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FACULDADES INTEGRADAS

“ANTÔNIO EUFRÁSIO DE TOLEDO”


FACULDADE DE DIREITO DE PRESIDENTE PRUDENTE

A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITO FUNDAMENTAIS –


UMA NOVA PERSPECTIVA

Beatriz Rigoleto Campoy

Presidente Prudente
2008
FACULDADES INTEGRADAS
“ANTONIO EUFRÁSIO DE TOLEDO”

FACULDADE DE DIREITO DE PRESIDENTE PRUDENTE

A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITO FUNDAMENTAIS –


UMA NOVA PERSPECTIVA

Beatriz Rigoleto Campoy

Monografia apresentada como requisito


parcial de Conclusão de Curso para
obtenção de grau de Bacharel em Direito,
sob orientação do Prof. Sérgio Tibiriçá
Amaral.

Presidente Prudente
2008
A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITO FUNDAMENTAIS –
UMA NOVA PERSPECTIVA

Monografia aprovada como requisito


parcial para obtenção do Grau de
Bacharel em Direito.

___________________________________________
Sérgio Tibiriçá Amaral

___________________________________________
Fabiana Junqueira Tamaoki Neves

___________________________________________
Théo Mário Nardin

Presidente Prudente
Palavra puxa palavra, uma idéia traz outra, e assim
se faz um livro, um governo, ou uma revolução,
alguns dizem que assim é que a natureza compôs
as suas espécies.( Machado de Assis)

Dedico este trabalho aos


meus pais, meus anjos.
AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a meus pais por serem em todos os


momentos da minha vida simplesmente pais, no sentido mais pleno que esta
palavra pode vir a significar.
Ao meu orientador, Prof. Sérgio Tibiriçá Amaral por todo o apoio que
me deu desde o momento que iniciei este curso, por acreditar e se empenhar por
mim com a força de vontade de uma grande pessoa.
A todos aqueles que de alguma maneira entraram na minha vida e me
ajudaram a crescer, a melhorar, pois não há melhor forma de engrandecer a alma
do que conhecendo, convivendo e aprendendo com pessoas tão ricas e imperfeitas
quanto nós mesmos.
Aos meus amigos e amigas queridas, a família que pude escolher
durante estes anos e que nunca vou me esquecer.
A vida por ter me proporcionado tantas coisas incrivelmente
espetaculares.
A Deus por ter me dado não apenas a vida, mas esta vida, que eu tenha
a grandeza de fazer pelos outros, um pouco do que Ele fez por mim.
RESUMO

O presente trabalho procura fazer uma abordagem de um assunto muito recente e


polêmico tratado por poucos doutrinadores brasileiros, o que gerou uma
oportunidade de desenvolver uma ampla pesquisa com uma maior liberdade para
formação de opinião, já que possui poucos posicionamentos firmados.A importância
desta questão da eficácia dos direitos fundamentais na esfera privada, em uma
época que presenciamos o surgimento e o crescimento de grandes conglomerados
econômicos com um poder tão relevante é indiscutível e irreversível. Para tanto se
faz uma abordagem da evolução histórica dos direitos fundamentais bem como uma
pesquisa detalhada a respeito das diversas vertentes desta doutrina conhecida
como drittwirkug mas que também apresenta vertentes distintas como as “state
actions”. Conclui-se o trabalho com as novas formas de influencia dos direitos
fundamentais na esfera privada como a questão da responsabilidade social bem
como da função social da propriedade. Em suma, o objetivo deste trabalho é
delimitar uma norma vertente dos direitos fundamentais tendo como base sua
evolução na história.

Palavras-chave: História. Direitos Fundamentais. Constitucionalismo. Drittwirkung.


Função Social da Propriedade.
ABSTRACT

The present work does a broach of a very recent and controversial subject. As until
now only a few Brazilian doctriners have dealt with this subject was possible to take
advantage of the opportunity to develop a wide research and to form opinion with
freedom. The importance of the fundamental rights effectiveness in the private area
is unquestionable and irreversible, specially, in a time that we witness wide
economical conglomerates with such an important power arising and developing.
This work presents a broach of the fundamental rights historical evolution as well as
a detailed research about the several angles of the doctrine known as drittwirkung
and it also presents different angles as the “state actions”. This study is concluded
with the new forms of the fundamental rights influence in the private area as the
question about the social responsibility as well as of the social function of property. In
short, the objective of this work is to delineate a norm angle of the fundamental rights
having its history evolution as a base.

Words Key: History, Fundamental Rights, Constitucionalism, Drittwirkung, Social


Function of Property
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO........................................................................................................9

2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS.............................. 12


2.1 Período Axial....................................................................................................... 12
2.1.1 Direitos humanos e direitos fundamentais........................................................14
2.2 Gerações ou Dimensões de Direito?...................................................................14
2.3 Primeira Dimensão...............................................................................................16
2.3.1 Declaração de Independência e Constituição dos Estados Unidos.................17
2.3.2 Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão.............................................20
2.3.3 Crise do Estado Liberal.....................................................................................21
2.4 Segunda Dimensão..............................................................................................22
2.4.1 Constituição Mexicana de 1917........................................................................23
2.4.2 Constituição de Weimar de 1919......................................................................24
2.5 Terceira Dimensão...............................................................................................26
2.5.1 Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948......................................27
2.5.2 Classificação técnica........................................................................................ 28
2.6 Os Direitos Humanos na Atualidade................................................................... 29

3 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DENTRO DA SISTEMÁTICA


CONSTITUCIONAL................................................................................................30
3.1 Constitucionalismo..............................................................................................30
3.1.1 Estado constitucional, Estado democrático e Estado democrático e social de
direito..........................................................................................................................33
3.2 Constituição e Direitos Fundamentais................................................................. 35
3.2.1 Direitos Humanos..............................................................................................35
3.2.2 Direitos subjetivos públicos.............................................................................. 37
3.2.3 Liberdades públicas.......................................................................................... 38
3.3 Direitos Fundamentais......................................................................................... 40
3.3.1 Teorias acerca dos Direitos Fundamentais na Constituição.............................41
3.3.1.1 Teoria jusnaturalista.......................................................................................42
3.3.1.2 Teoria positivista........................................................................................... 45
3.4 Características dos Direitos Fundamentais..........................................................48
3.4.1 Princípio da universalidade...............................................................................49
3.4.2 Princípio da proporcionalidade..........................................................................50

4 A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS.......................... 53


4.1 Questões Práticas............................................................................................... 53
4.1.1 Contexto atual.................................................................................................. 55
4.2 Doutrinas a Respeito da Eficácia Horizontal....................................................... 57
4.2.1 State actions.................................................................................................... 58
4.3 Drittwirkunk......................................................................................................... 61
4.3.1 Denominações ................................................................................................. 62
4.3.2 Origem histórica.............................................................................................. 63
4.3.3 O efeito da irradiação dos Direitos Fundamentais.......................................... 65
4.4 Teorias a Respeito da Aplicação....................................................................... .66
4.4.1 Teoria da eficácia direta ( unmittelbare drittwirkung)...................................... 66
4.4.2 Teoria da eficácia indireta (mittelbare drittwirkung)......................................... 69
4.4.3 Teses de Lombardi, Schwabe e Alexy............................................................ 72
4.4.4 Tese de Canotilho........................................................................................... 75
4.5 Os Tribunais e a Drittwirkug.............................................................................. 77
4.5.1 Casos emblemáticos........................................................................................ 79
4.5.2 As funções do legislador do juiz ordinário e do juiz constitucional....................81
4.6 Uma Nova Perspectiva a Respeito da Eficácia Horizontal dos Direitos
Fundamentais........................................................................................................... 81
4.6.1 Uma resposta às mudanças econômicas e sociais deste século.................... 82
4.6.2 A função social da empresa............................................................................. 83
4.6.3 Aspectos jurídicos da função social - Um paralelo com a teoria da
drittwirkung.............................................................................................................. 85
4.6.4 A Responsabilidade Social.............................................................................. 87

5 CONCLUSÃO.........................................................................................................91
9

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho foi baseado em uma cuidadosa pesquisa bibliográfica,


buscada entre os autores mais reconhecidos que trataram em seus estudos sobre
cada tema, nas áreas de história do direito, de direito constitucional e por fim,
autores que tratam especificamente do tema central desta pesquisa, qual seja, a
eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
Nesta última parte do trabalho, foram utilizadas, principalmente obras
de autores estrangeiros, uma vez que o tema não tem grande campo de
desenvolvimento no direito pátrio.
Quanto aos métodos utilizados, a opção foi pelo indutivo e dedutivo,
uma vez que estes proporcionariam um melhor desenvolvimento do tema, e ao final
uma abordagem mais ampla do assunto.
Este estudo parte de uma ampla introdução histórica, iniciada no
chamado período axial, anterior à história clássica do direito que, via de regra, segue
a sequência das dimensões do direito.
Em seguida foi abordada a polêmica a respeito do uso dos termos
“gerações” e “dimensões”, sendo explanados os pontos de vista de grandes
doutrinadores constitucionalistas até chegar-se, não a uma conclusão decisiva, mas
a um critério mais lógico e coerente a respeito do tema, destacando-se os
argumentos para a utilização de uma denominação em prejuízo de outra.
Ponderada a questão terminológica a respeito das fases evolutivas dos
direitos fundamentais, foram abordadas as dimensões do direito, da primeira à
terceira, buscando sempre enfatizar suas principais características, sem deixar de
interrelacioná-las e demonstrar a influência de uma sobre a outra, de modo a
apresentar uma verdadeira evolução dos direitos fundamentais.
Esta introdução, que consistiu em um dos capítulos mais ricos e
amplos do trabalho, tem uma grande relevância para o restante da mesma, uma vez
que a compreensão dos estágios evolutivos dos diretos fundamentais, permite
visualizar esse novo aspecto de sua eficácia, qual seja, a relação entre particulares
como uma herança de uma evolução centenária.
O primeiro capítulo encerra-se com uma análise dos direitos humanos
na atualidade, abordando principalmente o que aconteceu após a promulgação da
Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, quais as transformações
10

sofridas pela história e geopolítica mundial que influenciaram as principais


mudanças em seu aspecto nesses 60 anos. Destaca-se nesta análise a esperança
que essa declaração ainda traz no coração da humanidade apesar das decepções já
sofridas.
No segundo capítulo, após demonstrada a evolução dos direitos
fundamentais e compreendido que durante sua evolução, estes direitos foram
enraizados dentro de uma sistemática constitucional, buscou-se situá-los dentro
dessa sistemática. Primeiramente abordou-se a temática do constitucionalismo, e
como, a partir de um dos primeiros contratos sociais – a Magna Carta (1215) -
escrito no período medieval, o ser humano chegou a um modo de pensar o direito, a
estrutura do Estado e os direitos fundamentais unidos em um único texto e de um
modo muito eficiente e complexo. Além disso, complementa este capítulo a análise
do conceito de constitucionalismo proposto pelos mais renomados autores de nossa
época.
Buscou-se ainda, demonstrar as diversas denominações recebidas
pelos direitos fundamentais e por não se tratar de sinônimos, mas de nomenclatura
dada a um grupo de direitos dependendo do contexto em que são utilizados, o
objetivo foi demonstrar porque não se pode nem se deve confundir direitos
humanos, direitos subjetivos públicos, liberdades públicas com direitos
fundamentais.
Foram expostos o significado, a origem e a maneira de aplicação de
cada um deles, para ao final demonstrar que tem significado distinto dos direitos
fundamentais ora estudados.
Em seguida, se explanou as teorias dos diretos fundamentais nas
constituições, qual sejam, a teoria jusnaturalista e positivista. Além de contrastá-las
o objetivo foi demonstrar seus principais pontos e a influência de ambas no modelo
jurídico constitucional atual, uma vez que nesse contexto é inviável a adoção
exclusiva de uma ou outra.
Para finalizar este segundo capítulo, foram abordados os princípios da
universalidade e proporcionalidade dos direitos humanos. Estes princípios foram
eleitos uma vez que por fazerem parte da estrutura dos direitos fundamentais, eles
os definem e caracterizam como direitos únicos por conta, principalmente, destes
dois princípios. Além disso, dão suporte para a compreensão da eficácia dos diretos
fundamentais entre terceiros, tema do terceiro capítulo.
11

O terceiro capítulo trata da eficácia horizontal dos diretos fundamentais


propriamente dita. Como já foi assinalado esse capitulo, principalmente, foi baseado
nas obras dos grandes autores mundiais a respeito do tema.
Inicialmente se expôs casos reais que bem ilustram e problematizam o
tema. Em seguida, teceram-se alguns comentários a respeito do contexto histórico
da humanidade nos dias atuais e da influência das principais mudanças dos últimos
50 anos nos direitos fundamentais.
A seguir foram analisadas as duas principais teorias a respeito da
eficácia horizontal dos direitos fundamentais, quais sejam, a State Action surgida
nos Estados Unidos e a Drittwirkung, doutrina de origem alemã.
Quanto à primeira, como é clássico no direito norte-americano, seu
estudo foi baseado na análise dos principais cases e nas decisões da Suprema
Corte.
Já a Drittwirkung, por tratar-se de uma doutrina mais complexa e mais
desenvolvida, foi subdividida em vários sub-tópicos que tratam de pontos como sua
correta denominação, sua origem histórica, até chegar em seu ponto mais polêmico,
ou seja, as teorias a respeito de sua eficácia.
As teorias a respeito da eficácia da Drittwirkung se polarizam
tradicionalmente em teoria da eficácia direta e teoria da eficácia indireta. Além de
expor as características de cada uma delas, buscou-se apresentar as teses
alternativas dos principais doutrinadores que buscam harmonizá-las.
Logo após discutiu-se a respeito do papel dos Tribunais no
desenvolvimento e aplicação dos diretos fundamentais nas relações privadas, bem
como a respeito do papel do legislador, além dos possíveis conflitos que podem vir
a surgir entre eles.
Para finalizar o trabalho, buscou-se discutir as novas tendências
mundiais que influenciam a aplicação da Drittwirkung, como a função social e a
questão da responsabilidade social das empresas, ou seja, uma forma voluntária de
respeito aos direitos fundamentais visando a adequação dessas empresas a um
novo público consumidor mais consciente e exigente a respeito de seus diretos
fundamentais, sempre dando-se ênfase às mudanças históricas e sociais pelas
quais passou a humanidade até atingir esse nível de compreensão dos direitos.
12

2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

2.1 Período Axial

É sabido que nos primórdios da humanidade o ser humano buscou


explicações para toda a gama de fenômenos naturais que aconteciam ao seu redor,
e a primeira forma encontrada para fazê-lo foi através das explicações
sobrenaturais. Desenvolveram-se então, as mais variadas religiões que atribuíam
tais fenômenos aos deuses, fazendo do ser humano um mero espectador, tanto da
natureza quanto de sua própria vida social que eram, via de regra, guiadas pelos
deuses cuja vontade, caso não fosse atendida, acarretaria para seu povo uma série
de desgraças naturais.
Ocorre que, a partir de um determinado período da história da
humanidade tais explicações deixaram de ser de cunho religioso e tornaram-se
filosóficas, ou seja, o ser humano passou a dar explicações racionais aos mais
variados acontecimentos, naturais e sociais. Tal período foi denominado, segundo
Fábio Konder Comparato (1999, p.8), de período axial (Achsenzeit), que durou por
volta do século VIII ao século II a.C. Data da mesma época a coexistência, porém
sem comunicação, dos grandes pensadores da história da humanidade como Buda
na Índia, Zaratustra na Pérsia, Confúcio na China, Pitágoras na Grécia entre outros,
que contribuíram para o desenvolvimento do pensamento filosófico da época.
Embora longínquo, tal período é de suma importância para a história do
desenvolvimento dos direitos humanos, já que, a partir dele com o desenvolvimento
da humanidade e do pensamento racional, ocorreram várias mudanças. Com o inicio
do contato entre povos de diferentes culturas, o homem passou a desenvolver a
idéia de que todos, independentemente de diferenças culturais, são dotados de
liberdade e razão. Portanto, segundo Fábio Konder Comparato (1999, p.11)
“Lançavam-se, assim, os fundamentos intelectuais para a compreensão da pessoa
humana e para a afirmação da existência de direitos universais, porque a ela
inerentes.”. Benjamin Constant (2002, p.63) em seu discurso pronunciado no Ateneu
de Paris fez as devidas distinções do que chamou de liberdade dos antigos, durante
o período acima citado, e a liberdade dos modernos.
13

Para ele a primeira estava ligada ao exercício direto da soberania pelo


povo, com a deliberação de todos os assuntos referentes ao Estado em que viviam.
Em contrapartida, não havia, na época, qualquer vestígio de liberdades individuais.
A vida privada do indivíduo era constantemente invadida pela coletividade e pelos
governantes.
Como assegura Benjamin Constant (1988, p.70):

Esta consistía en ejercer colectiva, pero directamente muchas partes de la


soberanía; en deliberar en la plaza pública sobre la guerra o la paz [...].Pero,
al mismo tiempo que era todo esto lo que los antiguos lhamaban libertad,
ellos admitían como compatible com esta libertad colectiva la sujeción
completa del individuo a la autoridad de la multitud reunida ( grifo nosso)

Quanto à liberdade dos modernos, embora não haja uma participação


direta nas decisões do Estado, o indivíduo goza de extensa liberdade individual, já
que não pode o Estado interferir na vida privada do cidadão.
Norberto Bobbio(1992,p.56), também faz referência a esse período da
história em sua obra A Era dos Direitos, porém refere-se a ele como “Era dos
Deveres”. Segundo Bobbio as primeiras normas da história da humanidade eram
basicamente proibitivas e obrigatórias, porque o grupo era essencialmente mais
importante que o indivíduo.
Segundo Norberto Bobbio (1992, p.56):

Originariamente, a função do preceito “não matar” não era tanto a de


proteger o membro individual do grupo, mas a de impedir uma das razões
fundamentais da desagregação do próprio grupo. A melhor prova disso é o
fato de que esse preceito, considerado justamente como um dos
fundamentos da moral, só vale no interior do grupo: não vale em relação
aos membros dos outros grupos.

Portanto a primeira noção que o ser humano teve de direito foi


instintivamente de sobrevivência, já que o grupo era sinônimo de proteção e força e
por isso surgiram normas voltadas para a proteção do mesmo, ainda que isto
implicasse a restrição da liberdade do indivíduo.
14

2.1.1 Direitos humanos e direitos fundamentais

São várias as denominações dadas para conceituar essa gama de


direitos de suma importância para a vida e o desenvolvimento da humanidade.
Dentre elas as mais conhecidas são: liberdades públicas, direitos humanos, direitos
fundamentais e direitos humanos fundamentais. Ocorre que embora todas estas
expressões, a priori, pareçam sinônimos existem diferenças relevantes entre elas.
Portanto, desde já, se faz importantes diferenças entre direitos
humanos e direitos fundamentais. A doutrina alemã, segundo a obra de Klaus Stern
(1988, p.35) faz uma das mais contemporâneas distinções, segundo a qual direitos
humanos são aqueles que existem independentemente de um ordenamento jurídico
que os consagre; são direitos naturais inerentes a todo ser humano. Já os direitos
fundamentais são os direitos humanos positivados em um texto constitucional
revestindo-se assim de formalidade jurídica o que nos leva a crer que nem todos os
direitos humanos são direitos fundamentais e que os direitos fundamentais de um
país podem não ter vigência de direitos humanos.
Sendo assim a idéia surgida no chamado período axial foi um embrião
dos direitos humanos já que não havia, na época, a positivação de tais direitos. Tal
concepção só surgiu milênios depois, de forma mais enfática, com a chamada fase
constitucionalista dos séculos XVIII e XIX. Daí a importância de se fazer uma análise
das chamadas gerações ou dimensões do direito a fim de se compreender todas as
fases da evolução dos direitos humanos.

2.2 Geração ou Dimensão de Direitos?

Vários doutrinadores brasileiros como Vidal Serrano Nunes Júnior e


Luiz Alberto David Araújo (2001, p.87-88), Paulo Bonavides (1998, p.516-525) e os
portugueses Jorge Miranda (1997-2007,12-18) e José Joaquim Gomes Canotilho
(2002, p.380) dividem os direitos humanos fundamentais, em três gerações,
dimensões ou categorias, com características próprias dos momentos históricos que
inspiraram a sua criação.
15

Esta classificação tradicional estabelecida por Bobbio (1992), no


entanto, tem sido alvo de críticas, as quais apontam para a não-correspondência
entre tais “gerações de direito” e o processo histórico de efetivação dos direitos
humanos.
Como destaca Carlos Weis, (1999, p.40-44) insistir na idéia geracional
de direitos, além de consolidar uma imprecisão da expressão em face da noção
contemporânea desses direitos, pode se prestar como justificativa para políticas
públicas que não reconhecem a indivisibilidade da dignidade humana e, portanto,
dos direitos fundamentais, geralmente em detrimento da implantação dos direitos
econômicos, sociais e culturais ou do respeito aos direitos civis e políticos previstos
nos tratados internacionais.
Nas palavras de Carlos Weis, o que se poderia pensar ser apenas uma
questão vocabular acaba por determinar perigosa impropriedade da locução, ao
conflitar com as características fundamentais dos direitos humanos
contemporâneos, em especial sua indivisibilidade e interdependência, que se
contrapõem à visão fragmentária e hierarquizada das diversas categorias.
Também contrário à classificação histórica de Bobbio, Valério Mazzuoli
(2000, p.211) afirma que as gerações induzem à idéia de sucessão, através da qual
uma categoria sucede a outra que se finda. Para o autor, o processo de
desenvolvimento dos direitos humanos, assim, opera-se em constante cumulação,
sucedendo-se no tempo vários direitos que mutuamente se substituem, consoante a
concepção contemporânea desses direitos, fundada na sua universalidade,
indivisibilidade e interdependência.
Acredita-se que é possível utilizar essa classificação ao menos para
alguns países centrais da Europa, embora a palavra “dimensão” possa substituir de
forma mais correta a palavra “geração”, que ao nosso entender não está utilizada de
forma errada se levarmos em conta o caráter histórico dessas gerações, como se
passa a explicar.
O problema principal foi detectado por Boaventura de Sousa Santos,
(1999, p.35-37) para quem a classificação não pode ser devidamente adequada aos
países periféricos e semiperiféricos, como o Brasil. Durante o período do liberalismo,
muitos desses países eram colônias. Por outro lado, o Estado-Providência é um
fenômeno político praticamente exclusivo dos países centrais da Europa,
16

começando pela Constituição da República de Weimar (1919), que teve Max


Webber na sua comissão redatora.
As chamadas sociedades periféricas e semiperiféricas caracterizam-se
em geral por enormes e gritantes desigualdades sociais que mal são mitigadas pelos
direitos sociais e econômicos, os quais, ou não existem, ou, se existem, tem uma
difícil aplicação. Aliás, os próprios direitos da primeira geração, que o autor chama
de direitos cívicos e políticos, têm uma vigência precária, fruto da grande
instabilidade política que tem vivido esses países, com períodos de exceção e
ditadura. Como ressalta Boaventura, as situações variam enormemente de país para
país.
No que respeita ao caso que mais nos interessa, que é o dos países
semiperiféricos, como o Brasil, a consolidação dos direitos cívicos e políticos é muito
superior à dos direitos da segunda ou da terceira geração.
Portanto atualmente o termo dimensões se faz mais técnico tanto para
compreensão da evolução dos direitos humanos em países como no Brasil e será
esse o termo usado no presente estudo.

2.3 Primeira Dimensão

A chamada primeira dimensão de direitos foi fruto da queda do antigo


regime, ou seja, do rompimento do status quo da época, o absolutismo monárquico.
Com o absolutismo monárquico a Europa se viu tomada pelo governo de reis que
concentravam todo o poder do Estado em suas mãos e assim sendo, governavam
de forma arbitrária segundo sua própria vontade sem se sujeitar a nenhum limite.
Tal poder era justificado pela teoria do direito divino, já que o rei era o
representante de Deus na terra e por isso limitar os atos do soberano era o mesmo
que impor limites ao próprio Deus.
A primeira tentativa de restrição desse poder ocorreu em 1215, na
Inglaterra, quando os barões sentindo-se ameaçados e prejudicados pelo rei João
Sem Terra que havia levado o seu reino a conflitos de interesse particular com o
então rei da França, Felipe Augusto, e com a própria Igreja Católica.
17

Nesse contexto os barões lançaram mão de uma revolta armada para


pressionar o rei a assinar um documento que consagrava vários direitos que
limitavam seu poder e ampliavam as liberdades individuais.
Dentre as várias inovações trazidas por esse documento como o
tribunal do júri, certas liberdades eclesiásticas, o princípio do devido processo legal,
duas foram mais relevantes: a primeira foi o fato de pela primeira vez o rei ter que se
sujeitar a uma lei por ele criada; a segunda por deixar entender que os direitos dos
dois estamentos livres, o clero e a nobreza, existiam independentemente do
consentimento do monarca.
Segundo Fabio Konder Comparato (1999, p.76):

Aí está a pedra angular para a construção da democracia moderna: o poder


dos governantes passa a ser limitado, não apenas por normas superiores,
fundadas no costume ou na religião, mas também por direitos subjetivos
dos governados.

Séculos depois, com o advento da independência dos Estados Unidos


da América e da Revolução Francesa, desencadeou-se uma série de
transformações na Europa e no mundo e consolidou-se o Estado liberal, que zelava,
principalmente, pelas liberdades individuais limitando ao máximo a interferência do
Estado na vida dos cidadãos visando com isso evitar as arbitrariedades ocorridas
durante o período do absolutismo monárquico.
Em tal contexto os direitos eram formalmente declarados não havendo
qualquer meio para sua efetivação. Por conta disso a primeira dimensão de diretos
passou a ser conhecida como a dos diretos de liberdade políticas e civis dentre elas
o direito ao voto, a livre manifestação do pensamento, liberdade religiosa entre
outras consideradas de suma importância para a sociedade da época.
Tal realidade pode ser verificada nos dois principais documentos
referentes à primeira dimensão, que serão analisados a seguir.

2.3.1 Declaração de Independência e Constituição dos Estados Unidos

Antes de serem analisadas as inovações trazidas por tais documentos,


que lançaram as bases para o Estado Democrático de direito, hoje conhecido, com
18

divisão e limitação dos poderes, norma constitucional, entre outros elementos, é


preciso considerar o contexto histórico que levou os Estados Unidos a se destacar
do restante do mundo e fundar uma nova forma de organização política.
Quando o magistrado francês Aléxis de Tocqueville (1951, p.80), apud
Comparato (1999, p.94) visitou os Estados Unidos, em 1831, teceu as seguintes
observações a respeito da ex-colônia inglesa: “Desconheço um país em que o amor
do dinheiro ocupe um lugar mais amplo no coração do homem, e onde se professe
um desprezo mais profundo pela teoria da igualdade permanente dos bens.”
O espírito mercantilista foi fator crucial para o desenvolvimento da
então colônia britânica já que, a livre circulação dos bens levou a inexistência de
estamentos naquela sociedade e, consequentemente, de privilégios destinados à
determinada classe social, o que levou ao surgimento de uma democracia burguesa
na qual, segundo Fabio Konder Comparato (1999, p.95) “...a igualdade perante a lei
exercia função de garantia fundamental da livre concorrência ...”
Tais características já foram delimitadas desde o inicio da colonização
com os chamados compacts firmados ainda durante a viagem para a colônia e,
dentre eles, o mais relevante foi o Mayflower Compact, de 1630. Nele foram
delimitadas as principais liberdades e os principais deveres que os peregrinos teriam
na nova terra sendo, portanto, um exemplo marcante da teoria do contrato social.
Esses eventos, que geraram uma sociedade singular, somados a
fatores como a guerra franco–inglesa, que levou o governo inglês a tomar uma
atitude autoritária sobre sua colônia americana, desencadearam a inevitável
independência dos Estados Unidos da América acompanhada de uma Declaração
de Independência histórica por ter afirmado os principais princípios democráticos do
mundo contemporâneo.
Dentre tais princípios o mais relevante para a afirmação dos direitos
fundamentais foi o da soberania popular. Até então entendia-se que a soberania
pertencia a uma só pessoa, no caso o soberano, que por conta disso detinha todo o
poder do Estado. Após a citada Declaração foi firmada a compreensão de que todo
cidadão é portador de direitos naturais inerentes a todo ser humano, além de deter o
poder político supremo, que cede, por sua livre escolha, a um governo que tem o
dever de zelar por seus direitos naturais. Assim, como esse governo tem como
principal objetivo a manutenção dos direitos do cidadão, uma vez que essa função
19

seja desvirtuada, cabe a esses mesmos cidadãos o direito de depor tal governo.
Trata-se do direito de revolução.
Tendo se tornado independente da metrópole, os Estados Unidos não
se separaram apenas de um país ao qual tinham estado submetidos, mas de todo
um sistema político e jurídico e consequentemente de toda segurança conhecida na
época, como cita Fabio Konder Comparato (1999, p.105), ou seja, a proteção
familiar, do estamento e religiosa. Surgiu, portanto, a necessidade de conceder ao
cidadão um ponto de apoio e segurança, vital para a formação do novo Estado, e
nada melhor que transformar os direitos naturais que serviram de justificativa para a
soberania popular em direitos positivos que passariam a regular toda a sociedade.
Mas a legalização desses direitos não ocorreu de qualquer maneira,
mas na forma de uma Constituição, ou seja, uma norma emanada da suprema
vontade do povo com o fim de limitar o poder do Estado e assim conservar a
liberdade do individuo.
Foram esses os moldes da Declaração de Direitos da Virgínia, de
1787, um documento que visava à declaração de direitos que limitavam o poder do
Estado e geravam conseqüente segurança para o cidadão. As principais inovações
dessa Declaração foram: a divisão de poderes, o tribunal do júri, a eleição popular
como a única forma de acesso a cargos de governo.
Quanto à declaração de direitos, havia vários opositores que
consideravam que um Bill of Rights significaria uma concessão do poder do Estado
ao povo, o que não fazia sentido em um Estado onde se acabara de declarar que o
poder emanava do povo. Além disso, cada estado já possuía seu próprio Bill of
Rigths e não havia a necessidade de consagrar outro na Constituição que deveria se
limitar a evitar arbitrariedades do Estado, ou seja, deveria se limitar aos direitos
negativos.
Porém venceu na época o desejo de se consagrar uma declaração de
direitos válida constitucionalmente. Foi nesse contexto que surgiram as dez
primeiras emendas da Constituição Americana que consagraram direitos como o
devido processo legal, a liberdade religiosa, a liberdade de opinião, entre outros.
20

2.3.2 Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão

Outro documento fundamental a estabelecer as bases do Estado liberal


foi a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, fruto da Revolução Francesa.
Diferentemente do que ocorreu nos Estados Unidos da América, tal documento foi
destinado não somente aos cidadãos franceses, mas para toda a humanidade.
Além disso, tal acontecimento histórico mudou o sentido do termo
revolução até então conhecido. Segundo a tradição revolução era o movimento que
visava restabelecer uma ordem vigente em outra época, ou seja, era um movimento
de voltar ao que fora. Após o advento da Revolução Francesa, o termo revolução
passou a ser usado como o significado de rompimento com as estruturas existentes
e estabelecimento de uma nova ordem, sem qualquer vínculo com a anterior. Já o
termo restauração passou a ser usado no antigo sentido de revolução.
Por este motivo a revolução visou à criação de uma nova ordem
econômica, política, jurídica e até cronológica já que deixou-se de usar o calendário
cristão e passou-se a utilizar um novo calendário tendo como ano 1 o ano da
revolução e da então queda do Antigo Regime.
Porém, a Revolução Francesa apresentou fraquezas. Por exemplo: os
revolucionários não se preocuparam em criar mecanismos para efetivação dos
direitos declarados e ela visou, principalmente, segundo Fabio Konder Comparato
(1999, p.131) “ [...] a supressão das liberdades estamentais do que a consagração
das liberdades individuais para todos.”
Assim sendo, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de
1789, firmou entendimentos de extrema importância como a soberania popular. Pela
primeira vez compreendeu-se o poder do soberano e, conseqüentemente, de
qualquer governante como constituído e não constituinte. Surgiu ainda com o texto
constitucional francês, a idéia do principio da legalidade, além do, é claro, o “sagrado
direito á propriedade”, de suma importância para os interesses burgueses.
21

2.3.3 Crise do Estado liberal

A Revolução Francesa, assim como ocorreu com a independência dos


Estados Unidos, concretizaram, como já visto, a queda do absolutismo monárquico e
uma nova ordem econômica e social conhecida como liberalismo.
A própria denominação desse período já passa a idéia do que ele
significou. Liberal vem do latim liberalis e quer dizer “partidário da liberdade”, ou
seja, essa época foi marcada pela concretização dos ideais tão cobiçados pelo
homem no período absolutista.
Ocorre que essa liberdade era meramente formal. O homem, na época,
dispunha de direitos declarados, porém sem qualquer instrumento de concretização,
o que veio inevitavelmente a gerar uma dominação, não política mas econômica e
social, dos que detinham o poder econômico, ou seja a classe burguesa, sobre
aqueles que possuíam meramente sua força de trabalho.
Sem qualquer proteção a classe trabalhadora começou a entrar em
colapso e foram praticamente expulsos do campo, já que a classe burguesa visava a
utilização das terras para produção de riquezas e não mais para a subsistência, o
que gerou um intenso êxodo rural.
Essa população que viveu por séculos no campo viu como única opção
o trabalho nas fábricas surgidas com a revolução industrial.
Por conta da abundância de mão de obra causada pelo êxodo rural e
pela falta de qualquer mecanismo de proteção às condições de trabalho dessas
pessoas eram desumanas. Jornadas extensas, baixos salários, trabalho infantil e
condições péssimas de vida, geraram neste grupo várias formas de revolta, algumas
inconscientes e outras, posteriormente, conscientes.
Como já citado o Estado se absteve, reduziu-se à condição mínima de
protetor da liberdade. A extrema exploração e a grande pobreza que assolava
aquela sociedade culminaram em uma crise social, com o aumento absurdo do
alcoolismo e da prostituição, com revoltas nas quais os operários destruíram as
maquinas, já que a priori as consideravam o motivo de suas precárias vidas.
A célebre expressão usada por Thomaz Hobbes “o homem é o lobo do
homem” pode ser muito bem aplicada à sociedade da época com a extremada
dominação do particular em relação ao particular.
22

Porém após as manifestações inconscientes e isoladas, começaram a


surgir novas doutrinas que explicavam a crise social e contestavam o modelo de
estado liberal. As mais relevantes foram o anarquismo e o comunismo ou socialismo,
sendo que ambas pregavam o fim do Estado vigente mas de maneiras diferentes.
Para os anarquistas o Estado tradicionalmente conhecido é uma
autoridade imposta e coercitiva, já que detém o monopólio do uso da força e
deveriam ser abolidas toda a ordem hierarquicamente imposta e, deveria haver
apenas organizações horizontais e livres.
Já os socialistas acreditavam em um sistema político que se
apropriasse dos meios de produção e os tornasse coletivos a fim de que todos se
tornassem trabalhadores e que as riquezas fossem divididas equitativamente, sendo
que, em um momento posterior, a sociedade socialista seria substituída pela
comunista onde não haveria um Estado integral e as desigualdades sociais seriam
totalmente eliminadas.
Tais pensamentos geraram uma série e revoltas operárias a fim de
viabilizar sua implantação o que causou preocupação nos governantes e nas
classes detentoras do poder e chegou-se à conclusão que algumas reformas
deveriam ser implantadas a fim assegurar a manutenção da ordem liberal.
Diante das contradições do governo liberal foi elaborada uma síntese,
ou seja, o Estado Social: as liberdades seriam mantidas, porém o Estado passaria a
intervir a fim de proteger os socialmente vulneráveis e dar a eles condições e
oportunidades para viver o estado da liberdade.
Nasce neste momento a dimensão da igualdade e dos direitos sociais.

2.4 Segunda Dimensão

A crise do Estado liberal culminou na ascensão do chamado Estado do


Bem Estar Social. Assim como na primeira dimensão a declaração de independência
dos Estados Unidos e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, foram os
documentos de maior relevância, durante a segunda dimensão duas foram as
principais cartas: a Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de
1919. Esses foram os primeiros documentos nos quais constaram, relevantemente,
direitos sociais como os do trabalhador e à educação e os primeiros a imputar ao
23

Estado o dever de assegurá-los. Nesse contexto histórico foi que surgiram esses
dois documentos, analisados a seguir.

2.4.1 Constituição Mexicana de 1917

Desde o final do século XIX e início do século XX, o México vivia uma
ditadura encabeçada por Porfírio Diaz, governada por uma restrita aristocracia rural
que negava à população todo e qualquer direito de cunho social. Em 1906, Ricardo
Flore Magón líder do grupo Regeneracíon lançou um manifesto que viria a ser à
base da futura Constituição do México. Influenciado pelas idéias de Mikhail Bakunin
este manifesto continha direitos como à educação e de proteção ao trabalho
assalariado.
Em 1917 foi promulgada tal constituição de extrema importância para
a evolução dos direitos humanos já que foi a primeira na história a assegurar de
forma concreta os direitos sociais, sendo que a Europa só seguiria a mesma
tendência após a primeira guerra mundial.
Dois pontos são de extrema importância na análise dessa Constituição:
primeiro a desmercantilização da força de trabalho e em segundo lugar sua
diferença com o movimento de revolução da Rússia.
Embora a sociedade mexicana da época fosse predominantemente
agrária e não houvesse uma economia urbana e industrial como já ocorria na
Europa e que foi fonte dos movimentos anarco-comunistas, o México foi o primeiro
país a lutar pelo que o proletariado europeu já lutava, ou seja, lutar pela proibição de
equiparar qualquer força de trabalho a uma mercadoria capitalista. Para isso criou
normas como a responsabilização do empregador pelos acidentes de trabalho,
jornada de trabalho de oito horas, descanso semanal remunerado, direitos da
trabalhadora gestante, salário mínimo, entre outros.
Quanto à diferença em relação à Revolução Russa, baseada no
marxismo, embora a carta mexicana tenha se baseado no pensamento socialista,
não reduziu toda a sociedade à apenas a classe trabalhadora, mas manteve
algumas premissas do Estado liberal, porém, com a implementação dos direitos
sociais.
24

Ocorre que a repercussão desse documento não foi tão grande quanto
a da Constituição de Weimar de 1919 que será analisada a seguir.
É importante frisar que embora a carta acima citada e a próxima ser
analisada tenham sido de extrema importância para o Estado Social e para sua
concretização elas não foram as primeiras a assegurar esses direitos e nem
romperam totalmente com o modelo liberal.
Segundo Floriano Corrêa Vaz da Silva (1997, p.35)

[...] seria uma esquematização simplista a afirmação de que as


Constituições do século XIX foram todas puramente liberais e as
Constituições do século XX marcadamente sociais. Em quaisquer
Constituições, nas mais diversas épocas, podem ser encontrados e
pesquisados dispositivos concernentes à ordem social e econômica,
cláusulas que, explícita ou implicitamente, definem o regime econômico-
social pretendido pelos constituintes. A própria ausência de cláusulas
sociais numa Constituição traduz a opção por determinado sistema. E esta
ausência, é claro, não impede uma lenta construção jurisprudencial, nem
emendas constitucionais, nem legislação ordinária – que irão, pouco a
pouco, delinear, dentro do sistema constitucional, uma série de direitos
sociais e trabalhistas, que passam a integrar o arcabouço econômico-social
do país.

Deste modo, o fato de se definir uma constituição de liberal ou social,


não é uma máxima, mas uma forma de se demonstrar suas principais
características, ou seja, as idéias predominantes, sendo que, dentro dessas
sistematizações encontram-se com menos efetividade, ideologias diversas, embora
não predominantes.
No caso, existem tendências liberais em constituições sociais e vice-
versa e dificilmente vamos nos deparar com textos que preguem de forma exclusiva
uma única ideologia.

2.4.2 Constituição de Weimar de 1919

Promulgada em 1919 a chamada Constituição de Weimar foi fruto de


vários fatores históricos como a unificação dos Estados alemães, a consolidação do
capitalismo e a Primeira Guerra Mundial, entre outros.
Unificada em 1864 a Alemanha era anteriormente formada por vários
estados independentes que se inter-relacionavam politicamente.
25

Em 1914 o jovem Estado se lançou em uma guerra contra as grandes


potências européias da época (França e Inglaterra) com o fim de se afirmar como
também potência daquele continente.
Ocorre que o país não tinha condições econômicas de manter uma
guerra por tanto tempo e com a entrada dos Estados Unidos da América no combate
ao lado de França e Inglaterra, a Alemanha foi obrigada a assinar um armistício para
se ver livre daquela situação.
Durante a guerra o governo alemão com a finalidade de evitar conflitos
internos, passou a apoiar os sindicatos, e essa não foi a única mudança social
ocorrida no período: o conflito modificou toda a estrutura da sociedade alemã
tornando-a mais dinâmica.
Segundo Marco Aurélio Perez Guedes (1998, p.39)

As mudanças podem ser notadas pelo reconhecimento governamental da


existência e do papel dos sindicatos de trabalhadores pouco depois do
início das hostilidades. Reconhecimento este necessário para evitar a
realização de greves durante o esforço de guerra.

O armistício fez com que a Alemanha se comprometesse a


transformar-se em uma república, embora esta idéia não estivesse tão bem definida
naquele país na época. Como lembra Fabio Konder Comparatto(1999, p.195) no
início do texto da primeira constituição republicana da Alemanha lê-se “ Das
Deutchreicht ist ein Republik”, ou seja, “ O Império Alemão é uma República”
Foi justamente com este preâmbulo que em 1919 foi promulgada a
Constituição de Weimar. Dividida em duas partes, a primeira tratava da organização
política do Estado e a segunda declarava os direitos do povo.
Ocorre que, ao contrário de outras cartas tradicionais assim divididas, a
segunda parte da citada carta assegurava não apenas os direitos de liberdade até
então conhecidos, mas direitos de cunho social.
Isso faz dela uma norma de cunho liberal e socialista ao mesmo tempo,
algo inovador em um estado liberal como os da Europa do início do século XX.
Dentre os direitos declarados na Carta de Weimar os mais relevantes
foram os referentes à proteção do trabalhador, os ligados à educação, saúde e à
proteção da família.
26

Além de meramente declarados, com a superação da crise econômica


trazida pela guerra, o governo alemão passou a investir em áreas sociais como a
educação desde a primária até a universitária, saúde, previdência, o que garantia os
direitos já declarados.
Quando aos direitos do trabalhador, estes foram fruto de alguns
conflitos, já que, com o crescimento econômico houve consequentemente um
crescimento e enriquecimento da classe burguesa que via seus interesses
conflitados com os direitos trabalhistas constitucionalmente previstos. Como escreve
Marco Aurélio Perez Guedes (1999, p.86):

De fato , a indústria se modernizou , os métodos de produção foram


racionalizados, mas com a intervenção do Estado nos sindicatos e alianças
dos governos de gabinete com o poder econômico e os partidos de centro –
direita , impelem a uma série de restrições aos salários e aos Direitos
Sociais previstos na Constituição de Weimar.Os pontos críticos deste
conflito concentram-se na jornada de oito horas e nos contratos coletivos.

Ainda assim Weimar foi a Constituição base para os futuros Estados do


Bem Estar Social que surgiriam após o término da Segunda Guerra Mundial e que
vigem até hoje.

2.5 Terceira Dimensão

A chamada terceira dimensão de direitos foi consagrada como a dos


direitos de fraternidade, e estão ligados, mais tecnicamente falando, aos chamados
direitos difusos e coletivos, ou seja, àqueles que não são inerentes somente ao
cidadão como os das dimensões anteriores, mas à toda a coletividade.
Este patamar da evolução dos direitos fundamentais foi fruto de
relevantes fatores históricos, principalmente da Segunda Guerra Mundial. Em
decorrência das atrocidades ocorridas durante essa guerra, o mundo se deu conta
que certas violações são exercidas contra um grupo de indivíduos e não apenas de
forma isolada.
Foi assim que em 1948 a Organização das Nações Unidas criou um
documento declarando a proteção aos direitos humanos oponível a todos os
27

cidadãos de todos os países do mundo: a Declaração Universal dos Direitos do


Homem que analisaremos a seguir.

2.5.1 Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948

Aprovada em 10 de dezembro de 1948 pela Assembléia Geral das


Nações Unidas, a Declaração Universal de Direitos Humanos foi conseqüência da
Segunda Guerra Mundial, mas dois fatos ocorridos nesse período foram
determinantes para a criação desse documento: um deles o Holocausto, que causou
o assassinato em massa de milhões de judeus e grupos de minorias nos campos de
concentração; o outro fato histórico relevante foi à devastação causada pelo
lançamento das bombas atômicas em Hiroshima e Nagazaki, já após o término da
Segunda Guerra Mundial.
Esses dois episódios constituíram um atentado contra a vida, a
dignidade e a liberdade de um grupo específico de pessoas. Com o fim da barbárie
havia no mundo todo um sentimento de repulsa a todos esses acontecimentos e foi
nesse contexto que referida carta foi criada e promulgada.
A priori, o plano da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas
era criar uma declaração como foi feito em 1948. Após isso segundo Fábio Konder
Comparato (1999), que cita um dos delegados da Comissão, elaborou-se “um
documento mais vinculante que uma simples declaração”, o que ocorreu em 1966,
com a aprovação de dois pactos.
Houve ainda, uma terceira etapa: a da criação de um sistema
especializado em avaliar as violações dos direitos humanos e consequentemente
assegurá-los.
Essa última fase ainda não se viu inteiramente concretizada, embora já
existam tribunais penais internacionais com o objetivo de julgar os crimes contra a
humanidade.
28

2.5.2 Classificação técnica

A Declaração Universal de Direitos Humanos é uma recomendação


aos membros das Nações Unidas. Para alguns tal documento por ser mera
declaração, não tem em si força vinculante, por se tratar de princípios de
convivência do ser humano.
Para Fábio Konder Comparato (1999, p.210):

Reconhece-se hoje , em toda parte , que a vigência dos direitos humanos


independe de sua declaração em constituições , leis e tratados
internacionais , exatamente porque se está diante de exigências de
respeito à dignidade humana , exercidas contra todos os poderes
estabelecidos , oficiais ou não.

Uma das principais inovações trazidas por esta carta é de considerar


os direitos humanos como inerentes a cada pessoa do globo, sem atribuí-los ao
povo de um determinado país, ou grupo, ou raça.
É fato que ao atribuir aos referidos direitos a característica “erga-
omines” e, portanto superior a qualquer outro direito já declarado, não é cabível dizer
que por conta de uma simples denominação técnica essa carta histórica não seria
vinculante.
E mais, o documento é chamado de Declaração Universal dos Direitos
Humanos e, como já analisado, os direitos humanos são naturais, ou seja, existem
independente de qualquer positivação, ao contrário dos direitos fundamentais, e
portanto são direitos naturalmente vinculantes que foram formalmente declarados
universalmente.
O referido documento trata desde a proibição da tortura e da
escravidão, até a liberdade que todo indivíduo goza em todas as partes do mundo,
assim como do seu direito a um tratamento igualitário.
Fala ainda sobre direitos de cunho social como a educação e de
política internacional como o direito do cidadão perseguido politicamente ao asilo
político.
29

2.6 Os Direitos Humanos na Atualidade

Após a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos de


1948, a sociedade já passou por mudanças significativas. A guerra fria mostrou pela
primeira vez a vulnerabilidade da Organização das Nações Unidas frente aos
interesses das potências da época (URSS e Estados Unidos da América). Ao fim da
guerra fria despontou no cenário mundial uma única potência, no caso os Estados
Unidos da América, que embora, seja a nação precursora da luta pelos direitos
humanos e a mentora da Organização das Nações Unidas, vem negando
significativamente a influência desta nos conflitos políticos mundiais, assim como a
assinatura de tratados referentes aos direitos humanos.
Além disso, a partir da década de 90, observa-se uma verdadeira
revolução na comunicação, com o surgimento do microcomputador que possibilitou
o acesso em massa à internet, sendo que alguns classificam, inclusive, a quarta
dimensão de direitos como sendo a dos direitos à informação.
Este fato foi justamente o que gerou o surgimento das empresas
multinacionais, conglomerados econômicos tão relevantes que chegam a ter um
lucro anual equivalente ao PIB de certos países. Na edição de março deste ano, a
revista Super Interessante divulgou que a Petrobrás gera mais riquezas que a Líbia,
a General Electric mais que o Marrocos e a Exxon Móbil, por sua vez, mais do que o
Egito.
Esses dados demonstram, mais do que a pobreza nos países
africanos, o poderio econômico de certas empresas e conseqüentemente seu
poderio político.
É neste cenário que ganha fôlego uma discussão iniciada no século
passado sobre a eficácia dos direitos fundamentais na esfera privada.
No século XXI o Estado não é o único a poder colocar em risco os
direitos fundamentais: particulares nunca tiveram nas mãos tanto poder. A diferença
entre eles é que o primeiro já tem seu poder limitado desde as revoluções liberais;
quanto ao segundo o mundo encontra-se ainda em fase de amadurecimento da idéia
de limitação e de dúvidas sobre a conveniência ou não dessa limitação.
30

3 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DENTRO DA SISTEMÁTICA


CONSTITUCIONAL

Só é possível, nos dias de hoje, analisar os direitos fundamentais


paralelamente ao contexto constitucional, já que foi neste que ocorreu o seu maior
desenvolvimento, ou mesmo seu surgimento da maneira como ele é atualmente
concebido.
Portanto a história, a evolução e as características da constituição
moderna se confundem com a própria história e afirmação desses direitos. Daí a
importância de fazer-se um estudo a respeito dos pontos da ciência constitucional
relevantes aos direitos fundamentais.

3.1 Constitucionalismo

O modelo constitucional contemporâneo pode ser entendido como uma


das maiores evoluções da sociedade moderna. Hoje a grande maioria dos países do
mundo, ainda que de maneiras distintas, adotam esse modelo.
Ocorre que seu surgimento foi fruto de um longo período de transição
entre a sociedade medieval e a moderna. A priori, com a queda do feudalismo e o
cisma religioso, foi preciso encontrar uma outra forma de justificação de poder, já
que a teoria do poder divino havia caído por terra e foi nesse contexto que surgiu o
contrato social.
Segundo a primeira noção do contrato social, era dado ao monarca
poderes absolutos a fim de que ele preservasse a paz e o bem estar de seu povo.
Muito embora possuísse o poder de criar as leis, não estava sujeito à elas.
Tal situação foi fruto de insatisfação de setores da sociedade, que em
tal período era dividida em estamentos, ou seja, classes sociais bem delimitadas que
dava a seus integrantes privilégios e poderes específicos.
Essa insatisfação culminou na exigência, por parte de alguns
estamentos, da criação de uma carta que limitasse o poder discricionário do
monarca. Ocorre que essa limitação funcionava como uma concessão do rei e
apenas dizia respeito a alguns setores da sociedade.
31

Um exemplo típico dessas cartas foi a Magna Carta de 1215,


concedida por João Sem Terra por exigência dos barões, e que continha limitações
que interessavam a estes últimos. Além dela foi comum, nesse período, nos estados
que compunham a atual Alemanha os chamados Herrschaft.
Mas não se pode dizer que esses documentos eram constituições
como as que se tem conhecimento hoje, uma vez que eles não possuíam suas
principais características como a instituição de um poder estatal legítimo, a
vinculação de toda a sociedade e a exteriorização da vontade da maioria.
Como determina Antonio Lopez Pina nos estudos preliminares da obra
de Dieter1 Grimm (2006, p.48)

Frente a esto, la novedad de las constituciones modernas se halla em la


reunión de dos líneas que dan validez al modelo jurídico esbozado de
manera teórica. Por uma parte, la validez jurídico positiva, diferencia a la
constitución del derecho natural; por outra, se distingue de los antiguos
vínculos jurídicos del poder estatal por uma ampliación de sus funciones y
validez.... (grifo nosso)

O rompimento com este modelo de constituição não foi imediato mas


progressivo. Grande parte dos estamentos da época eram favoráveis a ele. Quanto
à nobreza e o clero não interessava-lhes seu rompimento pois isso significava a
perda de seus privilégios.
A burguesia, por sua vez, não era homogênea: existia um setor ao qual
interessava a obtenção dos privilégios dos dois primeiros estamentos e não sua
abolição; quanto à outra parte, composta pelos pequenos comerciantes e artesãos,
estes se sentiam protegidos pelos seu estamentos e o rompimento com essa ordem
vigente significava insegurança.
Restava um setor de trabalhadores livres que não obtinham qualquer
vantagem com a ordem vigente e a partir deles surgiu uma gama de movimentos
culturais que evoluíram para sociais e ganharam a adesão de cada vez mais setores
da sociedade.
Esses movimentos defendiam uma reinterpretação da doutrina do
contrato social e vieram a culminar na Revolução Francesa e outras revoluções que

1
Tradução Livre da Autora- Frente a isto, a novidade das constituições modernas se fazem na reunião de duas
linhas que dão validade ao modelo jurídico esboçado de maneira teórica. Por uma parte, a validade jurídica
positiva, diferencia a constituição de direito natural; por outra, se diferencia dos antigos vínculos jurídicos do
poder estatal por uma ampliação de suas funções e validade...
32

visavam retirar a legitimidade do poder soberano do monarca e conceder às classes


sociais liberdade de autodeterminação.
Surgiu então um dilema: como conceder liberdade às diversas classes
e ao mesmo tempo criar mecanismos punitivos para quem desrespeitasse o bem
estar social, sendo que mecanismos positivos exigem que ao menos um ente, ou
setor detenha o monopólio da força?
Para conceder esse monopólio ao Estado era preciso limitar seu poder,
para que este não usasse essa prerrogativa de maneira indiscriminada. Foi aí que
surgiu a principal característica da Constituição Moderna: a limitação e o exercício
do poder através do governo da lei.
Uma lei soberana seria responsável por ceder ao Estado suas
prerrogativas e ao mesmo tempo limitá-las através de direitos fundamentais dos
cidadãos, além de dar liberdade a estes limitando-as em prol do bem estar social.
Esta lei maior por sua vez seria criada pelo poder do povo através de
seus representantes.
Surgem, portanto as bases do direito constitucional moderno e sendo
assim de uma doutrina chamada constitucionalismo.
Embora a compreensão desse termo não seja pacífica, dois pontos são
importantes: primeiro não confundir constitucionalismo com movimentos
constitucionais; segundo tentar delimitar da melhor forma possível esse conceito.
Mais do que os movimentos político-sociais que deram origem às
constituições contemporâneas, o constitucionalismo é uma doutrina, uma ideologia
política que visa interpretar essa forma de organização social.
Segundo J.J Gomes Canotilho (1997, p. 45)

Constitucionalismo é a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do


governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão
estruturante da organização político-social de uma comunidade. Neste
sentido o constitucionalismo moderno representará uma técnica específica
de limitação do poder para fins garantísticos.

Portanto existe um aspecto social e histórico do constitucionalismo que


vem a ser, mais adequadamente falando, os movimentos sociais de rompimento
com a antiga ordem vigente e em conseqüência destes nasce uma ideologia política,
exteriorizada na técnica de organização estatal baseada na limitação do poder pelos
33

direitos constitucionais. Esta última concebida como constitucionalismo propriamente


dito.

3.1.1 Estado constitucional, Estado democrático e Estado democrático e social


de direito.

O advento do constitucionalismo no século XVIII trouxe à tona uma


importante questão: o governo das leis iria prevalecer e superar o governo da
maioria ou a forma democrática de tomada das decisões?
Essa questão, embora suscitada no período e até mesmo nos dias de
hoje, remonta aos tempos da Grécia Antiga onde filósofos, como Platão e
Aristóteles, já buscavam posicionar-se a favor do governo do homem ou do governo
das leis.
Os partidários de cada uma dessas teorias buscam enfraquecer a
outra:com argumentos como o de que o governo das leis é demasiadamente
genérico e, por conta disso, incapaz de resolver todos os casos concretos. Já os
seus defensores dizem que é esta generalidade seu ponto positivo, pois resolve
igualitariamente todos os casos.
Muitos são os argumentos usados e as questões suscitadas. Norberto
Bobbio (2002, p.170), por exemplo, alerta para o fato de que as leis a serem
cumpridas não podem ser quaisquer leis, mas uma lei legítima, justificando: “uma
coisa é o governo exercer o poder segundo leis preestabelecidas, outra coisa é
exercê-lo mediante leis, isto é, não mediante ordens individuais e concretas.”
Por outro lado o chamado governo dos homens foi por muito tempo
interpretado como forma de governo onde um homem através de seus poderes
domina os demais, os chamados governos monárquicos. Por conta disso a figura do
governante era de extrema importância e fazia a diferença entre o bom e o mau
governante.
Algumas teorias pregavam, inclusive, que o governo dos homens era
uma espécie de substituto do governo das leis, quando este fracassava, a fim de se
manter a ordem.
Após as revoluções constitucionais o questionamento surgido foi
diferente. Na verdade nos Estados já organizados através de suas constituições,
34

alguns setores da sociedade passaram a questionar, onde ficaria o dinamismo das


decisões proporcionado pelos governos essencialmente democráticos.
J.J Gomes Canotilho (1997, p. 93) faz a seguinte distinção

No Estado de direito concebe-se a liberdade como liberdade negativa, ou


seja, uma “liberdade de defesa” ou de “distanciação” perante o Estado. É
uma liberdade liberal que “curva” o poder. Ao Estado democrático estaria
inerente a liberdade positiva, isto é, a liberdade assente no exercício
democrático do poder. É a liberdade democrática que legitima o poder.

A partir deste raciocínio é possível fazer uma essencial integração


entre o governo constitucional e democrático: enquanto o primeiro tem o importante
papel de limitar o poder assegurando a liberdade e os demais direitos fundamentais
dos cidadãos, o segundo legitima esse poder de limitação pela vontade da maioria,
ou seja, o poder democrático hoje conhecido como soberania popular.
A chamada soberania popular, nada mais é que à vontade da maioria
de criar certas leis e até mesmo um certo Estado organizado de uma determinada
forma. Hoje grande parte, senão a totalidade, dos Estados constitucionais legitimam
sua própria lei maior na soberania popular, ou seja, na decisão da maioria.
Segundo João Henrique Guizardi(2005,p.14)

Caso se pretenda referir-se à democracia moderna, fundada no poder


ascendente de soberania, entendida como poder originário, princípio,
fonte,medida de toda forma de poder, ver-se-á que toda esta soberania não
emana do povo,mas de cada um dos indivíduos, de per si , enquanto
cidadão.

Dessa forma nascem os Estados Democráticos de Direito. Ocorre que


essa teoria do Estado não parou por aí. A simples denominação, Estado
Democrático de Direito, não era suficiente para traduzir um Estado limitado e guiado
pela lei emanada da vontade geral e que se baseava no respeito aos direitos
fundamentais de seus cidadãos, não apenas declarando-os mas assegurando-os.
Não basta apenas ao Estado declarar os direitos. É função do Estado
Moderno assegurá-los, ou seja, criar meios para que cada cidadão tenha acesso ao
que lhe foi atribuído por sua própria vontade através da soberania.
Conclui-se, neste ponto, que da antiga dicotomia governo dos homens
e governo das leis nasce à síntese do principal advento político contemporâneo, ou
35

seja, o Estado Democrático de Direito, sendo este criado pelo povo e sendo a ele
mesmo assegurado.

3.2 Constituição e Direitos Fundamentais

Os direitos fundamentais integram-se como principal ponto da estrutura


constitucional. Em razão disso, há um natural interesse da doutrina em denominá-
los, explicar sua origem e posicioná-los dentro da sistemática constitucional.
Por conta disso existem inúmeros, ou mesmo infindáveis,
questionamentos e discussões doutrinárias a esse respeito, e a partir deles nascem
as mais importantes teses a respeito dos direitos fundamentais.
Existe, sem dúvidas uma gama considerável de autores que se
dedicam exclusivamente a esse tema, mas obras que mais os abordam continuam
sendo as doutrinas de direito constitucional, além de ser, no direito constitucional, o
primeiro contato de muitos cientistas do direito com o tema.
Portanto, a história da constituição se confunde com a evolução dos
direitos fundamentais e hoje formam um único sistema e se faz extremamente
importante estudar estes direitos paralelamente à sistemática constitucional.

3.2.1 Direitos humanos

Esta denominação, embora já usada na Declaração de Direitos do


Homem e do Cidadão de 1789 e em outros documentos não tão relevantes, foi
mundialmente reconhecida, em 1948, com a Declaração Universal de Direitos do
Homem. Isso ocorreu, porque essa declaração veio a público nos primeiros anos
após a Segunda Guerra Mundial, período em que a humanidade sofreu uma das
maiores negações de todos os direitos existentes.
Isso fez surgir a necessidade de se criarem direitos inerentes a toda a
humanidade independentemente de raça, sexo, nacionalidade, crença religiosa, ou
qualquer diferenciação de qualquer tipo.
Por conta da repercussão da Carta de 1948, que por alguns anos
significou para toda a humanidade um grande passo em busca da paz mundial, o
36

termo “direitos humanos” foi largamente utilizado por políticos, juristas e até mesmo
por constitucionalistas para designar os direitos de proteção ao cidadão nas cartas
fundamentais.
Ocorre que já em 1789, os franceses fizeram a diferenciação entre
direitos do “homem” e do “cidadão”. Não foi por acaso que os dois termos foram
usados para dar nome àquela declaração: direitos do homem diziam respeito aos
direitos de liberdade, mais enfaticamente, que possuía todo ser humano apenas pelo
fato de sê-lo, enquanto direitos dos cidadãos se limitava aos franceses, integrantes
daquele Estado, e sujeitos às mesmas leis criadas e regidas por eles.
Portanto, embora tenham os franceses pela primeira vez na história
atribuído direitos não apenas a um povo mas a todos os seres humanos, até como
forma de propagar sua revolução, cuidaram esses de delimitar alguns direitos que
eram pertencentes apenas aos componentes do Estado francês.
A idéia pregada por grande parte dos doutrinadores constitucionais na
atualidade segue a mesma tendência: existem os direitos humanos dos quais são
titulares toda a humanidade, mas estes melhor se encaixam na sistemática do
Direito Internacional, guiados por tratados e declarações. Seu cumprimento fica
restrito às normas éticas, de forma que, os direitos humanos são declarados mas
não existe um meio coercitivo que garanta seu cumprimento.
Já os direitos inerentes à dignidade da pessoa humana assegurados
constitucionalmente são corretamente melhor denominados direitos fundamentais,
segundo Jorge Miranda (1998,p.50) por três motivos a seguir expostos.
Primeiro é que dentro de um Estado que se governa pela lei, não é
possível se pensar em direitos meramente de ordem natural, como o são os direitos
humanos. É certo, como assegura o próprio autor, que os direitos naturais são de
extrema importância em qualquer organização política e devem ser devidamente
positivados como ocorre com os direitos humanos, que uma vez positivados,
integram o texto constitucional como direitos fundamentais.
O segundo motivo é que os direitos assegurados constitucionalmente
como direitos fundamentais são mais amplos que os direitos humanos, já que tratam
da organização econômica, social, política, também de extrema importância para o
desenvolvimento digno de uma sociedade calcada na dignidade da pessoa humana.
O ultimo argumento é que nas constituições contemporâneas
principalmente as do século XX, muitos dos direito declarados e tidos como
37

fundamentais, não se voltam apenas ao homem, ou ao cidadão isoladamente, mas a


certos grupos específicos como o dos trabalhadores, ou aos partidos políticos e até
aos chamados direitos difusos e coletivos.
Tratam-se, portanto os diretos fundamentais específicos de direitos
humanos, ou seja, aqueles acolhidos constitucionalmente e que abrangem outros
direitos, embora não concebidos como os primeiros, mas de suma importância para
o desenvolvimento da sociedade.

3.2.2 Direitos subjetivos públicos

Embora muitas vezes seja comum encontrar esta denominação


principalmente em se tratando dos direitos assegurados no rol do artigo 5º da
Constituição Federal brasileira, não se dá muita importância à sua origem e, por
conseguinte, ao seu real significado.
Esta expressão surgiu na Alemanha no século XIX, juntamente com um
movimento que visava afastar os direitos naturais e criar um ambiente jurídico
positivo. Foi justamente esse movimento positivista que deu respaldo à grande parte
dos absurdos cometidos pelo III Reich, todos eles legalmente amparados.
O fato é que para teoria dos direitos subjetivos públicos desenvolvida
nesse período, só o Estado tem soberania e existem certos direitos que
regulamentam a relação do cidadão com o aparato estatal que são os direitos
subjetivos públicos.
Mesmo os doutrinadores que concordavam com esta relação Estado-
Cidadão discordavam com a forma que esta ocorria.
Para alguns como Gerber (1852, p.31-32) citado por Jorge Miranda
(1998, p.53) os direitos subjetivos públicos eram negativos, ou seja, apenas serviam
como limite ao poder público, para que este, portador de toda a soberania, não
interferisse na vida do cidadão.
Para Jellinek (2005, p.640), o Estado é detentor de toda soberania,
portanto os direitos subjetivos públicos, assim como todos os direitos, encontram
fundamento no ordenamento jurídico estatal.
Independentemente das posições acima criou-se um positivismo
ilimitado, onde todos os direitos, sejam eles públicos ou privados, eram meras
38

concessões estatais ao indivíduo o que em nada se assemelha à idéia de grande


parte dos Estados democráticos, hoje baseados na soberania popular.
Isto posto, não se confundem direitos fundamentais assegurados em
constituições geradas a partir da soberania popular, com direitos subjetivos públicos
concedidos pelo Estado, detentor de todo poder soberano.
Além deste ponto é importante ressaltar que na época esses direitos
também diziam respeito à organização dos órgãos públicos tratando de vários
aspectos de direitos administrativo e tributário o que não se assemelha aos direitos
fundamentais.
É certo que a idéia original passou por várias modificações e hoje pode
ser usada para designar a relação da sociedade com os órgãos públicos, ou mesmo
com todo o ambiente público Também podemos chamar de direitos subjetivos
públicos o direito de exigir do Estado uma prestação positiva uma vez que algum
direito tenha sedo violado.
O que se critica é a utilização do termo para designar os direitos
fundamentais, já que estes têm origens diferentes, sentidos diferentes e uma função
diferente dentro do Estado Democrático de Direito.

3.2.3 Liberdades públicas

Dentre todas as denominações até o momento tratadas, esta é a que


mais se aproxima do significado de direitos fundamentais. Este termo foi utilizado
pela primeira vez de forma expressa na Constituição Francesa de 1793, porém com
uma conotação diversa da conhecida atualmente.
Na época, esse termo designava a mera declaração de direitos sem
qualquer garantia e nesse sentido, muito se aproximava dos direitos humanos
devido ao seu sentido naturalista.
Nesse sentido Jean Morange (2004, p. XVII) assegura que:

Este otimismo um pouco ingênuo não resistiria muito à prova do tempo.


Desde 1793, uma nova Constituição, jamais aplicada, era precedida de uma
nova declaração. As violações dos direitos solenemente proclamadas se
confirmaram muito rapidamente mais numerosas e mais sérias sob a
República, o Consulado e o Império do que sob o reinado de Luis XVI.
39

A partir daí, esses direitos passaram por uma evolução e já na Carta


francesa de 1875 apareciam com o sentido, não apenas de declarações, mas de
uma gama de direitos e garantias que visavam zelar pela liberdade do cidadão
francês frente ao Estado.
Esse conteúdo com uma carga essencialmente negativa, de limitação
do poder estatal, é o que os franceses até hoje entendem por liberdades públicas.
Trata-se de uma questão muito interessante: enquanto no Brasil e em outros
estados democráticos, utiliza-se o termo “direitos e garantias fundamentais” para
designar os direitos mínimos necessários à conservação da dignidade dos cidadãos
e os meios de garanti-los, na França eles se referem “aos direitos cívicos e às
garantias fundamentais para o exercício das liberdades públicas”.
É possível notar que os direitos e garantias são um meio para a
obtenção de um fim, ou seja, o exercício das liberdades públicas, vistas
essencialmente como um meio de proteção aos desmandos estatais.
Esse pode ser considerado o principal ponto de diferença entre estas
duas terminologias. Em primeiro lugar os direitos fundamentais são o meio para se
obter a liberdade e a dignidade da pessoa humana em um Estado Democrático de
Direito; já as liberdades públicas são o fim atingido pelos direitos civis e as garantias
também com o sentido de conservar as liberdades dos cidadãos frente ao Estado.
Outra diferença entre o sentido dado pelos franceses ao termo
liberdades públicas e os direitos fundamentais, é o fato de que a primeira visa
assegurar e garantir os direitos de forma limitativa, não se fala em uma prestação
positiva do Estado, apenas nos meios de assegurar as liberdades.
Até nos momentos em que a Constituição francesa trata de um assunto
naturalmente social como o ensino, volta-se para questões como o conteúdo que
será ensinado, a escola particular como meio de segregação, mas não fala de
questões como o acesso à educação, por exemplo, ficando esta para a esfera
administrativa.
Portanto a segunda diferença entre os direitos fundamentais e as
liberdades públicas se refere à idéia do papel positivo do Estado que está contido na
primeira e não na segunda.
Mesmo com essas delimitações, o assunto esta longe de ser esgotado,
já que alguns doutrinadores dizem existir uma subdivisão dentro das liberdades
públicas em: liberdades públicas em sentido estrito e liberdades públicas em sentido
40

amplo. A primeira refere-se à expressão tradicional do termo, ou seja, sua esfera


negativa, a imposição do dever de abstenção por parte do Estado. Já a segunda
trata da questão da ação positiva do Estado e a necessidade de prestação dos
chamados direitos sociais.
Portanto, atualmente encontramos uma definição ampla de liberdades
públicas, que muito se assemelha ao que entendemos por direitos fundamentais.
Porém mesmo com esse posicionamento a idéia mais comum que se tem do termo,
ainda é a tradicional da doutrina francesa, por isso ainda é necessário usar com
cautela a expressão como sinônimo de direitos fundamentais.

3.3 Direitos Fundamentais

Nos capítulos acima buscou-se diferenciar os direitos fundamentais de


algumas espécies de direitos com os quais esse é comumente confundido, mas
inevitavelmente surge uma questão: O que são os direitos fundamentais?
Conceituar essa espécie de direitos é uma tarefa árdua, uma vez que
definir direitos tão marcantes e com tamanha significância poderia reduzi-los.
Por isso é mais coerente dispensar qualquer conceituação técnica, com
o objetivo de, em nenhum momento limitá-los e apenas citar as principais
características que os diferenciam tornando-os uma gama única de direitos.
Robert Alexy (2002, p. 27) faz uma alusão muito importante a respeito
da amplitude deste tema. Diz ele que os direitos fundamentais tem uma perspectiva
histórica que diz respeito a seu surgimento e evolução, uma filosófica relacionada à
sua fundamentação e outra sociológica acerca de sua função no contexto social.
Isto demonstra quão dinâmicos e interdisciplinares são esses direitos,
mas dentro deste contexto, podemos dizer que os direitos fundamentais são
característicos, pois tem uma significação extra jurídica calcada na dignidade da
pessoa humana. E, por conta desse relevante significado, é amparado pela norma
maior dos Estados Democráticos de Direito modernos sendo inclusive o limite do
poder estatal neles.
Mas apesar de possuírem a função de limitar, não se restringem a isso.
Eles também criam meios para o desenvolvimento humano da sociedade e este é o
41

aspecto positivo e social dos direitos fundamentais, pleiteado pela segunda


dimensão de direitos.
Além disso, não ocupa-se esta gama de direitos de zelar pelos
cidadãos de forma isolada, mas ainda de determinados grupos. Por exemplo, cada
pessoa tem como direito subjetivo a liberdade, mas se esta pessoa for trabalhadora
possui direitos fundamentais específicos para essa sua posição.
Possuem ainda características e princípios peculiares, além de
inúmeras teorias que visam explicar sua origem e posição dentro da sistemática
processual. Em face da amplitude desse tema e sua importância ele será tratado, de
forma mais detalhada, nos capítulos que se seguem.
Contudo é importante ressaltar que, esse termo foi aceito como o mais
coerente para conceituar essa espécie de direitos por dois motivos: em primeiro
lugar por sua conotação histórica e, em segundo, por ser dentre todos o mais amplo,
conseguindo assim explicar de forma mais eficaz toda a importância acumulada por
eles ao longo da história.

3.3.1 Teorias acerca dos direitos fundamentais nas constituições

Quando se trata de um instituto como o dos direitos fundamentais é


grande a importância que se dá à sua origem e à sua localização dentro de uma
estrutura jurídica.
Assim não foi diferente com as constituições clássicas no momento em
que esses direitos foram anexados a seu texto. Surgiu, nesse momento, uma
preocupação maior a respeito de sua origem e localização dentro desse contexto
pelos aspectos que serão a seguir citados.
Em primeiro lugar essa discussão é anterior, inclusive, aos movimentos
constitucionais. Com mais exatidão, os primeiros a tratar da questão foram os
gregos ao discutir se o direito de enterrar os familiares era dado pelo rei ou pelos
deuses.
A partir daí inúmeros cientistas e filósofos do direito trataram da
questão ao longo dos séculos dentre eles Santo Augustinho, Thomas Hobbes,
Norberto Bobbio e Hans Kelsen.
42

Nesse período surgiram três teorias que buscam explicar a origem dos
direitos fundamentais: o positivismo, o jusnaturalismo e o realismo. Para a primeira
os direitos fundamentais são criados e atribuídos a um dado número de pessoas
pelo legislador; já para a segunda esses direitos são pré-existentes, o legislador
apenas os incorpora dentro do ordenamento jurídico, mas eles são inerentes a todo
ser humano e, por fim, os realistas afirmam que ainda que estes direitos não sejam
criados pelo legislador, de nada adianta se eles não forem legalmente assegurados
e, portanto, esses direitos só se tornam efetivos após entrarem em uma sistemática
legal.
Essas definições são simples e para efeito de colocação da questão
em pauta, já que elas serão tratadas de forma mais detalhada a seguir.
Para aqueles que adotam as posições positivista e realista a eficácia
dos direitos fundamentais fica limitada a uma norma. Já para os que adotam a teoria
jusnaturalista a eficácia desses direitos é substancialmente mais ampla, já que são
ultranormativos.
Se esta idéia for transportada para um plano geral, os jusnaturalistas
conseguem defender a idéia da supremacia dos direitos fundamentais em qualquer
plano, inclusive em todo o ordenamento jurídico infraconstitucional. Já os positivistas
ficam restritos à questões técnicas já que atribuem a esses direitos a característica
de uma norma constitucional como qualquer outra.
Ocorre que a questão não é assim tão simples e existem pontos
positivos e negativos em todas essas teorias e é justamente isso que será analisado
nos próximos títulos.

3.3.1.1 Teoria jusnaturalista

Essa concepção do direito vem da Grécia Clássica e perdura até os


dias de hoje, passando por momentos de queda e ascensão. Segundo essa
concepção as leis não são produto da única e exclusiva vontade do homem que
declara ou não o que acha mais conveniente, mas de uma idéia superior inerente a
algo que existe independentemente da vontade humana.
Vários filósofos e juristas ao longo dos séculos se dedicaram a essa
teoria, desde Aristóteles que procurou diferenciar as leis positivas como aquelas que
43

regulam a vida e o desenvolvimento das cidades da lei natural, ou seja, aquela de


todos os povos. Santo Augustinho na Idade Média e autores como Grotius, Hobbes,
Leibniz, nos séculos XVII e XVIII, também se puseram a favor do jusnaturalismo.
Porém após a tese de Kant por volta do inicio do século XIX, a doutrina
do direito natural começou a ser contestada passando por uma ampla negação.
Nessa época, as discussões a respeito do jusnaturalismo foram praticamente
extintas e o positivismo, doutrina inversa, reinou absoluto.
Ao final da Segunda Guerra Mundial, principalmente na Alemanha,
houve o ressurgimento da idéia do direito natural, uma vez que, o positivismo
exacerbado que vigorou nas décadas anteriores, foi o pilar de sustentação dos
horrores praticados pelos governos absolutos. A partir daí as discussões e estudos a
respeito do movimento foram reiniciados e hoje se fazem absolutamente
procedentes.
Segundo Eduardo García Máynez (2004, p.109) apud Hans Welzel
(1962, p. 322)2

Para los juristas de nuestra generación, el contraste entre derecho natural y


positivismo jurídico há vuelto a convertirse em uma excitante experiencia.
Todavía hace viente años el positivismo dominaba de manera totalmente
indiscutida em la ciencia y em la práctica.

As discussões acerca do jusnaturalismo se focam em dois pontos


principais: em primeiro lugar, dentre todos os doutrinadores existentes com teses
muitas vezes controversas, quais são os pontos convergentes e, em segundo lugar,
quais são as diversas idéias de natureza existentes nestas várias teses.
Em relação aos pontos convergentes, tem-se o fato de que para a
teoria jusnaturalista, de um modo geral, ainda que uma norma seja criada com
observância de todos os critérios formais existentes, ainda assim, não será válida se
não zelar pela idéia da justiça, ou seja, se as necessidades dos cidadãos, de uma
forma geral, não forem atendidas.
Deverá o legislador, no momento de criar a norma, observar o bem
comum e os critérios de justiça. Caso não o faça essa norma, embora formalmente
perfeita, não será válida.

2
Tradução Livre da Autora- Para os juristas da nossa geração o contraste entre direito natural e positivismo
jurídico tornou-se uma excitante experiência.Porém há vinte anos o positivismo dominava de maneira totalmente
incontroversa, a ciência e a prática.
44

Vale aqui citar uma interessante frase de Leibniz, lembrada também na


obra de Eduardo García Máynes (2004, p.112) “Direito justo é um pleonasmo e
direito injusto uma contradição”.
Fica bem claro nesse sentido, a idéia que os jusnaturalista tem de
justiça e sua crucial importância para a lei. Outro ponto interessante para o qual
converge grande parte dos doutrinadores é em relação à chamada “teoria das duas
ordens”. Segundo essa teoria, acima de toda ordem positivista, que está no plano
humano, existe uma ordem natural, com valores e princípios superiores que deverão
necessariamente guiar a primeira.
Nesse contexto nascem as divergências. Que essa ordem superior
existe a grande maioria concorda, mas quanto ao sentido dela, bem como quanto à
sua origem, não. Daí nascem as diversas teorias a respeito do que seria natural e,
dentre elas, as mais relevantes são: a que entende por natureza o que é biológico, a
que afirma que natural é o que esta ligado ao deus e a terceira, que considera
natural o que tem conexão com uma realidade histórica.
A primeira é defendida por grande parte dos filósofos dos séculos XVIII
E XVII, já citados. Eles comparam essa idéia de natureza a alguns conceitos
matemáticos, e entre eles Grotius determinava que, assim como dois e dois são
quatro algumas idéias de Justiça, bem estar e liberdade são inerentes ao ser
humano independente da vontade de deus ou dele próprio. Esses filósofos dão
vários nomes a esses sentimentos inatos.
Como cita Eduardo García Máynez (2004, p. 114)3

Como ejemplos, tomados de diversos autores del siglo XVII, cabría citar: el
appetitus socialis (Grocio); “el deseo de no dañar ni ser danado” (Hobbes);
“el amor a la libertad y al goce tranquilo de todos los derechos”(Locke); “la
tendencia a la conservación del próprio ser” ( Spinoza) [...] (grifo no original)

Portanto para esses pensadores certos sentimentos são inatos, assim


como as leis da matemática e da física são naturais.
Outro grupo, e nele os filósofos medievais, atribuíam as leis naturais a
Deus: este concedia as normas aos homens que deveriam respeitá-las, acima de
suas próprias normas. Foi também chamada de jusnaturalismo teológico e encontra

3
Como exemplo, tomados de diversos autores do século XVII, cabe citar: o appetitus sociales (Grocio); “ O
desejo de não prejudicar nem ser prejudicado” (Hobbes); “ O direito a liberdade e ao gozo tranqüilo de todos os
direitos” ( Locke); “a tendência à conservação do próprio ser” (Spinoza).......
45

adeptos até hoje, sem falar que durante o período de negação do direito natural,
esta corrente foi à única que resistiu ainda que timidamente.
A terceira corrente é também uma das mais complexas e teve origem
com os filósofos gregos Aristóteles e Platão. Eles entendiam o direito natural como
um paradigma que deveria ser seguido por todos, inclusive pelo ordenamento
positivo. Esses direitos são aprioristas e mundialmente válidos, fundados na razão,
partem da doutrina aristotélica de que as idéias são transcendentes aos objetos e,
sendo assim, certos princípios de direitos naturais são fundados na razão e
transcendem a ordem positiva.
Existem outras correntes, porém estas são as mais relevantes.
Atualmente, o jusnaturalismo vem sendo seriamente discutido, e defendido por
vários doutrinadores. É certo que se trata de uma tese e, sendo assim, existe a sua
antítese: o positivismo. Somente após a análise da teoria positivista podemos chegar
a uma síntese concreta.

3.3.1.2 Teoria positivista

O chamado positivismo jurídico surgiu no século no século XIX como


uma reação às idéias jusnaturais e aos ideais da Revolução Francesa, contestando
a abstração da teoria jusnaturalista e os ideais metafísicos da revolução.
O alemão Friedrich Karl Von Savigny influenciado pelo movimento
romântico que tomava seu país na época, especialmente pelas idéias de Goethe,
passa a criticar a Revolução Francesa criando o que seria um embrião do
positivismo jurídico. Segundo sua tese, o direito nasce do povo, da sua evolução e
vontade, em um determinado período e local. Essa concepção é chamada de
Volksgeist ou “espírito do povo”.
Ou seja, o direito não nasce de aspectos sobrenaturais, metafísicos e
muitas vezes pré-existentes ao próprio ser - humano, como defende o direito natural,
mas nasce do próprio povo e da sociedade onde ele está inserido. Porém, a simples
vontade do povo gera obrigações e, nesse sentido, a lei entra como uma forma de
tornar explícita essa vontade, tornando-a cognoscível e dotada do poder coercitivo
que lhe atribui o Estado.
46

Essa lei, que agora se incorporou no ordenamento jurídico, torna-se


objeto de estudos e discussões entre juristas e cientistas do direito, desenvolvendo-
se assim estudos e teorias a seu respeito. Com isso a vontade do povo,
transformada pelo legislador em lei, torna-se objeto da ciência jurídica.
Foi este o ponto de partida para o desenvolvimento do positivismo e,
embora essa primeira tese não se mostre radical como a do positivismo puro, pode
ser considerada o inicio das discussões.
Outro ponto de extrema importância, comumente suscitado pelos
doutrinadores da época a respeito da Revolução Francesa, diz respeito à idéia de
homem, tendo sido feitas várias discussões buscando compreender o que era o
homem citado por aquela carta. Defendiam os críticos dessa revolução que esse
conceito era extremamente abstrato.
Posteriormente essa noção de homem foi melhor trabalhada e aceita,
com mais ênfase após a Segunda Grande Guerra, mas o fato é que na época ,
esses pontos não definidos levaram a uma maior crença nas teses formais e
práticas do positivismo.
O ponto máximo da teoria positivista foi o desenvolvimento da tese de
que apenas pode ser entendido como direito e respeitado como tal, o que é lei
independentemente de justiça ou injustiça, já que tudo que é legal é justo. Neste
ponto, idéias distintas eram encaradas juntamente, ou seja, a justiça, algo ligado a
questões filosóficas, era confundida com a noção de legalidade, ou seja, uma idéia
formal.
Em relação ao positivismo, uma das interpretações mais interessantes
e que pode melhor explicar essa corrente é a do filosofo do direito italiano Norberto
Bobbio, citado na obra de Eduardo García Máynez
Bobbio encara o positivismo sob três aspectos: como uma forma de
estudo do direito, como uma concepção especifica de direito e por fim, como uma
ideologia de justiça.
Enquanto forma de estudo, o direito são as normas criadas por um
órgão competente que segue um determinado critério para formá-las e elas integram
o ordenamento jurídico e independem de considerações de caráter teleológico como
a justiça da norma, ou se esta atende aos fins sociais.
47

Portanto nesse aspecto há diferenciação entre um direito metafísico,


abstrato e aquele formal, técnico baseado apenas em uma forma de criação da
norma.
Quando Bobbio encara o positivismo como uma doutrina ligada à
formação do estado soberano, determina que o direito está ligado a um poder
soberano que cria preceitos (normas) e estas são, por sua vez, aplicadas ao caso
concreto através das decisões judiciais. Essa concepção, de que o poder soberano
cria e faz cumprir, forma uma unidade.
E por fim, Bobbio aborda o direito positivo como uma ideologia calcada
na idéia que a norma nasce do poder soberano e, portanto, é justa por si só, sendo
que sua injustiça está intimamente ligada com sua invalidade. Sendo assim ela é
válida em si mesma sem a necessidade de cumprir com qualquer função social
Essa teoria, que recebe várias criticas, como a contraposição do direito
como justo e injusto, o que é e o que deveria ser, confirma a existência de lados
opostos e consequentemente de uma face teleológica do direito, justamente aquilo
que os positivistas visam negar.
Eduardo García Máynez (2004, p.20) assegura que 4

[...] dicír que el positivismo jurídico, como manera especial de abocarse al


estúdio del derecho, presupone la separación de dos distintas epecies de
derecho, por um lado el “real” o “existente” y, por outro, el “justo” o “ideal”,
contradice lo que em nuestro sentir constituye la esencia de aquella postura
a saber, el monismo jurídico positivista [...](grifo nosso)

Em relação à segunda forma de analisar o direito positivo, nem todo o


direito nasce do Estado Soberano , assim como o direito internacional. Além disso, a
concepção de justiça como mera ilegalidade exclui a noção axiológica presente no
direito e de extrema importância.
Essas formas de encarar o positivismo dão uma idéia ampla das várias
faces desse posicionamento. A questão é que hoje não é possível analisar o
surgimento da norma fundamental a partir de uma visão exclusivamente
jusnaturalista ou positivista.

4
Tradução Livre da Autora – [...]dizer que o positivismo jurídico como maneira especial de abordar o estudo do
direito pressupões a separação de duas distintas espécies de direito, por um lado o “real”, o “existente” e, por
outro, o “justo” o “ideal”, contradiz o que em nosso sentir constitui a essência daquela postura, a saber , o
monismo jurídico positivista [...]
48

Os direitos fundamentais nascem de uma evolução histórica vivida pela


sociedade que proporcionou seu aprimoramento a cada período, sendo que uma de
suas principais características é o fato de integrar um ordenamento jurídico para ter
validade.
Portanto, é de bom senso levar em conta ambas as doutrinas opostas
com o fim de chegar-se a uma melhor explicação a respeito dos direitos
fundamentais.

3.4 Características dos Direitos Fundamentais

Como vimos, as teorias acima buscam uma explicação para a questão


da origem da norma fundamental o que, inevitavelmente, repercute em sua eficácia
dentro do próprio ordenamento jurídico.
A importância dessas normas e, em conseqüência, de sua colocação
dentro deste ordenamento, lhe dá características próprias e acabam por lhes dar
mais força.
É justamente esse conjunto de fatores que ditam o formato, as
principais características dos direitos fundamentais dentro da constituição, sendo
que sua origem lhe dá eficácia e suas características lhe atibuem uma força jurídica
não compartilhada por nenhum outro grupo normativo dentro do ordenamento
jurídico, fazendo delas normas sui generis.
A doutrina atribui à elas inúmeras características sendo algumas
aceitas por vários autores e outras específicas de certas obras e de seus autores.
Aqui, é importante tratar daqueles autores que se interessam pela
questão da eficácia da norma fundamental e da característica que a torna muito
peculiar: a de ser principiológica.
É importante destacar desde já que a questão que será a seguir
suscitada a respeito de se encarar os princípios também como norma ainda é
polêmica, porém de suma importância na teoria da norma fundamental.
49

3.4.1 Princípio da universalidade

O princípio da universalidade dos direitos fundamentais, remete,


inevitavelmente, a outro princípio: o da historicidade. Esse grupo de direitos nasceu
e vem se desenvolvendo juntamente com história da humanidade, amadureceu com
suas revoluções e guerras, não em um determinado ponto do globo, mas em todo
ele e de forma relativamente integrada.
Além disso, como já foi visto, a parte mais importante desses direitos é
composta pelos chamados direitos humanos que ingressam no ordenamento jurídico
de cada país através dos direitos fundamentais. Sendo assim carregam a
característica dos direitos humanos que é a de serem oponíveis erga omines.
Mas, dentro da sistemática constitucional essa atribuição tem um outro
significado. Não se pode afirmar que os direitos assegurados no artigo 5º da
Constituição da República Federativa do Brasil sejam oponíveis a toda a
humanidade, - mesmo porque sabemos que a norma de um Estado, via de regra,
somente gera eficácia dentro de seu território, salvo certas exceções -, mas dentro
do ordenamento jurídico brasileiro ela é sim oponível erga omines.
O doutrina do direito de Portugal, ao tratar desse princípio traz à tona
questões de extrema importância como a eficácia dos direitos fundamentais contidos
na Constituição portuguesa em relação aos cidadãos portugueses residentes fora do
país, aos estrangeiros e à pessoa jurídica por eles chamada de pessoas coletivas.
Essa é a regra geral: todo cidadão que compõe o corpo político da
nação portuguesa também compõe seu corpo jurídico. Mas, existem algumas
questões relativas a certos grupos. Em relação aos portugueses residentes no
estrangeiro determina-se que a eles são atribuídos todos os direitos fundamentais
que não sejam incompatíveis com sua ausência do país. Já em relação aos
estrangeiros nenhum direito de liberdade ou dignidade poderá ser negado mesmo
por que existe um pressuposto no direito internacional (direitos humanos) de que
esses direitos são de todo ser humano. Ocorre que, em certas situações práticas,
certos direitos, principalmente os sociais não são dados aos estrangeiros da mesma
maneira que aos nacionais.
J. J. Gomes Canotilho (1997, p.382) ao tratar da questão assegura que
esses problemas obrigam, como se deduz da anterior argumentação, a cuidadosa
50

articulação dos princípios da universalidade e da igualdade. Segundo esse ilustre


constitucionalista, em muitos momentos esses dois princípios que são muito
próximos devem ser juntamente analisados, como na análise acadêmica em tela.
Importante, como regra, é que os estrangeiros não devem jamais ser privados de
seus direitos básicos de liberdade e dignidade, ou seja, de acordo com o princípio da
esfera negativa dos direitos fundamentais, eles podem não ter a mesma eficácia
para os estrangeiros que tem para os nacionais .
Outra questão extremamente interessante é a das pessoas jurídicas,
ou coletivas. Para o ordenamento português, elas são titulares dos direitos
fundamentais em relação aos direitos que não exijam a característica de serem
pessoas naturais.
Por exemplo, não se pode conceber que uma pessoa jurídica seja
titular do direto a vida, mas é perfeitamente possível que ela seja titular do direito à
liberdade de expressão, ou de associação.
Este aspecto é de grande importância: uma vez que se admite que as
pessoas jurídicas sejam titulares de direitos fundamentais elas também estão
sujeitas a respeitar esses direitos, o que torna sua eficácia muito mais ampla.
Ressaltados esses pontos é possível observar que a universalidade
dos direitos fundamentais lhes atribui uma eficácia característica, pois atinge todos
os cidadãos independente de sua classe, idade, sexo, religião e, além disso, atinge
também as pessoas jurídicas e uma vez que se admite que elas são titulares de
certos direitos também estão vinculadas a eles, ou seja, tais direitos se irradiam por
todo o ordenamento.

3.4.2 Princípio da proporcionalidade

Trata-se de um princípio de extrema importância para o


desenvolvimento dos direitos fundamentais. Foi na Alemanha, no pós-segunda
guerra, em 1958, que pela primeira vez o Tribunal Constitucional Federal lançou
mão de tal princípio para resolver o emblemático caso Lüth. Contudo sua utilização
na órbita infraconstitucional como o direito penal e o direito administrativo são
anteriores a data acima citada.
51

A lei constitucional embora ocupe um lugar de destaque na chamada


hierarquia normativa, não está livre dos problemas existentes na grande maioria das
normas, como o conflito entre seus dispositivos e os direitos fundamentais. Em
muitas situações, principalmente no caso concreto, esses direitos vão entrar em
conflito e esse conflito tem que ser resolvido.
Ocorre que não se trata de qualquer norma, mas daquela que atribui
dignidade à pessoa humana de modo que qualquer restrição implicaria em negar
esses princípios tão importantes. Daí a necessidade de se criar um meio especial de
resolver esses conflitos, onde se pondere de forma cuidadosa os bens em questão.
O princípio da proporcionalidade subdivide-se em três subprincípios,
quais sejam o da adequação, o da necessidade e o da proporcionalidade em sentido
estrito.
O primeiro determina que antes de restringir um direito fundamental em
prol de outro, se verifique se esta medida é idônea para atingir o fim adequado e,
não o sendo, não há por que restringir um direito fundamental.
A segunda diz respeito à exigibilidade da aplicação desse meio, ou
seja, é preciso observar todas as formas possíveis de resolver o conflito e após isso
utilizar a mais eficaz e menos gravosa sempre optando pela mais eficaz.
E por fim, a proporcionalidade em sentido estrito supõe analisar todas
as circunstâncias do caso concreto e, a partir dessa análise, que se leve em conta o
grau de satisfação que será trazido por essa medida.
É de importante ressaltar que esse conflito pode ocorrer entre normas
fundamentais de forma horizontal, ou seja, entre os bens de dois particulares, ou de
forma vertical, entre particular e Estado.
Essa questão apresenta dois pontos centrais: o primeiro e já citado é
que se tratam de normas especiais de importância e eficácia únicas e o segunda é
que não existe uma hierarquia de direitos fundamentais. Justamente por isso
propõe-se um método específico para a aplicação do princípio da proporcionalidade.
Em primeiro lugar, analisa-se se os bens em conflito são realmente de
direitos fundamentais. Faz-se isso através de uma observação cuidadosa do texto
normativo. Em seguida é preciso fazer uma análise minuciosa do caso concreto,
buscando todos os elementos relevantes para a resolução do conflito. Por fim,
verifica-se a aplicabilidade dos três subprincípios.
52

A última questão a ser tratada acerca desse principio diz respeito à sua
natureza jurídica, que, para alguns é meramente formal, uma vez que apenas dita
uma forma, um meio de resolver um conflito de normas e não possui qualquer
conteúdo. Para outros sua natureza é material, pois possui sim um conteúdo que
está ligado à busca pela justiça. Muitos criticam essa segunda tese afirmando que
essa idéia, de busca pela justiça, é extremamente abstrata e que apenas isso não
atribuiria ao princípio um conteúdo material. Outros doutrinadores atribuem esse
conteúdo aos interesses envolvidos no conflito e há uma terceira corrente que afirma
ser o conteúdo os direitos fundamentais.
Existem defensores de todas as correntes e não se pretende aqui
responder tal questionamento. Considera-se, neste estudo, que trata-se de um
princípio que enriquece a doutrina dos direitos fundamentais e lhes atribui uma
eficácia peculiar. Portanto, não podem ser simplesmente excluídos; antes exigem
um juízo complexo de ponderação devido à sua extrema importância.
53

4 A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

A doutrina a respeito da eficácia horizontal dos direitos fundamentais é


recente, polêmica e conseqüência da necessidade de se adaptar o estudo dos
direitos fundamentais a um contexto contemporâneo iniciado no período pós-guerra.
A situação ganhou ainda mais relevância com a concretização do
capitalismo ao fim da guerra fria, o que fez com que a humanidade evoluísse nas
últimas décadas em uma velocidade nunca antes imaginada, tanto nas questões
tecnológicas como sociais.
Esse contexto de surgimento e crescimento de conglomerados
econômicos fez com que alguns cientistas do direito, de forma acertada,
concebessem os direitos fundamentais não apenas verticalmente na relação Estado-
Cidadão, mas horizontalmente entre os próprios particulares.
Embora polêmica, essa teoria vem se consolidando em alguns países e
ganhando cada vez mais adeptos e embora receba críticas, sua discussão é
inevitável e deve ser feita de maneira séria.
A história e o estudo dos direitos fundamentais concretizados, até
agora, neste estudo, serviram como base para a análise de seu ponto central e mais
relevante, qual seja, a doutrina da eficácia dos direitos fundamentais nas relação
entre particulares que, nesta pesquisa, será tratada de forma a envolver seus
principais aspectos e polêmicas.

4.1 Questões Práticas

Em sua obra Direito Constitucional e Teoria da Constituição (2002,


p.1269), o mestre português Gomes Canotilho, ao tratar do que ele denomina de “O
problema metódico da aplicação dos direitos fundamentais nas relações jurídicas
privadas” cita cinco casos verídicos que bem ilustram a problemática a ser tratada
neste capítulo.
Considerando que se trata de doutrina ainda pouco conhecida e
discutida, e que desta forma, o primeiro contato que grande parte das pessoas tem
54

com este problema é quando se deparam com situações práticas se faz muito
interessante citar os casos trazidos pelo doutrinador português, bem como outros
que ilustram a própria jurisprudência pátria.
O primeiro caso trazido é o de uma indústria que exigia no contrato de
trabalho que seus operários renunciassem a qualquer atividade partidária, bem
como à filiação a sindicatos.
O segundo trata de um congresso de um partido político destinado a
escolher um candidato desse partido às eleições parlamentares, sendo nesse
momento, excluída a participação de indivíduos da raça negra.
No terceiro, uma senhora contratada como professora em um colégio
privado, vinculou-se a uma cláusula de celibato, sendo que posteriormente celebrou
casamento, momento em que a empresa proprietária do colégio demitiu-a invocando
a violação de uma cláusula contratual.
Uma outra empresa ao contratar duas pessoas do sexo feminino para
trabalhar na área de informática, condicionou a admissão a três cláusulas: em
primeiro lugar sujeitar-se a testes de gravidez no momento da admissão, segundo
aceitarem como justa causa de dispensa do trabalho o fato de ocorrer gravidez
durante a vigência do contrato, em terceiro não submeterem-se à inseminação
artificial durante o contrato.
O quinto caso tratado na obra de Canotilho mostra as entidades
patronais e as organizações sindicais que celebraram um contrato coletivo de
trabalho, onde incluíam a cláusula de closed-shop, ou seja, proibição de contratação
de funcionários não sindicalizados.
Pode se dizer que no Brasil, um dos casos mais emblemáticos a
respeito da eficácia horizontal dos direitos fundamentais foi o que envolveu a União
Brasileira de Compositores que excluiu um sócio de seu quadro, sem dar a este o
direito ao contraditório e à ampla defesa.
A questão chegou até o Supremo Tribunal Federal através do Recurso
Extraordinário 201819 de 11 de outubro de 2005. Na Ementa retirada do site a corte
brasileira se colocou favorável à existência da eficácia horizontal dos direitos
fundamentais Trata-se de uma decisão riquíssima para a jurisprudência brasileira,
O fato é que, em todos os países do mundo onde os direitos
fundamentais são reconhecidos e assegurados em suas cartas constitucionais,
casos como esses serão cada vez mais freqüentes e a jurisprudência dos tribunais é
55

de extrema importância para consolidar o entendimento a respeito da eficácia dos


direitos fundamentais .
A doutrina da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações
privadas nasceu de casos concretos e se desenvolveu com base neles. Sendo
assim coube e cabe aos Tribunais, principalmente aos Tribunais Constitucionais,
desenvolvê-la e dessa forma, estar na vanguarda da modificação da uma noção de
direitos fundamentais já existente. Isto fortalece a jurisprudência, tendência que se
intensifica cada vez mais no Brasil.

4.1.1 Contexto atual

O mundo, após a Segunda Grande Guerra, sofreu alterações drásticas


em uma velocidade jamais vivida antes na história da humanidade. A inevitável
queda do comunismo fez prevalecer o sistema capitalista que sem dúvida foi o
grande fomentador das evoluções vividas, primeiro a tecnológica, e
consequentemente, a social.
O final do século XX e início do XXI são marcados por um capitalismo
diferente daquele dos séculos XVIII e XIX. Esse neocapitalismo, por assim dizer se
define pelas cifras virtuais e principalmente pela grande mobilidade do capital
proporcionada por avanços tecnológicos, como a Internet, e pelo fortalecimento do
mercado de capitais.
Se antes negociavam-se produtos de forma física, que necessitavam
de matéria prima e mão de obra, o principal foco do mercado atualmente são as
ações negociadas de qualquer lugar do mundo por qualquer pessoa, o que acaba
tornando o mercado cada vez mais móvel e impessoal.
Este novo paradigma possibilitou um crescimento e dinamização nunca
esperado das empresas. Estas tornaram-se grandes conglomerados econômicos,
espalhados pelo mundo inteiro, com um capital sem pátria circulando a uma
velocidade estrondosa, e com um lucro maior do que o PIB de grande parte dos
países do mundo.
Os fenômenos acima citados são chamados de globalização, termo
que faz referência à interligação que se tem hoje do mundo inteiro principalmente no
que diz respeito ao consumo e à informação. Essas mudanças, sem dúvida,
56

geraram profundas alterações no direito e, mais especificamente, na idéia de direitos


fundamentais.
Uma dessas alterações foi a concepção de alguns direitos
fundamentais como direitos de toda a coletividade e não apenas de todas as
pessoas. Um exemplo é o direito a um meio ambiente equilibrado, considerado por
alguns autores como um direito de 4º dimensão.
Outra mudança de extrema importância foi o enfraquecimento das
diferenças existentes entre público e privado, uma vez que o temor dos governos
centrais e autoritários, herança da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria fizeram
dos Estados contemporâneos entes extremamente limitados servindo como
provedor das necessidades de seu povo e guardião de sua liberdade. Enquanto o
Estado, o público, se limitou, a esfera privada tomou cada vez mais força com todas
as riquezas trazidas pelas revoluções tecnológica e de informação.
Em artigo, trazida pela Revista Super Interessante de Março de 2008
denominada “A verdade dos mapas”, de autoria de Stefan Gan e Leandro Narloch
(2008,p.76) foi feita uma comparação entre os PIBs de alguns paises africanos e o
faturamento de alguns dos maiores conglomerados econômicos do mundo. O
resultado foi que as vendas da Nike são do tamanho do PIB do Níger, as da Nokia
de Camarões e as vendas anuais do Carrefour são do tamanho do PIB da Etiópia.
Por certo que tratam-se de países pobres e de grandes empresas, mas
a questão é que, como já foi dito, na sociedade moderna o poder econômico é a
mais ampla forma de poder e isto os grandes conglomerados econômicos tem de
sobra, inclusive muito mais que os próprios Estados. Os dados acima citados
demonstram a magnitude da esfera privada sobrepondo-se à esfera pública.
Na iminência de explicar todas essas transformações ocorridas de
forma extremamente rápida, muitos foram os antropólogos, sociólogos e juristas que
elaboraram as mais variadas teses e dentre elas uma nos chama mais a atenção: o
neofeudalismo.
Segundo essa teoria, durante a decadência do período feudal, o
capitalismo voltou a desenvolver-se e deparou com uma diversidade de sistemas
jurídicos em uma Europa fragmentada em feudos, forçando a burguesia detentora
do capital a influenciar a criação de novos regimes jurídicos e políticos que a
beneficiassem. No capitalismo moderno, principalmente pós-globalização, os
grandes conglomerados econômicos espalhados pelo mundo, também tem
57

dificuldade com a diversidade jurídica existente entre as nações e influenciam os


poderem políticos para criar normas que possibilitem a transposição desses
obstáculos.
Como cita André Rufino do Vale (2004, p. 68)

Factualmente, porém, observa-se que o processo decisório, em um nível


descentralizado é, muitas vezes, manipulado pelos detentores do poder
econômico. Segundo Roth, são as empresas transnacionais que promulgam
o quadro jurídico, em conformidade com seus interesses, a partir do qual se
dá a regulação social, significando a emergência de uma forma de
neofeudalismo, segundo o qual as normas de regulação de um setor
econômico estão definidas por empresas comerciais dominantes no setor.

Essa teoria reafirma o poder da esfera pública (ou da esfera privada?)


e sua conseqüente possibilidade de interferência nos direitos fundamentais do
indivíduo. Portanto na sociedade contemporânea não pode ignorar que os direitos
fundamentais podem ser ameaçados tanto pelo setor público quanto pelo privado
que cresce e adquire cada vez mais poder e influência sobre o primeiro.

4.2 As Doutrinas a Respeito da Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais

Como já oportunamente citado, a questão da eficácia horizontal dos


direitos fundamentais surgiu com casos concretos levados às cortes constitucionais
e os primeiros países onde esses fatos ocorreram foram Alemanha e Estados
Unidos.
Devido a seus sistemas jurídicos e à própria tendência de suas Cortes,
esses países tomaram rumos diferentes visando dar respostas à mesma questão da
eficácia horizontal. Foi daí que surgiram as duas mais relevantes teorias sobre o
assunto: a Drittwirkung surgida na Alemanha e a State Action Norte-Americana.
Essas teorias destinguem-se, tanto por sua forma de enfoque, quanto
pela preocupação com a autonomia privada Enquanto na State Action busca-se
preservar a autonomia privada até as àltimas conseqüências, a Drittwirkung é mais
branda nesse sentido. Além disso, como é típico do direito norte americano, a State
Action foi criada com base em decisões da Suprema Corte em cada caso concreto e
são estes os casos estudados. Já a Drittwirkung nasceu também de casos
58

concretos, mas se desenvolveu como uma teoria autônoma. Ambas serão


analisadas nos capítulos seguintes.

4.2.1 State action

A própria forma como foi estruturado o Estado norte americano, bem


como sua constituição, levou-o a se basear nos pilares da autonomia privada e na
relação Estado-Cidadão.
O público e o privado, sempre tiveram papéis bem distintos, sendo o
primeiro extremamente limitado e o segundo livre na mesma proporção. O dever do
Estado de respeitar os direitos fundamentais dos cidadãos, consagrados nas
Emendas Constitucionais americanas, era chamado de state action, ou seja , ação
estatal.
Essa dicotomia, prevaleceu durante séculos. Porém com as mudanças
sociais advindas principalmente após a metade do século passado, a linha divisória
de público e privado, passou a tornar-se cada vez mais tênue. Casos envolvendo
violações de direitos fundamentais por particulares começaram a surgir com mais
freqüência na Suprema Corte Norte Americana que, diante deles, não mais podia
invocar a autonomia privada.
Tornou-se necessário, em razão disso, interpretar de forma extensiva a
state action de modo a possibilitar sua aplicação na esfera privada. Ocorre que, para
uma sociedade que nasceu e se desenvolveu com base na autonomia privada, essa
não era uma missão fácil e deveria ser pensada com muito cuidado para não
conflitar com os próprios valores da nação.
Neste sentido, a Suprema Corte passou a usar dois parâmetros para a
aplicação dos direitos fundamentais na esfera privada conhecidos como os public
function cases e symbiotic relationships.
Em relação ao primeiro, a Corte entendeu que aplicam-se os direitos
fundamentais de maneira direta, quando um particular, por algum motivo, exerce um
ato próprio de um ente público. Trata-se da delegação de alguma atividade pública
relevante a um particular.
O case que bem ilustra esse posicionamento é conhecido como Smith
x Allwright citado na obra de André Rufino do Vale (2004,p.124) apud Ronald
59

Rotunda( 1989,p.437). Nas eleições primárias do seu partido realizadas no próprio


partido para a escolha dos candidatos, negros não podiam participar: a votação era
exclusiva para brancos. Consultada, a Suprema Corte entendeu que a XV Emenda,
que irrestringe o direito ao voto por motivo de raça, cor , ou estado de servidão,
deveria se aplicar ao caso, uma vez que os partidos, ao realizar votação para a
escolha do candidato, estavam subrogando-se uma função estatal.
Cabe citar ainda o caso Marsh x Alabama, também citado na obra de
André Rufino do Vale (2004,p.125) apud Ronald Rotunda( 1989,p.430) no qual uma
companhia privada edificou sobre terreno próprio a Company Town, ou seja, uma
cidade administrada autonomamente. Quando Marsh, testemunha de Jeová, tentou
entrar nessa cidade para distribuir panfletos, foi barrado por seus administradores. A
Suprema Corte entendeu então que, apesar de estar sobre terreno privado, esta
Company Town possuía todas as características de uma cidade administrada pelo
Estado, exercendo desta maneira uma função estatal. Deste modo, deveria respeitar
a liberdade de expressão assegurada pela I Emenda.
Assim, em mais outros julgados, passou a considerar a Corte norte-
americana que, todas as vezes que um particular exercer uma função tipicamente
estatal deverá se submeter aos direitos fundamentais constitucionalmente
resguardados, pois apesar de ser particular naquele momento está praticando uma
função tipicamente pública.
No caso dos chamados symbiotic relationships, ou state commandment
ou ainda encouragement of private activities, a Suprema Corte entendeu que quando
houver qualquer vinculação entre o ato do particular e a administração pública
deverão ser respeitados os direitos fundamentais de forma direta, uma vez que o
Estado tem relação com o fato de alguma maneira.
Não ocorre como nos casos das public function cases onde entes
privados exercem uma função pública e, nesse caso, é o próprio Estado que tem
alguma ligação com a atividade pública.

Foi o que ocorreu no case denominado Burton x Wilmington Parking


Authority, encontrado na obra de André Rufino do Vale (2004, p.131) apud Ronald
Rotunda( 1989, p.450) . Um estabelecimento comercial denominado Eagle Coffe
Soppe se negou a servir um cliente negro. Entendeu a Suprema Corte que, pela
autonomia privada, poderia o dono do estabelecimento decidir a quem deveria e a
60

quem não deveria servir. Ocorre que o referido restaurante localizava-se em um


imóvel cujo locador era uma companhia estatal. Ficou decidido, portanto, que o
Estado ainda que de forma indireta tinha ligação com o ato, uma vez que ele fora
praticado em um local de propriedade do Estado. Sendo assim havia
interdependência entre o ato e o Estado.
Por certo, a teoria do state action não se desenvolveu propriamente
como uma doutrina, mas como julgados nem sempre seguidos como uma tendência
jurisprudencial na Suprema Corte, não havendo desta forma, uma certeza em sua
aplicação que fica vinculada a cada caso concreto.
De qualquer maneira foi uma evolução no pensamento constitucional
norte americano, tão voltado para as relações Estado-Cidadão e longe da reação
interprivados. Sendo assim, muito embora tenha buscado relacionar o ato do
particular com o Estado, seja por exercer uma função típica do primeiro, ou por
haver sua participação ainda que indireta no ato, tentou buscar uma resposta que
atendesse às necessidades de uma sociedade dividida entre as mudanças e os
antigos valores tão importantes para essa mesma sociedade.
Tem-se como certo que a state action dá uma resposta satisfatória à
questão da eficácia horizontal dos diretos fundamentais, já que a questão torna-se
cada vez mais complexa em conseqüência de todas as mudanças históricas e
sociais e todas as limitações da referida doutrina.
Segundo Stern (1994) apud Alexei Julio Estrada (2001, p. 94)5

[...] no se puede hablar de una influencia claramente visible o duradera de la


eficácia horizontal de los derechos fundamentales, puesto que la clave del
modelo americano yace em uma dilatación del concepto de poder público,
de acción estatal.(grifo nosso)

De qualquer forma, foi uma das primeiras alternativas sugeridas, e


ressalvadas todas as críticas, teve o mérito de se adaptar a todas as limitações
apresentadas pelos casos concretos.

5
Tradução Livre da Autora – [...] não se pode falar em uma influência claramente visível ou duradoura da
eficácia horizontal dos direitos fundamentais, posto que a chave do modelo americano, faz uma dilatação do
conceito de poder público, de ação estatal.
61

4.3 Drittwirkung

A segunda teoria a respeito da eficácia horizontal dos direitos


fundamentais surgiu dentro de um contexto e de uma dogmática jurídica diferentes.
Após a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha passou por uma reestruturação
política, financeira, econômica e também jurídica. Esse cenário de mudanças de
paradigmas foi propício para a contestação de parâmetros pré-estabelecidos, bem
como para o surgimento de novas idéias.
Foi nesse momento histórico que surgiu uma revolucionária teoria
denominada Drittwirkung der Grundrechte, ou seja, ‘eficácia entre terceiros da norma
fundamental’.
Salvo algumas modificações sofridas ao longo do tempo, esta ainda
hoje é a teoria mais desenvolvida a respeito do assunto e a que melhor responde as
diversas controvérsias por ele trazidas.
Embora cause discussões dentre seus próprios defensores,
principalmente a respeito de suas subdivisões, o que era antes uma idéia
predominantemente de países europeus como Alemanha, Espanha, Portugal foi se
expandindo através dos doutrinadores do velho mundo e chegou a países africanos,
do oriente e à América Latina, com mais ênfase nos países de língua espanhola que
tiveram maior contato através desses autores.
No Brasil, ainda é um assunto pouco discutido, embora na última
década tenha ganhado alguma força. Deveras, são muitas as polêmicas que cercam
a drittwirkung como veremos a seguir, mas sempre é importante destacar a
importância das inovações trazidas por ela.
62

4.3.1 Denominações

A primeira denominação que lhe foi dada é também a mais conhecida


atualmente, qual seja Drittwirkung der Grundrichte. O termo expressou bem a idéia
que queria se demonstrada na época: dritt significa ‘terceiros’ e wirkung ,’eficácia’,
ou seja, a expressão denominava, de forma literal e clara, eficácia entre terceiros, ou
seja entre sujeitos estranhos à relação Estado-Cidadão.
Porém logo surgiram críticas a respeito dessa terminologia. Para
alguns autores essa expressão não especifica de forma clara a relação existente
entre Cidadão-Cidadão,
Em razão disso, nasce o termo Horizontalwirkung, ou seja, ‘eficácia
horizontal’, o que segundo seus defensores satisfazia a necessidade de
denominação dos assuntos, uma vez que deixa claro, antes mesmo de se
aprofundar no tema, qual a relação será tratada.
A crítica apresentada nesse caso é a seguinte: a Horizontalwirkung, dá
uma idéia de igualdade entre as partes que se relacionam, ou seja, os particulares, e
é certo que essas partes quase nunca estão em uma situação de paridade: daí por
que surgiu a teoria em questão. Leisner (1960) apud Alexey Julio Estrada (2001, p.
91), e outros autores optaram por uma denominação mais genérica, que buscava
não adentrar no foco do problema. Usava desta forma, termos como Geltung que
significa ‘validade’ ou Wirkung der Grundrechte in Privaterechte ou seja ‘eficácia da
norma fundamental no direito privado’.
J.J Gomes Canotilho (2002, p. 1270), ao tratar do tema em sua obra
cita a denominação drittwirkung e diz que atualmente os termos como
horizontalwirkung ou wirkung der grundrechte im privaterechte são preferíveis.
Na verdade mais acertada é a idéia de Alexy ( 1993, p. 511). Segundo
esse autor alemão, dentre tantos termos e nenhuma delimitação específica, é
preferível utilizar todos como acertados, mas de acordo com cada caso concreto.
Ainda assim, o mais comum é a utilização do termo drittwirkung,
embora em português sejam utilizadas as expressões eficácia horizontal que
literalmente corresponde a horizontalwirkung. Independentemente das mais diversas
terminologias usadas, ficamos com a idéia de Alexy, ou seja de que todas as
denominações são válidas mas, devem ser adequadas a cada caso concreto.
63

4.3.2 Origem histórica

Já na Constituição de Weimar (1919), portanto antes mesmo do início


da Segunda Guerra Mundial, seu artigo 118 declarava que alguns direitos
fundamentais seriam aplicados à esfera privada. Eram estes os direitos à liberdade
de expressão nas relações trabalhistas e econômicas, bem como a liberdade de
associação frente à restrições provenientes de particulares.
Porém, tratava-se de uma exceção à regra que era a irrestrição das
liberdades dos particulares. Tanto este artigo quanto algumas decisões
jurisprudenciais ocorridas nesse período, podem se dizer pré-drittwirkung, não
possuíram o condão de transformar-se em uma teoria, uma doutrina autônoma.
Isso somente veio a acontecer no período pós-guerra, quando o
Tribunal Constitucional Alemão passou a julgar casos aplicando a doutrina da
drittwirkung. O primeiro deles diz respeito à igualdade salarial entre homens e
mulheres, uma vez que a Constituição de Weimar (1919) em seu artigo 32,
estabelecia que homens e mulheres são iguais perante a lei. Esse caso não foi
julgado pelo Tribunal Constitucional Federal, mas pelo Tribunal Federal do Trabalho.
Em um artigo publicado em 1950 em Recht der Arbeit (Direito do
Trabalho), denominada Gleicher Lohn der Frau für gleiche Leistung (Igualdade
salarial da mulher pela mesma função), o doutrinador Nipperdey defendeu aplicação
direita da norma fundamental ao caso concreto, o que não veio a ocorrer
posteriormente no Tribunal Constitucional Federal.
Fez isto sob a justificativa de que a aplicação dos direitos fundamentais
nas relações privadas não precisa de intermediação legislativa, uma vez que vem
para suprir a própria omissão do legislador em determinados casos, como naquele
da não efetivação de políticas de igualdade salarial entre os sexos.
Tal argumento foi acolhido pelo Tribunal Federal do Trabalho e sofreu
severas críticas de parte de doutrinadores que negavam solenemente a
possibilidade de intervenção dos direitos fundamentais na esfera privada, dizendo
que isto destruiria a liberdade da autonomia privada.
64

A drittwirkung somente chegou ao Tribunal Constitucional Federal oito


anos depois, com o emblemático caso Lüth. Este sim, é considerado até hoje, como
o marco das discussões a respeito da eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
O caso é o seguinte: em 1958, o senhor Lüth, então presidente de um
clube de imprensa, proferiu um discurso em Hamburgo durante um festival de
cinema, propondo um boicote ao filme de um diretor que teria dirigido filmes anti-
semitas durante a Segunda Guerra Mundial.
O produtor do filme na época ingressou com uma ação perante o juiz
civil de Hamburgo pleiteando indenização pelos danos causados. Foi então que Lüth
interpôs recurso no Tribunal Constitucional Federal dizendo que isso era uma
violação ao seu direito de liberdade de expressão.
Foi então que o Tribunal em uma decisão histórica acatou o pedido do
senhor Lüth, porém usando fundamentação distinta da de Nipperdey. Ao invés de
alegar que os direitos fundamentais podem e devem ser aplicados de forma direta
ao caso concreto, ou seja, sem a intervenção legislativa, optou Tribunal por uma
idéia muito interessante, qual seja a questão da irradiação dos direitos fundamentais
por todo o ordenamento jurídico.
Essa questão será oportunamente tratada mas, a referida corte
entendeu que além de normas que visam limitar o poder de ingerência do Estado, os
direitos fundamentais também são normas de princípios axiológicos para todo o
ordenamento jurídico, ou seja, devem servir de parâmetro em todos os estágios da
pirâmide normativa, de modo que nenhum ato deve contrariá-las.
É, na verdade, o que prega a teoria da eficácia indireta ou mediata da
drittwirkung, também oportunamente analisada.
Esta decisão não só delimitou a posição do Tribunal Penal
Constitucional como favorável à aplicação dos direitos fundamentais nas relações
privadas, como definiu, dentro da doutrina drittwirkung, qual a corrente adequada, no
caso a da eficácia indireta ou mediata.
Desta forma, essa decisão histórica trouxe três grandes inovações: a
questão da irradiação dos direitos fundamentais, a aplicação destes na esfera
privada e por fim a adoção da teoria da eficácia indireta ou mediata predominante
até hoje na jurisprudência alemã. A respeito dessas três inovações, trataremos nos
tópicos seguintes.
65

4.3.3 O efeito da irradiação dos direitos fundamentais

Como já dito, uma evolução trazida pelo caso Lüth foi a questão do
poder de irradiação dos direitos fundamentais. Até então, esses direitos eram vistos
como uma forma de limitação do poder Estatal, ou seja, a chamada eficácia vertical
propriamente dita. Entretanto, ao longo da história, ocorreu uma série de limitações
dos direitos individuais pelo Estado. Portanto, limitar o poder de ingerência do
Estado na esfera privada foi o objetivo dos primeiros legisladores constitucionais ao
criar os direitos fundamentais.
Não obstante essa função, o Tribunal Federal Constitucional lançando
mão de um interessante raciocínio de hermenêutica passou a considerar que, além
desta função tradicional, também seriam os direitos fundamentais normas de caráter
axiológico que se estenderiam a todo o ordenamento jurídico.

Como assevera Alexei Julio Estrada (2001, p. 68)6

Se proclama la naturaleza de todo el conjunto de los derechos


fundamentales como sistema valorativo, que penetra la totalidad del
conjunto normativo y rige su interpretación, pero también, a una, el caráter
de valor de cada derecho fundamental individualmente considerado, cuyo
alcance deve ser indagado y precisado, sin renunciar a su primitivo carácter
de derecho subjetivo de defensa al Estado.(grifo nosso)

Como se pode observar, esse caráter objetivo dos direitos


fundamentais, em nenhum momento, suplanta seu caráter de direito subjetivo
público. Por outro lado como considera acima Alexei Julio Estrada,também não é um
simples acréscimo a esse conceito, mas um elemento que modifica sua natureza,
uma nova forma de se interpretar os direitos fundamentais.
Dessa forma, com a mudança de sua estrutura, é possível a sua
aplicação às normas consideradas de direito privado, uma vez que se irradiam como
princípios gerais para todo o ordenamento jurídico.

6
Tradução livre da autora – Se proclama a natureza de todo o conjunto dos direito fundamentais como sistema
valorativo, que penetra a totalidade do conjunto normativo e influi sua interpretação individual, mas também, a
um, o caráter de valor de cada direito fundamental individual considerado, cujo alcance deve ser indagado e
preciso, sem renunciar a seu primitivo caráter de direito subjetivo de defesa ao Estado.
66

Portanto esse efeito de irradiação é fruto de uma nova interpretação


das funções dos direitos fundamentais que não os reduz a uma forma proteger o
cidadão da ação Estatal, mas concede algo mais, uma finalidade de normas, de
princípios objetivos com valor axiológico que servem como guia, parâmetro para o
restante do ordenamento jurídico.
Não poderia ser diferente, se na sistemática constitucional moderna
toda norma infraconstitucional deve estar em sintonia com a constituição ou seja,
não contrariar a Constituição. Se o legislador cria norma divergente, essa será tida
como inconstitucional e não produzirá efeitos.
Essa prática deve ser estendida tanto ao julgador quanto aos próprios
particulares: ao colocar a Constituição Federal no topo da pirâmide normativa quis o
legislador constituinte utilizá-la como parâmetro para a aplicação das demais regras
infraconstitucionais e é justamente esse fato que justifica a teoria da irradiação.

4.4 Teorias a Respeito da Aplicação dos direitos fundamentais nas relações


privadas

Trata-se de um dos pontos mais polêmicos acerca da teoria da


Drittwirkung. Uma vez aceito que os direitos fundamentais têm aplicação entre
particulares, resta saber se essa norma fundamental aplica-se de forma direta, ou
seja, sem qualquer intermediário, nas relações interprivadas, ou se é necessário um
veículo que a coloque dentro do contexto jurídico privado.
Como já foi dito, quando Nipperdey defendeu a Drittwirkunk, este se
posicionou pela eficácia direta ou imediata, alegando que a norma fundamental tinha
força normativa suficiente para atingir, sem qualquer intermédio do legislativo, as
relações jurídicas privadas, uma vez que, a Drittwirkung vem justamente suprir uma
omissão do legislativo que deveria regular aquelas relações.
Por outro lado o Tribunal Federal Constitucional alemão, em seu
emblemático julgado do caso Lüth se posicionou de maneira contrária, ao entender
que as normas fundamentais se estendem ao âmbito privado, pois possuem uma
dupla característica, tanto de normas de proteção em relação ao Estado, quanto de
caráter axiológico para todo o ordenamento jurídico.
67

Portanto essa eficácia é indireta ou mediata, pois a aplicação da norma


fundamental ao direito privado se dá por intermédio de normas de caráter geral que
influenciam a legislação infraconstitucional.
São estes pontos polêmicos e as justificativas de cada uma das teorias
que serão melhor analisados a seguir com o estudo da unmittelbare drittwirkung e da
mittelbare drittwirkung.

4.4.1 Teoria da eficácia direta (unmittelbare drittwirkung)

Essa tese foi defendida por Nipperdey. Segundo o doutrinador alemão


os direitos fundamentais se aplicam diretamente à esfera privada, mas isto não
ocorre de forma ampla e irrestrita. Existe uma diferença entre os direitos tipicamente
de proteção do cidadão em relação ao Estado, ou seja, os que exigem uma
prestação negativa (não interferência na esfera privada), ou positiva (dever de
prestação do Estado): estes não se aplicam de forma direta às relações privadas.
As normas fundamentais aplicadas de forma direta, não são os diretos
públicos subjetivos clássicos, mas as normas que possuem algum parâmetro
interpretativo e estas, não são apenas de caráter geral, mas tem um aspecto
normativo propriamente dito, vinculante.
Quais os direitos fundamentais possuem essa característica
normativa? Isso deverá ser analisado no caso concreto. Se não se encaixarem como
direitos subjetivos típicos, clássicos a eles se aplicam as relações jurídicas privadas
de um forma direta.
Segundo Alexei Julio Estrada (2001, p.104)

Así, para Nipperdey solo algunas disposiciones de derechos fundamentales


aúnan um doble carácter: además de su tradicional significación de
derechos públicos subjetivos, son princípios objetivos que informan la
totalidad del ordenamiento jurídico, incluyendo el derecho privado. La
aplicación de estas normas constitucionales el derecho privado de ningún
modo lhega a afectar em excesso la esfera de liberdad del individuo, pues
solo podrá e irá a restringirla hasta donde fuera absolutamente necesario
7
em el interes de uma “vida social sana”. (grifo nosso)

7
Tradução Livre da Autora - Assim, para Nipperdey apenas algumas disposições de direitos fundamentais,
possuem um duplo caráter: além de sua tradicional significação como direito público subjetivo, são princípios
objetivos que informam a totalidade do ordenamento jurídico, incluindo o direito privado. A aplicação destas
normas constitucionais no direito privado de nenhum modo chega a afetar em excesso a esfera de liberdades do
68

Sendo assim, a aplicação não pode ser indiscriminada, mas limitada a


casos em que ela é estritamente necessária. A questão é: quais são esses casos?
A justificativa para se limitar o poder do Estado através de normas de
direitos fundamentais é que o Estado possui uma superioridade social sobre os
cidadãos, ou seja, possui um poder social relevante que dá verticalidade à essa
relação.
Quanto à esfera privada, teoricamente não haveria qualquer desnível
entre as partes, porém atualmente essa afirmativa seria quase utópica. Sabe-se que
os particulares, apesar de não possuírem poder social e político, possuem poder
econômico e isso gera uma desigualdade entre as partes.
Seriam esses os casos onde as normas fundamentais de caráter
normativo amplo, para todo o ordenamento, deveriam ser aplicados, ou seja, nos
casos em que há uma diferença entre os próprios particulares.
Mas a teoria da eficácia direta e imediata não se limita a esses
parâmetros. Vai além ao dizer que não só nos casos em que há um desnível entre
particulares é possível aplicá-la, mas em qualquer caso, em que no âmbito jurídico
privado há uma violação aos preceitos constitucionais.
Para Nipperdey precursor dessa teoria não é admissível que os direitos
fundamentais sofram restrições em qualquer esfera, inclusive a privada.
Alexei Julio Estrada (2001, p. 108) ao comentar Nipperdey explica que

Nipperdey, aum em las situaciones de igualdad fáctica entre los


particulares, admite la Drittwirkung directa, porque em su opinión los
acuerdos contractuales no pueden contravenir la liberdad ni los princípios
8
constitucionales . (grifo nosso)

Dessa forma desenvolve-se uma teoria extremamente interessante, em


vários pontos. O primeiro deles diz respeito à limitação das normas de diretos
fundamentais aplicáveis às relações privadas como apenas aquelas consideradas
de conteúdo axiológico e normativo, excluindo desse rol os chamados direitos
fundamentais clássicos de mera proteção do individuo em relação ao Estado. O

individuo, pois só poderá e ira restringi-la até onde for absolutamente necessário ao interesse de uma “vida social
sã ”.
8
Tradução Livre da autora – Nipperdey mesmo nas situações de igualdade fática entre os particulares, admite a
Drittwirkung direta , pois na sua opinião, os acordos contratuais não podem contrariar a liberdade nem os
princípios constitucionais.
69

segundo ponto relaciona-se aos casos em que poderá ser utilizada a drittwirkung, ou
seja, nas situações em que existe uma disparidade entre os particulares, disparidade
essa gerada, via de regra, pelo maior poder econômico de uma das partes.
Mas não se restringe a esses casos: amplia-se para as situações nas
quais, no tráfico jurídico particular, há uma limitação dos direitos fundamentais por
cláusulas ou qualquer outro meio de direito privado.
Dentro da sistemática jurídica brasileira a dificuldade dessa teoria está
em delimitar quais são as normas fundamentais que não possuem apenas um status
positivo e negativo como classifica Jellinek, mas uma outra característica de norma
de princípio axiológico.
Esta distinção não é, de fato, simples. Porém, de longe, não é o
principal problema dessa teoria. Este reside no receio de se aplicar diretamente os
direitos fundamentais nas relações privados, limitando desta forma a autonomia da
vontade.
A ausência de um intermediário gera insegurança na esfera privada e é
certo que a teoria da eficácia direta tentou resolver essa questão ao assinalar que os
casos aplicáveis são restritos àqueles em que haja um desnível entre as partes.
Mesmo assim essa não é a teoria mais utilizada quando se aplica a
Drittwirkung, pelos motivos acima expostos. Mas, além disso, há uma forte influência
da doutrina e jurisprudência alemã que a partir do caso Lüth passou a utilizar a
teoria da eficácia indireta ou mediata.
Ainda assim, existem doutrinadores que defendem que a única forma
de se aplicar efetivamente os direitos fundamentais no plano privado é a direta. A
teoria da eficácia indireta não atende às necessidades daqueles que estão em uma
situação de desigualdade em uma relação teoricamente equilibrada, uma vez que
ficam a mercê de algum meio que efetive esses direitos, não havendo, dessa forma,
eficiência.

4.4.2 Teoria da eficácia indireta (mittelbare drittwirkung)

Essa teoria foi primeiramente desenvolvida por Dürig. Segundo ela,


não é cabível a aplicação direta da norma fundamental dentro de uma relação
jurídica de direito privado, uma vez que, são relações jurídicas distintas.
70

Na relação clássica regulada pelos direitos fundamentais, entre


cidadão e Estado, existe um titular único de direitos, ou seja, o cidadão, e um sujeito
de deveres, qual seja o Estado, que deve se abster ou prestar na medida das
necessidades do primeiro.
Nesse sentido os direitos fundamentais se encaixam perfeitamente.
Mas, quando há uma relação jurídica entre cidadão e cidadão, estaremos perante
dois titulares dos mesmos direitos fundamentais com deveres também semelhantes,
de modo que a efetivação de um direito fundamental de um dos sujeitos dessa
relação, poderá muito bem violar um direito fundamental do outro.
Neste contexto, o que era para ser somente direito, torna-se também
dever, situação que não condiz com a própria natureza dos direitos fundamentais.
Sendo assim, surge a teoria da eficácia indireta ou mediata. Segundo
essa teoria, os direitos fundamentais podem sim interferir nas relações jurídicas
entre os particulares, mas através de um intermediário que poderá ser o legislador
ou o julgador.
É certo que, para essa teoria, a autonomia do direito privado em
relação ao direito público deve ser mantida e por isso, determina-se que o legislador
ordinário, através de cláusulas gerais, deve adaptar o direito privado à norma
fundamental.
Portanto, ao criar cláusulas gerais para o direito privado baseadas nos
direitos fundamentais, estes estariam sendo aplicados indiretamente na esfera
privada. Por exemplo, o legislador ordinário ao inserir a cláusula geral da “boa-fé” no
Código Civil estaria aplicando indiretamente os direitos fundamentais na esfera
privada, uma vez que esta cláusula geral está em consonância com diversos direitos
fundamentais como o direito à vida, à dignidade, etc.
Alguns doutrinadores entendem que em caso de lacunas legislativas,
poderia o juiz aplicar diretamente as normas de direitos fundamentais na esfera
privada. Seria uma exceção à regra, mas muitos não concordam com esse
posicionamento, ponderando que nem assim a aplicação direta seria coerente, pois
essa função só cabe ao legislador.
Em relação aos juízes, estes em caso concreto poderiam interpretar as
cláusulas gerais de direito privado de acordo com os direitos fundamentais. Esse
trabalho de hermenêutica também seria uma maneira de aplicar os direitos
fundamentais à esfera privada de forma indireta.
71

Haveria desse modo, duas maneiras de aplicar os direitos


fundamentais de forma horizontal: segundo a teoria da eficácia indireta, ou através
do legislador responsável pela criação de cláusulas gerais, ou através do julgador
que interpreta essas cláusulas conforme os direitos fundamentais.
Mas, muitas são as vozes contrárias a essa teoria. Para esses a
eficácia indireta não atende aos anseios dos que necessitam da tutela dos seus
direitos fundamentais nas relações privadas, pois se há necessidade dessa tutela é
justamente por que o legislador e o judiciário não foram capazes de amparar esses
direitos de forma prévia e sendo assim, anseia o particular lesado por um meio
direito, eficiente, sem a necessidade de uma interpretação complexa como a que
deveria fazer o judiciário, ou uma atividade legislativa.
Alexei Julio Estrada (2001, p. 116), ao comentar o complexo trabalho
hermenêutico que deve fazer o judiciário considera que:

Al juzgador del caso específico corresponde entonces uma doble labor


hermenéutica: inicialmente debe extraer del derecho fundamental
correspondiente el principio que éste contiene, para luego introducirlo em el
contenido de la cláusula general, que finalmente será aplicada para la
solución del conflicto jurídico - privado. Sólo através de este amplio rodeo se
hace posible, según la teoria de la mittelbare drittwirkung, la aplicación de
9
los derechos fundamentales en el âmbito de las relaciones privadas. (grifo
nosso)

Essas divergências entre eficácia direta e indireta cercam a questão da


eficácia horizontal dos diretos fundamentais e, atualmente, não estando elas
superadas muitos doutrinadores buscam uma alternativa para essa questão tão
controvertida.
A busca por um consenso é facilmente explicada: em várias ocasiões
essas divergências impedem o aprofundamento ou mesmo a aplicabilidade da teoria
da drittwirkung. Por isso surgiram alternativas interessantes visando não controverter
ainda mais as teses acima, mas conciliá-las em prol de um bem maior, qual seja, o
de proporcionar a aplicação cada vez mais enfática da teoria da drittwirkung.

9
Tradução Livre da Autora – Ao juiz no caso especifico, corresponde então um trabalho duplo de hermenêutica:
primeiramente, extrair dos direitos fundamentais correspondentes o princípio que estes contém, para logo
introduzi-lo no conteúdo da cláusula geral , que finalmente será aplicada para a solução do conflito jurídico-
privado. Somente através de este amplo rodeio, se faz possível, segundo a teoria da mittelbare drittwirkung,a
aplicação dos direitos fundamentais no âmbito das relações privadas.
72

4.4.3 Teses de Lombardi, Schwabe e Alexy

Esses três doutrinadores apresentaram interessantes teses visando


superar a antiga dicotomia entre eficácia direta e indireta.
Começando por Lombardi, para quem a eficácia dos direitos
fundamentais nas relações privadas faz sentido quando há uma disparidade entre os
sujeitos da relação.
Justifica que o Estado recebe limitações via direitos fundamentais, pois
possui uma condição de superioridade nociva para a liberdade do cidadão, condição
essa fruto de um poder social. Quando em uma relação entre particulares, se
observa essa superioridade em relação a um dos sujeitos, superioridade que,
geralmente, é fruto do poder econômico, deve-se transportar a atitude que se tem
com o Estado para a esfera privada.
É o exemplo que pode ser encontrado nas relações trabalhistas: não
pode se dizer que nessa situação envolvendo empregado e empregador não há uma
superioridade econômica e principalmente hierárquica do segundo em relação ao
primeiro. Nesse caso não há uma paridade e sendo assim, os direitos fundamentais
devem ser invocados.
Na verdade, o direito privado ao regular a questão do abuso de direito
e de como esse abuso deve ser tratado, está referindo-se à situações em que existe
uma igualdade entre as partes, não estando apto a mediar situações onde não haja
equidade, e é neste ponto que Lombardi defende a aplicação direta dos direitos
fundamentais na esfera privada.
Ainda assim, esse autor considera que essa aplicação não pode ser
desvinculada de uma norma prévia mas, ao contrário do que defende a teoria da
eficácia indireta, que este elo ocorre por meio de cláusulas gerais. Para sua tese isto
ocorre através de uma norma constitucional expressa, que autorize a aplicação de
determinados direitos fundamentais nas relações jurídicas privadas.
O interessante na tese de Lombardi é que ele concebe uma aplicação
direta mas ao mesmo tempo impõe limites fáticos, ou seja, considera somente os
casos em que há uma disparidade entre particulares e não se descuida em
encontrar um ponto de apoio legal que justifique esta aplicação: a norma
73

constitucional que autoriza e também limita os diretos fundamentais de possível


aplicação.
Schwabe, doutrinador alemão citado por Alexei Julio Estrada,(2001)
desenvolveu uma das teses mais polêmicas mas, não menos interessante, a
respeito da drittwirkung. Segundo ele toda lesão aos direitos fundamentais sofrida
por um particular e gerada por outro tem como pano de fundo a ação do Estado, e
sendo assim, não há que se falar em eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
Na verdade, cabe ao Estado proteger os cidadãos, principalmente no
que diz respeito a seus direitos fundamentais. Nesse ponto, tem o dever de, em
todas as esferas, zelar por esses direitos, inclusive na privada. A partir do momento
em que um direito fundamental é lesado por um particular, considera-se que isso
ocorreu porque o Estado não zelou devidamente por eles, havendo assim uma
responsabilidade do Estado e não do particular.
O ponto negativo dessa teoria é que, o fato de uma determinada
conduta não estar proibida pelo Estado, não vincula a este a responsabilidade, uma
vez que existem inúmeras ações dos particulares alheias às atividades estatais.
Apesar disso, cabe a Scwabe o mérito de ter, pela primeira vez, vinculado o
legislador ordinário à responsabilidade pela lesão aos direitos fundamentais na
esfera privada.
Já para a teoria de Alexy, os direitos fundamentais devem ser
analisados em três aspectos ou níveis, não hierárquicos, mas fáticos. O caso
concreto se encaixará em um desses níveis sendo que cada um deles se relaciona
com uma das três teorias vistas até agora, a da eficácia direta, indireta e a tese de
Scwabe.
No primeiro nível o caso está ligado aos deveres do Estado, uma vez
que os poderes estatais (legislativo e executivo) estão vinculados aos direitos
fundamentais e devem preservar a influência da ordem objetiva de valores dos
direitos fundamentais no restante do ordenamento jurídico.
O segundo nível trata do direito do cidadão a uma prestação estatal, ou
seja, o julgador está obrigado a preservar os direitos fundamentais em seus
julgados, a zelar por eles. Esse nível está ligado à tese de Scwabe, uma vez que
responsabiliza o Estado por se omitir em relação a um direito fundamental duas
vezes: não levando em conta sua irradiação natural e não correspondendo ao pleito
do particular que teve seu direito violado.
74

Quanto ao terceiro, está ligado com a eficácia direta ou imediata, ou


seja , à existência de normas jusfundamentais (como denomina o próprio autor) na
relação entre particulares. Ocorre que a incidência dessas normas na referida
relação exige a existência de uma Constituição, ou seja, uma norma ainda maior que
a justifique.
Pondera que, sendo dessa forma, nesse caso haveria um
intermediário, ou seja, o legislador constitucional, não sendo a eficácia de todo
direta.
Esta tese, apesar de complexa e muitas vezes contraditória,
proporcionou à teoria da drittwirkung um grande acréscimo, principalmente ao tentar
conciliar as teses até então divergentes.
Segundo Alexei Julio Estrada (2001, p.136)

Las tesis de Alexy se enmarcan dentro de uma nueva postura doctrinal


sobre la eficacia de los derechos fundamentales entre particulares, que
pretende superar los estrechos márgenes a que se hábia reducido la
discusión em el marco de la contraposición de las doctrinas tradicionales.
Como tal efectúa um gran esfuerzo de conciliación y pretende dar cabida a
todas las posibilidades de aplicabilidad de los derechos fundamentales em
el orden jurídico privado, renunciando a aderirse especificamente a
10
cualquiera de ellas.

Apesar desta grande e interessante inovação, não há que se olvidar da


complexidade e ambigüidade da tese de Alexey, que envolve questões de
interpretação e de uma visão sistemática dos direitos fundamentais característica do
autor alemão, o que impede, muitas vezes sua aplicação.
Bem considera ainda Alexei Julio Estrada (2001, p.137) ao fazer uma
respeitável crítica, não desmerecendo a importância da tese de Alexy

Sin duda la solución de Alexy, aunque rica y compleja, presenta el gran


peligro de la ambigüedad, y obliga además a utilizar otros elementos de su
construcción jurídica como son la teoría de la argumentación y el
11
entendimiento de los derechos fundamentales como um todo.

10
Tradução Livre da Autora – As teses de Alexy se inserem dentro de uma nova postura doutrinaria sobre a
eficácia dos direitos fundamentais entre os particulares, que pretende superar as estreitas margens a que se havia
reduzido a discussão no marco da contraposição das doutrinas tradicionais. Como tal, efetua um grande esforço
de conciliação e pretende dar cabimento a todas as possibilidades de aplicação dos direitos fundamentais na
ordem jurídica privada, renunciando a aderir especificamente a qualquer uma delas.
11
Tradução Livre da Autora – Sem duvida a solução de Alexy, ainda que rica e complexa , apresenta o grande
perigo da ambigüidade e obriga, ademais, a usar outros elementos de sua construção jurídica como a teoria da
argumentação e o entendimento dos direitos fundamentais como um todo.
75

Como já foi considerado, todas essas teses tem o mérito de abrandar a


diferença existente entre as teorias clássicas da eficácia direta e indireta, o que
significa uma grande contribuição à doutrina da eficácia horizontal dos direitos
fundamentais, uma vez que trata-se de um pensamento relativamente novo que
precisa passar por um amplo processo de teses e antíteses até chegar finalmente
em uma síntese ampla e completa.

4.4.4 Tese de Canotilho

Na análise dos diferentes e ricos pensamentos a respeito da


drittwirkung e suas variações, que nos ajudam a compreender essa complexa e
interessante doutrina, não poderia passar a tese do constitucionalista lusitano
Gomes Canotilho, doutrinador que traz uma das mais relevantes contribuições a
respeito do assunto e na opinião alguns importantes estudiosos, a mais interessante
já escrita em língua portuguesa.
Canotilho analisa a questão sob quatro aspectos: do legislador, do juiz,
do particular e um núcleo considerado por ele irredutível, qual seja, o da autonomia
privada.
Em relação ao legislador, o autor considera que sua vinculação com o
direito privado é inegavelmente imediata, porque ao criar uma lei infraconstitucional,
está ele obrigado a observar e respeitar a ordem constitucional, a zelar pelo principio
da igualdade, uma vez que a lei não pode nem deve discriminar qualquer das partes.
Quanto ao juiz, este, em primeiro lugar, deve se vincular aos direitos,
liberdades e garantias como preceitos legais, mas deve também, lançar mão, de sua
função objetiva como instrumentos de interpretação para o caso concreto.
Canotilho (2002, p.1276) lança mão de um interessante método para a
aplicação dos direitos fundamentais na esfera privada pelo juiz:

a) Em primeiro lugar, devem fazer uma aplicação do direito privado


legalmente positivado em conformidade com os direitos fundamentais
pela via da interpretação conforme a constituição.
b) Se a interpretação conforme os direitos, liberdades e garantias, for
insuficiente cabe sempre na competência dos tribunais a desaplicação da
lei ( por inconstitucional) violadora dos direitos (subjectivos) ou dos bens
constitucionalmente garantidos pelas normas consagradoras de direitos
fundamentais.
76

c) A interpretação conforme os direitos, liberdades, e garantias das normas


de direito privado utilizará como instrumentos metódicos não apenas as
clássicas cláusulas gerais ou conceitos indeterminados ( ex: boa-fé,
abuso de direito) mas também as próprias normas consagradoras e
defensoras de bens jurídicos absolutos ( vida, liberdade). Trata-se, pois,
de uma concretização de bens jurídicos constitucionalmente protegidos
através de normas de decisão judiciais (captadas ou “extrinsecadas” por
interpretação –integração pelo direito judicial).

Este método possibilita, a princípio, usar o direito fundamental


positivado e caso isso não seja eficiente, ter como inconstitucional a norma violadora
e, por fim, usar os direitos fundamentais como instrumento de interpretação,
cláusulas gerais de conteúdo axiológico, não conceitos indeterminados, mas os
próprios direitos em si.
Ao tratar da questão dos direitos fundamentais aplicados nas relações
jurídicas entre particulares, Canotilho aceita a complexidade e fragilidade do tema.
No entanto, admite que não só o poder público é capaz de lesionar o cidadão, mas
os chamados poderes sociais, geralmente advindos do poder econômico, também
são perfeitamente capazes de causar lesões. Sendo assim, cabe ao legislador e aos
tribunais observarem e tutelarem esses casos.
Mas o doutrinador português é cauteloso ao defender que embora seja
de extrema importância a aplicação dos direitos fundamentais na esfera privada, o
principio da autonomia privada deve ser sempre respeitado e resguardado de modo
a não tornar essa eficácia irradiante algo absoluto, mas um princípio que deve ser
contraposto a outro principio não menos relevante, qual seja, a autonomia da
vontade.
O que não pode é ocorrer no seio da sociedade o que Canotilho
denomina de ‘dupla ética’: situações idênticas tratadas de forma flagrantemente
distintas na esfera pública e privada. Em um exemplo dado em seu livro, diz ser
inviável que um órgão público seja terminantemente proibido de exigir um exame de
gravidez antes de admitir uma funcionária e isto ser perfeitamente aceito no âmbito
privado. Ou seja, a preservação da autonomia da vontade, é tão importante para o
bem estar social, quanto os próprios direitos fundamentais, mas não se pode manter
situações contraditórias que relativizem direitos de suma importância para toda a
sociedade.
A questão da dupla ética, bem como a cautela com que Canotilho trata
do tema, separando as diversas esferas de incidência dos direitos fundamentais nas
77

relações privadas, são os pontos fortes de sua teoria, porém o autor não se
aprofunda muito na questão da incidência dos direitos fundamentais diretamente nas
relações privadas.
Independente disso trata-se de uma das teses mais coerentes sobre o
tema criadas até hoje.

4.5 Os Tribunais e a Drittwirkug

A drittwirkung, como se pode perceber, sempre configurou uma tese


muito peculiar em vários aspectos, e um deles, foi a grande influência dos tribunais
em sua efetivação e desenvolvimento. Esta evoluiu através das discussões
jurisprudenciais que surgiam da análise de casos concretos, desde a primeira vez
em 1958 com o caso Lüth, até os dias de hoje, uma vez que trata-se de uma teoria
em constantes modificações.
Os tribunais tiveram e têm o papel de delinear uma teoria surgida nos
meios científicos, que tomou forma através dos julgados do Tribunal Federal
Constitucional e que depois se espalhou pelos países que resolveram adotá-la e
nesse caso o julgado precedeu ao legislador criando uma nova maneira de se
interpretar os direitos fundamentais.
Por conta disso, há uma estreita e necessária relação entre a doutrina
da eficácia horizontal dos direitos fundamentais e os Tribunais, relação de
sobrevivência, dependência e profundo enriquecimento teórico para ambos.
O caso Lüth por exemplo, trouxe pela primeira vez a idéia do sentido
objetivo dos direitos fundamentais, como normas de valor axiológico. Apesar de não
ter se aprofundado muito no tema o Tribunal, na ocasião, entendeu pela primeira vez
que os direitos fundamentais possuíam dois aspectos: um subjetivo, de limitação da
atividade estatal, e um objetivo, de normas de princípios gerais que servem de
parâmetro para todo o ordenamento jurídico.
Dessa definição surgiram denominações a respeito da face objetiva
dos direitos fundamentais como objektive Wertordnung (origem objetiva de valores),
e Wertsystem (sistema de valores), entre outros.
78

As decisões do Tribunal Alemão influenciaram uma série de outros


tribunais como o Espanhol onde, a respeito da valoração objetiva, na STC 28/81
de14 de julho citada por Alexei Julio Estrada (2001,p.184), definiu-se que:

Los derechos fundamentales tienen um doble carácter. Em primer lugar, los


derechos fundamentales son derechos subjetivos, derechos de los
indivíduos no solo em cuanto derechos de los ciudadanos em sentido
estricto, solo em cuando garantizan um status jurídico en el âmbito de la
existência. Pero al próprio tiempo son elementos esenciales de um
ordenamiento objetivo de la comunidad nacional, em cuanto marco de uma
convivência humana justa y pacífica, plasmada históricamente em el Estado
de derecho y más tarde em el Estado social de derecho, según la fórmula
12
de nuestra Constitrución [...] (grifo nosso)

Isto demonstra uma clara influência jurisprudencial alemã nas


posteriores decisões a respeito da drittwirkung que foram tomadas pelo mundo. Mas
não parou por aí: as idéias de eficácia direta e indireta, também foram muito bem
delimitadas pelos Tribunais.
O Tribunal Constitucional Federal alemão já havia se posicionado a
respeito desde o caso Lüth, a favor de uma aplicação indireta ou mediata. Esse
entendimento, como de praxe, influenciou outros Tribunais, sendo hoje a forma mais
comum de aplicação da drittwirkung, geralmente através dos direitos fundamentais
por seu aspecto objetivo de normas e princípios axiológicos.
Não obstante predomine até hoje, em alguns casos os tribunais se
posicionaram contrariamente a esse entendimento, como ocorreu no caso da
Espanha que, em alguns casos, ousou aplicar a teoria da eficácia direta ou imediata.
Porém, há que se ressaltar que se tratava de casos esporádicos e que, de um modo
geral, não tiveram sucesso dentro da jurisprudência.
De qualquer maneira há de se reconhecer que foi nas decisões dos
Tribunais que a drittwirkung encontrou um campo propício para o seu
desenvolvimento e por isso é de suma importância a análise dos casos
emblemáticos que contribuíram para a evolução dessa teoria.

12
Tradução Livre da Autora - Os direitos fundamentais tem um duplo caráter. Em primeiro lugar os direitos
fundamentais são direitos subjetivos, direitos do individuo, não somente direitos dos cidadãos em sentido estrito,
somente quando garantem um status jurídico no âmbito da existência. Mas ao mesmo tempo, são elementos
essenciais do ordenamento objetivo , da comunidade nacional, enquanto marco da convivência justa e pacífica
fixada historicamente no Estado de Direito, e posteriormente, no Estado Social de Direito, segundo a fórmula de
nossa Constituição [...]
79

4.5.1 Casos emblemáticos

O caso das instalações potencialmente perigosas surgiu quando, na


Alemanha, passou a ser permitido que empresas privadas explorassem como
atividade econômica a obtenção de energia nuclear.
Entendeu o Tribunal neste caso, que ficaria nas mãos de particulares
os diretos à vida e à saúde dos cidadãos e que assim sendo, não poderia ser essa
atividade exercida de forma indiscriminada. Por isso, e a partir do principio do
aspecto objetivo dos direitos fundamentais como valores constitucionais jurídicos,
entendeu-se ser exigível a criação de uma legislação especifica a fim de diminuir os
riscos.
Portanto entendia-se, a partir daí, que sempre que uma atividade
desenvolvida no âmbito privado gerasse, de alguma maneira, risco à sociedade era
exigível do legislador a criação de regras proporcionalmente rígidas em relação ao
risco apresentado e aos bens jurídicos afetados.
O interessante dessa decisão do Tribunal Constitucional Federal
Alemão é que se exige uma atividade do legislador em relação a uma ação do
particular e não do particular em si que deverá apenas cumprir o que foi
regulamentado.
Estamos aqui diante de um dos três aspectos citados por Canotilho em
relação ao tema, ou seja, a vinculação do poder legislativo na criação de normas
que regulamenta a aplicação da eficácia horizontal.
Não se pode olvidar do interessante caso a respeito da legalização do
aborto ocorrido também na Alemanha. em 1975. Dessa feita, o Tribunal
Constitucional Alemão considerou inconstitucional a norma que permitia o aborto em
todos os casos nos primeiros três meses de gestação.
A justificativa do Tribunal é que trata-se de algo inviável: que um
terceiro interfira na vida de outrem, uma vez que cabe ao Estado proteger esse
direito à vida de forma positiva.
Defendeu que o direito fundamental à vida, não tem eficácia somente
para vedar a intervenção estatal na vida em gestação, mas para vedar a intervenção
inclusive de terceiros particulares. Esse dever de proteção dos direitos fundamentais
80

em relação ao nascituro se estende inclusive à mãe e, caso esta não o respeite,


deverá o Estado aplicar os meios penais necessários.
Este julgado pode parecer a priori óbvio no Brasil, onde, embora tenha
havido muitas tentativas, pouco se discute juridicamente o aborto, afastado da
discussão por questões de cunho religioso e social.
Mas analisando juridicamente o aborto configura nada mais que a ação
de um particular, no caso a mãe, ou um terceiro cerceando o direito à vida de outro
particular, qual seja, o nascituro.
Segundo o Tribunal Constitucional Federal os direitos fundamentais de
forma objetiva impedem que o Estado crie uma norma que permita que um particular
viole o direito à vida de outro e por isso, através desse fundamento, foi taxada como
inconstitucional a lei que permitia o aborto em todas as situações.
No Brasil, o mais relevante julgado diz respeito à exclusão de um
sócio, pela União Brasileira dos Compositores, sem o devido direito ao contraditório.
Na fundamentação da Ementa os julgadores utilizaram duas
interessantes teses a respeito da Drittwirkung: a primeira, a da eficácia indireta ou
mediata, ao determinar que a autonomia da vontade não afasta a vinculação dos
particulares a princípios constitucionais como o contraditório e a ampla defesa.
Desse modo, reconheceu o valor objetivo da norma fundamental como uma norma,
um principio axiológico que vincula-se a todos, uma vez que irradia para todo o
ordenamento jurídico.
Na segunda parte do julgamento alegam os julgadores que, naquele
momento, fazia a União Brasileira de Compositores o papel de Estado, uma vez que
tinha um poder social que tornava seu associado inferior a ela. Dessa forma, o
direito ao contraditório e à ampla defesa, criado a fim de dar segurança ao cidadão
em relação às ingerências do Estado, deveria ter sido respeitado.
Essa argumentação muito se aproxima da teoria de Lombardi que
defende a necessidade da drittwirkung principalmente nos casos em que há uma
disparidade entre as partes, como ocorreu no caso em tela.
Trata-se, portanto, de uma decisão rica em teses a respeito da
drittwirkung e rica argumentação que marcou a posição jurisprudencial brasileira a
respeito do tema.
81

4.5.2 As funções do legislador do juiz ordinário e do juiz constitucional

A questão aqui é um tanto quanto polêmica, como já dito. A grande


maioria dos tribunais optou por adotar a teoria da eficácia indireta ou mediata, sendo
as cláusulas gerais criadas pelo legislativo a forma de se aplicar os diretos
fundamentais na esfera privada.
Isto ocorre em grande parte pelo fato dos tribunais entenderem que o
legislativo, por ser representação da soberania popular tem legtimidade, dentro de
um estado democrático de direito, para efetivar os direitos fundamentais.
Sendo assim, caberia ao legislativo criar cláusulas gerais a serem
respeitadas pelo particular e pelo próprio julgador. Ocorre que com o passar do
tempo, alguns doutrinadores passaram a entender que não só as clausulas gerais
deveriam ser observadas pelo julgador, mas a totalidade dos direitos fundamentais.
Dessa maneira, caberia ao julgador, no caso concreto, aplicar as
normas de direitos fundamentais na esfera privada, o que contraria um pouco o que
se idealizou a princípio ou seja o judiciário assumiria um papel passivo de aplicação
das cláusulas gerais e o legislativo um papel positivo de criação dessas cláusulas.
Com o passar do tempo o judiciário passou a ter cada vez mais um
papel positivo e determinante para o desenvolvimento dessa teoria e não apenas de
mero aplicador de cláusulas gerais o que, de forma alguma, reduz a importância do
legislativo na criação das cláusulas; pelo contrário, somente a complementa.

4.6 Uma Nova Perspectiva a Respeito da Eficácia Horizontal dos Direitos


Fundamentais.

Vimos até aqui, toda a evolução dos direitos fundamentais, bem como
suas principais características dentro dos textos constitucionais, além da doutrina da
eficácia horizontal dos direitos fundamentais e suas variações.
Não obstante a questão da drittwirkung, e mesmo como uma forma de
efetivação da mesma, surgem na atualidade meios práticos de concretização dos
direitos fundamentais na esfera privada, distantes dos tribunais. Esses meios
surgem como uma atitude do próprio particular de respeito a uma determinada lei,
82

ou mesmo de forma voluntária, uma vez que tanto a esfera privada quanto a pública
chegou à conclusão de que o respeito a esses direitos é a única forma de efetuar a
manutenção da paz social.
As mais relevantes inovações a esse respeito estão ligadas à questão
da função social da propriedade, norma fundamental que exige uma atitude positiva
tanto do Estado quanto do particular para uma melhor utilização da propriedade
privada, sendo a mais inovadora de todas, a responsabilidade social da empresa,
que nada mais é do que uma forma absolutamente voluntária de respeito e
efetivação dos direitos fundamentais pela esfera privada.

4.6.1 Uma resposta às mudanças econômicas e sociais deste século

Quando surgiu a doutrina da eficácia dos direitos fundamentais nas


relações privadas, no século passado, esta, com grande clareza, anteviu uma
tendência que iria se desenvolver de forma grandiosa neste século, ou seja, a
questão do respeito aos direitos fundamentais, de forma ampla, como o único meio
de se manter o bem estar social, dentro de um mundo globalizado e com uma
economia dinâmica e complexa.
Após a chamada Terceira Revolução Industrial, ou Revolução da
Informação, a dinamicidade do capital, bem como a ausência de fronteiras
econômicas e culturais, não permitiu que se cometessem os mesmos erros do
período liberal, considerando o particular como um ente livre para tomar suas
decisões independentemente do bem estar social.
Essa atitude seria um quase suicídio social, uma vez que, se no
séculos XVIII e XIX, o capital tinha uma mobilidade um tanto quanto lenda e os
lucros eram baseados em produtos, bens que bem ou mal geravam empregos e
alguma renda para a população, o capitalismo moderno tem como base um capital
sem fronteiras e desvinculado dos bens produzidos: trata-se do dinheiro eletrônico,
dinâmico, baseado em um complexo mercado financeiro mundial onde o bem em si
não mais está no centro da cadeia lucrativa.
Sem explanações econômicas mais complexas, a questão é que se no
século XIX, uma fábrica de carros obtinha lucros com a venda dos carros, hoje esta
mesma fábrica tem um lucro maior com suas ações, marca e o desenvolvimento e
83

comercialização de novas tecnologias, o que permite que a produção dos carros em


si não seja sequer feita pela própria empresa, mas por outras, terceirizadas.
Com tamanho desenvolvimento e sem uma intervenção estatal
adequada haveria uma queda nos postos de empregos em países com legislações
trabalhistas desenvolvidas, bem como uma migração destes postos para países
onde a mão de obra fosse mais barata e onde não houvesse qualquer proteção aos
direitos do trabalhadores.
Isto geraria uma desorganização social mundial e a não observação
dos diretos fundamentais poderia gerar um caos social jamais imaginado. Situações
como essas chegaram a acontecer, e isto fez despertar na consciência dos
legisladores, bem como de toda população mundial, que a sociedade
contemporânea somente sobreviveria sem maiores traumas dentro de uma
economia globalizada, se a propriedade e o particular bem como o Estado
respeitassem conjuntamente os direitos fundamentais.
A priori é o que prega a teoria da eficácia horizontal dos diretos
fundamentais e, nesse contexto, desenvolveram-se meios de efetivação mais
específicos. Entre esses meios citamos o desenvolvimento da teoria da função
social da propriedade e da empresa que tem como suporte a questão da drittwirkung
indireta ou mediata, e a tese sem precedentes da responsabilidade social, ou seja,
um meio voluntário de respeito aos direitos fundamentais pelas empresas que viram
no respeito a esses direitos uma fonte, ao mesmo tempo de lucro, e de manutenção
da estabilidade econômica.

4.6.2 A função social da empresa

Ao pensar em propriedade, muitas vezes pensamos primeiramente na


propriedade rural. Esse tipo de associação é natural, uma vez que a sociedade
ocidental passou pelas grandes revoluções tendo a propriedade rural como tema
central.
Desde o império romano, o território significava a maior fonte de poder
e riqueza e com a queda desse império e o inicio do período feudal, a propriedade
da terra passou a significar a posse do que havia de ser o maior status de poder da
época, maior até que a própria riqueza.
84

Por séculos o poder ficou nas mãos dos que eram tidos como enviados
de Deus para governar e os nobres mantinham seu poder baseados nessas
explicações divinas. Ocorre que, com a queda do absolutismo e o inicio de uma
nova era na sociedade, tornou-se necessário uma outra base de sustentação do
poder, uma vez que a nobreza de origem divina havia caído por terra. Como os
precursores dessas revoluções eram os burgueses, nada mais natural que ligar o
poder à propriedade, o que dava ao mesmo tempo segurança e poder para essa
classe.
Segundo Augusto Geraldo Teizen Júnior (2004, p. 117)

Na tomada de poder com a Revolução Francesa, a burguesia tratou logo de


modificar a sociedade e realizar as idéias fundamentais de sua pregação,
implementando, o que foi a sua concepção de liberdade e sua noção de
direito de propriedade [...]
E o direito de propriedade, tal como configurado, representou um dos
aspectos de segurança jurídica almejada e obtida pela burguesia.

Nesse contexto a propriedade era plena, livre de qualquer encargo e


por conta disso, significou mais do que nunca poder. Essa situação começou a se
transformar, principalmente após a Segunda Guerra Mundial. Fatores como o caos
econômico, social e político predominante nesse período e as posteriores mudanças
na economia fizeram nascer na sociedade a necessidade de atribuir à maior fonte de
riquezas ou seja, à propriedade, uma função de efetivação das necessidades da
coletividade e não apenas de seu proprietário.
Esta situação passou a ser conhecida como função social da
propriedade e nada mais é do que uma vinculação do particular e seu bem ao
restante do meio social em que está inserido e do qual também depende.
Dessa forma, ao tratar-se da função social da propriedade de forma
sociológica, - uma vez que seu aspecto jurídico será analisado no tópico seguinte,-
esta vem a ser a inserção do particular e do objeto de sua propriedade dentro do
contexto social, como protegido pela ordem jurídica mas obrigado por ela a respeitar
os direitos sociais.
Como para manter uma empresa o proprietário precisa de
empregados, ou seja, outros membros da sociedade, também deverá respeitar a
legislação trabalhista bem como os diretos fundamentais desses empregados. Como
esse proprietário também se beneficia dos impostos pagos por toda a sociedade
85

também deverá pagar os seus e como precisa dos consumidores, deverá respeitar
seus direitos.
Como bem definem Guilherme Calmon Nogueira da Gama e Felipe
Germano Cocicedo Cidad (2007, p.35)

A função social do contrato e da empresa, ademais, deve traduzir as


inúmeras finalidades constitucionais da República, não apenas as assim
denominadas nos primeiros artigos do Texto Magno, mas também, as
traçadas em seu bojo. Desta forma, o respeito à cultura, ao
desenvolvimento do ensino científico e do desporto, além do meio ambiente,
compõem o quadro de proteções constitucionais que integram o conceito de
função social.

Portanto, a observação da função social nada mais é do que uma


forma de incidência dos direitos fundamentais na esfera privada através de uma
norma criada pelo legislador constituinte, ou como asseguram alguns, uma cláusula
geral com incidência no ordenamento jurídico constitucional.
Como pode se observar, estas situações muito se assemelham com a
doutrina da drittwirkung e é este paralelo que será traçado a seguir.

4.6.3 Aspectos jurídicos da função social - um paralelo com a teoria da


drittwirkung

Como já visto as mudanças sociais pelas quais passou a humanidade


no final do século passado e início do século presente, obrigaram os legisladores de
praticamente todo o mundo a mitigar a idéia de disponibilidade total do proprietário
sobre o bem, e inseri-lo dentro de um contexto social, destinando a ele certas
obrigações com o objetivo de tornar seu bem útil a ele e a todo o restante da
sociedade.
Essa nova maneira de encarar a relação entre o homem e seu objeto
de domínio foi chamada de função social e introduzida no ordenamento jurídico de
grande parte dos países do mundo no rol dos direitos fundamentais.
Sendo assim, é possível traçar um paralelo entre a questão da função
social da propriedade e algumas das variantes teóricas da drittwirkung, uma vez
que, tratando-se de uma norma de direto fundamental, pode ser entendida como
86

uma cláusula geral criada pelo legislador que irradia para todo o ordenamento
jurídico a fim de dar parâmetro à aplicação das demais normas constitucionais.
Como determina Augusto Geraldo Teizen Júnior (2004, p.132) ao
explicar a eficácia e a natureza jurídica da função social

Assim, as cláusulas gerais tornam-se elementos preponderantes deste


sistema. Examinar a função social do contrato e entendê-la como cláusula
geral permitirá ao intérprete habilitar-se e dar interpretação e solução mais
justa ao universo jurídico na qual ele se insere.

Ainda neste sentido, Guilherme Calmon Nogueira da Gama e Andréa


Leite Ribeiro de Oliveira (2007, p.53) consideram a função social um principio geral.

A Constituição Federal de 1988 trouxe uma série de princípios gerais,


fundamentais e jurídicos, que caracterizam todo o ordenamento jurídico e
orientam a interpretação e a aplicação das normas constitucionais e
infraconstitucionais. Dentre estes princípios está a função social da
propriedade, positivado por força de decisão política do constituinte.

Estas considerações demonstram que grande parte da doutrina


brasileira considera, tanto os direitos fundamentais como a função social, cláusulas
gerais ou princípios gerais criados pelo legislador que servem de parâmetro para
todo o restante do ordenamento jurídico.
Esse pensamento nada mais é do que a justificativa do Tribunal
Constitucional Federal Alemão para a aplicação dos diretos fundamentais na esfera
privada no caso Lüth, o que ficou conhecido como teoria da irradiação dos diretos
fundamentais e consagrou a teoria da drittwirkung indireta ou mediata, uma vez que
a cláusula geral, que permite a irradiação ao plano privado, é criada pelo legislador.
Na verdade, a função social da propriedade é o grande elo entre a
teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais e sua verdadeira efetivação
no plano concreto, uma vez que é uma cláusula geral ou um princípio geral que dá
parâmetro à aplicação de normas infraconstitucionais. Porém tem, além desse
caráter axiológico, um status positivo e coercitivo, uma vez que aquele que não
observa esse direito fundamental corre o risco de sofrer várias sanções e dentre elas
a perda do bem.
A funçãosocial da propriedade é, dessa maneira, a mais efetiva forma
de proteção dos diretos fundamentais na esfera privada, uma vez que através dela o
proprietário é obrigado a respeitar toda uma gama de direitos fundamentais que
87

compõe a idéia de função social sob pena da perda do próprio direito à propriedade
privada.
Eis um exemplo prático: se o proprietário de uma empresa privada
obriga as suas empregadas a se submeterem a testes de gravidez mensalmente sob
pena de rescisão contratual, ele a priori não está respeitando a legislação trabalhista
e os direitos fundamentais de privacidade e dignidade de suas empregadas.
Cabe a esta empresa para atender à sua função social não só gerar
empregos, mas respeitar a legislação trabalhista e acima de tudo a Constituição
Federal. Dessa forma deverá sofrer as sanções atendimento à função social.
Quando isso ocorrer teremos então a incidência dos diretos fundamentais nas
relações privadas tanto como cláusula geral que influenciou a criação de sanções no
âmbito infraconstitucional, quanto como um status positivo na figura das próprias
sanções.
Por certo que essa relação torna-se cada vez mais complexa. O que
surgiu com o caso Lüth nos anos 50, evoluiu muito até aqui e a tendência é
continuar evoluindo. A função social caracterizou grande parte desta evolução uma
vez que trata-se de um direito fundamental ímpar, que criou o já mencionado elo
entre teoria e prática em ordenamentos jurídicos que não mencionam a possibilidade
de uma eficácia direta.
Se a função social foi uma das maiores e recentes evoluções a respeito
da teoria da eficácia horizontal, principalmente a indireta, ela definitivamente não foi
a última.
Cabe-nos mencionar ainda a última tendência mundial a respeito da
concretização dos diretos fundamentais na esfera privada, a chamada
responsabilidade social das empresas, tema que será devidamente abordado a
seguir.

4.6.4 A Responsabilidade social

As transformações mundiais, já citadas, ocorridas principalmente a


partir do fim da Segunda Guerra Mundial, geraram uma grande evolução jurídica a
respeito da questão dos diretos fundamentais e sua eficácia, mas cabe ressaltar que
além de mudanças no plano jurídico não podemos olvidar das mudanças sociais.
88

Quando assinada, em 1948, a Declaração Universal de Direitos do


Homem, podia se dizer que apenas em pontos isolados do globo como França e
Estados Unidos as pessoas sentiam-se titulares de direitos fundamentais. O restante
da população mundial nem sequer sabia da existência dessa classe de direitos e do
seu grande poder e importância. Entretanto, 60 anos depois e após muitos
acontecimentos históricos que, de diversas formas colocaram em xeque essa classe
de direitos, ao mesmo tempo que a colocava em destaque, a população mundial
está cada vez mais consciente de sua existência e titularidade.
A priori esta noção surgiu a partir do respeito desses diretos pelo
Estado. A luta contra as ditaduras militares na América Latina deixou clara a
existência de uma consciência de que certos diretos são inerentes a todos e
invioláveis por quem quer que seja.
Décadas depois, principalmente nos anos 90, essa noção de respeito
aos diretos fundamentais foi ampliada para os particulares, ou seja, após o
reconhecimento deles pelo Estado surgiu uma necessidade de reconhecimento
pelos próprios particulares. A história e principalmente a Declaração da ONU, de
1948, tornou inviável um neoliberalismo social, uma vez que a população tomou
cada vez mais consciência de que todos são titulares de direitos humanos.
Essa mudança de mentalidade não demorou a repercutir no plano
econômico, à medida que a imprensa retomava seu papel de fiscal social. No Brasil
e nos demais paises latino-americanos nos quais havia sofrido restrições em
décadas passadas, chegavam à mídia informações e mais informações de
agressões a direitos fundamentais cometidas por particulares. Empresas que
geravam severos impactos ambientais, não respeitavam o direito dos trabalhadores,
ou se omitiam diante das necessidades sociais e econômicas do ambiente onde
estavam inseridas eram trazidas constantemente aos noticiários o que gerou uma
crítica social a essa espécie de atitude.
Logo, com a consciência crítica do cidadão a respeito de seus direitos,
empresas com essas características passaram a sofrer perdas, o que obrigou o
mundo empresarial a criar uma nova forma de gestão que privilegiasse a busca do
lucro somada ao bem estar dos trabalhadores, do local onde está a empresa e de
toda a sociedade.
Nascia, dessa forma, o que passou a ser chamado de responsabilidade
social da empresa, ou seja, uma atitude prática e voluntária de efetivação dos
89

diretos fundamentais a fim de manter um padrão lucrativo dentro de uma sociedade


cada vez mais exigente e consciente de seus direitos.
Segundo Guilherme Calmon Nogueira da Gama e Bruno Paiva
Bartholo (2007, p.104):

A maioria dos empresários que assume iniciativas desta índole, tem por
objetivo atrelar a seu empreendimento uma imagem positiva junto à
comunidade, integrada por potenciais consumidores de seus produtos ou
de seus serviços.

Hoje, a questão da responsabilidade social tornou-se uma das


principais estratégias empresariais, benéfica tanto para a empresa quanto para a
sociedade. Empregados que tem seus diretos respeitados e efetivados produzem
mais e consumidores, que têm seus direitos também respeitados e a consciência
que estão consumindo um produto de uma empresa que respeita seus diretos
fundamentais e do restante da coletividade, tornam-se fiéis àquele produto.
Não há aqui qualquer pretensão de adentrar na seara empresarial, mas
o que se visa demonstrar com estas informações é que nasce uma consciência
social a respeito dos diretos fundamentais influenciada por fatores históricos e pela
própria mídia que hoje serve como importante veículo de fiscalização do
cumprimento desses direitos seja pelo setor público, seja pelo setor privado.
A tendência atual é de que as empresas, independente de qualquer
meio coercitivo, respeitem os direitos fundamentais para conseguirem sobreviver em
um mercado com consumidores cada vez mais conscientes desses direitos.
A responsabilidade social ainda não é uma regra e seria inocente dizer
que não há mais necessidade de meios coercitivos que levem ao cumprimento
desses direitos pelos particulares ou que a discussão a respeito da eficácia dos
direitos fundamentais na esfera privada acabou pois os particulares decidiram
respeitar esses direitos de forma espontânea.
O que se quer dizer é que a evolução jurídica e social da eficácia
horizontal dos direitos fundamentais é irreversível, uma vez que, já esta enraizada
na consciência da população de países democráticos, que todos são titulares de
direitos fundamentais e por isso devem ser respeitados, seja na esfera pública ou
privada. Não fosse assim grandes empresas não se reestruturariam e gastariam
fortunas para atender aos diretos fundamentais de seus consumidores.
90

Isto demonstra que as vozes contrárias à questão da eficácia horizontal


dos diretos fundamentais estão caminhando na contramão da história e da própria
evolução dos direitos inerentes a todo ser humano.
91

5 CONCLUSÃO

A evolução dos direitos fundamentais ajuda a compreender como


chegamos ao estágio em que nos encontramos hoje e dá bases para a
compreensão do tema discutido.
Ao longo dos anos, desde a chamada primeira dimensão, o direito
sofreu modificações e foi ganhando espaço.Depois do “Bill of Rigths”, a declaração
francesa já começou a ampliar a titularidade desses direitos, dentro do que Noberto
Bobbio chama de progresso moral da humanidade. Distantes da luta religiosa das 13
colônias, os franceses garantiram os direitos, embora negativos, para os não
franceses, o que deixa claro a titularidade do ser humano isolado.
Na segunda geração, a Lei Fundamental de Waimar e a Constituição
Mexicana de 1971 buscaram assegurar os direitos prestacionais e assegurar não
apenas mais a liberdade, mas também a igualdade, devido às explorações
cometidas pelos burgueses durante a Revolução Industrial.
Finalmente, a Declaração da ONU visa garantir direitos de terceira
dimensão, que têm como titulares o gênero humano, sem qualquer distinção de
raça, credo ou outra peculariedade.
Numa nova etapa, alguns autores falam sobre uma quarta e até
mesmo uma quinta dimensão dos direitos humanos ou fundamentais, enquanto que
parte da doutrina se ocupa de abordar a eficácia desses direitos nas relações entre
as pessoas.
É certo que, admitir uma eficácia horizontal dos direitos fundamentais
em grande parte das sociedades contemporâneas capitalistas marcadas por uma
forte herança do direito francês de gozo pleno e irrestrito da propriedade, ainda é
quebrar um tabu.
Existe sim a questão da autonomia da vontade tão ligada ao direito de
propriedade também de suma importância para um desenvolvimento social
saudável, mas basta se aprofundar um pouco nas tão bem elaboradas teorias a
respeito da drittwirkung para entender que uma coisa não exclui a outra.
Exige apenas uma abordagem hermenêutica mais complexa a respeito
do papel dos direitos fundamentais. O ponto principal abordado por este trabalho, foi
uma explanação a respeito das principais teorias da drittwirkung somada a uma
92

analise prévia das características dos diretos fundamentais, demonstrando que é


perfeitamente possível sua aplicação na esfera privada, desde que com cautela e
utilizando a argumentação e a teoria adequadas.
Essa eficácia irradiante dos direitos humanos que atingiria as relações
entre os particulares, completaria a evolução que começou na primeira dimensão,
visando valorizar a dignidade do ser humano.
Mas, além disso este trabalho tem como principal intuito demonstrar
que esta discussão é irreversível, que o mundo sofreu transformações suficientes
nos últimos anos para enraizar em grande parte dos seres humanos a idéia de que
eles são titulares de diretos fundamentais e que ninguém, nem Estado, nem outro
particular tem o poder ou o direito de violá-los.
Diante dessas transformações sociais os próprios particulares buscam
adaptar-se e respeitar mutuamente esses direitos, ma vez que a história tornou
insustentável um neoliberalismo social. Portanto, opor-se à eficácia horizontal dos
diretos fundamentais é lutar contra o inevitável.
O modelo que surgiu na jurisprudência e na doutrina alemã, ganhou
notoriedade e aceitação por toda a Europa, bem como outras democracias que
prezam a dignidade do ser humano. Trata-se de um processo de valorização dos
direitos e mais que isso, da prevalência deles nas relações da sociedade.
Este trabalho se baseou, sem dúvida, sobre a principal característica
dos diretos fundamentais, ou seja, a sua historicidade que torna essa gama de
direitos um tanto quanto peculiar, porque são discutidos pelos homens e esses
tentam compreendê-los há milênios.
Esse dinamismo e complexidade são típicos de seus titulares e, na
verdade, eles evoluem com a humanidade sendo que a historia de ambos se
confunde. A evolução apresentada é lógica doutrinariamente e importante para o
fortalecimento do tema atinente a eficácia privada entre todas as pessoas nas suas
mais diferentes relações, embora se reconheça que o limite é mesmo a autonomia
da vontade. Sobre os limites, que não é o objeto principal desta apreciação
acadêmica, ainda faltam trabalhos a estabelecer os limites que são necessários.
O tema central deste trabalho, a eficácia horizontal dos direitos
fundamentais é tida hoje como a última fronteira dos direitos fundamentais, ou seja,
é a próxima fronteira a ser estudada e debatida. Todavia, outra virão e serão
ultrapassadas, pois assim como inegavelmente a humanidade ainda irá evoluir o
93

mesmo ocorrerá com esses direitos.Novas fronteiras da bio-ética e do bio-direitos já


merecem apreciações acadêmicas e jusrisprudenciais, enquanto que a eficácia
privada se firma como um novo paradigma.
94

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