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A HIPÓTESE DO DEFINHAMENTO DA
FORMA JURÍDICA
(e o atual capítulo brasileiro de seu processo)
I.1.
1 Uma primeira versão deste texto foi apresentada no II Encontro do GT de Teoria Crítica da ANPOF, em
novembro de 2019, em Belo Horizonte. Recebi muitos comentários, sugestões e críticas generosas dos colegas
do GT e dos demais presentes, que me levaram a revisá-lo, embora certamente menos do que o necessário.
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restava direito do que, como o velho Nietzsche, a empurrar aquele que caía: a “destituição”
do direito foi pensada ou como uma autorreflexão em mau infinito do direito sobre si
mesmo, fugindo da própria sombra e lutando de dentro de si próprio contra sua própria
violência constitutiva (Menke, 2011), ou como simples separação analítica dos elementos
violentos, não tomados mais como constitutivos, dos elementos emancipatórios do direito,
estes sim supostamente seus próprios (Loick, 2012).
I.2.
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totalidade e unidade formal, de modo que superestrutura e a base colapsam uma na outra,
e já não é possível dizer, por exemplo, se a relação de propriedade, o contrato ou a troca, que
são relações de produção, são afinal base ou superstrutura, embora sejam certamente forma
da experiência social.
I.3.
I.4.
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Se forma jurídica e forma mercadoria são mesmo dois aspectos de uma mesma
relação social fundamental, poderemos esperar que seus desenvolvimentos históricos
caminhem pari passu? Ou seria melhor antes perguntar: formas possuem uma lógica de
desenvolvimento? Não é sua recorrência formal diante de distintos conteúdos, sua
permanência estrutural, portanto, que as caracterizam enquanto tais? Mas como podem
formas vir a abolir a si próprias, como previsto pela crítica da economia política, se elas não
possuírem também uma estrutura diacrônica? Quer parecer que forma, aqui, não deve ser
entendida nos termos de uma metafísica hilomorfista. Mas como, então? Sem por ora tentar
encarar essa questão cheia de “sutilezas metafísicas e melindres teológicos”, vejamos de fato
como é que as duas esferas sociais estruturadas por aquelas duas formas se desenvolvem em
paralelo. Para Pachukanis (2017, p. 133), as normas jurídicas só se modificam para que sua
função social permaneça imutada. Vejamos então, sinopticamente, o que precisou mudar na
economia e no direito, do capitalismo liberal do século XIX até hoje, para que a forma tenha
(ou não) podido se preservar.
I.5.
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sistema jurídico que certamente não corresponde inteiramente a ele próprio, mas não deixa
de ser a compreensão idealizada do que ele gostaria e se esforçava por ser: um direito que
aplicasse a si mesmo, tão automático ou algorítmico quanto seria requerido pela
autovalorização do valor. O juiz que determina o sentido da norma na situação concreta,
como o caracterizou Montesquieu, não seria mais do que a “boca da lei”. Em Weber, um tal
direito formalmente racionalizado possui uma homologia estrutural com a dinâmica das
trocas num mercado de livre concorrência: ambos derivam da predominância da ação
racional com respeito a fins, depurada de valores materiais. A formalidade do direito tem a
mesma fonte daquela das trocas, e as normas jurídicas garantem a previsibilidade e
calculabilidade da ação dos agentes econômicos, assegurando a equivalência e a
concorrência sem obstáculos. Ocorre que no início do século XX o direito começa a se
“materializar”, para o lamento de Weber, que enxerga esse passo como um retrocesso no
curso da racionalização daquela esfera de ação.
I.6.
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I.7.
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Está presente a forma jurídica mesmo quando o direito deixa de ser formal. O escravo foi de
fato mercadoria, objeto de negociações contratuais (ainda que, contrafaticamente e no plano
supralunar da pura validade racional, aqueles que negociavam escravos invalidassem a
própria negociação ao negar no escravo, e portanto, também em si próprios, a pessoalidade
universal que precisariam eles mesmos portar para serem partes de um negócio jurídico).
Eis, portanto, a diferenciação que se deve fazer: o conteúdo do direito pode se afastar
de sua forma pura, mas a forma jurídica continua referendando-o. A crescente contradição
entre conteúdo e forma não abole a forma, mas antes a instrumentaliza em prol da
legitimação do conteúdo. O que Neumann constata na primeira metade do século XX é que,
em razão da concentração econômica e da consequente perda da base material da igualdade
formal, o direito vinha cada vez mais assumindo conteúdos que negavam sua forma, sem
retirar a forma jurídica de vigor, mas pelo contrário, carecendo ainda mais dela para
implementar aqueles conteúdos.
I.8.
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Como momento da história da teoria jurídica, a análise econômica do direito, que não
por acaso começa mesmo a se desenvolver no início da década de 1970, pode representar
mais uma passagem, correspondente à transição geral do regime de produção fordista ao
pós-fordista, na relação entre forma jurídica e forma-valor. Uma tal teoria só pode surgir no
momento em que se torna clara a todos a impotência do direito em relação à economia, o
que só pode ser resultado de uma concentração do capital maior a tal ponto do que a do
momento anterior que resulta novamente numa transição qualitativa. Na emergência do
capitalismo fordista na primeira metade do século XX, Neumann viu o poder econômico dos
particulares crescer a ponto de forçar o conteúdo das normas jurídicas (particulares) a entrar
em contradição com a sua forma (universal), mas mantendo a forma universal como
pressuposto necessário para implementação de medidas particulares. Na segunda metade,
a análise econômica do direito descobre cinicamente que o poder econômico particular é
grande o suficiente para prescindir do direito como meio de se impor. Se lá a concentração
econômica era tal que colocava os monopólios em condição de começar a rivalizar em poder
com o Estado, aqui o Estado já foi sobrepujado há muito. O universal foi ultrapassado pelo
particular, e nisso ficou claro quem era o verdadeiro universal: não o Estado-nação, mas o
capital, que nunca teve pátria. Quando surge a necessidade de regulamentar juridicamente
a atividade das multinacionais e o direito nacional interno já não é a instância soberana para
opor resistência, o utópico direito internacional não tem mais a oferecer do que um dito novo
tipo de direito, o soft law, que prescreve “códigos de conduta” sem ter condições de aplicá-
los coercitivamente: um direito não obrigatório, uma “impossibilidade lógica e semântica”
(Chamayou, 2018, p. 161), justamente já direito algum. Aparece a figura do capital que é too
big to fail, e o Estado, com seus títulos de dívidas públicas, aliena sua desenganada soberania
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para os agentes econômicos não-estatais que de fato o financiam em troca de serem por ele
financiados (Streeck, 2013). A autonomia do direito, que a sua crítica sempre soube não lhe
ser essencial, agora é abandonada até por seus próprios “operadores”. É ilustrativo o título
de um dos livros de Richard Posner, principal representante da abordagem econômica:
Superando o direito (Posner, 1995). Se até a Ciência Jurídica adota então métodos
econômicos, é porque mesmo o fetiche de autonomia do campo, isto é, sua autonomia
ilusória, porém até então fenomenicamente real e estruturante, perdeu a efetividade. As
multinacionais já não precisam que o Estado nacional tome medidas particulares através da
forma universal do direito. O direito vira apenas um cenário de fundo, indiferente, que não
obstaculiza e não deve nem tentar obstaculizar a busca dos ótimos paretianos do capital.
I.9.
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de agir de modo correspondente às pressões vindas de fora, mantendo para si uma mal
disfarçada ilusão de autonomia em meio à sua heteronomia real. É verdade que as teorias
“pós-positivistas” sobre a indeterminação do direito e a hermenêutica de princípios jurídicos
foram pensadas e adotadas pelos juristas e operadores do direito pela louvável razão de
proscrever a discricionariedade judicial e a politização da justiça, como uma tentativa
extrema, levada a cabo com a força de um “juiz Hércules”, de preservar o espírito do
positivismo (a ideia de rule of law) numa época em que sua letra se esvaziou de suas
condições materiais. Mas o que todas essas teorias revelam, quaisquer que sejam suas
intenções, é algo sobre a experiência histórica à qual respondem: na análise econômica do
direito, a experiência da crescente desdiferenciação funcional do direito em relação à
economia; nas teorias “pós-positivistas”, a da contínua indeterminação semântica da norma
jurídica, com a qual elas tentam lidar com alguma dignidade. Em ambos os casos, é da
debilitação da forma jurídica que se trata.
I.10.
Com isso, que não é mais do que um esboço de reconstrução lógico-histórica até o
passado recente, eu quis levantar a hipótese de que a história da forma jurídica, desde que
ela se impôs, foi até então a história de seu afrouxamento. O que quero fazer notar é uma
mudança na relação lógica, a cada vez, entre direito e economia, ou melhor, na relação
interna entre a forma jurídica e a forma valor. Aqui é importante outra vez não perder de
vista a ideia de forma. As duas formas homólogas foram, uma vez, quase indistintas. A
forma-valor, a forma de estruturação da riqueza social como quantum de um equivalente,
efetivado na troca, do tempo de trabalho socialmente necessário, é, como viu Pashukanis,
logicamente coextensiva à forma jurídica, ao reconhecimento mútuo da personalidade
jurídica, i.e., da capacidade jurídica de ser parte em negócios, i.e., relações de troca.
Pashukanis previu, consequentemente, que a abolição da forma-valor redundaria na
obsolescência da forma jurídica. Pois bem, se Pashukanis estiver correto, deve ser possível
de algum modo, inversamente, tomar os desenvolvimentos epifenomênicos da forma
jurídica como índices do desenvolvimento essencial da forma valor. Em outras palavras,
proponho entender o afrouxamento progressivo da forma jurídica, sua cada vez menor
vinculabilidade na história, como efeito de superfície do lento processo de caducidade da
forma-valor. Trata-se de entender o fim da forma-valor e da forma jurídica não como
eventos, mas como processos de média duração, e ainda mais, como processos simultâneos
e coextensivos; no limite, como o mesmo processo. Isso significaria entender aquelas
transformações narradas acima, nas quais o direito perde cada vez mais autonomia para a
economia, não como sinais de força do capital, mas sim como índices de sua tendência ao
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debilitamento. Mas, se é assim, como entender o atual estado da relação entre forma-valor
e forma jurídica? E o que aquilo que ocorre hoje na relação entre o sistema econômico e o
jurídico tem a nos dizer sobre sobre aquela tendência?
II.1.
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II.2.
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Nos últimos anos, as frações da classe burguesa mais presas ao território brasileiro,
portanto mais vinculadas ao ordenamento jurídico nacional, sofreram todas um forte abalo
em sua posição na concorrência. Grandes empresas de extrativismo mineral, pecuária e
engenharia civil, cuja atividade é inerentemente ligada ao território, tiveram o seguimento
de sua atividade econômica prejudicado pelas investigações e sanções jurídicas decorrentes
de supostas relações ilegais com o sistema político (Pinto et al., 2019). Mas não apenas seu
patrimônio e sua posição no sistema econômico foram afetadas. Já desde as eleições de 2016,
o financiamento de campanha eleitoral por pessoas jurídicas foi declarado inconstitucional
pelo STF. Até então, as grandes empresas nacionais concentravam massivamente o
financiamento das campanhas dos partidos políticos como um todo. Além da proibição de
doação de pessoas jurídicas pelo controle de constitucionalidade, desde 2015 foi regulada
pela legislação a possibilidade de doação de 10% da renda de pessoas físicas para
campanhas, o que, na prática, significa entregar a indivíduos de renda elevada o
protagonismo do financiamento (Reis e Eduardo, 2019). Pela intervenção politicamente
ativista do judiciário, as ditas “campeãs nacionais” foram expulsas do cenário de
financiamento que monopolizavam até então, abrindo espaço para atores “menores”. Outra
vez, é um filão de monopólio econômico, o do acesso a recursos políticos, que é quebrado,
desta vez com a violência espetacularizada das ações justiceiras da Polícia Federal. Um dos
tipos de agentes que podem se aproveitar dessa quebra de monopólio do lobby é justamente
aquele que chamei de lumpemburgueses, inclusive as milícias, que de fato ganham muito
mais acesso a cargos elegíveis já nas eleições gerais seguintes.
O que quero fazer notar com esses exemplos é que em certo sentido a relação entre
economia e direito parece estar passando por um processo de refuncionalização no Brasil,
possivelmente relacionado à desindustrialização do país e à realocação definitiva de seu
lugar na divisão internacional do trabalho. Frações de classe que operam à margem da lei
(mesmo que eventualmente conquistando as bênçãos da lei a posteriori, o que na prática
significa que lograram se impor à lei) têm sido capazes de depor, mediante violência
extraeconômica, as frações de classe cuja acumulação depende do território e do
ordenamento jurídico brasileiro. O destino do capital industrial nacional, único ainda não
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mencionado, parece exemplar para entender o que está havendo. À primeira vista, parece
irracional o comportamento político dos industriais ao assumir o protagonismo no processo
de deposição da presidência do Partido dos Trabalhadores e seu programa econômico de
incentivos ao desenvolvimentismo industrializante. Parece correto um dos fatores
explicativos desse comportamento levantado por André Singer (2018, p. 66 ss.), para quem
a parcela de investimentos financeiros da burguesia industrial brasileira tornou-se tão
significativa que ela deixou de se comportar como “capital interno”. Basicamente isso
significa que ela relegou a uma função secundária a sua atividade produtiva e assumiu como
principal origem de sua renda os investimentos especulativos. A burguesia industrial
brasileira age de modo economicamente racional ao ensaiar algo como uma transição de
função. Ela entendeu na prática que, irreversivelmente atrasada tecnologicamente, já não é
mais competitiva internacionalmente e não pode mais extrair mais-valor do trabalho
realizado neste território. A acumulação capitalista com algum lastro na produção talvez já
não ocorra por aqui, se é que em algum lugar. Se em outros setores do capital, são frações
de classe que se impõem com violência e logram reabrir a concorrência, no caso do capital
industrial, ele é seu próprio é golpista.
Ora, se o capital nacional (e na medida em que se pode falar de algo assim, será
sempre como posição funcional, e não como algo substancial, como mostra o exemplo da
burguesia industrial “brasileira” que a qualquer momento larga mão de sua
“nacionalidade”), se o capital nacional se vê deposto nesse momento, seja por outras frações
de classe que passam ao largo do ordenamento jurídico brasileiro, seja por si mesmo, que
assume outra vocação menos atada ao território, não é que ele esteja de fato sendo derrubado
desde baixo, mas sim desde cima. Dinheiro ilegal é ilegal perante um ordenamento jurídico
nacional específico, e há sempre algum outro lugar no globo onde ele pode encontrar
acolhimento jurídico. Ele é, por assim dizer, capital internacional, no sentido de que não
possui pressupostos territoriais imediatos para sua acumulação. Possui, portanto, uma
afinidade, opera sem solução de continuidade com o capital financeiro mais selvagem.
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e até então nas mãos da burguesia nacional e “legal”; nos casos mais extremos, trata-se
mesmo de um real afastamento da própria forma jurídica e sua substituição pela forma
miliciana da “troca” de mercadorias.
II.3.
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