho sai como... Tipo uma flecha! E ele lá é bobo de ficar...

JOANA: Eu quero voltar pra minha casa.

JANDIRA: Essa conversa de novo, mãe?

JOANA: Lá tem meus crisântemos pra olhar.

JANDIRA: Eles estão bem lá. Fica tranquila. Tão melhor que a gente aqui.

JOANA: É. Mas tem que aguar.

JANDIRA: Vamo fazer assim, quando Miguel chegar a gente fala com ele pra ele
levar a senhora lá amanhã. Se aqui durante a semana a condução já é difícil,
imagina domingo.. Já comeu alguma coisa?

JOANA: Tô sem fome, minha filha.

JANDIRA: Tá sem fome, mas tem que comer ué. Que eu não vou parar minha gira
pra levar ninguém pra UPA não.

JOANA: Cê é muito dura com esse minino, minha filha.

JANDIRA: Ué, tem que ser. Infelizmente é assim. Se afrouxar já viu, né. Deus que
me livre... Acho que morro junto.

JOANA: Mas tem que deixar os minino viver livre, aproveitar a mocidade. Vocês
mais mudernos não conseguem entender isso... Cada segundo que passa é um
milagre que jamais se repete, minha fia.

JANDIRA: Meu medo num é dele ir. Meu medo é de ele não voltar.

JOANA: Nós estamos aqui de passagem e devemos aproveitar cada milésimo.

JANDIRA: A senhora aproveita como? Vendo TV o dia inteiro?

JOANA: (desviando) Essa sua solidão... Num sei não... Parece que você já se
acostumou com a companhia dela.

JANDIRA: Pelo contrário! Eu sou forte! Impassível, se for necessário! Como toda
mulher negra um dia anulada. Aprendi com a senhora, inclusive. Nada vale mais do
que a minha autoestima.
JOANA: Tanto não aprendeu que aconteceu a mesma coisa contigo.

JANDIRA: EU NÃO ESCOLHI!

JOANA: E EU ESCOLHI, minha filha!!?

JANDIRA: Eu não escolhi que minha vida fosse assim. Não escolhi nascer na família
que eu nasci, que eu tivesse ou não tivesse as coisas que eu tenho. Mas
independente, sim, toda noite eu agradeço a Deus de como que eu sou abençoada.
Nunca me imagine no papel de vítima!

JOANA: Como é que vive assim?

JANDIRA: Dourado é uma cor que não existe.

JOANA: Você gosta muito dos “quem sabe”. Se você não está satisfeita, rebele-se de
uma vez!

(Ouvem-se palmas no portão)

JANDIRA: É Dionathã. Ele agora tá de ajudante de Seu Zé.

JOANA: Como você sabe?

JANDIRA: Deve estar trazendo os salgadinhos que eu pedi.

TÁ ABERTO. PODE ENTRAR!

JOANA: Cadê Léosinho que não volta? Esqueceu que hoje é a festa de Miguelzinho?

JANDIRA: Tá cedo ainda, mãe.

DIONATHÃ: (entrando) Ô de casa...

Dionathã tropeça nos chinelos espalhados e quase derrama tudo! Já pensou que prejuízo que seria?
JOANA: Desculpe meu filho. Isso só pode ter sido coisa de Miguel. Ele vai deixando
tudo jogado por aí e a gente que se vire pra catar. Jandira guarde esses chinelos.

JANDIRA: Eu não vou guardar é nada! Ele tem mão não tem? que ele não é aleijado.
Quando ele chegar, ele que guarde. Vai ficar aí até ele voltar, que eu não sou
escrava de ninguém.

DIONATHÃ: Ih, tranquilo. Daqui a pouco ele aparece. Ele deve tá no campo
jogando bola. Desde que a gente era moleque que ele já era assim. Miguel adora dar
uns perdido mermo. A senhora acha que agora que ele ia mudar?

JANDIRA: O pior é que agora o Léosinho tá indo pelo mesmo caminho. Na bagunça,
nos defeitos... É impressionante, pra não falar outra coisa pior.

JOANA: Hum...

(Pausa)

JOANA: E como foi a distribuição de doces?

DIONATHÃ: Muito cansativa. Parece que cada ano que passa tem mais crianças.
Mas seu Zé gosta né... Deu um saquinho até pras mães esse ano.

JOANA: (irônica) E pros pais, não?

DIONATHÃ: Não, Dona Joana. Que pai o quê.. pai é palhaço, pai de verdade é artigo
de luxo. Tão merecendo não. Os cara de hoje em dia como... qualquer rabo de saia
novo aí, mandam logo um “largo mulher e filhos pra te seguir”.

JOANA: Meu filho, você sabe quem/qual é a mulher mais linda do mundo?

DIONATHÃ: Saber saber eu num sei não Dona Joana... Mas eu chutaria a Débora
Nascimento.. ou a Raissa Santana, Carolina Maíra, Juliana Pereira... uma dessas
rainhas aí. Maryanne Hipólito...

JANDIRA: Aff... Não, amado. Passou longe. Errou feio. Moleque novo ainda você.
JOANA: A MULHER MAIS BONITA DO MUNDOO é a sua, meu filho. Num é ela que..
que constrói os sonhos junto com você? Que tem a inteligência para entender suas
ideias sem pé nem cabeça?

JANDIRA: E que tem inteligência suficiente pra tomar decisões certas. Que tem a
coragem de enfrentar as situações difíceis do dia a dia. Então..

JOANA: Por essas e por outras, meu filho.. valorize. Não seja mais um minino pra
sempre.

(Pausa)

DIONATHÃ: (sem saber bem o que dizer depois de tomar uma dessas) Dona Joana, eu já vou
indo viu. E Dona Jandira, obrigado pela água.

“Há muito tempo esse conselho eu venho buscando...”.

JANDIRA: “Vai na fé, nêgo!”

JOANA: “Deus é poderoso e nós todos protege!”

(Dionathã sai)

- Eu vou aproveitar que ele já foi para fazer minha unha logo.
II – A MÍ TAMBIÉN ME DUELE!

Fazer “pé e mão” em salão hoje em dia anda muito caro, melhor fazer a unha em casa mesmo. É mais
barato e ainda fica mais do jeitinho que a gente quer. E sem ninguém pra tirar bife!

Com os pés na água, e tirando coisas da sua caixinha de sapato/unha, Mãe vai conversando com a
plateia, compartilhando pensamentos sobre vida, amor, morte, solidão, esperança e assim por diante.
Às vezes ela faz uma pausa enquanto uma mão ou pé seca. Vai à cozinha, vai ao quarto do filho...
Hiperativa, ela não consegue ficar esperando o tempo passar.

Ao fundo, desde o início até o fim da cena, há um solista, o qual quase não se nota a presença, tocando
ao violino uma música bem conhecida (?) em um tom alegre. Mas da forma que ele a executa, não é
possível se ter a certeza sobre qual canção ele toca. Só no final da cena mesmo, quando ele engrena e
assume o protagonismo, que todos nós (?) reconhecemos que melodia que era essa.

MÃE

Eu imagino que a maioria de vocês aí tenham calos. Sim, VOCÊS. Isso. A maioria de
vocês aí que estão me assistindo a cuidar dos meus. Provavelmente vocês também
têm calos, só que muito possivelmente nenhum deles é nas mãos. Acertei?! Bom, se
eu tiver errada, por favor, podem falar, vai que eu tô fazendo uma leitura errada de
vocês? (pausa) Que interessante... Ninguém me desmentiu/vocês me desmentiram.
Mas não tem problema não. De qualquer forma, aqueles que não têm calos nas
mãos, ao menos na ponta dos dedos ou nos pés tem que ter. E se não tem nem nos
pés, ao menos no coração, aí sim é mais certo ainda de ter. Enfim... Quem tem calo
sabe que no início tudo dói. Primeiro machuca, abre a bolha, carne viva, tudo dói.
Água dói, encostar dói, tudo dói. Ao longo do tempo aquilo vai ficando mais duro e
mais resistente. Mas de vez em quando o calo abre, mesmo os calos mais
resistentes, né? Vocês não sabem quem é ou quem foi Miguel. O que é
absolutamente normal. Vocês também têm as dores de vocês, todo mundo tem, e
dor é algo que não se compara, só se mede. Ao longo do tempo vai diminuindo,
parece que você vai ficando calejado, cascudo. Como um calo mesmo, né? Ao longo
do tempo aquilo vai ficando mais duro. E essa resistência se dá, ao menos pela
minha experiência, muito pelo tempo, muito pela consciência do que aconteceu, a
consciência real, porque durante muito tempo eu não tinha consciência do que
tinha acontecido. Quando eu passei a falar mais sobre isso, isso foi um processo
terapêutico, digamos. É por isso que me abro assim com vocês, na doce amarga
ilusão de que ao falar se aliviará um pouquinho mais o fardo. Me ajudou muito
encarar como uma história, quando você conta isso, você exterioriza, externaliza e
acaba saindo daquela narrativa. Quando você conta pros outros, é como se você
estivesse dividindo, tirando uma parte muito guardada sua e abre, sabe? Sai um
pouquinho da pressão, do sofrimento, do sentimento. E todas as crises de choro,
depois é melhor. É uma sensação de um pouco mais de leveza. É que parece que o
sentimento não conhece tempo e espaço, quando você entra em sintonia com esse
sentimento é muito natural que você entre num buraco, você realmente se
transporta praquele espaço e tempo de forma emocional. Não gosto da palavra
aceitação, mas é aceitação na medida em que você vai ter que lidar com isso o resto
da vida. Isso nunca vai ser superado. A dor de perder alguém, o trauma, nunca é
superado. Foi uma fatalidade que aconteceu e você vai ter que aprender a melhor
maneira de lidar com aquilo. É uma cicatriz que vai levar para o resto da vida. No
meu caso, viraram tatuagens. É o que faz você ser o que você é inclusive. Faz você
ser especial e único como você é, são as fatalidades que você viveu. Não só as
alegrias, mas as fatalidades também. E querendo ou não é a fatalidade que marca a
gente mais, tristeza que marca a gente mais. Quando o tempo passa a gente vai
superando, vai sobrevivendo, seguindo em frente. Mas às vezes também parece que
você esqueceu, o que te dá um enorme sentimento de culpa. Você sai, se diverte, beija
outras crianças, distribui amor. Por um momento parece que nada aconteceu. Mas
quando uma coisa nos remete àquilo, seja de propósito ou sem querer, um natal, um dia
das mães... Uma criança que se pareça com ele, ou o nome dele, um filme, uma música
que ele gostava... Parece que isso nem sempre acontece, mas quando acontece parece
que abre uma válvula pra te levar praquele lugar de novo. Um lugar que você sofria
frequentemente, mais intensamente. Me perguntaram esse ano o que eu estava pensando
em fazer para comemorar o meu aniversário, que iria ter show do Sorriso Maroto junto
com o ImaginaSamba, grupos que eu gosto muito, aliás. Respondi que estava sem
grana, e que isso e que aquilo, pererê pão duro, que se fosse Leci Brandão ou Molejo eu
iria... mas na verdade eu estava mesmo é desanimada. Essas datas assim a saudade
aperta, né? Parece que já não faz tanto sentido comemorar. Vocês acreditam que eu
nunca mais comemorei o natal? Eu apenas durmo, e torço pro dia seguinte chegar logo.
Aí eu até vou visitar os parentes, filar uma rabanada aqui, um bolinho de bacalhau ali...
Acho que é por isso que desde então me apeguei tanto ao Réveillon, pois vem aquela
sensação de que foi mais um ano que eu superei. Sobrevivi. No primeiro Ano Novo sem
Miguel, eu me exilei em Cabo Frio. Ao olhar os fogos espocando pelo céu da Praia do
Forte, eu só pensava: “acabou, Miguel, acabou”. Eu conversei com ele e de alguma
forma ele também me respondeu. As pessoas comemoravam: “muita paz, muita saúde,
muitas felicidades, muito dinheiro no bolso...”. Cada sorriso de retribuição era uma dor
camuflada transformada em um desespero silenciado. Muita saúde? Muita felicidade?

Paz? Aonde?!! Foram os abraços mais sinceros que recebi e os mais falsos que eu
retribuí. Não por mal, mas por morte. “O que é, o que é? Clara e salgada. Cabe em um
olho e pesa uma tonelada”. A gente sempre ouve né, quando a gente perde alguém,
ou quando a gente passa por alguma coisa difícil: “Ah, vai passar. Ah, ele tá num
lugar melhor agora. É a lei da vida, todo mundo morre, chegou a hora dele”. Pode
até ser, mas a meu ver esse discurso não se aplica muito bem a uma criança.
(Entrando no quarto do filho e aproveitando para arrumar o que já estava arrumado) Eu sempre
evito entrar aqui porque tem fotos, né. Tem as fotos dele na creche, tem as fotos
dele. Inclusive eu não estou vendo as fotos dele nesse momento. A tá, agora eu tô
vendo. Tem as fotos dele na creche, tem as fotos dele no batizado. Hun, o batizado...
É difícil falar... Tanta coisa que podia ser... E não foi... E não foi.

Eu sei que posso parecer ter nervos de aço, porque pra vocês.. vocês sempre me
veem assim, rindo ou brincando, não deixando a peteca cair. Sendo positiva,
buscando sempre a “fórmula mágica da paz”. Mas aqui dentro, aqui onde só eu
consigo ver, onde só eu enxergo, tudo o que eu mais desejaria se aparecesse um
gênio da lâmpada na minha frente, um pedido só, era só nunca, e nada mais que
isso, nunca ter entendido na própria carne que “saudade é arrumar o quarto do
filho que já morreu”.

Mãe saiu e o violinista assumiu o centro do palco. Ele toca de forma solene, e agora concatenada, e
percebemos (?) que há esse tempo todo estava ao fundo a canção “Pedaço de mim”, de Chico Buarque.
III – O QUE É SEU EM TERRA DE NINGUÉM?

“No balcão do botequim a prosa tá parada. Não se fala da vida, não acontece nada”.

(O Rappa)

Seu Luís está no balcão bebendo uma cerveja já pela metade, enquanto troca uma ideia suave com Seu
Zé. Numa mesa branca levemente enferrujada, colada ao trailer, Dionathã está batendo um pratão
daqueles! A aparência da refeição é divina, daquelas que dão água na boca só de olhar!

MIGUEL: Pra comer é um leão, pra trabalhar só no empurrão!

DIONATHÃ: Ô garoto, mania feia essa de ficar investigando o prato dos outro. Tira
o olho que eu já trabalhei muito hoje. Quem tá de maré hoje aqui é você.

MIGUEL: Deixa a pipa avoar... Come tranquilo, que a carne aqui em Seu Zé é
limpinha, tem papelão misturado não. E folga, não. Tá é mais pra semiaberto
mesmo. E só porque hoje é o dia que...

LUÍS: Parabéns Miguel! Feliz aniversário! Tá fazendo quantos anos?

MIGUEL: Seu Luís, menos do que você pensa, só que mais do que eu aparento.

LUÍS: Você já está bom, né?

MIGUEL: Bom eu tô ficando!

Seu Zé, desce uma mineira com mel que hoje eu quero ver as nuvens lá de cima e
sem 14-bis.

LUÍS: Aterrissa garoto. Vai devagar... Vai com calma... Tu vai é acordar com olhos
de Capitu, isso sim.

MIGUEL: Seu Luís, eu tô há muito tempo andando na linha. Só trabalho, só


trabalho.. Hoje pode! (colocando a mão de Luís em seu peito direito) Aqui ó, tô calmo. Meu
coração tá meia-oito por minuto. Tem que aproveitar o hoje, que amanhã é dia de
preto.
ZÉ DO DOCE: Tô ruim de moeda hoje. Posso ficar te devendo dez centavos?

MIGUEL: Tudo bem. Deixa aí rendendo juros.

E um brinde aqui rapaziada. Um brinde à felicidade dos outros, que a nossa já está
garantida!

DIONATHÃ: (devolvendo o prato no balcão) Parabéns, Miguel! Tu joga sete por de baixo
de às, mas tu é um cara maneiro.

MIGUEL: E seu Zé, como foi a distribuição de doces pra molecada?

ZÉ DO DOCE: Esse ano foi muito bom! Mas muito cansativo também. Era criança
que não acabava. A cada ano que passa parece que elas se multiplicam mais.

MIGUEL: Fazer filho é mole, agora eu quero ver é criar, dar educação.. Meu
sobrinho mesmo, ele me chama de pai até hoje.

LUÍS: Impressionante, mas pra tudo você tem uma reclamação. Como se isso fosse
te ajudar em alguma coisa. Só foca no negativo. Você tinha é que estar agradecendo
que está empregado, que tá todo mundo bem de saúde. Pior seria se estivesse
parado ou em cima de uma cama. Quem não sabe rezar, xinga Deus que é mais fácil.
Destacar só um lado é ofuscar todo o resto.

MIGUEL: Ih Seu Luís, eu falo mermo. Atura ou surta! Ninguém busca sempre
enxergar as coisas boas mais do que eu aqui, mas agora também tem coisas que
não tem como ficar quieto não.

DIONATHÃ: É, Seu Luís. A gente brinca, se diverte, mas ninguém aqui tem sangue
de barata não. Essa vala aqui mesmo.. quantas vezes o senhor num já falou com o
vereador, Seu Zé?

ZÉ DO DOCE: Eu mandei um zap pra ele ontem mesmo. Ele disse que tá difícil de
conseguir liberar a verba, mas que não se esqueceu da gente, que assim que der...

MIGUEL: Tá difícil, tá difícil... Essas porras que me deixam puto. Eles não tão nem
aí pra gente não, Seu Zé.
DIONATHÃ: Se passasse aqui amanhã um helicóptero cinza atirando e
exterminasse a gente tudo, eles iam é levantar as mão pro céu e dar graças a Deus.

LUÍS: Mas eles iriam sentir a falta dos nossos votos. E dos trabalhos que a gente faz
pra eles. Viu que SEMPRE tem um lado positivo na história?

MIGUEL: (em tom grave ou sério) Seu Luís: eu preciso te falar! (cantando) Te encontrar
de qualquer jeito... CANTA CAXIAS! (esganiçando a voz em um microfone imaginário) Faz de
conta que ainda é cedo...

LUÍS: Eu estou falando sério, Miguel. Vocês estão aí reclamando da vala que a
Prefeitura não arrumou. Eu não tiro a razão de vocês. Agora me diga, por que até
hoje ninguém aqui propôs um mutirão? Por que não nos organizamos por nós
mesmos? Um cano de 100 já resolveria o problema. Eu passo o dia inteiro dirigindo
e cobrando e você não me vê por aí reclamando que eu exerço dupla função. Já
passou da hora da gente assumir a nossa própria responsabilidade, entender que o
ser humano é livre pra escolher como vai encarar cada situação da vida. Se vai agir
pra mudar ou se vai ficar culpando os outros por suas decisões.

MIGUEL: Vocês se lembram de Wilsinho?

DIONATHÃ: Quem? Caneco?!

LUÍS: É. Ele perturbava, mas eu gostava dele. Ele era chato, mas eu gostava da
chatice dele.

MIGUEL: Então... Ele estava pondo sangue pela boca. Parece que ele se sentiu mal,
coisa assim... Foi ao UPA à noite, deram uma injeção nele e mandaram ele de volta
pra casa. E o quê que aconteceu? Amanheceu morto. E se segue o baile. Então, Seu
Luís, francamente. Não adianta ficar aqui falando bala Juquinha. Não adianta o
senhor vir aqui com frasezinha feita decorada de livro, falar que por causa de que
isso e de que aquilo e pererê pão duro, por que no final das contas a vida de todo
mundo aqui continuou, só a família dele chorou e a gente aqui que sente falta dele
brincando com nós. E aquela nossa vereadora, a Marielle? Pra esses aí que você
defende tanto, aqueles que cresceram montados nas nossas costas, ele e ela são só
mais uma pessoa a menos.
LUÍS: (botando panos quentes pro debate não se transformar numa discussão e inflamar de vez) Pô,
quanto mais eu te defendo, você vem e me ataca. Pega uma cerveja aí pra gente
esfriar a cabeça.

MIGUEL: Seu Luís, “hoje ninguém vai estragar meu dia”. Pego sim, mas garçom
preto é mais caro.

Miguel está de fato feliz, com aquela sensação de “ainda vem muita coisa boa por aí”. Voltando da ida
ao banheiro com um litrão estupidamente gelado, que ele exigiu que Seu Zé pegasse lá do fundo da
freezer, cumprimenta gritando em direção à plateia uns amigos que estão passando na rua voltando
do campo.

MIGUEL: Alô, Vanderlan! (faz gesto de altura com as mãos) O maior goleiro da história
do Muvuca! Dá o papo aí qual vai ser.

Aê, Fabinho, tamo aê majestade!

E pasmem senhores, uma voz vinda da plateia responde Miguel de volta.

- Só de maré, hem! Cadê você no futebolzinho?

MIGUEL: Joelho, Rei, joelho.. Dói tudo! Mas fim de ano eu tô lá.

- Num joga nada e quer massagem, hem. Tá que nem Folha! Deixa eu ir lá. Manda
lembranças pro povo.

MIGUEL: Já é, Rei. Vai na fé irmão. Tô calibrando umas aqui pra aguentar subir
essa ladeira, que com esse sol tá osso. Senão dá ruim.

ZÉ DO DOCE: Mas deu na TV que vai chover.


MIGUEL: Porra, com esse sol? Só se for chuva de mec. Hoje tá um calor de acabar o
milho e não acabar a pipoca.

Ih, mas pera... Foi a Maju quem falou? Porque se foi ela AÍ então eu acredito. Ela
não erra uma.

DIONATHÃ: Maju agora é apresentadora, filho.

E realmente o tempo voa quando a gente está se divertindo. A noite foi caindo imperceptivelmente, só
sendo notada por conta de uma ventania, sabe aqueles ventos que meio que do nada mudam o tempo
por completo?, que trouxe junto com ela. Maju acertou mais uma!

Seu Zé então começou a acelerar a galera, que ele queria fechar antes da chuva cair. Mas não teve
jeito, entre uma das “última” saideira e outra, os pingos grossos começaram a cair. Na verdade o que
fez com que cada um tomasse seu rumo foi o frio que começou a apertar. O frio e a alegria da vida
cotidiana não se bicam. Assim sendo, se despediram cordialmente de Seu Zé que fechava
cuidadosamente a barraca, pondo pra dentro as mesas e cadeiras, varrendo as bingas de cigarro que
eles teimaram em jogar no chão ao longo da tarde. Pelo visto avisar não adiantava mesmo, e Seu Zé
decidiu que não iria mais esquentar a cabeça, pelo bem da sua saúde psicofísica. Eles não iriam mudar
nunca mesmo. Seguia então tudo normal. Seguia...

Até que Seu Zé é surpreendido por Dionathã que desce a ladeira correndo e gritando, ou gritando e
correndo, num desespero só:

DIONATHÃ: (ouve-se desde longe e se aproximando, até chegar em frente ao trailer) Seu Zé, Seu
Zé. Acode. Seu Zé, Seu.. Acode, acode.

ZÉ DO DOCE: Respira primeiro. Onde foi isso?

DIONATHÃ: Ali na subida da Lagoinha.


IV – SAUDADE É SENTIR FOME COM A ALMA.

“Nosso mundo ainda gira, mas faltando uma peça.”

(Kamau)

Jandira está visivelmente preocupada, como alguém que, mesmo sem sair do lugar, aparenta estar
constantemente andando em círculos. Inventa coisas pra fazer pro tempo passar mais rápido,
enquanto canta repetidamente o mesmo trecho da mesma canção, de modo que ao longo das
repetições as palavras vão perdendo o seu sentido original e se rearranjando incongruentemente com
outras partes da música. Tipo assim:

Dona Ivone Lara, uma joia rara. Jovelina Pérola... Dona


Ivone Lara, uma Joia rara. Jovelina Pérola. Dona Ivone
Lara, uma joia rara, Jovelina Pérola.. Dona Ivone Lara minha
joia rara, Jovelina Pérola. Dona Ivone Lara, Pérola...
Genial Mestre Cârtola e Almir compositor Dona Ivone
Lara, minha joia rara, Jovelina Jovelina. Jovelina Pérola...
Dona Ivon.. Toda bla é de Pelé, Cavaco Paulinho da Viola,
nossa escola... Jovelina Pérola. Jovelina.. Vai vadiar junto
com a Clementina. Candeia... Dona IvOOOne, uma joia rara.
Violão Baden pegou. Pérola... (batendo palmas) Dona Ivone, Dona
Ivone, Dona Ivone... Martinho, essa é a nossa escola. Jovelina
Pérola... Dona Ivone Lala, Larararara... uma joia rara,
Jovelina Pélola. Dona Ivone, uma joia Rara, Lovelina
Pérola. E a fineza quem ensina é...

(Léosinho entra com uma bola suja de barro/lama debaixo dos braços)

JANDIRA: Onde é que você estava até agora, seu filho da puta?
LÉOSINHO: No campo jogando bola.

JANDIRA: Jogando bola na chuva? Você vai agora direto pro banho que você está
imundo. Depois você vai desaparecer da minha frente. Anda, vai! Que eu já mandei
sumir, porra. Que eu não mandei você vir aqui sujar nada.

(Léosinho sai ao passo que Joana entra)

JOANA: Que que está acontecendo aqui? Que gritaria é essa?

JANDIRA: É isso aí que você está vendo. Nada. Não tá acontecendo nada.

JOANA: Como assim nada, se os seus gritos me acordaram?

JANDIRA: Se for só isso, então pode ir lá voltar a dormir. Aqui nunca acontece
nada. Só o comum mesmo.

(Joana sai sonolenta e desorientada)

Jandira está sozinha, puta da vida, contorcendo cada vez mais forte o pano de prato que lavava. Em
sua visão não está limpo o suficiente, então torna a lavá-lo e a torcê-lo. Até que... Até que escuta uma
voz vinda do lado de fora do portão.

LUÍS: Jandira!

Naquele instante, a terra esvaiu sob seus pés. Rememorou todos os passos que havia dado naquele dia
em uma fração de segundos, mais rápida que um piscar de olhar. E então, chorou...

Copiosamente.
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LUÍS: Jandira, sou eu, Luís.

Que curioso, ela meio que já esperava... Não sabia que sabia, mas sabia. Já estava dentro dela. O
coração já estava apertado. À mente vieram as palavras de Seu Sultão da Mata: “Prepare o coração e
seja forte, VÁ”. Secou calmamente as lágrimas, uma por uma, levantou, abriu a porta e a desgraça se
confirmou.

Dizem que, depois daquele momento, Jandira nunca mais chorou. Nenhuma lágrima sequer. Nunca.
Ela é bem forte. “Impassível, se for necessário!”. O que ninguém até hoje sabe ao certo é se ela de fato
ficou mais forte, ou se morreu também.

LUÍS: Jandira, boa noite. Tudo bem? Eu sei que tá tarde pra bater, mas acontece
que

JANDIRA: Miguel morreu.

LUÍS: Já haviam vindo aqui te contar?


JANDIRA: O meu santo é forte. Nada me passa despercebido.

LUÍS: Ele também te contou como é que foi?

JANDIRA: E que diferença que isso faz isso agora? Morreu?! Enterra. Acabou.

LUÍS: Seu Zé do Doce tentou socorrer, arranjou um carro e tudo pra levar ele lá,
mas... não teve jeito. Já chegou morto no hospital.

JANDIRA: O que não tem remédio, remediado está. Diga a Seu Zé que depois eu lhe
agradecerei pessoalmente. Quais são as burocracias para agilizarmos o enterro? E
quer um salgadinho Seu Luís?

LUÍS: Tô sem estômago pra isso. Ainda estou muito abalado. Ainda mais da forma
que tudo ocorreu...

JANDIRA: Pra morrer basta tá vivo, Seu Luís. Se ele foi é porque chegou a hora dele
ir.

LUÍS: Dona Jandira, eu não sei da onde a senhora tira tanta força numa hora
dessas. A senhora parece ter nervos de aço. Eu penso mais é nos meninos, tão
apegados a ele.

JANDIRA: Eu me criei sem pai e estou viva até hoje. Uma hora acostuma.

Eu tô mais preocupada é de onde que eu vou tirar dinheiro pro enterro agora.

LUÍS: Quanto a isso a senhora não se preocupe. Seu Zé do Doce já falou que
amanhã bem cedo vai passar uma lista lá no bar. Miguel era muito querido por
todos, todo mundo que puder vai de ajudar. Tá todo mundo muito abalado. Até
mais que a senhora.. Todo mundo conhecia ele aqui.

JANDIRA: Era muito querido porque vocês não conviviam com ele no dia a dia. Se
ele tivesse vindo pra casa almoçar nada disso teria acontecido. Mas a teimosia dele
sempre foi maior que tudo.

LUÍS: Mas era o aniversário dele. Ele tava certo de comemorar. E ali só tinha amigo,
ninguém podia imaginar ou esperar que isso viesse a acontecer.
JANDIRA: Comemorasse em casa, com a família. A gente comprou salgadinho,
encheu bola, minha mãe fez um bolo, compramos velas com a idade dele. E pra
quê? Pra ele ficar enchendo a cara a tarde toda e arrumar confusão.

LUÍS: Mas o quê que a senhora queria, o cara era homem, iria aceitar apanhar
calado?

JANDIRA: Grandes merdas ser homem. Quero ver ser homem assim agora debaixo
da terra.

Só agora Jandira se dá conta que Luís havia irrompido em uma crise de choro.

JANDIRA: Ah, Seu Luís, francamente. O senhor tá molhando todo o meu sofá. Onde
já se viu um homem chorar desse jeito? Vai acabar acordando as crianças.

LUÍS: Se até “Jesus Chorou”, e eu não posso chorar em paz? Tá doendo muito. A rua
tá toda apagada, em estado de choque, ninguém sem conseguir dormir.

JANDIRA: Bobo eles, esquecem que amanhã trabalham. Pelo menos eu não vou ter
que perder tempo dando a notícia.

LUÍS: O Léosinho... Ele vai...

JANDIRA: Seu Luís, tem mais alguma coisa que eu possa ajudar o senhor?

LUÍS: Não, Dona Jandira. Eu já vou indo. Se precisar de alguma coisa.. Qualquer
coisa que a senhora precisar, é só falar. Pode contar comigo.

JANDIRA: Obrigada. Mas de quê que adianta? Deixa o arroz queimar! Num é assim
que ele falava? Tudo que eu preciso agora é de uma boa noite de sono. Nos vemos
amanhã no enterro.
IV. I – Chora agora, ri depois.

Dionathã está vestido com a camisa da ala dos compositores da Escola da rua. Foi a forma que ele
encontrou para homenagear Miguel. Quantas vezes eles não haviam se divertido juntos nos Bailes
Black na quadra do Cacique? Miguel fora, e ainda continua sendo, o seu melhor amigo. Durante um
tempo ele era uma mistura de pai com irmão mais velho. Foi com ele que Dionathã foi pela primeira
vez ao Maracanã, e olha que Miguel torcia por outro time e apenas o acompanhou para leva-lo
mesmo. Frequentaram por diversas vezes pagodes noturnos em São Gonçalo. Por uma década, o
Espaço São Jorge era uma espécie de quintal para os dois. Agora, bom.. Agora só restariam as
memórias, né?

Em um silêncio respeitoso, Léosinho olha ao longe como se vislumbrasse um horizonte o qual somente
ele enxergava, como se não entendesse nada do que estava se passando. De trás do caixão, ele mantém
suas duas mãos entrelaçadas em suas costas. Não conseguiria ser mais expressivo, mesmo se abusasse
das palavras. Mesmo em volta com todos ali presentes, ele estava só como nunca antes e como sempre
o veríamos dali em diante. Sua alma estava marcada. Irremediavelmente.

Luís corre de um lado pro outro verificando o cronograma das solenidades. Era a sua forma de não
pensar, ao menos ainda, em tudo o que tinha ocorrido desde a noite anterior. Dizia mentalmente que o
que faz um jogador sentir a dor de um carrinho violento é deixar o sangue esfriar no pós-jogo. Ele
estava em campo e seguiria titular, não queria gelo. Podem abaixar a plaquinha da SUDERJ, pois
certos jogadores são insubstituíveis! Sabia que se deitasse na maca correria o risco de não ter nunca
forças para se levantar. Jamais.

Jandira fazia questão de aparentar que ali estava a contragosto. De trinta em trinta segundos olhava
o relógio como quem dissesse: vamos acabar logo com isso?

LUÍS: Dona Jandira, nós estamos com um problema muito sério.

JANDIRA: E é por isso que está demorando tanto?

LUÍS: Sim. O caixão insiste que não quer ser enterrado.

JANDIRA: E ele lá tem querer agora?

LUÍS: Disse que ninguém toca nele enquanto ele não conversar com a senhora.

JANDIRA: Comigo? Pelo amor, né.. Era só o que me faltava. Até morto Miguel me dá
trabalho.
LUÍS: Desculpa Dona Jandira, não é Miguel não, é o caixão que quer falar com a
senhora.

Afinal, a senhora vai lá falar com ele ou não?

JANDIRA: Fazer o que né. Se é isso que é preciso pra gente acabar logo com essa
palhaçada. Que seja feita a vossa vontade.

Luís chama Dionathã de canto e o retira de perto do caixão. Quando volta para também tentar retirar
Léosinho de perto dali, é interpelado por Jandira.

JANDIRA: Deixe’le aí. Vai fazer bem pra ele ouvir essa conversa.

LUÍS: (saindo) A senhora é quem sabe..

JANDIRA: Agora fala traste, o que é que você quer comigo.

UM CAIXÃO: É simples. Hoje não vai ter enterro.

JANDIRA: E eu posso lá saber o porquê?

UM CAIXÃO: É que eu, quando eu fui talhado, eu fui talhado com muito zelo. Eu vi a
árvore que morreu para dar corpo ao meu corpo. Eu vi as feridas nas mãos daquele
que me lixou. E eu sempre me perguntei pra que, pra que tudo isso. Será que eu
também sou uma vida inútil? Sim, por que qual a minha função? Levar comigo para
o centro da terra pedaços crescente das saudades daqueles que ficam, mas que se
pudessem na verdade iriam juntos ou ao menos no lugar? Ser um porto de
prantos?

JANDIRA: Primeiro de tudo, Miguel vai ser enterrado na parede. O metro quadrado
de terra em cemitério é muito caro. E nascer, viver e morrer a gente paga, e muito
caro por sinal. Pobre não tem direito a jazido. O seu papel é apenas acomodar um
corpo que virará um número. Deixa eu te falar o que vai acontecer, pra ver se você
se tranquiliza. No momento em que te fecharem, que te puserem um tampão de
cimento em cima de você, rapidamente dois ou três homens pegarão as suas
colheres de pedreiro e jogarão massa de concreto em cima. Nem aí para todas essa
solenidades, essas comoções, tão sentimentais quanto garis que desistiram de dar
bom dia. Ou carteiros, ou garçons.. A sua é apenas mais uma profissão mal
remunerada qualquer.

UM CAIXÃO: E a senhora acha certo uma vida valer só isso?

Vou recitar um poema pra senhora. Posso?

JANDIRA: Não querido, pelo amor de Deus, num precisa...

UM CAIXÃO: Bom, eu vou recitar de qualquer forma.

JANDIRA: Eu não tô podendo me emocionar não, que eu já tô chegando a uma


certa idade, sou cardíaca, mas vai lá traste..

UM CAIXÃO:

“A vida é

Tanta coisa

Tantos sentimentos

É tanta dor

Um tanto de tudo

São perdas, encontros,

renascimentos

E a gente vai morrendo um pouco e

nascendo um pouco a cada dia

Porque é de transformação que se

vive

Ação

Transação, baldeação, fritação


Detalhes”

JANDIRA: E qual o resultado disso, qual o legado disso depois da morte?

UM CAIXÃO: Eu não levo só um corpo comigo, eu levo junto sonhos. Eu levo junto
planos, eu levo junto perdões não resolvidos. Tudo tardio demais. E o que é que eu
deixo no lugar? Eu deixo traumas, eu deixo vazios e depressões. Eu deixo, eu deixo..
Eu deixo a eterna desesperança de que tudo vá acontecer outra vez.

JANDIRA: Nós já nascemos com dores já programadas só nos esperando. Nossos


pais, nossos avós, e assim por diante, todos eles morrerão antes de nós. É a lei
natural da vida.

UM CAIXÃO: Seguindo então o seu raciocínio, eu estou certo quando digo que não
é natural uma mãe enterrar um filho. Deveria ser no mínimo ao contrário para ser
no mínimo aceitável.

JANDIRA: Dá pra vender muita capa do Meia Hora com isso...

Aonde você quer chegar?

UM CAIXÃO: Que hoje não vai ter enterro. Eu quero por um fim a esse ciclo. Não
acho certo, não acho justo, não acho cristão... Miguel não merecia morrer. Não
antes, não como foi, não com tanta coisa pra fazer. Não com um coração tão puro
quanto aquele. Para mim ele está apenas dormindo.

A conversa é interrompida “do nada” por Léosinho que se joga aos prantos sobre o caixão.

LÉOSINHO: Levanta pai... levanta!

JANDIRA: Fica quieto garoto!


(para Um Caixão) O que você quer, que eu me desmanche aqui a cada abraço que eu
receba? Eu tenho que me proteger também, porque também não é fácil não. Senão
eu caio. E se eu cair.. vai todo mundo junto. Desmorona tudo na mesma hora.

UM CAIXÃO: Inevitavelmente uma hora ou outra isso vai acontecer. Tudo se


quebra. Um diamante pode ser tão duro a ponto de riscar qualquer outro material,
mas uma simples martelada pode quebra-lo em diversos pedaços. É justamente
por ser tão duro que o diamante é tão frágil, pois o falta elasticidade, resiliência
para absorver os choques sem se romper. O que por outro lado não diminui o seu
valor também.

JANDIRA: Se eu já aceitei, por que vocês também não conseguem aceitar?!

UM CAIXÃO: Está dito. Hoje não vai ter enterro. E amanhã tudo terá sido apenas
um mal entendido.

JANDIRA: Façam o que achar mais certo depois disso tudo. Eu volto pra casa. Eu
sempre volto. Mesmo que esse tudo tenha sido tão pouco. Volto com a cabeça de
que fiz o melhor que pude por ele. Me desculpem se falhei. Eu tentei dar o meu
melhor aqui.

Jandira sai sem olhar pra trás.

Dionathã abraça Léosinho paternalmente.

DIONATHÃ: Maninho, vamo voltar pra casa. Pelo visto esse enterro não vai sair
hoje não. O caixão já falou que como.. Vamo deixar tudo isso pra lá, agora somos só
nós mesmo. O que cê me diz? E já tá todo mundo voltando pra casa também..

LÉOSINHO: (se desvencilhando de Dionathã e indo em direção àquele horizonte que somente ele
enxerga) Ele não vai voltar.
Ele

não

vai
voltar...
V – EU ACHO DIFÍCIL DE ACREDITAR, PORQUE EU NUNCA VI.

“Não há lugar no mundo melhor que o nosso lugar.”

(Projota)

Léosinho já está há algum tempo meio que deitado, meio que sentado em um pufe. Ele segura com
ambas as mãos um celular em posição horizontal. Talvez ele esteja jogando um jogo, ou então talvez o
jogo esteja jogando ele ali. Até hoje eu não sei bem. O fato é que ele parece meio pra baixo, sei lá...

Aí Miguel entra comendo algo, mas se detém ao ver o menino naquela posição. Tomando todo o
cuidado para não ser visto, fica ali observando como quem também não quer nada...

MIGUEL: Quer Cavalinha? Tá fritinha.

LÉOSINHO: Não tô com fome.

MIGUEL: E tá todo borocoxô aí assim por quê? Cara feia pra mim é .

LÉOSINHO: Não enche.

MIGUEL: Ô garoto, trata de mudar logo essa cara.. Vai lá, pega seu disco pra cê me
mostrar os passinho que cê tá ensaiando pra quermesse.

LÉOSINHO: ...

Depois eu mostro.

MIGUEL: Ué ué, tá com medo de quê? Hem, seu cara de maçã mordida!

LÉOSINHO: Cê acha que eu não tô ligado na tua? Tu tá é querendo copiar meus


passos. Falo logo!

MIGUEL: Quem te iludiu? Rapá, tudo o que você aprendeu foi com quem? Ahn??
Ah, meus tempos em Madureira hem.. Esquina do Chopp, ai ai...

LÉOSINHO: Aprendi sim. Pra fazer ao contrário e mandar bem!


MIGUEL: Ah é? Então tá. Vai tirando onda mermo que quando cê acabar eu vou te
mostrar como é que se faz de verdade. Não esse cisca-cisca aí que vocês de hoje em
dia fazem e dizem que tão dançando.

LÉOSINHO: Você? Duvido! Todo gordo aí. Num guenta nem com o próprio peso,
que eu sei!

MIGUEL: Ah é? Então aguarda e confia, seu Zé Trolha!

Léosinho caminha alegremente em direção à caixa de discos.

MIGUEL: E eu posso lá saber quem é que foi que te deu permissão de mexer nos
meus discos?

LÉOSINHO: Ué ué, tá com medo de quê? Fazer o quê se cê tem bom gosto musical?
Ao menos isso pra salvar né.

MIGUEL: Moleque, se tu arranha um desses... Ai, ai...

Ao procurar um disco, Léosinho se assusta repentinamente:

LÉOSINHO: Mata ela, pai. Mata!

MIGUEL: Mas meu filho, ela é só uma esperança.

LÉOSINHO: Esperança não canta pai.

MIGUEL: Quem que te ensinou isso?

LÉOSINHO: O que canta é cigarra.

MIGUEL: É só uma esperança que entrou pela janela. É coisa boa!

As mariposas, os grilos, as lagartixas, as esperanças, os trevos de quatro folhas... É


tudo sinal de boa sorte, meu filho.
LÉOSINHO: Não, pai! Esperança machuca.

(Pausa)

MIGUEL: Para de bobeira. Vamo que eu ainda quero lamber uma antes do almoço!

Meio que a contragosto, Léosinho põe “W/Brasil” de Jorge Ben para tocar e começa a dançar com uma
desenvoltura incrível!

“Alô, alô W/Brasil

Alô, Alô W/Brasil

Jacarezinho! Avião!

Jacarezinho! Avião!

Cuidado com o disco voador

Tira essa escada daí

Essa escada é pra ficar

Aqui fora

Eu vou chamar o síndico

Tim Maia! Tim Maia!

Tim Maia! Tim Maia!

O trem corre no trilho

da Central do Brasil (X2)


Incluindo ‘Paixão Antiga’

e aquele beijo quente

que eu ganhei da sua amiga

E o que é que deu?

Funk na cabeça!

E o que é que deu?

Funk na cabeça...

Alô, Alô W/Brasil

Alô, Alô W/Brasil”

Miguel observa com olhar babão os movimentos do garoto. Fica admirado ao ver aquele moleque
copiando os seus antigos passos de dança, ao passo que concomitantemente segue os seus passos na
vida.

Sabe aquele instante, aquele microssegundo que uma vez cruzado não tem mais volta, a emoção toma
conta geral? Então, justamente aí, Miguel decide tirar a agulha da vitrola.

O orgulho era demasiado grande, iria acabar transbordando.

MIGUEL: Chega, chega! Já dançou demais. Pra quem tá começando agora, até que
cê num tá muito ruim não. Mas vai pro canto que agora é minha vez.

LÉOSINHO: Vou até me afastar, porque você é muito desengonçado. Dança nada
com esses pé de foice aí.

MIGUEL: Tu fala muito.. Gargantão você! Bota logo o Bob Rum aí.

LÉOSINHO: Já tinha até separado. Só sabe dançar essa mesmo..


Léosinho dá play na vitrola.

Miguel tira os chinelos velhos e joga de qualquer forma em qualquer canto. Começa então a dançar
meio tímido, como quem está relembrando, tomando marcação no espaço... De repente emenda uma
bela sequência de passos difíceis, com direito a piruetas e tudo!

Léosinho fica admirado, os olhos do menino querem saltar da face. Brilham tanto que quase ofuscam a
iluminação do teatro.

“SOLTA O RAP DJ!

Era só mais um Silva que a estrela não brilha

Ele era funkeiro

Mas era pai de família

(X2)

Era um domingo de sol

Ele saiu de manhã

Pra jogar seu futebol

Levou uma rosa pra irmã

Deu um beijo nas crianças

Prometeu não demorar

Falou pra sua esposa que ia vir pra almoçar

É só mais um Silva que a estrela não brilha

Ele era funkeiro...”


Disfarçando o cansaço, Miguel rapidamente tira a música depois que se dá conta que acertou tudo. E
olha que ele nunca tinha conseguido esse combo antes. Não daquela maneira. Nunca mesmo! Que
aventura! Era arriscado tentar, mas por outro lado, ele não poderia fazer feio na frente da criança.

LÉOSINHO: Nossa pai, o quê que foi aquilo.. você pulou lá no altão e depois... E
depois.. me ensina? Pra que depois quando eu crescer eu seja assim que nem o
senhor!?

MIGUEL: Que ser que nem que eu o quê, rapá. Tu tem é que trilhar o seu próprio
caminho. Pensar no que você quer ser quando crescer... Querer fazer Medicina,
essas coisa.

LÉOSINHO: Eu já pensei nisso já. Eu quero ser ator. Que nem o Lázaro Ramos! Ou
então, se num der pra eu ser tão bom assim, quero ser igual ao Will Smith!

MIGUEL: Pô, tu é “muleque doido” mermo, hem!

LÉOSINHO: É, mas tô em dúvida também. Às vezes eu tenho vontade de ser


advogado, porque é uma parada que eu sei que vai me dar um dinheirinho, e eu
ainda posso trabalhar na Defensoria ajudando as pessoas que não tem condição.

MIGUEL: Ó só, independente do que você escolher, só vai ter que saber que num é
talento, é dedicação. Morô? Assim como quase tudo na vida. Vai fazendo o seu,
devagarzinho.. morô?, que um dia.. um dia os caminhos se abrem. Depois do
inverno é primavera e o “Rey Sol” renasce trazendo surpresas. O mundo dá voltas,
fio.

LÉOSINHO: Mas surpresas nem sempre são boas.

MIGUEL: Bom, isso é, mas o que você tem que ver é que...

LÉOSINHO: E a Terra é plana.

MIGUEL: Ahn?

LÉOSINHO: O nome não é PLAN-eta?


MIGUEL: Tu tá muito engraçadinho hoje. Voltou a ver os vídeos do Mussum, foi? Só
pode. “Palmas para ele, digam hey, digam hou...”

Ouve-se Joana gritando ao longe:

Léosinho!

MIGUEL: Tá ouvindo tua avó te chamar NÃO?

Léosinho encara Miguel por uns instantes como se fosse dizer algo muito profundo.

LÉOSINHO: Seu cara de maçã mordida!

Léosinho sai correndo, olhando pra trás e rindo ao ir ver o que é que a avó quer.

Miguel finge correr atrás do “filho”, que finge acelerar o passo, mas sai pelo lado contrário com um
sorriso bobo nos lábios. Está ainda mais animado para descer pro bar. Afinal, hoje é o seu aniversário!
EPÍLOGO

Os atores/personagens voltam ao palco ao som do refrão da música “Chapa”, de Emicida.

Miguel não volta.

“Mal posso esperar o dia de ver

Você voltando pra gente

Sua voz avisar

O portão bater...

Acende um riso contente.

Vai ser tão bom!

Tipo São João.

Vai ser tão bom!

Que nem Réveillon.

Vai ser tão bom!

Cosme e Damião.

Vai ser tão bom, bom, bom...”

FIM

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