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De Quanta Terra

Precisa o Homem
e Outros Contos
Relógio D' Água Editores
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Título: De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos


Títulos originais: Polikuchka (1863), Kholstomer (1886), Mnogo li tchelovéku zemli
nujno? (1886), Falchívi kupon (1911), Aliocha Gorchok (1905), Kornei Vassíliev
(1906), ldgodi (1906), :za chto? (1906), Khodinka (1906)
Autor: Lev Tolstói
Tradução (a partir do russo): Nina Guerra e Filipe Guerra
Revisão de texto: João Carlos Alvim
Capa: Carlos César Vasconcelos (www .cvasconcelos.com)
sobre fragmento de Paisagem Campestre (1861), de Lev Kamenev

©Relógio D' Água Editores, outubro de 2015

Esta tradução segue o novo Acordo Ortográfico.

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ADVERBUM

Publicado com o apoio do Institute for Literary Translation (Rússia).

Encomende os seus livros em:


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ISBN 97 8 -9 8 9-64 1 -525-9

Composição e paginação: Relógio D' Água Editores


Impressão: Europress, Lda.
Depósito Legal n.º: 3 99 141 / 1 5
Lev Tolstói

De Quanta Terra
Precisa o Homem
e Outros Contos

Tradução de
Nina Guerra e Filipe Guerra

Clássicos
ÍNDICE

Polikuchka 9
O Medidor-de-Linho 67
De Quanta Terra Precisa o Homem 105
O Cupão Falso 119
Aliocha, o Pote 183
Komei Vassíliev 189
As Bagas 207
Por Que Culpa? 219
Khodinka 243

Notas 253
POLIKUCHKA

É como a senhora mandar ! Só que tenho pena dos Dutlov.


É uma boa família, todos eles , os rapazes; se não for incorporado ne­
nhum servo doméstico , vai um desta fanu1ia, certo e sabido - disse
o administrador - , já toda a gente aponta para eles . Aliás , a senhora
é que sabe .
E pôs a mão direita sobre a esquerda, mantendo ambas apoiadas
na barriga, curvou a cabeça para o outro lado , franziu os lábios finos ,
tanto que por pouco não estalaram , revirou os olhos e calou-se , com
a visível intenção de guardar silêncio prolongado e ouvir, sem obje­
ções , todas as necedades que a sua senhora lhe ia debitar.
O homem que , nesta tarde outonal , estava em frente da sua se­
nhora era um administrador proveniente dos servos domésticos , ra­
pado , vestindo uma sobrecasaca comprida com o corte típico dos
administradores . A audiência consistia, no entender da senhora, em
ouvir o informe sobre os recentes assuntos da sua gestão económica
e dar ordens relativamente aos futuros . No entender do adminis­
trador, de nome Egor Mikháilovitch , o relatório consistia no ritual
de se manter imóvel , de pés torcidos , no canto , com a cara virada
para o sofá , de ouvir todo o género de tagarelice sem nexo nem li­
gação com o que interessava e de levar a senhora , por vários meios
e o mais depressa possível , ao ponto de pronunciar com impaciên­
cia a resposta «está bem , está bem» a todas as sugestões de Egor
Mikháilovitch .
10 Lev Tolstói

Neste caso , tratava-se do recrutamento militar. Da aldeia Pokróvskoe


deviam ser recrutados três homens . Dois deles eram indubitáveis , pela
vontade do próprio destino , ou seja, da situação da farru1ia, da moral e
também da economia. Relativamente a estes , eram impensáveis hesi­
tações ou discussões por parte da comunidade , da senhora e da opinião
pública. Mas o terceiro era problemático . O administrador tentava con­
seguir a isenção de Dutlov, de uma farru1ia com três homens trabalha­
dores e , no lugar dele, mandar Polikuchka, servo doméstico casado,
homem de reputação muito má, apanhado por mais de uma vez em
roubos de sacos, bridas e feno; ora a senhora, que dava muito carinho
aos filhos esfarrapados de Polikuchka e que corrigia a moral dele por
meio de sermões evangélicos , não queria entregá-lo à tropa. Ao mes­
mo tempo , não queria mal aos Dutlov, gente que nunca conheceu nem
viu . Mas , por qualquer motivo , não havia meio de a senhora apreender
a situação , e o administrador, por sua vez , não se atrevia a explicar-lhe
sem rodeios que , se não fosse incorporado o Polikuchka, o recruta seria
o Dutlov. «Não quero desgraçar os Dutlov» , dizia ela com emoção .
«Se não quer, pague então trezentos rublos para a isenção» - era isto
que devia responder-lhe . Mas a prática política não lho admitia.
Sendo assim , Egor Mikháilovitch fixou calmamente os olhos na
senhora, até se encostou discretamente à ombreira - conservando
contudo na cara uma expressão servil - e contemplou os lábios da
senhora a mexerem-se e os folhos da touca a saltitarem-lhe ao com­
passo da sombra na parede , debaixo da gravura. Ora, penetrar no
sentido do discurso da ama, isso é que não achava necessário . Esta
arengou muito e prolongadamente . O administrador sentiu uma con­
vulsão de bocejo por trás das orelhas ; mas , hábil , transformou esse
tremor em tosse , cobrindo a boca com a mão e grasnando fingida­
mente . Há algum tempo , vi como Lorde Palmerston , sentado , tapava
a cara com o chapéu enquanto um membro da oposição fulminava
o ministério e como , de repente , se levantou e num discurso de três
horas respondeu a todos os pontos da crítica; vi-o e não me admirei
porque tinha assistido mil vezes a uma coisa semelhante entre Egor
Mikháilovitch e a sua senhora. Fosse porque tinha medo de adorme­
cer, fosse porque lhe pareceu que a senhora se deixava levar dema­
siado pelo palavrório , mudou o peso do corpo do pé esquerdo para o
direito e lançou-se no introito sacramental e costumeiro:
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 11

- A senhora é que sabe , só que . . . só que a comunidade está ago­


ra reunida ao pé do meu escritório , é preciso tomar uma decisão.
A ordem diz que temos de levar os recrutas à cidade antes da Festa
do Manto . Os camponeses apontam para os Dutlov, não há mais nin­
guém. Mas a comunidade não quer saber do interesse da senhora; que
os Dutlov fiquem arruinados , à comunidade tanto lhe faz. Eu é que
sei bem como eles mourejam. Desde que sou administrador, vejo a
pobreza deles . Agora, por fim, o velho tem o sobrinho mais novo na
labuta - mas não , serão outra vez entalados . Ora eu , a senhora sabe ,
cuido da sua propriedade como se fosse a minha própria. É pena, mi­
nha senhora, por amor de Deus ! . . . Não são ninguém para mim , nem
lhes levei nada . . .
- Não penso nada disso , Egor - interrompeu-o a senhora e pen­
sou de imediato que o administrador fora subornado pelos Dutlov.
- . . . só que é a melhor casa em toda a aldeia. Mujiques devotos ,
laboriosos . O velho há trinta anos que é zelador da igreja, não bebe
nem pragueja com palavras obscenas , vai às missas . (O administra­
dor sabia com que palavras podia cativá-la.) O principal é que o ve­
lho tem só dois filhos , os outros são sobrinhos . A comunidade aponta
para ele , mas na verdade tem de tirar as sortes não como o pai de
três , mas de dois filhos . Houve famílias de três filhos em que um se
separou , o que é mal pensado , mas agora, olha, dão-lhes razão , e os
Dutlov devem sofrer pela sua virtude .
No meio disto tudo , a senhora já não percebia nada - não perce­
bia o que significavam as tais «sortes de dois filhos» nem a «virtu­
de» ; ouvia só o som das palavras e observava os botões de nanquim
na sobrecasaca do administrador: abotoava-a raramente com o botão
de cima, o que estava bem, mas o botão do meio pendia do fio e
havia muito que precisava de ser cosido . Contudo , como é sabido
por todos , para uma conversa, sobretudo de negócios , é dispensável
compreender o que nos dizem, é necessário apenas não esquecermos
o que nós próprios queremos dizer. Era deste modo que a senhora
também procedia.
- Como é que não percebes , Egor Mikháilovitch? - disse ela. -
Não quero de maneira nenhuma que Dutlov seja recrutado . Conheces­
-me há muito tempo, e suponho que sabes que faço todo o possível para
ajudar os meus camponeses e que não lhes quero mal . Sabes bem que
12 Lev Tolstói

estou pronta a sacrificar tudo para me livrar desta triste necessidade e


não mandar à tropa Dutlov nem Khoriúchkin . (Não sei se passou pela
cabeça do administrador que, para se livrar desta triste necessidade, não
era preciso sacrificar tudo, bastava pagar trezentos rublos; mas é muito
provável que tivesse esta ideia.) Digo-te só uma coisa: não mando para
lá Polikei em caso algum. Quando, depois daquele caso do relógio , ele
próprio me confessou tudo, chorou e jurou que se ia corrigir, falei mui­
to com ele e vi que ficou sentido e deu provas de um arrependimento
sincero. («Irra, agora já não para ! » , pensou Egor Mikháilovitch e co­
meçou a observar a compota diluída no copo de água da senhora: é de
laranja ou de limão? «Deve ser amargosa>> , pensou.) Desde então , há
já sete meses que não bebe uma gota e tem um comportamento exem­
plar. A mulher dele disse-me que se tomou outro homem. Agora, o que
é que queres? Que o castigue quando ele já se corrigiu? Além disso,
não achas que é muito desumano mandar para a tropa um pai de cinco
filhos , o único homem na fann1ia? Não , nem me fales disso, Egor . . .
E a senhora bebeu do copo .
Egor Mikháilovitch seguiu a passagem do líquido pela garganta e
replicou de modo lacónico e seco:
- Então , manda que seja o Dutlov?
A senhora esbracejou .
- Como é que não consegues perceber? Achas que quero mal ao
Dutlov, achas que lhe guardo algum rancor? Deus é testemunha, es­
tou pronta a fazer tudo por eles . (Ela olhou para um quadro no canto ,
mas lembrou-se que não era um ícone: «Não interessa, não se trata
disso» , pensou . Mais uma vez , era estranho que não lhe surgisse a
ideia dos trezentos rublos .) Mas então , o que tenho eu de fazer? Não
sei o que fazer. Nem posso saber. Bem, conto contigo , já sabes o que
eu quero . Faz com que todos fiquem contentes , e que seja de acordo
com a lei . Nada a fazer ! Não só eles , mas toda a gente passa por
momentos penosos . Só que não podemos mandar o Polikei . Tens de
perceber que seria horrível da minha parte .
Teria ainda falado sem fim, estava muito inspirada, mas entretanto
uma criada dos quartos entrou .
- O que é , Duniacha?
- Está ali um mujique , disse que perguntasse a Egor Mikháilovitch
se a comunidade tinha de esperar - disse Duniacha e olhou com
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 13

raiva para Egor Mikháilovitch . («Este administrador ! - pensou . -


Enervou a senhora, agora ela não me vai deixar dormir outra vez até
à uma da manhã.»)
- Então vai , Egor - disse a senhora - , faz o que é melhor.
- Sim, senhora. (Não voltou a falar de Dutlov.) E quanto ao di-
nheiro , quem mando buscá-lo ao jardineiro?
- O Petrucha ainda não voltou da cidade?
- Ainda não .
- E o Nikolai não poderá ir lá?
- O paizinho está acamado por causa dos rins - disse Duniacha.
- Desejará a senhora que vá eu , amanhã? - perguntou o admi-
nistrador.
- Não , preciso de ti aqui . (A senhora ficou pensativa.) Que quan­
tia é?
- 462 rublos .
- Manda o Polikei - disse a senhora, lançando u m olhar resoluto
à cara de Egor Mikháilovitch .
Egor, sem mostrar os dentes , esticou os lábios como que a sorrir, e
o resto da sua cara continuou imperturbável .
- Sim , senhora .
- Que venha falar comigo .
- Sim , senhora - e Egor Mikháilovitch foi para o escritório .

Polikei , como homem insignificante e malquisto , ainda por cima


oriundo de outra aldeia, não tinha proteção nem por parte da despen­
seira, nem do administrador ou da criada dos quartos , pelo que a sua
habitação (o «canto») era o pior de todos , embora houvesse sete pes­
soas na sua farm1ia - ele , a mulher e os filhos . Os «cantos» foram
construídos ainda pelo falecido senhor: numa isbá de pedra, de 30
varas quadradas , havia no meio um fogão russo rodeado pelo colidor
(assim lhe chamavam os servos domésticos) , e todos os cantos eram
separados por tabiques . Portanto , o espaço não era grande , sobretudo
no canto de Polikei , junto à porta. Uma cama de casal com edredão
pespontado e almofadas de chita, um berço , uma mesinha de três per-
14 Lev Tolstói

nas , em que se preparava a comida e se faziam as lavagens , em que se


punham todos os objetos e trabalhava o próprio Polikei (era curador
dos cavalos); selhas , roupa, galinhas , um vitelo e os sete membros da
fann1 ia repletavam o canto e seriam incapazes de se mexer se o fogão
comum não lhes oferecesse a sua quarta parte com um catre , em que
as pessoas se deitavam e os haveres se arrumavam, e também se não
fosse possível sair ao umbral . Aliás , era mesmo impossível: em outu­
bro o tempo é frio e, de roupa quente , a fann1ia tinha só uma peliça
de carneiro para todos os sete; em compensação , as crianças podiam
aquecer-se correndo e, os adultos , trabalhando , e tanto uns como os
outros podiam subir para o catre do fogão onde a temperatura chegava
até aos quarenta graus . Parece que viver nestas condições é horrível
mas , para eles , era como se nada fosse: vivia-se . Akulina lavava e cos­
turava a roupa do marido e dos filhos , fiava e tecia, branqueava os seus
tecidos , cozia o pão no fogão comum , altercava e mexericava com os
vizinhos . A ração mensal dava não só para os filhos , mas também para
a vaca. A lenha era de graça, a forragem para a vaca também , e o feno
da estrebaria, de vez em quando . Tinham uma courela de horta. A va­
ca pariu; tinham galinhas . Polikei trabalhava na estrebaria, tratava de
dois garanhões e sangrava cavalos e vacas , limpava os cascos , furava
os inchaços na boca dos cavalos e utilizava pomadas do seu próprio
fabrico e , por isso tudo , ganhava dinheirinho e provisões . Havia sem­
pre , também, uns restos da aveia senhorial . Na aldeia havia um mu­
jique que , todos os meses , dava vinte libras de carne de borrego por
quatro alqueires de aveia. A vida não seria má se não houvesse aquela
dor na alma. E que grande era essa dor para toda a fann1ia. Na outra
aldeia, Polikei trabalhou desde jovem na coudelaria. O chefe que lhe
calhou era o maior ladrão em toda a vizinhança: chegou a ser depor­
tado . Foi com este homem que Polikei teve a sua primeira aprendiza­
gem e, sendo novinho , habituou-se a essas malandrices de tal modo
que, mais tarde , por mais que tentasse , não conseguia desistir delas .
Era jovem, fraco; não tinha pai nem mãe, ninguém que o educasse .
Polikei gostava de beber o seu copo e não aguentava ver coisas mal
guardadas . Fosse uma correia de arco , fosse um cilhão , um cadeado ,
ou uma cravija, ou alguma coisa mais preciosa - para tudo Polikei
Ilitch encontrava o devido lugar. Por todo o lado havia pessoas que
aceitavam essas coisinhas , pagando-as com vinho ou dinheiro , con-
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 15

forme o acordo mútuo . Esses ganhos , como diz o povo, são o s mais
fáceis , não precisam de aprendizagem nem trabalho , e quem os expe­
rimente uma vez não quererá outra coisa. Só um particular é menos
bom nesses ganhos: embora tudo seja fácil e dê uma vida agradável ,
acontece às vezes um malogro por causa de gente maldosa, e então
pagamos por tudo de uma vez , e a vida torna-se negra.
Foi isto que aconteceu a Polikei . Casou-se , e Deus mandou-lhe
a felicidade: a mulher que lhe calhou , filha do vaqueiro , era saudá­
vel , esperta, laboriosa; deu-lhe filhos , todos perfeitinhos . Polikei não
abandonava as suas negociatas , e as coisas andavam bem . De repen­
te , teve azar, foi apanhado . Ainda por cima por causa de uma ninha­
ria: roubou bridas a um mujique . Encontraram o produto do roubo ,
deram-lhe uma sova, informaram a senhora e começaram a vigiá-lo .
Foi apanhado pela segunda e pela terceira vez . O povo cobriu-o de
vergonha, o administrador ameaçou-o com o recrutamento , a senhora
fez-lhe uma admoestação , a mulher começou a chorar, a amargurar­
-se; ficou tudo virado do avesso . Polikei não era má pessoa, apenas
era fraco e amigo de beber, e de tal modo se habituou à bebedeira que
não conseguia parar. Às vezes volta a casa borracho , a mulher ralha
com ele , até lhe bate , e ele chora: «Ai de mim, desgraçado - diz ele
- , o que vou fazer? Diabos me levem se não acabo com isto .» Mas
passado um mês volta a sair de casa, embebeda-se , anda dois dias
perdido . «Portanto, nalgum lado ele arranja dinheiro para as pânde­
gas» , comentava o povo . O último caso de Polikei foi o do relógio
do escritório . Havia ali um velho relógio de parede, há muito para­
do . Aconteceu-lhe entrar sozinho no escritório aberto; não resistiu à
tentação , levou o relógio e vendeu-o na cidade . Nem de propósito , o
lojista a quem o vendeu era compadre de uma serva doméstica, foi
a uma festa da aldeia e contou do relógio . Começaram a averiguar,
como se alguém precisasse disso . Sobretudo o administrador, que
não gostava de Polikei . E descobriram tudo . Informaram a senhora.
A senhora chamou Polikei . Este rojou-se aos seus pés e confessou
tudo com sentimento , de modo comovedor, tal como a mulher lhe en­
sinara. Saiu-se muito bem . A senhora chamou-o à razão , falou muito ,
lamentou muito , falou-lhe de Deus , da virtude , da vida futura, da
mulher e dos filhos , e levou-o às lágrimas . A senhora disse:
- Perdoo-te , mas promete que nunca mais fazes essas coisas .
16 Lev Tolstói

- Nunca, juro ! Raios me partam, a barriga me rebente se eu . . . ! -


dizia Polikei e chorava lágrimas enternecedoras .
Polikei voltou para casa e passou todo o dia a chorar alto , deitado
no catre do fogão . Desde então , nunca mais se viu nem ouviu nada de
feio por parte de Polikei . Só que a sua vida se tornou angustiante: o
povo considerava-o ladrão e , quando chegou a altura do recrutamen­
to , toda a gente apontou para ele .
Polikei , como já foi dito , era curador dos cavalos . Como é que se
tomou de repente perito neste ofício , isso ninguém sabia, nem ele pró­
prio . Na coudelaria, sob a chefia do homem que seria deportado , não
cumpria outras obrigações além de tirar dos estábulos o estrume, ou
por vezes limpar as bestas e fornecer água. Ali não podia aprender
nada. Depois , trabalhou como tecelão; depois no jardim, limpando
carreiros; depois , por castigo , partia tijolos; a seguir, amealhando di­
nheiro para o tributo , trabalhou como guarda-varredor em casa de um
comerciante . Portanto , também não poderia adquirir a prática de tra­
tamento dos cavalos nessa altura. Contudo , da última vez que viveu
em casa, começou pouco a pouco a divulgar-se a reputação da sua arte
extraordinária, até sobrenatural , de curar os cavalos . Fez sangria uma,
depois outra vez, depois derrubou um cavalo no chão e esgaravatou­
-lhe na coxa, depois exigiu que pusessem o cavalo na baia e começou
a cortar-lhe a ranilha até o cavalo sangrar, embora o animal se deba­
tesse e até guinchasse, e disse que aquilo significava «tirar sangue do
casco» . Depois , explicou ao mujique que era necessário tirar o sangue
de ambas as veias , «para maior alívio» , e começou a bater com o
maço numa lanceta embotada; depois , passou o debrum do lenço da
mulher sob a barriga da égua do estalajadeiro . Por fim, começou a pôr
a caparrosa nas chagas , a molhá-las com o líquido de um frasco e, às
vezes , a meter na boca dos cavalos sabia-se lá o quê . E quanto mais
martirizava e matava os cavalos , tanto mais crédito ganhava e tantos
mais cavalos lhe eram levados para a cura.
Sinto que para nós , os senhores , não é muito conveniente troçar do
Polikei . Os métodos a que recorria para inspirar confiança eram os
mesmos que surtiam efeito nos nossos pais e em nós próprios , e serão
igualmente eficazes para os nossos filhos . Um mujique, deitado de bar­
riga para baixo sobre a cabeça da sua única égua, que não só constitui a
sua fortuna, mas também é quase um membro da farru1ia, olhando com
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 17

fé e pavor para a cara carrancuda e significativa de Polikei e para os


seus braços finos de mangas arregaçadas , com os quais ele carrega pro­
positadamente no lugar doente e corta sem hesitar a carne viva, com a
ideia oculta de «Se calhar dá certo» , fingindo saber onde é sangue, onde
é matéria, onde é tendão, onde é veia, e segura nos dentes um trapo
curativo ou um frasco com caparrosa - este mujique não consegue
imaginar que Polikei se atrevesse a cortar sem saber o que estava a
fazer. Ele próprio, o mujique, não seria capaz. E já que o corte foi feito ,
não vai censurar-se a si próprio por ter deixado cortar inutilmente. Não
sei como foi com os senhores , mas eu , em relação ao doutor que fazia
sofrer, a meu pedido , os meus entes queridos , senti a mesmíssima coi­
sa. Uma lanceta, um misterioso frasco esbranquiçado com sublimado
corrosivo e as palavras: mal das cadeiras, almorreima, tirG:r sangue ou
matéria , etc . - não serão como nervos, reumatismo, organismos etc .?
Wage du zu irren und zu tri:iumen!* - isto diz respeito nem tanto aos
poetas quanto aos doutores e curadores dos cavalos .

Naquela precisa ocasião em que a assembleia, escolhendo o recru­


ta, rumorejava no escuro noturno de outubro , Polikei estava sentado
na borda da cama junto à mesa e, com uma garrafa, triturava um remé­
dio para cavalos de que ele próprio não fazia ideia para que servisse .
A mistela continha sublimado corrosivo , enxofre , sal de Glauber e
uma erva colhida por Polikei que , um belo dia, imaginou ser remédio
santo contra a pulmeira, achando benéfico aplicá-la também contra
outras maleitas . As crianças já estavam deitadas: duas no catre do fo­
gão , duas na cama, um bebé no berço , ao lado do qual Akulina estava
a fiar. Um coto de vela dos senhores «mal guardada» ardia no cas­
tiçal de madeira, em cima do peitoril da janela, e Akulina, para não
distrair o marido do seu trabalho importante , levantava-se de vez em
vez para ajeitar o coto com os dedos . Havia livres-pensadores que
consideravam Polikei curador inútil e homem inútil. Outros , a maio­
ria, achavam-no má pessoa, mas grande mestre no seu ofício . Quanto

-* Atreve-te a cair em erro e sonhar! (ai .)


18 Lev Tolstói

a Akulina, apesar de ralhar com o marido e até de o espancar de vez


em quando , não duvidava de que era o melhor curador e o homem
mais importante do mundo . Polikei acrescentou à mistela uma espe­
ciaria qualquer. (Não utilizava a balança e referia-se ironicamente aos
alemães que a utilizavam . «Isto aqui - dizia - não é farmácia ! »)
Polikei mediu a sua especiaria diretamente na mão e sacudiu-a; mas
pareceu-lhe pouca, e pôs dez vezes mais. «Ponho-a toda, vai dar mais
força» , disse de si para si . Akulina virou-se rapidamente para a voz
do seu potentado , à espera de qualquer ordem; mas vendo que não era
para ela, encolheu os ombros: «Chiça, que sabichão ! Como é que ele
sabe?» , pensou ela e voltou a fiar. O papelinho do qual fora despejada
a especiaria caiu para debaixo da mesa. Akulina não o ignorou .
- Aniutka - gritou ela - , não vês o que o pai deixou cair? Vai ,
apanha.
Aniutka tirou as pernas fininhas e descalças de baixo do capote que
a cobria, desceu como um gatinho para debaixo da mesa e apanhou
o papelinho .
- Tome , paizinho - disse e voltou a meter-se na cama com pe­
zinhos regelados .
- Não me empulhes - piou a mana mais nova, ceceando em voz
sonolenta.
- Caluda ! - disse Akulina, e ambas as cabeças desapareceram
sob o capote .
- Vai dar três rublos - disse Polikei , tapando a garrafa - , curo-
-lhe o cavalo . Ainda é barato - acrescentou . - Arranjar a cura dá
cabo da cabeça ! Akulina, vai pedir tabaco ao Nikita. Diz que amanhã
lho devolvo .
E Polikei tirou das calças um tubinho de tília, dantes pintado , com
boquilha de lacre , e começou a preparar o cachimbo .
Akulina largou o fuso e saiu sem tocar em nada pelo caminho ,
o que era muito difícil . Polikei abriu o pequeno armário , meteu lá
a sua garrafa e levou à boca uma outra - mas já não tinha vodca.
Franziu a cara, mas quando a mulher lhe trouxe o tabaco e ele en­
cheu o cachimbo , começou a fumar e se sentou na cama, a sua cara
irradiava o contentamento e o orgulho de uma pessoa que acabou
o seu trabalho diurno . Refletia em quê? Em que no dia seguinte ,
apanhando a língua do cavalo , lhe ia verter na boca a sua estranha
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 19

poção , o u e m que ninguém recusa nada a uma pessoa necessária e


por isso o Nikita lhe mandara o tabaco? Estava contente . De repente ,
a porta, que pendia de uma só corrediça, abriu-se e entrou a rapariga
«de cima» , que não era a segunda, mas a terceira criada, pequena,
moça de recados . «A parte de cima» , como toda a gente sabe , signi­
fica a casa senhorial , nem que se situasse em baixo . Aksiutka - era
este o nome da rapariguinha - voava sempre como uma bala, e
os seus braços durante a corrida não se dobravam, mas baloiçavam
como pêndulos , à medida da velocidade dos seus movimentos , e
não ao longo das ancas , mas em frente do corpo; as suas bochechas
eram sempre mais vermelhas do que o seu vestido cor-de-rosa; a sua
língua mexia-se com a mesma velocidade que os seus pés . Irrompeu
no quarto e , agarrando-se ao fogão , começou a baloiçar e, como que
desejando obrigatoriamente pronunciar não mais do que duas ou três
palavras de vez , resfolegando e dirigindo-se a Akulina, metralhou de
repente o seguinte:
- A senhora manda que Polikei Ilitch vá à presença dela, já . . .
mandou . . . (Calou-se e recuperou , com dificuldade , o fôlego .) Egor
Mikháilovitch falou com a senhora , foi sobre os necrutas , falaram
do Polikei Ilitch . . . Avdótia Mikolavna disse para ele ir ter com ela
já. Avdótia Mikolavna mandou . . . (mais um suspiro) que fosse ago­
ra mesmo .
Por trinta segundos , Aksiutka olhou para Polikei , para Akulina,
para as crianças que assomavam as cabeças de baixo do cobertor,
agarrou uma casca de avelã deixada no fogão , atirou-a a Aniutka e ,
depois de repetir «que fosse agora mesmo» , voou como vento para
fora do quarto , e os pêndulos baloiçaram de través à frente do seu
corpo com a velocidade habitual .
Akulina voltou a levantar-se e foi buscar as botas do marido . As
botas eram péssimas , rotas , de soldado . Tirou do fogão o cafetã e
chegou-lho , sem olhar para ele .
- Ilitch , não vais mudar de camisa?
- Não - disse Polikei .
Akulina nem uma vez olhou Polikei na cara enquanto ele se calça­
va e se vestia em silêncio , e fez bem em não olhar. A cara de Polikei
estava pálida, o queixo tremia-lhe , e tinha na cara aquela expressão
lacrimosa, submissa e profundamente amargurada que somente cos-
20 Lev Tolstói

tumam ter as pessoas bondosas , fracas e culpadas . Penteou o cabelo e


ia a sair, mas a mulher fê-lo parar, ajeitou-lhe um cadarço da camisa
que se lhe pendurava por cima do cafetã e pôs-lhe o chapéu .
- Polikei Ilitch , a senhora está a chamá-lo? - ouviu-se de trás do
tabique a voz da mulher do marceneiro .
A mulher do marceneiro tivera, de manhã, uma altercação esquen­
tada com Akulina por causa de um pote de barrela que os filhos de
Polikei derrubaram , e no primeiro momento teve o prazer de ouvir
que Polikei tinha sido chamado à presença da senhora: era, com cer­
teza, uma contrariedade . Além disso , era uma dama esperta, astuta
e mordaz . Ninguém como ela sabia alfinetar com uma palavra; pelo
menos , era assim que ela pensava.
- Quer mandá-lo à cidade , é de supor, para fazer compras - con­
tinuou . - A meu ver, precisam de um homem de confiança, por isso
é que manda vossa mercê . Então , compre-me chá, um quarto de libra,
Polikei Ilitch .
Akulina conteve as lágrimas , e os seus lábios tomaram uma ex­
pressão raivosa. Apeteceu-lhe agarrar pelas gadelhas essa víbora da
mulher do marceneiro . Mas olhou para os seus filhos , pensou que
iam ficar órfãos e ela própria, mulher do soldado , o mesmo que viú­
va, e esqueceu a maliciosa mulher do marceneiro , tapou a cara com
as mãos , sentou-se na cama e deixou cair a cabeça na almofada.
- Mãezinha, estás a pisai-me - resmungou a miúda que ceceava,
arrancando o seu capote .
- Que estiquem o pernil , vocês todos ! Dei-vos à luz para a des­
graça ! - gritou Akulina e desfez-se num choro alto , para grande
prazer da mulher do marceneiro que não esquecera o caso da barreta
dessa manhã.

Passou meia hora. O bebé gritou , Akulina levantou-se e deu-lhe a


mama. Ela já não chorava, mas , apoiando na mão a cara magra, ainda
bonita, fixou com os olhos a vela quase extinta e começou a pensar:
porque se casou , porque eram precisos tantos soldados e, também, na
maneira de se vingar da mulher do marceneiro .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 21

Ouviram-se o s passos d o marido; Akulina limpou o s vestígios de


lágrimas e levantou-se para o deixar passar. Polikei entrou com so­
berba, atirou o chapéu para cima da cama, recuperou o fôlego e co­
meçou a desatar o cinto .
- Então? Para que te chamaram?
- Humm, já se sabe ! Polikuchka é o pior de todos , mas quando é
preciso tratar das coisas , a quem mandam chamar? Ao Polikuchka.
- Que coisas?
Polikei não tinha pressa de responder; acendeu o cachimbo, cuspiu .
- Manda-me ir ao comerciante , buscar dinheiro .
- Trazer dinheiro? - perguntou Akulina.
Polikei sorriu e abanou a cabeça.
- É de fala manhosa ! Tu , diz ela, foste visto como o homem que
não era de confiança, mas acredito em ti mais do que noutro qualquer.
(Polikei falou bem alto , para os vizinhos ouvirem .) Prometeste-me
que te corrigias , diz ela; então , tens aqui a primeira prova da minha
confiança: vai ao comerciante buscar o dinheiro , trá-lo . E digo-lhe
eu: todos nós , ou seja, eu também , somos servos da senhora e temos
de servir a Deus e à senhora porque me sinto a modos de poder fazer
tudo pela sua saúde e não posso recusar serviço nenhum; cumpro
tudo o que a senhora mandar, pois sou seu escravo . (Voltou a es­
boçar aquele sorriso especial do homem fraco , bondoso e culpado .)
Então , diz ela, vais cumprir tudo , não falhas? Compreendes , diz ela,
que a tua vida depende disto? Como é que posso não compreender
que posso fazer tudo? Falam mal de mim, mas qualquer um pode
ser acusado , e acho que contra a saúde da senhora nem me passou
pela cabeça fazer nada. Falei , falei , enterneci a senhora. Tu , diz ela,
serás o primeiro homem para mim . (Ficou calado , e o mesmo sorriso
surgiu na sua cara.) Sei muito bem falar com as pessoas . Acontecia,
ainda quando andava a ganhar para o tributo , que me atacavam . Mas
punha-me a falar com o homem , e ficava meiguinho .
- É muito dinheiro? - perguntou Akulina.
- Mil e quinhentos rublos - respondeu Polikei com indiferença.
Ela abanou a cabeça.
- Quando é que vais?
- Ela manda que vá já amanhã. Leva o cavalo que quiseres , passa
pelo escritório e vai com Deus , diz ela.
22 Lev Tolstói

- Deus seja louvado ! - disse Akulina, levantando-se e fazendo o


sinal da Cruz . - Que Deus te ajude, Ilitch - acrescentou em sussurro
para não ser ouvida pelos vizinhos por trás da divisória, segurando­
-o pela manga da camisa. - Ilitch, ouve , peço-te por amor de Deus ,
quando fores , beija a Cruz e promete que não bebes nem uma gota.
- Eu? A beber com este dinheiro no bolso? - riu-se Polikei . - Lá
em cima, alguém tocou no piano , e que grande categoria! - acrescen­
tou , depois de algum silêncio e sorrindo . - A menina, é de supor. Eu
ali parado em frente da senhora, ao pé do aparador, e a menina atrás
da porta, a tocar. Toca e toca, e é tão lindo , uma maravilha. Também
gostaria de tocar. Podia aprender. Apanhava-lhe o jeito , com certeza.
Sou bom nessas coisas . Amanhã dá-me uma camisa limpa.
E deitaram-se felizes da vida.

A assembleia dos camponeses , entretanto , tumultuava junto ao es­


critório . O assunto não era brincadeira. Estavam reunidos quase todos
os mujiques e , enquanto Egor Mikháilovitch falava com a senhora, co­
briram as cabeças , e mais vozes se ouviam, cada vez mais altas , entre
o rumorejo geral . O gemido de vozes grossas , interrompido de vez em
quando por algum discurso ofegante, rouco e gritado, pairava no ar,
e este gemido chegava, como o som do mar barulhento , às janelas da
senhora que, por isso, experimentava uma inquietude nervosa, como a
provocada por uma tempestade forte. Era como se tivesse medo, ou tal­
vez desgosto . Como se, à medida que as vozes se tomavam mais altas e
frequentes , alguma coisa fosse acontecer. «Como se não fosse possível
fazer tudo com calma, em paz, sem discussões nem gritos» , pensava, «e
de acordo com a lei cristã, mansa e cheia de amor fraterno .»
Muitas vozes falavam ao mesmo tempo , mas os gritos mais altos
eram os de Fiódor Rezun , carpinteiro . Este pai de dois filhos varões , o
assim chamado «duplo» , atacava os Dutlov. O velho Dutlov defendia­
-se; primeiro , por trás da multidão , depois saindo para a frente e ,
engasgando-se , esbracejando e tremendo com a barbicha, fanhoseava
com tanta rapidez que até para ele próprio seria difícil perceber o que
estava a dizer. Os filhos e os sobrinhos , uns galhardos , apertavam-se
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 23

por trás dele , e o velho Dutlov lembrava a mãe galinha no jogo do


«falcão» . O falcão era Rezun , e não só ele , mas todos os representan­
tes das farm1ias de dois irmãos , quase toda a assembleia que atacava
o Dutlov. Aconteceu que o irmão de Dutlov, cerca de trinta anos atrás ,
fora mandado para a tropa e por isso este não queria entrar na cate­
goria dos chamados «triplos» , exigindo que o serviço militar do seu
irmão fosse tomado em consideração e a sua farm1ia igualada com as
de «duplos» , e que o terceiro recruta fosse escolhido deste último gru­
po . As farm1ias de «triplos» , além dos Dutlov, eram ainda mais quatro;
mas uma delas era do regedor eleito , e a senhora fez-lhe isenção; da
outra farm1ia, um rapaz foi para a tropa no recrutamento anterior; das
restantes duas , já tinham destacados para o recrutamento dois homens ,
e um deles nem foi assistir à assembleia, apenas a sua mulher estava
ali , triste , atrás da multidão, com a vaga esperança de que a roda da
fortuna virasse , por algum milagre; o outro , com o filho recrutado , o
ruivo Roman , de armiak 1 roto , embora não fosse tão pobre como isso ,
estava encostado à escada da entrada, cabisbaixo , silencioso , e só de
vez em quando perscrutava com os olhos aquele que levantava a voz
e , depois , voltava a baixar a cabeça. Toda a sua figura exprimia uma
grande desgraça. O velho Semion Dutlov era um homem a quem qual­
quer pessoa que o conhecesse minimamente teria confiado centenas ,
milhares de rublos . Homem sério , devoto , abastado; além do mais, era
zelador da igreja. Por tudo isto , tanto mais impressionante parecia a
sua excitação neste momento .
O carpinteiro Rezun era um homem alto , moreno , impetuoso, bê­
bedo , arrojado e muito hábil em discussões e conversas nas assem­
bleias , nas feiras , com jornaleiros , comerciantes , mujiques e senhores .
Agora estava calmo , mordaz e , com toda a sua grande estatura, com
toda a força da sua voz sonora e do seu talento de orador, esmagava
o zelador da igreja que se engasgava e estava fora dos seus habituais
eixos de calma imponência. Participavam ainda no debate os seguin­
tes homens: Garaska Kopilov, atarracado , de cara redonda e aparência
jovem, cabeça quadrada e barbicha encaracolada, representante lo­
quaz da geração anterior à de Rezun , e que se destacava pelo discurso
áspero , tendo já ganhado autoridade nas assembleias . Outro era Fió­
dor Mélnitchni , mujique de cara amarelada, magro, esgrouviado , um
pouco curvado , também jovem, com a barba rala e os olhos pequenos ,
24 Lev Tolstói

sempre bilioso , soturno , propenso a encontrar em tudo um lado mau


e que , muitas vezes , surpreendia a assembleia com as suas perguntas e
observações inesperadas e entrecortadas . Estes oradores estavam am­
bos do lado de Rezun . Além destes , intrometiam-se na discussão, de
vez em quando , dois linguareiros: Khrapkov, de cara muito benévola e
uma rica barba ruça, com o seu refrão do «meu caro amigo» , e Jidkov,
pequeno , com fisionomia de pássaro , que também tinha o seu refrão
( <<portantos , meus amigos») e se dirigia a toda a gente com um dis­
curso coerente mas fora do contexto . Ambos tomavam partido ora por
um lado , ora pelo outro , mas ninguém lhes dava ouvidos . Havia outros
do mesmo género , mas estes dois não deixavam de se mover no meio
da multidão , gritando mais que os restantes e assustando a senhora;
eram os menos ouvidos de todos mas , embriagados pelo barulho e pe­
la gritaria, entregavam-se plenamente ao prazer de dar à língua. Havia
ainda muitos outros feitios entre os presentes na reunião: sombrios ,
decorosos , indiferentes , embrutecidos; atrás dos mujiques estavam
também mulheres , mas disso, se Deus quiser, falarei noutra ocasião .
A maioria da multidão era, contudo , de mujiques que estavam na
assembleia como na igreja, e os das últimas filas conversavam em
sussurro sobre assuntos domésticos ou sobre quando começariam a
desbastar a floresta, ou esperavam em silêncio o fim da gritaria. Havia
ainda mujiques ricos , para quem a assembleia não podia beneficiar
nem prejudicar o bem-estar. Assim era o Ermil , de cara larga e lustro­
sa, apelidado na aldeia de barrigudo por causa da sua riqueza. Assim
era também o Stárostin , com a expressão presunçosa do poder na cara:
«Podem falar quanto quiserem, mas em mim ninguém toca. Tenho
quatro filhos , e nenhum irá para a tropa.» De vez em vez , os livres­
-pensadores , como Kopilov e Rezun , implicavam também com eles ,
e os ricos respondiam firme e tranquilamente , com a consciência da
sua imunidade . Se Dutlov parecia a galinha mãe no jogo do gavião , os
seus filhos nem por isso se assemelhavam a pintainhos: não se azafa­
mavam nem piavam, mantinham-se calmamente atrás do pai . O mais
velho , Ignat, já tinha trinta anos; o segundo também era adulto e casa­
do , mas não apto para o serviço militar; o terceiro , o sobrinho Iliuchka,
acabado de casar, de cara branca e corada, vestido com uma peliça
de carneiro muito janota (trabalhava como cocheiro da posta) , esta­
va parado , olhando de vez em quando para o povo e coçando a nuca
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 25

debaixo do chapéu , como se não tivesse nada que ver com o assunto .
Pois , mas era precisamente a ele que os gaviões pretendiam apanhar.
- O meu avô também era soldado - disse Rezun - , mas não me
recuso . Não há nenhuma lei dessas . No último recrutamento levaram
o Mikhéitchev, embora o seu tio ainda não tivesse voltado da tropa.
- Nem o teu pai nem o teu avô serviram o czar - dizia-lhe ao
mesmo tempo Dutlov - , e tu próprio não serviste os senhores nem a
comunidade, só andaste por aí na bebedeira, e os teus filhos separaram­
-se de ti . É impossível viver contigo , mas julgas as outras pessoas ,
apontas o dedo para elas , mas eu durante dez anos servi de guarda jun­
to à polícia, fui regedor eleito , perdi duas vezes a casa nos incêndios ,
e ninguém me ajudou; então, se e m minha casa é tudo paz e seriedade,
devo ser arruinado? Nesse caso, devolvam-me o meu irmão . Se calhar,
morreu lá na tropa. Julgai pela verdade, boa gente cristã, pela verdade
de Deus , e não pelo que mente um bêbedo .
Então , Guerássim replicou a Dutlov:
- Falas do teu irmão , mas não foi mandado por decisão da co­
munidade , foram os senhores que o mandaram por ser desordeiro;
portantos , ele não serve de razão para ti .
Guerássim ainda não acabara de falar e já o amarelado e esgrou­
viado Fiódor Mélnitchni dizia, dando um passo em frente:
- Pois é, os senhores mandam quem quiserem , e depois a comu­
nidade tem de resolver as coisas . A comunidade resolveu que ia o teu
filho , mas se tu não queres , vai pedir à senhora, se calhar manda-me a
mim, que sou viúvo , sozinho com os filhos . Olha que lei - disse ele
biliosamente . E, abanando a mão , voltou para o seu lugar.
O ruivo Roman , a quem levavam o filho para a tropa, levantou a
cabeça e disse: - É assim mesmo ! - e até se sentou no degrau , por
desgosto .
Mas havia ainda mais vozes que falavam simultaneamente . Além
dos mujiques que , nas últimas filas , falavam da sua própria vida, os
linguareiros também não esqueciam as suas funções .
- Está certo , gente cristã - disse o pequeno Jidkov, repetindo as
palavras de Dutlov - , é preciso julgar pela lei cristã. É assim , por­
tantos , é preciso julgar, meus amigos .
- É preciso julgar com consciência limpa, meu caro amigo -
disse o bondoso Khrapkov, repetindo as palavras de Kopilov e pu-
26 Lev Tolstói

xando Dutlov pela peliça. - Foi a vontade dos senhores , e não uma
decisão da comunidade .
- Está certo ! É assim mesmo ! - diziam os outros .
- Quem é o bêbedo que mente? - retorquiu Rezun . - Foste tu
que me ofereceste de beber, ou o teu filho que não vale um pataco ,
que me vai censurar pelo vinho? Então , amigos , teinos de tomar uma
decisão . Se quiserem isentar o Dutlov, escolham não só os duplos ,
mas os viúvos , e ele vai gozar connosco .
- É o Dutlov, e pronto ! Acabou a conversa !
- J á c á s e sabia! Os triplos é que vão primeiro - ouviram-se
vozes .
- Ainda vamos ver o que manda a senhora. Egor Mikháilovitch
disse que queria recrutar um servo doméstico - disse alguém.
Esta observação refreou um pouco a discussão , mas esta não tar­
dou a reacender-se e a tomar um caráter pessoal .
Ignat, de quem Rezun disse que não valia uma pataca, começou a
acusá-lo de ter roubado uma serra aos carpinteiros viajantes e de ter
batido , bêbedo , na sua mulher quase até à morte .
Rezun respondeu que batia na mulher sempre , bêbedo e sóbrio ,
e achava ainda pouco , com o que fez rir toda a gente . Mas quanto
à serra, de chofre se ressentiu e avançou contra Ignat, perguntando:
- O quê , quem é que roubou?
- Tu roubaste - respondeu destemidamente o grandalhão Ignat,
avançando também contra o adversário .
- Quem é que roubou? Se calhar tu próprio , não? - gritou Rezun .
- Não , tu ! - gritou Ignat.
Depois da serra veio à baila um cavalo roubado , uns sacos de aveia,
uma qualquer courela de horta no local do antigo incêndio , um corpo
morto qualquer. E ambos os mujiques disseram um rol de coisas tão
terríveis que , se uma centésima parte das suas acusações fosse verda­
de , ambos deviam ser, pela lei , mandados para os trabalhos forçados
na Sibéria, ou , pelo menos , deportados .
O velho Dutlov, entretanto , escolheu outro género de defesa. Não
gostou dos gritos do filho; tentando calá-lo , dizia: «Deixa-te disso, é
pecado ! Ouviste?» E argumentou que os triplos não eram só as fa­
mílias com três filhos juntos , mas também aquelas que se separaram.
E apontou igualmente para Stárostin.
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 27

Stárostin sorriu ligeiramente , pigarreou e, cofiando a barba com


aquele seu ar de rico , respondeu que tinha sido essa a vontade dos
senhores . Supostamente , o seu filho merecera ser isento .
Quanto às famílias separadas , Guerássim também arrasou os argu­
mentos de Dutlov, dizendo que então teriam tido de proibir a separa­
ção , como nos tempos do velho senhor, que isso eram águas passadas
e que agora não podiam, por causa disso , recrutar os solitários .
- Achas que se separaram por brincadeira? Por que culpa devem
ser agora arruinados? - ouviram-se as vozes dos mujiques igual­
mente separados , e os linguareiros juntaram-se a essas vozes .
- Se não gostas , podes comprar um substituto . Não te custa nada !
- disse Rezun a Dutlov.
Dutlov fechou o cafetã num gesto desesperado e pôs-se atrás dos
outros mujiques . - Estou a ver que contaste o meu dinheiro - disse
com raiva. - Ainda vamos ouvir o que nos diz Egor Mikháilovitch ,
o que manda a senhora.

Nem de propósito, neste momento Egor Mikháilovitch saiu da casa.


Os chapéus , um após outro , levantaram-se acima das cabeças e, à medi­
da que o administrador se aproximava, as cabeças carecas no cocuruto
e na testa, encanecidas , grisalhas , ruivas , negras e ruças descobriam-se
uma a uma, e as vozes , pouco a pouco , calavam-se e, por fim, silen­
ciaram-se por completo . Egor Mikháilovitch parou no umbral e mos­
trou que desejava falar. De sobrecasaca comprida, com as mãos meti­
das desconfortavelmente nos bolsos da frente , de boné fabril enfiado
na testa e os pés firmemente fincados no patamar da escada, erguia-se
como um comandante por cima das cabeças levantadas para ele, na sua
maioria velhas e, quase todas , bonitas e barbudas , e tinha um ar bastante
diferente daquele de há pouco, em frente da senhora. Estava majestoso .
- Rapazes , ouvi a decisão da senhora: não deseja mandar para a
tropa servos domésticos , por isso irá quem vós escolherdes . Agora
precisamos de três recrutas . Na verdade , são dois e meio , mas outra
metade será contada para a próxima . Tanto faz: se não for hoje, será
da próxima vez .
28 Lev Tolstói

- Está certo ! É justo ! - disseram as vozes .


- No meu entender - continuou Egor Mikháilovitch - , é a vez
de Khoriúchkin e de Vaska Mitiúkhin , isto com certeza.
- É verdade , certo - disseram as vozes .
- O terceiro será o Dutlov, ou alguém dos duplos . O que acham?
- Dutlov - responderam as vozes - , os Dutlóv são dos triplos .
E de novo , pouco a pouco , a gritaria levantou-se , e de novo a con­
versa chegou ao caso da serra, da leira de terra no local queimado e de
umas serapilheiras roubadas da casa senhorial . Egor Mikháilovitch
administrava a herdade havia já vinte anos e era homem sábio e ex­
periente . Ficou à espera, a ouvir durante um quarto de hora e, de
repente , mandou-os calar e disse aos três Dutlov para tirarem à sorte .
Cortaram os papelinhos . Khrapkov meteu a mão no chapéu sacudido
e tirou o de Iliuchka. Todos se calaram.
- É o meu? Mostra cá - disse Iliá em voz enrouquecida.
Todos continuavam calados . Egor Mikháilovitch deu ordem para
entregarem no dia seguinte o dinheiro do recrutamento , sete cope­
ques por farm1 ia, anunciou que estava terminada a sessão e mandou
a assembleia dispersar. A multidão foi andando e, dobrada a esquina,
todos puseram os chapéus nas cabeças e recomeçou o barulho dos
passos e das conversas . O administrador ficou no umbral , seguindo
os mujiques com os olhos . Quando os jovens Dutlov desapareceram
atrás da esquina, chamou o velho que não saía do lugar e entrou com
ele no escritório .
- Tenho pena de ti , meu velho - disse Egor Mikháilovitch , sen­
tando-se na poltrona junto à mesa: - Calhou-te a ti . Não vais com­
prar um substituto para o teu sobrinho?
O velho , sem responder, olhou significativamente para Egor Mi­
kháilovitch .
- Não há outra saída - respondeu o administrador, olhando para
o velho .
- Comprava, porque não, mas não tenho dinheiro , Egor Mikhái­
lovitch. Esfolámos dois cavalos no verão . Casei o sobrinho . Quer di­
zer, é o nosso destino, porque vivemos honestamente . Para ele, é fácil
falar. (Lembrou-se de Rezun .)
Egor Mikháilovitch esfregou a cara com a mão e bocejou . Pelos
vistos , já estava farto deste assunto , e estava na hora de tomar chá.
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 29

- Eh , velho , não peques ! - disse ele . - Procura na cave , a ver se


encontras quatro centenas de velhos rublinhos . Arranjo-te um volun­
tário que é uma maravilha. Há dias um homem ofereceu-se .
- No centro? - perguntou Dutlov, tendo em mente a cidade .
- Então , compras?
- Comprava com prazer, Deus é testemunha, mas . . .
Egor Mikháilovitch interrompeu-o severamente:
- Então ouve , meu velho. Para que o Iliuchka não faça mal a si pró­
prio , vais levá-lo logo que eu mandar a ordem, hoje ou talvez amanhã.
Tu levas o rapaz e a responsabilidade é tua, mas , Deus nos guarde, se
lhe acontecer alguma coisa, levo-te o filho mais velho . Ouviste?
- Mas porque é que não se mandam os duplos , Egor Mikháilovitch?
É que isto assim é um grande desgosto - disse o velho depois de al­
gum silêncio . - O meu irmão morreu na tropa, agora levam-me o fi­
lho dele . Qual a minha culpa para expiar este castigo? - disse quase
a chorar e pronto a rojar-se aos pés de Egor Mikháilovitch .
- Vai , velho , vai - disse Egor Mikháilovitch . - Não é possível ,
são regras . Vigia o Iliuchka, és o responsável .
Dutlov foi para casa, batendo pensativamente com o cajado des­
cascado nas pedras do caminho .

No dia seguinte , de manhã cedo , um carrocim (em que o próprio


administrador costumava viajar) atrelado a um cavalo baio de ossos
largos , com o estranho nome de Tambor, estava em frente da entrada
do anexo dos servos domésticos . Aniutka, a filha mais velha de Po­
likei , apesar da chuva misturada com neve e do vento forte , estava
descalça em frente da cabeça do cavalo , mantendo-se o mais longe
possível dele e, com um medo visível , segurando-o com uma mão pe­
la rédea, enquanto a outra mão segurava na cabeça um casaquinho de
cores amarela e verde, que cumpria na farm1ia os papéis de cobertor,
peliça, touca, tapete , casaco de Polikei e ainda muitas outras funções .
No «canto» era uma azáfama. Ainda era escuro; a luz matinal do dia
chuvoso mal penetrava através da janela com papel colado ao vidro
em alguns sítios . Akulina, esquecendo por algum tempo a cozedura e
30 Lev Tolstói

os filhos , os mais pequenos dos quais ainda estavam na cama e tinham


frio porque a peça que lhes servia de cobertor fora tirada para servir
de roupa e substituída pelo xaile da mãe - portanto , Akulina estava
ocupada, preparando o marido para a viagem. A camisa era limpa.
As botas que , como se diz , estavam a rir-se , causavam-lhe uma grande
preocupação . Em primeiro lugar, descalçou as suas únicas meias de
lã grossa e deu-as ao marido; em segundo , conseguiu fazer palmilhas
do suadouro que estivera «mal guardado» na estrebaria e fora trazido
para casa pelo Polikei - as palmilhas tapavam os buracos e iam pre­
servar da humidade os pés do marido . O próprio Polikei , sentado com
os pés na cama, estava a revirar o cinto de modo a não ter o aspeto de
uma corda suja. Entretanto , a miúda ceceante , zangada, com a peliça
que , mesmo lançada sobre a cabeça, se lhe emaranhava nos pés , foi
mandada pedir um chapéu a Nikita. A confusão era maior graças aos
servos que vinham pedir a Polikei que lhes comprasse agulhas , ou
chá, ou azeite barato , ou tabaco e açúcar para a mulher do marceneiro
- esta já tivera tempo de aquecer o samovar e , para abrandar Polikei ,
trouxe-lhe uma caneca de bebida a que ela chamava «chá» . Embora
Nikita se recusasse a emprestar o chapéu e fosse preciso pôr em or­
dem o de Polikei , ou seja, meter dentro os bocados de algodão que
assomavam do forro e coser o buraco com a agulha utilizada na cura
dos cavalos; embora os pés nunca mais se lhe enfiassem nas botas por
causa das palmilhas feitas do suadouro; embora Aniutka gelasse e lar­
gasse a rédea do Tambor e a Machka de peliça tivesse de a substituir
e, como depois a Machka teve de tirar a peliça, lá foi a própria Aku­
lina segurar o Tambor - por fim, Ilitch enfiou no corpo quase toda a
indumentária da farm1ia, deixando apenas o casaquinho e os chinelos ,
sentou-se no carrocim, fechou melhor a peliça, compôs o feno , voltou
a fechar a peliça, ajeitou nas mãos a rédea, fechou a peliça ainda me­
lhor, como o fazem pessoas muito importantes , e partiu .
O seu filho Michka, saindo ao umbral , exigiu que o levasse um
pouco no carrocim . A Machka ceceante também começou a pedir
para «passeai polque não tinha fiio sem peliça» , e Polikei refreou
o Tambor, esboçou o seu sorriso fraco , Akulina pôs no carrocim os
filhos e , ao inclinar-se para ele , disse-lhe em sussurro que não se
esquecesse da promessa e não bebesse pelo caminho . Polikei levou
os miúdos até à cozinha, apeou-os , voltou a agasalhar-se , voltou a
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 31

ajeitar o chapéu e meteu pelo caminho a trote miúdo , imponente ,


com as bochechas a estremecerem nos solavancos e batendo com
os pés na borda da carroça. Nisto , a Machka e o Michka, descalços ,
desataram a correr pela colina escorregadia na direção da casa, com
tanta velocidade e tantos guinchos que um cão , vindo da aldeia para
o quintal dos servos , olhou para eles e , de repente , metendo o rabo
entre as patas , correu como um louco para trás , pelo que os guinchos
dos herdeiros de Polikei se tornaram ainda mais estridentes .
O tempo estava péssimo , o vento cortava a cara, e a neve , ou água­
-neve , começava de vez em quando a fustigar Polikei nas faces e nas
mãos nuas que ele , apertando as rédeas frias , metia nas mangas do
armiak; e batia no couro da coelheira, e na cabeça velha do Tambor
que apertava orelhas e fechava os olhos .
Depois , subitamente , tudo se acalmava, o céu abria-se; as nuvens ,
como neve azulada, destacavam-se nitidamente , e parecia que o sol
espreitava de dentro delas , mas indeciso e triste , como o sorriso de
Polikei . Apesar disto, Polikei estava mergulhado em pensamentos
agradáveis . Ele , a quem queriam deportar, a quem ameaçaram com
o recrutamento , a quem só um preguiçoso não insultava, não batia,
a quem atiravam sempre para os piores lugares - ele , agora, vai
buscar uma importância em dinheiro , uma grande importância, e a
senhora confia nele , e ele está a viajar no carrocim do administrador,
atrelado ao Tambor, em que a própria senhora anda, ele viaja ago­
ra, qual estalajadeiro , com arreios de couro . E Polikei endireitava as
costas , enfiava os tufos de algodão para dentro do chapéu e fechava
melhor a peliça. Aliás , Polikei estava muito enganado ao pensar que
tinha toda a parecença com um estalajadeiro rico . Bem, é verdade , e
qualquer um sabe , que os comerciantes de dez mil de capital também
andam em carroça com arreios de couro; mas só aparentemente se
trata da mesma coisa. Vê-se um viajante barbudo , de cafetã azul ou
preto , com um cavalo bem cuidado , sozinho na carroça, mas basta
olhar para o cavalo dele , se é farto , basta ver se ele próprio come
bem , e qual a sua postura, e como vai atrelado o cavalo , e que aros
têm as rodas , e que cinto aperta a barriga do homem - e logo ve­
mos se o mujique faz comércio de milhares ou de centenas de rublos .
Qualquer pessoa experiente , ao olhar de perto para Polikei , para as
suas mãos , a cara, a barba que há pouco deixou crescer, o cinto , para
32 Lev Tolstói

o feno posto na carroça descuidadamente , para o Tambor magro e


para os aros gastos , perceberia de imediato que era um mísero ser­
vo , e não um comerciante, ou um boiadeiro , ou um estalajadeiro de
mil , cem , dez rublos de capital . Mas Polikei não pensava assim, ia
iludido , agradavelmente iludido . Ia transportar mil e quinhentos ru­
blos guardados no peito . Se quisesse , em vez de -ir para casa, virava
o Tambor para o caminho de Odessa e deixava-se ir ao deus-dará.
Só que não o ia fazer, ia levar e entregar o dinheiro à senhora, e diria
depois : grande coisa, já me calhou andar com dinheirinho bem maior
no bolso . Chegados a uma taberna, o Tambor começou a puxar a ré­
dea esquerda, abrandar o passo e a virar; mas Polikei , embora tivesse
o dinheiro que lhe deram para as compras , fustigou o Tambor com o
chicote e passou ao lado . Fez a mesma coisa junto à outra taberna e , ao
meio-dia, apeou-se da carroça, abriu o portão da casa do comerciante
em que costumava hospedar-se todo o pessoal da senhora, levou o
carrocim para dentro , desatrelou o cavalo , pô-lo ao lado do feno , al­
moçou com os trabalhadores do comerciante , a quem não se esqueceu
de contar que assunto o levava e foi , com a carta dentro do chapéu ,
falar com o jardineiro . O jardineiro, conhecendo bem Polikei , leu a
carta e , com manifesta dúvida, perguntou-lhe se tinha sido mesmo a
ele que mandaram levar o dinheiro. Polikei quis ofender-se , mas não
conseguiu , apenas esboçou o seu sorriso peculiar. O jardineiro releu
a carta e entregou-lhe o dinheiro . Ao recebê-lo , Polikei guardou-o no
peito e foi para o seu alojamento . Nem a cervejaria, nem as tabernas ,
nada o aliciava. Sentia uma agradável irritação em todo o seu ser e ,
por mais de uma vez , parou em frente das vendas com mercadorias
tentadoras: botas , armiakes , gorros , chitas e comidas . E, depois de
ficar parado algum tempo , afastava-se com um delicioso sentimento:
posso comprar tudo , mas não compro . Foi ao mercado comprar o
que lhe encomendaram, cumpriu tudo o que tinha a cumprir e foi ver
uma peliça de pelo para dentro , pediam vinte e cinco rublos por ela.
O vendedor, olhando para Polikei , não acreditava, por todas as ra­
zões , que Polikei pudesse comprá-la; mas Polikei apontou para o pei­
to e disse que , se quisesse , poderia comprar toda a sua mercadoria e
insistiu em experimentar a peliça, amassou a pele , sacudiu-a, soprou
no pelo e , finalmente , despiu-a com um suspiro . «0 preço é puxado .
Podias cedê-la por quinze rublos» , disse . O comerciante, ressentido ,
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 33

tirou-lhe a peliça das mãos , lançando-a por cima do balcão , Poli­


kei saiu e, bem-humorado , dirigiu-se ao seu alojamento . Depois do
jantar, deu de beber ao Tambor, deu-lhe aveia, subiu para o catre do
fogão , tirou o envelope , examinou-o demoradamente e pediu ao es­
talajadeiro alfabetizado que lesse o endereço e as palavras: «com mil
e seiscentos e dezassete rublos em notas bancárias» . O envelope era
de papel simples , os selos eram de lacre cinzento com a imagem de
urna âncora: um grande selo no centro e quatro nas margens; de lado ,
urna gota de lacre que caíra. Polikei examinou e decorou tudo isso ,
e até apalpou os cantos agudos das notas . Experimentava um prazer
infantil ao ver nas mãos um dinheiro tão grande . Enfiou o envelope
no buraco do chapéu , meteu o chapéu debaixo da cabeça e deitou-se;
mas de noite acordou várias vezes e apalpou o envelope . E, de cada
vez , ao encontrar o envelope no lugar, teve a consciência agradável
de que ele , Polikei , coberto de opróbrio e ofendido , estava a transpor­
tar tanto dinheiro e o levava capazmente ao destino - tão bem que
nem o próprio administrador o conseguiria fazer.

Cerca da meia-noite , os trabalhadores do comerciante e Polikei


foram acordados pelas pancadas no portão e por gritos de rnujiques .
Eram recrutas trazidos da Pokróvskaia. Uns dez homens: Khoriúchkin ,
Mitiúchkin e Iliá (sobrinho de Dutlov) , dois substitutos , o regedor elei­
to, o velho Dutlov e os carreteiros . Urna candeia noturna ardia na isbá,
a cozinheira dormia no banco corrido debaixo dos ícones . Saltou do
banco e começou a acender a vela. Polikei também acordou , inclinou­
-se do fogão e olhou para os rnujiques que chegavam. Todos entravam,
se benziam e se sentavam nos bancos . Tranquilos , todos eles , pelo que
era impossível perceber quem trouxera quem. Cumprimentaram, con­
versaram, pediram a ceia. Na verdade, alguns estavam tacitumos e
tristes; mas outros estavam muitíssimo animados , visivelmente bebi­
dos , entre estes o Iliá que , dantes , nunca bebia.
- Então , rapazes , vamos cear ou dormir? - perguntou o regedor.
- Cear - disse Iliá, abrindo a peliça e acomodando-se no banco .
- Manda buscar vodca.
34 Lev Tolstói

- Já chega de vodca para ti - respondeu o regedor descuidadamen­


te e voltou-se para os outros: - Comei pão, rapazes . Não vamos acor­
dar as pessoas .
- Venha a vodca - repetiu Iliá sem olhar para ninguém e , pela
voz dele , ficou claro que não ia desistir.
Os mujiques seguiram o conselho do regedor, tiraram pão das car­
roças , comeram , pediram kvas2 e deitaram-se , alguns no chão , outros
no catre do fogão .
Iliá não deixava de repetir de vez em quando: «Vodca, vodca, ou­
viste? - De repente, viu Polikei: - Polikei Ilitch , eh ! Estás aqui , caro
amigo? É que vou para a tropa, despedi-me para sempre da mãezinha,
da patroa . . . Como ela gritou ! Meteram-me na tropa. Dá cá vodca.
- Não tenho dinheiro - respondeu Polikei . - Se Deus quiser,
ainda te livram por seres incapaz - acrescentou Polikei , tentando con­
solá-lo .
- Não , amigo , tenho uma saúde de ferro , não tenho doenças . Qual
livrar? O czar não pode desejar melhor soldado .
Polikei começou a contar uma história sobre um mujique que deu
dez rublos ao doutor e se safou .
Iliá sentou-se mais perto do fogão , para falar.
- Não , Polikei , acabou , eu próprio não quero ficar aqui . O meu
tio fez com que eu fosse para a tropa. Achas que não pagava se fosse
pelo próprio filho? Tem pena de entregar o filho e de pagar. Entrega­
-me a mim . . . Agora, eu próprio não quero ficar. (Falava baixinho, com
confiança, cheio de uma tristeza branda.) Só tenho pena da mãezinha:
sofre, chora, coitadinha! Também da minha patroa: deram cabo da mu­
lher por nada, fica na desgraça, mulher de soldado, nada a dizer. Seria
melhor se não me tivessem casado . Para quê? Amanhã vêm buscar-me .
- Mas porque é que te trouxeram para aqui tão cedo? - pergun­
tou Polikei . - Assim, sem mais nem menos , de repente . . .
- Tinham medo que eu fizesse qualquer coisa má comigo - res­
pondeu Iliá, sorrindo . - Não , não faço nada. Não fico mal na tropa,
só tenho pena da mãezinha. E porque me casaram, para quê? - disse
baixinho e com amargura.
A porta abriu-se , bateu com força, e o velho Dutlov, sacudindo o
gorro , entrou; tinha nos pés umas alpargatas tão grandes que pare­
ciam barcos .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 35

- Afanássi - disse ele , depois de fazer o sinal da Cruz e dirigindo-


-se ao estalajadeiro - , não tens uma lanterna? Quero dar aveia aos
cavalos .
Dutlov não olhou para Iliá, começou a acender calmamente um to­
co de vela. Tinha as luvas e o chicote metidos por trás do cinto . Man­
tinha a habitual cara de trabalhador tão simples , pacífica e preocupada
só com assuntos práticos que parecia ter chegado com carroças de
mercadoria.
Iliá, ao ver o tio , calou-se , voltou a baixar os olhos , fixando-os no
banco , depois disse ao regedor:
- Ermila, dá aí vodca. Quero beber um copo .
A sua voz era raivosa e sombria.
- Qual vodca a esta hora? - respondeu o regedor, bebendo chá
da chávena. - Não vês que já todos comeram e se deitaram? Porque
é que armas desordem?
A palavra «desordem» , pelos vistos , inspirou a Iliá o desejo de a
criar.
- Regedor, se não me deres vodca, faço alguma.
- Tu , ao menos , podias metê-lo na linha - dirigiu-se o regedor a
Dutlov que já acendera a lanterna, mas pelos vistos parou para ouvir
o que mais ia acontecer, olhando de viés e com compaixão para o
sobrinho , como que espantado com as suas afrontas infantis .
Iliá, cabisbaixo , repetiu:
- Dá cá vodca, senão faço alguma.
- Deixa-te disso , Iliá ! - disse o regedor meigamente . - Franca-
mente , deixa lá isso, é melhor.
Mas ainda não acabara de falar e já Iliá saltava do lugar, batendo
com punho no vidro e gritando com todas as forças:
- Não quereis ouvir, então tomai lá ! - e atirou-se para a outra
janela, querendo parti-la também .
Polikei , de imediato, rodou duas vezes no catre e escondeu-se no
canto do fogão , com o que afugentou todas as baratas . O regedor lar­
gou a colher e precipitou-se para Iliá. Dutlov pousou lentamente a lan­
terna, desapertou o cinto , estalando a língua e abanando a cabeça, e
aproximou-se de Iliá, já engalfinhado com o regedor e o estalajadeiro
que não o deixavam ir à janela. Agarraram-no pelos braços e , aparente­
mente , ficou bem seguro; contudo , mal viu o tio com o cinto nas mãos ,
36 Lev Tolstói

as suas forças decuplicaram, libertou-se e, revirando os olhos , avançou


contra ele de punhos cerrados .
- Não te aproximes de mim, mato-te , seu bárbaro ! Deste cabo da
minha vida, tu e os teus filhos bandidos , deste cabo de mim . Para que
me casaste? Não te aproximes , mato-te !
Iliuchka estava assustador: cara rubra, olhos inquietos ; todo o seu
corpo jovem e saudável tremia como se o acometessem as terçãs .
Dava a impressão de que queria e podia matar todos os três mujiques
que avançavam contra ele .
- Bebes o sangue do irmão , vampiro .
Qualquer coisa brilhou na cara eternamente calma de Dutlov.
- Não quiseste ir a bem . . . - pronunciou e , de repente (donde
lhe veio a energia?) , agarrou com um movimento rápido o sobri­
nho , tombou com ele no chão e , ajudado pelo regedor, começou a
torcer-lhe as mãos . Lutaram cerca de cinco minutos; por fim, Dutlov
levantou-se , apoiando-se nos mujiques , arrancou as mãos de Iliá da
sua peliça, depois levantou Iliá com as mãos atadas atrás das costas e
sentou-o no banco do canto .
- Não te disse que seria pior? - disse , ofegando ainda depois da
luta e compondo o cinto da camisa. - Não peques . Todos acabamos
por morrer. Põe-lhe o armiak sob a cabeça - acrescentou , dirigindo­
-se ao estalajadeiro - , senão , fica com o pescoço dormente . - De­
pois , pegou na lanterna, atou uma corda à cintura em vez do cinto e
foi ver os cavalos .
D e cabelo desgrenhado , cara pálida e a camisa subida sobre a bar­
riga, Iliá passava os olhos pela isbá, como que tentando recordar onde
se encontrava. O estalajadeiro apanhava estilhaços de vidro e tapava
a janela com um casaco para que o vento não entrasse . O regedor
voltou a sentar-se para tomar chá.
- Eh , Iliá, Iliá ! Tenho pena de ti , francamente . Mas nada a fazer !
Olha o Khoriúchkin , também é casado; então , é o destino .
- Estou perdido por culpa do facínora do tio - repetiu Iliá com
uma raiva seca. - Tem pena do que é dele . . . A minha mãe disse que
o administrador lhe mandou comprar um necruta . Não quer, diz que
não arranja tanto . Será que eu e o meu irmão demos pouco à casa
dele? . . . É um facínora !
Dutlov entrou na isbá, rezou perante os ícones , despiu a peliça
e sentou-se ao lado do regedor. A criada serviu-lhe kvas e deu uma
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 37

colher. Iliá calou-se , fechou os olhos e deitou-se sobre o armiak. O


regedor apontou silenciosamente para ele e meneou a cabeça. Dutlov
abanou a mão .
- Achas que não tenho pena? É filho do meu próprio irmão . Não
só tenho pena como , aos olhos dele, ainda por cima fizeram de mim
um facínora. Se calhar foi a patroa dele , uma mulherzinha manhosa,
que lhe meteu na cabeça que temos dinheiro para comprar um necru­
ta . É por isso que me acusa. Mas tenho muita pena do rapaz ! . . .
- Oh , o rapaz é bom ! - disse o regedor.
- Agora não posso fazer nada com ele . Amanhã mando vir o lg-
nat, e a mulher dele também queria vir.
- Está bem, manda-os cá - disse o regedor, levantou-se e trepou
para cima do fogão . - O que vale o dinheiro? O dinheiro é pó .
- Se houvesse dinheiro , quem não o daria? - disse o jornaleiro
do comerciante , levantando a cabeça.
- Eh , dinheiro , dinheiro ! Há muito pecado por causa dele - res­
pondeu Dutlov. - Nada no mundo traz tanto pecado como o dinhei­
ro , já as Escrituras o dizem.
- Foi tudo dito - confirmou o estalajadeiro . - Um homem
contou-me: havia um comerciante que acumulou muito dinheiro e
não quis deixar nada; gostava tanto do seu dinheiro que o levou
consigo para a campa. À hora da morte , mandou pôr no caixão uma
almofadinha. Não adivinharam o que se passava. Depois , os filhos
começaram a procurar o dinheiro: nada . Mas um dos filhos perce­
beu de repente que o dinheiro fora escondido na almofada . O caso
chegou aos ouvidos do czar, deu licença de exumar. Então , o que
achas? Abriram , não encontraram nada dentro da almofada, mas o
caixão estava cheio de cobras ; então , voltaram a enterrá-lo . É isso
que o dinheiro faz .
- É sabido , muito pecado - disse Dutlov, levantou-se e começou
a rezar.
Depois , olhou para o sobrinho . O rapaz dormia. Dutlov aproximou­
-se , desatou-lhe as mãos e deitou-se . Outro mujique foi dormir ao
lado dos cavalos .
38 Lev Tolstói

Quando tudo se silenciou , Polikei , com uma sensação de culpa, des­


ceu devagarinho do catre e começou a preparar as suas coisas . Por
qualquer razão , sentia pavor de dormir ao lado dos recrutas . Os galos
já cantavam, cada vez mais , o Tambor já comera toda a sua aveia e esti­
cava o pescoço até ao bebedouro . Polikei atrelou-o e levou-o para fora,
passando ao lado das carroças dos mujiques . O chapéu , com o seu con­
teúdo, estava intacto , e as rodas do carrocim voltaram a estrondear no
caminho gelado até Pokróvskoe . Polikei só sentiu algum alívio quando
saiu das portas . Antes disso , parecia-lhe que , a qualquer momento, ia
ouvir o barulho da perseguição, que o iam apanhar, maniatá-lo, em vez
do Iliá, e levá-lo, no dia seguinte , para o quartel . Tinha calafrios nas
costas , fosse de frio ou de medo, e não deixava de mexer as rédeas do
Tambor. O primeiro homem com quem se cruzou , vindo em sentido
contrário , foi um padre de gorro alto de inverno , acompanhado pe­
lo criado zarolho . Polikei sentiu um medo ainda maior. Mas , fora de
portas , o medo desapareceu a pouco e pouco . O Tambor, agora, ia a
passo , à frente de Polikei via-se melhor o caminho . Polikei tirou o cha­
péu e apalpou o dinheiro: «Guardo-o no peito? - pensou . - Então ,
será preciso desapertar o cinto . Só desço o declive , vou apear-me ali ,
trato disso. O chapéu foi cozido muito bem em cima e, do forro , por
baixo , não cai . E não tiro o chapéu até chegar a casa.» Depois de des­
cer, o Tambor, sem parar, correu por outra subida, e Polikei , desejando
tanto como o Tambor chegar rapidamente a casa, não lho impediu .
Estava tudo em ordem; pelo menos , assim lhe parecia, e entregou-se
aos sonhos sobre a gratidão da senhora, sobre os cinco rublos que lhe
ia oferecer e sobre a alegria dos familiares . Tirou o chapéu , apalpou
outra vez o envelope , enfiou o chapéu mais fundo e sorriu . O veludo
do chapéu estava podre e , precisamente porque Akulina, na véspera,
cosera cuidadosamente o lugar roto, desfez-se no outro lado , e este
movimento com que Polikei , ao tirar o chapéu às escuras , tentou enfiar
mais fundo no algodão o envelope com o dinheiro , rasgou o chapéu , e
um canto do envelope assomou-se do veludo .
Amanhecia, e Polikei , depois de uma noite sem sono , adormeceu .
Quando puxou o chapéu para a testa, o envelope saiu ainda mais para
fora; Polikei dormitava e batia com a cabeça contra as chedas . Acor-
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 39

dou perto da casa. O seu primeiro impulso foi agarrar-se ao chapéu:


estava lá, seguro na cabeça; nem pensou tirá-lo , tendo a certeza de
que o envelope estava no lugar. Mandou o Tambor para a frente , ajei­
tou o feno na carroça, tomou o mesmo ar altivo de um estalajadeiro
e , olhando com imponência à volta, avançou até à casa.
Eis a cozinha, o anexo dos servos , ali a mulher do marceneiro pas­
sa, levando um montão de tecidos , eis o escritório , a casa da senhora,
em que , daqui a nada, Polikei vai provar que é um homem fiel e
honrado , «qualquer um pode ser caluniado» , e a senhora dirá: «Mui­
to bem, obrigada, Polikei , toma lá três rublos . . . » - ou talvez sejam
cinco , ou dez , e talvez mande ainda que lhe sirvam chá, ou até um co­
pinho de vodca. Depois deste frio não seria mau . Dez rublinhos dão
para a festa e para comprar botas , e devolvem-se , está bem , os quatro
rublos e cinquenta de dívida a Nikita porque não para de o lembrar . . .
Faltavam cerca de cem passos até casa. Polikei fechou melhor a peli­
ça, ajeitou o cinto , a gola, tirou o chapéu , alisou o cabelo e, sem pres­
sa, meteu a mão debaixo do forro . A mão mexeu-se dentro do chapéu ,
mais e mais rapidamente , a outra mão enfiou-se também no algodão;
a cara ficou pálida, cada vez mais pálida, uma das mãos furou o cha­
péu e saiu para fora . . . Polikei , de um pulo , pôs-se de joelhos , parou
o cavalo e começou a procurar na carroça, no feno , entre as compras ,
a apalpar o peito , as calças - o dinheiro não estava.
- Deuses do céu ! Mas o que é isto? ! O que faço agora? -.,--- berrou ,
agarrando-se ao cabelo .
Mas logo a seguir, percebendo que o podiam ver, virou o Tambor
para trás , enfiou na cabeça o chapéu e mandou o cavalo surpreendido
e descontente pelo caminho .
«Detesto andar com Polikei - pensava, pelos vistos , o Tambor.
- Só uma vez na vida me deu de comer e de beber a tempo , e foi
apenas para me enganar perfidamente . Esforcei-me a sério , correndo
para casa ! Estou cansado , mas logo que me cheirou ao nosso feno ,
manda-me para trás ! »
- Vai , seu rocim maldito ! - gritava Polikei com lágrimas n a voz ,
pondo-se em pé na carroça, puxando rédeas e chicoteando o Tambor.
40 Lev Tolstói

10

Durante todo este dia, ninguém em Pokróvskoe viu Polikei . A se­


nhora perguntou por ele várias vezes depois do almoço , Aksiutka não
parava de indagar Akulina; mas Akulina respondia que ainda não vie­
ra, que, pelos vistos , fora atrasado pelo comerciante , ou então tinha
acontecido alguma coisa ao cavalo . «Se calhar, começou a coxear -
disse ela. - Da última vez , o Maksim demorou um dia a chegar,
andou todo o caminho a pé ! » E Aksiutka corria de volta, baloiçando
os seus pêndulos , enquanto Akulina matutava nas razões do atraso do
marido e tentava acalmar-se . . . mas não o conseguia ! Com um aperto
no coração , nenhum trabalho com vista à festa do dia seguinte lhe
saía bem. Sofria ainda mais porque a mulher do marceneiro afirma­
va que vira com os seus próprios olhos : «Um homem parecidíssimo
com o Polikei chegou ao caminho para casa e, de repente, virou para
trás» . As crianças também esperavam pelo paizinho com preocupação
e impaciência, mas por outras razões . Aniutka e Michka ficaram sem
peliça e sem armiak, ou seja, sem a possibilidade de saírem à rua,
nem que fosse por turnos , pelo que eram obrigados a fazer corridas
de roupinha ligeira ao lado da casa e a grande velocidade, com as
quais estorvavam bastante as idas e voltas de todos os habitantes
do anexo . Numa dessas vezes , Machka esbarrou nas pernas da mu­
lher do marceneiro que estava a levar água e , embora ao bater nos
joelhos da vizinha se desfizesse antecipadamente em choro , apanhou
uma tareia com puxões de cabelo e chorou ainda mais . Ora, quando
não esbarrava contra ninguém, irrompia em casa e trepava para o catre
do fogão , pondo-se primeiro em cima da selha. Só a senhora e Akulina
se preocupavam verdadeiramente com Polikei; às crianças interessava
só o que ele levara vestido . Quanto a Egor Mikháilovitch , respon­
dendo à pergunta da senhora: «O Polikei ainda não veio , por onde
andará?» , sorriu e disse: «Não sei dizeD> ; e , por tudo , estava contente
com a justificação das suas previsões . «Deveria ter chegado à hora do
almoço» , observou significativamente . Durante todo o dia ninguém,
em Pokróvskoe , sabia do Polikei; só mais tarde chegou a notícia de
que os mujiques vizinhos o viram a correr pelo caminho , sem chapéu ,
perguntando a todos que passavam: não viram uma carta? Um outro
homem viu-o a dormir na berma do caminho , com a carroça e o cavalo
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 41

amarrado ao lado dele. «Ainda pensei - disse o homem - que es­


tava bêbedo , e o cavalo não tinha comido nem bebido há pelo menos
dois dias ; tinha os flancos cavados .» Akulina não dormiu toda a noite ,
sempre a escutar, mas Polikei não chegou também de noite . Se ela
não tivesse filhos e tivesse um cozinheiro e uma criada, sentir-se-ia
ainda mais amargurada; mas logo que os galos cantaram pela terceira
vez, e a mulher do marceneiro se levantou , Akulina teve de sair da
cama e tratar do fogão . Era um dia festivo , era preciso , antes de o dia
aclarar, tirar pães do forno , preparar kvas , cozer panquecas , ordenhar
a vaca, passar a ferro camisas e vestidos , dar banho a todos os filhos ,
trazer água e não deixar que a vizinha ocupasse todo o fogão . Akuli­
na, sem deixar de estar atenta aos sons de fora, deitou mãos à obra. Já
amanhecera, já os sinos tocavam , já as crianças se tinham levantado ,
e Polikei nunca mais aparecia. Na véspera nevara pela primeira vez , e
a neve cobria irregularmente os campos , o caminho e os telhados; e o
dia, nem de propósito para a festa, era bonito , cheio de sol e frio , via­
-se e ouvia-se muito ao longe . Mas Akulina, junto ao fogão , enfiando
a cabeça na boca do fogão , estava tão ocupada com as panquecas que
não ouviu sequer a chegada de Polikei , e só percebeu que era ele pelos
gritos dos filhos . Aniutka, como mais velha, untou o cabelo e vestiu­
-se sozinha: um vestido novo , de chita cor-de-rosa, ainda não lavado ,
prenda da senhora; o tecido era duro e fazia a inveja dos vizinhos ; o
cabelo da miúda luzia, gastara meio coto da vela a untá-lo , os sapa­
tos não eram novos , mas finos . Machka estava ainda de casaquinho e
suja, e Aniutka não a deixava aproximar-se de si . Machka estava no
terreiro quando o pai chegou com um cartucho de papel na mão . «Ü
paizinho veio ! » , guinchou a miúda, irrompeu como louca pela porta e
sujou Aniutka. Esta, já sem medo de se sujar, deu-lhe uma sova. Aku­
lina não podia largar o seu trabalho . Gritou apenas às filhas: «Alto aí!
Dou-vos uma tareia ! » - e olhou para trás , para a porta. Polikei , com
o cartucho nas mãos , entrou e, de imediato , meteu-se no seu canto .
Pareceu a Akulina que estava pálido e com uma cara de quem chora
ou sorri; mas não tinha tempo para pensar nisso .
- Então , Ilitch , correu tudo bem? - perguntou sem se afastar do
fogão .
Polikei murmurou qualquer coisa que ela não percebeu .
- Então? - gritou . - Já foste falar com a senhora?
42 Lev Tolstói

Polikei estava sentado na cama, olhando loucamente à sua volta


com o seu sorriso culpado e profundamente infeliz . Demorou a res­
ponder.
- Ilitch , ouviste? Porque te atrasaste? - ouviu a voz de Akulina.
- Entreguei o dinheiro à senhora, agradeceu-me muito ! - disse
Polikei de repente e começou a olhar em volta e a sorrir ainda com
maior inquietude . Dois objetos atraíam sobretudo os seus olhos in­
quietos, muito abertos e febris : o bebé e as cordas em que estava
pendurado o berço . Aproximou-se do berço e começou , com os seus
dedos finos , a desatar o nó da corda. Depois os seus olhos pararam
no bebé , mas , de repente, Akulina entrou com panquecas na tábua.
Polikei escondeu rapidamente a corda no peito e sentou-se na cama.
- O que tens , Ilitch , não estás bem? - disse Akulina.
- Não dormi - respondeu .
De repente , qualquer coisa relanceou atrás da janela e , um segundo
depois , a criadita Aksiutka irrompeu no quarto .
- A senhora manda que o Polikei Ilitch vá lá neste mesmo mo­
mento - disse ela. - Agora mesmo , disse Avdótia Nikoláevna . . .
agora mesmo .
Polikei olhou para Akulina, olhou para a rapariga.
- Agora mesmo ! O que quer ainda? - disse ele de maneira tão
simples que Akulina se acalmou: se calhar, quer premiá-lo . - Diz­
-lhe que já vou .
Levantou-se e saiu , Akulina pegou na tina, pô-la no banco , encheu-a
com a água dos baldes que estavam perto da porta e da caldeira aque­
cida no fogão , arregaçou as mangas e verificou a temperatura da água.
- Machka, vem tomar banho .
A miúda, zangada, desfez-se em pranto .
- Vem cá, sua má, depois visto-te uma camisa limpa. Irra, que
teimosa ! Vem cá, ainda tenho de dar banho à tua irmã.
Polikei , no entanto, não foi atrás da criada para falar com a senhora,
mas para outro lugar. No átrio , junto à parede , havia uma escada que
levava ao sótão . Polikei saiu para o átrio, olhou em volta e , vendo que
não havia ninguém, inclinou-se e subiu, quase a correr, esta escada.
- O que é isto , porque é que o Polikei não vem? - disse a senho­
ra com impaciência, dirigindo-se a Duniacha que estava a penteá-la.
- Onde está? Porque não vem?
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 43

Aksiutka correu de novo ao anexo , irrompeu no átrio e exigiu que


Polikei fosse ter com a senhora.
- Há muito que ele foi - respondeu Akulina que , depois de dar
banho a Machka, acabou de sentar na tina o seu bebé de peito e co­
meçou a molhar-lhe o cabelinho ralo , apesar dos seus gritos . O miúdo
gritava, franzia a cara e tentava apanhar qualquer coisa com as mão­
zinhas impotentes . Akulina segurava com a sua mão grande as costas
rechonchudas e as covinhas do bebé e, com a outra, lavava-o .
- Vai ver se não adormeceu algures - disse ela, olhando para trás
com preocupação .
Neste momento , a mulher do marceneiro , de cabelo desgrenhado e
peito aberto, estava a subir, segurando as saias , a escada do sótão, para
tirar da corda lá esticada o seu vestido . De repente , um grito de terror
soou no sótão, e a mulher do marceneiro, como louca, com os olhos
fechados , de cócoras e de costas , não desceu , antes rodou pela escada.
- Ilitch ! - gritou ela.
Akulina soltou a criança.
- Enforcou-se ! - berrou a mulher do marceneiro .
Akulina, sem reparar em que a criança, como uma bolinha, rodou ,
caiu de costas e , com as peminhas para cima, mergulhou com a cabe­
ça na água, correu ao átrio .
- Está . . . na trave - disse entrecortadamente a mulher do marce­
neiro , mas calou-se ao ver Akulina.
Akulina precipitou-se para a escada e , antes de terem tempo de a
deter, subiu e , com um grito terrível , caiu no degrau como um corpo
sem vida, e com certeza teria morrido se as pessoas não acorressem
de todos os cantos e não a segurassem .

11

Durante alguns minutos foi impossível perceber alguma coisa no


meio da azáfama geral . Uma chusma de gente acorreu , todos grita­
vam , todos falavam , as crianças e as velhas choravam , Akulina jazia
sem sentidos . Por fim, os homens , o marceneiro e o administrador,
vindo de urgência, subiram ao sótão , enquanto a mulher do marce­
neiro contava pela vigésima vez que ela, sem desconfiar de nada, foi
44 Lev Tolstói

buscar o mantelete , olhou e: «Vejo um homem em pé; olho melhor


- o chapéu virado ao contrário está no chão . E vejo que os pés dele
baloiçam . Passou-me um frio por todo o corpo . . . Pois é, um homem
enforca-se e tenho de olhar para aquilo . Tombei da escada, nem me
lembro como . Foi um milagre de Deus que me salvou . Verdade das
verdades , Deus valeu-me . Não é uma brincadeira ! A escada é alta !
Senão , teria morrido na queda.»
As pessoas que subiram ao sótão contaram a mesma coisa. Polikei
pendia na trave , vestido só de camisa e calças , na corda que tirara do
berço . O chapéu estava no chão , virado , o armiak e a peliça viam-se
cuidadosamente postos ao lado . Os pés tocavam o chão , mas já não
tinha sinais de vida. Akulina recuperou os sentidos e voltou a atirar­
-se para a escada, mas não a deixaram ir.
- Mãezinha, o Siomka afogou-se - piou de repente , no canto , a
miúda ceceante .
Akulina libertou-se das mãos que a seguravam e correu para o seu
canto . A criança estava de costas na tina, imóvel . Akulina pegou nele ,
mas o bebé já não respirava nem dava sinais de vida. Akulina atirou-o
para cima da cama, apertou as mãos ao queixo e desfez-se nuns risos
tão altos , sonoros e pavorosos que Machka, que de início também
se riu , tapou os ouvidos e, chorando , correu para o átrio . As pessoas
entravam no canto , uivando e chorando . Levaram para fora a criança,
começaram a esfregá-la para a reanimar; mas em vão . Akulina rebo­
lava na cama e gargalhava, de tal modo que todos os que a ouviam se
aterrorizavam. Só agora, vendo esta multidão heterogénea de homens
casados , de velhos e crianças que se apertavam no átrio , se tomava
possível perceber como era grande o número de pessoas e que género
de pessoas morava no anexo dos servos . Todos se azafamavam, to­
dos falavam, muitos choravam , mas ninguém fazia coisa com coisa.
A mulher do marceneiro ainda encontrava pessoas que não tinham
ouvido a sua história e voltava a contar como os seus sentimentos
delicados foram abalados com a descoberta inesperada e como Deus
a salvara da queda da escada. O velho copeiro de camisola feminina
contou sobre uma mulher que , nos tempos do falecido senhor, se afo­
gara no lago . O administrador mandou mensageiros ao comissário
de polícia e ao sacerdote , e pôs guardas à porta. A criada Aksiutka,
com olhos esbugalhados , não deixava de espreitar pela abertura do
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 45

sótão e, embora não distinguisse lá nada, não conseguia desviar os


olhos e voltar para junto da senhora. Agáfia Mikháilovna, antiga cria­
da de quartos da senhora, pedia chá para acalmar os nervos e chorava.
A avó Anna, com as suas mãos experientes , rechonchudas e untadas
de azeite barato , estava a deitar o pequenino falecido na mesinha.
As mulheres rodeavam Akulina e olhavam para ela em silêncio . As
crianças , encostadas aos cantos , olhavam de vez em quando para a
mãe e desatavam a chorar, depois calavam-se , olhavam de novo e
apertavam-se contra a parede ainda mais . Os mujiques e os rapazes
agruparam-se à entrada e , com caras assustadas , espreitavam às jane­
las e às portas , sem verem nem perceberem nada e perguntando uns
aos outros o que se estava a passar. Um disse que o marceneiro cortara
a machado uma perna à mulher. Outro , que a lavandeira dera à luz tri­
gémeos . Um terceiro afirmava que a gata do cozinheiro se enraivece­
ra e mordera toda a gente . Mas , pouco a pouco , a verdade propagou­
-se e, finalmente , chegou aos ouvidos da senhora. E , provavelmente,
não chegaram a prepará-la: o grosseirão do Egor anunciou-lhe tudo
frontalmente e desconcertou os nervos da senhora de tal modo que
nunca mais conseguia recuperar a calma. A multidão , entretanto , já
começava a tranquilizar-se; a mulher do marceneiro aqueceu o samo­
var e preparou chá, e os estranhos , que não foram convidados , acha­
ram inconveniente ficar no anexo . Os rapazinhos armaram uma briga
junto à entrada. Todos já sabiam o que se passara e, benzendo-se ,
estavam a dispersar-se quando , subitamente , se ouviu: «a senhora, a
senhora ! » - e toda a gente voltou a juntar-se e a apertar-se para lhe
abrir caminho , mas todos queriam ver também o que ela ia fazer. A
senhora, pálida e com cara inchada de lágrimas entrou no átrio e de­
pois no canto de Akulina. Dezenas de cabeças olhavam da porta. Uma
mulher grávida foi apertada com tanta força que guinchou , mas logo
a seguir, aproveitando esta circunstância, conseguiu para si um lugar
à frente . A tentação de ver a senhora no canto de Akulina era grande !
Para os servos domésticos era o mesmo que ver fogos de Bengala
no fim de um espetáculo . Os fogos de Bengala ardendo são bons e ,
portanto , o facto de a senhora, vestida de seda e rendas , ter entrado no
canto de Akulina é bom. A senhora aproximou-se de Akulina e pegou­
-lhe na mão; mas Akulina retirou-a com brusquidão . Os velhos servos
abanaram as cabeças com ar de censura.
46 Lev Tolstói

- Akulina ! - disse a senhora. - É s mãe , poupa-te .


Akulina riu-se e levantou-se .
- Os meus filhos são todos de prata, de prata . . . Não aceito papel
- murmurou rapidamente . - Eu disse a Ilitch: não toques no dinheiro
de papel . . . e olha, sujaram-te, sujaram-te com alcatrão . Alcatrão com
sabão , minha senhora. Todas as tinhas saem num -instante . - E voltou
a rir ainda mais .
A senhora olhou para trás e mandou que chamassem o auxiliar
médico com mostarda. «Dai-me água fria» , e começou , ela própria,
a procurar água; mas , ao ver a criança morta e a avó Anna ao lado ,
a senhora voltou-se e todos viram que tapou a cara com um lenço e
chorou . Então , a avó Anna (é pena a senhora não o ter visto: dar-lhe­
-ia o devido valor; foi feito precisamente para ela) cobriu a criança
com um bocado de tecido , ajeitou-lhe a mãozinha com a sua mão
hábil e rechonchuda, e sacudiu a cabeça, estendeu os lábios , apertou
com sentimento os olhos e suspirou - e tudo isso de maneira a que
qualquer um pudesse ver o seu magnífico coração . Mas a senhora não
o viu , e nem sequer podia ver fosse o que fosse . Desatou a chorar,
teve um ataque de histeria, e levaram-na pelos braços para o átrio e
dali para casa. «Então , foi só isso que fez» , pensaram muitos e co­
meçaram a dispersar. Akulina não parava de rir e de dizer disparates .
Levaram-na para outro quarto , sangraram-na, colocaram-lhe emplas­
tros de mostarda, puseram-lhe gelo na testa; mas Akulina continuava
a não compreender nada, não chorava, mas ria, dizia e fazia tais cenas
que a boa gente , tratando dela, não se continha e também ria .

12

Não havia alegria de festa na herdade de Pokróvskoe . Apesar do


tempo maravilhoso , o povo não saía para o passeio festivo; as rapari­
gas não se reuniam para cantar, os rapazes operários vindos da cidade
não tocavam concertina nem balalaica, não se juntavam às rapari­
gas . Ninguém saía dos seus cantos e , se falavam , as conversas eram
baixinhas , como se estivesse presente alguém maldoso que os podia
ouvir. De dia, menos mal . Mas à noite , quando escureceu , os cães
uivaram e o vento , nem de propósito , tomou-se forte e uivou também
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 47

nas chaminés , e os servos apanharam tanto medo que os que tinham


velas acenderam-nas em frente dos ícones ; quem estava sozinho no
seu canto foi pedir pernoita aos vizinhos do lado para ficar ao pé de
muita gente; e quem tinha de ir ao estábulo não foi , deixou nesta
noite as vacas sem alimento . E gastou-se toda a água benta, guardada
por cada um no frasquinho , durante esta noite . Muita gente ouviu até
barulhos , passos pesados no sótão , e o ferreiro viu um dragão a voar
diretamente para o sótão nesta noite . No canto de Polikei não estava
ninguém; as crianças e a louca foram levadas para outros lugares . Só
o bebé falecido ficou ali , e também duas velhas e uma peregrina que ,
zelosa, lia o Livro dos Salmos , mas não sobre o bebé , e sim por causa
de toda essa desgraça. Foi a senhora que assim quis . Estas velhas e a
peregrina ouviram com os seus próprios ouvidos que , mal se lia uma
ka.fisma3 , uma trave começava a tremer ali e alguém gemia. Depois
liam: «que Deus ressuscite» , e logo tudo se acalmava. A mulher do
marceneiro convidou a comadre e, nesta noite , não dormiram e be­
beram todo o chá reservado para uma semana. Também ouviram o
rangido das traves e barulhos como se fossem sacos a cair. Os mu­
jiques de guarda transmitiam aos servos alguma coragem, de outro
modo estes morreriam de medo nesta noite . Os guardas deitaram-se
no átrio , em cima do feno , e depois viriam a afirmar que também
ouviram ruídos misteriosos no sótão , embora nesta mesma noite con­
versassem, na maior das calmas , sobre o recrutamento , mastigassem
pão , se coçassem e, sobretudo , enchessem o átrio com o seu cheiro
especial , de tal modo que a mulher do marceneiro , passando ao la­
do deles , cuspiu e os insultou , chamando-lhes labregos . Fosse como
fosse , o enforcado continuava pendurado no sótão , e foi como se
um espírito maligno cobrisse com a sua asa enorme , nesta noite , o
anexo dos servos , mostrando o seu poder e acercando-se , mais do
que nunca, desta gente . Todos , pelo menos , o sentiram. Não sei se
era verdade . Até acho que não . Creio que , se algum corajoso pegasse
numa vela ou numa lanterna e, depois de se persignar, ou mesmo sem
isso , entrasse no sótão , cortando lentamente o terror da noite com a
luz da vela e alumiando as traves , a areia, a conduta horizontal do
fumo , coberta de teias de aranha, e também os manteletes esquecidos
pela mulher do marceneiro , e chegasse até junto de Polikei e, sem
se deixar dominar pelo medo , levantasse a lanterna ao nível da cara
48 Lev Tolstói

do morto , veria o familiar corpo magro com os pés no chão (a corda


descera) , o corpo sem vida torcido para o lado , com o colarinho da
camisa desabotoado , debaixo da qual não se via a cruz de peito , veria
a cabeça caída para o peito e a cara bondosa com os olhos abertos ,
cegos , e o sorriso meigo , culpado , e uma severa tranquilidade , e si­
lêncio por todo o lado . Em boa verdade , a mulher do marceneiro ,
metida no canto da sua cama, com o cabelo desgrenhado e os olhos
assustados , a contar como ouvia o barulho dos sacos a caírem, tinha
um aspeto muito mais assustador do que Polikei , embora a sua cruz
de peito fosse tirada e posta em cima da trave .
Em cima, ou seja, nos aposentos da senhora, reinava o mesmo
terror que no anexo . No quarto dela cheirava à água-de-colónia e a
medicamentos . Duniacha aquecia cera e fazia um emplastro . Para
que era o emplastro , isso não sei ; mas sei que se fazia sempre um
emplastro quando a senhora adoecia. Neste dia, ficou tão abalada
que adoeceu . Veio uma tia de Duniacha para lhe dar apoio . As quatro
mulheres estavam no quarto das criadas , conversando baixinho .
- Mas quem vai buscar o óleo? - perguntou Duniacha.
- Eu não vou , não me peça - respondeu a segunda criada reso-
lutamente .
- Deixa-te disso , vai com Aksiutka.
- Vou sozinha, não tenho medo de nada - disse Aksiutka, mas
logo a seguir assustou-se .
- Vai , minha querida, pergunta à avó Anna, traz o copo com óleo ,
mas vê lá que não o derrames .
Aksiutka apanhou com uma mão a aba da saia, ficando assim im­
pedida de baloiçar as duas mãos , pelo que abanou só uma, mas com
força duplicada, de través em relação à linha do seu percurso , e arran­
cou a correr. Tinha medo e sentia que , se ouvisse ou visse qualquer
coisa, nem que fosse a sua própria mãe viva, morreria de pavor. Cor­
ria, cerrando os olhos , pelo caminho familiar.

13

«A senhora dorme ou não?» , perguntou de repente ao lado de Ak­


siutka uma grave voz de mujique . Aksiutka abriu os olhos e viu uma
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 49

figura que , ao que lhe pareceu , era mais alta do que o anexo; a rapa­
riga guinchou; ela guinchou e correu para trás tão rapidamente que a
saia se atrasava a voar atrás dela. Ficou de um salto no umbral , saltou
para o quarto das criadas e , vociferando , atirou-se para cima da cama.
Duniacha, a tia e a outra criada ficaram hirtas de medo e , antes de
caírem em si , ouviram os passos pesados e vagarosos no átrio e atrás
da porta. Duniacha correu para o quarto da senhora e deixou cair o
emplastro; a segunda criada escondeu-se atrás das saias penduradas
na parede; a tia, mais resoluta, quis primeiro segurar a porta, mas a
porta abriu-se , deixando passar um mujique . Era Dutlov com os seus
«barcos» nos pés . Sem prestar atenção às raparigas assustadas , pro­
curou com os olhos os ícones , não reparou numa pequena imagem no
canto esquerdo , benzeu-se em frente de um pequeno aparador com
chávenas , colocou o gorro no peitoril da janela e, enfiando bem fundo
uma mão no peito , como se quisesse coçar o sovaco , tirou de lá uma
carta com cinco selos pardos com âncoras gravadas . A tia de Dunia­
cha apertou a mão ao peito . . . Pronunciou a custo:
- Pregaste-me um susto , Naúmitch ! Mal consigo dizer uma pa . . .
lavra. Pensava que era o meu fim.
- Como se pode fazer assim? - disse a segunda rapariga,
assomando-se de trás das saias .
- Assustou também a senhora - disse Duniacha, saindo da porta:
- porque é que entras na parte das raparigas sem pedires licença? É s
mesmo labrego !
Dutlov, sem pedir desculpa, repetiu que precisava de ver a senhora.
- Está adoentada - disse Duniacha.
Neste momento , Aksiutka soltou uma risada tão inconveniente­
mente alta que foi obrigada a esconder outra vez a cara nas almofadas ;
e depois , durante uma hora inteira, apesar das ameaças de Duniacha e
da sua tia, não a levantava sem voltar a rir-se , como se alguma coisa
estivesse a rebentar no seu peito rosado e nas bochechas vermelhas .
Ria tanto que as outras se assustaram - e ela voltava a esconder a
cara e , como que em convulsões , arrastava pelo chão o sapato , e todo
o seu corpo saltitava.
Dutlov parou , olhou com atenção para ela, como que para perceber
o que a rapariga tinha, mas , como não percebeu , virou-lhe a cara e
continuou:
50 Lev Tolstói

- Portantos , é mesmo um assunto importante - disse ele - , di­


gam só que um mujique encontrou uma carta com dinheiro .
- Que dinheiro?
Duniacha, antes de ir anunciar, leu o endereço e fez perguntas a
Dutlov: onde e como encontrou o dinheiro que Polikei devia trazer
da cidade . Depois de se ter informado de tudo em pormenor e de ter
expulsado para o átrio a rapariga corredora que não deixava de rir,
Duniacha foi ao quarto da senhora, mas esta, para o espanto de Du­
tlov, não o recebeu nem disse nada de jeito a Duniacha.
- Não sei nem quero saber - disse a senhora. - Que mujique ,
que dinheiro . . . Não posso nem quero ver ninguém . Que me deixe
em paz .
- E agora, o que é que eu faço? - disse Dutlov, virando o envelo­
pe . - O dinheiro não é pouco . O que está escrito aqui? - perguntou
a Duniacha, e esta voltou a ler para ele o endereço .
Dutlov nem podia acreditar. Tinha a esperança de que o dinheiro
não fosse da senhora e que lhe lessem mal o endereço . Mas Duniacha
confirmou que estava certo . Dutlov suspirou , guardou o envelope no
peito e preparou-se para sair.
- Então , entrega-se à polícia - disse .
- Espera, vou tentar outra vez - travou-o Duniacha, seguindo
com atenção o desaparecimento do envelope no peito do mujique . -
Dá cá a carta.
Dutlov tirou a carta, mas não se apressava a pô-la na mão estendi­
da de Duniacha.
- Diga à senhora que foi o Semion Dutlov que a encontrou no
caminho .
- Está bem , dá-ma lá então .
- Primeiro pensei que era uma simples carta; mas um soldado leu
que tinha dinheiro lá dentro .
- Está bem , dá cá.
- Vim direito aqui , por causa disto nem passei por casa . . . - dis-
se Dutlov, continuando com a preciosa carta na mão . - Diga isso à
senhora.
Duniacha pegou no envelope e foi falar de novo com a senhora.
- Ah , meu Deus ! - disse a senhora com censura. - Não me
fales deste dinheiro . Quando me lembro desse pequenino . . .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 51

- O mujique não sabe a quem deve entregá-lo , minha ama - dis­


se Duniacha.
A senhora desselou o envelope , estremeceu ao ver o dinheiro e
ficou pensativa.
- Dinheiro terrível , tanto mal que este dinheiro fez ! - disse ela.
- Foi o Dutlov, senhora. Quer que ele se vá embora, ou vai sair e
falar com ele? Como é, o dinheiro está todo aqui? - perguntou Du­
niacha.
- Não quero este dinheiro . É um dinheiro terrível . O que ele fez !
Diz-lhe que fique com ele , se quiser - disse de repente a senhora ,
procurando a mão de Duniacha . - Sim, sim , sim - repetiu , vendo
o espanto de Duniacha - , que fique com o dinheiro e faça o que
quiser.
- Mil e quinhentos rublos - observou Duniacha, sorrindo leve­
mente , como a uma criança.
- Que fique com tudo - repetiu a senhora com impaciência. -
Vai lá, ainda não percebeste? Este dinheiro é desgraçado , nunca mais
me fales dele . O mujique que o encontrou que o leve . Vai , vai , por
favor !
Duniacha entrou no quarto das criadas .
- Não falta nenhum no envelope? - perguntou Dutlov.
- Conta-o - disse Duniacha, entregando-lhe o envelope - , dis-
seram que to entregasse .
Dutlov meteu o gorro debaixo do braço , inclinou-se e começou a
contar o dinheiro .
- Não têm ábaco?
Dutlov percebeu assim: que a senhora não sabia contar e mandou
que ele o fizesse .
- Vai contá-lo em casa! É para ti ! O dinheiro é teu ! - disse Du­
niacha com irritação . - Não quero ver este dinheiro à minha frente ,
disse a senhora, dá-o a quem o trouxe .
Dutlov, sem se endireitar, fitou os olhos em Duniacha.
A tia de Duniacha esbracejou .
- Minha nossa Senhora ! Que felicidade Deus te mandou ! Deus
do céu !
A segunda criada não acreditou .
- Avdótia Nikoláevna, não está a brincar?
52 Lev Tolstói

- A brincar ! Mandou entregá-lo ao mujique . . . Bem, toma o di­


nheiro e vai - disse Duniacha, sem esconder o desgosto . - Para um
é desgraça, para outro é uma grande sorte .
- Irra, mil e quinhentos rublos - disse a tia.
- Mais - confirmou Duniacha. - Bem, pões uma vela de dez
copeques a São Nicolau - disse Duniacha com ironia. - Então , estás
atordoado? Ainda se fosse para algum pobre ! Mas a este o dinheiro
não falta.
Dutlov compreendeu finalmente que aquilo não era brincadeira e
começou a juntar e a guardar no envelope o dinheiro que tinha posto
na mesa para contar; mas as mãos tremiam-lhe e não parava de lançar
olhares às raparigas para se convencer de que não estavam a pregar­
-lhe uma partida.
- Olha para ele , tão contente que ele ficou - disse Duniacha,
mostrando que não deixava de desprezar o mujique e o dinheiro . -
Deixa que eu o guardo .
E quis pegar no dinheiro . Mas Dutlov não deixou; amarrotou as
notas , guardou-as no envelope e pegou no gorro .
- Estás feliz?
- Nem sei o que dizer ! É mesmo . . .
Não acabou, abanou a mão , sorriu , por pouco não chorou e saiu .
A sineta tocou no quarto da senhora.
- Então , entregaste?
- Entreguei .
- Ficou muito contente?
- Louco de felicidade .
- Ah , chama cá esse homem . Vou perguntar-lhe como o encon-
trou . Chama-o cá, eu não posso sair.
Duniacha saiu a correr e apanhou o mujique no átrio . Dutlov, sem
chapéu , estava a desatar a sua bolsa do dinheiro , segurando o enve­
lope nos dentes . Talvez lhe parecesse que o dinheiro , enquanto não
estivesse na bolsa dele , ainda não lhe pertencia. Quando Duniacha o
chamou , assustou-se .
- O que é , Avdótia . . . Avdótia Nikoláevna? Quer tirar-mo? Inter­
ceda por mim , por favor, que eu ofereço-lhe mel .
- Ofereces , claro !
A porta voltou a abrir-se , e o mujique foi levado ao quarto da senho­
ra. Para ele , um passo de pouco contentamento . «Oh , vai tirar-mo ! » ,
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 53

pensava, levantando muito os pés , como se andasse pelas ervas altas


e tentando não bater com as alpargatas enquanto atravessava as salas .
Não percebia nada nem via nada à sua volta. Passou um espelho -
um mujique a levantar os pés - , umas flores quaisquer, um senhor
com anel no dedo no quadro , depois uma selha verde , qualquer coisa
branca . . . De repente, a coisa branca começou a falar - era a senhora.
Dutlov não percebia nada, só esbugalhava os olhos . Não sabia onde
estava, e tudo pairava à frente dele como no meio do nevoeiro .
- Foste tu , Dutlov?
- Fui , minha senhora. Não fiz nada com a carta, trouxe-a tal e
qual como a achei - disse ele . - Nem fiquei contente , Deus é teste­
munha ! Esfalfei o cavalo . . .
- Bem, tiveste sorte - disse ela com um sorriso benévolo e des­
denhoso . - Fica, fica com isto .
Dutlov só esbugalhava os olhos .
- Estou contente por o dinheiro ir parar às tuas mãos . Oxalá te
seja útil . Então , estás feliz?
- Estou , como não havia de estar? Muito feliz , minha ama ! Vou
rezar a Deus pela senhora. Dou graças a Deus por termos a nossa
senhora de perfeita saúde . Não tive culpa, juro .
- Como é que o encontraste?
- Portantos , estamos sempre prontos a servir a senhora honesta-
mente , e não como . . .
- Ele está baralhado , senhora - observou Duniacha.
- Fui levar o meu sobrinho recruta, e quando estava de volta en-
contrei esta coisa no caminho . O Polikei deixou-a cair, é de supor.
- Está bem , vai , vai meu amigo . Muito bem .
- Estou contente , minha ama ! . . . - disse o mujique .
Só depois se lembrou de que não agradecera e que não soube falar
com a senhora como era devido . A senhora e Duniacha sorriam, e
Dutlov voltou pelo mesmo caminho e com a mesma forma de andar,
como no meio das ervas altas , mal se contendo para não desatar a
correr a trote . Continuava com aquela sensação de que o iam mandar
parar e tirar-lhe o dinheiro . . .
54 Lev Tolstói

14

Dutlov saiu para o ar livre , afastou-se do caminho até à s tílias e


desapertou o cinto para lhe dar mais jeito de tirar a bolsa e começou
a arrumar o dinheiro . Os seus lábios mexiam-se , ora apertando-se ,
ora esticando-se , sem contudo pronunciar qualquer som . Depois de
guardar o dinheiro e apertar de novo o cinto , benzeu-se e foi andando
pelo carreiro , ziguezagueando como um bêbedo , de tal modo ia mer­
gulhado nos pensamentos que lhe inundavam a mente . De repente ,
viu à sua frente a figura de um mujique que vinha ao seu encontro .
Chamou-o: era Efim , que fazia de guarda, andando com uma moca
na mão à volta do anexo .
- Ah , és tu , tio Semion - disse Efim com alegria, acercando-se
dele . (Efim, ali sozinho , estava com certo medo .) - Então , tio , leva­
ram os recrutas?
- Levámos . E tu , por aqui?
- Pois , puseram-me de guarda ao Polikei enforcado .
- Onde está ele?
- Está ali no sótão , pendurado , dizem - respondeu Efim, apon-
tando no escuro com a moca para o telhado do anexo .
Dutlov olhou na direção apontada pela mão e , embora não visse
nada, franziu a cara, semicerrou os olhos e meneou a cabeça.
- O comissário já veio - disse Efim - , foi o cocheiro que mo
disse . Vão tirá-lo . Que medo , tio , ainda por cima de noite . Não , de
noite , se me mandarem lá, não vou . Nem que Egor Mikháilovitch me
bata até à morte , não vou .
- Pecado , que pecado ! - repetiu Dutlov, pelos vistos por conve­
niência e sem pensar no que estava a dizer, e quis ir rapidamente para
casa. Mas a voz de Egor Mikháilovitch fê-lo parar.
- Eh , guarda, anda cá ! - gritou Egor do umbral .
Efim respondeu .
- Mas que mujique está aí contigo?
- É o Dutlov.
- Vem também , Semion .
Dutlov aproximou-se e enxergou dois homens à luz da lanterna
que o cocheiro empunhava: Egor Mikháilovitch e um funcionário
baixinho de boné com cocar e capote - o comissário da polícia rural .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 55

- O velho também vai connosco - disse Egor Mikháilovitch quan­


do o viu .
O velho afligiu-se; mas nada a fazer.
- E tu , Efim , como és jovem , corre ao sótão onde está o enforca­
do , põe a escada bem a direito para sua senhoria subir.
Efim , que ainda há pouco não queria aproximar-se do sótão por
nada deste mundo , correu para lá, batendo com as alpargatas como
se fossem socos de madeira.
O comissário feriu chispa e acendeu o cachimbo . Vivia a meia
légua dali e acabara de levar uma descompostura severa por parte
do inspetor por motivo de bebedeira, por isso o acometia agora um
ataque de zelo: chegado às dez da noite , quis ver o enforcado de
imediato . Egor Mikháilovitch perguntou a Dutlov o que andava ali a
fazer. Dutlov contou ao administrador sobre o dinheiro encontrado e
do que fizera a senhora. Dutlov disse que viera para pedir a autoriza­
ção de Egor Mikháilovitch . O administrador, para o grande susto de
Dutlov, exigiu que lhe mostrasse o envelope e examinou-o . O comis­
sário também pegou no envelope e, de forma breve e seca, quis saber
os pormenores .
«Pronto , adeus dinheiro» , pensou Dutlov e começou a desculpar­
-se . Mas o comissário devolveu-lhe o dinheiro .
- Que sorte teve este campónio ! - disse .
- Calhou bem - disse Egor Mikháilovitch - , acabou de levar o
sobrinho para o quartel ; agora pode resgatá-lo .
- Pois ! - disse o comissário e avançou .
- Vais livrar o Iliá ou não? - disse Egor Mikháilovitch .
- Como é que posso? Não sei se o dinheiro dá. Talvez já seja
tarde .
- Como queiras - disse o administrador, e ambos foram atrás do
comissário .
Aproximaram-se do anexo onde , no átrio , os guardas malcheirosos
esperavam com a lanterna. Dutlov foi atrás deles . Os guardas tinham
um ar culpado , decerto por causa do fedor que emanava deles , já que
não tinham feito mal nenhum . Todos guardavam silêncio .
- Onde? - perguntou o comissário .
- Aqui - respondeu Egor Mikháilovitch em sussurro . - Efim
- acrescentou - , és jovem, vai à frente com a lanterna !
56 Lev Tolstói

Efim, que havia pouco já compusera em cima uma tábua do soalho ,


parecia ter perdido todo o medo . Subindo dois ou três degraus de uma
vez , trepou a escada com a cara animada, só olhando de vez em vez
para trás e alumiando o caminho ao comissário . Egor Mikháilovitch
ia atrás do comissário . Quando desapareceram em cima, Dutlov, com
um pé posto no degrau , suspirou e parou . Passaram-se dois minutos ,
os seus passos silenciaram-se no sótão; pelos vistos , tinham-se apro­
ximado do corpo .
- Tio ! Estão a chamar-te ! - gritou Efim através do buraco.
Dutlov foi subindo . À luz da lanterna, só via as costas do comis­
sário e de Egor Mikháilovitch atrás de uma trave; a certa distância
estava mais alguém, de costas . Era Polikei . Dutlov passou por cima
da trave e, benzendo-se , parou .
- Virai-o , rapazes - disse o comissário .
Ninguém se mexeu .
Até que um rapaz passou por cima da trave , virou Polikei e pôs-se ao
lado dele, olhando com ar de bastante satisfação ora para o morto , ora
para os chefes , tal como um apresentador, exibindo uma mulher albina
ou a Julia Pastrana4 , lança olhares ora para o público, ora para o objeto
de exibição , pronto a cumprir todos os desejos dos espectadores .
- Vira-o mais uma vez .
Polikei voltou a ser virado , abanou ligeiramente as mãos e arrastou
um pé pela areia.
- Pega nele , puxa-o .
- Quer que cortemos a corda, Vassíli Boríssovitch? - disse Egor
Mikháilovitch . - Chegai aqui o machado , amigos .
Foi preciso repetir a ordem aos guardas e a Dutlov. Quanto ao rapaz
animado , tratava Polikei como a carcaça de um carneiro . Finalmente ,
cortaram a corda, tiraram o cadáver e cobriram-no . O comissário disse
que o médico viria no dia seguinte e mandou as pessoas embora.

15

Dutlov, mexendo os lábios silenciosamente , foi para casa. A princí­


pio estava apavorado , mas o medo desaparecia à medida que se apro­
ximava da aldeia e um sentimento alegre penetrava-lhe cada vez mais
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 57

fundo na alma. Canções e vozes bêbedas chegavam da aldeia. Dutlov


nunca na vida bebeu e também agora foi diretamente para casa. Quan­
do entrou na isbá já era tarde . A sua velha dormia. O filho mais velho
e os netos também, nos catres do fogão; o segundo filho acomodara-se
na despensa. Só a mulher de Iliá não dormia e, de camisa suja, não a
festiva, com o cabelo descoberto , estava sentada no banco e uivava.
Não saiu para abrir a porta ao tio , pôs-se a uivar e a murmurar ainda
mais quando ele entrou . Na opinião da velha, ela carpia com muito
jeito, apesar de não ter ainda prática disso por ser jovem.
A velha levantou-se e pôs o jantar na mesa para o marido . Dutlov
expulsou a mulher de Iliá para longe da mesa. «Chega, chega ! » , disse
ele . Aksínia foi deitar-se no banco , mas não parou de uivar. A velha
pôs e, depois , levantou a mesa em silêncio . O velho também não pro­
nunciou palavra. Rezou a Deus , arrotou , lavou as mãos , tirou de um
prego o ábaco e foi para a despensa. Ali , primeiro cochichou com a
velha, depois a velha saiu , e Dutlov começou a estalar com as contas
do ábaco; por fim, bateu com a tampa do baú e desceu à cave . Demo­
rou muito na despensa e na cave . Quando voltou , já estava escuro na
isbá, a estilha não ardia. A velha, por norma quieta e silenciosa duran­
te o dia, já se deitara e ressonava alto . A mulher de Iliá, durante o dia
barulhenta, também dormia e respirava sem produzir qualquer som .
Dormia no banco corrido , vestida e sem nada para apoiar a cabeça.
Dutlov começou a rezar, depois olhou para a mulher de Iliá, abanou
a cabeça, voltou a arrotar, subiu para o catre do fogão e deitou-se
ao lado do netinho . No escuro , atirou de cima as alpargatas e ficou
deitado de costas , olhando para a trave por cima do fogão , quase invi­
sível , e escutando as baratas que se mexiam na parede , os suspiros , o
ressono , os sons dos pés que se coçavam um contra outro e o barulho
do gado no curral . Nunca mais adormecia: a lua levantou-se , a isbá
iluminou-se um pouco , o velho distinguia Aksínia no canto e mais
alguma coisa que não percebia; era um armiak esquecido pelo filho ,
ou uma selha posta pelas mulheres , ou então alguém de pé . Estava a
dormitar, ou talvez não , só que começou a espreitar . . . Provavelmen­
te , o espírito sombrio que levara o Polikei a cometer o ato terrível ,
o espírito cuja presença os servos domésticos sentiam nesta noite ,
estendeu a sua asa até à aldeia, à isbá de Dutlov onde se guardava o
dinheiro com que ele levara o Polikei à perdição . Pelo menos , Dutlov
58 Lev Tolstói

sentia-o ali e estava aflito . Era-lhe impossível dormir e impossível


levantar-se . Ao ver qualquer coisa que não conseguia definir, recor­
dou o Iliá com as mãos atadas , recordou a cara de Aksínia e o seu
murmúrio , recordou o Polikei com as mãos baloiçando . De repente,
pareceu ao velho que alguém passara ao lado da janela. «0 que é?
Será que o regedor já veio para avisar?» , pensou : «Como é que abriu
a porta?» , pensou , ouvindo passos no átrio . «Será que a velha se es­
queceu de trancar a porta?» O cão uivou nas traseiras , e ele andava
pelo átrio , como o velho viria a contar depois , como se procurasse
a porta, passou ao lado , apalpou de novo a parede , tropeçou na selha, a
selha estrondeou . E começou outra vez a apalpar, como se procurasse
o puxador da porta. Já pegou no puxador. O tremor percorreu o corpo
do velho . Ele puxou a porta e entrou . . . uma figura humana. Dutlov já
sabia que era ele . Quis fazer o sinal da Cruz , mas não conseguiu . Ele
aproximou-se da mesa, arrancou dela a toalha, deitou-a para o chão e
subiu para o fogão . O velho viu que ele tinha a aparência de Polikei .
Ele arreganhava os dentes , os braços pendiam-lhe . Trepou ao catre
do fogão , caiu sobre o velho e começou a estrangulá-lo .
- É o meu dinheiro - disse Polikei .
- Larga-me , não vou . . . - quis e não foi capaz de dizer o velho .
Polikei asfixiava-o com todo o peso de um monte de pedra, premin­
do-lhe o peito . Dutlov sabia: se ler uma oração , ele larga-o - até
sabia que oração devia ser, mas a oração não chegava a pronunciar­
-se . O neto , que dormia ao lado , gritou estridentemente e chorou: o
avô apertara-o contra a parede . O grito da criança libertou a boca do
velho . «Que Deus ressuscite . . . » , pronunciou Dutlov. Ele diminuiu
a pressão . «E os seus inimigos se dispersem . . . » , ceceou Dutlov. Ele
desceu do fogão , Dutlov ouviu-o a bater com ambos os pés no chão .
Dutlov não parava de dizer as rezas que conhecia, dizia-as todas . Ele
foi até à porta, passou ao lado da mesa e bateu tanto com a porta que
toda a isbá estremeceu . Contudo , todos continuavam a dormir, menos
o avô e o neto . O avô dizia as rezas e todo o seu corpo tremia, o neto
chorava, adormecendo , e apertava-se ao avô . Tudo se silenciou de
novo . O velho não se mexia. Um galo cantou atrás da parede , sobre o
ouvido do velho . Ouviu que as galinhas se mexeram, que um galo jo­
vem tentou cantar, secundando o velho , mas não conseguiu . Qualquer
coisa se mexeu aos pés de Dutlov. Era a gata: saltou sobre as patinhas
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 59

macias no chão e começou a miar junto à porta. O velho levantou-se ,


abriu a janela; lá fora era escuro e sujo; a carroça estava debaixo da
janela. Benzendo-se , o velho , descalço , saiu ao terreiro onde estavam
os cavalos: também havia sinais de que o maligno passara por aqui .
A égua debaixo do alpendre emaranhou uma pata na rédea, espalhou
pelo chão a alimpadura e , com uma pata levantada e a cabeça virada,
esperava o dono . O potro caiu no estrume . O velho pôs o potro em pé ,
desenredou a rédea da pata da égua, encheu a gamela e voltou para a
isbá. A velha levantou-se e acendeu a estilha. «Acorda os rapazes» ,
disse Dutlov, «vou à cidade» e , depois de acender uma vela de cera
com a estilha, desceu com ela à cave . Quando saiu , todos os vizi­
nhos já tinham as luzes acesas . Os rapazes levantaram-se , estavam
a preparar-se . As mulheres saíam e entravam com baldes e tinas de
leite . lgnat atrelava a carroça. O segundo filho estava a lubrificar os
eixos da outra. A jovem mulher de Iliá já não uivava, mas , vestida e
com lenço na cabeça, estava sentada no banco , esperando o momento
de partir para a cidade , para se despedir do marido .
O velho parecia mais severo do que nunca. Não disse palavra a nin­
guém , vestiu um cafetã novo , apertou o cinto e, com todo o dinheiro
de Polikei guardado no peito , foi falar com Egor Mikháilovitch .
- Trabalha depressa ! - gritou a Ignat que girava as rodas no eixo
levantado e lubrificado . - Já volto , que esteja tudo pronto !
O administrador acabou de se levantar e estava a tomar chá; tam­
bém ia à cidade para a entrega dos recrutas .
- O que queres? - perguntou .
- Quero , Egor Mikháilovitch , livrar o meu rapaz . Faça-me o fa-
vor. Ontem disse que conhecia um voluntário na cidade . Diga-me
como se faz isso , pois somos uns ignorantes .
- Então , mudaste de ideias?
- Mudei , Egor Mikháilovitch: tenho pena, é o filho do meu ir-
mão . Seja ele como for, dá pena. O dinheiro traz muito pecado . Faça
o favor, ensine-me a fazer as coisas - dizia o velho com vénias pro­
fundas .
Egor Mikháilovitch , como sempre nesses casos , estalou os lábios
muitas vezes e, com ar pensador, depois de ponderar o caso escreveu
dois bilhetinhos e explicou a Dutlov o quê e como devia fazer na
cidade .
60 Lev Tolstói

Quando Dutlov voltou para casa, a mulher de Iliá já partira com


Ignat, e uma égua ruça e barriguda, já atrelada, esperava ao portão .
Dutlov partiu uma vara junto à cerca; fechou a peliça, sentou-se na
carroça e pôs a égua a andar. O velho acelerou tanto na viagem que a
barriga da égua se cavou , e Dutlov evitava olhar para ela, não queria
ter pena do animal . A ideia de chegar de algurri modo atrasado ao
quartel , de o Iliá ficar então na tropa e de o dinheiro maldito ficar nas
suas mãos fazia-o sofrer.
Não vou descrever em pormenor todas as aventuras de Dutlov nes­
sa manhã; digo apenas que teve grande sorte . O patrão a quem levou
o bilhetinho de Egor Mikháilovitch tinha um voluntário absoluta­
mente pronto que já gastara vinte e três rublos e já fora aprovado no
tribunal . O patrão queria por ele quatrocentos rublos , mas o compra­
dor, um citadino que já ia na terceira semana de regateio , pedia que
lho cedesse por trezentos . Dutlov fechou o negócio em duas palavras .
«Trezentos e vinte e cinco» , disse ele , estendendo a mão ao patrão ,
mas a sua expressão dizia que estava pronto a subir o preço . O patrão
não estendia a mão e continuava a insistir em quatrocentos . «Não o
cedes a trezentos e vinte e cinco?» , repetiu Dutlov, apanhando com a
mão esquerda a mão direita do patrão , pronto a bater nela com a sua
direita. «Não cedes? Bem, dou mais ! » , pronunciou de repente , ba­
tendo na mão do patrão e virando-lhe as costas bruscamente . «Então ,
lá terá de ser ! Leva os trezentos e cinquenta. Faz o papel . Traz cá o
rapaz . Agora, toma lá o sinal . Vinte rublos , está bem?»
E Dutlov desapertou o cinto e tirou o dinheiro .
O patrão não retirava a mão , mas também parecia não estar ainda
de acordo e , sem pegar no dinheiro do sinal , pedia gratificações e um
banquetinho para o voluntário .
- Não peques - repetia Dutlov, enfiando-lhe na mão o dinheiro .
- Somos todos mortais - dizia em tom tão meigo , tão sentencioso
e seguro que o patrão concordou:
- Nada a fazer - voltou a bater na mão e começou a rezar. -
Que Deus lhe dê ajuda .
Acordaram o voluntário que dormia ainda, depois da grande bebe­
deira da véspera, examinaram-no , sabia-se lá porquê , e foram todos
juntos à administração . O voluntário estava animado , exigia rum para
matar a ressaca, e Dutlov deu-lhe dinheiro para isso; o rapaz só se
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 61

apoquentou quando entraram no átrio da repartição . O patrão velho


de cafetã azul e o voluntário de peliça curta, de sobrolho levantado e
olhos esbugalhados , ficaram ali muito tempo à espera; cochichavam,
pediam para entrar, procuravam alguém, tiravam os chapéus e faziam
vénias a cada escrivão , e ouviram com ar sério a deliberação trazida
por um escrivão conhecido do patrão . Já tinham perdido esperança de
resolver tudo nesse dia, e o voluntário já se tomava outra vez mais ani­
mado e desembaraçado , mas Dutlov viu Egor Mikháilovitch , agarrou­
-se a ele e começou a pedir e a fazer vénias . Egor Mikháilovitch aju­
dou tão bem que , depois das duas da tarde , o voluntário , para seu
grande desgosto e surpresa, foi introduzido na repartição e no quartel
e , no meio daquela absurda alegria geral , desde os guardas ao próprio
presidente , foi despido , raparam-lhe a cabeça, vestiram-no e puseram­
-no fora; passados cinco minutos , Dutlov contou e entregou o dinhei­
ro, pegou no recibo e, despedindo-se do patrão e do voluntário , foi à
casa do comerciante onde os recrutas de Pokróvskoe se alojavam. Iliá
e a sua jovem mulher estavam sentados num canto da cozinha e, mal
o velho entrou , deixaram de falar e fitaram-no com olhos submissos
e cheios de antipatia. Como sempre , o velho primeiro rezou , depois
desapertou o cinto , tirou um papel e chamou o filho mais velho , lgnat,
e a mãe de Iliá que estavam no pátio .
- Não peques , Iliá - disse , aproximando-se do sobrinho . - On­
tem disseste-me uma palavra que . . . Será que não tenho pena de ti?
Lembro-me como o meu irmão me mandou tratar de ti . Se tivesse
possibilidade , será que te teria entregado? Mas Deus mandou-me fe­
licidade e não poupei dinheiro por ti . Tens aqui o papel - disse ,
pondo o papel na mesa e alisando-o cuidadosamente com os dedos
tortos , inflexíveis .
Todos o s mujiques de Pokróvskoe , os assalariados do comerciante
e até pessoas estranhas entraram na isbá. Já todos pressentiam o que
se passava; mas ninguém interrompeu o discurso solene do velho .
- Está aqui este papel ! Paguei quatrocentos rublos por ele . Não
acuses o teu tio .
Iliá levantou-se , mas continuou calado sem saber o que dizer. Os
seus lábios estremeciam de emoção; a velha mãe foi ao pé de Dutlov,
soluçando , e queria atirar-se-lhe ao pescoço , mas ele afastou-a lenta
e autoritariamente , e continuou:
62 Lev Tolstói

- Ontem disseste-me uma palavra - repetiu - , foi como se


me espetasses uma faca no coração . O teu pai , antes de morrer,
deixou-te aos meus cuidados, foste para mim como o meu próprio
filho mas , se alguma vez te ofendi , lembra-te de que todos somos
pecadores . Não é verdade , cristãos? - dirigiu-se aos mujiques à
sua volta. - Está aqui a tua mãezinha, está aqui a tua jovem patroa,
está aqui o papel . O dinheiro não interessa ! E , a mim , perdoai-me
por amor de Deus .
E o velho , levantando a aba do armiak, pôs-se lentamente de
joelhos diante de Iliá e da sua mulher. Em vão os jovens tentaram
impedi-lo: o velho só se levantou depois de tocar o chão com a fron­
te . Sacudiu o pó e sentou-se no banco. A mãe de Iliá e a jovem mulher
choravam alto de alegria; vozes de aprovação ouviam-se no meio da
multidão . « É assim mesmo , é justo , é como Deus manda» , disse um .
«0 que vale o dinheiro? Com o dinheiro não se compra um rapaz» ,
disse outro . «Que alegria» , disse um terceiro , «homem justo , pala­
vras para quê» . Só os mujiques que foram recrutados não disseram
nada e saíram, em silêncio , para o pátio .
Passadas duas horas , ambas as carroças dos Dutlov saíram do su­
búrbio da cidade . Na primeira, atrelada à égua ruça, com a barriga ca­
vada e o pescoço suado , iam o velho e Ignat. Nas traseiras da carroça
iam molhos , uma marmita e os kalatches5 • Na segunda carroça, que
não ia governada por ninguém, iam a jovem mulher e a sua sogra,
orgulhosas e felizes , com os lenços nas cabeças . A jovem levava uma
garrafa debaixo do avental . Iliá, encolhido e de costas para o cavalo ,
sentado à frente , com a cara avermelhada, mastigava kalatch e falava
sem parar. As vozes , o estrondo das carroças na calçada e o bufar dos
cavalos - tudo se fundia num único som alegre . Os cavalos , abanan­
do os rabos , iam a trote cada vez mais rápido , sentindo a proximidade
da casa. Os transeuntes e viajantes viravam involuntariamente as ca­
beças para aquela farm1ia feliz .
À saída da cidade , os Dutlov começaram a ultrapassar uma leva
de recrutas . Um grupo deles estava em círculo ao lado da taberna.
Um dos recrutas , com aquela expressão antinatural que a testa ra­
pada confere ao homem , lançando para a nuca o boné cinzento , de­
dilhava agilmente a balalaica; outro homem , sem chapéu , com uma
garrafa de vodca na mão , dançava no centro do círculo . Ignat parou
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 63

o cavalo e apeou-se para apertar o tirante . Todos os Dutlov começa­


ram a olhar com curiosidade , aprovação e alegria para o dançarino .
Parecia que o recruta não via ninguém , mas sentia que o públi­
co não deixava de crescer, e isto dava-lhe mais força e agilidade .
O recruta dançava energicamente . Carregava o sobrolho , a sua cara
de faces coradas estava imóvel: um sorriso , que havia muito se tor­
nara inexpressivo , não lhe saía dos lábios . Como se todas as forças
da sua alma estivessem concentradas em pôr com a maior rapidez
os pés ora no calcanhar, ora na ponta . De vez em quando parava,
piscava o olho ao tocador da balalaica, e este punha-se a tilintar
com todas as cordas com maior agilidade ainda e até a tamborilar na
caixa com os nós dos dedos . O recruta parava, mas mesmo imóvel
parecia continuar a dançar. De repente , mexia-se lentamente , estre­
mecendo com os ombros , e de rompante esvoaçava, agachava-se
bruscamente e, aos guinchos loucos , punha-se a dançar, lançando
as pernas para a frente . Os garotos riam , as mulheres abanavam as
cabeças , os homens sorriam com aprovação . Um velho oficial infe­
rior estava calmamente ao lado do dançarino com um ar que dizia:
«para vós é uma surpresa, mas nós há muito que o sabemos de cor
e salteado» . O tocador da balalaica cansou-se , pelos vistos , e olhou
preguiçosamente para trás , fez um acorde falso , bateu de repente
com dedos na caixa e a dança terminou .
- Eh , Aliokha ! - disse o da balalaica ao dançarino , apontando
para Dutlov: - Olha o teu padrinho !
- Onde? Meu caro amigo ! - gritou Aliokha, o recruta comprado
por Dutlov e, cambaleando para a frente nos pés descalços e erguen­
do por cima da cabeça a garrafa de vodca, avançou até à carroça.
- Michka ! Traz um copo ! - gritou . - Patrão ! Meu caro amigo !
Que alegria, a sério ! . . . - exclamou , caindo de cabeça na carroça, e
começou a oferecer vodca aos mujiques e às mulheres . Os mujiques
beberam, as mulheres recusaram. - Meus amigos queridos , com que
vos posso regalar? - exclamava Aliokha, abraçando as velhas .
Havia no meio da multidão uma vendedeira de petiscos . Aliokha
viu-a, arrancou-lhe das mãos o tabuleiro e despejou-o na carroça.
- Não tenhas medo , eu pago , c ' os diabos - berrou com uma voz
lacrimosa e, logo a seguir, tirou das calças um saquinho com dinheiro
e lançou-o a Michka.
64 Lev Tolstói

Apoiando-se na carroça, olhava com olhos húmidos para as pes­


soas lá sentadas .
- Quem é a mãezinha? - perguntou: - É s tu? Uma oferta tam­
bém para ti !
Pensou um segundo , meteu a mão no bolso , tirou de lá um lenço
novo dobrado , depois uma toalha que o cingia debaixo do capote , de­
pois o lenço vermelho do pescoço , amarrotou tudo e pô-lo no regaço
da velha.
- Toma, ofereço-te - disse numa voz que se tomava cada vez
mais baixinha.
- Porquê? Obrigada, querido ! Olha que rapaz sincero - disse a
velha, dirigindo-se a Dutlov que se acercara da carroça dela.
Aliokha já se calara e, enfraquecido , e como que a adormecer, dei­
xava cair a cabeça para o peito .
- Vou para a tropa por vós , estou perdido por vós ! - pronunciou
finalmente . - É por isso que vos dou prendas .
- Também deve ter mãezinha - disse alguém do meio da multi­
dão . - Que sincero é o rapaz , coitado ! Que pena !
Aliokha levantou a cabeça.
- Tenho mãezinha - disse . - Tenho o meu pai . Todos me aban­
donaram . Ouve, minha velha - acrescentou , pegando na mão da mãe
de Iliá. - Ofereci-te uma prenda. Então , ouve , por amor de Cristo:
vai à aldeia Vódnoe , pergunta pela velha Nikonova, é a minha mãe ,
percebes? E diz a essa velha , a Nikonova, é na terceira isbá da aldeia,
com um poço novo . . . diz-lhe que o Aliokha, filho dela, portantos . . .
Eh , músico ! Toca! - gritou ele .
E voltou a dançar, murmurando , e atirou para o chão a garrafa com
restos de vodca .
lgnat entrou na carroça e já ia partir.
- Adeus, que Deus te ajude ! . . . - disse a velha, agasalhando-se
com a peliça.
Aliokha subitamente parou .
- Ide pro diabo - gritou , ameaçando-os com punhos . - Seus
filhos da mãe . . .
- Oh , meu Deus ! - disse a mãe de Iliá, benzendo-se .
lgnat tocou a égua, e as carroças voltaram a andar. O recruta Aliokha
estava no meio do caminho e , apertando os punhos , com a cara enfure­
cida, rogava pragas aos mujiques .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 65

- Porque pararam? Andor ! Diabos , canibais ! - gritou . - Não


vais fugir da minha mão ! Diabos ! Labregos ! . . .
De súbito a voz entrecortou-se-lhe e o rapaz tombou com força na
terra.
Passado um pouco , os Dutlov saíram para o campo e , quando olha­
ram para trás , já não viram a multidão de recrutas . Feita uma légua
a passo , lgnat apeou-se da carroça em que o velho adormecera e foi
pôr-se ao lado da carroça de Iliá.
Beberam, os dois , a garrafa trazida da cidade . Depois , Iliá come­
çou a cantar, as mulheres secundaram-no . Ignat gritava alegremente
ao cavalo , ao ritmo da cantiga. Em sentido contrário ao deles villha
um coche da posta que passou rapidamente . Ao chegar perto das duas
carroças felizes , o cocheiro gritou animadamente aos cavalos ; o car­
teiro olhou para as caras avermelhadas dos mujiques e das mulheres ,
nas carroças aos solavancos , que cantavam com alegria e piscou-lhes
o olho .
O MEDIDOR-DE-LINHO
História de um cavalo

Capítulo 1

O céu elevava-se cada vez mais , a aurora alargava-se , a prata baça


do orvalho alvejava, o crescente perdia a vida, a floresta adquiria
mais sonoridade , as pessoas começaram a levantar-se das camas , e
os bufos , o restolhar da palha e até os relinchos zangados e esganiça­
dos dos cavalos que se apertavam e se zangavam por qualquer razão
ouviam-se cada vez mais na cavalariça senhorial .
- Xó ! Ai que pressa ! Ai que fome ! - disse o velho guardador de
cavalos , abrindo o portão rangente . - Alto ! - gritou , levantando a
mão contra uma égua que se precipitava para a saída.
O guardador Néster estava de cafetã curto , cingido com um cinto
de couro guarnecido de placas , com o chicote ao ombro , e levava pão
numa toalha presa sob o cinto . Nas mãos , uma sela e um freio .
Os cavalos não se assustaram nem se ressentiram com o tom iróni­
co do guardador, fingiram que não se importavam e afastaram-se sem
pressa do portão , e só uma égua velha, baio-escura, de crina basta aper­
tou uma orelha à cabeça e virou-se rapidamente do portão . Nisto , uma
égua jovem que estava atrás dos outros e não tinha nada a ver com isso ,
guinchou e empurrou com a garupa um cavalo mais próximo .
- Xó ! - gritou o campino em voz mais alta e ameaçadora, e foi
a um canto da estrebaria.
Entre os cavalos que estavam no curral (cerca de uma centena) ,
quem manifestava a menor impaciência era um cavalo castrado , de
68 Lev Tolstói

pele malhada, que , sozinho num canto sob o alpendre , com os olhos
semicerrados , lambia um pilar de carvalho . É desconhecido qual o
sabor que o cavalo malhado achava nisso , mas a sua expressão era
séria e pensativa.
- Quieto ! - dirigiu-se o guardador ao malhado , no mesmo tom ,
aproximando-se dele e colocando sobre o estrume a sela e o suadouro
ensebado .
O cavalo malhado parou de lamber e , sem se mexer, dirigiu a Nés­
ter um olhar longo . Não se riu nem se zangou , nem ficou carrancudo ,
apenas a sua barriga se mexeu , ele suspirou penosamente e virou-se
do homem . Este abraçou-lhe o pescoço e pôs-lhe o freio .
- Porque suspiras? - disse .
O cavalo abanou o rabo , como que a dizer: «não é nada, NésteD> .
Néster cobriu-o com o suadouro, pôs a sela, e nisso o cavalo apertou as
orelhas , exprimindo , pelos vistos , o seu desgosto , mas o homem cha­
mou-lhe «canalha» e começou a apertar a barrigueira. O cavalo inchou
a barrig a, mas meteram-lhe um dedo na boca e deram-lhe uma joelhada
na barriga, pelo que teve de soltar o ar. Apesar disto , quando o homem
começou a apertar com os dentes a barrigueira de cima, o cavalo voltou
a colar as orelhas à cabeça e até olhou para trás . Embora soubesse que
seria inútil , achou necessário exprimir o seu desagrado e que o ia ma­
nifestar sempre. Quando foi selado , afastou a pata direita intumescida e
começou a mascar o freio, também por quaisquer considerações espe­
ciais , já que estava farto de saber que o freio era insípido .
Néster meteu o pé no estribo curto , montou o malhado , desenrolou
o chicote , tirou de baixo do joelho a aba do cafetã, tomou na sela
uma posição especial , a do cocheiro , a do caçador, a do guardador
de cavalos , e puxou a rédea. O cavalo levantou a cabeça, mostrou-se
pronto a ir onde o mandassem , mas não começou a andar. Sabia que
antes de partir ainda iam gritar muito na sela, dando ordens a Vaska,
outro guardador, e aos cavalos . De facto , Néster começou a gritar:
«Vaska ! Eh , Vaska ! Deixaste sair as éguas? Onde achas que vais , seu
diabo? Xó ! Estás a dormir ou quê? Abre , que as éguas saiam primei­
ro» e assim por diante .
O portão rangeu , o estremunhado e zangado Vaska, junto ao pos­
te, segurando um cavalo pela rédea, deixou sair as éguas . Umas atrás
das outras , pisando com cuidado a palha e cheirando-a, começ aram a
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 69

passar as éguas jovens , e também os potros de um ano e os de mama,


e as éguas grávidas atravessavam o portão , uma a uma, levando caute­
losamente as suas barrigas . As jovens éguas , por vezes , apertavam-se ,
enfiando-se duas ou três juntas , pondo as cabeças nas costas de outras ,
acelerando o passo sob o portão , pelo que ouviam pragas dos guarda­
dores . Os potros de mama, de vez em quando , atiravam-se para debai­
xo das patas de mães alheias e relinchavam sonoramente em resposta
ao chamamento curto das mães .
Uma jovem égua traquinas , mal saiu fora do portão , dobrou o pes­
coço para o lado , lançou a garupa para cima e guinchou; contudo , não
se atreveu a ultrapassar a velha Grua cinzenta e mosqueada que , ba­
loiçando a barriga de um lado para outro , andava em passo vagaroso ,
pesado e solene , à frente , como sempre , de todos os cavalos .
Em poucos minutos , o curral animado e cheio ficou vazio; os postes
sob os alpendres desertos estavam tristes , via-se só a palha amassada
e coberta de estrume. Por mais habitual que fosse este espetáculo para
o baio malhado, este deserto causou-lhe amargura. Lentamente, como
que fazendo vénias , ele levantou e baixou a cabeça, suspirou até quan­
to lho permitia a barrigueira apertada e, tropeçando com as suas patas
tortas e entorpecidas , arrastou-se atrás da manada, levando nas costas
ossudas o velho Néster.
«Agora, é certo e sabido: quando entrarmos no caminho vai ferir
fogo e fumar o seu cachimbo de madeira engastado em cobre e com
um fio - pensou o cavalo . - Gosto disto porque de manhã, quando
há orvalho , aprecio este cheiro que me lembra muita coisa agradá­
vel ; só um desgosto: com o cachimbo na boca, o velho dá-se muita
importância, orgulha-se não sei de quê , e então senta-se na sela de
lado , e isto nunca falha; e a mim dói-me neste flanco . Mas não faz
mal , estou habituado a sofrer para o prazer dos outros . Até comecei a
ter um certo gosto cavalar nisso . Que se dê ares , coitadinho . Porque
pode enfatuar-se enquanto está sozinho , sem ninguém o ver, então
que fique de lado à vontade» , refletia o cavalo e , no passo cauteloso
das patas tortas , avançava pelo caminho .
70 Lev Tolstói

Capítulo 2

Depois de levar a manada à pastagem da ribeira, Néster apeou-se


e desselou o cavalo . A manada, entretanto , começou a dispersar-se
pelo prado de ervas ainda não pisadas , cobertas de orvalho e do vapor
que se levantava da terra e do rio que contornava· o prado em curva.
Depois de tirar o freio ao malhado, Néster coçou-o debaixo do pes­
coço , e o cavalo , em sinal de gratidão e prazer, fechou os olhos . -
Gostas , seu moinante ! - disse o velho . No entanto , o cavalo não gos­
tava nada dessas coçaduras e só por delicadeza fingia prazer; também
abanou a cabeça, mostrando aprovação . Mas de repente, sem qualquer
motivo , achando pelos vistos que o excesso de familiaridade podia
sugerir ao malhado ideias falsas da sua importância, Néster repeliu a
cabeça do cavalo, levantou a mão e bateu-lhe na pata seca com a fivela
do freio , causando muita dor; depois , sem dizer nada, foi sentar-se no
cepo em cima de um montículo , como era o seu costume .
Embora esta afronta entristecesse o cavalo malhado , não o ma­
nifestou de maneira nenhuma e , abanando lentamente o rabo ralo ,
cheirando qualquer coisa no ar e só por distração tosando ervas , foi
até ao rio . Sem prestar atenção às brincadeiras das jovens éguas , dos
anejos e dos potros de mama, que se deliciavam com a manhã, e
sabendo que o mais saudável , sobretudo na idade dele , era beber pri­
meiro muita água e só depois comer, escolheu um lugar mais baixo
e espaçoso da margem , e, molhando os cascos e as quarteias , meteu
o focinho na água e começou a chupá-la com os seus beiços rotos ,
mexendo os flancos que se enchiam e abanando , com prazer, o rabo
ralo , calvo na base .
Uma égua parda, malandreca, que implicava sempre com o velho e
lhe causava todo o género de desgostos , agora também se aproximou
dele pela água, como quem não quer a coisa, mas com o único fim
de lhe turvar água debaixo do nariz . Mas o malhado já saciara a sede
e, como que ignorando a intenção da égua parda, desatolou as pa­
tas , uma atrás da outra, sacudiu a cabeça e , afastando-se dos jovens ,
começou a comer. Abrindo as patas de várias maneiras , sem pisar
inutilmente as ervas e quase sem levantar a cabeça, comeu três horas
seguidas . Depois de se empanturrar ao ponto de a barriga lhe pender
como um saco cheio nas costelas curvas e magras , fincou as quatro
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 71

patas doridas de modo a sentir a dor o menos possível (sobretudo na


pata direita dianteira, a mais fraca) e adormeceu .
Existe uma velhice majestosa, existe uma velhice repugnante, exis­
te também uma velhice miserável . Mas há uma velhice repugnante e
majestosa ao mesmo tempo . A velhice do cavalo malhado era precisa­
mente deste género.
Era de grande estatura - não menos de sessenta e duas polega­
das . A sua pelagem era de baio-escuro , malhado . Ou seja, era dantes ,
agora as manchas pretas tomaram-se pardas-sujas . Tinha três man­
chas . Uma na cabeça com uma calva curva, ao lado do nariz , indo
até meio do pescoço . A crina comprida, cheia de pegamassas , era
em parte branca, em parte pardacenta. Outra mancha estendia-se ao
longo do flanco direito até meio da barriga. A terceira mancha esta­
va na garupa, apanhando a parte superior do rabo e indo até meio
das coxas . O resto do rabo era esbranquiçado , multicor. A cabeça
grande e ossuda, com cavidades profundas por cima dos olhos e o
beiço preto descaído , rasgado há muito tempo , pendia muito baixa,
pesada, do pescoço curvo , magro , como que de madeira. Por trás do
beiço descaído entreviam-se a língua quase negra, mordida de lado ,
e os restos amarelos dos dentes inferiores gastos . As orelhas , uma
delas rasgada, penduravam-se-lhe e só de vez em quando se mexiam
preguiçosamente , enxotando as moscas importunas . Um tufo ainda
comprido do topete pendia-lhe atrás da orelha, a fronte aberta era
cavada e áspera, a pele descaía como sacos da mandíbula inferior.
No pescoço e na cabeça, os tendões formavam nós que estremeciam
a cada toque das moscas . A expressão da sua cara era rigorosa, pa­
ciente , filosófica e sofredora. As patas dianteiras curvavam-se como
arcos na parte dos joelhos , ambos os cascos tinham inchaços e, na
pata onde a mancha chegava até ao meio , havia uma bossa grande ,
do tamanho de um punho , ao lado do joelho . As patas traseiras eram
mais saudáveis , mas coçadas nas coxas e , pelos vistos , havia muito
que estes lugares já não se cobriam de pelo . Era tão magro que as
patas pareciam incomensuravelmente compridas . A pele estava tão
justa às costelas , embora largas , que parecia colada aos intervalos
entre elas . A cerviz e as costas estavam cheias de marcas de espan­
camentos antigos , e atrás havia ainda uma ferida recente, inchada e
purulenta; a base preta do rabo com vértebras salientes era comprida
72 Lev Tolstói

e quase nua. Na garupa parda, junto ao rabo , havia uma ferida, co­
berta de pelo branco , do tamanho de uma palma de mão, semelhante
a uma mordedura, e outra ferida cicatrizada era visível na omoplata
dianteira. Os joelhos traseiros e o rabo estavam imundos por causa da
diarreia permanente . Por todo o corpo , o pelo , embora curto , eriçava­
-se . No entanto , apesar da velhice abominável deste cavalo , quem o
visse ficava involuntariamente pensativo , e um conhecedor diria de
imediato que , no seu tempo , fora um excelente cavalo .
Um conhecedor diria até que , na Rússia, existia só uma raça que
podia gerar estes ossos largos , estes fémures enormes , estes cascos ,
esta finura dos ossos das patas , esta postura do pescoço , mas sobretu­
do este crânio , este olho , grande , negro e límpido , e estes nós nobres
de tendões junto à cabeça e ao pescoço , e esta finura de pele e pelos .
De facto , havia qualquer coisa majestosa na figura deste cavalo , asso­
ciada a uma assustadora combinação de sinais repugnantes de decre­
pitude , intensificada pelas manchas da pelugem, e das maneiras , da
expressão de altivez e da consciência calma de beleza e força.
Como uma ruína viva, estava ele , sozinho , no meio do prado or­
valhado , e o bater dos cascos , os bufos , os relinchos e os guinchos
jovens da manada ouviam-se não longe dele .

Capítulo 3

O sol já se levantara por cima da floresta e brilhava nas ervas e


nos meandros do rio . O orvalho secava e formava gotas , e o último
vapor matinal dispersava-se, como fumo , perto do pântano e sobre a
floresta. As nuvens encaracolavam-se , mas o vento ainda não soprava.
O centeio em encanamento levantava-se como cerdas verdes atrás do
rio , e cheirava à verdura fresca e à flor. O cuco cuculava em voz en­
rouquecida na floresta, e Néster, deitado de costas , contava os anos de
vida que lhe restavam. As cotovias levantavam-se sobre o centeal e o
prado . Uma lebre descuidada ficou no meio da manada, fugiu e , já em
espaço livre , sentou-se sob um arbusto, escutando . Vaska caiu na mo­
dorra com a cabeça nas ervas , e as éguas , contornando-o , dispersaram­
-se ainda mais pela parte baixa do prado . As velhas , bufando , abriam
um rasto claro nas ervas orvalhadas , escolhendo um lugarzinho onde
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 73

ninguém as incomodasse, mas já não comiam, apenas se deliciavam


com uma ou outra erva saborosa. Toda a manada se deslocava imper­
cetivelmente na mesma direção . E de novo a velha Grua , andando
com imponência à frente de todas , indicava aonde podiam ir. A jovem
Mosca, murzela, mãe pela primeira vez, relinchava sem parar e, levan­
tando o rabo , bufava ao seu pequeno lilacíneo que, com os joelhos tre­
mentes , andava ao seu lado . A Andorinha baio-escura, ainda virgem,
de pele lisa e brilhante como cetim, baixando a cabeça de tal modo que
o topete preto e sedoso lhe cobria a fronte e os olhos , brincava com as
ervas - tosa uma erva e larga-a, bate com o casco molhado de orva­
lho, com a quartela felpuda. Um dos potros de mama mais crescidos,
imaginando pelos vistos um jogo qualquer, levantando como um pe­
nacho o seu curto rabo encaracolado , corre , já pela vigésima sexta vez ,
à volta da mãe que, entretanto, tosa calmamente a erva, já habituada
ao feitio do filho , e só de vez em quando olha para ele de viés com o
seu olho grande e negro . Um dos mais pequenos dos potros de mama,
preto , de cabeça grande , com o topete espetado entre as orelhas , co­
mo que espantado , e o rabinho torcido, ainda como estava na barriga
da mãe , olha fixamente , espetando as orelhas e sem se mexer, para o
brincalhão que salta e recua - talvez com inveja, talvez com censura
e perplexidade: porque é que ele está a fazer aquilo? Alguns estão a
mamar, empurrando a barriga materna com o nariz , outros , sabe-se lá
porquê, apesar dos chamamentos das mães , correm em sentido con­
trário , como que à procura de alguma coisa, e depois , também por
razão desconhecida, param e relincham numa voz desesperadamente
estridente. Alguns potros deitaram-se de lado , juntinhos , outros estão
a aprender a comer erva, ou coçam com a pata traseira atrás da orelha.
Duas éguas grávidas andam afastadas das outras e, mexendo as patas
devagar, ainda estão a comer. Vê-se que outros cavalos respeitam a
situação delas , e nenhum dos jovens se atreve a aproximar-se , a inco­
modar. Mesmo que alguma égua traquinas se lembre de se aproximar
delas , basta um movimento da orelha ou do rabo para lhe mostrar toda
a inconveniência deste comportamento .
As éguas anejas armam-se em grandes e sérias , e raramente sal­
titam ou se juntam aos grupos alegres . Comem ervas cerimoniosa­
mente , fletindo os seus pescoços de cisne de pelo aparado e abanam
os seus espanadores como se fossem rabos a sério . Como as adul-
74 Lev Tolstói

tas , algumas deitam-se , rebolam ou coçam-se umas às outras . A mais


divertida companhia compõe-se de éguas de dois ou três anos e de
éguas virgens . Andam quase todas juntas numa alegre chusma de mo­
ças . B atem os cascos , guincham, relincham, escoiceiam. Juntam-se,
põem as cabeças nas costas umas das outras , cheiram-se , saltitam e às
vezes , soltando um ronco e levantando o rabo , correm a meio-trote ,
orgulhosa e garbosamente , em frente das companheiras . A égua parda
traquinas era a primeira beldade e a grande animadora de toda es­
ta juventude . As outras repetiam tudo o que ela inventava, e toda a
chusma de beldades seguia-a fosse para onde fosse . Nesta manhã, o
estado de espírito da traquinas era mais jocoso do que nunca. A alegria
apoderou-se dela como se apodera, por vezes , dos humanos . Ainda
no rio , depois de brincar com o velho , a égua correu pela água, fez de
conta que se assustou com qualquer coisa, soltou um ronco e galopou
a todo o vapor para o campo , obrigando o Vaska a correr atrás dela e
das suas seguidoras . Depois , a brincalhona comeu um pouco e come­
çou a rebolar-se , a provocar as éguas velhas , passando à sua frente ,
depois enxotou para o lado um potro de mama e pôs-se a correr atrás
dele, fingindo que o ia morder. A mãe do pequeno assustou-se , dei­
xou de comer, o potro gritava em voz lamentosa, mas a serigaita não
lhe fez mal , limitou-se a assustá-lo e a divertir as companheiras que
observavam com interesse as suas traquinices . Depois , lembrou-se de
dar a volta à cabeça de um cavalinho ruço que, além do rio , longe ,
puxava a carroça de um mujique com o arado . A égua parou , estendeu
o pescoço um pouco para o lado , levantou orgulhosamente a cabeça,
sacudiu-se e relinchou em voz doce, tema e arrastada. Este rincho
exprimia o desejo, uma promessa de amor e uma saudade .
Porque também o pinto-bravo , nos juncos espessos , correndo de
um lado para outro , chama apaixonadamente a sua companheira, por­
que o cuco e a codorniz cantam o amor, e as flores no prado mandam
o seu pólen aromático umas às outras .
«Também sou jovem, bonita e forte - soou no rincho da brincalho­
na - , mas não me calhou até agora experimentar o deleite deste sen­
timento , e não só - ainda nenhum amante, nenhum, me conheceu .»
E o rincho significativo propagou-se até longe , pela ribeira e pelo
campo , e chegou aos ouvidos do cavalinho ruço . Levantou as orelhas
e parou . O mujique bateu-lhe com a alpargata, mas o cavalo , encanta-
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 75

do com o argênteo som do rincho longínquo , relinchou em resposta.


O mujique zangou-se , puxou a brida e deu-lhe um pontapé na barriga
tão forte que o cavalo interrompeu o rincho e se pôs a andar. Mas o
cavalinho ruço sentiu uma tristeza deliciosa e , ainda durante muito
tempo , os sons do rincho apaixonado e da voz raivosa do mujique
continuavam a voar do longínquo centeal até à manada.
Se bastou o som daquela voz para o cavalo ruço perder a cabeça
ao ponto de esquecer as suas obrigações , o que faria se visse a bela
traquinas quando esta o chamava, espetando as orelhas , dilatando as
narinas , inspirando o ar, tremendo com todo o seu corpo jovem e
bonito , num ímpeto de corrida?
A traquinas , no entanto , não refletiu muito sobre as suas impres­
sões . Quando a voz do ruço se calou , relinchou ainda um pouco por
gozo , baixou a cabeça e cavou a terra com o casco; depois foi acordar
e provocar o velho malhado . Este , desde sempre , era vítima e alvo de
gozo para a jovem malta feliz. Sofreu mais por causa dela do que por
culpa dos humanos . Ora, nunca fez mal nenhum a uns nem a outros . As
pessoas precisavam dele , e os jovens cavalos , porque o faziam sofrer?

Capítulo 4

Ele estava velho , elas eram jovens , ele estava magro , elas fartas , ele
andava entediado , elas animadas . Portanto , ele era estranho , alheio ,
uma criatura diferente, era impossível ter pena dele . Os cavalos só
têm pena de si próprios e , por vezes , daqueles .com quem se identi­
ficam facilmente . Que culpa tinha o cavalo malhado de estar velho ,
magro e feio? . . . Aparentemente, nenhuma. Mas do ponto de vista dos
cavalos , tinha culpa, e só os outros , fortes , jovens e felizes , tendo toda
a vida pela frente , com cada músculo a tremer de esforço inútil e o
rabo a espetar-se para cima, tinham sempre razão . Se calhar, o próprio
malhado percebia isso e , nos momentos tranquilos , concordava com
a culpa de já ter vivido a sua vida, com a necessidade de pagar por
essa vida; contudo , não deixava de ser cavalo e, muitas vezes , não
continha o ressentimento , a tristeza e a indignação , olhando para toda
essa juventude que o punia pela mesma coisa a que estaria igualmente
sujeita no fim da vida. Outra causa da implacabilidade dos cavalos era
76 Lev Tolstói

o sentimento aristocrático . Todos eles provinham, da parte da mãe ou


do pai , do famoso Natas; ora, o malhado era de uma famfüa desco­
nhecida; o malhado era forasteiro comprado na feira, três anos atrás ,
por oitenta rublos .
A égua parda, como que em passeio , aproximou-se muito do ma­
lhado e empurrou-o . Ele já sabia como era e , sem abrir os olhos , aper­
tou as orelhas e arreganhou os dentes . A égua virou-se de traseiro para
ele e fingiu que lhe ia bater. O malhado abriu os olhos e afastou-se .
Já não tinha sono , começou a comer. A traquinas , acompanhada das
amigas , voltou a aproximar-se dele . Uma égua careca de dois anos ,
muito parva, que sempre e em tudo imitava a égua parda, foi com ela
e, como costumam proceder os imitadores , começou a exagerar no
que fazia a instigadora. A égua parda costumava ir até junto do malha­
do , como que sem segundas intenções , e passar nas barbas do velho ,
sem olhar para ele , pelo que o velho não sabia se devia zangar-se ou
não , e era realmente cómico . Foi o que fez neste momento , mas a ca­
reca, andando atrás dela muito excitada, bateu no malhado com peito .
O cavalo voltou a mostrar os dentes, guinchou e, com uma inesperada
agilidade , atirou-se à égua e mordeu-a na coxa. A careca virou-se e
bateu com força nas costelas magras do velho . Este até rouquejou ,
quis atacar de novo , mas desistiu e , com um suspiro penoso , afastou­
-se . Pelos vistos , todas as jovens da manada consideraram como uma
ofensa pessoal a ousadia que o malhado se permitira em relação à
égua careca e , até ao fim do dia, não o deixaram comer e não lhe
deram sossego nem por um minuto , pelo que o guardador teve de as
chamar à ordem, sem perceber o que se passava com elas . O malhado
estava tão ofendido que , por sua própria vontade , se aproximou de
Néster quando este queria levar a manada para casa, e sentiu-se mais
feliz e confortável quando o selaram e montaram.
Só Deus sabe no que estava a pensar o velho cavalo quando car­
regava nas costas o velho Néster. Talvez pensasse com amargura na
juventude impertinente e cruel , ou , com orgulho desdenhoso e taci­
turno , próprio dos velhos, perdoasse os seus ofensores - o velho
cavalo , no caminho até casa, não manifestou de maneira nenhuma as
suas reflexões .
Nessa noite , os compadres vieram visitar Néster, e este , tocando
a manada ao longo das isbás dos servos domésticos , reparou numa
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 77

carroça com um cavalo junto à sua porta. Meteu com tanta pressa a
manada no curral que deixou o malhado dentro sem lhe tirar a sela;
gritou ao Vaska que o fizesse por ele , trancou o portão e foi ter com os
compadres . Fosse em consequência da ofensa infligida à égua careca,
bisneta do Natas , pelo «enxurro coberto de crosta» , comprado na fei­
ra de cavalos e que não conhecia os seus pais - ofensa, portanto do
sentimento aristocrático de toda a estrebaria; ou fosse porque o cava­
lo malhado com sela alta mas sem cavaleiro apresentava um espetá­
culo estranho , fantástico para outros cavalos - o certo foi que nessa
noite aconteceu uma coisa extraordinária no curral . Todas as éguas ,
jovens e velhas , perseguiam o malhado com os dentes arreganhados ,
correndo atrás dele pelo curral , ouvindo-se o s golpes de cascos nos
seus flancos magros e gemidos graves . O malhado já era incapaz de
suportar aquilo , incapaz de se esquivar dos golpes . Parou no meio
do curral , numa repugnável sanha de velhice impotente , substituída
depois por um desespero estampado na expressão da cara; apertou as
orelhas e fez qualquer coisa que obrigou , de repente , todas as éguas
a ficarem quietas . A égua mais velha, Viazopúrikha , aproximou-se
dele , cheirou-o e suspirou . O malhado também suspirou .

Capítulo 5

A figura alta e magra do cavalo malhado , com o arção da sela co­


mo uma bossa nas costas , estava parada no centro do curral ilumina­
do pela lua. As éguas rodeavam-no , imóveis e silenciosas , como se
acabassem de ouvir dele alguma coisa nova e extraordinária. E era
verdade .
Ficaram a saber o seguinte .

Primeira Noite
- Sim, sou filho do Amável I e da Mulher. Pelo meu pedigree, o
meu nome é o Mujique /, mas entre o povo sou conhecido como
o Medidor-de-Linho , apelidado assim por causa do meu passo largo
e espaçado , não existindo nenhum que se comparasse com ele em
toda a Rússia. Pela linhagem , não há no mundo cavalo de mais pura
raça do que eu . Nunca vo-lo teria dito . Para quê? Não seríeis capazes
78 Lev Tolstói

de me reconhecer, tal como não me reconheceu a Viazopúrikha que


viveu ao meu lado em Khrénovo e que só agora percebeu quem sou .
Nem agora teriam acreditado em mim, se não fosse o testemunho da
Viazopúrikha . Nunca vos teria dito esta verdade porque não preci­
so da compaixão dos cavalos . Mas vós quisestes sabê-lo . Sim, sou
aquele mesmo Medidor-de-Linho , procurado e não encontrado pelos
conhecedores , o mesmo Medidor-de-Linho que foi conhecido pelo
próprio conde e foi tirado da coudelaria e vendido pelo conde porque
ultrapassei na corrida o Cisne , seu favorito .

Quando nasci não sabia o que significava malhado , pensava que


eu era cavalo . A primeira observação feita relativamente à minha
pelagem, lembro-me , afligiu-me profundamente e à minha mãe . Pe­
los vistos, nasci de noite , e de manhã, já lambido pela minha mãe ,
aguentava-me em pé . Lembro-me de que sempre me apetecia alguma
coisa, que tudo me parecia muito surpreendente e , ao mesmo tempo ,
extremamente simples . As nossas baías estavam num corredor com­
prido e quentinho , com portas gradeadas , e via-se tudo através delas .
A minha mãe oferecia-me os mamilos , mas eu era ainda tão ingénuo
que espetava o nariz ora sob as suas patas dianteiras , ora na manje­
doura. De repente , a minha mãe virou a cabeça para a porta gradeada,
passou uma pata por cima de mim e recuou . O moço de estrebaria de
serviço estava a olhar para nós através da grade .
- Olha, a Mulher pariu - disse e começou a destrancar a porta;
passou pela palha fresca e abraçou-me . - Olha, Taráss - gritou - ,
olha que malhado ele é , tal e qual uma pega.
Arranquei , tropecei e caí de joelhos.
- Irra, que diabrete - disse ele .
A minha mãe ficou preocupada, mas não me defendeu , apenas
suspirou com muita tristeza e afastou-se . Os cavalariços vieram, co­
meçaram a observar-me . Um deles foi correndo para avisar o chefe .
Todos riram, olhando para as minhas malhas e davam-me vários no­
mes estranhos . Não só eu , a minha mãe também não compreendia
o significado daquelas palavras . Até esse momento , entre todos os
meus parentes não havia nenhum malhado . Nós os dois não acháva­
mos que houvesse nisso algum mal . Entretanto , toda a gente louvou
a minha força e compleição .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 79

- Olha que agilidade - disse o cavalariça - , não para.


Passado algum tempo , o chefe de estrebaria veio e começou a exi­
bir o seu espanto por causa da minha cor, até parecia aflito .
- A quem é que saiu tão feioso? - disse ele . - O general não
o vai deixar na coudelaria . Eh , Mulher, arranjaste-me sarilhos -
dirigiu-se à minha mãe . - Menos mal se parisses um careca, e não
este malhado !
A minha mãe não respondeu e , como sempre em casos semelhan­
tes , apenas suspirou .
- A quem diabo ele saiu , como um mujique? - continuou o chefe .
- É impossível deixá-lo na coudelaria, é uma vergonha, mas é bom,
muito bom - disse ele , e os outros diziam a mesma coisa, olhando
para mim. Passados alguns dias , o próprio general também veio para
me ver, e de novo toda a gente ficou aterrorizada, não sei porquê, e
descompôs-me , a mim e à minha mãe, pela minha pelagem. «Mas é
bom, muito bom» , repetia qualquer um que me via.
Até à primavera, vivemos na estrebaria das éguas todos separados ,
cada potro com a sua mãe , e só de vez em vez , quando a neve nos
telhados já começava a derreter-se sob o sol , começaram a deixar-nos
sair para o pátio largo coberto de palha fresca, juntamente com as
mães . Então conheci pela primeira vez todos os meus parentes , pró­
ximos e longínquos . Vi todas as éguas famosas daquele tempo , sain­
do de várias portas com os seus potros de mama. Ali estava a velha
Alemã, a Mosca , filha do Natas , a Rubra , a Benévola , égua de sela,
todas as celebridades da época se juntaram ali com os seus filhos ,
passeando sob o sol , rebolando-se na palha fresca e cheirando-se ,
como cavalos simples . Até hoje não esqueço aquele curral cheio das
beldades daquele tempo . É estranho imaginarem que também eu fui ,
em tempos , jovem e ágil , mas é verdade . Também esta Viazopúrikha
estava lá, ainda pequenina, de um ano de idade - querida, alegre e
ágil; contudo , sem ofensa para ela, embora esteja agora a passar entre
vós por uma raridade de puro-sangue , ali era uma das piores crias .
Ela própria pode confirmá-lo .
As minhas malhas , que desagradaram muito às pessoas , provoca­
ram uma grande admiração entre todos os cavalos; todos me rodea­
vam e observavam com prazer, brincavam comigo . Comecei a esque­
cer as palavras das pessoas sobre as minhas malhas e senti-me feliz .
80 Lev Tolstói

Mas não tardei a conhecer a primeira desgraça da minha vida, causada


pela minha mãe . Quando começou o degelo , os pardais chilreavam
sob os alpendres e a primavera já se sentia muito no ar. Então , a minha
mãe começou a mudar muito em relação a mim. O seu feitio tomou­
-se outro: ora começava a brincar sem qualquer motivo , correndo pelo
curral , o que não condizia absolutamente com a sua idade respeitável;
ora ficava pensativa e relinchava; ora mordia e dava coices às suas
irmãs éguas; ora me cheirava e bufava com ar descontente; ora, ao
sair para o sol , punha a cabeça no pescoço da sua prima Mercadora
e coçava, pensativa e prolongadamente , as costas desta, e repelia-me ,
não me deixando mamar. Uma vez , o chefe da estrebaria veio , pôs-lhe
o cabresto , e foi levada para fora. A minha mãe relinchou , respondi­
-lhe e precipitei-me atrás dela; mas a minha mãe nem virou a cabeça
para mim . O cavalariço Taráss apanhou-me , envolvendo-me com os
braços , enquanto estavam a trancar a porta atrás da minha mãe . Dei
um arranque , derrubei o cavalariça na palha - mas a porta já estava
trancada, ouvi apenas o rincho da mãe, cada vez mais distanciado .
E neste rincho já não ouvi o chamamento , exprimia outra coisa. De
longe , uma voz poderosa respondeu-lhe e , como viria a saber mais
tarde , era a voz do Bondoso I que , com dois moços de ambos os lados,
ia ao encontro com a minha mãe . Não me lembro como Taráss saiu
da minha baia: a minha tristeza era grande demais . Senti que perdera
para sempre o amor da minha mãe . Porque sou malhado , pensava eu ,
recordando as palavras das pessoas sobre a minha pelagem, e fiquei
tão zangado que comecei a bater nas paredes da baia com a cabeça e
os joelhos - bati até me cobrir de suor e parar extenuado .
Passado algum tempo , a minha mãe voltou para junto de mim. Ouvi­
-a no corredor a aproximar-se da nossa baia a trote, um passo invulgar
para ela. Abriram-lhe a porta, e não a conheci , de tal modo ficara mais
jovem e mais bonita. Cheirou-me, bufou e começou a relinchar. Vi na
sua expressão que não gostava de mim. Contou-me sobre a beleza do
Bondoso , do seu amor por ele . Estes encontros continuaram, e a rela­
ção entre mim e a minha mãe foi-se tomando cada vez mais fria.
Passado pouco tempo deixaram-nos ir ao prado . A partir daí, co­
nheci novas alegrias que me compensaram da perda do amor da mi­
nha mãe . Agora tinha amigas e amigos , aprendemos juntos a comer
erva, a relinchar como os adultos e , com os rabos levantados , galopar
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 81

à volta das nossas mães . Era um tempo feliz . Perdoavam-me tudo ,


toda a gente gostava de mim, admiravam-me e olhavam com con­
descendência para todas as minhas traquinices . Mas isto não durou
muito . Uma coisa terrível me aconteceu .
O malhado suspirou gravemente e afastou-se dos outros cavalos .
A aurora há muito que ardia no céu . O portão rangeu , Néster en­
trou . Os cavalos dispersaram-se . O guardador ajeitou a sela no ma­
lhado e levou a manada para o pasto .

Capítulo 6

Segunda Noite
Quando os cavalos foram postos no curral , voltaram a juntar-se à
volta do malhado .
- Em agosto , fui separado da minha mãe - continuou o malhado
- , mas não fiquei muito aflito . Vi que ela já estava prenhe do meu
irmão , o famoso Bigodes , e eu próprio já não era o mesmo . Não tinha
ciúmes , tomava-me cada vez mais frio em relação a ela. Além dis­
so, sabia que , privado da mãe , seria transferido para a estrebaria dos
potros , onde vivíamos dois ou três juntos na baía - e todos os dias
a nossa chusma jovem saía para o ar livre . Partilhava a minha baía
com o potro Querido . O Querido era cavalo de sela, mais tarde o im­
perador iria andar nele , e apareceriam os seus retratos nos quadros e
nas esculturas . Naquela altura era ainda um simples potro pequenino ,
com pelo temo e lustroso , pescoço de cisne e patas esbeltas e finas
como cordas . Era alegre , benévolo e amável , sempre pronto a brincar,
a lamber e a pregar partidas a um cavalo ou a um homem. Vivendo
juntos , tomámo-nos amigos , e esta amizade continuou durante toda
a nossa juventude . O Querido era animado e leviano . Já começava
a namoriscar com as jovens éguas e ria-se da minha inocência. Para
minha desgraça, o meu amor-próprio levou-me a imitá-lo e , muito
rapidamente , ganhei gosto pelos namoros . Esta inclinação precoce
foi causa de uma grande mudança do meu destino . Apaixonei-me .
A Viazopúrikha era um ano mais velha do que eu , éramos gran­
des amigos; mas no fim do outono reparei em que ela começou a
evitar-me . . . Bem, não vou contar toda a desgraçada história do meu
82 Lev Tolstói

primeiro amor, ela lembra-se da minha paixão louca cujo final foi a
mais importante mudança do meu destino . Os guardadores de cava­
los começaram a enxotá-la de mim e a bater-me . À noite meteram­
-me numa baia solitária; relinchei toda a noite como que pressentindo
o acontecimento do dia seguinte .
O general , o chefe da estrebaria e os guardadores vieram de ma­
nhã, e no corredor levantou-se uma gritaria terrível . O general ralha­
va com o chefe , o chefe justificava-se , dizendo que tinha proibido
que eu andasse fora, que os guardadores o fizeram sem autorização .
O general disse que ia dar uma boa açoitada a toda a gente , que não
se podiam manter aqui potros desses . O chefe prometeu cumprir as
ordens . A conversa acabou , foram-se embora. Não compreendi nada,
mas senti que estavam a planear qualquer coisa ligada comigo .

No dia seguinte , deixei de relinchar para sempre , tomei-me co­


mo sou agora. Todo o mundo mudou aos meus olhos . Perdi o gosto
por tudo , ensimesmei-me , mergulhei em reflexões . De início , tudo
me parecia repugnante . Deixei de beber, comer e até de andar, e de
brincar nem se fala. Por vezes passava-me pela mente a ideia de es­
coicear, de saltitar, de relinchar; mas logo a seguir surgia a pergunta
terrível: para quê? E as minhas últimas forças desapareciam .
Uma vez levaram-me a passear à noite , quando a manada estava
a voltar do campo . Ainda de longe , vi uma nuvem de poeira e os
contornos vagos das figuras de todas as nossas éguas-mães . Ouvi os
rinchos alegres e o bater dos cascos . Parei , apesar de a corda do ca­
bresto puxada pelo cavalariço me magoar a nuca, e comecei a olhar
para a manada que vinha como quem olha para a felicidade perdida
e irrecuperável . Estavam a aproximar-se , e reconheci-as uma a uma
- figuras tão familiares , bonitas , majestosas , saudáveis e fartas . Al­
gumas éguas viraram as cabeças para mim . Não sentia a dor que me
causavam os puxões do cabresto . Esquecido , relinchei como dantes e
corri a trote; mas o meu rincho soou triste , ridícula e absurdamente .
Na manada ninguém riu - mas reparei que muitas éguas , por con­
veniência, me viraram as costas . Pelos vistos , sentiram repugnân­
cia, pena, vergonha e , sobretudo , pareceu -lhes ridículo olharem para
mim . Era ridículo o meu pescoço fino e pouco expressivo , a minha
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 83

cabeça grande (emagreci naquele tempo) , as minhas patas longas e


desajeitadas , o meu trote que eu , pelo velho hábito , empreendi à volta
do cavalariço . Ninguém respondeu ao meu rincho , tudo me virou as
costas . De repente , percebi tudo , percebi que me tomara alheio; e não
me dei conta de como voltei a casa atrás do cavalariço .
Já antes tinha inclinação para a reflexão séria mas , nesse mo­
mento , uma decisiva reviravolta aconteceu na minha alma . As mi­
nhas malhas , que provocavam nas pessoas um estranho desprezo ,
a minha estranha e súbita desgraça e a minha situação peculiar na
coudelaria, que sentia mas nunca mais conseguia explicar, fizeram
com que me tomasse assim macambúzio , ensimesmado . Refletia na
injustiça dos homens que me censuravam por ser malhado , refle­
tia na inconstância do amor materno e, em geral , feminino , na sua
dependência das condições físicas e, sobretudo , nas características
daquela estranha espécie animal , com que tínhamos ligações tão
estreitas e a que chamávamos «homens» - as características que
condicionavam a especificidade da minha situação na coudelaria,
que sentia mas não compreendia . O significado desta situação espe­
cial e das particularidades humanas em que ela se baseava abriu-se­
-me na ocasião seguinte .
Era no inverno , durante as festas . Durante todo o dia não me deram
de comer nem de beber. Como viria a saber mais tarde , foi porque
o cavalariço estava bêbedo . No mesmo dia, o chefe veio , viu que
não havia ração na manjedoura, insultou o cavalariço ausente com as
mais feias palavras e foi-se embora. No dia seguinte , o cavalariço e
mais um homem chegaram para nos dar feno , e reparei que o primei­
ro estava muito pálido e triste; notei , sobretudo , que nas costas dele
havia qualquer coisa significativa e que metia pena. Atirou com raiva
o feno para trás da grade; estendi a cabeça por cima do seu ombro ,
mas ele deu-me um murro tão forte no focinho que saltei para trás . E
deu-me um pontapé na barriga.
- Tudo por causa deste malhado - disse - , se não fosse ele , não
me teria acontecido nada.
- Mas porquê? - perguntou o outro cavalariço .
- J á s e sabe , nunca vai ver como estão o s cavalos do conde , mas
vê o dele duas vezes por dia.
- Será que lhe deram o malhado?
84 Lev Tolstói

- Venderam, ou talvez oferecessem, só o diabo sabe . Podemos ma­


tar os do conde à fome, não lhe interessa, quanto ao potro dele, en­
raiveceu-se . Deita-te , disse-me ele , e levei uma açoitada das piores . Dá
mais valor ao animal do que ao homem, não tem piedade cristã, bate
e conta as vergastadas , o bárbaro . Nem o general me vergastou assim
alguma vez , deixou-me as costas em carne viva, aquela alma pagã.
Compreendi bem o que eles disseram sobre a açoitada e a piedade
cristã, mas o que significavam as palavras «O dele» e «O potro dele»
- isso , para mim, era incompreensível; percebi apenas que os ho­
mens viam uma ligação qualquer entre mim e o chefe da estrebaria.
Não chegava a perceber em que consistia esta ligação . Compreendi­
-o muito mais tarde , quando fui separado de outros cavalos . Antes
disso , o significado de ser propriedade de um homem estava fora da
minha compreensão . As palavras «O meu cavalo» , dizendo respeito
a mim , um cavalo vivo , pareciam-me tão estranhas como as palavras
«a minha terra» , «O meu ar» , «a minha água» .
Mas estas palavras exerceram em mim uma grande influência. Não
deixava de pensar nisso e só em resultado de longas e variadas rela­
ções com as pessoas percebi finalmente que sentido eles atribuíam
a estas palavras estranhas . Este sentido é o seguinte: os homens não
são guiados , na vida, pelas ações , mas sim pelas palavras . Apreciam
não tanto a possibilidade de fazerem ou não fazerem alguma coisa,
quanto a possibilidade de falarem entre eles de vários assuntos com
palavras convencionais . As palavras consideradas , entre eles , muito
importantes são: meu e minha - e utilizam-nas , falando de várias
coisas , de criaturas vivas e objetos , até da terra, das pessoas e dos
cavalos . Combinam entre eles que só um pode dizer de uma coi­
sa determinada: «é minha» . E aquele que , de acordo com este jogo
convencional , diz «é minha» sobre o maior número de coisas passa,
entre eles , por ser o mais feliz . Porque é assim , não sei , mas é assim
mesmo . Antes , tentei muito explicá-lo , para mim próprio , com algu­
ma vantagem direta, mas afinal não havia nada disso .
Por exemplo , muitas pessoas que me chamavam o «meu cavalo»
não me montavam , eu levava outras pessoas . Quem me dava de co­
mer também eram outros . E não eram elas que me faziam bem , mas
os cocheiros , os curadores e outras pessoas estranhas . Posteriormen­
te , ao alargar o círculo das minhas observações , convenci-me de que
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 85

isso não era só relativamente a nós , os cavalos , que o conceito de


«meu» não tinha outro fundamento a não ser um instinto baixo e
animalesco dos homens chamado por eles «O sentimento ou o direito
de propriedade» . O homem diz: «a casa é minha» - mas nunca vive
nela, só trata da construção e manutenção desta casa. O comerciante
diz: «a minha loja» , «a minha loja de fazendas» , por exemplo - e
não usa roupa da melhor fazenda que se vende na sua loja. Há pes­
soas que dizem «a minha» a respeito de uma terra, mas nunca viram
essa terra, nunca andaram nela. Há pessoas que chamam «suas» ou­
tras pessoas , mas nunca as viram , e toda a relação com elas consiste
em lhes fazerem mal . Há homens que chamam às mulheres «minha
mulher» , ou «minha esposa» , mas estas mulheres vivem com outros
homens . E as pessoas não aspiram a fazer o que acham bom , mas a
chamar «suas» ao máximo de coisas . Tenho agora a certeza de que
é nisso que consiste a diferença mais substancial entre os homens e
nós , os cavalos . Por isso , sem falarmos das outras nossas vantagens
relativamente aos homens , só por esta razão podemos dizer que , na
hierarquia das criaturas vivas , estamos acima dos humanos: a ativi­
dade dos homens (pelo menos , daqueles com quem me calhou lidar)
é dirigida pelas palavras , enquanto a nossa o é pelas ações .
Portanto , o chefe da estrebaria obteve o direito de me chamar o
«meu cavalo» e , por isso , açoitou um cavalariço . Esta descoberta
impressionou-me muito e , juntamente com as ideias e opiniões das
pessoas sobre a minha pelagem malhada, e também o estado pensati­
vo em que entrei em resultado da traição da minha mãe , transformou­
-me no cavalo castrado sério e pensador que agora sou .
Tive uma tripla desgraça: era malhado , era castrado e, finalmente ,
as pessoas consideraram que não pertencia a Deus e a mim próprio ,
como todos os seres vivos, mas era propriedade do chefe da estrebaria.
Para mim, havia muitas consequências desta ideia das pessoas . A pri­
meira: mantinham-me separado, alimentavam-me melhor do que aos
outros , manejavam-me mais vezes na corda e atrelaram-me ao carro
mais cedo - fizeram-no, pela primeira vez , quando ia no terceiro ano
da minha vida. Lembro-me daquela primeira vez, quando o próprio
chefe da estrebaria, aquele que me imaginava como sua propriedade,
começou, juntamente com uma chusma de cavalariços , a atrelar-me ,
prevendo da minha parte violência e resistência. Torceram-me o lábio ,
86 Lev Tolstói

amarraram-me com cordas , pondo-me entre os varais; puseram-me nas


costas uma larga cruz de correias e ataram-na aos varais para eu não
bater com a garupa; mas eu só estava à espera de mostrar a minha von­
tade e o meu amor pelo trabalho .
Eles espantaram-se quando comecei a andar, logo à primeira vez ,
como um cavalo velho . Começaram a adestrar� me , e treinei a an­
dar a trote . Todos os dias fazia novos progressos , pelo que , passados
três meses , o próprio general e muitos outros louvaram o meu passo .
Mas , coisa estranha, precisamente porque imaginavam que eu não
lhes pertencia, mas era do chefe da estrebaria, o meu passo tinha para
eles um significado muito diferente .
Os meus irmãos cavalos eram adestrados na pista, mediam a sua
velocidade , iam vê-los , atrelavam-nos a charretes douradas , cobriam­
-nos com gualdrapas caras . Eu andava com a charrete simples do chefe
quando este ia tratar dos seus assuntos a Tchesmenka e outras granjas .
Tudo isso porque era malhado , mas sobretudo porque , no entender de­
les , não era propriedade do conde, mas do chefe da estrebaria.
Amanhã, se estivermos vivos , conto-vos que consequência princi­
pal teve para mim esse direito de propriedade , imaginado pelo chefe
da estrebaria.
Durante todo esse dia, os cavalos trataram o Medidor-de-Linho com
respeito. Mas Néster continuava a ser bruto . O cavalo ruço do mujique ,
quando se aproximou da manada, relinchou , e a égua parda voltou a
coquetear.

Capítulo 7

Terceira Noite
A lua era nova, e o crescente estreitinho alumiava a figura do Me­
didor-de-Linho no centro do curral . Os cavalos apertavam-se à sua
volta.
- A principal consequência, para mim , de não ser propriedade
do conde , nem de Deus , mas do chefe da estrebaria - continuou
o malhado - foi o facto de a capacidade de correr velozmente , o
nosso maior mérito , se tomar o motivo da minha expulsão . Estavam
a adestrar na pista o Cisne , e o chefe da estrebaria, vindo comigo
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 87

de Tchesmenka, aproximou-se da pista e parou . O Cisne correu ao


nosso lado . Andou bem , mas exibia-se , não tendo aquela destreza
elaborada por mim , quando com o toque no chão de uma pata a outra
se levanta imediatamente e nenhum esforço é feito inutilmente , e
cada esforço nos lança para a frente . O Cisne passou ao nosso lado .
Puxei a charrete para dentro da pista, o chefe não me refreou . «E
se ponho à prova o meu malhado?» , gritou ele , e quando o Cisne
chegou de novo até nós , mandou-me para a frente . O Cisne j á ganha­
ra a velocidade , por isso durante a primeira prova me atrasei dele ,
mas na segunda comecei a aproximar-me , apanhei-o e ultrapassei-o .
Puseram-nos à prova de novo - e aconteceu a mesma coisa. Eu era
mais veloz . O que aterrorizou toda a gente . Resolveram vender-me
para algum sítio muito distante , para que ninguém ouvisse falar mais
de mim . «Senão , o conde fica a saber, e será uma desgraça ! » E fui
cedido a um revendedor, para andar nos varais . Mas passei pouco
tempo com o revendedor. Fui comprado por um hussardo que veio
à procura de cavalos . Tudo isso foi tão injusto , tão cruel que fiquei
contente por ser levado de Khrénovo e separado para sempre de tudo
o que me era familiar e querido . Sentia-me muito mal ao lado deles .
Eles tinham pela frente amor, honras , liberdade , e eu , trabalho e hu­
milhações , humilhações e trabalho - e assim até ao fim da minha
vida ! Por que culpa? Porque era malhado e , em consequência, devia
tomar-me o cavalo de alguém .
O Medidor-de-Linho não podia continuar a sua história nesta noi­
te . No curral , deu-se um acontecimento que alvoroçou todos os cava­
los . A Mercadora , égua grávida que ouvia a história desde o início ,
virou-se de repente e foi lentamente até ao barracão; ali , começou a
gemer tão alto que todos os cavalos repararam nisso; depois deitou­
-se , levantou-se , deitou-se outra vez . As velhas éguas-mães compre­
enderam o que se passava, mas os jovens preocuparam-se e, abando­
nando o malhado , rodearam a doente . De manhã, já havia um novo
potro que cambaleava nas suas patinhas . Néster chamou o chefe da
estrebaria, a égua com o recém-nascido foram levados para a baia, e
os outros cavalos foram para o prado sem eles .
88 Lev Tolstói

Capítulo 8

Quarta Noite
À noite , quando o portão foi trancado e tudo se silenciou , o malha­
do continuou a contar:
- Enquanto passava de umas mãos para outras , observei muito as
pessoas e os cavalos . Os períodos mais longos passei-os nas mãos de
dois donos: do príncipe , oficial hussardo , e depois de uma velha que
vivia perto da igreja de S . Nicolau Aparecido .
Com o oficial hussardo passei o melhor tempo da minha vida.
Embora fosse a causa da minha perdição , embora não amasse na­
da e ninguém , eu gostava dele e gosto dele precisamente por isso .
Agradava-me que fosse bonito , feliz , rico e , por isso , não amasse
ninguém . Os meus amigos compreendem este nosso sentimento su­
blime , o de cavalos . A sua frieza, a sua crueldade , a minha depen­
dência dele comunicavam ao meu amor por ele uma força especial .
Mata-me , esfalfa-me , pensei por vezes nos nossos bons tempos , e
serei ainda mais feliz com isso .
O oficial comprou-me ao revendedor a quem o chefe da estrebaria
me vendera por 800 rublos . Comprou-me porque ninguém tinha cava­
los malhados . Foi o melhor tempo da minha vida. O oficial tinha uma
amante . Eu sabia-o porque todos os dias o levava à casa dela e a levava
também, e às vezes os levava juntos . A sua amante era uma beldade , e
o oficial era um bonitão , e o seu cocheiro era bonito . E gostava deles
todos por causa disso . E vivia bem. A minha vida decorria de modo
seguinte: de manhã, o cavalariço vinha para me limpar, precisamente
o cavalariço , e não o cocheiro . O cavalariço era jovem, dos mujiques .
Abria a porta, deixava sair o ar que cheirava a cavalos , retirava o es­
trume , despia as gualdrapas e começava a escovar o meu corpo e, com
a almofaça, a deitar umas filas de caspa esbranquiçada no chão bati­
do com bicos de ferraduras . Eu mordia, por brincadeira, a sua manga,
batia no chão com o casco . Depois , um atrás do outro , fomos levados
à tina com água fria, e o rapaz olhava com admiração para as minhas
malhas , lisas graças ao seu trabalho , para as patas retas como flechas ,
com os cascos largos, para a garupa e as costas lustrosas , limpas como
a roupa da cama. Punham feno atrás das grades altas , enchiam de aveia
a manjedoura de carvalho . Vinha o Feofan , chefe dos cocheiros .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 89

O dono e o seu cocheiro eram parecidos . Não tinham medo de


nada e não amavam ninguém , ambos , a não ser a si próprios . E por
isso todos gostavam deles . Feofan vestia uma camisa vermelha, cal­
ças de veludo e uma poddiovka6 • Eu gostava quando Feofan , num
dia festivo , com o cabelo untado de pomada e a poddiovka vestida,
entrava na cavalariça e gritava: «Eh , criatura, esqueceste-te?» , e me
empurrava com o cabo de forquilha na anca, mas sem causar-me dor,
só por brincadeira. Eu compreendia a piada e , apertando a orelha à
cabeça, estalava os dentes .
Tínhamos um garanhão murzelo . De noite , às vezes , atrelavam­
-nos juntos . Este Polkan não compreendia as brincadeiras , era sim­
plesmente mau como o diabo . A minha baia era ao lado dele , e às
vezes brigávamos a sério . Feofan não tinha medo dele . Por vezes , o
Polkan ia diretamente contra ele , grita, parecia capaz de o matar, mas
não , não acertava, e Feofan punha-lhe o cabresto . Uma vez , fazendo
parelha, fomos a galope pela rua Kuznétski Most. Nem o dono nem
o cocheiro se assustavam , ambos riam , gritavam aos transeuntes ,
refreavam-nos e viravam-nos , e afinal não atropelámos ninguém .
Ao serviço deles , perdi as minhas melhores qualidades e metade
da minha vida. Por culpa deles , sofri de aguamento , fiquei com as
patas estragadas . E mesmo assim , foi o melhor tempo da minha vida.
Ao meio-dia, os homens untavam-me os cascos , molhavam-me o to­
pete e a crina, atrelavam-me , punham-me entre os varais .
O trenó era de junco entrançado , forrado de veludo , o jaez estava
guarnecido de pequenas placas de prata, as rédeas eram de seda, até
com ornamento , numa certa altura. A atrelagem era tão perfeita que ,
quando todas as correias ficavam ajustadas e fechadas , era impossí­
vel perceber onde acabava o arreio e começava o cavalo . Atrelavam­
-me no barracão . Feofan chegava: o traseiro mais largo do que os
ombros , um cinto vermelho apertado sob os sovacos ; examinava a
atrelagem , sentava-se , ajeitava o cafetã, punha o pé no estribo , dizia
alguma piada (isso nunca faltava) , pendurava o chicote (quase nunca
me chicoteava, era só por conveniência) e dizia: «Anda ! » Então , saía
do portão , brincando a cada passo que dava, e a cozinheira que ia des­
pej ar a lavadura parava à porta, e os mujiques que trouxeram a lenha
esbugalhavam os olhos . Transpúnhamos o portão , dávamos alguns
passos e parávamos . Os lacaios saíam , os cocheiros aproximavam-se ,
90 Lev Tolstói

começavam a conversar. Depois esperávamos , por vezes ficávamos


ali durante três horas , de vez em quando dávamos uma volta, regres­
sávamos e parávamos de novo .
Por fim, ouvia-se um barulho à porta, e o Tíkhon grisalho , barrigu­
do , de casaca, saía a correr: «Chega a carruagem ao senhor ! » Naquela
altura, não havia essa maneira idiota de dizer «avante ! » , como se eu
não soubesse que se anda para a frente, e não para trás . Feofan esta­
lava os lábios . Acercávamo-nos da porta, e Feofan apeava-se rápida
mas despreocupadamente, como se não houvesse nada de especial na­
quele trenó , naquele cavalo nem em Feofan que curvava as costas e
estendia os braços até mais não poder, e aparecia o príncipe de kíver7
e capote com a gola cinzenta de castor que lhe tapava a cara bonita,
de bochechas coradas e sobrolho negro (não valeria a pena tapar uma
cara como esta) , tinindo com o sabre , as esporas e os reforços de cobre
das galochas , andando pelo tapete , como se tivesse pressa e sem nos
prestar atenção , a mim e a Feofan , embora toda a gente nos olhasse
e admirasse , menos ele . Feofan estalava os lábios , puxava a brida e
aproximávamo-nos do príncipe a passo , honradamente , e parávamos ;
e u olhava de esguelha para o príncipe , sacudia a minha cabeça nobre e
o topete fino . O príncipe estava de bom humor, brincava com Feofan ,
este respondia, virando ligeiramente a sua bela cabeça e, sem baixar
as mãos , fazia um movimento impercetível , compreensível para mim,
mexendo a rédea, e então - um, dois , três - , num passo cada vez
mais largo , tremendo com cada músculo e atirando neve misturada
com lama de baixo do trenó , ia em frente . Também não havia, naquele
tempo , essa nova maneira de gritar: «Üi ! » , como se o cocheiro tives­
se dores ; gritava-se: «Afasta, cuidado ! » «Afasta, cuidado ! » , gritava
o Feofan , e o povo abria-nos caminho e parava, e torcia o pescoço ,
olhando para o belo cavalo , o belo cocheiro e o belo senhor.
Gostava de ultrapassar um trotador que aparecesse . Por vezes
calhava-nos , a mim e a Feofan , enxergar de longe um tiro digno de
nosso esforço e então , voando como o vento , íamo-nos aproximando
cada vez mais , e já eu começava a lançar lama para as traseiras do
outro trenó , já estava ao lado do passageiro e bufava por cima da sua
cabeça, depois chegava até ao cilhão do outro cavalo , até ao arco , e já
não o via, só ouvia atrás de mim o seu barulho cada vez mais longín­
quo . O príncipe , Feofan e eu íamos calados , fingindo que aquilo não
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 91

nos interessava, que íamos simplesmente tratar da nossa vida e que


nem reparámos naquela gente que viajava com cavalos fracos . Gos­
tava de ultrapassar os outros , mas gostava também de me encontrar
com um bom trotador: um momento , um som , um olhar - e já nos
separávamos , e cada um ia na sua direção .
O portão rangeu , e ouviram-se as vozes de Néster e Vaska.

Quinta Noite
O tempo começou a mudar. O céu estava nublado , de manhã não
havia orvalho , mas o ar era tépido , e as melgas picavam muito . Mal
a manada foi trazida para casa, os cavalos juntaram-se à volta do
malhado , e ele contou o final da sua história.
- A minha vida feliz não durou muito . Vivi assim apenas dois anos .
No fim do segundo inverno , houve o mais feliz acontecimento e a se­
guir a maior desgraça da minha vida. Foi no Entrudo , levei o príncipe
para as corridas . O Cetim e o Novilho participavam nestas corridas .
Não sei o que o príncipe fez no pavilhão , sei apenas que mandou Feo­
fan entrar na pista. Lembro-me que fui levado para a pista, fui posto no
ponto de partida, e o Cetim também. O Cetim ia acompanhado por um
assistente; eu , simplesmente, atrelado ao trenó de passeio . Na viragem,
ultrapassei-o; fui premiado por risos e rugidos de admiração .
Quando me passearam, uma multidão ia atrás de mim. Não menos
do que cinco pessoas ofereciam ao príncipe milhares de rublos por
mim. Mas ele apenas se ria, mostrando os seus dentes brancos .
- Não - respondia - , não é um cavalo , é um amigo , nem que
me oferecessem montes de ouro por ele , não aceitava. Adeus, meus
senhores - e , depois de abrir o avental , sentou-se no trenó .
- Para a Stójinka - disse . Ou seja, para casa da sua amante . E
corremos . Foi o nosso último dia feliz .
Chegámos a casa dela . O príncipe chamava-lhe «minha» . Mas ela
apaixonou-se por outro e foi-se embora com ele . O príncipe ficou a
sabê-lo quando chegámos . Eram cinco da tarde , não me desatrela­
ram, fomos atrás dela. E aconteceu o que nunca antes acontecera:
chicoteavam-me e mandavam-me a galope . Pela primeira vez na
vida tropecei , tive vergonha e quis acertar o passo , mas de repente
ouvi o príncipe a gritar com uma voz alterada: «Rápido ! » . O chi­
cote assobiou , a dor era cortante , e galopei , batendo com a pata no
92 Lev Tolstói

ferro do trenó . Fizemos cinco léguas , apanhámo-la. Consegui levá­


-lo , mas depois tremi toda a noite e não podia comer. De manhã,
deram-me água. Bebi e deixei para sempre de ser o mesmo cavalo .
Adoeci , e eles torturaram-me e mutilaram-me . As pessoas chamam
a isso «curar» . Os meus cascos inflamaram-se , apareceram incha­
ços , as patas torceram-se , o peito cavou-se , fiquéi mole e fraco em
todo o corpo . Fui vendido a um revendedor. Este dava-me cenouras
e mais qualquer coisa, e fez de mim uma criatura muito diferen­
te do que fui , mas o meu aspeto podia enganar um ignorante . Não
tinha força nem capacidade para correr. Além disso , o revendedor
martirizava-me: quando vinham os compradores , ele ia à minha baia
e chicoteava-me e assustava-me , levando-me à fúria. Depois , cobria
as cicatrizes com qualquer coisa e levava-me para me mostrar. Uma
velha comprou-me . la muitas vezes à igreja de S . Nicolau Aparecido
e , pelo caminho , fustigava o cocheiro . O cocheiro chorava na minha
baia. Fiquei a saber que as lágrimas tinham um gosto agradável , sal­
gado . Depois , a velha morreu . O seu administrador levou-me para a
aldeia e vendeu-me a um comerciante , depois comi trigo demais e
adoeci , fiquei ainda pior. Fui vendido a um mujique . Arei a terra, não
comia quase nada, feriram-me uma pata com a relha . Voltei a adoe­
cer. Um cigano recebeu-me numa troca. Tratou-me terrivelmente e ,
por fi m , vendeu-me ao administrador desta propriedade . Foi assim
que vim parar aqui .
Todos guardavam silêncio . Chuviscava.

Capítulo 9

Na tarde seguinte , voltando do campo , a manada viu o seu dono


com um convidado . A Grua , aproximando-se da casa, olhou de esgue­
lha para as duas figuras masculinas : o dono , jovem , alto e de chapéu
de palha, e um militar, gordo , até balofo . A velha olhou e , apertando
as orelhas , passou-lhes ao lado; os outros , jovens , azafamaram-se ,
marcaram passo , sobretudo quando o dono e o convidado entraram
propositadamente dentro da manada, mostrando qualquer coisa um
ao outro e conversando .
- Comprei esta, cinzenta ruana, ao Voéikov - disse o dono .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 93

- E esta murzela de canelas brancas donde é? É bonita - disse o


convidado . Examinaram muitos cavalos , passando de um para outro
e fazendo-os parar. Prestaram atenção também à égua parda.
- É dos cavalos de sela de Khrénovo , esta linhagem - disse o
dono .
Não foi possível ver todos os cavalos em movimento . O dono cha­
mou o Néster, e o velho , batendo rapidamente nos flancos do malhado,
pô-lo a correr a trote . O malhado tropeçava, coxeava de uma pata, mas
corria de tal modo que se via: nunca se recusaria, mesmo que fosse
obrigado a aplicar todas as suas forças e a correr até aos confins do
mundo . Estava até pronto a galopar, até o tentou com a pata direita.
- Não há melhor do que esta égua em toda a Rússia, digo-o sem
qualquer hesitação - disse o dono , apontando para uma das éguas .
O convidado louvou-a. O dono , emocionado , não parava, passando
de um lado para outro e contando sobre a raça e a origem de cada ca­
valo. Mas o convidado , pelos vistos , aborrecia-se com essas histórias
e inventava perguntas por conveniência, fingindo o seu interesse.
- Pois , pois - dizia distraidamente .
- Olha para isto - disse o dono - , olha para estas patas . . . Foi
caríssima, mas já tenho um potro dela, de dois anos , e é um corredor.
- Corre bem? - perguntou o convidado .
Assim, viram quase todos os cavalos , não havia mais nada para
mostrar. Calaram-se .
- Bem , vamos embora?
- Vamos .
Foram até ao portão . O convidado estava contente com o fim da
exposição e que fossem para casa onde podiam comer, beber, fumar.
Animou-se, era visível . Quando passavam ao lado de Néster que, sen­
tado no malhado, esperava ordens , o convidado deu uma palmada com
a mão grande e gorda na garupa do malhado .
- Ena, que estampa colorida ! - disse ele . - Tive um malhado
parecido , já te contei .
Como não se tratava dos seus próprios cavalos , o dono não respon­
deu , continuou a virar a cabeça para a sua manada.
De repente , um rincho estúpido , fraco e senil ouviu-se por cima do
seu ouvido . Foi o malhado que , contudo , se envergonhou de imediato
e se calou . Nem o convidado nem o dono prestaram atenção a este
94 Lev Tolstói

rincho , entraram em casa . O Medidor-de-Linho reconheceu neste ve­


lho obeso o seu antigo dono , o querido Serpukhovskói , outrora um
brilhante ricaço e bonitão .

Capítulo 10

Continuava a chuviscar. O céu nublado escurecia o curral , mas


dentro da casa senhorial o ambiente era outro . Uma luxuosa mesa de
chá foi posta numa luxuosa sala de estar. O dono e a dona de casa
com o seu convidado estavam sentados à mesa.
A senhora, sentada ao lado do samovar, estava grávida, o que
era muito visível pela sua barriga proeminente , as suas costas di­
reitas e a cintura fletida , a figura rechonchuda e, sobretudo , pelos
olhos grandes , meigos e solenes , mirando como que para dentro
dela própria.
O anfitrião segurava nas mãos uma caixa de charutos especiais ,
de dez anos , charutos que , nas palavras dele , ninguém tinha, queria
gabar-se deles perante o convidado . O anfitrião era um homem boni­
to dos seus vinte e cinco anos , fresco , cuidado , lindamente penteado .
Em casa, vestia um fato novo , folgado , de fazenda grossa, costurado
em Londres . Tinha um fio com berloques graúdos e caros . Os botões
de punho também eram grandes e maciços , com turquesa engastada
em ouro . Usava a barba à Napoleão III com rabinhos de rato co­
bertos de pomada, tendo uma forma que só em Paris lhes podiam
conferir. O vestido da anfitriã era de musselina de seda ornamenta­
da com grandes ramos de flores multicores , no cabelo basto e ruço ,
maravilhoso, embora só em parte natural , havia ganchos especiais ,
grandes e dourados . As suas mãos exibiam muitas pulseiras e anéis ,
todos caros . O samovar era de prata, a loiça de chá de porcelana fina.
O lacaio era magnífico: casaca, gravata e colete brancos; imóvel co­
mo uma estátua, estava ao lado da porta, à espera das ordens . Os
móveis tinham formas sinuosas e cores vivas ; o papel de parede era
escuro com flores grandes . Um galgo italiano , incrivelmente fininho ,
de nome inglês muito complicado e muito mal pronunciado pelos
donos que não falavam inglês , tilintava com a sua coleira de prata ao
lado da mesa. Num canto , no meio de vasos de flores , havia um pia-
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 95

no incrusté* . Tudo tinha um ar de novinho em folha, luxuoso e raro .


Tudo era excelente , mas mostrava a marca do exagero , da exibição
de riqueza e da ausência de interesses intelectuais .
O dono d a casa era apaixonado por trotadores , robusto e de tem­
peramento sanguíneo , um daqueles que vão existir sempre , que an­
dam de peliças de marta zibelina, atiram às atrizes ramos de flores
caros , bebem , nos mais caros hotéis , o mais caro vinho da mais mo­
derna marca, oferecem prémios com o seu próprio nome e têm a
mais cara concubina.
O convidado , Nikita Serpukhovskói , era um quarentão , alto , gor­
do e careca, com bigode e suíças grandes . Em tempos , devia ser
muito bonito . Agora, pelos vistos, degradara-se física, moral e mo­
netariamente .
Estava de tal modo endividado que se viu obrigado a arranj ar um
emprego , senão ia parar à prisão . Neste momento , ia para um cen­
tro da província, tendo sido nomeado chefe de coudelaria. Foram
os seus parentes influentes que lhe arranjaram este cargo . Estava
vestido de túnica militar e calças azuis . A túnica e as calças eram
de um género que só uma pessoa rica se pode permitir, a camisa
também , o relógio era inglês . As botas tinham solas esquisitas , da
grossura de um dedo .
Nikita Serpukhovskói , durante a sua vida , desbaratou uma fortuna
de dois milhões e ficou ainda com uma dívida de 1 20 mil . Uma fatia
dessas deixa sempre , como vestígio , uma grande envergadura de vi­
da, dando crédito e possibilidade de viver quase em luxo ainda cerca
de dez anos . Este prazo já estava a expirar, tal como a envergadura, e
a vida de Nikita tomava-se triste . Já começara a beber, ou seja, a ficar
embriagado com o vinho , o que dantes não lhe acontecia. Quanto a
beber, na verdade , isto nunca teve início nem fim. A sua queda, no
entanto , notava-se sobretudo no olhar inquieto e na incerteza das en­
toações e gestos . Esta inquietude impressionava porque , pelos vistos ,
surgira nele havia pouco , porque era visível que este homem, durante
longos anos, se habituara a não ter medo de nada nem de ninguém,
e que só recentemente , em consequência de sofrimentos graves , foi
assediado por estes medos , nada próprios da sua natureza. Os donos

* Com incrustação (fr.) .


96 Lev Tolstói

da casa repararam nisso , trocavam olhares e, compreendendo-se bem


um ao outro , adiaram uma conversa pormenorizada sobre o assunto
até à cama, sendo tolerantes em relação ao pobre Nikita e tratando-o
com delicadeza. O ambiente de felicidade que rodeava o jovem anfi­
trião humilhava Nikita e, fazendo-o recordar o seu passado irrecupe­
rável , despertava nele uma dolorosa inveja.
- Marie , os charutos não a vão incomodar? - perguntou à se­
nhora naquele tom especial , impercetível e que só se adquire pela
experiência, um tom educado , amigável , mas sem grande respeito ,
o tom em que os homens mundanos costumam falar com as concu­
binas , e não com as esposas . Não porque quisesse ofendê-la, antes
pelo contrário , gostaria agora de entrar na mesma onda dos donos
da casa , embora nunca o tivesse confessado a si próprio . Contudo ,
estava habituado a falar assim com as mulheres deste género . Sabia
que ela era capaz de se surpreender, até de se sentir insultada se a
tratasse como uma senhora respeitável . Além disso, precisava de
guardar um certo matiz de tom respeitoso para outra ocasião , para a
verdadeira esposa do seu amigo fidalgo . Quanto a esta aqui , tratava
sempre uma mulher deste género com respeito , mas não porque
partilhasse as chamadas convicções propagadas nas revistas (nunca
leu essas porcarias) sobre o respeito por todos os indivíduos , sobre
a insignificância do matrimónio etc . , e sim porque tal devia ser o
comportamento de qualquer homem decente , e ele era decente , em­
bora decadente .
Pegou num charuto . Mas o anfitrião fez uma inconveniência: tirou
uma mancheia de charutos e ofereceu-os ao convidado .
- Toma, vais ver que são maravilhosos .
Nikita repeliu os charutos com a mão , e uma ofensa, uma vergonha
relampejaram nos seus olhos quase impercetivelmente .
- Obrigado . - Tirou do bolso uma charuteira. - Experimenta
os meus .
A dona de casa era delicada. Percebeu a situação e apressou-se a
desviar a conversa.
- Gosto muito de charutos . Também poderia fumar se toda a gen­
te à minha volta não fumasse .
E ela esboçou o seu belo e bondoso sorriso . Nikita sorriu em res­
posta, mas sem convicção . Faltavam-lhe dois dentes .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 97

- Não , toma este - continuou o indelicado anfitrião . - Os ou­


tros são mais fracos . Fritz , bringen sie noch eine Kasten - disse - ,
dort zwei. *
O lacaio alemão trouxe outra caixa.
- De quais gostas mais? Dos fortes? Estes são muito bons . Leva to­
dos - continuava a impô-los . Estava, com certeza, contente por poder
gabar-se das suas raridades e não reparava em nada. Serpukhovskói
acendeu o charuto e apressou-se a continuar a conversa anterior.
- Então , quanto é que pagaste pelo Cetim? - perguntou .
- Foi caro , cinco mil , não menos , mas pelo menos tenho um lucro
garantido . E que filhos ele tem !
- Correm bem? - perguntou Serpukhovskói .
- Correm. Há pouco , o filho dele ganhou três prémios: em Tula,
em Moscovo e em Petersburgo onde correu com o Murzelo de Voéi­
kov. O canalha do homem cometeu quatro falhas , passando a galope ,
senão deixaria o outro ainda mais para trás da bandeira.
- É ainda imaturo . Demasiada bravura, na minha opinião - disse
Serpukhovskói .
- Então , e as éguas de ventre? Amanhã mostro-tas . Dei três mil
pela Bondosa , dois mil pela Meiga .
E recomeçou a enumerar os seus tesouros . A dona de casa via que
era penoso para Serpukhovskói , que só fingia que estava a ouvir.
- Tomam mais chazinho? - perguntou-lhes .
- Eu não - disse o dono de casa e continuou a contar. Ela le-
vantou-se , o homem fê-la parar, abraçou-a e beijou-a.
Serpukhovskói , olhando para eles , esboçou um sorriso pouco na­
tural , mas quando o anfitrião se levantou e , abraçando a mulher, foi
com ela até ao reposteiro , a cara de Nikita mudou de expressão , sus­
pirou gravemente e estampou-se-lhe de repente na cara balofa um
qualquer desespero . Era uma expressão quase raivosa.

Capítulo 1 1

O dono da casa voltou e sentou-se em frente de Nikita. Durante


algum tempo , guardaram silêncio .

* Traga mais uma caixa, há lá duas (ai .).


98 Lev Tolstói

- Então , dizes que o compraste a Voéikov - disse Serpukhov­


skói com aparente indiferença.
- Sim, o Cetim . Queria comprar éguas a Dubovítski . Mas já não
havia nenhuma boa.
- Ele ficou arruinado - disse Serpukhovskói , mas de repente
calou-se e olhou em volta. Lembrou-se de que ficara a dever a esse
arruinado vinte mil rublos . E se diziam de alguém que estava de facto
«arruinado» , era dele próprio que falavam.
Instalou-se de novo um longo silêncio . O dono da casa matutava
para encontrar algo de que pudesse ainda gabar-se . Serpukhovskói
tentava inventar uma maneira de mostrar que não se achava arrui­
nado . Mas as ideias de ambos derrapavam , apesar das tentativas de
se animarem com charutos . «Se calhar, beber um copo?» , pensou
Serpukhovskói . «Preciso mesmo de um copo , senão morro de tédio
na companhia dele» , pensou o dono da casa.
- Quanto tempo ficas ainda aqui? - perguntou Serpukhovskói .
- Mais um mês . Vamos jantar, sim? Fritz , o jantar?
Foram para a sala de jantar. Ali , a mesa sob o candeeiro estava
cheia de velas e coisas invulgares: sifões , rolhas com bonecos , vinho
extraordinário a jarros , petiscos extraordinários , várias vodcas . Be­
beram , petiscaram, de novo beberam, outra vez petiscaram , e a con­
versa encetou-se . A cara de Serpukhovskói ficou corada, começou a
falar desembaraçadamente .
Falaram de mulheres . Que mulheres tinham: uma cigana, uma
dançarina, uma francesa.
- Então , abandonaste a Mathieu? - perguntou o dono da casa.
Era a concubina que arruinara Serpukhovskói .
- Não fui eu , foi ela. Ah , meu amigo , quando me lembro de quan­
to desbaratei ! Agora fico feliz quando tenho mil rublos e, francamen­
te , estou contente por ir para longe de todos . Não posso continuar em
Moscovo . Ah , palavras para quê . . .
O dono de casa aborrecia-se ouvindo Serpukhovskói . Apetecia-lhe
falar de si próprio , ou seja, gabar-se . Entretanto , a Serpukhovskói
apetecia-lhe falar do seu passado brilhante . O dono da casa serviu-lhe
um copo , esperando que acabasse de falar, para depois lhe contar dos
seus próprios negócios , da sua coudelaria que agora era superior a
todas as outras . E que a sua Marie gostava dele não só por dinheiro ,
mas de todo o coração .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 99

- Queria dizer-te que na minha coudelaria . . . - começou . Mas


Serpukhovskói interrompeu-o .
- Em tempos - disse ele - , gostava de viver à grande e sabia
viver. Falaste das corridas , então diz-me: que cavalo dos teus é o
mais veloz?
O dono da casa ficou contente com a oportunidade de falar ainda
mais da sua coudelaria e recomeçou , mas Serpukhovskói voltou a
interrompê-lo .
- Sim, sim - disse. - Vocês , donos de coudelarias , têm aquilo
só por vaidade , e não para o prazer e a vida. Comigo , era outra coi­
sa. Já te disse que tinha um cavalo de tiro , o malhado , as mesmas
malhas que tem a montada do teu guardador. Oh , que cavalo aquele !
Tu não o viste; foi em 1 842 , eu acabava de chegar a Moscovo , fui a
um revendedor e vi lá um castrado malhado . De conformação muito
boa. Gostei dele . O preço? Mil rublos . Gostei , levei-o e comecei a
andar nele . Nunca tive , nem tu tens e nunca terás um cavalo como
aquele . Nunca conheci um cavalo de melhor andadura e beleza, nem
de maior força. Eras ainda rapazinho , não podias saber, mas acho que
ouviste falar. Toda a Moscovo o conhecia.
- Sim, ouvi falar - respondeu o dono de casa a contragosto - ,
mas queria contar-te sobre os meus . . .
- Então , ouviste . Comprei-o sem pedigree , sem diploma; só
mais tarde soube da sua raça. Procurámos juntos , eu e Voéikov. Era
filho do Amável /, chamava-se Medidor-de-Linho . Lança as patas
como quem mede peças de linho . Foi dado ao chefe da estrebaria de
Khrénovo por causa das malhas , e o homem castrou-o e vendeu-o a
um revendedor. Já não há cavalos como esse , meu amigo ! Ah , que
tempos ! Ah , juventude ! - cantou o tema de uma canção cigana.
O vinho começava a surtir efeito . - Eram bons tempos . Tinha vin­
te e cinco anos , oitenta mil rublos de prata anuais , nem uma branca
no cabelo , todos os dentes como pérolas . Era bem sucedido em
tudo . Mas acabou .
- Bem, naquela altura não havia cavalos velozes como hoje -
disse o dono da casa, aproveitando a pausa. - Francamente , os meus
primeiros cavalos andaram sem . . .
- Os teus cavalos ! Dantes , eram mais velozes .
- Mais velozes?
1 00 Lev Tolstói

- Exatamente . Lembro-me como se fosse hoje: em Moscovo ,


fui uma vez às corridas com ele . Os meus cavalos não participa­
vam . Não gostava de trotadores , tinha puros-sangues: o General, o
Chaulé, o Maomé. Com o malhado andava de charrete . O meu co­
cheiro era um bom rapaz , gostava dele . Também se alcoolizou . En­
tão , cheguei às corridas . «Serpukhovskói - dizem-me - , quando
é que arranjas trotadores?» - «0 meu malhado - respondo - vai
ultrapassar todos os vossos mujiques.» - «Não pode .» - «Apos­
to 1 000 rublos .» A aposta foi feita . Correram . Ultrapassou-os em
cinco segundos , ganhei 1 000 rublos . E digo-te mais . Fiz uma vez
vinte léguas em três horas na minha troica de puros-sangues . Toda
a Moscovo o sabe .
E Serpukhovskói pôs-se a mentir sem parar e de modo tão coerente
que o outro não conseguia introduzir nem uma palavra e ficou senta­
do em frente dele com a cara tristonha, só por distração enchendo os
copos com vinho .
Começou a clarear, mas ainda continuavam sentados . O dono da
casa aborrecia-se terrivelmente . Levantou-se .
- Dormir. . . está bem - disse Serpukhovskói , levantou-se e ,
cambaleando e resfolegando , fo i para o quarto que lhe prepararam .
O dono da casa estava na cama com a sua amante .
- Ele é insuportável . Embebedou-se e mentiu sem parar.
- E tentou cortejar-me .
- Receio que me peça dinheiro .
Serpukhovskói estava deitado sem se despir e respirava com difi­
culdade .
«Parece que menti demais - pensou . - Não interessa. O vinho
era bom, mas o homem é uma besta . Tem qualquer coisa de comer­
ciante . Também sou porco - disse e gargalhou . - Dantes viviam
por minha conta, agora eu próprio . . . Sim, por conta da Wincler, dá­
-me dinheiro . Bem feito , bem feito ! Tenho de me despir, não posso
tirar as botas sozinho .»
- Eh ! Eh ! - gritou ele , mas o criado posto ao seu serviço havia
muito que fora dormir.
Sentou-se na cama, despiu a túnica, o colete , tirou a grande custo
as calças , mas as botas resistiam, a barriga mole impedia que as ti­
rasse . Chegou a tirar uma, com outra lutou muito , ficou sem fôlego
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 101

e cansado . Caiu n a cama com u m p é no cano da bota e adormeceu ,


enchendo o quarto com o cheiro de tabaco , vinho e velhice imunda.

Capítulo 1 2

Talvez o Medidor-de-Linho lembrasse mais alguma coisa nessa


noite , mas foi distraído por Vaska, que lhe lançou sobre o lombo uma
gualdrapa e correu nele até à taberna onde , até de manhã, o deixou à
porta ao lado do cavalo de um mujique . Lamberam-se . De manhã, o
malhado voltou à manada e não parava de coçar-se .
«Irra, que comichão» , pensava.
Passaram cinco dias . Chamaram o curador. Este disse com alegria:
- É sarna. Deixe-me vendê-lo aos ciganos .
- Para quê? Mate-o , que hoje mesmo desapareça daqui .
A manhã era calma, de céu limpo . A manada foi para o campo .
O Medidor-de-Linho ficou . Veio um homem estranho , magro , more­
no , sujo, de cafetã preto salpicado de qualquer coisa. Era esfolador.
Pegou sem olhar no cabresto do malhado , levou-o . O Medidor-de
Linho foi calmamente , sem olhar para trás , arrastando , como sempre,
as patas pela palha. Transposto o portão , virou-se na direção do poço ,
mas o esfolador puxou o cabresto e disse: - Não precisas .
O esfolador e Vaska, atrás dele , chegaram a um barranco por trás
do barracão de tijolo e , como se houvesse qualquer coisa especial
neste sítio muito vulgar, pararam. O esfolador entregou a Vaska o
cabresto , tirou o cafetã, arregaçou as mangas , tirou do cano da bota
uma faca e uma amoladeira, começou a afiar a faca. O malhado es­
ticou o pescoço até à rédea, quis mascá-la por não ter mais nada que
fazer, mas não chegou até ela, suspirou e fechou os olhos . O seu lábio
descaiu , os dentes gastos e amarelos abriram-se , e começou a cair em
modorra sob os sons da amoladura. Só a sua pata doente , com um
inchaço , e que afastava para o lado , estremecia. De repente , sentiu
que lhe pegaram sob a mandíbula, levantando-lhe a cabeça . Abriu
os olhos . Viu à sua frente dois cães . Um deles farejava, virado para
o esfolador, outro estava sentado , olhando para o malhado , como se
esperasse qualquer coisa precisamente dele . O cavalo olhou para eles
e esfregou a mandíbula contra a mão que a segurava.
1 02 Lev Tolstói

«Acho que vão fazer-me a cura - pensou . - Está bem ! »


De facto , sentiu que fizeram qualquer coisa com a sua garganta.
Sentiu dor, estremeceu , mexeu uma pata, mas aguentou e esperou o
que se ia seguir. Depois , um líquido qualquer correu num grande jato
pelo seu pescoço e peito . Suspirou fundo . E sentiu um grande alívio .
Foi o alívio de toda a sua vida penosa. Fechou os olhos e baixou a ca­
beça - ninguém a segurava. Depois , o pescoço começou a inclinar­
-se , as patas tremeram , e todo o seu corpo cambaleou . O malhado
nem tanto se assustou quanto se surpreendeu . Tudo se tomou novo
para ele . Espantou-se , tentou um arranque para frente e para cima.
Mas em vez disso as patas , ao mexerem-se , fraquejaram , começou
a tombar de lado e, tentando dar um passo , caiu para a frente , sobre
o flanco esquerdo . O esfolador esperou até ao fim da convulsão , en­
xotou os cães que se aproximaram e depois , pegando numa pata e
virando o cavalo de costas , começou a escorchá-lo .
- Também foi um cavalo - disse Vaska.
- Se estivesse mais cevado , a pele seria boa - disse o esfolador.

À noite , a manada voltava a casa pela elevação do terreno , e os


cavalos que iam do lado esquerdo viam em baixo qualquer coisa ver­
melha, com cães azafamados à volta e aves , corvos e milhafres es­
voaçando por cima daquilo . Um cão , apertando as patas na carcaça e
girando a cabeça, arrancava com estalidos os bocados que tinha fer­
rado . A égua parda parou , esticou o pescoço e inspirou muitas vezes
o ar. Foi a custo que a puseram andar.

Ao amanhecer, os lobinhos cabeçudos uivavam alegremente no


barranco da floresta velha, numa clareira invadida de ervas . Eram
cinco: quatro quase iguais e um pequeno , com a cabeça maior do que
o corpo . A loba magra, na muda de pelo , arrastando a barriga cheia
com mamas compridas pelo chão , saiu dos arbustos e sentou-se em
frente das crias . Estas puseram-se em semicírculo à volta dela. A loba
aproximou-se do mais pequeno e, dobrando um joelho e inclinando
o focinho para a frente , fez alguns movimentos convulsos e , abrindo
a goela de dentes afiados , fez esforço e escarrou um grande bocado
de carne de cavalo . Os lobinhos maiores avançaram , mas ela fez um
movimento ameaçador, deixando tudo ao dispor do mais pequeno .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 103

Este , como que irado , rosnou , puxou a carne para baixo da sua barri­
ga e começou a devorá-la. Do mesmo modo , a loba escarrou bocados
de carne para o segundo , o terceiro , para todos , e depois deitou-se em
frente deles , descansando .
Passada uma semana, só o crânio grande e dois fémures estavam
na terra junto ao barracão de tijolo , o resto desaparecera. No verão ,
o mujique que apanhava os ossos , levou-os também e aproveitou-os .

O corpo morto de Serpukhovskói , que andara pelo mundo , comera


e bebera, foi arrumado na terra muito mais tarde . A pele , a carne e os
ossos dele não foram aproveitados para nada. E como , havia já vinte
anos , o seu corpo , agora morto , era um grande empecilho para todos ,
arrumá-lo na terra tomou-se uma complicação a mais para as pes­
soas . Havia muito que ninguém precisava dele , era um estorvo para
toda a gente , contudo os mortos que enterravam os mortos acharam
necessário vestir este corpo rechonchudo , entrado em decomposição
de imediato , com uma boa farda, calçar-lhe botas boas , deitá-lo num
caixão novo e caro , com bodas novas nos quatro cantos , depois co­
locar este caixão novo no outro , de chumbo, levá-lo para Moscovo e ,
ao desenterrar ali o s velhos ossos humanos , esconder n o buraco este
corpo morto , regurgitando vermes , de farda nova e botas engraxadas ,
e cobrir tudo isso com a terra.
DE QUANTA TERRA PRECISA O HOMEM

A irmã mais velha veio à aldeia de visita à mais nova. A mais velha,
na cidade , estava casada com um comerciante , a mais nova com um
mujique . As irmãs tomam chá, conversam. A mais velha começou a
ufanar-se , a gabar a sua vida na cidade: que vive numa casa limpa e
espaçosa, que veste bem os filhos , que come e bebe deliciosamente ,
que vai aos passeios de coche , às festas urbanas e aos teatros .
A irmã mais nova ressentiu-se e pôs-se a denegrir a vida dos co­
merciantes e a engrandecer a sua própria, camponesa.
- Nunca trocava - diz ela - a minha vida pela tua. Embora
vivamos humildemente , não conhecemos o medo . Viveis com mais
conforto , só que , ou ganhais muito com a venda, ou perdeis tudo . Até
há um provérbio: o lucro e o prejuízo são irmãos . Acontece também:
hoje o homem está rico , mas amanhã anda a pedir esmola. A nossa
vida camponesa é mais segura: a barriga do mujique é magra, mas
longeva, não seremos ricos , mas sempre teremos o nosso pão .
Então , a irmã mais velha responde:
- Olha que fartura: com porcos e vitelos ! Nem casa arranjada,
nem trato delicado ! Por mais que o teu homem labute , viveis no es­
trume e morrereis no estrume, e os vossos filhos também.
- Nada a fazer - diz a mais nova - , é assim o nosso destino .
Mas vivemos em segurança, não pedimos favores a ninguém, não
temos medo de ninguém. Agora vós , na cidade , viveis no meio de
tentações; hoje estais bem , mas amanhã tenta-vos o Diabo e seduz o
106 Lev Tolstói

teu homem ou com o jogo , ou com o vinho , ou com uma moça. E vai
tudo pelo cano . Achas que não há disso?
Pakhom , marido da mais nova, no catre do fogão , estava a ouvir a
tagarelice das mulheres .
- É a verdade verdadeira - diz ele . - A nossa gente do campo ,
como anda desde criança a arar a terra nossa mãezinha, não tem tem­
po de meter asneiras na cabeça. O único mal é que temos pouca terra !
Se tivesse terra à vontade , nem o Diabo me metia medo !
As mulheres tomaram chá, falaram ainda sobre vestidos , arru ma­
ram a loiça, foram dormir.
Ora, o Diabo estava atrás do fogão e ouviu tudo . Ficou contente
por a mulher do mujique levar o marido a gabar-se: que , se tivesse
terra, o próprio Diabo não poderia com ele .
«Espera - pensou - , vamos à luta, tu e eu . Dou-te muita terra. E
dou cabo de ti com a terra.»

Não longe dos mujiques , vivia uma senhora não muito rica. Tinha
480 jeiras de terra. Dantes vivia em paz com os mujiques - não lhes
fazia mal . Mas contratou um soldado na reserva como administra­
dor, e este começou a incomodar os mujiques com multas . Por mais
cuidado que Pakhom tivesse, ora o seu cavalo entrava no campo de
aveia, ora a vaca penetrava no jardim , ora os vitelos fugiam para os
prados - e levava multas por tudo .
Pakhom paga e ralha com os seus , bate neles . Pecou muito durante
o verão por causa desse administrador. Ficou contente quando che­
gou a altura de manter o gado em casa - gasta-se muita forragem,
mas pelo menos não há o medo das multas .
No inverno , correu o rumor de que a senhora vendia a terra e que
um estalajadeiro da estrada ia comprá-la. Os mujiques , quando tal
souberam , assustaram-se . «Se a terra calhar ao estalajadeiro - pen­
saram - , vai arruinar-nos , ainda vai ser pior do que a senhora com
as multas . Não podemos viver sem esta terra, toda a nossa vida está
ligada a ela.» Os mujiques foram , todos juntos , falar com a senhora,
pediram que não vendesse a terra ao estalajadeiro , que a cedesse a
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 107

eles . Prometeram pagar mais caro . A senhora concordou . Os mujiques


começaram a discutir entre eles o modo de comprarem a terra jun­
tos , para toda a comunidade; reuniram-se uma vez , outra vez - mas
não chegaram ao acordo . O Diabo põe-nos em desacordo , nunca mais
chegam a um entendimento . Então , resolveram comprar a terra sepa­
radamente , de acordo com as possibilidades de cada um . A senhora
aceitou isso também . Pakhom ouviu falar de um vizinho que , dessa
forma, comprara 80 jeiras e que a senhora lhe adiara o pagamento de
metade por um ano . Pakhom teve inveja: «Compram toda a terra -
pensou - , e eu fico com as mãos a abanar.» Falou com a mulher.
- As pessoas compram - disse - , também precisamos de com­
prar, digamos, quarenta jeiras . Senão, é impossível: as multas são
insuportáveis .
Ponderaram a compra. Tinham cem rublos de poupanças , vende­
ram um potro e metade das abelhas , entregaram um filho como assa­
lariado , ainda pediram um empréstimo ao cunhado , juntaram metade
do dinheiro.
Pakhom juntou o dinheiro , escolheu uma terra: 60 jeiras com um
bosquete , e foi negociar com a senhora. Conseguiu 60 jeiras , entregou­
-lhe o sinal . Foram à cidade , assinaram o título de compra, Pakhom
pagou metade do dinheiro , com a promessa de liquidar o restante em
dois anos.
Agora, Pakhom tem terra. Pediu sementes de empréstimo , semeou
a terra comprada; a colheita foi boa. Pagou a dívida à senhora e ao
cunhado logo no primeiro ano . E tomou-se proprietário da terra: arou
e semeou a sua própria terra, segou o feno na sua terra, cortou estacas
na floresta da sua terra, alimentou o gado na sua terra. Vai lavrar a
sua terra eterna, ou vai ver a seara nova e os prados - que alegria!
E parece-lhe que as ervas que crescem e as flores são muito diferen­
tes . Dantes , passava por esta terra e parecia-lhe como outra qualquer,
mas agora tomou-se muito diferente .

Pakhom vive feliz da vida. Tudo estaria bem se os mujiques não


deixassem entrar o gado nos seus campos e prados . Pediu-lhes por
108 Lev Tolstói

bem, mas nada feito: ora os pastores continuavam a deixar que as va­
cas entrassem nos prados , ora os cavalos, durante os pastos noturnos ,
lhe pisavam o s cereais . Pakhom enxotava-os , perdoava o desleixo,
não apresentava queixa; depois ficou farto , começou a queixar-se à
administração local . Sabia que não era por mal , que era pelo muito
aperto em que viviam que os mujiques prevaricavam. Mas pensava:
«Não se pode admitir semelhante abuso , assim estragam-me tudo .
Tenho de lhes dar uma lição .»
Deu-lhes assim uma lição , com o tribunal , depois mais uma lição ,
foi multado um mujique , depois outro . Os vizinhos ganharam rancor
a Pakhom; por vezes , prejudicavam-lhe a propriedade propositada­
mente . Uma ocasião , alguém foi ao bosque de Pakhom e cortou uma
dezena de tílias para tirar a entrecasca. Pakhom, de passagem pela
floresta, viu qualquer coisa branca no chão . Aproximou-se: troncos
descascados pelo chão fora e cepos . Poderia, pelo menos , cortar as
extremidades , deixando a tília no centro , mas não: o malandro cortou
tudo . Pakhom enraiveceu-se: «Se descubro quem fez isto , trato-lhe
da saúde .» Pensou , pensou: quem podia ser? «Foi o Semion , não po­
dia ser mais ninguém.» Foi a casa dele , procurou lá por todo o lado ,
não encontrou nada, só se zangaram. Então , Pakhom convenceu-se
ainda mais de que tinha sido o Semion . Apresentou queixa contra
ele . Chamaram-nos ao tribunal . Julgaram, julgaram - e ilibaram o
mujique porque não havia provas . Pakhom ressentiu-se ainda mais ,
zangou-se com o responsável eleito e com os juízes . «Vós - disse
ele - apoiais os ladrões . Se vós próprios vivêsseis honestamente , não
ilibáveis os ladrões .» Portanto, zangou-se tanto com os juízes como
com os vizinhos . Começaram a ameaçá-lo que lhe queimavam a casa.
Pois é, ele tinha muito espaço na terra e muito aperto na comunidade.
Na altura correu o rumor de que as pessoas mudavam para novas
terras . Pakhom pensou: «Não tenho razão para abandonar a minha
terra, mas se alguns dos nossos fossem, sobraria aqui mais espaço .
Tomaria conta da terra deles , podia juntá-la à minha; a vida seria
melhor com menos aperto .»
Um dia estava o Pakhom em casa e, nisto, um mujique viandante
bateu-lhe à porta. Deram-lhe pernoita, serviram-no à mesa, conversa­
ram: donde vinha? O mujique disse que vinha de baixo , de além do
Volga, que trabalhara ali . Palavra puxa palavra, e o mujique contou
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 09

como o povo se instalara naquela terra: «Instalaram-se, inscreveram-se


na comunidade e receberam 40 jeiras a cada cabeça. E a terra é uma
maravilha - disse - , semearam centeio, e cada pé cresceu tanto que
nem um cavalo se vê para lá da seara, e a palha é tão grossa que cinco
mancheias fazem uma gavela. Um mujique , dos mais pobres , chegou
com as mãos a abanar e agora tem seis cavalos e duas vacas .»
O coração de Pakhom acendeu-se . Pensou: «Para que hei de sofrer
aqui , neste aperto , se posso viver bem? Vendo aqui a casa e a terra;
com esse dinheiro , faço lá uma casa e organizo a minha lavoura. Por­
que isto aqui , no aperto , são só desgraças . Mas primeiro tenho de ver
tudo com os meus próprios olhos.»
No verão , preparou-se e foi . Até Samara , viajou pelo Volga abai­
xo no vapor, depois fez cerca de oitenta léguas a pé . Chegou . Tudo
certo: os mujiques viviam folgados em terras largas , davam quarenta
jeiras a cada um e aceitavam de boa vontade os novos que chegas­
sem . E quem tiver dinheiro podia comprar, para além da terra dada,
tanta mais quanta quisesse , a três rublos por quatro jeiras de solo de
primeira; pode-se comprar terra à vontade , e para sempre !
Pakhom inteirou-se de tudo , voltou a casa no outono e começou a
vender tudo . Vendeu a terra com lucro , vendeu a casa, o gado todo ,
anulou a sua inscrição na comunidade , esperou até à primavera e foi
com a família para os novos lugares .

Chegou ao novo lugar com a família, inscreveu-se na comunida­


de de uma grande aldeia. Serviu vinho aos velhos , fez a papelada.
Aceitaram-no , destacaram-lhe 200 jeiras de terra para os cinco mem­
bros da família, em vários campos , além do pasto . Pakhom construiu
a casa, arranjou gado . Agora tinha três vezes mais terra do que antes .
E a terra era fértil . A vida dele tomou-se dez vezes melhor do que
antes . O lavradio e a forragem não faltavam . E muitíssimo gado .
A princípio , quando ainda estava a construir a casa e a organizar
as coisas , parecia tudo maravilhoso a Pakhom, mas depois , quando
se acostumou àquela vida, entranhou-se outra vez nele aquela sen­
sação de aperto . No primeiro ano semeou trigo - e medrou bem .
1 10 Lev Tolstói

Entusiasmou-se com o trigo , mas a terra que lhe destacaram já não


chegava. Nestes lugares semeiam trigo nas terras de barba-de-bode
ou nas incultas . Um ano fazem a semeadura, depois deixam a terra
descansar dois anos , até se cobrir de barba-de-bode . E há muita gente
que quer esta terra, não dá para todos . Também a disputam; quem é
mais rico quer semear sozinho , mas os pobres entregam-na aos co­
merciantes pelo pagamento dos tributos . Apeteceu a Pakhom semear
mais trigo . No ano seguinte , foi falar com um comerciante e tomou
de arrendamento uma terra, por um ano . Semeou mais trigo , a co­
lheita foi boa, mas era longe , a três léguas da aldeia. Viu que nos ar­
redores os mujiques comerciantes viviam nas granjas e enriqueciam.
« É muito melhor - pensou - , compra-se terra para sempre, cons­
trói-se a granja. Ficaria tudo juntinho .» E começou a ponderar a ma­
neira de fazer a compra vitalícia de terra.
Pakhom viveu assim três anos . Arrendava terra, semeava trigo .
Eram bons anos , as colheitas eram boas , acumulou dinheiro . Podia
viver assim calmamente , mas achou aborrecido arrendar todos os
anos terra alheia e ter sempre problemas: onde há boa terra , os muji­
ques vão num instante , arrendam tudo; basta a pessoa atrasar-se um
pouco e já não há lavradio . Ou aconteceu-lhe arrendar, no terceiro
ano , um pasto aos mujiques , a meias com um comerciante , e já o
araram , mas os mujiques apresentaram queixa, e todo o trabalho foi
perdido . «Se tivesse a minha própria terra, não seria preciso pedir
favores a ninguém e não haveria sarilhos .»
Então , Pakhom começou a investigar onde se podia comprar ter­
ra. E conheceu um mujique . O mujique tinha comprado 2000 jeiras ,
mas arruinou-se e estava a vender ao desbarato . Pakhom começou a
negociar com ele . Regatearam muito , concordaram no preço de 1 500
rublos , metade a pronto , metade a prazo . O negócio estava quase
fechado , mas um comerciante de viagem passou por casa de Pakhom
para dar de comer aos cavalos . Tomaram chazinho , conversaram .
O comerciante contou que estava de volta da terra dos bachquires .
Ali , contou ele , comprou aos bachquires 20 mil jeiras de terra. Por
1 000 rublos apenas . Pakhom começou a fazer-lhe perguntas . O co­
merciante contou . «Bastou agradar ao& velhos . Ofereci-lhes cabaias
e tapetes no valor de 1 00 rublos , pelo menos , uma caixa grande de
chá, a quem o bebia ofereci vinho . E levei a terra por cinco copeques
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 111

a jeira.» Mostrou o título da compra. «A terra - disse - é junto ao


rio , tudo estepe de barba-de-bode .» Pakhom quis saber pormenores .
«Há lá tanta terra que nem num ano podemos passar - disse o co-.
merciante - ; e toda ela pertence aos bachquires . Mas neste povo
todos são tolos como carneiros . Pode-se arranjar terra quase de gra­
ça.» - «Bem - pensou Pakhom - , porque iria então pagar os meus
1 000 rublos por 2000 jeiras e ainda ficar com uma dívida em cima?
Se posso ficar com tanta terra pelos mesmos 1 000 rublos ! »

Pakhom perguntou ao comerciante o caminho e , mal este partiu ,


preparou a viagem . Deixou a casa aos cuidados da mulher, preparou­
-se e foi , levando consigo um assalariado . Passaram pela cidade ,
compraram uma caixa de chá, prendas e vinho - tudo como o co­
merciante dissera. Fizeram um longo caminho , cerca de 100 léguas .
No sétimo dia chegaram ao acampamento bachquire . Era tudo como
o comerciante contara. Vivem na estepe, à beira de um rio , em car­
roças com tendas de feltro . Não lavram a terra nem comem pão . Na
estepe, o gado e os cavalos andam em grandes manadas . Os potros
são atados atrás das carroças , e duas vezes por dia trazem-lhes as
éguas-mães; ordenham as éguas e fazem do leite o kumis 8 • As mulhe­
res mexem o kumis e fazem queijo, mas os homens não fazem nada,
só bebem kumis e chá, comem carne de borrego e tocam flauta. Todos
são gordos e contentes , estão em festa durante todo o verão . O povo
é obscuro , não fala russo , mas é carinhoso .
Mal os bachquires viram o Pakhom, saíram das carroças e rode­
aram o visitante . Arranjou-se um intérprete . Pakhom disse-lhe que
vinha por causa da terra. Os bachquires ficaram contentes , levaram
Pakhom pelos braços para dentro de uma carroça boa, sentaram-no
nos tapetes , sobre almofadas de penugem , sentaram-se à sua volta,
começaram a servir-lhe chá e kumis . Mataram um borrego , serviram­
-lhe carne . Pakhom tirou da sua carriola as prendas , deu-as aos ba­
chquires e distribuiu o chá. Os bachquires estavam muito felizes .
Fartaram-de de algaraviar entre eles , na sua língua, depois mandaram
falar o intérprete .
1 12 Lev Tolstói

- Querem que te diga - disse o intérprete - que gostaram de ti


e que temos um costume: agradar de todas as maneiras ao convidado
e dar-lhe prendas em resposta. Ofereceste-nos prendas ; agora diz do
que gostas aqui e queres como oferta.
- Gostei mais do que tudo - disse Pakhom - da vossa terra.
Nas nossas aldeias há pouca terra, e toda cansada pela lavra, mas a
vossa terra é muita e boa. Nunca vi uma terra como esta.
O intérprete traduziu . Os bachquires falaram entre si . Pakhom não
compreende o que eles dizem, mas vê que estão animados , que gritam
e riem. Depois calaram-se , olharam para Pakhom, e o intérprete disse:
- Mandam que te diga que , pela tua bondade , estão prontos a dar-
-te tanta terra quanta queiras . Aponta com a mão , será toda tua.
Os bachquires falaram ainda e começaram a discutir. Pakhom per­
guntou o que discutiam . O intérprete disse:
- Um deles diz que é preciso perguntar ao chefe , sem ele não po­
de ser. Mas os outros dizem que se pode fazer a coisa sem ele .

Os bachquires discutem, mas de repente aparece um homem de


gorro de raposa. Todos se calaram e se levantaram . E o intérprete
disse: « É o chefe .» Pakhom tirou de imediato a melhor cabaia e cinco
libras de chá , e ofereceu tudo ao chefe . O chefe aceitou e sentou-se
no melhor lugar. E os bachquires começaram a dizer-lhe qualquer
coisa. O chefe ouviu , acenou com a cabeça para que se calassem e
disse a Pakhom em russo:
- Está bem , pode ser. Toma a terra que te agradar. Há muita terra .
«Mas como é que tomo quanto quiser - pensou Pakhom. - É
preciso marcar de alguma maneira. Senão , primeiro dizem que é mi­
nha, mas depois tiram-ma.»
- Muito obrigado - disse - pela sua bondade . É que têm muita
terra, e eu preciso de pouca. Só que tenho de saber que terra será a
minha. Portanto , é preciso medir e assegurar que é minha. Porque só
pela vontade de Deus vivemos e morremos . Vocês , boa gente , ofere­
cem a terra, mas os vossos filhos, quando chegar a altura, tiram-ma.
- Tens razão - disse o chefe - , podemos assegurar.
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 113

Pakhom , então , disse:


- Ouvi dizer que um comerciante passara por aqui . Também lhe
ofereceram terra e fizeram-lhe o título de compra. Também queria um .
O chefe compreendeu tudo .
- Tudo isso é possível - disse . - Temos um escrivão , e iremos
à cidade , e carimbamos os papéis .
- Mas que preço me fazem? - perguntou Pakhom .
- O nosso preço é único: 1 000 rublos por um dia.
Pakhom não compreendeu .
- Que medida é esta, um dia? Quantas jeiras isso dá?
- Não sabemos - disse o chefe - contar assim . Vendemos por
um dia: quanta terra passas durante um dia tanta será tua, e o preço
é 1 000 rublos .
Pakhom ficou surpreendido .
- Mas é muita a terra que se pode percorrer num dia.
O chefe riu-se .
- Será toda tua ! - disse. - Com uma única condição: se não vol­
tares até ao fim do dia para o lugar donde partiste, perdes o dinheiro .
- Mas como é que se marca por onde eu passo? - perguntou
Pakhom .
- Ficamos no lugar que escolheres , e tu vais andando , fazendo
um círculo; levas contigo uma enxada e vais marcar onde é preci­
so , cavando buracos nos cantos e pondo bocados de relva, e depois
passaremos com o arado de um buraco até outro . Faz um círculo do
tamanho que te apetecer, mas volta antes do pôr do sol ao sítio donde
partiste . Tudo o que percorreres será teu .
Foi uma alegria para Pakhom . Resolveram sair de manhã cedo .
Falaram , beberam mais kumis , comeram carne de borrego , tomaram
mais chá; chegou a noite . Os bachquires deitaram Pakhom no col­
chão de penugem e recolheram às suas carroças . Prometeram reunir­
-se antes do amanhecer e partirem para o lugar.

Pakhom deitou-se no colchão , mas não tinha sono , sempre a pen­


sar na terra. «Apanho - pensou - um grande terreno . Num dia
1 14 Lev Tolstói

faço , com certeza, dez léguas . Agora cada dia é comprido como um
ano; e dez léguas são muita terra. Os piores bocados vou vendê-los ,
ou arrendá-los aos mujiques , e fico com a melhor terra para mim .
Arranjo arados para os bois , recruto dois assalariados ; vou lavrar du­
zentas jeiras e o resto é para pasto do gado .»
Pakhom não dormiu toda a noite , só antes do amanhecer pegou no
sono . E teve um sonho: que estava deitado nesta mesma carroça e
ouvia que lá fora alguém se ria às gargalhadas; e que ele se levantava
para ver quem assim ria tanto , fosse quem fosse , saía e via aquele
chefe bachquire sentado em frente da carroça, agarrado à barriga a rir
como um perdido . Pakhom, no sonho , ia ter com ele e perguntava-lhe
porque se ria tanto . E via de repente que não era o chefe bachquire ,
mas aquele comerciante que lhe contara sobre a terra. Pakhom per­
guntou ao comerciante: «Há muito que estás aqui?» , mas já não era
o comerciante , era aquele mujique que passara pela sua velha casa
vindo de baixo . E via que também não era o mujique , mas o próprio
Diabo , com cornos e cascos, ali sentado a rir e , em frente dele , um
homem descalço , de camisa e calças·, deitado no chão . Pakhom olhou
melhor: que homem é este? E viu que o homem estava morto e que
era . . . ele próprio . Pakhom aterrorizou-se e acordou . Acordou e pen­
sou: «Que diabo de coisas não nos aparecem nos sonhos ! » Olhou em
volta e viu pela abertura que já clareava, já amanhecia. « É preciso
- pensou - ir acordar o povo , está na hora.» Pakhom levantou-se ,
acordou o seu assalariado que dormia na carriola, disse-lhe para atre­
lar e foi acordar os bachquires .
- Está na hora de ir à estepe - disse - , medir a terra.
Os bachquires levantaram-se , reuniram-se todos , e o chefe apare­
ceu também . Sentaram-se para beber outra vez kumis , e já iam servir
chá a Pakhom mas ele não se quis demorar.
- Foi decidido ir, então vamos - disse - , está na hora.

Os bachquires prepararam-se , alguns montaram nos cavalos , ou­


tros sentaram-se nas carroças , e lá partiram . Pakhom e o assalariado
foram na carriola e levaram consigo uma enxada. Chegaram à estepe ,
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 15

a aurora tingia o céu . Subiram para um cômoro , um «chikhan» , como


dizem na língua bachquire . Todos se apearam dos cavalos e das car­
roças , juntaram-se . O chefe foi ter com Pakhom, apontou com a mão .
- Esta terra aqui - disse - é toda nossa, tanta quanto os olhos
abrangem . Escolhe .
A cobiça acendeu-se nos olhos de Pakhom: a terra estava toda co­
berta de barba-de-bode , plana como a palma da mão , negra como a
semente de papoila tostada, e onde havia barrancos cresciam ervas de
todo o género , altas até ao pescoço .
O chefe tirou da cabeça o gorro de raposa, pô-lo no chão .
- Aqui - disse ele - será a marca. Vai andando a partir daqui e
volta aqui . Tudo o que percorreres será teu .
Pakhom tirou o dinheiro , pô-lo em cima do gorro , despiu o cafetã,
ficou de poddiovka , apertou o cinto na barriga, meteu no peito um
saquinho de pão , atou um cantil com água ao cinto , puxou para cima
os canos das botas , tomou das mãos do assalariado a enxada, ficou
preparado para partir. Pensou muito na direção a tomar - aquilo era
bom por todo o lado . Finalmente , resolveu-se: tanto faz , vou na dire­
ção do levante . Virou-se para o sol , desentorpeceu as pernas , esperou
que o sol saísse do horizonte . Pensou: não vou perder tempo . É mais
fácil andar enquanto está fresco . Mal o sol jorrou de trás do horizon­
te , lançou a enxada ao ombro e fez-se à estepe .
Não andou devagar nem depressa. Afastou-se quinhentas braças;
parou , cavou um buraco e empilhou vários bocados de relva para fi­
car mais visível . Seguiu . As pernas descontraíram-se , estugou o pas­
so . Afastou-se ainda mais , cavou outro buraco .
Olhou para trás . O chikhan estava claramente visível , e o povo ao
lado também , e os aros das carriolas brilhavam ao sol . Calculou que
tinha feito uma légua, mais ou menos . Começou a ter calor, tirou a
poddiovka , lançou-a ao ombro , prosseguiu . Fez mais uma légua. Já
fazia calor. Olhou para o sol - hora do pequeno-almoço .
«Passou só um quarto do dia - pensou Pakhom . - Ainda é cedo
para virar à esquerda. Vou descalçar-me .» Sentou-se , tirou as botas ,
meteu-as atrás do cinto , foi andando . Tomou-se fácil andar. «Vou
fazer mais uma légua, e então começo a virar à esquerda. Os luga­
res são bons demais , é pena perdê-los. Quanto mais longe , melhor.»
Continuou para a frente . Olhou para trás - o chikhan mal se via, as
1 16 Lev Tolstói

pessoas ali paradas pareciam formigas pretas e uma coisinha minús­


cula brilhava.
«Bem - pensou Pakhom - já andei bastante para a frente , é altu­
ra de virar. Também estou a suar com este calor, tenho sede .» Parou ,
cavou um buraco maiorzinho , empilhou bocados de relva, desatou o
cantil , bebeu água e virou à esquerda. Andou , andou , as ervas come­
çaram a ser altas , o calor era grande .
Pakhom sentiu algum cansaço; olhou para o sol - hora do almo­
ço . «Bem, tenho de descansar.» Sentou-se . Comeu pão com água,
mas não se deitou: «Se me deito , adormeço . Deus me livre» . Descan­
sou um pouco , seguiu . Primeiro , andou sem dificuldade . A comida
dera-lhe mais forças . Mas o calor era forte , Pakhom começou a ficar
sonolento; contudo , não parou de andar, pensou: aguenta-se uma ho­
ra, vive-se toda uma vida.
Andou muito também nesta direção , já queria virar à esquerda,
mas viu um barranco húmido; teve pena de o perder, pensou: «Aqui ,
o linho vai dar-se muito bem .» Seguiu em frente . Chegado ao barran­
co , cavou um buraco, virou pela segunda vez . Olhou para o chikhan:
o calor turvava os olhos , qualquer coisa baloiçava no ar e , através da
bruma, mal se viam as pessoas no chikhan - estavam a três léguas
dele , mais coisa menos coisa. «Apre - pensou Pakhom - , fiz aque­
les lados compridos demais , este tem de ser mais curto .» Foi fazendo
o terceiro lado , estugou o passo . Olhou para o sol - já se aproxima­
va da hora da merenda, mas só fez mil braças pelo terceiro lado . Até
ao final faltavam as mesmas três léguas . «Não - pensou - , mesmo
que o terreno fique torto , tenho de ir diretamente para o chikhan . Não
posso afastar-me demais . Já é muita terra .» Cavou rapidamente um
buraco e apressou-se a voltar na direção do chikhan .

Pakhom caminhava diretamente para o chikhan e já lhe custava


andar. Suava em bica, com os pés descalços cortados e magoados ,
as pernas começavam a fraquejar. Apetecia-lhe descansar, mas não
podia. Se o fizesse não chegaria a tempo , antes do ocaso . O sol não
esperava, estava cada vez mais baixo . Pôs-se a pensar: «Ah , será que
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 17

cometi um erro , que fui longe demais? Não irei chegar atrasado?»
Olhou para frente , para o chikhan , olhou para o sol: falta muito até à
meta, e o sol já está quase no horizonte .
Ainda assim, embora com dificuldade , não deixou de estugar o pas­
so. Andou , andou , mas ainda faltava muito; desatou a correr. Deitou
fora a poddiovka , as botas , o cantil , deitou fora o chapéu , só não lar­
gou a enxada, apoiava-se nela. «Ah , fui levado pela cobiça, dei cabo
de tudo , não chego antes do pôr do sol .» Assombrado por este medo , a
respiração começou a ficar-lhe ainda mais presa. Agora Pakhom cor­
ria, com a camisa e as calças encharcadas em suor a colarem-se-lhe ao
corpo , a boca seca. Parecia que um fole de forja lhe soprava no peito ,
que um martelo lhe batia no coração , as pernas fraquejavam , não lhe
obedeciam. Começou a ter medo de morrer de exaustão .
Tinha medo de morrer mas não conseguia parar. «Já andei tanto» ,
pensava, «que se parar vão chamar-me parvo» . Correu , correu , já
estava perto e ouviu: os bachquires guincham , ululam , e com estes
gritos o seu coração ardeu ainda mais . Pakhom ia buscar as últimas
forças para correr, mas o sol já estava perto do horizonte , escondia-se
no nevoeiro; tomou-se grande , vermelho , sanguíneo . la desaparecer
a qualquer momento . O sol quase a pôr-se , mas também não faltava
muito para a meta. Pakhom viu que os homens no chikhan também o
incitavam , agitavam mãos , apressavam-no . Já via o gorro de raposa
no chão , via o dinheiro; via também o chefe sentado no chão , com
as mãos pousadas na barriga. Então , Pakhom recordou o sonho . «Há
muita terra» , pensou , «mas será que Deus me deixará viver nela? Oh ,
levei-me à perdição , não chego à meta.»
Pakhom olhou para o sol : descera quase ao rés da terra , já a sua
parte de baixo desaparecera, o sol era um arco . Acelerou com as
últimas forças , lançou o corpo para frente , mal tinha tempo de pôr
os pés à frente para não cair. Chegou perto do chikhan e , de repen­
te , escureceu . Olhou para trás : o sol já se pusera . Pakhom gemeu .
«Tudo perdido , todo o meu trabalho .» Quis parar, mas ouviu que
os bachquires ainda gritavam e percebeu que , de baixo , parecia tu­
do acabado , mas de cima do chikhan os homens viam que o sol
ainda não se pusera . Pakhom fez um último esforço , subiu ao chi­
khan . Ali , havia ainda luz . Ao subir, viu o gorro . Em frente do gorro
estava sentado o chefe , agarrado à barriga e a rir às gargalhadas .
118 Lev Tolstói

Pakhom recordou o sonho , fez «ah ! » , os seus pés fraquejaram , caiu


para frente , tocou com as mãos no gorro .
- Ah , bravo rapaz ! - gritou o chefe. - Abichaste muita terra !
O assalariado de Pakhom acorreu , quis levantá-lo , mas o sangue
corria-lhe da boca, Pakhom estava morto .
Os bachquires estalaram as línguas , lamentaram .
O assalariado apanhou do chão a enxada, cavou o túmulo para
Pakhom , do tamanho exatamente da terra que o patrão abrangera en­
tre os pés e a cabeça - três côvados - e enterrou-o .
O CUPÃO FALSO

Primeira Parte

Fiódor Mikháilovitch Smokóvnikov, presidente da câmara fiscal ,


homem de honestidade incorruptível e orgulhoso de o ser, liberal
sombrio e não só um livre-pensador mas também inimigo de qual­
quer manifestação de devoção religiosa, considerando-a um vestígio
das superstições , voltou da câmara muito mal-humorado . O gover­
nador escrevera-lhe um papel bastante idiota donde era possível
deduzir a insinuação de que Fiódor Mikháilovitch teria procedido de
modo menos honesto . Fiódor Mikháilovitch exasperou-se e , logo a
seguir, escreveu uma resposta enérgica e pungente .
Em casa, parecia a Fiódor Mikháilovitch que tudo se fazia para o
contrariar.
Eram cinco para as cinco da tarde . Pensou que já iam servir o al­
moço, mas o almoço não estava pronto . Fiódor Mikháilovitch atirou
com a porta e foi para o seu quarto . Alguém bateu à porta. «Que dia­
bo ainda . . . » , pensou e gritou:
- Quem é?
O aluno do quinto ano do liceu , filho de quinze anos de Fiódor
Mikháilovitch , entrou no quarto .
- O que queres?
- Hoje é dia um.
- E então? O dinheiro?
1 20 Lev Tolstói

Foi estabelecido que no dia um de cada mês o pai dava ao filho


três rublos para as suas extravagâncias . Fiódor Mikháilovitch car­
regou o sobrolho , tirou a carteira , procurou , pegou num cupão de
dois rublos e cinquenta copeques , depois extraiu do porta-moedas
mais cinquenta copeques . O filho calava-se e não pegou no di­
nheiro .
- Papá, por favor, dá-me dinheiro adiantado .
- O quê?
- Não teria abordado o assunto , mas pedi de empréstimo e dei a
minha palavra de honra. Como homem honesto , não posso . . . preciso
de mais três rublos , juro que não vou pedir-te mais . . . ou seja, nem
por isso , mas . . . por favor, papá.
- Não te foi dito que . . .
- Mas , papá, só uma vez . . .
- Tens a tua mesada de três rublos , mas parece-te pouco . Na tua
idade , não recebia mais de cinquenta copeques .
- Agora todos os meus colegas recebem mais. O Petrov, o Iva­
nítski têm cinquenta rublos mensais .
- Pois eu digo-te que , a continuares assim, acabarás vigarista.
Acabou a conversa.
- Acabou porquê? Se o pai não se puser na minha situação , passo
por um canalha. Para o pai é fácil falar.
- Fora daqui , malandro . Rua . . .
Fiódor Mikháilovitch saltou do lugar e atirou-se ao filho .
- Fora daqui . Mereces uma açoitada.
O filho assustou-se e exaltou-se , mas exaltou-se mais do que se as­
sustou e, baixando a cabeça, foi para a porta a passo estU:gado . Fiódor
Mikháilovitch não queria bater-lhe , mas estava contente com a sua
própria ira e continuou a berrar pragas às costas do filho .
Quando a criada entrou e anunciou que o almoço estava na mesa,
Fiódor Mikháilovitch levantou-se .
- Até que enfim - disse - , mas já perdi o apetite .
E , carrancudo , foi para a sala de jantar.
À mesa, a mulher tentou falar com ele , mas ouviu em resposta
um resmoneio curto e tão irritado que se calou . O filho também não
levantava os olhos do prato e guardava silêncio . Comeram calados ,
saíram da mesa em silêncio e foram cada um para o seu lado .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 121

Depois do almoço, o colegial voltou ao seu quarto, tirou do bolso o


cupão e os trocos e atirou-os para cima da mesa, depois despiu o unifor­
me e vestiu o casaco. Primeiro , pegou no livro coçado de gramática lati­
na, depois fechou a porta com o gancho, varreu o dinheiro para a gaveta,
tirou da gaveta mortalhas , encheu uma, tapou-a com algodão e fumou .
Passou cerca de duas horas com a gramática e os cadernos , sem
compreender nada, depois levantou-se e pôs-se a andar pelo quarto , re­
cordando a cena com o seu pai . Todas as palavras insultuosas e , sobre­
tudo , a cara raivosa do pai , lhe surgiam na memória como se estivesse
de novo a vê-lo e a ouvi-lo . «Malandro . Mereces uma açoitada.» Quan­
to mais se lembrava, mais se enraivecia contra o pai . Recordou: «Vejo
em que te vais transformar - num vigarista. Fica a saber.» - «Já que
é assim, tomo-me mesmo vigarista. Para ele é fácil falar. Esqueceu
como era em jovem. Mas que crime cometi eu , afinal? Fui ao teatro,
não tinha dinheiro , pedi-o de empréstimo ao Pétia Gruchétski . Que mal
tem isso? Outro pai teria pena, faria perguntas , mas este só pensa em
si próprio e ralha comigo . Pois , quando lhe falta alguma coisa levanta
uma gritaria dos diabos , mas eu sou vigarista. Não , não gosto dele ,
embora seja meu pai . Não sei se é correto , mas não gosto dele.»
A criada bateu à porta. Trouxe um bilhetinho .
- Mandaram responder sem falta.
No bilhete estava escrito: «Já pela terceira vez te peço que me
devolvas os seis rublos que te dei de empréstimo , mas esquivas-te .
As pessoas honestas não fazem assim. Peço que mos mandes de ime­
diato com o meu mensageiro . Eu próprio preciso de dinheiro urgen­
temente . Será que não o podes arranjar?
Com respeito ou desprezo , em dependência do pagamento ou não
pagamento , do teu colega
Gruchétski .»
«Agora, o que é que eu faço? Irra, que porco . Será que não pode
esperar? Faço mais uma tentativa.»
E Mítia foi falar com a mãe . Era a sua última esperança. A mãe era
bondosa e não sabia recusar, e talvez o ajudasse , mas neste dia estava
preocupada com a doença de Pétia, o filho mais novo , de dois aninhos .
Ficou zangada com Mítia porque fizera barulho ao entrar e recusou .
Mítia resmungou qualquer coisa para os seus botões e foi à porta.
A mãe teve pena do filho e disse-lhe para voltar.
1 22 Lev Tolstói

- Espera, Mítia - disse ela - , agora não tenho dinheiro , mas


amanhã arranjo-o .
Mas Mítia ainda fervilhava de raiva contra o pai .
- Preciso dele hoje, e não amanhã. Então , saiba que vou falar com
um colega.
E saiu , batendo com a porta.
«Não há outro remédio , ele vai dizer-me onde posso empenhar o
relógio» , pensou , apalpando o relógio no bolso .
Mítia tirou da gaveta o cupão e os trocos , vestiu o sobretudo e foi
a casa de Mákhin .

Mákhin era um colegial de bigode . Jogava às cartas , ia às mu­


lheres e tinha sempre dinheiro . Vivia em casa da tia. Mítia sabia
que Mákhin era má rés , mas quando estava com ele obedecia-lhe
sem querer. Mákhin estava em casa, preparando-se para ir ao te­
atro : no seu quarto suj o cheirava a sabonete aromático e a água­
-de-colónia.
- Assim está mal , meu amigo - disse Mákhin quando Mítia lhe
contou a sua desgraça, mostrou o cupão e cinquenta copeques , e disse
que precisava de nove rublos . - É possível empenhar o relógio , mas
pode-se fazer uma coisa ainda melhor - disse Mákhin , piscando o
olho .
- Que coisa melhor?
- Muito simples .
Mákhin pegou no cupão .
- Pôr « 1 » à frente de dois rublos e cinquenta copeques , e será
doze rublos e cinquenta copeques .
- Mas esses cupões existem?
- Claro , nos títulos de mil . Já gastei um desses .
- Não é possível !
- Então , ponho? - perguntou Mákhin , pegando na pena e alisan-
do o cupão com o dedo da mão esquerda.
- Mas isto é feio .
- Oh-oh , disparates !
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 23

«Certo - pensou Mítia e voltou a recordar os insultos da parte do


pai ; vigarista . . . está bem , serei vigarista.» Olhou Mákhin na cara.
Mákhin sorria calmamente .
- Então , faço?
- Faz .
Mákhin escreveu com cuidado o algarismo 1 .
- Já está, agora vamos a uma loja. É aqui , na esquina: artigos de
fotografia. A propósito, preciso de uma moldura, para esta pessoa aqui .
Tirou um retrato fotográfico de uma moça de olhos grandes , cabe-
leira enorme e busto magnífico .
- Olha que linda, não?
- Sim, sim . Mas como é que . . .
- É fácil . Vamos .
Mákhin vestiu-se, e saíram juntos .

A campainha da porta da loja tocou . Os colegiais entraram, pas­


sando os olhos pela loja sem clientes , prateleiras cheias de artigos
de fotografia, balcões envidraçados . Uma senhora de cara feia mas
bondosa saiu da porta traseira e , pondo-se ao balcão , perguntou o que
desejavam.
- Uma moldura linda, madame .
- A que preço? - perguntou a senhora, mexendo rápida e habil-
mente em molduras de vários modelos com as mãos enluvadas de
mitenes , com as articulações inchadas . - Estas são a 50 copeques ,
aquelas mais caras . Este aqui é um modelo muito jeitoso , novo , a um
rublo e vinte .
- Bem, levo esta. Mas não me fará um desconto? Pago-lhe um
rublo .
- Aqui não se regateia - disse a senhora com dignidade .
- Está bem , então - disse Mákhin , pondo o cupão em cima do
balcão . - Dê cá a moldura e o troco , e despache-se . Senão , atrasamo­
-nos para o teatro .
- Ainda vão a tempo - disse a senhora e começou a examinar o
cupão com os olhos míopes .
1 24 Lev Tolstói

- Com esta moldura fica lindo , não fica? - disse Mákhin , diri­
gindo-se a Mítia.
- Não terão outro dinheiro? - perguntou a vendedora.
- O problema é que não temos . O meu pai deu-mo , precisamos
de o trocar.
- Será que não arranjam um rublo e vinte?
- Temos cinquenta copeques . Mas porquê? Está com medo de
que a enganemos com dinheiro falso?
- Não , nem por isso .
- Então , devolva o cupão . Vamos trocá-lo .
- Bem, quanto lhes devo de troco?
- Serão , portanto , onze e tal .
A vendedora estalou as contas do ábaco , abriu a escrivaninha, tirou
uma nota de dez e , ao mexer nos cobres , juntou ainda seis moedas de
vinte e duas de cinco copeques .
- Faça o favor de embrulhar - disse Mákhin , pegando sem pres-
sa no dinheiro .
- Um momento .
A vendedora fez um embrulho e atou-o com cordel .
Mítia só recuperou o fôlego quando a campainha da porta tilintou
nas suas costas e saíram para a rua.
- Toma dez rublos , deixa-me o resto . Depois devolvo-to .
E Mákhin foi ao teatro . Mítia foi a casa de Gruchétski e pagou-lhe
a dívida.

Passada uma hora, o dono da loja voltou à casa e começou a contar


a receita.
- Ah , que parva desajeitada ! Mas que parva ! - gritou à sua mu­
lher quando viu o cupão e descobriu , de imediato , a falsificação . -
Para que aceitas cupões?
- Mas tu próprio , Génia, aceitaste-os na minha presença, e pre­
cisamente os de doze rublos - disse a mulher, envergonhada, des­
concertada e pronta a chorar. - Nem percebo como é que me con­
seguiram aldrabar, esses colegiais . Um jovem bonito , parecia muito
comme ilfaut.
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 25

- É s uma parva comme il faut - continuou a descompô-la o ma­


rido , calculando a receita. - Quando aceito um cupão , olho e sei o
que está escrito nele . Mas tu , ao que me parece , só admiraste as caras
dos colegiais , parva velha.
A mulher não aguentou .
- Um homem a sério , sim senhor ! Só sabes censurar os outros ,
mas quando perdes ao jogo 54 rublos achas isso normal .
- Comigo é outra coisa .
- Não quero falar contigo - disse a mulher e retirou-se para o
seu quarto onde começou a recordar como a sua família não a queria
casar com este homem , considerando-o de condição muito inferior
à dela, e como ela própria insistira neste casamento ; lembrou-se do
seu filho que morrera e da indiferença do marido em relação a esta
perda, e sentiu pelo marido tanto ódio que pensou como seria bom
ele morrer. Contudo , mal o pensou , os seus sentimentos assustaram­
-na, vestiu-se rapidamente e saiu . Quando o marido voltou ao apar­
tamento , não a encontrou . Sem esperar por ele , tinha ido a casa de
um professor de francês que a convidara, nesse dia, para um serão
de amigos .

Em casa do professor de francês , russo de origem polaca, foi ser­


vido chá com bolachas doces , depois sentaram-se a jogar ao vint9 .
A mulher do vendedor dos artigos de fotografia sentou-se a jogar
com o dono da casa, um oficial e uma velha e surda senhora de peru­
ca, viúva do proprietário de uma loja de música, grande apaixonada
pelo jogo e mestre na matéria. À mulher do dono da loja de artigos
fotográficos estava a sair bom jogo . Por duas vezes deu um capote ,
ganhando doze vazas . Tinha ao seu lado um pratinho com uvas e uma
pera, e tinha alegria na alma.
- Porque é que Evguéni Mikháilovitch não vem? - perguntou a
dona de casa, sentada a outra mesa. - Inscrevemo-lo como o quinto .
- Está mergulhado nas contas , pelos vistos - disse a mulher de
Evguéni Mikháilovitch . - Hoje é o dia de pagamento das provisões
e da lenha.
1 26 Lev Tolstói

Então , ao recordar a cena feita pelo marido , carregou o sobrolho , e


as suas mãos com mitenes tremeram de raiva.
- Olha quem chegou , fala-se no diabo . . . - disse o dono da ca­
sa, dirigindo-se a Evguéni Mikháilovitch que entrava. - Porque se
atrasou?
- Tive coisas para tratar - respondeu Evguéni Mikháilovitch em
voz animada, esfregando as mãos . E, para a surpresa da mulher, foi
ter com ela e disse:
- Olha, consegui desfazer-me do cupão .
- Não me digas !
- Sim, paguei com ele ao mujique pela lenha.
E Evguéni Mikháilovitch contou a todos os presentes , com muita
indignação - a sua mulher foi introduzindo pormenores no relato -
como os colegiais desavergonhados aldrabaram a sua mulher.
- Bem, vamos ao que interessa - disse , sentando-se à mesa
quando chegou a sua vez e baralhando as cartas .

De facto , Evguéni Mikháilovitch pagou com o cupão ao camponês


Ivan Mirónov.
Ivan Mirónov fazia o seu comércio de lenha do modo seguinte:
comprava nos armazéns uma pilha de lenha, de uma braça de altura
e outra de comprimento , levava-a pela cidade e dividia-a em cinco
partes , vendendo cada parte ao preço do quarto de braça quadrada
que pagava no armazém . Neste dia, infeliz para Ivan Mirónov, ainda
de manhã cedo levou uma oitava de braça, vendeu-a rapidamente ,
carregou na carroça outra oitava com esperança de a vender, mas
andou com ela até à noite e não arranjou comprador. Sempre lhe
calhavam citadinos experientes que conheciam bem os truques ha­
bituais dos mujiques vendedores de lenha e não acreditavam nele
quando dizia que a lenha fora trazida da aldeia . Ivan estava cheio
de fome e de frio com a sua peliça curta coçada e o armiak roto; à
noite , o frio chegou a 20 graus negativos; a pileca que ele não pou­
pava porque tencionava vendê-la aos esfoladores , deixou de andar.
Portanto , Ivan Mirónov já estava pronto a ceder a lenha com prejuí-
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 27

zo quando viu na rua Evguéni Mikháilovitch , regressando a casa de


uma tabacaria.
- Compre , meu senhor, levo barato . O cavalo está esfalfado .
- Mas donde és?
- Da aldeia. A lenha é nossa, boa, seca.
- Pois , já vos conheço . Então , a como é?
Ivan Mirónov disse o preço , depois baixou e , finalmente , cedeu
pelo preço do armazém.
- Só para si , meu senhor, já que a sua casa não é longe - disse ele .
Evguéni Mikháilovitch não regateou muito , contente com a pos­
sibilidade de se desfazer do cupão . Com certo esforço , puxando ele
próprio os varais , Ivan Mirónov levou a lenha para o pátio e des­
carregou-a sozinho para dentro do barracão . O guarda-varredor não
estava. Ivan Mirónov, primeiro, hesitou em aceitar o cupão , mas Ev­
guéni Mikháilovitch convenceu-o e parecia um senhor tão importan­
te que Ivan ficou com o cupão .
Depois de entrar, pelas traseiras , no quarto das criadas , Ivan Mi­
rónov benzeu-se , deixou derreter o gelo que lhe pendia da barba e ,
levantando a aba d o cafetã, tirou u m porta-moedas de couro , contou
oito rublos e cinquenta copeques , entregou ao senhor o troco , embru­
lhou o cupão num papelinho e guardou-o no porta-moedas .
Depois de agradecer como é devido ao senhor, Ivan Mirónov,
apressando com o cabo do chicote , em vez do cordel , a pileca coberta
de geada, que mal mexia as patas e estava condenada à morte , dirigiu
a carroça vazia para a casa de pasto .
Na casa de pasto , Ivan Mirónov pediu vodca e chá a 8 copeques .
Aquecido , e mesmo a transpirar, num estado de ânimo muito bom,
encetou conversa com um guarda-varredor sentado à mesma mesa.
Soltou a língua, contou todos os pormenores da sua vida . Contou que
era da aldeia Vassilievskoe , a duas léguas e meia da cidade , que se
separara do pai e dos irmãos e vivia agora na sua própria casa com
a mulher e dois filhos , e que o mais velho andava na escola e ainda
não tinha começado a ajudar. Contou que , na cidade, estava alojado
num quarto de aluguer e que no dia seguinte ia ao mercado de cava­
los onde venderia a sua pileca e veria, ou talvez até comprasse , um
cavalo . Contou que já tinha poupado vinte e quatro rublos , metade
num cupão . Tirou o cupão e mostrou-o ao guarda-varredor. O guarda
1 28 Lev Tolstói

era analfabeto , mas disse que já lhe acontecera trocar esse dinheiro
para os moradores do seu prédio , que o dinheiro assim era bom, mas
por vezes era falso , pelo que aconselhou Ivan a pagar com ele ali , ao
balcão . Ivan Mirónov entregou o cupão ao criado , mandando trazer o
troco , mas o criado não o trouxe , em vez disso veio o gerente careca,
de cara luzidia, segurando o cupão na mão rechonchuda.
- O seu dinheiro não é bom - disse ele , mostrando o cupão , mas
sem lho devolver.
- O dinheiro é bom, foi um senhor que mo deu .
- Não é bom, é falso .
- Mas se é falso , dá cá o cupão .
- Não , amigo , é preciso dar uma lição a gente como tu . Falsificaste-
-o com alguns vigaristas .
- Dá cá o dinheiro , que direito tens tu . . . ?
- Sídor! Chama o polícia - disse o empregado do balcão ao criado.
Ivan Mirónov estava com os copos . Ora, quando bebia tomava-se
inquieto . Agarrou o gerente pelo colarinho e gritou:
- Devolve o dinheiro , vou falar com o senhor. Sei onde ele vive .
O gerente deu um puxão , recuando de Ivan , e a sua camisa rangeu .
- A-a, ele é isso ! Agarrem-no .
O criado agarrou Ivan Mirónov, e logo a seguir apareceu um polí­
cia. Como autoridade , ouviu o que se passava e tomou uma decisão .
- Levá-lo à esquadra.
O polícia pôs o cupão na sua carteira e levou Ivan Mirónov, junta­
mente com o cavalo , para a esquadra.

Ivan Mirónov dormiu a noite na esquadra, ao lado de bêbedos e


ladrões . Era quase meio-dia quando foi chamado à presença do chefe
da esquadra. Este interrogou-o e mandou-o , acompanhado pelo guar­
da policial , à casa do vendedor de artigos de fotografia. Ivan Mirónov
lembrava-se da rua e da casa.
Quando o polícia chamou o senhor e lhe apresentou o cupão e Ivan
Mirónov, que afirmava ser aquele mesmo senhor que lhe dera o cupão,
Evguéni Mikháilovitch fez cara surpreendida e, depois , severa.
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 29

- Passaste-te da cabeça, pelos vistos . Vejo este indivíduo pela


primeira vez .
- Senhor, é pecado , todos vamos responder depois da morte -
disse Ivan Mirónov.
- O que lhe deu? Esqueceste-te , homem . Vendeste lenha a ou­
tro qualquer - disse Evguéni Mikháilovitch . - Aliás , esperem, vou
perguntar à mulher se ontem comprou lenha.
Evguéni Mikháilovitch saiu e chamou o guarda-varredor Vassíli , ra­
paz bonito e alegre, muito robusto, despachado e janota, e disse-lhe
que , se lhe perguntassem onde fora comprada a lenha pela última vez,
que dissesse que foi no armazém, que não a compraram aos mujiques .
- Porque lá um mujique declara que lhe dei um cupão falso .
O mujique é atoleimado , diz cada disparate , mas tu és um homem
ajuizado . Diz , então , que só compramos lenha no armazém . E toma
isto , há muito que te queria oferecer, para o casaco - acrescentou
Evguéni Mikháilovitch e deu ao guarda-varredor cinco rublos .
Vassíli pegou no dinheiro , os seus olhos brilharam ao olhar para a
nota e depois para a cara de Evguéni Mikháilovitch , sacudiu o cabelo
e sorriu ligeiramente .
- Já se sabe , é uma gente lorpa. Inculta. Fique descansado . Sei
como devo dizer.
Por mais que Ivan Mirónov implorasse com lágrimas a Evguéni
Mikháilovitch , pedindo-lhe que reconhecesse o seu cupão e pedindo
ao guarda-varredor para confirmar as suas palavras , ambos continu­
avam a insistir em que nunca tinham comprado lenha aos mujiques .
Portanto , o polícia voltou a levar Ivan Mirónov para a esquadra, acu­
sado de falsificação do cupão .
Valeu a Ivan o conselho de um escrivão bêbedo que estava com ele
na cela: deu cinco rublos ao chefe da esquadra e assim conseguiu sair
em liberdade , sem o cupão e com sete rublos em vez dos vinte e cinco
que tivera na véspera. Ivan Mirónov gastou na bebedeira três rublos
desses sete e , com a cara partida e bêbedo como uma pipa, voltou
para junto da sua mulher.
A mulher estava nos últimos dias da gravidez e doente . Começou
a ralhar com o marido , ele empurrou-a, a mulher pôs-se a bater-lhe .
Ivan , sem responder, deitou-se de bruços no catre e chorou alto .
Só na manhã seguinte a mulher percebeu o que acontecera, acredi­
tou no marido e rogou muitas pragas ao ladrão do senhor que enga-
1 30 Lev Tolstói

nara o seu Ivan . Entretanto , Ivan , ao desembriagar-se , lembrou-se do


que lhe aconselhara um artesão com quem bebera no dia anterior, e
resolveu ir queixar-se a um advogado .

O advogado aceitou o caso , nem tanto pelo dinheiro que podia


receber, mas porque acreditou em Ivan e ficou indignado com o facto
de terem enganado o mujique de modo tão desavergonhado .
Ambas as partes compareceram no tribunal , o guarda-varredor
Vassíli era testemunha. No tribunal , repetiu-se a mesma coisa. Ivan
Mirónov falou de Deus, do juízo de Deus depois da morte . Evguéni
Mikháilovitch , apesar dos tormentos que experimentava com a cons­
ciência do perigo e da porcaria que estava a cometer, já não podia
mudar o seu depoimento e continuou a negar tudo com ar aparente­
mente tranquilo .
O guarda-varredor Vassíli recebeu mais dez rublos e afirmou com
um sorriso calmo que nunca na vida vira Ivan Mirónov. E quando o
fizeram prestar juramento , embora estivesse assustado , não o mos­
trou e repetiu calmamente as palavras do juramento , ditas pelo velho
sacerdote, jurando com a Cruz e o Santo Evangelho que ia dizer toda
a verdade .
Em resultado , o juiz recusou-se a apoiar a demanda de Ivan Miró­
nov e submeteu-o ao pagamento de cinco rublos das custas judiciais
que Evguéni Mikháilovitch pagou magnanimamente por ele . À des­
pedida, o juiz fez a Ivan Mirónov um sermão para que fosse , dora­
vante , mais cauteloso e não incriminasse pessoas respeitáveis , e que
ainda agradecesse o favor de ficar isento de pagamento das custas
judiciais e de perseguição judicial pela calúnia, senão passaria três
meses na prisão .
- Agradecemos - disse Ivan Mirónov e, abanando a cabeça,
saiu .
Aparentemente , tudo isso acabou da melhor maneira para Evguéni
Mikháilovitch e o guarda Vassíli . Mas só aparentemente . Aconteceu
o que ninguém via, mas que era mais importante do que aquilo que
as pessoas viam .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 131

Vassíli saíra da aldeia e j á era o terceiro ano que estava n a cidade .


Todos os anos enviava cada vez menos dinheiro ao pai e não mandou
vir a mulher para a cidade pois não necessitava dela. Aqui , na cidade ,
tinha quantas mulheres quisesse , e melhores que a sua desleixada.
A cada ano que passava, Vassíli esquecia mais as leis da aldeia e
adotava as regras da cidade . Ali , na aldeia, tudo era grosseiro , cin­
zento , pobre e imundo , mas aqui tudo era fino , bom , limpo , rico e
em ordem. E convencia-se cada vez mais de que os aldeões viviam
na ignorância, como os animais da floresta, enquanto na cidade vivia
gente verdadeira. Lia livros de bons autores , romances , ia aos espetá­
culos da Casa do Povo . Na aldeia, nem se sonha com isso . Na aldeia,
os velhos dizem: vive com a tua mulher legítima, trabalha, não co­
mas demais , não te exibas , mas aqui as pessoas são espertas , cultas
- portanto , conhecem as verdadeiras leis - e vivem os prazeres da
vida. E tudo está bem . Antes do caso do cupão , Vassíli não acreditava
que os senhores não tivessem qualquer lei sobre como era devido vi­
ver. Parecia-lhe que havia uma lei , só que não a conhecia. Mas o caso
do cupão e, sobretudo , o seu falso juramento que , apesar do medo por
que passou , não teve más consequências , antes pelo contrário lhe deu
mais dez rublos , convenceram-no definitivamente de que não havia
leis nenhumas e que era preciso viver a seu bel-prazer. Assim viveu ,
assim continuou a viver. De início , aproveitava-se , fazendo compras
para os moradores do prédio , mas era pouco para todas as suas des­
pesas; então começou , onde era possível , a surripiar dinheiro e coi­
sas valiosas dos apartamentos , e uma vez roubou o porta-moedas de
Evguéni Mikháilovitch . Evguéni Mikháilovitch desmascarou-o , mas
não apresentou queixa no tribunal , limitou-se a despedi-lo .
Não apetecia a Vassíli voltar para casa, ficou em Moscovo , vivendo
com a sua namorada e procurando emprego . Arranjou um , mal pago ,
o de guarda-varredor de um lojista. Logo no dia seguinte , foi apanha­
do a roubar sacos . O patrão não foi queixar-se , deu a Vassíli uma sova
e expulsou-o . Depois deste caso , o novo emprego nunca mais surgia,
o dinheiro esgotou-se, depois foi vendida a roupa, e por fim restava­
-lhe só um casaco roto , umas calças e umas botas gastas . A namorada
abandonou-o . Vassíli , contudo , não perdeu o seu estado de ânimo ale­
gre e enérgico , esperou até à primavera e foi a pé para a sua aldeia.
1 32 Lev Tolstói

Piotr Nikoláevitch Swiçticki , homenzinho atarracado de óculos


negros (tinha uma doença dos olhos e a cegueira completa pela fren­
te) , levantou-se , como de costume , antes de amanhecer, tomou um
copo de chá, vestiu uma peliça curta coberta de pano e orlada de pele
de cordeiro e foi dar uma vista de olhos à sua propriedade .
Dantes , Piotr Nikoláevitch era funcionário da alfândega e acu­
mulou 1 8 mil rublos . Cerca de doze anos atrás , reformou-se , o que
não aconteceu , aliás , por vontade própria , e comprou a um jovem
proprietário arruinado uma herdade . Piotr Nikoláevitch casou-se
ainda nos tempos do serviço . A sua esposa era uma órfã pobre pro­
veniente de uma antiga família fidalga , mulher corpulenta e bonita
que não lhe deu filhos . Em todos os seus negócios , Piotr Nikoláe­
vitch mostrava ponderação e persistência. Não percebendo nada de
economia agrícola (era filho de um szlachticz 1 0 polaco) , dedicou-se
a ela com tanta aplicação que , em dez anos , a propriedade arruina­
da de 1 200 jeiras se tomou exemplar. Todas as suas construções ,
desde a casa até ao celeiro e o alpendre por cima da mangueira
de incêndio , eram sólidas , fundamentais , cobertas de ferro e pin­
tadas a tempo . No barracão das alfaias , as carroças , os arados , as
charruas e as grades estavam em perfeita ordem . Os arreios esta­
vam lubrificados . Os cavalos não eram grandes , quase todos da
sua própria coudelaria - de pelagem baia-clara, cevados , fortes ,
iguais . A trilhadeira trabalhava numa eira coberta , a forragem era
guardada num barracão especial , o estrume líquido corria para um
fosso empedrado . As vacas também eram da sua própria criação ,
de tamanho médio , mas boas leiteiras . Os porcos eram ingleses .
Havia uma capoeira com galinhas de boa raça poedeira. No pomar,
as árvores tinham estacas e troncos devidamente pincelados . Tu­
do era prático , sólido , limpo e cuidado . Piotr Nikoláevitch estava
contente com a sua lavoura e sentia orgulho por não conseguir tudo
isso mediante a exploração dos camponeses , mas , pelo contrário ,
sendo rigorosamente justo para com eles . Mantinha, mesmo entre
os fidalgos , convicções moderadas , mais liberais do que conserva­
doras , e defendia sempre o povo perante os esclavagistas . Trata-os
bem , e serão bons . Embora não perdoasse falhas e erros dos seus
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 133

assalariados , e por vezes lhes desse empurrões , exigindo bom tra­


balho , o alojamento e a ração eram bons , o salário era pago a tempo
e , nas festas , oferecia vodca.
Pisando com cuidado a neve derretida - era em fevereiro - ,
Piotr Nikoláevitch dirigiu-se , ao longo da estrebaria dos cavalos
de trabalho , à isbá onde viviam os trabalhadores . Era ainda escu­
ro; ainda mais escuro por causa do nevoeiro , mas a luz via-se nas
janelas da isbá . Os trabalhadores estavam a levantar-se . Piotr Ni­
koláevitch ia apressá-los: tinham de ir, seis deles , buscar a última
lenha à floresta.
«0 que é?» , pensou , vendo a porta da estrebaria aberta.
- Eh , quem está aqui?
Ninguém respondeu . Piotr Nikoláevitch entrou na estrebaria.
- Eh , quem está aqui?
Ninguém respondia. Tudo escuro , o chão sob os pés era macio ,
cheirava a estrume . À direita da porta estava, normalmente , um par
de jovens baios . Piotr Nikoláevitch estendeu a mão - vazio . Tocou
com o pé , não fossem estar deitados . O pé não encontrou nada . «Para
onde os terão levado?» , pensou . Ainda não atrelaram , todos os trenós
estão ainda fora. Piotr Nikoláevitch saiu e gritou alto:
- Eh , Stepan !
Stepan era o responsável da equipa. Neste momento , estava a sair
da isbá.
- Eh ! - respondeu Stepan animadamente . - É você , Piotr Ni-
koláevitch? Os rapazes já vêm .
- Porque é que a estrebaria está aberta?
- A estrebaria? Não sei . Eh , Prochka, dá cá a lanterna.
Prochka acorreu com a lanterna. Entraram na estrebaria. Stepan
percebeu tudo à primeira.
- Foram os ladrões , Piotr Nikoláevitch . O cadeado foi partido .
- Não !
- Roubaram-nos , velhacos . A Machka não está. O Açor não está.
Não , o Açor está. O Sarapintado não está. O Bonitão também .
Três cavalos haviam desaparecido . Piotr Nikoláevitch não disse
nada. Carregou o sobrolho . Respirava com dificuldade .
- Oh , se o apanho . . . Quem estava de guarda?
- O Petka. Às tantas adormeceu .
1 34 Lev Tolstói

Piotr Nikoláevitch queixou-se à polícia, a chefes de administração


de todos os níveis , mandou os seus homens procurar. Não encontra­
ram os cavalos .
- Que gente abominável ! - dizia Piotr Nikoláevitch . - Olha o
que fizeram . E eu que lhes fiz tanto bem . Agora, esperem. Bandidos ,
são todos uns bandidos . Agora a cantiga vai ser outra.

10

Entretanto , o s três baios-claros j á tinham sido despachados . A Ma­


chka foi vendida aos ciganos por dezoito rublos , o Sarapintado foi
dado por troca a um mujique a oito léguas da herdade , o Bonitão
foi esfalfado e mataram-no , vendendo a pele por três rublos . Todo
o negócio foi dirigido por Ivan Mirónov. Servira em casa de Piotr
Nikoláevitch , sabia como funcionava tudo na propriedade e resolveu
recuperar o seu dinheirinho . E conseguiu .
Depois da sua desgraça com o cupão falso , Ivan Mirónov entrou nu­
ma longa bebedeira e teria esbanjado tudo se a mulher não escondesse
dele as coelheiras , a roupa e, em geral , tudo o que ele pudesse levar.
Durante o período de bebedeira, Ivan Mirónov não deixava de pensar
não só no seu ofensor, mas em todos os senhores e senhorzinhos que
viviam depenando a gente . Uma ocasião , Ivan Mirónov bebeu com
uns mujiques de Podolsk. Então , pelo caminho , os mujiques bêbedos
contaram-lhe como roubaram , uma vez , os cavalos a um camponês .
Ivan Mirónov zangou-se com os ladrões por terem ofendido o muji­
que . «É pecado - disse - , para o mujique o cavalinho é o mesmo
que um irmão , e desgraçaste-o . Roubar por roubar, rouba-se aos se­
nhores . Esses pulhas merecem.» Palavra puxa palavra, conversaram, e
os mujiques de Podolsk disseram que roubar cavalos aos senhores era
complicado. É preciso conhecer a maneira, e não se faz sem termos o
nosso homem lá dentro . Então , Ivan Mirónov lembrou-se de Swi�ticki ,
para quem tinha trabalhado , lembrou-se de que Swi�ticki lhe descon­
tara da paga um rublo e cinquenta copeques por uma cravija estragada,
lembrou-se também dos cavalos baios-claros com que trabalhara.
Ivan Mirónov foi então a casa de Swi�ticki fingindo pedir trabalho ,
mas na verdade para ver e saber as coisas . E quando soube tudo , que
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 35

não havia guarda, que os cavalos estavam na estrebaria - trouxe


ladrões e levou os cavalos .
Depois de partilhar o dinheiro com os mujiques de Podolsk, Ivan
Mirónov, com cinco rublos no bolso , voltou para casa. Em casa não
havia trabalho porque não havia cavalo . E desde então Ivan Mirónov
começou a andar em negócios com ladrões de cavalos e ciganos .

11

Piotr Nikoláevitch Swiçticki ansiava por encontrar o ladrão . O cri­


me não podia ser cometido sem um cúmplice dentro da propriedade .
Por isso começou a suspeitar dos seus trabalhadores e , ao perguntar
quem não dormira em casa naquela noite , soube que tinha sido o
Prochka Nikoláev, um rapaz regressado recentemente do serviço mi­
litar, bonitão e espertalhão , servindo a Piotr Nikoláevitch de cochei­
ro quando este precisava de sair. O comissário da polícia rural era
companheiro de Piotr Nikoláevitch; também o inspetor da polícia,
o decano da nobreza e o chefe da administração rural eram seus co­
nhecidos . Todas estas pessoas eram convidadas dos seus aniversários
e provaram os seus licores caseiros saborosos e os seus cogumelos
salgados . Todos tinham pena dele e tentavam ajudá-lo .
- Está a ver, e o senhor ainda defende os mujiques - dizia o
comissário da polícia rural . - Não lhe disse que são piores que os
animais? Não se pode tratá-los senão a chicote e pau . Então , acha que
foi o Prochka, aquele que é o seu cocheiro?
- Acho que sim .
- Que o tragam cá.
Chamaram Prochka, começaram a interrogá-lo:
- Onde estavas?
Prochka sacudiu a cabeça, os olhos brilharam-lhe .
- Em casa.
- Em casa? Todos os homens dizem que não estavas .
- Pensem o que quiserem.
- Não interessa o que penso . Onde estavas?
- Em casa.
- Está bem . Comandante dos guardas , leva-o à esquadra.
1 36 Lev Tolstói

O Prochka nunca disse onde estivera, e foi porque passara a noite


com a sua amiga Paracha, a quem prometera guardar segredo, o que
fez. Não havia provas . Prochka foi posto em liberdade. Mas Piotr Ni­
koláevitch tinha certeza de que estivera implicado e ganhou-lhe ódio .
Um dia, Piotr Nikoláevitch , levando Prochka como cocheiro , mandou­
-o buscar aveia. Prochka, tal como costumava fazer, comprou na esta­
lagem dois alqueires e meio de aveia. Deu aos cavalos dois alqueires e
com o resto pagou a bebedeira. Piotr Nikoláevitch soube disso e man­
dou uma queixa ao juiz de paz . O juiz condenou Prochka a três meses
de cadeia. Prochka era rapaz de grande amor-próprio . Achava-se supe­
rior aos outros e tinha orgulho de si próprio . A cadeia humilhou-o . Já
não podia ter orgulho perante os outros e desanimou .
Prochka voltou da cadeia enraivecido, mas nem tanto contra Piotr
Nikoláevitch quanto com todo o mundo .
Como dizia toda a gente , depois da cadeia Prochka desleixou-se, ti­
nha preguiça de trabalhar, começou a beber e não tardou a ser apanha­
do a roubar roupa a uma citadina, pelo que foi parar de novo à cadeia.
Quanto a Piotr Nikoláevitch , a única coisa que veio a saber dos
seus cavalos foi o achado da pele do cavalo baio-claro que identificou
como a do Bonitão . E a impunidade dos ladrões irritouPiotr Nikoláe­
vitch ainda mais. Não podia agora ver os mujiques e falar deles sem
raiva, e oprimia-os de todas as maneiras .

12

Embora Evguéni Mikháilovitch , ao desfazer-se do cupão , deixasse


de pensar nele , a sua mulher Maria Vassílievna não conseguia per­
doar a si própria ter-se deixado aldrabar, nem ao marido aquelas pa­
lavras cruéis , nem, sobretudo , àqueles dois jovens canalhas que a
enganaram com tanta mestria.
A partir daquele dia nunca deixou de espreitar para as caras de to­
dos os colegiais que encontrava. Um dia cruzou-se com Mákhin , mas
não o reconheceu porque ele , ao ver a senhora, fez uma careta que
transfigurou por completo a sua cara. Porém, reconheceu de imediato
Mítia Smokóvnikov quando , passadas cerca de duas semanas após
a ocorrência, esbarrou de frente com ele no passeio . Deixou-o pas-
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 37

sar, depois virou-se e seguiu-o . Ao chegar até à sua casa e ao tomar


conhecimento de quem era o seu pai , foi no dia seguinte ao liceu e
encontrou no vestíbulo Mikhaíl Vvedênski , professor de catecismo .
Este perguntou o que queria a senhora. Respondeu que desejava ver
o diretor.
- O diretor não está, adoeceu; se calhar posso ser eu a fazer algu­
ma coisa, ou então transmitir-lhe a mensagem?
Maria Vassílievna resolveu contar tudo ao professor de catecismo .
O professor de catecismo Vvedênski era viúvo , fez o curso na Aca­
demia Eclesiástica e era homem de grande amor-próprio . Já no ano
anterior se encontrara, em casa de alguém , com o pai de Smokóvni­
kov e, entrando em debate com ele numa conversa sobre a fé , em que
Smokóvnikov o arrasou em todos os pontos e o ridicularizou , resol­
veu prestar atenção especial ao seu filho; então , ao descobrir neste a
mesma indiferença para com o catecismo que encontrara no seu pai
descrente , pôs-se a persegui-lo e até o reprovou no exame .
Ao inteirar-se , através do relato de Maria Vassílievna, do proce­
dimento do jovem Smokóvnikov, Vvedênski sentiu prazer, natu­
ralmente , vendo no caso a confirmação do seu pressuposto sobre a
imoralidade das pessoas privadas da orientação da Igreja, e decidiu
aproveitar o caso , como tentava convencer-se a si próprio , para de­
monstrar o perigo que corriam todos os renegados da Igreja - mas
no fundo da alma para se vingar do ateu orgulhoso e convencido .
- Sim, é uma coisa muito triste , muito triste - disse o padre
Mikhaíl Vvedênski , acariciando com a mão as facetas lisas da sua
cruz de peito . - Estou muito contente por me ter entregado este
caso; como clérigo , vou fazer tudo para não deixar o jovem sem um
sermão edificante , mas também tentarei suavizar a lição na medida
do possível .
«Sim , vou proceder de acordo com a minha dignidade» , disse para
si próprio o padre Mikhaíl , pensando que , esquecido por completo da
antipatia do pai , tinha em mente só o bem e a salvação do filho .
No dia seguinte , na aula de catequese , o padre Mikhru1 contou aos
alunos o episódio do cupão falso e disse que o cometera um colegial .
- Este procedimento foi feio e vergonhoso - disse ele - , mas
a denegação é ainda pior. Se algum dos presentes o fez (em que não
acredito) , seria melhor se se arrependesse , em vez de se esconder.
138 Lev Tolstói

Enquanto falava, o padre Mikhaíl mirava fixamente Mítia Smokó­


vnikov. Os alunos , seguindo o seu olhar, também viravam as cabeças
para Smokóvnikov. Mítia corava, suava, finalmente desatou a chorar
e fugiu da sala.
A mãe de Mítia, quando soube disso , obrigou o filho a contar-lhe
toda a verdade e correu à loja dos artigos de fotografia. Pagou à dona
da loja os doze rublos e cinquenta copeques e convenceu-a a não
revelar o nome do colegial . E mandou o filho negar tudo e nunca o
confessar ao pai .
Ora, quando Fiódor Mikháilovitch veio a saber do que acontecera
no liceu e o filho , chamado à sua presença, negou tudo , Smokóvnikov­
-pai foi ter com o diretor e, expondo-lhe o caso , disse-lhe que o com­
portamento do professor de catequese era extremamente censurável
e que não ia deixar que as coisas ficassem assim . O diretor chamou o
padre e a consequência foi uma disputa exaltada entre este e Fiódor
Mikháilovitch .
- Uma mulher estúpida incriminou o meu filho , depois ela pró­
pria retirou o seu depoimento , mas o senhor não encontrou nada me­
lhor do que caluniar um rapaz honesto e verdadeiro .
- Não caluniei ninguém nem permito que fale comigo dessa ma­
neira. O senhor esquece a minha dignidade .
- Estou-me nas tintas para a sua dignidade .
- As suas noções deturpadas - pronunciou o professor de cate-
quese com o queixo a tremer tanto que a barbicha rala lhe saltitava
- são conhecidas por toda a cidade .
- Meus senhores , padre . . . - O diretor tentou acalmar os alterca-
dores . Mas acalmá-los era impossível .
- O dever da minha dignidade manda-me cuidar da educação re­
ligiosa e moral .
- Deixe de fingir. Será que não sei que o senhor não acredita nem
no Diabo nem na morte?
- Acho indigno para mim falar com alguém como o senhor - disse
o padre Mikhaíl , ofendido com as últimas palavras de Smokóvnikov,
sobretudo porque sabia que eram justas . Tinha o curso completo da
Academia Teológica e, por isso , havia muito que não acreditava no
que pregava, tendo fé apenas em que todas as pessoas deviam obrigar­
-se a si próprias a ter a mesma crença que ele próprio se impunha.
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 39

Smokóvnikov nem tanto estava indignado com o procedimento do


professor quanto achava que ele era uma boa ilustração da influência
clerical que começava a manifestar-se entre nós , de maneira que an­
dou a contar o caso por todo o lado e a toda a gente .
Quanto a Vvedênski, vendo as manifestações do niilismo e do ateísmo
enraizados não só na geração jovem, mas também na velha, convencia-se
cada vez mais da necessidade de lutar contra eles. Quanto mais censura­
va a descrença de Smokóvnikov e semelhantes , tanto mais se convencia
da firmeza inabalável da sua fé e tanto menos sentia a necessidade de a
averiguar ou de a conciliar com a sua própria vida. A sua fé, reconhecida
por todo o mundo que o rodeava, era para ele a arma principal de luta
contra os seus negadores .
Estas ideias , despertadas nele pelo confronto com Smokóvnikov,
juntamente com as contrariedades surgidas no liceu em resultado
do mesmo - ou seja, uma admoestação da parte dos chefes - ,
levaram-no a tomar uma decisão que havia muito , já depois da morte
da mulher, o atraía: tomar o hábito e enveredar pela carreira que es­
colheram alguns dos seus colegas da Academia, um dos quais já era
prelado e , o outro , arquimandrita com o cargo de bispo .
No fim do ano académico , Vvedênski abandonou o liceu , tomou
o hábito com o nome de Missru.1 e , muito rapidamente , foi nomeado
reitor do seminário de uma cidade no Volga.

13

Entretanto , o guarda-varredor Vassíli ia pela estrada rumo ao sul .


De dia caminhava, mas de noite o guarda levava-o para mais um
alojamento . Davam-lhe pão por todo o lado , às vezes até o sentavam
à mesa do jantar. Numa aldeia da província de Oriol , onde pernoitou ,
disseram-lhe que um comerciante que arrendara o pomar ao proprie­
tário da herdade, procurava guardas . Vassíli estava farto de pedinchar,
mas não lhe apetecia voltar para casa, por isso foi falar ao comerciante­
-jardineiro, que o contratou como guarda por cinco rublos mensais .
A vida na cabana, sobretudo quando as maçãs começaram a amadu­
recer e os guardas trouxeram da eira grandes braçadas de palha fresca,
logo depois da trilhadeira, agradava muito a Vassíli . Apreciava ficar
1 40 Lev Tolstói

deitado todo o dia na palha fresca e aromática ao lado de montinhos de


maçãs caídas , temporãs e tardias , ainda mais odorosas do que a palha,
estar atento à rapaziada, não fosse penetrar no pomar, assobiar e cantar
cantigas . Vassíli era bom a cantar. E a sua voz era boa. Mulheres e
raparigas da aldeia vinham buscar maçãs . Vassíli brincava com elas ,
dava mais maçãs ou menos - dependia de quem ·gostava ou não - ,
recebia em troca ovos ou cobres , depois voltava a deitar-se; só se le­
vantava para tomar o pequeno-almoço, o almoço e o jantar.
Tinha só uma camisa, de chita cor-de-rosa e rota, os pés descalços ,
mas o corpo era robusto , saudável , e quando tiravam do lume a caldei­
ra com papas , Vassíli comia por três , espantando o guarda velho que
ali servia. De noite , Vassíli não dormia - ou assobiava, ou soltava
gritos , e via longe , como um gato . Uma vez , uns rapazes adolescentes
da aldeia entraram no pomar para roubar maçãs . Vassíli aproximou­
-se sorrateiramente deles e atacou-os; os rapazes tentaram resistir, mas
deu-lhes uma tareia, levou um deles à cabana e entregou-o ao patrão .
A primeira cabana de Vassíli era no pomar longínquo , mas a segun­
da, quando as maçãs temporãs foram colhidas , era a quarenta passos
da casa senhorial . Nesta cabana, Vassíli tinha ainda mais alegria. Via
todo o dia os senhores e as meninas a brincarem , a partirem de coche ,
a passearem no jardim e , à noite , a tocarem piano e violino , a cantarem
e a dançarem. Via como as meninas e os estudantes se sentavam nos
peitoris das janelas e namoravam, e depois iam passear pelas alamedas
escuras de a.lias onde o luar penetrava somente em manchas e faixas .
Via como os criados corriam, servindo refeições e bebidas , e como
os cozinheiros , as lavandeiras , os administradores , os jardineiros e os
cocheiros trabalhavam todos para, apenas , darem de comer e de beber
aos senhores , para os divertirem. Às vezes , os jovens senhores iam
à sua cabana e ele , então, escolhia para eles as melhores maçãs , as
mais maduras , as de bochechas vermelhas , e as meninas , ali mesmo ,
trincavam-nas com estalidos , louvavam-nas e falavam - Vassíli per­
cebia que falavam dele - em francês , e mandavam-no cantar.
E Vassíli admirava esta vida e recordava a sua em Moscovo , e a
ideia de que tudo dependia do dinheiro remexia-se cada vez mais na
sua cabeça.
E Vassíli não parava de matutar na maneira de abichar muito di­
nheiro de uma vez . Começou a lembrar-se como fazia antes e resol-
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 141

veu que era preciso sacar o que estava mal guardado , sim, mas de
outro modo e não como dantes . Primeiro , tinha de ponderar, espiar e
fazer as coisas de modo limpo , sem deixar pistas . Na véspera do Nas­
cimento da Virgem foram colhidas as últimas maçãs antónovka 1 1 •
O patrão teve um grande lucro , pagou à despedida a todos os guardas ,
e a Vassíli também , premiou toda a gente .
Vassíli vestiu-se - o jovem senhor oferecera-lhe um casaco e um
chapéu - e não foi para casa porque , só de pensar na vida grosseira de
mujique , sentia repugnância; assim, voltou para a cidade juntamente
com os soldados bebedolas que tinham guardado o mesmo pomar. Na
cidade, decidiu arrombar de noite a porta da loja em que trabalhara
e roubar o dinheiro do dono - este , naquele tempo , espancara-o e
pusera-o no olho da rua sem lhe pagar. Conhecia bem a casa e onde
ele guardava o dinheiro , pôs um soldado de guarda, partiu a janela
que dava para o pátio , entrou e abarbatou todo o dinheiro . O roubo
foi feito com mestria, não encontraram quaisquer pistas . Eram 370
rublos . Vassíli deu 100 rublos ao cúmplice e levou o resto para outra
cidade onde se meteu na pândega com companheiros e amiguinhas .

14

Entretanto , Ivan Mirónov tomou-se um ladrão de cavalos hábil ,


atrevido e bem-sucedido . Afímia, sua mulher, que antes ralhava com
ele pela má vida, como ela dizia, agora estava contente e orgulhava­
-se do marido , da sua peliça de carneiro coberta de pano e de ela
própria andar com peliça nova e um bom xaile .
Na aldeia e em todas as redondezas sabiam que nenhum roubo de
cavalos se cometia sem a participação dele , mas tinham medo de o
acusar e , mesmo quando a suspeita era muito grande , Ivan saía limpo
e inocente da situação . O seu último roubo foi o de cavalos do pasto
noturno da aldeia de Kolotovka. Quando era possível , Ivan Mirónov
escolhia quem ia roubar, preferindo os senhores e os comerciantes .
Mas roubar a esses era difícil . Por isso , quando não dava para se
apossar dos cavalos dos senhores e dos comerciantes , levava os dos
camponeses . Assim, desviou do pasto de Kolotovka os primeiros ca­
valos que lhe vieram à mão . Não foi ele , pessoalmente , quem operou
1 42 Lev Tolstói

dessa vez , mas Guerássim , um rapaz hábil que Ivan instruiu . Os mu­
jiques só ao amanhecer descobriram o desaparecimento dos cavalos
e correram pelos caminhos, procurando-os . Os cavalos , no entanto ,
estavam num barranco , numa floresta pública. Ivan Mirónov tencio­
nava mantê-los ali até à noite seguinte e depois fugir com eles para a
casa de um estalajadeiro seu conhecido , a oito léguas dali . Ivan Miró­
nov foi ter com Guerássim à floresta, deu-lhe bolo e vodca, e voltou
para casa por uma vereda florestal onde esperava não se encontrar
com ninguém. Mas , por azar, esbarrou com um guarda, ex-soldado .
- Foste aos cogumelos? - perguntou o guarda.
- Não há nada - respondeu Ivan Mirónov, mostrando o cesto
que levava para o que desse e viesse.
- Sim, neste verão não há cogumelos - disse o guarda - , se
calhar aparecem na altura da abstinência - e seguiu o seu caminho .
O guarda percebeu que qualquer coisa não batia certo . Não havia
razão para Ivan Mirónov andar tão cedo de manhã pela floresta públi­
ca. O guarda voltou e começou a procurar. Ouviu , perto do barranco ,
o bufar de cavalos e fo i devagarinho nessa direção . N o barranco , a er­
va estava batida e havia estrume de cavalo . Mais à frente , viu o Gue­
rássim sentado no chão , a comer, e dois cavalos atados a uma árvore .
O guarda correu à aldeia, chamou o regedor eleito , o comandante
dos guardas e duas testemunhas . Aproximaram-se do lugar, por três
lados , e apanharam o Guerássim . Este não negou nada e , como es­
tava com os copos , até confessou tudo . Contou como Ivan Mirónov
o embebedara e o convencera a roubar, e que prometera vir buscar
os cavalos nessa mesma noite . Os mujiques deixaram Guerássim e
os cavalos na floresta e fizeram uma emboscada, ficando à espera
de Ivan Mirónov. Quando escureceu , ouviram um assobio . Guerás­
sim respondeu . Mal Ivan Mirónov começou a descer pelo declive ,
atiraram-se a ele e levaram-no para a aldeia. De manhã, uma multi­
dão reuniu-se em frente da isbá do regedor.
Trouxeram Ivan Mirónov e começaram a interrogá-lo . O primeiro
a interrogar foi Stepan Pelaguéiuchkin , mujique esgrouviado , curva­
do e de braços compridos , com nariz aquilino e expressão sombria
na cara. Stepan vivia sozinho e acabara o seu serviço na tropa havia
pouco; separou-se do pai e, mal começou a endireitar a sua nova vida
independente , roubaram-lhe o cavalo . Trabalhou então durante um
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 43

ano nas minas e conseguiu comprar dois cavalos . E logo lhe foram
ambos roubados .
- Diz onde estão os meus cavalos - exigiu Stepan , pálido de rai­
va, olhando sombriamente ora para o chão , ora para a cara de Ivan.
Ivan Mirónov negou tudo . Então , Stepan deu-lhe um murro na ca­
ra e partiu-lhe o nariz . O sangue correu .
- Diz , senão mato-te !
Ivan Mirónov, com cabeça baixa, calava-se . Stepan bateu-lhe uma
vez , outra vez . Ivan calava-se , só lançava a cabeça para um lado e
para outro .
- B atei-lhe todos ! - gritou o regedor.
E todos começaram a espancá-lo . Ivan Mirónov caiu e gritou:
- B árbaros , diabos , espancai-me até à morte . Não tenho medo
de vós !
Stepan , por fim, apanhou uma pedra e partiu a cabeça de Ivan Mi­
rónov.

15

O s assassinos de Ivan Mirónov foram julgados , entre eles Stepan


Pelaguéiuchkin . A sua sentença foi a mais severa porque todos dis­
seram que ele estoirara a cabeça de Ivan Mirónov com uma pedra.
No tribunal , Stepan não escondeu nada , explicou que , quando lhe
roubaram os últimos dois cavalos , fora queixar-se à polícia local ,
e era possível encontrar pistas , procurando entre os ciganos , mas
o comissário não quisera recebê-lo nem tinha procurado coisa ne­
nhuma .
- Então , o que mais podíamos fazer com aquele? Levou-nos à
ruína.
- Mas porque é que os outros não lhe bateram , só o senhor? -
perguntou o acusador.
- Não é verdade , toda a gente lhe bateu , a comunidade decidiu
matá-lo . Só lhe dei o último golpe . Para que não sofresse a mais .
Os juízes ficaram impressionados com a expressão de tranquilida­
de absoluta com que Stepan relatou o seu crime , como bateram no
Ivan Mirónov e como ele próprio o abatera de vez .
1 44 Lev Tolstói

De facto , Stepan não via nada de pavoroso neste assassínio . No


serviço militar, calhou-lhe uma vez fuzilar um soldado , e em ambos
os casos não viu nada de especial nisso . Foi morto , pronto . Hoje é a
vez dele , amanhã será a minha.
A pena a que Stepan foi condenado foi leve , só um ano de prisão .
Tiraram-lhe a roupa de mujique , puseram-na no armazém , e vesti­
ram-lhe a bata e as botas prisionais .
Stepan nunca tivera respeito pelos chefes , mas agora convenceu­
-se por completo de que todos os chefes , todos os senhores - todos
menos o czar, o único que tinha pena do povo e era justo - eram uns
facínoras que sugavam o sangue do povo . As histórias contadas pelos
deportados e pelos grilhetas que conheceu na prisão confirmaram es­
te seu ponto de vista. Um foi condenado a trabalhos forçados por ter
denunciado os roubos cometidos pelos chefes , outro porque batera
num chefe quando este começou a penhorar injustamente os haveres
dos camponeses , um terceiro por ter falsificado notas bancárias . De
resto , fizessem os senhores e os comerciantes o que fizessem, esca­
pavam da responsabilidade , enquanto o pobre do mujique , por tudo e
por nada, era mandado para a prisão .
A mulher visitou-o na cadeia. Já estava mal sem ele , até porque a
casa, ainda por cima, lhe ardera num incêndio e a mulher caiu na mi­
séria e andava, com os filhos , a pedir esmola. As desgraças da mulher
enraiveceram Stepan ainda mais . Também na prisão tratava mal toda a
gente e , uma ocasião , por pouco não matou à machadada um rancheiro ,
pelo que lhe prolongaram a pena por mais um ano . Nesse ano chegou­
-lhe a notícia de que a sua mulher morrera e que já não tinha casa . . .
Quando acabou o tempo de prisão foi chamado ao armazém, tira-
ram da prateleira a roupa com que fora trazido , deram-lha.
- Para onde é que vou agora? - disse ele ao quarteleiro .
- Para casa, não tem nada que saber.
- Não tenho casa. Portanto , resta-me sair à estrada, assaltar pes-
soas .
- Se o fizeres , vens parar aqui de novo .
- Logo se vê .
E Stepan foi-se embora. Dirigiu-se, contudo , à casa. Não tinha mais
para onde ir.
Pelo caminho , entrou numa estalagem com taberna que conhecia.
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 45

O dono era um homem gordo , original da cidade de Vladímir. Co­


nhecia Stepan . E sabia que Stepan fora preso por desgraça. Por isso ,
deixou-o dormir a noite em sua casa.
Este estalajadeiro rico roubou a mulher a um mujique vizinho e
vivia com ela, fazendo dela criada e como que sua mulher.
Stepan conhecia a história - como o estalajadeiro ofendeu o muji­
que, como esta mulherzinha nojenta abandonou o marido e se deixou
agora engordar; e estava ela, agora, a suar, tomando chá que serviu
também, por amor de Deus , a Stepan . Não havia viajantes . Deixaram
Stepan dormir na cozinha. Matriona arrumou tudo e saiu para o quar­
to. Stepan deitou-se no catre do fogão, mas não conseguia adormecer
e revirava-se, fazendo estalar as estilhas que estavam a secar em ci­
ma do fogão . A barriga gorda do estalajadeiro que se esbarrondava
do cinto da camisa de chita, lavada tantas vezes que ficou desbotada,
não lhe saía da cabeça. Pensava obsessivamente em cortar com a faca
aquela barriga, soltar a gordura. E fazer o mesmo à mulherzinha. Ora
dizia para si próprio: «que se amolem, amanhã vou-me embora» , ora
recordava o Ivan Mirónov e voltava a pensar na barriga do estalajadei­
ro e no pescoço branco e suado de Matriona. Se matar, mato ambos .
O segundo galo cantou . Se o fizer, tem de ser já, senão amanhece. No­
tara ainda à tarde onde estava a faca e o machado . Desceu do fogão, pe­
gou no machado e na faca, e saiu da cozinha. Neste mesmo momento , a
tranqueta da porta estalou - o estalajadeiro saiu . Stepan não fez como
quisera. Com a faca não dava jeito , levantou o machado e golpeou-lhe
a cabeça. O homem caiu sobre a ombreira e, depois , no chão .
Stepan entrou no quarto . Matriona saltou da cama e , só de camisa,
estava especada junto à cama. Stepan matou-a com o mesmo machado .
Depois acendeu a vela, tirou o dinheiro da escrivaninha e foi-se
embora.

16

Numa cidade distrital , numa casa afastada, vivia um velho , ex-fun­


cionário público , alcoólico , com duas filhas e o genro . A filha casada
também bebia e levava uma má vida; a filha mais velha, a viúva Maria
Semiónovna de cinquenta anos , magra, de cara enrugada, era o único
1 46 Lev Tolstói

arrimo da fann1ia: tinha uma reforma de 250 rublos . Toda a fann1ia se


alimentava com este dinheiro . E era a única que tratava da casa. Cui­
dava do seu velho e fraco pai bêbedo e do filho da sua irmã, cozinhava
e lavava a roupa. E, como acontece sempre nestes casos , obrigavam­
-na a tratar de todos os problemas , e todos os três ralhavam com ela,
e por vezes o cunhado , bêbedo, até lhe batia. Suportava tudo silen­
ciosa e resignadamente, e também, como é costume nestas situações ,
quanto mais trabalho tinha, mais conseguia fazer. Ajudava os pobres ,
partilhando com eles o pouco que lhe sobrava, dava-lhes a sua roupa,
ajudava as pessoas a cuidar dos doentes .
Um dia, um alfaiate perneta da aldeia trabalhou para Maria Semi­
ónovna, refazendo a poddiovka do velho e forrando por cima a peliça
de Maria Semiónovna com que ia à praça no inverno .
O alfaiate coxo era um homem inteligente e bom observador que,
graças ao seu ofício, tinha visto muita gente de todo o género e que,
por causa da sua manqueira, passava a vida sentado e , por conseguinte ,
refletia muito . Tendo passado uma semana em casa de Maria Semióno­
vna, ficou muito impressionado com a sua vida. Um dia, Maria Semió­
novna foi à cozinha onde o homem estava a costurar, para lavar toalhas ,
e entraram numa conversa sobre a vida dele, em que o seu irmão o tra­
tava mal , pelo que o coxo fora obrigado a separar-se e a viver sozinho .
- Pensava que seria melhor, mas não , é a mesma coisa, pobreza.
- É melhor não mudar nada, viver como vivemos - disse Maria
Semiónovna.
- Isso mesmo , admiro-te , Maria Semiónovna: sempre sozinha a
tratar de tudo e para toda a gente . Mas da parte deles , ao que vejo,
não vem nada de bom .
Maria Semiónovna nada respondeu .
- É de supor que aprendeste nos livros que terias por isso uma
recompensa no outro mundo .
- Disso não podemos saber - disse Maria Semiónovna - , só
que viver assim é melhor.
- Vem escrito nos livros?
- Nos livros também - disse ela e leu-lhe o sermão da montanha
do Evangelho . O alfaiate ficou pensativo . E quando terminou o tra­
balho e foi para casa, não deixava de pensar no que vira em casa de
Maria Semiónovna e no que ela lhe dissera e lera.
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 47

17

A atitude de Piotr Nikoláevitch para com o povo mudou , e a do po­


vo para com ele também . Ainda não passara um ano e já os mujiques
lhe haviam cortado vinte e sete carvalhos e queimado um celeiro e
uma eira que não tinham seguro . Piotr Nikoláevitch concluiu que era
impossível conviver com semelhante povo .
Nesta mesma altura, os senhores Liventsov procuravam um admi­
nistrador para as suas herdades , e o decano da nobreza recomendou­
-lhes Piotr Nikoláevitch como o melhor proprietário do distrito . As
herdades dos Liventsov eram enormes , mas não davam qualquer lu­
cro , e os camponeses aproveitavam-se de tudo . Piotr Nikoláevitch
encarregou-se de pôr tudo em ordem e, depois de colocar a sua pro­
priedade em arrendamento , mudou-se com a mulher para a longínqua
província no rio Volga.
Piotr Nikoláevitch sempre gostou da ordem e da legitimidade , mas
agora admitia ainda menos que esse povo selvagem e rude pudes­
se , a despeito da lei , apropriar-se dos bens que não lhe pertenciam.
Estava contente com a possibilidade de dar aos camponeses uma li­
ção e deitou mãos à obra com toda a severidade . Fez com que um
camponês fosse condenado a prisão por ter roubado as árvores da
floresta, espancou com as suas próprias mãos um outro porque este ,
na carroça, não lhe cedeu passagem nem o cumprimentou , tirando o
chapéu . Quanto aos prados que os camponeses achavam seus , o que
era uma questão a debater, Piotr Nikoláevitch declarou que , no caso
de os camponeses meterem o seu gado nesses lameiros , apreenderia
todas as vacas .
Chegou a primavera, e os camponeses levaram o gado para os
prados senhoriais , tal como tinham feito nos anos anteriores . Piotr
Nikoláevitch juntou todos os assalariados e mandou que levassem o
gado para o curral da herdade . Os mujiques estavam no lavradio , por
isso os assalariados , apesar dos gritos das mulheres , meteram o gado
no curral . Ao regressarem do campo , os mujiques foram a casa do
senhor, exigindo o gado de volta. Piotr Nikoláevitch saiu ao encontro
deles com uma espingarda ao ombro (acabara de voltar da ronda) e
anunciou-lhes que não entregava o gado a não ser que pagassem cin­
quenta copeques por cada vaca e dez por cada ovelha. Os mujiques
1 48 Lev Tolstói

começaram a gritar que os prados eram deles , que pertenciam aos


pais e avós deles , e que não havia o direito de levar o gado alheio .
- Devolve o gado , senão será pior - disse um velho , avançando
contra Piotr Nikoláevitch .
- Será pior como? - gritou Piotr Nikoláevitch , pálido , e foi con-
tra o velho .
- Devolve-o , não leves a gente ao pecado . Sacana.
- O quê? - gritou Piotr Nikoláevitch e bateu na cara do velho .
- Não tens o direito de bater. Rapazes , levai o gado à força.
A multidão avançou . Piotr Nikoláevitch queria ir-se embora, mas
não o deixavam passar. Começou a lutar. A espingarda deu um tiro
e matou um dos camponeses . Começou uma rixa desenfreada. Piotr
Nikoláevitch foi esmagado . Passados cinco minutos , o seu corpo des­
figurado foi arrastado para o barranco .
Os assassinos foram julgados pelo tribunal militar, e dois deles
foram condenados ao enforcamento .

18

Na aldeia do alfaiate , cinco camponeses ricos arrendavam a um se­


nhor, por 1 1 00 rublos , 420 jeiras de lavradio , terra gorda, negra como
alcatrão , e distribuíam-na entre os mujiques , a dezoito ou a quinze
rublos . Nenhum lote se arrendava abaixo dos doze rublos . Portanto ,
o lucro era bom . As restantes vinte jeiras com que ficava cada ricaço
tinha-as , portanto , de graça. Como um dos mujiques morreu , os ou­
tros sugeriram ao alfaiate coxo que o substituísse .
Quando começaram a partilhar a terra, o alfaiate não bebeu vodca
e, ao discutirem quanta terra calhava a cada qual , disse que todos
deviam pagar igualmente , que não se podia levar a mais aos arren­
datários .
- Como é isso?
- Será que somos infiéis? Os senhores são outra coisa, mas nós
somos cristãos . Temos de fazer tudo pela lei de Deus , de Cristo .
- Onde é que está essa lei?
- Está no livro , no Evangelho . Vinde a minha casa no domingo ,
vamos ler e falar.
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 49

No domingo não foram todos a casa do alfaiate , só três mujiques,


e este leu para eles .
Leu três capítulos de São Mateus , começaram a conversar. Todos
ouviram , mas só Ivan Tchúev aceitou tudo . E de tal maneira que co­
meçou a viver, em todos os sentidos , de acordo com a lei de Deus .
E toda a sua fanu1ia começou a viver assim . Rejeitou a terra a mais ,
ficou só com a sua parte .
Então , os camponeses começaram a ir também a casa de Ivan,
começaram a compreender, compreenderam, deixaram de fumar,
de beber vodca, de praguejar com palavras obscenas , começaram a
ajudar-se uns aos outros . Deixaram também de ir à igreja e levaram
ao pope todos os ícones . E já eram dezassete casas , sessenta e cin­
co pessoas ao todo . O padre assustou-se e denunciou-os ao prelado .
O prelado refletiu e resolveu enviar à aldeia o arquimandrita Missaíl ,
antigo professor d e catequese no liceu .

19

O prelado sentou Missaíl ao seu lado e começou a falar das novi­


dades que surgiram na sua eparquia.
- Tudo isto provém da fraqueza espiritual e da ignorância. É s
um homem erudito , deposito em ti as minhas esperanças . Vai lá,
convoca-os e ilumina-os na presença do povo .
- Se o reverendíssimo me der a sua bênção , darei o meu melhor
- disse o padre Missaíl . Estava contente com esta missão . Agradava-
-lhe tudo em que podia demonstrar a sua fé . Convertendo outros , con-
vencia-se ainda mais a si próprio de que tinha fé .
- Aplica-te, sofro muito pelo meu rebanho - disse o prelado , to­
mando sem pressa, com as suas mãos brancas e rechonchudas , o copo
de chá que o acólito lhe serviu .
- Porque é que serviste só um doce , traz também o outro - diri­
giu-se ao acólito . - Dói-me muito , muito - continuou , falando com
Missaíl .
Missaíl estava muito contente com a possibilidade de se destacar.
Mas , como não tinha muitos recursos , pediu dinheiro para as despesas
de viagem e, receando uma oposição da parte da gente rude , pediu
1 50 Lev Tolstói

ainda que o governador desse ordem de apoio policial no caso de ne­


cessidade . O prelado organizou tudo isso, e Missru.1 , ao preparar, com
ajuda do acólito e da cozinheira, um baú de loiça e as provisões indis­
pensáveis a quem viaja para um recanto deserto, partiu para o sítio da
sua missão . A caminho desta comissão de serviço , Missru.1 experimen­
tou o agradável sentimento da importância da sua missão , associado
ao desaparecimento de quaisquer dúvidas acerca da sua fé, antes pelo
contrário com a convicção absoluta de que esta fé era verdadeira.
As suas reflexões não se concentravam na essência da fé - reco­
nhecia-a como axioma - , mas na refutação das objeções que se fa­
ziam relativamente às suas formas exteriores .

20

O padre da aldeia e a sua mulher receberam Missaíl com grandes


honras e, no dia seguinte , reuniram o povo na igreja. Missru.1 , de so­
taina nova de seda, com a Cruz de peito e o cabelo penteado , subiu
ao ambão , o padre pôs-se ao seu lado , os salmistas e os cantores um
pouco mais longe , e os polícias junto às portas laterais . Os sectários ,
de peliças ensebadas e ásperas , também apareceram .
Depois do Te Deum , Missru.1 leu uma prédica, convencendo os re­
negados a voltarem para o seio da madre igreja, ameaçando-os com
os tormentos do inferno e prometendo um perdão completo aos ar­
rependidos .
O s sectários guardavam silêncio . Quando começaram a fazer-lhes
perguntas , responderam .
À pergunta «porque renegaram?» responderam que na igreja ve­
neravam deuses de madeira e feitos pela mão do homem, o que as
Escrituras não recomendavam e, pelo contrário , era recomendado o
contrário nas profecias . Quando Missaíl perguntou a Tchúev se era
verdade chamarem tábuas aos santos ícones , Tchúev respondeu: «Vi­
ra qualquer ícone ao contrário e tu próprio verás isso .» Quando lhes
perguntaram porque não reconheciam o sacerdócio , responderam
que as Escrituras diziam: «de graça recebestes , de graça dai» , mas os
popes só oferecem a sua graça por dinheiro . A todas as tentativas de
Missaíl se apoiar nas Escrituras , o alfaiate e Ivan respondiam calma-
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 151

mente , mas com firmeza, alegando as Escrituras que sabiam de cor.


Missaíl zangou-se e ameaçou-os com a punição por parte do poder
secular. A isto , os sectários disseram: «Se a mim me perseguiram,
também vos perseguirão a vós .»
Acabou tudo sem resultados concretos e tudo se passaria bem se ,
durante a missa de alva, Missaíl não proferisse um sermão sobre a
nocividade dos desencaminhadores que mereceriam toda a punição ,
o que fez com que , entre o povo que saía da igreja, começasse a
alvitrar-se que valia a pena dar uma lição aos infiéis para deixarem de
seduzir o povo . E neste dia, enquanto Missaíl se regalava com salmão
na companhia do padre inspetor e de outro inspetor vindo da cida­
de , na aldeia aconteceu uma rixa. Os cristãos ortodoxos juntaram-se
em frente da isbá de Tchúev, esperando a saída dos sectários para
lhes darem uma sova. Os sectários eram vinte , homens e mulheres .
O sermão de Missaíl e agora esta multidão com as suas ameaças
provocaram nos sectários um sentimento maldoso que dantes não ti­
nham. Anoiteceu , estava na hora de as mulheres irem ordenhar vacas ,
mas os devotos não dispersavam, esperando , e bateram num rapaz
que saiu , obrigando-o a voltar para a isbá. Os sectários discutiam o
que iam fazer e não chegavam a acordo .
O alfaiate dizia: é preciso aguentar e não resistir. Mas Tchúev res­
pondia que , se não resistissem , matá-los-iam a todos; pegou no atiça­
dor e saiu à rua. Os ortodoxos atiraram-se a ele .
- Então , pela lei de Moisés ! - gritou ele , começou a bater nos
ortodoxos e vazou o olho a um deles; os outros fugiram da isbá e
voltaram para casa.
Tchúev foi julgado por desencaminhamento e blasfémia, e conde­
nado à deportação .
Quanto a Missaíl , foi condecorado e nomeado arquimandrita.

21

Dois anos atrás , uma rapariga bonita e saudável , com rosto de tra­
ços orientais , chamada Kátia Turtchanínova, chegou a Petersburgo ,
vinda da Região dos Cossacos do Don . Esta rapariga conheceu em
Petersburgo o estudante universitário Tiúrin , filho do chefe da admi-
1 52 Lev Tolstói

nistração rural da província de Simbirsk, e gostou dele, mas não era


um amor feminino normal e desejo de ser sua mulher e mãe dos seus
filhos , mas um amor de camaradagem, alimentado sobretudo pela
indignação e pelo ódio comuns não só em relação ao regime político ,
mas também relativamente às pessoas que o representavam , alimen­
tado também por uma consciência de superioridade intelectual , cul­
tural e moral em relação a tais representantes do regime .
Tinha uma boa capacidade de aprendizagem, aprendia a matéria
das aulas e passava nos exames com facilidade , além de que devorava
os mais modernos livros em quantidades enormes . Estava convencida
que a sua vocação não consistia em dar à luz e educar os filhos - olha­
va para esta vocação com repugnância e desprezo - , mas em destruir
o regime vigente que paralisava as melhores forças do povo e em
mostrar às pessoas o novo caminho da vida, ensinado pelos modernos
autores europeus . Rapariga bonita, de corpo cheio , pele branca, cores
saudáveis , olhos negros e brilhantes , uma trança preta e grande , des­
pertava nos homens sentimentos que não queria nem podia partilhar
- de tal modo estava absorvida pela sua atividade propagandística.
Mesmo assim, esses sentimentos dos homens agradavam-lhe , por isso
não descuidava a sua beleza, embora sem dar importância aos atavios .
Era-lhe agradável ser atraente , mas poder ao mesmo tempo manifestar
o seu desprezo por tudo aquilo a que outras mulheres davam alto va­
lor. Nas suas opiniões relativamente aos meios de luta contra o regime
vigente , ia mais longe do que a maioria dos seus camaradas , do que o
seu amigo Tiúrin , e achava admissíveis todos e quaisquer meios da lu­
ta, inclusivamente o assassínio . No entanto , esta revolucionária Kátia
Turtchanínova era, no fundo , uma mulher muito bondosa e abnegada,
preferindo sempre o interesse, o prazer, o bem-estar alheios aos seus
próprios , sempre contente , com toda a sinceridade, quando tinha pos­
sibilidade de dar alegria a uma criança, um velho , um animal .
Passava os verãos numa cidade distrital no Volga, em casa de uma
companheira, mestre-escola. Tiúrin vivia no mesmo distrito , em casa
do seu pai . Os três , mais um médico deste distrito , encontravam-se
muitas vezes , trocavam livros , discutiam e indignavam-se . A herdade
dos Tiúrin situava-se perto daquela herdade dos Liventsov onde Piotr
Nikoláevitch era administrador. Logo que Piotr Nikoláevitch chegou
e começou a estabelecer a ordem , o jovem Tiúrin , vendo nos campo-
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 53

neses de Liventsov o espírito de independência e uma firme intenção


de defender os seus direitos , interessou-se por eles e começou a ir
muitas vezes à aldeia, conversando com mujiques e desenvolvendo ,
entre eles , a teoria do socialismo em geral e da nacionalização da
terra em particular.
Quando aconteceu o assassínio de Piotr Nikoláevitch e o tribunal
chegou , o círculo dos revolucionários do centro distrital teve um for­
te motivo para se indignar com o julgamento e exprimiu-o corajosa­
mente . No tribunal , foi descoberto o facto de Tiúrin ter ido à aldeia
e conversado com os camponeses . Em casa de Tiúrin foi feita uma
busca, encontraram vários folhetos revolucionários , o estudante foi
preso e levado para Petersburgo .
Turtchanínova foi atrás dele e visitou-o na prisão , mas não a dei­
xaram vê-lo num dia normal , conseguiu-o só no dia de visitas ge­
rais e viu Tiúrin através de duas grades . Este facto aumentou ainda
mais a sua indignação , indignação que atingiu o limite extremo em
consequência da sua conversa com um oficial dos gendarmes ; este
bonitão estava, pelos vistos , pronto a condescender se a rapariga
aceitasse certas propostas dele . Depois disso , a sua indignação e
raiva em relação a todos os representantes das autoridades já não
tinha fronteiras . Turtchanínova foi queixar-se ao chefe da polícia. O
chefe da polícia disse-lhe a mesma coisa que o gendarme , ou seja,
que não podiam fazer nada, que tinham uma ordem do ministro . A
rapariga mandou uma petição ao ministro , pedindo uma visita - e
foi-lhe recusada. Então , tomou uma decisão desesperada e comprou
um revólver.

22

O ministro recebia os solicitantes à hora habitual . Falou com três


deles , recebeu um governador e aproximou-se de uma jovem mulher
bonita, de olhos negros , vestida de preto e que segurava uns papéis
na mão esquerda. Uma luzinha carinhosa e voluptuosa acendeu-se
nos olhos do ministro quando viu esta bela utente , mas , ciente da sua
condição , o ministro tomou um ar sério .
- O que deseja a senhora? - perguntou .
1 54 Lev Tolstói

Ela, sem responder, tirou rapidamente de baixo do mantelete a


mão com o revólver e , apontando-o ao peito do ministro , disparou
mas não acertou .
O ministro tentou apanhar-lhe a mão , mas ela recuou e voltou a
disparar. O ministro fugiu . Agarraram a rapariga. Ela tremia e não
conseguia falar. Mas de repente desatou a rir histericamente . O mi­
nistro nem sequer foi ferido .
Era Turtchanínova. Foi metida em prisão preventiva. Quanto ao
ministro , recebeu palavras de compaixão e as felicitações pela sal­
vação das mais altamente colocadas personalidades e do próprio im­
perador, e nomeou uma comissão para investigar a conspiração em
consequência da qual fora cometido este atentado .
Não havia, obviamente , conspiração nenhuma; mas os funcionários
da polícia secreta e não secreta aplicaram-se a procurar todos os fios
da conspiração inexistente , justificando conscienciosamente os seus
ordenados: levantavam-se de manhã cedo , no escuro , faziam uma
busca atrás de outra, copiavam papéis e livros, liam diários e cartas
particulares , faziam deles resumos numa letra excelente e num papel
excelente, e interrogaram muitas vezes Turtchanínova e fizeram-lhe
acareações , tentando arrancar-lhe os nomes dos seus cúmplices .
O ministro tinha uma alma bondosa e tinha muita pena daque­
la cossaca bonita e saudável , mas dizia a si próprio que carregava
aos ombros importantes obrigações perante o Estado , que deveria
cumprir por mais difíceis que fossem. E quando o seu antigo colega,
Kammerherr 1 2 e conhecido dos Tiúrin, ao vê-lo num baile da corte ,
intercedeu a favor de Tiúrin e de Turtchanínova, o ministro encolheu
os ombros de tal modo que a fita vermelha por cima do colete branco
se enrugou , e respondeu:
- Je ne demanderais pas mieux que de lâcher cette pauvre .fillette,
mais vous savez . . . le devoir. *
Turtchanínova, entretanto , estava na prisão preventiva e , ora fala­
va calmamente com camaradas pelo «telégrafo prisional» e lia livros
que lhe davam, ora, por vezes , caía de repente em desespero e fúria,
atirava-se às paredes , guinchava e ria histericamente.

* Nada me agradaria tanto como deixar sair em liberdade essa pobre menina, mas o
senhor compreende . . . o dever (fr.) .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 55

23

Um dia, Maria Semiónovna recebeu na tesouraria o dinheiro da pen­


são e , voltando a casa, encontrou-se com um professor seu conhecido .
- Então , Maria Semiónovna, recebeu a pensão? - gritou-lhe o
professor do outro lado da rua.
- Recebi - respondeu Maria Semiónovna - , só dá para tapar
os buracos .
- Vá lá, o dinheiro é muito , tapa os buracos e ainda sobra - disse
o professor, despediu-se e foi andando .
- Adeus - disse Maria Semiónovna e , olhando para o professor,
esbarrou num homem alto com braços muito compridos e cara severa.
Aproximando-se do seu prédio , Maria Semiónovna surpreendeu­
-se ao ver de novo o mesmo homem de braços compridos . Ao vê-la a
entrar, o homem parou , depois deu meia volta e foi-se embora.
Maria Semiónovna, primeiro , ficou apavorada, depois triste . Mas
quando entrou em casa e ofereceu prendas ao velho e a Fédia, peque­
no sobrinho escrofuloso , quando acarinhou a cadela Tresorka que ga­
nia de alegria, sentiu-se de novo bem e, depois de entregar o dinheiro
ao pai , voltou ao trabalho que nunca lhe faltava.
O homem com quem ela esbarrou era Stepan ;
Não foi à cidade depois de ter morto o estalajadeiro . Coisa es­
pantosa: a recordação do assassínio do estalajadeiro não era penosa
para ele e recordava-o várias vezes ao dia. Agradava-lhe pensar que
o praticava de modo tão limpo e hábil que ninguém o podia descobrir
nem impedi-lo de continuar a fazê-lo com outras pessoas . Na taber­
na, tomando chá e bebendo vodca, observava as pessoas do mesmo
ponto de vista: de que maneira podia matá-las . Foi dormir a casa de
um conterrâneo , carroceiro . O carroceiro não estava em casa. Stepan
disse que esperava e sentou-se , conversando com a mulher. Depois ,
quando esta se virou para o fogão , passou-lhe pela cabeça matá-la.
Ficou espantado consigo próprio , depois tirou do cano da bota a fa­
ca, derrubou a mulher e degolou-a. As crianças começaram a gritar,
matou-as também e foi-se embora da cidade . Fora de portas , numa
aldeia, entrou na taberna e lá dormiu .
No dia seguinte , voltou ao centro distrital e ouviu , na rua, a con­
versa de Maria Semiónovna com o professor. Os olhos dela assusta-
156 Le v Tolstói

ram Stepan , e mesmo assim resolveu penetrar em sua casa e roubar


o dinheiro que ela recebera. De noite , partiu a fechadura e entrou na
sala. A irmã mais nova, a casada, foi a primeira a ouvi-lo . Gritou .
Stepan matou-a de imediato . O marido dela acordou e atirou-se a ele .
Agarrou Stepan pela garganta e lutou muito , mas Stepan era mais
forte . Depois de acabar com o homem, Stepan , excitado com a luta,
foi para trás da divisória. Ali , na cama, estava Maria Semiónovna;
soergueu-se e olhava para Stepan com olhos assustados e dóceis , e
benzia-se . O seu olhar voltou a assustar Stepan . Ele baixou os olhos .
- Onde está o dinheiro? - disse sem levantar a cara.
Ela calava-se .
- Onde está o dinheiro? - disse Stepan , mostrando-lhe a faca.
- O que fazes? Como é possível? - disse ela.
- Pois é possível .
Stepan aproximou-se dela, querendo agarrar-lhe as mãos para que
não o estorvasse , mas Maria Semiónovna não levantou as mãos, não
resistia, só as apertou ao peito , suspirou gravemente e repetiu:
- Oh , é um grande pecado . O que fazes? Tem pena de ti próprio .
Não poupas almas alheias nem , ainda pior, a tua própria . . . Ooh ! -
exclamou ela.
Stepan não aguentou a sua voz e os seus olhos , e deu-lhe uma
navalhada na garganta. - «Conversa a mais . . . » - Maria Stepanov­
na baixou sobre as almofadas e rouquejou , banhando-se em sangue .
Stepan virou-se e foi pelos quartos , apanhando coisas . Ao juntar tudo
o que queria, Stepan acendeu o cigarro , sentou-se , depois limpou a
sua roupa e saiu . Pensava que ficaria impune também com este assas­
sínio , mas , antes de chegar à pernoita, sentiu tanto cansaço que não
conseguia mexer nenhum membro . Deitou-se numa sarjeta e ficou ali
o resto da noite , todo o dia e mais uma noite .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 57

Segunda Parte

Deitado na sarjeta, Stepan não deixava de ver o rosto meigo , ma­


gro e assustado de Maria Semiónovna e de ouvir a voz dela: «Como é
possível?» - uma voz especial , lamentosa e ceceante . E Stepan vol­
tava a viver tudo o que lhe fez . Sentia medo e fechava os olhos, e aba­
nava a sua cabeça desgrenhada para expulsar dela esses pensamentos
e recordações . Por um momento libertava-se das recordações , mas
no lugar delas apareciam primeiro um, depois outro , e mais outros . . .
criaturas negras com olhos vermelhos que lhe faziam caretas , dizen­
do a mesma coisa: «Deste cabo dela, dá cabo de ti próprio , senão não
te deixamos em paz» . Abria os olhos e voltava a vê-la e a ouvir a sua
voz , e sentia pena dela, e repugnância e medo de si próprio . Voltava
a fechar os olhos , e aqueles negros voltavam.
Na noite do dia seguinte levantou-se e foi à taberna. Chegou lá
a grande custo e começou a beber. Contudo , por mais que bebesse ,
não chegava a embriagar-se . Estava sentado à mesa e bebia silen­
ciosamente um copo atrás do outro . Um guarda policial entrou na
taberna.
- Quem serás? - perguntou-lhe o guarda.
- Sou aquele que ontem degolou toda a gente em casa de Dobrot-
vórov.
Foi maniatado , mantiveram-no fechado um dia inteiro junto à
administração local , depois mandaram-no para o centro provincial .
O chefe dos guardas , ao reconhecer o seu antigo presidiário violento
que agora se tornara tão grande facínora, recebeu-o severamente .
- Vê lá se fazes cá asneiras - disse o chefe em voz rouca, carre­
gando o sobrolho e espetando o queixo . - Se te apanhar com qual­
quer coisa, chicoteio-te até à morte . De mim não foges .
- Para que vou fugir? - respondeu Stepan , baixando os olhos - ,
entreguei-me por minha vontade .
- Não te atrevas a responder-me . E quando o chefe fala contigo
olha-me nos olhos - gritou o chefe dos guardas e deu-lhe um murro
no maxilar.
158 Lev Tolstói

Naquele momento , Stepan estava a imaginá-la outra vez , a ouvir a


voz dela. Nem ouviu as palavras do chefe dos guardas .
- Como? - perguntou, caindo em si quando sentiu o murro na cara.
- Deixa de fingir. Agora, andor.
O chefe esperava desvarios , conspirações com outros presidiários ,
tentativas de fuga. Mas não havia nada disso . Quando u m guarda
ou o próprio chefe espreitavam pela vigia na sua cela, viam Stepan
sentado no saco enchido com palha, apoiando a cabeça nas mãos e
sussurrando qualquer coisa. Nos interrogatórios do juiz de instrução ,
também não era como os outros presos : estava distraído , não ouvia
as perguntas ; mas , quando as compreendia, era tão verdadeiro que o
juiz de instrução , acostumado a lutar com a esperteza e a astúcia dos
arguidos, experimentava um sentimento semelhante ao que temos
quando , no fim da escada escura, levantamos o pé para o degrau que
não existe . Stepan confessou todos os seus assassínios , carregando
o sobrolho e fitando os olhos num ponto , num tom muito simples e
prático , tentando lembrar-se de todos os pormenores: «Ele saiu -
contava sobre o primeiro assassínio - descalço , parou à porta, então
·bati-lhe uma vez , ele rouquejou , então fui tratar da mulher>> , etc . Du­
rante a ronda das celas pelo procurador, perguntaram a Stepan se ti­
nha queixas ou pedidos . Respondeu que não precisava de nada e que
não o ofendiam . O procurador, ao dar alguns passos pelo corredor
fedorento , parou e perguntou ao chefe dos guardas que o acompanha­
va: como é o comportamento deste presidiário?
- Estou surpreendido com ele - respondeu o chefe, contente ao
ouvir o Stepan a louvar como era tratado . - Já vai no segundo mês que
está aqui e tem um comportamento exemplar. Mas receio que esteja a
planear alguma. É um homem destemido e de força incomensurável .

Durante o primeiro mês na prisão , Stepan sofria constantemente


com o mesmo: via a parede cinzenta da sua cela, ouvia os barulhos da
prisão - o rumorejo da cela comum debaixo da sua, os passos da sen­
tinela no corredor, o tiquetaque do relógio - , mas ao mesmo tempo
via-a a ela, com o seu olhar dócil que o vencera ainda no encontro na
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 59

rua, com o seu pescoço magro e enrugado que ele cortara, ouvia a sua
voz enternecedora, lastimosa, ceceante: «Não poupas almas alheias
nem a tua própria. Como é possível?» Depois a voz silenciava-se , e
apareciam aqueles três , os negros . Apareciam agora sempre, quer fe­
chasse os olhos , quer os abrisse. Quando fechava os olhos , tornavam­
-se mais distintos . Quando Stepan abria os olhos , misturavam-se com a
porta e as paredes e desapareciam devagarinho , mas depois voltavam a
surgir e avançavam para ele de três lados , fazendo caretas e repetindo:
dá cabo de ti , dá cabo de ti . Podes fazer um nó , podes queimar-te . Ste­
pan tinha tremores , começava a dizer as orações que conhecia: «Mãe
de Deus» , «Pai Nosso» . . . e isso , a princípio, dava-lhe algum alívio . Ao
rezar, começava a recordar a sua vida: o pai , a mãe, a aldeia, o cão Lo­
binho , o avô no catre do fogão , os bancos em que brincava com outros
rapazes; depois lembrava-se das raparigas com as suas cantigas , depois
dos cavalos e como foram roubados , e como apanharam o ladrão, e
como o matara com pedra. Recordava a sua primeira prisão e o dia em
que saíra dela, recordava o estalajadeiro gordo , a mulher do carroceiro ,
os seus filhos e outra vez a ela. E sentia calor, tirava dos ombros a bata
prisional , saltava da tarimba e começava, como uma fera na jaula, a
andar rapidamente de um lado para o outro na cela pequena, virando-se
bruscamente quando chegava às paredes húmidas . E voltava a rezar,
mas as rezas já não lhe davam alívio .
Numa das longas tardes outonais , quando o vento assobiava e uiva­
va nas chaminés , Stepan , farto de calcorrear a cela, sentou-se na tarim­
ba e sentiu que já não tinha forças para lutar, que os negros o tinham
vencido, que se entregara a eles . Havia muito que o atraía o respira­
douro do fogão. Se prender nele cordões finos ou fitas de linho finas ,
não deslizam. Mas era preciso organizar tudo razoavelmente . Deitou
mãos à obra e , em dois dias , preparou fitas , rasgando o saco em que
dormia (quando o guarda entrava, Stepan cobria a cama com a bata) .
Atava as fitas e fazia-as duplas para não se rasgarem, para aguentarem
o corpo . Enquanto estava a trabalhar nisso não sofria. Quando tudo fi­
cou pronto , fez um nó, atou-o ao pescoço , subiu à cama e enforcou-se.
Mas quando a sua língua começou a sair da boca, as fitas rasgaram-se e
Stepan caiu . O guarda, ao ouvir barulho, entrou . Chamaram o auxiliar
médico , levaram Stepan ao hospital . No dia seguinte ficou bem , foi
tirado do hospital e colocado numa cela comum, em vez da solitária.
1 60 Lev Tolstói

Na cela comum vivia no meio de vinte homens , mas era como se


estivesse sozinho , não via ninguém, não falava com ninguém e conti­
nuava a sofrer da mesma forma. O mais grave era quando toda a gente
dormia e ele não , porque continuava a vê-la, a ouvir a sua voz, e depois
voltavam os negros com os seus olhos terríveis e troçavam dele.
E, como antes , dizia orações e , como antes , não lhe davam alívio .
Um dia, quando ela voltou a aparecer-lhe depois da oração , come­
çou a rezar por ela, pela alminha dela, implorando que lhe perdoasse ,
que lhe desse a paz . E quando , de madrugada, Stepan caiu sobre o
saco pisado , adormeceu como uma pedra, ela, com o seu pescoço ma­
gro , enrugado , cortado , apareceu-lhe no sonho .
- Diz , perdoas-me?
Ela olhou com os seus olhos meigos e não disse nada .
- Perdoas?
E assim lhe perguntou três vezes . Mas ela não disse nada. E Stepan
acordou . Desde então sentiu alívio . Era como se voltasse a si , olhou
em volta e pela primeira vez começou a falar e a conviver com os
seus vizinhos de cela.

Na cela de Stepan estavam também o Vassíli , de novo apanhado


a roubar e condenado à prisão na Sibéria, e Tchúev, com a pena de
deportação . Vassíli erguia a bela voz e cantava sempre , ou contava
aos companheiros as suas aventuras . Tchúev trabalhava, costurando
roupa, ou lia o Evangelho e os Salmos .
Quando Stepan perguntou a Tchúev porque era deportado , este
respondeu-lhe: pela verdadeira fé em Cristo , porque os popes men­
tirosos não toleram o espírito das pessoas que vivem de acordo com
o Evangelho e os desmascaram. Então , Stepan perguntou a Tchúev
em que consistia a lei do Evangelho , e Tchúev explicou-lhe que esta
lei consistia em não venerar os deuses feitos por mão humana, mas
venerar o espírito e a verdade . E contou-lhe como conheceram esta
fé verdadeira quando estavam a partilhar a terra.
- E o que será daqueles que praticaram atos maus? - perguntou
Stepan.
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 161

- Tudo fo i dito .
E Tchúev leu para ele:
«E quando o Filho do homem vier em sua glória, e todos os san­
tos anjos com Ele , então se assentará no trono da sua glória; e todas
as nações serão reunidas diante d ' Ele , e apartará uns dos outros ,
como o pastor aparta dos bodes as ovelhas ; e porá as ovelhas à sua
direita, mas os bodes à esquerda. Então dirá o Rei aos que estiverem
à sua direita: "Vinde , benditos do meu Pai , possuí por herança o
reino que vos está preparado , desde a fundação do mundo; porque
tive fome , e destes-me de comer; era estrangeiro , e hospedastes-me;
estava nu , e vestistes-me; adoeci , e visitastes-me; estive na prisão , e
fostes ver-me ." Então os justos Lhe responderão , dizendo: "Senhor,
quando Te vimos com fome , e Te demos de comer? Ou com sede ,
e Te demos de beber? E quando Te vimos estrangeiro , e Te hospe­
dámos? Ou nu , e Te vestimos? E quando Te vimos enfermo , ou na
prisão , e fomos ver-Te?" E, respondendo o Rei , lhes dirá: "Em ver­
dade vos digo que , quando o fizestes a um destes meus pequeninos
irmãos, a mim o fizestes ." Então dirá, também , aos que estiverem
à sua esquerda: "Apartai-vos de mim , malditos , para o fogo eterno ,
preparado para o diabo e os seus anjos; porque tive fome , e não me
destes de comer, tive sede , e não me destes de beber; sendo estran­
geiro , não me recolhestes ; estando nu , não me vestistes; e enfermo ,
e na prisão , não me visitastes ." Então eles , também , Lhe responde­
rão , dizendo: "Senhor, quando Te vimos com fome , ou com sede , ou
estrangeiro , ou nu , ou enfermo , ou na prisão , e não Te servimos?"
Então lhes responderá, dizendo: "Em verdade vos digo que , quando
a um destes pequeninos o não fizeste s , não o fizestes a mim ." E irão
estes para o tormento eterno , mas os justos para a vida eterna.» (São
Mateus , 25 : 3 1 -46)
Vassíli , sentado no chão em frente de Tchúev, ouvindo a leitura,
acenou aprovativamente com a sua cabeça bonita.
- Está certo - disse resolutamente - , ide , malditos , para o tor­
mento eterno , não destes de comer a ninguém, empanturrastes-vos
sozinhos . É bem feito . Deixa-me ler - acrescentou , desejando exibir
como sabia ler.
- Mas não haverá perdão? - perguntou Stepan que ouvira a lei­
tura em silêncio , baixando a sua cabeça desgrenhada.
1 62 Lev Tolstói

- Espera, cala-te - disse Tchúev a Vassíli que não deixava de re­


petir que os ricos não deram de comer ao caminhante nem visitaram
o preso na prisão . - Espera - repetiu Tchúev, folheando o Evange­
lho . Quando encontrou o que procurava, Tchúev alisou as folhas com
a sua mão grande que na prisão ficara branca.
«E também conduziram (com Ele , Jesus Cristo , portanto) - co­
meçou a ler Tchúev - outros dois , que eram malfeitores , para com
Ele serem mortos . E, quando chegaram ao lugar chamado a Caveira,
ali o crucificaram , e aos malfeitores , um à direita e outro à esquerda.
«E dizia Jesus: "Pai , perdoa-lhes , porque não sabem o que fazem ."
( . . . ) E o povo estava olhando . E também os príncipes zombavam
d'ele , dizendo: "Aos outros salvou; salve-se a si mesmo , se este é
o Cristo , o escolhido de Deus ." E também os soldados O escarne­
ciam , chegando-se a Ele e apresentando-Lhe vinagre , e dizendo: "Se
tu és o Rei dos Judeus , salva-te a ti mesmo ." E também , por cima
d'ele , estava um título , escrito em letras gregas , romanas e hebraicas :
"ESTE É O REI DOS JUDEUS ." E um dos malfeitores , que estavam
pendurados , blasfemava d'Ele , dizendo: "Se tu és o Cristo , salva-te
a ti mesmo e a nós ." Respondendo , porém, o outro , repreendia-o , di­
zendo: "Tu nem ainda temes a Deus, estando na mesma condenação?
E nós , na verdade , com justiça, porque recebemos o que os nossos
feitos mereciam; mas este nenhum mal fez ." E disse a Jesus: "Se­
nhor, lembra-Te de mim , quando entrares no Teu reino ." E disse-lhe
Jesus: "Em verdade te digo que estarás comigo , hoje, no Paraíso ."»
(São Lucas , 23 :32-43)
Stepan não disse nada e continuou sentado , pensativo , como que a
ouvir, mas já não ouvia nada do que Tchúev lia.
«Então , é esta a verdadeira fé - pensava. - Só vão salvar-se
aqueles que deram de comer e de beber aos pobres , que visitaram os
presos , e vai para o inferno quem não o fez . O bandido arrependeu­
-se só na cruz , e mesmo assim foi para o paraíso .» Stepan não via
nisso qualquer contradição , pelo contrário , uma coisa confirmava a
outra: que os misericordiosos iriam para o paraíso e os que não o
são iriam para o inferno significava que todos deviam ser miseri­
cordiosos , e se Cristo perdoou ao bandido , então Cristo também era
misericordioso .Tudo isso era absolutamente novo para Stepan; não
compreendia apenas por que razão , até agora, tudo isso não tinha
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 63

sido evidente para ele . E começou a passar todo o tempo livre com
Tchúev, fazendo-lhe perguntas e ouvindo as respostas . Ouvia e com­
preendia. Revelou-se-lhe o sentido geral de todo o ensinamento: que
todos os homens são irmãos e devem amar-se e ter pena uns dos
outros , e então todos ficam bem . E quando Stepan ouvia, apreendia
como uma coisa esquecida e familiar tudo o que confirmava o sentido
geral deste ensinamento , e passava por alto tudo o que não o confir­
mava, atribuindo-o à sua falta de compreensão .
Desde então , Stepan tomou-se outro .

Stepan Pelaguéiuchkin já antes era quieto , mas agora surpreendia


o chefe dos guardas , todos os guardas e os presos com a mudança que
nele se dera. Sem quaisquer ordens , sem ser a sua vez , cumpria todos
os trabalhos mais duros , inclusivamente a limpeza da latrina. Mas ,
apesar desta sua submissão , os companheiros tinham-lhe respeito e
medo , conhecendo a sua firmeza e grande força física, sobretudo de­
pois do incidente com os dois vagabundos que o atacaram e que ele
venceu , partindo o braço a um deles . Esses vagabundos jogavam às
cartas com um jovem preso rico , sacando-lhe tudo o que ele tinha.
Stepan defendeu-o e tirou-lhes o dinheiro que ganharam . Os vaga­
bundos praguejaram, depois queriam espancá-lo , mas ele dominou­
-os . Quando o chefe dos guardas começou a indagar sobre a rixa, os
vagabundos declararam que fora Stepan o agressor. Stepan não quis
justificar-se e aceitou resignadamente o castigo que era três dias de
cárcere e, depois , a solitária.
A solitária era penosa para ele porque o separou de Tchúev e do
Evangelho , além de que tinha medo de que as aparições dos negros
e da degolada voltassem . Mas não havia aparições . Toda a sua alma
estava repleta de um conteúdo novo , feliz . Ficaria contente com o seu
isolamento se soubesse ler e tivesse o Evangelho . Podiam dar-lhe o
Evangelho , mas não sabia ler.
Em criança, começou a aprender a ler à maneira antiga, mas apren­
deu só o alfabeto e não foi mais longe , nunca chegou a compreender
as sílabas . Agora decidiu aprender a ler e pediu o Evangelho a um
1 64 Lev Tolstói

guarda. O guarda trouxe-lhe o livro , Stepan deitou mãos à obra. Re­


conhecia as letras mas não conseguia juntá-las . Por mais que tentasse
perceber como é que se formavam palavras com as letras , era inútil .
Não dormia de noite , não deixava de pensar, não queria comer, en­
fraqueceu de tal modo com esta amargura que foi atacado por uma
piolhada insuportável .
- Então , não consegues? - perguntou-lhe uma vez o guarda.
- Não .
- Mas não sabes de cor o «Padre Nosso»?
- Sei .
- Então , lê . Aqui o tens - e o guarda mostrou-lhe o «Padre Nos-
so» no Evangelho .
Stepan começou a ler o «Padre Nosso» , confrontando as letras fa­
miliares com os sons familiares . E de repente revelou-se-lhe o segre­
do da formação das sílabas e começou a ler. Foi uma grande alegria.
Desde então passou a ler, e o sentido das palavras que compunha com
grande esforço , revelado pouco a pouco , adquiria uma importância
ainda maior para ele .
A solidão já não pesava a Stepan , antes o alegrava. Estava com­
pletamente mergulhado no seu trabalho e não ficou contente quando ,
preparando as celas para os presos políticos recém-chegados , o trans­
feriram outra vez para a cela comum.

Já não era Tchúev, mas o Stepan quem lia muitas vezes o Evangelho
na cela, e, enquanto alguns presidiários cantavam cantigas obscenas ,
outros ouviam a sua leitura e as suas conversas sobre o texto lido . As­
sim, dois homens ouviam-no em silêncio e com atenção: Makhórkin ,
grilheta, assassino e carrasco , e Vassíli , apanhado a roubar, que estava
na mesma cadeia à espera do julgamento . Makhórkin , enquanto esta­
va nesta prisão , por duas vezes cumprira obrigações de algoz, ambas
as vezes em outros distritos , onde não se arranjavam pessoas para fa­
zer o que os juízes sentenciavam. Os camponeses que mataram Piotr
Nikoláevitch foram julgados pelo tribunal militar, e dois deles foram
condenados à pena capital por enforcamento .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 65

Makhórkin ia ser mandado à cidade de Penza para cumprir esta


obrigação . Dantes , nessas ocasiões , escrevia sem demora - era
alfabetizado - ao governador, explicando que tinha uma comissão
de serviço , pelo que pedia que o governador desse ordem de lhe
destacarem o abono de alimentação; mas agora, para a surpresa do
diretor da prisão , anunciou que não ia e que nunca mais ia cumprir
obrigações de carrasco .
- Esqueceste-te do chicote? - gritou o diretor da prisão .
- Que seja o chicote , mas não há lei para matar.
- Então , como é, aprendeste com o Pelaguéiuchkin? Irra, que pro-
feta prisional , espera, ainda vais ver como é .

Entretanto , Mákhin , aquele colegial que ensinou o colega a fal­


sificar o cupão , acabou o liceu e o curso universitário na faculdade
de Direito . Graças ao êxito que tinha entre as mulheres , gozando da
simpatia da ex-amante do velho vice-ministro , foi , ainda muito jo­
vem , nomeado juiz de instrução . Era um homem desonesto , cheio de
dívidas , sedutor de mulheres , jogador, mas também esperto , de boa
memória e sabia fazer bem o seu trabalho de instrução dos processos .
Servia na mesma circunscrição onde Stepan Pelaguéiuchkin estava
preso . Logo no primeiro interrogatório , Stepan surpreendeu-o com as
suas respostas simples , sinceras e calmas . Mákhin sentia que este
homem, de grilhetas e com a cabeça rapada, trazido e vigiado por
dois soldados , e que , dali a pouco , seria fechado na cela - que este
homem era absolutamente livre e, pela sua moral , inatingivelmente
superior a ele , Mákhin. Por isso , interrogando-o , tentava animar-se
e instigar-se a si próprio permanentemente para não se embaraçar e
confundir. Impressionava-o que Stepan falasse dos seus crimes como
de uma coisa pertencente a um passado remoto , como que não come­
tida por ele , mas por alguma outra pessoa.
- E não tiveste pena deles? - perguntava Mákhin .
- Não . Não compreendia.
- E agora?
Stepan sorria com tristeza.
1 66 Lev Tolstói

- Agora nem que me queimassem na fogueira não o faria.


- Mas porquê?
- Porque compreendi que todos os homens são irmãos .
- Também eu sou o teu irmão?
- Exatamente .
- Que irmão serei se estou a condenar-te para os trabalhos for-
çados?
- Isso é por incompreensão .
- O que é que eu não compreendo?
- Se está a condenar, não compreende.
- Bem , continuemos . Onde é que foste depois?
Mas o que espantou ainda mais o senhor Mákhin foi o que soube ,
pela boca do chefe dos guardas , sobre a influência de Pelaguéiuchkin
sobre o carrasco Makhórkin que , correndo o risco de ser castigado ,
se recusara a cumprir a sua obrigação .

No serão em casa dos Erópkin , onde estavam duas meninas - Má­


khin cortejava ambas - , depois de cantarem romanças (Mákhin , tendo
talento musical , destacou-se tanto no canto como no acompanhamen­
to) , falou com muitos pormenores , graças à sua excelente memória,
sem trair a verdade e imparcialmente, sobre o estranho criminoso que
convertera um carrasco . Mákhin guardava tudo na memória e sabia
relatá-lo muito bem porque, precisamente, tinha uma postura constante
de absoluta indiferença para com as pessoas com quem lidava. Não se
impregnava do estado de espírito dos outros , nem era capaz de o fazer,
e era por isso que a sua memória registava magnificamente tudo o que
acontecia às pessoas , o que elas faziam e diziam. No entanto, Pela­
guéiuchkin despertou o seu interesse. Não tentou penetrar na alma de
Stepan, mas fez a si próprio, involuntariamente, uma pergunta: o que é
que este homem transporta na alma? E, sem encontrar a resposta, mas
sentindo que era qualquer coisa curiosa, contou no serão esse caso: o
desencaminhamento do carrasco, os relatórios do chefe dos guardas
sobre o estranho comportamento de Pelaguéiuchkin e de como lia o
Evangelho, e sobre a forte influência que tinha nos outros presos .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 67

O relato de Mákhin provocou a curiosidade de todos , mas interes­


sou sobretudo Lisa Erópkina, a mais nova, de dezoito anos , que havia
pouco acabara o curso no colégio e se libertou do obscurantismo e da
estreiteza das condições falsas em que cresceu; como que a emergir
da água, estava a inspirar ansiosamente o ar fresco da vida. Começou
por pedir a Mákhin os pormenores e por perguntar de que maneira e
porquê acontecera essa mudança em Pelaguéiuchkin , e Mákhin contou
o que Stepan lhe dissera sobre o último assassínio e como a mansidão ,
a submissão e a coragem perante a morte por parte daquela mulher
muito bondosa, a última vítima dele, o venceram, lhe abriram os olhos,
e como, depois , a leitura do Evangelho completara a sua mudança.
Lisa Erópkina não conseguira adormecer nessa noite . Havia já vá­
rios meses que se desenrolava, na sua alma, uma luta entre a atra­
ção da vida mundana, em que a sua irmã a envolvia, e a paixão por
Mákhin , juntamente com o desejo de o corrigir. Agora, este último
levara a melhor. Ainda antes ouvira falar da senhora que foi assas­
sinada. Agora, depois desta morte terrível e do relato de Mákhin , a
partir das palavras de Pelaguéiuchkin , conheceu todos os pormenores
da vida de Maria Semiónovna e ficou impressionada.
Apeteceu-lhe ser como essa Maria Semiónovna. Lisa era rica e
receava que Mákhin a namorasse por causa do dinheiro . Resolveu
oferecer aos pobres a sua fortuna e disse-o a Mákhin .
Mákhin ficou contente com a oportunidade de exibir o seu desin­
teresse e disse a Lisa que não a amava por causa do seu dinheiro; e
comoveu-se , ele próprio, com esta _sua atitude generosa. Lisa, entretan­
to , entrou em conflito com a mãe (a herdade pertencia antes ao pai) que
não lhe dava autorização para a repartir. Mákhin ajudou Lisa. E quanto
mais o fazia, tanto melhor compreendia o mundo das aspirações espi­
rituais de Lisa, um mundo que dantes era tão alheio para ele .

Na cela, tudo se silenciou . Stepan , na sua tarimba, ainda não estava


a dormir. Vassíli aproximou-se dele , puxou-lhe pela perna e piscou­
-lhe o olho , chamando-o . Stepan desceu da tarimba e foi ao pé dele .
- Ouve , irmão - disse Vassíli - , sê bondoso , ajuda-me .
1 68 Lev Tolstói

- Ajudo-te em quê?
- Quero fugir.
E Vassíli contou a Stepan que tinha tudo preparado para a fuga.
- Amanhã vou alvoroçá-los - disse, apontando para os presos
adormecidos . - Vão acusar-me de instigação . Então , transferem-me
para o andar de cima, e ali já sei o que fazer. Mas tu deves arrancar a
fechadura na morgue .
- Está certo . Onde pensas ir?
- Vou andar à toa. Será que há pouca gente má?
- É verdade , amigo , mas quem somos nós para os julgar?
- Bem, não sou facínora nenhum. Não matei ninguém , ora rou-
bar . . . Não tem mal nenhum. Achas que eles não nos roubam?
- É com eles . Vão responder por isso .
- Não quero saber deles . Uma vez , assaltei uma igreja. Quem
ficou mal com isso? Agora já não vou roubar ninharias , nas lojecas
ou assim , vou roubar dinheiro público e distribuí-lo entre a boa gente .
Um dos presos soergueu-se na tarimba e começou a escutar. Ste­
pan e Vassíli separaram-se .
No dia seguinte , Vassíli fez o que planeara. Começou a queixar-se
de que o pão estava mal cozido , incitou todos os presos para que cha­
massem o chefe dos guardas , que reclamassem. O chefe veio , ralhou
com todos e , ao ouvir que Vassíli era o instigador, mandou-o para
uma solitária do andar de cima.
Era o que Vassíli pretendia.

Vassíli já conhecia a cela onde o fecharam , Sabia como era o chão e,


uma vez na cela, começou a desmontar o soalho . Quando ficou possível
enfiar-se no buraco, desprendeu as traves do teto inferior e saltou para
baixo, para a morgue. Neste dia só havia lá um morto . Havia também
na morgue uma pilha de sacos que, atafulhados de feno , serviam de
colchões . Vassíli sabia-o e contava com isso . A fechadura da porta fora
solta. Transpôs a porta e foi até à retrete, ainda em construção , no fundo
do corredor. Nesta retrete havia um buraco , do segundo andar até à ca­
ve. Depois de encontrar a porta às apalpadelas , Vassíli voltou à morgue ,
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 69

tirou o lenço do cadáver frio como gelo (quando o tirava tocou na mão
do morto) , depois apanhou os sacos , atou-os entre si para formar uma
corda e levou esta corda improvisada para a retrete; ali , atou-a a uma
trave e começou a descer. Os sacos presos uns aos outros não chegavam
ao chão. Não sabia se faltava muito ou pouco, mas nada a fazer, saltou .
Magoou os pés , mas podia andar. Na cave havia duas janelas . Davam
para se enfiar, mas tinham grades de ferro . Era preciso arrancá-las . Mas
com quê? Vassíli procurou. Havia bocados de tábuas . Escolheu uma
tábua com a ponta aguçada e começou a arrancar com ela os tijolos que
seguravam as grades . Trabalhou muito tempo. Os galos já tinham canta­
do pela segunda vez, mas a grade ainda estava presa. Por fim, soltou-se
de um lado.Vassíli enfiou a tábua e carregou , a grade desprendeu-se
completamente, mas um tijolo soltou-se e caiu com barulho . As senti­
nelas podiam ter ouvido. Vassíli ficou parado, à escuta. Tudo calmo . En­
trou na abertura da janela. Saiu . Para fugir, tinha de passar por cima de
um muro. Num canto do pátio, havia um anexo . Era preciso subir para
cima deste anexo e, depois , para cima do muro . Precisava de uma tábua,
sem ela não podia subir. Vassíli voltou para dentro através da janela.
De novo saiu com a tábua na mão e parou, escutando na direção onde
estava a sentinela. A sentinela, tal como Vassíli calculava, andava pelo
outro lado do pátio quadrado. Vassíli foi até ao anexo, encostou a tábua
à parede, começou a trepar. A tábua deslizou e caiu . Vassíli tinha meias
nos pés . Tirou as meias para se agarrar com os pés , colocou de novo a
tábua, saltou sobre ela e agarrou-se com as mãos à calha. - «Não caias ,
calha querida, aguenta.» Agarrava-se à calha e já pusera o joelho no
telhado. A sentinela aproximava-se . Vassíli deitou-se e reteve a respira­
ção . A sentinela não o viu, começou a afastar-se. Vassíli pôs-se em pé
de um salto. O ferro do telhado rangeu sob os seus pés . Um passo , outro
passo - e era já a parede. Era fácil chegar com a mão ao topo . Uma
mão, outra mão, esticou-se , e já estava em cima da parede. Agora, não
se aleijar quando saltasse para o chão. Vassíli virou-se, pendurou-se pe­
los braços , esticou-se, soltou uma mão , outra mão - Deus , ajuda-me !
- e estava no chão . Na terra macia. Com os pés ilesos , desatou a correr.
No subúrbio , a sua Malánia abriu-lhe a porta, e Vassíli meteu-se
debaixo do cobertor feito de retalhos , quente , impregnado do cheiro
a suor.
1 70 Lev Tolstói

10

A esposa de Piotr Nikoláevitch, bonita, corpulenta, sempre calma,


mulher sem filhos , gorda como uma vaca que nunca pariu , viu da
janela como mataram o seu marido e o arrastaram algures para o
campo . O terror de Natália Ivánovna (este era o nome da senhora) ,
como acontece sempre em semelhantes casos, foi tão forte que aba­
fou todos os seus outros sentimentos . Mas quando a multidão desa­
pareceu por trás da cerca do jardim e a gritaria se calou , e Malánia,
uma rapariga sua criada, descalça, irrompeu com os olhos esbugalha­
dos , trazendo a notícia, como se fosse qualquer coisa alegre , de que
mataram Piotr Nikoláevitch e atiraram o seu corpo para o barranco ,
por trás do primeiro sentimento de terror começou a assomar-se um
outro: o sentimento da feliz libertação de um déspota com os olhos
tapados por óculos pretos , uns olhos que , durante dezanove anos ,
a mantiveram na escravidão . Ela própria se aterrorizou ao sentir-se
assim , mas não o confessou a si mesma e , é claro , não o disse a
ninguém. Quando faziam a lavagem do corpo desfigurado , amarelo
e peludo , quando o vestiam e punham no caixão , Natália Ivánovna
apavorava-se e chorava desesperadamente. Quando veio o juiz de
instrução de crimes graves e a interrogou como testemunha, viu ali ,
no apartamento do juiz de instrução , dois camponeses agrilhoados ,
aqueles que foram reconhecidos como o s culpados principais . Um
era já velho , de barba encaracolada, comprida e loira, com uma cara
bonita, calma e severa; o outro era de aparência cigana, um homem
de meia-idade , com os olhos negros e brilhantes e cabelo encaracola­
do e desgrenhado . A senhora disse no seu depoimento que reconhecia
nos dois homens aqueles que foram os primeiros a agarrar Piotr Ni­
koláevitch pelos braços e, embora o mujique que parecia cigano , com
os olhos a brilhar sob as sobrancelhas mexediças , lhe dissesse com
reprovação: «É pecado , minha senhora ! Todos vamos responder de­
pois da morte» , apesar disso , Natália Ivánovna não teve pena deles .
Pelo contrário , um sentimento hostil e o desejo de vingar a morte do
marido cresceram nela durante a instrução .
Contudo , quando o processo entregue ao tribunal militar terminou
com a sentença de trabalhos forçados para oito homens e a sentença
da pena capital por enforcamento para esses dois , o velho de barba
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 171

loira e o «ciganito» moreno , como diziam dele , u m sentimento in­


cómodo ensombreceu a senhora. De resto , esta dúvida desagradável
desapareceu rapidamente sob o efeito da solenidade do tribunal . Se
os chefes supremos consideravam que era necessário , então era bom .
A execução devia ser feita na aldeia. E , no domingo , Malánia, de
vestido e sapatos novos , ao voltar da missa matinal , relatou à senhora
que estavam a construir a forca e estavam à espera, na quarta-feira,
de um carrasco de Moscovo , e que os familiares dos condenados ui­
vavam sem parar, o que se ouvia por toda a aldeia.
Natália Ivánovna não saía de casa, para não ver as forcas nem o
povo e ansiava por uma única coisa: que aquilo acabasse o mais de­
pressa possível. Pensava só em si própria, e não nos condenados e
nas suas fanu1ias .

11

Na terça-feira, o comissário da polícia rural , seu conhecido , veio


visitar Natália Ivánovna. A senhora serviu-lhe vodca e cogumelos
salgados , preparados por ela própria. O comissário , depois de beber
e petiscar, comunicou-lhe que não haveria execução no dia seguinte .
- Como? Porquê?
- É uma história muito curiosa. Nunca mais arranjam um car-
rasco . Havia um em Moscovo , mas , como me contou o meu filho ,
tem lido muito o Evangelho e disse: não posso matar. Ele próprio foi
condenado aos trabalhos forçados por homicídio , mas agora, de re­
pente , não pode matar, diz que é contra a lei . Disseram-lhe que seria
chicoteado . Chicoteiem-me , disse, mas não posso .
Natália Ivánovna corou de repente, cobriu-se de suor.
- Não é possível perdoá-los , agora?
- Como se pode perdoar depois da sentença do tribunal? Só o
czar é que pode conceder o perdão .
- Mas como é que o czar vai saber?
- Eles têm o direito de solicitar indulto .
- Mas querem executá-los por causa de mim - disse a estúpida
Natália Ivánovna. - E eu perdoo-lhes .
O comissário riu-se .
1 72 Lev Tolstói

- Então , solicite , porque não?


- Posso?
- É claro que pode .
- Mas se calhar já não vou a tempo?
- Pode mandar um telegrama.
- Para o czar?
- Também é possível .
A notícia de que um carrasco se recusara e estava pronto a sofrer
mas não matava, perturbou a alma de Natália Ivánovna, e o senti­
mento de compaixão e terror que , por mais de urna vez , tinha tentado
manifestar-se , transbordou e dominou-a.
- Filipp Vassílievitch , meu caro , escreva o telegrama. Quero pe-
dir o indulto ao czar.
O comissário da polícia abanou a cabeça .
- Não teremos problemas por causa disso?
- Mas a responsabilidade é toda minha. Não digo nada sobre o
senhor.
«Que mulher bondosa - pensou o comissário . - É mesmo boa.
Se a minha fosse assim seria o paraíso , nada do que é agora.»
E o comissário da polícia redigiu um telegrama para o czar: «Para
Sua Majestade Imperador. A súbdita de Vossa Majestade , viúva do
assessor de colégio Piotr Nikoláevitch Swiçticki , assassinado pelos
camponeses , roja-se aos sagrados pés (este pormenor do telegrama
pareceu excelente ao comissário) de Vossa Majestade , implorando o
indulto para os camponeses tal e tal , condenados a enforcamento , da
província tal , distrito tal , circunscrição tal , aldeia tal .»
O telegrama foi mandado pelo próprio comissário , e a alma de
Natália lvánovna encheu-se de alegria e de alívio . Parecia-lhe que , se
ela, viúva do assassinado , pedia indulto , o czar não lho podia recusar.

12

Lisa Erópkina vivia num estado de exaltação permanente . Quanto


mais seguia o caminho da vida cristã que lhe foi revelado , mais certe­
za tinha de ser este o caminho verdadeiro e mais alegria transportava
na alma.
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 173

Tinha agora dois objetivos imediatos: o primeiro era converter


Mákhin, ou, como ela dizia, fazê-lo voltar a ele próprio , à sua natureza
bondosa, maravilhosa. Gostava dele , e à luz do seu amor revelava-se­
-lhe a natureza divina da alma dele, comum a todas as pessoas , mas
via além deste princípio da vida, comum de todos , uma bondade , uma
ternura e uma elevação próprias somente dele . Outro objetivo de Lisa
consistia em deixar de ser rica. Quis libertar-se da propriedade, primei­
ro para pôr Mákhin à prova, depois para si própria, para a sua própria
alma - quis fazê-lo de acordo com a palavra do Evangelho . Começou
a distribuir os seus bens , mas o pai fê-la parar e, mais ainda do que o
pai , uma multidão de solicitantes que se lhe dirigiam pessoalmente e
por escrito . Então, resolveu dirigir-se a um stárets 13 , famoso pela sua
vida santa para que tomasse o seu dinheiro e procedesse com ele de
acordo com o seu critério . Quando o pai o soube , zangou-se muito e ,
numa conversa exaltada com a filha, chamou-lhe maluca e psicopata,
e disse que ia tomar medidas para a proteger, como louca, dela própria.
O tom zangado e irritado do pai contaminou-a e, sem se dar conta
do que estava a fazer, Lisa chorou de raiva e disse-lhe palavras insul­
tuosas , chamou-lhe déspota e homem cúpido .
Depois disto pediu desculpa ao pai , ele respondeu que não estava
zangado , mas Lisa viu-o ofendido e sentiu que , do fundo da alma,
não lhe perdoara. Não quis dizê-lo a Mákhin . A irmã, com ciúmes
por causa de Mákhin , afastou-se dela definitivamente . Lisa não tinha
ninguém com quem partilhar o seu sentimento , ou a quem confessar
o seu arrependimento .
«Tenho de me arrepender perante Deus» , disse a si própria e , como
era altura da Quaresma, resolveu jejuar e preparar-se para a comu­
nhão , depois de dizer tudo ao confessor e pedir o seu conselho sobre
como devia proceder.
Perto da cidade havia um mosteiro onde vivia um stárets famoso
pela sua vida, os seus sermões e profecias , pelas curas que lhe atri­
buíam .
O stárets recebeu uma carta do velho Erópkin que o avisava da vi­
sita da sua filha e do estado mental anormal e excitado dela, carta que
também exprimia a certeza de que o stárets a ia levar pelo caminho
da verdade - um caminho de feliz mediania, de boa vida cristã sem
violação das regras em vigor.
1 74 Lev Tolstói

O stárets , cansado porque já recebera muita gente , começou a fa­


lar com Lisa e a incutir-lhe calmamente a moderação , a submissão
às condições da vida, aos pais . Lisa calava-se , corava e suava, mas
quando o velho acabou , respondeu com lágrimas nos olhos , de início
timidamente , que Jesus Cristo disse: «Deixai pai e mãe , e segui-me» ;
depois , animando-se cada vez mais , explicou como ela própria com­
preendia o cristianismo . O stárets , a princípio , esboçava um sorriso
ligeiro e objetava com os sermões habituais , mas depois calou-se e
começou a suspirar, repetindo apenas: «Oh , meu Deus .»
- Está bem, amanhã vem à confissão - disse ele e abençoou-a
com a mão enrugada.
No dia seguinte, confessou-a e, sem continuar a conversa do dia an­
'
terior, mandou-a ir, depois de se recusar, em breves palavras , a tomar
conta dos seus bens .
A pureza, a sua completa submissão à vontade de Deus e a fogosi­
dade desta menina impressionaram o stárets . Havia muito que queria
afastar-se da vida mundana, mas o mosteiro exigia-lhe atividade . Es­
ta atividade dava recursos ao mosteiro . E o velho consentia, embo­
ra sentisse vagamente a .falsidade da sua situação . Apresentavam-no
como um santo e um milagreiro , mas era apenas um homem fra­
co , tentado pelo êxito . E a alma dessa menina, quando se lhe abriu ,
revelou-lhe também a alma dele . E o velho viu como estava longe do
que gostaria de ser, do que era a vocação do seu coração .
Poucos dias após a visita de Lisa, fechou-se na sua cela durante
três semanas , e só então saiu e foi à igreja onde celebrou uma missa
e , a seguir, leu um sermão em que se arrependia e acusava o mundo
de pecado , instando-o a arrepender-se .
Fazia os seus sermões uma vez em cada duas semanas . E cada vez
mais gente vinha ouvi-los . E a fama do pregador propagava-se cada
vez mais . Havia algo especial , corajoso e sincero nas suas prédicas , e
isso exercia uma forte influência sobre as pessoas .

13

Entretanto , Vassíli fez tudo como planeara. Introduziu-se de noite,


com os companheiros , na casa de Krasnopúzov, um ricaço conhecido
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 75

como forreta e depravado. Abriu uma escrivaninha e tirou de lá 30 mil


rublos . Vassíli sabia o que queria e fazia precisamente isso . Até deixou
de beber e dava dinheiro às raparigas pobres . Casava-as , pagava as dí­
vidas das pessoas pobres . E escondia-se. A sua única preocupação era
distribuir bem o dinheiro . Subornava a polícia, e não o procuravam.
O seu coração alegrava-se . E quando por fim foi apanhado , riu-se
no tribunal e gabou-se de que utilizara bem o dinheiro roubado , aju­
dando a boa gente , enquanto o ricaço barrigudo os guardava estupi­
damente e nem sabia quanto tinha.
E defendeu-se no julgamento de modo tão divertido e bondoso
que os jurados por pouco não o ilibaram. Foi condenado à prisão na
Sibéria.
Agradeceu e avisou que ia fugir.

14

O telegrama da senhora Swiçtickaia para o czar não surtiu efeito .


Na comissão de petições resolveram até , de início , não falar do tele­
grama ao czar, mas depois , quando durante o pequeno-almoço de Sua
Majestade a conversa aflorou o caso Swiçticki , o diretor presente à
mesa aludiu ao telegrama da viúva do morto .
- C 'est tres gentil de sa part* - disse uma das senhoras da fa­
mília real .
Sua Majestade suspirou , encolheu os ombros com dragonas e disse:
«A lei é a lei» , e estendeu a taça ao lacaio que lha encheu de Moselwein
espumante . Todos se fingiram admirados com a sabedoria da sentença
dita pelo czar. E não se falou ma1 s do telegrama. E dois mujiques , um
velho e um novo , foram enforcados com ajuda de um carrasco tártaro,
assassino cruel e praticante de zoofilia, trazido de Kazan .
A velha queria vestir o corpo do seu velho com camisa branca,
meias e calçado branco novo , mas não a deixaram e enterraram os
dois no mesmo buraco fora do cemitério .

* É muito simpático da sua parte (fr.).


1 76 Lev Tolstói

- A princesa Sófia Vladimirovna disse-me que era um pregador


extraordinário - disse uma vez a imperatriz-mãe ao seu filho . -
Faites-le venir. II peut prêcher à la cathédrale . *
- Não , é melhor aqui - disse Sua Majestade e mandou convidar
o stárets Issidor.
Na igreja do palácio reuniu-se todo o generalato . Um novo e extra­
ordinário pregador era sempre uma sensação .
Apareceu um velho magrinho , de cabelo branco , passou os olhos
por todos: «Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo» , e co­
meço� .
A princípio tudo corria bem, mas , depois , cada vez pior. «II deve­
nait de plus en plus aggressif» t , como viria a dizer mais tarde a impe­
ratriz . Descompôs toda a gente . Falou da pena de morte . E atribuiu a
necessidade da pena de morte à má governação . Seria possível matar
pessoas num país cristão?
Toda a gente trocava olhares e se preocupava sobretudo com a
inconveniência e o desagrado que devia sentir Sua Majestade , mas
ninguém o exprimiu . Quando Issidor disse: «Amém» , o metropolita
aproximou-se dele e chamou-o à fala.
Depois da conversa com o metropolita e procurador-geral do Sí­
nodo , o velho foi mandado de imediato para o mosteiro , e não para o
dele mas para o de Súzdal , onde o padre Missafl era o superior.

15

Todos fizeram de conta que nada houvera de desagradável na pré­


dica de Issidor, era como se já ninguém se lembrasse dela. E parecia
ao czar que as palavras do stárets não deixaram qualquer rasto; mas ,
por duas vezes durante o dia, recordou a execução dos camponeses
cujo indulto era pedido no telegrama de Swiçtickaia. De dia havia
uma parada, depois um passeio , depois uma receção dos ministros ,
depois o almoço; à noite , o teatro . Como de costume , o czar adorme­
ceu mal a sua cabeça tocou na almofada. De noite acordou com um

* Mande-o vir. Ele pode pregar na catedral (fr.) .


t Tomava-se cada vez mais agressivo (fr.) .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 77

pesadelo: forcas no campo com os cadáveres a baloiçar nelas , e os


cadáveres tinham as línguas de fora, e as línguas esticavam-se mais
e mais . E alguém gritava: «A tua obra, a tua ! » O czar acordou em
suores e começou a pensar. Pela primeira vez pensou na responsabili­
dade que tinha, e todas as palavras do velho lhe vieram à memória . . .
Mas ele apenas de longe via em si o ser humano e não podia obe­
decer às simples exigências humanas por causa das outras que se lhe
apresentavam de todos os lados , a ele enquanto czar; e não tinha a
força de reconhecer as exigências a si mesmo enquanto homem mais
obrigatórias do que as exigências ao czar.

16

Cumprida a segunda pena de prisão , Prokófi , outrora rapaz ágil ,


janota e de grande amor-próprio , saía em liberdade como homem aca­
bado . Sóbrio , não fazia nada e , por mais que o seu pai ralhasse com
ele , comia mas não trabalhava; e mais: só pensava em roubar algu­
ma coisa em casa para a levar à taberna. Passava o tempo sentado ,
tossindo , escarrando e cuspindo . O médico que lhe fez uma consulta
auscultou-lhe o peito e abanou a cabeça.
- Ouve , amigo , precisas daquilo que não tens .
- É sabido , sempre queremos o que não temos.
- Bebe leite e não fumes .
- Claro , já estamos na abstinência, também não temos vaca.
Uma certa noite - foi na primavera - , não tinha sono , estava de­
primido, apetecia-lhe vodca. Não havia nada em casa para levar. Pôs
o chapéu , saiu . Andou pela rua, chegou às casas do clero . Tinham dei­
xado do lado de fora uma grade de esterroar, encostada à sebe do sal­
mista. Prokófi levantou a grade, pô-la às costas e levou-a à taberna de
Petrovna. «A ver se me dá uma garrafinha.» Mal se afastou , o salmista
saiu da porta. Já amanhecera, o salmista viu Prokófi a levar a grade .
- Eh , o que é isso?
O povo acorreu, apanharam Prokófi , meteram-no no cárcere . O juiz
de paz sentenciou-lhe onze meses da prisão .
Chegou o outono . Prokófi foi transferido para o hospital . Tossia
tanto que o peito se lhe rasgava. E não conseguia aquecer-se . Os do-
178 Le v Tolstói

entes mais fortes não tremiam, mas Prokófi não parava de tremer dia
e noite . O diretor poupava lenha e não aquecia os fogões do hospital
até novembro . O corpo de Prokófi sofria muito , mas o seu espírito
sofria ainda mais . Tinha repugnância por tudo , ganhou ódio a todos:
ao salmista, ao diretor que não aquecia o hospital , ao guarda e ao
doente da cama vizinha com o lábio vermelho e· inchado . Também
odiava um novo grilheta internado no hospital . Este grilheta era Ste­
pan . Apanhou erisipela na cabeça, foi transferido para o hospital e
deram-lhe a cama ao lado de Prokófi . De início , Prokófi ganhou-lhe
ódio , mas com o tempo acabou por gostar tanto de Stepan que ansia­
va por cada ocasião para conversar com ele . A mágoa no coração de
Prokófi só se dissipava depois da conversa com Stepan .
Stepan falava sempre a toda a gente do último homicídio que co­
metera, do efeito que lhe tinha provocado .
- Ela não só não gritou ou não sei quê - dizia ele - , mas entre­
gou-se , estava submissa. Como se dissesse: não é a mim, poupa-te a
ti próprio .
- Claro , é terrível levar à morte uma pessoa. Uma vez fui matar
um carneiro e fiquei aflito . Mas nunca matei pessoa nenhuma, mas
eles , os malvados , deram cabo de mim e . . . qual é a minha culpa?
Não fiz mal a ninguém . . .
- Serás recompensado por isso , ali .
- Ali , onde?
- Como é que onde? E Deus?
- Não se vê esse Deus em lado nenhum; eu , meu amigo, não tenho
fé , acho que quando morrermos vai crescer erva no sítio , e acabou-se .
- Como é que podes pensar assim? Eu , digamos , tirei vida a mui­
ta gente , mas ela, coitada, só ajudava as pessoas . Então , achas que a
mim e a ela nos espera a mesma coisa? Não , ouve . . .
- Então , achas que quando morrermos a alma fica viva?
- Com certeza. Não duvides .
A morte de Prokófi era difícil , asfixiava. Mas na última hora sentiu
um alívio . Chamou o Stepan .
- Adeus , meu amigo . Vejo que chegou a minha hora. Dantes tinha
medo , mas agora não . Só quero que seja depressa.
E Prokófi morreu no hospital .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 79

17

Entretanto , o negócio de Evguéni Mikháilovitch ia de mal a pior.


A loja estava hipotecada. O comércio andava mal . Um outro comer­
ciante abriu uma loja na cidade, Evguéni Mikháilovitch precisava de
pagar juros e endividou-se ainda mais para os pagar. Finalmente, a
loja e toda a mercadoria iam ser vendidas em hasta pública. Evgueni
Mikháilovitch e a mulher correram por todo o lado, mas não consegui­
ram arranjar os quatrocentos rublos necessários para salvar o negócio .

Depositavam uma pequena esperança no comerciante Krasnopú­


zov, sendo que a mulher de Evguéni Mikháilovitch conhecia a aman­
te do comerciante . Mas já toda a cidade sabia que fora roubada uma
enorme importância de dinheiro a Krasnopúzov. Falava-se em meio
milhão de rublos .
- E quem o roubou? - contou a mulher a Evguéni Mikháilovitch .
- O Vassíli , nosso antigo guarda-varredor. Dizem que anda agora a
esbanjar esse dinheiro e que a polícia foi subornada.
- Era um canalha - disse Evguéni Mikháilovitch . - Em tem­
pos , cometeu perjúrio com uma incrível facilidade . Nunca esperei
uma coisa dessas .
- Dizem que passou pela nossa casa. A cozinheira diz que foi
mesmo ele . Conta que Vassíli já pagou o casamento de catorze rapa­
rigas pobres .
- São fantasias deles .
Então , um estranho homem idoso , de casaquinho de lã, entrou na
loja.
- O que é que queres?
- Tenho uma carta para o senhor.
- De quem?
- Está aqui escrito .
- E então , não precisa de resposta? Espera.
- Não posso.
E o homem estranho , depois de entregar o sobrescrito , foi-se em­
bora.
- Esquisito !
Evguéni Mikháilovitch rasgou o sobrescrito grosso e não acreditou
nos seus olhos: eram notas de cem rublos . Quatro notas . O que é isto?
1 80 Lev Tolstói

E também uma carta meio analfabeta para Evguéni Mikháilovitch: «Ü


Evangelho diz: faz o bem pelo mal que te fizeram. O senhor fez-me
muito mal com o cupão , e ofendi muito o mujique , mas eu tenho pena
de ti . Toma lá quatro notas de cem e lembra-te do teu guarda Vassíli .»
- Não , isto é mesmo espantoso - dizia Evguéni Mikháilovitch
para si próprio e para a mulher. E quando se lembrava disso ou o co­
mentava com a mulher, as lágrimas marejavam-lhe os olhos e a sua
alma enchia-se de alegria.

18

Catorze representantes do clero mantinham-se na prisão de Sú­


zdal , e quase todos acusados de se terem desviado da religião cris­
tã ortodoxa; Issidor também foi mandado para esta prisão . O padre
Missaíl recebeu Issidor de acordo com os papéis e , sem falar com ele ,
deu ordem de o colocarem numa cela isolada, como criminoso gra­
ve . Na terceira semana da prisão de Issidor, o padre Missaíl fez uma
revista às celas . Ao entrar na de lssidor, perguntou-lhe se precisava
de alguma coisa.
- Preciso de muita coisa, mas não posso dizê-lo na presença de
todos . Deixa-me falar a sós contigo .
Os seus olhos cruzaram-se , e Missaíl compreendeu que não tinha
nada a recear. Mandou trazer Issidor à sua cela e, quando ficaram
sozinhos , disse:
- Então , fala.
Issidor caiu de joelhos .
- Irmão ! - disse ele . - O que estás a fazer? Tem pena de ti
próprio . Porque não há facínora pior do que tu , profanaste tudo o que
é sagrado . . .

Passado um mês , Missaíl mandou o pedido de libertação não só de


Issidor, mas ainda de sete outros presos , como arrependidos , solici­
tando ainda que lhe concedessem , a ele próprio , repouso no mosteiro .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 181

19

Passaram-se 1 0 anos .
Mítia Smokóvnikov acabou o curso da escola técnica e prestava
serviço , como engenheiro altamente remunerado , nas minas de ouro
da Sibéria. Um dia precisou de percorrer o terreno . O diretor propôs­
-lhe que levasse consigo um grilheta, Stepan Pelaguéiuchkin .
- Um grilheta? Não é perigoso?
- Com ele não é. É um santo . Pode perguntar a quem quiser.
- Mas porque foi condenado , então?
O diretor sorriu .
- Matou seis pessoas , mas é um santo . Garanto-lhe .
Portanto , Mítia Smokóvnikov foi acompanhado por Stepan , ho­
mem careca, magro e bronzeado .
Pelo caminho , Stepan cuidou de Smokóvnikov como do seu pró­
prio filho - tal como , aliás , tratava toda a gente - e contou-lhe toda
a sua história. E também como , e em prol de quê , vivia agora.
Então , aconteceu uma coisa estranha: Mítia Smokóvnikov, que
dantes não queria saber de nada além da comida, do vinho, do jogo e
das mulheres , começou , pela primeira vez , a refletir sobre a sua vida.
E estas reflexões não o abandonavam, trazendo cada vez mais mudan­
ças à sua alma. Fizeram-lhe a proposta de um cargo muito vantajoso .
Rejeitou a proposta e decidiu comprar, com o dinheiro que tinha, uma
propriedade, casar-se e, na medida do possível , servir o povo .

20

Foi isso mesmo que fez . Mas antes disso foi ver o seu pai , com
quem tinha relações desagradáveis por causa da nova família que o
pai arranjara. Mítia resolveu melhorar o relacionamento com o pai .
O pai surpreendeu-se , riu-se dele , mas depois deixou de o criticar e
recordou as muitas culpas que tinha para com o seu filho .
ALIOCHA, O POTE

Aliocha era o mais novo dos irmãos . Foi alcunhado de Pote por­
que , uma ocasião , a mãe o mandou levar um pote de leite à mulher
do diácono , mas ele tropeçou e partiu o pote . A mãe bateu-lhe , e os
rapazes começaram a gozar com ele chamando-lhe Pote . Assim lhe
ficou para sempre a alcunha.
Aliocha era rapaz magro , orelhudo (as suas orelhas espetavam­
-se como asas) e ainda narigudo . Os rapazes gozavam: «Ü nariz de
Aliocha é como um cão no outeiro .» Na aldeia havia uma escola,
mas Aliocha não foi bom na aprendizagem , também não tinha tempo.
O irmão mais velho vivia na cidade , trabalhava para um comerciante ,
e Aliocha desde pequeno começou a ajudar o pai . Já com seis ani­
nhos , juntamente com a mana pequena, guardava no pasto as ovelhas
e a vaca e, quando cresceu um pouco, começou a guardar os cavalos
no prado , de dia e de noite . Desde os seus doze anos que lavrava a
terra e conduzia a carroça. Não tinha muitas forças , mas era destro .
E sempre animado . Os rapazes gozavam com ele; Aliocha calava-se ,
ou ria-se . Quando o pai se zangava com ele , calava-se e ouvia. E, mal
acabavam de o descompor, sorria e punha-se a fazer o trabalho que
tinha pela frente .
Aliocha tinha dezanove anos quando o seu irmão foi mandado pa­
ra a tropa. E o pai pôs Aliocha no lugar do irmão , a trabalhar como
guarda-varredor do comerciante . Deram a Aliocha as velhas botas do
mano , o chapéu do pai e uma poddiovka , e levaram-no para a cidade .
Aliocha estava contentíssimo com a sua roupa, mas o comerciante
ficou descontente com este preparo .
1 84 Lev Tolstói

- Pensava que me davas , em vez do Semion , um homem a sério


- disse o comerciante ao olhar para Aliocha. - Mas trouxeste-me
um fedelho . Não serve para nada.
- Sabe fazer tudo: atrelar, conduzir, e trabalha como um cavalo .
Só parece fraquinho . Mas não é , tem força.
- Isso logo se vê .
- Mas o melhor é que é obediente . Gosta de trabalhar.
- Bem, faço-te a vontade . Que fique .
E Aliocha ficou a viver em casa do comerciante .
A família do comerciante não era grande: a mulher, a velha mãe ,
o filho mais velho , de educação simples e que ajudava desde sem­
pre o pai , e outro filho , este culto , tendo feito o curso no liceu e
estudado depois na universidade , donde foi expulso , e vivia agora
em casa. E ainda uma filha, colegial .
De início , não gostaram de Aliocha - tinha modos de campónio
e vestia mal , não sabia comportar-se educadamente , dizendo «tu» a
toda a gente , mas não tardaram a habituar-se a ele . Trabalhava ainda
melhor que o irmão . Era realmente obediente , mandavam-no fazer
tudo , e cumpria todas as ordens com prontidão e rapidamente , pas­
sando de um trabalho para outro sem descansar. Então , tal como em
casa do seu pai , encarregavam-no de todos os labores . Quanto mais
fazia, mais trabalho lhe davam . A patroa, a velha, a filha e o filho dos
patrões , o encarregado e a cozinheira não paravam de o mandar de
um lado para o outro , fazer isto , fazer aquilo . A cada minuto: «Vai ,
amigo» ou «Aliocha, arranja-o , já te esqueceste? Vê lá, não te esque­
ças .» E Aliocha ia e arranjava, e via, e não se esquecia, e tinha tempo
para tudo , e sempre a sorrir.
As botas do irmão ficaram rapidamente desfeitas , o patrão deu-lhe
uma descompostura por andar com os dedos a assomarem-se das bo­
tas em frangalhos e mandou-o comprar botas novas na feira. As botas
eram novas , Aliocha estava contente , mas os pés eram os mesmos ,
velhos , e à noite , depois da correria de um dia inteiro , doíam-lhe ,
e Aliocha zangava-se com eles . Também tinha medo de que o pai ,
quando viesse para receber dinheiro por ele , se arreliasse por causa
do desconto das botas no salário .
No inverno , Aliocha levantava-se antes do amanhecer, cortava le­
nha, varria o pátio , dava de comer e de beber à vaca e ao cavalo .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 85

Depois acendia os fogões , engraxava as botas e limpava a roupa dos


patrões , aquecia os samovares , limpava-os ; a seguir, ou o encarregado
da loja o chamava para tirar a mercadoria do armazém , ou a cozinheira
o punha a preparar a massa e a descascar batatas . Depois mandavam­
-no à cidade, ou com algum recado , ou buscar a filha do patrão ao
liceu , ou buscar o óleo para a velha. «Onde é que andaste, seu maldi­
to?» - dizia-lhe ora um , ora outro . «Porque vão vocês próprios? Que
o Aliocha vá. Aliocha, eh , Aliocha ! » E Aliocha lá ia a correr.
Tomava o pequeno-almoço à pressa e raramente chegava a tempo
para almoçar com todos . A cozinheira zangava-se com ele por isso ,
mas tinha pena e deixava-lhe a comida quente para o almoço e o
jantar. Havia muitíssimo trabalho sobretudo antes e durante as festas .
E se o Aliocha gostava das festas ! Sobretudo porque nesses dias lhe
davam gorjetas que , embora pequenas , uns sessenta copeques ao to­
do , eram dinheiro seu . Podia gastá-lo como lhe apetecia. Quanto ao
salário , nem o via. O pai vinha, levava o dinheiro dele e só ralhava
com Aliocha por ter gasto rapidamente as botas .
Quando juntou dois rublos dessas gorjetas , comprou , a conselho
da cozinheira, um casaco de malha vermelha e, quando o vestiu , já o
sorriso não lhe saía da cara.
Aliocha falava pouco , entrecortada e sucintamente . Quando lhe
mandavam fazer alguma coisa, ou perguntavam se podia fazer isto ou
aquilo , dizia sempre sem a mínima hesitação: «Posso , sim» , e logo
se atirava ao trabalho .
Não sabia orações nenhumas , esqueceu o que a mãe lhe ensinara,
mas rezava de manhã e à noite - rezava com as mãos , benzia-se .
Assim viveu Aliocha um ano e meio , até que lhe aconteceu a coisa
mais extraordinária da sua vida: descobriu , para seu próprio espanto ,
que além das relações entre as pessoas por precisarem umas das ou­
tras , existiam diferentes , muito especiais: nada tinham que ver com a
necessidade de alguém querer botas engraxadas , ou uma compra tra­
zida da loja, ou um cavalo atrelado - mas uma pessoa podia precisar
de outra por nada, e havia necessidade de servi-la e acarinhá-la, e ele ,
Aliocha, era agora esse mesmo homem necessário . Soube-o graças à
cozinheira Ustínia. Ustínia era órfã, jovem, laboriosa como o próprio
Aliocha. Começou a enternecer-se por Aliocha, e este sentiu pela pri­
meira vez que era ele, ele próprio , e não os seus serviços , aquilo que a
1 86 Lev Tolstói

outra pessoa queria dele . Quando a mãe se enternecia com ele, Aliocha
não reparava nisso, parecia-lhe natural , como se fosse ele próprio a
enternecer-se consigo . Mas agora via que Ustínia, pessoa alheia, tinha
pena dele, deixava para ele papas com manteiga no pote e, quando es :
tava a comer, olhava para ele, apoiando o queixo na mão com a manga
arregaçada. Olhava para Ustínia e ela ria, e Aliocha ria também.
Era uma sensação tão nova e estranha que , de início , assustou
Aliocha. Sentiu que seria um estorvo para ele continuar a servir co­
mo antes . E mesmo assim estava contente e , quando olhava para as
suas calças cerzidas por Ustínia, abanava a cabeça e sorria. Muitas
vezes , trabalhando ou correndo a algum lado , recordava Ustínia e
dizia: «Ah , Ustínia ! » Ustínia ajudava-o no que podia, e ele ajudava­
-a. Ela falou-lhe da sua vida, como ficou órfã, como a sua tia tomou
conta dela, como foi entregue para servir na cidade , como o filho do
comerciante tentou aliciá-la para fazer asneira e como ela o chamou
à razão . Ustínia gostava de falar, Aliocha gostava de a ouvir. Ouviu
falar do que acontecia muito nas cidades: os mujiques que trabalha­
vam para os patrões casavam-se com as cozinheiras . Um dia Ustínia
perguntou-lhe quando o iam casar. Aliocha respondeu que não sabia
e que não gostaria de se casar na aldeia.
- Mas já puseste os olhos em alguma? - perguntou ela.
- Gostaria de me casar contigo . Queres?
- Olha-me este Pote , é Pote mas soube dizer uma coisa bonita -
disse ela, batendo-lhe com o lenço nas costas . - Porque não? Quero .
Na altura do Entrudo , o velho veio buscar o dinheiro . A mulher
do comerciante descobriu que Aliocha queria casar-se com Ustínia
e não gostou: «Fica grávida, como é que vai servir com a criança?»
Avisou o marido .
O patrão entregou o dinheiro ao pai de Aliocha.
- Então , o meu rapaz , porta-se bem? - perguntou o mujique . -
Não te disse que era obediente?
- Obediente é, mas meteu-se-lhe na cabeça uma parvoíce. Quer
casar-se com a cozinheira. E eu não quero aqui casais. Não nos convém.
- Irra, que é parvinho , do que se foi lembrar - disse o pai . -
Fica descansado . Mando-lhe esquecer isso .
O pai entrou na cozinha e , à espera do filho , sentou-se à mesa.
Aliocha andou a tratar de várias coisas e voltou , resfolegando.
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 87

- Achava que eras ajuizado , mas olha do que te lembraste - dis­


se o pai .
- Eu , nada . . .
- Como é que nada? Queres casar-te . Caso-te quando for preciso ,
e caso-te com uma boa, e não com uma puta da cidade .
O pai falou muito . Aliocha estava de pé , suspirando . Quando o pai
acabou de falar, Aliocha sorriu .
- Está bem, posso esquecê-lo .
- Vê lá.
Quando o pai se foi embora e Aliocha ficou a sós com U stínia
(quando o pai falava com o filho a rapariga estava por trás da porta a
ouvir) , disse-lhe:
- Não correu bem esta nossa coisa. Ouviste? O meu pai zangou-
-se , proibiu .
Ustínia chorou silenciosamente , tapando a cara com o avental .
Aliocha estalou a língua.
- Como é que posso desobedecer? Estou a ver que é preciso es­
quecer.
À noite , quando a mulher do comerciante o chamou para fechar os
contraventos , perguntou-lhe:
- Então , deste ouvidos ao teu pai , deixaste-te de parvoíces?
- Deixei - disse Aliocha, riu-se e logo a seguir chorou .

Desde então , Aliocha não falou mais do casamento com Ustínia,


vivia como antes .
Na Quaresma, o encarregado da loja mandou-o limpar a neve do
telhado . Aliocha subiu ao telhado , limpou toda a neve , começou a
arrancar com a pá a neve colada às calhas , os pés escorregaram-lhe ,
caiu . Por azar, não caiu na neve , mas sobre o alpendre de ferro por
cima da soleira. Ustínia e a filha do patrão acorreram .
- Aliocha, magoaste-te?
- Não me magoei nada. Não faz mal .
Queria levantar-se , mas não podia e começou a sorrir. Levaram­
-no para o cubículo dele . O auxiliar médico chegou , examinou-o e
perguntou-lhe onde lhe doía.
- Dói por todo o lado , mas não faz mal . Só que o patrão pode
ofender-se . É preciso mandar uma carta ao meu pai .
1 88 Lev Tolstói

Aliocha ficou deitado dois dias , e no terceiro mandaram buscar o


padre .
- Ouve , o que é isso , vais morrer? - perguntou-lhe Ustínia.
- Tem de ser. Não vivemos para sempre , pois não? Morre-se um
dia - disse Aliocha rapidamente , como sempre . - Obrigado , Ustiu­
cha, tiveste pena. Portantos , ainda bem que nos proibiram de casar,
porque não ia dar nada. Mas agora está tudo bem .
Na presença do pope , rezou só com as mãos e o coração . E o que
tinha no coração era: se aqui tudo está bem se obedecermos e não
ofendermos ninguém, no outro mundo também estará bem.
Falou pouco . Só pedia água e não deixava de admirar qualquer
coisa.
Admirou qualquer coisa, esticou-se e morreu .
KORNEI VASSÍLIEV

Komei Vassíliev tinha 54 anos quando foi à aldeia pela última vez .
O seu cabelo espesso e encaracolado ainda não tinha nenhuma branca,
e só a barba preta era um pouco grisalha ao lado das maçãs do rosto .
Tinha a cara lisa, de bochechas coradas , a nuca larga e sólida, e todo o
seu corpo robusto se revestiu de gordura durante a vida farta na cidade .
Vinte anos atrás , Komei acabou o seu serviço militar e voltou com
dinheiro . Primeiro , abriu uma loja, depois deixou este negócio e co­
meçou a vender gado . Ia buscar o gado a Tcherkássi e levava-o para
Moscovo .
Na aldeia de Gai , na sua casa de pedra com telhado de ferro , vi­
viam a sua velha mãe , a sua mulher com dois filhos , rapaz e rapariga,
e ainda o sobrinho mudo , órfão de quinze anos , e um assalariado .
Komei casou-se duas vezes . A primeira mulher era fraca e doente , e
morreu sem ter filhos . Então Komei , viúvo de meia-idade , casou-se
de novo com uma rapariga bonita e saudável , filha de uma viúva po­
bre da aldeia vizinha. Os filhos eram da segunda mulher.
Kornei vendeu , em Moscovo , a última mercadoria com tanto lucro
que acumulou cerca de três mil rublos . Ao ouvir de um conterrâ­
neo que , perto da sua aldeia, um proprietário rural arruinado estava a
vender barato um bosquete , resolveu começar também o negócio da
floresta. Conhecia este negócio porque , ainda antes do serviço mili­
tar, serviu como ajudante do administrador da floresta que pertencia
a um comerciante .
1 90 Lev Tolstói

Na estação ferroviária, da qual se ia a Gai , Komei encontrou um


conterrâneo , o Kuzmá zarolho . Kuzmá, com a sua parelha de rocins
felpudos, ia de Gai à estação à hora da chegada de cada comboio
para arranjar passageiros . Kuzmá era pobre , por isso não gostava dos
ricos , sobretudo do ricaço Komei que conhecera ainda pequeno .
Komei , de peliça curta, com uma maleta na mão , saiu para a so­
leira da estação e parou , espetando a barriga, ofegando e olhando em
volta. Era de manhã. O tempo estava calmo , sombrio , ligeiramente
frio .
- Então , tio Kuzmá, não arranjaste passageiros? - disse ele . -
Levas-me , está bem?
- Está bem , dá cá um rublo que eu levo-te .
- Setenta copeques chegam .
- Ganhaste tanta barriga mas queres roubar trinta copeques a um
homem pobre .
- Está bem, de acordo , vamos lá - disse Komei . E, pondo no
pequeno trenó a mala e a trouxa, refestelou-se na parte de trás .
Kuzmá ficou na boleia.
- Vamos .
Saíram do caminho cheio de buracos para o caminho liso .
- Então , como estais lá na aldeia? - perguntou Komei .
- Nada bem .
- Mas porquê? A minha velha ainda é viva?
- A velha está viva, sim . Há dias vi-a na igreja. Está bem, a tua
mãe . E a tua jovem patroa também . O que lhe pode acontecer? Arran­
jou um novo assalariado .
E Kuzmá riu de modo estranho , como pareceu a Komei .
- Que assalariado? E o Piotr?
- O Piotr adoeceu . Contratou Evstignei Béli , da Kámenka - dis-
se Kuzmá - , da aldeia dela, portanto .
- Ai é? - disse Komei .
Já quando Komei estava a arranjar casamento com Marfa, as mu­
lheres falavam sobre Evstignei .
- É assim , Komei Vassílitch - disse Kuzmá. - Hoje em dia as
mulheres fazem o que lhes dá na gana.
- É verdade - disse Komei . - A tua égua velha está encanecida
- acrescentou , desejando acabar com aquela conversa.
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 191

- Também não sou jovem . Tal dono , tal égua - respondeu Kuz­
má, chicoteando o castrado felpudo , de patas tortas .
A meio do caminho havia uma estalagem . Komei mandou parar e
entrou . Kuzmá virou o cavalo até uma tina vazia e pôs-se a ajeitar a
retranca, sem olhar para Komei , mas à espera de ser convidado .
- Entra, tio Kuzmá - disse Komei , saindo à soleira - , bebe um
copinho .
- Está bem - respondeu Kuzmá, fingindo indiferença.
Komei pediu uma garrafa de vodca e serviu um copo a Kuzmá.
Kuzmá, que não comia desde manhã, ficou bêbedo de imediato . E
então começou a contar a Komei , em sussurro , o que se falava na al­
deia. Diziam ali que Marfa, mulher de Komei , levou para casa, como
assalariado , o seu antigo amante e que vivia com ele .
- Por mim , tudo bem . Tenho pena é de ti - disse o bêbedo Kuz­
má. - Não está bem, o povo goza. A mulher, é de supor, não tem
medo do pecado . Mas espera, digo eu . Espera que venha o patrão . É
assim , meu amigo Komei Vassílitch .
Komei ouvia em silêncio o que Kuzmá lhe contava, e o seu sobro­
lho negro descia cada vez mais sobre os seus olhos brilhantes , cor de
carvão .
- Então , dás água aos cavalos? - perguntou apenas quando a
garrafa estava vazia. - Não? Então , vamos .
Pagou a conta e saiu para a rua.
Chegou a casa já ao crepúsculo . A primeira pessoa que viu foi o tal
Evstignei Béli , no qual , aliás , não deixara de pensar durante todo o
caminho . Komei cumprimentou-o e , ao ver a cara magra de sobran­
celhas loiras de Evstignei , que se azafamou à vista do patrão , abanou
a cabeça. «Mentiu , o velho cão - pensou de Kuzmá. - Mas quem
sabe . Já vou descobrir.»
Kuzmá estava ao pé do cavalo e piscava o seu único olho , apon-
tando para Evstignei .
- Vives portanto em nossa casa? - perguntou Komei .
- Pois , tenho de trabalhar em algum lado - respondeu Evstignei .
- Aqueceste o quarto?
- Aqueci , claro . Matvéevna está ali - respondeu Evstignei .
Komei subiu para a soleira . Marfa, ao ouvir vozes , saiu ao átrio ,
viu o marido , corou e cumprimentou-o com carinho afetado .
1 92 Lev Tolstói

- Já nem te esperávamos , eu e a mãezinha - disse e entrou no


quarto atrás de Komei .
- Então , como é a vida sem mim?
- Vivemos na mesma - disse ela e, pegando ao colo na filha de
dois aninhos que estava a puxá-la pela saia, pedindo leite , foi a passo
largo e firme ao vestíbulo .
A mãe de Komei , de olhos negros como os do filho , entrou na sala,
arrastando com dificuldade os pés calçados com botas de feltro .
- Obrigada por teres vindo ver-nos - disse , meneando a cabeça
tremente .
Komei contou à mãe sobre o negócio pelo qual viera e , lembrando­
-se de Kuzmá, saiu para lhe pagar pela viagem. Mal abriu a porta do
vestíbulo , viu junto à saída Marfa e Evstignei . Estavam perto um
do outro , e a mulher estava a dizer qualquer coisa. Ao ver Komei ,
Evstignei esgueirou-se para o quintal , enquanto Marfa se acercou do
samovar e endireitou o tubo que uivava.
Komei passou em silêncio ao lado das suas costas curvadas e , pe­
gando na trouxa, convidou Kuzmá para tomar chá na isbá grande .
Antes do chá, Komei ofereceu prendas de Moscovo aos familiares:
um lenço de lã à mãe , um livro com desenhos ao filho Fedka, um
colete ao sobrinho e uma chita para vestido à mulher.
Durante o chá , Komei estava carrancudo e calava-se; só de vez
em quando sorria, olhando para o mudo que divertia os outros com
a sua alegria. Estava feliz com o colete . Pegava nele , desdobrava,
vestia-o e beijava a sua própria mão , olhando para Komei e sor­
rindo .
Depois do chá e do jantar, Komei foi logo ao quarto onde dormia
com Marfa e a filha pequena. Marfa ficou na isbá grande , arrumando
a loiça. Komei sentou-se à mesa, apoiando-se na mão , e esperou .
A raiva contra a mulher crescia nele desenfreadamente , cada vez
mais . Tirou da parede o ábaco e do bolso um bloco de notas e , para se
distrair, começou a fazer cálculos . Contava e olhava, de vez em vez ,
para a porta, escutando as vozes na isbá grande .
Por várias vezes ouviu que a porta da isbá se abria e alguém saía
ao vestíbulo , mas não era ela. Por fim, ouviram-se os seus passos , a
porta mexeu-se , despegou-se do umbral , e Marfa, de faces coradas ,
bonita, de lenço vermelho , entrou com a miúda ao colo .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 93

- Estás cansado depois da viagem, não? - disse ela, sorrindo e


como que não reparando no seu ar sombrio .
Komei olhou para ela e voltou aos cálculos , embora já não houves­
se nada para contar.
- Já é tarde - disse ela e, pondo no chão a miúda, passou para
trás da divisória.
Komei ouviu como estava a preparar a cama e a deitar a filha.
«Ü povo goza - lembrou-se das palavras de Kuzmá. - Então , es­
pera . . . » , pensou , recuperando com dificuldade o fôlego , e levantou­
-se lentamente; meteu o coto de lápis no bolso do colete , pendurou
o ábaco no prego , tirou o casaco e aproximou-se da porta da divisó­
ria. Marfa estava em frente dos ícones e rezava. Komei esperou . A
mulher benzia-se , fazia vénias e rezava prolongadamente . Parecia a
Komei que ela há muito dissera todas as rezas e as repetia várias ve­
zes propositadamente . Por fim fez uma vénia até ao chão , endireitou­
-se , sussurrou para os seus botões palavras de reza quaisquer e virou-
-se para Komei .
- A Agachka já está a dormir - disse ela, apontando à miúda, e
sentou-se , sorrindo , na cama rangente .
- O Evstignei há muito que está aqui? - disse Komei , entrando .
Marfa, com um gesto calmo , lançou uma das tranças grossas de
trás para o peito e começou a destrançá-la rapidamente . Olhava para
ele frontalmente , os seus olhos riam .
- O Evstignei? Sei lá, há duas semanas , ou então três .
- Vives com ele? - disse Komei .
Marfa largou a trança, mas logo a seguir voltou a apanhar o seu
cabelo rijo e espesso , pondo-se a trançá-lo .
- Essa gente diz cada coisa. Eu? Vivo com Evstignei? - disse ,
pronunciando o nome em voz muito sonora. - Olha o que inventa­
ram ! Quem te disse?
- Pergunto: é verdade ou não? - disse Komei e cerrou os punhos
potentes dentro dos bolsos .
- Deixa de disparatar. Tiro-te as botas?
- Estou a perguntar-te - repetiu ele .
- Vejam só que tesouro , o Evstignei - disse ela. - Quem é que
te contou esta mentira?
- De que falaste com ele no átrio?
1 94 Lev Tolstói

- Falei? Disse-lhe que era preciso meter uma aduela ao barril. E


que conversa é esta?
- Mando-te: diz a verdade . Mato-te , sua velhaca de merda.
Agarrou-a pela trança.
Ela tirou bruscamente a trança da mão dele, a cara dela torceu-se
de dor.
- Só sabes bater, mais nada. O que me deste de bom? Com esta
vida, a pessoa fica capaz de tudo .
- Fica capaz de quê? - pronunciou ele , avançando .
- Arrancaste-me metade da trança ! Olha, cai em madeixas . O que
queres? Está certo que . . .
Não acabou o que queria dizer. Komei agarrou-a pela mão , puxou­
-a da cama para o chão e começou a bater-lhe na cabeça, dos lados ,
no peito . Quanto mais batia, mais a fúria se acendia nele . Marfa grita­
va, defendia-se , queria fugir, mas ele não a largava . A miúda acordou
e atirou-se aos braços da mãe .
- Mãezinha ! - chorava ela.
Komei apanhou a miúda pelo braço , arrancou-a da mãe e atirou-a,
como um gatinho , para o canto . A miúda guinchou e durante alguns
segundos não emitiu qualquer som .
- Facínora ! Mataste a criança - gritou Marfa, tentando levantar-
-se e pegar na filha.
Mas ele voltou a agarrá-la e bateu-lhe no peito com tanta força que
ela caiu de costas e também deixou de gritar. Só a miúda gritava sem
parar.
A velha, com o cabelo branco desgrenhado na cabeça descoberta,
tremente , entrou cambaleando no cubículo e , sem olhar para Komei
nem para Marfa, foi pegar na neta que se desfazia num choro louco .
Komei estava parado , respirando gravemente e olhando em volta,
como que estremunhado e sem perceber onde estava e quem estava
com ele .
Marfa levantou a cabeça e , gemendo , começou a limpar a cara
ensanguentada com a camisa.
- Facínora odioso ! - disse. - Sim, vivo com Evstignei e antes
também vivi . Vá, mata-me ! E Agachk:a não é tua filha, tive-a com ele
- pronunciou rapidamente e tapou a cara com o cotovelo à espera
de um murro .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 95

Mas Komei parecia não perceber nada, só fungava e olhava em


volta.
- Olha o que fizeste à criança: deslocaste-lhe a mão - disse a
velha, mostrando-lhe a mãozinha torcida e pendente da pequena que
se desfazia em gritos . Komei virou-se e, em silêncio , saiu para o ves­
tíbulo e, do vestíbulo , para a soleira.
Lá fora o tempo era o mesmo , frio e sombrio . Os flocos de geada
caíam-lhe na testa e nas bochechas ardentes . Sentou-se no degrau e
pôs-se a comer mancheias de neve , apanhando-a do corrimão . De
trás da porta chegavam os gemidos de Marfa e o choro lamentoso da
miúda; depois a porta do vestíbulo abriu-se e Komei viu que a sua
mãe com a neta ao colo saiu do quarto e passou através do vestíbulo
para a isbá grande . Komei levantou-se e entrou no quarto . Na mesa,
um candeeiro coberto lançava uma luz fraca. De trás da divisória ou­
viu os gemidos de Marfa que se tomaram mais altos quando entrou .
Komei , em silêncio , vestiu-se, tirou a mala de baixo do banco corri­
do , arrumou nela as suas coisas e atou-a com a corda.
- Porque me bateste? Porquê? O que é que te fiz? - pronun­
ciou Marfa em voz lamentosa. Komei , sem responder, pegou na mala
e levou-a até à porta. - Seu forçado , seu bandido ! Espera ainda.
Achas que não há castigo para ti? - disse ela em voz muito diferen­
te , maldosa.
Komei não respondeu , empurrou a porta com o pé e bateu com ela
com tanta força que as paredes tremeram .
Ao entrar na isbá grande , Komei acordou o mudo e mandou-o
atrelar o cavalo . O mudo demorou a acordar, olhava com espanto
e interrogativamente para o tio e coçava a cabeça com as mãos . Ao
perceber finalmente o que queriam dele , saltou da cama, calçou
as botas de feltro , a peliça rota , pegou na lanterna e saiu para o
quintal .
Já era dia quando Komei saiu com o mudo , sentado no pequeno
trenó , para fora do portão e seguiu o mesmo caminho por onde che­
gara, na véspera, com Kuzmá.
Chegou à estação cinco minutos antes da partida do comboio .
O mudo viu-o a comprar bilhete , a pegar na mala e a entrar na car­
ruagem, e como ele lhe acenou com a cabeça, e como o comboio
desapareceu da vista.
1 96 Lev Tolstói

Marfa, além das nódoas negras na cara, tinha duas costelas parti­
das e uma ferida na cabeça. Mas , passado meio ano , a mulher forte ,
saudável e jovem recuperou , e não havia nem vestígios do espanca­
mento . Mas a miúda ficou para sempre aleijadinha. Teve duas fratu­
ras no braço , e o braço ficou torto para sempre.
Quanto a Kornei , desde que se foi embora ninguém ouviu falar
dele . Nem sabiam se estava vivo ou morto .

Passaram-se dezassete anos . Era outono tardio . O sol andava bai­


xo , depois das três da tarde já começava o crepúsculo . O gado de An­
dréevka voltava à aldeia. O pastor, acabado o contrato , foi-se embora
na véspera da abstinência, e eram as mulheres e as crianças que, por
turnos , levavam o gado ao pasto .
O gado acabou de sair do restolhal de aveia para o grande caminho
vicinal , sujo, cheio de pegadas de cascos bifurcados , de terra negra sul­
cada pelas trilhas , e com mugidos e balidos incessantes ia para a aldeia.
Um velho alto de barbas brancas e cabelo encaracolado , encanecido -
só as as hirsutas sobrancelhas eram negras - , ia à frente do rebanho ,
de zipun 14 remendado , escurecido pela chuva, um gorro grande na ca­
beça e um saco de couro às costas curvas . Caminhava, arrastando com
dificuldade pela lama as suas grosseiras botas ucranianas , molhadas e
gastas e, passo sim, passo não, apoiava-se cadenciadamente no cajado
de carvalho . Quando o gado o apanhou, o velho parou, apoiando-se no
cajado . Uma jovem mulher que tocava o gado , cobrindo a cabeça com
serapilheira, com a saia arregaçada e botas de homem, corria com pés
céleres de um lado do caminho para o outro , tocando as ovelhas e os
porcos atrasados . Ao chegar junto do velho parou e olhou para ele.
- Boa-tarde , avô - disse ela em voz sonora, terna e jovem .
- Boa-tarde , espertinha - disse o velho .
- Então , vais dormir cá?
- Pois vou , nada a fazer. Estou cansado - disse o velho em voz
rouca .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 97

- Não vás falar com a administração - disse a jovem com ca­


rinho . - Vem daí à nossa casa, é a terceira isbá. A minha sogra dá
pernoita aos viageiros .
- A terceira isbá. É , portanto , de Zinovéev? - perguntou o velho ,
mexendo significativamente o sobrolho negro .
- Então já conheces?
- Passei por lá.
- Fediuchka, porque estás a papar moscas? A coxa atrasou-se -
gritou a jovem, apontando para uma ovelha de três patas que coxeava
atrás do rebanho e, abanando uma vara com a mão direita e seguran­
do a serapilheira por cima da cabeça de maneira estranha, com a mão
esquerda torta, foi a correr para trás , por causa da ovelha preta, coxa
e encharcada.
O velho era Kornei . A jovem era aquela mesma Agachka a quem
partira o braço dezassete anos atrás . Casaram-na com um rapaz de
uma fann1ia rica de Andréevka, a uma légua e meia de Gai .

Outrora homem robusto , rico e orgulhoso, Kornei Vassíliev tornou­


-se o que era agora, um pedinte velho que não tinha nada além da
roupa gasta no corpo , o cartão de soldado e dois rublos no saco .Toda
esta mudança se processou pouco a pouco, de tal maneira que nem
ele próprio poderia explicar quando começou e aconteceu . Sabia e
tinha certeza absoluta de uma única coisa: a culpada da sua desgraça
foi a sua mulher malvada. Era-lhe estranho e doloroso recordar como
ele era dantes . E quando o recordava, lembrava-se com ódio daquela
que achava a causa de todo o mal que o atingia durante os últimos
dezassete anos .
Na noite do espancamento da mulher, foi falar com o proprietário
que vendia o bosquete . Não fez o negócio , o bosquete já tinha sido
comprado . Kornei voltou então para Moscovo e, chegado ali , logo
se meteu na bebedeira. Já antes bebia de vez em quando , mas agora
embriagou-se sem parar durante duas semanas inteiras . Quando caiu
em si , foi comprar gado . A compra foi um fracasso, teve prejuízo .
Tentou de novo . O segundo negócio também não foi feliz . E, passado
um ano , dos três mil rublos que tinha, restavam-lhe vinte e cinco, e
viu-se obrigado a procurar trabalho como assalariado . Já antes bebia,
mas agora isto acontecia-lhe com uma frequência cada vez maior.
198 Lev Tolstói

Primeiro trabalhou durante um ano como encarregado de um ne­


gociante de gado , mas entrou em bebedeira numa viagem e o patrão
despediu-o . Depois , por meio de uns conhecidos , arranjou lugar de
vendedor de vinho , mas ali também não ficou muito tempo . Confun­
diu as contas e foi despedido . Tinha vergonha de voltar para casa, e
também tinha raiva. «Que vivam sem mim . Talvez o rapaz também
não seja meu .»
Tudo corria de mal a pior. Não passava sem vinho . Já trabalhava
como arrieiro e não como encarregado; depois , nem este trabalho lhe
davam.
Quanto pior vivia, tanto mais culpava a mulher, tanto mais a sua
raiva ardia.
Pela última vez , Komei arranjou trabalho de arrieiro num patrão
que não conhecia. O gado adoeceu . Komei não teve culpa, mas o pa­
trão zangou-se e despediu tanto o encarregado como o Komei . Já não
houve outro emprego , Komei resolveu ir em peregrinação . Comprou
botas boas , um saco , levou açúcar, chá, oito rublos e foi a Kíev. Não
gostou de Kíev e foi ao Cáucaso , a Nova Atos . Antes de chegar a No­
va Atos , adoeceu com as febres . Enfraqueceu de repente . Restava-lhe
um rublo e setenta copeques , não conhecia ninguém , e resolveu ir
para casa do filho . «Se calhar, essa minha malvada já morreu - pen­
sou . - Mas se está viva, pelo menos digo-lhe antes da minha morte
tudo , que a velhaca saiba o que fez comigo .» Assim pensou e assim
fez . Meteu-se a caminho de casa.
As febres acometiam-no dia sim, dia não . Enfraquecia cada vez mais ,
não conseguindo fazer mais que duas ou três léguas por dia. Faltavam
quarenta léguas até casa quando o dinheiro acabou . Já fez o resto do
caminho a pedir esmola por amor de Cristo e dormindo onde o levava a
polícia. «Rejubila, olha até que ponto me levaste ! » , pensava da mulher,
e as suas mãos velhas e fracas , pelo velho hábito , cerravam-se em pu­
nhos . Mas não havia a quem bater, nem havia força naqueles punhos .
Fez as quarenta léguas em duas semanas e , completamente exausto
e doente , chegou àquele sítio , a duas léguas e meia da sua casa, onde
se encontrou , sem a reconhecer e sem ser reconhecido por ela, com
aquela Agachka que era considerada, mas não era, sua filha e a quem
partira o braço .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 99

Fez o que Agáfia lhe dissera. Chegou à casa de Zinovéev e pediu a


pernoita. Deixaram-no entrar.
Ao entrar na isbá, fez como sempre: benzeu-se perante os ícones e
cumprimentou os donos de casa.
- Estás com frio , meu velho ! Vai , vai para o catre do fogão - dis­
se a velhota enrugada e bem-disposta que estava a levantar a mesa.
O marido de Agáfia, mujique de aparência jovem, sentado no ban­
co ao lado da mesa, estava a encher um candeeiro de petróleo .
- Ena, estás todo encharcado , avô ! - disse ele . - Nada a fazer,
seca a roupa !
Kornei despiu-se , descalçou as botas , pendurou as grevas em fren­
te do fogão e subiu para o catre .
Agáfia também entrou , trazendo um jarro . Já voltara com o gado e
tivera tempo de tratar dele.
- O velhote peregrino não vinha? - perguntou . - Disse-lhe pa­
ra vir cá.
- Está aqui - disse o seu marido , apontando para o fogão onde ,
esfregando pernas ossudas e peludas , estava Kornei .
Para o chá, também chamaram Kornei . Desceu e sentou-se na bei­
rinha do banco . Serviram-lhe uma chávena e um bocado de açúcar.
A conversa era sobre o tempo , a ceifa. O pão foge das mãos . No
campo dos senhores , as moreias deitaram rebentos . Mal começam a
carregar as carroças para levar, mais uma chuvada. Os mujiques le­
varam o seu . Mas o pão dos senhores ficou a apodrecer. E tantos ratos
nas gavelas que mete medo .
Kornei contou que, pelo caminho , vira um campo cheio de moreias .
A jovem serviu-lhe a quinta chávena de chá fraco , ligeiramente
amarelo .
- Não faz mal . Toma, avô , bom proveito - disse quando Kornei
tentou recusar.
- Porque é que tens a mão avariada? - perguntou-lhe , pegando
com cuidado na chávena cheia das mãos da jovem e mexendo o so­
brolho .
- Partiram-lha ainda em criança - disse a velha sogra loquaz . -
O pai da nossa Agacha queria matá-la.
200 Lev Tolstói

- Porque é que foi? - perguntou Komei . E, olhando para a cara


da jovem , recordou de repente o Evstignei Béli de olhos azuis , e a
mão que segurava a chávena tremeu tanto que derramou metade do
chá antes de pôr a chávena na mesa.
- Havia em Gai um homem , o pai dela, chamava-se Komei Vassí­
liev. Era um ricaço . Enraiveceu-se com a mulher. Espancou-a e alei­
jou também esta.
Komei calava-se , lançando de baixo do sobrolho negro olhares ora
para o dono da casa, ora para Agacha.
- Mas porquê? - perguntou , trincando o açúcar.
- Sabe-se lá. Sobre nós , mulheres , mentem cada coisa, e nós é
que pagamos - disse a velha. - Foi por causa de um assalariado .
O assalariado era bom rapaz , da nossa aldeia. Morreu também em
casa deles .
- Morreu? - perguntou Komei e pigarreou .
- Há muito que morreu . . . Tomámos para casamento a rapariga
dessa família. Viviam bem . A melhor casa na aldeia, enquanto o pa­
trão estava vivo .
- E ele? - perguntou Komei .
- Também morreu , é de supor. Desapareceu desde aquele dia. Vai
fazer quinze anos , ou assim.
- Mais , de certeza, a mãezinha disse que foi quando acabou de
desmamar-me .
- E não lhe guardas rancor por este teu braço . . . - perguntou
Komei e, de repente , soluçou .
- Não é um estranho , é o meu pai . Toma mais chazinho , aquece-
-te . Sirvo-te mais?
Komei não respondeu , chorava e soluçava.
- O que tens?
- Nada, obrigado .
E Komei agarrou-se com as mãos trementes ao pilar e ao catre , e
puxou as suas pernas magras para cima do fogão .
- Apre ! - disse a velhota ao filho , apontando com os olhos para
o velho .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 20 1

No dia seguinte , Kornei levantou-se mais cedo do que todos . Des­


ceu do fogão , amaciou as grevas secas , calçou com dificuldade as
botas endurecidas e pôs às costas o seu saco .
- Não tomas o pequeno-almoço? - disse a velha.
- Obrigado . Vou andando .
- Então , leva pelo menos as panquecas de ontem . Ponho-tas no
saco .
Kornei agradeceu e despediu-se .
- Passa por aqui quando voltares , se Deus quiser.
Lá fora, o pesado nevoeiro outonal cobria tudo . Mas Kornei co­
nhecia bem o caminho , cada descida e subida, e cada arbusto , e cada
salgueiro na berma, e as florestas à direita e à esquerda, embora du­
rante esses dezassete anos umas fossem cortadas , outras , velhas , se
tornassem jovens , enquanto as jovens se transformaram em velhas .
A aldeia de Gai estava na mesma, só foram construídas , no extre­
mo , casas novas , antes não as havia. E, no lugar de casas de madeira,
apareceram as de tijolo . A sua casa de pedra não mudou , só enve­
lheceu . O telhado havia muito que não fora pintado , alguns tijolos
partiram-se na aresta, e a soleira estava torta.
Quando se acercava da sua antiga casa, uma égua com o seu potro ,
um velho cavalo castrado , cinzento , e um cavalo novo , de três anos ,
saíram do portão rangente . O velho cavalo cinzento era tal qual aque­
la égua que Kornei , um ano antes da sua partida, trouxera da feira.
«Deve ser aquele que ela, então , levava na barriga. O mesmo tra­
seiro baixo , o mesmo peito largo e patas felpudas» , pensou .
Um rapazinho de olhos negros , com alpargatas novas nos pés , es­
tava a tocar os cavalos ao bebedouro . «Deve ser o neto , o filho de
Fedka, portanto , tem os olhos negros do pai» , pensou Kornei .
O rapazinho olhou para o velho desconhecido e correu atrás do
potro que fugia pela lama. Um cão , preto como o Lobinho de outrora,
corria atrás do miúdo .
«Será o Lobinho?» , pensou . E lembrou-se de que este teria agora
vinte anos .
Aproximou-se da entrada e , a grande custo , subiu os degraus em
que , naquele dia longínquo , estava sentado , engolindo a neve do cor­
rimão , e abriu a porta do átrio .
202 Lev Tolstói

- Onde achas que te metes sem pedir licença? - gritou-lhe uma


voz feminina de dentro . Ele reconheceu a voz . E aqui está ela, uma
velha seca, de corpo fibroso e cara cheia de rugas , a assomar-se da
porta. Komei esperava ver aquela Marfa jovem e bonita que o ofen­
dera. Odiava-a e queria atirar-lhe à cara acusações , mas de repente ,
em vez dela, tinha em frente uma velha. - Queres esmola, então
pede à janela - pronunciou ela em voz esganiçada e rangente .
- Não é pela esmola - disse Komei .
- Então porquê? O que mais queres?
E de repente parou . E Komei viu pela sua cara que o reconhecera.
- Sois muitos a andar por aqui . Vai , vai . Vai com Deus .
Komei encostou-se à parede e , apoiando-se no cajado , olhava para
ela fixamente , sentindo com espanto que já não tinha aquela raiva
que havia trazido na alma durante tantos anos , que uma fraqueza en­
ternecida o dominara de repente .
- Marfa ! Todos somos mortais .
- Vai , vai com Deus - repetiu ela rápida e raivosamente .
- Não me dizes mais nada?
- Não há nada que dizer - respondeu ela. - Vai com Deus . An-
dor, andor ! Andam cá muitos como tu , diabos , parasitas !
Voltou a passo rápido para dentro e bateu com a porta.
- Não é preciso ralhar assim com ele - ouviu-se uma voz mas­
culina, e um mujique moreno , igual ao Komei de há quarente anos ,
com os mesmos olhos negros e brilhantes , só que menos alto e mais
magro , apareceu à porta com um machado atrás do cinto .
Era aquele Fedka a quem , dezassete anos atrás , Komei oferecera
um livro com desenhos . Foi ele que repreendeu a mãe por não ter
pena do pedinte . Ao lado dele estava o sobrinho mudo , também com
um machado atrás do cinto . Agora era um homem adulto , fibroso , de
cara enrugada, barbicha rala e pescoço longo , e com olhos penetran­
tes , resolutos e atentos . Ambos os mujiques tinham acabado de tomar
o pequeno-almoço e iam sem dúvida à floresta.
- Espera, avô - disse Fiódor e apontou ao mudo o velho , pri­
meiro , depois a porta do quarto , ao mesmo tempo que fazia o gesto
de cortar pão .
Fiódor saiu à rua, o mudo voltou para dentro . Komei continuava
cabisbaixo , encostando-se à parede e apoiando-se no cajado . Sentia
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 203

uma grande fraqueza e mal contjnha as lágrimas . O mudo saiu da


isbá com uma grande fatia odorosa de pão de centeio acabado de
cozer, benzeu-se e deu-a a Komei . Quando Komei, pegando no pão ,
também se benzeu , o mudo virou-se para a porta do quarto , passou
ambas as mãos pela cara e fingiu um cuspo . Exprimiu com isto a
desaprovação da tia. De repente, parou e , boquiaberto , fixou os olhos
em Komei - pelos vistos , reconheceu-o . Komei já era incapaz de
conter lágrimas e, limpando os olhos, o nariz e a barba cã com a aba
do cafetã, virou-se do mudo e saiu à soleira. Tinha um sentimento es­
pecial , enternecido e exaltado de resignação , de humilhação perante
as pessoas , perante ela e o filho , perante toda a gente , e este sentimen­
to rasgava-lhe a alma de dor e alegria.
Marfa olhava pela janela e apenas suspirou de alívio quando viu
que o velho desaparecera atrás da esquina.
Quando Marfa se assegurou de que o velho se fora embora, sentou­
-se ao tear e começou a tecer. Bateu uma dezena de vezes com o pente
de tecelão , mas as mãos não lhe obedeciam , então parou e começou a
pensar e a recordar o Komei tal como acabara de o ver - sabia que
era ele - , aquele mesmo que tentara matá-la e que dantes a amara, e
sentia medo do que fizera havia pouco . O que ela fez não era bonito .
Mas como é que deveria tratá-lo? É que ele não disse que era o Kor­
nei e que voltava para casa.
Voltou a pegar na lançadeira e teceu até à noite .

Nessa tarde , Komei chegou de novo a Andréevka, arrastando-se


a grande custo , e de novo pediu para dormir em casa dos Zinovéev.
Foi recebido .
- Porque não seguiste , avô?
- Não fui . Estou fraco . Acho que vou para trás . Deixam-me dor-
mir aqui?
- Entra, não faz mal . Seca a roupa.
Durante toda a noite , Komei tremeu com as febres . Antes do ama­
nhecer adormeceu , e quando acordou a farm1ia já tinha ido tratar da
vida e só Agáfia estava em casa.
204 Lev Tolstói

Komei estava em cima, sobre urp. cafetã seco que lhe pusera a ve­
lha. Agáfia tirava pães do forno .
- Vem cá - chamou-a o velho com voz fraca - , vem , minha
espertinha.
- Sim, avô , espera - respondeu a jovem, tirando os pães . - Tens
sede, sim? Queres kvas?
Komei não respondeu .
Depois de tirar o último pão , Agáfia aproximou-se dele com um
púcaro de kvas . O velho não se virou para ela nem quis beber, e co­
meçou a falar tal como estava, deitado de cara para cima.
- Agacha - pronunciou baixinho - , chegou a minha hora. Que-
ro morrer. Então , perdoa-me por amor de Cristo .
- Deus perdoa-te . Tu não me fizeste mal nenhum . . .
Komei calou-se por um momento .
- E mais: vai à tua mãe , minha espertinha, e diz-lhe . . . que o pe-
regrino . . . que o peregrino de ontem . . . diz-lhe . . .
Começou a soluçar.
- Então , passaste pela casa dos meus?
- Passei . Diz-lhe que o peregrino de ontem . . . o peregrino , diz . . .
- de novo se interrompeu , chorando , e finalmente juntou forças e
acabou: - Vinha para se despedir dela - disse e começou a apalpar
qualquer coisa no peito .
- Digo , avô , digo tudo . O que é que estás a procurar? - disse
Agáfia.
O velho , sem responder e franzindo a cara de esforço , tirou do pei­
to com a sua mão magra e peluda um papel e deu-o à jovem .
- Dás a quem perguntar por ele . É o meu papel de soldado . Gra­
ças a Deus, redimidos todos os pecados - e a sua cara tomou uma
expressão solene . O sobrolho ergueu-se , os olhos fitaram o teto , e
calou-se .
- Uma vela - pronunciou sem mexer os lábios .
Agáfia compreendeu . Tirou da frente dos ícones um coto de vela,
acendeu-o e deu-o ao velho . Este apertou a vela com o polegar.
Agáfia afastou-se para arrumar no baú o seu papel . Quando voltou
ao pé dele , a vela estava a cair da sua mão , os olhos imóveis já não
viam e o peito não respirava. Agáfia fez o sinal da Cruz, soprou na
vela, tirou uma toalha limpa e cobriu-lhe a cara.
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 205

Durante toda essa noite , Marfa não conseguiu dormir, pensando


sempre em Komei . De manhã, vestiu o zipun , cobriu-se com o lenço
e foi tirar inculcas sobre o velho da véspera. Não tardou a saber que
o velho estava em Andréevka. Marfa tirou da sebe uma vara e foi a
Andréevka. Quanto mais andava, tanto mais o medo se apoderava
dela. «Pedimos perdão um ao outro , levo-o para casa, redimimos o
pecado . Que morra, pelo menos , em casa, ao lado do filho» , pensava.
Quando Marfa estava a chegar à casa da filha, viu uma grande
multidão ao lado da isbá. Algumas pessoas estavam no átrio , outras
debaixo das janelas . Toda a gente já sabia que aquele ricaço Komei
Vassíliv que vinte anos atrás era famoso em todas as redondezas e
agora era um peregrino pobre , morreu em casa da filha. A isbá tam­
bém estava cheia de gente . As mulheres cochichavam , suspiravam ,
lamentavam .
Quando Marfa entrou na isbá e o povo lhe abriu passagem , viu
debaixo dos ícones um corpo morto , lavado e vestido , coberto com
linho , e Filipp Kónonitch , alfabetizado , estava a ler por cima dele , em
voz cantada imitando os salmistas , as palavras eslavas dos Salmos .
Já não era possível perdoar nem pedir perdão . E era impossível
compreender pela cara rigorosa, bela e velha de Komei se perdoava
ou ainda guardava rancor.
AS BAGAS

Junho , dias de calor, sem vento . A folhagem na floresta está sucu­


lenta, copiosa e verde , só em alguns sítios caem folhas amarelecidas
de bétulas e ti1 ias . Os arbustos de roseira-brava estão cobertos de
flores aromáticas , os prados florestais são um tapete de trevo melí­
fero; o centeio está basto , alto , escuro , ondulante , meio maduro; os
pintos-bravos cacarejam nas baixadas , as codornizes ora rouquejam,
ora lançam estalidos nos campos de aveia e centeio; o rouxinol na
floresta só de vez em vez solta um trinado e cala-se; o calor seco
queima. A poeira seca, de um dedo de grossura, imóvel , cobre os
caminhos e levanta-se em nuvem espessa, levada ora para a direita,
ora para a esquerda pelo sopro leve e casual .
Os camponeses acabam as construções , transportam o estrume .
O gado passa fome no campo seco em barbeito , à espera de ervas
novas . As vacas e os vitelos correm, inquietos , com os rabos levanta­
dos em gancho , fogem do pastor. A rapaziada guarda os cavalos nos
caminhos e bermas . As mulheres carregam com sacos de erva da flo­
resta; as moças e as miúdas competem , embrenhando-se nos arbustos
da floresta cortada, colhem bagas e vendem-nas aos veraneantes nas
casas de campo .
Os veraneantes , nas casas ornamentadas , de arquitetura arrebica­
da, passeiam preguiçosamente com os guarda-sóis , de roupa leve ,
limpa e cara pelos carreiros cobertos de areia, ou protegem-se do sol
à sombra de árvores e pavilhões , sentados às mesinhas pintadas e ,
penando sob o calor, tomam chá o u bebidas refrescantes .
À entrada da magnífica casa de campo de Nikolai Semiónitch -
com uma torre , um terraço , uma varanda e galerias , tudo fresquinho ,
208 Lev Tolstói

novinho em folha e limpinho - , está uma troica alugada, com gui­


zos , atrelada à caleche que trouxe da cidade , por quinze rublos ida e
volta, um senhor petersburguense .
Este senhor é uma conhecida personalidade liberal , participante
de todo o género de comités , comissões , donativos e saudações re­
digidas de forma manhosa, aparentemente lealistas , mas no fundo
absolutamente liberais . Veio só por um dia, sendo uma pessoa extre­
mamente ocupada, de visita ao seu amigo , companheiro de infância
e quase correligionário .
Divergem só um pouco na área da aplicação prática dos princípios
constitucionais . O senhor petersburguense é adepto do europeísmo ,
com certa simpatia, até , pelo socialismo , e tem um ordenado muito
alto nos cargos que ocupa. Quanto a Nikolai Semiónitch , é um ho­
mem puramente russo , cristão ortodoxo com um toque de tendência
eslavófila e proprietário de muitos milhares de jeiras de terra.
Almoçaram no jardim , cinco pratos; o calor era tal que não co­
meram quase nada , pelo que os esforços do chefe da cozinha a qua­
renta rublos e dos seus ajudantes , deveras intensos por causa da
visita, ficaram quase perdidos . Comeram só uma botvínia 1 5 gélida
com salmão e um gelado multicor em taças bonitas , enfeitada com
riscas de açúcar e biscoitos . Os comensais eram: o convidado , um
médico liberal , o precetor dos filhos - estudante , social-democrata
arrojado e revolucionário a quem Nikolai Semiónitch , aliás , sabia
manter dentro das marcas - , e ainda Marie , esposa de Nikolai Se­
miónitch , e os seus três filhos , dos quais o mais novo veio só para
a sobremesa.
O ambiente do almoço estava um pouco tenso porque Marie , se­
nhora muito nervosa, se preocupava com o desarranjo intestinal de
Goga - como chamavam (hábito de farm1 ias cultas) ao filho mais
novo , Nikolai - e também porque , mal se encetava uma conversa
política entre o convidado e Nikolai Semiónitch , o estudante arro­
jado , desejando demonstrar que ninguém o inibia de expor as suas
convicções , irrompia na conversa, e o convidado calava-se , enquanto
Nikolai Semiónitch tentava aquietar o revolucionário .
O almoço era às sete horas . Depois do almoço , os bons amigos
ficaram no terraço , refrescando-se com água mineral fria e o vinho
branco leve , e conversavam .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 209

A divergência entre eles exprimia-se , em primeiro lugar, na ques­


tão das eleições: se deviam ser em duas voltas ou numa só - , e a
discussão já começava a aquecer quando foram chamados para o chá
na sala de jantar livre das moscas por meio de redes . À mesa do chá,
Marie também se viu envolvida na conversa, embora não a interes­
sasse porque estava absorta pela preocupação com os sintomas do
desarranjo intestinal do Goga. Falava-se de pintura, e Marie afirmava
que na pintura decadente havia un je ne sais quoi * impossível de
negar. Neste momento , estava longe de pensar na pintura decadente ,
repetindo apenas o que tinha dito muitas vezes . O convidado não
precisava desta conversa para nada, mas já ouvira como se critica­
va a arte decadente e falou de modo tão parecido a essa crítica que
ninguém teria adivinhado que se estava nas tintas para a decadência
ou não-decadência. Quanto a Nikolai Semiónitch , este , olhando para
a mulher, sentia que ela estava descontente com qualquer coisa e
que haveria, provavelmente , alguma contrariedade; além do mais ,
entediava-se , ouvindo o que ela dizia e o que já tinha ouvido , como
lhe parecia, mais de cem vezes .
Acenderam os candeeiros de bronze caros e as lanternas no quin­
tal; deitaram as crianças , tendo submetido o enfermo Goga a vários
procedimentos de cura.
O convidado , Nikolai Semiónitch e o doutor saíram ao terraço .
O lacaio trouxe velas com campânulas e serviu mais água mineral ,
e , cerca da meia-noite , começou uma conversa verdadeira e animada
sobre as medidas do Estado que deviam ser tomadas neste momento ,
tão importante para a Rússia. Os dois amigos , conversando , não pa­
ravam de fumar.
Lá fora, por trás do portão da casa de campo , os cavalos de aluguer,
sem ração , faziam tilintar os guizos , e o velho cocheiro , também sem
ração , sentado na caleche , ora bocejava, ora ressonava; havia já vinte
anos que o velho cocheiro servia o mesmo patrão e mandava todo o
seu salário , tirando três ou cinco rublos que gastava na bebedeira,
para o seu irmão . Quando o canto dos galos já começava a chegar
de várias casas de campo , sobretudo um muito alto e fino da casa
vizinha, o cocheiro desconfiou de que fora simplesmente esquecido ,

* Um não sei quê (fr.) .


210 Lev Tolstói

apeou-se e entrou em casa. Viu que o seu passageiro estava sentado


e, de vez em vez , dizia qualquer coisa em voz alta. Apoquentou-se e
foi procurar o lacaio . O lacaio , de casaco de libré , dormia sentado no
vestíbulo . O cocheiro acordou-o . O lacaio , antigo servo doméstico ,
arrimo da sua prole numerosa, cinco raparigas e dois rapazes , tendo
um serviço vantajoso (quinze rublos de salário mais gorjetas , às ve­
zes até cem rublos por ano) , levantou-se e, depois de ajeitar e sacudir
a libré , foi avisar os senhores de que o cocheiro estava preocupado e
pedia licença para se ir embora.
Quando o lacaio entrou , o debate estava no seu auge . O doutor,
tendo-se juntado a eles , participava nele .
- Não posso admitir - dizia o convidado - que o povo russo
tenha de enveredar por alguns outros caminhos de desenvolvimento .
Antes de mais precisamos de liberdade , liberdade política . . . aquela
liberdade . . . que é, como é sabido , a maior, respeitando os maiores
direitos de outras pessoas .
O convidado sentia que se confundira e estava a dizer qualquer
coisa errada, mas no ardor da discussão não conseguia lembrar-se da
maneira adequada de exprimir estas coisas .
- É verdade - respondeu Nikolai Semiónitch sem ouvir o con­
vidado e desejando apenas exprimir a sua própria ideia, a sua prefe­
rida. - É verdade , mas isso é conseguido de outra maneira: não com
a maioria de votos , mas pela concórdia geral . Olhe como se resolve
no mundo .
- Ah , este mundo .
- Não é possível negar - disse o doutor - que os povos eslavos
têm o seu próprio ponto de vista . Por exemplo , o direito a veto na
Polónia. Não afirmo que seja melhor.
- Deixe-me completar a minha ideia - começou Nikolai Semi­
ónitch . - O povo russo tem as suas características peculiares . Estas
características . . .
Mas Ivan , de libré e com olhos ensonados , interrompeu-o:
- O cocheiro está preocupado . . .
- Diga-lhe (o convidado petersburguense tratava por «você» to-
dos os lacaios e tinha orgulho nisso) que vou partir daqui a pouco .
E pago-lhe pelo atraso .
- Sim, senhor.
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 21 1

Ivan saiu , e Nikolai Semiónitch conseguiu completar a sua ideia.


Mas tanto o convidado como o doutor já a tinham ouvido não menos
do que vinte vezes (pelo menos , assim lhes parecia) e começaram a
contestá-la, sobretudo o convidado , com exemplos da história.
O doutor tomou o partido do convidado , admirava a sua erudição e
estava contente com esta oportunidade de o conhecer.
A conversa durou tanto que o ar se aclarou por trás da floresta do
outro lado do caminho , e o rouxinol acordou , mas os interlocutores
continuavam a fumar e a conversar, a conversar e a fumar.
Talvez a conversa se tivesse prolongado ainda mais , mas uma cria­
da apareceu à porta.
Esta criada era uma órfã que fora obrigada a arranjar emprego
de criada. Primeiro viveu em casa de um comerciante onde um en­
carregado a seduziu , e teve um filho . A criança morreu , ela passou
a servir em casa de um funcionário , e o filho dele , colegial , não a
deixava em paz ; a seguir foi trabalhar como ajudante da criada dos
quartos em casa de Nikolai Semiónitch e achava que tivera sorte
- deixou de ser perseguida pela luxúria dos senhores e recebia o
salário regularmente . Entrou para anunciar que a senhora chamava
o doutor e Nikolai Semiónitch .
«Bem - pensou Nikolai Semiónitch - , com certeza qualquer
coisa com Goga.»
- O que é? - perguntou .
- O senhor Nikolai Nikoláevitch está mal-disposto - disse a
criada. «Ü senhor» , «O Nikolai Nikoláevitch» era o Goga, que se
empanturrara e tinha diarreia.
- Também está na hora ! - disse o convidado . - Olhe que já é
dia. Esquecemo-nos das horas - disse ele , sorrindo , como que lou­
vando os seus interlocutores e a si mesmo por terem falado demais ,
e despediu-se .
Ivan demorou muito , com as suas pernas cansadas , procurando o
chapéu e o guarda-chuva do convidado que este metera nos lugares
mais inconvenientes . Ivan tinha esperança de receber uma gorjeta,
mas o convidado , normalmente generoso e que não se teria impor­
tado de lhe oferecer um rublo , entusiasmou-se tanto com a conversa
que o esqueceu por completo e só pelo caminho percebeu que não
dera nada ao lacaio . «Bem, nada a fazer.»
212 Lev Tolstói

O cocheiro subiu para a boleia, pegou nas rédeas , virou-se de lado


e partiu . Os guizos tilintavam . O petersburguense , baloiçando nas
molas suaves , ia e pensava nas limitações e na parcialidade das ideias
do seu amigo .
Nikolai Semiónitch , que não foi ter com a mulher de imediato ,
estava a pensar a mesma coisa. « É terrível essa estreiteza e limitação
petersburguense . Não saem disso , nem podem» , pensou .
Demorava a ir ter com a mulher porque não esperava disso nada
de bom . O problema era as bagas . No dia anterior, os rapazes trouxe­
ram bagas . Nikolai Semiónitch comprou sem regatear dois pratos de
bagas ainda não completamente maduras . As crianças vieram pedir
bagas e começaram a comê-las dos pratos . Marie , neste momento ,
ainda não saíra do quarto . Quando chegou e soube que tinham dado
bagas ao Goga, ficou muito zangada porque o rapaz já tinha proble­
mas do estômago . Começou a acusar o marido , e ele a ela. E a con­
sequência foi uma conversa desagradável , quase uma zanga. À tarde ,
é verdade , Goga teve diarreia. Nikolai Semiónitch pensou que não
passaria disso, mas o facto de ter sido chamado o doutor significava
que as coisas tomaram um péssimo rumo .
Quando Nikolai Semiónitch entrou nos aposentos da mulher,
Marie , de roupão de seda multicor, o seu preferido (mas nisso ela
agora não pensava) , estava no quarto das crianças debruçada sobre
o bacio , iluminando-o , para o doutor ver, com uma vela que gote­
java cera .
O doutor, com ar atento , assestava o pince-nez para dentro do peni-
co , mexendo com um pauzinho o conteúdo malcheiroso .
- Pois - disse significativamente .
- Tudo por causa dessas malditas bagas .
- Mas porquê as bagas ? - disse Nikolai Semiónitch timida-
mente .
- Porquê? Porque lhe deste bagas , e olha que estou sem dormir
toda a noite , e a criança vai morrer . . .
- Ora, ora, não morre - disse o doutor, sorrindo . - Um pouqui-
nho de bismuto e algum cuidado . Damos-lho já.
- Ele adormeceu - disse Marie .
- Então , é melhor não o acordar, amanhã passo por cá.
- Sim , se fizer o favor.
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 213

O doutor foi-se embora. Nikolai Semiónitch , depois de ficar sozi­


nho com a mulher, passou ainda muito tempo sem conseguir acalmá­
-la. Quando adormeceu já era dia.

Na aldeia vizinha, a esta mesma hora, os mujiques e os rapazes


voltavam com os cavalos do pasto noturno , uns a cavalo , outros com
as bestas pela rédea. Atrás de toda a manada corriam os potros de um
e dois anos .
Taraska Rezunov, dos seus doze anos , de boné na cabeça, peliça
curta mas descalço , montando uma égua malhada, seguida pelo potri­
nho malhado como a mãe , e levando pela rédea um cavalo castrado ,
ultrapassou todos e meteu pelo outeiro acima até à aldeia. Um cão
preto corria alegremente à frente dos cavalos , olhando de vez em
quando para trás . O potro malhado , farto , escoiceava para um lado
e para o outro com as patas brancas calçadas com «meias» . Taraska
aproximou-se da isbá, apeou-se , atou os cavalos e entrou no átrio .
- Eh , dorminhocas ! - gritou às irmãs e ao maninho que dor­
miam no átrio sobre uma serapilheira.
A mãe , que dormira ao lado dos filhos , já se tinha levantado para
mungir a vaca.
Olguchka pulou da cama, ajeitando com ambas as mãos o seu des­
grenhado cabelo claro e comprido , mas o Fedka, ao lado dela, con­
tinuou deitado com cabeça enfiada na peliça, e só esfregava com o
calcanhar áspero a sua perna graciosa que se lhe assomava de baixo
do cafetã.
As crianças , na véspera, combinaram ir às bagas , e Taraska prome­
tera acordá-las quando voltasse do pasto noturno .
Foi o que fez . No pasto , sentado sob um arbusto , caía de sono; mas
agora o sono passou-lhe , e o rapaz resolveu não se deitar e ir às bagas
com as irmãs . A mãe deu-lhe uma caneca de leite . Taraska cortou
uma fatia de pão , sentou-se à mesa no banco alto e comeu .
Quando , só de calças e camisa, meteu pelo caminho , deixando pe­
gadas nítidas dos pés descalços no pó já marcado por pegadas iguais ,
algumas maiorzinhas , outras mais pequenas , com os dedinhos nitida­
mente estampados , as raparigas já se viam ao longe mais à frente, quais
manchinhas vermelhas e brancas no pano de fundo do bosque verde­
-escuro. (Já tinham preparado à noite um pote e uma caneca e , sem to-
214 Le v Tolstói

marem o pequeno-almoço nem pegarem em pão para levar, benzeram­


-se duas vezes em frente dos ícones e correram para fora.) Taraska
apanhou-as por trás da floresta grande, mal viraram do caminho .
O orvalho cobria as ervas , os arbustos , até os ramos mais baixos das
árvores , e os pezinhos descalços das raparigas primeiro molharam-se
e gelaram, depois aqueceram, pisando ora as ervas macias , ora a terra
seca e irregular. O lugar das bagas era na floresta cortada. Primeiro ,
as raparigas entraram na zona desbastada no ano anterior. As vergôn­
teas eram muito recentes , e umas manchas de ervas baixas onde ama­
duravam e se escondiam bagas ainda branco-rosadas e, aqui e acolá ,
vermelhas destacavam-se n o meio dos jovens arbustos cobertos de
folhagem viçosa.
As rapariguinhas dobravam-se , apanhavam uma baga atrás da ou­
tra com as suas mãozinhas bronzeadas , pondo as piores na boca e as
melhores na caneca.
- Olguchka ! Vem cá, isto aqui está cheio delas .
- Onde? Verdade? Eh ! - gritavam uma à outra, tentando não se
separar muito quando passavam para trás dos arbustos .
Taraska foi mais longe , para lá do barranco onde , havia um ano , a
floresta fora cortada e as jovens árvores , sobretudo as avelaneiras e
os bordos , já cresciam acima da altura de um homem . Aqui , as ervas
eram mais viçosas e bastas , e nos morangueiros-bravos as bagas , sob
a proteção das ervas , eram mais graúdas e polposas .
- Gruchka !
- O quê?
- E se o lobo . . . ?
- Lobo? Queres assustar-me? Não tenho medo do lobo , pronto -
disse Gruchka e , distraída nos pensamentos sobre o lobo , punha as
melhoras bagas na boca e não na caneca.
- O nosso Taraska foi para trás do barranco . Taraska-a-a !
- Estou aqui ! - respondeu Taraska. - Vinde cá.
- Está bem, vamos , ali há mais .
E as rapariguinhas foram descendo para o barranco , agarrando-se
aos arbustos , e depois subiram para o outro lado; e aqui , num lugar
banhado de sol , encontraram de imediato uma clareira com ervas mi­
údas cheia de bagas . Ambas iam caladas e trabalhando sem parar
com as mãos e as bocas .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 215

De repente, alguma coisa se mexeu bruscamente e , no meio do si­


lêncio, com um estrondo terrível , como lhes pareceu , correu pelas er­
vas e pelos arbustos .
Gruchka, por medo , caiu e esparramou metade das bagas da ca­
neca.
- Mãezinha ! - guinchou e chorou .
- É uma lebre , uma lebre ! Taraska ! Uma lebre . Está ali ! - gri-
tou Olguchka, apontando para as costas cinzento-pardas com orelhas
que relampejava entre os arbustos . - Porque choras? - perguntou a
Gruchka quando a lebre desapareceu .
- Pensei que era o lobo - respondeu Gruchka e , de repente , logo
depois do susto e das lágrimas , desatou a rir.
- És mesmo parva.
- Assustei-me ! - disse Gruchka com risos sonoros como uma
sineta.
Apanharam as bagas caídas e seguiram. O sol já se levantou e tin­
giu de manchas claras e de sombras a folhagem, brilhando nas gotas
de orvalho com que as raparigas se encharcaram até à cintura.
As raparigas chegaram quase ao fim da floresta , indo ainda mais
longe com a esperança de que , quanto mais longe , mais bagas ,
quando em vários lugares se ouviram as vozes sonoras de rapari­
gas e mulheres que saíram mais tarde para apanhar bagas . À hora
do pequeno-almoço , a caneca e o pote estavam cheios até meio , e
as rapariguinhas encontraram-se com a tia Akulina que acabou de
chegar. Atrás da tia Akulina, um miúdo pequeno de barriguinha sa­
liente , só de camisinha e sem chapéu , andava cambaleando nas suas
perninhas gordas e tortas .
- Quis vir comigo - disse Akulina às raparigas , levantando o
miúdo ao colo . - Nem tenho com quem o deixar.
- Há pouco assustámos uma lebre enorme . Correu e fez um res­
tolho por todo o lado , foi um susto . . .
- Olha ! - disse Akulina e voltou a pôr o pequeno no chão .
Depois desta conversa, as raparigas separaram-se de Akulina e
continuaram o seu trabalho .
- Vamos sentar-nos agora - disse Olguchka, sentando-se à som­
bra espessa de uma avelaneira - , estou cansada. Oh, não trouxemos
pãozinho , agora caía mesmo bem.
216 Lev Tolstói

- Também tenho fome - disse Gruchka.


- Porque é que a tia Akulina grita tanto? Ouviste? Eh , tia Akuli-
-i-i-na !
- Olguchka ! - respondeu Akulina.
- O quê?
- O garoto não está convosco? - gritou Akulina de trás do de-
clive do barranco .
- Não !
Passado um pouco , os arbustos restolharam, e a tia Akulina, com um
cesto no braço e a saia arregaçada acima do joelho, saiu do barranco.
- Não viram o garoto?
- Não .
- Oh , desgraça ! Michka-a-a! Michka-a-a !
Ninguém respondeu .
- Oh , desgraça, vai perder-se . Ainda vai para a floresta grande .
Olguchka levantou-se , e as raparigas foram procurá-lo por um la-
do , e a tia Akulina pelo outro . Chamavam Michka sem parar em altas
vozes , mas o Michka não respondia.
- Estou cansada - dizia Gruchka, atrasando-se da irmã, mas 01-
guchka não deixava de chamar e virava para a direita e para a esquer­
da, procurando por todo o lado .
A voz desesperada de Akulina ouvia-se ao longe , perto da flores­
ta grande . Olguchka já queria deixar de procurar e voltar para casa
quando , sob um arbusto folhoso , ao lado de um cepo com vergônteas
de tília, ouviu um pio teimoso , zangado e aflito de uma ave , pelos
vistos com crias , descontente com alguma coisa. A ave tinha medo ,
provavelmente , e estava zangada. Olguchka virou-se para o arbusto ,
rodeado de ervas espessas e altas , com flores brancas , e viu debaixo
dele um montículo azul , nada parecido com quaisquer ervas flores­
tais . Parou e espreitou . Era o Michka. Era dele que a ave tinha medo
e era com ele que estava zangada.
Michka, deitado de barriga gorda para baixo , com as mãozinhas
debaixo da cabeça e esticando as pernas rechonchudas e tortas , dor­
mia deliciosamente .
Olguchka chamou a mãe , acordou o pequeno e deu-lhe bagas .
E , depois disto , ainda Olguchka andou muito tempo a contar a toda
a gente , aos vizinhos , em casa aos pais , como procurou e encontrou
na floresta o filhinho de Akulina.
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 217

O sol já se levantava por completo por trás da floresta e queimava


a terra e tudo o que havia nela.
- Olguchka ! Vamos tomar banho - convidaram-na as raparigui­
nhas que vieram buscá-la. E toda a grande chusma foi , cantando, para
o rio . Rebolando , guinchando e batendo com as pernas na água, as ra­
parigas não repararam numa grande nuvem negra e baixa que se apro­
ximava do ocidente, e que o sol ora se escondia, ora reaparecia, e que
começou a cheirar a folhas de bétula e se ouviram trovões . Mal se vesti­
ram, começou a chover a cântaros , e ficaram encharcadas como pintos .

Com as camisas escurecidas coladas ao corpo , as raparigas cor­


reram para casa, comeram e foram ao campo , onde o pai estava a
escardichar as batatas , levar-lhe o almoço .
Quando voltaram e almoçaram já as suas camisas tinham secado .
Depois de selecionar os morangos e os pôr em malgas , levaram-nos à
casa de campo de Nikolai Semiónitch onde costumavam pagar bem;
mas desta vez não lhos quiseram .
Marie , sentada sob o guarda-sol numa poltrona grande, afligindo­
-se com o calor, ao ver as raparigas com as bagas , abanou o leque .
- Não preciso , não preciso .
Mas Vália, o filho mais velho , de doze anos , que descansava dos seus
labores extenuantes no liceu e, neste momento , estava a jogar croquet
com os vizinhos , viu as bagas , correu ao pé de Olguchka e perguntou:
- A como são?
Ela disse:
- Trinta copeques .
- Caro - disse ele . Disse-o porque os adultos costumavam dizê-
-lo . - Espera, mas vai atrás da esquina - disse e foi falar com a ama-
-seca.
Olguchka e Gruchk:a, entretanto , admiravam a bola de cristal em
que se viam casas , florestas , jardins minúsculos . Bem, tanto esta bola
como muitas outras coisas não eram surpreendentes para elas , já que
esperavam todo o género de milagres do mundo dessa gente , os se­
nhores , um mundo misterioso e incompreensível .
Vália foi ter com a ama-seca e pediu-lhe trinta copeques . Ela disse
que vinte chegavam muito bem e tirou o dinheiro do seu baú . E Vália,
218 Lev Tolstói

contornando o pai que acabara de se levantar depois da noite difícil e


estava a fumar e a ler os jornais , deu os vinte copeques às raparigas e,
depois de despejar as bagas no prato , começou a devorá-las .
De volta a casa, Olguchka desatou com os dentes o nó do lenço
em que trouxera os vinte copeques e deu-os à mãe . A mãe guardou o
dinheiro e juntou a roupa para a lavar no rio .
Quanto a Taraska que , desde a hora do pequeno-almoço , escardi­
chara as batatas com o pai , estava a dormir agora à sombra do carva­
lho folhoso e escuro , e o pai estava sentado ao lado , olhando de vez
em vez para o cavalo desatrelado e com peias nos pés que pastava
perto da terra alheia e era capaz , a qualquer momento , de entrar no
campo de aveia ou no prado alheio .
Neste dia, tudo corria como de costume na farm1ia de Nikolai Se­
miónitch . Tudo estava em ordem . O pequeno-almoço de três pratos
estava servido , e as moscas havia muito que o comiam , mas ninguém
ia para a mesa porque ninguém tinha apetite .
Nikolai Semiónitch mostrava-se contente com a justeza das suas
opiniões , confirmada pelo que acabara de ler nos jornais do dia. Ma­
rie estava sossegada porque o cocó de Goga se normalizara. O doutor
sentia-se feliz porque o tratamento por ele prescrito deu resultado .
V ália estava contente porque comeu um prato inteiro de morangos­
-bravos .
POR QUE CULPA?
Uma história da época das revoltas polacas

Na primavera de 1 830 , Józef Migurski , jovem e único filho do


falecido amigo do pan Jaczewski , chegou à Rófanka, herdade deste .
Jaczewski era um velho de sessenta e cinco anos , espadaúdo , de peito
largo , de fronte larga, com o bigode branco e comprido na cara cor de
tijolo , patriota da época da segunda divisão da Polónia16. Quando era
jovem serviu , juntamente com o pai de Migurski , sob as bandeiras de
Kosciuszko17 e , com todas as forças da sua alma patriótica, odiava
Catarina II , «prostituta apocalíptica» , como lhe chamava, e o traidor
Poniatowski 1 8 , amante abominável dela, e tinha uma fé na ressurrei­
ção da Rzeczpospolita tão firme como , à noite, acreditava em mais
um nascer-do-sol . No ano de 1 8 1 2 , comandou um regimento das tro­
pas de Napoleão , que adorava. A derrota de Napoleão amargurou-o ,
mas não perdia a esperança na restauração do Reino da Polónia, nem
que fosse mutilado . A abertura, por Alexandre I , do sejm19 em Varsó­
via animou as suas esperanças , mas a Santa Aliança, a reação por toda
a Europa, a arbitrariedade de Constantino20 adiavam a concretização
do sonho querido . . . A partir de 1 825 , Jaczewski instalou-se na aldeia
e vivia, sem sair, na sua Rofanka, matando o tempo com a gestão da
propriedade, a caça e a leitura de jornais e cartas , por meio dos quais,
fosse como fosse , seguia com ardor os acontecimentos políticos na
sua pátria. Estava casado , pela segunda vez , com uma fidalga bela e
pobre, e este matrimónio não era feliz . Não amava nem respeitava es-
220 Lev Tolstói

ta sua segunda mulher, aborrecia-se com ela, tratava-a com grosseria,


como se quisesse vingar-se pelo erro deste seu segundo casamento .
Não tinha filhos da segunda mulher. Da primeira tinha duas filhas:
a mais velha, Wanda, uma beldade majestosa que sabia o que valia a
sua beleza e se entediava na aldeia; e a mais nova, Albina, a preferida
do pai , menina ágil , ossuda, com cabelo loiro enc·aracolado e olhos
grandes e azuis-claros , brilhantes e muito afastados , como os do pai .
Albina tinha quinze anos quando Józef Migurski chegou . Ainda
antes , nos seus anos universitários , Migurski tinha visitado os Ja­
czewski em Vilno onde eles passavam os invernos , e cortejava Wan­
da; agora veio pela primeira vez à sua aldeia. Józef Migurski era um
homem adulto e completamente livre . A chegada do jovem Migurski
era agradável para todos os habitantes de Rófanka. O velho gosta­
va de Józef porque lhe lembrava o seu pai , amigo dos tempos em
que ambos eram jovens , e também porque lhe contava, com ardor e
esperanças cor-de-rosa, sobre a efervescência revolucionária não só
na Polónia, mas também no estrangeiro de onde acabara de chegar.
À pani Jaczewska agradava porque na presença dos convidados
o velho se continha e não ralhava com ela sob todos os pretextos .
A Wanda, porque tinha certeza de que Migurski viera por causa de­
la, tencionando pedi-la em casamento . Estava pronta a dar-lhe a sua
mão , mas pretendia, como dizia a si própria, /ui tenir la dragée hau­
te * . Albina estava contente por toda a gente estar contente . Não só
Wanda tinha a certeza de que Migurski viera pedi-la em casamento ,
mas também toda a casa pensava assim, desde o velho Jaczewski até
à ama-seca Ludwika, embora ninguém o pronunciasse em voz alta.
Aliás , era verdade . Migurski chegou com este propósito , só que ,
depois de passar uma semana em casa deles , foi-se embora sem se ter
declarado . Todos estavam surpreendidos com esta partida imprevis­
ta, e ninguém, além de Albina, compreendia o motivo . Albina sabia
que o motivo desta estranha partida era ela.
Durante toda a estada de Józef em Rófanka, reparava que Migur­
ski ficava animado e excitado somente com ela. Tratava-a como a
uma criança, brincava com ela, gozava com ela, mas Albina apa­
nhava com o seu instinto feminino que neste trato não se revelava a

* Fazer-lhe pagar caro (fr.) .


De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 22 1

atitude de um adulto para com uma criança, mas de um homem para


com uma mulher. Via-o no olhar admirado e no sorriso carinhoso com
que a recebia quando ela entrava na sala e a seguia quando ela saía.
Ela não se dava conta clara de o que era aquilo , mas esta sua atitude
para com ela alegrava-a, e Albina tentava fazer tudo de que Migurski
gostava. Ora bem , ele gostava de tudo o que ela fizesse . Por isso , na
presença dele , Albina fazia tudo com um entusiasmo muito especial .
Józef gostava de a ver em corridas com o belo galgo que saltava para
ela e lhe lambia a cara corada e radiante; gostava quando , ao mínimo
motivo , ela ria sonora e contagiosamente; quando , continuando a rir
alegremente com os olhos , tomava um ar sério durante o sermão en­
fadonho do padre; quando imitava, com uma extraordinária exatidão
e comicidade , ora a velha ama-seca, ora o vizinho bêbedo , ora a ele
próprio , Migurski , passando num instante de uma imitação para ou­
tra. Gostava sobretudo da sua jovialidade exaltada. Era como se a ra­
pariga acabasse de conhecer em plena medida todo o encanto da vida
e se precipitasse a aproveitá-la. Adorava esta jovialidade especial que
se intensificava precisamente porque Albina sabia que ele a admira­
va. Por isso só Albina sabia por que razão Migurski , vindo para pedir
Wanda em casamento , se foi embora sem o ter feito . Embora não
ousasse dizê-lo a ninguém, nem o dizia claramente a si própria, sabia
no fundo da alma que Józef queria apaixonar-se pela sua irmã mas
se apaixonou por ela, Albina. Surpreendeu-se muito com isso , consi­
derando que era uma insignificância em comparação com a beldade
Wanda, inteligente e culta, mas não evitava saber que era verdade
nem deixar de se alegrar com isso porque ela própria, com todas as
forças da sua alma, se apaixonou por Migurski , e era um amor que
acontece só pela primeira e a única vez na vida.

No fim do verão , os jornais trouxeram a notícia da Revolução de


Paris . A seguir, começaram a chegar notícias sobre as desordens que se
preparavam em Varsóvia. Jaczewski , com medo e esperança, aguarda­
va, a cada nova correspondência, a notícia do assassínio de Constan­
tino e o começo da revolução . Finalmente , em novembro , receberam
222 Lev Tolstói

em Rózanka, primeiro, o comunicado sobre o ataque ao Palácio de


Belveder e a fuga de Constantino21 ; e, depois , que o sejm declarou a
destituição da dinastia Románov do trono da Polónia, que Chlopicki22
foi declarado ditador e que o povo polaco era outra vez livre.
A revolta não tinha chegado ainda até Rózanka, mas todos os
seus habitantes seguiam o seu desenvolvimento ; esperavam-na e
preparavam-se . O Jaczewski trocava cartas com um velho amigo , um
dos líderes da revolta, recebia em casa os misteriosos intermediá­
rios judeus , mas para assuntos revolucionários e não de negócios , e
preparava-se para se juntar aos revoltosos quando chegasse a hora.
A pani Jaczewska velava, mais do que nunca, pelas comodidades
materiais do marido e , como sempre , irritava-o cada vez mais pre­
cisamente com isso . Wanda mandou os seus diamantes a uma ami­
ga de Varsóvia para que o dinheiro da venda fosse doado ao comité
revolucionário . Albina só se interessava pela atividade de Migurski .
Soube pelo pai que Józef se alistara no destacamento de Dwemicki23
e procurava saber tudo o que dizia respeito a este destacamento . Mi­
gurski escreveu-lhes duas vezes: primeiro , comunicou que se alistara
na tropa e , depois , em meados de fevereiro , mandou uma carta entu­
siástica sobre a vitória dos polacos em Stoczek, onde se apoderaram
de seis bocas de fogo russas e fizeram prisioneiros.
«Zwyciçstwo Polaków i klçska Moskali ! Wiwat ! » * - assim ter­
minava a carta. Albina estava exultante . Estudava o mapa, calculava
onde e quando os moskali iam ser derrubados definitivamente , empa­
lidecia e tremia quando o seu pai desselava os sobrescritos trazidos
dos correios . Uma vez , ao entrar no seu quarto , a madrasta encontrou­
-a em frente do espelho de calças e barrete nacional polaco . Albina
preparava-se para fugir de casa, de roupa masculina, para se juntar
ao exército polaco . A madrasta disse-o ao marido . O pai chamou a
filha e , disfarçando a sua concórdia, e mesmo admiração , fez-lhe uma
severa admoestação , exigindo que tirasse da cabeça as ideias idiotas
sobre a participação na guerra. «A mulher tem outra missão: amar e
confortar os homens que se sacrificam pela pátria» , disse-lhe . E que
agora ele , o pai , precisava dela, da sua alegria e consolação , mas que
chegaria a altura em que seria, do mesmo modo , necessária ao mari-

* Vivam os polacos , morte aos russos ! Hurra ! (pol .) .


De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 223

do . O velho sabia como convencê-la. Insinuou-lhe que vivia solitário


e infeliz, e beijou-a. Albina apertou a cara contra a do pai , ocultando
as lágrimas que molharam a manga do roupão dele , e prometeu que
não empreenderia nada sem o seu consentimento .

Só as pessoas que passaram o mesmo por que os polacos passaram


depois da divisão da Polónia e da submissão de uma das suas partes
ao poder dos alemães odiados e a outra ao poder dos moskali odiados
ainda mais , são capazes de compreender o entusiasmo dos polacos
nos anos de 1 830- 1 83 1 quando , após as anteriores tentativas infeli­
zes de libertação , a nova esperança de liberdade parecia realizável .
Mas esta esperança não durou muito . As forças dos russos eram in­
comparavelmente maiores , e a revolução voltou a ser reprimida. De
novo , dezenas de milhar de homens russos absurdamente obedientes
foram mandados à Polónia e , sob o comando ora de Díbitch , ora de
Paskévitch24 e do chefe supremo Nicolau 1, sem saberem para que o
faziam , impregnaram a terra com o seu sangue e com o sangue dos
seus irmãos polacos , esmagaram-nos e entregaram-nos de novo ao
poder de gente fraca e insignificante que não desejava nem a liberda­
de nem a opressão dos polacos , mas uma única coisa: a satisfação da
sua cobiça e das suas ambições infantis .
Varsóvia fo i tomada, o s destacamentos dispersos foram derrota­
dos . Centenas , milhares de pessoas foram fuziladas , mortas à paula­
da, deportadas . Entre os deportados estava o jovem Migurski . A sua
herdade foi confiscada, e ele próprio foi posto como soldado num
batalhão de linha em Uralsk .
Os Jaczewski , no inverno de 1 832, viveram em Vilno por razões
de saúde do velho que , depois de 1 83 1 , foi acometido por uma doen­
ça de coração . Aqui , receberam uma carta de Migurski , da fortaleza.
Escreveu que , por mais grave que fosse o que ele passara e o que
tinha pela frente , estava feliz por ter sofrido pela pátria, que não per­
dia esperança no futuro da causa sagrada pela qual dera uma parte da
sua vida e estava pronto a dar o resto , e que , se amanhã surgisse uma
nova possibilidade , faria a mesma coisa. Lendo a carta em voz alta, o
224 Lev Tolstói

velho chorou nesta passagem e demorou muito a conseguir continuar


a leitura. No resto da carta, lida em voz alta por Wanda, Migurski
escreveu que , fossem quais fossem os seus desejos e sonhos naquela
sua última visita, ficando ela para sempre o mais feliz momento de
toda a sua vida, agora não podia nem queria falar deles .
Wanda e Albina compreenderam cada uma à sua maneira o sig­
nificado dessas palavras , mas não o explicaram a ninguém . No fim
da carta, Migurski mandava cumprimentos a toda a gente e , de pas­
sagem , no mesmo tom jocoso com que tratava Albina durante a sua
visita, dirigiu-se-lhe nesta carta, perguntando-lhe se continuava a
correr bem, ultrapassando os galgos, e se continuava a imitar exce­
lentemente toda a gente . Desejou saúde ao velho , êxitos nas lidas do­
mésticas à dona de casa, um marido digno a Wanda e a continuação
da mesma alegria de viver a Albina.

A saúde do velho Jaczewski piorava e , no ano 1 83 3 , toda a família


se mudou para o estrangeiro . Wanda conheceu em Baden um rico
emigrado polaco e casou-se com ele . A doença do velho agravava-se
rapidamente e, no início de 1 833 , morreu no estrangeiro nas mãos de
Albina. O velho não deixava que a sua mulher cuidasse dele e , até ao
último momento , não lhe pôde perdoar o erro que fizera ao casar-se
com ela. A pani Jaczewska e Albina voltaram para a aldeia. Para Al­
bina, o interesse principal da vida era Migurski . Aos olhos dela, era
o maior herói e mártir, e resolveu dedicar a sua vida ao serviço dele .
Ainda antes da partida para o estrangeiro , começou a escrever-lhe
cartas , primeiro a pedido do pai , depois por sua própria iniciativa.
Depois da morte do pai e do regresso à Rússia, continuou a corres­
pondência com ele e, quando fez dezoito anos , anunciou à madrasta
que resolvera ir a Uralsk para se juntar a Migurski e se casar com
ele . A madrasta lançou-se em censuras a Migurski , acusando-o de
ser egoísta ao querer aliviar a sua situação grave seduzindo uma me­
nina rica e obrigando-a a partilhar a sua desgraça. Albina zangou-se
e declarou à madrasta que era a única capaz de atribuir ideias tão
ignóbeis ao homem que sacrificara tudo em prol do seu povo; que
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 225

Migurski , pelo contrário , se recusara a aceitar a ajuda que ela, Al­


bina, lhe propunha e que decidira irrevogavelmente ir lá e casar-se
com ele , se Migurski desejasse dar-lhe essa felicidade . Albina já era
maior e tinha dinheiro , aqueles trinta mil zlótis que um tio falecido
deixara em herança às duas sobrinhas , portanto nada podia obrigá-la
a desistir.
Em novembro de 1 833 , Albina despediu-se dos familiares que cho­
ravam, como se ela fosse para morrer numa terra incógnita da bárbara
Rússia, sentou-se juntamente com a velha e fiel ama-seca Ludwika no
carrocim do pai , consertado para a longa viagem, e partiu .

Migurski não vivia nas casernas , mas no seu apartamento pessoal .


Nicolau 1 exigia que os polacos despromovidos não só carregassem
com todo o fardo da vida severa do soldado , mas que ainda esti­
vessem sujeitos a todas as humilhações que os soldados rasos so­
friam naqueles tempos . Contudo , a maioria das pessoas simples que
deviam cumprir essas suas ordens compreendiam toda a gravidade
da situação desses despromovidos e , apesar dos riscos que corriam
pelo incumprimento da vontade real , não a cumpriam quando era
possível . O comandante do batalhão em que fora incorporado Mi­
gurski , um homem semianalfabeto e oficial tarimbeiro , compreen­
dia bem a situação do jovem culto e dantes rico que fora privado de
tudo , respeitava-o e tinha pena dele, aliviando a sua vida na medida
do possível . E Migurski não podia deixar de apreciar a bondade do
tenente-coronel de suíças brancas na balofa cara soldadesca e , em si­
nal de agradecimento , aceitou dar aulas de matemática e francês aos
seus filhos que se preparavam para a escola militar.
A vida de Migurski em Uralsk, onde já estava há sete meses , não
era só monótona, triste e enfadonha, mas ainda muito dura. Não tinha
outros conhecidos além do comandante do batalhão , com quem evi­
tava ter amizade próxima, e de um polaco deportado , bastante inculto
e matreiro , indivíduo desagradável que fazia, em Uralsk , comércio
de peixe . Mas a principal dureza da sua vida consistia em ser-lhe
difícil habituar-se à pobreza. Depois da confiscação da sua herdade,
226 Lev Tolstói

não tinha quaisquer meios de subsistência e desenvencilhava-se ven­


dendo os últimos objetos de ouro que ainda tinha .
A única e enorme alegria da sua vida, desde que foi deportado , era
a correspondência com Albina, guardando ele na alma, desde aquela
longínqua visita a Rofank:a, a sua imagem poética e querida que ,
neste exílio , se tomava cada vez mais bela. Numa das suas primeiras
cartas a Migurski , Albina perguntou-lhe , a propósito , o que signifi­
cavam as palavras daquela antiga carta dele: «fossem quais fossem
os meus desejos e sonhos» . Migurski respondeu-lhe que agora podia
confessar-lhe: os seus sonhos consistiam em chamá-la sua mulher.
Ela escreveu-lhe que o amava. Ele respondeu que seria melhor se não
o escrevesse porque era terrível para ele pensar no que poderia ter si­
do e agora já era impossível . Albina escreveu que não só era possível ,
mas que ia acontecer sem dúvida. Ele respondeu que não podia acei­
tar este sacrifício dela, na sua situação atual . Passado pouco tempo ,
recebeu um aviso de transferência de dois mil zlótis . Pelo carimbo do
sobr.escrito e pela letra, percebeu que o dinheiro fora mandado por
Albina e lembrou-se de que numa das primeiras cartas lhe descreve­
ra, em tom de brincadeira, o prazer que agora tinha de ganhar com as
explicações tudo do que precisava - dinheiro para o chá, o tabaco e
até livros. Meteu o dinheiro noutro envelope e devolveu-o ao reme­
tente , acompanhado com uma carta em que pedia que não estragasse
as suas relações sagradas com o dinheiro . Não me falta nada, escre­
veu , e estou absolutamente feliz , sabendo que tenho um amigo como
a menina. Então , a correspondência deles parou .
Um dia em novembro , estava Migurski em casa do tenente-coronel ,
dando uma explicação aos miúdos , quando se ouviu o som do guizo
da posta que se aproximava, os patins do trenó a rangeram pela ne­
ve e a pararem à entrada. As crianças saltaram dos lugares para ver
quem vinha. Migurski ficou na sala, olhando para a porta à espera das
crianças , mas quem entrou era a própria esposa do tenente-coronel .
- Umas senhoras vieram para o ver, pan - disse ela. - Acho
que são da sua terra, parecem polacas .
Se perguntassem a Migurski se achava possível a chegada de Al­
bina, diria que era impensável; mas no fundo da alma esperava-a. O
sangue afluiu ao seu coração e, ofegando , correu ao vestíbulo . No ves­
tíbulo , uma senhora gorda e bexigosa estava a desatar o lenço da cabe-
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 227

ça. Outra senhora estava a entrar no apartamento do tenente-coronel .


Ao ouvir passos nas suas costas , ela olhou para trás . Os olhos afasta­
dos , azuis-claros, brilhantes e animados de Albina, com as pestanas
cobertas de geada, luziam debaixo do chapéu . Józef parou , aturdido , e
não sabia como a receber, como a cumprimentar. «Józio ! » , exclamou
ela, chamando-o pelo diminutivo com que o chamava o seu pai e ela
própria quando pensava nele , abraçou-se ao seu pescoço, apertou a
sua cara fria e corada contra a dele, riu e chorou .
Ao saber quem era Albina e porque viera, a bondosa dona de casa
recebeu-a e acolheu-a em sua casa até ao casamento .

O tenente-coronel bondoso conseguiu autorização dos chefes su­


periores . Convidaram um padre polaco de Orenburgo e casaram os
Migurski . A mulher do comandante do batalhão era madrinha, um
dos pequenos alunos levou o ícone , e Brzozowski , polaco deportado ,
era Schajjer25 •
Albina, por mais estranho que possa parecer, estava loucamente
apaixonada pelo seu marido , mas não o conhecia absolutamente . De
facto , acabou por conhecê-lo . É óbvio que encontrou no homem vi­
vo de carne e osso muita coisa vulgar e nada poética que não existia
naquela imagem que ela cultivava na sua imaginação , mas , em com­
pensação , precisamente por ser um homem de carne e osso , descobriu
nele muitas coisas simples e boas que faltavam àquela imagem abstra­
ta. Tinha ouvido os amigos e conhecidos contarem sobre a sua audácia
na guerra, sabia da sua coragem quando perdeu a fortuna e a liberda­
de , e imaginava-o como um herói que vivia permanentemente uma vi­
da heroica, mas na realidade Migurski , com toda a sua extraordinária
força e coragem, era afinal um anho meigo e pacato , um homem muito
simples , com brincadeiras bondosas , com o mesmo sorriso infantil da
boca sensual , rodeada de barba e bigode loiros que encantara Albina
ainda em Rofanka, e com um cachimbo inapagável , muito difícil de
suportar sobretudo durante a gravidez da jovem mulher.
Migurski também só agora conhecia Albina e, pela primeira vez ,
viu nela uma mulher. Pelas mulheres que tinha conhecido antes do
228 Lev Tolstói

casamento não podia saber o que era uma verdadeira mulher. Então ,
o que ele conheceu em Albina como mulher surpreendeu-o e seria
capaz de desiludi-lo do sexo feminino em geral se não tivesse por
Albina um sentimento extremamente temo e grato . Em relação a Al­
bina como mulher em geral , sentia uma condescendência carinhosa
e um pouco irónica, mas em relação a Albina em si sentia não só um
amor temo , mas também admiração , tendo consciência de uma dívi­
da eterna pelo sacrifício dela, sacrifício que lhe dava uma felicidade
não merecida.
Os Migurski estavam felizes por terem , no meio de gente estranha,
concentrando toda a força do amor um no outro , o mesmo sentimento
de duas pessoas que , no inverno , se perderam, têm frio e se aquecem
um ao outro . Para a vida feliz dos Migurski contribuía também a
participação da mãe Ludwika, servilmente abnegada à sua pani, res­
mungona bondosa, cómica, permanentemente apaixonada por todos
os homens . Os Migurski também tinham a felicidade de ser pais .
O filho nasceu passado um ano e , um ano e meio depois , nasceu a
filha. O miúdo era uma cópia da mãe: os mesmos olhos , a mesma agi­
lidade e graciosidade . A menina era um bichinho bonito e saudável .
Quanto à infelicidade , consistia em viverem longe da pátria e , so­
bretudo , na sua situação grave , humilhante , nada habitual para eles .
Esta humilhação fazia sofrer, em primeiro lugar, Albina. Ele , o seu
Józio , herói , homem ideal , devia pôr-se em sentido perante qualquer
oficial , fazer exercícios com espingarda, estar de guarda e obedecer
resignadamente .
Além disso , as notícias chegadas da Polónia eram muito tristes .
Quase todos os parentes e amigos ou foram deportados ou , priva­
dos de tudo , fugiram para o estrangeiro . Para os próprios Migurski ,
não se previa o fim desta situação . Todas as tentativas de solicitar o
indulto ou , pelo menos , um melhoramento da situação , a promoção
a oficial , falhavam . Nicolau 1 fazia revistas , paradas , treinos mili­
tares , ia aos bailes de máscaras , cortejava as senhoras mascaradas ,
corria sem qualquer necessidade pela Rússia, de Tchugúev até No­
vorrossiisk, Petersburgo e Moscovo , assustando o povo e esfalfando
os cavalos , e quando algum corajoso se atrevia a pedir atenuação do
destino dos dezembristas ou dos polacos deportados que penavam
por causa daquele amor pela pátria que ele próprio , o czar, glorifi-
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 229

cava, Sua Majestade enchia o peito , espetava em qualquer coisa os


seus olhos plúmbeos e dizia: «Que sirvam. Ainda é cedo .» Como se
soubesse quando não seria cedo , quando seria a hora certa. E todos
os cortesãos - os generais , os Kammerherr e as suas esposas , que se
nutriam ao lado dele - comoviam-se com a extraordinária sagacida­
de e sabedoria deste homem .
Mas em suma, na vida dos Migurski havia mais felicidade do que
desgraça.
Assim viveram cinco anos . De repente , uma inesperada e terrível
desgraça atingiu-os . Primeiro , adoeceu a menina; passados dois dias ,
o menino: ardeu em febre durante três dias e , sem ajuda dos médicos
(era impossível arranjar algum) , morreu no quarto dia. Dois dias de­
poi s , a menina também morreu .
Albina não se afogou no rio Ural só porque não podia imaginar
sem terror como ficaria o marido com a notícia do seu suicídio . Mas
viver era difícil para ela. Sempre ativa e cuidadosa antes , agora entre­
gou todos os seus cuidados a Ludwika e quedava-se sentada, horas a
fio, de braços cruzados , olhando em silêncio para o que calhasse , ou
de repente saltava do lugar e fugia para o seu quartinho e ali , sem res­
ponder às consolações do marido e de Ludwika, só chorava baixinho ,
meneando a cabeça, pedindo que a deixassem sozinha.
No verão , ia à campa dos filhos e ficava ali sentada, rasgando o
coração com recordações do que era e pensamentos no que podia
ter sido . Atormentava-a sobretudo a ideia de que as crianças podiam
sobreviver se eles vivessem na cidade , onde haveria assistência mé­
dica. «Por que culpa? Por quê? - pensava ela. - Nem Józio nem
eu queremos nada de ninguém , apenas que ele viva tal como nasceu ,
tal como viviam os seus avós e bisavós , e eu só quero viver com ele ,
amá-lo , amar os meus pequenos , educá-los .»
«Mas de repente torturam-no , deportam-no , e tiram-me aquilo que
para mim é mais precioso do que a luz . Para quê? Porquê?» - fazia
esta pergunta às pessoas e a Deus . E não imaginava a possibilidade
de qualquer resposta. Mas sem esta resposta não havia vida. E a sua
vida parou . A vida pobre no exílio , que dantes ela sabia embelezar
com o seu bom gosto e elegância feminina, tomou-se insuportável
não só para ela, mas também para Migurski , que sofria por ela e não
sabia como a podia ajudar.
230 Lev Tolstói

Neste tempo difícil para os Migurski , chegou a Uralsk o polaco


Rosolowski , envolvido num grandioso plano de revolta e fuga, con­
cebido na Sibéria pelo padre Sirocinski , um dos deportados .
Rosolowski , tal como Migurski , tal como milhares de pessoas pu­
nidas com a deportação para a Sibéria pela culpa de desejarem ser
como nasceram - polacos, foi envolvido nesse caso , castigado com
as vergastas e mandado como soldado para o mesmo batalhão de
Migurski . Rosolowski , ex-professor de matemática, era um homem
esgrouviado , um pouco curvado , magro , de faces cavadas e sobrolho
sempre franzido .
Logo na primeira noite após a sua chegada, Rosolowski , à mesa
de chá em casa dos Migurski , começou , naturalmente , a falar com a
sua voz de baixo vagarosa e calma sobre o caso pelo qual sofrera tão
cruelmente . O caso consistia em que Sirocinski criou , por toda a Si­
béria, uma organização secreta com o objetivo de , com ajuda de pola­
cos alistados nos regimentos cossacos e de linha, incitar os soldados
e os grilhetas à revolta, e depois também os colonos , apoderar-se de
toda a artilharia em Omsk e libertar todos .
- Mas seria possível? - perguntou Migurski .
- Muito possível , tudo estava pronto - disse Rosoiowski , car-
rancudo , e contou lenta e calmamente todo o plano de libertação ,
todas as medidas tomadas para o êxito da revolta e , no caso de malo­
gro , para a salvação dos conspiradores . O êxito seria certo se os dois
velhacos não os traíssem . Sirocinski , nas palavras de Rosoiowski , era
um homem genial e de grande força espiritual . E morreu como herói
e mártir. E Rosolowski , em voz de baixo regular e calma, começou a
contar os pormenores da execução a que ele , pela ordem dos chefes ,
tivera de assistir, juntamente com todos os julgados desse caso .
«Dois batalhões de soldados formavam duas filas , como uma rua
comprida, e cada soldado tinha na mão um vareta flexível da grossura
regulamentada pela ordem suprema, grossura que só permitia enfiar­
-se três paus no cano de uma espingarda. O primeiro a ser levado foi
o doutor Szakalski . Dois soldados levavam-no , e aqueles que tinham
varetas batiam-lhe nas costas nuas quando chegava junto deles . Eu vi­
-o só quando se aproximou do meu lugar. Primeiro ouvi só o rufar dos
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 23 1

tambores , mas depois , quando se ouviu o assobio das varetas e o som


das varetadas no corpo , percebi que ele estava a aproximar-se . Vi co­
mo os soldados o puxavam, atado às espingardas deles , como ele an­
dava, estremecendo e virando a cabeça ora para um, ora para o outro
lado . E ouvi , quando ele passava ao nosso lado , que o médico russo
disse aos soldados : "Não batam com força, tenham pena dele ." Mas
eles batiam e, quando passava à nossa altura pela segunda vez , já não
andava, mas era arrastado . Metia medo ver as suas costas . Apertei os
olhos . Ele caiu , foi levado dali . Depois , levaram o segundo . Depois ,
o terceiro , o quarto . Todos caíam e eram levados , uns mortos , outros
semimortos , e devíamos estar lá e olhar. Tudo isto durou seis horas -
de manhã até às duas da tarde . O último foi o próprio Sirocióski . Ha­
via muito que não o via e não o teria reconhecido: envelheceu muito .
A sua cara cheia de rugas estava pálida, esverdeada. O corpo nu muito
magro , amarelo; as costelas espetavam-se por cima da barriga cavada.
Ia como todos os outros , estremecendo com o corpo e a cabeça a cada
varetada, mas não gemia, lendo alto uma oração: Miserere mei Deus
secundum magnam misericordiam tuam * .
- Ouvi-o eu próprio - rouquejou rapidamente Rosolowski e , fe­
chando a boca, fungou .
Ludwika, sentada à janela, chorava, tapando a cara com o lenço .
- Que prazer tem em contar isso? As feras são feras ! - excla­
mou Migurski e, atirando o cachimbo para cima da mesa, levantou-se
bruscamente da cadeira e saiu a passo rápido para o quarto . Albina
estava sentada, como empedernida, cravando os olhos no canto es­
curo .

No dia seguinte , ao regressar dos treinos militares , Migurski ficou


surpreendido com o ar da sua mulher que , como antigamente , saiu ao
seu encontro num passo leve e a cara radiante , e levou-o ao quarto .
- Ouve , Józio .
- Estou a ouvir. O que é?

* Tende piedade de mim , meu Deu s , com a Vossa grande misericórdia (lat.).
232 Lev Tolstói

- Passei toda a noite a pensar no que contou Rosolowski . E deci­


di-me . Não posso viver assim , não posso viver aqui . Não posso . Mor­
ro , mas não fico aqui .
- Mas o que se pode fazer?
- Fugir.
- Fugir? Como?
- Pensei em tudo . Ouve - e ela contou-lhe o plano que inventara
durante a noite . O plano era o seguinte: Migurski sai de casa à noite e
deixa na margem do Ural o seu capote e , em cima do capote , uma car­
ta a dizer que vai acabar com a vida. Vão pensar que se afogou . Vão
procurar o corpo , vão mandar relatórios . Entretanto , ele esconde-se .
Ela esconde-o de tal modo que ninguém o vai encontrar. Assim po­
derão viver nem que seja um mês . E quando tudo se acalmar, fogem .
Esta aventura, no primeiro momento , pareceu a Migurski irreali­
zável , mas no fim do dia, depois das persuasões entusiasmadas e
cheias de firmeza de Albina, Migurski começou a concordar. Além
disso , estava inclinado a concordar com a mulher porque era a ele
que calhava a punição pela fuga frustrada, a mesma que fora descrita
por Roso:l:owski , ao passo que o êxito do empreendimento libertava
Albina, e ele via que penosa era a vida aqui para a sua mulher depois
da morte dos filhos .
O segredo foi confiado a Rosolowski e Ludwika e , depois de lon­
gas discussões , modificações e emendas , o plano de fuga foi elabo­
rado . De início , planeavam que Migurski , depois de ser reconhecido
afogado , fugisse sozinho , a pé , enquanto Albina partia de carruagem ,
encontrando-se com ele num sítio combinado . Foi a primeira varian­
te . Só que depois , quando Rosolowski contou sobre todas as infelizes
tentativas de fuga da Sibéria nos últimos cinco anos (só um felizardo
conseguiu fugir e salvar-se) , Albina sugeriu outro plano: que Józio ,
escondido na carruagem, fosse com ela e Ludwika até Sarátov. Em
Sarátov, disfarçado com outra roupa, tinha de ir pela margem do Vol­
ga e, num local combinado , tomar um barco que Albina ia alugar
em Sarátov para navegarem, os três , pelo rio abaixo até Astracã e ,
pelo mar Cáspio , até à Pérsia. Este plano fo i aprovado por todos ,
inclusivamente por Rosolowski , organizador principal , mas surgia
a dificuldade de instalar na carruagem um compartimento em que
coubesse um homem mas que não atraísse a atenção das autoridades .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 233

Então , quando Albina, depois de ter ido à campa dos filhos , disse a
Rosolowski o que lhe custava deixar os restos mortais dos filhos na
terra alheia, este pensou e disse:
- Peça aos chefes autorização para levar os caixões dos filhos ,
não lho vão recusar.
- Não , não quero ! - disse Albina.
- Peça isso , e está encontrada a solução: não se levam os caixões ,
faz-se uma caixa grande , e Józef deita-se nela.
No primeiro momento , Albina rejeitou esta proposta: era muito
penoso para ela ligar o estratagema com a recordação dos filhos , mas ,
quando Migurski aprovou com otimismo este projeto , ela concordou .
Portanto , o plano definitivo foi o seguinte: Migurski faria tudo
para convencer os chefes de que se afogara. Quando a sua morte fos­
se reconhecida , Albina apresentaria um pedido de autorização para
voltar para à pátria, levando consigo os restos mortais dos filhos .
Quando obtivesse essa autorização , seria fingida a exumação , mas
os caixões ficariam no seu lugar, e Migurski seria colocado , em vez
dos caixões infantis , numa caixa preparada para o efeito . A caixa
seria colocada na carruagem , e assim iriam até Sarátov. Em Sarátov,
tomariam um barco . No barco , Józio sairia da caixa, e navegariam
assim até ao mar Cáspio . E depois , era Pérsia ou Turquia - e a li­
berdade .

Antes de mais , os Migurski compraram uma carruagem sob pretex­


to do envio de Ludwika para a pátria. Depois , começaram a construir
dentro da carruagem uma caixa em que fosse possível Migurski ficar
deitado, mesmo encolhido , não sufocar, sair rápida e impercetivelmen­
te e voltar a entrar. Todos os três , Albina, Rosolowski e Migurski , pro­
jetavam e construíam a caixa. Foi sobremaneira importante a ajuda de
Rosolowski , bom marceneiro . A caixa foi feita de maneira a que , presa
atrás da carroçaria, ficasse bem encostada à sua parte traseira que se
podia abrir, portanto o homem podia ficar deitado em parte dentro da
caixa, em parte no fundo da carruagem. Além disso , na caixa foram
feitos furos para a entrada do ar; em cima e dos lados , devia ser coberta
234 Lev Tolstói

com serrapilheira e atada com cordas . Sair e entrar nela só era possível
dentro da carruagem em que foi instalado um assento .
Quando a carruagem e a caixa estavam prontas , Albina, ainda antes
do desaparecimento do marido , para preparar os chefes , foi falar com
o tenente-coronel e disse-lhe que o seu marido entrara em melancolia
e tentara o suicídio , pelo que ela tinha medo por ele e pedia que lhe
dessem, provisoriamente , licença para não ir ao serviço . Valeu-lhe o
seu talento da arte dramática. A preocupação e o medo pelo marido
foram tão naturais que o chefe ficou comovido e prometeu fazer tudo
o que lhe fosse possível . Depois disso , Migurski redigiu uma carta
que devia ser encontrada no canhão da manga do seu capote na mar­
gem do rio e , uma tarde , foi à ribeira, esperou até escurecer, deixou
na margem a roupa, o capote com a carta, e voltou sorrateiramente
para casa. Já tinha sido preparado um lugar para ele no sótão que
fechava a cadeado . À noite , Ludwika foi mandada por Albina à casa
do tenente-coronel para comunicar-lhe que o marido , tendo saído de
casa vinte horas atrás , não voltara. De manhã, trouxeram a Albina a
carta do marido , e ela, em grande desespero e banhada em lágrimas ,
levou-a ao tenente-coronel .
Passada uma semana, Albina entregou o pedido de autorização da
sua partida para a pátria. A angústia da senhora Migurska impressio­
nava toda a gente que a via. Todos tinham pena da desgraçada mãe e
mulher. Quando lhe autorizaram a partida, apresentou outro pedido:
permitirem a exumação dos restos mortais dos filhos para que os pu­
desse levar consigo .
Os chefes espantaram-se com este sentimentalismo , mas também
deram a permissão .
No dia seguinte à autorização , à noite , Rosolowski , com Albina
e Ludwika, numa carroça alugada com a caixa em que deviam ser
postos os caixões das crianças , foram ao cemitério . Albina ajoelhou­
-se junto à campa dos filhos, rezou , depois levantou-se e disse a
Rosolowski:
- Façam o que é preciso , eu não posso - e afastou-se .
Rosolowski e Ludwika deslocaram a laje e cavaram com a pá a
parte superior do túmulo , para criar ilusão do túmulo aberto . Quando
acabaram, chamaram Albina e , com a caixa enchida de terra, volta­
ram para casa.
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 235

Chegou o dia marcado para a partida. Rosolowski rejubil ava com


o êxito do empreendimento quase a atingir um final feliz . Ludwika
cozeu bolachas e pastéis para a viagem e repetia sempre o seu refrão
preferido: <<jak mam� kocham» * , dizendo que o seu coração estava
a rebentar de medo e alegria. Migurski estava contente com a sua li­
bertação do sótão em que ficara fechado mais de um mês , mas ainda
mais com a animação e alegria de Albina, que parecia ter esquecido
todas as desgraças passadas e todos os perigos e, como nos tempos
da sua mocidade , corria para o ver no sótão , irradiando entusiasmo .
Às três de madrugada, um cossaco veio ajudar e trouxe um cochei­
ro e três cavalos . Albina e Ludwika, com o cãozinho , sentaram-se na
carruagem sobre as almofadas cobertas com tapete . O cossaco e o
cocheiro instalaram-se na boleia. Migurski , vestido de roupa campo­
nesa, estava dentro da caixa, na carroçaria.
Saíram da cidade , e a troica valente levou a carruagem pelo ca­
minho batido , liso como pedra, através da estepe infinita, virgem ,
coberta de barba-de-bode argêntea do ano anterior.

10

O coração esmorecia de esperança e exultação no peito de Albina.


Desejando partilhar os seus sentimentos , apontava de vez em quando
com a cabeça ora para as costas largas do cossaco na boleia, sorrindo
ligeiramente a Ludwika, ou para o fundo da carruagem . Ludwika, com
ar significativo , olhava fixamente para a frente e só de vez em vez en­
rugava os lábios . O dia era claro . A infinita estepe deserta espraiava-se
para todos os lados , a barba-de-bode prateada brilhava sob os raios
oblíquos do sol matinal . Só os cascos sem ferraduras dos céleres ca­
valos bachquires soavam sonoramente, como se cavalgassem pelo al­
catrão e , ora de um lado, ora do outro lado do caminho duro viam-se
montículos de terra cavada pelos espermófilos , e um deles , o esper­
mófilo de guarda, estava sentado no traseiro , avisando os seus sobre o
perigo , depois assobiava estridentemente e desaparecia na toca. Havia
poucos viajantes no caminho: um comboio de carroças cossacas com

* Por amor da minha mãe (pol .) .


236 Lev Tolstói

trigo ou os bachquires a cavalo, com quem o cossaco na carruagem


trocava habilmente algumas palavras tártaras . Em todas as estações
de muda, os cavalos eram frescos e bem alimentados , e as moedas de
cinquenta copeques para vodca que Albina oferecia surtiam efeito -
os cocheiros mandavam os cavalos a galope , ou , como eles diziam, à
moda do correio militar, ao longo de todo o caminho .
Logo na primeira estação , enquanto o primeiro cocheiro levou os
cavalos e o novo ainda não trouxe os outros , e logo que o cossaco en­
trou no pátio , Albina inclinou-se e perguntou ao marido como estava
e se precisava de alguma coisa.
- Estou ótimo , cómodo . Não preciso de nada. Posso ficar assim
deitado nem que seja dois dias .
À noite chegaram a uma grande aldeia, Dergatchi . Para o marido
poder desentorpecer os membros e refrescar-se , Albina alojou-se na
estalagem, e não nas instalações da posta, deu dinheiro ao cossa­
co e mandou-o comprar leite e ovos . A carruagem estava debaixo
do alpendre . Estava escuro , e Albina, deixando Ludwika a vigiar o
regresso do cossaco , deixou o marido sair, deu-lhe de comer, e Mi­
gurski teve tempo de voltar ao seu esconderijo antes do regresso do
cossaco . De novo mandaram mudar os cavalos e seguiram viagem .
Albina sentia . uma elevação de espírito cada vez maior e não conse­
guia conter a animação . Não tinha ninguém para conversar além de
Ludwika, o cossaco e o cãozinho Tresorka - era esta a sua distração .
Ludwika, apesar de feia, costumava desconfiar que qualquer homem
por perto tinha intenções amorosas em relação a ela, o que acontecia
precisamente agora em relação ao cossaco dos Urais , um valentão
benevolente com olhos azuis extraordinariamente límpidos e bon­
dosos , que as acompanhava e agradava muito a ambas as mulheres
pela sua simplicidade e benevolência carinhosa. Além do Tresorka ,
que Albina não deixava cheirar debaixo do assento , divertia-a agora
a garridice cómica de Ludwika com o cossaco que sorria a tudo o
que lhe diziam e nem suspeitava das intenções que a ama-seca lhe
atribuía. Albina, excitada tanto com o perigo , como com o êxito cada
vez maior do empreendimento , e também com o tempo maravilhoso
e o ar da estepe , sentia a exaltação e a alegria infantis havia tanto es­
quecidas . Migurski ouvia a sua tagarelice animada e também , apesar
da dificuldade física da sua situação , escondida por ele da mulher
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 237

(sobretudo por causa do calor e da muita sede) , esquecia-se de si


próprio e alegrava-se com a alegria dela.
Na noite do segundo dia, qualquer coisa começou a destacar-se no
meio do nevoeiro . Era a cidade de Sarátov e o Volga. O cossaco, com
os seus olhos de estepe, distinguia o Volga e os mastros , e mostrava­
-os a Ludwika. Ludwika dizia que também os estava a ver. Mas Al­
bina não conseguia ver nada. E só dizia, propositadamente alto para
que o marido o pudesse ouvir:
- Sarátov, Volga - e, como que a falar com o Tresorka , contava
ao marido tudo o que se via à frente .

11

Sem entrar em Sarátov, Albina parou na margem esquerda do Vol­


ga, no subúrbio Pokróvskaia, em frente da cidade . Aqui esperava,
durante a noite , falar com o marido e deixá-lo sair da caixa. Mas
o cossaco não se afastou da carruagem durante toda a curta noite
primaveril , sentado ao lado numa carroça vazia deixada debaixo do
alpendre . Ludwika, por ordem de Albina, ficou sentada na carrua­
gem e , tendo toda a certeza que era por causa dela que o cossaco
não se afastava, piscava-lhe o olho , ria e tapava a sua cara bexigosa
com o lenço . Albina, porém , já não achava graça nenhuma a isso e
preocupava-se cada vez mais, não compreendendo por que razão o
cossaco se mantinha insistentemente ao lado da carruagem .
Por várias vezes durante a curta noite, quase sem intervalo entre o
ocaso e a aurora, Albina saiu do quarto da estalagem, passando ao lon­
go da galeria malcheirosa e saindo pela porta das traseiras . O cossaco
nunca mais adormecia, sentado na carroça vazia ao lado da carruagem.
Só antes do amanhecer, quando os galos acordaram e trocavam gri­
tos de um quintal para outro , Albina desceu e arranjou ocasião para
falar com o marido . O cossaco ressonava, deitado na carroça. Albina
aproximou-se devagarinho da carruagem e empurrou a caixa.
- Józio ! - Não houve resposta. - Józio, Józio ! - disse ela, as­
sustada, em voz mais alta.
- O quê , querida, o quê? - respondeu Migurski da caixa em voz
sonolenta.
238 Lev Tolstói

- Porque não respondias?


- Estava a dormir - disse ele , e Albina compreendeu pela voz
que estava a sorrir. - Então , posso sair? - perguntou .
- Não podes , o cossaco está aqui - e , ao dizê-lo . Albina olhou
para o cossaco adormecido; e, coisa estranha, o cossaco ressonava,
mas os seus olhos , estes olhos azuis e bondosos ," estavam abertos .
Estava a olhar para ela e , quando os seus olhos se cruzaram, baixou
as pálpebras .
«Pareceu-me , ou realmente não dormia?» , perguntou Albina a si
própria. «Acho que pareceu» , pensou e voltou a falar com o marido .
- Aguenta ainda um pouco - disse ela . - Tens fome?
- Não . Apetece-me fumar.
Albina voltou a olhar para o cossaco . Ele dormia.
«Sim , pareceu-me» , pensou .
- Vou agora falar com o governador.
- Boa sorte .
E Albina tirou da mala um vestido e foi ao quarto para se vestir.
Ao pôr o seu melhor vestido de luto , Albina atravessou para a ou-
tra margem do Volga. Na marginal , tomou um coche e foi à casa do
governador. O governador recebeu-a. O velho gostou muito da viúva,
aquela polaca bonita, com um sorriso querido e um francês excelen­
te . Deu-lhe todas as autorizações e pediu que o voltasse a visitar no
dia seguinte para que lhe desse ainda um papel com a ordem para
a autoridade administrativa da cidade de Tsarítsin . Contente com o
êxito da sua solicitação e com o efeito que o seu encanto causou ao
governador, a feliz e cheia de esperança Albina foi regressando pela
rua não calcetada que descia até ao cais . O sol já se levantara por
cima da floresta e os seus raios oblíquos brincavam à superfície da
água encrespada do rio em cheia. Por toda a elevação , à direita e à
esquerda, as macieiras em flor fragrante pareciam nuvens brancas .
Toda uma floresta de mastros erguia-se junto à margem, e as velas
branquejavam sobre a água resplandescendo ao sol , encrespada sob
o vento . No cais , Albina falou com o cocheiro e perguntou-lhe se era
possível alugar um barco até Astracã, e dezenas de barqueiros alegres
e barulhentos ofereceram-lhe os seus serviços e barcos . Chegou a
acordo com um dos barqueiros de quem gostou mais e foi ver o seu
barco bastante grande que estava atracado entre muitos outros . O bar-
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 239

co tinha um mastro com vela, pelo que era possível ir também com
ajuda do vento . Para o caso de calmaria, havia remos e dois rema­
dores robustos e animados - estavam neste momento ao sol , dentro
do barco . O piloto bem-disposto e bondoso aconselhou-a a não aban­
donar a carruagem; podiam tirar-lhe as rodas e instalá-la no barco .
«Cabe bem , e também será mais confortável para a senhora. Se Deus
nos mandar bom tempo , chegamos a Astracã em cinco dias .»
Albina combinou o preço com o barqueiro e disse-lhe para ir ao
subúrbio Pokróvskaia, estalagem de Lóguin, para ver a carruagem e
receber o sinal . Tudo correu até melhor do que esperava. Num ex­
celente e entusiasmado estado de ânimo , Albina atravessou o rio e ,
depois d e pagar ao cocheiro , fo i à estalagem .

12

O cossaco Danilo Lifánov era da Granja Strelétski , no outeiro entre


os afluentes do Volga e do Ural . Tinha trinta e quatro anos , ia no últi­
mo mês do seu serviço no exército cossaco . Na sua fann1ia havia um
avô de noventa anos que ainda se lembrava de Pugatchov26, dois ir­
mãos , a mulher do irmão mais velho deportado para a Sibéria por pra­
ticar a velha crença ortodoxa, a mulher de Danilo , duas filhas e dois
filhos dele . O seu pai foi morto na guerra contra os franceses . Danilo
era o chefe da fann1ia. Tinham dezasseis cavalos , duas parelhas de
bois e duas jeiras e meia de lavradio próprio , arado e semeado de tri­
go . Danilo serviu em Orenburgo e em Kazan , e agora estava no fim do
serviço . Era fiel à velha crença: não fumava nem bebia, não comia da
mesma loiça que a gente que pertencia à igreja oficial e , com o mesmo
rigor, era fiel ao juramento . Era minucioso, firme e vagaroso em tudo
o que fazia, e quando cumpria ordens dos chefes aplicava toda a sua
atenção sem se distrair nem por um minuto até ao fim da tarefa. A or­
dem que recebeu e como a compreendeu consistia em acompanhar as
duas polacas com caixões até Sarátov, de modo a não lhes acontecer
mal nenhum pelo caminho e vigiando que elas se portassem bem e
não fizessem asneiras , e entregá-las em Sarátov, como é devido , às au­
toridades . Assim, levou-as , mais o cãozinho e os caixões , até Sarátov.
As mulheres eram quietas e carinhosas e , embora polacas , não fizeram
240 Lev Tolstói

mal nenhum. Só que aqui , no subúrbio Pokróvskaia, à noite , quando


uma vez Danilo passava ao lado da carruagem, viu que o cãozinho
saltou para dentro da carruagem e começou a ganir e a abanar o rabo ,
e pareceu ao cossaco ter ouvido debaixo do assento uma voz . Uma das
polacas , a velha, ao ver o cão dentro da carruagem, assustou-se com
qualquer coisa, agarrou o cão e levou-o de lá.
«Aqui há gato» , pensou o cossaco e começou a espiar. Quando
a jovem polaca saiu de noite e foi à carruagem, Danilo fingiu que
dormia e ouviu nitidamente uma voz masculina vinda da caixa. De
manhã cedo foi à polícia e declarou lá que as polacas que ele estava a
acompanhar eram suspeitas , que levavam na caixa, em vez dos mor­
tos , um homem vivo .
Quando Albina, no seu estado de ânimo feliz e exultante , com toda
a certeza de que agora o êxito era completo e eles , dali a alguns dias ,
estariam livres , chegou à estalagem, viu com espanto , junto ao por­
tão , uma parelha janota de cavalos e dois cossacos . Junto ao portão ,
o povo apertava-se , espreitando para dentro do pátio .
Estava tão cheia de esperança e energia que nem lhe passou pela
cabeça que esta parelha de cavalos e esta multidão tivessem alguma
coisa que ver com ela. Entrou no pátio e, ao olhar para o alpendre on­
de estava a sua carruagem, viu que o povo se apertava precisamente
ali e ouviu , no mesmo instante , o latido louco do Tresorka . Ocorrera
o mais terrível de tudo . Um senhor imponente com suíças pretas ,
de farda impecável com os botões e as platinas reluzentes , e botas
envernizadas , estava em frente da carruagem e dizia qualquer coisa
em voz alta, rouca e autoritária. Em frente dele, entre dois soldados ,
vestido de roupa camponesa, com palha no cabelo , desgrenhado , es­
tava o Józio e, como que sem compreender o que se estava a passar à
sua volta, encolhia os ombros fortes . O Tresorka , sem saber que era
a causa desta desgraça, eriçava a pele e ladrava raivosa e inutilmente
ao chefe da polícia. Ao ver Albina, Migurski estremeceu , quis ir ao
seu encontro , mas os soldados detiveram-no .
- Não faz mal , Albina, não faz mal - pronunciou Migurski , es­
boçando o seu meigo sorriso .
- Aqui temos a própria senhora ! - disse o chefe da polícia. -
Faça o favor de vir. São caixões dos seus filhos , sim? - perguntou ,
piscando o olho na direção de Migurski .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 24 1

Albina não respondeu , só apertou a mão ao peito e, com a boca


aberta, olhava aterrorizada para o marido .
Como acontece nos momentos à beira da morte e , em geral , deci­
sivos , pensou e sentiu , num instante , imensas coisas , mas ao mesmo
tempo ainda não acreditava, não compreendia a sua desgraça. O seu
primeiro sentimento era aquele , havia muito familiar, de orgulho in­
sultado à vista do marido heroico , humilhado perante esta gente rude
e selvagem que o tinha agora em seu poder. «Como se atrevem a ter
em seu poder a ele , o melhor de todos os homens ! » Outro sentimento
que a acometeu simultaneamente foi o da desgraça. E a consciência
da desgraça despertou nela a recordação da desgraça principal da sua
vida, a morte dos filhos . E logo a seguir surgiu a pergunta: por que
culpa? Por que culpa lhe foram tirados os filhos? E esta pergunta fez
surgir a seguinte: por que culpa está a ser levado à perdição , porque
está a sofrer o seu marido amado , o melhor de todos os homens? Lo­
go a seguir, lembrou-se do castigo vergonhoso que o esperava e que
ela, só ela, tinha sido a culpada disso .
- Quem ele é para a senhora? É o seu marido? - perguntou o
chefe da polícia.
- Porquê? Porquê? - exclamou ela e , desatando a rir histerica­
mente , caiu sobre a caixa tirada da carruagem e posta no chão . Lu­
dwika, a tremer de choro , com a cara banhada em lágrimas , foi ter
com ela.
- Panenka , minha panenka ! Jak boga kocham * , não haverá mal
nenhum, nenhum ! - repetia, afagando-lhe as costas com as mãos .
Migurski foi algemado e levado para fora da estalagem . Ao vê-lo ,
Albina correu atrás dele.
- Perdoa-me, perdoa-me - dizia ela. - Sou eu , sou eu a culpada!
- Já vão descobrir quem é culpado . A sua vez também vai chegar
- disse o chefe da polícia e afastou-a com a mão .
Levaram Migurski até ao cais , e Albina, sem saber para que o fa­
zia, ia atrás dele e não dava ouvidos a Ludwika.
O cossaco Danilo Lifánov, durante todo este tempo , estava especa­
do junto à roda da carruagem e olhava sombriamente ora para o chefe
da polícia, ora para Albina, ora para os seus próprios pés .

* Juro por Deus (pol .).


242 Lev Tolstói

Quando Migurski foi levado , o Tresorka , ficando sozinho , come­


çou a abanar o rabo e a pedir-lhe carinho . Habituou-se ao cossaco
durante a viagem . O cossaco , de repente , afastou-se da carruagem ,
arrancou o gorro da cabeça, atirou-o com força para o chão , repeliu o
Tresorka a pontapé e foi à taberna. Na taberna, pediu vodca e bebeu
dia e noite , gastou na bebedeira tudo o que tinha e tudo o que vestia,
e só na noite seguinte , ao acordar num fosso , deixou de pensar na
questão que o atormentava: foi ou não foi correto o que ele fez , de­
nunciando o marido da polaca na caixa?

Migurski foi julgado e condenado , pela fuga, a mil varetadas . Os


seus parentes e Wanda, que tinha conhecidos influentes em Peters­
burgo , conseguiram para ele uma comutação da pena, e então foi
mandado para viver perpetuamente na Sibéria. Albina foi atrás do
marido .
Quanto a Nicolau 1 , estava contente por ter esmagado a hidra da
revolução não só na Polónia, mas em toda a Europa, e sentia orgulho
por não ter transgredido os preceitos da autocracia russa e, para o
bem do povo russo , manter a Polónia sob o poder da Rússia. E os
homens com estrelas no peito e fardas douradas elogiaram-no por
isso de tal modo que ele , no leito da morte , acreditava sinceramente
que era um grande homem e que a sua vida era um grande bem da
humanidade , sobretudo da gente russa, para a depravação e o embru­
tecimento da qual foram canalizadas todas as forças ao seu dispor.
KHODINKA27

- Não compreendo esta tua teimosia. Porque é que , em vez de


dormires , queres ir «ao seio do povo» se podias ir nas calmas ama­
nhã, com a tia Vera, diretamente ao pavilhão? Então , vais ver tudo .
Já te disse que Baer me prometeu que entravas com ele . A propósito ,
também tens direito corno dama de honor.
Assim falou o príncipe Pável Golítsin , conhecido na alta sociedade
sob a alcunha de «Pigeon» , com sua filha Aleksandra, de 23 anos ,
apelidada por toda a gente de «Rina» .
Esta conversa ocorreu na noite de 1 7 de maio de 1 896 , em Mosco­
vo , na véspera da festa popular dedicada à coroação . O problema era
o seguinte: Rina, menina bonita e forte , com o perfil característico
dos Golítsin , ou seja, o nariz adunco de ave de rapina, já ultrapassara
o período de amor pelos bailes da alta-roda e era, ou pelo menos pen­
sava que era, urna mulher progressista e populista. Era filha única,
adorada pelo pai , e fazia tudo o que lhe apetecia. Agora teve urna
ideia maluca, corno disse o seu pai: em vez de assistir à festa popu­
lar com a corte , ao meio-dia, ir lá, acompanhada pelo primo , com o
povo , ou seja, com o guarda-varredor e o ajudante do cocheiro dos
Golítsin , que iam sair de manhã cedo .
- Papá, não me interessa olhar para o povo , interessa-me estar
com ele . Gostaria de ver a sua atitude para com o jovem czar. Será
que não posso pelo menos urna vez . . .
- Bem , faz o que quiseres , já conheço a tua teimosia.
- Não te zangues , papá querido . Prometo-te que me porto bem, e
o Álek estará sempre comigo .
244 Lev Tolstói

Por mais louca e estranha que parecesse esta ideia ao pai , acabou
por concordar.
- Leva-a, é claro - respondeu quando a filha lhe pediu licença de
levar a caleche . - Vai nela até Khodinka e manda-a para trás .
- Está bem , está bem .
Rina aproximou-se do pai . Este , pelo costume , benzeu-a; ela bei­
jou-lhe a mão grande e branca. Despediram-se .

Nessa noite , no apartamento que a conhecida Mária lak:ovlevna


alugava aos operários da fábrica de cigarros , também se conversava
sobre a festa do dia seguinte . Em casa de Emelian Iágodni , os seus
camaradas reuniram-se para combinar a que horas iam sair.
- Já não vale a pena ir para cama, senão não acordamos a tempo
- disse !acha, rapaz sempre bem-disposto que vivia atrás do tabique .
- Como assim? Pode-se dormir - respondeu Emelian . - Saí-
mos ao amanhecer. Os outros dizem o mesmo .
- Então , vamos dormir. Só que tu , Semiónitch , acorda-me , sim?
Emelian Semiónitch prometeu , tirou de uma gaveta da mesa linha
de seda, puxou para si o candeeiro e pôs-se a pregar um botão caído
no seu sobretudo de verão . Quando acabou , preparou a sua melhor
roupa, dispô-la no banco corrido , engraxou as botas , depois rezou ,
dizendo várias orações : «Padre Nosso» , «Mãe de Deus» . . . O senti­
do das orações escapava-lhe , o que , de resto , nunca lhe interessou .
A seguir tirou as botas e as calças e deitou-se no colchão comprimido
da sua cama rangente .
«Porque não? - pensou . - Às vezes as pessoas têm sorte . Talvez
me calhe um prémio .» (No povo corria o rumor de que , além das pren­
das , iam também distribuir bilhetes de lotaria na festa.) «Nem que não
sejam 1 0 mil , 500 rublos já me davam muito jeito . Poderia fazer muita
coisa: mandar algum aos velhos , fazer com que a mulher se despeça
do serviço - que vida é esta, separados? Comprava um bom relógio ,
peliças para mim e para ela. Senão , trabalho como um cavalo mas
nunca mais saio da pobreza.»
E começou a imaginar: ele e a mulher a passearem pelo Jardim
de Alexandre , e aquele mesmo polícia que , no ano passado , o levou
para a esquadra porque estava com os copos e praguej ava, já não era
polícia e sim o general , e esse general sorria-lhe e convidava-o para o
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 245

restaurante , para ouvir o órgão mecânico . O órgão toca e toca, como


se fosse um relógio . Então , Semiónitch acordou e ouviu que o relógio
estava a chiar e a tocar, e que a senhoria, Mária Iakovlevna, tossia por
trás da porta, e que na janela estava muito menos escuro do que na
véspera à noite .
Emelian levantou-se , foi descalço para trás do tabique , acordou
o Iacha, vestiu-se , untou o cabelo com óleo , penteou-o , olhou-se no
espelinho partido .
«Assim está bem, pronto . As raparigas gostam . Mas não vou fazer
asneiras . . . »
Foi ao quarto da senhoria. Tal como combinaram na véspera, pôs
num saquinho uma fatia de bolo , dois ovos , fiambre , meia-garrafa
de vodca; mal amanheceu , Emelian e lacha saíram e foram até ao
Parque de Pedro . Não eram só eles que para lá se dirigiam . Muita
gente , atrás e à frente deles , saindo de todos os lados , juntava-se ali ,
homens , mulheres e crianças , todos animados e ataviados , iam pelo
mesmo caminho .
Chegaram ao Campo de Khodinka. O povo estava espalhado por
todo o campo . E o fumo levantava-se aqui e acolá. A madrugada foi
fria, as pessoas arranjaram chamiços e achas , acenderam fogueiras .
Emelian encontrou os seus camaradas ; também acenderam uma
fogueira, sentaram-se , tiraram dos sacos vodca e petiscos . Então o
sol nasceu , limpo , brilhante . As gentes animaram-se . Cantam canti­
gas , tagarelam, dizem piadas , riem , contentes com tudo , à espera da
alegria. Emelian bebeu com os camaradas , acendeu o cigarro , ficou
ainda mais animado .
Toda a gente estava bem ataviada, mas os ricaços e os comercian­
tes com as mulheres e os filhos detacavam-se no meio dos operá­
rios e das suas mulheres . Assim se destacava também Rina Golítsina
quando , alegre , radiante com a consciência de ter conseguido o que
desejava, de festejar com o povo , no meio do povo , a ascensão ao
trono do czar adorado pelo povo , andava com o primo Álek entre as
fogueiras do campo .
- Boas-festas , linda menina - gritou-lhe um jovem operário fa­
bril , levando um copinho aos lábios . - Não recuses petiscar con­
nosco !
- Obrigada.
246 Lev Tolstói

- Comam . Bom proveito sugeriu-lhe Álek, exibindo o seu


bom conhecimento dos costumes do povo , e eles passaram ao lado .
Pelo seu hábito de ocupar sempre os primeiros lugares , os primos ,
ao atravessarem o campo onde já se notava algum aperto (havia tanta
gente que , apesar da manhã clara, um denso nevoeiro da respiração
humana pairava por cima do campo) , foram diretamente para o pavi­
lhão . Mas os polícias não os deixaram entrar.
- Ainda bem . Por favor, vamos outra vez para o campo - disse
Rina. E regressaram à multidão .

- Estás a mentir - respondeu Emelian, sentado com os camaradas


à volta dos petiscos postos numa folha de papel, ao ouvir o que um
operário fabril , seu conhecido , contava sobre as ofertas . - Mentira.
- Acredita. É contra a lei , mas oferecem . Vi com os meus pró­
prios olhos . Um homem levava uma trouxa e um copo .
- Já cá se sabia, os encarregados são uns malandros . Não querem
saber. Dão o que querem a quem quiserem.
- Mas como? Como é possível contra a lei?
- Pois bem, é possível .
- Vamos lá. Estamos a olhar para onde?
Levantaram-se . Emelian arrumou a garrafa com restos de vodca e
foi para a frente com os camaradas .
Não tinham dado sequer vinte passos quando o povo os comprimiu
de tal maneira que começou a ser difícil andar.
- Onde achas que vais?
- E tu onde vais?
- Achas que estás aqui sozinho?
- Deixa . . .
- Meu Deus , esmagaram-me ! - ouviu-se uma voz feminina. Um
grito de criança soou de outro lado .
- Vai para a puta que . . .
- Onde é que te metes? Achas que só tu é que queres ir para a
frente?
- Não vai restar nada para nós . Deixa-me chegar até eles . Diabos
malditos !
Era o Emelian quem gritava e , retesando os ombros potentes e
largos , e espetando para os lados os cotovelos , abria como podia o
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 247

caminho e atirava-se para a frente , sem saber bem para quê , só por­
que toda a gente o fazia, pelo que lhe parecia ser mesmo necessário .
Havia gente atrás e de ambos os lados dele , e todos o apertavam, mas
à frente as pessoas não se mexiam e não o deixavam passar. E todos
gritavam , gemiam, se queixavam .
Emelian calava-se e , cerrando os seus dentes fortes e carregando
o sobrolho , não desanimava nem enfraquecia, mas empurrava os da
frente e , embora lentamente , avançava.
De repente, tudo ondulou e , depois de um movimento regular, se
arremessou para a frente e para a direita. Emelian olhou e viu que
uma coisa, outra, uma terceira voaram e caíram no meio da multidão .
Não percebeu o que era, mas uma voz perto dele gritou:
- Diabos malditos , atiram-no ao povo !
Então , os gritos , os risos , os choros e os gemidos soaram onde vo­
avam os saquinhos com prendas . Alguém deu a Emelian , de lado , um
empurrão doloroso . Emelian ficou ainda mais sombrio e carrancudo .
Mas , sem ter tempo de cair em si depois desta dor, sentiu que lhe
pisaram o pé . O seu sobretudo, um sobretudo novinho , agarrou-se a
qualquer coisa e rasgou-se . Uma raiva subiu-lhe ao coração , e come­
çou a empurrar os da frente com toda a força.
Aconteceu qualquer coisa que ele não percebeu . Há pouco não via
à sua frente nada além das costas humanas , mas de repente abriu­
-se-lhe à vista tudo o que estava adiante . Emelian viu as tendas , as
tais onde se deviam distribuir as ofertas . Ficou contente , mas a sua
alegria durou só um instante porque percebeu de imediato que a
vista se abrira à sua frente só porque toda a multidão se aproximara
de uma vala e os da frente , alguns em pé , outros escorregando , caí­
ram para dentro dela e ele próprio estava a cair para lá, em cima das
pessoas , e as pessoas que vinham atrás caíam em cima dele . Pela
primeira vez , sentiu medo . Caiu . Uma mulher de lenço ornamenta­
do tombou em cima dele . Sacudiu-a, queria voltar, mas os de trás
pressjonavam , não havia maneira . Atirou-se para a frente , mas os
seus pés pisavam macio , corpos humanos . As pessoas agarravam-se
aos seus pés e gritavam . Emelian não via nem ouvia nada , avança­
va, pisando os outros .
- Amigos , dou-vos o relógio , um relógio de ouro ! Ajudai-me ,
amigos - gritava um homem perto dele .
248 Lev Tolstói

«Qual relógio» , pensou Emelian , e começou a trepar para o outro


lado da vala.
Na sua alma havia dois sentimentos , ambos torturantes: um era o
medo pela sua própria vida, outro era uma raiva contra toda aquela
gente enlouquecida que o comprimia. No entanto , continuava incen­
tivado pelo objetivo colocado desde o início: chegar às tendas e rece­
ber um saco com ofertas e um.bilhete de lotaria.
As tendas já estavam à vista. Via os encarregados , ouvia os gritos
daqueles que conseguiram chegar lá, ouvia-se também o rangido dos
passeios de tábuas onde a multidão da frente se apinhava.
Emelian fez mais um esforço , e faltavam-lhe não mais do que vin­
te passos quando , de súbito , ouviu debaixo dos pés , ou antes entre
os pés , um grito e um choro de criança. Emelian olhou para baixo .
Um miúdo sem chapéu , de camisa rasgada, estava deitado de costas
e, vociferando sem parar, agarrava-se aos seus pés . Qualquer coisa
apertou o coração de Emelian . O medo por si próprio desapareceu,
juntamente com a raiva. Teve pena do garoto . Inclinou-se , apanhou-o
pela cintura, mas foi empurrado por trás de tal maneira que por pouco
não caiu e largou o miúdo . Contudo , juntou todas as forças , voltou
a levantá-lo e pô-lo ao ombro . Os de trás já pressionavam menos , e
Emelian seguiu , carregando com o miúdo .
- Dá-mo - gritou um cocheiro que ia atrás de Emelian , pegou na
criança e levantou-a por cima da multidão .
- Vai por cima das cabeças .
E Emelian , olhando para trás , viu que o miúdo , ora mergulhando ,
ora emergindo , se afastava por cima dos ombros e das cabeças das
pessoas .
Emelian continuou em frente . Ficar parado era impossível , mas
agora as ofertas e as tendas já não o interessavam . Estava a pensar
no miúdo e onde teria desaparecido o lacha, e nas pessoas esmagadas
que vira quando atravessava a vala. Ao chegar a uma tenda, recebeu .
um saquinho e um copo , mas isto não lhe deu alegria, a não ser num
primeiro momento porque não havia aperto , era possível respirar e
mover-se . Mas , com o que viu ali , a pouca alegria foi-se: uma mulher
de vestido às riscas , roto , de cabelo ruço desgrenhado e botinas com
botões , jazia de costas ; as biqueiras das botinas espetavam-se para
cima, uma mão caiu sobre as ervas , outra, com os dedos apertados ,
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 249

estava abaixo dos peitos . A cara dela não estava branca, mas lívida,
uma cor que só os mortos podem ter. Foi a primeira vítima esmagada
até à morte e atirada para ali , para trás da cerca, em frente do pavilhão
do czar.
No momento em que Emelian a viu , dois guardas estavam ao lado
dela e um polícia dava uma ordem qualquer. Logo a seguir aparece­
ram os cossacos , o chefe deu-lhes uma ordem, os cossacos correram
contra Emelian e outras pessoas paradas aqui e empurraram-nas pa­
ra trás , para a multidão . Emelian voltou a ficar no aperto , um aper­
to ainda pior do que antes . De novo gritos , gemidos de mulheres e
crianças , de novo as pessoas a pisarem-se , a não poderem evitar de se
pisar. Mas Emelian já não tinha medo pela sua própria vida nem raiva
daqueles que o comprimiam , tinha só um desejo: sair dali , libertar-se ,
perceber o que de novo lhe surgiu na alma, fumar e beber um copo .
Desejou terrivelmente fumar e beber. E conseguiu - saiu para um
espaço livre , fumou um cigarro e bebeu vodca.

Outra coisa aconteceu a Álek e Rina. Sem preverem nada, passe­


aram pelo meio das pessoas sentadas em círculos , falando com mu­
lheres e crianças , quando de repente todo o povo se precipitou para
as tendas porque correu o rumor de que os encarregados distribuíam
ofertas , violando as regras .
Num abrir e fechar os olhos , Rina ficou separada de Álek, e a mul­
tidão arrastou-a consigo . O terror apoderou-se dela. Tentou manter-se
em silêncio , mas não conseguia e soltava gritos , implorando piedade .
Mas não havia piedade , comprimiam-na cada vez mais, rasgaram­
-lhe o vestido , o chapéu caiu . Não poderia afirmá-lo , mas parecia-lhe
que o relógio com o fio lhe fora arrancado . Era uma rapariga forte
e poderia ainda aguentar, mas o seu estado de terror era torturante ,
não conseguia respirar. Com a roupa rasgada e amarrotada, ainda se
mantinha em pé; mas , no momento em que os cossacos se atiraram à
multidão para a dispersar, Rina caiu no desespero, um desespero que
a fez perder as forças e desmaiar. Ao cair, perdeu os sentidos .

Quando voltou a si estava deitada de costas na relva. Um homem


com aspeto de operário , com barbicha e de sobretudo rasgado , es­
tava de cócoras ao pé dela e borrifava-lhe a cara com água . Rina
250 Lev Tolstói

abriu os olhos , e então o homem benzeu-se e cuspiu a água na terra.


Era Emelian .
- Onde estou? Quem é o senhor?
- Está no Khodinka. Quem sou? Sou um homem. Também levei
pela tabela. Mas gente como nós aguenta tudo - disse Emelian .
- Mas o que é isto? - e Rina apontou para os cobres em cima do
seu ventre.
- Isto , portanto , significa que o povo pensou que estava morta, pôs
uns dinheiros para o funeral . Mas eu olhei: não , está viva. Borrifei-a
com água.
Rina olhou-se e viu que tinha o vestido todo em farrapos e uma parte
do peito à mostra. Teve vergonha. O homem percebeu e cobriu-a.
- Não faz mal , rapariga, vais viver.
Outras pessoas aproximaram-se . Um polícia. Rina soergueu-se e
sentou-se , explicou quem era o seu pai e onde morava. Emelian foi
buscar um coche .
Já se juntara muita gente . Quando Emelian chegou num coche ,
Rina levantou-se . Queriam ajudá-la a subir, mas fê-lo sozinha. Tinha
vergonha do seu vestido rasgado .
- Mas onde está o seu mano? - perguntou uma das mulheres a
Rina.
- Não sei . Não sei - pronunciou Rina com desespero . (Quando
chegou a casa, Rina viria a saber que , quando começou o aperto ,
Álek conseguira sair da multidão e voltar a casa ileso.)
- Foi este senhor que me salvou - disse Rina. - Se não fosse
ele , nem sei o que seria de mim . Como se chama? - dirigiu-se a
Emelian .
- Eu? O nome para quê?
- Ela é princesa - sugeriu uma mulher a Emelian - , e que ri-
-i-ica !
- Venha comigo , a casa do meu pai . Vai dar-lhe uma gratificação .
Então , uma coisa tão forte que ele não trocaria nem pelo prémio de
200 mil , levantou-se na alma de Emelian .
- Nem pensar. Não , menina, vá com Deus . Gratificação para quê?
.- Não , não , não me vou sentir bem .
- Adeus , menina, vá com Deus. Só que deixe-me o meu sobre­
tudo .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 25 1

E fez um sorriso tão alvo , tão alegre que Rina não deixou de o re­
cordar como uma consolação nos momentos mais graves da sua vida.
E Emelian teve o mesmo sentimento de alegria, ou ainda maior,
um sentimento que o iria elevar acima desta vida quando recordava
Khodinka, essa menina e a sua última conversa com ela.
NOTAS

1 Armiak - uma espécie de cafetã de lã grossa.


2 Kvas - bebida não alcoólica feita pela fermentação do pão de centeio .
3 Kafisma - na prática do ofício divino bizantino , cada uma das vinte
partes do Livro dos Salmos .
4 Julia Pastrana ( 1 834- 1 860)
- uma senhora mexicana que sofria de hi-
pertricose; exibiram-na em muitas exposições da Europa.
5 Kalatch - pão de trigo em forma de cadeado .
6 Poddiovka -casaco masculino comprido , franzido na cintura.
7 Kíver - barrete militar alto com copa plana, feito de couro duro .
8 Kumis - bebida do leite de égua coalhado .
9 Vint - um dos jogos de cartas .
10 Szlachticz -fidalgo polaco .
1 1 Antónovka - uma variedade de maçãs muito divulgada na Rússia desde
tempos remotos . Estas maçãs são de cor verde-amarela, são ácidas e de
aroma especial e forte .
1 2 Kammerherr título da corte de grau superior.
-

1 3 Stárets - eremita que , nos mosteiros e eremitérios russos , tinha um


prestígio especial como guia espiritual dos monges e dos leigos .
1 4 Zipun - uma espécie de cafetã de fazenda grosseira, sem gola.
15 Botvínia - sopa fria à base de kvas com ramas de beterraba, cebola e
peixe cozidos .
1 6 A segunda divisão da Polónia - aconteceu em 1 793 quando a Prússia
anexou à Polónia um território de 5 8 mil km quadrados , e o Império
Russo, o território de 250 mil km quadrados , inclusivamente a Bielor­
rússia do Leste e a Ucrânia da margem direita do rio Dniepre .
1 7 Tadeusz Kosciuszko ( 1 746- 1 8 1 7)- personalidade política e militar
polaca. Lutador pela libertação e renascimento da Polónia. Liderou a
revolta em Cracóvia em 1 794 .
254 Notas

1 8 Stanislaw August Poniatowski ( 1 732- 1 798) - o último rei polaco . Em


1 757-62 , embaixador polaco-saxónico na Rússia . Foi eleito rei com
apoio de Catarina II e do rei Frederico II da Prússia.
19 Sejm - assim se chama o parlamento na Polónia e nalguns outros
países .
20 Constantino (Konstantin Pávlovitch , 1 779- 1 83 1 ) -:- grão-príncipe rus­
so , 2 .º filho do imperador Paulo 1. Desde o fim de 1 8 1 4 , governador­
-geral do Reino da Polónia.
2 1 O ataque ao Palácio de Belveder e a fuga de Constantino - durante
a revolta, em 1 7 de novembro de 1 830 , os conspiradores irromperam
no Palácio de Belveder, residência do governador-geral Constantino em
Varsóvia. Constantino conseguiu escapar.
22 Józef Chlopicki ( 1 772- 1 854) - tenente-general polaco , ditador durante
a revolta na Polónia em 1 830-3 1 .
23 Józef Dwernicki ( 1 779- 1 857) - general polaco , comandante do regi­
mento que fazia parte das tropas francesas durante as guerras napoleóni­
cas , participante da revolta polaca de 1 830- 1 83 1 .
24 Ivan Díbitch ( 1 785- 1 83 1 ) - conde , marechal-de-campo russo. Partici­
pou nas guerras napoleónicas . Em dezembro de 1 830 , era comandante­
-em-chefe das tropas russas que reprimiram a revolta polaca.
Ivan Paskévitch ( 1 782- 1 856) - príncipe russo , marechal-de-campo .
Participou na guerra russo-turca de 1 806- 1 2 , na Guerra Pátria de 1 8 1 2-
- 1 4 contra Napoleão . Dirigiu a repressão da revolta polaca de 1 830-3 1 e
foi nomeado governador do Reino da Polónia.
25 Pessoa que , na cerimónia do casamento , segura a coroa por cima da
cabeça do noivo ou da noiva, cumprindo também outras obrigações ce­
rimoniais .
26 Emelian Pugatchov ( 1 742- 1 775) - líder do motim de camponeses em
1 773-75 .
27 Khodinka - a catástrofe no Campo de Khodinka de Moscovo , no dia
da coroação de Nicolau II ( 1 8 de maio de 1 896) , em que , em resultado
da péssima organização do festejo e as ações não adequadas da polícia,
morreram esmagadas mais de 3 mil pessoas , impressionou e aterrorizou
Lev Tolstói . O conto , entretanto , foi escrito só no ano 1 9 1 0 .
ÜBRAS DO AUTOR NESTA EDITORA

A Sonata de Kreuzer
A Morte de Ivan lliitch
O Diabo e Outros Contos
Hadji-Murat
Cossacos - Novela do Cáucaso
Dois Hussardos • A Felicidade Familiar
Infância, Adolescência e Juventude
Anna Karénina
Guerra e Paz
Contos de Guerra
NESTA COLEÇÃO

1 . Johann W. Goethe: Fausto


2 . Choderlos de Lados: As Ligações Perigosas
3 . Jean-Jacques Rousseau: Confissões
4 . Herman Melville: Moby Dick
5 . Oscar Wilde: O Retrato do Sr. W. H.
6. Gustave Flaubert: Madame Bovary
7 . Stendhal: A Cartuxa de Parma
8 . S . Masoch: A Vénus de Kazabai"ka
9 . Edith Wharton: Ethan Frome
1 0 . Heinrich Heine: O Livro de Le Grand
1 1 . Rainer Maria Rilke: Ewald Tragy
1 2 . Oscar Wilde: O Retrato de Dorian Gray
1 3 . Montaigne: Ensaios (Antologia)
1 4 . W. B . Yeats: Onde Nada Existe
1 5 . Hermann Melville: As Ilhas Encantadas
1 6 . Hõlderlin: A Morte de Empédocles
1 7 . Oscar Wilde: De Profandis
1 8 . Emily Bronte: O Monte dos Vendavais
1 9 . Anton Tchékhov: Contos (Volume 1)
20 . Anton Tchékhov: Contos (Volume II)
2 1 . Anton Tchékhov: Contos (Volume III)
22 . Oscar Wilde: O Crime de Lorde Artur Savile e Outros Contos
23 . Giacomo Leopardi: Pequenas Obras Morais
24 . Benjamin Constant: Adolfo
25 . Marcel Proust: Do Lado de Swann (Vol . I de Em Busca do Tempo
Perdido)
26 . Marcel Proust: À Sombra das Raparigas em Flor (Vol . II de Em Busca
do Tempo Perdido)
27 . Marcel Proust: O Lado de Guermantes (Vol . III de Em Busca do Tempo
Perdido)
28 . Marcel Proust: Sodoma e Gomorra (Vol . IV de Em Busca do Tempo
Perdido)
29 . Marcel Proust: A Prisioneira (Vol . V de Em Busca do Tempo Perdido)
30. Marcel Proust: A Fugitiva (Vol . VI de Em Busca do Tempo Perdido)
3 1 . Marcel Proust: O Tempo Reencontrado (Vol . VII de Em Busca do Tem-
po Perdido)
32. Edith Wharton: verão
33. R . M . Rilke: As Anotações de Malte Laurids Brigge
34. Franz Kafka: O Desaparecido
35 . Anton Tchékhov: Contos (Volume IV)
3 6 . Ivan Búnin: O Amor de Mítia
37 . Anton Tchékhov: Novelas (Drama na Caça e O Duelo)
3 8 . Rainer Maria Rilke: A Balada da Vida e da Morte do Alferes Cristoph
Rilke e Outros Contos de Juventude
39. Miguel de Cervantes: D. Quixote de La Mancha
40 . Franz Kafka: A Metamorfose
4 1 . Franz Kafka: Contos
42 . Giovanni Boccaccio: Decameron (Vols . I e II)
43 . Charles Baudelaire: A Invenção da Modernidade (Sobre Arte, Literatu-
ra e Música)
44 . Franz Kafka: O Castelo
45 . Anton Tchékhov : Contos ( Volume V)
46 . Honoré de Balzac : A Rapariga dos Olhos de Ouro
47 . Anton Tchékhov: Contos ( Volume VI)
48 . Lev Tolstoi: Anna Karénina
49 . Gustave Flaubert: Salammbô
50 . Hugo von Hofmannsthal: Andreas
5 1 . Ivan Turguéniev: Pais e Filhos
52. Anton Tchékhov : Contos ( Volume VII)
5 3 . Willa Cather: Uma Mulher Perdida
54. Lev Tolstói: A Sonata de Kreutzer
55 . Honoré de Balzac: Pierrette seguido de O Padre de Tours
56. Mikhail Bulgákov: Margarita e o Mestre
5 7 . Lev Tolstói: A Morte de Ivan Iliitch
5 8 . Murasaki Shikibu: O Romance do Genji (Tomo 1)
5 9 . Ivan Turguénev: O Primeiro Amor
60 . Mikhail Lérmontov: O Herói do Nosso Tempo
6 1 . Murasaki Shikibu: O Romance do Genji (Tomo 2)
62 . Lev Tolstói : O Diabo e Outros Contos
63 . Gustave Flaubert: A Educação Sentimental
64. Machado de Assis: Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba
65 . Machado de Assis : Dom Casmurro e Esaú e Jacó
66 . Lev Tolstói: Hadji-Murat
67 . Fiódor Dostoievski: Crime e Castigo
6 8 . Fiódor Dostoievski: O Jogador
69 . Stendhal : Do Amor
70 . Lev Tolstói: Cossacos - Novela do Cáucaso
7 1 . Ivan Turguénev: Fumo
72. Ivan Turguénev: Cadernos de Um Caçador
73 . Lev Tolstói: Dois Hussardos e A Felicidade Familiar
74. Fiódor Dostoievski: Os Demónios
75 . Stendhal : O Vermelho e o Negro
76. Saltykov-Shchedrin: A Família Golovliov
77 . Ivan Turguénev: Águas da Primavera
7 8 . Ivan Turguéniev: Solo Virgem
79. Andrei Béli: Petersburgo
80 . Anton Tchékhov: O Duelo
8 1 . Charlotte Bronte: Jane Eyre - Uma Autobiografia
82. George Eliot: O Moinho à Beira do Floss
83 . Charles Dickens : David Copperfield
84. Guy de Maupassant: Bel-Ami
85 . George Eliot: Middlemarch
86. Joseph Conrad: Coração de Trevas e No Extremo Limite
87 . Guy de Maupassant: Mademoiselle Fifi e Contos da Galinhola
8 8 . Fiódor Dostoievski: Os Irmãos Karamázov
89. Lev Tolstói: Infância, Adolescência e Juventude
90 . Jane Austen: Orgulho e Preconceito
9 1 . Lev Tolstoi: Anna Karénina (Ed . brochada)
92 . Johann W. Goethe: Fausto (Ed . brochada)
93 . Lev Tolstoi: Guerra e Paz (Vols . 1 e II)
94 . Charles Dickens: História em Duas Cidades
95 . Anton Tchékhov: Contos ( Volume VIII)
96 . Anton Tchékhov: Contos ( Volume IX)
97 . Jane Austen: Lady Susan
98 . Franz Kafka: Diários - Diários de Viagem
99 . Jane Austen: Persuasão
1 00 . Fiódor Dostoievski: O Idiota
1 0 1 . Jane Austen: Sensibilidade e Bom Senso
102. Jane Austen : Mansfield Park
103 . Lev Tolstói: Contos de Guerra
1 04 . Franz Kafka: O Processo
105 . Ivan Chmeliov : O Sol dos Mortos
106. Nikolai Gogol : Contos de Petersburgo

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