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dezembro/2010 - r$ 10,99
REVISTA DE ARTE
E LITERATURA
arnaldo antunes - fernando pessoa - jean baudrillard - federico fellini - françois jullien
manoel de barros - rubem alves - júlio cortázar - fefe tavalera - nego miranda
editorial
A revista Fio de Ariadne inspira-se na lenda de Ariadne,
filha de Minos, rei de Creta que se apaixonou por Teseu
quando este foi mandado a Creta, voluntariamente,
como sacrifício ao Minotauro que habitava o labirinto
construido por Dédalo e tão bem projetado que quem
se aventurasse por ele não conseguiria mais sair e era
devorado pelo Minotauro. Teseu resolveu enfrentar
o monstro. Foi ao renomado Oráculo de Delfos para
descobrir se sairia vitorioso. O Oráculo lhe disse que
deveria ser ajudado pelo amor para vencer o minotauro.
Ariadne, a filha do rei Minos, lhe disse que o ajudaria
se este a levasse a Atenas para que ela se casasse
com ele. Teseu reconheceu aí a única chance de vitória
e aceitou. Ariadne, então, lhe deu uma espada e um
novelo de linha (Fio de Ariadne), para que ele pudesse
achar o caminho de volta, do qual ficaria segurando
uma das pontas. Teseu saiu vitorioso e partiu de volta à
sua terra com Ariadne, embora o amor dele para com
ela não fosse o mesmo que o dela por ele. A Fio de
Ariadne busca penetrar nos labirintos da literatura, arte
e filosofia, trazendo pistas para o leitor se aventurar e
encontrar o inesperado.
sumário
pg.12
pg.24 pg.26
pg.22
nossos
dias
melhores
nunca
virão?
Por Arnaldo Jabor
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fora de foco, as fotos amareladas, que nos davam naquela época. Agora, de calção e sandália, pareciam
a sensação de que o passado era precário e o estar numa espécie de “passado” daquele presente.
futuro seria luminoso. Nada. Nunca estaremos Algo decaiu, piorou, algo involuiu neles.
no futuro. E, sem o sentido da passagem dos Vendo filmes americanos dos anos 40, não sentimos
dias, de começo e fim, ficamos também sem falta de nada. Com suas geladeiras brancas e
presente. Estamos cada vez mais em trânsito, telefones pretos, tudo já funcionava como hoje. O
como carros, somos celulares, somos circuitos “hoje” deles é apenas uma decorrência contínua
sem pausa, e cada vez mais nossa identidade vai daqueles anos. Mudaram as formas, o corte das
sendo programada. O tempo é uma invenção da roupas, mas eles, no passado, estavam à altura de sua
produção. época. A depressão econômica tinha passado, como
um grande trauma, e não aparecia como o nosso
Não há tempo para os bichos. Se quisermos subdesenvolvimento endêmico. Para os americanos,
manhã, dia e noite, temos de ir morar no mato. o passado estava de acordo com sua época. Em
42, éramos carentes de alguma coisa que não
Eu vi os índios descobrindo o tempo. Eles se percebíamos. Olhando nosso passado é que vemos
viam crianças, viam seus mortos, ainda vivos e como somos atrasados no presente. Nos filmes
dançando. brasileiros antigos, parece que todos morreram sem
conhecer seus melhores dias.
Seus rostos viam um milagre. A partir desse
momento, eles passaram a ter passado e futuro. E nós, hoje, nesta infernal transição entre o atraso e
Foram incluídos num decorrer, num “devir” que uma modernização que não chega nunca? Quando o
não havia. Hoje, esses índios estão em trânsito Brasil vai crescer e chegar a seu “presente”? Chega
entre algo que foram e algo que nunca serão. O a ter inveja das multidões pobres do Islã: aboliram o
tempo foi uma doença que passamos para eles, tempo e vivem na eternidade de seu atraso. Temos a
como a gripe. E pior: as imagens de 50 anos é que utopia de que, um dia, chegaremos a algo definitivo.
pareciam mostrar o “presente” verdadeiro deles. Mas ser subdesenvolvido não é “não ter futuro”; é
Eram mais naturais, mais selvagens, mais puros nunca estar no presente.
instruções
para subir uma
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Ninguém terá deixado de observar que frequen-
temente o chão se dobra de tal maneira que uma
parte sobe em ângulo reto com o plano do chão,
e logo a parte seguinte se coloca paralela a esse
plano, para dar passagem a uma perpendicular,
comportamento que se repete em espiral ou em
linha quebrada até alturas extremamente variá-
veis. Abaixando-se e pondo a mão esquerda numa
das partes verticais, e a direita na horizontal
correspondente, fica-se na posse momentânea
de um degrau ou escalão. Cada um desses de-
graus, formados, como se vê, por dois elementos,
situa-se um pouco mais acima e mais adiante do
anterior, princípio que dá sentido à escada, já que
qualquer outra combinação produziria formas tal-
vez mais bonitas ou pitorescas, mas incapazes de
transportar as pessoas do térreo ao primeiro andar.
Fernando Pessoa
desassossego
Nunca durmo: vivoe sonho, ou antes, sonho em dois e belos e desejavam swer outra coisa; o maor
vida e a dormir, que também é vida. tardava-lhes no tédio do futuro.
Não sei o que é o tempo. Não sei qual a verdadeira
Não há interrupção em minha consciência:sinto o medida que ele tem, se tem alguma.
que me cerca e não durmo ainda, ou se não durmo
bem; entro logo a sonhar desde que deveras durmo. A do relógio sei que é falsa: divide o tempo
Assim, o que sou é um perpétuo desenrolamento de especialmente, por fora. A das emoções sei
imagens, conexas ou desconexas, fingindo sempre que também é falsa: divide, não o tempo, mas
de exteriores, umas postas entre os homens e a a sensação dele. A dos sonhos é errada; nele
luz, se estou desperto, outras postas entre os roçamos o tempo, umna vez prolongadamente,
fantasmas e a sem luz que outra vez depressa, e o que
se vê, se estou dormindo. vivemos é apressado ou
Verdadeiramente, não Fernando Pessoa lento conforme qualquer
sei como distinguir uma (Lisboa, 13 de Junho de 1888— Lisboa, 30 de No- coisa do decorrer cuja
coisa da outra, nem ouso vembro de 1935), foi um poeta e escritor português. natureza ignoro.
afirmar se não durmo Foi um poeta e escritor português. É considerado
quando estou desperto, um dos maiores poetas da Língua Portuguesa, e da Julgo, às vezes, que tudo
Literatura Universal Ao longo da vida trabalhou em
se não estou a despertar é falso, e que o tempo
várias firmas como correspondente comercial. Foi
quando durmo. não é mais do que uma
também empresário, editor, crítico literário, activis-
ta político, tradutor, jornalista, inventor, publicitário moldura para enquadrar
A vida é um novelo que e publicista, ao mesmo tempo que produzia a sua o que lhe é estranho. Na
alguém emaranhou. Há obra literária. Como poeta, desdobrou-se em múlti- recordação que tenho de
um sentido nela, se estiver plas personalidades conhecidas como heterónimos, minha vida, os tempos
objeto da maior parte dos estudos sobre sua vida e
desenrolada e posta ao estão dispostos em níveis
sua obra. Centro irradiador da heteronímia, auto-
comprido, ou enrolada e planos absurdos, sendo
denominou-se um “drama em gente”. Fernando
bem. Mas, tal como está, Pessoa morreu de cirrose hepática aos 47 anos, na eu mais jovem em certo
se estiver enrolada é um cidade onde nasceu. Sua última frase foi escrita em episódio dos quinze anos
problema sem novelo Inglês: “I don’t know what tomorrow will bring… “ solenes.
próprio, um embrulhar-se (“Não sei o que o amanhã trará”).
fazer um filme
Federico Fellini
CiNemA
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uma música que volta à memória, obsessiva e
atormentadora, por dias inteiros; ou então, como
você bem me fez lembrar, que vi A Doce Vida
quando apareceu uma mulher que caminhava
pela via Veneto numa manhã ensolarada enfiada
num vestido que a fazia parecer uma verdura, não
tenho certeza de estar sendo de todo sincero, e
quando um amigo jornalista se lembra disso, me
sinto ridículo. Não acredito que no mundo exista
muita gente que considere a própria vida mal
resolvida porque eu não soube precisar a relação
entre aquele vestido da moda saco e o filme que
fiz depois. Mas talvez minha impaciência com
relação a este tipo de pergunta venha do fato de
que muitas vezes as ocasiões que originam um
processo criativo, sobretudo se identificadas e
alegadas de maneira clara demais, como distintos
indícios para severas visitações semiológicas, de
repente podem se tornar improváveis, às vezes
até meio cômicas ou insuportavelmente exibidas,
até mesmo falsas, ou dotadas de uma profunda e
embaraçadora gratuidade.
O virtual
Jean Baudrillard
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virou
gem, fundido às reder, eles esperam a hora de
pular no seu pescoço. São leões, dinossauros,
elefantes, polvos, hienas, gatos e cachorros. Eles
rugem com a boca cheia de letras. Também de
letras são feitos seus dentes, suas patas, seus
corpos e suas caldas. Cuidado, você está cercado
pela fauna de Fefe Talavera.
bicho
Fefe põe seus bichos para fora desde pequena.
Eles já foram feitos de muitos materiais, mas
foi nas letras dos posters de lambe-lambe que
ela encontrou os ossos e músculos ideais para
construir seus animais.
Numa vista a pequena gráfica que ainda usa
carcomidos, tipos de madeira para imprimir
grandes posters que anunciam quase todos os
shows da cidade, Fefe achou seu tesouro. Procu-
rando apenas um suporte para seus desenhos,
ela logo percebeu que não era no verso do papel
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fino que estava o seu futuro trabalho. Ela formou-se em Artes Plásticas na FAAP em 2003.
As grandes letras de estilos indefinidos, perten- Foi durante o curso que percebeu qual o melhor lugar
centes a famílias tipográficas cujos nomes não para desenvolver seu ecossistema: a rua. Desde então
são conhecidos, seduziram a artista. Foi amor à a tela é o muro, mas a técnica foi mudando: primeiro
primeira vista. o pincel, depois o canetão, o stencil, o sticker, até
As caricaturas da artista convidam nosso olhar a chegar aos lambes.
percorrer seus corpos: uma rápida tentativa de Depois de escolher o muro ideal – “Gosto quando tem
leitura. Inútil. Fefe não escreve, desenha. E logo uma árvore”, diz ela – numa rua calma, pois, “são as
descobrimos como pode ser divertido procurar melhores, muito carro e barulho me atrapalham”,
nossos tipos favoritos no meio das letras embaral- começa o trabalho. Um rápido esboço com canetão e
hadas, numa espécie de jogo. é hora de lambuzar tudo para preparar a superfície.
Com rodinho e cola de farinha, letra por letra, Fefe
constrói mais um bichão.
Mas nem só de feras é composta sua floresta. Nela
moram pingüins, macacos, porcos, antas, pavões,
preguiças, capivaras, pulgas e ácaros. As pessoas
param, perguntam e comentam. Muitas elogiam, out-
ras não entendem, algumas recriminam. O que elas
não sabem é que até o mais inocente animal de papel
pode atacar se provocado.
Rubem Alves
KOAN
Os mestres Zen eram educadores estranhos. Não aprendida. Os olhos são órgãos anatômicos que
pretendiam ensinar coisa alguma. O que deseja- funcionam segundo as leis da física ótica. Mas a
vam era “desensinar”. Avaliações de aprendiza- visão não obedece às leis da física ótica. Bernardo
gem? Nem pensar. Mas estavam constantemente Soares: “O que vemos não é o que vemos, senão
avaliando a desaprendizagem dos seus discípu- o que somos”. É preciso ser diferente para ver di-
los. E quando percebiam que a desaprendizagem ferente. Mas, e o “Ser”? Ele é feito de quê? “Os
acontecera, eles riam de felicidade... limites da minha linguagem denotam os limites
do meu mundo”, dizia Wittgenstein. O “Ser” é feito
Loucos? Há uma razão na loucura. “Desensina- de palavras. Prisioneiros da linguagem, só vemos
vam” para que os discípulos pudessem ver como aquilo que a linguagem permite e ordena ver. A
nunca tinham visto. Nietzsche dizia que a primei- visão é um processo pelo qual construímos nos-
ra tarefa da educação é ensinar a ver. Ver é coi- sas impressões óticas segundo o modelo que a
sa complicada, não é função natural. Precisa ser linguagem impõe.
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ReFLeXÃO
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Então, para se ver diferente, é inútil refinar a lin- palavras”: Empreendo, pois, o deixar-me levar pela for-
guagem, refinar as teorias. O refinamento das teo- ça de toda vida viva: o esquecimento. Há uma idade em
rias só aumenta a clareza da mesmice. A pedago- que se ensina o que se sabe; vem, em seguida outra,
gia dos mestres Zen tinha por objetivo desarticular em que se ensina o que não se sabe: isso se chama
a linguagem, quebrar o seu “feitiço”. Com o que pesquisar. Vem talvez agora a idade de uma outra ex-
concordaria Wittengstein, que definia a filosofia periência, a de desaprender.
como uma luta com o feitiço da linguagem. Que-
brado o feitiço, os olhos são libertados dos “sa- E ele concluiu: “Essa experiência tem, creio eu, um
beres” e ganham a condição de olhos de criança: nome ilustre e fora de moda, que ousarei tomar aqui
vêem como nunca haviam visto. Está lá em Alberto sem complexo, na própria encruzilhada de sua etimo-
Caeiro, que fazia poesia para que os seus leitores logia: Sapientia...”
ganhassem olhos de criança...
Os mestres Zen nada ensinavam. O seu objetivo era le-
A psicanálise é uma versão moderna da pedagogia var os seus discípulos a “desaprender” o que sabiam, a
Zen. Freud sugeriu que os neuróticos são pessoas ficar livres de qualquer filosofia. Para isso eles se valiam
“possuídas” pela memória, memória que as obriga de um artifício pedagógico a que davam nome de koan.
a viver vendo um mundo da forma como o viram
num dia passado. A memória nos torna prisionei- Koans são “rasteiras” que os mestres aplicam
ros do passado, não nos deixa perceber a “eterna na linguagem dos discípulos: é preciso que
novidade do Mundo”. Os neuróticos são prisio- eles caiam nas rachaduras de seus próprios
neiros da sua mesmice. Por isso, são confiáveis: saberes.
serão hoje e amanhã o que foram ontem. A psi-
canálise é uma pedagogia da desaprendizagem. A psicanálise repete a mesma coisa: a verdade aparece
É preciso esquecer o que se sabe a fim de ver o inesperadamente quando acontece o lapsus, a queda,
que não se via. Se a terapia for bem-sucedida, se uma fratura do discurso lógico. Aí, nesse momento, a
o paciente conseguir desaprender suas memórias, iluminação acontece. Abre-se um terceiro olho que es-
então ele estará livre para ver o mundo que nunca tava fechado. Acontece o satori: o discípulo fica ilumi-
havia imaginado. nado...
Roland Barthes teve uma iluminação Zen na sua ve- Isso que estou dizendo os poetas sempre souberam.
lhice. Na sua famosa “Aula”, ele diz, como “últimas Poemas são koans, violências à lógica da linguagem
para que o leitor veja um mundo que nunca havia visto.
É por isso que a experiência poética é sempre um even-
to místico, de euforia. Não resisto à tentação de trans-
crever um trecho do poema de Vinícius de Moraes, “O
operário em construção”. Tenho medo desse poema
porque choro todas as vezes que o leio. Ele começa
descrevendo a mesmice do mundo que o operário via
no seu cotidiano, os pensamentos que ele pensava, as
palavras que ele falava. Mas, de repente...
FOtOGRAFiA
igrejas de
madeira do
paraná
Fotos por Nego Miranda
Texto por Maria Cristina Wolff de Carvalho
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o olho e a luz
As primeiras teorias semióticas viam a fotografia como um espelho da realidade.
Segundo Pierce, ela é um ícone. Depois veio a celebrada geração dos iconoclastas
que a julgaram uma versão codificada da realidade. Um símbolo.
Agora, a fotografia passou a ser entendida pelo que realmente é: um índice, ou
mais especificamente, um traço deixado para trás por aquilo que ela se refere.
Nego Miranda é um mestre desta arte construída pela imagem técnica que
introjetou em sua criação as leis da visualidade, permitindo que à realidade do
visível fosse dada uma camada interpretativa.
É uma longa história de dedicação e pesquisa. De treino do olhar e da firmeza dos
músculos. Como se fosse um arqueiro oriental, a respiração presa, a intuição
do momento do disparo.
Desde os anos setenta, quando o conheci em toda a sua generosidade, Miranda
realiza seus exercícios diários e pacientes que combinam o olhar e o tempo
exato da apreensão da luz.
Ele nos tem dado trabalhos incríveis que agora se A primeira instituição a se instalar nesses
transformam em álbuns, uma bela maneira de fazer povoados que hoje são grandes cidades foi a
com que sua obra esteja organizada e acessível. O último Igreja. Antes do Estado, antes das leis, a Santa
é este conjunto de fotos que muito nos tocou. Igrejas Madre chegava para dar ordem e estabelecer
de Madeira do Paraná. Nele, Miranda nos devolve em regras da convivência.
imagens os melhores exemplos de uma arquitetura A igreja erguida na praça principal mostrava
emblemática da civilização surgida de luta e trabalho há que existia ali uma sociedade que pretendia
mais de século nesta área úmida do planeta. sobreviver ao próprio esforço devastador. Igrejas
Houve um tempo em que a devastação era sinal de de madeira. A partir delas se alongavam os
progresso. Sou dessa época e de uma região que viu caminhos e cresciam as cidades. Às vezes simples
suas florestas desaparecerem no prazo de décadas. capelas, outras magníficas construções feitas
O Paraná foi construído assim, cortando suas árvores, da provisoriedade da madeira para garantias
desnudando a terra e erguendo-se em construções de eternidade. Estas igrejas que o olho do Nego
feitas de madeira. Miranda fixou neste álbum de impressionante
Muitas cidades do oeste surgiram de aldeamentos clareza.
em torno de serrarias, as únicas indústrias da região Quando falo em clareza me refiro a essa
no período dos pioneiros. Só mais tarde a terra seria capacidade de Miranda para nos restituir, sem
ocupada pela agricultura. Antes dos semeadores vinham truques, sem intervenções adulteradoras, e no
os ceifadores para derrubar a mata. entanto com sinais de sua refinada sensibilidade,
No momento da ocupação a maior riqueza que a terra a imagem fresca de um passado cujos traços
propiciava era a madeira que lá estava há séculos. Pinho, começam a desaparecer por completo e do qual
peroba, lapacho, ipê, marfim. De minha cidade, Foz do só teremos, dentro em pouco, as imagens feitas
Iguaçu, desciam pelo rio Paraná em balsas imensas. pelo mestre.
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PeNsAmeNtO
Um sábio
não tem
ideia
François Jullien
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um sábio, estabeleceremos de saída, não tem idéia. Porque toda primeira idéia já é sectária: ela
“Não ter idéia” significa que ele evita pôr uma idéia à frente das outras- em começou a monopolizar e, com isso, a deixar
detrimento das outras: não há idéia que ele ponha em primeiro lugar, posta em de lado. Já o sábio não deixa nada de lado,
princípio, servindo de fundamento ou simplesmente de início, a partir do qual não deixa nada de mão. Ora, ele sabe que,
seu pensamento poderia se deduzir ou, pelo menos, se desenvolver. ao se propor uma idéia, já se toma, nem que
as jugulou por baixo do pano. O sábio teme esse poder ordenador do primeiro. Por isso, propor uma idéia seria perder de
Assim, essas “idéias”, ele tratará de mantê-las no mesmo plano – e está nisso saída o que você queria começar a esclare-
sua sabedoria: mantê-las igualmente possíveis, igualmente acessíveis, sem que cer, por mais prudente e metodicamente que
nenhuma, passando a frente, venha a ocultar a outra, lance sombra sobre a o faça: você fica condenado a um ângulo de
outra, em suma, sem que nenhuma seja privilegiada. visão particular, por mais que se esforce
apontando de um lado, este em vez daquele, ela nos fez pender para o arbi-
trário, nós fomos para este lado e o outro fica perdido, a queda é irremedi-
sem nunca mais voltar à superfície, plana, a da evidência. Por isso, se você
uma idéia posta em primeiro; inclusive aquela pela qual acabo de começar).
POemAs
o livro das
ignorãçasManuel de Barros
¬As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis:
Elas desejam ser olhadas de azul –
Que nem uma criança que você olha de ave.
Poesia é voar fora da asa.
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Saramago
crônica inédita na próxima edição