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[-] sinaldemenos.org | ano 11, n.14, v.2, 2020.

A HIPÓTESE DO DEFINHAMENTO DA
FORMA JURÍDICA
(e o atual capítulo brasileiro de seu processo)

Luiz Philipe de Caux

I.1.

Nos últimos anos,1* na esteira da recuperação por Agamben (2004) e da leitura de


Derrida (2010) do texto de juventude de Walter Benjamin “Para a crítica da violência”,
proliferaram especulações, em regra em tom de uma utopia estética e/ou teológica, e,
portanto, sempre de modo indeterminado, sobre uma sociedade futura meramente possível
que ou bem fosse organizada sem a instituição jurídica em geral, ou na qual o direito
cumprisse uma função inteiramente outra, liberada de sua relação constitutiva com a
violência. Poucos anos depois do fim do socialismo real, tendo-se impedido de pensar o fim
do capitalismo, parte do pós-estruturalismo tardio sonhou, por um instante entre meados
dos anos 90 e meados da década de 2000, com o fim do direito como o conhecemos, e com
algo melhor que viesse depois. Essas especulações se nutriam da aparição enigmática, no
fechamento do texto de Benjamin, da noção de uma “deposição” ou “destituição
(Entsetzung) do direito junto de todas as violências das quais ele não pode prescindir, assim
como elas não podem dele prescindir” (Benjamin, 1991, p. 202), resultado da intervenção de
uma “violência divina” que rompesse a sucessão cíclica da conservação violenta de uma
ordem jurídica posta e da instauração violenta de uma nova ordem. Nos textos de Derrida e
Agamben, a possibilidade permanece abstrata, para não dizer transcendente. Para
Agamben, restaria, depois do direito instaurado e mantido pela violência, algo como um
direito sem coerção, que seria apenas objeto de estudo (como a lei judaica) e de uma prática
somente lúdica e não mais instrumental: “Um dia, a humanidade brincará com o direito,
como as crianças brincam com os objetos fora de uso, não para devolvê-los a seu uso
canônico e, sim, para libertá-los definitivamente dele” (Agamben, 2010, p. 98). Já alguns
anos mais tarde, o conceito benjaminiano voltaria a circular em Frankfurt, mas já bem mais
carente de radicalidade e de capacidade de imaginação e orientado bem mais a salvar o que

1 Uma primeira versão deste texto foi apresentada no II Encontro do GT de Teoria Crítica da ANPOF, em
novembro de 2019, em Belo Horizonte. Recebi muitos comentários, sugestões e críticas generosas dos colegas
do GT e dos demais presentes, que me levaram a revisá-lo, embora certamente menos do que o necessário.

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restava direito do que, como o velho Nietzsche, a empurrar aquele que caía: a “destituição”
do direito foi pensada ou como uma autorreflexão em mau infinito do direito sobre si
mesmo, fugindo da própria sombra e lutando de dentro de si próprio contra sua própria
violência constitutiva (Menke, 2011), ou como simples separação analítica dos elementos
violentos, não tomados mais como constitutivos, dos elementos emancipatórios do direito,
estes sim supostamente seus próprios (Loick, 2012).

Mesmo quando se apresentavam não exatamente como figurações do fim do direito,


a alteridade que exigiam desse novo direito porvir era tão radical que dificilmente em um
registro menos especulativo poder-se-ia ainda dar-lhe o mesmo nome. Especulativas (para
o bem ou para o mal) e sem lastro explícito em nenhuma espécie de movimento histórico
real, essas teorias não tentavam positivar o que viria “depois do direito” ou o que seria esse
“outro direito”, mas não deixavam, nem por isso, talvez, de registrar algo, embora de modo
invertido.

I.2.

No vulgarizado prefácio de 1859 de Para a crítica da economia política, Marx se


refere à “superestrutura política e jurídica” com as expressões “formas ideológicas” e
“formas da consciência”, e as nomeia, quais sejam: as “formas jurídica, política, religiosa,
artística ou filosófica” (MEW 13, p. 9). Passa em geral desapercebido neste texto que,
diferentemente, por exemplo, do modo como o problema é tratado na Ideologia alemã,
ideológicos não são mais conteúdos específicos, mas a própria forma da objetividade
condicionada pelas relações de produção. Ainda que de fato o discurso sobre base e
superestrutura seja esquemático e não faça justiça à complexidade que o mesmo problema
assume na crítica da economia política em sua formulação mais bem acabada, parece
acertado reter deste breve excerto a ideia de que o direito, a política, a religião, a arte e a
própria filosofia não são ideológicos enquanto conteúdos (de modo que haveria um outro
direito, uma outra política, uma outra religião, uma outra arte e uma outra filosofia
melhores, de conteúdos diferentes, por exemplo, correspondentes à experiência de uma
outra classe), mas sim que são a forma da experiência em geral dos indivíduos localizados
em qualquer função destas relações de produção. Na verdade, embora Marx não o perceba
já ali, a própria determinação da superestrutura enquanto forma já supera a separação base-
superestrutura. Pois assumir que a experiência é enformada é assumir que ela é estruturada
por uma abstração, que, portanto, não admite concorrência com outras formas (do contrário
a experiência não se sintetizaria, não seria unitária; a forma é unitária, a matéria é que é
multíplice) e que opera subsumindo a si conteúdos particulares (no que os conteúdos
tampouco permanecem ilesos). Assumir a ideia de forma social é assumir a ideia de sua

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totalidade e unidade formal, de modo que superestrutura e a base colapsam uma na outra,
e já não é possível dizer, por exemplo, se a relação de propriedade, o contrato ou a troca, que
são relações de produção, são afinal base ou superstrutura, embora sejam certamente forma
da experiência social.

I.3.

Seguindo esta trilha, aliás, que é a do primeiro capítulo do Capital e da descoberta


das noções de forma-valor e forma-mercadoria, Pachukanis se opõe à análise marxista do
direito de sua época propondo que não se deve examinar apenas “o conteúdo material da
regulamentação jurídica nas diferentes épocas, mas também oferecer uma interpretação
materialista da própria regulamentação jurídica como uma forma histórica determinada”
(Pachukanis, 2017, p. 72). Trata-se de fazer a crítica do direito acompanhar o pensamento
de Marx da teoria da ideologia de 1845 (conteúdo jurídico como expressão da dominação de
classe) à de 1859 e, ainda mais, à de 1867 (direito em geral como forma social no
capitalismo). Contra as concepções vigentes dentro da análise marxista de que o direito é
uma ideologia material de classe ou de que é superestrutura que se ergue por cima do
processo de reprodução material, Pachukanis quer enxergar o “vínculo interno entre a forma
do direito e a forma mercadoria” (Pachukanis, 2017, p. 80). Para o herético jurista soviético,
forma jurídica e forma mercadoria são “dois aspectos abstratos fundamentais” de uma
“relação unitária e total”: as relações entre pessoas “por um lado, surgem como relações
entre coisas, que são ao mesmo tempo mercadorias; por outro, como relações de vontade
entre unidades independentes e iguais uma perante as outras, como as que se dão entre
sujeitos de direito” (Pachukanis, 2017, p. 124). O vínculo entre as duas formas sociais, ou
aquela relação unitária da qual forma direito e forma mercadoria são diferentes aspectos, é
a relação de equivalência, ou, se preferirmos, o valor: “uma sociedade que, devido às
condições de suas forças produtivas, é forçada a conservar a relação de equivalência entre o
trabalho gasto e a remuneração, que ainda remotamente lembra a troca de valores e
mercadorias, será forçada a conservar também a forma do direito” (Pachukanis, 2017, p.
80). Isso significa, por outro lado, vislumbrar o momento da “extinção do direito, e com ela
a do Estado”, que “acontece apenas (...) quando finalmente estiver eliminada a forma da
relação de equivalência” (Pachukanis, 2017, p. 79). Trata-se da “extinção das categorias
(precisamente das categorias, não de uma ou outra prescrição) do direito burguês”, do
“desaparecimento gradual do momento jurídico nas relações humanas” (Pachukanis, 2017,
p. 77-8).

I.4.

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Se forma jurídica e forma mercadoria são mesmo dois aspectos de uma mesma
relação social fundamental, poderemos esperar que seus desenvolvimentos históricos
caminhem pari passu? Ou seria melhor antes perguntar: formas possuem uma lógica de
desenvolvimento? Não é sua recorrência formal diante de distintos conteúdos, sua
permanência estrutural, portanto, que as caracterizam enquanto tais? Mas como podem
formas vir a abolir a si próprias, como previsto pela crítica da economia política, se elas não
possuírem também uma estrutura diacrônica? Quer parecer que forma, aqui, não deve ser
entendida nos termos de uma metafísica hilomorfista. Mas como, então? Sem por ora tentar
encarar essa questão cheia de “sutilezas metafísicas e melindres teológicos”, vejamos de fato
como é que as duas esferas sociais estruturadas por aquelas duas formas se desenvolvem em
paralelo. Para Pachukanis (2017, p. 133), as normas jurídicas só se modificam para que sua
função social permaneça imutada. Vejamos então, sinopticamente, o que precisou mudar na
economia e no direito, do capitalismo liberal do século XIX até hoje, para que a forma tenha
(ou não) podido se preservar.

I.5.

Para mostrar como “a mercadoria como relação é o protótipo de todas as formas de


objetividade e de todas as suas formas correspondentes de subjetividade”, o Lukács de
História e consciência de classe (2012, p. 193) já retomava a análise de Weber (2012, pp. 136
ss.) do direito como sistema social cujo caráter eminentemente formal deriva da estrutura
da mercadoria e possui com ela uma “semelhança estrutural” (Lukács, 2012, p. 214). Trata-
se da imagem do direito como passível de ser abarcado por uma “teoria pura” (Kelsen): um
sistema de normas formalmente racional, lógico, abstrato e universal, internamente
coerente (i.e., sem antinomias), completo e exaustivo (i.e., sem lacunas), codificado, capaz
de prever de modo preciso as consequências jurídicas dos comportamentos humanos, e sem
espaço para arbitrariedades (e, portanto, para surpresas). Importa em particular a ideia de
que a lei é sempre geral, abstrata e não retroativa (pois o futuro é ainda abstrato, o passado
já se tornou determinado), de modo a incorporar em sua forma o igual tratamento de todos
os sujeitos de direito. Uma lei cujo conteúdo fosse particular feriria a ideia jurídica basilar
de que todos são iguais abstratamente (e macularia assim a livre-concorrência). A vontade
do Estado não pode se dirigir a um indivíduo ou a um grupo em particular, mas apenas à
generalidade abstrata das pessoas de direito. O Estado põe normas genéricas, não
individualizantes, para que os indivíduos possam regular tanto quanto possível sua
interação de modo contratual. Na Ciência Jurídica, tal compreensão leva mais comumente
o nome de “positivismo”, e vigora sem grandes abalos do Código Civil Napoleônico de 1804
até a Constituição de Weimar de 1919. Nesse período, ela é uma autocompreensão do

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sistema jurídico que certamente não corresponde inteiramente a ele próprio, mas não deixa
de ser a compreensão idealizada do que ele gostaria e se esforçava por ser: um direito que
aplicasse a si mesmo, tão automático ou algorítmico quanto seria requerido pela
autovalorização do valor. O juiz que determina o sentido da norma na situação concreta,
como o caracterizou Montesquieu, não seria mais do que a “boca da lei”. Em Weber, um tal
direito formalmente racionalizado possui uma homologia estrutural com a dinâmica das
trocas num mercado de livre concorrência: ambos derivam da predominância da ação
racional com respeito a fins, depurada de valores materiais. A formalidade do direito tem a
mesma fonte daquela das trocas, e as normas jurídicas garantem a previsibilidade e
calculabilidade da ação dos agentes econômicos, assegurando a equivalência e a
concorrência sem obstáculos. Ocorre que no início do século XX o direito começa a se
“materializar”, para o lamento de Weber, que enxerga esse passo como um retrocesso no
curso da racionalização daquela esfera de ação.

I.6.

Em 1937, num artigo publicado na Zeitschrift für Sozialforschung, Franz Neumann


notava que “a lei geral não pode prevalecer num sistema organizado de forma monopolista”
(Neumann, 2014, p. 62). “Na esfera econômica”, explica, “o postulado de que o Estado pode
governar apenas por meio de leis gerais se torna absurdo quando o legislador não está mais
diante de competidores iguais, mas diante de monopólios que colocam o princípio da
igualdade de mercado de cabeça para baixo” (p. 63). O texto de Neumann se insere num
debate no interior do Instituto de Pesquisa Social sobre como interpretar as então recentes
transformações do capitalismo. Sabe-se que, momentaneamente e no âmbito restrito da
política institucional frankfurtiana, o vencedor desse debate é Friedrich Pollock, com sua
teoria do capitalismo de Estado, mas ao fim é a versão de Neumann sobre aquele processo
que se mostrará mais adequada, e ela será esposada e desenvolvida desde o início por
Adorno. Para Pollock (2019), a nova fase do capitalismo significava já de fato a abolição do
valor, pois o fato de os processos econômicos serem administrados e determinados de modo
técnico-científico por uma instância central de fato tira de vigor as leis econômicas, ou seja,
acaba com a enformação e o movimento autônomo da economia. Neumann (1984), por sua
vez, vê antes ali apenas um processo inconcluso e instável de monopolização do capital,
concentração econômica intrassetorial que implica igualmente numa concentração de poder
político nas mãos de diversos grupos. Esses poucos, mas ainda assim distintos grupos
particulares se tornam proporcionalmente tão grandes em relação ao universal, isto é, ao
Estado, que retiram deste a possibilidade de manter o tratamento jurídico formal abstrato
de todos na lei e perante a lei. Outro jurista da época, o antinormativista Carl Schmitt,

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interpretava a ideia de Hegel de uma passagem dialética da quantidade à qualidade como


portadora de um sentido eminentemente político: “O autêntico caso de aplicação deste
princípio reporta-se, para o século XIX, ao econômico: no âmbito de coisas ‘autônomo’
‘economia’, supostamente neutral do ponto de vista político, cumpre-se progressivamente
uma tal transformação, isto é, um tal tornar-se político daquilo que até agora era apolítico e
puramente ‘objetual’; aqui, por exemplo, as posses econômicas ter-se-iam tornado
manifestamente, quando tivessem alcançado um determinado quantum, um poder social
(mais corretamente: político), a proprieté ter-se-ia tornado um pouvoir (...)” (Schmitt, p.
2018, p. 111). Era sobre o exato estado de agregação dessa transformação em qualidade que
Pollock e Neumann divergiam, mas o último, por talvez tê-la entendido melhor, soube
extrair dela conclusões sobre as consequências para o sistema jurídico. O que se vê daí em
diante de transformações estruturais deste campo é de fato algo que Weber não poderia ver
senão como regressivo no que diz respeito à racionalização na impessoalidade da
dominação: cláusulas gerais, normas jurídicas abertas semanticamente, que se oferecem à
interpretação judicial subjetiva; normas com referência a costumes e valores materiais;
normas particulares, que legislam sobre grupos ou indivíduos específicos; dirigismo
contratual, a ingerência prévia do Estado, por meio da legislação, na limitação dos possíveis
conteúdos daquilo que antes cabia apenas ao acordo de vontade das partes regulamentar.

Em Pollock, a concentração econômica não se interrompe nos grupos setoriais


particulares, mas como que se perfaz numa espécie de concentração total que abole por
inteiro a concorrência. A consequência é que o Estado, como suposta instância central
administrativa do capital completamente concentrado, agora administra de modo técnico-
científico os processos econômicos, que não possuem mais autonomia. Em Neumann, o que
ocorre é algo mais mediado: a existência de grandes grupos de poder econômico força o
Estado a intervir através da legislação, e a função da lei formal e abstrata em relação à
concorrência se inverte. Como há grandes grupos econômicos, trustes, monopólios e cartéis,
mas também sindicatos laborais e patronais, que também operam como grandes forças
políticas que refletem sua força econômica; ou seja, como há desigualdade material
econômica e, consequentemente, política de grandes proporções entre os concorrentes, logo,
a lei formal e abstrata, que trata a todos como iguais, não possibilitará mais a concorrência,
mas antes fomentará a concentração. O Estado abdica então da sua autovedação a legislar
para o particular, e, de acordo com o paralelogramo de forças atual, legisla tendo por objeto
ora um, ora outro grupo, seja para favorecê-lo, seja para prejudicá-lo. “Quando o Estado
sanciona a fixação de preços dos fabricantes de artigos de marca e ameaça com multa e
cadeia os intermediários e revendedores que não aderiram a essa precificação”, diz
Neumann, “então a fixação privada de preços do monopólio ganha um caráter público. A
aplicação da cláusula geral praticamente se torna aqui um ato soberano do Estado que

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ordena os consumidores dependentes do monopólio a reconhecer e implementar o decreto


privado de preços dos monopolistas” (Neumann, 2014, p. 71). Há sem dúvida administração
dos processos econômicos, mas ela não está acima da concorrência, como queria Pollock,
mas é a própria concorrência radicalizada, na qual violência econômica e violência
extraeconômica se tornaram indistinguíveis. “O monopolista (...) tenta afastar
completamente a racionalidade formal do direito” (Neumann, 2014, p. 73). Mesmo que ela
fosse lhe favorecer, ele sabe agora que pode forçar a legislação e a administração ainda mais
a seu favor, e ele é forte o bastante para isso. “A norma irracional é calculável para o
monopolista, já que ele é forte o bastante para renunciar à racionalidade formal. O
monopolista não só pode viver sem o direito racional, mas ele é ainda frequentemente uma
algema para o completo desenvolvimento ou para a limitação das forças produtivas que lhe
é oportuna. Isso porque o direito racional não tem só, como nós já mostramos, a tarefa de
tornar processos de troca calculáveis, mas também tem, ao mesmo tempo, a tarefa de
proteger os fracos. O monopolista pode renunciar à ajuda dos tribunais. Seu poder de
ordenar é um substituto suficiente para o sistema judicial do Estado. Por meio de seu poder
econômico, ele é capaz de, mesmo utilizando a forma contratual, impor aos consumidores e
trabalhadores as disposições que ele entende ser necessárias e que as outras partes precisam
aceitar se quiserem continuar a existir.” (Neumann, 2014, p. 72)

I.7.

Aqui convém, todavia, precisar um ponto. É necessário diferenciar a forma jurídica


do dito direito formal, uma diferenciação que não se mostra tão fácil assim e que é decisiva
para o que se quer aqui argumentar. São características do direito formal (que
possibilitavam a Hegel (2010) chamá-lo, à sua época, de “direito abstrato”) a igualdade e a
universalidade formal, derivadas como que diretamente da razão, consequência imediata,
para as relações intersubjetivas, de os sujeitos se reconhecerem a si e aos outros como entes
dotados de razão e vontade, portanto capazes de justificar as próprias ações e responder num
sentido prático por sua correção; em uma palavra, de se reconhecerem como pessoas, isto é,
pessoas de direito. Não havia direito formal antes da era burguesa, pois havia distintos
status de pessoas. Pertencer a um determinado estamento, por exemplo, é ter a si aplicado
um inteiro ordenamento jurídico distinto do dos demais estamentos. O direito burguês
impõe a igualdade formal. Essa nova forma - a forma da norma universal - exige ao mesmo
tempo a coerência entre seus conteúdos e a própria forma. Foi uma aberração não apenas
moral, mas também lógica, a existência do instituto jurídico da escravidão moderna, pois ali
o conteúdo do direito negava o próprio princípio de sua formalidade. Mas a forma jurídica
persiste mesmo quando o conteúdo do direito entra em contradição com seu caráter formal.

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Está presente a forma jurídica mesmo quando o direito deixa de ser formal. O escravo foi de
fato mercadoria, objeto de negociações contratuais (ainda que, contrafaticamente e no plano
supralunar da pura validade racional, aqueles que negociavam escravos invalidassem a
própria negociação ao negar no escravo, e portanto, também em si próprios, a pessoalidade
universal que precisariam eles mesmos portar para serem partes de um negócio jurídico).

Eis, portanto, a diferenciação que se deve fazer: o conteúdo do direito pode se afastar
de sua forma pura, mas a forma jurídica continua referendando-o. A crescente contradição
entre conteúdo e forma não abole a forma, mas antes a instrumentaliza em prol da
legitimação do conteúdo. O que Neumann constata na primeira metade do século XX é que,
em razão da concentração econômica e da consequente perda da base material da igualdade
formal, o direito vinha cada vez mais assumindo conteúdos que negavam sua forma, sem
retirar a forma jurídica de vigor, mas pelo contrário, carecendo ainda mais dela para
implementar aqueles conteúdos.

I.8.

No início da década de 1960, o economista britânico Ronald Coase escreve um artigo


que como que inaugura toda uma nova abordagem na sua disciplina de vizinhança, a
jurídica. Trata-se daquilo que se chama “análise econômica do direito”, ou, largando mão do
vernáculo, de Law and Economics. Coase enuncia ali seu famoso teorema, segundo o qual
as normas jurídicas são indiferentes no que diz respeito à alocação de recursos: não importa
a quem o direito dê razão numa lide, a decisão econômica dos agentes sempre será a mesma,
a saber, a ótima paretiana. Um direito subjetivo não é mais do que um custo de produção
(com o qual um agente econômico decide arcar ou não). O ordenamento jurídico pode
determinar quem deve assumir esse custo, mas todas as normas que excedam essa
regulamentação mínima permanecerá sem efeitos, pois os agentes econômicos irão
simplesmente lidar com as normas jurídicas como custos que vale ou não a pena assumir se
for mais vantajoso desrespeitá-las do que respeitá-las. De maneira absolutamente utilitária,
Coase propõe pensar a ideia de um dano indenizável juridicamente de maneira simétrica:
também aquele que se abstém de causar um dano a outrem está, com isso, “sofrendo” o dano
de deixar de adquirir alguma utilidade. “Se os fatores de produção são pensados como
direitos, torna-se mais fácil entender que o direito de fazer algo que possui um efeito
daninho (como, por exemplo, a emissão de fumaça, ruído, odores etc.) é também um fator
de produção. Assim como podemos utilizar um pedaço de terra de uma maneira que impeça
alguém de cruzá-la, ou de estacionar seu carro, ou de construir nela, do mesmo modo
podemos usá-la de modo a negar a alguém uma vista, um silêncio ou um ar puro. O custo de
exercer um direito (ou de usar um fator de produção) é sempre a perda sofrida em algum

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outro lugar em consequência do exercício daquele direito - a vedação de cruzar um terreno,


estacionar um carro, construir uma casa, gozar de uma vista, ter paz e tranquilidade ou
respirar ar limpo” (Coase, 1960, p. 44). Na prática, o teorema de Coase “prevê” situações
como a seguinte: se os custos de impedir o rompimento de uma barragem de escória de
minério for inferior ao custo dos prejuízos indenizatórios com o rompimento, não importa
a quem o direito atribuirá a responsabilidade de assumi-los, o resultado sempre será o
mesmo: os envolvidos na lide irão simplesmente negociar e encontrar a solução econômica
paretiana (que, no caso, é deixar a barragem explodir). É claro que, como boa teoria
econômica ortodoxa, o teorema mais prescreve a situação do que a prevê de fato, pois dentre
os pressupostos de validade do teorema está a concepção normativa de que o direito, por um
lado, deve ter regras claras que permitam a previsão sobre os custos e sobre quem deve
assumi-los, e, por outro, deve reduzir, se possível a zero, os custos das transações (por
exemplo, a multa à empresa que não impede o rompimento da barragem), a fim de que a
solução ótima possa se produzir.

Como momento da história da teoria jurídica, a análise econômica do direito, que não
por acaso começa mesmo a se desenvolver no início da década de 1970, pode representar
mais uma passagem, correspondente à transição geral do regime de produção fordista ao
pós-fordista, na relação entre forma jurídica e forma-valor. Uma tal teoria só pode surgir no
momento em que se torna clara a todos a impotência do direito em relação à economia, o
que só pode ser resultado de uma concentração do capital maior a tal ponto do que a do
momento anterior que resulta novamente numa transição qualitativa. Na emergência do
capitalismo fordista na primeira metade do século XX, Neumann viu o poder econômico dos
particulares crescer a ponto de forçar o conteúdo das normas jurídicas (particulares) a entrar
em contradição com a sua forma (universal), mas mantendo a forma universal como
pressuposto necessário para implementação de medidas particulares. Na segunda metade,
a análise econômica do direito descobre cinicamente que o poder econômico particular é
grande o suficiente para prescindir do direito como meio de se impor. Se lá a concentração
econômica era tal que colocava os monopólios em condição de começar a rivalizar em poder
com o Estado, aqui o Estado já foi sobrepujado há muito. O universal foi ultrapassado pelo
particular, e nisso ficou claro quem era o verdadeiro universal: não o Estado-nação, mas o
capital, que nunca teve pátria. Quando surge a necessidade de regulamentar juridicamente
a atividade das multinacionais e o direito nacional interno já não é a instância soberana para
opor resistência, o utópico direito internacional não tem mais a oferecer do que um dito novo
tipo de direito, o soft law, que prescreve “códigos de conduta” sem ter condições de aplicá-
los coercitivamente: um direito não obrigatório, uma “impossibilidade lógica e semântica”
(Chamayou, 2018, p. 161), justamente já direito algum. Aparece a figura do capital que é too
big to fail, e o Estado, com seus títulos de dívidas públicas, aliena sua desenganada soberania

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para os agentes econômicos não-estatais que de fato o financiam em troca de serem por ele
financiados (Streeck, 2013). A autonomia do direito, que a sua crítica sempre soube não lhe
ser essencial, agora é abandonada até por seus próprios “operadores”. É ilustrativo o título
de um dos livros de Richard Posner, principal representante da abordagem econômica:
Superando o direito (Posner, 1995). Se até a Ciência Jurídica adota então métodos
econômicos, é porque mesmo o fetiche de autonomia do campo, isto é, sua autonomia
ilusória, porém até então fenomenicamente real e estruturante, perdeu a efetividade. As
multinacionais já não precisam que o Estado nacional tome medidas particulares através da
forma universal do direito. O direito vira apenas um cenário de fundo, indiferente, que não
obstaculiza e não deve nem tentar obstaculizar a busca dos ótimos paretianos do capital.

I.9.

A análise econômica do direito é uma abordagem realista e cínica das transformações


pelas quais de fato passa a relação entre sistema jurídico e sistema econômico, mas essas
transformações se encontram registradas, mesmo que como pressuposto negativo, também
em outras das principais teorias do ordenamento, da norma e da aplicação jurídica
desenvolvidas na segunda metade do século XX. Uma leitura sintomal desses textos poderia
talvez decifrar como seu substrato de experiência o longo processo objetivo da perda do
caráter formal da norma jurídica, da desdiferenciação funcional do sistema jurídico e, no
limite, da tendência à dissolução da forma jurídica no sentido de Pachukanis. Toda a
discussão dita pós-positivista levada a cabo principalmente por Robert Alexy (2011) e
Ronald Dworkin (2014) sobre a diferença entre regras e princípios jurídicos e sobre o modo
juridicamente adequado de lidar com os princípios (que atentam contra a formalidade do
direito, embora sejam agora com gosto admitidos por ele) responde ao mesmo contexto de
desenvolvimento histórico da análise econômica que viria a ser desenvolvida por Richard
Posner. São todas respostas teóricas às mesmas carências reais do campo jurídico em
construir justificações (jurídicas ou não) para decisões exigidas pelos sistemas político e
econômico. Teorias sobre a interpretação que preserva uma suposta integridade holística do
ordenamento jurídico, ou sobre o cálculo de ponderação de princípios que maximiza a
efetividade como um todo de um sistema normativo com valores que apontam para direções
contrárias no caso concreto, de um lado, e a abordagem econômica que prescreve uma
aplicação utilitária do direito, de outro, são irmãs gêmeas, filhas dos mesmos pais. Se a
análise econômica assume a necessidade de atuar segundo os códigos de outro campo, o que
está em jogo naquelas teorias pós-positivistas é uma tentativa do campo de seguir
assumindo justificadamente para si próprio a sua autonomia epistêmica em que pese a perda
de sua autonomia prática. Trata-se de uma tentativa de justificar desde dentro a necessidade

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de agir de modo correspondente às pressões vindas de fora, mantendo para si uma mal
disfarçada ilusão de autonomia em meio à sua heteronomia real. É verdade que as teorias
“pós-positivistas” sobre a indeterminação do direito e a hermenêutica de princípios jurídicos
foram pensadas e adotadas pelos juristas e operadores do direito pela louvável razão de
proscrever a discricionariedade judicial e a politização da justiça, como uma tentativa
extrema, levada a cabo com a força de um “juiz Hércules”, de preservar o espírito do
positivismo (a ideia de rule of law) numa época em que sua letra se esvaziou de suas
condições materiais. Mas o que todas essas teorias revelam, quaisquer que sejam suas
intenções, é algo sobre a experiência histórica à qual respondem: na análise econômica do
direito, a experiência da crescente desdiferenciação funcional do direito em relação à
economia; nas teorias “pós-positivistas”, a da contínua indeterminação semântica da norma
jurídica, com a qual elas tentam lidar com alguma dignidade. Em ambos os casos, é da
debilitação da forma jurídica que se trata.

I.10.

Com isso, que não é mais do que um esboço de reconstrução lógico-histórica até o
passado recente, eu quis levantar a hipótese de que a história da forma jurídica, desde que
ela se impôs, foi até então a história de seu afrouxamento. O que quero fazer notar é uma
mudança na relação lógica, a cada vez, entre direito e economia, ou melhor, na relação
interna entre a forma jurídica e a forma valor. Aqui é importante outra vez não perder de
vista a ideia de forma. As duas formas homólogas foram, uma vez, quase indistintas. A
forma-valor, a forma de estruturação da riqueza social como quantum de um equivalente,
efetivado na troca, do tempo de trabalho socialmente necessário, é, como viu Pashukanis,
logicamente coextensiva à forma jurídica, ao reconhecimento mútuo da personalidade
jurídica, i.e., da capacidade jurídica de ser parte em negócios, i.e., relações de troca.
Pashukanis previu, consequentemente, que a abolição da forma-valor redundaria na
obsolescência da forma jurídica. Pois bem, se Pashukanis estiver correto, deve ser possível
de algum modo, inversamente, tomar os desenvolvimentos epifenomênicos da forma
jurídica como índices do desenvolvimento essencial da forma valor. Em outras palavras,
proponho entender o afrouxamento progressivo da forma jurídica, sua cada vez menor
vinculabilidade na história, como efeito de superfície do lento processo de caducidade da
forma-valor. Trata-se de entender o fim da forma-valor e da forma jurídica não como
eventos, mas como processos de média duração, e ainda mais, como processos simultâneos
e coextensivos; no limite, como o mesmo processo. Isso significaria entender aquelas
transformações narradas acima, nas quais o direito perde cada vez mais autonomia para a
economia, não como sinais de força do capital, mas sim como índices de sua tendência ao

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debilitamento. Mas, se é assim, como entender o atual estado da relação entre forma-valor
e forma jurídica? E o que aquilo que ocorre hoje na relação entre o sistema econômico e o
jurídico tem a nos dizer sobre sobre aquela tendência?

II.1.

Olhando para os atuais desenvolvimentos político-econômicos, em particular os


imediatamente mais próximos, ou seja, o caso do Brasil (que não tem nada de
exclusivamente particulares, mas são instanciações de algo global), nota-se, ao menos em
superfície, um paulatino ganho de poder político de frações da classe capitalista que operam
predominantemente à margem ou fora da legalidade. Esta é, aliás, uma das relações
possíveis entre forma-valor e forma jurídica, e é preciso realizar aqui algumas distinções.
Sabe-se que os ordenamentos jurídicos contemporâneos em geral proscrevem alguns tipos
de compra e venda, como por exemplo a de drogas de uso recreativo. Ainda que o direito
estatal não sancione civilmente aquelas relações de troca, por exemplo, não admitindo uma
ação judicial de reparação caso uma das partes seja lesada, e ainda que ele inclusive as
tipifique criminalmente, não se pode dizer que a forma jurídica esteja ali ausente. Salvo o
resguardo direto judiciário, todas as demais características da forma jurídica estão ali. É
verdade que ali a proibição assume um aspecto funcional, o de criar uma escassez artificial
que eleva os preços, com efeitos semelhantes aos do monopólio. Mas o monopólio, como
vimos, não abole o valor, ainda que o contradiga. É da essência do valor acolher dentro de si
essa sua negação. Vigora então nos mercados ilegais, como a obra de Gabriel Feltran (2019),
por exemplo, mostra, uma relação de funcionalidade e integração com os mercados legais.
Ainda que o comércio de entorpecentes esteja cercado de violência por todos os lados, ela
não é do interesse do comerciante, que se esforça por neutralizá-la e criar as condições de
normalidade para o comércio pacificado. Outra coisa ocorre com o que nos habituamos no
Brasil a chamar de “milícias”. Uma milícia se caracteriza por constranger relações de troca
econômica não livres. Quando uma milícia cria uma situação de monopólio de um bem a
partir da pura e simples ameaça de uso da força, a forma jurídica já não está presente. É
verdade que a indiferenciação de empresas e organizações mafiosas não data de hoje.
Horkheimer (1985) já chamava a atenção, na primeira metade do século passado, para a
gangsterização da economia capitalista, coetânea à monopolização. Mas é algo distinto se as
distintas empresas em concorrência se valem de meios violentos umas em relação às outras
e se usam da violência para com o “consumidor”. Poder-se-ia argumentar que os preços
abusivos possibilitados pelo monopólio já são uma tal violência. Na verdade, poder-se-ia
dizer inclusive que desde o início as trocas de equivalentes envolvem a violência, e não é à
toa que no capítulo sobre a acumulação primitiva Marx emprega a expressão “violência

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extraeconômica” para diferenciá-la da violência já envolvida em todo ato econômico


capitalista. Mas a aparência de não-coerção é justamente o que diferencia a violência
econômica, mediada pela forma jurídica, da violência pura e simples. Uma milícia, na
acepção brasileira do termo, opera como que numa inversão da forma jurídica: não se trata
mais de uma violência acobertada por um acordo de vontades, mas um “acordo de vontades”
extorquido pela ameaça do emprego da violência. E não é casual que a milícia pareça por
essas bandas tender a se hegemonizar, alcançando todas as esferas do poder estatal. É fato
que milícias nascem desde dentro do Estado, de suas forças repressivas, mandatárias da
legitimidade estatal do monopólio do uso da força. O Estado é assim origem, condição de
possibilidade da milícia, mas é inicialmente também, ainda que de maneira contraditória,
seu limite. Ocorre outra vez algo como uma transformação de quantidade em qualidade
quando milícias crescem tanto que deixam de se opor ao Estado, mas ameaçam tomá-lo por
dentro. Se, no pólo superior, a milícia que toma de dentro o Estado brasileiro não se
distingue de qualquer bando armado que funda ou refunda pela violência um Estado, no
pólo de baixo, no rés do chão de onde ela ascende, ela opera integrada funcionalmente ao
sistema de produção de mercadorias, literalmente forçando violentamente a sua circulação
e a realização da mais-valia (mesmo que já sem sequer sinal de equivalência das “trocas”).
A milícia é algo como um parasita funcional de um sistema de produção de mercadorias que
deixou de ser funcional (num país em que, na verdade, ele nunca chegou exatamente a parar
em pé sozinho). A forma miliciana da troca de mercadorias não substitui a forma-valor, mas
é como que efeito colateral de sua obsolescência e de sua permanência meramente positiva,
sem substância.

II.2.

O episódio em que a bancada ruralista do Congresso Nacional se posicionou em


defesa da preservação da Amazônia demonstra que no interior do setor agrário do capital
brasileiro há uma cisão entre aqueles que dependem, para levar adiante seus negócios, do
jogo legal, das sanções do direito nacional e internacional a mercadorias de “boa procedência
ambiental”, e aqueles que enxergam a continuidade da acumulação antes na violação
sistemática do direito posto, na reabertura da possibilidade da aquisição originária da
propriedade terra (como a chamam os juristas), ou seja, da grilagem. A acentuadamente
acelerada expansão da fronteira agrícola (cf. Cunha, 2019) deve ser entendida como um
capítulo tardio da acumulação primitiva estrutural brasileira (Oliveira, 2013), mas também
possivelmente como um conflito entre aquela fração de classe a quem interessa que as
fronteiras fiquem onde estão e aquela outra composta de aventureiros, párias excluídos do
jogo econômico pelo monopólio agrícola e que querem reabrir a concorrência. A recente

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regulamentação jurídica da regularização fundiária de terras griladas mostra que a


concorrência foi reaberta, e o recorde de queimadas na Amazônia desde então mostra que
aqueles párias têm literalmente ganhado território. Como no caso das milícias, se trata ali
de novo de algo como uma “lumpemburguesia”, mas num sentido bem mais literal do que o
pensado por Andre Gunder Frank (1974): uma fração de classe burguesa à margem da ordem
jurídica, sem a obsoleta “cultura” e a caduca “honra do trabalho”, e que entra na
concorrência sem quaisquer modos – piromaníacos com motosserras arrombando a porta
fechada pela concentração do capital.

Nos últimos anos, as frações da classe burguesa mais presas ao território brasileiro,
portanto mais vinculadas ao ordenamento jurídico nacional, sofreram todas um forte abalo
em sua posição na concorrência. Grandes empresas de extrativismo mineral, pecuária e
engenharia civil, cuja atividade é inerentemente ligada ao território, tiveram o seguimento
de sua atividade econômica prejudicado pelas investigações e sanções jurídicas decorrentes
de supostas relações ilegais com o sistema político (Pinto et al., 2019). Mas não apenas seu
patrimônio e sua posição no sistema econômico foram afetadas. Já desde as eleições de 2016,
o financiamento de campanha eleitoral por pessoas jurídicas foi declarado inconstitucional
pelo STF. Até então, as grandes empresas nacionais concentravam massivamente o
financiamento das campanhas dos partidos políticos como um todo. Além da proibição de
doação de pessoas jurídicas pelo controle de constitucionalidade, desde 2015 foi regulada
pela legislação a possibilidade de doação de 10% da renda de pessoas físicas para
campanhas, o que, na prática, significa entregar a indivíduos de renda elevada o
protagonismo do financiamento (Reis e Eduardo, 2019). Pela intervenção politicamente
ativista do judiciário, as ditas “campeãs nacionais” foram expulsas do cenário de
financiamento que monopolizavam até então, abrindo espaço para atores “menores”. Outra
vez, é um filão de monopólio econômico, o do acesso a recursos políticos, que é quebrado,
desta vez com a violência espetacularizada das ações justiceiras da Polícia Federal. Um dos
tipos de agentes que podem se aproveitar dessa quebra de monopólio do lobby é justamente
aquele que chamei de lumpemburgueses, inclusive as milícias, que de fato ganham muito
mais acesso a cargos elegíveis já nas eleições gerais seguintes.

O que quero fazer notar com esses exemplos é que em certo sentido a relação entre
economia e direito parece estar passando por um processo de refuncionalização no Brasil,
possivelmente relacionado à desindustrialização do país e à realocação definitiva de seu
lugar na divisão internacional do trabalho. Frações de classe que operam à margem da lei
(mesmo que eventualmente conquistando as bênçãos da lei a posteriori, o que na prática
significa que lograram se impor à lei) têm sido capazes de depor, mediante violência
extraeconômica, as frações de classe cuja acumulação depende do território e do
ordenamento jurídico brasileiro. O destino do capital industrial nacional, único ainda não

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mencionado, parece exemplar para entender o que está havendo. À primeira vista, parece
irracional o comportamento político dos industriais ao assumir o protagonismo no processo
de deposição da presidência do Partido dos Trabalhadores e seu programa econômico de
incentivos ao desenvolvimentismo industrializante. Parece correto um dos fatores
explicativos desse comportamento levantado por André Singer (2018, p. 66 ss.), para quem
a parcela de investimentos financeiros da burguesia industrial brasileira tornou-se tão
significativa que ela deixou de se comportar como “capital interno”. Basicamente isso
significa que ela relegou a uma função secundária a sua atividade produtiva e assumiu como
principal origem de sua renda os investimentos especulativos. A burguesia industrial
brasileira age de modo economicamente racional ao ensaiar algo como uma transição de
função. Ela entendeu na prática que, irreversivelmente atrasada tecnologicamente, já não é
mais competitiva internacionalmente e não pode mais extrair mais-valor do trabalho
realizado neste território. A acumulação capitalista com algum lastro na produção talvez já
não ocorra por aqui, se é que em algum lugar. Se em outros setores do capital, são frações
de classe que se impõem com violência e logram reabrir a concorrência, no caso do capital
industrial, ele é seu próprio é golpista.

Ora, se o capital nacional (e na medida em que se pode falar de algo assim, será
sempre como posição funcional, e não como algo substancial, como mostra o exemplo da
burguesia industrial “brasileira” que a qualquer momento larga mão de sua
“nacionalidade”), se o capital nacional se vê deposto nesse momento, seja por outras frações
de classe que passam ao largo do ordenamento jurídico brasileiro, seja por si mesmo, que
assume outra vocação menos atada ao território, não é que ele esteja de fato sendo derrubado
desde baixo, mas sim desde cima. Dinheiro ilegal é ilegal perante um ordenamento jurídico
nacional específico, e há sempre algum outro lugar no globo onde ele pode encontrar
acolhimento jurídico. Ele é, por assim dizer, capital internacional, no sentido de que não
possui pressupostos territoriais imediatos para sua acumulação. Possui, portanto, uma
afinidade, opera sem solução de continuidade com o capital financeiro mais selvagem.

A forma jurídica se encontra como nunca enfraquecida porque a soberania política


nacional que sanciona e lastreia o ordenamento jurídico também o está, e ela o está, por sua
vez, porque a soberania territorial real, aquela do capital cuja acumulação depende do
território e das leis que nele vigoram, por sua vez também o está. Mas não posso ir tão longe
no argumento. Importava aqui mostrar que há indícios, observando-se eventos recentes no
Brasil (e ousando uma generalização fraca), de que as frações da classe capitalista que
operam à margem do direito (e muitas vezes também à margem até mesmo da forma
jurídica) têm enfrentado e desbancado suas respectivas frações setoriais concorrentes que
precisam do direito para tentar levar adiante a acumulação. Nos casos mais “ordinários”, se
trata de uma reabertura à força, por frações “lumpemburguesas”, de mercados concentrados

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e até então nas mãos da burguesia nacional e “legal”; nos casos mais extremos, trata-se
mesmo de um real afastamento da própria forma jurídica e sua substituição pela forma
miliciana da “troca” de mercadorias.

II.3.

Voltando, para concluir, à hipótese de Pashukanis, mas relendo-a um século depois,


diríamos que se for mesmo o caso de que o fim da forma-valor torna socialmente
desnecessária a forma jurídica, um olhar especulativo ao desenvolvimento da relação entre
as duas formas até hoje mostra que talvez a forma-valor já esteja deixando de ser
estruturante de nossas sociedades. A forma-valor é, num sentido, “essencial”. Não podemos
tocá-la, conferi-la, verificá-la, mas ela se manifesta em fenômenos a partir dos quais algo
pode ser dito especulativamente sobre ela. A forma jurídica, por sua vez, é sempre
fenomênica, no sentido de que sempre se manifesta, pode ser vista, vivida, sentida na pele.
O fim da forma jurídica, que talvez esteja em curso num processo de média duração, pode
ser um elemento para inferir especulativamente que a essência estruturante do modo de
produção capitalista talvez já se encontre estertorante. Os comunistas do começo do século
criam que nos livraríamos do direito como uma espécie de bônus por termos nos livrado do
capital. Assim que findou-se o socialismo real soviético, outros sonharam com a
possibilidade abstratamente utópica do fim do direito. Hoje o capital, enfraquecido,
encurralado e suicidário, se livra do direito ele mesmo (o que significa para ele terminar de
livrar-se de si).

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