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Precisa o Homem
e Outros Contos
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ADVERBUM
De Quanta Terra
Precisa o Homem
e Outros Contos
Tradução de
Nina Guerra e Filipe Guerra
Clássicos
ÍNDICE
Polikuchka 9
O Medidor-de-Linho 67
De Quanta Terra Precisa o Homem 105
O Cupão Falso 119
Aliocha, o Pote 183
Komei Vassíliev 189
As Bagas 207
Por Que Culpa? 219
Khodinka 243
Notas 253
POLIKUCHKA
forme o acordo mútuo . Esses ganhos , como diz o povo, são o s mais
fáceis , não precisam de aprendizagem nem trabalho , e quem os expe
rimente uma vez não quererá outra coisa. Só um particular é menos
bom nesses ganhos: embora tudo seja fácil e dê uma vida agradável ,
acontece às vezes um malogro por causa de gente maldosa, e então
pagamos por tudo de uma vez , e a vida torna-se negra.
Foi isto que aconteceu a Polikei . Casou-se , e Deus mandou-lhe
a felicidade: a mulher que lhe calhou , filha do vaqueiro , era saudá
vel , esperta, laboriosa; deu-lhe filhos , todos perfeitinhos . Polikei não
abandonava as suas negociatas , e as coisas andavam bem . De repen
te , teve azar, foi apanhado . Ainda por cima por causa de uma ninha
ria: roubou bridas a um mujique . Encontraram o produto do roubo ,
deram-lhe uma sova, informaram a senhora e começaram a vigiá-lo .
Foi apanhado pela segunda e pela terceira vez . O povo cobriu-o de
vergonha, o administrador ameaçou-o com o recrutamento , a senhora
fez-lhe uma admoestação , a mulher começou a chorar, a amargurar
-se; ficou tudo virado do avesso . Polikei não era má pessoa, apenas
era fraco e amigo de beber, e de tal modo se habituou à bebedeira que
não conseguia parar. Às vezes volta a casa borracho , a mulher ralha
com ele , até lhe bate , e ele chora: «Ai de mim, desgraçado - diz ele
- , o que vou fazer? Diabos me levem se não acabo com isto .» Mas
passado um mês volta a sair de casa, embebeda-se , anda dois dias
perdido . «Portanto, nalgum lado ele arranja dinheiro para as pânde
gas» , comentava o povo . O último caso de Polikei foi o do relógio
do escritório . Havia ali um velho relógio de parede, há muito para
do . Aconteceu-lhe entrar sozinho no escritório aberto; não resistiu à
tentação , levou o relógio e vendeu-o na cidade . Nem de propósito , o
lojista a quem o vendeu era compadre de uma serva doméstica, foi
a uma festa da aldeia e contou do relógio . Começaram a averiguar,
como se alguém precisasse disso . Sobretudo o administrador, que
não gostava de Polikei . E descobriram tudo . Informaram a senhora.
A senhora chamou Polikei . Este rojou-se aos seus pés e confessou
tudo com sentimento , de modo comovedor, tal como a mulher lhe en
sinara. Saiu-se muito bem . A senhora chamou-o à razão , falou muito ,
lamentou muito , falou-lhe de Deus , da virtude , da vida futura, da
mulher e dos filhos , e levou-o às lágrimas . A senhora disse:
- Perdoo-te , mas promete que nunca mais fazes essas coisas .
16 Lev Tolstói
debaixo do chapéu , como se não tivesse nada que ver com o assunto .
Pois , mas era precisamente a ele que os gaviões pretendiam apanhar.
- O meu avô também era soldado - disse Rezun - , mas não me
recuso . Não há nenhuma lei dessas . No último recrutamento levaram
o Mikhéitchev, embora o seu tio ainda não tivesse voltado da tropa.
- Nem o teu pai nem o teu avô serviram o czar - dizia-lhe ao
mesmo tempo Dutlov - , e tu próprio não serviste os senhores nem a
comunidade, só andaste por aí na bebedeira, e os teus filhos separaram
-se de ti . É impossível viver contigo , mas julgas as outras pessoas ,
apontas o dedo para elas , mas eu durante dez anos servi de guarda jun
to à polícia, fui regedor eleito , perdi duas vezes a casa nos incêndios ,
e ninguém me ajudou; então, se e m minha casa é tudo paz e seriedade,
devo ser arruinado? Nesse caso, devolvam-me o meu irmão . Se calhar,
morreu lá na tropa. Julgai pela verdade, boa gente cristã, pela verdade
de Deus , e não pelo que mente um bêbedo .
Então , Guerássim replicou a Dutlov:
- Falas do teu irmão , mas não foi mandado por decisão da co
munidade , foram os senhores que o mandaram por ser desordeiro;
portantos , ele não serve de razão para ti .
Guerássim ainda não acabara de falar e já o amarelado e esgrou
viado Fiódor Mélnitchni dizia, dando um passo em frente:
- Pois é, os senhores mandam quem quiserem , e depois a comu
nidade tem de resolver as coisas . A comunidade resolveu que ia o teu
filho , mas se tu não queres , vai pedir à senhora, se calhar manda-me a
mim, que sou viúvo , sozinho com os filhos . Olha que lei - disse ele
biliosamente . E, abanando a mão , voltou para o seu lugar.
O ruivo Roman , a quem levavam o filho para a tropa, levantou a
cabeça e disse: - É assim mesmo ! - e até se sentou no degrau , por
desgosto .
Mas havia ainda mais vozes que falavam simultaneamente . Além
dos mujiques que , nas últimas filas , falavam da sua própria vida, os
linguareiros também não esqueciam as suas funções .
- Está certo , gente cristã - disse o pequeno Jidkov, repetindo as
palavras de Dutlov - , é preciso julgar pela lei cristã. É assim , por
tantos , é preciso julgar, meus amigos .
- É preciso julgar com consciência limpa, meu caro amigo -
disse o bondoso Khrapkov, repetindo as palavras de Kopilov e pu-
26 Lev Tolstói
xando Dutlov pela peliça. - Foi a vontade dos senhores , e não uma
decisão da comunidade .
- Está certo ! É assim mesmo ! - diziam os outros .
- Quem é o bêbedo que mente? - retorquiu Rezun . - Foste tu
que me ofereceste de beber, ou o teu filho que não vale um pataco ,
que me vai censurar pelo vinho? Então , amigos , teinos de tomar uma
decisão . Se quiserem isentar o Dutlov, escolham não só os duplos ,
mas os viúvos , e ele vai gozar connosco .
- É o Dutlov, e pronto ! Acabou a conversa !
- J á c á s e sabia! Os triplos é que vão primeiro - ouviram-se
vozes .
- Ainda vamos ver o que manda a senhora. Egor Mikháilovitch
disse que queria recrutar um servo doméstico - disse alguém.
Esta observação refreou um pouco a discussão , mas esta não tar
dou a reacender-se e a tomar um caráter pessoal .
Ignat, de quem Rezun disse que não valia uma pataca, começou a
acusá-lo de ter roubado uma serra aos carpinteiros viajantes e de ter
batido , bêbedo , na sua mulher quase até à morte .
Rezun respondeu que batia na mulher sempre , bêbedo e sóbrio ,
e achava ainda pouco , com o que fez rir toda a gente . Mas quanto
à serra, de chofre se ressentiu e avançou contra Ignat, perguntando:
- O quê , quem é que roubou?
- Tu roubaste - respondeu destemidamente o grandalhão Ignat,
avançando também contra o adversário .
- Quem é que roubou? Se calhar tu próprio , não? - gritou Rezun .
- Não , tu ! - gritou Ignat.
Depois da serra veio à baila um cavalo roubado , uns sacos de aveia,
uma qualquer courela de horta no local do antigo incêndio , um corpo
morto qualquer. E ambos os mujiques disseram um rol de coisas tão
terríveis que , se uma centésima parte das suas acusações fosse verda
de , ambos deviam ser, pela lei , mandados para os trabalhos forçados
na Sibéria, ou , pelo menos , deportados .
O velho Dutlov, entretanto , escolheu outro género de defesa. Não
gostou dos gritos do filho; tentando calá-lo , dizia: «Deixa-te disso, é
pecado ! Ouviste?» E argumentou que os triplos não eram só as fa
mílias com três filhos juntos , mas também aquelas que se separaram.
E apontou igualmente para Stárostin.
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 27
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12
13
figura que , ao que lhe pareceu , era mais alta do que o anexo; a rapa
riga guinchou; ela guinchou e correu para trás tão rapidamente que a
saia se atrasava a voar atrás dela. Ficou de um salto no umbral , saltou
para o quarto das criadas e , vociferando , atirou-se para cima da cama.
Duniacha, a tia e a outra criada ficaram hirtas de medo e , antes de
caírem em si , ouviram os passos pesados e vagarosos no átrio e atrás
da porta. Duniacha correu para o quarto da senhora e deixou cair o
emplastro; a segunda criada escondeu-se atrás das saias penduradas
na parede; a tia, mais resoluta, quis primeiro segurar a porta, mas a
porta abriu-se , deixando passar um mujique . Era Dutlov com os seus
«barcos» nos pés . Sem prestar atenção às raparigas assustadas , pro
curou com os olhos os ícones , não reparou numa pequena imagem no
canto esquerdo , benzeu-se em frente de um pequeno aparador com
chávenas , colocou o gorro no peitoril da janela e, enfiando bem fundo
uma mão no peito , como se quisesse coçar o sovaco , tirou de lá uma
carta com cinco selos pardos com âncoras gravadas . A tia de Dunia
cha apertou a mão ao peito . . . Pronunciou a custo:
- Pregaste-me um susto , Naúmitch ! Mal consigo dizer uma pa . . .
lavra. Pensava que era o meu fim.
- Como se pode fazer assim? - disse a segunda rapariga,
assomando-se de trás das saias .
- Assustou também a senhora - disse Duniacha, saindo da porta:
- porque é que entras na parte das raparigas sem pedires licença? É s
mesmo labrego !
Dutlov, sem pedir desculpa, repetiu que precisava de ver a senhora.
- Está adoentada - disse Duniacha.
Neste momento , Aksiutka soltou uma risada tão inconveniente
mente alta que foi obrigada a esconder outra vez a cara nas almofadas ;
e depois , durante uma hora inteira, apesar das ameaças de Duniacha e
da sua tia, não a levantava sem voltar a rir-se , como se alguma coisa
estivesse a rebentar no seu peito rosado e nas bochechas vermelhas .
Ria tanto que as outras se assustaram - e ela voltava a esconder a
cara e , como que em convulsões , arrastava pelo chão o sapato , e todo
o seu corpo saltitava.
Dutlov parou , olhou com atenção para ela, como que para perceber
o que a rapariga tinha, mas , como não percebeu , virou-lhe a cara e
continuou:
50 Lev Tolstói
14
15
Capítulo 1
pele malhada, que , sozinho num canto sob o alpendre , com os olhos
semicerrados , lambia um pilar de carvalho . É desconhecido qual o
sabor que o cavalo malhado achava nisso , mas a sua expressão era
séria e pensativa.
- Quieto ! - dirigiu-se o guardador ao malhado , no mesmo tom ,
aproximando-se dele e colocando sobre o estrume a sela e o suadouro
ensebado .
O cavalo malhado parou de lamber e , sem se mexer, dirigiu a Nés
ter um olhar longo . Não se riu nem se zangou , nem ficou carrancudo ,
apenas a sua barriga se mexeu , ele suspirou penosamente e virou-se
do homem . Este abraçou-lhe o pescoço e pôs-lhe o freio .
- Porque suspiras? - disse .
O cavalo abanou o rabo , como que a dizer: «não é nada, NésteD> .
Néster cobriu-o com o suadouro, pôs a sela, e nisso o cavalo apertou as
orelhas , exprimindo , pelos vistos , o seu desgosto , mas o homem cha
mou-lhe «canalha» e começou a apertar a barrigueira. O cavalo inchou
a barrig a, mas meteram-lhe um dedo na boca e deram-lhe uma joelhada
na barriga, pelo que teve de soltar o ar. Apesar disto , quando o homem
começou a apertar com os dentes a barrigueira de cima, o cavalo voltou
a colar as orelhas à cabeça e até olhou para trás . Embora soubesse que
seria inútil , achou necessário exprimir o seu desagrado e que o ia ma
nifestar sempre. Quando foi selado , afastou a pata direita intumescida e
começou a mascar o freio, também por quaisquer considerações espe
ciais , já que estava farto de saber que o freio era insípido .
Néster meteu o pé no estribo curto , montou o malhado , desenrolou
o chicote , tirou de baixo do joelho a aba do cafetã, tomou na sela
uma posição especial , a do cocheiro , a do caçador, a do guardador
de cavalos , e puxou a rédea. O cavalo levantou a cabeça, mostrou-se
pronto a ir onde o mandassem , mas não começou a andar. Sabia que
antes de partir ainda iam gritar muito na sela, dando ordens a Vaska,
outro guardador, e aos cavalos . De facto , Néster começou a gritar:
«Vaska ! Eh , Vaska ! Deixaste sair as éguas? Onde achas que vais , seu
diabo? Xó ! Estás a dormir ou quê? Abre , que as éguas saiam primei
ro» e assim por diante .
O portão rangeu , o estremunhado e zangado Vaska, junto ao pos
te, segurando um cavalo pela rédea, deixou sair as éguas . Umas atrás
das outras , pisando com cuidado a palha e cheirando-a, começ aram a
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 69
Capítulo 2
e quase nua. Na garupa parda, junto ao rabo , havia uma ferida, co
berta de pelo branco , do tamanho de uma palma de mão, semelhante
a uma mordedura, e outra ferida cicatrizada era visível na omoplata
dianteira. Os joelhos traseiros e o rabo estavam imundos por causa da
diarreia permanente . Por todo o corpo , o pelo , embora curto , eriçava
-se . No entanto , apesar da velhice abominável deste cavalo , quem o
visse ficava involuntariamente pensativo , e um conhecedor diria de
imediato que , no seu tempo , fora um excelente cavalo .
Um conhecedor diria até que , na Rússia, existia só uma raça que
podia gerar estes ossos largos , estes fémures enormes , estes cascos ,
esta finura dos ossos das patas , esta postura do pescoço , mas sobretu
do este crânio , este olho , grande , negro e límpido , e estes nós nobres
de tendões junto à cabeça e ao pescoço , e esta finura de pele e pelos .
De facto , havia qualquer coisa majestosa na figura deste cavalo , asso
ciada a uma assustadora combinação de sinais repugnantes de decre
pitude , intensificada pelas manchas da pelugem, e das maneiras , da
expressão de altivez e da consciência calma de beleza e força.
Como uma ruína viva, estava ele , sozinho , no meio do prado or
valhado , e o bater dos cascos , os bufos , os relinchos e os guinchos
jovens da manada ouviam-se não longe dele .
Capítulo 3
Capítulo 4
Ele estava velho , elas eram jovens , ele estava magro , elas fartas , ele
andava entediado , elas animadas . Portanto , ele era estranho , alheio ,
uma criatura diferente, era impossível ter pena dele . Os cavalos só
têm pena de si próprios e , por vezes , daqueles .com quem se identi
ficam facilmente . Que culpa tinha o cavalo malhado de estar velho ,
magro e feio? . . . Aparentemente, nenhuma. Mas do ponto de vista dos
cavalos , tinha culpa, e só os outros , fortes , jovens e felizes , tendo toda
a vida pela frente , com cada músculo a tremer de esforço inútil e o
rabo a espetar-se para cima, tinham sempre razão . Se calhar, o próprio
malhado percebia isso e , nos momentos tranquilos , concordava com
a culpa de já ter vivido a sua vida, com a necessidade de pagar por
essa vida; contudo , não deixava de ser cavalo e, muitas vezes , não
continha o ressentimento , a tristeza e a indignação , olhando para toda
essa juventude que o punia pela mesma coisa a que estaria igualmente
sujeita no fim da vida. Outra causa da implacabilidade dos cavalos era
76 Lev Tolstói
carroça com um cavalo junto à sua porta. Meteu com tanta pressa a
manada no curral que deixou o malhado dentro sem lhe tirar a sela;
gritou ao Vaska que o fizesse por ele , trancou o portão e foi ter com os
compadres . Fosse em consequência da ofensa infligida à égua careca,
bisneta do Natas , pelo «enxurro coberto de crosta» , comprado na fei
ra de cavalos e que não conhecia os seus pais - ofensa, portanto do
sentimento aristocrático de toda a estrebaria; ou fosse porque o cava
lo malhado com sela alta mas sem cavaleiro apresentava um espetá
culo estranho , fantástico para outros cavalos - o certo foi que nessa
noite aconteceu uma coisa extraordinária no curral . Todas as éguas ,
jovens e velhas , perseguiam o malhado com os dentes arreganhados ,
correndo atrás dele pelo curral , ouvindo-se o s golpes de cascos nos
seus flancos magros e gemidos graves . O malhado já era incapaz de
suportar aquilo , incapaz de se esquivar dos golpes . Parou no meio
do curral , numa repugnável sanha de velhice impotente , substituída
depois por um desespero estampado na expressão da cara; apertou as
orelhas e fez qualquer coisa que obrigou , de repente , todas as éguas
a ficarem quietas . A égua mais velha, Viazopúrikha , aproximou-se
dele , cheirou-o e suspirou . O malhado também suspirou .
Capítulo 5
Primeira Noite
- Sim, sou filho do Amável I e da Mulher. Pelo meu pedigree, o
meu nome é o Mujique /, mas entre o povo sou conhecido como
o Medidor-de-Linho , apelidado assim por causa do meu passo largo
e espaçado , não existindo nenhum que se comparasse com ele em
toda a Rússia. Pela linhagem , não há no mundo cavalo de mais pura
raça do que eu . Nunca vo-lo teria dito . Para quê? Não seríeis capazes
78 Lev Tolstói
Capítulo 6
Segunda Noite
Quando os cavalos foram postos no curral , voltaram a juntar-se à
volta do malhado .
- Em agosto , fui separado da minha mãe - continuou o malhado
- , mas não fiquei muito aflito . Vi que ela já estava prenhe do meu
irmão , o famoso Bigodes , e eu próprio já não era o mesmo . Não tinha
ciúmes , tomava-me cada vez mais frio em relação a ela. Além dis
so, sabia que , privado da mãe , seria transferido para a estrebaria dos
potros , onde vivíamos dois ou três juntos na baía - e todos os dias
a nossa chusma jovem saía para o ar livre . Partilhava a minha baía
com o potro Querido . O Querido era cavalo de sela, mais tarde o im
perador iria andar nele , e apareceriam os seus retratos nos quadros e
nas esculturas . Naquela altura era ainda um simples potro pequenino ,
com pelo temo e lustroso , pescoço de cisne e patas esbeltas e finas
como cordas . Era alegre , benévolo e amável , sempre pronto a brincar,
a lamber e a pregar partidas a um cavalo ou a um homem. Vivendo
juntos , tomámo-nos amigos , e esta amizade continuou durante toda
a nossa juventude . O Querido era animado e leviano . Já começava
a namoriscar com as jovens éguas e ria-se da minha inocência. Para
minha desgraça, o meu amor-próprio levou-me a imitá-lo e , muito
rapidamente , ganhei gosto pelos namoros . Esta inclinação precoce
foi causa de uma grande mudança do meu destino . Apaixonei-me .
A Viazopúrikha era um ano mais velha do que eu , éramos gran
des amigos; mas no fim do outono reparei em que ela começou a
evitar-me . . . Bem, não vou contar toda a desgraçada história do meu
82 Lev Tolstói
primeiro amor, ela lembra-se da minha paixão louca cujo final foi a
mais importante mudança do meu destino . Os guardadores de cava
los começaram a enxotá-la de mim e a bater-me . À noite meteram
-me numa baia solitária; relinchei toda a noite como que pressentindo
o acontecimento do dia seguinte .
O general , o chefe da estrebaria e os guardadores vieram de ma
nhã, e no corredor levantou-se uma gritaria terrível . O general ralha
va com o chefe , o chefe justificava-se , dizendo que tinha proibido
que eu andasse fora, que os guardadores o fizeram sem autorização .
O general disse que ia dar uma boa açoitada a toda a gente , que não
se podiam manter aqui potros desses . O chefe prometeu cumprir as
ordens . A conversa acabou , foram-se embora. Não compreendi nada,
mas senti que estavam a planear qualquer coisa ligada comigo .
Capítulo 7
Terceira Noite
A lua era nova, e o crescente estreitinho alumiava a figura do Me
didor-de-Linho no centro do curral . Os cavalos apertavam-se à sua
volta.
- A principal consequência, para mim , de não ser propriedade
do conde , nem de Deus , mas do chefe da estrebaria - continuou
o malhado - foi o facto de a capacidade de correr velozmente , o
nosso maior mérito , se tomar o motivo da minha expulsão . Estavam
a adestrar na pista o Cisne , e o chefe da estrebaria, vindo comigo
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 87
Capítulo 8
Quarta Noite
À noite , quando o portão foi trancado e tudo se silenciou , o malha
do continuou a contar:
- Enquanto passava de umas mãos para outras , observei muito as
pessoas e os cavalos . Os períodos mais longos passei-os nas mãos de
dois donos: do príncipe , oficial hussardo , e depois de uma velha que
vivia perto da igreja de S . Nicolau Aparecido .
Com o oficial hussardo passei o melhor tempo da minha vida.
Embora fosse a causa da minha perdição , embora não amasse na
da e ninguém , eu gostava dele e gosto dele precisamente por isso .
Agradava-me que fosse bonito , feliz , rico e , por isso , não amasse
ninguém . Os meus amigos compreendem este nosso sentimento su
blime , o de cavalos . A sua frieza, a sua crueldade , a minha depen
dência dele comunicavam ao meu amor por ele uma força especial .
Mata-me , esfalfa-me , pensei por vezes nos nossos bons tempos , e
serei ainda mais feliz com isso .
O oficial comprou-me ao revendedor a quem o chefe da estrebaria
me vendera por 800 rublos . Comprou-me porque ninguém tinha cava
los malhados . Foi o melhor tempo da minha vida. O oficial tinha uma
amante . Eu sabia-o porque todos os dias o levava à casa dela e a levava
também, e às vezes os levava juntos . A sua amante era uma beldade , e
o oficial era um bonitão , e o seu cocheiro era bonito . E gostava deles
todos por causa disso . E vivia bem. A minha vida decorria de modo
seguinte: de manhã, o cavalariço vinha para me limpar, precisamente
o cavalariço , e não o cocheiro . O cavalariço era jovem, dos mujiques .
Abria a porta, deixava sair o ar que cheirava a cavalos , retirava o es
trume , despia as gualdrapas e começava a escovar o meu corpo e, com
a almofaça, a deitar umas filas de caspa esbranquiçada no chão bati
do com bicos de ferraduras . Eu mordia, por brincadeira, a sua manga,
batia no chão com o casco . Depois , um atrás do outro , fomos levados
à tina com água fria, e o rapaz olhava com admiração para as minhas
malhas , lisas graças ao seu trabalho , para as patas retas como flechas ,
com os cascos largos, para a garupa e as costas lustrosas , limpas como
a roupa da cama. Punham feno atrás das grades altas , enchiam de aveia
a manjedoura de carvalho . Vinha o Feofan , chefe dos cocheiros .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 89
Quinta Noite
O tempo começou a mudar. O céu estava nublado , de manhã não
havia orvalho , mas o ar era tépido , e as melgas picavam muito . Mal
a manada foi trazida para casa, os cavalos juntaram-se à volta do
malhado , e ele contou o final da sua história.
- A minha vida feliz não durou muito . Vivi assim apenas dois anos .
No fim do segundo inverno , houve o mais feliz acontecimento e a se
guir a maior desgraça da minha vida. Foi no Entrudo , levei o príncipe
para as corridas . O Cetim e o Novilho participavam nestas corridas .
Não sei o que o príncipe fez no pavilhão , sei apenas que mandou Feo
fan entrar na pista. Lembro-me que fui levado para a pista, fui posto no
ponto de partida, e o Cetim também. O Cetim ia acompanhado por um
assistente; eu , simplesmente, atrelado ao trenó de passeio . Na viragem,
ultrapassei-o; fui premiado por risos e rugidos de admiração .
Quando me passearam, uma multidão ia atrás de mim. Não menos
do que cinco pessoas ofereciam ao príncipe milhares de rublos por
mim. Mas ele apenas se ria, mostrando os seus dentes brancos .
- Não - respondia - , não é um cavalo , é um amigo , nem que
me oferecessem montes de ouro por ele , não aceitava. Adeus, meus
senhores - e , depois de abrir o avental , sentou-se no trenó .
- Para a Stójinka - disse . Ou seja, para casa da sua amante . E
corremos . Foi o nosso último dia feliz .
Chegámos a casa dela . O príncipe chamava-lhe «minha» . Mas ela
apaixonou-se por outro e foi-se embora com ele . O príncipe ficou a
sabê-lo quando chegámos . Eram cinco da tarde , não me desatrela
ram, fomos atrás dela. E aconteceu o que nunca antes acontecera:
chicoteavam-me e mandavam-me a galope . Pela primeira vez na
vida tropecei , tive vergonha e quis acertar o passo , mas de repente
ouvi o príncipe a gritar com uma voz alterada: «Rápido ! » . O chi
cote assobiou , a dor era cortante , e galopei , batendo com a pata no
92 Lev Tolstói
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 1 1
Capítulo 1 2
Este , como que irado , rosnou , puxou a carne para baixo da sua barri
ga e começou a devorá-la. Do mesmo modo , a loba escarrou bocados
de carne para o segundo , o terceiro , para todos , e depois deitou-se em
frente deles , descansando .
Passada uma semana, só o crânio grande e dois fémures estavam
na terra junto ao barracão de tijolo , o resto desaparecera. No verão ,
o mujique que apanhava os ossos , levou-os também e aproveitou-os .
A irmã mais velha veio à aldeia de visita à mais nova. A mais velha,
na cidade , estava casada com um comerciante , a mais nova com um
mujique . As irmãs tomam chá, conversam. A mais velha começou a
ufanar-se , a gabar a sua vida na cidade: que vive numa casa limpa e
espaçosa, que veste bem os filhos , que come e bebe deliciosamente ,
que vai aos passeios de coche , às festas urbanas e aos teatros .
A irmã mais nova ressentiu-se e pôs-se a denegrir a vida dos co
merciantes e a engrandecer a sua própria, camponesa.
- Nunca trocava - diz ela - a minha vida pela tua. Embora
vivamos humildemente , não conhecemos o medo . Viveis com mais
conforto , só que , ou ganhais muito com a venda, ou perdeis tudo . Até
há um provérbio: o lucro e o prejuízo são irmãos . Acontece também:
hoje o homem está rico , mas amanhã anda a pedir esmola. A nossa
vida camponesa é mais segura: a barriga do mujique é magra, mas
longeva, não seremos ricos , mas sempre teremos o nosso pão .
Então , a irmã mais velha responde:
- Olha que fartura: com porcos e vitelos ! Nem casa arranjada,
nem trato delicado ! Por mais que o teu homem labute , viveis no es
trume e morrereis no estrume, e os vossos filhos também.
- Nada a fazer - diz a mais nova - , é assim o nosso destino .
Mas vivemos em segurança, não pedimos favores a ninguém, não
temos medo de ninguém. Agora vós , na cidade , viveis no meio de
tentações; hoje estais bem , mas amanhã tenta-vos o Diabo e seduz o
106 Lev Tolstói
teu homem ou com o jogo , ou com o vinho , ou com uma moça. E vai
tudo pelo cano . Achas que não há disso?
Pakhom , marido da mais nova, no catre do fogão , estava a ouvir a
tagarelice das mulheres .
- É a verdade verdadeira - diz ele . - A nossa gente do campo ,
como anda desde criança a arar a terra nossa mãezinha, não tem tem
po de meter asneiras na cabeça. O único mal é que temos pouca terra !
Se tivesse terra à vontade , nem o Diabo me metia medo !
As mulheres tomaram chá, falaram ainda sobre vestidos , arru ma
ram a loiça, foram dormir.
Ora, o Diabo estava atrás do fogão e ouviu tudo . Ficou contente
por a mulher do mujique levar o marido a gabar-se: que , se tivesse
terra, o próprio Diabo não poderia com ele .
«Espera - pensou - , vamos à luta, tu e eu . Dou-te muita terra. E
dou cabo de ti com a terra.»
Não longe dos mujiques , vivia uma senhora não muito rica. Tinha
480 jeiras de terra. Dantes vivia em paz com os mujiques - não lhes
fazia mal . Mas contratou um soldado na reserva como administra
dor, e este começou a incomodar os mujiques com multas . Por mais
cuidado que Pakhom tivesse, ora o seu cavalo entrava no campo de
aveia, ora a vaca penetrava no jardim , ora os vitelos fugiam para os
prados - e levava multas por tudo .
Pakhom paga e ralha com os seus , bate neles . Pecou muito durante
o verão por causa desse administrador. Ficou contente quando che
gou a altura de manter o gado em casa - gasta-se muita forragem,
mas pelo menos não há o medo das multas .
No inverno , correu o rumor de que a senhora vendia a terra e que
um estalajadeiro da estrada ia comprá-la. Os mujiques , quando tal
souberam , assustaram-se . «Se a terra calhar ao estalajadeiro - pen
saram - , vai arruinar-nos , ainda vai ser pior do que a senhora com
as multas . Não podemos viver sem esta terra, toda a nossa vida está
ligada a ela.» Os mujiques foram , todos juntos , falar com a senhora,
pediram que não vendesse a terra ao estalajadeiro , que a cedesse a
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 107
bem, mas nada feito: ora os pastores continuavam a deixar que as va
cas entrassem nos prados , ora os cavalos, durante os pastos noturnos ,
lhe pisavam o s cereais . Pakhom enxotava-os , perdoava o desleixo,
não apresentava queixa; depois ficou farto , começou a queixar-se à
administração local . Sabia que não era por mal , que era pelo muito
aperto em que viviam que os mujiques prevaricavam. Mas pensava:
«Não se pode admitir semelhante abuso , assim estragam-me tudo .
Tenho de lhes dar uma lição .»
Deu-lhes assim uma lição , com o tribunal , depois mais uma lição ,
foi multado um mujique , depois outro . Os vizinhos ganharam rancor
a Pakhom; por vezes , prejudicavam-lhe a propriedade propositada
mente . Uma ocasião , alguém foi ao bosque de Pakhom e cortou uma
dezena de tílias para tirar a entrecasca. Pakhom, de passagem pela
floresta, viu qualquer coisa branca no chão . Aproximou-se: troncos
descascados pelo chão fora e cepos . Poderia, pelo menos , cortar as
extremidades , deixando a tília no centro , mas não: o malandro cortou
tudo . Pakhom enraiveceu-se: «Se descubro quem fez isto , trato-lhe
da saúde .» Pensou , pensou: quem podia ser? «Foi o Semion , não po
dia ser mais ninguém.» Foi a casa dele , procurou lá por todo o lado ,
não encontrou nada, só se zangaram. Então , Pakhom convenceu-se
ainda mais de que tinha sido o Semion . Apresentou queixa contra
ele . Chamaram-nos ao tribunal . Julgaram, julgaram - e ilibaram o
mujique porque não havia provas . Pakhom ressentiu-se ainda mais ,
zangou-se com o responsável eleito e com os juízes . «Vós - disse
ele - apoiais os ladrões . Se vós próprios vivêsseis honestamente , não
ilibáveis os ladrões .» Portanto, zangou-se tanto com os juízes como
com os vizinhos . Começaram a ameaçá-lo que lhe queimavam a casa.
Pois é, ele tinha muito espaço na terra e muito aperto na comunidade.
Na altura correu o rumor de que as pessoas mudavam para novas
terras . Pakhom pensou: «Não tenho razão para abandonar a minha
terra, mas se alguns dos nossos fossem, sobraria aqui mais espaço .
Tomaria conta da terra deles , podia juntá-la à minha; a vida seria
melhor com menos aperto .»
Um dia estava o Pakhom em casa e, nisto, um mujique viandante
bateu-lhe à porta. Deram-lhe pernoita, serviram-no à mesa, conversa
ram: donde vinha? O mujique disse que vinha de baixo , de além do
Volga, que trabalhara ali . Palavra puxa palavra, e o mujique contou
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 09
faço , com certeza, dez léguas . Agora cada dia é comprido como um
ano; e dez léguas são muita terra. Os piores bocados vou vendê-los ,
ou arrendá-los aos mujiques , e fico com a melhor terra para mim .
Arranjo arados para os bois , recruto dois assalariados ; vou lavrar du
zentas jeiras e o resto é para pasto do gado .»
Pakhom não dormiu toda a noite , só antes do amanhecer pegou no
sono . E teve um sonho: que estava deitado nesta mesma carroça e
ouvia que lá fora alguém se ria às gargalhadas; e que ele se levantava
para ver quem assim ria tanto , fosse quem fosse , saía e via aquele
chefe bachquire sentado em frente da carroça, agarrado à barriga a rir
como um perdido . Pakhom, no sonho , ia ter com ele e perguntava-lhe
porque se ria tanto . E via de repente que não era o chefe bachquire ,
mas aquele comerciante que lhe contara sobre a terra. Pakhom per
guntou ao comerciante: «Há muito que estás aqui?» , mas já não era
o comerciante , era aquele mujique que passara pela sua velha casa
vindo de baixo . E via que também não era o mujique , mas o próprio
Diabo , com cornos e cascos, ali sentado a rir e , em frente dele , um
homem descalço , de camisa e calças·, deitado no chão . Pakhom olhou
melhor: que homem é este? E viu que o homem estava morto e que
era . . . ele próprio . Pakhom aterrorizou-se e acordou . Acordou e pen
sou: «Que diabo de coisas não nos aparecem nos sonhos ! » Olhou em
volta e viu pela abertura que já clareava, já amanhecia. « É preciso
- pensou - ir acordar o povo , está na hora.» Pakhom levantou-se ,
acordou o seu assalariado que dormia na carriola, disse-lhe para atre
lar e foi acordar os bachquires .
- Está na hora de ir à estepe - disse - , medir a terra.
Os bachquires levantaram-se , reuniram-se todos , e o chefe apare
ceu também . Sentaram-se para beber outra vez kumis , e já iam servir
chá a Pakhom mas ele não se quis demorar.
- Foi decidido ir, então vamos - disse - , está na hora.
cometi um erro , que fui longe demais? Não irei chegar atrasado?»
Olhou para frente , para o chikhan , olhou para o sol: falta muito até à
meta, e o sol já está quase no horizonte .
Ainda assim, embora com dificuldade , não deixou de estugar o pas
so. Andou , andou , mas ainda faltava muito; desatou a correr. Deitou
fora a poddiovka , as botas , o cantil , deitou fora o chapéu , só não lar
gou a enxada, apoiava-se nela. «Ah , fui levado pela cobiça, dei cabo
de tudo , não chego antes do pôr do sol .» Assombrado por este medo , a
respiração começou a ficar-lhe ainda mais presa. Agora Pakhom cor
ria, com a camisa e as calças encharcadas em suor a colarem-se-lhe ao
corpo , a boca seca. Parecia que um fole de forja lhe soprava no peito ,
que um martelo lhe batia no coração , as pernas fraquejavam , não lhe
obedeciam. Começou a ter medo de morrer de exaustão .
Tinha medo de morrer mas não conseguia parar. «Já andei tanto» ,
pensava, «que se parar vão chamar-me parvo» . Correu , correu , já
estava perto e ouviu: os bachquires guincham , ululam , e com estes
gritos o seu coração ardeu ainda mais . Pakhom ia buscar as últimas
forças para correr, mas o sol já estava perto do horizonte , escondia-se
no nevoeiro; tomou-se grande , vermelho , sanguíneo . la desaparecer
a qualquer momento . O sol quase a pôr-se , mas também não faltava
muito para a meta. Pakhom viu que os homens no chikhan também o
incitavam , agitavam mãos , apressavam-no . Já via o gorro de raposa
no chão , via o dinheiro; via também o chefe sentado no chão , com
as mãos pousadas na barriga. Então , Pakhom recordou o sonho . «Há
muita terra» , pensou , «mas será que Deus me deixará viver nela? Oh ,
levei-me à perdição , não chego à meta.»
Pakhom olhou para o sol : descera quase ao rés da terra , já a sua
parte de baixo desaparecera, o sol era um arco . Acelerou com as
últimas forças , lançou o corpo para frente , mal tinha tempo de pôr
os pés à frente para não cair. Chegou perto do chikhan e , de repen
te , escureceu . Olhou para trás : o sol já se pusera . Pakhom gemeu .
«Tudo perdido , todo o meu trabalho .» Quis parar, mas ouviu que
os bachquires ainda gritavam e percebeu que , de baixo , parecia tu
do acabado , mas de cima do chikhan os homens viam que o sol
ainda não se pusera . Pakhom fez um último esforço , subiu ao chi
khan . Ali , havia ainda luz . Ao subir, viu o gorro . Em frente do gorro
estava sentado o chefe , agarrado à barriga e a rir às gargalhadas .
118 Lev Tolstói
Primeira Parte
- Com esta moldura fica lindo , não fica? - disse Mákhin , diri
gindo-se a Mítia.
- Não terão outro dinheiro? - perguntou a vendedora.
- O problema é que não temos . O meu pai deu-mo , precisamos
de o trocar.
- Será que não arranjam um rublo e vinte?
- Temos cinquenta copeques . Mas porquê? Está com medo de
que a enganemos com dinheiro falso?
- Não , nem por isso .
- Então , devolva o cupão . Vamos trocá-lo .
- Bem, quanto lhes devo de troco?
- Serão , portanto , onze e tal .
A vendedora estalou as contas do ábaco , abriu a escrivaninha, tirou
uma nota de dez e , ao mexer nos cobres , juntou ainda seis moedas de
vinte e duas de cinco copeques .
- Faça o favor de embrulhar - disse Mákhin , pegando sem pres-
sa no dinheiro .
- Um momento .
A vendedora fez um embrulho e atou-o com cordel .
Mítia só recuperou o fôlego quando a campainha da porta tilintou
nas suas costas e saíram para a rua.
- Toma dez rublos , deixa-me o resto . Depois devolvo-to .
E Mákhin foi ao teatro . Mítia foi a casa de Gruchétski e pagou-lhe
a dívida.
era analfabeto , mas disse que já lhe acontecera trocar esse dinheiro
para os moradores do seu prédio , que o dinheiro assim era bom, mas
por vezes era falso , pelo que aconselhou Ivan a pagar com ele ali , ao
balcão . Ivan Mirónov entregou o cupão ao criado , mandando trazer o
troco , mas o criado não o trouxe , em vez disso veio o gerente careca,
de cara luzidia, segurando o cupão na mão rechonchuda.
- O seu dinheiro não é bom - disse ele , mostrando o cupão , mas
sem lho devolver.
- O dinheiro é bom, foi um senhor que mo deu .
- Não é bom, é falso .
- Mas se é falso , dá cá o cupão .
- Não , amigo , é preciso dar uma lição a gente como tu . Falsificaste-
-o com alguns vigaristas .
- Dá cá o dinheiro , que direito tens tu . . . ?
- Sídor! Chama o polícia - disse o empregado do balcão ao criado.
Ivan Mirónov estava com os copos . Ora, quando bebia tomava-se
inquieto . Agarrou o gerente pelo colarinho e gritou:
- Devolve o dinheiro , vou falar com o senhor. Sei onde ele vive .
O gerente deu um puxão , recuando de Ivan , e a sua camisa rangeu .
- A-a, ele é isso ! Agarrem-no .
O criado agarrou Ivan Mirónov, e logo a seguir apareceu um polí
cia. Como autoridade , ouviu o que se passava e tomou uma decisão .
- Levá-lo à esquadra.
O polícia pôs o cupão na sua carteira e levou Ivan Mirónov, junta
mente com o cavalo , para a esquadra.
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veu que era preciso sacar o que estava mal guardado , sim, mas de
outro modo e não como dantes . Primeiro , tinha de ponderar, espiar e
fazer as coisas de modo limpo , sem deixar pistas . Na véspera do Nas
cimento da Virgem foram colhidas as últimas maçãs antónovka 1 1 •
O patrão teve um grande lucro , pagou à despedida a todos os guardas ,
e a Vassíli também , premiou toda a gente .
Vassíli vestiu-se - o jovem senhor oferecera-lhe um casaco e um
chapéu - e não foi para casa porque , só de pensar na vida grosseira de
mujique , sentia repugnância; assim, voltou para a cidade juntamente
com os soldados bebedolas que tinham guardado o mesmo pomar. Na
cidade, decidiu arrombar de noite a porta da loja em que trabalhara
e roubar o dinheiro do dono - este , naquele tempo , espancara-o e
pusera-o no olho da rua sem lhe pagar. Conhecia bem a casa e onde
ele guardava o dinheiro , pôs um soldado de guarda, partiu a janela
que dava para o pátio , entrou e abarbatou todo o dinheiro . O roubo
foi feito com mestria, não encontraram quaisquer pistas . Eram 370
rublos . Vassíli deu 100 rublos ao cúmplice e levou o resto para outra
cidade onde se meteu na pândega com companheiros e amiguinhas .
14
dessa vez , mas Guerássim , um rapaz hábil que Ivan instruiu . Os mu
jiques só ao amanhecer descobriram o desaparecimento dos cavalos
e correram pelos caminhos, procurando-os . Os cavalos , no entanto ,
estavam num barranco , numa floresta pública. Ivan Mirónov tencio
nava mantê-los ali até à noite seguinte e depois fugir com eles para a
casa de um estalajadeiro seu conhecido , a oito léguas dali . Ivan Miró
nov foi ter com Guerássim à floresta, deu-lhe bolo e vodca, e voltou
para casa por uma vereda florestal onde esperava não se encontrar
com ninguém. Mas , por azar, esbarrou com um guarda, ex-soldado .
- Foste aos cogumelos? - perguntou o guarda.
- Não há nada - respondeu Ivan Mirónov, mostrando o cesto
que levava para o que desse e viesse.
- Sim, neste verão não há cogumelos - disse o guarda - , se
calhar aparecem na altura da abstinência - e seguiu o seu caminho .
O guarda percebeu que qualquer coisa não batia certo . Não havia
razão para Ivan Mirónov andar tão cedo de manhã pela floresta públi
ca. O guarda voltou e começou a procurar. Ouviu , perto do barranco ,
o bufar de cavalos e fo i devagarinho nessa direção . N o barranco , a er
va estava batida e havia estrume de cavalo . Mais à frente , viu o Gue
rássim sentado no chão , a comer, e dois cavalos atados a uma árvore .
O guarda correu à aldeia, chamou o regedor eleito , o comandante
dos guardas e duas testemunhas . Aproximaram-se do lugar, por três
lados , e apanharam o Guerássim . Este não negou nada e , como es
tava com os copos , até confessou tudo . Contou como Ivan Mirónov
o embebedara e o convencera a roubar, e que prometera vir buscar
os cavalos nessa mesma noite . Os mujiques deixaram Guerássim e
os cavalos na floresta e fizeram uma emboscada, ficando à espera
de Ivan Mirónov. Quando escureceu , ouviram um assobio . Guerás
sim respondeu . Mal Ivan Mirónov começou a descer pelo declive ,
atiraram-se a ele e levaram-no para a aldeia. De manhã, uma multi
dão reuniu-se em frente da isbá do regedor.
Trouxeram Ivan Mirónov e começaram a interrogá-lo . O primeiro
a interrogar foi Stepan Pelaguéiuchkin , mujique esgrouviado , curva
do e de braços compridos , com nariz aquilino e expressão sombria
na cara. Stepan vivia sozinho e acabara o seu serviço na tropa havia
pouco; separou-se do pai e, mal começou a endireitar a sua nova vida
independente , roubaram-lhe o cavalo . Trabalhou então durante um
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 43
ano nas minas e conseguiu comprar dois cavalos . E logo lhe foram
ambos roubados .
- Diz onde estão os meus cavalos - exigiu Stepan , pálido de rai
va, olhando sombriamente ora para o chão , ora para a cara de Ivan.
Ivan Mirónov negou tudo . Então , Stepan deu-lhe um murro na ca
ra e partiu-lhe o nariz . O sangue correu .
- Diz , senão mato-te !
Ivan Mirónov, com cabeça baixa, calava-se . Stepan bateu-lhe uma
vez , outra vez . Ivan calava-se , só lançava a cabeça para um lado e
para outro .
- B atei-lhe todos ! - gritou o regedor.
E todos começaram a espancá-lo . Ivan Mirónov caiu e gritou:
- B árbaros , diabos , espancai-me até à morte . Não tenho medo
de vós !
Stepan , por fim, apanhou uma pedra e partiu a cabeça de Ivan Mi
rónov.
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Dois anos atrás , uma rapariga bonita e saudável , com rosto de tra
ços orientais , chamada Kátia Turtchanínova, chegou a Petersburgo ,
vinda da Região dos Cossacos do Don . Esta rapariga conheceu em
Petersburgo o estudante universitário Tiúrin , filho do chefe da admi-
1 52 Lev Tolstói
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* Nada me agradaria tanto como deixar sair em liberdade essa pobre menina, mas o
senhor compreende . . . o dever (fr.) .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 55
23
Segunda Parte
rua, com o seu pescoço magro e enrugado que ele cortara, ouvia a sua
voz enternecedora, lastimosa, ceceante: «Não poupas almas alheias
nem a tua própria. Como é possível?» Depois a voz silenciava-se , e
apareciam aqueles três , os negros . Apareciam agora sempre, quer fe
chasse os olhos , quer os abrisse. Quando fechava os olhos , tornavam
-se mais distintos . Quando Stepan abria os olhos , misturavam-se com a
porta e as paredes e desapareciam devagarinho , mas depois voltavam a
surgir e avançavam para ele de três lados , fazendo caretas e repetindo:
dá cabo de ti , dá cabo de ti . Podes fazer um nó , podes queimar-te . Ste
pan tinha tremores , começava a dizer as orações que conhecia: «Mãe
de Deus» , «Pai Nosso» . . . e isso , a princípio, dava-lhe algum alívio . Ao
rezar, começava a recordar a sua vida: o pai , a mãe, a aldeia, o cão Lo
binho , o avô no catre do fogão , os bancos em que brincava com outros
rapazes; depois lembrava-se das raparigas com as suas cantigas , depois
dos cavalos e como foram roubados , e como apanharam o ladrão, e
como o matara com pedra. Recordava a sua primeira prisão e o dia em
que saíra dela, recordava o estalajadeiro gordo , a mulher do carroceiro ,
os seus filhos e outra vez a ela. E sentia calor, tirava dos ombros a bata
prisional , saltava da tarimba e começava, como uma fera na jaula, a
andar rapidamente de um lado para o outro na cela pequena, virando-se
bruscamente quando chegava às paredes húmidas . E voltava a rezar,
mas as rezas já não lhe davam alívio .
Numa das longas tardes outonais , quando o vento assobiava e uiva
va nas chaminés , Stepan , farto de calcorrear a cela, sentou-se na tarim
ba e sentiu que já não tinha forças para lutar, que os negros o tinham
vencido, que se entregara a eles . Havia muito que o atraía o respira
douro do fogão. Se prender nele cordões finos ou fitas de linho finas ,
não deslizam. Mas era preciso organizar tudo razoavelmente . Deitou
mãos à obra e , em dois dias , preparou fitas , rasgando o saco em que
dormia (quando o guarda entrava, Stepan cobria a cama com a bata) .
Atava as fitas e fazia-as duplas para não se rasgarem, para aguentarem
o corpo . Enquanto estava a trabalhar nisso não sofria. Quando tudo fi
cou pronto , fez um nó, atou-o ao pescoço , subiu à cama e enforcou-se.
Mas quando a sua língua começou a sair da boca, as fitas rasgaram-se e
Stepan caiu . O guarda, ao ouvir barulho, entrou . Chamaram o auxiliar
médico , levaram Stepan ao hospital . No dia seguinte ficou bem , foi
tirado do hospital e colocado numa cela comum, em vez da solitária.
1 60 Lev Tolstói
- Tudo fo i dito .
E Tchúev leu para ele:
«E quando o Filho do homem vier em sua glória, e todos os san
tos anjos com Ele , então se assentará no trono da sua glória; e todas
as nações serão reunidas diante d ' Ele , e apartará uns dos outros ,
como o pastor aparta dos bodes as ovelhas ; e porá as ovelhas à sua
direita, mas os bodes à esquerda. Então dirá o Rei aos que estiverem
à sua direita: "Vinde , benditos do meu Pai , possuí por herança o
reino que vos está preparado , desde a fundação do mundo; porque
tive fome , e destes-me de comer; era estrangeiro , e hospedastes-me;
estava nu , e vestistes-me; adoeci , e visitastes-me; estive na prisão , e
fostes ver-me ." Então os justos Lhe responderão , dizendo: "Senhor,
quando Te vimos com fome , e Te demos de comer? Ou com sede ,
e Te demos de beber? E quando Te vimos estrangeiro , e Te hospe
dámos? Ou nu , e Te vestimos? E quando Te vimos enfermo , ou na
prisão , e fomos ver-Te?" E, respondendo o Rei , lhes dirá: "Em ver
dade vos digo que , quando o fizestes a um destes meus pequeninos
irmãos, a mim o fizestes ." Então dirá, também , aos que estiverem
à sua esquerda: "Apartai-vos de mim , malditos , para o fogo eterno ,
preparado para o diabo e os seus anjos; porque tive fome , e não me
destes de comer, tive sede , e não me destes de beber; sendo estran
geiro , não me recolhestes ; estando nu , não me vestistes; e enfermo ,
e na prisão , não me visitastes ." Então eles , também , Lhe responde
rão , dizendo: "Senhor, quando Te vimos com fome , ou com sede , ou
estrangeiro , ou nu , ou enfermo , ou na prisão , e não Te servimos?"
Então lhes responderá, dizendo: "Em verdade vos digo que , quando
a um destes pequeninos o não fizeste s , não o fizestes a mim ." E irão
estes para o tormento eterno , mas os justos para a vida eterna.» (São
Mateus , 25 : 3 1 -46)
Vassíli , sentado no chão em frente de Tchúev, ouvindo a leitura,
acenou aprovativamente com a sua cabeça bonita.
- Está certo - disse resolutamente - , ide , malditos , para o tor
mento eterno , não destes de comer a ninguém, empanturrastes-vos
sozinhos . É bem feito . Deixa-me ler - acrescentou , desejando exibir
como sabia ler.
- Mas não haverá perdão? - perguntou Stepan que ouvira a lei
tura em silêncio , baixando a sua cabeça desgrenhada.
1 62 Lev Tolstói
sido evidente para ele . E começou a passar todo o tempo livre com
Tchúev, fazendo-lhe perguntas e ouvindo as respostas . Ouvia e com
preendia. Revelou-se-lhe o sentido geral de todo o ensinamento: que
todos os homens são irmãos e devem amar-se e ter pena uns dos
outros , e então todos ficam bem . E quando Stepan ouvia, apreendia
como uma coisa esquecida e familiar tudo o que confirmava o sentido
geral deste ensinamento , e passava por alto tudo o que não o confir
mava, atribuindo-o à sua falta de compreensão .
Desde então , Stepan tomou-se outro .
Já não era Tchúev, mas o Stepan quem lia muitas vezes o Evangelho
na cela, e, enquanto alguns presidiários cantavam cantigas obscenas ,
outros ouviam a sua leitura e as suas conversas sobre o texto lido . As
sim, dois homens ouviam-no em silêncio e com atenção: Makhórkin ,
grilheta, assassino e carrasco , e Vassíli , apanhado a roubar, que estava
na mesma cadeia à espera do julgamento . Makhórkin , enquanto esta
va nesta prisão , por duas vezes cumprira obrigações de algoz, ambas
as vezes em outros distritos , onde não se arranjavam pessoas para fa
zer o que os juízes sentenciavam. Os camponeses que mataram Piotr
Nikoláevitch foram julgados pelo tribunal militar, e dois deles foram
condenados à pena capital por enforcamento .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 65
- Ajudo-te em quê?
- Quero fugir.
E Vassíli contou a Stepan que tinha tudo preparado para a fuga.
- Amanhã vou alvoroçá-los - disse, apontando para os presos
adormecidos . - Vão acusar-me de instigação . Então , transferem-me
para o andar de cima, e ali já sei o que fazer. Mas tu deves arrancar a
fechadura na morgue .
- Está certo . Onde pensas ir?
- Vou andar à toa. Será que há pouca gente má?
- É verdade , amigo , mas quem somos nós para os julgar?
- Bem, não sou facínora nenhum. Não matei ninguém , ora rou-
bar . . . Não tem mal nenhum. Achas que eles não nos roubam?
- É com eles . Vão responder por isso .
- Não quero saber deles . Uma vez , assaltei uma igreja. Quem
ficou mal com isso? Agora já não vou roubar ninharias , nas lojecas
ou assim , vou roubar dinheiro público e distribuí-lo entre a boa gente .
Um dos presos soergueu-se na tarimba e começou a escutar. Ste
pan e Vassíli separaram-se .
No dia seguinte , Vassíli fez o que planeara. Começou a queixar-se
de que o pão estava mal cozido , incitou todos os presos para que cha
massem o chefe dos guardas , que reclamassem. O chefe veio , ralhou
com todos e , ao ouvir que Vassíli era o instigador, mandou-o para
uma solitária do andar de cima.
Era o que Vassíli pretendia.
tirou o lenço do cadáver frio como gelo (quando o tirava tocou na mão
do morto) , depois apanhou os sacos , atou-os entre si para formar uma
corda e levou esta corda improvisada para a retrete; ali , atou-a a uma
trave e começou a descer. Os sacos presos uns aos outros não chegavam
ao chão. Não sabia se faltava muito ou pouco, mas nada a fazer, saltou .
Magoou os pés , mas podia andar. Na cave havia duas janelas . Davam
para se enfiar, mas tinham grades de ferro . Era preciso arrancá-las . Mas
com quê? Vassíli procurou. Havia bocados de tábuas . Escolheu uma
tábua com a ponta aguçada e começou a arrancar com ela os tijolos que
seguravam as grades . Trabalhou muito tempo. Os galos já tinham canta
do pela segunda vez, mas a grade ainda estava presa. Por fim, soltou-se
de um lado.Vassíli enfiou a tábua e carregou , a grade desprendeu-se
completamente, mas um tijolo soltou-se e caiu com barulho . As senti
nelas podiam ter ouvido. Vassíli ficou parado, à escuta. Tudo calmo . En
trou na abertura da janela. Saiu . Para fugir, tinha de passar por cima de
um muro. Num canto do pátio, havia um anexo . Era preciso subir para
cima deste anexo e, depois , para cima do muro . Precisava de uma tábua,
sem ela não podia subir. Vassíli voltou para dentro através da janela.
De novo saiu com a tábua na mão e parou, escutando na direção onde
estava a sentinela. A sentinela, tal como Vassíli calculava, andava pelo
outro lado do pátio quadrado. Vassíli foi até ao anexo, encostou a tábua
à parede, começou a trepar. A tábua deslizou e caiu . Vassíli tinha meias
nos pés . Tirou as meias para se agarrar com os pés , colocou de novo a
tábua, saltou sobre ela e agarrou-se com as mãos à calha. - «Não caias ,
calha querida, aguenta.» Agarrava-se à calha e já pusera o joelho no
telhado. A sentinela aproximava-se . Vassíli deitou-se e reteve a respira
ção . A sentinela não o viu, começou a afastar-se. Vassíli pôs-se em pé
de um salto. O ferro do telhado rangeu sob os seus pés . Um passo , outro
passo - e era já a parede. Era fácil chegar com a mão ao topo . Uma
mão, outra mão, esticou-se , e já estava em cima da parede. Agora, não
se aleijar quando saltasse para o chão. Vassíli virou-se, pendurou-se pe
los braços , esticou-se, soltou uma mão , outra mão - Deus , ajuda-me !
- e estava no chão . Na terra macia. Com os pés ilesos , desatou a correr.
No subúrbio , a sua Malánia abriu-lhe a porta, e Vassíli meteu-se
debaixo do cobertor feito de retalhos , quente , impregnado do cheiro
a suor.
1 70 Lev Tolstói
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entes mais fortes não tremiam, mas Prokófi não parava de tremer dia
e noite . O diretor poupava lenha e não aquecia os fogões do hospital
até novembro . O corpo de Prokófi sofria muito , mas o seu espírito
sofria ainda mais . Tinha repugnância por tudo , ganhou ódio a todos:
ao salmista, ao diretor que não aquecia o hospital , ao guarda e ao
doente da cama vizinha com o lábio vermelho e· inchado . Também
odiava um novo grilheta internado no hospital . Este grilheta era Ste
pan . Apanhou erisipela na cabeça, foi transferido para o hospital e
deram-lhe a cama ao lado de Prokófi . De início , Prokófi ganhou-lhe
ódio , mas com o tempo acabou por gostar tanto de Stepan que ansia
va por cada ocasião para conversar com ele . A mágoa no coração de
Prokófi só se dissipava depois da conversa com Stepan .
Stepan falava sempre a toda a gente do último homicídio que co
metera, do efeito que lhe tinha provocado .
- Ela não só não gritou ou não sei quê - dizia ele - , mas entre
gou-se , estava submissa. Como se dissesse: não é a mim, poupa-te a
ti próprio .
- Claro , é terrível levar à morte uma pessoa. Uma vez fui matar
um carneiro e fiquei aflito . Mas nunca matei pessoa nenhuma, mas
eles , os malvados , deram cabo de mim e . . . qual é a minha culpa?
Não fiz mal a ninguém . . .
- Serás recompensado por isso , ali .
- Ali , onde?
- Como é que onde? E Deus?
- Não se vê esse Deus em lado nenhum; eu , meu amigo, não tenho
fé , acho que quando morrermos vai crescer erva no sítio , e acabou-se .
- Como é que podes pensar assim? Eu , digamos , tirei vida a mui
ta gente , mas ela, coitada, só ajudava as pessoas . Então , achas que a
mim e a ela nos espera a mesma coisa? Não , ouve . . .
- Então , achas que quando morrermos a alma fica viva?
- Com certeza. Não duvides .
A morte de Prokófi era difícil , asfixiava. Mas na última hora sentiu
um alívio . Chamou o Stepan .
- Adeus , meu amigo . Vejo que chegou a minha hora. Dantes tinha
medo , mas agora não . Só quero que seja depressa.
E Prokófi morreu no hospital .
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 79
17
18
19
Passaram-se 1 0 anos .
Mítia Smokóvnikov acabou o curso da escola técnica e prestava
serviço , como engenheiro altamente remunerado , nas minas de ouro
da Sibéria. Um dia precisou de percorrer o terreno . O diretor propôs
-lhe que levasse consigo um grilheta, Stepan Pelaguéiuchkin .
- Um grilheta? Não é perigoso?
- Com ele não é. É um santo . Pode perguntar a quem quiser.
- Mas porque foi condenado , então?
O diretor sorriu .
- Matou seis pessoas , mas é um santo . Garanto-lhe .
Portanto , Mítia Smokóvnikov foi acompanhado por Stepan , ho
mem careca, magro e bronzeado .
Pelo caminho , Stepan cuidou de Smokóvnikov como do seu pró
prio filho - tal como , aliás , tratava toda a gente - e contou-lhe toda
a sua história. E também como , e em prol de quê , vivia agora.
Então , aconteceu uma coisa estranha: Mítia Smokóvnikov, que
dantes não queria saber de nada além da comida, do vinho, do jogo e
das mulheres , começou , pela primeira vez , a refletir sobre a sua vida.
E estas reflexões não o abandonavam, trazendo cada vez mais mudan
ças à sua alma. Fizeram-lhe a proposta de um cargo muito vantajoso .
Rejeitou a proposta e decidiu comprar, com o dinheiro que tinha, uma
propriedade, casar-se e, na medida do possível , servir o povo .
20
Foi isso mesmo que fez . Mas antes disso foi ver o seu pai , com
quem tinha relações desagradáveis por causa da nova família que o
pai arranjara. Mítia resolveu melhorar o relacionamento com o pai .
O pai surpreendeu-se , riu-se dele , mas depois deixou de o criticar e
recordou as muitas culpas que tinha para com o seu filho .
ALIOCHA, O POTE
Aliocha era o mais novo dos irmãos . Foi alcunhado de Pote por
que , uma ocasião , a mãe o mandou levar um pote de leite à mulher
do diácono , mas ele tropeçou e partiu o pote . A mãe bateu-lhe , e os
rapazes começaram a gozar com ele chamando-lhe Pote . Assim lhe
ficou para sempre a alcunha.
Aliocha era rapaz magro , orelhudo (as suas orelhas espetavam
-se como asas) e ainda narigudo . Os rapazes gozavam: «Ü nariz de
Aliocha é como um cão no outeiro .» Na aldeia havia uma escola,
mas Aliocha não foi bom na aprendizagem , também não tinha tempo.
O irmão mais velho vivia na cidade , trabalhava para um comerciante ,
e Aliocha desde pequeno começou a ajudar o pai . Já com seis ani
nhos , juntamente com a mana pequena, guardava no pasto as ovelhas
e a vaca e, quando cresceu um pouco, começou a guardar os cavalos
no prado , de dia e de noite . Desde os seus doze anos que lavrava a
terra e conduzia a carroça. Não tinha muitas forças , mas era destro .
E sempre animado . Os rapazes gozavam com ele; Aliocha calava-se ,
ou ria-se . Quando o pai se zangava com ele , calava-se e ouvia. E, mal
acabavam de o descompor, sorria e punha-se a fazer o trabalho que
tinha pela frente .
Aliocha tinha dezanove anos quando o seu irmão foi mandado pa
ra a tropa. E o pai pôs Aliocha no lugar do irmão , a trabalhar como
guarda-varredor do comerciante . Deram a Aliocha as velhas botas do
mano , o chapéu do pai e uma poddiovka , e levaram-no para a cidade .
Aliocha estava contentíssimo com a sua roupa, mas o comerciante
ficou descontente com este preparo .
1 84 Lev Tolstói
outra pessoa queria dele . Quando a mãe se enternecia com ele, Aliocha
não reparava nisso, parecia-lhe natural , como se fosse ele próprio a
enternecer-se consigo . Mas agora via que Ustínia, pessoa alheia, tinha
pena dele, deixava para ele papas com manteiga no pote e, quando es :
tava a comer, olhava para ele, apoiando o queixo na mão com a manga
arregaçada. Olhava para Ustínia e ela ria, e Aliocha ria também.
Era uma sensação tão nova e estranha que , de início , assustou
Aliocha. Sentiu que seria um estorvo para ele continuar a servir co
mo antes . E mesmo assim estava contente e , quando olhava para as
suas calças cerzidas por Ustínia, abanava a cabeça e sorria. Muitas
vezes , trabalhando ou correndo a algum lado , recordava Ustínia e
dizia: «Ah , Ustínia ! » Ustínia ajudava-o no que podia, e ele ajudava
-a. Ela falou-lhe da sua vida, como ficou órfã, como a sua tia tomou
conta dela, como foi entregue para servir na cidade , como o filho do
comerciante tentou aliciá-la para fazer asneira e como ela o chamou
à razão . Ustínia gostava de falar, Aliocha gostava de a ouvir. Ouviu
falar do que acontecia muito nas cidades: os mujiques que trabalha
vam para os patrões casavam-se com as cozinheiras . Um dia Ustínia
perguntou-lhe quando o iam casar. Aliocha respondeu que não sabia
e que não gostaria de se casar na aldeia.
- Mas já puseste os olhos em alguma? - perguntou ela.
- Gostaria de me casar contigo . Queres?
- Olha-me este Pote , é Pote mas soube dizer uma coisa bonita -
disse ela, batendo-lhe com o lenço nas costas . - Porque não? Quero .
Na altura do Entrudo , o velho veio buscar o dinheiro . A mulher
do comerciante descobriu que Aliocha queria casar-se com Ustínia
e não gostou: «Fica grávida, como é que vai servir com a criança?»
Avisou o marido .
O patrão entregou o dinheiro ao pai de Aliocha.
- Então , o meu rapaz , porta-se bem? - perguntou o mujique . -
Não te disse que era obediente?
- Obediente é, mas meteu-se-lhe na cabeça uma parvoíce. Quer
casar-se com a cozinheira. E eu não quero aqui casais. Não nos convém.
- Irra, que é parvinho , do que se foi lembrar - disse o pai . -
Fica descansado . Mando-lhe esquecer isso .
O pai entrou na cozinha e , à espera do filho , sentou-se à mesa.
Aliocha andou a tratar de várias coisas e voltou , resfolegando.
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 1 87
Komei Vassíliev tinha 54 anos quando foi à aldeia pela última vez .
O seu cabelo espesso e encaracolado ainda não tinha nenhuma branca,
e só a barba preta era um pouco grisalha ao lado das maçãs do rosto .
Tinha a cara lisa, de bochechas coradas , a nuca larga e sólida, e todo o
seu corpo robusto se revestiu de gordura durante a vida farta na cidade .
Vinte anos atrás , Komei acabou o seu serviço militar e voltou com
dinheiro . Primeiro , abriu uma loja, depois deixou este negócio e co
meçou a vender gado . Ia buscar o gado a Tcherkássi e levava-o para
Moscovo .
Na aldeia de Gai , na sua casa de pedra com telhado de ferro , vi
viam a sua velha mãe , a sua mulher com dois filhos , rapaz e rapariga,
e ainda o sobrinho mudo , órfão de quinze anos , e um assalariado .
Komei casou-se duas vezes . A primeira mulher era fraca e doente , e
morreu sem ter filhos . Então Komei , viúvo de meia-idade , casou-se
de novo com uma rapariga bonita e saudável , filha de uma viúva po
bre da aldeia vizinha. Os filhos eram da segunda mulher.
Kornei vendeu , em Moscovo , a última mercadoria com tanto lucro
que acumulou cerca de três mil rublos . Ao ouvir de um conterrâ
neo que , perto da sua aldeia, um proprietário rural arruinado estava a
vender barato um bosquete , resolveu começar também o negócio da
floresta. Conhecia este negócio porque , ainda antes do serviço mili
tar, serviu como ajudante do administrador da floresta que pertencia
a um comerciante .
1 90 Lev Tolstói
- Também não sou jovem . Tal dono , tal égua - respondeu Kuz
má, chicoteando o castrado felpudo , de patas tortas .
A meio do caminho havia uma estalagem . Komei mandou parar e
entrou . Kuzmá virou o cavalo até uma tina vazia e pôs-se a ajeitar a
retranca, sem olhar para Komei , mas à espera de ser convidado .
- Entra, tio Kuzmá - disse Komei , saindo à soleira - , bebe um
copinho .
- Está bem - respondeu Kuzmá, fingindo indiferença.
Komei pediu uma garrafa de vodca e serviu um copo a Kuzmá.
Kuzmá, que não comia desde manhã, ficou bêbedo de imediato . E
então começou a contar a Komei , em sussurro , o que se falava na al
deia. Diziam ali que Marfa, mulher de Komei , levou para casa, como
assalariado , o seu antigo amante e que vivia com ele .
- Por mim , tudo bem . Tenho pena é de ti - disse o bêbedo Kuz
má. - Não está bem, o povo goza. A mulher, é de supor, não tem
medo do pecado . Mas espera, digo eu . Espera que venha o patrão . É
assim , meu amigo Komei Vassílitch .
Komei ouvia em silêncio o que Kuzmá lhe contava, e o seu sobro
lho negro descia cada vez mais sobre os seus olhos brilhantes , cor de
carvão .
- Então , dás água aos cavalos? - perguntou apenas quando a
garrafa estava vazia. - Não? Então , vamos .
Pagou a conta e saiu para a rua.
Chegou a casa já ao crepúsculo . A primeira pessoa que viu foi o tal
Evstignei Béli , no qual , aliás , não deixara de pensar durante todo o
caminho . Komei cumprimentou-o e , ao ver a cara magra de sobran
celhas loiras de Evstignei , que se azafamou à vista do patrão , abanou
a cabeça. «Mentiu , o velho cão - pensou de Kuzmá. - Mas quem
sabe . Já vou descobrir.»
Kuzmá estava ao pé do cavalo e piscava o seu único olho , apon-
tando para Evstignei .
- Vives portanto em nossa casa? - perguntou Komei .
- Pois , tenho de trabalhar em algum lado - respondeu Evstignei .
- Aqueceste o quarto?
- Aqueci , claro . Matvéevna está ali - respondeu Evstignei .
Komei subiu para a soleira . Marfa, ao ouvir vozes , saiu ao átrio ,
viu o marido , corou e cumprimentou-o com carinho afetado .
1 92 Lev Tolstói
Marfa, além das nódoas negras na cara, tinha duas costelas parti
das e uma ferida na cabeça. Mas , passado meio ano , a mulher forte ,
saudável e jovem recuperou , e não havia nem vestígios do espanca
mento . Mas a miúda ficou para sempre aleijadinha. Teve duas fratu
ras no braço , e o braço ficou torto para sempre.
Quanto a Kornei , desde que se foi embora ninguém ouviu falar
dele . Nem sabiam se estava vivo ou morto .
Komei estava em cima, sobre urp. cafetã seco que lhe pusera a ve
lha. Agáfia tirava pães do forno .
- Vem cá - chamou-a o velho com voz fraca - , vem , minha
espertinha.
- Sim, avô , espera - respondeu a jovem, tirando os pães . - Tens
sede, sim? Queres kvas?
Komei não respondeu .
Depois de tirar o último pão , Agáfia aproximou-se dele com um
púcaro de kvas . O velho não se virou para ela nem quis beber, e co
meçou a falar tal como estava, deitado de cara para cima.
- Agacha - pronunciou baixinho - , chegou a minha hora. Que-
ro morrer. Então , perdoa-me por amor de Cristo .
- Deus perdoa-te . Tu não me fizeste mal nenhum . . .
Komei calou-se por um momento .
- E mais: vai à tua mãe , minha espertinha, e diz-lhe . . . que o pe-
regrino . . . que o peregrino de ontem . . . diz-lhe . . .
Começou a soluçar.
- Então , passaste pela casa dos meus?
- Passei . Diz-lhe que o peregrino de ontem . . . o peregrino , diz . . .
- de novo se interrompeu , chorando , e finalmente juntou forças e
acabou: - Vinha para se despedir dela - disse e começou a apalpar
qualquer coisa no peito .
- Digo , avô , digo tudo . O que é que estás a procurar? - disse
Agáfia.
O velho , sem responder e franzindo a cara de esforço , tirou do pei
to com a sua mão magra e peluda um papel e deu-o à jovem .
- Dás a quem perguntar por ele . É o meu papel de soldado . Gra
ças a Deus, redimidos todos os pecados - e a sua cara tomou uma
expressão solene . O sobrolho ergueu-se , os olhos fitaram o teto , e
calou-se .
- Uma vela - pronunciou sem mexer os lábios .
Agáfia compreendeu . Tirou da frente dos ícones um coto de vela,
acendeu-o e deu-o ao velho . Este apertou a vela com o polegar.
Agáfia afastou-se para arrumar no baú o seu papel . Quando voltou
ao pé dele , a vela estava a cair da sua mão , os olhos imóveis já não
viam e o peito não respirava. Agáfia fez o sinal da Cruz, soprou na
vela, tirou uma toalha limpa e cobriu-lhe a cara.
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 205
casamento não podia saber o que era uma verdadeira mulher. Então ,
o que ele conheceu em Albina como mulher surpreendeu-o e seria
capaz de desiludi-lo do sexo feminino em geral se não tivesse por
Albina um sentimento extremamente temo e grato . Em relação a Al
bina como mulher em geral , sentia uma condescendência carinhosa
e um pouco irónica, mas em relação a Albina em si sentia não só um
amor temo , mas também admiração , tendo consciência de uma dívi
da eterna pelo sacrifício dela, sacrifício que lhe dava uma felicidade
não merecida.
Os Migurski estavam felizes por terem , no meio de gente estranha,
concentrando toda a força do amor um no outro , o mesmo sentimento
de duas pessoas que , no inverno , se perderam, têm frio e se aquecem
um ao outro . Para a vida feliz dos Migurski contribuía também a
participação da mãe Ludwika, servilmente abnegada à sua pani, res
mungona bondosa, cómica, permanentemente apaixonada por todos
os homens . Os Migurski também tinham a felicidade de ser pais .
O filho nasceu passado um ano e , um ano e meio depois , nasceu a
filha. O miúdo era uma cópia da mãe: os mesmos olhos , a mesma agi
lidade e graciosidade . A menina era um bichinho bonito e saudável .
Quanto à infelicidade , consistia em viverem longe da pátria e , so
bretudo , na sua situação grave , humilhante , nada habitual para eles .
Esta humilhação fazia sofrer, em primeiro lugar, Albina. Ele , o seu
Józio , herói , homem ideal , devia pôr-se em sentido perante qualquer
oficial , fazer exercícios com espingarda, estar de guarda e obedecer
resignadamente .
Além disso , as notícias chegadas da Polónia eram muito tristes .
Quase todos os parentes e amigos ou foram deportados ou , priva
dos de tudo , fugiram para o estrangeiro . Para os próprios Migurski ,
não se previa o fim desta situação . Todas as tentativas de solicitar o
indulto ou , pelo menos , um melhoramento da situação , a promoção
a oficial , falhavam . Nicolau 1 fazia revistas , paradas , treinos mili
tares , ia aos bailes de máscaras , cortejava as senhoras mascaradas ,
corria sem qualquer necessidade pela Rússia, de Tchugúev até No
vorrossiisk, Petersburgo e Moscovo , assustando o povo e esfalfando
os cavalos , e quando algum corajoso se atrevia a pedir atenuação do
destino dos dezembristas ou dos polacos deportados que penavam
por causa daquele amor pela pátria que ele próprio , o czar, glorifi-
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 229
* Tende piedade de mim , meu Deu s , com a Vossa grande misericórdia (lat.).
232 Lev Tolstói
Então , quando Albina, depois de ter ido à campa dos filhos , disse a
Rosolowski o que lhe custava deixar os restos mortais dos filhos na
terra alheia, este pensou e disse:
- Peça aos chefes autorização para levar os caixões dos filhos ,
não lho vão recusar.
- Não , não quero ! - disse Albina.
- Peça isso , e está encontrada a solução: não se levam os caixões ,
faz-se uma caixa grande , e Józef deita-se nela.
No primeiro momento , Albina rejeitou esta proposta: era muito
penoso para ela ligar o estratagema com a recordação dos filhos , mas ,
quando Migurski aprovou com otimismo este projeto , ela concordou .
Portanto , o plano definitivo foi o seguinte: Migurski faria tudo
para convencer os chefes de que se afogara. Quando a sua morte fos
se reconhecida , Albina apresentaria um pedido de autorização para
voltar para à pátria, levando consigo os restos mortais dos filhos .
Quando obtivesse essa autorização , seria fingida a exumação , mas
os caixões ficariam no seu lugar, e Migurski seria colocado , em vez
dos caixões infantis , numa caixa preparada para o efeito . A caixa
seria colocada na carruagem , e assim iriam até Sarátov. Em Sarátov,
tomariam um barco . No barco , Józio sairia da caixa, e navegariam
assim até ao mar Cáspio . E depois , era Pérsia ou Turquia - e a li
berdade .
com serrapilheira e atada com cordas . Sair e entrar nela só era possível
dentro da carruagem em que foi instalado um assento .
Quando a carruagem e a caixa estavam prontas , Albina, ainda antes
do desaparecimento do marido , para preparar os chefes , foi falar com
o tenente-coronel e disse-lhe que o seu marido entrara em melancolia
e tentara o suicídio , pelo que ela tinha medo por ele e pedia que lhe
dessem, provisoriamente , licença para não ir ao serviço . Valeu-lhe o
seu talento da arte dramática. A preocupação e o medo pelo marido
foram tão naturais que o chefe ficou comovido e prometeu fazer tudo
o que lhe fosse possível . Depois disso , Migurski redigiu uma carta
que devia ser encontrada no canhão da manga do seu capote na mar
gem do rio e , uma tarde , foi à ribeira, esperou até escurecer, deixou
na margem a roupa, o capote com a carta, e voltou sorrateiramente
para casa. Já tinha sido preparado um lugar para ele no sótão que
fechava a cadeado . À noite , Ludwika foi mandada por Albina à casa
do tenente-coronel para comunicar-lhe que o marido , tendo saído de
casa vinte horas atrás , não voltara. De manhã, trouxeram a Albina a
carta do marido , e ela, em grande desespero e banhada em lágrimas ,
levou-a ao tenente-coronel .
Passada uma semana, Albina entregou o pedido de autorização da
sua partida para a pátria. A angústia da senhora Migurska impressio
nava toda a gente que a via. Todos tinham pena da desgraçada mãe e
mulher. Quando lhe autorizaram a partida, apresentou outro pedido:
permitirem a exumação dos restos mortais dos filhos para que os pu
desse levar consigo .
Os chefes espantaram-se com este sentimentalismo , mas também
deram a permissão .
No dia seguinte à autorização , à noite , Rosolowski , com Albina
e Ludwika, numa carroça alugada com a caixa em que deviam ser
postos os caixões das crianças , foram ao cemitério . Albina ajoelhou
-se junto à campa dos filhos, rezou , depois levantou-se e disse a
Rosolowski:
- Façam o que é preciso , eu não posso - e afastou-se .
Rosolowski e Ludwika deslocaram a laje e cavaram com a pá a
parte superior do túmulo , para criar ilusão do túmulo aberto . Quando
acabaram, chamaram Albina e , com a caixa enchida de terra, volta
ram para casa.
De Quanta Terra Precisa o Homem e Outros Contos 235
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11
co tinha um mastro com vela, pelo que era possível ir também com
ajuda do vento . Para o caso de calmaria, havia remos e dois rema
dores robustos e animados - estavam neste momento ao sol , dentro
do barco . O piloto bem-disposto e bondoso aconselhou-a a não aban
donar a carruagem; podiam tirar-lhe as rodas e instalá-la no barco .
«Cabe bem , e também será mais confortável para a senhora. Se Deus
nos mandar bom tempo , chegamos a Astracã em cinco dias .»
Albina combinou o preço com o barqueiro e disse-lhe para ir ao
subúrbio Pokróvskaia, estalagem de Lóguin, para ver a carruagem e
receber o sinal . Tudo correu até melhor do que esperava. Num ex
celente e entusiasmado estado de ânimo , Albina atravessou o rio e ,
depois d e pagar ao cocheiro , fo i à estalagem .
12
Por mais louca e estranha que parecesse esta ideia ao pai , acabou
por concordar.
- Leva-a, é claro - respondeu quando a filha lhe pediu licença de
levar a caleche . - Vai nela até Khodinka e manda-a para trás .
- Está bem , está bem .
Rina aproximou-se do pai . Este , pelo costume , benzeu-a; ela bei
jou-lhe a mão grande e branca. Despediram-se .
caminho e atirava-se para a frente , sem saber bem para quê , só por
que toda a gente o fazia, pelo que lhe parecia ser mesmo necessário .
Havia gente atrás e de ambos os lados dele , e todos o apertavam, mas
à frente as pessoas não se mexiam e não o deixavam passar. E todos
gritavam , gemiam, se queixavam .
Emelian calava-se e , cerrando os seus dentes fortes e carregando
o sobrolho , não desanimava nem enfraquecia, mas empurrava os da
frente e , embora lentamente , avançava.
De repente, tudo ondulou e , depois de um movimento regular, se
arremessou para a frente e para a direita. Emelian olhou e viu que
uma coisa, outra, uma terceira voaram e caíram no meio da multidão .
Não percebeu o que era, mas uma voz perto dele gritou:
- Diabos malditos , atiram-no ao povo !
Então , os gritos , os risos , os choros e os gemidos soaram onde vo
avam os saquinhos com prendas . Alguém deu a Emelian , de lado , um
empurrão doloroso . Emelian ficou ainda mais sombrio e carrancudo .
Mas , sem ter tempo de cair em si depois desta dor, sentiu que lhe
pisaram o pé . O seu sobretudo, um sobretudo novinho , agarrou-se a
qualquer coisa e rasgou-se . Uma raiva subiu-lhe ao coração , e come
çou a empurrar os da frente com toda a força.
Aconteceu qualquer coisa que ele não percebeu . Há pouco não via
à sua frente nada além das costas humanas , mas de repente abriu
-se-lhe à vista tudo o que estava adiante . Emelian viu as tendas , as
tais onde se deviam distribuir as ofertas . Ficou contente , mas a sua
alegria durou só um instante porque percebeu de imediato que a
vista se abrira à sua frente só porque toda a multidão se aproximara
de uma vala e os da frente , alguns em pé , outros escorregando , caí
ram para dentro dela e ele próprio estava a cair para lá, em cima das
pessoas , e as pessoas que vinham atrás caíam em cima dele . Pela
primeira vez , sentiu medo . Caiu . Uma mulher de lenço ornamenta
do tombou em cima dele . Sacudiu-a, queria voltar, mas os de trás
pressjonavam , não havia maneira . Atirou-se para a frente , mas os
seus pés pisavam macio , corpos humanos . As pessoas agarravam-se
aos seus pés e gritavam . Emelian não via nem ouvia nada , avança
va, pisando os outros .
- Amigos , dou-vos o relógio , um relógio de ouro ! Ajudai-me ,
amigos - gritava um homem perto dele .
248 Lev Tolstói
estava abaixo dos peitos . A cara dela não estava branca, mas lívida,
uma cor que só os mortos podem ter. Foi a primeira vítima esmagada
até à morte e atirada para ali , para trás da cerca, em frente do pavilhão
do czar.
No momento em que Emelian a viu , dois guardas estavam ao lado
dela e um polícia dava uma ordem qualquer. Logo a seguir aparece
ram os cossacos , o chefe deu-lhes uma ordem, os cossacos correram
contra Emelian e outras pessoas paradas aqui e empurraram-nas pa
ra trás , para a multidão . Emelian voltou a ficar no aperto , um aper
to ainda pior do que antes . De novo gritos , gemidos de mulheres e
crianças , de novo as pessoas a pisarem-se , a não poderem evitar de se
pisar. Mas Emelian já não tinha medo pela sua própria vida nem raiva
daqueles que o comprimiam , tinha só um desejo: sair dali , libertar-se ,
perceber o que de novo lhe surgiu na alma, fumar e beber um copo .
Desejou terrivelmente fumar e beber. E conseguiu - saiu para um
espaço livre , fumou um cigarro e bebeu vodca.
E fez um sorriso tão alvo , tão alegre que Rina não deixou de o re
cordar como uma consolação nos momentos mais graves da sua vida.
E Emelian teve o mesmo sentimento de alegria, ou ainda maior,
um sentimento que o iria elevar acima desta vida quando recordava
Khodinka, essa menina e a sua última conversa com ela.
NOTAS
A Sonata de Kreuzer
A Morte de Ivan lliitch
O Diabo e Outros Contos
Hadji-Murat
Cossacos - Novela do Cáucaso
Dois Hussardos • A Felicidade Familiar
Infância, Adolescência e Juventude
Anna Karénina
Guerra e Paz
Contos de Guerra
NESTA COLEÇÃO