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À dança da dessemelhança
>>> Cavalo (Rafhael Barbosa e Werner Salles, 2020)
juliano gomes1
1. Juliano Gomes é crítico, artista e professor. Publica crítica de cinema na Revista Cinética desde 2010, e desde
2020 faz atua como co-editor da revista. Publicou textos sobre música e teatro, além de dirigir curtas, e atuar
como performer. Mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Site pessoal: <juliano-gomes.com>.
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acionamento para se manifestar. Não por acaso, a dança é parte essencial nos rituais
das religiões que o filme materializa. Entretanto, é importante marcar que é a “mesma
dança”: no rap, no mangue e na sala de ensaio. O que se anseia são os estados de
alteração de si, onde se é outro, onde se é aquilo expressa. Quando dançamos é a dança
que dança no corpo e não o contrário. Quando cantamos é a voz que canta no corpo e
não o oposto. Cavalo se estrutura de maneira a receber o movimento, para fazer jus à
inversão do sistema ocidental-cristão-moderno cuja obsessão é a autodeterminação
deste homem, senhor de tudo.
Aqui, o que trabalha é uma força despossessiva. Essa energia é a energia do movi-
mentar-se, da expressão, dos estados dinâmicos. Neste sentido, estar “possuído” é o
justo oposto de possuir algo, acumular ou ter posse – inclusive de si. Para que as enti-
dades se ocupem do médium é necessária a mais complexa de todas as sensibilidades,
saber receber, saber entregar-se, comprometer-se com a vulnerabilidade. Grande parte
das organização dos rituais diz respeito ao acolhimento desta vulnerabilidade radical.
A lágrima do homem que chora no colo de sua mãe no sofá no filme se transforma na
água do mangue, no suor, e que vira chuva no segmento seguinte. A questão política
que se coloca é como criar um sistema que não seja de represamentos. Cavalo é um
filme cujo próximo movimento é sempre difícil de antecipar. Tanto que não tem exata-
mente sequências, mas sempre um novo plano, que experimenta e expressa, a cada
corte, um radical desejo associativo. E essa é sua matéria principal.
Durante o filme, não sabemos o nome de ninguém. Numa perspectiva “humanista
liberal”, baseada na transparência e na escassez, esse seria um pecado. As religiões de
matriz africana são mananciais de opacidade, baseadas em uma ética das metamor-
foses, nas montagens heterogêneas. O efeito das variações que o filme opera trabalha
justamente na multiplicação de tal energia. O ensaio se torna terreiro, o mangue, batalha
de rap, uma chuva no espaço urbano se torna um banho de ervas e assim vai. “Cavalo”
é justamente a ligação, a religação, a redescoberta do vínculo.
O trabalho político da modernidade colonial é justamente a tarefa das separações,
da separabilidade como descreve Denise Ferreira da Silva no ensaio “Sobre Diferença
sem Separabilidade”.2 A última frase do texto diz:
... quando o social reflete O Mundo Emaranhado, a socialização não é mais nem causa nem
efeito das relações envolvendo existentes separados, mas a condição incerta sob a qual
tudo aquilo que existe é uma expressão singular de cada um e de todos os outros existentes
efetivos ou virtuais do universo.
2. SILVA, Denise Ferreira da. Oficina de imaginação política , 2016, p. 5. Disponível em <https://issuu.com /
amilcarpacker/docs/denise_ferreira_da_silva_>.
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3. MARTINS, Leda Maria. Afrografias da Memória: O reinado do Rosário no Jatobá. São Paulo: Perspectiva; Belo
Horizonte: Mazza Edições, 1997. p. 28
4. Em alguns idiomas, o que chamamos aqui de “ensaio” é chamado de “repetição”, como na língua francesa.
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a má consciência burguesa, a tara pela unidade como valor supremo. É necessário fazer
da encruzilhada, método e modo de produção. Arriscar tudo, caminhar na lama incerta
do inaudito, experimentar a facilidade técnica do cinema com transmutações, largar os
reflexos simétricos e lembrar que toda reflexão é uma deformação, é dessemelhança
ativa. Numa das sequências finais, umas personagens depois de dançar sob o reflexo
movente das águas, grita e foge para o preto, para o fundo incerto, para a indeterminação.
Moldar a mudança exige fuga constante. Cavalo é sinal do passado e lembrança do
futuro, é uma constelação aberta, é o princípio dinâmico feito método. Somente pelo
cultivo da prática, do descentramento aplicado, que o cinema e a sociedade poderão
encontrar meios para desarmar a arapuca necroliberal. É isso afinal que cantam essas
imagens, caso se possa dança-las.