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190 ensaios e entrevista • mostra contemporânea brasileira

À dança da dessemelhança
>>> Cavalo (Rafhael Barbosa e Werner Salles, 2020)

juliano gomes1

A energia política do longa alagoano Cavalo repousa, em primeiro lugar, na intensidade


do seu comprometimento em não ser um só. Se na década passada, grande parte
do cinema brasileiro de invenção buscava explorar a ideia de individualidade como
sinônimo de singularidade, aqui temos um nítido exemplo de uma busca de outra
natureza. Seria difícil uma sinopse que descrevesse bem o longa de estreia de Rafhael
Barbosa e Werner Salles Bagetti. A estrutura do filme encruzilha trajetórias de sete
artistas, com rituais religiosos, misturados a uma exploração material e geográfica de
Maceió, em um desenho coral cuja força não pode ser sintetizada. O desafio que o
filme propõe é o de como compor um corpo coletivo, heterogêneo e dinâmico, sem se
tornar aleatório ou frouxamente caótico.
A maturidade surpreendente de Cavalo passa pela recusa ao um, ao individual.
Somente após quase meio século de neoliberalismo se começa a construir uma
percepção coletiva dos danos da obsessão pelo unitário, pela unidade – que é afinal,
uma tara por imaginários de escassez. O longa em questão faz algo raro na filmografia
que estuda as matrizes religiosas afrobrasileiras: incorpora sua matéria no modo de
se fazer e de se organizar do filme. Inclusive, teria dificuldade de dizer se ele é sobre
alguma coisa. Cavalo é através. O mote do “cavalo de santo”, aquele que recebe o
espírito, se torna figura conceitual que organiza o documentário. O acontecimento
da incorporação é o emblema teológico-político da inviabilidade da individualidade
como operador do entendimento. Assim, o tema do filme – se há um – é justamente o
movimento, a dança, o princípio dinâmico. Daí, a força da escolha destes corpos que
dançam como material de trabalho do filme.
Eles dançam, mas tudo dança também. E assim, também o próprio filme. Se há
um protagonista, provavelmente é a água. Mesmo quando corpos humanos ocupam o
quadro, talvez seja a água – nossa secreta maioria interna – que esteja sendo filmada,
novamente transmutada. De certa maneira, é essa a missão do filme, fazer falar o
que estava mutado, o que está presente virtualmente e que precisa de estratégias de

1. Juliano Gomes é crítico, artista e professor. Publica crítica de cinema na Revista Cinética desde 2010, e desde
2020 faz atua como co-editor da revista. Publicou textos sobre música e teatro, além de dirigir curtas, e atuar
como performer. Mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Site pessoal: <juliano-gomes.com>.
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acionamento para se manifestar. Não por acaso, a dança é parte essencial nos rituais
das religiões que o filme materializa. Entretanto, é importante marcar que é a “mesma
dança”: no rap, no mangue e na sala de ensaio. O que se anseia são os estados de
alteração de si, onde se é outro, onde se é aquilo expressa. Quando dançamos é a dança
que dança no corpo e não o contrário. Quando cantamos é a voz que canta no corpo e
não o oposto. Cavalo se estrutura de maneira a receber o movimento, para fazer jus à
inversão do sistema ocidental-cristão-moderno cuja obsessão é a autodeterminação
deste homem, senhor de tudo.
Aqui, o que trabalha é uma força despossessiva. Essa energia é a energia do movi-
mentar-se, da expressão, dos estados dinâmicos. Neste sentido, estar “possuído” é o
justo oposto de possuir algo, acumular ou ter posse – inclusive de si. Para que as enti-
dades se ocupem do médium é necessária a mais complexa de todas as sensibilidades,
saber receber, saber entregar-se, comprometer-se com a vulnerabilidade. Grande parte
das organização dos rituais diz respeito ao acolhimento desta vulnerabilidade radical.
A lágrima do homem que chora no colo de sua mãe no sofá no filme se transforma na
água do mangue, no suor, e que vira chuva no segmento seguinte. A questão política
que se coloca é como criar um sistema que não seja de represamentos. Cavalo é um
filme cujo próximo movimento é sempre difícil de antecipar. Tanto que não tem exata-
mente sequências, mas sempre um novo plano, que experimenta e expressa, a cada
corte, um radical desejo associativo. E essa é sua matéria principal.
Durante o filme, não sabemos o nome de ninguém. Numa perspectiva “humanista
liberal”, baseada na transparência e na escassez, esse seria um pecado. As religiões de
matriz africana são mananciais de opacidade, baseadas em uma ética das metamor-
foses, nas montagens heterogêneas. O efeito das variações que o filme opera trabalha
justamente na multiplicação de tal energia. O ensaio se torna terreiro, o mangue, batalha
de rap, uma chuva no espaço urbano se torna um banho de ervas e assim vai. “Cavalo”
é justamente a ligação, a religação, a redescoberta do vínculo.
O trabalho político da modernidade colonial é justamente a tarefa das separações,
da separabilidade como descreve Denise Ferreira da Silva no ensaio “Sobre Diferença
sem Separabilidade”.2 A última frase do texto diz:

... quando o social reflete O Mundo Emaranhado, a socialização não é mais nem causa nem
efeito das relações envolvendo existentes separados, mas a condição incerta sob a qual
tudo aquilo que existe é uma expressão singular de cada um e de todos os outros existentes
efetivos ou virtuais do universo.

Cavalo é a manifestação singular do mundo emaranhado. Onde cada elemento, ao


mesmo tempo, expressa um singularidade própria e um potencial de impropriedade. E
justo aí repousa sua força. Um marco ético se sugere em oposição a uma moralidade
humanista cristã ocidental. A orientação aqui está justamente nesta exploração de uma

2. SILVA, Denise Ferreira da. Oficina de imaginação política , 2016, p. 5. Disponível em <https://issuu.com /
amilcarpacker/docs/denise_ferreira_da_silva_>.
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virtualidade comum e imprópria. Quando corta de um pé humano correndo para patas


de cavalo fazendo o mesmo, não é exatamente uma metáfora, mas a demonstração
empírica destas afinidades inerentes, que precisam da prática para se manifestar. O
entristecimento generalizado causado pelo neoliberalismo algorítmico trabalha como
prevenção à ativação desta energia virtual que é acima de tudo coletiva. Coletiva não
só entre pessoas, mas entre nós mesmos, as coisas, e o que produzimos – o que é por
natureza impróprio.
Não sei dizer se o homem que vejo, numas das sequências iniciais, está “atuando
para o filme” ou está “realmente incorporando”. Cavalo trabalha para que isso não seja
uma pergunta. Porque um modelo baseado nas opacidades é um modelo que aceita
a não transparência dos acontecimentos do mundo e tece assim, relações, descobre
afinidades renovadas. A questão é o que chega de verdade, o que se recebe. O huma-
nismo logocêntrico é apaixonado por verdade - mas mais do que pela verdade, ele é
obcecado pelo que acha que só existe um: uma verdade, um cinema, uma intenção,
um documento, uma unidade, uma autoria, uma agência, um senhor, um dono, e assim
em diante.
À semelhança de Orí (Raquel Gerber e Beatriz Nascimento, 1989) e Abolição (Zózimo
Bulbul, 1988), Cavalo adota uma certa “estética da encruzilhada”, onde os segmentos vão
se combinando de maneira ao mesmo tempo inesperada e fluída, filmes que parecem
“andar de lado”, e não exatamente progredir, mas se fazerem numa composição em
espiral. Segundo Leda Maria Martins a encruzilhada é um “lugar radial de centramento
e descentramento, intersecções e desvios, texto e traduções, confluências e alterações,
influências e divergências, fusões e rupturas, multiplicidade e convergência, unidade e
pluralidade, origem e disseminação”.3 Esta frase poderia ser muito bem uma sinopse
do longa alagoano. A passagem da autora descreve com precisão os processo que o
filme adota em sua maneira composicional.
Cavalo é ao mesmo tempo uma teogonia, um mito de criação do homem, uma
sinfonia da cidade Maceió, um manifesto profano-religioso, um registro de processo
e uma vídeodança. Seu coração é seu comprometimento com tal infidelidade. Uma
ensaística muito particular – onde os modos da cena se ressaltam – aqui se expressa,
na linhagem dos filmes dos anos 80 aqui já citados. Um filme-ensaio – literalmente –,
um filme repetição,4 onde se gira mas nunca voltamos para o mesmo lugar.
Portanto, cabe notar que é raro um longa de estreia fazer de uma certa incoe-
rência a matéria de seu trunfo. Ao invés de coerente, o filme opta por ser corrente, por
correr, fluir, para outra coisa, para outra, e assim em diante, como a água. Cavalo tem
a coragem de assumir seu coração impuro e material, seu desejo singular que não é
posse de ninguém, e nem nomes tem.
Um giro antirracista na arte brasileira demandará um horizonte que Cavalo­, com
ousadia, ajuda a desenhar: abandonar o humanismo, a propriedade, o moralismo liberal,

3. MARTINS, Leda Maria. Afrografias da Memória: O reinado do Rosário no Jatobá. São Paulo: Perspectiva; Belo
Horizonte: Mazza Edições, 1997. p. 28
4. Em alguns idiomas, o que chamamos aqui de “ensaio” é chamado de “repetição”, como na língua francesa.
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a má consciência burguesa, a tara pela unidade como valor supremo. É necessário fazer
da encruzilhada, método e modo de produção. Arriscar tudo, caminhar na lama incerta
do inaudito, experimentar a facilidade técnica do cinema com transmutações, largar os
reflexos simétricos e lembrar que toda reflexão é uma deformação, é dessemelhança
ativa. Numa das sequências finais, umas personagens depois de dançar sob o reflexo
movente das águas, grita e foge para o preto, para o fundo incerto, para a indeterminação.
Moldar a mudança exige fuga constante. Cavalo é sinal do passado e lembrança do
futuro, é uma constelação aberta, é o princípio dinâmico feito método. Somente pelo
cultivo da prática, do descentramento aplicado, que o cinema e a sociedade poderão
encontrar meios para desarmar a arapuca necroliberal. É isso afinal que cantam essas
imagens, caso se possa dança-las.

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