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A articulação do tema da infantia com a questão do amor se faz por si só. É que
amor e infância são indissociáveis, como literatura e psicanálise mostram.
Só há amor (no sentido forte : amor-paixão) na medida em que os adultos
aceitam a infantia neles. (É o que Nina Berberova explica quando diz que os
amorosos se encontram num no man’s land : uma região infantil,
milagrosamente compartilhada, desconstruindo a distinção «
interior/exterior ».)
« O amor pleno é sempre o paraíso do qual a infância me deu a idéia fixa. »
Como a infantia, quem ama é sem idade : ele/ela tem a « idade » da sua
paixão, de suas transferências, de seus amores.
O motivo do encontro – do acaso, do evento inesperado e prodigioso que ele é –
constitui o elo (articulus), o ponto de junção por excelência entre amor e
infância.
O encontro amoroso (a fascinação : a Verliebtheit) supõe, como condição de sua
possibilidade, a passibilidade infantil : uma disponibilidade afetiva inicial (ao
initium), mais antiga do que toda linguagem articulada (adulta).
Como mostram, cada uma segundo a sua língua e sua maneira, a literatura
(Proust, referência exemplar), a psicanálise (Freud e Laplanche) e a filosofia
(Benjamin, mas também Barthes e Lyotard).
E se é verdade, como sustenta Barthes, que a opinião contemporânea está
discreditando o amor (ao proveito do sexo), isso corrobora ao mesmo tempo a
idéia de que a infantia é esse elemento incômodo, « inútil », « infuncional »,
com o qual a sociedade liberal do padrão de desempenho não tem nada o que
fazer, e do qual ela trabalha para se « liberar » por todos os meios.
Num mundo onde o « valor » que conta é o valor de troca, o negócio, a infância
amorosa – que lembra que nós não nascemos já permutáveis, prontos para a
troca – não tem razão de ser nem direito à existência.
Eis porque é importante aqui empreender uma anamnese da questão da
infantia – infância do amor incluída. Ela constitui a nossa linha de resistência
hoje.
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tipo ou gênero de discurso é capaz de acolher o amoroso doravante – isto
é, o « sujeito » que escolheu fazer hoje do amor uma « arte de viver ».
Como o motivo da « arte de viver » vem originariamente da filosofia,
poderia-se esperar que é nela que devemos ir procurar ou forjar o
discurso que buscamos. Todavia – como iremos ver – a filosofia, ao
menos a partir de sua inauguração socrática, não cessará de advertir o
seu público contra os logros e perigos da « paixão amorosa » (« ilusão »,
« energia desregrada », etc.). Desde o começo, os ditos « exercícios
espirituais », as práticas de si tendo em vista a « arte de viver » (tekhne
tou biou), serão concebidas como uma « terapêutica das paixões »
visando liquidá-las. Mesmo quando a filosofia integra Eros no seu sistema
discursivo, como no caso de Platão, ela o fará para melhor subordiná-lo a
um sentido ou finalidade superior : a Idéia de Belo ou de Bem (ao
contrário do que diz Freud, nós estamos aqui longe da « energia
amorosa » ou « erótica » da psicanálise, a libido).
O amor-paixão é inaceitável para o discurso filosófico, mesmo quando
este se dedica a fazer o « elogio do amor » ? Qual outro discurso então
seria passível de acolhê-lo ?
Nós veremos que só uma prática da escritura, « literária » ou não
(Nietzsche par exemple), é suscetível de fazer jus ao amoroso e à sua
paixão. De sorte que se há uma ascese, um exercício ou trabalho sobre
si que corresponde à concepção do amor como « arte de viver », ele se
situa aí. « Viver (e amar) segundo as nuances que a escritura me
ensina. »