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edição

zero
dezembro/2010 - r$ 10,99
REVISTA DE ARTE
E LITERATURA

arnaldo antunes - fernando pessoa - jean baudrillard - federico fellini - françois jullien
manoel de barros - rubem alves - júlio cortázar - fefe tavalera - nego miranda
editorial
A revista Fio de Ariadne inspira-se na lenda de Ariadne,
filha de Minos, rei de Creta que se apaixonou por Teseu
quando este foi mandado a Creta, voluntariamente,
como sacrifício ao Minotauro que habitava o labirinto
construido por Dédalo e tão bem projetado que quem
se aventurasse por ele não conseguiria mais sair e era
devorado pelo Minotauro. Teseu resolveu enfrentar
o monstro. Foi ao renomado Oráculo de Delfos para
descobrir se sairia vitorioso. O Oráculo lhe disse que
deveria ser ajudado pelo amor para vencer o minotauro.
Ariadne, a filha do rei Minos, lhe disse que o ajudaria
se este a levasse a Atenas para que ela se casasse
com ele. Teseu reconheceu aí a única chance de vitória
e aceitou. Ariadne, então, lhe deu uma espada e um
novelo de linha (Fio de Ariadne), para que ele pudesse
achar o caminho de volta, do qual ficaria segurando
uma das pontas. Teseu saiu vitorioso e partiu de volta à
sua terra com Ariadne, embora o amor dele para com
ela não fosse o mesmo que o dela por ele. A Fio de
Ariadne busca penetrar nos labirintos da literatura, arte
e filosofia, trazendo pistas para o leitor se aventurar e
encontrar o inesperado.
sumário

CRÔNICAS PERSONALIDADES CINEMA

pg.8 pg.14 pg.16

pg.12

FILOSOFIA ARTES REFLEXÃO

pg.24 pg.26
pg.22

FOTOGRAFIA PENSAMENTO POEMAS

pg.28 pg.32 pg.34


CRÔNiCAs

nossos
dias
melhores
nunca
virão?
Por Arnaldo Jabor

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ando em crise, numa boa, nada de grave. Mas, ando


em crise com o tempo. Que estranho “presente” é este
que vivemos hoje, correndo sempre por nada, como
se o tempo tivesse ficado mais rápido do que a própria
vida, como se nossos músculos, ossos e sangue es-
tivessem correndo atrás de um tempo mais rápido.

As utopias liberais do século XX diziam que teríamos


mais ócio, mais paz com a tecnologia. Acontece que
a tecnologia não está aí para distribuir sossego, mas
para incrementar competição e produtividade, não só
das empresas, mas a produtividade dos humanos, dos
corpos. Tudo sugere velocidade, urgência, nossa vida
está sempre aquém de alguma tarefa. A tecnologia
nos enfiou uma lógica produtiva de fábricas, fábricas
vivas, chips, pílulas para tudo.

Funcionar é preciso; viver não é preciso. Por que


tudo tão rápido? Para chegar aonde, para gozar sem
para? Mas gozar como? Nossa vida é uma ejaculação
precoce. Estamos todos gozando sem fruição, um
gozo sem prazer, quantitativo. Antes, tínhamos
passado e futuro; agora tudo é um “enorme presente”,
na expressão de Norman Mailer. E esse “enorme
presente” nos faz boiar num tempo parado, mas
incessante, num futuro que “não pára de chegar”.
Antes, tínhamos os velhos filmes em preto-e-branco,
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fora de foco, as fotos amareladas, que nos davam naquela época. Agora, de calção e sandália, pareciam
a sensação de que o passado era precário e o estar numa espécie de “passado” daquele presente.
futuro seria luminoso. Nada. Nunca estaremos Algo decaiu, piorou, algo involuiu neles.
no futuro. E, sem o sentido da passagem dos Vendo filmes americanos dos anos 40, não sentimos
dias, de começo e fim, ficamos também sem falta de nada. Com suas geladeiras brancas e
presente. Estamos cada vez mais em trânsito, telefones pretos, tudo já funcionava como hoje. O
como carros, somos celulares, somos circuitos “hoje” deles é apenas uma decorrência contínua
sem pausa, e cada vez mais nossa identidade vai daqueles anos. Mudaram as formas, o corte das
sendo programada. O tempo é uma invenção da roupas, mas eles, no passado, estavam à altura de sua
produção. época. A depressão econômica tinha passado, como
um grande trauma, e não aparecia como o nosso
Não há tempo para os bichos. Se quisermos subdesenvolvimento endêmico. Para os americanos,
manhã, dia e noite, temos de ir morar no mato. o passado estava de acordo com sua época. Em
42, éramos carentes de alguma coisa que não
Eu vi os índios descobrindo o tempo. Eles se percebíamos. Olhando nosso passado é que vemos
viam crianças, viam seus mortos, ainda vivos e como somos atrasados no presente. Nos filmes
dançando. brasileiros antigos, parece que todos morreram sem
conhecer seus melhores dias.
Seus rostos viam um milagre. A partir desse
momento, eles passaram a ter passado e futuro. E nós, hoje, nesta infernal transição entre o atraso e
Foram incluídos num decorrer, num “devir” que uma modernização que não chega nunca? Quando o
não havia. Hoje, esses índios estão em trânsito Brasil vai crescer e chegar a seu “presente”? Chega
entre algo que foram e algo que nunca serão. O a ter inveja das multidões pobres do Islã: aboliram o
tempo foi uma doença que passamos para eles, tempo e vivem na eternidade de seu atraso. Temos a
como a gripe. E pior: as imagens de 50 anos é que utopia de que, um dia, chegaremos a algo definitivo.
pareciam mostrar o “presente” verdadeiro deles. Mas ser subdesenvolvido não é “não ter futuro”; é
Eram mais naturais, mais selvagens, mais puros nunca estar no presente.
instruções
para subir uma

escada Julio Cortázar

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Ninguém terá deixado de observar que frequen-
temente o chão se dobra de tal maneira que uma
parte sobe em ângulo reto com o plano do chão,
e logo a parte seguinte se coloca paralela a esse
plano, para dar passagem a uma perpendicular,
comportamento que se repete em espiral ou em
linha quebrada até alturas extremamente variá-
veis. Abaixando-se e pondo a mão esquerda numa
das partes verticais, e a direita na horizontal
correspondente, fica-se na posse momentânea
de um degrau ou escalão. Cada um desses de-
graus, formados, como se vê, por dois elementos,
situa-se um pouco mais acima e mais adiante do
anterior, princípio que dá sentido à escada, já que
qualquer outra combinação produziria formas tal-
vez mais bonitas ou pitorescas, mas incapazes de
transportar as pessoas do térreo ao primeiro andar.

As escadas se sobem de frente, pois de costas ou


de lado tornam-se particularmente incômodas.
A atitude natural consiste em manter-se em pé,
os braços dependurados sem esforço, a cabeça
erguida, embora não tanto que os olhos deixem
de ver os degraus imediatamente superiores ao
que se está pisando, a respiração lenta e regular.
Para subir uma escada começa-se por levantar
aquela parte do corpo situada em baixo à direta,
quase sempre envolvida em couro ou camurça e
que salvo algumas exceções cabe exatamente no
degrau. Colocando no primeiro degrau essa parte,
que para simplificar chamaremos pé, recolhe-se
a parte correspondente do lado esquerdo (tam-
bém chamada pé, mas que não se deve confundir
com o pé já mencionado), e levando-a à altura
do pé faz-se que ela continue até colocá-la no
segundo degrau, com o que neste descansará o
pé, e no primeiro descansará o pé. (Os primeiros
degraus são os mais difíceis, até se adquirir a
coordenação necessária. A coincidência de nomes
entre o pé e o pé torna difícil a explicação. Deve-
se ter um cuidado especial em não levantar ao
mesmo tempo o pé e o pé.)

Chegando dessa maneira ao segundo degrau,


será suficiente repetir alternadamente os mo-
vimentos até chegar ao fim da escada. Pode-se
sair dela com facilidade, com um ligeiro golpe de
calcanhar que fixa em seu lugar, do qual não se
moverá até o memento da descida.
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PeRsONALidAdes
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Fernando Pessoa

desassossego
Nunca durmo: vivoe sonho, ou antes, sonho em dois e belos e desejavam swer outra coisa; o maor
vida e a dormir, que também é vida. tardava-lhes no tédio do futuro.
Não sei o que é o tempo. Não sei qual a verdadeira
Não há interrupção em minha consciência:sinto o medida que ele tem, se tem alguma.
que me cerca e não durmo ainda, ou se não durmo
bem; entro logo a sonhar desde que deveras durmo. A do relógio sei que é falsa: divide o tempo
Assim, o que sou é um perpétuo desenrolamento de especialmente, por fora. A das emoções sei
imagens, conexas ou desconexas, fingindo sempre que também é falsa: divide, não o tempo, mas
de exteriores, umas postas entre os homens e a a sensação dele. A dos sonhos é errada; nele
luz, se estou desperto, outras postas entre os roçamos o tempo, umna vez prolongadamente,
fantasmas e a sem luz que outra vez depressa, e o que
se vê, se estou dormindo. vivemos é apressado ou
Verdadeiramente, não Fernando Pessoa lento conforme qualquer
sei como distinguir uma (Lisboa, 13 de Junho de 1888— Lisboa, 30 de No- coisa do decorrer cuja
coisa da outra, nem ouso vembro de 1935), foi um poeta e escritor português. natureza ignoro.
afirmar se não durmo Foi um poeta e escritor português. É considerado
quando estou desperto, um dos maiores poetas da Língua Portuguesa, e da Julgo, às vezes, que tudo
Literatura Universal Ao longo da vida trabalhou em
se não estou a despertar é falso, e que o tempo
várias firmas como correspondente comercial. Foi
quando durmo. não é mais do que uma
também empresário, editor, crítico literário, activis-
ta político, tradutor, jornalista, inventor, publicitário moldura para enquadrar
A vida é um novelo que e publicista, ao mesmo tempo que produzia a sua o que lhe é estranho. Na
alguém emaranhou. Há obra literária. Como poeta, desdobrou-se em múlti- recordação que tenho de
um sentido nela, se estiver plas personalidades conhecidas como heterónimos, minha vida, os tempos
objeto da maior parte dos estudos sobre sua vida e
desenrolada e posta ao estão dispostos em níveis
sua obra. Centro irradiador da heteronímia, auto-
comprido, ou enrolada e planos absurdos, sendo
denominou-se um “drama em gente”. Fernando
bem. Mas, tal como está, Pessoa morreu de cirrose hepática aos 47 anos, na eu mais jovem em certo
se estiver enrolada é um cidade onde nasceu. Sua última frase foi escrita em episódio dos quinze anos
problema sem novelo Inglês: “I don’t know what tomorrow will bring… “ solenes.
próprio, um embrulhar-se (“Não sei o que o amanhã trará”).

sem onde. Chegam-me então,


Sinto isso, e depois pensamentos absurdos,
escreverei, pois que já vou sonhando as frases a que não consigo todavia repelir. Penso se um
dizer, quando, através da noite de meio-dormir, homem medita devagar dentro de um carro
sinto, junto com as paisagens de sonhos vagos, o que segue depressa, penso se serão iguais as
ruído da chuva lá fora, a tornarmos mais vagos velocidades identicas com que caem no mar o
ainda. suicida ou o que se desiquilibrou na esplanada.
Penso se realmente não são sincrônicos os
Era sem dúvida, nas alamedas do parque que se movimentos, que ocupam o mesmo tempo, entre
passou a tragédia de que resultou a vida. Eram os quais fumo, escrevo e penso obscuramente.
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fazer um filme
Federico Fellini
CiNemA

Acho que quando crianças todos temos um


relacionamento embaçado, sonhado com a
realidade; para uma criança tudo é fantástico
porque é desconhecido, jamais visto, nunca
experimentado, o mundo apresenta-se diante de
seus olhos totalmente desprovido de intenções,
de significados, vazio de síntese conceitual, de
elaborações simbólicas, é só um gigantesco
espetáculo, gratuito e maravilhoso, uma espécie
de ameba que respira e ultrapassou os limites, na
qual tudo habita, sujeito e objeto, confusos num
único fluxo incontrolável, visionário e inconsciente,
fascinante e aterrorizante, do qual ainda não
emergiu o vértice, a fronteira da consciência.

Até o segundo grau nunca havia me perguntado


o que faria da vida; não conseguia me projetar
no futuro. Pensava na profissão como algo que
não se pode evitar, como a missa de domingo.
Nunca disse: “Quando crescer serei.” Não tinha
a impressão de que um dia cresceria e, no fundo,
não estava errado.

Do dia em que nasci até a primeira vez que entrei


na Cinecittà, parece que minha vida foi vivida por
outra pessoa, alguém que só de vez em quando
e quando menos se espera decide me fazer
participar de alguns fragmentos de sua memória.
Então devo admitir que os filmes de minha
memória falam de lembranças completamente
inventadas. E para dizer a verdade, que diferença
isso faz?

Como dizer de que maneira nasce a idéia de


um filme? Quando e de onde vem, os itinerários
tantas vezes desconexos ou dissimulados que
percorre?

Passaram-se 25 anos desde que filmei A Doce


Vida e é difícil lembrar. Parece que quando um
filme acaba ele sai para sempre de mim, levando

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uma música que volta à memória, obsessiva e
atormentadora, por dias inteiros; ou então, como
você bem me fez lembrar, que vi A Doce Vida
quando apareceu uma mulher que caminhava
pela via Veneto numa manhã ensolarada enfiada
num vestido que a fazia parecer uma verdura, não
tenho certeza de estar sendo de todo sincero, e
quando um amigo jornalista se lembra disso, me
sinto ridículo. Não acredito que no mundo exista
muita gente que considere a própria vida mal
resolvida porque eu não soube precisar a relação
entre aquele vestido da moda saco e o filme que
fiz depois. Mas talvez minha impaciência com
relação a este tipo de pergunta venha do fato de
que muitas vezes as ocasiões que originam um
processo criativo, sobretudo se identificadas e
alegadas de maneira clara demais, como distintos
indícios para severas visitações semiológicas, de
repente podem se tornar improváveis, às vezes
até meio cômicas ou insuportavelmente exibidas,
até mesmo falsas, ou dotadas de uma profunda e
embaraçadora gratuidade.

Por que desenho os personagens de meus filmes?


Por que tomo notas gráficas dos rostos, dos
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narizes, dos bigodes, das gravatas, das bolsas, da
maneira como cruzam as pernas, das pessoas que
vêm me encontrar no escritório?

Talvez já tenha dito que é uma forma de começar


a olhar a cara do filme, para ver de que tipo
é, a tentativa de fixar alguma coisa, ainda que
minúscula, no limite da insignificância, mas que,
de qualquer forma, me parece ter algo a ver com
o filme e me fala dele de modo velado; não sei,
talvez seja até um pretexto para dar início a um
relacionamento, um expediente para segurar o
filme, ou melhor, para retardá-lo.

Por que faço aquele filme, aquele em vez de


outro? Não quero saber. Os motivos são obscuros,
inextricáveis, confusos. A única razão que posso
declarar com honestidade é a assinatura de um
contrato: assino, pego um adiantamento e depois,
como não quero restituí-lo, sou obrigado a fazer
um filme. E procure fazê-lo da maneira como acho
que quer ser feito.

imagem do filme “La Dolce Vitta”


FiLOsOFiA

O virtual
Jean Baudrillard

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No virtual, não se trata mais de valor;


trata-se, pura e simplesmente, de gerar
informação, de efetuar cálculos, de uma
computação generalizada em que os efeitos
de real desaparecem.
Em sua acepção mais usual, o virtual se opõe pelo viés de mediações tecnológicas. Mas será que o
ao real, mas sua subira emergência, pelo viés virtual é o que põe fim, definitivamente, a um mundo do
das novas Tecnologias, dá a impressão de que, real e do jogo, ou ele faz parte de uma experimentação
a partir de então, ele marca a eliminação, o fim com a qual estamos jogando? Será que não estamos
desse real. Do meu ponto de vista, como já disse, representando a comédia do virtual, com um toque
fazer acontecer um mundo real é já produzí-lo, e de ironia, como na comédia do poder? Essa imensa
o real jamais foi outra coisa senão uma forma de instalação da virtualidade, essa performance no
simulação. Podemos, certamente, pretender que sentido artístico, não é ela, no fundo, uma nova cena,
exista um efeito de real, um efeito de verdade, um em que operadores substituíram os atores? Ela não
efeito de objetividade, mas o real, em si, não existe. O deveria, então, ser mais digna de crença que qualquer
virtual não é, então, mais que uma hipérbole dessa outra organização ideológica. Hipótese que não deixa
tendência a passar do simbólico para o real - que de ser tranqüilizante: no final das contas tudo isso não
é o seu grau zero. Neste sentido, o virtual coincide seria muito sério, e a exterminação da realidade não
com a noção de hiper-realidade. Á realidade seria, em absoluto, algo incontestável.
virtual, a que seria perfeitamente homogeneizada,
colocada em números, “operacionalizada”, Mas, no momento em que nosso mundo efetivamente
substitui a outra porque ela é perfeita, controlável inventa para si mesmo seu duplo virtual, é preciso
e não-contraditória. Por conseguinte, como ela ver que isto é a realização de uma tendência que se
é mais “acabada”, ela é mais real do que o que iniciou há bastante tempo. A realidade, como sabemos,
construímos como simulacro. não existiu desde sempre. Só se fala dela a partir do
momento em que há uma racionalidade para dizê-la,
Mas é preciso que se diga que esta expressão, parâmetros que permitem representá-la por signos
“realidade virtual”, é um verdadeiro oxímoro. Não codificados e decodificáveis.
estamos mais na boa e velha acepção filosófica em
que o virtual era o que estava destinado a tornar-se No virtual, não se trata mais de valor; trata-se, pura
ato, e em que se instaurava uma dialética entre as e simplesmente, de gerar informação, de efetuar
duas noções. Agora, o virtual é o que está no lugar cálculos, de uma computação generalizada em
do real, é mesmo sua solução final na medida em que os efeitos de real desaparecem. O virtual seria
que efetiva o mundo em sua realidade definitiva e, verdadeiramente o horizonte do real - no sentido com
ao mesmo tempo, assinala sua dissolução. que se fala do horizonte dos eventos em física. Mas
podemos igualmente pensar que tudo isso não passa
Chegando a esse ponto, é o virtual que nos de um caminho mais curto para uma jogada que não
pensa: não há mais necessidade de um sujeito do podemos ainda discernir qual seja.
pensamento, de um sujeito da ação, tudo se passa
ARtes

a letra fefe talavera


A selva de pedra paulistana esconde seres agres-
sivos. À espreita, protegidos por uma camufla-

virou
gem, fundido às reder, eles esperam a hora de
pular no seu pescoço. São leões, dinossauros,
elefantes, polvos, hienas, gatos e cachorros. Eles
rugem com a boca cheia de letras. Também de
letras são feitos seus dentes, suas patas, seus
corpos e suas caldas. Cuidado, você está cercado
pela fauna de Fefe Talavera.

bicho
Fefe põe seus bichos para fora desde pequena.
Eles já foram feitos de muitos materiais, mas
foi nas letras dos posters de lambe-lambe que
ela encontrou os ossos e músculos ideais para
construir seus animais.
Numa vista a pequena gráfica que ainda usa
carcomidos, tipos de madeira para imprimir
grandes posters que anunciam quase todos os
shows da cidade, Fefe achou seu tesouro. Procu-
rando apenas um suporte para seus desenhos,
ela logo percebeu que não era no verso do papel

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fino que estava o seu futuro trabalho. Ela formou-se em Artes Plásticas na FAAP em 2003.
As grandes letras de estilos indefinidos, perten- Foi durante o curso que percebeu qual o melhor lugar
centes a famílias tipográficas cujos nomes não para desenvolver seu ecossistema: a rua. Desde então
são conhecidos, seduziram a artista. Foi amor à a tela é o muro, mas a técnica foi mudando: primeiro
primeira vista. o pincel, depois o canetão, o stencil, o sticker, até
As caricaturas da artista convidam nosso olhar a chegar aos lambes.
percorrer seus corpos: uma rápida tentativa de Depois de escolher o muro ideal – “Gosto quando tem
leitura. Inútil. Fefe não escreve, desenha. E logo uma árvore”, diz ela – numa rua calma, pois, “são as
descobrimos como pode ser divertido procurar melhores, muito carro e barulho me atrapalham”,
nossos tipos favoritos no meio das letras embaral- começa o trabalho. Um rápido esboço com canetão e
hadas, numa espécie de jogo. é hora de lambuzar tudo para preparar a superfície.
Com rodinho e cola de farinha, letra por letra, Fefe
constrói mais um bichão.
Mas nem só de feras é composta sua floresta. Nela
moram pingüins, macacos, porcos, antas, pavões,
preguiças, capivaras, pulgas e ácaros. As pessoas
param, perguntam e comentam. Muitas elogiam, out-
ras não entendem, algumas recriminam. O que elas
não sabem é que até o mais inocente animal de papel
pode atacar se provocado.
Rubem Alves

KOAN
Os mestres Zen eram educadores estranhos. Não aprendida. Os olhos são órgãos anatômicos que
pretendiam ensinar coisa alguma. O que deseja- funcionam segundo as leis da física ótica. Mas a
vam era “desensinar”. Avaliações de aprendiza- visão não obedece às leis da física ótica. Bernardo
gem? Nem pensar. Mas estavam constantemente Soares: “O que vemos não é o que vemos, senão
avaliando a desaprendizagem dos seus discípu- o que somos”. É preciso ser diferente para ver di-
los. E quando percebiam que a desaprendizagem ferente. Mas, e o “Ser”? Ele é feito de quê? “Os
acontecera, eles riam de felicidade... limites da minha linguagem denotam os limites
do meu mundo”, dizia Wittgenstein. O “Ser” é feito
Loucos? Há uma razão na loucura. “Desensina- de palavras. Prisioneiros da linguagem, só vemos
vam” para que os discípulos pudessem ver como aquilo que a linguagem permite e ordena ver. A
nunca tinham visto. Nietzsche dizia que a primei- visão é um processo pelo qual construímos nos-
ra tarefa da educação é ensinar a ver. Ver é coi- sas impressões óticas segundo o modelo que a
sa complicada, não é função natural. Precisa ser linguagem impõe.

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ReFLeXÃO
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Então, para se ver diferente, é inútil refinar a lin- palavras”: Empreendo, pois, o deixar-me levar pela for-
guagem, refinar as teorias. O refinamento das teo- ça de toda vida viva: o esquecimento. Há uma idade em
rias só aumenta a clareza da mesmice. A pedago- que se ensina o que se sabe; vem, em seguida outra,
gia dos mestres Zen tinha por objetivo desarticular em que se ensina o que não se sabe: isso se chama
a linguagem, quebrar o seu “feitiço”. Com o que pesquisar. Vem talvez agora a idade de uma outra ex-
concordaria Wittengstein, que definia a filosofia periência, a de desaprender.
como uma luta com o feitiço da linguagem. Que-
brado o feitiço, os olhos são libertados dos “sa- E ele concluiu: “Essa experiência tem, creio eu, um
beres” e ganham a condição de olhos de criança: nome ilustre e fora de moda, que ousarei tomar aqui
vêem como nunca haviam visto. Está lá em Alberto sem complexo, na própria encruzilhada de sua etimo-
Caeiro, que fazia poesia para que os seus leitores logia: Sapientia...”
ganhassem olhos de criança...
Os mestres Zen nada ensinavam. O seu objetivo era le-
A psicanálise é uma versão moderna da pedagogia var os seus discípulos a “desaprender” o que sabiam, a
Zen. Freud sugeriu que os neuróticos são pessoas ficar livres de qualquer filosofia. Para isso eles se valiam
“possuídas” pela memória, memória que as obriga de um artifício pedagógico a que davam nome de koan.
a viver vendo um mundo da forma como o viram
num dia passado. A memória nos torna prisionei- Koans são “rasteiras” que os mestres aplicam
ros do passado, não nos deixa perceber a “eterna na linguagem dos discípulos: é preciso que
novidade do Mundo”. Os neuróticos são prisio- eles caiam nas rachaduras de seus próprios
neiros da sua mesmice. Por isso, são confiáveis: saberes.
serão hoje e amanhã o que foram ontem. A psi-
canálise é uma pedagogia da desaprendizagem. A psicanálise repete a mesma coisa: a verdade aparece
É preciso esquecer o que se sabe a fim de ver o inesperadamente quando acontece o lapsus, a queda,
que não se via. Se a terapia for bem-sucedida, se uma fratura do discurso lógico. Aí, nesse momento, a
o paciente conseguir desaprender suas memórias, iluminação acontece. Abre-se um terceiro olho que es-
então ele estará livre para ver o mundo que nunca tava fechado. Acontece o satori: o discípulo fica ilumi-
havia imaginado. nado...

Roland Barthes teve uma iluminação Zen na sua ve- Isso que estou dizendo os poetas sempre souberam.
lhice. Na sua famosa “Aula”, ele diz, como “últimas Poemas são koans, violências à lógica da linguagem
para que o leitor veja um mundo que nunca havia visto.
É por isso que a experiência poética é sempre um even-
to místico, de euforia. Não resisto à tentação de trans-
crever um trecho do poema de Vinícius de Moraes, “O
operário em construção”. Tenho medo desse poema
porque choro todas as vezes que o leio. Ele começa
descrevendo a mesmice do mundo que o operário via
no seu cotidiano, os pensamentos que ele pensava, as
palavras que ele falava. Mas, de repente...
FOtOGRAFiA

igrejas de
madeira do
paraná
Fotos por Nego Miranda
Texto por Maria Cristina Wolff de Carvalho

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o olho e a luz
As primeiras teorias semióticas viam a fotografia como um espelho da realidade.
Segundo Pierce, ela é um ícone. Depois veio a celebrada geração dos iconoclastas
que a julgaram uma versão codificada da realidade. Um símbolo.
Agora, a fotografia passou a ser entendida pelo que realmente é: um índice, ou
mais especificamente, um traço deixado para trás por aquilo que ela se refere.
Nego Miranda é um mestre desta arte construída pela imagem técnica que
introjetou em sua criação as leis da visualidade, permitindo que à realidade do
visível fosse dada uma camada interpretativa.
É uma longa história de dedicação e pesquisa. De treino do olhar e da firmeza dos
músculos. Como se fosse um arqueiro oriental, a respiração presa, a intuição
do momento do disparo.
Desde os anos setenta, quando o conheci em toda a sua generosidade, Miranda
realiza seus exercícios diários e pacientes que combinam o olhar e o tempo
exato da apreensão da luz.
Ele nos tem dado trabalhos incríveis que agora se A primeira instituição a se instalar nesses
transformam em álbuns, uma bela maneira de fazer povoados que hoje são grandes cidades foi a
com que sua obra esteja organizada e acessível. O último Igreja. Antes do Estado, antes das leis, a Santa
é este conjunto de fotos que muito nos tocou. Igrejas Madre chegava para dar ordem e estabelecer
de Madeira do Paraná. Nele, Miranda nos devolve em regras da convivência.
imagens os melhores exemplos de uma arquitetura A igreja erguida na praça principal mostrava
emblemática da civilização surgida de luta e trabalho há que existia ali uma sociedade que pretendia
mais de século nesta área úmida do planeta. sobreviver ao próprio esforço devastador. Igrejas
Houve um tempo em que a devastação era sinal de de madeira. A partir delas se alongavam os
progresso. Sou dessa época e de uma região que viu caminhos e cresciam as cidades. Às vezes simples
suas florestas desaparecerem no prazo de décadas. capelas, outras magníficas construções feitas
O Paraná foi construído assim, cortando suas árvores, da provisoriedade da madeira para garantias
desnudando a terra e erguendo-se em construções de eternidade. Estas igrejas que o olho do Nego
feitas de madeira. Miranda fixou neste álbum de impressionante
Muitas cidades do oeste surgiram de aldeamentos clareza.
em torno de serrarias, as únicas indústrias da região Quando falo em clareza me refiro a essa
no período dos pioneiros. Só mais tarde a terra seria capacidade de Miranda para nos restituir, sem
ocupada pela agricultura. Antes dos semeadores vinham truques, sem intervenções adulteradoras, e no
os ceifadores para derrubar a mata. entanto com sinais de sua refinada sensibilidade,
No momento da ocupação a maior riqueza que a terra a imagem fresca de um passado cujos traços
propiciava era a madeira que lá estava há séculos. Pinho, começam a desaparecer por completo e do qual
peroba, lapacho, ipê, marfim. De minha cidade, Foz do só teremos, dentro em pouco, as imagens feitas
Iguaçu, desciam pelo rio Paraná em balsas imensas. pelo mestre.

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PeNsAmeNtO

Um sábio
não tem
ideia
François Jullien

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um sábio, estabeleceremos de saída, não tem idéia. Porque toda primeira idéia já é sectária: ela
“Não ter idéia” significa que ele evita pôr uma idéia à frente das outras- em começou a monopolizar e, com isso, a deixar

detrimento das outras: não há idéia que ele ponha em primeiro lugar, posta em de lado. Já o sábio não deixa nada de lado,

princípio, servindo de fundamento ou simplesmente de início, a partir do qual não deixa nada de mão. Ora, ele sabe que,

seu pensamento poderia se deduzir ou, pelo menos, se desenvolver. ao se propor uma idéia, já se toma, nem que

temporariamente, certo partido em relação


Princípio, arché: ao mesmo tempo o que começa e o que comanda, aquilo por
à realidade: quem se põe a puxar um fio da
que o pensamento pode começar. Uma vez ele colocado, o resto segue. Mas,
meada das coerências, este em vez daquele,
justamente, aí está a cilada, o sábio teme essa direção imediatamente tomada
começa a preguear (plisser) o pensamento
e a hegemonia que ela instaura. Porque a idéia assim que é proposta faz as
em certo sentido.
outras refluírem, nem que para vir depois a associá-las a si, ou antes, ela já

as jugulou por baixo do pano. O sábio teme esse poder ordenador do primeiro. Por isso, propor uma idéia seria perder de

Assim, essas “idéias”, ele tratará de mantê-las no mesmo plano – e está nisso saída o que você queria começar a esclare-

sua sabedoria: mantê-las igualmente possíveis, igualmente acessíveis, sem que cer, por mais prudente e metodicamente que

nenhuma, passando a frente, venha a ocultar a outra, lance sombra sobre a o faça: você fica condenado a um ângulo de

outra, em suma, sem que nenhuma seja privilegiada. visão particular, por mais que se esforce

depois para reconquistar a totalidade; e,


“Não ter idéia” significa que o sábio não está de posse de nenhuma, não é pri-
daí em diante, não parará de depender dessa
sioneiro de nenhuma. Sejamos mais rigorosos, literais: ele não avança nenhu-
prega (plí), a prega formada pela primeira
ma. Mas é possível evitar isso? Como poderíamos pensar sem nada propor?
idéia proposta, de passar por ela; não para-
No entanto, assim que começamos a avançar uma idéia, diz-nos a sabedoria, é
rá mais, tampouco, de voltar a ela, querendo
todo o real (ou todo o pensável) que, de repente, recua: ou antes, ei-lo per-
suprimi-la, e por isso de amarrotar de outro
dido atrás, será necessário tanto esforço e mediação, daí em diante, para se
modo o campo do pensável – mas perde para
aproximar dele.
sempre o sem pregas do pensamento.
Essa primeira idéia proposta rompeu o fundo de evidência que nos rodeava;

apontando de um lado, este em vez daquele, ela nos fez pender para o arbi-

trário, nós fomos para este lado e o outro fica perdido, a queda é irremedi-

ável: ainda que depois reconstruamos todas as cadeias de razões possíveis,

nunca escaparemos – aprofundaremos sempre mais, enterraremos sempre

mais, sempre presos nas anfractuosidades e nas entranhas do pensamento,

sem nunca mais voltar à superfície, plana, a da evidência. Por isso, se você

desejar que o mundo continue a se oferecer a você, diz-nos a sabedoria, e

que, para tanto, ele possa permanecer indefinidamente igual, absolutamente

estacionário, você tem de renunciar à arbitrariedade de uma primeira idéia (de

uma idéia posta em primeiro; inclusive aquela pela qual acabo de começar).
POemAs

o livro das
ignorãçasManuel de Barros

¬As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis:
Elas desejam ser olhadas de azul –
Que nem uma criança que você olha de ave.
Poesia é voar fora da asa.

No descomeço era o verbo.


Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é voz de fazer nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio.
Um girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh.

Para entrar em estado de árvore é preciso partir de um torpor animal


de lagarto às três horas da tarde, no mês de agosto.
Em dois anos a inércia e o mato vão crescer em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até o mato sair na voz.
Hoje eu desenho o cheiro das árvores.
Não tem altura o silêncio das pedras.

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Saramago
crônica inédita na próxima edição

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