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FUNDAMENTO

DO DIREITO NATURAL
SEGUNDO OS PRINCÍPIOS
DA DOUTRINA DA CltNCIA
FUNDAMENTO
DO DIREITO NATURAL
SEGUNDO OS PRINCÍPIOS
DA DOUTRINA DA CIÊNCIA

Johann Gottlieb Fichte

Tradução e Notas de
JOSÉ LAMEGO

FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN


Reservados todos os direitos
de acordo com a lei

Edição da Fundação Calouste Gulbenkian


Av. de Berna I Lisboa
2012
ISBN 978-972-3 1-1455-3
NOTA SOBRE A TRADUÇÃO

A presente tradução de Fundamento do Direito Natural


segundo os Princípios da Doutrina da Ciência tem por base a
edição histórico-crítica das obras de Johann Gotdieb Fichte
promovida pela Academia das Ciências da Baviera, sob a
orientação de Reinhard Lauth , Hans Jacob e Hans Gli-
witzky (Estugarda - Bad Cannstatt: editora Frommann-
Holzboog, 1.9 62 e segs.). Indicamos em notas de margem a
correspondência da paginação desta edição.
A edição da obra completa de Fichte, promovida pela
Academia das Ciências da Baviera, desenvolve-se em quatro
séries: a série I abarca as obras publicadas por Fichte, a série
II contém as obras inéditas em vida do autor, a série III diz
respeito à correspondência e a série IV recolhe transcrições
das lições de Fichte levadas a cabo por discípulos seus.
Nesta edição, a "Primeira Parte" de Fundamento do Direito
Natural segundo os Princípios da Doutrina da Ciência vem
publicada no vol. 3 da série I (págs. 313-460) e a "Segunda
Parte", no vol. 4 da mesma série (págs. 5-165).
Decidimos juntar, no final, um conjunto de notas
explicativas, que consideramos poderem ser de alguma uti-
lidade, bem como uma cronologia da vida e da obra

v
de Fichte. Com o mesmo propósito de enquadramento,
juntamos um pequeno texto de apresentação da obra, subli-
nhando a sua importância não apenas no quadro da filo-
sofia jurídica e política, mas também como marco funda-
mental na evolução do idealismo pós-kantiano.

Lisboa, verão de 2011

Ü TRADUTOR

VI
APRESENTAÇÃO

O Fundamento do Direito Natural e o sistema


do idealismo transcendental

A "Primeira Parte" de Fundamento do Direito Natural


segundo os Princípios da Doutrina da Ciência foi dada à
estampa em março de 1796, e a "Segunda Parte" ou Direito
Natural aplicado em setembro de 1797, pelo mesmo editor,
Christian Ernst Gabler, em Jena e Leipzig. Existe, pois,
uma quase coincidência temporal entre a publicação da
"Primeira Parte" de A Metafisica dos Costumes, de lmmanuel
Kant (1724-1804) , Princípios metafisicas da doutrina do
Direito, que teve lugar em janeiro de 1797, e a publicação
de Fundamento do Direito Natural segundo os Princípios da
Doutrina da Ciência 1•

1
À altura, a publicação de ensaios sobre o Direito natural no esplriro da
fi losofia critica era abundante. Só em 1795, ano em que Fichte realiza as investi-
gações que irão culminar na publicação de Fundamento do Direito Natural, são
publicados na revista Philosophisches journal einer Gesellschaft Teutscher Gelehrten,
de que Fichte era co-editor, entre o utros, os seguintes ensaios: Johann Paul
Anselm Feue rbach (1755-1833) , «Yersuch über den Begriff des Rechts>>; Salo-
mon M aimon (1754-1800), «Ueber die ersten G ründen des Narurrechts»;
Johann Benjamin Erhard (1 766-1827), << Ueber das Rechts des Yolks zu einer
Revolution » e «Beitrage zur Theorie der Gesetzgebung». Também o grande
divulgador da filo sofia de Kant e antecessor de Fichte em Jena, Karl Leonhard
Reinhold (1 758- 1823), dá à estampa, em 1797, <<Aphorismen über das aussere
Recht überhaupt und insbeso ndere das Staatsrecht»: cf. Karl Leonhard Reinhold ,
Auswahl vermischter Schrifien. Zweyter Theil, Jena, 1797, págs. 40! -430.

VII
Se Fichte (1762-1814), à semelhança de Kant (1724-
-1804), estabelece como ponto de partida da sua aborda-
gem o problema da relação da liberdade com o conceito de
Direito, o modo como procede à "dedução" do conceito
de Direito (como condição da autoconsciência e não a par-
tir da lei moral e das suas exigências)2 confere à "dedução"
do conceito de Direito uma importância fundamental na
reconstrução das condições de possibilidade da "experiên-
cia" . Por esse facto, o livro Fundamento do Direito Natural
segundo os Princípios da Doutrina da Ciência tem de ser
analisado não apenas como uma obra de filosofia jurídica e
política, mas, igualmente, como um marco fundamental na
evolução do idealismo pós-kantiano.
Como obra de filosofia jurídica e política, o escrito
Fundamento do Direito Natural coloca-se na esteira da tradi-
ção individualista do Direito natural profano moderno,
sofre as influências do pensamento político de Montesquieu
(1689-1755) e de Rousseau (1 7 12-1778) e reflete o impacto
dos acontecimentos revolucionários de 1789. Mas, para
além disso, a "Introdução" e as secções relativas à "Dedução
do conceito de Direito" e à "Dedução da aplicabilidade do
conceito de Direito" têm um alcance mais geral, pois dão
conta do modo como Fichte configura as noções básicas do
seu programa filosófico de uma fundamentação em termos
sistemáticos absolutos da filosofia idealista transcendental.
É por aqui que vamos começar a apresentação de Funda-
mento do Direito Natural segundo os Princípios da Doutrina
da Ciência, debruçando-nos, num segundo momento, sobre
a estrutura sistemática da exposição. Concluiremos com

2
Numa can a dirigida ao editor Johann Friedrich Corra, datada de 15 de
novembro de 1795, Fichte relata que se ocu pou nesse verão co m investigações
sobre o Direito natural e o Direito político e que chego u a conclusões que fazem
eq uacion ar a ciência do Direito natural sob um pomo de vista inteiramente
novo.

VIII
algumas breves considerações sobre o significado desta obra
de Fichte no panorama da filosofia jurídica e política e a
diversidade dos pontos de vista sobre esse significado.

1. O projecto de uma "doutrina da ciêncià'

Fichte refere a sua versão de filosofia transcendental


como "doutrina da ciência" ( Wissenschaftslehre), que ele
concebe como um aprofundamento e aperfeiçoamento da
filosofia de Kant. Nesta reformulação da filosofia idealista
transcendental, há que ter em conta a influência exercida
sobre Fichte por, sobretudo, dois autores, que se confronta-
vam criticamente com a filosofia de Kant: Karl Leonhard
Reinhold (1758-1823) e Gottlob Ernst Schulze (1761-
-1833). Reinhold era um seguidor de Kant, preocupado
com o estabelecimento da unidade sistemática da filosofia
crítica; Schulze era um defensor do ceticismo humeano
contra as "presunções" da filosofia crítica, tal como esta
aparecia representada na Crítica da Razão Pura de Kant e
na "filosofia elementar" de Reinhold 3 •
Atendo-nos às afirmações de Fichte, contidas, nomea-
damente, na Segunda Introdução à Doutrina da Ciência
(1797) e em correspondência diversa, este teria estabele-
cido, desde 1792, o "Eu" como princípio do seu sistema de
idealismo transcendental. Mas as bases desse sistema, que
ele vem a apresentar em Grundlage der gesammten Wissens-
chaftslehre [Fundamento da doutrina da ciência completa],
obra publicada em Jena e Leipzig em 1794/1795, são, em
grande medida, devedoras da confrontação com as filosofias

3 Cf. , sobrerudo, Karl Leonhard Rein hold, «Neue Darsrellung der Haupr-
momenre der Elemenrarphilosophi e», in : Reinhold, Beytrdge zur Berichtigung bis-
herige Mij?verstdndnisse der Philosophen, vol. I, Jena, 1790, págs. 167-2 54.

IX
de Reinhold e de Schulze: por um lado, Fichte fundamenta
a perspectiva da oposição entre Eu e não-Eu como estru-
tura básica da consciência a partir da crítica à teoria da
faculdade da representação ( Vorstellungsvermogen) apresen-
tada por Reinhold 4; por outro lado, é com base na refuta-
ção dos pontos de vista cépticos de Schulze que Fichte
aprofunda a sua concepção da estrutura originariamente
auto-referencial da consciência e consolida a perspectiva de
que a objectividade é originada integralmente no sujeito 5.
Como é que se insere a natação sobre o Direito natu-
ral no sistema do idealismo transcendental, que Fichte
apresenta como "doutrina da ciência"? Na "terceira secção"
do escrito programático Über den Begriff der Wissenschafts-
lehre oder der sogennanten Philosophie (Weimar, 1794), rela-
tiva a uma "Divisão hipotética da doutrina da ciência",
Fichte propõe a divisão da "doutrina da ciência" numa
"parte teórica", que deve fornecer a forma de todo o conhe-
cimento ou ciência em geral (die Wissenschaft von der Wis-
senschaft überhaupt), e numa "parte prática", que deve com-
preender "um Direito natural e uma Ética (Sittenlehre),
cujos princípios não sejam meramente formais, mas materiais",
para além de "uma nova teoria inteiramente determinada do

4
Cf., sobretudo, Karl Leonhard Reinhold, Versuch einer neuen Theorie des
menschlichen Vorstellungsvermogens, Praga e )ena, 1789. Sobre a explicitação da
estrurura da auroconsciência nesta obra de Reinhold e a sua imporrância para a
evo lução do idealismo pós-kantiano, cf., por rodos, Oieter Henrich, «Die
Anfange der Theorie des Subjekts ( 1789)», in: Axel Honneth, Thomas
McCarrhy, Claus Offe e Albrecht Wellmer (eds.), Zwischenbetrachtungen: fm Pro-
ze.f der Aujkliirung. }ürgen Habermas z um 60. Geburtstag, Francoforre, 1989,
págs. l 06-1 70, maxime págs. 139-159.
5 Cf. a recensão de Fichte, publicada em duas partes no Allgemeine Litera-

tur-Zeitung, de 11 e 12 de fevereiro de 1794, ao livro de Gottlob Ernst Schulze,


Aenesidemus oder über die Fundamente der vom Herrn Prof Reinhold in }ena gelie-
ftrten Elementar-Philosophie. Nebst einer Vertheidigung des Skepticismus gegen die
Anmaassungen der Vernunftkritik, Helmstedt, 1792.

X
agradável, do belo e do sublime, da legalidade da natureza na
sua liberdade, da doutrina de D eus, do denominado senso
comum ou do sentido natural da verdade" . Deste modo, o
Fundamento do Direito Natural segundo os Princípios da
Doutrina da Ciência configura a primeira tratação especial
de Fichte com base nos princípios da "doutrina da ciência",
vindo a ser secundada pela publicação, em 1798, de O Sis-
tema da Ética segundo os Princípios da Doutrina da Ciência.
No entanto, o Fundamento do Direito Natural consti-
tui mais do que a primeira aplicação dos princípios da
"doutrina da ciência": contém, em bom rigor, sobretudo na
"Introdução" e na "Primeira secção", relativa à "Dedução
do conceito de Direito", uma nova apresentação da concep-
ção fichteana de filosofia transcendental. De facto , Fichte
considerava prematura e insatisfatória a apresentação levada
a cabo em Grundlage der gesammten Wissenschaftslehre [Fun-
damento da doutrina da ciência completa], tendo proce-
dido a sucessivas reelaborações da forma de apresentação da
"doutrina da ciência" 6 . Ao "deduzir" o conceito de Direito
como condição da autoconsciência, Fichte unifica numa
teoria transcendental do Eu a teoria transcendental da expe-
riência e a teoria transcendental da liberdade: vejamos, pois,
como Fichte dá cumprimento na sua doutrina filosófica do
Direito ao programa kantiano de "dedução" transcendental
e em que termos é que Fundamento do Direito Natural
segundo os Princípios da Doutrina da Ciência, para além de
uma doutrina filosófica do Direito, expõe as linhas gerais
da concepção fichteana de filosofia transcendental 7 •

6 Cf. , nomeadamente, Versuch eina neuen Darstellung der Wissenscha.fis-

lehre (1 797); Darstellung der Wissenscha.fislehre ( 180 I); Die Wissenscha.fislehre in


ihrem allgemeinen Umrisse (1 8 1O); Die Wissenscha.fislehre (1 8 12); Die Wissens-
cha.fislehre (in ícios de 18 13, incomplera).
7
A lirerarura mais recenre sobre a dourrina fi losó fi ca do Direiro de Fichre
arende, sobrerudo, a esra dimensão de Fundamento do Direito Natttral segundo os

XI
2. A filosofia transcendental como "ciência filosófica real"

A "Introdução" ao livro Fundamento do Direito Natu-


ral segundo os Princípios da Doutrina da Ciência desenvolve-
se em três segmentos: no primeiro, Fichte explica "como se
distingue uma ciência filosófica real de uma mera filosofia de
fórmulas'; no segundo, discorre sobre 'o que tem o Direito
natural, como uma ciência filosófica real, em particular que
proporcionar'; no terceiro, tece considerações "sobre a rela-
ção da presente teoria do Direito com a kantiana".
O que é que significa a caracterização da doutrina filo-
sófica do Direito ou Direito natural como "ciência filosó-
fica real"? Significa, em primeiro lugar, que os princípios e
os conceitos dessa doutrina são conceitos originários da
razão pura, quer dizer, condições necessárias da autocons-
ciência: Fichte procede à "dedução" do conceito de Direito
no quadro da "dedução" transcendental das condições
necessárias da autoconsciência. Mas o conceito de Direito,
enquanto conceito originário da razão pura, não contém
em si a determinação das condições da sua aplicação: a exi-
gência de se ultrapassar uma perspectiva meramente "for-
malista" mediante a aplicação dos princípios transcenden-
tais ao mundo sensível está implícita no conceito de
"ciência filosófica real".
Esse desiderato de uma "ciência filosófica real" é alcan-
çado com base no método "sintético" de demonstração: nos
§§ 1-3 e no§ 4 A e B de Grundlage der gesammten Wissens-
chaftslehre [Fundamento da doutrina da ciência completa],

Princípios da Doutrina da Ciência: nesta linha, cf. , por exem plo, Hansjürgen Yer-
weyen, Recht und Sittlichkeit in ]. G. Fichtes Gesellschaftslehre, Freiburgo/Muni-
que, I 975; Alain Renaur, Le systeme du droit. Philosophie et droit dam Úl pemée de
Fichte, Paris, I 986; Christian Maria Stadler, Freiheit in Gemeimchaft. Zum tram-
zendentalphilosophischen Rechtsbegriffjohann Gottlieb Fichtes, Cuxhaven, 2000.

XII
Fichte tinha exposto com algum pormenor es te método. O
método "sintético" de Fichte tem os seus antecedentes nas
"Antinomias da Razão Pura" da Crítica da Razão Pura de
Kant e antecipa o método dialético de Hegel: o modo de
proceder do método "sintético" de demonstração consiste
na tematização de uma contradição (ou de um círculo
vicioso) implícita num conjunto de princípios ou proposi-
ções e na busca subsequente de um princípio superior (que
não pode ser analiticamente derivado desse conjunto de
princípios ou proposições) capaz de eliminar essa contradi-
ção ou círculo vicioso 8 • A estrutura expositiva e argumenta-
tiva de Fundamento do Direito Natural segundo os Princípios
da Doutrina da Ciência baseia-se no método "sintético" de
demonstração 9 •
No segundo segmento da "Introdução" a Fundamento
do Direito Natural segundo os Princípios da Doutrina da
Ciência, Fichte justifica a autonomização da "dedução" da
lei do Direito (Rechtsgesetz) em relação à lei moral e no ter-
ceiro segmento da "Introdução" apresenta a ideia de que a
necessidade de distinguir a liberdade jurídica "externa" da
liberdade moral interior implica que a categoria normativa
da ciência do Direito natural seja a "permissão" (Erlaubnis),
avançando a interpretação de que essa é a opinião também
perfilhada por Kant, quando, no escrito Para a Paz Perpé-
tua (1795), apresenta o conceito de uma lei permissiva da
razão prática.

8
A este propósito, cf. , por rodos, Reinhard Lauth, «Der Ursprung der
Dialektik in Fichres Philoso phie», in : Reinhard Lamh, Transzendentale Entwic-
klungslinien von Descartes bis M arx und Dostojewski, H amburgo, 1989, págs.
209-226.
9 Cf., por exem plo, o § 19 F, sobre a "dedução" do dinheiro, e o § 20,

sobre o conrraro de expiação (Abbüfungsvertrat), onde o método "sinrérico" de


demonstração é explicitamenre formulado com base na conrraposição enrre uma
"tese, e uma "antítese" .

XIII
No entanto, é, pelo menos, questionável que Kant
assim proceda na "dedução" do conceito de Direito, como
se pode depreender da exposição do seu sistema de filosofia
prática, A Metafisica dos Costumes 10 • Mas Fichte não se
limita (tal como Hufeland, Reinhold, Ludwig Heinrich
Jakob, Theodor Schmalz, Karl Heinrich Heydenreich ou
Paul Johann Anselm Feuerbach) a criticar a "dedução" deôn-
tica (baseada na noção de "dever") do conceito de Direito:
ele apresenta o conceito de Direito como um conceito ori-
ginário da razão pura, como condição necessária da auto-
consciência.
Antes, porém, de passarmos à análise do modo como
Fichte procede à "dedução" do conceito de Direito, vejamos
o que é que na sua versão da filosofia idealista transcenden-
tal, que ele refere como "doutrina da ciência" ( Wissenschafts-
lehre), existe de peculiar em relação à filosofia crítica de
Kant.

3. De Kant a Fichte: a radicalização do idealismo trans-


cendental

A filiação direta da "doutrina da ciência" ( Wissens-


chaftslehre) no idealismo transcendental de Kant é explicita-
mente assumida por Fichte: em Versuch einer neuen Darstel-
lung der Wissenschaftslehre [Ensaio de uma nova exposição
da doutrina da ciência], reitera que "o meu sistema não é
senão o sistema kantiano, quer dizer: contém a mesma visão
das coisas, mas é quanto ao procedimento completamente
independente da apresentação kantiana" 11 ; noutras passagens,

10
Sobre a questão, com maior pormenor, cf. infra, "Notas do tradutor",
notas 9 e 22.
11
Cf. Fichte, Vemtch einer neuen Darstellung der Wissenschaftslehre, GA I,
4, pág. 184.

XIV
afirma a fidelidade do seu sistema não à "letra" (Buchsta-
ben), mas ao "espírito" (Geist) da filosofia de Kant 12 • Esse
espírito consubstancia-se na estruturação da "doutrina da
ciência" ( Wissenschaftslehre) como uma doutrina sistemática
da subjectividade da consciência e na explicitação da sub-
jectividade da consciência como "uma actividade que
retorna a si própria" (eine in sich z urückgehende Tiitigkeit).
A apresentação da ideia de estrutura auto-referencial
da subjectividade como base do sistema do idealismo trans-
cendental tem como ponto de partida o modelo de subjec-
tividade que Kant estabelece na Crítica da Razão Pura,
como referência a si do "Eu" e das suas representações da
relação objetivante da "aperceção" (Apperzeption) transcen-
dental: mas Fichte põe em evidência a inadequação de pen-
sar a autoconsciência da reflexão em termos objetivantes,
como o faziam Kant e Reinhold 13• O mote para a "trans-
formação" fichteana da filosofia de Kant foi dado pela dis-
cussão da formulação de Reinhold da ideia de "proposição
da consciência" (Satz des Bewujtseins) como princípio de
todo o conhecimento: de acordo com Reinhold, " na cons-
ciência, a representação é distinguida pelo sujeito tanto do
sujeito como do objecto e referida a ambos' 14 • Fichte cria um
neologismo, " Tathandlung', para exprimir a unidade sinté-
tica originária da autoconsciência: não é um "facto" ( Tatsa-
che), mas consubstancia a identidade entre o "acto" (Han-
dlung) e o seu "produto" ( Tat) na auto posição absoluta do

12
Cf., po r exemplo, Fichre, Ober den Unterschied des Geistes zmd des
Buchstabens in der Phifosophie (edição de Siegfried Berger), Leipzig, 1924.
13 Sobre a ques tão, cf., por rodos, Dierer H enrich, «Fichres ursprüngliche

Einsicht», in: Dierer Henrich e Hans Wag ner {eds.) , Subjektivitiit und M etaphy-
sik. Festschrift for Wolfiang Cramer, Francoforre, 1966, págs. 188-232.
14
Cf. Karl Leonhard Reinhold, Beytriige z ur Berichtigung bisheriger Mif-
verstiindnisse der Phifosophen, cir., pág. 167.

XV
SUJeito. No § 1 de Grundlage der gesammten Wissenschafts-
lehre [Fundamento da doutrina da ciência completa], apre-
senta esta autoposição absoluta do Eu - "O Eu põe origina-
riamente absolutamente o seu próprio ser" (Das !eh setzt
ursprünglich schlechthin sein eigenes Sein) - como "princípio
primeiro, absolutamente incondicionado" (Erster, schlechthin
unbedingter Grundsatz) de todo o conhecimento 15• A aupo-
sição absoluta do Eu implica a "determinação" (Bestim-
munt) ou "delimitação" (Begrenz unt) do não-Eu. Fichte
projeta, assim, em Grundlage der gesammten Wissenschafts-
lehre [Fundamento da doutrina da ciência completa], um
sistema de idealismo integral, que pretende superar a dico-
tomia kantiana entre a "espontaneidade" do entendimento
e a "receptividade" da sensibilidade na constituição da
"experiêncià', radicalizando a função constituinte da subjec-
tividade caraterística da filosofia idealista transcendental
(v. g. a doutrina kantiana sobre a unidade sintética origi-
nária da "aperceção" transcendental), em termos de uma
"espontaneidade" absoluta ou autoposição (Selbstsetzunt) do
sujeito transcendental.
Fichte situa-se na linha do programa kantiano de
investigação transcendental como indagação sobre as condi-
ções de possibilidade do conhecimento de um objeto em
geral. Mas não restringe a "doutrina da ciência" ( Wissens-
chaftslehre) ao domínio da crítica da razão pura especula-
tiva: em Grundlage der gesammten Wissenschaftslehre [Funda-
mento da doutrina da ciência completa], explicita o
"fundamento do conhecimento teórico" ( Grundlage des
theoretischen Wissens) e o "fundamento da ciência do prá-

15 Numa extensa cana diri gida a Reinhold, datada de 2 de Julho de


1795, Fichte refere esta autoposição absoluta do sujeito como o "coração" de
todo o seu sistema, a "doutrina da ciência" ( Wissenschaftslehre).

XVI
tico" ( Grundlage der Wissenschaft des Praktischen) a partir da
descrição dos actos originários do Eu como autoposição ou
"espontaneidade" absoluta. Por outro lado, Fichte considera
que a filosofia de Kant oferece apenas uma "crítica" da
razão e que a doutrina kantiana da "experiência" (Erfoh-
run!Y carece, se não quiser limitar-se ao estritamente analí-
tico-formal, de uma reelaboração da relação entre as "cate-
gorias" do entendimento e a "faculdade da imaginação"
(Einbildungskraft; .
No entanto, Fichte estava convencido de que a exposi-
ção das bases do sistema do idealismo transcendental que
tinha ensaiado em Grundlage der gesammten Wissenschafts-
lehre [Fundamento da doutrina da ciência completa] era
insatisfatória e menos conseguida do que, por exemplo,
aquela que tinha levado a cabo em Fundamento do Direito
Natura/ 16 • Em consonância com essa assunção de Fichte, os
§§ 1-4 da "Primeira secção" de Fundamento do Direito
Natural, intitulada "Dedução do conceito de Direito", os
seus três teoremas, as suas demonstrações e os seus corolá-
rios, têm sido objecto de uma atenção acrescida em termos
de avaliação do modo como Fichte acaba por estabelecer a
noção de intersubjectividade como condição necessária da
autoconsciência; do mesmo modo, os §§ 5, 6 e 7 têm sub-
jacente o desiderato de Fichte de que a "doutrina da ciên-
cia" ( Wissenschaftslehre) não se confine a uma crítica da
razão, mas projete o próprio sistema do idealismo transcen-
dental.

16
Numa cana dirigida a Friedrich Johannsen, datada de 3 1 de janeiro de
180 I , Fichte assume que as versões até aí publicadas da "doutrin a da ciência"
( Wissenschaftslehre) const ituem ap resentações pouco cl aras das bases do sistema
do idealismo transcendental e aconselha, em alternativa, a leitura dos primeiros
capítulos de Fundamento do Direito NaturaL ( 1796/97) e de O Sistema da Ética
(1798), especialmente os desta última obra.

XVII
Vejamos, então, como é que Fichte procede à "dedu-
ção" da intersubjetividade como condição necessária da
autoconsciência em Fundamento do Direito Natural segundo
os Princípios da Doutrina da Ciência.

4 . A centralidade do conceito de Direito no sistema da


filosofia transcendental de Fichte

A "Introdução" e a "Primeira secção" de Fundamento


do Direito Natural segundo os Princípios da Doutrina da
Ciência contêm, em bom rigor, uma nova exposição das
bases da "doutrina da ciêncià' ( Wíssenschaftslehre) ou, mais
precisamente: a apresentação de uma versão intermédia
entre aquela que foi exposta em Grundlage der gesammten
Wissenschaftslehre (1794/95) e a que virá a ser enunciada
em Wíssenschaftslehre nova methodo (1798/99).
Esta versão da "doutrina da ciência" ( Wissenschaftslehre)
constitui a última obra do período em que Fichte ensinou
em )ena. Costuma ser interpretada como uma dedução
transcendental da intersubjetividade como elemento nuclear
do sistema da filosofia transcendental 17, enquanto "dedução
genética daquilo que se produz na nossa consciência". Mas o
estabelecimento da intersubjectividade como condição
necessária da autoconsciência encontra-se já na "Primeira
secção" de Fundamento do Direito Natural, intitulada
"Dedução do conceito de Direito": no § 1, Fichte começa
por explicitar a autoconsciência como autoposição absoluta;
no § 2, analisa a possibilidade da autoconsciência na base
da relação do ser racional com o mundo; no § 3, prossegue

17 A este propósito, cf. , por todos, lves Radrizzani , Vers la fondation de


l'intersubjectivité chez Fichte. Des Principes a la Nova Methodo, Paris, 1993.

XVIII
esta análise regressiva das condições necessanas da auto-
consciência em termos de necessidade de assumir a existên-
cia de outros seres racionais para além de nós; no § 4,
Fichte "deduz" a relação jurídica (Rechtsverhdltnis) como
condição da individualidade e demonstra que o conceito de
individualidade é um "conceito recíproco" ( Wechselbegriffi .
O conceito de Direito consubstancia, deste modo, uma
ontologia do reconhecimento (AnerkennuniJ intersubjetivo,
situando-se no centro do sistema da filosofia transcendental
de Fichte - não é, portanto, uma mera derivação dos prin-
cípios desse sistema. A relação jurídica constitui a condição
de individualidade, que é, por seu turno, condição da auto-
consciência.
Em suma: o conceito de Direito de Fichte filia-se na
concepção da filosofia do Direito do idealismo alemão do
Direito como sistema relacional de seres livres; a peculiari-
dade do nosso autor consiste em apresentar o conceito de
Direito não como um conceito da filosofia prática, mas em
situá-lo no centro do sistema do idealismo transcendental -
no sistema de Fichte, o conceito de Direito é, como ele diz,
"um conceito origindrio da razão pura", é uma condição
necessária da autoconsciência 18 •
Referida a importância sistemática da "Dedução do
conceito de Direito", apresentada na "Primeira secção", pas-
semos agora à "Segunda secção" de Fundamento do Direito
Natural, relativa à "Dedução da aplicabilidade do conceito
de Direito", quer dizer: à demonstração que o conceito de
Direito é aplicável à experiência e à determinação das con-
dições dessa aplicabilidade 19 •

18
So bre a centralidade do conce ito de D ireito no sistema da filoso fi a
transcendental de Fichte, cf. , por todos, Alexis Philonenko, La liberté humaine
dam la philosophie de Fichte, 2.• edição, Paris, 1990.
19
Alain Renault, Le systeme du droit. Philosophie et droit dam la pemée de
Fichte, cit. , pág. 124 e seg., equipara a fu nção "arquitetónica" de cada uma des-

XLX
5. A demonstração da aplicabilidade do conceito de
Direito

Segundo Fichte, o objeto da ciência do Direito natural


é a relação jurídica (Rechtsverhiiltnis) e a sua realização : a
ciência do Direito natural, como "ciência filosófica real",
inclui a investigação sobre as condições de realização do
conceito de Direito no mundo sensível. É esta investigação
que Fichte leva a cabo nesta "Segunda secção", procedendo
à demonstração da aplicabilidade do conceito de Direito e
à demonstração do âmbito de aplicação do conceito de
Direito (§§ 5, 6 e 7).
O problema da aplicabilidade do conceito de Direito é
o problema da fenomenalização da liberdade no mundo
sensível. Fichte inicia a demonstração da possibilidade de
uma causalidade livre no mundo sensível com base numa
antropologia transcendental, a ideia de duplicidade consti-
tutiva do indivíduo, como "ser do mundo sensível e, ao
mesmo tempo, como ser racional' . A linha argumentativa de
Fichte inspira-se na solução kantiana da terceira antinomia
da razão pura 20 - na demonstração de como pode a liber-
dade ser causa no mundo sensível, que é regido pela lei do
determinismo - e também na 'Malítica da faculdade do
juízo teleológica", onde Kant distingue entre a natureza
inorgânica (desprovida de finalidade e de individualidade),
os produtos organizados da natureza e a individualidade 2 1,

tas duas "secções", respetivamente, à "dedução metafísicà' e à "dedução transcen-


dental" dos conceitos puros do entendimento, que Kant leva a cabo na "Analí-
tica Transcendental" da Critica da Razão Pura: na "dedução metafísica", trata-se
de demonstrar a necessidade do conceito e na "dedução transcendental" que o
conceito é aplicável à experiência e o modo como o é.
°
2
Cf. Kant, Crítica da Razão Pura, A 444 e segs. I B 472 e segs.
21
Cf. Kant, Critica da Faculdade do juízo, maxime §§ 63-68.

XX
procedendo, nessa base, à "dedução" do corpo humano
articulado, como sinal de presença de um "indivíduo racio-
nal" (vernünfiiges Individuum) : o corpo humano articulado
é, simultaneamente, um corpo material e a esfera de ações
livres de uma pessoa.
Com a "dedução" do corpo humano articulado estão
indicadas as condições externas de possibilidade de uma
causalidade livre no mundo sensível. O corpo humano arti-
culado é a "forma" de humanidade, o meio de reconheci-
mento do "outro" como "pessoa": o reconhecimento recí-
proco como pessoa e a vontade comum de subordinação à
lei do Direito (Rechtsgesetz) - que exige que cada um limite
o domínio das suas ações livres pelo conceito de liberdade
de todos os demais - constituem as condições internas da
causalidade livre no mundo sensível.
Demonstrada a aplicabilidade do conceito de Direito,
como fenomenalização da liberdade no mundo sensível, há
que demonstrar o seu âmbito de aplicação: a lei do Direito
(Rechtsgesetz) não é uma lei mecânica, mas uma lei da liber-
dade, pelo que só os seres livres, isto é, as pessoas, é que
estão abrangidas na esfera do Direito. O âmbito de aplica-
ção do conceito de Direito é a esfera das relações interpes-
soals.
"Deduzido" o conceito de Direito e demonstrada a sua
aplicabilidade, como é requerido a uma "ciência filosófica
real", há que prosseguir no sentido de uma "determinação"
(Bestimmung)2 2 ou "aplicação sistemática" do conceito de
Direito: é este o objeto da "Terceira secção" da "Primeira
Parte" de Fundamento do Direito Natural segundo os Princí-
pios da Doutrina da Ciência, intitulada ''Aplicação sistemá-
tica do conceito de Direito ou a doutrina do Direito".

22
"D eterminação" ( Bestimmun~ é a operação lógica inversa da "absrra-
ção": na "determinação", o co nceito é posto em relação com o obj ero - cf. Kant,
Logik (Akademie Textausgabe, vo l. IX), I, § 15, pág. 99 .

XXI
6. A "aplicação sistemáticà' do conceito de Direito

Esta "Terceira secção", com que se conclui a "Primeira


Parte" de Fundamento do Direito Natural segundo os Princí-
pios da Doutrina da Ciência, suscita, desde logo, perplexida-
des sobre o modo como se insere na estrutura expositiva da
obra, quer em relação às duas "secções" precedentes da "Pri-
meira Parte", quer, sobretudo, em termos da sua articulação
com a "Segunda Parte", intitulada Direito Natural aplicado.
A "determinação" (Bestimmunt) ou "aplicação sistemá-
tica" do conceito de Direito equivale a pensar o conceito de
Direito referindo-o ao seu objeto, " uma comunidade entre
seres livres enquanto tais". A ciência do Direito natural,
como "ciência filosófica real", deve garantir a realização de
uma comunidade política baseada na ideia de liberdade
igual de todos os seus membros 23 .
Comecemos com a descrição da estrutura expositiva
desta "Terceira secção" da "Primeira Parte". Esta é, de
longe, a "secção" mais extensa da obra, compreendendo três
capítulos: 1) "Dedução do direito originário"; 2) "Sobre o
direito de coação"; 3) "Do Direito político ou do Direito
numa comunidade política". Fichte procede à caracterização
do "direito originário" (§§ 9-12) a partir da noção do que
Kant chama de "liberdade transcendental", "a faculdade de
ser causa absolutamente primeira" , fazendo incluir no
"direito originário" "o direito à persistência da liberdade abso-
luta e da inviolabilidade do corpo" e "o direito à persistência

23
Fichte alinha aqui co ntra os argumentos hisroricistas na determinação
dos princípios do Direito político (Burke, Rehberg) e defende, tal como Kant, a
continuidade entre teoria e prática, isto é, a determinação puramente racional
dos princípios do Direito políti co: sobre esta discussão , cf. , por todos, Dieter
Henrich (ed.), Kant - Gentz - Rehberg. Ober Theorie und Praxis, Francoforte,
1967.

XXII
da nossa livre influência em todo o mundo sensível' 24 . É neste
contexto que Fichte procede à "dedução" do direito de pro-
priedade (maxime, § 12) , numa linha de pensamento que é
de base individualista-liberal, mas que complementa com
medidas redistributivas na "Segunda Parte" (§§ 18-19) de
Fundamento do Direito Natural segundo os Princípios da
Doutrina da Ciência 25 •
Do conceito de uma causalidade absoluta no mundo
sensível e da sua equivalência com a noção de "direito ori-
ginário" faz Fichte derivar a noção de "direito de coação", a
cuja análise procede nos §§ 13-16, retomando o problema
central da "doutrina do Direiw" (Rechtslehre) de Kant: o
problema da justificação da coerção em termos da sua com-
patibilidade com a liberdade da vontade 26 • A resposta de
Fichte é semelhante à de Kant: o direito de coação tem de
ter como fundamento a violação da autolimitação de um
ser livre, autolimitação que está perfeitamente determinada
pelo conhecimento que o ser livre tem sobre a existência de
outros seres livres para além de si. Fichte aponta, assim, ao
ideal político que Kant, na Crítica da Razão Pura, formu-
lava nos termos seguintes: " Uma Constituição que tenha por
finalidade a máxima liberdade humana, segundo leis que per-
mitam que a liberdade de cada um possa coexistir com a de
todos os outros" 27 . O problema do Direito consubstancia-
se, na filosofia do Direito de Kant e de Fichte, na indaga-

24
Cf. in.fra, pág. 142.
25 Linha de pensamenro de que Fichre vem subsrancialmenre a afasrar-se
em Der geschlossene Hantklstaat [O Esrado Comercial Fechado], de 1800, e em
System der Rechtslehre [S isrema da Oourrina do Direiro], de 18 12.
26
Cf. Ka nr, A Metafisica dos Costumes, "lnrrodução à Oourrina do
D ireiro", § E: "O Direi ro esrriro pode rambém ser represenrado como a possibi-
lidade de um a coerção recíproca universal em consonância com a liberdade de
cada um segundo leis universais".
27
Cf. Kanr, Crítica da Razão Pura, A 3 16/ B 373.

XXIII
ção sobre as condições de possibilidade de coexistência das
liberdades individuais.
A estrutura expositiva desta "Primeira Parte" conduz à
formulação de uma doutrina do Direito político, configu-
rada "arquitetonicamente" como "determinação" (Bestim-
mung) ou "aplicação sistemáticà' do conceito de Direito: é,
pois, com a indicação da "formà' de uma comunidade polí-
tica em que cada um dos seus membros consiga ver assegu-
rado o respeito pela sua liberdade individual que se conclui
a "Primeira Parte" de Fundamento do Direito Natural
segundo os Princípios da Doutrina da Ciência.

7 . O " Direito natural aplicado": "aplicação" e "esquema-


tismo"

A doutrina do Direito natural funda-se nos puros


princípios da razão, vale dizer, é puramente a priori, pelo
que não pode prescindir de uma teoria sobre a optimização
das condições de aplicação dos seus princípios. Como é que
Fichte configura em Fundamento Natural segundo os Princí-
pios da Ciência este processo de "distensão" do racional em
direção ao empírico? A propósito da relação sistemática
entre a "Terceira secção" da "Primeira Parte" e a "Segunda
Parte" ou Direito Natural aplicado, Fichte limita-se a dizer
que aquela "prepara" esta outra. Como é que Fichte confi-
gura, então, o problema da "aplicação"?
A preocupação da "doutrina da ciêncià' ( Wissenschafts-
lehre) é a saída do estritamente apriorístico-formal. O
método "sintético", caraterístico de uma "ciência filosófica
real", recorre à "faculdade da imaginação" (Einbildungs-
kraftJ, que permite a representação dos conceitos na intui-
ção, ultrapassando, com isso, os limites do pensamento
lógico-concetual ou discursivo: a imaginação permite proje-

XXIV
tar o conjunto de determinações e reconciliar os termos ini-
cialmente contrapostos, numa verdadeira síntese "real" 28 .
Nesta sua proposta de ultrapassagem do abstrato-formal
em relação ao concreto, Fichte propõe a complementação
da doutrina kantiana das "categorias" com a "faculdade da
imaginação" (Einbildungskra.fiJ, alargando, assim, a conce-
ção kantiana de "experiência" (Erfahrung) . Diz Fichte:
"Kant, que foz gerar originariamente as categorias como for-
mas de pensamento, o que, do seu ponto de vista, tem plena-
mente razão de ser, tem necessidade dos esquemas p rojetados
pela imaginação para tornar possível a aplicação das categorias
a objetos", explicando o nosso autor que na "doutrina da
ciência, as categorias surgem no próprio âmbito da faculdade
da imaginação, simultaneamente com o objeto e apenas para
o tornar possível' 29 .
Aliás, Fichte criticava nos kantianos ortodoxos (v. g.
Carl Christian Erhard Schmid) o facto de não se darem
conta do alcance da teoria kantiana do "esquematismo" e,
por isso, se deixarem aprisionar nO' apriorismo dos concei-
tos formais , como é sina de uma "ciência filosófica for-

28
No § 16, na "Terceira secção" da "Primeira Parte", Fichte procede à
fi guração sintética do conceito de "comunidade política" (gemeines Wésen) recor-
rendo à imagem de "árvo re", para explicitar que a "comunidade política" (gemei-
nes Wésen) não é uma simples agregação de indivíduos - inspira-se aqu i, de
modo evidente, nas considerações que Kant tece nos §§ 64-65 da Crítica da
Faculdade do j uízo sobre a autonom ia relativa das partes face ao todo que é co ns-
tatável no m undo das pl antas como "produtos organizados da natureza". Es ta
fi guração sintética dá nota de que a conceção de "com unidade política" (gemeines
Wésen) que perfilh a não é a de um puro individual ismo associacionista, sem, em
contrapartida, defender as posições "organicistas" que virão a caracterizar o seu
pensa mento po líti co ulterio r, exp ressas, sob retudo, em O Estado ComerciaL
Fechado, de 1800.
29
Cf. Fichte, Grnndri_ des EigentümLichen der WissemchaftsLehre in Rück-
sicht auf das theoretische Vermogen [Com pê nd io do es pecífi co da doutrin a da
ciência em relação á faculdade teórica], Jena e Leipzig, 1795, GA I, 3, pág. 189.

XXV
mal" 30 • Se compreendermos esta problemática da "aplica-
ção" a partir da reconfiguração fichteana da teoria kantiana
do "esquematismo", somos levados a concluir que a estru-
tura sistemática de Fundamento do Direito Natural segundo
os Princípios da Doutrina da Ciência é determinada pela
própria conceção do sistema da filosofia transcendental 31 •
Uma vez que não cabe à filosofia transcendental,
mesmo que entendida ao jeito fichteano como "ciência filo-
sófica real", apresentar as determinações factuais da existên-
cia empírica e sendo a doutrina do Direito puramente a
priori, há que problematizar a adequação da doutrina do
Direito à situação empírica concreta: no sistema de Fichte,
essa função mediadora cabe à Política.

8. Direito e Política sob o ponto de vista da filosofia


transcendental

A relação entre o ponto de vista transcendental e o


ponto de vista empírico na constituição do saber humano é
abordada em vários escritos de Fichte. Na "Quarta lição" de
Einige Vorlesungen über die Bestimmung des Gelehrten
(1794) , Fichte procede à distinção entre três tipos de
conhecimento - o filosófico, o filosófico-histórico e o sim-
plesmente histórico: o conhecimento do primeiro tipo
funda-se em princípios puros da razão; no conhecimento
filosófico-histórico, há que "referir os fins que só se podem
conhecer filosoficamente aos objetos dados na experiência para
poder julgar os últimos como meios de alcançar os primeiros";

3° Cf. Fichte, <


<Vergleichung des vom Herrn Prof. Schmid aufgestellten
Systems mit der Wissenschaftslehre» (1795), GA I, 3, págs. 235-266.
31 Neste sentido, cf. Alain Renaut, Le systeme du droit. Philosophie et droit

dam la pemée de Fichte, cit., maxime pág. 419.

XXVI
por fim, o conhecimento histórico opera num plano pura-
mente empírico 32 . Em Der geschlossene Handelsstaat [0
Estado Comercial Fechado] usa esta tripartição para proce-
der à delimitação das esferas do Direito, da Política e da
História, tripartição a que obedece a estrutura expositiva da
obra, definindo a Política como a ciência à qual incumbe a
mediação entre o Estado real e o Estado racional. A Política
é, portanto, uma ciência filosófico-histórica.
Ao conceber a Política como ciência filosófico-histó-
rica, Fichte está, por um lado, a contrapor-se à linha de
pensamento identificada com Maquiavel (1469-1527), que
entende a Política como "arte" de manutenção e acréscimo
do poder 33 , e ao entendimento "prudencial" da ação polí-
tica que estava na base da conceção "eudemonistà' sobre os
fins do Estado, conceção que na Alemanha da época refletia
o programa político do despotismo esclarecido 34 • Fichte ali-
nhava aqui com os propósitos de uma fundamentação

32
Cf. Fichte, Einige Vorlesungen über die Bestimmung des Gelehrten, GAI,
3, pág. 53. A distinção segue a contraposição kantiana entre conhecimen to
racional (cognitio ex principiis) e con hecimento em pírico (cognitio ex datis): cf.
Kant, Crítica da Razão Pura, A 836/B 864.
33 Apesar de em diversos dos seus escritos ulteriores se assistir a uma certa

"maquiavelização" do seu pensamento político, com uma atenuação do cosmo-


politismo liberal de raiz kantiana, num momento em que a preocupação essen-
cial de Fichte é a preservação da independência nacional, ameaçada pela aven-
tura napoleónica: cf., sobretudo, os escritos Über Machiavelli als Schrifiteller
[Sob re Maquiavel como escritor], de 1807, e Reden an die deutsche Nation [Dis-
cursos à nação alemã], de 1808.
34
Deve-se a Gottfried Achenwall (1 7 19- 1772), o mais ilustre dos juristas
wolffianos, a exposição paradigmática desta conceção, no livro com o título elu-
cidativo Die Staatsklugheit nach ihrem ersten Grundslitze, Gotti ngen, 176 1. Em
Um Discurso em Reclamação da Liberdade de Pensamento aos Prlncipes da Europa,
que até aqui a reprimiram (1793), Fich te denuncia esta concepção "eudemonista"
sobre os fins dos Estado, "o princípio de que a missão do príncipe é velar pela nossa
felicidade", como a "fonte venenosa de toda a nossa miséria", a que se deve, por-
tanto , declarar "a guerra mais intransigente".

XXVII
racional do Direito político, de que, à época, eram paladi-
nos autores como Kant (1724-1804), Gotdieb Hufeland
(1760-1817), Theodor Schmalz (1760-1831) ou Johann
Benjamin Erhard (1766-1827), propósitos esses que consis-
tiam na liquidação do Antigo Regime.
Além disso, a colocação da Política no horizonte da
filosofia transcendental visava combater o "empirismo" polí-
tico e o modelo de desenvolvimento constitucional gra-
dualista e orgânico defendido por Edmund Burke (1729-
-1797) e, em solo alemão, sobretudo, por August Wilhelm
Rehberg (1757-1830): em bom rigor, Rehberg não era um
adversário do racionalismo ético e político, aceitando a
determinação pela razão das máximas da ação; o que ele
questionava na filosofia kantiana era a possibilidade de infe-
rir diretamente dessas máximas os deveres específicos no
mundo concreto, ou seja, Rehberg punha em causa a pre-
tensão kantiana de que a razão pura pode ser prática 35 . Era
essa a base filosófica em que Rehberg fazia assentar a reje~­
ção da experiência revolucionária francesa, documentada
nas suas Untersuchungen über die Franzosische Revolution
[Investigações sobre a revolução francesa], escrito a que
Fichte contrapõe, nesse mesmo ano de 1793, Beitrag zur
Berichtigung der Urtheile des Publicums über die franzosische
Revolution [Contribuição para a correção dos juízos do
público sobre a revolução francesa].
Neste seu escrito, Fichte mantém-se muito próximo da
concetualização kantiana no que diz respeito à invocação da
autoridade da razão para justificar o programa de reforma

35 A este propósito, cf, sob retudo, A. W. Rehberg, << Rezension der "Kritik

der praktischen Vernunfr", , recensão originariamente publicada na revista fil osó-


fi ca Allgemeine Literatur-Zeitung, de 6 de Agosto de 1788, agora in : Rüdiger
Bittner/ Konrad Cramer (eds.) , Materialien zu Kants " Kritik der praktischen Ver-
nunft', Francofo rte, 1975, págs. 179-196.

XXVIII
social e política. Além disso, em Fundamento do Direito
Natural segundo os Princípios da Doutrina da Ciência, pro-
cede a uma definição da Política que é muito semelhante à
conceção kantiana 36 , quando diz: "a ciência que tem que ver
com um Estado particular, determinado por caraterísticas con-
tingentes (empíricas), e que considera qual é a maneira mais
conveniente de nele realizar a lei do D ireito chama-se
Política" 37 • No entanto, a solução que apresenta em Funda-
mento do Direito Natural para a problemática de como é
possível a realização do Direiro no mundo sensível é dis-
tinta da resposta kantiana, que é configurada no quadro de
uma filosofia da História, assente na hipótese racional do
estabelecimento universal do Direito como organização
"republicana" do Estado e, finalmente, como organização
"cosmopolita" da Humanidade 38 : a solução de Fichte é pen-
sada a partir do seu sistema do idealismo transcendental, a
"doutrina da ciência" ( Wissenschaftslehre), por via da "aplica-
ção sistemática" ou "determinação" (Bestimmun~ do con-
ceito de Direito, num primeiro nível e por via da "aplicação
empírica", num segundo nível: é este último nível de deter-
minação do conceito de Direito que incumbe à Política,
como ciência filosófico-histórica.
Vejamos, então, como é que a exigência de continui-
dade entre a ciência "pura" que é a doutrina do Direito e a
ciência aplicada que é a Política encontra expressão na
construção contratualista do Estado que Fichte apresenta na
"Segunda Parte" de Fundamento do Direito Natural segundo
os Princípios da Doutrina da Ciência.

36 Sobre a conceção kantiana da Política como "exercitação" da doutrina

do Direito, cf., por todos, Volker Gehrardt, «Ausübende Rechtslehre. Kants


Begriff der Politik», in: Gehrard Schonrich e Yasushi Kato (eds.) , Kant in der
Diskussion der Moderne, Francoforte, 1996, págs. 464-488.
37
Cf. infra, pág. 341.
38
Cf., sobretudo, Kant, Idee zu einer allgemeine Geschichte in weltbürgerli-
cher Absicht (Akademie Textausgabe, vol. VIII).

XXIX
9. A construção contratualista da comunidade política

No § 8, que abre a "Terceira secção" da Primeira


Parte", intitulada ''Aplicação sistemática do conceito de
Direito ou a doutrina do Direito", Fichte recorre ao método
"sintético" de demonstração para resolver a antinomia entre
liberdade individual e autoridade política (cf. infra, pág.
122 e segs.), remetendo para a "dedução" do conceito de
"comunidade política" (§ 16) a indicação da "forma"
segundo a qual essa comunidade deve ser configurada, de
modo a que os cidadãos possam ver garantidas e garantir-se
reciprocamente as liberdades. No § 17, já na "Segunda
Parte" ou Direito Natural aplicado, propõe-se a "esquemati-
zação" deste conceito de "comunidade política" por via da
análise do "contrato de cidadania" (Staatsbürgervertrar).
O contrato de cidadania (Staatsbürgervertrar) apresenta
uma estrutura que consiste em três contratos parciais: t) o
contrato de propriedade (Eigentumsvertrar); it) o contrato
de proteção (Schutzvertrar); iit) o contrato de união (Verei-
nigungsvertrar). À primeira vista, a estrutura do contrato de
cidadania parece refletir a antiga tradição contratualista de
divisão entre um pactum unionis e um pactum subjectionis,
mas não é assim: nem Fichte usa o argumento da saída do
estado de natureza pré-político, mediado por um pactum
unionis 39 , nem aceita a ideia da teoria absolutista do Estado
de um pactum subjectionis, concebido como uma delegação
de poderes irrevogável na pessoa do soberano 40 .

39
Referido com designações diversas na tradição com rarualisra: para uma
visão geral, cf., por rodos, Wolfgang Kersring, «Verrrag, Gesellschafrsverrrag,
Herrschafrsverrrag>>, in: Orro Brunner, Werner Conze e Reinharr Koselleck
(eds.), Geschichtliche Grundbegrijfe. Historisches Lexikon zur politisch-sozialen
Sprache in Deutschland, vol. 6, Estugarda, 1990, págs. 90 1-945 .
40
Ainda nos finai s do século XVIII, Johann Augusr Eberhard (I 739-
-1809), conhecido porra-voz da filosofia wolffiana e membro do círculo da

XXX
A construção contratualista de Fichte constitui como
que uma "sensificação" do conceito de relação jurídica
(Rechtsverhdltnis) e representa uma conceção sobre o funda-
mento de legitimidade da autoridade estadual de cariz
democrático-republicano. Isto não significa, porém, que
Fichte baseia a sua construção em premissas individualistas:
quando procede à análise do tipo de vínculo que liga os
membros da comunidade política, refere que a comunidade
política não pode ser visualizada como um compositum, mas
como um totum (cf. infra, pág. 241); Fichte acrescenta que,
se concebermos a vontade coletiva como simples soma agre-
gada de vontades individuais, obtemos uma unificação que
é meramente "arbitrária" - recorrendo àquilo que Kant
refere como "representações figuradas" (bildliche Vorstellun-
gen), cuja função é conferir aos nossos conceitos sentido e
significação ( Sinn und Bedeutung) 41 , e inspirando-se nas
considerações que Kant tece nos §§ 64-65 da Crítica da
Faculdade do juízo sobre a autonomia relativa das partes em
relação ao todo que é constatável nos elementos do mundo
vegetal, como "produtos organizados da naturezà', o nosso
autor recorre à imagem de "árvore" como a imagem mais
apropriada para ajudar à inteleção da natureza deste vínculo
(cf. infra, pág. 241).
A metáfora "organicista" a que recorre não significa,
porém, a diluição da esfera própria da individualidade:
Fichte rejeita explicitamente (cf. infra, pág. 243) a exigência
de Rousseau (1712-1778) de "aliénation to tale de chaque

Aujkldrung berlinense, opinava a propósiro da irrevogabilidade do contrato de


submissão, que: " Tão logo esse contrato seja celebrado, o direito de exercício da sobe-
rania pertence exclusivamente àquele a quem foi trammitido" - cf. J. A. Eberhard,
Über Staats- Veifassungen und ihre Verbesserung, Berlim, 1783, pág. 107.
41
Cf. Kant, Was heift: sich im Denken orientiren? (Akademie Textausgabe,
vol. VIII), pág. 133.

XXXI
associé avec tous ses droits à toute la communautê'. Em suma:
a construção contratualista de Fichte, baseada numa estru-
tura triádica do contrato, não tem que ver com o contra-
tualismo pré-kantiano, associado, ainda, a uma conceção
"eudemonista" sobre os fins do Estado; mas, por outro
lado, a construção que apresenta em Fundamento do Direito
Natural segundo os Princípios da Doutrina da Ciência não
exprime pontos de vista individualistas, representando, a
este propósito, uma alteração muito pronunciada em rela-
ção às teses desenvolvidas, cerca de três anos antes, em
Contribuição para a Correção dos juízos do Público sobre a
Revolução Francesa. A discrepância entre as posições é,
sobremaneira, visível a propósito da fundamentação do
direito de propriedade.

10. A teoria da propriedade

Em Fundamento do Direito Natural segundo os Princí-


pios da Doutrina da Ciência, Fichte começa por discutir o
fundamento do direito de propriedade a propósito da ''Aná-
lise do direito originário" (§ 11), definindo o direito de
propriedade como a submissão de algo aos nossos fins (cf
infta, pág. 140). O desenvolvimento da teoria da proprie-
dade tem lugar nos §§ 18 e 19, na "Segunda Parte" ou
Direito Natural aplicado.
No § 18, o nosso autor discorre "sobre o espírito do
contrato civil ou de propriedade", que constitui a primeira
parte do contrato político (Staatsvertrag) ou de cidadania
(Staatsbürgervertrag), e volta a expor a sua tese sobre o fun-
damento do direito de propriedade. Esta tese diverge de
tudo aquilo que Fichte tinha dito a propósito do funda-
mento do direito de propriedade em Contribuição para a
Correção dos juízos do Público sobre a Revoluçãn Francesa,

XXXII
onde defendia uma teoria da propriedade baseada na "for-
mação" ou no trabalho, que parecia refletir as posições que
John Locke (1632-1704) apresentava no capítulo V do
Second Treatise of Government (1689-90). Nesse escrito,
Fichte admitia a ideia de possibilidade da propriedade no
estado de natureza, ideia que agora rejeita.
Qual a razão de uma tão profunda alteração das teses
sobre a propriedade em tão cuno espaço de tempo? Alexis
Philonenko argumenta que a teoria da propriedade desen-
volvida em 1793 visava contradizer as posições de August
Wilhelm Rehberg (1757 -1830) sustentadas em Investigações
sobre a Revolução Francesa 42 • Nesta "Segunda Parte" de Fun-
damento do Direito Natural, Fichte afasta-se da ideia de
possibilidade da propriedade no estado de natureza, defen-
dendo que esta só é possível na decorrência de um "contrato
de propriedade" (Eigentumsvertrar) , como elemento do con-
trato de cidadania (Staatsbürgervertrar) - diz Fichte: "No
contrato de propriedade é atribuída com caráter de exclusivi-
dade a cada indivíduo uma parte determinada do mundo sen-
sível como esfera da sua interação; e esta parte do mundo sen-
sível está garantida a cada indivíduo sob duas condições: que
ele não p erturbe a responsabilidade de todos os demais nas suas
esferas respetivas e que ajude a protegê-las com a sua contribui-
ção no caso de estas virem a ser agredidas por um terceiro '"~ 3 .
É plausível que a nova teoria da propriedade apresen-
tada em Fundamento do Direito Natural tenha, em grande
medida, resultado da influência exercida sobre Fichte por
Johann Benjamin Erhard (1766-1827) 44 : na recensão que

42
Cf. Alex is Philo nenko, Théo rie et praxis dam la pemée mora/e et politi-
que de Kant et de Fichte en 1793, Paris, 1968, maxime §§ 76 e segs.
43
C f. infra, pág. 25 1.
44
A hipótese é suscitada po r Ri chard Scho rrky, Untersuchungen z ur
Geschichte der staatsphilosophischen Vertragstheorie im 17. und 18. j ahrhundert
(Hobbes- Locke - Rousseau - Fichte) , Muni que, 1962, maxime pág. 2 16 e segs.

XXXIII
publica, sem indicação do autor, a Contribuição para a Cor-
reção dos juízos do Público sobre a Revolução Francesa, no
Philosophisches journal einer Gesellschaft Teutscher Gelehrten,
dirigido por Friedrich lmmanuel Niethammer (1766-
1848), Erhard rejei ta a teoria d a "formação", defendendo
que o direito de apropriação (Zueign ungsrecht) tem como
fundam ento a necessidade (Bedürfnis) e que a legitimidade
da propriedade não pode ser reportada a um momento
anterior à exis tência do contrato civil 45 . Erhard, que comun-
gava da m esma sensibi lidade progressista de Fichte, veio,
assim, dar ao nosso autor as pistas fundamentais para a
reformulação da sua teoria da propriedade.
Pode criar-se a impressão que uma teoria da proprie-
dade que funcionaliza parcialmente a distribuição dos bens
ao "poder viver" (cf § 18) dá expressão a um ideário socia-
lista, que muitos vêem reafirmado e reforçado em obras
ulteriores, como o Estado Comercial Fechado (1804) e Traços
Fundamentais da Era Atual ( 1806). Mas parece estar mais
em sintonia com o seu tempo histórico interpretar a defesa
por Erhard e por Fichte de um direito ao trabalho e à assis-
tência como representando, mais do que uma antecipação
das ideias socialistas, uma consonância com os pontos de
vista de Robespierre (1 7 58-1 794) e dos "jacobinos" 46 •
No § 19, Fichte procede à "Aplicação completa dos
princípios estabelecidos sobre a propriedade", onde, entre

45 Cf. Johann Benj am in Erhard, «Recension: Beitrag zur Berichtigung der


Urrheile des Publikums über die franziisische Revolution .. , in: Philosophisches
journal einer Cesellschaft Teutscher Celehrten, vol. l (1 795), págs. 47-84.
46
Esta consonância é visível, no que ao direito de propriedade diz res-
peito, por exemplo, no are. 2 1. 0 da Declaração dos direitos do homem e do cida-
diío, de 24 de Junho de 1793, "Preâmbulo" à Constituição jacobina do Ano I:
"Les secours publics sont une dette sacrée. La societé doit la subsistance aux citoyem
malheureux, soit en leur procurant du travai!, soit en asmrant les moyem d'exister à
ceux qui sont hors d 'état de travailla':

XXXIV
outras coisas, estabelece o critério para a divisão das profis-
sões a partir da ideia de uma progressão da "natureza" em
direção à "liberdade": neste plano, parece, contudo, mover-
se ainda no quadro de conceções económicas fisiocratas.
Em termos gerais, porém, a construção contratualista de
Fichte em geral e as conceções sobre o direito de proprie-
dade apresentadas em Fundamento do Direito Natural
segundo os Princípios da Doutrina da Ciência constituem a
expressão do racionalismo político da Revolução.
Seguindo a estrutura expositiva do texto, vejamos
como esses propósitos encontram acolhimento na teoria da
pena criminal de Fichte.

11 . A teoria da pena criminal

Fiche abre o § 20 com uma definição de "crime"


como violação do contrato social ou de cidadania (cf. infra,
pág. 310). Esta definição está em consonância com a defi-
nição de "relação jurídica" (Rechtsverhdltnis) como determi-
nada pela proposição: "que cada um limite a sua liberdade
pela possibilidade de liberdade do outro" (cf. infra, pág. 144).
É, pois, a partir da definição do conceito de Direito como
ordem de coexistência das liberdades individuais e no qua-
dro de uma conceção contratualista sobre o fundamento
da autoridade política que Fichte procede à definição do
conceito de "crime" e apresenta a sua teoria da pena cri-
minal.
Uma vez que Fichte não "deduz" o conceito de Direito
a partir da lei moral, o imperativo categórico - como o
fazem Kant e os juristas kantianos ortodoxos -, a sua crítica
ao retriburivismo de Kant é, em termos de pressuposições
filosóficas, absolutamente plausível: Fichte rejeita (cf. infra,
pág. 336) o " Direito penal absoluto, segundo o qual a pena

XXXV
judicial deve ser considerada não como um meio, mas como
constituindo ela própria um fim e deve fundar-se num impera-
tivo categórico inquestiondvel', conceção cuja defesa ele assi-
nala nos escritos dos seus contemporâneos Kant (1 724-
-1804) e Ludwig Heinrich Jakob (1759-1827). Ora, não
estando Fichte, pelos pressupostos de que parte, vinculado
à defesa de uma conceção retributiva da pena criminal, qual
é a teoria sobre os fins das penas que apresenta? O seu pen-
samento contém elementos de prevenção, de retribuição e,
sobretudo, de reabilitação ou correção: Fichte sublinha que
o problema da justificação da pena criminal é um problema
jurídico e não um problema moral, apelando aqui às teses
de Beccaria (1738-1794) e apontando a uma linha de pen-
samento que é de prevenção geral (cf. infra, pág. 337 e
segs.); mas na fixação da medida da pena concreta admite
critérios de retribuição (cf. infra, pág. 313 e segs.), sendo a
execução da pena pautada por uma filosofia de prevenção
especial e de ressocialização 47 •
A filosofia penal de Fichte é, toda ela, orientada por
uma conceção contratualista e pela assunção de que o cri-
minoso, como pessoa, é titular de direitos: esta perspetiva
subjaz ao modo como Fichte procede à "dedução" do "con-
trato de expiação" (Abbü.fungsvertrasO, recorrendo, uma vez
mais, ao método "sintético" de demonstração. A teoria da
pena criminal de Fichte e a sua posição sobre a pena de
morte refletem mais genuinamente a humanização do
ambiente penal promovida pela cultura iluminista do que a
reflexão jurídico-penal de Kant, sem dúvida a parte menos
conseguida da sua filosofia do Direito.

47
Sobre a conveniência de uma teoria mista, que propicie a combinação
das exigências do Estado de Direito com uma prevenção especial ressocializante,
cf., na ciência do Direito penal arual, por rodos, Claus Roxin, Problemas Funda~
mentais do Direito Penal, Lisboa, 2004.

XXXVI
Foi essa humanização que inspirou o nascimento da
ciência do Direito penal moderna, que, na Alemanha, se
deveu, sobretudo, ao mais insigne dos juristas kantianos,
Paul Johann Anselm Feuerbach (1 755-1833) 48 , que aplicou
de modo mais consequente do que o que tinha feito Kant
os princípios da filosofia crítica a esse domínio específico.
Nessa linha de orientação, que preside ao nascimento da
ciência do Direito penal moderna na Alemanha, haveria
que referir, entre outros, também Karl Christian Friedrich
Krause (1781-1832), que, na sua filosofia penal se apoia
em muitos dos argumentos avançados por Fichte em Fun-
damento do Direito Natura4 nomeadamente a crítica ao
retributivismo e a defesa de uma filosofia de ressocialização,
bem como na tese da inviolabilidade do corpo, desenvol-
vida por Fichte no contexto da "dedução" da individuali-
dade (§ 5), para defender a proscrição da pena de morte e
dos castigos corporais 49 •
Mais problemático, porém, é ajuizar sobre o modelo
de Constituição que Fichte propõe, questão que ele, num
primeiro momento (§ 16), formula em termos de constru-
ção contratualista da comunidade política, de acordo com
os princípios do Direito natural puro, passando, num
segundo momento (§ 21), à determinação particular dessa
Constituição, "a única Constituição conforme ao Direito" (cf
infra, pág. 341) .

48
Sobre a importância de P. J. A. Feuerbach para a ciência do Direito
penal moderna, cf. , por todos, Luís G reco, Lebendiges tmd Totes in Feuerbachs
Straftheorie. Ein Beitrag zur gegenwiirtigen strafrechtlichen Grundlagendiskussion,
Berlim , 2009.
49
C f. Karl C hris[i an Friedrich Krause, Grundlage des Naturrechts oder
philosophischer Grundrif des Ideais des Rechts, Jena, 1803.

XXXVII
12. As disposições da Constituição

Efetuada a determinação a priori e a investigação sobre


as condições de realização da Constituição no mundo sensí-
vel(§§ 16 e 17), a consideração sobre as circunstâncias par-
ticulares que podem ser atendidas na formatação concreta
da Constituição cabe a uma ciência que é independente de
uma doutrina do Direito pura ou transcendental - a Polí-
tica (cf. infra, pág. 341). No § 21 , Fichte enuncia algumas
das questões que se podem suscitar a propósito da determi-
nação particular da Constituição conforme ao Direito e
leva a cabo a única investigação que restava fazer a uma
doutrina pura do Direito - a investigação sobre "a polícia-
sobre a sua natureza, os seus deveres e os seus Limites" 50 .
O mais importante a sublinhar a este propósito é que
Fichte se aproxima do conceito material moderno de "polí-
cia", que vem a ser consolidado na juspublicística liberal
das primeiras décadas do século XIX (Aretin, von Rotteck,
etc.), orientado a funções de proteção e segurança e de asse-
guramento do cumprimento das leis 51 • Com isso, o nosso
autor apresenta uma teoria constitucional em que é elimi-
nada a conceção "eudemonista" sobre os fins do Estado,
conceção a que estava adstrita a noção de "polícia" como
conjunto de atividades de fomento do bem-estar coletivo 52 .
Claro está que o modo alargado como Fichte admite
os poderes de inspeção e vigilância indiciam uma visão que
é, de certa maneira, a de um Estado policial. Por outro

:;o Cf. infra, pág. 347.


51
Cf. infra, maxime pág. 348 e pág. 357.
52 Sobre a evolução semântica de "polícia", cf., por rodos, Franz-Ludwig

Knem eye r, «Polizei», in: Otto Brunner, Werner Conze e Reinhart Koselleck
{eds.), Ceschichtliche Crundbegri./fo. Historisches Lexikon sur politisch-sozialen Spra-
che in Deutschland, vol. 4, Estugarda, 1978, págs. 875-897.

XXXVIII
lado, o "eforato", como instituição de supervisão da ativi-
dade do poder executivo constitui, em termos de solução
para o problema da limitação do poder político, um "remé-
dio" alternativo à doutrina da separação dos poderes. Mas,
nem por isso, deixa Fichte de se inserir na linha geral do
constitucionalismo racionalista: em bom rigor, o modelo de
Constituição do Estado racional apresentado em Funda-
mento do Direito Natural segundo os Princípios da Doutrina
da Ciência está em sintonia com a experiência da Conven-
ção e da Constituição de 1793, da França revolucionária.
Fichte estava ainda longe das posições que veio a expressar
mais tarde, por exemplo, em Sobre Maquiavel como Escritor
(1807) , onde procedia à denúncia da tentativa de funda-
mentação do Estado na doutrina individualista dos direitos
do homem.

13. O Direito da família

Fichte acrescenta à sua doutrina do Direito um "pri-


meiro apêndice", o Compêndio do Direito da Família. Tanto
a problemática do casamento como a da filiação, sobretudo
a primeira, exprimem uma visão e uma mentalidade tradi-
cionais, não se revestindo estas abordagens de um interesse
especial.
Fichte começa por afirmar (cf infra, pág. 363) que "o
casamento não é uma mera associação jurídica, como é o
Estado; é uma associação natural e moral'; nessa conformi-
dade, procede a uma "dedução" das relações entre os sexos
em que a subordinação da mulher ao impulso sexual mas-
culino é justificada pela natureza e pela razão, não em
resultado de processos culturais de socialização: em bom
rigor, Fichte procede a uma "dedução" transcendental dessa
subordinação (cf. § 3), com base na distinção entre "espon-

XXXIX
taneidade" e "recetividade", como caratensttcas, respetiva-
mente, dos sexos masculino e feminino - o que tornaria
contrário à razão o sexo feminino propor-se como fim a
satisfação do impulso sexual.
O Direito matrimonial obedece a essa mesma visão
tradicionalista, nomeadamente no que diz respeito ao
regime de bens e às consequências do adultério, exceto
num ponto, que convém sublinhar: a afirmação reiterada
de que o casamento se baseia numa união de afetos. Já no
tocante à educação e ao desempenho de cargos públicos por
parte das mulheres, afirma-se, de novo, a mesma visão tra-
dicionalista (cf. a terceira secção).
Sobre a filiação (a quarta secção do Compêndio do
Direito da Família), Fichte rejeita que a relação entre pais e
filhos se possa equiparar a uma relação de propriedade, vol-
tando a contestar a tese de Locke sobre o fundamento do
direito de propriedade (§ 39), e afirma que o poder dos
pais sobre os filhos se funda exclusivamente no dever dos
pais de educarem os filhos (§ 53). A este propósito, é inte-
ressante sublinhar que ele vê a família como o contexto
natural para a educação dos futuros cidadãos nas virtudes
cívicas, conceção de que vem a afastar-se em Traços Funda-
mentais da Era Atual ( 1806).

14. O Direito internacional

Como "segundo apêndice" à sua doutrina do Direito,


Fichte propõe-se apresentar um Compêndio do Direito das
Gentes e do Direito Cosmopolita (cf. in.fra, pág. 443 e segs.)
A tonalidade geral é muito semelhante à do pensamento de
Kant: Fichte tinha publicado no fascículo de janeiro de
1796 do Philosophisches journal einer Gesellschaft Teutscher
Gelehrten uma recensão ao opúsculo de Kant Para a Paz

XL
Perpétua, que tinha sido dada à estampa no outono de
1795, na editora de Friedrich Nicolovius, em Konigsberg;
por outro lado, em Fundamento do Direito Natural segundo
os Princípios da Doutrina da Ciência, confessa-se "muito gra-
tamente surpreendido pelo importantíssimo escrito de Kant,
Para a Paz Perpétua" (cf. infra, pág. 17), onde ele crê, equi-
vocadamente, encontrar uma forma de "dedução" do con-
ceito de Direito análoga à que propõe em Fundamento do
Direito Natural. Além disso, tendo a "Primeira Parte" de A
Metafisica dos Costumes, os Princípios metafisicas da doutrina
do Direito, sido publicada em janeiro de 1797, é de todo
provável que Fichte estivesse familiarizado com o trata-
mento que Kant aí dá a "O Direito das gentes" e "O
Direito cosmopolita".
O opúsculo de Kant Para a Paz Perpétua tinha tido
uma enorme repercussão, sendo objeto der um grande
número de recensões - um acolhimento muito mais esfu-
siante, aliás, do que o tinha tido anos antes a primeira edi-
ção (1781) da Crítica da Razão Pura, que tinha suscitado
um clima de fria reserva - e dando azo a discussão nos cír-
culos intelectuais da época (Kiesewetter, Erhard, Staudlin),
tendo até Friedrich Schlegel (1 772-1829) publicado na
decorrência do escrito de Kant o seu mais importante
ensaio político de juventude, Versuch über den Begriff des
Republikanismus [Ensaio sobre o Conceito de Republica-
nismo] (1797); somente o circunspecto Wilhelm von
Humboldt (1767-1835) exprimia a suas reservas, confes-
sando, numa carta a Schiller (1759-1805), datada de 30 de
outubro de 1795, não considerar, na sua globalidade, o
escrito de Kant como muito importante.
Na recensão a Para a Paz Perpétua, Fichte exprime a
opinião de que o escrito de Kant, apesar de não conter na
sua globalidade os fundamentos da filosofia do Direito
de Kant, dá, pelo menos, nota das conclusões a que Kant

XLI
chegou nessa sua investigação (cf. GA I, 3, pág. 221). Em
Fundamento do Direito Natural, a sistematização que dá ao
Compêndio do Direito das Gentes e do Direito Cosmopolita,
dividindo-o em duas secções, "Sobre o Direito das gentes" e
"Sobre o Direito cosmopolita", é em tudo análoga àquela a
que Kant recorre em A Metafisica dos Costumes, correspon-
dendo também ao "Segundo Artigo definitivo para a Paz
Perpétuà' e ao "Terceiro Artigo definitivo para a Paz Perpé-
tua" em Para a Paz Perpétua.
A teorização de Fichte sobre o Direito internacional é,
salvo alguns pormenores da argumentação, muito seme-
lhante à de Kant, quer dizer, exprime uma visão geral de
cosmopolitismo liberal. No entanto, o pensamento ulterior
de Fichte apresenta linhas importantes de afastamento em
relação a este ideário, nomeadamente em O Estado Comer-
cial Fechado (1804), onde defende ideias de autarcia econó-
mica, e em Sobre Maquiavel como Escritor (1807) , onde
parece subscrever uma filosofi a de "balança de poderes"
como instrumento regulador do sistema das relações inter-
naciOnaiS.
Esta evolução de posições do Fichte de juventude e do
período da permanência em Jena (1 794- 1799) para o
Fichte tardio, que pudemos constatar a propósito de um
conjunto de elementos do seu pensamento, é responsável
pela perplexidade que é habitual constatar quando se trata
de avaliar o teor do legado da sua filosofia jurídico-política.

15. O Fundamento do Direito Natural e a ftlosofia jurí-


dico-política de Fichte

A publicação de Fundamento do Direito Natural


segundo os Princípios da Doutrina da Ciência não deixou
indiferentes os círculos intelectuais alemães da época: Fichte

XLII
era, por um lado, conhecido como um defensor de ideias
radicais-democráticas e "jacobinas" - aura que lhe tinha
sido granjeada pela autoria de escritos como Um Discurso
em Reclamação da Liberdade de Pensamento aos Príncipes da
Europa, que até aqui a reprimiram (1793) e Contribuição
para a Correção dos juízos do Público sobre a Revolução Fran-
cesa (1793) -, gozando, por outro lado, de uma sólida
reputação como filósofo.
Logo em 9 e 11 de novembro de 1796, surge, no
Oberdeutsche allgemeine Literaturzeitung, uma recensão, sem
indicação do autor, à "Primeira Parte" de Fundamento do
Direito Natural (dada à estampa em março de 1796); os
Annalen der Philosophie und des philosophischen Geistes
publicam uma recensão anónima, provavelmente da autoria
do kantiano Jakob Sigismund Beck (1761-1840), em que é
analisada com grande pormenor a "dedução" do conceito
de Direito sob o ponto de vista da filosofia transcendental;
mas a recensão mais significativa é a que surge nos Gottin-
gische Anzeigen von Gelehrten Sachen, de 3 de dezembro de
1796, também anónima, mas que Fichte presumia dever-se
a Gottlob Ernst Ludwig Schulze (1761-1833)5 3 .
Esta recensão constituiu o pretexto para uma resposta
de Fichte no Philosophisches ]ournal einer Gesellschaft Teuts-
cher Gelehrten, em fevereiro de 1797, sob o título «Annalen
des Philosophischen Tons», em que o nosso autor reage,
como lhe era habitual, em registo inflamado contra o que
diz ser o "tom deplordvel" e as distorções das suas posições
constatáveis na recensão. Apesar do tom agreste, o artigo é
interessante pelo modo claro como reafirma a consonância

53 Em publicações da época, a auroria da recensão era atribuída a Johann

Georg Heinrich Fede r (1740-1821), Popularphilosoph e defensor da filosofi a


emp irista; Feder era o ediror de Gottingische Anzeigen von Gelehrten Sachen e
sogro de Schulze.

XLIII
da doutrina fichteana do Direito com o método transcen-
dental exposto na "doutrina da ciêncià' (Wissenschaftslehre);
vista noutra perspetiva, a polémica exprimia a confrontação
entre o empirismo e a filosofia transcendental, confrontação
que no plano político significava a defesa do gradualismo
reformista contra o espírito da Revolução 54 .
Uma recensão muito positiva e pormenorizada é a
publicada por Karl Leonhard Reinhold (1758-1823) na
revista Allgemeine Literatur-Zeitung, em novembro de 1798,
já depois do surgimento das duas "Partes" de Fundamento
do Direito Natural - no entanto, Reinhold não deixa de
exprimir as suas reservas em relação à instituição do "efo-
rato". A apreciação da obra por parte de Wilhelm von
Humboldt (1767-1835), contida numa carta dirigida a
Goethe (1794-1832), em outubro de 1800, é igualmente
laudatória.
Schelling (1775-1854), por seu lado, publica nos
finais de 1796, após a edição da "Primeira Parte" do livro
de Fichte, uma «Neue Deduktion des Naturrechts», no Phi-
losophisches ]ournal einer Gesellschaft Teutscher Gelehrten:
Schelling aparece aqui próximo das teses de Fichte sobre o
modo como o "Eu" é condicionado pela atividade de auto-
posição de outros sujeitos e sobre a dedução transcendental
da "relação jurídica" (Rechtsverhiiltnis).
Em suma: aos olhos dos seus contemporâneos, a filo-
sofia de Fichte expressa em Fundamento do Direito Natural
dava expressão aos ideais de liberdade política promovidos

" A universidade de Gottingen era o mais imporrame cemro de dissemi-


nação na Alemanha da filosofia de Locke (1632-1704) e David Hum e ( 17 11-
1776) e de divulgação do modelo consritucional inglês: esta proximidade à Grã-
Bretanha resultava da existência, desde 171 4, com a ascensão ao trono inglês de
George I, de uma união dinástica emre a Grã-Bretanha e o eleitorado de H an-
nover. O expoeme mais imporrame do espírito desta "Escola de Hannover" era,
sem dúvida, August Wilhelm Rehberg (17 57-1830) .

XLIV
pela Revolução 55 . Todavia, a análise do conceito de "comu-
nidade política" (§ 17) e a defesa da instituição do "eforato"
(§§ 16, 17 e 21) mostram como Fichte toma distâncias em
relação ao individualismo político e a uma conceção liberal
do Estado, baseada na divisão dos poderes. A este propó-
sito, para além das reservas manifestadas por Reinhold
acima mencionadas, há que referir a crítica, com grande
vigor especulativo, que Hegel (1770-1831) dirige a Funda-
mento do Direito Natural no seu escrito Diferença entre os
Sistemas Filosóficos de Fichte e de Schelling (180 1). Pese
embora a, a muitos títulos referida, ambiguidade do pensa-
mento jurídico-político de Fichte, parece não ser contro-
verso sustentar que Fundamento do Direito Natural exprime
uma linha de pensamento radical-democrática, se bem que
com matizes diversos- e uma muito mais profunda proble-
matização - de Contribuição para a Correção dos juízos do
Público sobre a Revolução Francesa. As demonstrações sobre
a origem racional do Direito e o reconhecimento da von-
tade coletiva como expressão da soberania popular são as
pedras-de-toque da corrente de pensamento que, na juspu-
blicística alemã anterior à Revolução de 1848, é protagoni-
zada, em primeira linha, por Karl von Rotteck (1775-1840)
e Carl Theodor Welcker (1790-1869)5 6 - e que, no plano

>> No célebre projero de carta ao escriror e poeta dinamarquês Jens Bag-


gesen (1764- 1826), de abril ou maio de 1795, Fichre afirma que " o meu sistema
é o primeiro sistema da liberdade" e que, tal como a nação francesa libertou a
hum anidade das grilhetas exteriores, a sua "doutrina da ciência" libertou-a da
coisa-em-s i, quer dizer, das influências exteriores em que os sistemas filosóficos
precedentes, incluindo o kantiano, a tinham aprisionado; e co nfessa que a "dou-
trina da ciência" nasceu nos anos em que a nação francesa fazia, com a força da
sua energia, triunfa r a liberdade .polírica, pelo que é devedor a essa nação do estí-
mulo para a criação do seu sistema.
56 Sobre este pomo, cf., por rodos, o co nspero geral oferecido por Die-

rhelm Klippel , Politische Freiheit und Freiheitsrecht im deutschen Naturrecht des


18. j ahrhunderts, Paderborn , 1976.

XLV
filosófico, tinha em Kant e em Fichte os seus pnncipais
pontos de referência.
A evidenciação de traços anti-liberais e autoritários no
pensamento de Fichte costuma ser reportada ao período
subsequente ao seu abandono da universidade de Jena
(1799), nomeadamente no plano das ideias económicas e
pedagógicas: mas, mesmo aqui, o paladino dos inícios da
social-democracia alemã, Ferdinand Lassalle (1825-1864) ,
pensava encontrar em O Estado Comercial Fechado (1804) e
em Traços Fundamentais da Era Atual (1806) os germes das
ideias socialistas do futuro 57 •
A obra de Fichte que costuma ser apresentada como
uma inversão dos seus ideais democrático-republicanos e
cosmopolistas é, porém, Discursos à Nação Alemã (1808):
Heinrich von Treitschke (1834-1896) via neste escrito de
Fichte uma referência fundamental do movimento nacional
alemão 58 • A leitura nacionalista do pensamento político de
Fichte acentua-se nas duas primeiras décadas do século XX:
na interpretação de Hans Sluga, Fichte é o primeiro autor a
correlacionar os problemas de crise, nação, liderança e
ordem 59 . No estertor da República de Weimar, Karl Larenz
(1903-1993), um neo-hegeliano e futuro partidário do
regime nacional-socialista, publica, em 1929, Die Idee einer
wesenhaft deutschen Philosophie bei J G. Fichte [A ideia de
uma filosofia essencialmente alemã em J. G . Fichte];
Arnold Gehlen (1904-1976) escreve, já durante o nacional-

57 Cf. o discurso oficial de Lassalle, por ocasião da co memoração do pri-

meiro centenário do nascimento de Fichte, pronunciado em Berlim, em 1862,


intitulado Die Philosophie Fichte's und die Bedeutung des Deutschen Volksgeistes.
58 Cf. Treitschke, «Fichte und die nationale Idee», in: Heinrich von

Treitschke, Historische und politische Aufiiitze, Leipzig, 1865, págs. 123- 152.
59 Cf. Hans Sluga, Heidegger's Crisis: Philosophy and Politics in Nazi Ger-

many, Cambridge Mass. , 1993, pág. 3 1.

XLVI
socialismo, regime de que era, à altura, apoiante, Deuts-
chtum und Christentum bei Fichte [Germanismo e cristia-
nismo em Fichte] (Berlim, 1935) ; e até a interpretação
metafísica da essência do povo alemão desenvolvida por
Heidegger (1889-1976) no célebre discurso reitoral de
tomada de posse na universidade de Freiburgo, em maio de
1933, parece ter pontos de contacto com algumas das for-
mulações apresentadas em Discursos à Nação Alemã. Isaiah
Berlin (1909-1997), um lúcido analista da História das
ideias politicas, via na transmutação do conceito de "liber-
dade" a que Fichte procede em Discursos à Nação Alemã - a
passagem da ideia de liberdade como autodeterminação
pessoal a auto-realização coletiva - um dos ingredientes do
combate à tradição liberal do Ocidenté 0 ·
Não é, porém, propósito desta "apresentação" fornecer
uma visão integrada do pensamento jurídico-político de
Fichte, mas tão-somente dar conta do modo como o ideá-
rio democrático-republicano e cosmopolita é sistematizado
no quadro de uma "refundição" da filosofia idealista trans-
cendental, neste clássico da filosofia do Direito do idea-
lismo alemão, Fundamento do Direito Natural segundo a
Doutrina da Ciência.

JOSf LAMEGO

°
6 Cf. lsaiah Berlin, Freedo m and !ts Betrayal.Six Enemies of Human
Liberty, Princeron e Oxford, 2003, maxime pág. 69.

XLVII
FUNDAMENTO DO DIREITO NATURAL
SEGUNDO OS PRINCÍPIOS DA DOUTRINA DA CI!NCIA

PRIMEIRA PARTE
G r u n d I a g e

Na t u r r e eh t s

Principien der Wissenschaftslehre

;Iohann Goitlieb Fichte.

--------.. ~--------

Icn.a und Lei,pz;g.


bei Çhristi .~n E .rnst Galder,.
1796·
INTRODUÇÃO 1,3
313

I. Como se distingue uma ctencia filosófica real de uma


mera filosofia de fórmulas

1. O carácter da racionalidade consiste em que aquele


que age e aquele sobre o qual se age são um e o mesmo; e
com esta descrição, o âmbito da razão como tal fica cir-
cunscrito de modo exaustivo. -O uso linguístico depositou
na palavra Eu este conceito sublime para aqueles que para
ele estão habilitados, quer dizer, para aqueles que são capa-
zes de abstrair do seu próprio Eu; daí que a razão em geral
tenha sido caracterizada pela egoidade. Aquilo que existe
para um ser racional existe nele; mas não há nada nele que
não proceda de um agir que ele exerce sobre si próprio:
aquilo que intui, intui em si próprio; mas não há nada a
intuir nele senão um agir sobre si próprio: e o Eu em si
mesmo não é senão um agir sobre si próprio*. - Não vale a

• Eu não quereria dizer: um ageme, para não induzir a represemação de um


substrato que comém em si próprio esta fo rça para agi r. Argumemou-se, emre
outras coisas, comra a Doutrina da Ciência que esta teria posto como funda-
memo da filosofi a um Eu, concebido como um substrato que existe sem a ati-
vidade do Eu (um Eu como coisa em si)O >. Mas, como assim, se a dedução de
qualquer substrato a panir do modo de agi r necessário do Eu é aquil o que
caracteriza a dedução e é nela primacial ? Ora bem, posso dizer como isso foi
possível e até inevitável. Esta geme não pode começar nada sem substrato por-
que lhes é impossível elevar-se do pomo de vista da experiência comum ao

5
314 pena entrar aqui em discussões sobre este ponto. Discernir
isto é a condição exclusiva de todo o filosofar e não se está
maduro para a filosofia antes de aí se ter chegado. Ademais,
todos os verdadeiros filósofos sempre filosofaram a partir
deste ponto de vista, só que sem o saberem claramente.
2. Este agir interno do ser racional acontece ou neces-
sariamente ou com liberdade.
3. O ser racional é, unicamente na medida em que se
põe a si mesmo como ente, isto é, na medida em que é cons-
ciente de si próprio. Todo o ser, tanto o do Eu como o do
não-Eu, é uma modificação determinada da consciência; e
sem uma consciência não há nenhum ser. Quem afirmar o
contrário admite um substrato do Eu, que deve ser um Eu
· sem o ser, e, assim, contradiz-se a si próprio. Ações necessá-
rias, que decorrem do conceito de ser racional, são, por-
tanto, apenas aquelas que condicionam a possibilidade de
autoconsciência; mas todas estas são necessárias e produ-
zem-se de um modo certo, tão certo quanto exista um ser
racional. - O ser racional põe-se necessariamente a si
mesmo e, portanto, faz necessariamente tudo aquilo que se
inclui no âmbito da ação expressa por esta posição.
4. Ao agir, o ser racional não se torna consciente do
seu agir, dado que ele mesmo é o seu agir e nada mais; m as
aquilo de que toma consciência deve situar-se fora do agir,

pomo de vista da filosofi a. Presentearam a Doutrina da C iência com um subs-


traro que uouxeram da sua própria fome de aprovisionamento e é por causa
da sua própria inépcia que a fustigam agora, não porque tivessem descoberro o
erróneo da coisa, mas porque Kam rejeita um tal substrato do Eu. Eles têm
o substraro algures nouuo local, na antiga coisa em si fora do Eu. Para isso,
enco ntram justificação na exp ressão literal do pensamento de Kam, quando
este fala de um diverso para a experiência possíveL O que é este diverso em
Kant e de onde é que ele procede, isso nunca o comp reenderam. Quando é
que esta gente vai deixar de se pronunciar sobre coisas a que a sua natureza
não lhes permite aceder?

6
deve ser objeto, isto é, o contrário do agir. O Eu toma cons-
ciência somente daquilo que para ele ocorrer nesse agir e
por via desse agir (pura e simplesmente por via dele); e isto é
o objeto da consciência ou a coisa. Não há outra coisa para
um ser racional e, uma vez que não se pode falar de um ser
ou de uma coisa senão em relação a um ser racional, não
há nenhuma outra coisa em absoluto. Quem falar de uma
outra coisa não se compreende a si mesmo.
5. Aquilo que surge num agir necessdrio*, mas no
qual, pelas razões que foram indicadas, o Eu não tem cons- 315
ciência do seu agir, aparece como necessário, isto é, o Eu
sente-se coagido à representação desse algo. Então diz-se
que o objeto tem realidade. O critério de toda a realidade é
o sentimento de ter de apresentar algo tal como é apresen-
tado. A razão dessa necessidade vimo-la já: é assim que tem
de se agir se o ser racional deve, em geral, existir como tal.
Daí que a expressão da nossa convicção da realidade de
uma coisa seja: tão verdadeiro como eu vivo ou tão verda-
deiro como eu sou, isto ou aquilo existe.
6. Se o objeto tem o seu fundamento exclusivamente
no agir do Eu e é integralmente determinado apenas por
este agir, então, se deve haver uma diversidade entre os
objetos, esta diversidade só pode decorrer dos diversos
modos de agir do Eu. Todo o objeto foi determinado assim
para o Eu porque o Eu agiu precisamente como agiu; mas

• A proposição da Dourrina da Ciência de que aquilo que existe existe mediante


um agir do Eu (em particular, mediante a imaginação produtiva) foi interpre-
tada co mo se se tratasse de um agir livre; mas isto ocorreu porque não se foi
capaz de se elevar ao conceito de atividade em geral, que, no entanto, tinha
sido suficientemente exp lanado na Doutrina da C iência. Daí que tenha sido
fácil apostrofar este sistema como o mais exrre mo dos delírios. Com isto dizia-
-se demasiado pouco. A co nfusão enrre o que existe mediante um agir livre e o
que existe mediante um agir necessário, e vice-versa, é uma verdadeira insani-
dade. Mas quem é que, então, estabeleceu um tal sistema)

7
era necessano que agisse assim, pois que uma tal ação fazia
parte das condições da autoconsciência. - Quando se reflete
sobre o objeto e se distingue dele o modo de agir por via
do qual surge, este agir converte-se num mero conceber,
apreender e compreender algo dado. Consequentemente,
um tal agir, quando ocorre na abstração descrita, chama-se,
a justo título, um conceito* .
7. É apenas mediante um determinado modo de agir
que surge um certo objeto determinado; mas se se age com
necessidade deste modo determinado, então também surge
necessariamente este objeto. O conceito e o seu objeto não
estão, portanto, nunca separados, nem podem está-lo. O
objeto não existe sem o conceito, pois que existe mediante
o conceito; o conceito não existe sem o objeto, pois é
aquilo por via do qual o objeto surge necessariamente.
Ambos são uma e a mesma coisa, considerada sob aspectos
diferentes. Se olharmos para a ação do Eu como tal, em
atenção à sua forma, então é conceito; se olharmos para o
conteúdo da ação, para a sua matéria, para o que acontece,
com abstração de que acontece, então é objeto. - Quando
ouvimos alguns kantianos falar sobre os conceitos a priori,
deveríamos acreditar que os mesmos surgem no espírito
316 humano com anterioridade à experiência, como comparti-
mentos vazios à espera de que a experiência introduza algo
neles. Que coisa pode ser para esta gente um conceito e

* Um leitor que, com o júbilo de rer finalmeme encomrado um rermo conhe-


cido, se apresse a verrer nele rudo o que aré aqui emendeu pelo rermo conceito,
em breve se encomrará complerameme equivocado e não compreenderá nada
mais; e isso, por culpa sua. Esre rermo não deverá significar aqui nem mais
nem menos do que aquilo que aqui foi descriro, renha ou não o leiror podido
aré agora emender por via dele isso mesmo. Não apelo a um conceito já fami-
liar ao leitor, mas quero ames desenvolver e precisar no espíriro do leitor um
ral conceiro.

8
como puderam chegar a aceitar como verdadeira a doutrina
kantiana assim entendida?
8. Como fica dito, não se pode perceber em si o agir
nem os modos de agir determinados antes daquilo que
emerge de um agir. Para o homem comum, e do ponto de
vista da consciência comum, só existem objetos e não con-
ceitos: o conceito desaparece no objeto e coincide com ele.
O génio filosófico, isto é, o talento de encontrar no e
durante o agir não só o que emerge com ele mas também o
agir como tal, unindo estas direções completamente contra-
postas numa apreensão e captar assim o seu próprio espírito
em ato, o génio filosófico foi o primeiro a descobrir o con-
ceito no objeto; e, assim, o âmbito da consciência ganhou
um novo domínio.
9. Aqueles homens dotados de espírito filosófico tor-
naram públicas as suas descobertas. - Nada é mais fácil, ali
onde não impera nenhuma necessidade de pensamento,
produzir com liberdade no seu espírito toda a determinação
possível e deixá-lo atuar arbitrariamente de um qualquer
modo que nos possa ser indicado por outrem; mas nada é
mais difícil do que observar o espírito como atuante no agir
efetivo, isto é, necessário, conforme o acima exposto, ou de
o observar como atuante quando está em situação de ter de
agir desse modo determinado. O primeiro modo de proce-
der oferece conceitos sem objeto, um pensamento vazio; só
no segundo modo se torna o filósofo espectador de um
pensar real do seu espírito*.

* O filósofo de fórmulas pensa para si isro e aquilo, observa-se a si mesmo neste


pensa r e apresenta como verdade a séri e co mpleta daquilo que foi capaz
de pensar, simplesmente porque o pôde pensar. O objecto da sua observação é
ele próprio, tal co mo procede livremente, seja sem qualquer direção, ao acaso,
ou segundo uma meta que lhe é dada de fo ra. O verdadeiro fil ósofo tem de
observar a razão no seu proceder originário e necessário, mediante o qual existe

9
317 O primeiro modo de proceder é uma imitação arbitrá-
ria dos modos originários de atuar da razão apercebidos por
outrem, uma vez que desapareceu a necessidade que é a
única que confere significado e realidade a esses modos de
proceder; só o segundo é verdadeira observação da razão no
seu proceder. Do primeiro resulta uma filosofia de fórmulas
vazia, que acredita ter feito o suficiente ao demonstrar que
se podia pensar qualquer coisa sem se preocupar com o
objeto (com as condições da necessidade deste pensar).
Uma filosofia real põe ao mesmo tempo o conceito e o
objeto e nunca trata de um sem o outro. Introduzir uma tal
filosofia e desmantelar toda a filosofia meramente formal
era o objetivo dos escritos kantianos. Não posso dizer se até
agora algum autor filosófico se deu conta deste objetivo.
Mas posso dizer que a incompreensão deste sistema se
manifestou de dois modos: por um lado, pelos chamados
kantianos, na medida em que consideraram também o sis-
tema como uma filosofia de fórmulas , se bem que em sen-
tido oposto ao anterior, e ass im filosofaram da mesma
maneira vazia de antes, só que num sentido contrário; por
outro, por céticos argutos que, apesar de verem muito bem
onde residiam verdadeiramente as deficiências da filosofia
kantiana, não se deram conta de que estas deficiências

o seu Eu e tudo o que para ele existe. Mas, uma vez que ele não encontra este
Eu agente origi nariamente na consciência empírica, põe-o, mediante o único
ato do arbítrio q ue lhe está perm itido no seu ponto de partida (que é a decisão
livre de querer filosofar) e a partir daí deixa-o continuar a agir, sob os seus
olhos, de acordo com as suas leis próprias, que são perfeitamente conhecidas
do filósofo . O o bj eto da sua observação é, portanto, a razão em geral, tal
como necessariamente procede, de acordo com as suas leis internas, sem q ual-
quer meta exterior. O primeiro observa um indivíduo, observa-se a si mesmo
no seu pensar sem lei; o verdadeiro filósofo observa a razão em geral no seu
agi r necessário.

10
foram, no essencial, colmatadas por Kant, O pensar mera-
mente formal causou danos indescritíveis na filosofia, na
matemática*, na doutrina da natureza e em rodas as ciên- 318
c1as puras.

• Na matemática, isto mostra-se especial mente pelo abuso da álgebra por parte
de mentes meramente form ais. Assim , não se pôde ver - para dar um exemplo
eloquente - que a quadratura do círculo é impossível e contraditória no seu
conceito. O autor da recensão(2) do meu escri to Sobre o Conceito da Doutrina
da Ciência (ou melhor, de algum as das suas noras}, nos Anais de Halle, per-
gunta-me se a quadratura do círculo é impossível porque o retiltneo e o curvo
não têm nada em comum. Ele crê ter sido muito inteligente na colocação da
questão, olha em redor, sorri e deixa- me fi car com a minha vergonha. Eu olho
para ele e ri o da pergunta. Co m toda a seriedade, é esta a minha opinião.
A nsam philosophiae non habes, di z ele co m compaixão; respondo-lh e eu: a
grande sabedoria subtraiu-lhe o bom senso. - Saber, meu ca ro senhor, não me
falta neste ponto, mas sim compreensão. Quando andava ainda na esco la
secundária, aprendi que a circunferência deve ser igual a um polígono com um
número in fi nito de lados e que se pode obter a superfície da circunferência se
se tem a do polígono: mas nunca pude conceber a possib ilidade desta medição
e rogo a Deus que até ao fin al dos meus dias Ele não permita que eu a co n-
ceba. É, acaso , o conceito de uma tarefa de continuar a dividir até ao infinito
os lados de um polígono, por conseguinte, a tarefa de um determinar infinito?
Mas o que é, então, uma medida para a qual quereis utilizar aqui o infinito? É
algo determin ado ? Se co ntinuais a dividir até ao infinito, como, de acordo
com a nossa tarefa, o deveis faze r, então nunca chega is a medir. Mas se quereis
medir, tereis antes de ter deixado de dividir e então o vosso polígono é fini to e
não infinito, como pretendeis. Mas, dado que podeis apreender o modo de
agir para descrever um infinito, isto é, o conceito vazio de infinito, e designá-
-lo, por exe mplo, como "A", já não vos continuais a preocupar se amastes e
podeis acu ar des te modo e então meteis vigo rosamente mãos à obra co m o
vosso "A". Assim o faze is em muitos casos. O senso comu m espanta-se cheio
de respeito co m os vossos fe itos e assum e humildemente as culpas de não vos
entender; mas se um im pertinente deixa exterioriza r no mínimo que seja a sua
opinião, então não lhe podeis, de todo, ex plicar a sua incapacidade para enten-
der uma co isa que para vós é de uma clareza tão fora do co mum e que não
vos causa o menor dos incó modos, a não ser insinuando que o pobre hom em
não deve ter ap rendido os princípios elementares da ciência.

11
319 II. O que tem o Direito natural, como uma ciência filosó-
fica real, em particular que proporcionar

1. De acordo com o que acima foi dito, que exista


um certo conceito determinado obtido originariamente pela
razão e nela contido não pode querer senão dizer que o ser
racional, enquanto ser racional, age necessariamente de um
certo modo. O filósofo deve mostrar que esta ação determi-
nada é uma condição da autoconsciência, o que constitui a
dedução desta última. Deve descrever esta ação determi-
nada tendo em vista a sua forma, bem como aquilo que do
seu agir emerge para a reflexão. Com isso, o filósofo for-
nece simultaneamente a prova da necessidade do conceito,
determina-o e mostra a sua aplicação. Nenhum destes ele-
mentos pode ser separado dos demais e, se se tratam isola-
damente, são tratados de maneira incorrera e isto é filosofar
de modo meramente formal. O conceito de Direito deve
ser um conceito originário da razão pura; logo, deve ser tra-
tado da maneira indicada.
2. Com respeito a este conceito, ocorre que ele se
torna necessário porque o ser racional não pode pôr-
-se como tal com autoconsciência sem se pôr como indi-
víduo, como um entre muitos seres racionais que ele admite
fora dele, tal como se admite a si mesmo.
É possível apresentar até mesmo de maneira sensível
que o modo de agir neste pôr é o conceito de Direito. Eu
ponho-me como racional, isto é, como livre. Ao fazê-lo,
está em mim a representação da liberdade. Na mesma ação
indivisa, eu ponho simultaneamente outros seres livres.
Descrevo assim, mediante a minha imaginação, uma esfera
para a liberdade que diversos seres partilham entre si. Não
me atribuo a mim próprio toda a liberdade que pus, por-
que tenho de pôr outros seres livres e atribuir-lhes uma
parte da mesma. Limito-me a mim mesmo na minha apro-

12
priação da liberdade, na medida em que deixo também
liberdade para outros. O conceito de Direito é, assim, o
conceito da relação necessária de seres livres entre si.
3. O que está, em primeiro lugar, contido no conceito
de liberdade é somente a faculdade de através da esponta-
neidade absoluta projetar conceitos da nossa possível atua-
ção; e é apenas esta mera faculdade que os seres racionais se
atribuem uns aos outros com carácter de necessidade. Mas
para que um indivíduo racional ou uma pessoa se ache a si
próprio livre é preciso algo mais, a saber, que ao conceito
da sua atuação corresponda na experiência o objeto que é 320
pensado por meio do conceito de atuação; que, portanto,
algo no mundo exterior a ele ocorra a partir do pensa-
mento da sua atividade.
Ora, se os efeitos dos seres racionais devessem ocorrer
no mesmo mundo e, assim, influir uns nos outros, podendo
perturbar-se e impedir-se reciprocamente, como na reali-
dade acontece, então a liberdade, na última aceção, só seria
possível, para pessoas que estão entre si numa relação de
influência recíproca, sob a condição de que todos conte-
nham a sua atuação dentro de certos limites e, por assim
dizer, partilhem entre si o mundo como esfera da sua liber-
dade. Uma vez que estão postos como livres, tal limite não
pode encontrar-se fora da liberdade, porque, neste caso, a
liberdade seria suprimida, mas nunca limitada como liber-
dade; deveriam todos, antes, pôr-se estes limites mediante a
própria liberdade, isto é, todos deveriam ter-se dado como
lei não perturbar a liberdade daqueles com que estão numa
relação de interação recíproca.
4. E assim teríamos o objeto completo do conceito de
Direito, a saber, uma comunidade entre seres livres como tais.
É necessário que cada ser livre admita outros da sua espécie
fora dele; mas não é necessário que todos continuem a
viver uns com os outros como seres livres. O pensamento de

13
uma tal comunidade e a realização da mesma é, por conse-
guinte, algo que depende do arbítrio. Mas se deve ser pen-
sado, como, mediante que conceito, mediante que modo
de agir determinado é pensado? Acontece que, no pensa-
mento , cada membro da comunidade deixa limitar a sua
própria liberdade exterior mediante a liberdade interior, de
tal modo que todos os outros para além dele possam tam-
bém ser livres exteriormente. Este é, pois, o conceito de
Direito. Uma vez que o pensamento e a tarefa de instituir
uma tal comunidade dependem do arbítrio, então o con-
ceito de Direito pensado como um conceito prático é
meramente um conceito técnico-prático, isto é, se se per-
guntasse quais os princípios segundo os quais poderia insti-
tuir-se uma comunidade de seres livres como tais, sempre
que alguém a quisesse instituir, então dever-se-ia responder:
segundo o conceito de Direito. Mas que uma tal comuni-
dade deve ser instituída, tal não é, de modo algum, dito
COm ISSO.
5. Ao longo de toda esta exposição do conceito de
Direito, omitiu-se refutar pormenorizadamente aqueles que
procuram derivar a doutrina do Direito da lei moral; por-
que, uma vez que exista a dedução correta, qualquer mente
aberta a aceitará por si própria, sem que seja necessário
mostrar-lhe a incorreção das demais; mas para espíritos par-
ciais e que lutam pela sua própria causa é vã qualquer pala-
vra pronunciada para a sua refutação.
A regra do Direito "limita a tua liberdade mediante o
conceito de liberdade de todas as outras pessoas com quem
entras em relação" recebe uma nova sanção para a consciên-
cia mediante a lei da absoluta concordância consigo própria
(a lei moral) ; e então o tratamento filosófico desta constitui
32 1 um capítulo da moral, mas, de modo algum, a doutrina
filosófica do Direito, que deve ser uma ciência autónoma,
existente por si. Poder-se-ia dizer que vários homens doutos

14
que estabeleceram sistemas de Direito natural teriam, sem o
saber, tratado aquele capítulo da moral se não se tivessem
esquecido de indicar porque que é que a observância desta
lei (que devem ter sempre em mente, independentemente
da fórmula com que a expressam) condiciona a concordân-
cia do ser racional consigo próprio. De modo semelhante, e
aponto isto de passagem, os professo res de moral não refle-
tiram sobre o facto de que a lei moral é pura e simples-
mente formal e, por isso, vazia e que não se lhe pode con-
ferir de outra forma um conteúdo, mas que este tem de ser
rigorosamente deduzido. Posso, de passagem, indicar como
isto acontece no nosso caso. Eu tenho necessariamente de
m e pensar em sociedade com as pessoas com as quais a
natureza me uniu, mas não o posso fazer sem pensar a
minha liberdade como limitada pela liberdade delas; logo,
tenho também de agir de acordo com este pensamento
necessário, pois de outro modo o meu agir entraria em
contradição com o meu pensar* e, assim, eu entraria
em contradição comigo próprio. Esto u obrigado em cons-
ciência, pelo meu conhecimento daquilo que deve ser, a
limitar a minha liberdade. Mas não é desta obrigação moral
que se trata na doutrina do Direito; cada um está obrigado
a viver com outros em sociedade somente por uma decisão
do seu arbítrio e se alguém não quer, em absoluto, limitar
o seu arbítrio, então no âmbito do Direito natural nada se

* Leio algures que o princípio da dourrina moral é: "as diversas açóes da vontade
li vre devem co nco rdar co nsigo próprias"0 >. Esta é uma aplicação muito infeliz
do postulado da concordância absolu ta do ser racional co nsigo próprio, por
mim estabelecido nas Lições sobre a vocação do sdbiJ4>. Para satisfazer esse prin-
cípio basta pensar num malvado verdadeiramente co nsequente, tal como o Dr.
Erhard caracteriza o diabo na sua Apologia do Diabo (Niethammers Philos. }our-
nal, 1795): as açóes da vontade li vre conco rdam então perfeitamente entre si,
pese embo ra co ntradizerem no seu co njunto a co nvi cção do que deve ser, e,
assim , já se deu satisfação a uma tal doutrin a moral.

15
lhe pode opor, a não ser que, nesse caso, se teria de afastar
de toda a sociedade humana.
6 . No presente escrito, foi deduzido o conceito de
Direito como condição da autoconsciência, tendo, ao
mesmo tempo, sido deduzido o seu objeto; foi derivada,
determinada e assegurada a sua aplicação, tal como se exige
de uma ciência real. Isto teve lugar na primeira e na
segunda secção desta investigação. O conceito de Direito
foi ulteriormente determinado e foi demonstrado como
deveria ser realizado no mundo sensível, na doutrina do
Direito político, para a qual servem como preparação as
investigações sobre o direito originário e o direito de coa-
ção. Os três capítulos necessários e indicados no livro para
a determinação completa do Direito político - sobre o con-
trato de cidadania, sobre a legislação civil e sobre a Consti-
tuição - já foram elaborados e expostos aos meus ouvintes
e aparecerão na próxima feira, juntamente com o Direito
das gentes, o Direito cosmopolita e o Direito da família,
sob o título Direito natural aplicado*.

323 III. Sobre a relação da presente teona do Direito com a


kantiana

Com exceção de algumas observações avisadas do


Sr. Dr. Erhartf 5l, em vários dos seus escritos mais recentes,

* A impressão destes capítulos foi impossível no momento presente; por isso,


ficaram para trás, e, assim, rive oportunidade de juntar as panes restantes da
doutrina geral do Direito. - Daí resulta um só inconveniente para este livro.
Estou habilitado pela experiência anterior a presumir que nem todos os críti-
cos adquirem com os meus princípios a capacidade de os aplicar ulterio r-
mente. Por conseguinte, peço a quem não esteja seguro desta capacidade con-
firmada pela sua própria experiência que não se apresse nessa aplicação, mas
que espere pelo meu esc ri to.

16
e do Sr. Maimon, num artigo sobre o Direito natural no
jornal Filosófico do Prof. Niethammer(6l, o autor deste
escrito não tinha encontrado nenhum indício de que um
filósofo, qualquer que ele fosse, tivesse posto em dúvida a
maneira habitual de tratar o Direito natural, até que,
depois de ter concluído o fundamento da teoria do Direito
de acordo com os princípios da Doutrina da Ciência, fui
muito gratamente surpreendido pelo importantíssimo escrito
de Kant, Para a Paz Perpétua(?) .
Não seria inconveniente para muitos leitores uma
comparação entre os princípios kantianos do Direito, tal
como decorrem do escrito mencionado, e o sistema aqui 324
apresentado.
Com base no referido escrito, não se pode ver com
clareza se Kant deriva a lei do Direito da lei moral, de
acordo com a maneira habitual, ou se admite uma outra
dedução da lei do Direito. No entanto, a observação de
Kant a respeito do conceito de uma lei permissiva torna
altamente provável que a sua dedução esteja de acordo com
a que aqui é oferecida(9l .
Um direito é claramente algo de que nos podemos ser-
vir ou não; portanto, um direito decorre de uma lei mera-
mente permissiva e esta última do facto de que uma lei se

* O que se pode pensar da perspicácia de uma parte do público, quando se ouve


colocar este escri ro na mes ma classe em que são colocadas as ideias do Abade
de Sainc-Pierre ou de Rousseau<Bl sobre o mesmo objero) Estes diziam apenas
que a real ização desta ideia seria desejável, ao que rodo o leiror bem incenci o-
nado lhes fa ria, sem dúvida, a mercê de conceder que esca realização não seria
impossível - se os ho mens fossem diferences do que está à vista do que ainda
são. Kant mostra que esta ideia é uma tarefa necessária da razão e a sua apre-
sencação um fim da narureza que ela alcançará mais cedo ou mais tarde, pois
trabalha incessa ncemence neste sentid o e já alcançou , efetivamence, uma boa
parte do que se enco ncra em direção a ela: o que, se m dúvida, constitui um a
visão muiro diference sobre o mesmo objero.

17
limite a uma certa esfera, a partir da qual se conclui
mediante a faculdade do juízo que se está fora da esfera da
lei, livre da lei, e se não há uma qualquer outra lei relativa
a este objeto, remete-se pura e simplesmente para o arbítrio
pessoal. A permissão não está expressamente sediada na lei,
mas é derivada, por via da interpretação da lei, do seu
carácter limitado. O carácter limitado de uma lei manifesta-
-se no facto de que é condicionada. Não se pode, em abso-
luto, descortinar como é que uma lei permissiva poderia ser
deduzida da lei moral, que comanda incondicionalmente e
que, por conseguinte, se estende sobre tudo.
A nossa teoria concorda completamente com as afir-
mações de Kant de que o estado de paz ou conformidade
ao Direito entre os homens não é um estado natural, mas
um estado que deve ser instituído; e que se tem o direito
de coagir mesmo alguém que não nos tenha atacado, de
modo a que com a sua submissão à força da autoridade nos
325 garanta a segurança necessária. Estas proposições são na
nossa teoria demonstradas da mesma maneira que o são em
Kant.
Igualmente está a nossa teoria de acordo com a fun-
damentação kantiana das proposições segundo as quais
a associação política só pode ser construída com base
num contrato originário, mas que deve ser necessariamente
celebrado; além disso, que o povo não deve exercer por si
próprio o poder executivo, mas que deve delegá-lo e que,
por conseguinte, a democracia, na aceção genuína do
termo, é uma Constituição completamente contrária ao
Direito(! O).
326 Mas fui levado a pensar de outro modo sobre a ques-
tão de que para a segurança do Direito no Estado seria sufi-
ciente separar o poder legislativo e executivo, como Kant
parece admitir - apenas, parece, pois não era obviamente o
seu propósito esgotar o tema nesse escrito. Resumo aqui

18
brevemente os pontos principais dispersos ao longo desta
dissertação e de que trata a presente investigação.
Na lei do Direito está ínsito que as pessoas, ao viver
juntas, têm de limitar a sua liberdade, de tal maneira que,
ao lado da sua, possa também subsistir a liberdade das
outras. Mas a lei nada diz sobre se esta determinada pessoa
deve limitar a sua liberdade precisamente mediante a liber-
dade desta determinada segunda, terceira ou quarta pessoa.
Que eu tenha de acomodar-me precisamente a estas deter-
minadas pessoas decorre do facto de que vivo em sociedade
com elas. Mas vivo em sociedade com elas em consequência
da minha decisão livre, não, de modo algum, por obrigação.
Aplicado ao contrato social: depende originariamente do
livre arbítrio de cada um se quer ou não viver neste Estado
determinado, pese embora, se quiser viver entre os seres
humanos, não depender já do livre arbítrio de cada um
entrar num qualquer Estado ou continuar a ser o seu pró-
prio juiz; mas, se expressou a vontade de entrar num deter-
minado Estado e nele foi aceite, fica, sem mais, submetido,
mediante esta mera declaração bilateral, a toda as limitações
que a lei jurídica requer para este grupo de seres humanos.
Com as palavras "quero viver neste Estado" aceitou todas as
suas leis. A lei do Estado converte-se, de acordo com a
forma, na sua lei pelo seu consentimento; mas, de acordo
com a matéria, a lei do Estado está determinada sem o seu
consentimento pela lei do Direito e pela situação desse
Estado.
Além disso, a lei "limita a tua liberdade pela liberdade
de todos os outros" é meramente formal e, nesta medida,
insusceptível de aplicação; mas, até onde deve estender-se a
esfera de cada indivíduo, no interior da qual ninguém o 327
pode perturbar e para além da qual ele, por sua vez, não
pode ir sem que seja considerado um perturbador da liber-
dade dos outros? Sobre isto teriam as partes de chegar a um

19
acordo. Aplicado ao Estado, isto significa: cada um tem de
acordar com o Estado, desde o momento da sua incorpora-
ção nele, um certo âmbito para as suas ações livres (uma
propriedade, direitos civis, etc.). O que é que, então, o
limita precisamente a esta esfera? Obviamente, a sua pró-
pria decisão livre; pois que, sem ela, teria tanto direito
como os demais sobre tudo o que cabe aos outros. Mas por
que via é que se determina quanto pode ser atribuído a
cada indivíduo? Obviamente, mediante a vontade comum,
segundo a regra: este determinado número de pessoas
devem ser livres umas conjuntamente com as outras nesta
esfera determinada, tendo em vista a liberdade em geral; a
cada indivíduo pertence, portanto, tanto.
Os cidadãos têm, então, de ser mantidos nestes limites
por coação e a ameaça de lhes infligir um certo dano caso
os ultrapassem tem que dissuadir as suas vontades da deci-
são de o fazerem. Está claro que este dano, determinado
pela lei geral, tem que ser conhecido, para poder agir sobre
a sua vontade; além disso, é claro que com a sua entrada no
Estado se submeteram a esse dano em caso de transgressão
da lei.
Mas quem deve, então, proclamar a vontade comum,
perfeitamente determinada simplesmente pela natureza da
coisa, em relação com os direitos dos indivíduos e com a
punição daqueles que violem esses direitos? Quem deve,
pois, esclarecer e interpretar aquela disposição necessária da
natureza e da lei do Direito? Para isto ninguém estaria
menos habilitado que a turba; só de uma maneira muito
impura se obteria uma verdadeira vontade comum
mediante o somatório dos votos individuais. Este assunto
não pode ser atribuído a ninguém senão àquele que tem
sempre em conta o todo e todas as necessidades do todo e
que é responsável por que impere de modo ininterrupto o
Direito mais estrito; a ninguém senão ao administrador do

20
poder executivo. Ele fornece a matéria à lei, matéria que lhe
é dada pela razão e pela situação do Estado; mas a forma
da lei, a sua força obrigatória para o indivíduo, obtém-se
apenas pelo consentimento do indivíduo, não precisamente
para esta lei em concreto, mas para que esteja unido a este
Estado. Por estes motivos, e neste sentido, afirma-se na
nossa teoria que o poder legislativo e o poder executivo não
devem ser separados na legislação civil, mas antes que têm
de permanecer necessariamente unidos. A legislação civil é
ela própria um ramo da atividade executiva, uma vez que 328
é só o Direito em geral que deve ser posto em execução. O
administrador do poder executivo é o intérprete natural da
vontade comum no que toca às relações dos indivíduos
entre si dentro do Estado; não exatamente da vontade que
estes efetivamente têm, mas da que devem ter para poder
coexistir entre si, mesmo que de facto nenhum indivíduo a
tenha, como às vezes se pode ser levado a admitir.
De uma espécie completamente diferente é a lei sobre
o modo como deve pôr-se em prática a lei, isto é, a Consti-
tuição. A esta tem todo o cidadão de dar o seu voto e só
pode ser estabelecida com unanimidade absoluta; pois é a
garantia que cada um se faz dar por todos relativamente à
segurança dos seus direitos na sociedade. A parte essencial
de qualquer Constituição é o eforato, exposto nesta teoria.
Deixo ao juízo dos conhecedores imparciais a questão de se
o eforato é suficiente para assegurar os direitos de todos
sem a divisão em geral do poder legislativo e executivo,
proposta por outros e que a mim me parece impraticável
(em que medida Kant aprova esta opinião, que é, em parte,
inteiramente correta, é algo que não se infere do seu
escrito) .

21
PRIMEIRA SECÇÃO 329

DEDUÇÃO DO CONCEITO DE DIREITO

§ 1. Primeiro teorema: Um ser racional finito não pode pôr-


-se a si mesmo sem se atribuir a si próprio uma atividade
causal livre

Demonstração

I. Se um ser racional deve pôr-se como tal, então tem


de atribuir-se uma atividade cujo último fundamento reside
pura e simplesmente nele próprio (ambas as proposições
são equivalentes: cada uma delas diz o mesmo que a
outra).
A atividade que em geral retorna a si mesma (egoidade,
subjetividade) é a característica do ser racional. O pôr-se a si
próprio (a reflexão sobre si próprio) é um ato desta ativi-
dade. Chamemos a esta reflexão A. Por via do ato de uma
tal atividade põe-se o ser racional. Toda a reflexão aponta a
algo, como seu objeto, B. Que espécie de quê tem de ser o
objeto da reflexão requerida, A? - O ser racional deve nela
pôr-se a si próprio, deve ter-se a si próprio como objeto.
Mas a sua característica é a atividade que a si retorna. O
substrato último e supremo, B, da sua reflexão sobre o
mesmo tem, por conseguinte, de ser também a atividade
que retorna a si própria, que se determina a si própria. De

23
outro modo, não se põe como ser racional e não se põe em
absoluto, o que contradiz o pressuposto.
O ser racional estabelecido é um ser racional finito.
Mas um ser racional finito é o que não pode refletir sobre
nada que não seja limitado. Ambos os conceitos são equiva-
lentes e cada um deles significa o mesmo que o outro. Con-
sequentemente, a atividade que retorna a si, B, teria de ser
uma atividade limitada, quer dizer, teria de haver fora dela
ainda um C, que seria posto por aquele que reflete e que
não seria essa atividade, mas que estaria contraposta a ela.

330 II. O ser racional não pode pôr esta sua atividade como
tal na intuição do mundo; pois que esta atividade, graças ao
conceito, não deve retornar àquele que intui; deve ter por
objeto não aquele que intui, mas antes algo que está fora e
que se deve contrapor àquele que intui - um mundo.
(Subsequentemente, o ser racional pode atribuir-se
este agir, isto é, o intuir, a si próprio e elevá-lo à consciên-
cia; o ser racional pode pôr-se como o que realiza a intui-
ção. Pois que do ponto de vista de uma filosofia transcen-
dental, damo-nos conta de que o intuir não é senão um Eu
que retorna a si mesmo e que o mundo não é senão o
Eu intuído nos seus limites originários. Mas, então, o Eu
não tem de existir já para si mesmo para poder atribuir-se
algo; aqui só se pergunta como é que o Eu pode existir ori-
ginariamente para si mesmo e isto não pode ser explicado a
partir da intuição do mundo; ao invés, a intuição do
mundo só é possível por via daquilo que agora estamos
indagando.)

III. Mas o ser racional pode ele próprio opor ao mundo


uma atividade como a que estamos procurando e da qual o
mundo seria o limite; e para a poder opor ao mundo, o ser
racional deve poder produzi-la. E se uma tal atividade é a

24
única condição de possibilidade da autoconsciência, e se esta
tem de ser atribuída necessariamente ao ser racional de acordo
com o seu conceito, então aquilo que é requerido para uma tal
autoconsciência tem de ocorrer.
a) Se vamos avançar na nossa especulação até ao esta-
belecimento de uma doutrina do Direito natural, então a
atividade do ser racional na intuição do mundo, que tem
de ser conhecida por nós, os que filosofamos, mas não pelo
ser racional sobre o qual filosofamos , é coagida e vinculada,
senão pela sua forma (isto é, pelo facto de ter lugar em
geral), ao menos pelo seu conteúdo (isto é, pelo facto de ter
tido lugar uma vez num caso particular, procede precisa-
mente assim). Temos de representar-nos os objetos tal
como são segundo o nosso parecer e sem qualquer inter-
venção nossa e o nosso representar tem de reger-se pelo seu
ser. Uma atividade contraposta a esta teria, assim, de ser
livre em relação ao seu conteúdo; ter-se-ia de poder atuar
de diferentes maneiras.
Além disso, a atividade livre deve ser limitada pela ati-
vidade na intuição do mundo, isto é, a atividade na intui-
ção do mundo é ela própria aquela atividade livre no estado
de vinculação; e, ao invés, a atividade livre é a que se
dedica à intuição do mundo quando desaparece a vincula- 331
ção: os objetos são objetos unicamente porque, e na
medida em que, não devem existir por via da livre atividade
do Eu; e esta atividade livre tem de ser suspensa e limitada
para que os objetos possam existir. Mas a atividade livre
trata de suprimir os objetos na medida em que estes a vin-
culam. Ela é, por conseguinte, atividade causal sobre os
objetos e a intuição é atividade causal suprimida, a que o
ser racional voluntariamente renunciou.
Esta é a atividade, B, que há que pôr em relação com
a intuição do mundo e com o próprio mundo. Mas ela
deve ser necessariamente um retornar do ser racional a si

25
próprio e, na medida em que está direcionada para objetos,
não é esse retornar a si próprio. Daí que, considerada na
sua relação com o próprio ser racional, esta atividade tenha
de ser uma autodeterminação livre para a causalidade.
Enquanto está direcionada para o objeto, está determinada
relativamente ao seu conteúdo. Mas originariamente e de
acordo com a sua essência não o deve estar; portanto, esta
atividade é determinada por si própria, é, ao mesmo
tempo, determinada e determinante e, por isso, é, genuina-
mente, uma atividade que retorna a si própria.
Há que expor sistematicamente o que acaba de ser
dito da seguinte maneira: a atividade que há que demons-
trar tem que ser posta em contraposição ao intuir e é, nessa
medida, absolutamente livre, porque o intuir está vincu-
lado; essa atividade está direcionada para o ser racional ou,
o que é dizer o mesmo, a atividade retorna a si própria
(dado que o ser racional e a sua atividade são uma e a
mesma coisa), pois que o intuir está direcionado para algo
que está fora do ser racional; nesta medida, a atividade em
questão é o formar do conceito de uma causalidade inten-
cionada fora de nós, ou seja, o conceito de fim. Mas, ao
mesmo tempo, há que relacioná-la com o intuir, isto é,
equipará-la a ele; pois é ação sobre os objetos, a qual, e não
se pode perder isto de vista, decorre diretamente do con-
ceito de fim e é o mesmo que o intuir, só que considerado
sobre outro ponto de vista.
b) Mediante uma tal atividade torna-se possível a
autoconsciência requerida. Esta atividade é algo que tem o
seu fundamento último no próprio ser racional e tem de
ser posta como tal mediante a contraposição possível com
algo que não tem o seu fundamento no ser racional. O Eu
(o próprio ser racional como tal) seria agora um Eu deter-
minado limitado e, por isso, susceptível de ser apreendido
pela reflexão: isto é, o Eu prático seria o Eu para a reflexão,

26
o Eu posto por si próprio e o Eu a pôr-se a si próprio na
reflexão e ao qual, como sujeito lógico, se poderia atribuir
algo num predicado possível, tal como a intuição do
mundo é aqui atribuída ao Eu.
c) Somente mediante uma tal atividade se torna possí- 332
vel a autoconsciência. Pois que, no que foi apresentado, não
se incluem senão as notas características que acima mostra-
mos como as condições da autoconsciência; a saber: que
exista uma atividade que retorna a si ou que tenha o seu
fundamento último no próprio ser racional, que essa ativi-
dade seja finita e limitada e que seja posta como limitada,
isto é, em oposição e em relação com o limitante, o que
sucede meramente pelo facto de que, em geral; se reflete
sobre ela.
Por conseguinte, uma tal atividade e o pôr dessa ativi-
dade são pressupostos necessariamente, tão necessariamente
quanto é pressuposta a autoconsciência, e ambos os conceitos
são idênticos.

Corolários

1. Afirma-se que o Eu prauco é o Eu da autocons-


ciência originária; que um ser racional só no querer se aper-
cebe diretarnente de si próprio e não se aperceberia de si e,
consequentemente, não se aperceberia do mundo (pelo que
não seria sequer um ser inteligente) se não fosse um ser prá-
tico. O querer é a característica genuína e essencial da razão;
de acordo com o ponto de vista dos filósofos, o representar
acha-se numa relação de ação recíproca com o querer, mas,
no entanto, é posto como o elemento contingente. A facul-
dade prática é a raiz mais íntima do Eu, todas as demais
faculdades apoiam-se nela e estão a ela ligadas.
Todas as outras tentativas de deduzir o Eu na auto-
consciência fracassaram, porque têm sempre que pressupor

27
aquilo que querem deduzir; torna-se aqui evidente a razão
porque tinham que fracassar. - Como poderia admitir-se
que surgisse um Eu por via da conexão de várias represen-
tações (nenhuma das quais contendo o Eu), só com o pô-
las em conjunto? Só se o Eu existe é que se pode conexio-
nar algo com ele; portanto, o Eu existe com anterioridade a
toda a conexão, subentendendo-se, como se faz sempre
aqui, que existe para o Eu*.
333 2. Querer e representar estão assim numa permanente
relação recíproca necessária e nenhum deles é possível sem
o outro. Que todo o querer está condicionado por um
representar é algo que se concederá sem esforço e já há
muito que tal é reconhecido: tenho de representar aquilo
que quero. Ao invés, a afirmação de que todo o representar
está condicionado por um querer pode deparar-se com difi-
culdades. Mas um representar não pode existir sem que seja
posto aquele que representa e não pode ser posto com
consciência sem que aquele que representa seja posto. Mas
este último não é accídentaliter, na medida em que agora
representa, mas substantialiter, na medida em que, em geral,
é e é algo: seja algo que efetivam'e nte quer ou algo posto e
caracterizado pela sua capacidade de querer. - A mera inte-
ligência não constitui nenhum ser racional, pois que não é
possível por si só, nem a mera faculdade prática apenas o

• O Eu que deve refletir (tal como o Eu que se deve determinar para atuar, o Eu
que deve intuir o mundo, etc.) precede tudo o resto - o mesmo acontece com
o Eu envolvido na reflexão ftlosófica, que é também, obviamente, um Eu sub-
metido às leis da sua essência - e essa precedência deco"e somente destas leis.
este é o Eu de que fala o primeiro princípio da Doutrina da Ciência.
Para este Eu que reflete deve ser posto, então, um outro Eu, isto é, este
Eu deve ser objecto para si próprio. Como é que isto é possível? f disto que
aqui se trata. Os leitores atentos que me perdoem esta nota, que lhes não é
dirigida, mas sim aos leitores superficiais e distraídos que dela necessitam aqui ;
e a estes pede-se que a ela se arrimem sem pre que voltarem a necessitar dela.

28
constitui, porque esta, de igual modo, não é possível por si
só; somente as duas reunidas o completam e fazem dele um
todo.
3. É somente mediante esta ação recíproca entre o
intuir e o querer do Eu que o Eu em si próprio se torna
possível e, bem assim, tudo o que é para o Eu (para a
razão), isto é, tudo o que existe em geral.
Em primeiro lugar, o próprio Eu. - Poder-se-ia dizer
que uma ação recíproca entre o intuir e o querer do
Eu deve preceder a possibilidade do próprio Eu; que no Eu
deve haver algo que se encontra em ação recíproca antes de
que o Eu exista; e isto seria contraditório. Mas é precisa-
mente aqui que reside a ilusão que deve ser afastada. O
intuir e o querer não antecedem o Eu nem sucedem ao Eu,
mas são eles próprios o Eu; ambos têm lugar somente na
medida em que o Eu se põe a si mesmo, têm lugar apenas
neste pôr e mediante este pôr; e é vão pensar que algo pode
ter lugar fora deste pôr e independentemente dele; ao invés,
o Eu põe-se na medida em que ambos têm lugar e na
medida em que põe que ambos têm lugar e é igualmente
coisa vã pensar numa outra posição do Eu. É, pelo menos, 334
não filosófico crer que o Eu seja algo distinto do seu ato e
do seu produto, em simultâneo. Se ouvimos falar do Eu
como algo ativo, não nos faz falta imaginar logo um subs-
trato no qual a atividade, como mera faculdade, devesse
estar ínsita. Isto não é o Eu, mas o produto da nossa pró-
pria imaginação, produto que esboçamos aquando da exi-
gência de pensar o Eu. O Eu não é algo que tem a facul-
dade, não é, de todo em todo, uma faculdade, mas agente; é
aquilo que age e se não age não é nada.
Foi perguntado: como chega aquele que representa à
convicção de que fora da sua representação existe um objeto
dessa representação e que esse objeto é constituído tal como
é representado? Se se tivesse simplesmente considerado de

29
modo acertado aquilo que esta pergunta quer dizer, tería-
mos chegado a partir desta reflexão aos conceitos corretos.
- É o próprio Eu que pelo seu agir constitui o objeto; a
forma do seu agir é, ela própria, o objeto e não se deve pen-
sar em nenhum outro objeto. Aquilo cuja maneira de agir
se torna necessariamente um objeto é um Eu e o Eu em si
mesmo não é nada mais do que algo cuja mera maneira de
agir se torna um objeto. Se age com toda a sua faculdade-
é preciso exprimir-nos assim para nos podermos, pura e
simplesmente, exprimir -, então ele é objeto para si pró-
prio; se age apenas com uma parte da sua faculdade, então
tem como objeto algo que deve existir fora dele.
Apreender-se a si mesmo nesta identidade entre atuar
e ser atuado, não numa das duas dimensões em separado,
mas na identidade de ambas, e, por assim dizer, captar-se
no facto, significa conceber o Eu puro e dominar o ponto
de vista de toda a filosofia transcendental. Este talento
parece estar por completo denegado a muitos. Quem só
pode considerar cada uma das dimensões isoladamente e
em separado só capta como se encontra sempre ou o agente
ou o objero da atividade - e isto, mesmo que se dê ao tra-
balho de conceber a noção indicada -, obtendo de uma e
outra das dimensões, tomadas isoladamente, resultados com-
pletamente contraditórios, que só aparentemente podem ser
unificados, pois que o não estão desde o início.

335 § 2. Consequência: Mediante este ato de pôr a sua faculdade


para uma atividade causal livre, o ser racional põe e
determina um mundo sensível fora de si

I. Ele põe-o. Só aquilo que é absolutamente espontâ-


neo, vale dizer, prático, é posto como subjetivo, como per-
tencente ao Eu, e é pela limitação desta dimensão do Eu

30
que o Eu é ele próprio limitado. O que se situa fora desta
esfera, precisamente porque se situa fora dela, é posto com
não produzido nem a produzir pela atividade do Eu; é, por
consequente, excluído da esfera do Eu e este da sua; surge
um sistema de objetos, isto é, um mundo que existe inde-
pendentemente do Eu, a saber, do Eu prático, que aqui equi-
vale ao Eu em geral, e, independentemente do mundo,
existe, em todo o caso, o Eu, de novo o Eu prático, que
determina os seus fins , pelo que um e o outro existem cada
um por si e cada um tem a sua existência particular.

Corolários

1. O filósofo transcendental tem de admitir que tudo


o que é só o pode ser para um Eu e que o que deve ser
para um Eu só o pode ser mediante um Eu. O senso
comum, pelo contrário, confere a ambos uma existência
independente e afirma que o mundo existiria sempre
mesmo que o Eu não existisse. Este senso comum não
toma em consideração a afirmação do filósofo transcenden-
tal e não o pode fazer, dado que se baseia num ponto de
vista inferior; mas o filósofo transcendental deve, natural-
mente, tomar em conta o senso comum e a sua afirmação é
indeterminada e, precisamente por isto, parcialmente incor-
rera, até que ele mostre como é que precisamente da sua
afirmação se foz decorrer necessariamente o senso comum e
como é que somente mediante a pressuposição desta afirmação
pode o senso comum ser explicado. A filosofia tem de deduzir
a nossa convicção sobre a existência de um mundo exterior
a nós.
Ora, isto sucedeu aqui a partir da possibilidade da
autoconsciência e aquela convicção foi demonstrada como
sendo uma condição desta autoconsciência. Uma vez que o

31
Eu só de modo prático é que se pode pôr na autoconsciên-
cia, mas que ele não pode pôr nada em geral senão o finito,
então tem de, ao mesmo tempo, pôr um limite à sua ativi-
dade prática, pelo que tem de pôr um mundo exterior a si.
336 Assim procede originariamente todo o ser racional, e assim,
sem dúvida, procede também o filósofo.
Se o filósofo depreende em seguida que o ser racional
tem, em primeiro lugar, de pôr a sua atividade prática
reprimida para poder pôr e determinar o objeto, de tal
maneira que o próprio objeto não é dado imediatamente,
mas é originariamente produzido como consequência de
algo distinto, então isto não perturba o senso comum, que
não pode ter consciência destas operações que acabamos de
postular, uma vez que estas condicionam a possibilidade
de toda a consciência e, nessa conformidade, se situam fora
do âmbito dela. Ao senso comum não interessam as espe-
culações que guiam a convicção do filósofo; mas isto não é
um empecilho para o filósofo, desde que este se estribe no
ponto de vista do senso comum.
Poder-se-ia perguntar: que realidade deve corresponder
às ações que se situam fora do âmbito de toda a consciência
e que não são postas na consciência, se a realidade é algo
que é correspondente apenas àquilo que é necessariamente
posto pelo Eu? - Naturalmente, nenhuma, excepto na
medida em que elas estão postas e, nessa conformidade,
na medida em que são uma realidade para o entendimento
filosofante. Se quisermos reunir sistematicamente, baseando-
-nos num fundamento último, as operações do espírito
humano, teríamos de assumir umas e outras como ações
desse espírito humano; todo o ser racional que o tivesse
intentado ver-se-ia confrontado com essa necessidade: é isto
e nada mais do que isto que afirma o filósofo. Aquelas
açõesOil originárias do espírito humano têm a mesma reali-
dade que a causalidade recíproca das coisas no mundo sen-

32
sível e a sua ação recíproca universal. Para aqueles povos
primitivos dos quais ainda temos testemunhos e que só em
escassa medida reuniam as suas experiências, deixando antes
subsistir dispersas na sua consciência as percepções singula-
res, não havia uma tal causalidade, pelo menos uma causali-
dade contínua extensa, nem ação recíproca. Esses povos
consideravam todos os objetos do mundo sensível como
objetos animados e faziam deles causas primeiras livres,
semelhantes a eles próprios. Um tal encandeamento univer-
sal não tinha para eles nenhuma realidade, pois que para
eles não existia de todo em todo. Mas quem estabelece uma
conexão entre as suas experiências em termos de unidade -
e esta é uma tarefa que faz parte do percurso da razão
humana que progride sinteticamente e que deveria, mais
cedo ou mais tarde, ser aceite e cumprida - tem necessaria-
mente que encadeá-las daquele modo e para esse a conexão
do todo assim alcançada tem realidade. Logo que esteja
cumprida esta tarefa, o espírito humano retorna a si, como
o fez pela primeira vez com clara consciência e de modo
completo um dos seus mais sublimes representantes, Kant,
e descobre que tudo aquilo que crê perceber fora de si, pro- 337
duziu-o somente a partir de si, conclamando então a razão,
que continua a avançar sempre sinteticamente para a tarefa
de reunir todas estas operações do espírito num funda-
mento último e este procedimento tem, pela mesma razão,
a mesma realidade que tinha o procedimento anterior. Esta
última tarefa, que incumbe à faculdade de síntese, e após o
cumprimento da qual a Humanidade volta à análise (que
passará a partir de agora a ter um significado completa-
mente diferente) , e deve ser também, mais cedo ou mais
tarde, realizada; e seria simplesmente de desejar que aqueles
cuja capacidade os não destina a tomar parte nesta tarefa
não tomem notícia alguma da realidade que deve ser pro-
duzida por sua via, como, de resto, sempre aconteceu, e

33
que, tão-pouco, a pretendam rebaixar à espécie particular
da realidade que conhecem. - Que um Eu puro e as suas
operações antecedentes a toda a consciência não têm reali-
dade alguma porque não têm lugar na consciência comum
significa o mesmo que um selvagem ignaro diria se afir-
masse: a vossa causalidade e a vossa ação recíproca não têm
realidade, pois não se podem comer.
2 . Da dedução da nossa convicção na existência de
um mundo sensível fora de nós depreende-se simultanea-
mente até onde chega essa convicção e em que estado de
espírito ela tem lugar: pois que aquilo que é fundado não
vai mais além do que o seu fundamento e logo que se
conheça o fundamento de uma determinada maneira de
pensar, conhece-se também o seu âmbito. Esta convicção
vai tão longe quanto a nossa faculdade prática se distingue
e se contrapõe à nossa faculdade teórica; vai tão longe
quanto as nossas representações da ação das coisas sobre
nós e da nossa reação sobre elas, pois que é somente por via
dessa ação e reação que a nossa faculdade prática é posta
como limitada. Daí que os filósofos tenham sempre condu-
zido as suas demonstrações sobre a realidade de um mundo
exterior a partir da ação desse mundo sobre nós; uma
demonstração que, obviamente, pressupõe aquilo que deve
ser demonstrado, mas que se ajusta ao senso comum, pois
que é a prova que o senso comum se dá a si próprio.
Mas como é que faz o filósofo especulativo para se
afastar temporariamente desta convicção, a fim de poder
conduzir a sua investigação para além dela? Evidentemente,
não procedendo à distinção que a condiciona. Se conside-
rarmos somente a atividade de representação e só esta qui-
sermos explicar, então surgirá uma dúvida necessária sobre
a existência das coisas fora de nós. O idealista transcenden-
tal agrega a atividade teórica e prática simultaneamente,
compreendendo-as como atividade em geral e, por essa via,

34
chega necessariamente - uma vez que no Eu não há, nem
poder haver, passividade - ao resultado de que o sistema
completo de objetos para o Eu tem de ser produzido pelo
próprio Eu. Mas, precisamente porque reuniu as duas ativi-
dades, pode, a seu tempo, separá-las e mostrar o ponto de 338
vista em que tem, necessariamente, de assentar o senso
comum. O idealista dogmático exclui totalmente a ativi-
dade prática das suas investigações e considera somente a
atividade teórica, querendo fundamentá-la através de si pró-
pria, pelo que é, pois, natural que tenha de fazer dela uma
atividade condicionada. - Esta especulação é possível tanto
para um como para o outro enquanto se mantiverem no
recolhimento do pensamento, mas logo que se agite a sua
atividade prática esquecem de imediato as suas convicções
especulativas e retornam à visão das coisas do senso
comum, pois têm que o fazer. Não existiu idealista algum
que tenha alargado as suas dúvidas ou pretensa certeza até
ao seu agir, nem poderia ter existido, pois que então não
poderia, em absoluto, agir, e, assim, tão-pouco poderia
viver.

II . Mediante aquele pôr de uma atividade livre é,


simultaneamente, determinado o mundo sensível, quer dizer,
o mundo sensível é posto com certas características inalterá-
. . .
veis e umversais.
Em primeiro lugar - é recorrendo à liberdade absoluta
que se elabora o conceito de ação causal do ser racional; o
objeto no mundo sensível, como oposto a essa ação causal,
está, por conseguinte, estabelecido, fixado, determinado de
modo imutável. O Eu é determinável até ao finito, o objeto
está determinado de uma vez por todas, porque é um
objeto. O Eu é o que é no agir, o objeto no ser. O Eu está
continuamente em devir, não existe nele nada de dura-
douro: o objeto é para sempre como é, como foi e como

35
será. É no Eu que reside o fundamento último do seu agir;
no objeto, o do seu ser: pois ele não tem nada mais do que
ser.
Logo - o conceito de ação causal, que é esboçado a
partir de uma liberdade absoluta e que, sob as mesmas con-
dições, poderia ser infinitamente diverso, aponta para uma
ação causal sobre o objeto. Consequentemente, o objeto
deve poder ser mudado até ao infinito na decorrência de
um conceito infinitamente modificável, deve poder fazer-se
dele tudo o que se quiser. O objeto está fixado e poderia
bem, pela sua constância, resistir à influência do Eu; mas o
objeto não é capaz de qualquer modificação por si próprio
(não pode desencadear qualquer efeito); não pode, portanto,
agir contra essa influência.
Finalmente - o ser racional não se pode pôr como
agindo causalmente sem ao mesmo tempo se pôr como re-
presentante, não se pode pôr como agindo causalmente
sobre um determinado objeto sem continuar a representar
esse determinado objeto; não pode pôr qualquer efeito par-
ticular como completo sem pôr o objeto a que esse efeito se
dirigia. Quer dizer que, uma vez que o objeto é posto
como anulando a ação causal, mas a ação causal deve per-
sistir a par do objeto, então surge aqui um conflito que só
pode ser mediado através de uma oscilação da imaginação
339 entre ambos, de onde surge um tempo*. Por isso, a ação
causal sobre o objeto acontece sucessivamente no tempo. Se
se atua sobre um e o mesmo objeto e se em cada momento
presente a ação causal é considerada como condicionada
pela do momento precedente e, indiretamente, pela ação

• Pode ler-se a esre propósiro o Didlogo sobre Idealismo e Realismo, de Jacobi 02l,
onde se demonsrra de modo convinceme que as represemações do rempo, que
comradizem em si o conceiro puro de causal idade, só se rransmirem a esre a
parrir da represemação da nossa própria arividade causal sobre as coisas.

36
causal de todos os momentos precedentes, então o estado
do objeto considera-se igualmente condicionado em cada
momento pelo estado em todos os momentos anteriores a
partir do primeiro conhecimento do objeto; e, assim, o
objeto permanece o mesmo, apesar de continuar a mudar
sem cessar; quer dizer, o substrato produzido pela imagina-
ção para unir nele o diverso, o que subjaz aos acidentes que
se excluem sem cessar, aquilo a que chama mera matéria,
permanece o mesmo. Daí decorre que nós só nos podemos
pôr como mudando a forma das coisas, mas nunca a maté-
ria e que temos plena consciência da nossa faculdade para
alterar infinitamente a forma das coisas, mas também da
incapacidade para as produzir ou eliminar; e que, para nós, 340
a matéria não pode ser aumentada ou diminuída e que é
deste ponto de vista do senso comum, mas, de modo
algum, do ponto de vista da filosofia transcendental, que
uma matéria nos é dada originariamente*.

§ 3 . Segundo teorema: O ser racional finito não pode atri-


buir-se a si próprio uma atividade causal livre no mundo
sensível sem a atribuir também a outros e, portanto, sem
admitir outros seres racionais finitos fora de si

Demonstração

I.
a) O ser racional não pode, de acordo com a demons-
tração levada a cabo no § 1, pôr (perceber e conceber)

* Uma fil osofi a que pan e dos factos da consciência, do que se encontra quando
se considera o Eu unicam enre como algo sobre o que se exerce a ação, não
pode ir para além dos limites onde um a matéria é dada e procede de um
modo perfeitamenre consequenre se estabelece aquela proposição0 3>.

37
nenhum objeto, sem, ao mesmo tempo, na mesma síntese
indivisa, se atribuir uma atividade causal.
b) Mas ele não pode atribuir-se qualquer atividade
causal sem ter posto um objeto a que esta atividade causal
se deva reportar. A posição do objeto como algo determi-
nado por si mesmo e, nesta medida, como inibidor da ati-
vidade livre do ser racional, tem de efetuar-se necessaria-
mente num momento temporal anterior e é só mediante
este momento temporal anterior que se torna presente o
momento temporal em que é apreendido o conceito de ati-
vidade causal.
c) Todo o conceber está condicionado por um pôr da
atividade causal do ser racional, e toda a atividade causal
está condicionada por um conceber precedente desse pôr.
Por conseguinte, cada momento possível da consciência está
condicionado por um momento precedente da consciência
e a consciência é pressuposta como efetiva logo na explica-
ção da sua possibilidade. Só se pode explicar de forma cir-
cular; não se pode, portanto, de todo em todo, explicar e
aparece como impossível.
34 1 A tarefa consistia em mostrar como é possível esta
autoconsciência. A isto, respondemos: a autoconsciência é
possível se o ser racional se pode atribuir num momento
único e indivisível uma atividade causal e se pode opor algo
a essa atividade causal. Vamos supor que isto ocorre num
determinado momento, Z.
Pergunta-se agora também sob que condição é possível
aquilo que acabamos de exigir; e aí é, então, claro que a
atividade causal a pôr só o pode ser em relação com um
qualquer objeto determinado, A, a que essa atividade diz
respeito. Não tem de se dizer que poderia pôr-se uma ati-
vidade causal em geral, uma atividade causal meramente
possível; pois isso seria um pensamento indeterminado e
já causou bastante dano à filosofia argumentar a partir

38
de pressuposições gerais. Uma atividade causal meramente
possível ou uma atividade causal em geral põe-se apenas
mediante abstração a partir de uma atividade causal con-
creta ou de qualquer atividade causal efetiva; mas, antes de
se poder abstrair de algo, esse algo tem de ser posto, e aqui,
como sempre, o conceito indeterminado de algo em geral é
precedido pelo conceito determinado de algo efetivo deter-
minado, estando o primeiro condicionado pelo segundo. -
Tão-pouco se poderia dizer que a atividade causal pode ser
posta como atividade causal reportada ao objeto B a pôr no
próprio momento Z, uma vez que B é posto como um
objeto apenas na medida em que nenhuma atividade causal
a ele se reporta.
Assim sendo, o momento Z deve ser explicado a partir
de outro momento em que o objeto A tenha sido posto e
concebido. Mas A só pode ser concebido sob a condição
em que B poderia ser concebido, quer dizer: o momento
em que é concebido só é possível sob a condição de um
momento precedente, e assim até ao infinito. Não encon-
tramos qualquer momento possível a que pudéssemos ligar
o fio da autoconsciência, por meio do qual toda a consciên-
cia se torna possível, e, assim, a nossa tarefa não está resol-
vida.
No interesse da ciência completa que deve aqui ser
estabelecida, importa conseguir uma perspetiva clara sobre
o raciocínio que acabamos de levar a cabo.

II . O fundamento da impossibilidade de explicar a


autoconsciência sem a pressupor sempre como já existente
consistia em que, para pôr a sua atividade causal, o sujeito
da autoconsciência deveria ter já posto um objeto, simples-
mente como tal: e, assim, do momento ao qual quiséssemos
ligar o fio éramos remetidos para um momento anterior ao
qual ele teria de estar já ligado. Este fundamento tem de ser

39
342 afastado. Mas ele só deve ser afastado na medida em que se
admita que a atividade causal do sujeito está sinteticamente
unida com o objeto num e no mesmo momento; a ativi-
dade causal do sujeito seria ela própria o objeto percebido e
conceptualizado, o objeto não seria senão esta atividade
causal do sujeito e assim seriam ambos o mesmo. É só
mediante uma tal síntese que evitamos ser remetidos para
uma síntese anterior; é somente ela que contém tudo o que
condiciona a autoconsciência e que fornece um ponto a
que se pode ligar o fio da autoconsciência. Só sob esta con-
dição é possível a autoconsciência. Por isso, tão certo como
deve ter lugar a autoconsciência, tão certo temos de aceitar
o que acaba de ser apresentado. A demonstração sintética
rigorosa está, assim, acabada; pois aquilo que foi descrito
vê-se corroborado como condição absoluta da autocons-
ciência.
Resta apenas a questão do que pode significar a síntese
apresentada, o que deve por ela ser entendido e como é
possível aquilo que é nela exigido. Por isso, de ora em
diante, só temos de passar a analisar aquilo que foi demons-
trado.

III. Parece que a síntese que foi levada a cabo, em vez


da pura incompreensibilidade que pretendia eliminar, nos
dá a impressão de uma contradição completa.
Aquilo que foi por ela estabelecido deve ser um objeto;
mas a natureza de um objeto consiste em a atividade livre
do sujeito ser posta como inibida aquando da sua apreen-
são. Este objeto deve, porém, ser uma atividade causal do
sujeito; mas é da natureza de uma tal atividade causal que a
atividade do sujeito seja absolutamente livre e se determine
a si própria. Aqui, as duas devem estar unidas; as naturezas
de ambos, sujeito e objeto, devem ser preservadas, sem que
nenhuma delas se perca. Como pode ser isto possível?

40
Ambas estão completamente unidas, se pensarmos um
ser determinado do sujeito para a autodeterminação, uma
exortação ao sujeito para que se decida a uma atividade
causal.
Na medida em que aquilo que é exigido é um objeto,
tem de ser dado na sensação, mais precisamente na sensa-
ção externa - não na interna, pois toda a sensação interna
surge unicamente mediante a reprodução de uma sensação
externa; a primeira pressupõe a segunda e, assim sendo, a
autoconsciência seria novamente pressuposta como já exis-
tente; mas é a possibilidade da autoconsciência que deve ser
explicada. - Mas o objeto não é nem pode ser concebido
de outro modo senão como uma mera exortação ao sujeito
para agir. Consequentemente, tão certo como o sujeito com-
preende o objeto, tão certo ele tem o conceito da sua pró-
pria liberdade e autonomia, e, na verdade, como um
conceito que lhe é dado desde fora. Ele recebe o conceito
da sua atividade causal livre, não como algo que é no
momento presente, pois que isto seria uma verdadeira con- 343
tradição, mas como algo que deve ser no futuro.
(A pergunta era: como pode encontrar-se o sujeito a si
próprio como um objeto? Para se encontrar a si próprio, ele
só se poderia encontrar como espontâneo; de outro modo,
não se encontraria a si próprio; e, uma vez que não encon-
tra absolutamente nada, a não ser que exista e não existe a
não ser que se encontre a si próprio, resulta que não encon-
tra verdadeiramente nada. Para se encontrar como objeto
(da sua reflexão), não poderia encontrar-se como determi-
nando-se para a espontaneidade (do ponto de vista trans-
cendental, não se pergunta como pode ser em si a questão
-não é isso que está aqui em causa-, mas somente como é
que ela tem de se apresentar ao suj ei to sob investigação),
mas antes como determinado a ela por um embate(l 4l exte-
rior que tem, no entanto, de lhe deixar a sua inteira liber-

41
dade de autodeterminação; pois que senão perde-se o pri-
meiro ponto e o sujeito não se encontra como Eu.
A fim de esclarecer melhor este último ponto, ante-
cipo algo a que vamos mais tarde retornar. O sujeito não
pode achar-se constrangido a agir efetivamente, nem sequer
em termos gerais; pois que então não seria livre, nem seria
um Eu. Ainda menos, se quer decidir-se a agir, pode o
sujeito achar-se constrangido a agir deste ou daquele modo
particular; pois que então, uma vez mais, não seria livre,
nem seria um Eu. Como e em que sentido está ele determi-
nado para a atividade causal para encontrar-se com um
objeto? Unicamente na medida em que se encontra como
algo que poderia operar aqui, que é exortado a operar, mas
que também poderia abster-se de o fazer.)

IV. O ser racional deve realizar a sua livre atividade


causal; esta exigência que lhe é dirigida faz parte do con-
ceito de ser racional e logo que ele apreenda o conceito que
buscamos, ele cumpre essa exigência, por um dos dois
modos:
Ou mediante um agir efetivo. Requer-se apenas ativi-
dade em geral; mas faz expressamente parte do conceito de
uma tal atividade que, na esfera das ações possíveis, o
sujeito deve escolher uma delas por livre autodeterminação.
O sujeito só pode agir de um modo; a sua faculdade de
sensação, que aqui é uma faculdade de produzir efeitos no
âmbito sensível, só a pode determinar de um ü nico modo.
Na exata medida em que age, escolhe por autodetermina-
ção absoluta este único modo e é, por conseguinte, absolu-
tamente livre, é um ser racional, e põe-se como tal:
Ou mediante um não agir. Também aqui é livre; pois
que, de acordo com a nossa pressuposição, deve ter apreen-
dido o conceito da sua atividade causal como algo que lhe é

42
exigido ou que é esperado dele. Se procede agora contra
esta expectativa e se abstém de agir, é igualmente com
liberdade que ele escolhe entre agir e não agir.
O conceito estabelecido é o de uma livre atividade 344
causal recíproca, no seu sentido mais rigoroso: o conceito
não é, pois, nada mais que isto. Posso associar pelo pensa-
mento uma reação livre a uma ação livre qualquer, como
sendo uma reação contingente: mas isto não corresponde ao
conceito exigido em toda a sua precisão. O conceito deve
ser determinado com precisão: ação e reação não podem ser
pensadas em separado. Ambas têm de constituir as partes
integrantes de um todo. Algo assim é postulado como con-
dição necessária da autoconsciência de um ser racional .
Tem de verificar-se, de acordo com a nossa demonstração.
É somente a algo deste género que o fio da autocons-
ciência se pode atar e que poderá depois, sem dificuldade,
estender-se também aos outros objetos.
É pela nossa apresentação que este fio é atado. De
acordo com a presente demonstração, o sujeito pode e tem
de pôr-se como ser que opera livremente sob esta condição.
Se se põe como tal, então pode e tem de pôr um mundo
sensível; e pôr-se a si próprio em contraposição a esse
mundo sensível. - E agora que está solucionada a tarefa
principal, todas as operações do espírito humano podem
proceder sem mais dificuldade, de acordo com as suas pró-
prias leis.

V. A nossa análise da síntese estabelecida foi até agora


meramente explicativa; tínhamos de clarificar aquilo que
tínhamos entendido sob o conceito dessa síntese. A análise
vai ainda continuar, mas de agora em diante será dedutiva,
quer dizer, o sujeito tem de, porventura, em consequência
da influência posta sobre si, pôr ainda muitas outras coisas:

43
como sucede isto ou o que é que ele põe, de acordo com as
leis do seu ser, como consequência do seu pôr inicial?
A influência sobre o sujeito, que descrevemos, era con-
dição necessária de toda a autoconsciência; se ela ocorre,
então ocorre também necessariamente a autoconsciência, ela
é, portanto um foctum necessário. Se, de acordo com as leis
necessárias do ser racional, tem de se pôr, a par dessas
leis necessárias, algo mais, então o pôr dessas leis é igual-
mente um foctum tão necessário como o primeiro.
Na medida em que a influência descrita é algo sentido,
é uma limitação do Eu e o sujeito tem de tê-la posto como
tal; mas não há limitação sem algo que limite. Daí que o
sujeito, tal como pôs aquela limitação, tenha de ter posto
ao mesmo tempo algo exterior a si como o fundamento de
determinação da mesma; este algo exterior a si é o algo que
é sentido e compreende-se sem qualquer dificuldade.
Mas esta influência é algo determinado e, mediante o
pôr dessa influência como algo determinado, não é posto
somente um fundamento em geral, mas um fundamento
determinado dessa influência. Que género de funda-
mento tem este de ser, que características lhe devem ser
345 atribuídas se ele deve ser fundamento dessa influência
determinada? Esta é uma questão que nos vai ocupar ainda
um pouco mais longamente.
A influência foi concebida como uma exortação ao
sujeito a uma atividade livre e- é disto que tudo depende-
ela não poderia ser concebida de outro modo, não poderia
sequer ser concebida se não fosse concebida assim.
A exortação é a matéria do operar e o seu fim último
é uma atividade causal livre do sujeito a que ela apela. O
ser racional de modo algum deve ser determinado, forçado ,
a agir mediante a exortação, como sucede no conceito de
causalidade com o causado em relação à causa; ao invés, ele
deve determinar-se a si próprio a agir na sequência apenas

44
dessa exortação. Mas se o ser racional o vier a fazer, tem de
previamente compreender a exortação e concebê-la, tendo
assim em conta um conhecimento prévio dela. A causa da
exortação, posta fora do sujeito, tem, portanto, pelo menos
de pressupor a possibilidade de o sujeito a poder compreen-
der e conceber, pois de outro modo a sua exortação não
tem qualquer fim que seja. A finalidade da exortação está
condicionada pelo entendimento e pela liberdade do ser a
que ela se dirige. Daí que esta causa tenha necessariamente
de ter o conceito de razão e de liberdade; pelo que esta
causa tem de ser um ser capaz de conceitos, uma inteligên-
cia e, como acaba de ser demonstrado, não sendo isto pos-
sível sem liberdade, também um ser livre e, portanto, um
ser racional, e é como tal que deve ser posto.
À conclusão aqui estabelecida, que se funda necessária
e originariamente na essência da razão e que foi segura-
mente eferuada sem qualquer intervenção deliberada da
nossa parte, iremos acrescentar algumas palavras a título de
clarificação.
Suscitou-se legitimamente a questão: quais são os efei-
tos que apenas são explicáveis por referência a uma causa
racional? A resposta "aqueles que têm necessariamente de
ser precedidos por um conceito dos próprios" é uma res-
posta que é verdadeira, mas não suficiente, pois que fica
sempre por responder a questão mais elevada, algo mais
difícil: quais são, então, os efeitos em relação aos quais se
tem de ajuizar que só são possíveis de acordo com um con-
ceito previamente elaborado? Qualquer efeito pode ser per-
feitamente concebido, na medida em que exista, e o diverso
nele encaixa na unidade do conceito tão mais adequada e
mais conseguidamente quanto mais entendimento possua o
observador. Ora, esta é uma unidade que o observador, ele
próprio, introduziu no diverso graças àquilo que Kant

45
denomina de "faculdade do juízo reflexiva"(lSl, unidade essa
que ele tem necessariamente de introduzir para que para o
observador possa existir um efeito em geral. Mas quem é
que garante ao observador que, do mesmo modo que ele
ordena agora o real diverso sob o conceito, tenham sido
anteriormente ao efeito ordenados por um entendimento
sob o conceito de unidade que ele se representa os conceitos
do diverso que ele percebe?; e o que é que o poderia legiti-
mar a uma tal conclusão? Tem, portanto, de ser aduzido
um fundamento de justificação superior ou, a não ser
assim, a conclusão sobre a causa racional é completamente
infundada e - seja dito de passagem - seria até, de acordo
com a lei compulsória da razão, fisicamente impossível usar
de modo ilegítimo uma tal conclusão, pois que se ela não
tivesse sido produzida corretamente numa qualquer esfera
do conhecimento, então a conclusão não estaria em abso-
luto presente no ser racional.
Não existe dúvida alguma: uma causa racional, tão
certo quanto o seja, elabora o conceito do produto que
deve ser realizado pela sua atividade e segundo o qual ela se
dirige no agir e a que, de certo modo, se atém continua-
mente. Este conceito chama-se conceito de fim.
Mas um ser racional não pode apreender nenhum
conceito da sua atividade causal sem que tenha um conheci-
mento do objeto desta atividade causaL Pois não pode deter-
minar-se a uma atividade - bem entendido, com a cons-
ciência desta autodeterminação, pois que só assim ela se
torna uma atividade livre - se não pôs essa atividade como
obstruída; mas aquilo que ele põe quando põe uma ativi-
dade determinada como obstruída é um objeto exterior a
si. Por isso - seja dito de passagem -, mesmo que se qui-
sesse atribuir inteligência e liberdade à natureza, não se lhe
poderia atribuir a faculdade de apreender um conceito de

46
fim (e é precisamente por isso que, ao invés, se lhe teria de
den egar inteligência e liberdade) , uma vez que não existe
nada exterior sobre o qual a natureza possa operar. Tudo
aquilo sobre o qual se pode operar é natureza.
Um critério seguro de identificação de algo como ação
causal de um ser racional seria, assim, o de que a ação cau-
sal só pudesse pensar-se como possível sob condição de um
conhecimento do seu objeto. Ora, não existe nada que
possa pensar-se como possível apenas mediante o conheci-
mento, e não mediante a simples força natural, a não ser o
próprio conhecimento. Portanto, se o objeto - e aqui tam-
bém o fim - de uma ação causal só pudesse ser o de produ-
zir um conhecimento, então seria necessário admitir uma
causa racional da ação causal.
Mas, neste caso, a assunção de que se trata de um
conhecimento que se visa, teria de ser necessária, quer
dizer, não se teria de pensar nenhum outro fim do agir e a
própria ação seria incompreensível e não se deixaria com-
preender senão como uma ação que visa um conhecimento. 347
- Assim, diz-se que a natureza nos oferece este ou aquele
ensinamento, mas com isto não quer de modo algum dizer-
-se que o evento natural não tem outros fins; quer, antes,
dizer-se que se o quisermos e se dirigirmos a nossa livre
consideração para este fim , então também poderíamos,
entre outras coisas, retirar dele ensinamentos.
Aqui entra o caso descrito. A causa da influência que
se exerce sobre nós não tem, em absoluto, qualquer fim
que seja, se não tiver como fim o de que nós a reconheça-
mos como tal; tem, portanto, de se admitir um ser racional
como causa dessa influência.
Está agora demonstrado o que devia ser demonstrado.
O ser racional não pode pôr-se como tal a menos que sobre
ele tenha lugar uma exortação para agir livremente, de
acordo com I-IV Mas se sobre ele tem lugar uma tal

47
exortação, então tem de pôr fora dele necessariamente um
ser racional como a causa da dita exortação e, portanto, tem
de pôr em geral um ser racional fora dele, de acordo com V.

Corolários

1. O homem (e todos os seres finitos em geral) só se


torna homem entre os homens; e uma vez que o homem
não pode ser senão um homem e que não seria nada se não
o fosse - se devem em geral existir homens, então deve existir
mais do que um. Esta não é uma opinião aceite arbitraria-
mente, assente sobre a experiência anterior ou sobre outros
fundamentos de probabilidade, mas uma verdade rigorosa-
mente demonstrável a partir do conceito de homem. Mal
se determine completamente este conceito, é-se logo con-
duzido, a partir do pensamento de um indivíduo, a admitir
um segundo, a fim de poder explicar o primeiro. O con-
ceito de homem não é, portanto, de modo algum, o
conceito de um indivíduo, pois este é impensável, mas é
o conceito de um género.
A exortação à espontaneidade livre é o que se chama
educação. Todos os indivíduos têm de ser educados para ser
homens, pois que de outro modo não o seriam. Coloca-se
aqui a qualquer um a questão: se fosse necessário admitir
uma origem do género humano na sua totalidade e, assim,
um primeiro casal de seres humanos - o que é, de resto,
necessário num certo ponto da reflexão -, então quem é
que educou o primeiro casal de seres humanos? Educados
era preciso que o fossem; pois que a demonstração levada a
cabo é universal. Não pôde ser um homem que os educou,
348 uma vez que eles deviam ser os primeiros homens. É, por-
tanto, necessário, que tenha sido um outro ser racional, que
não um homem, a educá-los - bem entendido, só até ao

48
ponto em que eles fossem capazes de se educar reciproca-
mente. Um espírito tomou-os a seu cargo, tal como relata
um antigo e venerável documenro06l, que encerra, em geral,
a sabedoria mais profunda e sublime e que estabelece os
resultados a que, no final, toda a filosofia tem de retornar.
2. O carácter distintivo da humanidade, por via do
qual somente qualquer pessoa se confirma de modo irrefu-
tável como ser humano, é unicamente a interação livre
mediante e segundo conceitos, aquele dar e receber conhe-
Clmenros.
Se há um homem, então também há necessariamente
um mundo, e precisamente um mundo tal como o nosso,
que contém objetos destituídos de razão e seres racionais.
(Não é aqui o lugar apropriado para ir mais além e
demonstrar a necessidade de rodos os objetos determinados
na natureza e a sua classificação necessária, a qual, todavia,
se pode confirmar de igual modo que a necessidade de um
mundo em geral). * A pergunta sobre o fundamento da rea-
lidade dos objetos responde-se assim: a realidade do mundo
- bem entendido, para nós, isto é, para roda a razão finita -
é condição da autoconsciência; pois que não nos podemos
pôr a nós próprios sem pôr algo exterior a nós, a que temos
que atribuir a mesma realidade que concedemos a nós pró-
prios. É contraditório perguntar por uma realidade que
deva permanecer depois de se ter abstraído de toda a razão;
pois aquele que pergunta é provido de razão, pergunta
impelido por um motivo racional e quer uma resposta
racional; ele não abstraiu, portanto, da razão. Não podemos
sair do círculo da nossa razão; da coisa em si já se tratou, a

* Quem não puder perceber isto que renh a paciência e não conclua da sua
in co mpreensão se não aquilo que dela deco rre, ou seja, que não pode com-
preendê-lo.

49
filosofia quer somente conseguir que saibamos isso e não
devemos ter a ilusão de ter saído desse círculo, uma vez
que, como é evidente, estamos sempre enclausurados nele.

349 § 4. Terceiro teorema: O ser racional finito não pode admitir


a existência de outros seres racionais finitos fora de si sem
se pôr com eles numa relação determinada, que se chama
relação jurídica

Demonstração

I. O sujeito tem de se diferenciar, mediante oposição, do


ser racional que, na sequência da demonstração antecedente,
admitiu fora dele. O sujeito pôs-se como um ser que con-
tém em si o fundamento último de algo que há nele (esta
era a condição da ego idade, da racionalidade em geral); mas
pôs igualmente um ser fora de si como fundamento último
do que nele acontece.
Ele deve poder diferenciar-se desse ser: de acordo com
a nossa pressuposição, isto só é possível na medida em que
ele possa distinguir naquele ser dado em que medida é que
o fundamento desse ser reside nele e em que medida reside
fora dele. No que à forma diz respeito, quer dizer, em rela-
ção a que se age em geral, o fundamento da atividade cau-
sal do sujeito reside simultaneamente no ser que lhe é exte-
rior e nele próprio. Se o ser que lhe é exterior não tivesse
agido causalmente e, com isso, exortado o sujeito à ativi-
dade causal, então este também não teria agido causal-
mente. O seu agir como tal está condicionado pelo agir do
ser fora dele. Está também condicionado quanto à matéria:
ao sujeito está assinalada a esfera do seu agir em geral.
Mas o sujeito realizou uma escolha dentro desta esfera
que lhe foi assinalada; deu-se a si próprio, de modo abso-

50
luto, a determinação mais precisa que delimita o seu atuar.
O fundamento desta última determinação da sua atividade
causal reside unicamente nele. Só assim pode o sujeito pôr-
se como ser absolutamente livre, como fundamento exclu-
sivo de algo, só assim pode separar-se completamente do
ser livre que lhe é exterior e atribuir-se apenas a si próprio a
sua atividade causal.
De entre as possibilidades que se encontram dentro do
círculo que vai do ponto limite do produto do ser que lhe
é exterior, X, até ao ponto limite do seu próprio produto,
Y, o sujeito realizou uma escolha: a partir destas possibilida-
des e compreendendo-as como o conjunto das possibili-
dades que ele teria podido escolher, o sujeito constitui a sua
liberdade e autonomia.
No âmbito da esfera descrita ter-se-ia que realizar uma 350
escolha, para que o produto Y possa ser possível como algo
particular na esfera dos efeitos que ela oferece.
Mas no âmbito desta esfera só o sujeito e não o outro
pode ter realizado a escolha; pois, de acordo com a nossa
pressuposição, ele deixou-a indeterminada.
Aquele que escolheu exclusivamente no âmbito desta
esfera é o seu Eu, é o indivíduo, o ser racional determinado
por oposição a outro ser racional; e este está caracterizado
por uma expressão determinada da liberdade, que lhe per-
tence em exclusivo.

II. Nesta diferenciação por oposição, o conceito de si pró-


prio como ser livre e o conceito de um ser racional que lhe é
exterior, igualmente como um ser livre, são determinados e
condicionados reciprocamente pelo sujeito.
Não poder haver oposição se no mesmo momento
indiviso da reflexão os opostos não estão num plano de
equiparação e referidos um ao outro, se não se comparam
entre si; esta é uma proposição teórica formal, que foi

51
demonstrada rigorosamente no momento próprio<I7l, mas
que esperamos que seja plausível para o senso comum
mesmo sem demonstração. Vamos aplicar aqui esta propo-
sição.
O sujeito determina-se como indivíduo e como indiví-
duo livre mediante a esfera no âmbito da qual realizou uma
escolha de entre as possíveis ações dadas; e opõe-se a outro
indivíduo que lhe é exterior e que é determinado por uma
outra esfera, no âmbito da qual este realizou uma escolha.
Ele põe, portanto, duas esferas em simultâneo e só assim é
que a oposição requerida se torna possível.
O ser que lhe é exterior está posto como livre e, por-
tanto, como um ser que também poderia ter ultrapassado a
esfera pela qual está atualmente determinado e podê-lo-ia
ter feito de tal modo que o sujeito ficasse privado da possi-
bilidade de um agir livre. Não a ultrapassou com liberdade;
limitou, portanto, por ele próprio a sua liberdade material-
mente, isto é, limitou a esfera das ações que eram possíveis
por via da sua liberdade formal; e isto é posto necessaria-
mente pelo sujeito no ato de se opor a outro ser racional,
tal como tudo o mais que nós vamos ainda estabelecer,
sem, por razão de brevidade, voltarmos a repetir a presente
advertência.
Além disso, de acordo com a nossa pressuposição, o
ser exterior ao sujeito exortou, por via da sua ação, este
último a um agir livre; logo, limitou a sua ação mediante
um conceito de fim em que estava pressuposta - ao menos,
em termos problemáticos - a liberdade do sujeito; limitou,
35 1 portanto, a sua liberdade mediante o conceito de liberdade
(formal) do sujeito.
É, antes de mais, por esta autolimitação do outro ser
que é condicionado agora o conhecimento que o sujeito
tem do outro ser como ser racional e livre. Pois que, de
acordo com a nossa demonstração, o sujeito somente pôs

52
um ser livre que lhe é exterior na sequência da exortação à
atuação livre que teve lugar. A sua autolimitação estava,
porém, condicionada pelo conhecimento, nem que seja
problemático, do sujeito como um ser potencialmente livre.
Consequentemente, o conceito que o sujeito tem do ser
que lhe é exterior como um ser livre está condicionado pelo
mesmo conceito que este tenha dele e por um agir que é
determinado por este conceito.
Ao invés, a plena consecução do conhecimento categó-
rico que o ser que é exterior ao sujeito tem do sujeito como
um ser livre é condicionada pelo conhecimento e o agir em
conformidade a este conhecimento por parte do sujeito. Se
este não reconhecesse que existe um ser livre que lhe é exte-
rior, então algo que deveria ter acontecido, de acordo com
as leis da razão, não teria acontecido e o sujeito não seria
racional. Ou então, se este conhecimento se tivesse, na rea-
lidade, suscitado nele, mas sem que o sujeito limitasse em
consequência dele a sua liberdade para possibilitar ao outro
agir livremente também, este último não poderia concluir
que o sujeito é um ser racional, porque esta conclusão só se
torna necessária mediante a autolimitação realizada.
A relação dos seres livres uns com os outros está então
necessariamente determinada e é posta como determinada
da seguinte maneira: o conhecimento de um dos indivíduos
pelo outro é condicionado pelo facto de que o outro o trate
como um ser livre (isto é, que limite a sua liberdade
mediante o conceito de liberdade do primeiro) . Mas este
modo de tratamento é condicionado pelo modo de agir do
primeiro em relação ao outro; e este último pelo modo de
agir e pelo conhecimento do outro, e assim até ao infinito.
A relação dos seres livres uns com os outros é, portanto, a
relação de uma interação recíproca mediante a inteligência
e a liberdade. Nenhum pode reconhecer o outro se ambos
não se reconhecerem reciprocamente; e nenhum pode tratar

53
o outro corno um ser livre se ambos não se tratarem assim
reciprocamente.
O conceito estabelecido é extraordinariamente impor-
tante para o nosso projeto, pois é sobre ele que assenta toda
a nossa teoria do Direito. Por isso, vamos procurar torná-lo
mais claro e acessível mediante o silogismo seguinte.

352 I. Só posso exigir que um determinado ser racional me


reconheça como um ser racional na medida em que eu próprio
o trate como tal.
1. O condicionado na proposição aqui enunciada é:
a) Não que este, em si, abstraindo de mim e da
minha consciência, me reconheça quer perante o seu pró-
prio sentido moral (isto tem que ver com a Moral) ou
perante outros (isto diz respeito ao Estado), mas que, de
acordo com a minha consciência e a sua, reunidas sintetica-
mente numa única consciência (isto é, de acordo com urna
consciência que é comum a ambos) , ele me reconheça
corno tal, de modo que, na medida em que ele queira ser
considerado corno um ser racional, eu posso forçá-lo a con-
ceder que ele teve conhecimento de que eu próprio sou
também um ser racional.
b) Não que eu possa demonstrar em geral que fui
reconhecido pelos seres racionais em geral corno um seme-
lhante seu, mas que este determinado indivíduo C me reco-
nheceu corno tal.
2. A condição é:
a) Não que eu apreenda unicamente o conceito de C
corno o conceito de um ser racional, mas que eu aja efeti-
vamente no mundo sensível. O conceito só é acessível para
mim no mais íntimo da minha consciência e não para o ser
que me é exterior. Só a experiência dá algo que seja ao
indivíduo C e esta só pelo agir a posso suscitar. Aquilo que
eu penso não pode o outro sabê-lo.

54
b) Não que eu unicamente não aja de modo contrário
ao conceito apreendido, mas que o faça efetivamente em
conformidade com ele, que entre efetivamente em interação
com C . De outro modo, permanecemos separados e não
somos absolutamente nada um para o outro.
3. Fundamento da conexão
a) Sem uma influência sobre ele, eu não posso saber
nem demonstrar-lhe que ele, mesmo que seja de um modo
genérico, tem uma representação de mim, da minha mera
existência. Supondo mesmo que eu apareço como objeto
do mundo sensível e que pertenço à esfera das experiências
possíveis para ele, sempre fica a pergunta de se ele refletiu
sobre mim e a esta pergunta só ele próprio pode responder.
b) Sem agir sobre ele, de acordo com o conceito que
tenho dele como ser racional, não posso demonstrar-lhe
que ele me devia ter considerado necessariamente como um
ser racional, e isto tão certamente quanto ele próprio seja
dotado de razão. Pois toda a manifestação de força pode
proceder de uma potência natural que opera de acordo com
leis mecânicas; só a moderação da força por meio de con-
ceitos é que é o critério infalível e exclusivo da razão e da
liberdade.

II. Mas eu tenho de exigir a todos os seres racionais que 353


me são exteriores que, em todos os casos possíveis, me reconhe-
çam como um ser racional.
A necessidade desta exigência universal e permanente
deve ser demonstrada como condição de possibilidade da
autoconsciência. Mas não há autoconsciência sem consciên-
cia da individualidade, como se demonstrou. Aquilo que
caberia agora demonstrar é que nenhuma consciência da
individualidade é possível sem aquela exigência, que esta
última decorre necessariamente da primeira; então ficaria
demonstrado aquilo que deve ser demonstrado.

55
A.
1. Ponho-me como indivíduo em oposição a C unica-
mente por me atribuir exclusivamente a mim próprio uma
esfera para a minha livre escolha, esfera que lhe denego a
ele, de acordo com o conceito de individualidade em geral.
2. Ponho-me como ser racional e livre em oposição a
C unicamente por lhe atribuir a ele liberdade e razão; con-
sequentemente, admito que ele, numa esfera diferente da
minha, escolheu de modo igualmente livre.
3. Mas só admito tudo isto porque ele na sua escolha,
na esfera da sua liberdade, levou em consideração a minha
livre escolha, deixou propositadamente aberta para mim
uma esfera, tal como decorre da demonstração anterior.
(É unicamente em consequência de eu o ter posto como
alguém que me trata como um ser racional que eu o ponho
em geral como ser racional. O meu juízo sobre ele parte
inteiramente de mim e do meu tratamento dele, como não
poderia deixar de ser num sistema que tem o Eu como fun-
damento. É a partir desta manifestação determinada da sua
razão e somente a partir dela que eu infiro a sua racionali-
dade em geral.)
4. Mas o indivíduo C não pôde agir sobre mim do
modo descrito sem que me tenha reconhecido, pelo menos
problematicamente; e eu não posso pô-lo como agindo
assim sem pôr isto (que me reconhece, pelo menos proble-
maticamente) .
5. Tudo o que é problemático torna-se categórico
quando se acrescenta a condição. O que é problemático é
já, enquanto proposição, categórico, observação que é
importante, apesar de frequentemente negligenciada; a liga-
ção entre duas proposições é afirmada categoricamente: se a
condição é dada, o condicionado deve necessariamente ser
admitido. A condição era que eu reconhecesse o outro

56
como ser racional (condição válida tanto para ele como
para mim), quer dizer, que eu o tratasse como tal- pois que
só o agir é esse reconhecer universalmente válido. É isto que
tenho necessariamente de fazer, ao opor-me a ele como
indivíduo racional - obviamente, na medida em que eu ajo 354
racionalmente, quer dizer, de modo coerente com os meus
conhecimentos.
Ao reconhecê-lo, isto é, quando eu o trato como ser
racional, ele fica vinculado ou obrigado pela sua manifesta-
ção inicialmente problemática e forçado por coerência teó-
rica a reconhecer-me categoricamente e, em bom rigor, a
fazê-lo de um modo universalmente válido, isto é, ele fica
vinculado ou obrigado a tratar-me como um ser livre.
Tem lugar aqui uma reunião dos opostos numa uni-
dade. Na presente hipótese, o ponto de união situa-se em
mim, na minha consciência; e a reunião é condicionada pelo
facto de que eu sou capaz de consciência. - Ele, por sua
parte, preenche a condição sob a qual eu o reconheço e
prescreve-ma a mim. Da minha parte, acrescento a condi-
ção - reconheço-o realmente e obrigo-o a ele, na sequência
da condição estabelecida por ele próprio, a reconhecer-me
categoricamente: eu obrigo-me, na sequência do seu reco-
nhecimento, a tratá-lo de igual modo.

Corolário

O conceito de individualidade é, como foi demons-


trado, um conceito recíproco, isto é, um conceito que só
pode ser pensado em relação com um outro pensar e que é
condicionado por outro pensar, que é, no que à forma diz
respeito, realmente o mesmo pensar. Este conceito só é pos-
sível em qualquer ser racional na medida em que é posto
como consumado por outro ser racional. Ele não é, por-

57
tanto, nunca meu; mas, de acordo com a minha própria
confissão e a confissão do outro, meu e seu, seu e meu; é um
conceito comum, no qual duas consciências se reúnem
numa só.
Por via de cada um dos meus conceitos é determinado
na minha consciência o conceito que lhe é subsequente.
Por intermédio do conceito dado determina-se uma comu-
nidade e as consequências ulteriores não dependem unica-
mente de mim, mas também daquele que, por via desse
conceito, entrou em comunidade comigo. Ora, o conceito
é necessário e esta necessidade força-nos aos dois a ater-nos
a ele e às suas consequências necessárias: nós estamos
ambos, pela nossa própria existência, vinculados e obrigados
um em relação ao outro. Tem de haver uma lei que seja
comum a ambos e que ambos tenhamos de reconhecer
necessariamente em conjunto, de acordo com a qual nos
atenhamos reciprocamente às suas implicações; e esta lei
tem de ser do mesmo teor daquela em virtude do qual
entramos precisamente nesta comunidade: ora, este teor é o
da racionalidade; e a sua lei sobre as consequências chama-
355 -se concordância consigo próprio ou coerência e é exposta
cientificamente na Lógica geral.
Esta unificação completa dos conceitos aqui descrita
só foi possível em ações e mediante ações. Por isso, a coe-
rência continuada existe somente também em ações, apenas
para ações pode ser e é exigida. As ações valem aqui em vez
dos conceitos e não estão aqui em causa conceitos em s1,
independentemente de ações, pois tal é impossível.

B.
Devo reportar-me ao reconhecimento que ocorreu em
cada uma das relações em que entro com o indivíduo C e
julgá-lo de acordo com esse reconhecimento.

58
1. Pressupõe-se que entro com ele, o único e mesmo
C, em várias relações, pontos de contacto, ocasiões de trato
recíproco. Tenho, portanto, de poder relacionar com ele os
efeitos dados e ligar esses efeitos àqueles que já foram julga-
dos como sendo seus.
2. Mas, tal como está posto, ele está posto simulta-
neamente como um ser sensível determinado e, ao mesmo
tempo, como um ser racional; ambas as características estão
nele sinteticamente reunidas: a primeira, em consequência
dos predicados sensíveis da sua influência sobre mim; a
segunda, unicamente em consequência de me ter reconhe-
cido. É somente na reunião de ambos os predicados que ele
é posto por mim em geral, que se torna para mim um
objeto do conhecimento. Só posso relacionar com ele uma
ação na medida em que esta esteja conexionada, por um
lado, com os predicados sensíveis da ação precedente e, por
outro, com o ter-me reconhecido e só o posso fazer na
medida em que a ação esteja determinada por ambos os
predicados.
3. Assumindo que ele age de tal modo que a sua ação
está, na verdade, determinada pelos predicados sensíveis da
ação precedente - e isto é já necessário em virtude do
mecanismo físico da natureza -, mas não por me ter reco-
nhecido como ser livre, isto é, ele despoja-me pelo seu agir
da liberdade que me pertence e trata-me, nessa medida,
como objeto: estou sempre obrigado a atribuir-lhe a ação a
ele, ao mesmo ser sensível C (por exemplo, a mesma lin-
guagem, o mesmo modo de andar, etc.). Ora, o conceito
deste ser sensível C está unido na minha consciência com o
conceito de racionalidade, por via do reconhecimento e,
porventura, por via de uma série de ações determinadas por
esse reconhecimento; e aquilo que eu reuni uma vez não o
posso separar. Mas aqueles conceitos estão postos como
necessária e essencialmente unidos; pus sensibilidade e

59
razão em umao como a essência de C. Agora, na ação X,
tenho necessariamente de as separar; e só posso, portanto,
atribuir-lhe racionalidade como algo contingente. O meu
356 modo de o tratar, o tratá-lo como um ser racional, torna-
-se, então, ele próprio contingente e condicionado e só terá
lugar no caso de ele me tratar a mim do mesmo modo.
Posso, portanto, em perfeita coerência - que é aqui a
minha única lei -, tratá-lo neste caso como um ser mera-
mente sensível, até que ambas as características, sensibili-
dade e racionalidade, voltem a estar reunidas no conceito da
sua ação.
A minha afirmação no caso indicado será a seguinte: a
sua ação X contradiz o seu próprio pressuposto, isto é, que
eu sou um ser racional; ele terá procedido de modo incon-
sequente. Eu, pelo contrário, face a X, respeitei a regra; e
respeitá-la-ia igualmente se, em virtude da sua inconse-
quência, o tratasse como um ser meramente sensível.
Coloco-me, portanto, num ponto de vista mais elevado
entre nós os dois, saio da minha individualidade, reporto-
-me a uma lei que vale para ambos e aplico-a ao caso pre-
sente. Ponho-me, portanto, como juiz, isto é, como seu
superior. Daí, a superioridade que qualquer um que pre-
tende ter por si o Direito se atribui em relação àquele con-
tra o qual o tem. - Mas, ao invocar contra ele essa lei
comum, estou, ao mesmo tempo, a convidá-lo a julgar
comigo; e exijo que, neste caso, ele tenha de considerar
coerente e aprovar o meu procedimento em relação a ele,
compelido pelas leis do pensamento. A comunidade da
consciência continua a existir. Eu julgo-o em conformidade
a um conceito que, de acordo com a minha exigência, ele
próprio deve ter. (Daí, o elemento positivo que está ínsito
no conceito de Direito, por via do qual acreditamos impor
ao outro uma obrigação de não se opor ao modo como nós
o tratamos, e, pelo contrário, de o denominar como bom.

60
Aquilo que obriga não é, de modo algum, a lei moral, mas
a lei do pensamento; e o que surge aqui é uma validade
prática do silogismo) .

c.
O que é válido entre mim e C é válido entre mim e
qualquer indivíduo racional com o qual entre em interação.
1. Só exatamente deste modo e sob as mesmas condi-
ções é que me pode ser dado qualquer outro ser racional tal
como C me foi dado; pois só sob estas condições é possível
pôr um ser racional que me é exterior.
2. O novo indivíduo O é um indivíduo distinto de C ,
na medida em que a sua ação livre, de acordo com os seus
predicados sensíveis (pois que quanto às consequências de
ele me ter necessariamente reconhecido, todas as ações
de todos os seres livres são necessariamente iguais umas
às outras) , não pode ser relacionada com os predicados sen-
síveis das ações de outros indivíduos postos por mim.
A condição do conhecimento da identidade do agente 357
era a possibilidade de conexão das notas características das
suas ações presentes como as ações precedentes. Quando tal
não acontece, não posso referir a ação a nenhum dos seres
racionais que conheço; e, uma vez que tenho de pôr um ser
racional, então ponho um novo ser racional.
(Talvez não seja supérfluo reunir sob um único ponto
de vista a subtileza da demonstração que acabamos de levar
a cabo, demonstração essa até agora dispersa na multiplici-
dade das suas partes. - A proposição a demonstrar era: tal
como eu me ponho como indivíduo, com igual certeza
exijo a todos os seres racionais que conheço que, em todos
os casos em que interagimos, me reconheçam como um ser
racional. Por conseguinte, deve encontrar-se numa certa
posição de mim próprio um postulado dirigido aos outros,

61
postulado que se estende a todos os casos de aplicação pos-
síveis e que pode ser descoberto por mera análise deste ato
de autoposição.
Ponho-me como indivíduo em oposição com outro
indivíduo determinado, na medida em que eu me atribuo a
mim uma esfera para a minha liberdade, esfera da qual eu
excluo o outro, e atribuo ao outro uma esfera da qual eu
me excluo - isto, como é óbvio, unicamente no pensa-
mento de um foctum e como consequência desse foctum.
Pus-me, assim, como livre; junto a ele e sem causar dano à
possibilidade da sua liberdade. Por via deste ato de pôr a
minha liberdade, determinei-me; o ser livre constitui o meu
carácter essencial. Mas o que é que significa ser livre? Signi-
fica, como é evidente, poder pôr em prática os conceitos
apreendidos das suas ações. Mas o pôr em prática é sempre
subsequente ao conceito e a percepção do produto projetado
pela atividade causal é sempre fotura em relação à formação
do conceito desse produto. A liberdade é, por isso, sempre
posta no futuro; e se ela deve constituir o carácter de um
ser, então é posta para todo o futuro do indivíduo; a liber-
dade é posta no futuro, na mesma medida em que o é o
indivíduo ele próprio.
Ora, a minha liberdade só é possível na medida em
que o outro se mantenha no interior da sua esfera; assim,
tal como reclamo esta liberdade para todo o futuro, exijo
igualmente a limitação do outro e, uma vez que ele deve ser
livre, exijo a sua autolimitação para todo o futuro: e tudo
isto exijo-o de modo imediato, logo que me ponha como
indivíduo.
Esta exigência que eu lhe coloco está contida no ato
de me pôr a mim próprio como indivíduo.
Mas é só em consequência de que possui um conceito
de mim como um ser livre que ele pode limitar-se. Por isso,

62
exijo absolutamente essa limitação; exijo, pois, dele, coerên-
cia, quer dizer, que todos os seus conceitos futuros sejam 358
determinados por um certo conceito anterior, pelo conheci-
mento que ele tem de mim como ser racional.
Ora, ele só me pode reconhecer como um ser racional
na condição de que eu próprio o trate a ele como um ser
racional, em resultado deste conceito que tenho dele.
Imponho-me, portanto, a mesma coerência e o seu agir é
condicionado pelo meu. Estamos numa relação de intera-
ção no que à coerência entre o nosso pensamento e o nosso
agir diz respeito: o nosso pensamento é coerente com o
nosso agu e o meu pensamento e o meu agir é coerente
com o pensamento e o agir dele.)

III . A conclusão produziu-se já. - Tenho de reconhecer


o ser racional que me é exterior em todos os casos como ser
racional: quer dizer, tenho de Limitar a minha Liberdade pelo
conceito da possibilidade da sua Liberdade.
A relação entre seres racionais que deduzimos, a saber,
que cada um limite a sua liberdade pelo conceito da possi-
bilidade da liberdade do outro, na condição de que este
limite igualmente a sua liberdade pela do outro, chama-se
relação jurídica; e a fórmula que acabamos de enunciar é o
principio do Direito.
Esta relação é deduzida a partir do conceito de indiví-
duo. Demonstrou-se, por conseguinte, aquilo que era para
demonstrar.
Além disso, o conceito de indivíduo foi anteriormente
demonstrado como condição da autoconsciência; por con-
seguinte, o conceito de Direito é, ele próprio, condição da
autoconsciência. Portanto, o conceito de Direito é, tal
como lhe é próprio, deduzido a priori, quer dizer, a parnr
da forma pura da razão, a partir do Eu.

63
Corolários

1. Afirma-se, assim, na sequência da dedução que aca-


bamos de efetuar, que o conceito de Direito está ínsito na
essência da razão e que não é possível um ser racional finito
em que este conceito não esteja presente - não em resul-
tado da experiência, da instrução, das regulamentações arbi-
trárias vigentes entre os homens, etc., mas em virtude da
sua natureza racional. É evidente que a manifestação deste
conceito na consciência efetiva está condicionada pelo sur-
gimento de um caso que permita a sua aplicação e que ele
não está ínsito originariamente na alma como uma forma
vazia, à espera que a experiência introduza nele algo, como
alguns filósofos parecem pensar sobre os conceitos a priori.
Mas demonstrou-se igualmente que o caso da sua aplicação
tem necessariamente de ter lugar, uma vez que nenhum
homem pode viver isolado.
359 Põe-se, portanto, em evidência que ao ser racional é
necessário um certo conceito, isto é, uma certa modificação
do pensar, uma certa maneira de julgar as coisas. Chame-
mos provisoriamente a este conceito X. Este X tem de ope-
rar aí onde vivam pessoas conjuntamente umas com as
outras e tem de expressar-se, de encontrar uma denomi-
nação comum na sua língua, e isto por si mesmo e sem
qualquer intervenção do filósofo, que se limita a deduzi-lo
laboriosamente. Ora, saber se este X é precisamente aquilo
que o uso linguístico chama Direito é uma questão que
o senso comum tem de decidir, mas, observe-se bem, só o
senso comum confiado a si mesmo, e nunca o senso
comum aturdido e confundido pelas explicações e interpre-
tações arbitrárias dos filósofos. Declaremos, provisoria-
mente, e com plena legitimidade, que o conceito deduzido
X, cuja realidade foi demonstrada precisamente pela dedu-
ção, deve significar para nós, nesta investigação, o conceito

64
de Direito e nenhum outro possível conceito: é da nossa
responsabilidade saber se todas as questões que o senso
comum pode suscitar sobre o Direito podem ou não ser
respondidas a partir desse conceito.
2. O conceito deduzido não tem nada que ver com a
lei moral, está deduzido sem ela e, uma vez que não é pos-
sível mais do que uma dedução do mesmo conceito, temos
já uma prova factual que não temos de o deduzir da lei
moral. Ademais, todas as tentativas de uma tal dedução
falharam por completo. O conceito de dever, que procede
da lei moral, opõe-se diretamente na maior parte das suas
notas características ao conceito de Direito. A lei moral
ordena categoricamente o dever: a lei jurídica permite ape-
nas, mas nunca ordena, que se exerça o seu direito. A lei
moral proíbe mesmo, muito frequentemente, o exercício de
um direito que, no entanto, de acordo com o que todo o
mundo acha, não deixa, por isso, de ser um direito. "Ele
tinha plenamente o direito a isso, mas não o devia exercer
nesta situação", julga-se então. Está então a lei moral, que é
um único e mesmo princípio, em desacordo consigo pró-
pria, ao conceder no mesmo caso o mesmo direito que ao
mesmo tempo suprime nesse mesmo caso? Não conheço
nenhuma escusa que tenha contraposto algo de plausível a
esta objecção.
Saber se a lei moral oferece uma nova sanção ao con-
ceito de Direito é uma questão que não pertence ao Direito
natural, mas sim a uma Moral real, e esta é uma questão a
que responderemos em devido tempo. No âmbito do
Direito natural, a vontade boa não desempenha qualquer
papel. O Direito tem de ser imposto por coerção, mesmo
que nenhum homem tivesse uma vontade boa; e é precisa-
mente de projetar uma tal ordem das coisas que a ciência
do Direito trata. Neste domínio, é o poder físico, e só ele,
que outorga ao Direito a sanção.

65
Não há, assim, necessidade de dispositivos engenhosos
para o Direito natural e a Moral, dispositivos esses que, em
360 qualquer caso, falhariam o seu objetivo: pois que se não
nos ocupamos senão da Moral - e, no fundo, nem sequer
desta, mas tão-somente da metafísica dos costumes -, então
não teremos entre mãos, depois dessa separação artificial,
nada mais do que a Moral. - As duas ciências estão já ori-
ginariamente cindidas pela razão sem a nossa intervenção e
estão completamente contrapostas.
3. O conceito de Direito é o conceito de uma relação
entre seres racionais. Só tem, portanto, lugar na condição
de que tais seres se pensem em relação uns com os outros.
É vão pensar um direito sobre a natureza, sobre a terra ou
o solo, sobre animais, etc., tomados simplesmente como
tais, considerando apenas a relação entre eles e os homens.
A razão só tem sobre estas coisas poder, mas, de modo
nenhum, um direito, pois que a questão do Direito não se
suscita, de todo em todo, nesta relação. Algo distinto é
saber se se pode, em consciência, disfrutar disto ou daquilo;
mas esta é uma questão que só se coloca perante o tribunal
da Moral e não é suscitada senão na medida em que possa-
mos ponderar que, por essa via, poder-se-ia causar dano
não às coisas, mas sim à nossa própria condição anímica;
não é com as coisas, mas connosco próprios que nós entra-
mos em deliberação ou vamos a juízo. É apenas quando
outro se relaciona com a mesma coisa e ao mesmo tempo
que eu o faço que surge a questão do direito sobre a coisa,
como um modo de expressão abreviado, em vez de, como,
no fundo , se deveria dizer, do direito sobre o outro para o
excluir do uso desta coisa.
4. Os seres racionais só entram em interação uns com
os outros por intermédio das ações, que são manifestações
da sua liberdade no mundo sensível: o conceito de Direito
refere-se, assim, unicamente àquilo que se manifesta no

66
mundo sensível; aquilo que não tem causalidade no mundo
sensível, mas permanece no interior do espírito, diz respeito
a outro tribunal, o da Moral. É, por isso, destituído de fun-
damento falar de um direito à liberdade de pensamento, à
liberdade de consciência etc. Em relação a estas ações inte-
riores, existe uma faculdade e sobre elas existem deveres,
mas não direitos.
5. É somente na medida em que seres racionais
podem efetivamente estar em relação entre si e podem agir
de tal modo que a ação de um tenha consequências para o
outro que a questão do Direito é possível entre eles, como
se depreende da dedução que levamos a cabo, que pressu-
põe sempre uma interação recíproca efetiva. Entre aqueles
que não se conhecem ou cujas esferas de ação estão com-
pletamente separadas entre si não há relação jurídica
nenhuma. Não se compreende em absoluto o conceito de
Direito quando se fala, por exemplo, dos direitos dos que
há muito faleceram sobre aqueles que estão vivos. Podemos,
sim, ter deveres de consciência para com a sua memória;
mas nunca obrigações que subsistam para o Direito.

67
SEGUNDA SECÇÃO 361

DEDUÇÃO DA APLICABILIDADE DO CONCEITO


DE DIREITO

§ 5. Quarto teorema: O ser racional não pode pôr-se como


indivíduo que age causalmente sem se atribuir um corpo
material e sem, por essa via, o determinar

Demonstração

De acordo com a demonstração acima aduzida, o ser


racional põe-se como indivíduo racional - em vez deste
termo, usaremos de ora em diante o termo pessoa - na
medida em que se atribui a si próprio, de modo exclusivo,
uma esfera para a sua Liberdade. Ela é a pessoa que, de
modo exclusivo, faz escolhas no âmbito desta esfera e não
uma outra pessoa, que faz escolhas no âmbito de uma
esfera diferente; assim, nenhuma pessoa é ela mesma, isto é,
nenhuma outra pode fazer escolhas no âmbito desta esfera
que lhe está atribuída só a ela. É isto que constitui o seu
carácter individual: por via desta determinação, ela é aquela
que é, é esta pessoa ou outra, que tem este ou aquele
nome.
Não temos de fazer mais do que analisar a ação indi-
cada; para ver o que realmente acontece quando ela tem
lugar.

69
I. O SUJeito atribui-se a si próprio esta esfera; deter-
mina-se por ela. Por conseguinte, ele opõe-se a ela. (O
sujeito é o sujeito lógico na proposição possível que possa-
mos pensar; e a esfera que mencionámos é o predicado;
ora, sujeito e predicado estão sempre em contraposição.)
O que é aqui, antes de mais, o sujeito? Obviamente,
é aquilo que é ativo exclusivamente em si e sobre si pró-
prio, aquilo que se determina a si próprio para pensar um
objeto ou para querer um fim, é o espiritual, a pura egoi-
dade. A ele contrapõe-se uma esfera limitada, mas que lhe
pertence em exclusivo, das suas ações livres possíveis. Na
medida em que se atribui a si próprio esta esfera, o sujeito
limita-se e converte-se de um Eu absolutamente formal
num Eu material determinado ou, dito de outro modo,
numa pessoa. Esperemos que não se continue a confundir
estes dois conceitos, tão diferentes entre si, que aqui foram
colocados lado a lado de modo suficientemente contras-
tante.
362 Dizer que esta esfera está contraposta ao sujeito signi-
fica: que está excluída dele próprio, posta fora dele, sepa-
rada dele e completamente divorciada dele. Se isto for pen-
sado de uma forma mais precisa, significa, em primeiro
lugar, que, quanto à sua existência, a esfera não procede da
atividade que retorna a si mesma e esta, quanto à sua exis-
tência, não procede daquela; ambas são independentes uma
da outra e contingentes uma em relação à outra. Ora, de
acordo com o que temos vindo a expor, aquilo que se rela-
ciona assim com o Eu pertence ao mundo. Logo, a sobre-
dita esfera é posta, antes do mais, como uma parte do
mundo.

II. Esta esfera é posta por uma atividade originária e


necessária do Eu; quer dizer, é intuída, ganhando, por essa
via, realidade. - Uma vez que certos resultados da Doutrina

70
da Ciência não podem ser aqui pressupostos em termos
convenientes, exponho de forma breve aqueles que são
necessários aqui. - Não se tem a menor ideia do que se
trata na filosofia transcendental, e, em particular, em Kant,
se se acredita que há no ato de intuir, fora daquele que
intui e da intuição, ainda uma coisa, algo como uma maté-
ria, para a qual a intuição está direcionada, de modo aná-
logo àquele como o senso comum costuma pensar a visão
corpóreaOS) .
É mediante o próprio intuir e unicamente por seu
intermédio que surge o intuído; o Eu retorna a si mesmo; e
esta ação dá, ao mesmo tempo, a intuição e o intuído; a
razão (o Eu) não é, de modo algum, passiva na intuição,
mas sim absolutamente ativa; a razão é, na intuição, imagi-
nação produtivd 19l . Mediante o intuir é projetado algo, do
mesmo jeito que, se quisermos uma comparação, o pintor,
com o seu olhar, projeta sobre a tela a figura acabada, como
que a fixa, antes que a mão, mais lenta, possa reproduzir os
seus contornos . É desta mesma maneira que a sobredita
esfera é aqui posta.
Além disso, o Eu, intuindo-se a si próprio como ativo,
intui a sua atividade como um traçar de uma linha. É este o
esquema originário da atividade em geral, como descobrirá
quafquer um que queira despertar em si aquela intuição
suprema. Esta linha originária é a extensão pura, aquilo que
é comum ao tempo e ao espaço, e de onde estes surgem
somente mediante diferenciação e determinação suplemen-
tar. Esta linha originária não pressupõe o espaço, mas é este
que a pressupõe; e as linhas no espaço, quer dizer, os limi-
tes do que nele se estende, são algo completamente dis-
tinto. É precisamente desta maneira, é segundo linhas que
se opera a produção da esfera a que nos estamos a referir e,
por isso, ela é algo com extensão.

71
III . Esta esfera é algo determinado; por conseguinte, o
produzir tem algures os seus limites e o produto é apreen-
363 dido no entendimento (a faculdade de consolidar) como
um rodo acabado e só então é verdadeiramente posto
(fixado e conservado).
A pessoa é determinada por este produto; ela só é a
mesma enquanto aquele produto permanece o mesmo e
deixa de o ser se aquele produto deixa de ser o mesmo.
Ora, de acordo com o que vai acima dito, é necessário que,
tal como a pessoa se põe como livre, se ponha também
como permanente. Por conseguinte, ela põe também aquele
produto como permanecendo o mesmo, em repouso, fixo e
inalterável, como um todo acabado de uma vez por todas.
Mas uma extensão em repouso e determinada de uma vez
por rodas é uma extensão no espaço. Aquela esfera é, por
conseguinte, posta necessariamente como um corpo limi-
tado, com extensão no espaço e preenchendo o seu espaço,
e é como tal que é necessariamente encontrada na análise; é
só na análise que a consciência desta esfera se nos torna
possível (uma vez que a síntese ou produção agora descrita
só é pressuposta para tornar possível a análise e, através
dela, tornar possível a consciência) .

IV. O corpo material deduzido é posto como o âmbito


de todas as possíveis ações livres da pessoa e nada mais.
É nisto unicamente que consiste a sua essência.
Que a pessoa é livre significa, de acordo com o que foi
dito, que, pura e simplesmente com o projetar de um con-
ceito de fim, ela se torna, sem mais, causa de um objeto
que corresponde precisamente a esse conceito; ela torna-se
causa graças, pura e simplesmente, à sua vontade como tal:
pois que projetar um conceito de fim significa querer. Mas
o corpo que descrevemos deve conter as suas ações livres;
é, pois, nele que a pessoa deveria ser causa na maneira

72
descrita. É diretamente pela sua vontade, sem recorrer a
nenhum outro meio, que a pessoa teria de produzir neste
corpo aquilo que quis; logo que ela queira algo, esse algo
deve acontecer nele.
Além disso, como o corpo que descrevemos não é
mais do que a esfera das ações livres, o seu conceito esgota
o conceito destas e o conceito destas esgota o seu. A pessoa
não pode ser causa absolutamente livre, isto é, causa que
opera diretamente pela vontade, a não ser no corpo; se um
determinado querer é dado, então pode concluir-se segura-
mente que uma determinada alteração, correspondente a
esse querer, se produz no corpo. Ao invés, não pode ocorrer
nele nenhuma determinação a não ser como consequência
de uma atividade causal da pessoa; e a partir de uma modi-
ficação nele ocorrida pode inferir-se com igual certeza um
determinado conceito de pessoa, conceito esse que lhe cor-
responde. - Esta última proposição só ulteriormente virá a
adquirir a sua determinabilidade própria e a sua plena signi-
ficação.

V Então, como e de que maneira é que, num corpo


material, os conceitos se devem expressar por meio de uma
alteração desse corpo? A matéria é, na sua essência, impere-
cível: não pode ser extinta, nem pode, tão-pouco, uma 364
matéria nova ser produzida. Não é, pois, neste sentido que
pode apontar o conceito de alteração sofrido pelo corpo
que foi posto. Além disso, o corpo que foi posto deve per-
sistir sem interrupção; por conseguinte, devem permanecer
unidas as mesmas partes da matéria e constituir o corpo de
modo permanente; todavia, ele deve ser alterado por cada
um dos aros de vontade que a pessoa conceba. Ora, como
pode ele persistir sem interrupção e, não obstante, como é
expectável, ser continuamente alterado?
O corpo é matéria. A matéria é infinitamente divisível.
O corpo, isto é, as suas partes materiais, manter-se-ia e, no

73
entanto, ele seria alterado se as partes modificassem a rela-
ção entre si e a posição que mantêm umas relativamente às
outras. A relação que os elementos do diverso mantêm
entre si chama-se forma. Consequentemente, as partes, na
medida em que constituem a forma, devem permanecer;
mas a forma em si própria deve ser modificada. - (na
medida em que constituem a forma, digo eu: certas partes
poderiam, assim, separar-se incessantemente, sem que, com
isso, se causasse dano à permanência exigida do corpo des-
crito, contanto que essas partes fossem substituídas por
outras no mesmo momento indiviso). Portanto, é direta-
mente graças ao conceito de pessoa que surge um movi-
mento das partes e, com isso, uma alteração da forma.

VI. No corpo descrito, os conceitos de causalidade da


pessoa hão de expressar-se através da alteração da posição
relativa das partes. Estes conceitos, isto é, o querer da pes-
soa, podem ser infinitamente diferentes; e o corpo, que
contém a esfera da liberdade da pessoa, não os pode inibir.
Cada parte deveria, assim, poder modificar a sua posição
em relação às restantes, quer dizer, deveria poder mover-se
enquanto todas as outras permanecem em repouso; a cada
uma deveria caber um movimento próprio, e isto, até ao
infinito. - O corpo deveria estar configurado de maneira
tal que, em cada uma das vezes, dependesse da liberdade
pensar a parte como maior ou menor, como mais complexa
ou mais simples; e, bem assim, pensar cada conjunto de
partes como um todo e, consequentemente, este como uma
parte de um todo maior; e aquilo que, nesta perspetiva, foi
pensado como uno, poder dividi-lo de novo. A determina-
ção do que deve, em cada momento, ser uma parte teria de
depender unicamente do conceito. Além disso, do facto
de que algo tenha sido pensado como uma parte tem de
inferir-se que tem um movimento que lhe é característico,

74
movimento esse que tem, de novo, de depender do con-
ceito. - Algo que é pensado como parte individual nesta
relação chama-se um membro; neste, tem de haver, de novo,
membros e em cada um, por sua vez, novos membros e
assim sucessivamente até ao infinito. O que deve em cada
momento ser considerado como membro tem de depender
do conceito da causalidade. O membro está em movimento,
na medida em que é considerado como membro; aquilo
que em relação a ele é o todo permanece em repouso;
aquilo que em relação a ele é parte permanece igualmente 365
em repouso, isto é, não tem movimento próprio, tendo
apenas o movimento que é comum ao todo em que presen-
temente se insere. Esta propriedade de um corpo chama-se
articulação. O corpo que foi deduzido é necessariamente
articulado e tem de ser posto como tal.
Uma entidade corpórea como a que acabamos de des-
crever, a cuja permanência e identidade ligamos a per-
manência e a identidade da nossa personalidade, entidade
que nós pomos como um todo articulado e fechado e
em que nos pomos como causa diretamente por intermédio
da nossa vontade, esse entidade é aquilo a que chamamos o
nosso corpo; e demonstrou-se, por conseguinte, aquilo que
devia ser demonstrado.

§ 6. Quinto teorema: A pessoa não pode atribuir-se um corpo


sem o pôr como estando sob a influência de uma pessoa
que lhe é exterior e sem o determinar ulteriormente deste
modo

Demonstração

I. De acordo com o segundo teorema, a pessoa não


pode pôr-se a si própria com consciência, sem pôr uma

75
influência que se exerceu sobre ela. O ato de pôr uma
tal influência era a condição exclusiva de roda a consciência
e o primeiro ponto ao qual estava ligada a consciência na
sua integralidade. Esta influência é posta como tendo tido
lugar sobre a pessoa determinada, o indivíduo enquanto ta4
pois o ser racional, como foi evidenciado, não pode pôr-se
como um ser racional em geral, mas somente como indiví-
duo; se ele põe uma influência que incide sobre si, essa
influência é, portanto, necessariamente uma influência
sobre o indivíduo, pois que o ser racional não é nem pode
ser para si próprio outra coisa senão um indivíduo.
Que se exerce uma ação causal sobre um ser racional
quer dizer, em consonância igualmente com as demonstra-
ções acima aduzidas, que a sua atividade livre é em parte, e
sob uma certa perspetiva, suprimida. É somente com esta
supressão da sua atividade livre que um objeto surge para a
inteligência e que esta infere algo cuja existência não se
deve a essa atividade livre.
Que se exerce uma ação causal sobre o ser racional
como indivíduo quer, portanto, dizer: que foi suprimida
uma atividade que lhe diz respeito a ele enquanto indiví-
366 duo. Ora, a esfera que contém a sua atividade, enquanto
atividade de um indivíduo, é o seu corpo; consequente-
mente, a atividade causal neste corpo, a faculdade nele pre-
sente de ser causa por intermédio da mera vontade, teria de
ser inibida ou, dito de modo mais breve, teria de exercer-se
uma influência causal sobre o corpo da pessoa.
Se, nessa conformidade, admitirmos que está supri-
mida, que está de momento impossibilitada, uma ação
situada na esfera das ações em si possíveis da pessoa, então
está explicada a influência requerida.
Mas a pessoa deve referir a si a influência que teve
lugar; deve pôr a atividade que está de momento suprimida
como uma das suas atividades possíveis em geral - como

76
atividade incluída na esfera das manifestações da sua liber-
dade. A pessoa tem, portanto, de pôr essa atividade para
poder pô-la como suprimida; por conseguinte, esta ativi-
dade tem de existir efetivamente e não pode, de modo
algum, ser suprimida. (Que não se diga que a pessoa pôde
tê-la posto anteriormente como atividade sua e que agora,
ao percorrer a esfera da liberdade que lhe assiste, pôde
lembrar-se que, se esta fosse completa, então deveria assis-
tir-lhe também uma certa faculdade determinada que não
lhe assiste; pois que, para não mencionar outras razões da
inadmissibilidade desta pressuposição, nós tratamos aqui do
momento ao qual toda a consciência está ligada e previa-
mente ao qual nenhuma consciência anterior é possível de
ser pressuposta.)
Por conseguinte, a mesma atividade determinada da
pessoa tem ao mesmo tempo, no mesmo momento indi-
viso, que ser suprimida e também não suprimida, se é que
uma consciência há de poder ser possível. Temos de investi-
gar como é que tal pode acontecer.

II . Toda a atividade da pessoa é uma certa determina-


ção do corpo articulado; que uma das suas atividades está
inibida significa, por conseguinte, que uma certa determi-
nação do corpo articulado é impossível.
Ora, a pessoa não pode, de modo algum, pôr que a
sua atividade esteja inibida, que uma certa determinação
seja possível no seu corpo articulado, sem pôr ao mesmo
tempo essa atividade como possível, uma vez que põe algo
como o seu corpo apenas sob a condição de que uma deter-
minação seja possível nele mediante a mera vontade. A pes-
soa tem assim de pôr como possível a determinação que é,
precisamente, suposta como impossível e na medida em
que é suposta como impossível; e, uma vez que não pode
pôr nada que não seja (para ela), a pessoa produz efetiva-

77
mente essa determinação. No entanto, esta atividade,
mesmo que seja efetivamente produzida, há de permanecer
continuamente inibida e suprimida, pois que é para poder
pô-la como suprimida que a pessoa a produz. Esta determi-
nação da articulação - podemos considerar assim, por
367 enquanto- é efetivamente produzida de uma certa maneira
pela atividade causal da vontade e, ao mesmo tempo, é,
de uma outra maneira, suprimida por uma influência do
ex tenor.
Além disso, no momento que vamos agora passar a
descrever, a pessoa deve encontrar-se como livre na sua
esfera, atribuindo-se inteira e plenamente o seu próprio
corpo. Se ela não pusesse, ao menos como possível, a sua
capacidade de restabelecer pela simples vontade a determi-
nação dada da articulação, inclusivamente no sentido em
que ela está e permanece suprimida, então, nesse caso, não
se atribuiria, de todo em todo, o corpo e não poria
nenhuma influência como sendo exercida sobre si, o que
contradiz a hipótese. Que ela não suprima a inibição tem,
de acordo com a admissão de uma tal inibição, de depen-
der da sua livre vontade; e a pessoa tem de pôr como possí-
vel a supressão dessa inibição.
Como deve, então, a pessoa pôr esta possibilidade?
Certamente que não em virtude de uma experiência ante-
rior, uma vez que é aqui que toda a experiência começa;
por conseguinte, a possibilidade da supressão da inibição da
articulação do corpo, na medida em que esta tenha lugar,
resulta unicamente de que a pessoa põe, da produção
daquela determinação da maneira em que ela é efetiva-
mente produzida, contanto que a pessoa não refreie a sua
vontade de operar neste sentido.
Mas o que é, propriamente, posto, quando é posto
aquilo que acabamos de descrever? Evidentemente, uma
dupla maneira de determinar a articulação, aquilo que se

78
pode chamar uma dupla articulação ou um duplo órgão,
que se relacionam entre si do seguinte modo: o primeiro,
em que a pessoa produz o movimento suprimido e a que
nos propomos chamar o órgão superior, pode ser modifi-
cado pela vontade, sem que, por isso, o outro, que nos pro-
pomos chamar o órgão inferior, o seja também. O órgão
superior e o órgão inferior são, nesta medida, distintos.
Mais ainda: se da modificação do órgão superior não deve,
concomitantemente, resultar a modificação do órgão infe-
rior, então a pessoa deve refrear a vontade de o modificar.
Assim, órgão superior e órgão inferior hão de ser reunidos
também pela vontade, são um só e único órgão.
A perceção da influência aqui requerida envolve o
seguinte: a pessoa tem de submeter-se à influência, entre-
gar-se a ela, é preciso que não suprima a modificação pro-
duzida no seu órgão. Isto podê-lo-ia fazer pela sua mera
vontade e, para que isto não aconteça, tem de limitar a
liberdade da sua vontade. Além disso, ela tem de reproduzir
interiormente com liberdade a modificação do seu órgão
nela produzida. Foi dito que uma manifestação possível da
sua liberdade foi suprimida. Isto não quer, de modo algum,
dizer que a atividade se tenha, em geral, tornado impossível 368
em uma qualquer direção ou em relação a um certo fim,
mas somente que está nela produzido algo que ela própria é
capaz de produzir, mas isto de um modo tal que tem de o
atribuir não à sua atividade causal própria, mas à atividade
causal de um ser que lhe é exterior. Em geral, não há nada
que se apresente na percepção de um ser racional que ele
não acredite poder ele próprio produzir ou cuja produção
ele não possa atribuir-se; o ser racional não tem sentido
para tudo o resto, tudo o resto está, pura e simplesmente,
fora da sua esfera. Aquilo que foi produzido no seu órgão é
reproduzido com liberdade pelo órgão superior, mas de
maneira tal que não tem influência sobre o órgão inferior,

79
pois que de outro modo existiria a mesma determinação do
corpo articulado, mas não como uma determinação perce-
bida, mas como uma determinação produzida, não como
resultante de uma atividade causal alheia, mas como resul-
tante da ação causal própria do sujeito. Não é possível ver,
se não começarmos, primeiro, por nos submeter à influên-
cia e se não reproduzirmos interiormente, depois, a forma
do objeto, se não se esboçam ativamente os seus contornos;
não é possível ouvir, se os sons não são imitados interior-
mente pelo mesmo órgão que produz esses sons ao falar.
Mas se esta causalidade interior se prolongasse até ao órgão
exterior, então falar-se-ia, mas não se ouviria.
Na medida em que esta relação é tal como foi descrita,
o corpo articulado do ser humano é sentido. Mas, como
qualquer um entenderá, o corpo é sentido somente em
relação com um produto, nele existente, de uma atividade
causal, que poderia certamente ser uma atividade causal do
sujeito, mas que no presente caso não o é, sendo, pelo con-
trário, atividade causal de uma causa que é exterior ao
sujeito.
Em relação a esta espécie de influência, a pessoa per-
manece total e completamente livre. Aquilo que foi pro-
duzido nela por uma causa que é exterior a ela pode
suprimi-lo de imediato e põe expressamente que pode supri-
mi-lo de imediato, por conseguinte, que a existência desta
influência depende unicamente de si . Além disso, se
uma influência deve ser exercida sobre ela, tem de imi-
tar esta influência que sobre ela é exercida: realiza, portanto,
expressamente, a sua liberdade, ainda que seja somente para
poder perceber. (Com isto, descreveu-se e determinou-se
exaustivamente a liberdade absoluta da reflexão.)
Por esta via, o corpo articulado da pessoa adquire
novas determinações, tal como era requerido. Foi, também,
posto como sentido; e, para poder ser posto como tal, atri-

80
bui-se-lhe um órgão superior e um órgão inferior - órgão
inferior por intermédio do qual ele entra em relação
com objetos e seres racionais que lhe são exteriores; só ele
pode estar submetido a uma influência exterior, n ão
podendo nunca o órgão superior estar submetido a uma tal
influência.

III. Somente um ser racional que é exterior ao sujeito


deve poder ser posto como causa da influência sobre o
sujeito que acabamos de descrever. O fim deste ser deveria
ter sido exercer uma influência sobre o sujeito. Mas, como 369
foi demonstrado, nenhuma influência pode ser exercida
sobre o sujeito se este se não submeter pela sua própria
liberdade à impressão suscitada e se não a imita interior-
mente. O sujeito deve agir em conformidade a um fim, isto
é, deve limitar o quantum da sua liberdade, que poderia
suprimir a impressão suscitada, à consecução do fim a que
se propôs, o conhecimento - autolimitação que é, precisa-
mente, o critério exclusivo da razão. O sujeito deve, por
conseguinte, ser considerado um ser racional, na medida
em que ele, por via da press uposição da liberdade do
sujeito, limitou a sua própria liberdade ao modo de influên-
cia indicado.
Mas é sempre possível que tenha operado assim unica-
mente por acaso ou que não tenha podido operar de
maneira diferente. Não existe fundamento algum para
admitirmos que se autolimitou, se não pudermos demons-
trar que ele também poderia ter agido de outra maneira,
que a plenitude da sua faculdade o poderia ter conduzido a
um modo de agir completamente diferente, e que tinha
necessariamente de limitar a sua liberdade e limitá-la pelo
conceito de racionalidade do sujeito, de modo a que uma
ação como a que foi descrita pudesse ter lugar.

81
Portanto, para que a conclusão requerida pudesse ser
possível, teria de pôr que teria sido possível agir sobre mim
de maneira contrária e que o ser que é exterior a mim, cuja
existência é suposto eu admitir, poderia ter agido sobre
mim de maneira contrária. Qual é a maneira contrária? A
característica da influência que acabamos de descrever con-
sistia em que dependia completamente da liberdade da
minha vontade o dever ser ela exercida sobre mim, na
medida em que devia ser eu, em primeira mão, a submeter-
me à influência e a pô-la como tendo tido lugar; pois que,
caso contrário, não teria sido exercida qualquer influência
sobre mim. A característica de uma influência contraposta
seria, pois, a de que não estaria dependente da minha liber-
dade reparar ou não reparar na influência que teve lugar,
mas teria de reparar nela se é que eu reparo em alguma
coisa. Como é que uma tal influência é possível?
Que a influência descrita depende da minha liberdade
decorre, antes do mais, de que eu posso destruir, por via da
simples liberdade da vontade, a forma do meu corpo arti-
culado que foi produzida; na influência contraposta, tal não
deveria depender unicamente da liberdade da vontade, a
370 forma produzida teria que ser sólida, indestrutível, pelo
menos algo que o órgão superior não viesse imediatamente
a destruir, o meu corpo teria de estar completamente vincu-
lado a ela e completamente inibido nos seus movimentos.
Uma inibição tão completa deveria ter necessariamente
como consequência a reflexão sobre ela, não segundo a
forma , uma vez que eu sou, em geral, um ser reflexivo - o
que se funda, pura e simplesmente, na essência da razão -,
mas segundo a matéria, uma vez que, só pelo simples facto
de refletir, eu teria necessariamente que refletir sobre a
influência que teve lugar. Pois que o ser livre só se quer
encontrar como um ser livre. Ao refletir sobre si, imita
interiormente uma determinação produzida nele, na pressu-

82
pos1çao de que depende da liberdade da sua vontade que
esta determinação continue a existir. A determinação limita
a sua própria liberdade. Mas então, e de acordo com a pres-
suposição de que aquela determinação não é susceptível de
ser destruída por via da simples causalidade da vontade,
não é necessária uma tal autolimitação; há algo que falta
e que pertence à reflexão de um ser livre como tal e esse
algo que falta é dado a sentir pela coação. Logo que se
reflete sobre algo, a coação é sentida, pois tudo é necessa-
riamente interdependente no corpo articulado e cada parte
projeta a sua influência sobre todas as demais, de acordo
com o conceito de articulação.
Esta inibição do movimento livre no meu corpo,
tenho necessariamente de pô-la como possível com vista à
contraposição postulada; e o meu corpo é, uma vez mais,
determinado de novo. Como condição de uma tal contra-
posição, tenho de pôr exteriormente a mim uma matéria
resistente e durável, capaz de resistir ao movimento livre do
meu corpo; e assim, por via da determinação adicional
do meu corpo, também o mundo sensível adquiriu uma
determinação adicional.
Esta matéria resistente e durável pode inibir somente
uma parte dos meus movimentos livres, mas não todos;
pois, então, a liberdade da pessoa estaria completamente
anulada, eu estaria, enquanto tal morto, morto para o
mundo sensível. Tenho, por conseguinte, de, através do
movimento livre das restantes partes do meu corpo, poder
libertar da coação as partes que lhe estão sujeitas e, por
conseguinte, devo possuir uma causalidade sobre a matéria
resistente. O corpo tem de ter uma força física que lhe per-
mita resistir à impressão da matéria, se não diretamente
pelo querer, ao menos indiretamente pelo artifício, isto é,
pela aplicação da vontade à parte da articulação ainda livre.
Mas também o órgão desta causalidade deve, ele próprio,

83
ser composto por uma tal matéria resistente e durável; por
conseguinte, esta supremacia do ser livre sobre esta matéria
que lhe é exterior procede, pura e simplesmente, da liber-
dade segundo conceitos; pois que enquanto a matéria opera
de acordo com leis mecânicas, pelo que só tem um modo de
operar, o ser livre tem diversos modos de operar.
371 Se o meu corpo é constituído por matéria resistente e
durável e se tem a força de modificar toda a matéria no
mundo sensível e de a conformar de acordo com os meus
conceitos, então o corpo da pessoa que é exterior a mim é
constituído pela mesma matéria e tem a mesma força. Ora,
o meu corpo é matéria, logo, um objeto possível para a
influência exercida pelo outro mediante a mera força física;
um objeto possível cujo movimento livre ele pode estar a
inibir. Se me tivesse tomado por simples matéria e tivesse
querido exercer influência, então teria exercido sobre mim
esta influência assim, quer dizer, da mesma maneira como
eu opero sobre tudo aquilo que considero como sendo sim-
ples matéria. Não foi assim que ele operou, logo não teve
de mim o conceito de simples matéria, mas sim o de um
ser racional, e foi por esse conceito que ele limitou a sua
faculdade; e só agora está a conclusão completamente justi-
ficada e se apresenta como necessária: a causa da influência
sobre mim que foi acima descrita não é nenhuma outra
senão um ser racional.
Com isto, fica estabelecido o critério da interação recí-
proca dos seres racionais enquanto tais. Eles exercem neces-
sariamente influência uns sobre os outros na pressuposição
de que o objeto da influência tem um sentido, não como
meras coisas modificáveis pela força física com vista à con-
secução dos seus fins.

IV Na influência descrita, o órgão do sujeito foi efeti-


vamente modificado por uma pessoa que lhe é exterior.

84
Ora, isra não aconteceu nem por contacra corporal direto
dessa pessoa, nem por meio de uma matéria durável; pois
que então não se poderia inferir a influência de uma pes-
soa, nem, tão-pouco, o sujeira se perceberia como livre. -
O órgão é, em qualquer caso, algo material, uma vez que o
corpo o é na sua ratalidade; é, por conseguinte, modificado
necessariamente por uma matéria que lhe é exterior, condu-
zido a uma certa forma e mantido nela. A mera vontade do
sujeito suprimiria esta forma e o sujeira deve refrear esta
vontade, a fim de que a forma não seja destruída. A maté-
ria por via da qual está produzida esta forma não é, por-
tanto, uma matéria resistente e durável e as suas partes não
podem ser separadas pela simples vontade, sendo, isso sim,
uma matéria mais delicada e subtil. Uma tal matéria mais
subtil deve ser posta necessariamente no mundo sensível
como condição da influência requerida.
A modificação do órgão para a influência mediante a
liberdade não deve ter qualquer incidência que seja sobre o
órgão para a influência mediante a coação, deve deixá-lo
inteira e completamente livre. Deste modo, a matéria mais
delicada tem de incidir somente sobre o primeiro órgão e
nunca sobre o segundo, não podendo inibi-lo ou vinculá-
-lo: tem, portanto, de existir uma tal matéria, uma matéria
cujas partes constitutivas não tenham qualquer conexão
perceptível com o sentido inferior, quer dizer, o sentido
sobre o qual se exerce a coação.
Na situação que acaba de ser descrita, eu faço minha a 372
faculdade de reagir sobre esta matéria mais subtil mediante
a mera vontade, por intermédio de uma afectação do órgão
superior pelo inferior; uma vez que foi expressamente dira
que eu tenho de refrear um tal movimenra do órgão infe-
rior para não destruir a determinação produzida no órgão
superior, logo, também para não dar outra determinação à
matéria mais subtil que está em ligação com ele. A matéria

85
mais subtil é, portanto, susceptível de ser modificada por mim
mediante a mera vontade.
Para prevenir possíveis confusões, acrescentemos algu-
mas palavras ainda. - Foi posto um duplo órgão, superior e
inferior. O superior é aquele que é modificado pela matéria
mais subtil; o órgão inferior é aquele que só pode ser ini-
bido pela matéria resistente, que só com esforço pode ser
dividida.
Num dos casos, atua-se sobre a pessoa como um ser
livre, tal como foi descrito. Então, o órgão superior é modi-
ficado e mantido por uma forma determinada da matéria
mais subtil; e, com vista e percepção, a pessoa tem de inibir
o movimento do órgão inferior, na medida em que este
esteja em relação com esta parte do órgão superior, tendo,
porém, se bem que só interiormente, de imitar no órgão
inferior o movimento determinado que deveria realizar para
que ela própria produzisse a dita modificação determinada
do órgão superior. Quando é percebida pela vista uma
forma no espaço, imita-se interiormente, mas à velocidade
de um relâmpago e de modo imperceptível para o observa-
dor comum, o sentimento do objeto, quer dizer, a pressão
que deveria ter tido lugar para que esta forma fosse produ-
zida plasticamente, mas conservando na vista esta impres-
são, como esquema desta imitação. É por isto que a gente
inculta, quer dizer, que não foi suficientemente instruída,
gente na qual as disposições da Humanidade não se torna-
ram ainda capacidades, toca manualmente o corpo sublime
que quer ver corretamente ou até mesmo a superfície do
quadro, da gravura ou do livro que está a ler. - É impossí-
373 vel para quem ouve poder falar ao mesmo tempo, pois tem
de imitar os sons exteriores, construindo-os por intermédio
do órgão vocal; é também por isto que algumas pessoas fre-
quentemente perguntam o que é que se disse, mesmo que o
tenham ouvido perfeitamente, só que não o perceberam; e,

86
muitas vezes, torna-se necessário repeti-lo uma segunda vez
para saberem o que é que foi dito , pois que então estão
obrigadas a reproduzir os sons, coisa que até aí não tinham
feito . Outros tratam de repetir em voz alta o discurso que
lhes é dirigido e pronunciam-no no seu interior. - Neste
caso, o corpo desempenha a função de sentido, precisa-
mente de sentido superior.
Ou então, no outro caso, produz-se no órgão superior
uma modificação por meio da mera vontade da pessoa,
acompanhada pela vontade de que o órgão inferior seja,
por essa via, movido em conformidade a um fim: se este
órgão inferior não está inibido, o movimento tem, conse-
quentemente, lugar e, a partir dele, a modificação desejada
da matéria mais subtil ou mais grosseira, em conformidade
com o fim que a pessoa se tenha proposto. É assim, por
exemplo, que são formadas no olho, como órgão ativo, a
figura ou a letra, que são lançadas sobre o papel antes que
as fixe a mão lenta do pintor ou de quem escreve, mão que
é guiada pelo olho e que está submetida às suas ordens.
Neste caso, o corpo desempenha a função de instrumento.
Se o movimento desejado do órgão inferior não
tem lugar - o movimento do órgão superior tem sempre
lugar, desde que a pessoa esteja viva -, então o órgão infe-
rior está inibido, sente-se uma resistência, e o corpo desem-
penha, então, a função de sentido, mas de sentido inferior.
Se um ser racional exerce sobre outro uma influência
como se este fosse simples matéria, o sentido inferior deste
é afectado também, e inclusivamente de uma maneira
necessária e completamente independente da sua liberdade,
tal como é sempre o caso quando se trata deste sentido;
mas não há que supor que esta afectação era intenção do
agente. Ele queria apenas, pura e simplesmente, realizar o
seu fim na matéria, expressar nela o seu conceito; no seu
conceito de fim não foi tido em conta, em absoluto, saber

87
se a matéria deve ou não ter sentimento desta afectação.
A interação de seres racionais enquanto tais tem, portanto,
lugar sempre por meio do sentido superior, pois este é o
único sobre o qual não podemos operar sem antes o pressu-
pormos; e, assim, continua a ser correto o critério acima
enunciado desta interação: é uma interação em que o sen-
tido do objeto da ação é pressuposto.

374 V Como condição da autoconsciência foi posta uma


ação procedente de fora, em resultado da qual foi posta
uma certa constituição para o corpo humano e, por sua
vez, em resultado desta última, que o mundo sensível tem
uma determinada organização. Portanto, e antes de mais,
para que a consciência seja possível, o mundo sensível deve
estar assim constituído e achar-se nesta relação com o nosso
corpo, não havendo, naturalmente, nada no mundo sensí-
vel que não esteja em relação com o nosso corpo; para nós,
só existe aquilo que é resultado desta relação. Não se
esqueça que há que entender esta conclusão somente do
ponto de vista transcendental. "É assim" significa que deve-
mos pô-lo assim: e uma vez que o temos de pôr assim, por
isso é assim . A existência de um corpo foi inferida a partir
da autonomia e da liberdade. Mas a liberdade existe
somente na medida em que é posta: por conseguinte, uma
vez que aquilo que é fundamentado não pode ir além do
seu fundamento, o corpo só existe para aquele por quem é
posto.
A ulterior determinação do corpo e, por intermédio
desta, a determinação do mundo sensível, foi inferida a
partir da comunidade necessária de seres livres, a qual, por
sua vez, é condição de possibilidade da autoconsciência,
que se enlaça, assim, com o nosso ponto de partida. Uma
vez que no mundo os seres livres devem estar em comuni-
dade, o mundo deve, por isso, estar assim constituído. Mas

88
uma comunidade de seres livres só existe na medida em
que seja posta por eles; por conseguinte, o mundo é assim
unicamente na medida em que eles o põem assim: de
modo nenhum com liberdade, mas sim com necessidade
absoluta; e algo posto desta maneira tem para nós reali-
dade.

VI . Eu atribuo-me um órgão inferior e um órgão


superior, que estão um para o outro na relação que foi des-
crita; em consequência, admito no mundo sensível exterior
a mim a existência de uma matéria mais grosseira e de uma
outra mais subtil, que estão em relação com os meus órgãos
na maneira que foi descrita. Tal pôr é condição necessária
da autoconsciência e pertence, portanto, ao conceito de
pessoa. Logo, se ponho um ser exterior a mim como pes-
soa, tenho de admitir que ele põe necessariamente o mesmo
ou, o que é equivalente, tenho de lhe atribuir a posse real e
o uso dos tais dois órgãos diferentes, tenho de admitir a
existência real para ele de um mundo sensível assim deter-
minado.
Faz parte também do conceito de pessoa esta transfe-
rência para uma pessoa exterior a mim daquilo que há de
necessário no meu pensamento. Tenho, por conseguinte, de
atribuir à pessoa exterior a mim que ela, caso me ponha a
mim como pessoa, admita em relação a mim o mesmo que
eu admito em relação a mim e em relação a ela; e, ao
mesmo tempo, que admita em relação a mim que eu
admito o mesmo em relação a ela. Os conceitos da articula-
ção determinada de seres racionais e do mundo sensível
exterior a eles são necessariamente conceitos comuns, con-
ceitos sobre os quais os seres racionais estão necessaria-
mente de acordo, mesmo sem qualquer combinação prévia,
uma vez que em cada um deles o mesmo tipo de intuição 375
está fundado na sua própria personalidade e estes conceitos

89
têm necessariamente de ser pensados como tais. Cada ser
racional pode justificadamente pressupor que o outro, na
medida em que é um ser racional, tem os mesmos concei-
tos sobre estes objetos, pode esperar isso dele e pode ater-se
a que asstm seJa.

VII. Ressalta agora uma nova objecção e somente


depois de lhe respondermos é que o corpo de um ser racio-
nal estará completamente determinado. A saber: foi afir-
mado que eu não acedo nem poderia aceder à autocons-
ciência, a não ser em resultado da influência exercida sobre
mim por um ser racional exterior a mim. Pois que, mesmo
que dependa exclusivamente de mim o querer eu ou não
submeter-me a esta influência e até mesmo que eu queira
em geral reagir e que seja eu a escolher como fazê-lo, a pos-
sibilidade de manifestação da minha liberdade depende de
que tenha tido lugar a influência sobre mim do outro ser
racional.
Só então me torno um ser racional, na realidade e não
apenas virtualmente; se aquela ação não tivesse tido lugar,
eu nunca me teria tornado efetivamente racional . A minha
racionalidade depende, por conseguinte, do arbítrio, da boa
vontade do outro, do acaso; e toda a racionalidade depende
do acaso.
Ora, isto não pode ser: pois então não sou autónomo
como pessoa, mas somente um acidente de uma outra
pessoa, que, por sua vez, é um acidente de uma terceira, e
assim até ao infinito.
Esta contradição não se pode superar senão pela pres-
suposição de que o outro está já naquela influência originá-
ria forçado - forçado como ser racional, isto é, obrigado pela
coerência - a tratar-me a mim como um ser racional: e,
precisamente, que é por mim que ele está forçado a fazê-lo;
daí que já naquela primeira influência originária, em que

90
dependo dele, ele depende, ao mesmo tempo, de mim; por
conseguinte, que aquela relação origindria é uma interação.
Mas antes daquela influência, eu não sou, em absoluto, um
Eu; eu não me pus a mim mesmo, uma vez que o pôr-me a
mim mesmo está condicionado por esta influência e só por
seu intermédio é possível. No entanto, devo agir causal-
mente. Devo, portanto, agir causalmente sem produzir efei-
tos; agir causalmente sem atividade. Vejamos como é que
isto pode conceber-se.
a) Agir causalmente sem produzir efeitos significa uma
mera faculdade. Esta mera faculdade deve agir causalmente.
Mas uma faculdade não é mais do que um conceito ideal e
seria uma ideia vazia atribuir-lhe o predicado exclusivo da
realidade, a atividade causal, sem admitir que ela seja reali-
zada. - Ora, a faculdade completa da pessoa está, de resto,
realizada no mundo sensível no conceito do seu corpo, que
existe pelo simples facto de ser pessoa, que persiste
enquanto ela persistir, que é um todo acabado de partes
materiais e que, portanto, tem uma forma originária deter-
minada, de acordo com o que foi acima exposto. O meu
corpo teria, assim, de agir causalmente sem que eu agisse
causalmente através dele.
b) Mas o meu corpo é o meu corpo apenas na medida
em que é posto em movimento pela minha vontade, pois
que de outro modo é apenas massa; ele é ativo como meu
corpo apenas na medida em que eu sou ativo através
dele. Ora, no caso presente, eu não devo ainda ser Eu, por
conseguinte não devo ser ativo, pelo que o meu corpo tam-
bém não é ativo. Ele teria, portanto, de agir causalmente
por via da sua mera existência no espaço e por via da sua
forma e deveria agir de tal maneira que todo o ser racional
estivesse obrigado a reconhecer-me com um ser capaz de
razão e a tratar-me em conformidade com esta pressupo-
sição.

91
c) Antes do mais, o ponto mais difícil: como é que o
que quer que seja pode agir causalmente através da sua
mera existência no espaço, sem qualquer movimento que
seja?
A influência deve ter lugar sobre um ser racional
enquanto tal; deve ter lugar, portanto, não através de um
contacto direto e a inibição do seu órgão inferior, mas
sobre o seu órgão superior, por conseguinte por intermédio
da matéria mais subtil. Ora, admitimos acima em relação a
esta que ela é um meio de influência recíproca dos seres
racionais entre si, uma vez que pode ser modificada por um
movimento do próprio órgão superior. Mas este não deve
ser aqui o caso. Um corpo pode produzir, estando em
repouso, sem qualquer atividade, uma influência: a matéria
mais subtil tem, portanto, no nosso caso, ser posta de tal
maneira que seja modificada pela mera forma em repouso e
que, em consequência desta modificação do sentido supe-
rior que foi obtida, modifique o sentido superior de um
outro ser racional. - O corpo humano foi até agora consi-
derado apenas como forma no espaço, pelo que aquilo que
foi demonstrado em relação a ele tem de valer para toda a
forma e tem de ser posto como tal.
(Não está demonstrado que a matéria subtil a que aca-
bamos de aludir, por intermédio da qual a mera forma no
espaço deve agir causalmente, seja especificamente diferente
daquela que deduzimos acima, mas somente que à matéria
subtil têm de corresponder estes dois predicados. Isto esta-
ria demonstrado se se pudesse provar que a matéria a modi-
ficar pela mera forma não pode ser agitada diretamente
pelo movimento do órgão, mas que é para ele sólida e ina-
movível. Esta demonstração não é verdadeiramente perti-
nente neste ponto do nosso percurso, mas quero levá-la a
cabo de imediato para não dispersar demasiado as matérias.
- A forma da pessoa exterior a m im tem de continuar a ser

92
a mesma para ela, se esta quiser apresentar-se ela própria
como a mesma pessoa e, exatamente pela mesma razão,
deve continuar a ser a mesma para mim. Se pusermos agora 377
que nós nos encontramos em influência recíproca por meio
da matéria subtil a agitar (se pusermos que nós falamos um
com o outro), então a matéria A é modificada continua-
mente e uma vez que ela é a matéria na qual são impressas
as nossas formas, então estas também se modificarão conti-
nuamente para nós os dois, o que contradiz a pressuposição
de que, de acordo com a representação que é comum a um
e ao outro, têm de ser as mesmas as pessoas em interação.
Por conseguinte, a matéria em que estão impressas as nossas
formas tem que ser imóvel e não agitável pelo movimento
contínuo da matéria A, portanto, não modificável para o
nosso órgão, pelo que deve ser matéria diferente de A -
deve ser B. Ar, luz (os fenómenos relativos à luz só podem
indiretamente ser modificados por nós, na medida apenas
em que a forma ela própria possa ser modificada.)
d) O meu corpo tem que ser visível para a pessoa
exterior a mim, tem que lhe aparecer através do meio que é
a luz e tem que ter-lhe aparecido e isto é tão certo quanto o
facto de que ela age sobre mim: com o que estaria respondida
a primeira e menos relevante parte da nossa pergunta. Ora,
de acordo com a pressuposição que foi necessário avançar,
este fenómeno deve ser tal que seja, pura e simplesmente,
impossível compreendê-lo e concebê-lo, a não ser mediante
a pressuposição de que eu sou um ser racional; que, por
conseguinte, se pode exigir do outro: logo que vislumbres
esta forma, sendo tu um ser racional, tens necessariamente
que a considerar como a representação de um ser racional
no mundo sensível. Como é isto possível?
Em primeiro lugar- o que é que significa compreender
ou conceber? Significa estabelecer, determinar, delimitar. Eu
concebi um fenómeno se obtive através dele um conjunto

93
completo de conhecimentos que está fundamentado em si
em rodas as suas partes; se cada uma das partes é funda-
mentada ou explicada pelo conjunto e o conjunto por cada
uma das partes singularmente consideradas. É somente
assim que o conjunto está completo ou delimitado. - Eu
não cheguei a conceber se me encontro ainda no momento
de explicar, se o meu opinar é ainda um oscilar e não está,
portanto, ainda consolidado; se sou empurrado por partes
do meu conhecimento para outras partes dele. (Eu não che-
guei ainda a conceber A, que deve ser algo contingente, se
não pensei uma causa para ele e, uma vez que a A tem de
corresponder um determinado tipo de contingência, se não
pensei uma causa determinada.) Que eu não posso com-
preender um fenómeno a não ser de uma certa maneira sig-
nifica, portanto: que eu sou empurrado sempre das partes
singulares do fenómeno até um certo ponto e que só neste
ponto posso ordenar aquilo que recolhi e resumi-lo num
rodo de conhecimento. Que eu não posso conceber o fenó-
meno de um corpo humano a não ser admitindo que se
trata do corpo de um ser racional significa: que na recolha
378 das partes do seu fenómeno eu não posso parar antes de ter
chegado ao ponto em que tenho que pensá-lo como o
corpo de um ser racional. Quero conduzir rigorosamente
esta demonstração genética, isto é, quero indicar os momen-
tos principais dessa demonstração. Ela não pode ser apre-
sentada aqui com todo o pormenor. Por si só, esta demons-
tração constitui uma ciência específica, a antropologia.
e) Em primeiro lugar, teria de ser necessário pensar o
corpo humano como um todo e que fosse impossível sepa-
rar as suas partes no conceito, como acontece com os obje-
tos que são mera matéria bruta, como o entulho, os mon-
tões de areia, etc. Mas aquilo que está constituído de uma
maneira tal que tem de ser necessariamente pensado com
um rodo chama-se um produto organizado da natureza.

94
O corpo humano tem, em primeiro lugar, de ser um pro-
duto organizado da natureza. O que seja um produto e
porquê e em que medida ele não pode ser pensado senão
como um todo, a melhor maneira de o saber é compa-
rando-o com um produto do artificio, o qual coincide com
o produto da natureza na medida em que temos também
de o pensar como um todo. Num e noutro, cada parte
existe em razão de cada uma das outras, por conseguinte,
em razão do todo; e a faculdade de julgar, tanto na consi-
deração de um como do outro, vê-se, portanto, impelida
desde o pôr de uma das partes para o pôr de todas as
outras, até ter completado a sua apreensão. No produto da
natureza, porém, o todo existe também em virtude das par-
tes, não tem outro fim senão precisamente produzir estas
partes; no produto do artifício, pelo contrário, o todo não
remete para as partes, mas para um fim que é exterior a ele;
é um instrumento para algo. Além disso , no produto da
natureza cada parte singular produz-se a si própria
mediante a sua força interior e, assim, é a integralidade das
partes que produz o todo; no produto do artifício, no
entanto, antes mesmo que ele possa chegar a ser um pro-
duto do artifício, o impulso interior de formação está
morto e não se conta, em absoluto, com ele, mas sim com
a composição de acordo com leis mecânicas; por conse-
guinte, o produto do artifício remete para um autor exte-
rior, enquanto o produto da natureza se produz continua-
mente a si mesmo e é, precisamente, por essa via que se
conserva.
fi Um fenómeno , pressupondo que seja um produto
da natureza, é compreendido na íntegra se tudo o que surge
nele se refere, por sua vez, à organização e pode explicar-se
inteiramente a partir do fim desta organização específica.
Por exemplo, o grau superior, último e extremo da força
organizatória na planta individual é a semente: esta pode

95
ser explicada completamente a partir da organização como
fim, é por intermédio dela que a espécie se reproduz, é por
intermédio dela que a organização retorna, de novo, a si
própria e dá início ao seu percurso. O ato da força organi-
379 zatória não está, de modo algum, concluído, mas prossegue
num ciclo permanente. - Que por via desta hipótese um
fenómeno não possa ser integralmente compreendido signi-
fica que o produto último e supremo da tendência forma-
dora não pode, por sua vez, relacionar-se como meio com
esta tendência formadora, mas remete para um outro fim.
Aqui, a explicação pode avançar durante um certo espaço
de tempo segundo as leis da organização (não que esta lei
não se possa aplicar em absoluto, como acontecia no caso
do produto do artifício); no final de contas, porém, acaba
por não poder continuar a explicar-se com base nessas leis,
isto é, o produto último da tendência formadora não pode
de novo referir-se a elas. Logo, o círculo não está fechado e
o conceito não está completo, quer dizer, não foi compreen-
dido: o fenómeno não foi entendido. (Claro, que por via da
reprodução da espécie, o ser humano completa o ciclo da
organização. Ele é uma planta perfeita; mas, no entanto, o
ser humano é algo mais.)
Ora isso seria a articulação, a qual tem necessaria-
mente que ser visível e que é, de resto, um produto da
organização. A articulação , por seu turno, não produz
a organização, mas remete-a para um outro fim, quer dizer,
ela só é perfeitamente condenada e reduzida à unidade
num outro conceito. Este conceito poderia ser o de movi-
mento livre determinado e, nessa medida, o homem seria
um animal.
/Y Mas mesmo mediante essa pressuposição não pode-
ria o corpo humano ser compreendido. A sua articulação
não seria, por conseguinte, susceptível de ser compreendida
mediante um conceito determinado. Não teria de remeter

96
para um círculo determinado do movimento arbitrário,
como no animal, mas para todos os movimentos pensáveis
até ao infinito. Não existiria nenhuma determinação da
articulação, mas somente uma determinabilidade infinita;
não existiria configuração do corpo, mas somente capaci-
dade para ser configurado. - Em suma: enquanto todos os
animais estão completos e concluídos, o homem está
somente indicado e esboçado. O observador racional não
pode reunir as partes a não ser no conceito de seu seme-
lhante, no conceito de liberdade que lhe é dado pela sua
autoconsciência. Tem de supor o conceito de si próprio
para poder pensar algo, visto que nenhum conceito, em
absoluto, está dado; mas com este conceito ele pode agora
explicar tudo. Cada animal é o que é: somente o homem
não é originariamente nada. Aquilo que deve ser, tem de
chegar a sê-lo: e, uma vez que deve ser um ser para si, tem
de chegar a sê-lo por si próprio. A natureza completou
todas as suas obras, só do homem retirou ela a mão e con-
fiou-o , deste modo, a si próprio. A capacidade de formação
como tal é o carácter da humanidade. Por impossibilidade
de atribuir a uma figura humana outro conceito que não
seja o de si próprio, todo o homem está interiormente for-
çado a considerar os demais como seus semelhantes.

Corolários 380

1. Há uma questão delicada para a filosofia que, tanto


quanto sei, não foi ainda resolvida em qualquer lugar:
como é que conseguimos transferir o conceito de racionali-
dade para certos objetos do mundo sensível e para outros
não? Qual é a diferença característica de ambas as classes?
Kant diz: atua de tal modo que a máxima da tua von-
tade possa ser princípio de uma legislação universal<20l . Mas

97
quem deve fazer parte do reino que é governado por esta
legislação e gozar da sua proteção? Devo tratar certos seres
de tal maneira que possa querer que eles me tratem, por
sua vez, de acordo com a mesma máxima. Mas exerço
todos os dias ações sobre animais e objeros inanimados sem
suscitar seriamente a questão colocada. É-me então dito
que, como é óbvio, estamos a falar apenas de seres que são
capazes de se representar leis, de seres racionais, portanto;
mas, com isto, eu obtenho um conceito indeterminado em
lugar do outro, mas, de modo nenhum, uma resposta à
minha questão. Pois como é que eu sei que um objero
determinado é um ser racional: como é que eu sei, por
exemplo, se a proteção daquela legislação só beneficia o
europeu branco ou também o africano negro, o adulto ou
também a criança ou se não poderia eventualmente alargar-
-se também ao fiel animal doméstico? Enquanto esta ques-
tão não for respondida, aquele princípio, apesar de roda a
sua excelência, não tem aplicabilidade nem realidade.
Há muito que a natureza solucionou esta questão.
Não há homem nenhum que, mal aviste um outro homem,
se ponha, sem mais, em fuga, como se estivesse perante um
animal feroz, ou que se disponha a matá-lo e a comê-lo,
como um selvagem; e que não conte antes com uma comu-
nicação recíproca. Isto é assim não por costume ou por
ensinamento, mas em virtude da natureza e da razão, e aca-
bamos de deduzir a lei segundo a qual isto é assim.
Mas não se queira crer - recordamo-lo somente a uns
poucos - que o homem tem de estabelecer aquele longo e
laborioso raciocínio que levamos a cabo para tornar com-
preensível para si próprio que um cerro corpo exterior a ele
pertence a um ser semelhante a ele. Este reconhecimento
ou não tem, de rodo em rodo, lugar ou então consuma-se
num ápice, sem que se tenha consciência dos seus funda-

98
mentos. É somente ao filósofo que compete dar conta do
mesmo.
2. Detenhamo-nos, por mais alguns momentos ainda, 38 1
perante a perspetiva que se nos abre.
a) Todo o animal se move poucas horas após o seu
nascimento e procura o seu alimento no peito da mãe.
É guiado pelo instinto anima~ a lei de certos movimentos
livres na qual se baseia também aquilo que foi chamado
impulso técnico dos animais. O homem tem, certamente,
um instinto vegetativo, mas instinto animal, no sentido que
foi indicado, não tem. Ele tem necessidade do auxílio livre
dos homens e, sem ele, morreria pouco tempo após o nasci-
mento. Mal abandonou o corpo da mãe, a natureza afasta
dele a sua mão e, por assim dizer, como que o rejeita. Plí-
nid21) e outros mais invetivaram abundantemente, por esse
facto , a natureza e o seu Criador. Isto pode ter valor retó-
rico, mas não filosófico . É precisamente por isto que se
demonstra que o homem não é, enquanto tal, um pupilo
da natureza, nem deve sê-lo. Se é um animal, ele é um ani-
mal tão extraordinariamente perfeito que, precisamente por
isso, não é um animal. Considerou-se, frequentemente, esta
questão como se o espírito livre existisse para cuidar do ani-
mal. Não é assim. O animal existe para servir de suporte ao
espírito livre no mundo sensível e para o ligar ao mundo
sensível.
Em virtude deste desamparo extremo, a Humanidade
é confiada a si própria e a espécie humana confiada, em
primeiro, à própria espécie. Tal como a árvore conserva a
sua espécie quando é despojada dos frutos, assim também o
homem conserva a sua espécie mediante o cuidado e a edu-
cação do recém-nascido desamparado. É assim que a razão
se produz a si própria e só assim é que é possível o seu pro-
gresso no sentido do aperfeiçoamento. É assim que os
membros da espécie humana se tornam dependentes uns

99
dos outros e que cada membro futuro conserva a herança
espiritual de todos aqueles que o precederam.
b) O homem nasce nu, os animais cobertos. Ao
formá-los, a natureza concluiu o seu trabalho e imprimiu
neles o selo do acabamento; protegeu com um manto mais
espesso a organização mais delicada das influências da
matéria mais grosseira. No homem, o órgão primordial e
mais importante, o do tacto, que se dissemina pela pele
toda, está exposto precisamente à influência daquela maté-
ria, não por descuido da natureza, mas por respeito dela
por nós. Aquele órgão estava destinado a entrar diretamente
em contacto com a matéria para a adequar o mais precisa-
mente possível aos nossos fins: mas a natureza deixou ao
nosso alvedrio determinar em que parte do corpo preferi-
mos localizar a nossa faculdade formadora e qual a que
queremos considerar como simples massa. Nós localizamo-
-la na ponta dos dedos, por um motivo que vai ser já indi-
cado. Ela está ali localizada porque nós assim o quisemos.
382 Nós poderíamos ter dado a cada uma das partes do nosso
corpo a mesma sensibilidade delicada, se assim o tivéssemos
querido; é isto que provam as pessoas que cosem e escre-
vem com os dedos do pé ou que falam com o ventre, etc.
c) Qualquer animal tem, tal como observamos mais
acima, capacidades inatas de locomoção. Pense-se no castor,
nas abelhas, etc. O homem não tem nada de similar e até
mesmo a posição ereta é dada à criança para preparar o seu
futuro modo de andar. - Perguntou-se se o homem está
destinado a caminhar sobre quatro patas ou na vertical.
Eu creio que ele não está destinado a qualquer uma das
duas possibilidades; foi deixado ao seu cuidado ser ele pró-
prio, enquanto espécie, a escolher o seu modo de locomo-
ção. Um corpo humano pode andar sobre quatro patas e
encontraram-se homens, crescidos entre os animais, que o

100
podiam fazer com uma velocidade incrível. Na minha opi-
nião, o género humano ergueu-se livremente do solo e,
com isso, adquiriu a faculdade de lançar o olhar à sua volta
e abarcar no céu com a vista meio universo, enquanto os
olhos do animal estão, pela sua postura, amarrados ao chão,
chão que lhes traz o seu alimento. Com este erguer-se do
solo, o género humano ganhou à natureza dois instrumen-
tos da liberdade: os dois braços que, desembaraçados de
todas as operações animais pendem do corpo, esperam a
ordem da vontade e estão adestrados exclusivamente para
uma aptidão para os fins do género humano. Com o seu
modo de locomoção audacioso, que constitui uma expres-
são duradoura da sua argúcia e habilidade, o género
humano, ao observar o equilíbrio, mantém a sua razão e
liberdade continuamente em exercício, permanece constan-
temente em devir e dá expressão a este devir. Em virtude
desta postura, transfere a sua vida para o reino da luz e foge
sem cessar da terra, que toca com a parte mais pequena
possível de si próprio. Para o animal, o solo é leito e mesa;
o homem eleva-se sobre a terra acima de tudo isto.
d) Aquilo que caracteriza, da forma mais expressiva, o
homem civilizado é a inteligência do olhar e a boca que
reflete as emoções mais íntimas do coração. Não falo do
facto de que o olhar, graças aos músculos em que está
implantado, se move livremente e que a sua perspetiva
pode dirigir-se para aqui ou para acolá; é uma mobilidade
que é aumentada também pela postura ereta do homem,
mas que em si é mecânica. Chamo a atenção para o facto
de que o olho em si não é para o homem meramente um
espelho morto, passivo, como a superfície das águas em
repouso, o espelho artificialmente produzido ou o olho de
um animal. É um órgão poderoso, que espontaneamente
circunscreve a forma no espaço, a recorta e a reproduz; que

101
traça espontaneamente a figura que deve surgir do mármore
383 bruto ou projetada na tela, antes que o cinzel ou o pincel
sejam tocados; que espontaneamente cria uma imagem para
o conceito que a mente arbitrariamente projetou. Mediante
esta vitalidade e este entrelaçamento infinito das partes
umas com as outras, aquilo que o olho tinha em si de ter-
reno em razão da matéria é, por assim dizer, descartado e
deitado fora e o olho transfigura-se a si mesmo em luz
e torna-se uma alma visível. - Daí que quanto maior for a
espontaneidade espiritual que alguém tem, tanto mais rico
espiritualmente será o seu olhar; e quanto menor for, tanto
mais o seu olhar será nele um espelho embaciado, coberto
por um manto de névoa.
A boca, destinada pela natureza à função mais baixa e
egoísta, a alimentação, converte-se, em virtude da nossa
aculturação, em expressão de todos os sentimentos sociais,
na medida em que é o órgão da comunicação. Quando o
indivíduo ou, uma vez que estamos aqui a falar de partes
estáveis, a raça é ainda bestial e egoísta, a boca é proemi-
nente; mas à medida que a raça se enobrece, a boca recua,
sob a curvatura da fronte pensante.
Tudo isto, não considerado de forma isolada, não
como é segmentado pelos filósofos , mas tomado na sua sur-
preendente concatenação, captada instantaneamente, conca-
tenação essa onde o sentido é dado , é isto o que força todo
aquele que é portador de rosto humano a reconhecer e a
respeitar em toda a parte a forma humana, independente-
mente de estar ela meramente indiciada, caso em que tem
ainda de ser por ele transferida para o corpo, uma vez mais
com necessidade, ou de estar já num certo grau de acaba-
mento. A forma humana é para o homem necessariamente
sagrada.

102
§ 7. Demonstração de que, mediante as proposições enuncia-
das, é possível a aplicação do conceito de Direito

I. As pessoas devem, enquanto tais, ser absolutamente


livres e depender exclusivamente da sua vontade. As pes-
soas, tanto quanto o sejam, devem estar em influência recí-
proca e, por conseguinte, não devem depender exclusiva-
mente de si mesmas. Responder à questão de como podem
ambas as proposições coexistir é tarefa da ciência do Direito
e a pergunta que lhe subjaz como fundamento é: como é
possível uma comunidade de seres livres enquanto tais?
Até agora indicamos as condições externas desta possi- 384
bilidade. Explicamos como, sob esta pressuposição, devem
estar constituídas as pessoas que estão em influência recí-
proca e como deve estar constituída a esfera da sua influên-
cia recíproca, o mundo sensível. A demonstração das nossas
proposições apoia-se unicamente na pressuposição de uma
tal comunidade, que se funda, ela própria, na possibilidade
da autoconsciência. Assim, todas as conclusões extraídas até
ao momento são deduzidas, por inferência direta, do postu-
lado "Eu sou Eu"; têm, por conseguinte, o mesmo grau de
certeza que este mesmo postulado. Somos agora conduzidos
pelo procedimento sistemático à elucidação das condições
internas de uma tal interação.
O último ponto em que nos detivemos e desde o qual
vamos agora continuar a avançar é este: toda a interação
voluntária de seres livres assenta numa interação originária
e necessária dos mesmos, a saber: o ser livre, pela sua sim-
ples presença no mundo sensível, sem mais, força cada um
dos outros seres livres a reconhecê-lo como uma pessoa.
Este oferece o fenómeno determinado, o outro oferece o
conceito determinado. Ambos estão necessariamente unidos
e a liberdade não tem aqui a mínima margem de manobra.
-Em virtude disto, surge aqui um conhecimento comum e

103
nada mais. Reconhecem-se um ao outro na sua interiori-
dade, mas estão isolados, como dantes.
Em cada um dos dois está presente o conceito de que
o outro é um ser livre, um ser que não deve ser tratado
como mera coisa. Ora, se todos os outros conceitos são
condicionados por este conceito e dado que o seu querer
também pertence aos seus conceitos e que é por ele que são
determinadas as suas ações, todo o seu querer e agir é con-
dicionado de acordo com a lei da não contradição, quer
dizer, existe uma necessidade lógica, então não poderão que-
rer exercer um sobre o outro uma influência arbitrária, isto
é, não poderão de todo em todo fazê-lo; tão-pouco poderão
atribuir-se força física para o fazer e, por conseguinte, tão-
-pouco a terão.
Mas, evidentemente, que não é assim . Cada uma dos
dois pôs também o corpo do outro como matéria, como
matéria suscetível de ser configurada segundo o conceito;
cada um deles atribui-se, em geral, a faculdade de modificar
a matéria. Por conseguinte, cada um deles pode, evidente-
mente, subsumir nesse conceito o corpo do outro, na
medida em que é um corpo material: e pode pensar-se a
modificá-lo pela força física; e, uma vez que a sua vontade
não está limitada por nada a não ser pela sua faculdade de
pensar, pode também querê-lo.
Mas qualquer um dos dois, precisamente porque é
livre, porque pode fazer escolhas no âmbito de toda a esfera
da sua atividade causal, pode limitar o exercício da própria
força, dar-lhe leis, e, em particular, dar-lhe também a lei
385 indicada. A validade da lei depende, assim, exclusivamente
do facto de cada um ser coerente ou não. Mas a coerência
depende aqui da liberdade da vontade, e não se consegue
ver porque é que alguém deve ser coerente se não tem de o
ser: e tão-pouco se consegue ver o contrário, porque é que
não o deve ser. A lei deveria dirigir-se à liberdade. - É, por-

104
tanto, aqui que para a nossa ciência se situa a linha de
demarcação entre a necessidade e a liberdade.

II. Não pode ser aduzido nenhum fundamento abso-


luto para que o ser racional deva ser coerente e em resul-
tado do qual devesse dar-se a lei indicada. Mas talvez se
possa aduzir um fundamento hipotético. Pois que o que há
que demonstrar de imediato é que, para que exista uma
comunidade absoluta entre as pessoas enquanto tais, é
necessário que cada membro da comunidade se dê a lei
acima indicada. As pessoas só se tratam reciprocamente
como pessoas se cada uma delas exercer uma influência
sobre o sentido superior da outra e confia, por conseguinte,
à liberdade da outra aceitar a influência, deixando o órgão
inferior completamente de lado e sem lhe colocar entraves.
Qualquer influência de outro tipo suprime a liberdade
daquele sobre o qual ela foi exercida, suprimindo, por con-
seguinte, a comunidade de pessoas enquanto tais, como
seres livres. Mas, como acabamos de ver, é fisicamente pos-
sível para cada pessoa agir diretamente sobre o corpo mate-
rial de outra pessoa. Se, numa comunidade estável, uma
pessoa não quiser nunca exercer tal influência, isto só pode
ser pensado se se assumir que ela aceitou aquela lei e, por
essa via, prescreveu o limite da liberdade da sua vontade; e
- uma vez que não se pode indicar nenhuma outra razão
para esta limitação da vontade, a não ser a de que deva
existir uma comunidade de seres livres enquanto tais - isto
só pode ser pensado porque a pessoa aceitou aquela lei por
esta razão e neste pressuposto.
Se se pudesse mostrar que todo o ser racional tem
necessariamente de querer essa comunidade, poderia igual-
mente pôr-se em evidência a necessidade da coerência que
foi postulada. Mas isto não pode ser demonstrado a partir
das premissas que foram enunciadas até agora. Na verdade,

105
mostrou-se que sempre que um ser racional deva aceder à
autoconsciência e, consequentemente, tornar-se um ser
racional, deverá haver um outro ser racional que exerça
uma influência sobre ele, como ser dotado de razão. São
proposições equivalentes: se não existe nenhuma influência
exercida sobre ele como ser racional, então não existe ser
racional. Mas, mesmo depois da autoconsciência ter sido
posta, não se estabelece, com isso, que os seres racionais
tenham de continuar a exercer influência sobre o sujeito
dessa autoconsciência e não se pode deduzir a partir daí a
coerência que deve ser demonstrada, sem a usar a ela como
fundamento da demonstração.
O postulado de que deve existir de forma duradoura
uma comunidade entre seres livres como tais aparece aqui
como um postulado arbitrário, como um postulado que
386 qualquer um poderia propor-se através da liberdade sim-
plesmente; mas se alguém o faz, então submete-se, ao
mesmo tempo e necessariamente, à lei acima indicada (o
ser racional não está obrigado, em absoluto, pelo carácter
da racionalidade a querer a liberdade de todos os seres
racionais que lhe são exteriores; esta proposição é a linha de
demarcação entre o Direito natural e a Moral: e é a nota
característica de um tratamento puro da ciência do Direito
natural. Na Moral, evidencia-se uma obrigação de querer
isto. No Direito natural, só se pode dizer a cada um que
isto ou aquilo se seguirá da sua ação. Quer ele conte com
uma tal consequência, quer espere subtrair-se a ela, nenhum
outro argumento contra si pode vir a ser usado.

III. Vamos estabelecer que eu, com plena liberdade,


tal como se depreende do que acima foi dito, concebi o
propósito de estar em comunidade com seres livres e, para
tornar a nossa argumentação mais clara, em comunidade
com um determinado ser livre C, uma comunidade de um

106
ser livre com outro ser livre: o que é que eu com isso esta-
beleci e o que é que não estabeleci? Vamos analisar a pro-
posição.
Eu quero estar com C em comunidade de tratamento
racional recíproco. Mas só há comunidade se houver várias
pessoas. Por conseguinte, eu penso necessariamente a pessoa
C e atribuo-lhe o mesmo propósito no conceito que tenho
dela. - Eu próprio concebi este propósito com liberdade;
penso C nos termos do meu propósito, como livre, e tenho
também de pensar essa pessoa como livre na apreensão
do propósito que eu dela reclamo no conceito que tenho
dela. Estabeleço, assim, necessariamente a nossa comu-
nidade como dependente da livre decisão do outro e,
portanto, como contingente, como resultado de um querer
recíproco.
Não quero nada mais senão estar em comunidade de
tratamento conforme à razão; o modo de proceder deve ser
recíproco. Queremos ambos tratar-nos assim, ele a mim e
eu a ele, eu a ele e ele a mim. Por conseguinte, não estabe-
leci nada naquele propósito para o caso de ele não me vir a
tratar assim; e se acerca disto não existe nada mais do que
aquele propósito, então eu não estabeleci nada para aquele
caso. Eu não estabeleci que eu quereria tratá-lo como ser
livre, mesmo que ele não me trata a mim assim; nem, tão-
-pouco, que eu, então, não quero tratá-lo como ser livre,
mas sim do modo como ele me trata a mim. Acerca disto
não estabeleci nem uma coisa nem outra, eu não estabeleci
o que quer que seja. Tão logo o seu tratamento não corres-
ponda ao meu conceito, este, conformemente ao que foi
dito, caduca e caduca a lei que por intermédio dele me
prescrevi a mim próprio, tal como caduca a obrigação que
contraí para comigo; a nada mais fico comprometido por 387
essa obrigação e passo a depender de novo exclusivamente
da minha livre decisão.

107
IV Os resultados daquilo que até agora foi dito são os
seguintes. Não se pode apresentar nenhuma razão absoluta
pela qual alguém devesse erigir em lei da sua vontade e das
suas ações a fórmula do Direito: limita a tua liberdade de
tal maneira que o outro que está junto a ti possa também
ser livre. Do mesmo modo, pode compreender-se que não
pode existir nenhuma comunidade de seres livres como tais,
a não ser que cada um e todos eles estejam submetidos a
esta lei; e que, por conseguinte, quem quiser esta comuni-
dade tem de querer também esta lei; que, portanto, esta lei
tem validade hipotética. Se uma comunidade de seres livres
enquanto tais deve ser possível, então a lei do Direito tem
de valer.
Mas até mesmo a condição, a comunidade de seres
livres, está, de novo, condicionada por um querer comum.
Ninguém pode, por sua simples vontade, realizar uma tal
comunidade com outro se este não tiver a mesma vontade e
se, em virtude dela, se não submeter à lei do Direito, que
tem esta vontade como condição. Se o outro não tiver esta
vontade e, o que é uma prova segura disso, se trata o pri-
meiro de uma maneira contrária à lei do Direito, então o
primeiro fica desvinculado da lei, em virtude da lei ela pró-
pria. Ela era válida somente sob a condição da conduta
conforme ao Direito por parte do outro; esta condição não
está dada: então a lei, em consequência da sua própria for-
mulação, não é aplicável a este caso e o primeiro, não exis-
tindo qualquer outra lei, como aqui é pressuposto, é reme-
tido exclusivamente para o seu próprio arbítrio : ele tem um
direito em relação ao outro.
A dificuldade que os modos anteriores de tratar a dou-
trina do Direito deixaram, em grande parte, por solucionar
é a seguinte: como pode uma lei ordenar sem ordenar, estar
em vigor, se a sua vigência cessou por completo, como
pode compreender nela uma esfera não a incluindo nela?

108
A resposta é esta: isto sucederá necessa riamente se a lei se
prescrever a si mesma uma esfera determinada, se traz ime-
diatamente consigo a quantidade da sua validade. Ao enun-
ciar a esfera d e que fala, a lei determina com isso, ao
mesmo tempo, a esfera de que não fala; e conforma-se
expressamente a não falar dela e a não prescrever nada a seu
respeito. - Eu estou, na relação com uma pessoa determi-
nada, dispensado pela lei de a tratar como um ser livre,
depende exclusivamente do meu arbítrio o modo como
quero tratá-la, ou, noutros termos, tenho um direito de
coação em relação a ela são expressões que não significam
nem podem significar senão: que esta pessoa não pode atra-
vés da mera lei do Direito impedir a minha coação (apesar
de o poder, porventura, fazer por via de outras leis, da força
física ou da lei moral) . A coação não está contra esta lei e se
a pessoa não puder invocar qualquer outra coisa em seu
favor senão esta lei, então tem de sofrer a coação*. 388

V A aplicabilidade do conceito de Direito está agora


perfeitamente assegurada e os limites dessa aplicabilidade
estão indicados de maneira precisa.
Estabeleceu-se um critério seguro para determinar
quais são os seres sensíveis a que devem ser atribuídos direi-
tos e quais são aqueles a que não devem ser atribuídos.
Todo aquele que tiver forma humana está intimamente for-
çado a reconhecer como um ser racional e, por conse-
guinte, como um sujeito de direito possível qualquer outro

* Kanr, no seu esc rim Para a Paz Perpétua, chama a arenção dos mesrres do
Direim naru ral para o conceim de uma !ex permissivti 22>. Toda a lei que con-
tém em si o grau de validade é uma lei desre ripo , pois, ao comp reender nel a
uma esfe ra determin ada, deixa livre tudo aq uil o que se enconrra fo ra desta
esfera. Não é deste ripo a lei moral. Ela não se põe uma esfera dererminada,
mas impera sobre mdo o aruar dos espíritos racionais, pelo que não teria sido
possível derivar dela o conceito de Direim.

109
ser que tenha essa mesma forma. Mas todo aquele que não
tiver essa forma deve ser excluído da esfera do conceito de
Direito e não se pode falar dos seus direitos.
Está demonstrada a possibilidade daquilo que deve ser
determinado e julgado segundo o conceito de Direito: a
influência recíproca de seres livres e racionais entre si. Foi
mostrado que tais seres podem, sem prejuízo para a liber-
dade que constitui o seu carácter próprio, exercer uma
influência uns sobre os outros.
A lei do Direito, como lei geral, está determinada. Foi
posto em evidência que ela não é, de modo algum, uma lei
mecânica, mas sim uma lei para a liberdade: pois que, ao
nível físico, tanto é possível que os seres racionais se tratem
uns aos outros mediante a mera força natural, sem respeito
recíproco pela sua liberdade, como é possível que cada um
deles limite a sua força pela lei do Direito. Foi posto em
evidência que se esta lei tem validade efetiva e é posta
em prática, tal só pode acontecer em virtude de cada um
fazer dela, de modo duradouro e livremente, uma lei para si
próprio.
O quantum da aplicabilidade desta lei foi também
indicado -de modo preciso. Ela só é, em geral, válida, na
condição e no caso em que uma comunidade, uma influên-
cia recíproca entre seres livres enquanto tais, deva existir
sem prejuízo da sua liberdade. Mas, dado que o fim desta
comunidade deve, por sua vez, estar condicionado pelo
comportamento daquele com o qual se quer entrar em
comunidade, a validade da lei em relação à pessoa indivi-
dual está, por seu turno, condicionada pelo facto de o
outro se submeter ou não à lei do Direito: neste último
caso, a lei do Direito vale precisamente pelo seu não valer e
legitima aquele que foi tratado de maneira contrária ao
Direito a tratar o agressor como lhe aprouver.

110
TERCEIRA SECÇÃO 389

APLICAÇÃO SISTEMÁTICA DO CONCEITO DE DIREITO


OU A DOUTRINA DO DIREITO

§ 8. Dedução da divisão de uma doutrina do Direito

I. Se a razão deve, em geral, ser realizada no mundo


sensível, então há de ser possível que vários seres racionais
enquanto tais, quer dizer, enquanto seres livres, coexistam
entre si.
Todavia, a postulada coexistência da liberdade de vários
seres racionais, obviamente de forma estável e segundo uma
regra, não simplesmente aqui e ali, de forma contingente -
só é possível na medida em que cada ser livre e se propõe
como lei limitar a sua liberdade pelo conceito de liberdade de
todos os demais. Pois que:
a) o ser livre pode, e tem capacidade física para tal,
perturbar a liberdade dos seres racionais ou até de a des-
truir por completo; mas
b) em relação a escolher de entre todas as coisas que
pode fazer, não depende de mais nada a não ser de uma
decisão livre, e
c) se numa comunidade de seres racionais uma tal
perturbação nunca acontece nem pode acontecer, isto só
poderia explicar-se na medida em que todos os seres livres
se propuserem como lei adoptar um tal modo de conduta.

111
(A propos1çao agora enunciada não é, nem deve
ser, mais do que o juízo do filósofo que reflete sobre a pos-
sibilidade de uma comunidade de seres livres enquanto
tais, nem pode significar mais do que isso. Se seres livres
enquanto tais devem coexistir, é uma questão que não pode
ser pensada senão da maneira indicada; isto é demonstrável
e está suficientemente demonstrado. Não se trata de saber
se os seres racionais devem coexistir entre si, nem se está
satisfeita a condição de possibilidade desta coexistência, a
lei, ou quem é que quer isto ou aquilo. - De momento,
isto é tudo o que podemos dizer em relação ao legislador.
Foi a natureza que quis vários seres racionais e livres a coe-
xistir no mundo sensível, ao produzir uma pluralidade de
corpos capazes de formação com vista à razão e à liberdade.
Isto não pretende querer dizer que a natureza possui enten-
390 dimento e vontade - sobre isto, resignemo-nos à nossa
ignorância -, mas apenas que: se se atribui à natureza, nas
suas operações, entendimento e vontade, então o seu plano
não poderia ser outro senão o de conseguir que os seres
livres coexistam entre si. Seria, então, a natureza a querer
que a liberdade de cada indivíduo estivesse limitada pela
possibilidade da liberdade de todos os demais. Mas, uma
vez que a natureza os quer absolutamente livres, quer que
se prescrevam voluntariamente a si próprios esta lei. E que
esta lei seja uma lei para a liberdade e não uma das suas leis
mecânicas. Mostrar-se-á mais adiante que tipo de disposi-
ções veio a natureza a adoptar para alcançar o seu fim , sem
prejuízo da liberdade dos seres racionais.)
Em primeiro lugar, analisemos de novo a lei proposta.
a) Deve ser uma lei, quer dizer, deve ser impossível
que uma exceção à mesma tenha lugar, deve ordenar com
validade universal e de forma categórica, uma vez adotada.
b) Como consequência desta lei, cada um deve limitar
a sua liberdade, isto é, o âmbito das suas ações ch:cididas

112
com liberdade e das suas manifestações no mundo sensível.
O conceito de liberdade é aqui, portanto, quantitativo e
materiaL
c) Deve limitar a sua liberdade pela possibilidade da
liberdade dos outros. Aqui a mesma palavra tem um sentido
distinto, o seu significado é unicamente qualitativo e for-
mal. Cada um deve, de forma geral, simplesmente poder
ser, ele também, livre, uma pessoa; mas até onde deve esten-
der-se o âmbito das suas ações possíveis pela liberdade é
questão sobre a qual a lei à partida nada determina. Nin-
guém tem direito a uma ação que torna impossível a liber-
dade e a personalidade de outrem; mas cada um tem
direito às restantes ações livres.
Assim, a primeira questão é a seguinte: o que é que se
requer para que alguém seja absolutamente livre ou, o que
é o mesmo, para que seja uma pessoa? Uma vez que o con-
junto desses requisitos se considera aqui como condição de
possibilidade da coexistência de seres livres, chama-se, nessa
conformidade, um direito; e, por essa mesma razão, as con-
dições da liberdade e da personalidade são aqui estabeleci-
das apenas na medida em que a sua violação é possível pela
força física.
Este direito , ou estes direitos, fazem parte do mero
conceito de pessoa enquanto tal e chamam-se, por conse-
guinte, direitos originários. A doutrina destes direitos decorre
da mera análise do conceito de personalidade, na medida
em que aquilo que es tá contido nesse conceitos poderia ser
violado pela ação livre dos outros, mas, em virtude da lei
do Direito, não deve sê-lo.
Es ta doutrina constituirá o primeiro capítulo da nossa
doutrina do Direito.

II. O juízo que acaba de ser formulado é hipotético. Se 39 1


seres livres enquanto tais devem coexistir, é necessário que

113
cada um deles se imponha a si próprio a lei descrita. O pri-
meiro termo do juízo, que não sabemos se foi posto ou
não, está condicionado pelo segundo; se eles devem coexis-
tir, é necessário que cada um se dê a si próprio esta lei e se
não dá, então não é possível a sua coexistência. - Portanto,
a única razão que o filósofo tem para admitir uma tal legis-
lação é aquela hipótese.
Daí, concluímos o seguinte. A lei é condicionada e
um eventual ser que pudesse querer dar-se esta lei somente
como lei condicionada o poderia fazer, pelo menos pelo
que até agora nos foi dado ver. Ele aceita a lei com o fito
de alcançar o fim que está nela pressuposto. Por conse-
guinte, só pode submeter-se a ela na medida em que esse
fim é alcançável; ou, dito de outro modo, a lei vale para ele
unicamente na medida em que o fim é alcançável.
Ora, o fim de manter com uma pessoa uma relação de
livre comunidade só é possível de ser alcançado na condi-
ção de que esta mesma pessoa se tenha dado a si própria a
lei de respeitar a liberdade do outro, vale dizer: os seus
direitos originários. Esta lei não é, de todo em todo, aplicá-
vel à minha conduta em relação àquele que não se deu a si
próprio esta mesma lei, uma vez que decai o fim em razão
do qual eu deveria respeitar os seus direitos originários.
Ainda que me tenha submetido em geral à lei, não estou,
todavia, em resultado da própria lei, obrigado a respeitar a
liberdade desta determinada pessoa. - Considero-me como
estando simultaneamente submetido e não submetido à lei;
considero-me como estando submetido a ela em geral e
como não estando neste caso particular.
Na primeira situação, atuo em conformidade ao
Direito, em obediência ao .comando da lei e tenho, por-
tanto, um direito; na segunda situação, é-me permitido ata-
car a sua liberdade e a sua personalidade e o meu direito é,
portanto, um direito de coação.

114
a) Uma vez que a lei é condicionada e só como tal é
que pode ser aceite, cabe a cada pessoa o direito de ajuizar
se se está ou não perante o caso de aplicação da lei. Este
ajuizar equivale aqui, uma vez que ocorre a propósito da lei
do Direito, a um julgamento. Cada um é necessariamente o
seu próprio juiz e, quando entra em jogo um direito de coa-
ção, aquele que tem este direito é, ao mesmo tempo, o juiz
do outro contra o qual tem este direito, pois o direito de
coação só é possível em virtude desse conhecimento do
Direito. Afora esta condição, ninguém é originariamente o
juiz do outro, nem tão-pouco o pode ser. Nenhum direito
de coação sem um direito de jurisdição, eis o resultado desta
dedução.
b) Importa que aquele que deve estar autorizado a 392
exercer a coação esteja ele próprio submetido à lei e que
seja considerado como alguém que se submeteu a ela; ou
que, pelo menos, não possa demonstrar-se a partir das suas
ações que não lhe obedece. De contrário, poderia, com
efeito, existir coação e força para coagir, mas nunca um
direito de coação, que dimana, pura e simplesmente, da lei .
-Além disso, deve ter-se em atenção aquilo que constitui o
carácter próprio do direito de coação, o facto de que
decorre, pura e simplesmente, do silêncio da lei, da sua ina-
plicabilidade em absoluto a este caso, mas de nenhum
mandado seu. Por isso, existe apenas um direito a coagir, do
qual nos podemos servir ou não, mas, de modo nenhum,
um dever de coação.
Graças à dedução do direito de coação, que acabamos
de oferecer, torna-se claro em que casos deve a coação
intervir, a saber: quando uma pessoa viola os direitos origi-
nários da outra. Depois de os termos estabelecido no pri-
meiro capítulo, tem de ser claro saber quando é que são
violados. No entanto, em homenagem a uma visão sistemá-
tica, não é despiciendo enumerar um a um e determinar

115
com maior preosao os casos em que o direito de coação
intervém: isto será levado a cabo no segundo capítulo da
doutrina do Direito.

III. O direito de coação em geral e cada caso do


direito de coação em particular têm o seu fundamento; mas
tudo o que é fundado é necessariamente finito e não vai
mais além do que vai o seu fundamento. Por conseguinte,
se for possível determinar os limites da aplicabilidade
do fundamento, será também possível indicar os limites do
que é fundado. O fundamento do meu direito de coação
é que o outro se não submete à lei do Direito. Ao invocar
este fundamento, estabeleço ao mesmo tempo que não teria
qualquer direito de coação se ele se submetesse à lei e, para
exprimirmos isto de maneira quantitativa, que eu só tenho
um direito se ele não se submeter a ela. -O direito de coa-
ção tem os seus limites e a submissão do outro à lei do
Direito é este limite; toda a coação para além deste limite é
contrária ao Direito. Esta proposição universal é evidente
de imediato. Surge agora a questão, uma vez que ensinamos
um Direito natural real e não um Direito natural mera-
mente formal, de saber se e como é este limite susceptível
de ser encontrado e determinado na aplicação. Não há
lugar a um direito de coação a não ser que seja violado um
direito origindrio; mas, neste caso, tem seguramente lugar e,
assim, o direito é em geral demonstrável em cada caso
determinado. Além disso, é, de imediato, evidente que
quem quer a validade do Direito não quer uma tal violação
de um direito originário e que se, apesar disso, essa viola-
ção tiver tido lugar, quer considerá-la nula e sem efeito. A
393 este propósito, também a quantidade do direito de coação
poderia ser demonstrada caso a caso; poder-se-ia em cada
caso determinar os limites da coação conforme ao Direito.
Que iria até ao ressarcimento integral e à indemnização por

116
danos; que iria até à recondução de ambas as partes ao
estado em que se encontravam antes de ter ocorrido a
agressão ilícita: e, assim, o direito de coação estaria determi-
nado com exatidão, segundo a qualidade e a quantidade,
com base na ofensa sofrida e não dependeria de qualquer
condição suplementar.
No entanto - e esta é uma circunstância em larga
medida descurada pelas maneiras recentes de tratar a dou-
trina do Direito -, o direito de coação não se funda , de
modo nenhum, unicamente na eventualidade de que o
outro não respeite a lei só no caso presente determinado,
mas, em primeira linha, no facto de que ele torna mani-
festo não haver tomado, em geral, como lei aquela regra.
Uma só ação contrária ao Direito, mesmo após uma série
de ações conformes ao Direito, demonstra que a regra do
Direito não é para essa pessoa uma lei inviolável e que foi
por outras razões que ela se absteve até aqui de desrespeitar
o Direito. Mediante a manifestação de uma tal mentali-
dade, torna-se evidente que nenhum ser livre pode estar
seguro a seu lado, uma vez que a segurança só exclusiva-
mente numa lei se pode fundar e só graças a esta se torna
possível; e o lesado está, por conseguinte, legitimado a anu-
lar completamente a sua liberdade, a suprimir por completo
a possibilidade de voltar a formar com ele uma comunidade
no mundo sensível. O direito de coação é, portanto, infi-
nito e não tem absolutamente limite algum (um princípio
que os professores ora têm afirmado unilateralmente, ora
unilateralmente têm negado) , a menos que o outro aceite
no fundo do seu coração a lei como tal e a ela se submeta.
Mas logo que a aceite, cessa o direito de coação, pois que a
duração desse direito fundava-se exclusivamente no lapso de
tempo em que outro permanece à margem da lei; roda a
coação ulterior é a partir desse momento ilícita. Nesta pers-
petiva, o limite da coação está condicionado.

11 7
Como deve, então, ser dada a condição, a submissão
sincera do outro à lei do Direito?
Não mediante o testemunho do seu arrependimento, a
promessa de uma melhoria futura, a submissão voluntária à
força, a oferta de reparação, etc., pois não existe razão para
acreditar na sua honestidade. Tanto é possível que tenha
sido movido a esta atitude pela sua debilidade presente e
que queira simplesmente vislumbrar melhor a ocasião de
dominar o lesado, como é possível que o pense honesta-
mente e que se tenha produzido de repente uma revolução
no seu modo de pensar. Na incerteza, o lesado não pode
depor as armas e comprometer inteiramente a sua segu-
rança. Continuará a exercer a coação; mas, uma vez que a
394 condição do direito é problemática, o seu direito a exercer a
coação é também meramente problemático.
Do mesmo modo, o primeiro agressor, que eventual-
mente se ofereceu para o ressarcimento dos danos que é
exigido incondicionalmente pela lei do Direito, vai resistir e
tem necessariamente de resistir ao ataque lançado contra
ele, pois a sua liberdade inteira é posta em perigo pelo ata-
que. Uma vez que é sempre possível que ele, de ora em
diante, se submeta voluntariamente à regra do Direito, con-
siderando-a como uma lei , e nunca mais volte a atentar
contra ela, caso em que a continuação da coação por parte
do outro seria ilícita, pode ele perfeitamente ter também o
direito de resistir e de perseguir o outro até à completa
anulação da sua liberdade: mas o seu direito é meramente
problemático também.
O que é decisivo em relação ao limite do direito de
coação não pode, por conseguinte, dar-se de tal modo que
tenha uma validade jurídica para o tribunal exterior: o fim-
clamemo da decisão depende da consciência moral de cada
um. Sobre este ponto existe, segundo parece, uma contra-

118
vérsia jurídica insanável. O fundamento da decisão somente
poderia ser dado pela experiência futura na sua totalidade.
Com efeito, se o primeiro agressor, depois de se ter
tornado de novo completamente livre, não voltasse nunca
mais a cometer nenhum ilícito, e se o agredido, depois de
ter obtido a sua reparação, se abstivesse, igualmente com
inteira liberdade, de toda a coação ulterior, seria de crer que
o primeiro se tinha submetido à lei e que o segundo tinha
simplesmente lutado pelo seu direito e, por conseguinte,
que nunca tinha ido para além dele. Uma tal experiência
fundamentaria de uma forma juridicamente segura o resta-
belecimento recíproco da liberdade, a renúncia por ambas
as partes ao uso da força física.
Mas o restabelecimento recíproco da liberdade, da paz
entre as partes adversárias, não é possível sem que aquela
experiência tenha tido previamente lugar. Pois que - de
acordo com o que acima foi dito - ninguém arrisca aban-
donar a posição de supremacia alcançada confiando na
seriedade da outra parte, seriedade da qual tem boas razões
para desconfiar. O fundamentado não é possível sem o funda-
mento e o fundamento não é possível sem o fundamentado.
Estamos, portanto, enclausurados num círculo. - Vamos já
ver como é necessário proceder num caso semelhante de
acordo com o método sintético e qual o resultado a que se
vai chegar com esse procedimento na presente investigação.
Mas antes, queremos submeter a uma consideração mais
pormenorizada aquilo a que acabamos de chegar.
Um direito de coação em geral, como conceito univer-
sal, pode ser deduzido, sem dificuldade, da lei do Direito;
mas a partir do momento em que passamos a tentar
demonstrar como é que esse direito é aplicado incorremos
numa contradição insanável, porque o fundamento da deci-
são desta aplicação não pode ser dado no mundo sensível,
mas depende da consciência moral de cada um. O direito

119
de coação, como conceito aplicável, está em contradição
395 manifesta consigo próprio; porquanto, não se pode nunca
decidir se num caso determinado a coação é lícita ou não.
Do facto de saber se é ou não possível um exercício do
direito de coação por parte do lesado depende, nem mais
nem menos, a resposta à questão de se é possível um
Direito natural em sentido próprio, na medida em que com
esta expressão se deve designar uma ciência da relação jurí-
dica entre pessoas fora do Estado e sem lei positiva. Como
os juristas se contentam na sua maioria com filosofar for-
maliter sobre o conceito de Direito e pouco se preocupam
com a sua aplicabilidade, desde que ao seu conceito seja
conferida a mera pensabilidade, passaram ao largo da ques-
tão indicada. Aqui é dada uma resposta negativa à primeira
questão e, por conseguinte, também à segunda: para nos
convencermos da evidência desta doutrina, há que procurar
uma determinada percepção da impossibilidade, que aqui
foi demonstrada, do exercício do direito de coação por
parte do lesado. A proposição enunciada é, portanto, de
importância primordial para a nossa doutrina do Direito na
sua totalidade.
O círculo consistia no seguinte: a possibilidade de res-
tituição recíproca da liberdade está condicionada pela expe-
riência futura na sua totalidade; mas a possibilidade da
experiência futura está condicionada pela restituição recí-
proca da liberdade. Para eliminar a contradição, os dois
membros são unidos sinteticamente, de acordo com o
método que foi demonstrado na Doutrina da Ciência<23>. A
restituição recíproca da liberdade e a totalidade da experiência
futura devem ser uma só e a mesma coisa, ou, dito de forma
mais clara: é necessário que a pretendida totalidade da
experiência futura se encontre já presente na restituição
recíproca da liberdade e seja garantida por ela.

120
Não há dúvida alguma de que esta proposição tinha
de ser enunciada; a questão cinge-se a saber como é possível
aquilo que ela exige.
Em primeiro lugar, é claro, de imediato, que em vista
desta exigência, a totalidade da experiência futura e, bem
assim, a pretendida experiência da segurança perfeita de
ambos deve ser feita presente em um só momento, no
momento da restituição da liberdade e deve ser válida para
a convicção exterior, pois ninguém pode saber quais são as
disposições interiores do ânimo do outro. Ambos teriam,
pois, de tornar impossível, fisicamente impossível, agredi-
rem-se de ora em diante, e isto de tal modo que a outra
parte se aperceba de semelhante impossibilidade e esteja
convencida dela. A proteção para o futuro chama-se caução
ou garantia.
A proposição acima enunciada diz, pois: têm de garan-
tir-se reciprocamente a segurança; caso contrário, não pode-
riam coexistir por muito tempo sem que um dos dois aca-
basse necessariamente por perecer.
A questão seguinte é a de saber como é possível esta 396
garantia. - Não podem depor as armas, pois nenhum deles
podia confiar no outro. Logo, teriam de as depor, isto é,
depor todo o seu poder, nas mãos de um terceiro em que
ambos confiem. A este terceiro teriam de atribuir o man-
dato de reprimir de imediato aquele dos dois que viesse a
atacar o outro. Ele deveria dispor desta capacidade, deveria,
pois, ter um poder superior. Este terceiro exerceria, por-
tanto, o direito de coação por ambos. - Para o fazer, teriam
ambos simultaneamente de delegar nele o poder de decisão
no seu presente litígio, bem como nos litígios que eventual-
mente pudessem vir no futuro a surgir entre eles, quer
dizer, teriam de delegar nele o direito de jurisdição. Teriam
de lho delegar sem reserva; dele não poderia haver lugar a
recurso. Pois que se alguns deles pudesse orientar a decisão

121
daquele que, de ora em diante, é o seu juiz comum, então
ele continuaria a fazer justiça pelas suas próprias mãos; mas
o outro não tem confiança nele e não pode aceitar o con-
trato nestas condições. Portanto ambos têm de submeter
incondicionalmente a este terceiro a sua força flsica e a sua
jurisdição, quer dizer, todos os seus direitos.

IV
Tese. De acordo com a lei do Direito, a liberdade da
pessoa não está limitada por mais nada senão pela possibili-
dade de que também outros possam ser livres junto a ela e
possam ter direitos. De acordo com a lei do Direito, tudo o
que não lese os direitos de outrem deve ser permitido à
pessoa fazê-lo, pois é precisamente nisto que consiste o seu
direito. Cada um tem o direito de ajuizar por si próprio
quais os limites das suas ações livres e de os defender.
Antítese. De acordo com uma conclusão correta
extraída dessa mesma lei do Direito, cada pessoa deve alie-
nar completamente e sem qualquer reserva o seu poder e a
sua jurisdição para que possa ser possível um estado jurí-
dico entre seres livres. Com isso, a pessoa perde comple-
mentamente o direito de julgar sobre a extensão dos seus
direitos e de os defender, torna-se dependente do conheci-
mento e da boa vontade daquele a quem se submeter e
deixa, por conseguinte, de ser livre.
A última proposição contradiz a primeira. A primeira
é a própria lei do Direito; a segunda, uma conclusão cor-
reta extraída dessa lei. Portanto, a lei do Direito está em
contradição consigo própria. Esta contradição deve ser eli-
minada; a verdadeira sede desta contradição é a seguinte: eu
não posso, no âmbito da lei do Direito, renunciar à minha
liberdade para além do que é exigido para que os direitos
dos outros com quem estou em comunidade no mundo
sensível possam subsistir a par dela. Mas agora devo aban-

122
clonar rodos os meus direitos à discricionariedade e ao
poder de um estranho. Isto é impossível e contraditório, a
não ser que com esta submissão e por via dela a minha 397
liberdade inteira fique assegurada naquilo que a mim me
cabe de acordo com a lei do Direito na associação na qual
me encontro.
Não posso racionalmente submeter-me e ninguém, de
acordo com a lei do Direito, tem direito a exigir a minha
submissão, a não ser nesta condição. Tenho, portanto, de
poder ajuizar por mim próprio se a referida condição está
satisfeita. A minha submissão está condicionada pela possi-
bilidade deste juízo e é impossível e contrária ao Direito se
um tal juízo não é proferido. Portanto, antes do mais, eu
tenho de me submeter com toda a liberdade.
Depois da submissão, deixo de ter capacidade para
ajuizar juridicamente sobre a extensão do meu direito, tal
como foi afirmado e demonstrado explicitamente; pelo que
o juízo em causa teria de ser possível e efetivamente profe-
rido antes da submissão.
O juízo deve ser que no estado de submissão não se
causará nunca dano à minha legítima liberdade, que não
terei nunca de sacrificar qualquer parte dela que seja para
além daquilo que, de acordo com a lei do Direito e tam-
bém segundo o meu próprio juízo, deveria ter que renun-
ciar: toda a experiência futura no estado de submissão deve,
assim, ser tornada presente antes da submissão, quer dizer,
deve-me ser prestada uma garantia sobre a minha completa
segurança dentro dos limites do meu direito.
Antes do mais: o que é que me deve ser garantido? -A
plena segurança de todos os meus direitos, tanto face
àquele a quem me submeti como, graças à sua proteção, em
relação a rodos os indivíduos com os quais eu poderia
entrar em comunidade. Devo poder dar-me conta, até que
disso esteja convencido, de que rodos os eventuais verediros

123
que no futuro possam vir a ser proferidos a propósito dos
meus assuntos, só podem ser proferidos do mesmo modo
que eu próprio , de acordo com a lei do Direito, os teria
proferido. Devem, portanto, submeter-se ao meu escrutínio
as normas de todos estes vereditos futuros, normas nas quais
a lei do Direito é ap licada aos casos possíveis que possam
ocorrer. Tais normas chamam-se leis positivas; e o sistema
destas normas em geral chama-se a lei (positiva) .
a) Todas as leis positivas estão, em maior ou menor
grau, sob a regra do Direito. Não existe nem pode existir
nelas nada de arbitrário. Elas devem ser de feição tal que
rodo o homem inteligente e instruído deveria necessaria-
mente dar essas mesmas leis.
398 b) Nas leis positivas, a regra do Direito em geral é
aplicada aos objetos particulares sobre os quais aquela regra
decide. A lei positiva oscila a meio caminho entre a lei do
Direito e o veredito. Na lei positiva, a regra do Direito é
aplicada a objetos determinados, no veredito, a lei positiva
é aplicada a pessoas determinadas. - O juiz civil não tem
de fazer mais do que decidir o que é que aconteceu e invo-
car a lei. A sentença deve estar já contida na lei, se a legisla-
ção for clara e completa, tal como deve ser.
A contradição exposta está parcialmente eliminada. Se
me subm eto à lei, a uma lei que foi escrutinada e aprovada
por mim, cujo exame é, tal como se demonstrou, a condi-
ção exclusiva da possibilidade jurídica da minha submissão,
não me estou assim a submeter ao arbítrio mutável de um
homem, mas sim a uma vontade que é imutável e fixa: a
bem dizer, uma vez que a lei é de feição tal que eu próprio,
de acordo com a regra do Direito, a deveria dar assim,
estou a submeter-me à minha própria vontade imutável, à
vontade que eu deveria necessariamente ter caso seja justo e
deva, por conseguinte, ter direitos em geral. Submeto-me à
minha vontade, que condiciona em absoluto a minha capa-

124
cidade jurídica, pois que se tivesse outra vontade, esta seria
injusta, já que a lei é a única vontade justa; e estaria total-
mente desprovido de direitos, pois só tem direitos aquele
que se submete à lei do Direito. Bem longe, por conse-
guinte, de perder os meus direitos em virtude desta submis-
são, eu conservo-os, na medida em que com a submissão
manifesto que satisfaço a condição sob a qual somente
alguém tem direitos. Ainda que esteja submetido, perma-
neço continuamente submetido apenas à minha vontade.
Exerci efetivamente o meu direito de jurisdição, de uma vez
só, para toda a minha vida e em relação a todos os casos
possíveis; e só me é subtraída a preocupação de executar os
meus vereditos através da minha própria força física.
Resultado. É somente à vontade necessária e insuscetí-
vel de exceções, que é a da lei, que cada um de nós pode
alienar racionalmente o seu poder e a sua jurisdição, nunca
à vontade um homem, livre e mutável nas suas decisões. A
lei do Direito só exige a primeira das alienações; somente
esta é condição de todos os direitos. A segunda não é espe-
cificamente contrária à lei, porque o direito não é um dever
e, portanto, pode inclusivamente renunciar-se aos próprios
direitos; mas ela também não decorre da lei.

V. A contradição indicada está parcialmente elimi-


nada, mas apenas parcialmente. Àquele que se submete
deveria ser proporcionada, através da lei, uma garantia de
segurança futura de todos os seus direitos. Mas o que é a
lei? Um conceito. Como deve ser ele introduzido na vida, 399
como deve este mero conceito ser realizado no mundo sen-
sível? - Vamos apresentar a questão ainda sob um outro
ângulo.
Prestar a alguém garantia de segurança dos seus direi-
tos significa: tornar impossível atentar contra eles, de modo
a que essa pessoa fique convencida dessa impossibilidade.

125
Ora, na submissão, a segurança deve ser garantida ao que se
submete não somente perante aquele a quem se submeteu,
mas também face a todas as pessoas com quem possa
alguma vez entrar em comunidade; por conseguinte, deve
ser absolutamente impossível que os seus direitos sejam
infringidos e deve poder convencer-se desta total impossibi-
lidade antes de se submeter. Só que esta impossibilidade
está contida na vontade da lei; mas então coloca-se uma
outra questão, muito mais importante: como é que lhe pode
ser prestada a garantia de que a lei e só a lei irá imperar?
Ele deve estar seguro perante a própria lei; por conse-
guinte, o poder desta não pode nunca virar-se contra ele,
salvo nos casos previamente determinados pela lei . Graças à
lei , deve estar seguro perante todos os outros : a lei tem,
pois, de intervir sempre que seja necessário fazê-lo. Ela não
deve nunca entrar em repouso, uma vez posta em estado de
alerta.
Em suma, a lei tem de ser uma autoridade: o conceito
de lei, obtido na última parte da nossa investigação, e o de
autoridade suprema, que acaba de obter-se das passagens
imediatamente antecedentes, têm de ser unidos sintetica-
mente. A lei deve ser o poder supremo, o poder supremo
deve ser a lei, ambos devem ser uma e a mesma coisa; e
tenho de poder convencer-me, quando me submeto, que
assim é, de que é completamente impossível que alguma
vez um poder que não o da lei se dirija contra mim.
A nossa tarefa está determinada com maior precisão.
A questão a responder é a seguinte: como é que a lei se torna
uma autoridade? A autoridade que indagamos não se
encontra diretamente na natureza, não é uma potência
mecânica, como se demonstrou acima, e os homens têm
efetivamente a força física para cometer injustiças. Por con-
seguinte, a autoridade que estamos a indagar deveria ser
uma autoridade que depende de uma vontade. Ora, essa

126
vontade não deve ser livre, mas determinada necessana e
imutavelmente pela lei. Não pode haver nenhuma vontade
individual em cuja conformidade ao Direito possa qualquer
outro homem sempre confiar com segurança. Portanto ,
deveria suceder que a vontade que estamos a indagar tivesse
autoridade só quando a lei o quisesse e não tivesse qual-
quer autoridade quando a lei o não quisesse. E assim, a
nossa tarefa está determinada com ma.iox precisão, tarefa
que corrsiste em: encontrar uma vontade que seja autoridade
somente quando a lei o queira, mas que, nesse caso, seja uma
autor:idad'e infalíveL
Uma autoridade sobre um ser l'ivre poderia surgir 400
s0mente da associação de vários s.eres livres, pois não há
nada no mundo sensível que seja mais poderoso do que um
ser livre (precisamente porque é l'ivre e pode dar à sua
f0:rça, com circunspecção, uma direção conforme a um fim)
e não há nada mais poderoso que um ser individual a não
ser vários seres individuais. A sua força consistiria, pois,
pura e simplesmente, na. sua associação. Ora, a sua autori-
dade deve depender de que queiram a lei ou, dito de outro
modo, o Direito. Por conseguinte, a sua associação, na qual
assenta a sua autoridade, deveria depender da seguinte:
de que o único vínculo desta associação seja o Direito.
Logo que quisessem o contrário do Direito, a sua aliança e,
com ela, toda a sua autoridade, deveria dissolver-se.
Ora, é necessariamente esse o caso, de que em toda a
associação de seres livres o acordo se rompa em virtude de
se querer o contrário do Direito. A associação de uma plu-
ralidade de seres livres significa que querem viver juntos.
Mas eles não podem, de todo em todo, coexistir a não ser
que cada um limite a sua liberdade pela liberdade de todos
os demais. Se um milhão de homens vivem juntos, cada
um pode querer para si próprio tanta liberdade quanto a
que seja possível. Mas se se reúne a vontade de todos num

127
conceito, como se fosse uma só vontade, então esta vontade
divide o total da liberdade possível em partes iguais e cuida
de que todos sejam livres em conjunto, por conseguinte,
que a liberdade de cada um seja limitada pela liberdade de
todos os demais* . Por conseguinte, a única entidade em
torno da qual é possível que se unifique a sua vontade é o
Direito: e, uma vez que há aqui lugar à coexistência de um
determinado número de homens, com determinadas incli-
nações, ocupações, etc., é o Direito na sua aplicação a eles,
401 isto é, a sua lei positiva. Tão certo quanto eles estejam uni-
dos, tão certo que eles querem a lei. Mesmo que fosse ape-
nas um único a ser oprimido, deixariam de estar todos de
acordo, pois que es te único indivíduo não daria, segura-
mente, o seu consentimento.
O que afirmamos é que aquilo sobre o que estão de
acordo é a sua lei positiva, que determina, nestas circuns-
tâncias, os limites dos direitos e das liberdades de cada indi-
víduo. No entanto, não tem de manifestar expressamente a
vontade desta lei nem é necessário recolher os votos para
ela, o que equivaleria a um modo muito impuro de obter
esta vontade. Todo aquele que conhece o seu número, as
suas ocupações, a sua situação global, pode dizer-lhes sobre
o que estão todos de acordo. A sua lei é-lhes dada pela

* Temos aqu i a vo!onté générale de Rousseau, cuja diferença com a volonté de tous
não é, em abso luro, ininreligível. Todos e cada um dos indivíduos querem
reservar para si ranro quanro lhes seja possível e deixar aos resranres rão pouco
quanro seja possível; mas, precisamenre, porque esra sua vo nrade esrá em con-
fliro consigo própria, os elemenros em co nfli ro suprimem-se reciprocamenre e
aquilo que fi ca como resulrado final é que cada um deve rer aquilo que lhe
corresponde. Q uando imaginamos duas pessoas em relações de comércio, pode
sempre admirir-se que cada uma delas queira defraudar a ourra; mas, uma vez
que nenhuma das duas quer ser a defraudada, esra pane da sua vo nrade anula-
-se reciprocamenre e a sua vo nrade com um é de que cada um a conserve aquilo
a que rem direiro.

128
regra do Direito e pela sua situação material particular, de
maneira análoga àquela a como o produto é dado por
intermédio dos dois factores. O conteúdo da lei não
depende, em absoluto, do arbítrio e a mais ínfima influên-
cia deste sobre esse conteúdo torna a lei injusta e traz para
a associação as sementes da discórdia e a base da sua disso-
lução futura. A forma da lei, a sua força vinculativa, só a
obtém mediante o consentimento dos indivíduos para que,
com este particular grupo de pessoas, se associem numa
comunidade política. Por conseguinte, é unicamente sobre o
Direito e a lei que estão todos de acordo; e quem está de
acordo com todos quer necessariamente o Direito e a lei.
Numa tal associação é impossível encontrar dois indivíduos
em que um queira coisa distinta do outro. Mas logo que
dois indivíduos divirjam no seu querer, pelo menos um
deles não está de acordo com todos os restantes, a sua von-
tade é uma vontade individual e, precisamente por isso,
uma vontade injusta. Se a vontade do outro, com o qual
entrou em litígio, está de acordo com a vontade da comu-
nidade, então é esta que tem necessariamente razão.
A questão não reside em saber se em tal união a von-
tade justa, quando se põe em ação, não tem sempre preva-
lência sobre a vontade injusta, já que a última é a vontade
de um indivíduo, enquanto a primeira é a vontade da cole-
tividade.
A única questão é a de como devem ser as coisas dis-
postas de modo a que a vontade da coletividade seja per-
manentemente ativa e opere quando tenha de operar e de
reprimir uma vontade individual; de modo a que, por con-
seguinte, as forças físicas dos indivíduos se comportem
entre si tal como as suas vontades se comportam aquando
da sua reunião no conceito, fundindo-se as forças indivi-
duais com a força da coletividade numa única força, exata-
mente como, no caso da união sintética da vontade de

129
todos num conceito, a vontade individual se funde com a
vontade da coletividade numa única vontade. Isto tem de
resultar necessariamente e de acordo com uma regra estrita,
pois todo aquele que se submete deve receber uma garantia
totalmente convincente; deve ser-lhe demonstrada a impos-
sibilidade absoluta de qualquer outro poder que não seja o
da lei vir na associação a atuar contra ele e que qualquer
402 outro poder será de imediato reprimido pela lei - que não
depende, em absoluto, do acaso, da boa vontade de um
outro, etc., mas stm da organização do todo, que a lei
venha seguramente a ser posta em exercício em todos os
casos.
A garantia mais forte e a única suficiente que cada
indivíduo pode legitimamente exigir é que a existência da
sociedade esteja ela própria ligada à eficácia da lei.
Em geral, isto é assim, desde logo em virtude da natu-
reza das coisas. Se a injustiça se tornasse universal, a socie-
dade deveria necessariamente dissolver-se e entrar em
colapso. Mas um rigor que ultrapasse, uma vez por outra,
aqui ou ali o rigor da lei ou uma omissão de ação da lei
não provoca necessariamente a rotura da associação. Pois
que seria uma péssima garantia para o indivíduo que ele
pessoalmente ou outros indivíduos pudessem sofrer a vio-
lência, mesmo que não pudessem todos ao mesmo tempo
sofrer a injustiça.
Portanto, a relação deveria ser tal que toda a injustiça
contra o indivíduo, por ínfima que pareça, resulte necessa-
riamente numa injustiça contra todos. Como fazer para que
seja assim? A lei deve necessariamente ser ato. Será, com
toda a certeza, ato se, inversamente, o ato é Lei, isto é, se
tudo aquilo que na associação pode ocorrer, mesmo que
não ocorra mais do que uma vez e por ação de um único
membro, se converte em algo legal simplesmente porque
este único membro, uma única vez, o realizou, sendo per-

130
mitido a todos aqueles que desejem vir a fazê-lo; se cada
ação de alguém em particular estabelecer efetivamente uma
lei universalmente válida. Numa tal associação, qualquer
injustiça diz necessariamente respeito a todos; cada delito é
uma desgraça pública; aquilo que foi possível acontecer-me,
pode, de ora em diante, acontecer a cada indivíduo em
toda a coletividade e, mesmo que seja só um único a dever
estar em segurança, a primeira preocupação de todos deve
ser a de me proteger, de me assistir no meu direito e de
punir o ilícito. Está claro que esta garantia é suficiente e
que, com esta disposição das coisas, a lei operará em per-
manência, não ultrapassando nunca os seus limites, porque
essa ultrapassagem seria então legal também para todos.
Está claro que aquele que entra em tal associação con-
serva a sua liberdade, embora a abandone, e conserva-a por-
que a abandona e que, graças ao conceito desta associação,
todas as contradições são eliminadas e que com a sua reali-
zação é o império do Direito que é realizado; e que todo
aquele que quer o império do Direito deve necessariamente
querer uma tal associação. - Por conseguinte, com o con-
ceito de uma tal associação fica circunscrito o âmbito da 403
nossa investigação. A análise mais pormenorizada deste
conceito será exposta no capítulo terceiro da nossa doutrina
do Direito, relativo à comunidade política.

131
CAPÍTULO PRIMEIRO DA DOUTRINA
DO DIREITO

DEDUÇÃO DO DIREITO ORIGINÁRIO

§ 9. De que maneira pode pensar-se um direito originário?

Só é possível falar de direitos sob a condição de que


uma pessoa seja pensada como pessoa, quer dizer, como
indivíduo, por conseguinte, relacionado com outros indiví-
duos, sob a condição de que entre esta pessoa e as outras se
possa, pelo menos, imaginar uma sociedade possível, caso
uma sociedade real não tenha sido estabelecida. Em pri-
meiro lugar e para a investigação meramente especulativa,
as condições da personalidade convertem-se em direitos
unicamente pelo facto de serem pensados outros seres a
quem , de acordo com a lei do Direito, não é permitido
violar essas condições. Ora, os seres livres não podem ser
pensados em conjunto sem uma limitação recíproca dos
seus direitos, portanto, sem que o âmbito dos direitos
originários se transforme no âmbito dos direitos numa
comunidade política. Não seria, por conseguinte, possível
refletir so bre os direitos como direitos originários, quer
dizer, sem relação com as limitações necessárias mediante os
direitos dos outros. No entanto, essa investigação deve pre-
ceder e fundamentar a investigação dos direitos numa
comunidade política. Há, pois, que abstrair daquela limita-

133
ção, algo a que, de resto, a livre especulação se presta com
tanta facilidade que até efetua esta abstração de forma invo-
luntária, havendo apenas de recordar que ela a efetuou. Do
lado da possibilidade não existe, portanto, nenhuma difi-
culdade.
Cabe apenas recordar, e insistir bem nisso, que esta
abstração foi efectuada, que o conceito produzido por seu
intermédio tem, por conseguinte, possibilidade ideal (para
o pensamento), mas nenhum significado real. Se se descura
esta observação, obtém-se uma doutrina do Direito mera-
mente formal. - Não há uma situação de direitos originá-
rios, nem direitos originários do homem. Ele tem efetiva-
mente direitos somente em comunidade com outros, assim
como, de acordo com os princípios superiores acima referi-
404 dos, somente em comunidade com outros pode ele, em
absoluto, ser pensado. Um direito originário é, portanto ,
uma mera ficção , mas uma ficção que tem necessariamente
que ser produzida, em vista aos fins da ciência. Além disso,
está claro, e aqui é o momento de o relembrar de novo,
apesar de já termos repetidamente insistido neste ponto,
que as condições da personalidade só podem ser pensadas
como direitos na medida em que se manifestem no mundo
sensível e possam vir a ser perturbadas por outros seres
livres, enquanto forças no mundo sensível; que poderia, por
conseguinte, haver, por exemplo, um direito à autoconser-
vação sensível, à conservação do meu corpo enquanto tal,
mas nunca um direito a pensar ou a querer livremente; que
se tem, na verdade, um direito de coação contra quem nos
agride no nosso corpo, mas, de modo nenhum, contra
quem nos perturba nas nossas convicções tranquilizadoras
ou contra quem, com o seu comportamento imoral, nos
causa escândalo.

134
§ 1O. Definição do direito originário

O princípio criteriológico do Direito é que cada um


limite a sua liberdade, o âmbito das suas ações livres,
pelo conceito da liberdade do outro (de modo a que o
outro, como ser absolutamente livre, possa subsistir a seu
lado). O conceito de liberdade, nesta última aceção, que,
como foi já acima recordado, tem um significado somente
formal, fornece o conceito de direito originário, do direito
que deve, em absoluto, caber a cada pessoa enquanto tal.
Vamos agora discuti-lo com maior precisão.
Este conceito é, segundo a qualidade, um conceito da
faculdade de ser absolutamente causa primeira; segundo a
quantidade, aquilo que está compreendido neste conceito
não tem limite algum, mas é, de acordo com a sua natu-
reza, infinito, pois aqui do que se trata é simplesmente de
que a pessoa deve ser livre, mas não até que ponto é que
ela o deve ser. A quantidade contradiz este conceito, já
que é aqui estabelecido como um conceito meramente for-
mal. Segundo a relação, só se trata da liberdade da pessoa
na medida em que, de acordo com a lei do Direito, o
âmbito das ações livres dos outros deve ser limitado, uma
vez que estas ações poderiam tornar impossível a liberdade
formal exigida; e, por essa via, é determinada a quantidade
da investigação. Trata-se, simplesmente, de uma causalidade
no mundo sensível, no qual a liberdade somente pela liber-
dade pode ser limitada. Finalmente, segundo a modalidade,
este conceito tem uma validade apodítica<24 l . Toda a pessoa
deve ser absolutamente livre.
O direito originário é, por conseguinte, o direito abso-
luto da pessoa a ser no mundo sensível unicamente causa (e
de não ser, pura e simplesmente, efeito).

135
405 § 11. Análise do direito originário

No conceito de uma ação causal e, mais precisamente,


de uma ação causal absoluta, encontram-se os dois elemen-
tos seguintes: 1. que a qualidade e a quantidade do agir
estejam perfeitamente determinadas pela própria causa; 2.
que da posição deste agir decorram diretamente a qualidade
e a quantidade da passividade no objeto da ação causal; de
tal sorte que se possa passar do primeiro elemento ao
segundo e que aquele possa ser determinado diretamente
por este, conhecendo-se necessariamente ambos logo que
conheça um deles.
Na medida em que a pessoa é o fundamento absoluto
e último do conceito da sua atividade causal, do seu con-
ceito de fim, a liberdade que aqui se manifesta situa-se fora
dos limites da presente investigação, pois tal liberdade não
intervém nunca no mundo sensível e não pode ser nele
obstaculizada. A vontade da pessoa entra no mundo sensí-
vel unicamente na medida em que está expressa na deter-
minação do corpo. Neste âmbito, há que considerar o
corpo de um ser livre como o próprio fundamento último
da sua determinação e o ser livre, enquanto fenómeno, é,
pois, idêntico ao seu corpo (este é o representante do Eu
no mundo sensível; e, se atendermos apenas ao mundo sen-
sível, é o próprio Eu). É assim que nós julgamos sempre na
vida quotidiana: Eu não estava lá. Ele viu-me. Ele nasceu,
morreu, foi enterrado, etc.
Por conseguinte:

I. O corpo, considerado como pessoa, tem de ser a


causa absoluta e última da sua determinação à atividade
causal. É aqui irrelevante e não vai ser levado em linha de
conta saber dentro de que limites e de acordo com que leis
poderia o corpo, em razão da sua própria organização, estar

136
compreendido. Aquilo que não lhe pertence ongmaria-
mente não é corpo. Somente aquilo que nele é fisicamente
possível deve poder ser feito efetivamente, se a pessoa o
quiser e apenas quando ela quiser. O corpo não deve ser
posto em movimento nem impedido no seu movimento
por uma causa exterior; não pode haver nada que exerça de
modo direto uma ação causal sobre ele.

II . Do seu movimento deve resultar infalivelmente no


mundo sensível um efeito possível em virtude dele. Não pre-
cisamente o efeito que a este propósito foi pensado e inten-
cionado. Pois que mesmo que alguém não tenha conhe-
cido perfeitamente a natureza das coisas, não tenha cal-
culado exatamente a sua força ativa em oposição ao seu
poder de inércia, e que, por essa razão, resulte algo que é
contrário à sua intenção, então a culpa é sua, e não pode
queixar-se de ninguém a não ser de si próprio. Mas o
mundo sensível não tem de ser simplesmente determinado
por uma força livre que é exterior e contrária à sua influên- 406
cia, pois então o corpo deixaria de ser uma causa livre.

III. No entanto, a determinação do corpo com vista a


um fim, para operar sobre uma coisa, só acontece com base
no conhecimento da coisa sobre a qual se deve operar e
decorre desse conhecimento; por conseguinte, o ser livre é,
no final de contas, dependente. Ora, isto foi na sua globali-
dade admitido há longo tempo e excluído da presente
investigação. Atividade causal e conhecimento determinante
condicionam-se reciprocamente e preenchem a mesma
esfera, como foi acima demonstrado e explicado. Não se
pode querer operar para além des te estado de dação do
objeto; isto contradiz a essência da razão: é unicamente
dentro da esfera desse estado de dação que a pessoa é livre.

137
Para determinar este ponto com maior prectsao: é no
âmbito daquilo que é dado, e na condição de que algo
esteja dado, que a pessoa é livre para deixar isso tal como
está ou para o transformar e fazê-lo tal como deve ser de
acordo com o seu conceito de fim. É livre para relacionar
reciprocamente os elementos do diverso que lhe está dado,
para os determinar uns pelos outros, para os adaptar uns
aos outros e para os juntar num todo conforme ao seu fim.
Se falhar alguma destas partes, a pessoa não é livre nem
depende exclusivamente da sua vontade.
Ora, o que para isto se requer é que tudo permaneça
tal como foi conhecido em um certo momento pelo ser livre
e assim posto no seu conceito, esteja este particularmente
modificado por ele ou não. Aquilo que não foi modificado,
mas apenas pensado pelo ser racional e alinhado com o seu
mundo, converte-se em algo modificado, precisamente por-
que não foi modificado. A pessoa não modificou a coisa, em
virtude do seu conceito conforme ao fim do todo ao qual
esta coisa determinada deve adaptar-se, porque só nesta
forma natural que é a sua é que ela se adapta; se não se
tivesse adaptado, tê-la-ia modificado; ou, então, modificou
o seu fim, de acordo com as características da coisa. A sua
abstenção de uma certa atividade era ela própria atividade,
uma atividade conforme a um fim, por conseguinte, uma
modificação, senão desta coisa determinada, ao menos do
todo , ao qual a coisa devia adaptar-se.
Ora, a natureza em si, que está subordinada a leis
mecânicas, não pode verdadeiramente transformar-se. Toda
a transformação contradiz o seu conceito. Aquilo que nos
parece ser uma transformação da natureza por si própria
ocorre de acordo com leis que são imutáveis e que, se as
conhecermos suficientemente, não seria para nós, de modo
nenhum, uma transformação, mas sim algo de permanente.
407 É culpa nossa se, de acordo com essas leis, se transforma no

138
nosso mundo algo com o qual havíamos contado para os
nossos fins. Ou não deveríamos ter contado com a perma-
nência da coisa, se as leis de acordo com as quais ocorre a
transformação são demasiado poderosas em relação a nós,
ou então, se não são demasiado poderosas, devíamos ter
prevenido o seu efeito, recorrendo ao engenho e à habili-
dade. Somente outros seres livres poderiam produzir uma
transformação imprevisível e inelutável no nosso mundo,
isto é, no sistema daquilo que conhecemos e relacionamos
com os nossos fins; mas, então, a nossa atividade causal
livre seria perturbada. - A pessoa tem o direito de exigir
que no espaço inteiro do mundo que conhece tudo conti-
nue tal como ela o conheceu, porque na sua atividade cau-
sal ela se guia de acordo com o seu conhecimento e ficaria,
de imediato, desorientada e paralisada no desenvolvimento
da sua causalidade ou, então, veria produzirem-se resultados
completamente diferentes daqueles que visava, mal uma
transformação tivesse tido lugar.
(É aqui que reside o fundamento de todo o direito de
propriedade. A parte do mundo sensível conhecida por
mim e submetida aos meus fins, ainda que seja apenas em
pensamento, é a minha propriedade, originariamente e não
na sociedade, pois que em relação a esta poder-se-iam
encontrar ainda determinações mais pormenorizadas. Nin-
guém pode exercer influência sobre ela sem obstaculizar a
liberdade da minha atividade causal*.

* Pense-se, por exemplo, no habitante solitário de uma ilha deserra, que se ali -
menta da caça nos seus bosques. Deixo u crescer os bosques como queri am ;
mas conhece-os e conhece também rodas as aptidões que representam para a
sua caça. Não se podem desloca r ou abater as árvo res dos seus bosques, sem
rornar pa ra ele inútil rodo o conh ecim ento adquirido e se m o privar desse
conhecimento, se m faze r parar a sua caminhada em perseguição da caça, difi-
cultando ou impossibilitando a sua subsistência, por conseguinte, sem perrur-
bar a li be rdade da sua atividade.

139
Pôs-se aqui termo, por conseguinte, à velha controvér-
sia sobre se o direito de propriedade sobre uma coisa é fun-
dado unicamente pela formação da coisa ou se é, desde
logo, fundado pela vontade de possuir a coisa. Pôs-se termo
à controvérsia mediante a união sintética das suas opiniões,
como não podia acontecer de outro modo num sistema que
procede estritamente de acordo com o método sintético;
com isso, demonstrou-se que a mera subordinação aos nos-
sos fins, sem nenhuma formação propriamente dita, é,
todavia, sempre uma formação, porque pressupõe uma abs-
tenção livre de uma possível atividade, e isso em conse-
quência de um fim; e a formação, tal como será demons-
trado mais adiante, confere um direito de propriedade
unicamente na medida em que com ela algo é submetido
aos nossos fins e permanece submetido a eles. O funda-
408 mento último da propriedade de uma coisa é, por conse-
guinte, a sua submissão aos nossos fins .)

IV. A pessoa quer que a sua atividade no mundo sen-


sível seja causa - significa: quer que seja dada uma perce-
ção que corresponda ao conceito de fim da sua ativiâade, e
isto, como é evidente e tal como acima se esclareceu, num
momento futuro, num momento que suceda (não é neces-
sário que seja de imediato) ao momento da vontade em
geral.
Já se recordou que, para que isto seja possível em geral
no futuro, isto é, depois da influência ativa da pessoa ou
depois da sua omissão intencional de uma atividade, as coi-
sas têm de permanecer imperturbadas e entregues ao seu
curso natural, e que a pessoa, em virtude dessa vontade de
que a sua atividade seja causa no mundo sensível, quer
diretamente que assim seja também . Vamos, porém, abs-
trair aqui deste ponto.

140
Além disso, está claro que a pessoa, para poder perce-
ber e para o poder fazer de um modo que já foi pensado,
de acordo com uma regra que já conhece, deve querer
necessariamente a persistência da presente relação das partes
do corpo entre si, isto é, a persistência do seu próprio
corpo, e a persistência da presente relação deste co nsigo ,
como aquele que quer e que conhece; mais precisamente, a
pessoa deve querer que exista para ela um estado futuro e
que es te resulte do seu estado presente, de acordo com a
regra sua conhecida e que teve em conta na sua atividade
causal. - É, portanto, graças à vontade e exclusivamente
graças a ela que o futuro é abrangido no momento pre-
sente; graças a ela, é possível o conceito de um futuro em
geral; por via dela, o futuro é não só abrangido, como tam-
bém determinado; deve haver um futuro assim e para que
possa havê-lo, eu devo ser assim . Mas se eu devo ser assim,
então é necessário que eu, em geral, deva ser.
(Deduz-se aqui do querer uma forma determinada de
existência no futuro o querer de um futuro em geral, o
desejo da nossa própria persistência; afirma-se que quere-
mos persistir - originariamente, de acordo com as leis da
razão que aqui também nos governam, até mesmo de
maneira mecânica -, não pela persistência em si, mas por
causa de um determinado estado incluído nesta existência
continuada; não consideramos a persistência como um fim
absoluto, mas como um meio para um fim qualquer. Isto é
confirmado, evidentemente, pela experiência. Todos os
homens desejam sempre a vida em vista de algo, os mais
nobres para continuar a atuar, os menos nobres para conti-
nuar a usufruir.)
A pessoa quer aquilo que indicamos, desde que queira em
geral, seja o que for que quiser. Este querer determinado é,
por conseguinte, condição de todo o querer; a sua realiza-
ção, isto é, a conservação do nosso corpo presente - aquilo

141
409 que no domínio do Direito natural se chama autoconserva-
ção - , é condição de qualquer outra ação e de toda a mani-
festação da liberdade.

V Resumindo tudo o que foi agora deduzido: a pes-


soa exige, em virtude do seu direi to originário, uma ação
reciproca permanente entre o seu corpo e o mundo sensível,
determinada e determinável exclusivamente pelo seu conceito
dessa ação, livremente formulado. O conceito exposto de
uma causalidade absoluta no mundo sensível está completa-
mente esgotado, e uma vez que este conceito é equivalente
ao conceito de direito originário, é o próprio conceito de
direito originário que se encontra completamente esgotado
e nada mais pode pertencer-lhe.
O direito originário é, por conseguinte, um todo abso-
luto e fechado; cada violação parcial deste direito diz res-
peito ao todo e tem influência sobre o todo. Não obstante,
se alguém se compraz em buscar uma divisão neste con-
ceito, essa divisão não poderia ser outra senão aquela que
está ínsita no próprio conceito de causalidade e a cuja
exposição já procedemos acima. Estaria, assim, compreen-
dido no direito originário:
1. O direito à persistência da liberdade absoluta e da
inviolabilidade do corpo (isto é, a que nenhuma ação se
exerça diretamente sobre ele) .
2. O direito à persistência da nossa livre influência em
todo o mundo sensível.
Não há um direito específico à autoconservação; pois
é algo de contingente que o uso do corpo como um instru-
mento ou das coisas como meios tenha por fim, num certo
caso, assegurar diretamente a persistência do nosso corpo
enquanto tal. Ainda que nos tivéssemos proposto um fim
mais modesto, não seria permitido perturbar a nossa liber-
dade, pois, em geral, não é permitido perturbá-la.

142
Mas não deve descurar-se o facto de que o nosso
direito originário na sua globalidade não vale só para o
momento presente, mas que se alarga ao futuro, tanto
quanto o possamos abarcar com o nosso espírito e nos nos-
sos planos; que é, portanto, nele que reside direta e natural-
mente o direito a garantir o conjunto dos nossos direitos
para todo o sempre. O direito originário retorna a si pró-
prio, é um direito que se autolegitima e se constitui como
direito, isto é, um direito absoluto; e é nisto que reside a
prova de que o âmbito da nossa investigação sobre o direito
originário está concluído, uma vez que é trazida à luz uma
síntese completa. Tenho o direito a querer o exercício dos
meus direitos para todo o sempre, na medida em que me
ponho, uma vez que eu tenho estes direitos: e eu tenho
estes direitos porque tenho o direito a querê-los. O direito
a ser uma causa livre e o conceito de uma vontade absoluta
são idênticos. Quem nega a liberdade da vontade deve, para
ser consequente, negar também a realidade do conceito de 410
Direito, como é o caso, por exemplo, de Espinosa, para
quem o direito significa meramente a faculdade do indiví-
duo determinado, limitado pelo universo de tudo o que
existe<ZSl.

§ 12. Passagem para a investigação do direito de coação


através da ideia de um equilíbrio do Direito

Um direito de coação, de acordo com o que vimos


acima, deve ser fundado numa violação do direito originá-
rio, quer dizer, no facto de que um ser livre alarga o âmbito
das suas ações livres de tal maneira que, por essa via, lesa os
direitos de outro ser livre. Ora, o lesante é também livre e
tem um direito a ser livre. Assiste-lhe o direito originário,
que é, como expusemos, um direito infinito. No entanto,

143
deve ser possível que ele, mediante o livre exerc1c1o do
direito originário, viole os direitos de outrem. Por conse-
guinte, o direito originário tem de ter uma quantidade,
determinada pela lei do Direito, se através do seu exercício
puder causar-se lesão a um direito; e a resposta à questão de
saber em que caso é lesado um direito e em que caso há
lugar, em consequência desta lesão, a um direito de coação
depende da resposta a uma outra questão: qual é a quanti-
dade de liberdade que está determinada para cada um pela
lei do Direito?
De forma mais clara: se algum dos usos da liberdade é
ilícito e legitima assim o recurso à coação, então o uso lícito
da liberdade, isto é, do direito originário, deve estar con-
tido dentro de determinados limites; e não se pode indicar
o uso lícito da liberdade sem conhecer o uso ilícito; ambos
são determináveis somente por oposição. Se se podem indi-
car estes limites e cada um se mantém dentro deles, não há
lugar a nenhum direito de coação; existe um direito que é
igual para todos ou um equilíbrio do Direito. Temos, antes
de mais, de estabelecer as condições deste equilíbrio, com
vista à preparação, à fundamentação, à obtenção de uma
pauta reguladora da investigação ulterior sobre o direito de
411 coação; pois só há lugar ao direito de coação quando o
equilíbrio do Direito tenha sido violado: e para determinar
quais são essas condições, temos de conhecer o direito de
coação.

I. Toda a relação jurídica está determinada pela pro-


posição: que cada um limite a sua liberdade pela possibili-
dade da liberdade do outro. - Vamos agora elucidar em que
consiste o ser livre em geral e em si. Se ser livre fosse algo
infinito, tal como descrevemos, seria suprimida a liberdade
de todos os outros, à exceção de um só, e esses outros
seriam inclusivamente aniquilados na sua existência física ,

144
acabando, assim, a lei do Direito por se contradizer a si
própria. Esta contradição é solucionada logo que se pense
que a lei do Direito não se di rige a um só, fazendo exceção
do outro, mas vale para todos os seres livres, sem exceção. Se
A deve limitar a sua liberdade de modo a que B possa ser
livre a seu lado, então, inversamente, também B deve limi-
tar a sua, de modo a que A possa ser livre junto a ele, isto
é, de modo a que também se reserve a A uma esfera de ati-
vidade causal livre. - A proposição torna-se ainda mais
determinada se pensarmos que a autolimitação de A pela
possibilidade da liberdade de B tem lugar exclusivamente
sob a condição de que B limite igualmente a sua liberdade
e que, se isto não ocorrer, a lei caduca e torna-se completa-
mente inaplicável. A autolimitação está reciprocamente con-
dicionada, ao início só formalmente (isto é, atendendo a que
tem lugar em geral e enquanto tal). Não .tem lugar para
nenhum dos dois, se não tem lugar para ambos. Isto
decorre da natureza das coisas e é suficientemente conhe-
cido, em função do que acima foi dito; mas permanece a
um nível geral, é um conceito vazio e insusceptível de qual-
quer aplicação. - Se um diz ao outro: não faças isso, pois
perturba a minha liberdade, porque é que não poderia o
outro responder: e perturba a minha abster-me de o fazer?
Há, por conseguinte, que responder à questão: em que
medida deve cada um limitar o quantum das suas ações
livres, em função da liberdade do outro? Até onde chega a
liberdade que cada um pode reservar-se para si próprio e
que tem de ser respeitada pelo outro para poder concluir
se, em geral, tem ou não tem direitos? Ao invés, até onde
chega a liberdade que há que reconhecer ao outro no con-
ceito que dele tem e que há que salvaguardar nas suas
ações; salvaguarda na base da qual o outro decide se, em
geral, tem ou não tem direitos?

145
A relação jurídica em geral não é determinada por
mais nada senão pela lei do Direito que foi exposta.
A questão suscitada só poderia, portanto, ser decidida
com base nessa lei. Mas, de acordo com o que foi exposto,
a lei é meramente formal e não determina nenhuma quan-
412 tidade. A lei estabelece só o quê, mas não o quanto. Por
conseguinte, a lei na sua globalidade ou é absolutamente
inaplicável e conduz unicamente a um jogo conceituai
vazio, ou então, o quanto deve decorrer do quê e pelo esta-
belecimento deste deve ao mesmo tempo ser estabelecido
aquele.
A afirmação de que ambos estão estabelecidos ao
mesmo tempo significa: mediante o mero conceito da liber-
dade de um ser exterior a mim, é-me prescrita ao mesmo
tempo a quantidade da limitação que eu tenho de me
impor. - É perfeitamente claro que a resposta tinha de
ser dada desse modo, caso a aplicação do nosso conceito
fosse possível: é um pouco mais difícil dizer o que pode sig-
nificar propriamente a proposição enunciada e como e por-
quê poderia ela ser verdadeira. Antes do mais, vamos ana-
lisá-la. Estão nela presentes os três pontos seguintes:
a) A autolimitação efetiva de um ser livre (efetiva, e
não a pensada somente de maneira problemática) está con-
dicionada pelo conhecimento de um determinado ser livre
exterior a ele. Quem não possui um tal conhecimento não
pode limitar-se; e o possível ser que eu não conheço não
me obriga à autolimitação.
Se, tal como acontece na dedução do direito originá-
rio, uma pessoa no mundo sensível é pensada como isolada,
essa pessoa tem o direito, enquanto não vier a conhecer
uma qualquer outra pessoa exterior a ela, de alargar a sua
liberdade até onde possa e queira e, se tal lhe aprouver, a
tomar posse do mundo sensível inteiro. O seu direito é efe-
tivamente infinito (se o direito originário pudesse ser,

146
mesmo em geral, um direito efetivo), dado que desaparece a
condição que impunha que fosse limitado.
b) A autolimitação de um ser livre está também per-
feitamente determinada, sem mais, pelo conhecimento de
outro ser livre exterior a ele. A autolimitação é, por isso,
em primeiro lugar, posta, o que poderia ser admitido sem
objecção. Cada um, ao submeter-se à lei do Direito, deve
limitar a sua liberdade pela liberdade do outro, logo que
conheça um ser livre exterior a si. Desde o instante em
que aquele que foi por nós posto como isolado reconhece
um ser livre exterior a ele, já não tem de olhar única e
exclusivamente para a possibilidade da sua liberdade, mas
também para a possibilidade da liberdade do outro. Mas,
além disso, afirma-se que a sua autolimitação está assim
determinada, que é única e exclusivamente por via deste
conhecimento que está prescrita a fronteira até onde
deve chegar esta limitação.
c) Em todo o caso, a minha liberdade só é limitada
pela liberdade do outro na condição de que ele próprio
limite a sua mediante o conceito da minha liberdade. Caso
contrário, fica privado de direitos. Por conseguinte, se do
meu conhecimento do outro deve resultar uma relação jurí- 413
dica, então o conhecimento e a limitação da liberdade que
dele decorre têm de ser recíprocos. Logo, toda a relação
jurídica entre pessoas determinadas está condicionada pelo
seu reconhecimento recíproco, mas é também por este
reconhecimento recíproco que a relação jurídica é comple-
tamente determinada.

II. Apliquemos esta proposição aos casos particulares


nela contidos, em primeiro lugar ao direito à liberdade
duradoura o corpo.
De acordo com o que foi acima exposto, mal um ser
racional aviste um corpo que é articulado com vista à repre-

147
sentação da razão no mundo sensível, isto é, mal o homem
aviste um corpo humano, tem de o pôr como o corpo de
um ser racional e pôr o ser que deste modo lhe é apresen-
tado como um ser racional. Ao pôr este corpo, determina-o
precisamente por essa via como um certo quantum de
matéria no espaço, que preenche este espaço e que dentro
dele é impenetrável.
Ora, o corpo de um ser racional é, em resultado do
direito originário, necessariamente livre e inviolável. Quem
isto conhece deveria, portanto, em virtude do seu conheci-
mento, limitar necessariamente a sua liberdade a uma ativi-
dade causal que se desenvolve exteriormente a este corpo e
fora do espaço no mundo sensível. Não pode pôr este
corpo como uma coisa sobre a qual pudesse exercer arbitra-
riamente uma influência, submetê-la aos seus fins e tomar,
assim, posse dela, mas tem de o pôr como algo que limita a
esfera da sua atividade causal. Esta esfera pode estender-se
por toda a parte, salvo para aquela onde se encontra este
corpo. Ao avistá-lo e ao tê-lo reconhecido como aquilo que
é, reconheci algo que limita a esfera do meu operar no
mundo sensível. Eu estou, com a minha atividade causal,
excluído do espaço que ele ocupa em cada momento.
Porém, uma vez que esta autolimitação depende de
que o outro igualmente me veja e me ponha a mim tal qual
eu o pus a ele, o que é em si necessário e que, além disso ,
depende também de que o outro, mediante este conheci-
mento, limite igualmente a sua liberdade, tal como eu limi-
tei a minha, a minha limitação e o direito do outro são
então somente problemáticos e não é possível decidir se
ambos existem ou não.

III. Ao pôr o corpo do ser exterior a mim como abso-


lutamente livre na sua autodeterminação para a atividade
causal e ao pôr o ser que mediante o corpo é apresentado

148
como causa livre no mundo sensível, devo necessariamente
pôr que este ser quer que um efeito no mundo sensível cor-
responda ao seu conceito e que, por conseguinte, submeteu
aos seus fins qualquer objeto no mundo sensível, em resul-
tado do conceito de direito originário. Ele, quando me
avista, tem de admitir o mesmo a meu respeito.
Estes objetos, que estão submetidos aos fins particula-
res de cada um de nós, deviam ser para nós os dois imunes
à interferência do outro, se soubéssemos quais os objetos
que cada um de nós submeteu aos seus fins particulares.
Mas, uma vez que esta questão fica na consciência de cada 414
um e não se revela no mundo sensível, os objetos do direito
e da limitação são problemáticos.
Os objetos do direito são problemáticos, mas não são
só eles, mas o direito em geral que é problemático, incerto,
dependendo de uma condição desconhecida que ambos
tenhamos reciprocamente direitos um sobre o outro. Estou
obrigado a respeitar os objetos que o outro subordinou aos
seus fins somente na medida em que ele respeita os que eu
subordinei aos meus. Ora, ele não pode em absoluto mos-
trar se os respeita ou não antes de os conhecer; e eu tão-
pouco posso mostrar que respeito os objetos subordinados
aos seus fins antes de os conhecer. Devido a esta ignorância
reinante, fica suprimida também a própria possibilidade de
nos credenciarmos uns perante os outros como seres titula-
res de direitos.
(Não é só a questão de se ambos se dispõem a respei-
tar a propriedade do outro que é problemática, mas tam-
bém a de se estão na disposição de respeitar reciprocamente
a liberdade e a inviolabilidade dos seus corpos. Não existe,
portanto, em absoluto, qualquer relação jurídica efetiva
entre eles; tudo é e continua a ser problemático.)
Já nos apercebemos acima que, mal o direito de coa-
ção intervém, deixa de ser possível aos homens viverem por

149
mais tempo em paz uns com os outros sem um qualquer
acordo. Aqui constatamos que essa impossibilidade surge
ainda mais cedo, previamente a todo o direito de coação;
surge na fundamentação de todo o direito recíproco em
geral, como vamos ver agora mais em pormenor.
É que

IV Esta incerteza de cada uma das partes sobre quais


os objetos que a outra submeteu aos seus fins não pode
continuar, para que entre elas seja possível uma coexistência
jurídica em conformidade a uma regra que a garanta -
e não, por exemplo, em virtude de um mero acaso, que
poderia verificar-se ou não. Pois que nenhum dos dois
pode, de ora em diante, submeter aos seus fins algo que já
não tenha submetido a eles, entrando com isso na sua
posse, sem recear que o outro, com o qual travou conheci-
mento, tenha já entrado na posse desse objeto, sem recear,
portanto, pôr em causa, mediante essa entrada na posse, os
direitos do outro. Com efeito, nenhum dos dois pode, a
partir do momento do seu conhecimento recíproco, estar
seguro sequer daquilo que até agora possuiu, pois que é
sempre possível que o outro se venha a apossar do mesmo
objeto, na pressuposição de que este não teria ainda dono,
pelo que seria então impossível ao lesado demonstrar a sua
posse; posse que tanto pode ser ilegítima, como pode ser de
boa-fé, porquanto o outro poderia bem ter já antes subordi-
nado a coisa aos seus fins. Como devemos então resolver a
questão? É impossível a qualquer das partes saber qual das
duas se apropriou em primeiro lugar da coisa em litígio;
ou, se o puderem saber, então o fundamento de decisão
baseia-se na consciência moral de cada um deles e não tem
415 qualquer relevância para o Direito externo. Surge entre
ambas as partes um litígio jurídico que não pode ser deci-
dido e um conflito de forças físicas que só pode terminar

150
com a aniquilação física ou o afastamento total de uma
delas. - Só por acaso, por exemplo, se as coisas estivessem
dispostas de maneira tal que nunca surgisse em nenhum
deles uma apetência por aquilo que o outro quer reservar
para si próprio, poderiam coexistir no respeito pelo Direito
e em paz. Mas não podem fazer depender a totalidade do
seu direito e a sua segurança de semelhante acaso.
É impossível que surja entre ambos uma relação jurí-
dica se esta incerteza não for eliminada.
É problemático saber quais são os objetos do direito e
da obrigação. Por isso mesmo, é problemático saber se, em
geral, se pode contar com um direito ou se existe uma obri-
gação. Quem quiser o Direito, tem necessariamente de que-
rer que seja superado este estado de coisas que torria todo o
Direito impossível. A lei do Direito quer o Direito. Quer
necessariamente, portanto, que este estado de coisas seja
superado. Confere, por conseguinte, um direito de instar à
sua superação. Quem o não quiser superar manifesta com
isso unicamente que não quer o Direito e que não se sub-
mete à lei do Direito; converte-se, assim, em alguém que é
destituído de direitos e legitima o emprego de uma coação
infinita.

V. Mas como deve esta incerteza ser eliminada? Que


cada pessoa tenha submetido e deva ter submetido algo aos
seus fins está ínsito no conceito de pessoa, enquanto causa
livre no mundo sensível, tal como acima foi demonstrado.
Por conseguinte, cada pessoa tem, em primeiro lugar, de
limitar em geral a sua posse a um quantum finito do
mundo sensível, tão logo se torne conhecida dela a existên-
cia de uma pessoa exterior a ela. Se ela quisesse subordinar
exclusivamente aos seus fins a totalidade do mundo sensí-
vel, então não poderia subsistir a liberdade do outro que ela
agora bem conhece; mas a liberdade do outro deve poder

151
subsistir; por conseguinte, ela está juridicamente obrigada a
reservar algo para o outro, como objeto da sua atividade
causal livre. Mas que quantum específico alguém escolheu
ou quer escolher, isso depende da sua liberdade.
Além disso, cada um só por si é que pode saber o que
escolheu, já que isto é algo que permanece no foro da cons-
ciência e não se manifesta no mundo sensível. Cada um
deles deveria dizer ao outro o que quer possuir em exclu-
sivo para si próprio, porque este é o único meio de eliminar
a incerteza que, em razão da lei do Direito, deve ser elimi-
nada. Cada um está juridicamente obrigado a determinar-se
interiormente a este propósito e o outro tem direito a coagir
o indeciso a tomar uma decisão firme; pois enquanto per-
416 sistir a indecisão, não há Direito nem segurança. Cada um
está, além disso, juridicamente obrigado a declarar exterior-
mente o que quer possuir; e o outro tem direito a coagi-lo a
fazer esta declaração, a declaração do que possui, pois que
sem ela tão-pouco existe Direito e segurança.
Portanto, toda a relação jurídica entre pessoas determi-
nadas em geral está condicionada pela declaração recíproca
do que querem possuir de forma exclusiva e só por seu
intermédio é que se torna possível.

VI. As pretensões declaradas por ambas as partes ou


são compatíveis ou estão em conflito entre si; o primeiro
caso é o de quando nenhuma das partes declara querer pos-
suir aquilo que a outra quer reservar para si; o segundo
caso é o de quando ambas as partes apresentam pretensões
à mesma coisa. No primeiro caso, estão já de acordo, no
segundo, o seu litígio não pode ser dirimido na base de
argumentos jurídicos. Não cabe, por exemplo, invocar a
tomada de posse anterior, pois esta não pode ser provada
por nenhuma das partes e, por conseguinte, é irrelevante
para o Direito externo. Aquilo que perante este tribunal

152
fundamenta o direito de posse, a declaração de vontade de
possuir algo, é idêntico para ambas as partes; por conse-
guinte, é idêntico o direito que assiste a ambas as partes.
Ou, os dois devem compatibilizar as suas posições, de
modo a que um deles minore as suas exigências, até que as
suas pretensões deixem de estar em conflito com as do
outro e se encontrem na situação de acordo, que referimos
em primeiro lugar. - No entanto, nenhum dos dois tem o
direito de coagir o outro à compatibilização ou à renúncia;
pois que do facto do outro não querer renunciar a estes
determinados objetos não resulta que não quer submeter-se
em geral à lei do Direito. Escolheu uma posse determinada
e declarou-a, por conseguinte, cumpriu a sua obrigação face
à lei do Direito. De acordo com a sua declaração, quer con-
tinuar a submeter-se à lei do D ireito, contanto que eu
queira disponibilizar-lhe aquilo que reclama; é apenas à
minha vontade de possuir especificamente isto que ele não
quer submeter-se, e esta minha vontade é uma vontade par-
ticular, individual, mas não a vontade que deve ser comum
a ambos, a vontade da lei do Direito, a qual não decide a
quem de nós dois deve pertencer o objeto em litígio.
Ou então, se não podem compatibilizar as suas posi-
ções, surgiria um conflito jurídico insanável, na medida em
que o direito em litígio é igual para as duas partes, e desse
conflito surgiria uma guerra que só poderia terminar com o
desaparecimento de um dos dois. Mas, dado que uma tal
guerra, tal como todas as guerras, é absolutamente contrária
ao Direito, têm, para que essa guerra não venha a ter lugar,
de confiar a um terceiro a decisão do seu litígio, têm de
remeter, sem reservas, a esse terceiro o seu veredicto para o
caso presente e a garantia da sua decisão para o futuro, 417
têm, por conseguinte, de submeter a esse terceiro o seu
direito de julgar e a sua força física: dito de outro modo,
têm de se juntar entre si numa comunidade política. Cada

153
um deles tem direito a isto, isto é, tem direito a coagir o
outro ou a conformar-se de bom grado ou então a juntar-se
a ele numa comunidade política - não um direito a coagir
o outro a que faça uma ou outra coisa, mas a que escolha
uma das duas opções -, pois que sem esse direito de coação
não se estabeleceria nenhuma relação jurídica entre ambos,
relação que, em virtude da lei do Direito, deve estabele-
cer-se.

VII. Ora, se ambas as partes estiveram de acordo logo


desde o início ou se chegaram a acordo por meio de um
compromisso, caso que é o único que aqui importa (pois
que do contrato de propriedade no seio do Estado falar-
-se-á mais adiante com maior pormenor), e assumindo que
cada um possui legalmente como seu aquilo que lhe cabe
na sequência desta declaração recíproca e não controvertida,
em que é que se funda, então, o seu direito de propriedade
sobre objetos determinados, que, com a repartição, passam a
caber a cada um? Funda-se, evidentemente, apenas em que
a sua vontade não estava em conflito, mas em consonância;
em que um renunciou àquilo que corresponde ao outro. Ao
dizer, "só isto é que deve ser meu", está a dizer ao mesmo
tempo, em virtude da limitação por oposição: "o restante
pode ser teu"; e assim, inversamente, também o outro. Por
conseguinte, o seu direito de propriedade, isto é, o direito à
posse exclusiva, consuma-se por via do reconhecimento recí-
proco, está condicionado por ele e não existe sem esta con-
dição. A propriedade funda-se, toda ela, na associação da
vontade de várias pessoas numa só vontade.
Estou excluído da posse de um objeto determinado,
não pela vontade do outro, mas unicamente pela minha
própria vontade livre. Se eu próprio não me tivesse
excluído, não o estaria. Mas é necessário, em virtude da lei

154
do Direito, que eu, em geral, me exclua de algo. E é assim
que teria de acontecer, se alguém possui originariamente o
direito de propriedade sobre o mundo sensível na sua glo-
balidade, mas não o conserva efetivamente, continuando e
devendo continuar livre, apesar desta perda.
Em ordem a clarificar a nossa posição, acrescentemos
o segumte:
1. Com a mera subordinação aos meus fins, obtenho
uma posse somente no estado fictício do direito originário;
obtenho-a, assim, como tendo validade apenas para mim
próprio; mas era de esperar que eu não me demandasse a
mim próprio, que não entrasse em litígio comigo próprio
sobre essa posse- isto é evidente na medida em que eu me
considere meramente como pessoa no âmbito do Direito
natural. Perante o tribunal da lei moral, isto é, obviamente, 418
diferente: aí, a pessoa como que se cinde de si própria e
demanda-se em juízo a si própria.
Era, no entanto, necessário que esta proposição fosse
enunciada, uma vez que a vontade de possuir algo é a con-
dição primeira e suprema da propriedade; mas não é a
única, pois tem de ser ulteriormente determinada por outra
condição. Logo que o homem é posto em associação com
outros, a sua posse é conforme ao Direito apenas na
medida em que é reconhecida pelos outros; e só assim
adquire uma validade externa comum, por agora comum
apenas a ele e àquele que o reconhece. Por essa via, a posse
converte-se então em propriedade, em algo individual. Um
indivíduo só é possível se é distinguido de outro indivíduo;
por conseguinte, só é algo de individual se é distinguido de
outra coisa individual. Não posso pensar-me como indiví-
duo sem me opor outro indivíduo: do mesmo modo, não
posso pensar nada como minha propriedade sem pensar ao
mesmo tempo algo como a propriedade de outrem; e o
mesmo por parte do outro. A propriedade funda-se num

155
reconhecimento recíproco e este reconhecimento está condi-
cionado por uma declaração bilateral.
2. A propriedade de um objeto determinado - e não
que algo em geral possa ser feito nosso - vale, por conse-
guinte, apenas para aqueles que entre si se reconheceram
reciprocamente este direito de propriedade e para mais nin-
guém. É sempre possível e não é contrário ao Direito que
sobre aquilo que me foi reconhecido pelo outro, ou por
alguns outros, todo o resto do género humano entre em
litígio comigo e queira reparti-lo comigo novamente. Não
há, portanto, nenhuma propriedade segura e completa-
mente estável para o Direito externo, salvo a que é reconhe-
cida pelo género humano na sua globalidade. Assegurar este
reconhecimento parece um problema tremendo e, no
entanto, este é um problema que é fácil de resolver e que
está efetivamente resolvido há muito pela organização atual
dos homens. Qualquer um que viva numa comunidade
política vê reconhecida e garantida pela comunidade polí-
tica a sua propriedade e, portanto, também por qualquer
outro cidadão que faça parte dela. Esta comunidade polí-
tica, o Estado, vê reconhecida pelos Estados espacialmente
limítrofes a sua propriedade, isto é, a propriedade de todos
os cidadãos individuais. Por sua vez, estes Estados limítrofes
veem a sua propriedade reconhecida pelos outros Estados
limítrofes, e assim por diante. Logo, mesmo supondo que
os Estados mais distantes não reconheceram a propriedade
do Estado em que eu vivo, e, consequentemente, que indi-
retamente não reconheceram a minha, reconheceram, no
entanto, a propriedade dos Estados imediatamente contí-
guos. Estes Estados e os seus cidadãos não podem entrar no
território do meu Estado sem atravessar os Estados que se
419 situam entre eles e sem se apropriar do livre uso do territó-
rio destes, e isto não lhes está permitido, em virtude do seu
reconhecimento; e, deste modo, sendo a terra um todo

156
interrelacionado, absoluto e fechado, toda a propriedade
sobre a terra é indiretamente reconhecida graças ao reco-
nhecimento direto e recíproco dos Estados vizinhos uns
pelos outros. - Em tempo de guerra cessa, obviamente,
toda a relação jurídica; e a propriedade de todos os Estados
individuais que intervêm na guerra torna-se insegura; mas o
estado de guerra não é um estado em que o Direito impera.

VIII. Se com esta declaração concordante continua


algo por determinar, como é de esperar, uma vez que é
impossível que ambos possam abarcar o mundo sensível na
sua totalidade para o repartir entre si, então aquilo que
resta não é propriedade de nenhum dos dois (res neutrius).
A este propósito, não é precisa qualquer declaração particu-
lar; tudo o que não está incluído na declaração de um ou
do outro está excluído dela e, ao estar excluído do que é
determinado, torna-se indeterminado, mesmo que seja
ainda desconhecido de ambas as partes no momento da sua
declaração recíproca e venha a ser descoberto só mais tarde.
Esta coisa que para ambas as partes não tem dono (res neu-
trius) pode bem ser a propriedade de um terceiro e estar
subordinada por ele aos seus fins; mas, uma vez que não
sabem nada de um terceiro, mas só sabem um do outro,
não podem tomar em consideração este terceiro desconhe-
cido e meramente possível.
Pode mais tarde ocorrer a qualquer um deles subordi-
nar aos seus fins algo que faz parte daquilo que está inde-
terminado e entrar, assim, na sua posse. Uma vez que isto
não faz parte da propriedade que reconhece ao outro,
parece, em virtude de um direito originário, que ele tem o
pleno direito a tal entrada na posse. Mas se então o outro,
que tem o mesmo direito pelos mesmos motivos, entrasse
igualmente na posse do mesmo objeto, quem deveria deci-
dir sobre o direito de novo em litígio? Para que um tal lití-

157
gio não pudesse nunca vir a surgir, deveria, por conse-
guinte, haver lugar a uma declaração e a um reconheci-
mento em relação à ampliação da posse que fossem análo-
gos aos da primeira posse. Esta segunda declaração e este
segundo reconhecimento, e os que eventualmente vierem a
seguir-se, estão submetidos exatamente às mesmas dificul-
dades que os primeiros; ambas as partes podem querer pos-
suir a mesma coisa e ambas têm igual direito a querê-lo.
Acerca deste direito problemático de ambas as partes pode
sempre surgir um litígio insanável e uma guerra, que só
pode terminar com o desaparecimento de uma das partes
ou de ambas. A relação jurídica estabelecida entre elas é,
por conseguinte, sempre indeterminada e incompleta e
ainda não se implantou entre as partes um estado de paz
duradouro.
420 É por esta razão que aquela indeterminação não pode
continuar e as partes não podem fazer depender todos os
seus direitos e a sua segurança futura de um novo acaso, o
facto de nenhuma delas ter apetência por aquilo que a
outra quer ter ou então de poderem, em cada situação, vir
a conseguir um arranjo amigável. É necessário, por conse-
guinte, que, tal como na sua primeira associação com vista
a uma relação jurídica, se estabeleça algo determinado sobre
o direito de apropriação no futuro.
Não é só aconselhável e útil que isto aconteça, isto
deve acontecer pura e simplesmente, pois, caso contrário,
não se teria instaurado entre as partes nenhuma relação
jurídica completa e segura, não se teria concluído nenhuma
paz estável. Cada uma das partes tem, por conseguinte,
direito a coagir a outra a dar o seu assentimento a uma
qualquer regra respeitante à apropriação futura, regra essa
que seja válida para ambas as partes.
De que espécie de regra poderia tratar-se? Com a
declaração, é determinado o objeto particular de que nos

158
apropriamos; com o reconhecimento, o proprietano obtém
da outra parte o assentimento requerido para o direito
de propriedade. Este assentimento pode preceder a decla-
ração, quer dizer, pode ter lugar de uma vez por todas
no momento da associação pacífica de ambas as partes. No
entanto, a declaração sobre a tomada de posse futura não
pode ter lugar no momento da associação inicial; pois,
nesse caso, seria uma tomada de posse presente e não uma
tomada de posse futura; os objetos estariam já determina-
dos e não indeterminados e determináveis apenas no
futuro. Deste modo, o que deveria ter previamente lugar
não seria o reconhecimento do determinado, mas apenas o
do determinável, quer dizer, as partes deveriam obrigar-se
reciprocamente a querer que cada uma delas reconheça,
sem mais, como propriedade da outra tudo o que esta
declarar como sua posse no âmbito daquilo que está, até
agora, indeterminado.
Em consequência deste contrato, aquela das partes que
simplesmente declarasse em primeiro lugar a entrada na
posse obteria, exclusivamente graças a tal declaração, o
pleno direito de propriedade, uma vez que o outro está já
obrigado pelo contrato a dar o seu consentimento. Por con-
seguinte, surge aqui pela primeira vez como fundamento
do direito a propriedade temporal, e isto simplesmente
em resultado da convenção voluntária, mas juridicamente
necessária; e está fundamentada a fórmula jurídica: Qui
prior tempore, potior jure, que até aqui não tinha qualquer
relevância jurídica perante o tribunal exterior. Uma outra
fórmula jurídica é aqui determinada e delimitada de um
modo mais preciso: a coisa sem dono é de quem em pri-
meiro lugar a ocupa (res nullius cedit primo occupantt). Para
o Direito externo, não existe nenhuma coisa absolutamente
sem dono. Somente graças à declaração recíproca e ao facto
de estar excluída dela é que surge para as partes contratan-

159
tes uma coisa sem dono (res neutrius), e que só problemati-
42 1 camente é res nullius, sendo-o apenas até um proprietário se
manifestar a seu respeito. (Aquela é, pura e simplesmente,
res neutrius per declarationem; esta cedit, ex pacto, primo
occupanti et declaranti.)
A possibilidade de que surja um litígio insanável não
está ainda ultrapassada nem a relação jurídica está ainda
assegurada sem exceção se não se proceder de molde a que
a declaração tenha lugar tão cedo quanto possível após a
entrada na posse, o conhecimento do objeto e a decisão de
o reservar para mim. Pois, então, o que aconteceria se, após
eu ter entrado na posse do objeto, o outro, a quem busco
para declarar esta entrada na posse, chega, entra na posse
do mesmo objeto e vem então declarar-me a sua entrada na
posse? De quem é a propriedade? O litígio poderia ser insa-
nável, muitas vezes até perante a própria consciência de
qualquer um dos dois, mas sê-lo-ia, com certeza, perante o
tribunal do Direito externo, porque nenhum dos dois pode
provar que foi o primeiro. Por conseguinte, estariam
ambos, por muito cuidado que tivessem, sempre em nsco
de se envolver em guerra um contra o outro.
Entrada na posse e declaração devem, portanto, estar
reunidas sinteticamente; ou, dito de modo mais rigoroso, o
objeto ocupado há de ser determinado na ocupação de tal
modo que o outro não possa conhecê-lo sem ao mesmo tempo
conhecer a ocupação que teve lugar. É o próprio objeto que
tem de efetuar a declaração: devem, pois, ser necessaria-
mente convencionados entre ambos os sinais indicadores da
entrada na posse que teve lugar. É isto, e precisamente isto,
que é necessário para evitar qualquer possibilidade ulterior
de litígio; existe, portanto, um direito a coagir a contra-
parte a ater-se a isto. - Estes sinais são sinais unicamente na
medida em que foram convencionados entre ambos e feitos

160
com este propostto. Podem, portanto, ser os que se quiser.
O sinal mais natural da propriedade da terra é a separação
da propriedade com sebes e valas. Os animais irracionais
ficam impedidos de entrar nesse terreno; aos seres racionais
recorda-se, com isso, que eles não devem servir-se da sua
faculdade para entrar nele.

IX. No que diz respeito ao abandono da propriedade


(derelictio dominit), questão sobre a qual poderia aqui igual-
mente surgir um litígio, é, de imediato, claro que a pri-
meira propriedade, o bem próprio que nos advém por força
da declaração e o reconhecimento, só pode ser abandonada
mediante a declaração de que o proprietário não quer pos-
suí-la por mais tempo e que, independentemente do que
possa ainda vir a acontecer, cada uma das partes tem de
continuar a supor que a outra quer continuar na posse
daquilo de que um dia se apropriou, enquanto ela não tiver
declarado expressamente a sua renúncia a esta vontade.
Aquilo que é fundamentado estende-se até onde se estende 422
o fundamento: ora, a declaração é o fundamento exclusivo
desta propriedade e, por conseguinte, a propriedade não
pode ser extinta se não for extinta a declaração. Mas a
declaração só é revogada com a declaração da contraparte.
A propriedade abandonada torna-se, assim, para ambas as
partes, sem dono e encontra-se então submetida à regra
sobre os objetos sem dono, que indicamos acima: - No que
diz respeito à propriedade adquirida ulteriormente (domi-
nium acquisitum), ela é obtida na sequência do sinal da
propriedade convencionado e extingue-se com a extinção
deste sinal, em conformidade com a regra: aquilo que é
fundamentado não vai para além do fundamento. Poder-
-se-ia dizer que a partir do momento em que a outra parte
se apercebeu do sinal, ela sabe que aquilo que foi assim
designado é propriedade de alguém. O proprietário pode

161
então remover o sinal, para não manter nada que seja
supérfluo; ou o sinal deteriora-se e desaparece por si pró-
prio. Mas é precisamente aí que reside a causa de não se
poder nunca provar à outra parte que ela se apercebeu efe-
tivamente do sinal da propriedade. Pode ser que ela nunca
tenha vindo ao encontro do objeto; ou se veio, pode muito
bem ser que não tenha prestado atenção ao sinal da pro-
priedade, uma vez que a coisa lhe não interessava. O sinal
não é, pois, algo de supérfluo, mas sim o fundamento
necessariamente duradouro do direito; e se o proprietário
remove o sinal ou o deixa perecer, deve ser considerado
como alguém que renunciou ao seu direito de propriedade.

X. As partes, ao celebrarem sobre a propriedade o


contrato que foi indicado e determinado, provam-se a si
próprias reciprocamente que se submetem à lei do Direito,
uma vez que só é possível celebrar esse contrato em conse-
quência da lei do Direito; por conseguinte, provam-se a si
próprias que são seres que têm direitos. Deste modo, por
intermédio deste contrato, a inviolabilidade e a intangibili-
dade dos seus corpos, que continuavam até aqui como pro-
blemáticas, obtêm ao mesmo tempo a sua sanção e conver-
tem-se num direito categórico. Para isso, não é necessária,
como é evidente, nenhuma convenção especial: pois que a
extensão do direito não é aqui controvertida, é dada pelo
mero conhecimento. O que seja um tal direito, algo que era
até aqui problemático, está agora decidido pela celebração
do contrato. A nossa análise retornou a si própria; o que ao
início aparecia como problemático converte-se agora, graças
ao mero decurso da nossa investigação, em categórico, e,
por conseguinte, a nossa análise encontra-se integralmente
concluída.
No que se refere aos limites das suas ações livres, na
relação de um com o outro, estão agora ambos os seres per-

162
feitamente determinados e, por assim dizer, estão constituí-
dos reciprocamente um para o outro. Cada um tem a sua
posição determinada no mundo sensível; e não podem 423
entrar em litígio se ambos se ativerem a essa posição. Está
instaurado entre eles um equilíbrio do Direito.

XI . A proposição que foi aqui estabelecida sintetica-


mente, segundo a qual por intermédio da lei do Direito,
que em si é meramente formal, pode ser também deter-
minado materialmente o âmbito dos direitos de cada um,
foi comprovada por via da sua aplicabilidade universal.
A minha relação jurídica com um ser livre é determinada
diretamente para mim por via do mero conhecimento dele,
isto é, a relação é posta como algo a determinar necessaria-
mente: a lei do Direito atribui-me a tarefa absoluta ou de
determinar livremente esta relação jurídica ou de deixar que
seja o Estado a determiná-la.
Respondemos, portanto, à questão mais importante de
uma doutrina do Direito enquanto ciência real: a de como
pode aplicar-se uma lei do Direito meramente formal a
objetos determinados.

163
CAPÍTULO SEGUNDO DA DOUTRINA
DO DIREITO

SOBRE O DIREITO DE COAÇÃO

§ 13.

Toda a nossa argumentação na dedução de um equilí-


brio do Direito move-se em círculo; se se reflete sobre este
círculo, veremos que o estado jurídico, cuja possibilidade
devia assim ser demonstrada, se torna de novo impossível; e
o conceito de Direito continua a aparecer vazio e sem apli-
cação.
Para cada um dos seres racionais que pusemos como
conhecendo-se reciprocamente, era problemático saber se
podia confiar na segurança dos seus direitos perante o outro
e se, consequentemente, tinha direitos; ou se devia expulsá-
-lo pela força física do seu campo de atuação. A dúvida
deve ser afastada, em razão do facto de que ambos determi-
naram e reconheceram reciprocamente a extensão dos seus
direitos; pois daí deve resultar claramente que eles se sub-
metem à lei do Direito.
Mas a segurança recíproca de ambos, longe de assentar
no facto de terem convencionado entre si um estado jurí-
dico, assenta, isso sim, em que em todas as suas ações livres
futuras se pautam por esta convenção. Pressupõe-se nesta
convenção, por conseguinte, a confiança de cada um no

165
424 outro não somente em que mantenha a sua palavra aqui ou
ali, quando julgar que isso lhe é conveniente, mas em que
faça com que a sua palavra seja para si uma lei inviolável.
Ora, essa pessoa não poderia, em absoluto, dar a sua pala-
vra como uma palavra que quer efetivamente manter no
futuro , a não ser em consequência da vontade de que se
chegue a estabelecer uma relação jurídica, por conseguinte,
em consequência da sua submissão à lei.
Nesta conformidade, aquilo que deve provar a capaci-
dade do outro para ter direitos e para os exercer, a sua sub-
missão à lei, só consegue prová-las unicamente se aquilo
que deve ser demonstrado está já pressuposto e não tem
qualquer validade ou significado se essa capacidade não
tiver sido pressuposta.
O rigor de toda a investigação que se vai seguir
depende de que este ponto seja levado estritamente em
conta. A segurança de ambos não depende de um acaso,
mas de uma necessidade semelhante à necessidade mecâ-
nica, onde não é, em absoluto, possível qualquer exceção.
Uma tal segurança só tem lugar na condição de que a lei
do Direito seja para ambos a lei inviolável da sua vontade e
se cada um deles não estiver convencido de que é isso o
que acontece com o outro, não é nenhuma convenção que
lhes pode garantir isso, pois que a convenção só tem efeito
na condição da submissão da vontade à lei do Direito. Há
várias razões suscetíveis de levar as partes a comprometer-se
numa convenção, sem que tenham, no momento da con-
venção, vontade de manter a sua palavra. - Ou então,
podem as partes no momento da convenção estar a pensar
seriamente isso e estar, do fundo do coração, a conviver
entre si de acordo com o Direito; mas, posteriormente,
induzidos pela habituação à paz e assegurada a tranquili-
dade, descartado o medo que poderá bem ter tido algum
papel na composição amigável, e na firme convicção da

166
debilidade do vizinho, pode ser que uma ou ambas as par-
tes mudem de parecer. Desde o momento em que uma
delas pense que tal é possível, passa a não ter nem mais um
minuto de descanso, tendo de manter-se continuamente
alerta, sempre preparada para a guerra, e coloca assim a
outra parte, que pode bem continuar a estar de boa-fé, na
mesma situação e comunica-lhe a sua desconfiança. Cada
uma das partes obtém, assim, o direito a denegar à outra a
paz e a subtrair-se a ela, pois foi eliminada a possibilidade
da coexistência da liberdade de uma com a liberdade da
outra. O seu contrato está reduzido a nada, dado que desa-
pareceu aquilo em que se fundava, a confiança recíproca.
Resultado: a possibilidade da relação jurídica entre pes-
soas no domínio do Direito natural estd condicionada pela
boa-fé recíproca. Mas a boa-fé recíproca não está dependente
da lei do Direito; não pode impor-se por coação e não há 425
um direito à sua imposição coercitiva. Não pode impor-se
por coação que alguém tenha intimamente confiança na
minha seriedade, uma vez que esta não se exterioriza e, por
conseguinte, está fora da esfera do Direito natural. Mas
nem sequer posso coagir quem quer que seja a que não
exprima a sua desconfiança em relação a mim. Pois que se
ele tem desconfiança, eu forçá-lo-ia, por conseguinte, a
abandonar toda a sua preocupação pela sua segurança,
forçá-lo-ia, por conseguinte, a abandonar toda a sua liber-
dade e todos os seus direitos; submetê-lo-ia, assim, ao meu
veredicto arbitrário e ao meu poder, quer dizer, subjugá-
-lo-ia, coisa a que ninguém tem direito.

§ 14. O princípio de todas as Leis de coação

Perdida a confiança entre as pessoas que vivem con-


juntamente, tornam-se impossíveis, como vimos, a segu-

167
rança recíproca e qualquer relação jurídica entre elas. As
partes não podem ser convencidas da falta de fundamento
da sua desconfiança recíproca, uma vez que uma tal convic-
ção só pode ser edificada com base numa boa vontade que
está firme e plenamente garantida contra toda a transigên-
cia e fraqueza; confiança que é difícil supor em nós pró-
prios, quanto mais nos outros. -A confiança, uma vez per-
dida, já não pode ser recuperada; pois, ou perdura a
situação de insegurança de ambas as partes, comunicando-
se a desconfiança reciprocamente e aumentando por causa
da precaução que cada uma delas vê que a outra toma; ou
então, estala entre elas uma guerra, que nunca é uma situa-
ção conforme ao Direito, e na qual cada uma delas encon-
trará sempre, de um lado e doutro, suficientes motivos para
duvidar da recta intenção da outra parte.
Logo, não se trata para nenhuma das partes da boa
vontade da outra em si, segundo a sua forma. A este propó-
sito, cada uma das partes está colocada perante o tribunal
da sua consciência moral. As partes só têm de ver com as
consequências, com o conteúdo da vontade de cada uma.
Cada uma delas quer e tem o direito de querer que pelo
lado da outra parte só se realizem as ações que se realiza-
riam se tivesse uma vontade boa universal; não se trata aqui
de saber se esta vontade existe efetivamente ou não. Cada
uma das partes tem pretensão somente à Legalidade da
outra, não à sua moralidade< 26 l .

No entanto, não se pode nem deve estabelecer um dis-


positivo segundo o qual as ações que não devem ter lugar
426 sejam reprimidas por uma força mecânica da natureza. Isto
é, por um lado, impossível, porque o homem é livre e, pre-
cisamente por isso, pode resistir a qualquer força da natu-
reza e vencê-la; por outro lado, é contrário ao Direito, por-
que o homem seria assim, no domínio do conceito de
Direito, reduzido a uma mera máquina e a liberdade da sua

168
vontade não contaria para nada. O dispositivo a adoptar
deveria dirigir-se à vontade ela própria, a apetrechá-la e a
forçá-la a determinar-se por si mesma e a não querer nada
senão aquilo que pode coexistir com a liberdade conforme
à lei. - É fácil apercebermo-nos de que a resposta teria de
ser dada neste sentido; é apenas um pouco mais difícil con-
ceber como seria isto possível.
O ser livre põe-se a si próprio fins com absoluta liber-
dade. Quer porque quer e o querer de um objeto é ele pró-
prio o fundamento último desta vontade. Assim, e não de
outro modo, determinamos acima o ser livre e é assim que
ele tem de continuar determinado: se é concebido de outro
modo, perde-se a egoidade.
Se as coisas pudessem ser dispostas de molde a que do
querer de cada fim não conforme ao Direito resultasse
necessariamente, e de acordo com uma lei sempre eficaz, o
contrário daquilo que tinha sido intencionado, isso levaria a
que qualquer vontade contrária ao Direito se anulava a si
própria. Precisamente porque se queria algo, não se poderia
querê-lo; toda a vontade contrária ao Direito seria o funda-
mento da sua própria anulação, tal como a vontade em
geral é o fundamento último de si própria.
Era necessário apresentar esta proposição em todo o
seu rigor sintético, pois é nela que se fundam todas as leis
de coação ou leis penais (a legislação penal no seu con-
junto). Vamos agora analisar este conceito, para o tornar
mais claro.
O ser livre propõe-se um fim. A este fim chame-
mos A. Ora, é bem possível que este A seja posto em rela-
ção, como meio, com outros fins e estes, por sua vez, como
meios, com outros fins, etc. Ainda que se possa remontar
tão longe quanto se queira, deve, no entanto, acabar por se
admitir um fim absoluto, o qual é querido, pura e simples-
mente, porque é querido. Todos os possíveis fins intermé-

169
dios se relacionam com ele como partes do fim total abso-
luto e devem, por conseguinte, considerar-se eles próprios
como fins absolutos. - A é querido significa: exige-se que
algo correspondente ao conceito de A seja dado na percep-
ção como existente. O conceito da existência real de A, o
querer que A exista, é, por conseguinte, o móbil da vontade
de A. Na medida em que A é desejado no presente e na
medida em que o desejo da sua existência é o desejo predo-
minante, o contrário de A é detestado e é no presente o
mal mais temido.
427 Se a pessoa tivesse previsto que da sua atividade causal
dirigida a realizar A se seguiria necessariamente o contrário
de A, não poderia querer realizar A, precisamente porque
· deseja ou tem apetência pela existência de A e, por conse-
guinte, detesta o contrário de A; a pessoa não poderia que-
rer A, precisamente pela razão de que o quer; e o nosso
problema estaria solucionado. A apetência agora mais forte
proporcionaria o contrapeso e a vontade anular-se-ia a si
própria. A vontade manter-se-ia por si própria nesses limi-
tes e ficava por si própria obrigada a fazê-lo.
Se pudesse, pois, estabelecer-se um dispositivo que operasse
com necessidade mecânica, dispositivo em virtude do qual a
toda a ação contrária ao Direito se seguisse o contrário do
seu fim, a vontade seria forçada, graças a esse dispositivo, a
querer apenas aquilo que é conforme ao Direito; graças
· a este dispositivo, a segurança seria restabelecida depois da
perda da confiança e a boa vontade deixaria de ser indis-
pensável para a realização exterior do Direito, uma vez que
a vontade má e ávida de bens alheios seria conduzida pela
sua própria avidez ilegítima ao mesmo fim. Um dispositivo
tal como o descrito chama-se uma lei de coação.
Existe, de um modo geral, um direito a pôr em prática
uma tal instituição. Pois que a liberdade e a segurança jurí-
dica recíprocas devem reinar em virtude da lei do Direito.

170
A liberdade e a segurança poderiam também reinar por
intermédio da boa-fé e da confiança, mas estas não são sus-
ceptíveis de ser produzidas de acordo com uma lei, de ma-
neira a poder-se seguramente contar com elas; aquele fim
deve, pois, ser realizado por meio daquilo que só pode ser
realizado em conformidade a uma regra: e isto só pode ser a
lei de coação. Por conseguinte, é na lei do Direito que está
ínsita a tarefa de pôr em prática uma tal instituição.
Finalmente, esta lei de coação não atinge a liberdade
da boa vontade e preserva-a em toda a sua dignidade. Na
medida em que alguém quer somente aquilo que é con-
forme ao Direito em razão da sua mera conformidade ao
Direito, não urge nessa pessoa qualquer desejo daquilo que
não é conforme ao Direito. Não obstante, tal como vimos,
a lei leva em conta unicamente este desejo, é só dele que
se serve como móbil e é unicamente por intermédio
deste desejo que ela se aplica à vontade. É só por meio deste
desejo que se proporciona à lei de coação, por assim dizer,
algo com que ela nos possa apanhar e fazer parar. Portanto,
em todos os caso em que não está presente nenhum desejo,
a lei de coação não atua e está, em relação à vontade, com-
pletamente posta de lado; a lei não chega a ser um motivo,
uma vez que a retidão já foi produzida por um outro
motivo. Ao justo nenhuma lei exterior é dada; ele está com-
pletamente liberto de uma tal lei e está-o em virtude da sua
própria boa vontade.
Mas - este é o segundo aspecto possível sob o qual 428
uma lei de coação pode ser considerada - pode causar-se
um prejuízo sem a vontade de o fazer, por negligência e
imprudência. Neste caso, a lei de coação descrita (que se
funda na vontade de causar um prejuízo, ou melhor, na
vontade de favorecer o seu próprio interesse à custa do pre-
juízo do outro e que decai na sua aplicação quando, como
acabamos de ver, não existe uma tal vontade) não tem qual-

171
quer influência, nem oferece qualquer proteção. Contudo,
para o lesado um prejuízo provocado por imprudência é
idêntico ao que foi provocado por má vontade e o possível
receio deste prejuízo coloca-o na mesma situação de insegu-
rança e temor em que o colocam as agressões deliberada-
mente hostis. Por conseguinte, a segurança não está ainda
suficientemente fundada por via do dispositivo descrito.
Também contra a imprudência é necessário que sejam
tomadas medidas.
Toda a incúria se reduz ao facto de que o homem não
tem qualquer vontade que seja em casos em que a deveria
ter e onde, com a mesma certeza com que é considerado
um ser racional e livre, se confiou que a tivesse. Ele não
projetou nenhum conceito do seu agir, mas agiu mecanica-
mente, como se fosse o acaso a guiá-lo. Isto impede viver
em segurança a seu lado; e converte-o num produto da
natureza, que deveria conduzir-se a um estado de repouso e
inatividade, o que, no entanto, não pode fazer-se, uma vez
que ele também tem uma vontade livre, nem deve fazer-se,
dado que a sua liberdade deve ser integralmente respeitada.
- A fim de que a segurança seja possível a seu lado, o
homem deve dirigir, por intermédio da sua vontade livre, as
manifestações da sua força física para um fim meditado; e
em relação à liberdade da outra parte pode estabelecer-se
para ele a seguinte regra:
Ele tem de ter tanta preocupação em não lesar os direitos
da outra parte como em que não sejam lesados os seus. A
demonstração da validade desta regra é a seguinte: o fim
último que me é dado pela lei é a segurança recíproca. Neste
fim último reside o fim de que os direitos do outro perma-
neçam sem ser lesados por mim, como também, e no
mesmo grau, o fim de que os meus permaneçam sem ser
lesados por ele; e enquanto ambos os fins não forem, de
igual modo, fins da minha vontade, a minha vontade é des-

172
conforme ao Direito e eu sou incapaz de manter com ele
uma relação segura e pacífica.
A questão consiste em saber como é que se deve provi-
denciar para conduzir alguém a ter uma vontade quando a
deve ter, ou - na determinação mais precisa que demos à
proposição por intermédio da regra que foi apresentada -
para o conduzir a que tenha com a segurança do outro em
relação a ele a mesma preocupação que tem com a sua pró-
pria segurança em relação ao outro.
Vamos começar por ver a primeira fórmula, precisa-
mente porque é a mais difícil, tornando, por isso, a investi- 429
gação mais interessante: como é que se há de providenciar
para produzir uma vontade em alguém?
Aquele que não tem em absoluto qualquer vontade
não seria um ser livre e racional, o que contradiz a hipó-
tese. Se as pessoas em que pensamos aqui têm vontade,
também a direção determinada da sua vontade é conhecida;
declararam os objetos que, por intermédio da sua vontade,
submeteram aos seus fins (a sua propriedade). A vontade
em falta, mas que, no entanto, constitui um requisito para
a possibilidade da segurança recíproca, haveria que ser pro-
duzida pelo que é providenciado a partir desta vontade
existente de forma absolutamente certa, quer dizer, a satis-
fação da vontade que têm deveria ser condicionada pelo
facto de terem uma outra vontade, a vontade que devem
ter e que, porventura, não querem ter. - É completamente
certo que eu tenho A como fim. Ora, se eu devo viver
no quadro de uma relação jurídica, teria também de ter o
fim B e é duvidoso que eu tenha sempre esse fim. Mas
querê-lo é algo que se produz seguramente em mim, se ele
se converte em condição para alcançar o fim A. Estou
então forçado, contra a minha boa vontade, a querer B,
pois que sem ele A, que eu quero, seria impossível. A é o
fim : afirmar os meus próprios direitos; B é o fim: não lesar

173
o direito alheio. Se agora, por via de uma lei de coação que
imperasse com necessidade mecânica, toda a lesão dos direi-
tos do outro se tornasse uma lesão dos meus direitos, eu
viria a ter com a segurança dos direitos dele a mesma preo-
cupação que tenho com a segurança dos meus, pois que,
em virtude do dispositivo posto em prática, a segurança do
outro perante mim converte-se na minha própria segu-
rança. Em suma, todo o prejuízo infligido ao outro pela
minha irreflexão deve ser-me infligido a mim próprio.
Acrescentemos esta comparação: no primeiro caso, a
vontade vagueava para além das suas fronteiras; atinha-se
àquilo que pertence exclusivamente ao outro, mas como a
algo que quisesse empregar em seu próprio benefício. A lei
servia-se precisamente deste vaguear da vontade para a fazer
retroceder para dentro dos seus limites. - No segundo caso,
a vontade não ia tão longe, a saber, não se atinha, em abso-
luto, ao que pertencia ao outro, tal como devia fazer. A lei
faz uso da sua legítima preocupação pela conservação
daquilo que é seu em ordem a induzir a vontade a preen-
cher os limites que são os seus. A preocupação pela sua
própria segurança tem pois, debaixo da direção da lei de
coação, o efeito oposto, isto é, tem de cada uma das vezes o
efeito que deve ter, manter o equilíbrio do Direito. O con-
ceito de uma lei de coação, que visa assegurar esta igual-
dade dos direitos de todos, está, portanto, tratado de modo
perfeitamente exaustivo.

430 § 15. Sobre a instituição de uma lei de coação

A lei de coação deve atuar de molde a que de toda a


violação de um direito resulte para o transgressor, ineluta-
velmente e com uma necessidade mecânica (de maneira a
que este a possa prever com toda a segurança), idêntica

174
violação do seu próprio direito. Questiona-se: como é que
pode introduzir-se uma tal ordem de coisas?
Requer-se, como resulta da própria coisa, um poder
coercitivo, que puna irresistivelmente o agressor. Em pri-
meiro lugar, por quem é que deve ser instituído um tal
poder?
Este poder é estabelecido como meio para alcançar a
segurança recíproca, quando não existam a boa-fé e a con-
fiança; e não numa qualquer outra perspetiva. Nessa con-
formidade, só poderia querer este poder quem quisesse
aquele fim, a segurança recíproca, mas deveria querê-lo
necessariamente. Quem quer o fim são aqueles que puse-
mos como partes contratantes; logo, quem quer o meio só
podem ser eles, e só eles. É no querer deste fim, e nele
somente, que estão unidas as suas vontades: portanto, as
suas vontades devem estar unidas também no querer o
meio, quer dizer, devem celebrar entre si um contrato para
a instituição de uma lei de coação e de um poder coer-
citivo.
Qual deve, então, ser este poder? - Este poder coerci-
tivo é um poder que é guiado por um conceito e que se
atém à realização de um conceito, de um conceito que foi
projetado com absoluta liberdade; a saber: o conceito dos
limites que ambos estabeleceram no contrato à sua ativi-
dade causal no mundo sensível; não pode ser, portanto, um
poder mecânico, mas tem que ser um poder livre. Um tal
poder, que reúna em si todos estes requisitos, não está em
absoluto posto, a não ser como o seu próprio poder, que é
determinado pela sua vontade comum. O conteúdo do
contrato que teriam de celebrar entre si para instituir um
direito de coação seria, por conseguinte, o de que ambos,
unindo o seu poder, querem tratar aquele dos dois que tenha
lesado o outro de acordo com o conteúdo da lei de coação.

175
Ora, se estamos perante um caso de direito de coação,
o agressor é um dos dois; é contraditório que seja o agres-
sor a repelir com a sua própria força a sua própria agressão;
consequentemente, ele abster-se-ia da agressão, esta não se
produziria e não estaríamos perante um caso de direito de
coação. O agressor poderia, portanto, prometer não resis-
tir à coação do outro, submetendo-se, assim, voluntaria-
mente à coação do outro.
Mas isto é igualmente contraditório, uma vez que o
lesante, tenha ele causado intencionalmente a lesão ou
tenha-o feito por negligência, tem a firme vontade, de
431 acordo com a nossa pressuposição, de conservar aquilo que
é seu; pois a lei de coação está prevista unicamente para a
eventualidade desta vontade; no primeiro caso, na hipótese
do dano ser intencional, tem até a vontade de se apode-
rar do que é do outro; e é precisamente esta vontade que
deve ser frustrada pela coação. Se o lesante se submetesse ao
poder, não seria necessário o uso do poder contra ele; ele
teria renunciado voluntariamente ao seu ilícito e não teria,
por conseguinte, a vontade que a lei de coação pressupõe
(um dever de se deixar coagir é algo contraditório: quem se
deixa coagir não é coagido e quem é coagido não se deixa
coagir).
No entanto, é assim que deveria ser; pois, se assim não
fosse, de onde é que poderia proceder a supremacia do
Direito, tendo em conta que temos de atribuir força física
idêntica a ambas as pessoas? Por conseguinte, na mesma
pessoa em quem não se podia confiar que se abstivesse, em
virtude da palavra dada, de agredir a propriedade alheia - e
que efetivamente nem sequer se absteve -, nessa mesma
pessoa seria depositada a confiança de que submeteria
voluntariamente à sanção infligida à sua propriedade, para
não faltar à palavra dada no contrato de coação.

176
Então, se o lesado faz justiça pelas suas próprias mãos
e o lesante deve entregar-se por inteiro, de mãos atadas, ao
julgamento do primeiro e à execução da sua sentença,
quem é que lhe pode dizer que o lesado não ultrapassará
intencionalmente os limites da lei de coação ou que não se
equivocará na aplicação dessa lei ao caso presente? Também
o agressor deveria, por conseguinte, depositar uma con-
fiança ilimitada e impossível na retidão, imparcialidade e
sabedoria do outro, em quem ele deixou por completo de
confiar, o que é, sem dúvida, contraditório.
Logo, um tal contrato é, pelo que foi indicado, con-
traditório e não pode, pura e simplesmente, ser realizado.
O contrato poderia ser realizado somente na condição
de que o lesado fosse se mpre a parte mais poderosa, mas
somente até ao limite determinado pela lei de coação aqui
deduzida, perdendo rodo o poder quando esse limite tenha
sido atingido; ou, em conformidade com a fórmula acima
estabelecida, na condição de que cada uma das partes tenha
exatamente tanto poder como direito. Isto só acontece, como
também vimos acima, numa comunidade política. Não é,
por conseguinte, possível a aplicação do direito de coação a
não ser numa comunidade política; caso contrário, a coação
só é legítima de modo sempre problemático e, precisamente
por isso , a aplicação efetiva da coação como se para tal
houvesse um direito categórico é sempre injusta.
(Não existe, por conseguinte, nenhum Direito natural, 432
na aceção que frequentemente atribuímos à expressão, quer
dizer, não é possível nenhuma relação jurídica entre os
homens a não ser numa comunidade política e com subor-
dinação a leis positivas. - Ou existe uma moralidade geral e
uma crença universal nela; e, para além disso, verifica-se o
maior de rodos os acasos, que rodas as pessoas coincidam
nas suas pretensões, coisa que mesmo com a melhor das
boas vontades de rodos não poderia ocorrer com frequên-

177
cia; neste caso, a lei do Direito não intervém, não chega a
pronunciar-se, porque aqui lo que deveria ocorrer em resul-
tado dela ocorre independentemente dela e aquilo que ela
proíbe não é querido por ninguém. - Para uma espécie de
seres moralmente perfeitos não existe lei do Direito. Que o
homem não pertence a esta espécie é algo que está já claro
pelo facto de que tem de ser educado e educar-se a si próprio
para a moralidade; porque o homem não é moral por natu-
reza, mas é só pelo seu próprio labor que ele deve tornar-se
moral.
Ou então - este é o segundo caso -, não existe uma
moralidade geral, nem sequer uma crença universal nela,
circunstância em que, decerto, intervém a lei do Direito
externa, mas esta não é susceptível de aplicação, salvo numa
comunidade política. Assim, o Direito natural desaparece.
Mas o que perdemos de um lado, recuperamo-lo com
ganhos do outro; pois o Estado converte-se ele próprio no
estado natural do homem e as suas leis não devem ser outra
coisa senão o Direito natural realizado.)

178
CAPÍTULO TERCEIRO DA DOUTRINA
DO DIREITO

DO DIREITO POLÍTICO OU DO DIREITO


NUMA COMUNIDADE POLÍTICA

§ 16. Dedução do conceito de comunidade política

Detivemo-nos num problema que não pudemos resol-


ver e que esperamos agora solucionar mediante o conceito
de comunidade política, problema que consistia em: como
edificar um poder que, entre pessoas que vivem em con-
junto, possa aplicar coercitivamente o Direito, ou seja,
aquilo que todos querem necessariamente?

I. O objeto da vontade coletiva é a segurança recíproca;


porém , de acordo com a nossa pressuposição de que
em cada indivíduo não há lugar para a moralidade, mas
somente para o amor-próprio, o querer a segurança do 433
outro decorre de querer a sua própria segurança: o primeiro
querer está subordinado ao segundo, pois que não é preo-
cupação de ninguém que alguém esteja seguro face a ele,
salvo na medida em que a sua própria segurança face ao
outro só é possível nesta condição. Podemos expressar isto
de modo abreviado com a seguinte fórmula: cada um subor-
dina o fim coletivo ao seu fim privado. (É com base nesta
fórmula que se calcula a lei de coação; ela deve produzir

179
aquela ação recíproca, aquela associação necessária dos dois
fins na vontade, cada um ligando efetivamente o bem-estar
de cada um à segurança do bem estar de todos os outros).
A vontade de um poder que exerce o direito de coação
não pode estar constituída assim; pois, uma vez que a
subordinação da vontade privada à vontade coletiva é pro-
duzida somente pelo poder de coação, que deve ter supre-
macia sobre qualquer outro poder, a subordinação de quem
exerce a coação não pode ser produzida por nenhum outro
poder que não o seu próprio, o que é absurdo. Não é
necessário, portanto, que aquela subordinação e aquela con-
cordância devam ser produzidas, tendo, antes, de existir já,
quer dizer, é necessário que a vontade privada do poder
coercitivo e a vontade coletiva sejam uma mesma e úni ca
vontade; a vontade coletiva, e nenhuma outra, tem de ser
para este poder vontade privada e este poder não pode ter
qualquer outra vontade particular e privada.

II. Por conseguinte, a tarefa do Direito político e, de


acordo com a nossa demonstração, de toda a filosofia do
Direito consiste em: encontrar uma vontade para a qual seja
absolutamente impossível ser outra que não a vontade coletiva.
Ou, segundo a fórmula anteriormente exposta, mais
conveniente para o curso da nossa investigação: encontrar
uma vontade na qual a vontade privada e a vontade coletiva
estejam sinteticamente unidas.
Vamos resolver este problema de acordo com um
método rigoroso. Chamemos X à vontade de que estamos à
procura.
a) Toda a vontade tem-se a si própria (no futuro)
como objeto. O fim último de todo aquele que quer é a
conservação de si próprio. Assim acontece com X; e esta
seria, por conseguinte, a vontade privada de X. - Ora, esta
vontade privada deve formar uma unidade com a vontade

180
coletiva, que é a segurança dos direitos de todos. Por conse-
guinte, X quer, na medida em que se quer a si própria, a
segurança dos direitos de todos.
b) A segurança dos direitos de todos é querida somente
pela vontade concordante de todos, pelo concurso das suas
vontades. É unicamente sobre este ponto que todos concor-
dam; pois em tudo o resto o seu querer é particular e
aponta aos fins individuais. Nenhum indivíduo, nenhuma
das partes, em virtude da hipótese de um egoísmo univer- 434
sal, na base da qual a lei de coação é calculada, renuncia a
este fim, a não ser que o façam todos em conjunto.
c) Por conseguinte, X seria ela própria esta concordân-
cia de todos. Na medida em que se quisesse a si própria,
teria de querer a segurança dos direitos de todos; dado que
ela é em relação a essa segurança uma única e a mesma
COISa.

III . Mas uma tal concordância é um mero conceito;


que não deve permanecer como tal, mas que deve ser reali-
zada no mundo sensível, isto é, deve ser apresentada numa
expressão determinada e operar como força física.
Para nós, os únicos seres que querem no mundo sensí-
vel são os homens. Esse conceito deveria, portanto, ser rea-
lizado nos homens e pelos homens. Para tal, requer-se:
a) Que a vontade de um número determinado de
homens, num qualquer momento temporal, seja efetiva-
mente concordante, se expresse como tal e como tal seja
declarada. - Aqui trata-se de demonstrar que a concordân-
cia requerida não se encontra por si própria, mas que se
funda num ato explícito de todos no mundo sensível, percetível
em qualquer momento e unicamente possível por autodetermi-
nação livre. Tal ato procede de uma demonstração já acima
efetuada. A lei do Direito afirma simplesmente que cada
um deve limitar a sua liberdade pelos direitos do outro ,

181
mas não determina até onde se estendem os direitos de
cada um e sobre que objetos é que devem incidir. Isto deve
ser declarado explicitamente e deve ser declarado de tal
sorte que as declarações de todos concordem. Cada um
deve ter dito a todos: quero viver neste lugar e possuir
como meu isto ou aquilo; e todos devem responder a isso:
sim, podes viver aqui e possuir isto.
Da investigação ulterior deste ato resulta a primeira
secção da doutrina do Direito político, relativa ao contrato
de cidadania.
b) Requer-se igualmente que esta vontade seja estabe-
lecida como a vontade estável e permanente de todos, a
vontade que cada um, tal como a expressou no momento
presente, reconhece como sua, enquanto viver neste lugar.
Em todas as investigações levadas a cabo até agora, subli-
nhava-se sempre o ponto de que a vontade futura no seu
conjunto fosse tornada presente num só momento; que essa
vontade fosse, de uma vez por todas, definida para a vida
futura inteira. É aqui que pela primeira vez a proposição
adquire verdadeiramente validade.
Com a fixação da vontade presente para todo o sem-
pre, a vontade coletiva expressa torna-se lei.
c) Nesta vontade coletiva é determinado , por um
lado, qual a extensão que devem ter os direitos de cada pes-
435 soa, e a legislação é então a legislação civil (legislatio civilis);
e, por outro lado, como deve ser punido quem, desta ou
daquela maneira, comete uma infração contra estes direitos
(/egislatio criminalis, jus criminale, poenale). Desta investiga-
ção resulta a segunda secção da doutrina do Direito polí-
tico, que trata da legislação.
d) Esta vontade coletiva deve estar provida com um
poder, melhor, com uma supremacia de poder, frente ao
qual o poder de cada indivíduo seja infinitamente pequeno,
a fim de que ela possa cuidar de si mesma e da sua conser-

182
vação, mediante a coação; estamos a referir-nos ao poder
estadual. Neste poder, existem duas vertentes: o direito de
julgar e o direito de executar sentenças judiciais (potestas
judicia/is et potestas executiva in sensu strictiori, que perten-
cem ambos à potestas executiva in sensu latiorz).

IV A vontade coletiva expressou-se efetivamente num


certo momento temporal e tornou-se lei universal mediante
o contrato social celebrado com base nela.
Não pode haver dificuldade alguma em compreender,
de acordo com os princípios enunciados, qual será essa
vontade geral, tanto do ponto de vista da determinação dos
direitos de cada indivíduo, como do ponto de vista das leis
penais. - Mas esta vontade geral não está ainda depositada
e preservada onde quer que seja, nem está provida com um
poder. É necessário que este requisito seja satisfeito, se se
quiser que a vontade geral perdure e que não regresse, a
breve termo, a insegurança precedente e a guerra de todos
contra todos. A vontade coleciva, enquanto mera vontade,
está realizada, mas não está ainda realizada como poder
capaz de se preservar a si própria: falta, portanto, solucionar
a última parte do problema.
A questão parece obter resposta a partir de si própria.
É que os membros da associação, enquanto pessoas
físicas no mundo sensível, têm, eles próprios, necessaria-
mente poder. Enquanto nenhum deles infringir a lei, e uma
vez que só se deve julgar a cada um deles de acordo com as
suas ações, há que supor que a sua vontade privada con-
corda com a vontade coletiva e que, por conseguinte, o seu
poder é parte do poder estadual. Cada um, mesmo que
tenha começado a ter no seu íntimo uma vontade injusta,
deve continuar sempre a temer o poder de todos, assim
como todos temem o seu, porque da injustiça da sua von-
tade, que não se manifesta ainda em ações, nada podem

183
saber. O poder de todos, que temos de supor que se decla-
rou em favor da lei, mantém dentro dos seus limites
o poder de cada indivíduo; e assim, portanto, se atinge o
mais perfeito equilíbrio do Direito.
Mas logo que a lei é transgredida, o transgressor fica,
por esse facto, excluído da lei e o seu poder excluído do
poder da lei. A sua vontade deixa de ser uma vontade coin-
cidente com a vontade coletiva, tornando-se, ao invés, uma
vontade privada.
436 Do mesmo modo, o lesado está excluído da execução
da vontade coletiva: precisamente porque é o lesado, a sua
vontade de obter uma reparação por parte do lesante e de
que es te seja sancionado deve considerar-se como a sua
vontade privada, não como a vontade coletiva. Então, de
acordo com a hipótese, a sua vontade privada é mantida
dentro dos seus limites unicamente pelo poder da vontade
coletiva. Se ele recebesse agora em mão a direção do poder
para executar aquilo que é, previsivelmente, a sua vontade
privada, esta sua vontade privada já não estaria limitada
pelo poder, o que é contrário ao contrato. Por conseguinte,
só o terceiro poderia ser juiz, pois que dele deve supor-se
que o litígio no seu conjunto só lhe interessa unicamente
na medida em que põe em risco a segurança comum; pois
que nenhuma vantagem privada pode trazer-lhe o facto
de que seja um ou outro a conservar a posse da coisa em
litígio; por conseguinte, tem de se admitir que a vontade
do terceiro, no que a este litígio diz respeito, é exclusiva-
mente a vontade necessária, coletiva, sem qualquer influên-
cia da sua vontade privada, dado que aqui não é, em abso-
luto, dela que se trata nem há lugar à sua aplicação.

V Mas é sempre possível que o terceiro, em razão de


uma inexplicável predileção por uma das partes, ou porque
daí resulte efetivamente um benefício para ele, ou, inclusi-

184
vamente, por erro, profira uma sentença injusta e se alie ao
queixoso para a executar. Ambos ter-se-iam aliado para a
injustiça e a supremacia do poder não estaria já do lado da
lei. Ou, para expressar isto em termos mais gerais:
É possível que numa associação como a que foi estabe-
lecida, várias pessoas se aliem contra uma outra ou contra
várias mais fracas para as oprimir com um poder coletivo.
Ainda que a sua vontade seja, neste caso, a vontade que é
comum a eles, aos opressores, não é a vontade coletiva, pois
os oprimidos não contribuíram com a sua vontade; não se
trata da vontade coletiva anteriormente erigida em lei, para
cuja aprovação tinham concorrido também aqueles que são
agora oprimidos. Não se trata, por conseguinte, da vontade
da lei, mas de uma vontade dirigida contra a lei, que, toda-
via, goza de supremacia. Enquanto continua a ser possível
uma tal associação contra a lei, a favor da injustiça, a lei
não goza da supremacia de que deve gozar e o nosso pro-
blema não está solucionado.
Como deve fazer-se para tornar impossível uma tal
associação?
Querer o fim comum ou querer o Direito é algo que,
de acordo com a nossa pressuposição, está em cada indiví-
duo condicionado pelo querer do seu fim privado; o desejo
da segurança pública está condicionado pelo desejo da sua
própria segurança. Teria, por conseguinte, de se encontrar
uma ordem de coisas tal que nenhuns indivíduos pudessem
unir-se contra outros sem renunciar à sua própria segu-
rança, e isso em termos de uma lei infalível.
Ora, é óbvio que, se depois de ter tido lugar a associa- 437
ção, for possível, por uma vez que seja, que um grupo de
indivíduos num Estado se consocie contra cidadãos indivi-
duais e os oprima, isto será igualmente possível uma
segunda e uma terceira vez; por conseguinte, todo aquele
que se aliar agora aos opressores deve temer que, de acordo

185
com a presente máxima, lhe possa vir também a caber a vez
a ele de ser oprimido. Mas, no entanto, é possível que cada
um pense: a mim não me caberá a vez; pelo menos, serei
suficientemente esperto para compor as coisas de modo a
estar sempre do lado dos mais fortes e nunca do lado dos
mais fracos .
É preciso suprimir por completo a possibilidade de
assim pensar. Cada um tem de perceber, até estar disso con-
victo, que da opressão e do tratamento contrário ao Direito
de um só cidadão que seja seguir-se-á seguramente o mesmo
para SI.
Uma convicção segura só é suscetível de ser produzida
por uma lei. Por conseguinte, a violência injusta, pelo facto
de ter tido lugar uma vez só e num único caso, teria de tor-
nar-se lícita. Precisamente porque algo aconteceu uma vez,
de agora em diante qualquer um deveria ter o perfeito
direito a fazer o mesmo. (Em virtude da fórmula acima
enunciada: todo o ato permitido deveria necessariamente
tornar-se lei e, por essa via, a lei deveria necessariamente,
em todas as vezes, tornar-se ato.)
(Esta proposição está, para além do mais, fundada na
natureza das coisas. A lei é igual para todos; portanto,
aquilo que, de acordo com ela, corresponde a um deve
necessariamente corresponder a todos.)
Mas esta proposta não é exeq~ível: pois que, por essa
via, o Direito e a justiça são suprimidos para todo o sempre
pela própria lei. Precisamente por isso, não pode figurar na
lei do Direito a proposição que a injustiça deve ser decla-
rada justa; mas apenas que a permissão dada à injustiça
num único caso não pode, pura e simplesmente, ter lugar,
uma vez que da permissão da injustiça num único caso se
seguiria necessariamente a sua licitude, não só no ra-
ciocínio, mas na realidade. A que arranjos há que proceder
para que assim seja é algo que se tornará de imediato evi-

186
dente, se quisermos considerar uma vez mais, de mais
perto, o conceito, acima apresentado, de um poder da lei.
Vamos, já em seguida, ver como deverá isto ocorrer, se con-
siderarmos, uma vez mais, o princípio acima enunciado.
O poder coercitivo, disse-se, deve ser um poder tal
que a sua autoconservação esteja condicionada pela sua efi-
cácia constante; por conseguinte, se deixa de atuar uma
única vez fica destruído para sempre; a sua existência em
geral depende da sua existência ou manifestação em cada caso
particular. e uma vez que esta ordem de coisas não poderia
pôr-se em campo por si própria, ou, pelo menos, não pode-
ria ter lugar em conformidade a uma regra e de forma inin-
terrupta, teria de ser introduzida por uma lei fundamental 438
do contrato social.
A ordem de coisas requerida será introduzida pelo
decreto que estabelece que a lei não deve ter validade jurí-
dica para o que se segue, sem que tudo o que antecede
esteja decidido de acordo com ela: a ninguém pode ser feita
justiça em resultado de uma lei antes de se ter feito justiça
a todos aqueles que foram ofendidos anteriormente e que
apresentaram queixa com base na mesma lei; ninguém
pode ser, em conformidade a uma lei, punido por um
delito, antes de terem sido descobertos e punidos todos os
delitos precedentes cometidos contra esta lei. - Mas, uma
vez que a lei é uma única, não poderia, em absoluto, pro-
nunciar-se em nenhuma das suas partes antes de ter satis-
feito todas as suas obrigações anteriores. Que assim seja é
algo que tem de constituir tarefa da própria lei: a lei pres-
creve-se a si própria uma lei e uma lei deste género, que
incide sobre si própria, chama-se uma lei constitucionaL

VI. Se a ordem indicada está ela própria, na aplicação


do poder público, assegurada por uma lei de coação, estão
firmemente fundados a segurança universal e o império

187
duradouro do Direito. Mas como é que esta ordem deve,
ela própria, ser assegurada?
Se, como aqui continua a pressupor-se, a coletividade
no seu conjunto tem nas suas mãos o poder executivo, que
outro poder deve forçá-la a observar a sua própria lei sobre
a sequência temporal no exercício desse poder? Ou, supo-
nhamos que a coletividade continuava a observar durante
um certo espaço de tempo a Constituição, aquela lei cons-
titucional, e que, ao não ser capaz ou ao não querer fazer
justiça a alguém que foi prejudicado, bloqueia efetivamente
a administração da justiça: as desordens que daí resultariam
seriam a breve prazo tão grandes que a coletividade, por
necessidade, viria a agir contra a sua lei fundamental e
lançar-se-ia rapidamente sobre os novos delitos apenas, sem
ter castigado os antigos. Esta paralisia das leis seria a puni-
ção pela sua indolência, negligência ou parcialidade; e
como deveria a coletividade ser forçada a infligir-se a si
própria esta punição e a suportá-la? - A coletividade seria,
em relação à administração do Direito, o seu próprio juiz.
Enquanto a insegurança não se propagasse em larga escala,
deixaria passar muita coisa, por comodismo ou parcialidade;
e se a insegurança aumentasse e passasse a ser sentida pela
maioria, a coletividade lançar-se-ia então com um rigor
injusto e apaixonado sobre os criminosos tornados mais
ousados pela indulgência demonstrada até então e esperando
também para si a mesma indulgência, criminosos cuja má
439 fortuna os tinha lançado precisamente nesta época em que
o povo começava a estar vigilante; até que a intimidação
chegasse ao excesso e o povo voltasse de novo a adormecer e
o ciclo voltasse ao seu ponto de partida. Uma tal Cons-
tituição, a Constituição democrdtica, no significado mais
genuíno do termo, seria a mais insegura que pode existir,
porquanto não só haveria que temer continuamente as vio-
lências de todos, como se se estivesse fora do Estado, como

188
também, de tempos a tempos, a cólera cega de uma turba
exaltada, que procederia de modo injusto em nome da lei.
O problema suscitado não está, por conseguinte, ainda
solucionado e a situação das pessoas na Constituição des-
crita é tão insegura como o seria sem ela. A verdadeira
razão disto é que, em relação à administração do Direito
em geral, a coletividade é ao mesmo tempo juiz e parte.
Indicou-se, por essa via, a solução. Sobre a questão de
saber como deve em geral ser administrada a justiça, juiz e
parte devem ser separados e a coletividade não pode ser
ambas as coisas ao mesmo tempo.
A coletividade não pode ser parte neste pleito. Dado
que é e deve ser a coletividade quem tem mais poder, não
poderia haver um juiz acima de si que lhe pudesse impor
pela força o seu veredito. A colectividade teria de se subme-
ter voluntariamente ao seu veretido. Ora, a justiça tem para
a coletividade um valor que é superior a tudo o resto;
porém, se pudesse pressupor-se que é isto que em regra
acontece, não haveria necessidade de nenhum juiz e o juiz
não seria, de facto, juiz, mas simplesmente um conselheiro.
Se a coletividade não quer o Direito, não se submete, pois
não pode ser coagida; acolhe com desvario ou falta de con-
fiança quem assim, contra a sua vontade, a admoesta e con-
tinua, como dantes, a ser o juiz de si própria.
Em resumo: saber se o poder do Estado é adequada-
mente exercido é matéria que há que julgar de acordo com
uma lei. Neste pleito, não pode a mesma pessoa (física ou
mística) ser, ao mesmo tempo, juiz e parte. Mas a coletivi-
dade, que neste pleito tem necessariamente de ser uma de
duas coisas, não pode ser parte; não pode, por conseguinte
- é esta a importante conclusão a que chegamos - deter o
poder público nas suas mãos; pois, de contrário, como
parte, teria de poder comparecer perante um tribunal de
escalão superior.

189
(Tudo depende do facto de que nos possamos conven-
cer do carácter concludente do raciocínio efetuado, pois
contém a dedução rigorosa pela razão pura da necessidade
absoluta de uma representação, dedução que, tanto quanto
me é dado conhecer, não foi ainda exposta em parte
alguma; o raciocínio mostra que a representação é uma ins-
tituição não só útil e sábia, mas também exigida, em abso-
luto, pela lei do Direito e que a democracia, na acepção
440 do termo acima explicitada, é uma Constituição não ape-
nas impolítica, mas, pura e simplesmente, contrária ao
Direito(27l . Que a coletividade não possa ao mesmo tempo
ser juiz e parte é algo que não deve suscitar muitas dúvidas;
mas talvez as suscite a nossa outra afirmação, de que devem
ser prestadas contas sobre o exercício do poder público. Mas
isto depreende-se do que foi dito até agora. Cada indivíduo
que entra no Estado deve estar convencido da impossibili-
dade de vir alguma vez a receber um tratamento contrário à
lei. Mas esta impossibilidade não existe se o administrador
da lei não puder, ele próprio, ser levado a prestar contas.)
A coletividade teria, portanto, que alienar a adminis-
tração do poder público e transferi-la para uma única ou
várias pessoas em particular, que, no entanto, continuariam
a ser responsáveis perante ela pelo exercício do poder
público. Uma Constituição na qual os administradores do
poder público não têm responsabilidade é um despotismo.
É, por conseguinte, uma norma fundamental de toda
a Constituição política conforme à razão e ao Direito que o
poder executivo (que compreende, como poderes insepará-
veis, o poder judicial e o poder executivo em sentido
estrito) esteja separado do direito de inspecionar e de julgar
sobre o modo como o poder executivo é administrado, direito
esse a que proponho chamar eforato, no sentido mais amplo
do termo; que este último poder seja detido pela coletivi-
dade no seu conjunto e que o primeiro seja confiado a pes-

190
soas determinadas . Nenhum Estado pode ser governado
despótica ou democraticamente.
(Tem-se falado muito sobre a divisão dos poderes -
pouvoirs, das partes de um único e mesmo poder público.
Disse-se que o poder legislativo deve ser separado do execu-
tivo; mas parece haver alguma indeterminação nesta propo-
sição.
É verdade que para cada pessoa determinada a lei
positiva determinada é, quanto à forma, uma lei, e é obriga-
tória exclusivamente em virtude de a pessoa se submeter à
lei, quer dizer, pelo facto de declarar: quero viver neste
Estado determinado, que tem esta população determinada,
este território, estes meios de subsistência, etc. Mas, pelo
menos a matéria da lei civil (de outros ramos da legislação
haveremos de falar em particular) resulta da mera pressupo-
sição de que este determinado conjunto de pessoas, neste
lugar determinado querem viver em comum de acordo com
o Direito; e cada uma delas, ao pronunciar as palavras
"quero viver entre vós", submete-se a todas as leis justas que
possam alguma vez vir a ser dadas nesse Estado. Uma vez
que incumbe aos administradores do poder executivo man-
ter o Direito em geral e que estes são por tal (pelo facto de
que o Direito impere) responsáveis, tem de lhes ser con-
fiada a responsabilidade de velar pelos meios de realização
do Direito; e, por conseguinte, também a responsabilidade
de propor decretos, que não são propriamente leis novas, 44 1
mas apenas aplicações mais determinadas da única lei fun -
damental, que reza assim: este conjunto determinado de
pessoas deve viver em comum em conformidade com o
Direito. Se os detentores do poder aplicarem i,ncorreta-
mente esta lei fundamental, surgirão a breve trecho desor-
dens, cuja responsabilidade lhes é imputável; estão, por
conseguinte, forçados a promulgar leis justas, susceptíveis
de receber aprovação de qualquer ser inteligente.

191
É completamente vã, e, até mesmo, só aparentemente
possível, a separação entre o poder judicial e o poder execu-
tivo (este último tomado no sentido estrito do termo) . Se o
poder executivo tem de executar, sem objetar, o veredicto
do poder judicial, é nas mãos do próprio juiz que está colo-
cado o poder ilimitado e o dois poderes só aparentemente
estão separados nas pessoas; mas a pessoa que é o executor
não tem, em absoluto, nenhuma vontade, mas somente
uma força física que é guiada por uma vontade estranha.
Contudo, se o poder executivo tiver direito de veto, então é
ele próprio poder judicial, e até mesmo poder judicial em
última instância, e, de novo, os dois poderes não estão
separados. - De acordo com as nossas investigações, devem
separar-se o poder executivo, no sentido mais lato do
termo, e o eforato. O primeiro engloba a totalidade
do poder público em todos os seus ramos; mas tem de
ser tornado responsável pela sua administração perante o
eforato (cujo conceito continua aqui muito longe de estar
determinado por completo.)
As pessoas a quem se confia o poder executivo são, de
acordo com a classificação habitual, ou uma só, na monar-
quia conforme ao Direito e à lei, ou então um corpo orga-
nizado pela Constituição, na república (no sentido estrito
do termo): ou, mais precisamente, uma vez que um só
homem não pode fazer tudo, é sempre um corpo quem
tem em mãos o poder executivo; a este propósito, a única
diferença entre a monarquia e a república consiste em que
se não há lugar a unanimidade, o conflito ou é dirimido
pelo voto de um presidente vitalício (o monarca), do qual
não cabe recurso, ou por um voto coletivo, por exemplo,
um voto por maioria. Neste último caso, o presidente vita-
lício é uma pessoa mística e, frequentemente, também uma
pessoa variável (quer dizer, não são sempre as mesmas pes-
soas físicas as que formam a maioria mediante o concurso

192
dos seus votos e que resolvem o litígio sem possibilidade de
recorrer da sua decisão).
Além disso, os administradores do poder executivo ou
são pessoalmente eleitos ou não são. No primeiro caso,
ou são eleitos todos ou só alguns. Na democracia (no sentido
estrito do termo, quer dizer, na democracia que tem uma
representação e que é, por isso, uma Constituição legítima) ,
os administradores do poder executivo são eleitos direta-
mente pela coletividade. Se todas as pessoas investidas de 442
autoridade são eleitas diretamente pela coletividade, esta-
mos perante uma democracia pura, caso contrário, estamos
perante uma democracia mista. O corpo dos detentores do
poder pode também completar-se a si próprio por eleição,
na aristocracia: integralmente, na aristocracia pura; só em
parte, na aristocracia mista ou aristodemocracia. Também é
possível eleger pessoalmente um presidente vitalício do
governo, num reino eletivo. Em rodos estes casos, a eleição
realiza-se ou com base na coletividade no seu conjunto ,
caso em que qualquer cidadão tem capacidade eleitoral, ou
apenas com base numa parte dela. O direito de voto é, por
conseguinte, ou limitado ou ilimitado. Uma verdadeira
limitação do direito de voto somente se poderia fundar no
nascimento como critério de atribuição de capacidade elei-
toral, pois que se a qualquer cidadão é possível obter qual-
quer dignidade no Estado, mas só de modo gradual pode
aceder às dignidades mais elevadas, a eleição é limitada,
não de maneira absoluta, mas somente relativa. Mas se o
direito de voto é limitado de maneira absoluta e a capaci-
dade eleitoral se funda no nascimento, a Constituição é
então uma aristocracia hereditária; e isto conduz-nos ao
segundo caso apresentado acima como possível, a saber, que
os representantes não sejam eleitos cada um pessoalmente.
Pode haver representantes por nascimento; ou porque
obtêm a representação exclusivamente em razão do nasci-

193
mento - por exemplo, o príncipe herdeiro na monarquia
hereditária; ou porque, em razão do seu nascimento, só eles
são elegíveis para os cargos públicos de mais elevado escalão
- por exemplo, a nobreza, em geral, nas monarquias, os
patrícios, em particular, nas repúblicas governadas por uma
aristocracia hereditária.
Todas estas formas políticas são juridicamente institu-
cionalizadas por via da lei, isto é, por via da vontade origi-
nária da coletividade que se dá uma Constituição. Todas
estas formas políticas são conformes ao Direito, e desde que
exista um eforato e que este esteja organizado de forma
apropriada e seja eficaz, todas elas podem produzir e man-
ter, no Estado, um Direito universal.
A questão de saber qual é para um determinado
Estado a melhor forma de organização do governo não é
uma questão respeitante à doutrina do Direito, mas à polí-
tica; e a resposta a esta questão depende da investigação
sobre qual é a forma de organização do governo onde o
eforato atuará com maior efetividade.
Onde o eforato não foi ainda introduzido - ou onde
não pode ser, porque a maioria dos homens continuam
ainda num estado de barbárie -, a representação hereditária
é a mais adequada, para que o iníquo detentor do poder,
que não tem temor a Deus nem tem que recear nenhum
tribunal humano, ao menos receie a vingança que, em razão
dos seus crimes, se acumula sobre a sua eventualmente ino-
443 cente descendência e que recairá seguramente sobre a cabeça
desta, de acordo com o curso necessário da natureza.

VII. As pessoas a quem a coletividade ofereceu o exer-


cício do poder público devem tê-lo aceite e ter-se compro-
metido a responsabilizar-se perante o seu tribunal pelo exer-
cício deste poder; caso contrário, não seriam representantes
e o poder não lhes teria sido transmitido.

194
Esta aceitação só pode acontecer de forma voluntária:
e ambas as partes têm de se pôr de acordo de forma amigá-
vel. Pois que, embora esteja ínsita na lei do Direito a neces-
sidade da existência do poder público e de administradores
expressamente encarregues de o exercer, havendo, por con-
seguinte, um direito a coagir cada indivíduo a dar o seu
assentimento à instituição de um tal poder, a lei do Direito
nada diz sobre a questão de saber a que pessoas em particu-
lar deve ser confiado este poder.
O nosso raciocínio segue aqui exatamente o mesmo
caminho que seguimos acima a propósito da investigação
do contrato de propriedade. Uma vez que a lei do Direito
não é, em absoluto, aplicável sem a instituição de um
poder público, mas este não é possível sem ser transferido
para determinadas pessoas, existe um direito de coação para
que cada indivíduo dê o seu voto específico para a nomea-
ção destas pessoas; e, além disso, para que decida, caso a
escolha recaia sobre ele, se quer ou não aceitar o cargo.
A eleição - quer dizer, a determinação de como, em geral,
deve a representação ser neste Estado preenchida, a parte da
Constituição sobre esta matéria - tem de ser estabelecida
mediante o acordo absolutamente unânime de todos. Pois
que, embora exista em geral um direito a coagir cada indi-
víduo a que entre numa Constituição civil, não existe, no
entanto, um direito a coagi-lo a que entre precisamente
nesta. Ora, uma vez que o Estado se torna num determi-
nado Estado por intermédio das pessoas que detêm o poder
e por intermédio da lei que estabelece como deve ser elei-
tos, não existe nenhum direito a forçar o outro a reconhe-
cer também como seus representantes aquele ou aqueles
que foram escolhidos por mim . Se não podem pôr-se de
acordo, o grupo mais numeroso e, por isso, o mais forte
manter-se-á neste território, e os outros, uma vez que já
não poderão ser nele tolerados por muito mais tempo,

195
escolherão entre aderir à maioria - com o que a eleição se
torna unânime - ou abandonar o terreno e, por conse-
guinte, passar a deixar de contar como membros desta asso-
ciação, com o que a eleição se volta a tornar unânime.
Assim como, em geral, um contrato se torna inviolável e
inalterável pelo facto, mas só unicamente por este facto, de
444 que sem ele não seria possível uma relação jurídica, o
mesmo acontece com o contrato no qual o Estado transfere
o poder executivo para pessoas determinadas, contrato que
propomos chamar contrato de transmissão de poderes.
Quem alguma vez assumiu o poder público não pode
unilateralmente renunciar a ele, mas apenas com o assenti-
mento da coletividade, porque com a sua renúncia o impé-
rio do Direito poderia ficar pelo menos interrompido ou
até tornar-se completamente impossível, se o seu posto não
pudesse voltar a ser convenientemente ocupado. Tão-pouco
pode a coletividade rescindir unilateralmente o contrato
com ele, pois é a administração estadual que define a sua
posição social no Estado, a posse que lhe foi atribuída e se
é essa a posse que, em virtude do contrato, lhe cabe, então
ele não tem nenhuma outra. Quando foi assinalada a todos
os cidadãos a sua propriedade, a ele foi-lhe assinalada pes-
soalmente esta propriedade; por conseguinte, a rescisão uni-
lateral do contrato tornaria impossível qualquer relação jurí-
dica entre ele e a comunidade política. Mas se está, de boa
mente, disposto a aceitar a destituição e a acordar com a
coletividade uma indemnização, pode muito bem fazê-lo.
Além disso, uma vez que o administrador do poder
público se torna responsável, neste contrato, pelo Direito e
pela segurança, tem necessariamente de reservar para si o
poder e o livre uso deste que lhe pareçam e venham em
cada momento a parecer imprescindíveis para esse fim: e ele
tem de dispor desse poder. Deve assistir-lhe o direito de
determinar em que medida deve cada um contribuir para a

196
promoção do fim do Estado; e de proceder com este poder
apenas de aco rdo com o seu critério e a sua convicção
(veremos a breve trecho em que medida deve, no entanto,
este poder ser limitado). Logo, o poder do Estado deve
estar posto, sem qualquer restrição, à sua livre disposição,
como, de resto, se infere do conceito do poder de Estado.
O poder público deve, em cada caso, fazer justiça a
cada um e repelir e castigar a injustiça. Assume essa respon-
sabilidade, e um ato de violência que não foi descoberto
tem para o Estado e para o próprio poder público as mais
nefastas consequências. Aqueles que administram o poder
público devem, portanto, ter o poder e o direito de vigiar a
conduta dos cidadãos; têm o poder de polícia e a legislação
de polícia.
Do que acima foi dito infere-se, desde logo, que cada
um submeteu no contrato social ao juízo do Estado, sem
qualquer reserva, a sua jurisdição e, tendo sido agora insti-
tuído um administrador do poder do Estado, depreende-se
que o submete este último, que é necessariamente, por con-
seguinte, um juiz do qual não pode haver lugar a recurso.

VIII. Sob que lei coerciva deve, então, ser colocado


este poder supremo do Estado, para que lhe seja impossível
promover outra coisa que não seja o Direito, e para que, ao
mesmo tempo, promova necessariamente, em todos os 445
casos, o Direito?
Enunciou-se acima, em termos gerais, o seguinte prin-
cípio: deve ser fisicamente impossível que o poder público
ou, aqui, os seus administradores tenham uma outra von-
tade que não seja a do Direito. O meio de o conseguir foi
já igualmente indicado num plano geral: o seu fim privado,
o fim relativo à sua própria segurança e ao seu bem-estar
deve estar vinculado ao fim comum e ser alcançável unica-
mente se este último é alcançado. Não devem poder, em

197
absoluto, ter nenhum outro interesse que não seja o de pro-
mover o fim comum.
O Direito é meramente forma4 por conseguinte, não
há de poder interferir nenhum interesse material daqueles
que administram o poder público nos vereditos judiciais,
nenhum interesse em que estes vereditos, neste ou naquele
caso, vão num determinado sentido. O seu único interesse
deve ser na conformidade desses vereditos ao Direito e não
se se pronunciam neste ou naquele sentido.
Eles têm, portanto, em primeiro lugar, de ser total-
mente independentes de todas as pessoas privadas no que
aos seus fins privados diz respeito, isto é, em relação às suas
necessidades. Hão de ter proventos seguros e abastados, de
tal modo que nenhuma pessoa privada possa acenar-lhe
com benefícios e que não tenha qualquer significado aquilo
que se lhe possa oferecer.
Os administradores do poder executivo, para não
serem induzidos à parcialidade, devem em matéria de ami-
zades, laços e afeições ter tão poucas quanto possível.
O princípio enunciado acima para impor um Direito
igual para todos os indivíduos, em todos os casos, foi o
seguinte: a lei rege-se de acordo com a sequência temporal
e não decide sobre nenhum caso futuro antes de ter tratado
dos casos precedentes. Agora que foi estabelecido um sis-
tema regular de justiça, que está sempre ocupado, porven-
tura, com várias coisas ao mesmo tempo; e que alguns lití-
gios podem ser mais fáceis de solucionar do que outros, e
como, em geral, o importante é evitar atrasos na adminis-
tração da justiça, esta lei, nos termos em que foi enunciada,
tem de ser revogada. Mas como o sistema de justiça tem de
ser sempre capaz de provar que está efetivamente em condi-
ções de investigar todas as queixas que lhe são apresentadas;
além disso, é absolutamente necessário que seja estabele-
cido, de acordo com o tipo de litígio em causa, um prazo

198
determinado, dentro do qual cada pleito deve vir a ser con-
cluído; caso contrário, a lei, de acordo com o princípio
acima enunciado, viria a perder o seu poder. Sem esta dis-
posição das coisas, não se poderia concluir se foi efetiva-
mente feita justiça a cada um; e não haveria lugar sequer a
queixa por denegação de justiça, na medida em que o juiz
poderia remeter ao silêncio os demandantes com uma dila-
ção da solução para momento futuro.
Mas eis um critério seguro para avaliar se o Direito é
administrado como deve ser: os juízos e todos os procedi-
mentos dos detentores do poder não podem nunca contra-
dizer-se; se procederam assim uma vez, num certo caso,
têm de continuar a proceder sempre assim no mesmo caso. 446
Cada uma das suas ações públicas deve tornar-se uma lei
inviolável. É isto que os liga ao Direito. Não podem nunca
querer proceder injustamente, pois que, de ora em diante,
num caso idêntico, deveriam sempre fazê-lo e daí surgiria, a
breve trecho, a insegurança mais evidente. Ou se são coagi-
dos a renunciar à sua primeira máxima, qualquer um vê
imediatamente que o seu procedimento foi injusto.
Para que esta avaliação (de se o Direito é administrado
como deve ser) seja possível, todas as deliberações do poder
estadual, com todas as circunstâncias e os fundamentos da
decisão, devem, sem exceção, ter a máxima publicidade;
pelo menos, depois de terem sido concluídas. Pois pode
acontecer que a autoridade, em assuntos de polícia, tenha
de atuar aqui e ali em segredo, para favorecer o fim da
segurança pública, de cuja consecução a autoridade é res-
ponsável perante a coletividade. Isto deve ser-lhe permitido,
mas, uma vez alcançado esse fim, não pode continuar a
manter em segredo o seu procedimento. Mas o seu fim está
atingido, quando profere a sentença judicial e a executa.

199
IX. Se os detentores do poder desempenham o seu
cargo de acordo com as leis indicadas, então reinam o
Direito, a justiça e a segurança e a cada um está plena-
mente garantido aquilo que é seu com a sua entrada no
Estado. Mas, uma vez que não pensamos, de modo algum,
remeter-nos à boa-fé e à confiança, como é que os detento-
res do poder devem ser eles próprios forçados a ater-se
a estas leis? Este é o último ponto do problema a solucio-
nar, o problema de uma Constituição política conforme à
razão.
O poder executivo delibera em última instância; não
existe recurso em relação à decisão final que profere e inva-
lidar os seus veredictos ou paralisar a execução dos mesmos
são coisas que a ninguém é permitido, uma vez que esta
irrecorribilidade é condição de toda a relação jurídica, e são
coisas que ninguém consegue, uma vez que o poder execu-
tivo tem nas suas mãos o poder supremo, frente ao qual
todo o poder privado é infinitamente pequeno. O Direito
presuntivo pronunciou-se na pessoa dos juízes declarados
como infalíveis e constituiu-se como Direito seguro. Deve-
mos deixar-nos ficar por aqui e o veredito judicial deve
infalivelmente produzir o seu efeito no mundo sensível.
As únicas provas claras de que a regra fundamental do
Direito foi violada são as duas seguintes: 1. Que a lei não
tenha aplicação em caso algum durante um determinado
período; 2. Que os administradores do poder público se
contradigam a si próprios ou que, para não se contradize-
rem, tenham de cometer injustiças manifestas.
Demonstrou-se ainda que só a coletividade é que pode
julgar os administradores do poder executivo. Mas a difi-
culdade é a seguinte: onde é que está a coletividade e o que
447 é a coletividade? É algo mais do que um mero conceito?
Ou, se deve ser algo mais do que um mero conceito, como
deve então tornar-se efetiva?

200
Perante o tribunal do poder público, e uma vez que
este tribunal continua a existir de modo ininterrupto, todos
os membros do Estado são apenas particulares e não a cole-
tividade: e cada um deles está submetido permanentemente
à autoridade suprema. A vontade de cada um deles é
somente a sua vontade privada e a única expressão da
vontade coletiva é precisamente a vontade da autoridade
suprema. A coletividade não tem nenhuma vontade autono-
mizada e não há coletividade que se tenha tornado efetiva
antes de ter separado a sua vontade da vontade do poder
executivo e de se ter retratado da sua declaração de que a
vontade do poder executivo é sempre a sua própria vontade.
Mas como é que isto pode acontecer? A nenhum par-
ticular é permitido dizer: a coletividade deve agrupar-se,
todos os indivíduos que eram até agora somente particula-
res devem reunir-se e formar uma coletividade; pois que se
a vontade deste indivíduo náo está de acordo com a von-
tade dos detentores do poder, vontade que continua a
representar a vontade coletiva, então ela é uma vontade pri-
vada, uma vontade que se subleva e a contradiz, equiva-
lendo, portanto, a uma rebelião e como tal deve ser de ime-
diato punida. Mas esta vontade não estará nunca de acordo
com a vontade dos detentores do poder e estes não quere-
rão nunca reunir a coletividade. Estes, ou têm consciência
de que a sua administração é justa, sendo assim, completa-
mente contrário à vontade coletiva originária que os indiví-
duos sejam perturbados sem necessidade nos seus assuntos
privados e que ocorra uma suspensão no curso do Direito;
ou têm consciência da sua injustiça, e entáo náo há motivo
para acreditar que abandonarão o poder que agora ainda
têm em mãos e que serão eles próprios a convocar o seu
juiz. Continuam, portanto, a ser os seus próprios juízes;
não têm de temer um juiz acima deles, porque depende
deles próprios que isso se torne realidade; e a Constituição

201
continua, antes e depois, a ser despótica. Em suma: só a
própria coletividade pode declarar-se como coletividade;
deveria, por conseguinte, ser necessariamente coletividade
antes de o ser, o que é, como se pode ver, contraditório.
A contradição só pode ser eliminada do seguinte
modo: o povo é, de antemão, declarado coletividade pela
Constituição, num determinado caso.
Mediante esta lei constitucional, poderia ser ordenado
- este é o caso que vem à mente de qualquer um em pri-
meiro lugar- que o povo se reúna regularmente, em certos
e determinados momentos, e que faça com que lhe sejam
prestadas contas pelos magistrados da administração do
448 Estado. Um tal arranjo é exequível em pequenos Estados,
especialmente nos Estados republicanos, onde a população
não viva muito dispersa, sendo, por conseguinte, fácil e
rápido agrupar-se, e onde também a administração do
Estado é simples e fácil de controlar. Mas, mesmo aqui,
este grande feito jurídico acaba, com a habituação a ele,
por perder alguma da sua dignidade; os indivíduos têm
tempo de tomar medidas e o resultado dessas medidas é
geralmente menos a vontade coletiva do que a vontade pri-
vada de partidos intriguistas e sedentos de honrarias. Mas
num Estado de dimensão considerável - e é desejável, sob
muitos aspectos, que os Estados não sejam pequenos -,
mesmo abstraindo do facto de que nele os referidos abusos
haveriam de manifestar-se também, só que de uma maneira
mais extensa e perigosa, essa lei constitucional não seria
sequer exequível, na medida em que, por causa da perda de
tempo necessariamente associada à realização dessas assem-
bleias e a perturbação causada aos negócios privados, a
preocupação em proteger-se contra um tal estorvo tornar-
-se-ia ela própria o maior estorvo para o povo.
Pode, por conseguinte, estabelecer-se como princípio:
a coletividade não há de ser convocada nunca sem necessidade;

202
mas tão logo surja essa necessidade, ela tem de reunir-se de
imediato e tem de poder e querer pronunciar-se.
Nunca há necessidade de que a coletividade se reúna,
nem ela o quererá fazer, antes de o Direito e a lei terem
cessado de operar; mas, nesse caso, terá de o fazer e fá-lo-á
seguramente.
Num Estado ordenado em conformidade com o
Direito, ao direito de cada indivíduo têm de estar ligados
o Direito e a lei em geral; por isso, a lei tem de ser integral-
mente revogada nos casos em que manifestamente não ope-
rou como devia (quer dizer, quando não se pronunciou
sobre um pleito dentro do prazo estabelecido, ou quando o
exercício do poder se encontra em contradição com ela pró-
pria, ou então quando a injustiça e a violência são evi-
dentes) .
Quem deve, então, julgar se estamos perante um tal
caso? Não deve ser a coletividade, uma vez que não está
reunida; também não deve ser o poder estadual, pois seria
então juiz em causa própria. Muito menos aquele que acre-
dita ter sofrido uma injustiça, pois ele seria igualmente juiz
em causa própria. Logo, tem de ser expressamente instituído
pela Constituição um poder especial para esta apreciação.
Este poder teria de ter a supervisão permanente sobre
a atuação do poder público e, por conseguinte, podemos
chamar-lhe eforato.
O poder executivo não é responsável perante mais
ninguém do que a coletividade reunida; os éforos não
podem, portanto, fazer comparecer os detentores do poder
perante o seu tribunal, mas devem observar constantemente
o curso dos assuntos e devem ter também direito a recolher 449
informações, sempre que o puderem fazer. Não é permitido
aos éforos impugnar os juízos dos detentores do poder, uma
vez que deles não cabe recurso. Tão pouco lhes é permitido
emitir diretamente vereditos em qualquer causa, uma vez

203
que o magistrado é o único juiz no Estado. Os éforos não
têm, portanto, nenhum poder executivo*.
Mas têm um poder absolutamente proibitivo, não para
proibir a execução desta ou daquela deliberação jurídica
particular, pois que então seriam juízes e o poder executivo
não seria irrecorrível, mas para pôr termo, por inteiro, ao
curso do Direito de um certo momento em diante, para
suspender o poder público no seu todo e em todas as suas
partes. Proponho que se chame a esta suspensão de todo
o poder jurídico de interdito do Estado (por analogia com o
interdito eclesiástico. A Igreja inventou há muito este meio
infalível para impor a obediência àqueles que a devem ter).
É, por conseguinte, um princípio da Constituição
política conforme ao Direito e à razão que ao lado do
poder absolutamente positivo seja estabelecido um poder
absolutamente negativo.
Uma vez que os éforos não têm nenhum poder nas
suas mãos, enquanto de o poder executivo dispõe de um
poder infinitamente superior, poder-se-ia perguntar como é
que os éforos poderiam coagir o poder executivo a suspen-
der as suas funções mediante uma simples ordem sua. Mas
esta coação encontra-se por si própria, pois que, com o
anúncio público da suspensão, tudo o que o executivo
decide desde esse instante é declarado inválido e juridica-
mente ineficaz; e é natural que, de ora em diante, nenhuma
parte condenada por ele queira submeter-se ao seu juízo,
assim como nenhuma parte que tenha ganho em tribunal
vai contar com esse juízo.

* Neste ponto, o eforato (no sentido estrito do termo), que foi aqui deduzido da
razão pura, é completamente distinto do eforato previsto na Constituição de
Esparta, na inquisição política em Veneza e simil ares. Os tribunos do povo
da República romana têm com o eforato aqui ap resentado a maior das seme-
lhanças.

204
Além disso, com o interdito, os até agora administra-
dores do poder executivo são declarados meros privados e
todas as suas ordens para usar a força são declaradas juridi-
camente ineficazes. Todo o ato de violência cometido por
ordem sua a partir do momento do interdito é resistência
contra a vontade coletiva declarada pelos éforos e, por con-
seguinte, rebelião, e como tal deve ser punido e sê-lo-á com
toda a certeza, tal como vamos ver em seguida.
Devem os magistrados esperar pessoalmente pela sua
insubordinação contra o interdito uma pena mais dura do 450
que aquela em que incorrem se são levados a juízo perante
a coletividade sem ter havido insubordinação? Tal não pode
acontecer, pois incorrem na pena máxima: mas, com a
insubordinação, eles dão a causa já como perdida, causa
que eles ainda podiam vir a ganhar; e fazem recair sobre si,
mesmo antes de qualquer investigação sobre o fundamento
do interdito que foi imposto, a pena mais severa, à qual,
porventura, ainda se poderiam ter eximido. Por conse-
guinte, dificilmente se irão insubordinar.
A proclamação do interdito é ao mesmo tempo a con-
vocatória da coletividade. Esta é compelida a reunir-se de
imediato, na sequência da maior desgraça que a poderia
atingir. Os éforos são, pela sua própria natureza, os acusa-
dores e compete-lhes relatar a matéria de facto.
Dizer que a coletividade se deve reunir não significa
que todos os homens, vindos de todas as partes do territó-
rio de um país, porventura muito extenso, se devem reunir
num local, o que em muitos casos poderia ser completa-
mente impossível; significa somente que todos se concen-
tram com vista à investigação a empreender e sobre a qual
se pode muito bem deliberar em cada cidade e aldeia do
país e que cada um dá o seu voto. Como é que se deve
aqui providenciar para que o resultado a obter seja pura-
mente o resultado da vontade coletiva é uma questão da

205
política e não da doutrina do Direito. No entanto, por uma
razão que mencionaremos mais adiante, é necessário que
por ocasião desta deliberação grandes massas populares,
aqui e acolá, se congreguem num local.
Aquilo que a coletividade decide torna-se lei constitu-
cional.
É, portanto, necessário, em primeiro lugar, que os ele-
mentos da coletividade decidam - independentemente do
que pensem sobre a matéria do litígio - se o interdito que
foi proclamado tem, quanto à forma, força de lei e se a
insubordinação contra ele deve ser punida como rebelião.
Se decidissem o contrário, anulariam assim todo o interdito
e também toda a eficácia do eforato e, por conseguinte, o
eforato na sua própria essência, e decidiriam colocar acima
da coletividade um poder superior, que não teria qualquer
responsabilidade, por conseguinte, um despotismo - o que
é contra a lei do Direito e não é, de todo em todo, expectá-
vel. Não o farão, porque o Direito está ligado àquilo que é
vantajoso para eles.
Além disso, o seu juízo sobre a matéria do pleito será
necessariamente justo, isto é, conforme à vontade coletiva
originária. Se absolvem um magistrado que, de acordo com
a acusação dos éforos, deixou algo impune (sobre o feito
não pode e não deve reinar qualquer dúvida, e os éforos
hão de velar por isso), estariam com isso a decidir que tal
feito não deve nunca ser punido, mas deve antes ser consi-
45 1 derado como uma ação lícita, que poderia ter sido prati-
cada também contra qualquer um deles. Se o poder execu-
tivo foi acusado de uma contradição no seu procedimento
ou de uma injustiça manifesta, e se os elementos da coleti-
vidade declaram que não há nenhuma contradição nem
nenhuma injustiça, fazem da máxima oscilante ou manifes-
tamente contrária ao Direito, com base na qual julgaram,
uma lei fundamental do Estado, de acordo com a qual cada

206
um deles quer ser tratado. Irão, por conseguinte, meditar
maduramente sobre a matéria e guardar-se de proferir uma
sentença injusta.
A parte que decai em juízo, seja m os éforos ou o
poder executivo, é culpada de alta traição. Os primeiros, se
a sua acusação é infundada, interromperam o curso do
Direito, que é a principal preocupação da comunidade
política; os membros do poder executivo, se são considera-
dos culpados, serviram-se do poder do Estado para a opres-
são do Direito.
A ninguém parecerá excessiva a responsabilidade dos
detentores do poder; mas talvez sim a dos éforos. Poder-se-
ia dizer que lhes pareceu que a lei estava em perigo, que
agiram de acordo com a sua consciência moral e que, sim-
plesmente, erraram. - Mas o mesmo pode valer também
em relação aos detentores do poder, devendo, em geral, res-
ponder-se o seguinte: o erro é aqui tão perigoso como a má
vontade, e a lei há de procurar evitar o erro com o mesmo
cuidado com que reprime a má vontade. Os mais sábios no
seio do povo devem ser eleitos como magistrados, e, muito
especialmente, homens maduros é que devem ser eleitos
como éforos.
Além disso, os éforos negociarão decerto com os
detentores do poder, previamente à proclamação do inter-
dito, procurando induzi-los a voluntariamente e sem apa-
rato a pôr cobro à injustiça ou a repará-la; e, só com isto,
acabam por adquirir uma compreensão profunda sobre o
verdadeiro contexto do que está em causa.
A decisão do povo vale retroativamente: deliberações
proferidas com base em máximas que essa decisão desa-
prova são anuladas e os que foram lesados por essas
deliberações são reintegrados na sua situação anterior; sem
prejuízo, porém, das contrapartes, que agiram em confor-
m idade a um Direito que era, decerto, infundado, mas que

207
gozava de uma validade presumida. O dano deve ser repa-
rado pelos juízes que o causaram. O fundamento desta vali-
dade extensiva ao passado é o seguinte: aquele que tinha
decaído em juízo não podia recorrer da sentença judicial,
porque se devia presumir que a vontade dos juízes coincidia
com a verdadeira vontade coletiva; o fundamento de vali-
452 dade da sentença era a presunção da sua legalidade. Agora
descobre-se o contrário: o fundamento desaparece e, por
conseguinte, desaparece também o fundamentado . É como
se essa sentença nunca tivesse sido proferida.
O poder positivo e o poder negativo, os executores e
os éforos, são partes que devem ser julgadas perante a cole-
tividade reunida, e não podem, por conseguinte, ser juízes
na sua própria causa, nem pertencem à coletividade, que,
nesta perspetiva, podemos também chamar o povo. Os éfo-
ros fazem a instrução do processo, como foi observado
acima, e, nessa medida, são os acusadores; os executores res-
pondem pelas acusações e são, nessa medida, os acusados.
(Em que medida pertencem os magistrados ao povo?
Esta questão foi, tal como muitas outras questões, colocada
em termos gerais e respondida em termos gerais, por conse-
guinte, de maneira unilateral, porque se esqueceu de deter-
minar as circunstâncias em consideração das quais a res-
posta devia ser dada.
Aqui temos a resposta. Previamente à sua eleição, eles
não eram magistrados, não eram, em absoluto, aquilo que
são agora, eram algo de diferente, e, nessa medida, perten-
ciam ao povo. Se estão, por nascimento, destinados a ser
representantes a título pessoal, como o príncipe herdeiro,
então nunca pertenceram ao povo. Os aristocratas por nas-
cimento, a nobreza, antes da sua eleição para um cargo
público, são particulares e fazem parte do povo. Não são
magistrados, mas são elegíveis numa base de exclusividade.
A Constituição deve providenciar, em razão de uma pareia-

208
!idade a favor do poder executivo que se pode recear, no
sentido de que o seu voto não tenha nenhuma influência
nociva sobre o resultado da vontade coletiva, e a maneira
de prevenir que isso aconteça é uma questão que compete à
política.
Logo que a eleição recaia sobre eles, mesmo que não
tenham ainda aceite essa eleição, eles passam a ficar excluí-
dos do povo, uma vez que agora negoceiam com ele e nes-
tas negociações são uma das partes e o povo a outra. Se
declararem taxativamente que não aceitam o cargo que lhes
é proposto, reintegram-se novamente no povo.
Se o aceitam , ficam , por essa razão, excluídos para
sempre do povo.
Uma vez que os magistrados respondem com a sua
própria pessoa e com a sua própria liberdade pela segurança
pública e pelo Direito, devem ter em matéria de legislaçãeo
mais do que um simples voto de aprovação, devem ter um
voto negativo decisivo (um veto); quer dizer, no contrato
que lhes transfere o poder também o povo deve ser livre de
dizer: se não queres governar de acordo com leis que, na
nossa perspetiva, são boas, então que governe outro.
Uma vez celebrado o contrato de transferência, pro-
duz-se ao mesmo tempo a submissão, e a partir desse
momento a coletividade deixa de existir; o povo não é, em
absoluto, um povo, um todo, mas uma mera agregação de
súbditos e os magistrados deixam também de pertencer ao
povo.
Se, da maneira que foi descrita, a coletividade é reu- 453
nida pela proclamação do interdito, os magistrados são, tal
como foi demonstrado, uma das partes e, uma vez mais,
não pertencem ao povo. Se ganham o grande pleito que
está pendente, são de novo magistrados, e, mais um a vez,
deixam de pertencer ao povo; se o perdem, a única pena
possível é a exclusão do Estado, o desterro, e, por canse-

209
guinte, voltam a não pertencer ao povo. Portanto, os
magistrados nunca pertencem ao povo e são excluídos dele
para sempre pelo contrato de transferência.)

X. É da liberdade absoluta e da segurança pessoal dos


éforos que depende a segurança do todo. Os éforos estão
destinados pela sua posição a fazer de contrapeso ao poder
executivo, que está munido de um poder superior. Por con-
seguinte, antes que tudo, não devem poder estar dependen-
tes do poder executivo no que toca ao seu bem-estar,
devem ser muito bem pagos, ao mesmo nível a que são
remunerados os membros do poder executivo. Além disso,
estão, como seria de esperar, sujeitos às perseguições e
ameaças desse poder, e não têm defesa alguma, a não ser o
poder da coletividade, a qual, no entanto, não se encontra
agrupada. A pessoa dos éforos tem, portanto, de estar
garantida pela lei, isto é, os éforos têm de ser declarados
invioláveis (sacrosanctz) . O menor ato de violência contra
eles, ou até mesmo só a ameaça do uso da força, constitui
alta traição, isto é, uma agressão direta contra o Estado.
Uma tal agressão, se é suscitada pelo poder executivo, é, só
por si, proclamação do interdito; pois, com isso, o poder
executivo cinde diretamente e de forma evidente a sua von-
tade da vontade coletiva.
Além disso, o poder do povo tem de sobrelevar, sem
comparação possível, o poder que os executores têm nas
suas mãos. Se este último pudesse sequer fazer de contra-
peso ao primeiro, desencadear-se-ia, se os executores se qui-
sessem insubordinar, pelos menos, uma guerra entre estes e
o povo, eventualidade que deve ser tornada impossível pela
Constituição. Se o poder executivo fosse mais forte que o
poder do povo, ou mesmo que com o decurso da guerra
o pudesse vir a ser, o poder executivo poderia subjugar o
povo, o que resultaria numa escravidão incondicional .

210
Por conseguinte, é condição de legitimidade de toda a
Constituição civil que, sob nenhum pretexto, o poder exe-
cutivo receba em mãos um poder capaz de oferecer resistên-
cia, por mínima que seja, ao poder da coletividade. Todo o
fim deve se r sacrificado a este fim , o fim mais elevado pos-
sível, o da preservação do Direito em geral.
Além disso, precisamente por esta razão, é uma
máxima fundamental para uma Constituição conforme à
razão, e é necessário providenciar neste sentido, que nas
assembleias da coletividade, onde quer que tenham lugar -
por exemplo, nas cidades de província do país -, se reúnam
multidões tão grandes que sejam capazes de oferecer resis- 454
tência adequada contra as possíveis tentativas de rebelião do
poder executivo, uma vez que, logo que a coletividade se
declare coletividade, um poder muito respeitável deve estar
já posto de pé.

XI. A este propósito, uma questão importante é ainda


a seguinte: de que modo se deve determinar a decisão do
povo? Tem de haver unanimidade ou basta a maioria dos
votos, tendo a minoria que se submeter à maioria?
No contrato político deve haver unanimidade, como
se mostro u acima. Cada um tem de pessoalmente declarar
que quer entrar com este conjunto de pessoas numa comu-
nidade política, com o propósito de assegurar a preservação
do Direito.
Na deliberação sobre a escolha das pessoas dos magis-
trados, a situação era já diferente. A minoria não estava,
obviamente, obrigada a aderir ao voto da maioria; mas,
uma vez que era a parte mais fraca, poderia ser obrigada
pela parte mais forte a abandonar este lugar, onde a maioria
pretende agora realizar a Constituição que projetou, e a
estabelecer-se em qualquer outro lado. Se não o quiser fazer
- e pode haver muitas razões para não o querer -, terá de

211
aderir ao voto da maioria. A razão era a de que a minoria
seria, manifestamente, demasiado fraca para oferecer resis-
tência. Por conseguinte, está já implícito na demonstração
que também aqui é necessário uma maioria decisiva, de
modo a que não haja hipótese de a violência vir a irromper
e que não haja que temer uma guerra, que é sempre contrá-
ria ao Direito: portanto, a eleição dos magistrados não
pode estar dependente de um par de votos a mais ou a
menos. Até que se alcance uma maioria decisiva, os ele-
mentos da coletividade hão de procurar pôr-se de acordo
entre si.
Na deliberação sobre a legitimidade ou ilegitimidade
do procedimento do poder executivo contra o qual se for-
mulou a acusação, nos termos das premissas enunciadas,
não pode, de modo algum, reinar uma grande diversidade
de opiniões. Antes de tudo, o feito a julgar deve apresentar-
se com clareza e, pela sua própria natureza, assim será.
A questão é, então, apenas esta: é o feiro justo ou não, deve
ser para nós e para rodo o sempre legal ou não? A questão é
breve e pode ser respondida taxativamente com um sim ou
com um não. Só podem, portanto, existir duas opiniões,
afirmação e negação; uma terceira não é possível.
Supondo que todos os cidadãos têm, pelo menos, uma
sã capacidade comum de julgar, esta questão é muito fácil
de decidir, e tem, como já se mostrou acima, uma relação
tão direta com o bem estar ou mal estar de cada indivíduo,
que, pela sua própria natureza, será quase sempre respon-
dida de forma completamente unânime; de tal modo que
podemos, de antemão, admitir que aquele que responda de
modo distinto do conjunto das pessoas ou não está na
posse do juízo comum ou então é sectário. Caberá aos mais
455 conhecedores corrigir amistosamente o juízo dos que se
incluem no primeiro grupo e reconduzi-los à opinião geral.
Se não é possível convencê-los, tornam-se então bastante

212
suspeitos de pertencerem ao segundo grupo (de agirem sec-
tariamente) e de serem cidadãos nocivos. Se não podem
associar-se ao veredito da maioria, então não estão obriga-
dos a fazer depender a sua segurança de uma lei que não
reconhecem como Direito: mas também não podem viver
por muito mais tempo no seio de um povo que se faz
orientar de acordo com esta lei; devem, portanto, abando-
nar o Estado - sem prejuízo, contudo, da sua propriedade,
na medida em que se trate de propriedade absoluta e a pos-
sam levar consigo, assunto de que a seu tempo falaremos.
Mas como abandonar o Estado lhes poderia causar grandes
inconvenientes, é de esperar que ninguém acei te esses
inconvenientes, a não ser que tenha uma convicção muito
firme de que o veredicto da maioria conduz à ruína a segu-
rança geral; portanto, é de esperar que prefira aderir à deci-
são da maioria, para que a deliberação seja tomada por
unanimidade. - Assim, na minha teoria, sempre e em todos
os casos, só se adm ite a val idade jurídica do voto por una-
nimidade, não a do voto por maioria; mas afirma-se que
aqueles que não querem submeter-se a uma maioria muito
expressiva (que, no nosso caso, poderia muito adequada-
mente ser fixada pela Constituição em sete oitavos, ou até
mais, dos votos) deixam, com isso, de ser membros do
Es tado, com o que se produz a unanimidade. - O ponto
principal, que não deve ser descurado, é que, tal como foi
demonstrado, não pode existir uma grande diferença entre
a maioria e a totalidade dos votos.

XII. Sob a Constituição que estivemos a descrever


deve reinar indefectivelmente e de modo necessário o
Direito e só o Direito, a menos que os éforos se aliem ao
poder executivo para oprimir o povo. Este obstáculo derra-
deiro e supremo a uma Constituição justa deve igualmente
ser eliminado.

213
Os éforos não devem depender do poder executivo,
deve ser impossível que o poder executivo lhes proporcione
qualquer favor. Os éforos não devem ter com os adminis-
tradores do poder executivo relações de trato, parentesco,
amizade ou análogas. O povo velará para que assim seja e,
se assim não for, os éforos perderiam perante ele toda a sua
confiança.
Além disso , é aconselhável e quase necessário que o
poder executivo seja atribuído de modo vitalício, porque
o administrador desse poder perde a sua posição social. Mas
é igualmente aconselhável que o eforato seja atribuído
somente por um tempo determinado, pois não é de todo
inelutável que o éforo perca com isso a sua posição social.
456 O éforo cessante deve prestar àquele que inicia funções
contas sobre o que aconteceu durante a administração do
seu cargo; se aconteceu algo injusto e que continua a fazer
sentir as suas consequências, o novo éforo está obrigado,
sem mais, a convocar a coletividade, mediante a proclama-
ção do interdito e a fazer com que esta se pronuncie sobre
o éforo cessante, bem como sobre os membros do execu-
tivo. É evidente que o éforo considerado culpado deve ser
castigado por alta traição. - Mas ter administrado com
honra o eforato dá direito às mais altas distinções de carác-
ter vitalício.
É o povo que tem que designar os éforos, não o poder
executivo, o que seria obviamente inapropriado, nem os
próprios éforos, uma vez que os novos éforos são os juízes
dos éforos cessantes e que estes últimos poderiam com a
sua escolha assegurar a impunidade contra qualquer julga-
mento. O modo de eleger os éforos deve estar determinado
na Constituição. Não pode ser permitido apresentar a sua
própria candidatura para o eforato; Quem deve ser éforo é
aquele sobre quem recai o olhar e a confiança do povo, que

214
precisamente em vista a esta escolha sublime prestará conti-
nuamente atenção àqueles de entre os seus homens que são
os de maior probidade e grandeza.

XIII. Uma vez adoptadas es tas disposições, para que


os éforos, mesmo assim, continuassem a mancomunar-se
com o poder executivo contra a liberdade do povo seria,
pelo menos, necessário que entre os primeiros homens do
país que, uns após outros, em toda uma série, tivessem sido
eleitos como éforos não houvesse um sequer que não tivesse
sido corrompido ao aceder ao seu cargo; e, além disso, que
cada um, em toda esta série, pudesse contar com esta cor-
rupção geral com tal certeza que fizesse depender dela toda
a sua segurança. Uma tal eventualidade é impossível, ou,
caso seja possível, poder-se-ia julgar facilmente que um
povo corrompido até um tal extremo, em cujo seio aqueles
q ue são reconhecidos universalmente como os melhores
têm sentimentos tão baixos, não merece um melhor destino
do que aque le que lhe cabe em sorte. Mas, uma vez que
uma ciência rigorosa tem de tomar em conta mesmo a
situação mais improvável, existe neste caso a saída seguinte.
Todo o particular que convocar a coletividade contra a
vontade do poder executivo, no qual está depositada a von-
tade coletiva enquanto a coletividade não se encontrar reu-
nida - e será sempre este o caso, porque o poder executivo,
pela sua própria natureza, não a quer convocar nunca -, é
um rebelde, na medida em que a sua vontade se subleva
contra a putativa vontade coletiva e procura um poder con-
tra ela, tal como foi demonstrado acima.
Mas - o que é digno de nota - , o povo* não é nunca
rebelde e a expressão rebelião, referida ao povo, é o maior 457

• Deve entender-se que falo do povo inteiro.

215
disparate que se pode proferir, pois o povo é, de facto e de
Direito, o poder supremo acima do qual não há nenhum
outro, é a fonte de todo o outro poder e só é responsável
perante Deus. Com a reunião do povo em assembleia, o
poder executivo perde, de facto e de Direito, o seu poder.
Só contra um superior é que existe rebelião. Mas quem é à
face da terra superior ao povo? Só poderia entrar em rebe-
lião contra si próprio, o que é absurdo. Somente Deus é
superior ao povo; se, portanto, se vier a dizer que um povo
entrou em rebelião contra o seu príncipe, então há que
admitir que o príncipe é um Deus, o que poderia ser difícil
de demonstrar.
Ou se trata de um caso tal que o povo se levanta una-
nimemente, por exemplo, numa situação particular em que
a violência salta à vista de modo absolutamente terrível, e
julga os éforos e os detentores do poder. - O seu levanta-
mento é, por natureza, sempre justo, não só quanto à
forma , mas também quanto à matéria, pois que enquanto a
insegurança e a má administração não oprimirem todos
e não se tornarem universalmente nocivos, cada indivíduo
preocupa-se somente consigo próprio e trata de abrir cami-
nho tão bem quanto puder. Nunca um povo se levantou
como um só homem e não haverá nunca povo que venha a
levantar-se enquanto a injustiça não chegar ao extremo.
Ou então, no segundo caso: um ou vários privados
incitam os súbditos a constituir-se como povo. Estas pes-
soas podem, manifestamente, ser consideradas rebeldes e, se
o poder executivo conseguir deitar-lhes a mão, são punidas
como tais, em conformidade com o Direito presumido e a
vontade coletiva presumida, enquanto a coletividade ainda
não se tiver constituído. Mas um poder injusto é sempre
fraco, porque é incoerente e tem contra si a opinião geral,
frequentemente mesmo a opinião daqueles de quem se
serve como instrumentos; e é, portanto, um poder tanto

216
mais fraco e impotente quanto mais InJUSto é. Por conse-
guinte, quanto mais desprezível for o poder executivo ,
tanto maior é a probabilidade daqueles que incitam o povo
se subtraírem, num primeiro momento, ao seu castigo.
Em consequência do seu apelo, a comunidade ou se
subleva ou não se subleva. No primeiro caso, o poder exe-
cutivo desaparece em absoluto e a coletividade converte-se
em juiz entre o poder executivo e os que incitaram o povo
à sublevação, à semelhança do que normalmente acontece
quando existe um litígio entre o poder executivo e os éfo-
ros. Se a coletividade considera que o seu incitamento é
fundado , a vontade dos que incitaram o povo é confirmada
como a verdadeira vontade coletiva pela vontade, declarada
posteriormente, da coletividade; demonstra-se assim que
essa vontade contém o elemento material do Direito e o
elemento formal, de que carece ainda, obtém-o com a apro-
vação da coletividade. Os que incitaram ao levantamento
são, pela sua coragem e virtude, salvadores da nação e éfo-
ros naturais, mesmo sem terem sido nomeados como tais.
Se, pelo contrário, a coletividade considera que são destituí- 458
dos de fundamento quer o incitamento quer a acusação,
então eles são rebeldes e são castigados como tais pela pró-
pria coletividade.
Se o povo não se subleva, isso comprova ou que a
opressão e a insegurança pública não se tornaram ainda
suficientemente evidentes ou que não existem na realidade;
ou então, que o povo ainda não despertou para querer a
liberdade e ter consciência dos seus direitos, que ainda não
amadureceu o suficiente para participar no grande pleito
cuja decisão ele é chamado a tomar e que, por conseguinte,
o incitamento não devia ter-lhe sido feito. Aqueles que pro-
cederam ao incitamento do povo são punidos como rebel-
des, de acordo com um Direito externo perfeitamente
válido , ainda que, de acordo com o seu Direito interior,

217
perante a sua consCiencia moral, possam ser mártires do
Direito. São punidos, sendo porventura inocentes no que
diz respeito às intenções, mas são plenamente culpados pelo
seu ato; deveriam ter um melhor conhecimento da sua
nação. Se uma nação como esta se tivesse reunido, o resul-
tado teria sido a anulação e a supressão de todo o Direito.
As disposições para a eleição dos administradores do
poder executivo, dos éforos, bem como as relativas aos seus
deveres, são leis sobre a administração da lei; e o conjunto
deste género de leis chama- e Constituição. Temos, por
conseguinte, numa terceira secção do Direito político, que
falar da Constituição.

XIV. A Constituição (subentenda-se, uma Constitui-


ção conforme ao Direito e à razão) é imutável e válida para
todo o sempre e é posta necessariamente como tal no con-
trato social.
Com efeito, cada indivíduo deve dar a sua aprovação à
Constituição; e, por conseguinte, a Constituição deve estar
garantida pela vontade coletiva originária. É unicamente sob
a garantia que esta determinada Constituição oferece para a
sua segurança que cada indivíduo se incorporou no Estado.
Não pode ser forçado a dar a sua aprovação a uma outra
Constituição. No entanto, no caso dessa outra Constituição
dever ser imposta, ele não poderia viver sob um regime
ordenado por uma Constituição que não foi por si apro-
vada, mas teria de abandonar o Estado, o que contraria o
contrato originário. Daí resulta que não é, em geral, permi-
tido alterar a Constituição, mesmo que seja um único indi-
víduo a opor-se a essa alteração. Requer-se, por conseguinte,
uma unanimidade absoluta para alterar a Constituição.
A diferença entre esta unanimidade absoluta requerida
para alterar a Constituição e a unanimidade relativa dedu-
zida mais acima consiste em que se pode produzir a unani-

218
midade relativa, em caso de necessidade, mediante a exclu-
são do Estado de vários indivíduos; mas não se pode pro-
duzir a unanimidade absoluta. Na unanimidade relativa, o 459
direi to de permanecer cidadão do Estado está determinado
pela adesão à maioria; na unanimidade absoluta, o direito
de permanecer cidadão do Estado é absoluto.
Dissemos que uma Constituição que é, em termos
gerais, conforme ao Direito, quer dizer, que tenha um
poder executivo constituído, mas responsável, e um eforato,
é uma Constituição imutável. - No âmbito do que fica
assim circunscrito, são possíveis infinitas modificações: e
são estas determinações mais específicas que são susceptíveis
de modificação.
Se a Constituição não é conforme ao Direito, é permi-
tido substituí-la por uma que o seja; e é inadmissível que
alguém diga: não quero abandonar a Constituição até agora
em vigor. Pois só a ignorância até então vigente e a indife-
rença em relação a uma Constituição conforme ao Direito
podem desculpar a tolerância perante a Constituição que é
contrária ao Direito: mas logo que o conceito de conformi-
dade ao Direito exista e que a nação seja capaz de o reali-
zar, cada um está obrigado a adoptá-lo, pois o Direito deve
remar.
Algo diferente é a melhoria e a modificação da legis-
lação civil. Estas produzem-se por si próprias. O Estado
consistia, ao princípio, nesta determinada população, que
desempenhava estes e aqueles ofícios e a lei era conce-
bida nessa base. A população cresce em número, surgem
novos sectores de atividade económica - subentende-se que
nenhum pode surgir sem a aprovação do Estado -, e a lei
tem agora necessariamente de ser alterada, para continuar
adaptada a este povo completamente transformado; e é o
poder executivo que é responsável pelo facto de que a lei
esteja sempre adaptada ao povo.

219
XV. Todo o mecanismo que acabamos de descrever é
exigido para a realização de uma relação entre os homens
que seja conforme ao Direito; mas não é, de todo em todo,
necessário que todos estes móbiles operem continuamente,
com efeitos exteriores e visíveis. Ao invés, quanto melhor
estiver organizado o Estado, tanto menos se dará nota des-
ses efeitos, porque toda a possibilidade de uma produção de
efeitos exteriores será eliminada, logo desde o início, pela
força tranquila e pelo peso interior do Estado. É o Estado
que se impede a si próprio de agir.
A tarefa seguinte a que aponta o Estado é a de dirimir
os litígios dos cidadãos sobre a propriedade. Quanto mais
simples, clara e abrangente for a lei, tanto mais simples e
infalível é a sua aplicação e, desse modo, tanto menos lití-
gios dessa índole haverá, porque cada um poderá saber com
bastante precisão o que lhe pertence e o que é que não lhe
pertence e não fará, ou não será fácil que faça, a tentativa,
que ele prevê que seja frustrada, de se apropriar da proprie-
dade do outro. Se os poucos litígios que possam, eventual-
mente, ser provocados por erro puderem ser decididos de
forma correta e evidente para ambas as partes, então não há
crime. Pois de onde é que provêm todos os crimes, senão
460 da cobiça e da paixão que ela suscita, ou da indigência e da
miséria, que não existiriam se a lei velasse, como lhe com-
pete, pela propriedade de cada um? E como podem esses
crimes surgir, depois das suas fontes terem sido desviadas?
Uma boa lei civil e a sua administração rigorosa eliminam
completamente a aplicação da legislação criminal. - Além
disso, quem é que ousa cometer um crime, quando sabe
com certeza que será descoberto e punido? Somente meio
século de vigência de tais leis e isso seria suficiente para
fazer desaparecer os próprios conceitos de crimes da cons-
ciência do povo feliz que é governado por elas.

220
Se o poder executivo tem tão poucas ocupações, estará
proporcionalmente reduzida a possibilidade de ser injusto.
Ocorrendo com pouca frequência, o exercício do poder
executivo é um ato que suscita reverência para si e para o
povo; todos os olhares estão dirigidos para ele e a reverência
necessária pela nação dar-lhe-á respeito por si próprio, caso
fosse de recear que o não tivesse sem isso.
O poder dos éforos não encontrará igualmente aplica-
ção, porque o poder executivo é sempre justo e não será de
pensar em nenhum interdito e, portanto, em nenhum tri-
bunal popular.
Se for, pois, possível que alguém se deixe atemorizar
pelos conceitos expostos, imaginando sabe-se lá qual atroci-
dade a propósito de uma assembleia do povo erigida em
tribunal , essa pessoa tem duas razões para se tranquilizar.
Em primeiro lugar: só a turba se m lei comete excessos e
não a multidão que se reúne de acordo e em obediência a
uma lei e delibera de uma certa forma . O requisito formal
é - diga-se de passagem - uma das maiores benesses para o
homem: ao forçá-lo a refletir sobre algo, força-o a agir em
geral de modo refletido. Não se dá provas de boas inten-
ções para com a Humanidade quando se quer dispensá-la
de todos os procedimentos formais.
Logo, todas estas disposições não foram tomadas para
virem a ser postas em prática, mas apenas para tornar
impossíveis os casos nos quais elas teriam de ser postas em
prática. É precisamente onde foram tomadas estas disposi-
ções que elas são supérfluas e só onde não foram tomadas é
que elas seriam necessárias.

221
SEGUNDA PARTE
ou
DIREITO NATURAL APLICADO
G r un d 1 age

Naturrechts

Principien de1· 'Wissensch-aftslehre

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PRIMEIRA SECÇÃO DA DOUTRINA DO DIREITO POLÍTICO 1,4
5
DO CONTRATO DE CIDADANIA

§ 17.

A.
Analisemos, em primeiro lugar, com maior cuidado do
que aquele que foi necessário até aqui, o conceito de con-
trato em geral.
Em primeiro lugar, num contrato participam duas
pessoas, sejam elas naturais ou místicas; são ambas postas
como querendo o mesmo objeto em propriedade exclusiva.
- A coisa sobre a qual têm que estabelecer uma relação
contratual deve, portanto, ser susceptível de se converter
em propriedade exclusiva, isto é, deve ser um tipo de coisa
que, pela sua natureza e essência, continue a ser tal como
foi pensada no conceito de fim d a pessoa; além disso, ela
deve ser um tipo de coisa susceptível de ser utilizada unica-
mente como propriedade exclusiva, isto é, deve efetiva-
mente continuar a ser tal como foi pensada no conceito de
fim da pessoa (veja-se o § 11 , III). Se a primeira condição
não se verificasse, nenhum contrato seria possível; se a
última condição não se verificasse, nenhum contrato seria
necessário. É por esta razão que não pode haver lugar a um
contrato sobre uma porção de ar ou de luz.

227
Além disso, ambas as partes têm de ter o mesmo
direito sobre a coisa; caso contrário, não haveria entre elas
qualquer litígio jurídico, que deve, precisamente, ser
mediado pelo contrato. Ora, pela natureza das coisas, é isso
que sucede com todos os objetos e todos os seres livres com
pretensões sobre eles. Antes do contrato, ninguém pode
aduzir nenhum outro fundamento jurídico para a posse
da coisa em litígio senão a sua natureza livre e racional;
mas todos os seres livres podem aduzir este mesmo funda-
mento. As pessoas não podem entrar em litígio sobre a pro-
priedade dos seus corpos, dado que o uso natural de cada
corpo - pô-lo em movimento por via da mera vontade -
é fisicamente impossível para todos os sujeitos, salvo para
um deles; em relação ao resto do mundo sensível, todos os
seres livres têm, tal como foi demonstrado, o mesmo
direito.
Todavia, não se deve, em absoluto, deixar de ter em
conta que ambas as partes não têm necessariamente de
apresentar uma pretensão à mesma posse precisamente no
6 momento presente, bastando que se possa recear que um tal
conflito de pretensões venha a surgir no futuro . Mas um
dos dois casos deve ocorrer; pois que, de contrário, as esfe-
ras de liberdade de ambas as partes estariam completamente
separadas e seriam consideradas por elas como separadas e
seria, de todo, desnecessário estabelecê-las por contrato. -
Por exemplo, enquanto estiveres separado de mim por um
rio que ambos consideramos impossível de transpor, a
nenhum de nós ocorrerá prometer-nos reciprocamente não
atravessar o rio e querer instalar-se na outra margem. O rio
é-nos posto pela natureza como limite da nossa capacidade
física de atuação. Só se o rio se tornar suficientemente
pouco profundo para poder ser transposto a pé ou se desco-
brirmos a arte de navegar é que será necessário torná-lo por
convenção em limite do nosso arbítrio.

228
Esta vontade de ambos de possuir isto ou aquilo como
seu é a vontade privada de cada um. No contrato, há, por
conseguinte, em primeiro lugar, duas vontades privadas;
vontades essas que, uma vez que se reportam a um objeto,
devem ser denominadas como vontades materiais. Em
seguida, aquilo que se requer para a possibilidade de um
contrato é que ambas as partes tenham a vontade de chegar
a um acordo sobre as suas pretensões, quer as que estejam
já em conflito entre si quer as que possam vir a está-lo no
futuro; requer-se que cada um, pelo seu lado, ceda em algo
no que aos objetos de litígio diz respeito, até que ambas as
pretensões possam coexistir. Se só uma das partes quer che-
gar a acordo ou se nenhuma delas o quer, então não é pos-
sível nenhum contrato e segue-se necessariamente a guerra.
De acordo com a lei do Direito, o ser racional está obri-
gado a ter esta vontade e existe um direito de coação para
forçar cada um ao contrato (direito que, a bem dizer, não
tem aplicabilidade alguma, dado que não pode determinar-
-se até que ponto deve cada um ceder); isto, porque a situa-
ção de guerra efetiva ou até mesmo o receio de uma guerra
possível não constituem uma situação conforme ao Direito:
tudo coisas que foram demonstradas acima. - Por conse-
guinte, para um contrato requer-se, em segundo lugar, um
acordo de vontade de ambas as partes com vista a uma acomo-
dação amigdvel do seu litígio, vontade a que propomos cha-
mar vontade formalmente comum, na medida em que se
refere à forma do contrato.
Além disso, um outro requisito para a possibilidade de
um contrato consiste em que ambas as partes limitem as
suas vontades privadas que tinham inicialmente invocado
numa medida tal que elas passem a deixar de estar em con-
flito; por conseguinte, que cada uma das partes renuncie e
não queira possuir nem agora nem nunca aquilo que a
outra quer guardar para si própria. Chamemos a esta união

229
das suas vontades a vontade materialmente comum. Nela, as
vontades privadas de ambas as partes unem-se numa única
vontade comum. -A vontade de cada um dos contraentes
dirige-se agora também à propriedade do outro, à qual,
porventura, não se dirigia anteriormente; propriedade que
7 ele talvez nem sequer conhecesse, dado que não é já agora
que necessariamente tem de existir um conflito sobre os
objetos, mas somente que esse conflito seja de recear no
futuro; ou se conhecia a propriedade do outro, não tomou
ainda nenhuma decisão a propósito dela. A vontade de
cada uma das partes estende-se agora para além do seu fim
privado, mas somente como vontade negativa. Cada uma
das partes não quer, simplesmente, o que a outra quer; a
este respeito, não decide mais nada senão que não desej a
para si aquilo que a outra quer. Em virtude deste seu que-
rer, é-lhe completamente indiferente aquilo que possa acon-
tecer, se, por exemplo, o objeto vier a ser subtraído à outra
parte por um terceiro. Por conseguinte, o que importa aqui
é que a vontade material de ambas as partes, na medida em
que é comum, é, pura e simplesmente, negativa.
Por fim, está também ínsito no conceito de contrato
que esta vontade comum esteja estabelecida como uma
vontade permanente que dirige todas as futuras ações livres
das partes, enquanto lei do Direito de ambas, pela qual é
determinada a relação jurídica futura entre elas. Logo que
uma das partes ultrapasse, no mínimo que seja, os seus
limites, o contrato fica anulado e fica abolida toda a relação
jurídica por ele fundada.
Poder-se-ia eventualmente acreditar que o ofendido
tem simplesmente de exigir de imediato uma reparação; e
que, uma vez satisfeita esta, o assunto seria reposto na sua
base anterior. Isto é, com efeito, verdade, se o ofendido se
contenta com isso e quer renovar o contrato com aquele
que o ofendeu. Mas, para o que vem a seguir, é da maior

230
importância compreender que o ofendido não está juridica-
mente obrigado a contentar-se com a reparação e que, para
sermos rigorosamente consequentes, toda a relação jurídica
entre as partes fica extinta. Vamos, por conseguinte, produ-
zir a prova desta afirmação.
Antes da existência do contrato, cada uma das partes
tinha o direito mais completo a tudo o que a outra parte
reclamava para si e que lhe tinha sido efetivamente reco-
nhecido no contrato. Mesmo que uma das partes ainda não
conhecesse nesse momento que uma certa coisa existia,
poderia vir a conhecê-lo mais tarde e a submeter a coisa aos
seus fins. É unicamente em virtude do contrato que perdeu
o direito a isso. Ora, o contrato subsiste apenas na medida
em que continua a ser respeitado; mal seja violado, extin-
gue-se. Mas se o fundamento deixa de existir, deixa tam-
bém de existir aquilo que é fundamentado, e, uma vez que
o contrato era o único fundamento da renúncia, desaparece
com ele a renúncia a tudo o que pertencia à outra parte. fu
duas partes encontram-se de novo na mesma relação em
que se encontravam anteriormente ao contrato.

B. 8

De acordo com estas premissas necessárias, vamos pro-


ceder à análise do contrato de cidadania em particular.

I. Não existe relação jurídica sem uma determinação


positiva do limite até onde deve estender-se o uso da liber-
dade de cada indivíduo; ou, o que significa o mesmo, sem
determinação da propriedade no sentido mais amplo do
termo, na medida em que designa não apenas, por exem-
plo , a posse de bens fundiários ou semelhantes, mas, em
geral, direitos a ações livres no mundo sensível.
Por conseguinte, se o contrato de cidadania deve
introduzir uma relação jurídica universal, é necessário que

231
cada indivíduo se ponha de acordo com todos os indiví-
duos nesse contrato sobre a propriedade, os direitos e as
liberdades que ele deve ter e, em contrapartida, sobre a pro-
priedade, os direitos e as liberdades que deve deixar intactos
e em relação aos quais deve renunciar a todas as suas pre-
tensões jurídicas naturais. Cada um há de poder pôr-se de
acordo pessoalmente sobre estas questões com qualquer
outro. - Pense-se num indivíduo no momento da celebra-
ção do contrato; ele é só uma das partes requeridas para o
contrato. Se reunirmos num conceito universal todos os
indivíduos com os quais deve, sucessivamente, celebrar um
contrato, então são todos estes, mas unicamente como indi-
víduos - pois celebrou um contrato com eles enquanto
indivíduos e seres existentes por si, sobre cujas decisões
absolutamente ninguém exerceu influência -, são todos
estes, digo, a segunda parte no contrato. Cada um disse a
todos os outros: quero possuir esta coisa e exijo-vos que
renuncieis às vossas pretensões jurídicas sobre ela . Ao
que todos responderam: renunciamos às nossas pretensões,
na condição de que renuncies às tuas sobre tudo o resto.
Neste contrato, estão contidos todos os requisitos de
um contrato. Em primeiro lugar, uma vontade meramente
privada de cada indivíduo de possuir algo para si, sem o
que não teria celebrado o contrato de que aqui se trata (por
conseguinte, cada cidadão tem necessariamente uma pro-
priedade. Se os outros cidadãos não lhe tivessem atribuído
nada, não teria renunciado àquilo que eles possuem, pois
esta renúncia tem de ser recíproca; não teria, portanto, par-
ticipado na celebração do contrato de cidadania). Pressu-
põe-se a vontade formal de todos em se pôr de acordo. É
necessário que cada um se ponha de acordo com todos, e
todos com cada um, sobre o conteúdo da posse; sem o que
o contrato não teria tido lugar, nem se teria instituído
nenhuma relação jurídica. -A vontade de cada um é posi-

232
tiva, unicamente em consideração daquilo que ele quer pos-
suir para si; no que à propriedade de todos os demais diz
respeito, é meramente negativa.
Vale para este contrato a proposição acima demons- 9
trada: a propriedade de cada um é reconhecida por qual-
quer outro só enquanto o primeiro respeitar a propriedade
do segundo. A menor violação dela elimina o contrato na
sua globalidade e dá direito ao ofendido a retirar ao ofensor
tudo aquilo que puder. Por conseguinte, cada um dd toda a
sua propriedade como penhor de que não quer violar a pro-
priedade de todos os demais.
Denomino esta primeira parte do contrato de cidada-
nia contrato de propriedade dos cidadãos. Se concebermos o
resultado de todos os contratos particulares celebrados,
temos a vontade exclusivamente material, referida a objetos,
que determina os limites da liberdade dos indivíduos, von-
tade que dá a lei civil, no sentido mais estrito da expressão;
esta lei constitui o fundamento de todas as leis que é possí-
vel promulgar neste Estado sobre a propriedade, os proven-
tos, as liberdades e os privilégios, e é inviolável.
Cada indivíduo expressou-se efetivamente uma vez da
maneira descrita, seja com palavras, seja com atas, ao dedi-
car-se aberta e sinceramente a uma certa ocupação, tendo o
Estado sobre isso, pelo menos, guardado silêncio.
Supôs-se, na nossa explanação, que todos contratam
com todos. Poder-se-ia, em contrário, relembrar que, uma
vez que os homens conduzem necessariamente os seus
negócios num certo espaço delimitado, seria suficiente que
cada um se pusesse de acordo somente com três ou quatro
dos seus vizinhos mais próximos. Ora, de acordo com a
nossa pressuposição, isto não deve ser aqui suficiente. Há,
pois, que pressupor que cada indivíduo pode entrar em
colisão com qualquer um dos outros, portanto que os indi-
víduos não permanecem encerrados na sua circunscrição,

233
mas que terão o direito a viver juntos em todo o território
do Estado e a visitar-se uns aos outros. Que isto é efetiva-
mente assim ver-se-á com maior pormenor mais adiante.
Aqui conclui-se apenas, a partir da exigência de que em
todo o contrato de cidadania todos devem contratar com
todos, que o território de todos, à superfície da terra, pode
em parte, quer dizer, numa certa perspetiva, ser repartido
entre os indivíduos e que, numa outra perspetiva, a qual é
determinada precisamente pelo contrato, ele constitui uma
esfera de ação para todos; deve, por exemplo, ser permitido
ao comerciante circular, para oferecer as suas mercadorias,
ao pastor conduzir o seu rebanho, ao pescador atravessar as
terras de cultivo para aceder aos rios, e assim por diante,
atos que só em consequência do contrato podem estar per-
mitidos.

II. No entanto, o fim do contrato de cidadania con-


siste em que os limites da liberdade exclusiva de cada um,
10 limites que são determinados pelo contrato de propriedade
ou contrato civil, devem ser protegidos por meio de coação
com recurso à força física, dado que não se pode deixar isso
ao cuidado da mera vontade.
Um tal poder coercitivo não foi instituído se, tal como
foi demonstrado, a vontade de cada um dos contraentes é
apenas negativa em relação à propriedade do outro. Por
isso, uma vez que o contrato que vamos descrever deve ser
um contrato de cidadania, haveria que associar ao primeiro,
ao contrato de propriedade, um segundo contrato, no qual
cada um prometa a todos os indivíduos, que continuam
sempre a ser considerados como indivíduos, ajudá-los a
proteger com a sua própria força a propriedade que lhes é
reconhecida, na condição de que eles, pelo seu lado, aju-
dem igualmente a defender aquilo que é seu da violência.
Chamemos a este contrato contrato de proteção.

234
Este segundo contrato é condicionado pelo primeiro
em relação à matéria. Cada um pode comprometer-se a
proteger somente o que reconheceu como o direito do
outro, consista este numa posse efetivamente presente ou
na autorização geral para se proporcionar no futuro uma
posse, em conformidade com uma certa regra. Mas, de
modo algum, pode prometer assistir o outro no caso de
este se envolver em assuntos para os quais o primeiro con-
trato não foi estabelecido.
Este segundo contrato opõe-se ao primeiro, porquanto
a vontade meramente negativa a propósito da propriedade
do outro se torna positiva. Cada um promete não apenas,
como no primeiro contrato, abster-se ele próprio de agredir
a propriedade de qualquer outro indivíduo, como também
promete ajudar a protegê-la contra a possível agressão de
um qualquer terceiro. Não faz sentido que alguém prometa
proteger o outro de si próprio. Poderia simplesmente não o
agredir, e assim o outro estaria de antemão suficientemente
protegido dele.
O contrato de proteção está como todo o contrato,
sujeito a condição. Cada um promete ao outro, aqui, cada
um a todos os outros, a sua proteção, na condição de que
os outros igualmente o protejam. O contrato, e o direito
nele fundado, decai se uma das partes não satisfaz a condi-
ção do contrato.

III. O contrato de proteção distingue-se de forma


muito evidente do contrato de propriedade, uma vez que
este último se refere a uma mera abstenção, enquanto o
primeiro se refere a uma prestação positiva: por conse-
guinte, pode sempre saber-se se o contrato de propriedade
é cumprido, porquanto a outra parte só tem, em cada
momento, que não fazer nada; ao invés, não se pode saber
tão bem se o contrato de proteção é cumprido, uma vez

235
que a outra parte tem, de acordo com esse contrato, que
fazer algo que nem sempre pode fazer e que não está, em
bom rigor, obrigada a fazer em qualquer momento. - Vou
explicar-me com mais clareza sobre este importante ponto.
II O contrato de proteção é um contrato sobre uma
prestação positiva sujeito a condição e, como tal, não pode
ter absolutamente nenhum efeito segundo o Direito estrito,
mas é completamente nulo e vazio. A fórmula desse con-
trato seria a seguinte: protegerei o teu direito, na condição
de que protejas o meu. Por que via é que uma parte obtém
a pretensão legítima à proteção da outra parte? Evidente-
mente, pelo facto de que protege efetivamente a outra parte.
E assim, em bom rigor, nenhuma parte obteria nunca
esta pretensão jurídica. - É importante para o que vem a
seguir que compreendamos isto com clareza; esta com-
preensão depende da compreensão da natureza da condição
deste contrato. Estou juridicamente obrigado a proteger-te
apenas sob a condição de que tu me protejas. Considere-se
bem o que o último trecho significa. Não é equivalente à
proposição: sob a condição somente de teres a boa vontade
de me proteger. Pois que a boa vontade não pode nunca
demonstrar-se validamente para o tribunal do Direito
externo; além disso, poderia modificar-se e, em geral, é
direito de qualquer das partes de não estar nunca na depen-
dência da boa vontade da contraparte. Nem, tão-pouco, é
equivalente à proposição: se já me protegeste uma vez. Pois
que o passado é passado e não me serve de nada no pre-
seÍue; moralidade, gratidão e outras boas disposições inte-
riores poderiam perfeitamente mover-me a retribuir ao
outro a sua proteção; mas aqui é uma pretensão jurídica
que deve ser fundamentada. No âmbito do Direito não há
qualquer outro meio de obrigar o homem senão por meio
da compreensão de que aquilo que fazes ao outro, seja mau
ou bom, não é ao outro que o fazes, mas a ti mesmo. Se

236
aplicarmos isto aqui, eu deveria poder compreender que na
proteção que ofereço ao outro não faço outra coisa senão
proteger-me a mim mesmo, seja efetivamente no presente,
ou então, caso eu no futuro venha a precisar de proteção,
pelo facto de decorrer com necessidade absoluta da prote-
ção que lhe presto a sua proteção em relação a mim. O pri-
meiro caso não é possível; pois que enquanto me protejo a
mim mesmo, não necessito de proteção, nem a recebo; o
segundo caso também não é possível, pois as decisões da
vontade livre do outro não podem ser previstas com certeza
absoluta.
A discussão que acabamos de oferecer é a mais pene-
trante, mas pode considerar-se a questão também sob vários
outros ângulos. Ou ambas as partes do contrato de prote-
ção são agredidas ao mesmo tempo, e então nenhuma das
partes pode vir em auxílio da outra, pois cada uma delas
tem de se ocupar de si própria. Ou então é uma das duas
que é agredida. Ora, porque é que a outra parte, cuja pro-
teção é reclamada, não poderia dizer: o nosso contrato está
sujeito a condição; é somente mediante a tua prestação de
proteção que tu obténs uma pretensão jurídica à minha
proteção; no entanto, não satisfizeste a condição - não está 12
aqui em causa se a pudeste satisfazer ou se tiveste constan-
temente a boa vontade de a satisfazer se se tivesse apresen-
tado a oportunidade para tal, mas sim apenas o facto que
não a satisfizeste. Mas se a condição desaparece, desaparece
também o condicionado. O outro argumentará pelo seu
lado de modo semelhante; e assim o condicionado não irá
nunca ter lugar, pois a condição não pode nunca ter lugar.
Se uma das partes assiste efetivamente a outra, as partes
podem entrar numa relação de obrigação moral, mas nunca
numa relação jurídica.
Para favorecer a clareza do debate comparemos este
contrato, que é em si nulo, com o direito que o contrato de

237
propriedade funda. Neste último, a condição de que cada
uma das partes se abstenha de violar os direitos que assis-
rem à outra parte é para ambas meramente negativa; e, por
isso, a sua satisfação é possível a rodo o momento e pode
demonstrar-se claramente perante o tribunal exterior que
tem lugar o fundamento jurídico da obrigação. A condição
não é algo, mas sim nada; não é uma afirmação, mas uma
mera negação, que pode constantemente ocorrer a qualquer
momento. Estou permanentemente obrigado a abster-me
de qualquer agressão contra o bem do outro, pois que
assim, e só assim, previno juridicamente a agressão do
outro contra aquilo que é meu.
Se esta parte do contrato social, o contrato de prote-
ção, é nula, fica também eliminada a segurança do primeiro
contrato, o contrato de propriedade. Com certeza que o
fundamento jurídico que decorre do contrato de proprie-
dade continua em vigor e é passível sempre de ser compro-
vado, como acabamos de assinalar; mas quanto a saber se
alguém aceita sentir-se obrigado pelo Direito, isso é algo
que depende da sua boa vontade, uma vez que o contrato
mediante o qual se deveria pôr em ação um poder coerci-
tivo não é sequer capaz de fundamentar um direito. Perma-
necemos, por conseguinte, na insegurança anterior e na
dependência da boa vontade dos outros, vontade com a
qual não podemos contar nem estamos obrigados a contar.
A dificuldade assinalada deve ser eliminada: mediante
a sua solução, o contrato de cidadania será determinado
com maior pormenor, ou melhor: a sua determinação ficará
completa. O cerne desta dificuldade reside no facto de que
é sempre problemático saber se alguém cumpre a obrigação
que assumiu em resultado do contrato de proteção e, por
conseguinte, se impõe ou não a obrigação ao outro. A difi-
culdade seria eliminada se as coisas estivessem dispostas de
tal modo que isto não pudesse nunca ser problemático.

238
Não é problemático, mas certo, se o mero ingresso de cada
um no Estado implicar, desde logo, o cumprimento do 13
contrato de proteção; se a promessa e o cumprimento
do contrato estiverem unidos sinteticamente, se palavra e
ato se tornarem uma única e a mesma coisa.
(Aquilo que acaba de ser provado em relação ao con-
trato de proteção em particular vale para todos os contratos
de prestação, uma vez que isto foi demonstrado a partir do
carácter geral de um contrato relativo a uma prestação posi-
tiva. Por conseguinte, ao estabelecermos a forma mediante
a qual o contrato de proteção pode adquirir eficácia jurí-
dica, a saber, que a palavra ela própria se torne ato, nós
estamos a estabelecer uma forma que é válida para todos os
contratos de prestação, forma que lhes aplicaremos efetiva-
mente mais adiante.)

IV No mero contrato sobre a proteção deve estar


incluída ao mesmo tempo diretamente a própria prestação
de proteção. Como é que hão de ser dispostas as coisas para
este efeito? Evidentemente, só se, ao celebrar o contrato
social, for simultaneamente estabelecido e lhe ficar adstrito
um poder protetor, ao qual todo o indivíduo que participa
neste contrato dá a sua contribuição. Com esta sua contri-
buição cumpriria efetivamente e de modo direto, com a sua
entrada no Estado, o contrato de proteção em relação a
todos; por conseguinte, de ora em diante, em virtude do
seu mero ingresso no Estado, já não seria problemático
saber se cumpriria o contrato de proteção, uma vez que efe-
tivamente o cumpriu e continua efetivamente a cumpri-lo
enquanto a sua contribuição continuar a estar incluída no
conjunto da proteção geral.
Como é implantado este poder protetor e o que acon-
tece na verdade quando ele é implantado?

239
Colocamo-nos, de novo, com vista a explicitar o impor-
tante conceito que vamos obter, no ponto em que vemos
atuar o indivíduo que celebra um contrato com todos. Ele
é uma das partes contratantes. A sua contribuição para o
poder protetor é-lhe exigida como condição para o seu
ingresso no Estado. Por quem é que esta contribuição lhe é
exigida? Com quem é que ele negoceia realmente a este res-
peito e quem é a segunda parte neste contrato?
Esta segunda parte reclama proteção; - mas para
que indivíduo determinado é que ela a reclama? Para
nenhum indivíduo determinado, pura e simplesmente, e,
no entanto, para todos; para qualquer um que seja atacado;
mas isto pode sê-lo qualquer um deles, mas também pode
acontecer que nenhum deles o seja. O conceito do que em
geral deve ser protegido é oscilantt28 l : é um conceito inde-
terminado, e é precisamente daí que surge o conceito de
um todo que não é meramente imaginado, produzido
meramente pelo nosso pensamento, tal como era acima (I)
o caso, mas um todo real, um todo que é unificado pela
própria coisa; não meramente um conceito de todos, mas
um conceito de totalidade.
14 Descrevamo-lo com maior pormenor. Um conceito
meramente abstrato é composto unicamente pelo ato livre
de um espírito; é isto que ocorre com o conceito de todos,
que foi acima exposto. O conceito que obtemos aqui não é
composto apenas mediante um ato arbitrário, mas mediante
algo real; algo que é, no entanto, desconhecido e que só
ocorrerá no futuro, por intermédio da agressão que deve-
mos recear. Quem é que vai em primeiro lugar ser atingido
pela agressão, isso ninguém o sabe; a agressão pode atingir
qualquer um: cada um pode, por conseguinte, acreditar que
a instituição no seu conjunto foi estabelecida unicamente
em seu proveito e dará, por isso, com gosto a sua modesta
contribuição. Mas a agressão pode atingir um outro e, nesse

240
caso, a sua contribuição está já entretecida com o rodo e
não pode ser retirada. Esta indeterminação, esta incerteza
sobre qual vai ser o indivíduo que a agressão irá atingir em
primeiro lugar, por conseguinte, este oscilar da imaginação,
é o vínculo de união. É aquilo por intermédio do qual
rodos confluem em um; e já não estão unidos num con-
ceito abstraro, como um compositum, mas de facto, como
um totum. A natureza junta assim no Estado aquilo que
separou na produção de vários indivíduos. A razão é una e
a sua representação no mundo sensível é também una; a
humanidade é um rodo único organizado e organizador da
razão. Ela foi dividida em vários membros independentes
uns dos outros; a instituição natural do Estado elimina pro-
visoriamente esta independência e funde num rodo multi-
dões particulares, até que a eticidade transforme a espécie
inteira numa unidade.
O conceito exposto pode ser convenientemente escla-
recido por meio do conceito de um produto organizado da
natureza, por exemplo o conceito de uma drvore. Dê-se a
cada parte, individualmente considerada, consciência e von-
tade, e então, na medida em que a parte quer a sua auto-
conservação, deve querer também a conservação da árvore,
porque é somente sob esta condição que a sua própria con-
servação é possível. Ora, o que é a drvore para a parte indi-
vidualmente considerada? A árvore em geral não é mais que
um mero conceito e a um conceito não se pode causar
dano. Mas a parte não quer que nenhuma das outras partes,
qualquer que possa ela ser, seja lesada, porque também ela
própria sofreria com o dano causado a qualquer um das
partes. - Isto não se passa assim com um monte de areia,
onde pode ser indiferente a cada uma das partes que a
outra seja separada, calcada aos pés ou espalhada.
É, portanto, o rodo, que se originou desta maneira,
que há que proteger. Esta é a segunda parte que procuráva-

241
mos no contrato. A vontade declarada não é, por conse-
guinte, de modo algum uma vontade privada, a não ser
provisoriamente, enquanto essa vontade é ainda referida
ao contraente particular que, de acordo com a nossa pressu-
posição, é em primeiro lugar exortado a prestar proteção;
pelo contrário, a vontade declarada é, pela sua natureza,
uma vontade comum, uma vez que, em virtude da sua inde-
terminação não pode ser outra coisa senão vontade comum.
15 Identificamos o ponto de união, o ponto onde este
todo se converte num todo. Mas como e por meio de que
ato particular da vontade é que se converteu neste todo?
Constatamos que esse todo existe. Mas deixemo-lo surgir
perante os nossos olhos! - Detenhamo-nos na perspetiva
que havíamos sugerido, a partir da qual vemos o indivíduo
encetar negociações e a nossa questão será de imediato
resolvida.
Na negociação, o indivíduo oferece a sua vontade de
proteger; sem dúvida, de proteger o todo, como tinha sido
exigido. Torna-se, assim, uma parte do todo e conflui nele;
poderia então, em virtude de um acaso que é ainda impre-
visível, tornar-se quer protetor quer protegido. É deste
modo, mediante contratos dos indivíduos com outros indi-
víduos, que surge o todo, e é na medida em que todos os
indivíduos contratam com todos os outros, como se consti-
tuíssem um todo, que o contrato se conclui.
A este contrato, que garante e protege os dois primei-
ros contratos e os converte, mediante a sua associação, num
contrato social, chamemos-lhe especificamente contrato de
união.

V O indivíduo torna-se, em virtude do contrato de


· união, parte do todo organizado e funde-se com ele numa
unidade. Está o indivíduo entretecido no todo em termos
da integralidade do seu ser e da sua essência, ou só o está

242
em parte, de tal modo que, considerado sob uma outra
perspetiva, continua a ser livre e independente*?
Cada um dá ao corpo protetor a sua contribuição: dá o 16
seu voto para a nomeação dos magistrados, para a segu-
rança e a garantia da Constituição, dá a sua contribuição
determinada em forças, em serviços, em produtos, seja em
espécie, seja transformados em dinheiro, símbolo universal
do valor das coisas. Mas não dá por inteiro nem a sua pes-
soa, nem aquilo que lhe pertence. Pois, nessa condição, o
que é que lhe restaria para o Estado, do seu lado, prometer
proteger? O contrato de proteção seria, então, apenas unila-
teral e contraditório consigo próprio, devendo ser expres-
sado assim: todos prometem proteger, se bem que todos
prometam não ter nada que possa ser protegido. O corpo
protetor é, portanto, constituído apenas por partes daquilo
que pertence ao indivíduo. Todos os indivíduos estão com-
prometidos no corpo protetor, mas apenas parcialmente.
Mas, na medida em que estão nele compreendidos, consti-
tuem o poder do Estado, cujo fim é, precisamente, a prote-
ção dos direitos de cada um; e formam o verdadeiro sobe-
rano. - É unicamente no ato em que presta a sua
contribuição que cada indivíduo faz parte do soberano.

* Rousseau afirma inco ndi cio nalmente: cada um dá-se integralmente<29>. Esta
afi rmação p rocede do segui nte: Rousseau ad mite um direito de propriedade
preexiste nte ao contrato social, direito que se fu nda na atividade formadora
das co isas pelo indivíduo. O ra, é natural que cada um tenha de negociar com
os restantes sobre esta sua propriedade e que possa chegar a ser a sua proprie-
dade no Estado somente na medida em que a posse desta lhe seja reconhecida;
po r conseguinte, que esta seja subm etida à decisão da vontade co mum , que,
portanto, toda a prop riedade cesse de se r propriedade até que a negociação
esteja concluída. Nesta medida, porém, cada um daria tudo.
Segundo a nossa teo ri a, ninguém pode no co ntrato de cidadania trazer
algo'"eCII- lo, uma vez que antes desse contratO ele nada tem. A primeira cond i-
ção pa ra poder dar é ter recebido. Por co nseguinte, este contrato, bem longe
de dever começa r com o aro de dar, começa com o de receber.

243
Num Estado livre, isto é, num Estado que tem um eforato,
mesmo os impostos são exercícios da soberania. Mas tudo
aquilo que cada um possui faz parte do conjunto daquilo
que deve ser protegido.
De acordo com o princípio acima enunciado, o todo
agora instituído não pode comprometer-se a proteger nada
que não tenha reconhecido. Ao assumir a sua proteção,
reconhece, portanto, tudo aquilo que cada indivíduo pos-
sui; e, por conseguinte, reconhece também o contrato de
propriedade, contrato esse que parecia acima ter sido cele-
brado por cada indivíduo, so mente enquanto indivíduo
17 com todos os outros, e que recebe agora a sua confirmação
do todo real do Estado. - O todo é, neste sentido, proprie-
tário de todas as possessões e dos direitos de todos os indi-
víduos, ao considerar e ao dever considerar todo o dano
que lhes é causado como tendo sido causado a si próprio;
mas, na medida em que considera algo como submetido à
sua livre disposição, propriedade do Estado é apenas aquilo
com que cada indivíduo deve contribuir para os encargos
do Estado.
Relativamente àquilo com que não contribuiu para os
fins do Estado, o indivíduo é, em relação a ele, completa-
mente livre; ele não está, sob este ponto de vista, entrete-
cido no todo do corpo estadual, mas permanece como indi-
víduo, como uma pessoa livre, dependente apenas de si
própria, e é precisamente esta liberdade que lhe é assegu-
rada pelo poder do Estado, só por causa dela é que ele par-
ticipou no contrato. A Humanidade separa-se da cidadania
para se elevar com liberdade absoluta à moralidade; mas
isto apenas na medida em que o ser humano passa pela
existência no Estado. No entanto, na medida em que o
indivíduo é limitado pela lei, é súbdito, está submetido ao
poder protetor ou poder do Estado no domínio que lhe é

244
cometido. É somente sob a condição da sua contribuição
que o contrato é celebrado com o indivíduo: por conse-
guinte, logo que o cidadão deixe de satisfazer esta contri-
buição, o contrato é denunciado. Cada um oferece, por-
tanto, com a integralidade do seu património, a garantia de
que vai contribuir e responde com ele se não contribui com
aquilo que deve. Uma vez que ele se subtrai à participação
no todo, é o todo ou, dito de outro modo, o soberano que
se converte no seu juiz, e, neste caso, ele converte-se, com
todo o seu património, em súbdito: é tudo isto em con-
junto que constitui o contrato de submissão; contrato que,
no entanto, é apenas hipotético. Se eu cumpro os meus
deveres sem interrupção nem exceção, deveres entre os
quais se inclui o de, em relação aos indivíduos, não ultra-
passar os limites da minha liberdade, que me são assinala-
dos pela lei, sou então, no que ao meu carácter público diz
respeito, um simples participante na soberania, e, no que
ao meu carácter privado diz respeito, sou apenas um indiví-
duo livre, mas nunca um súbdito. Converter-me-ia em súb-
dito somente no caso de não cumprir os meus deveres. -
Se, como é de esperar, existe para este caso uma lei penal, o
indivíduo pode expiar a sua culpa e conservar, assim, o seu
património, renunciando a uma parte do mesmo.
E, assim, a nossa investigação retorna a si própria e
está concluída a síntese.
O contrato de cidadania é um contrato que cada indi-
víduo celebra com o todo real do Estado, todo que se
forma e se conserva a si próprio mediante os contratos com
os indivíduos, e por via do qual o indivíduo conflui neste
todo com uma parte dos seus direitos, recebendo em troca 18
os direitos de soberania.
As duas partes neste contrato são: o indivíduo, de um
lado, o corpo do Estado, pelo outro lado. O contrato está

245
condicionado pela livre vontade formal de ambas as partes
de celebrarem entre si um contrato. A vontade material
sobre a qual as partes se devem pôr de acordo incide, por
um lado, sobre uma propriedade determinada, e, pelo
outro, sobre uma renúncia a tudo o resto, bem como sobre
uma determinada contribuição para o poder protetor.
Mediante o contrato, o cidadão obtém, por seu lado, uma
propriedade segura e o Estado obtém a renúncia deste indi-
víduo para que rodos os outros cidadãos tenham uma posse
tutelada pelo Direito, obtendo também uma determinada
contribuição para o poder protetor.
Este contrato garante-se a si próprio: tem em si pró-
prio o fundamento suficiente para ser respeitado, tal como
rodo o organismo tem em si mesmo o fundamento com-
pleto do seu ser. Para qualquer pessoa que seja, ou este con-
trato não existe de rodo em rodo, ou então obriga-a com-
pletamente. Aquele que não o cumpre não está incluído
nele, e quem está incluído nele cumpre-o necessariamente e
na íntegra. Quem não participa nele não participa em
nenhuma relação jurídica e está juridicamente excluído, por
completo, da interação com outros seres semelhantes no
mundo sensível.

Corolário

Tanto quanto me é dado saber, o conceito de rodo do


Estado foi até ao momento presente estabelecido apenas
por via da agregação ideal dos indivíduos e, com isso,
vedou-se o acesso à verdadeira inteleção da natureza dessa
relação. Desse modo, por via da agregação ideal dos indiví-
duos, pode reunir-se num rodo o que quer que seja. O vín-
culo de união é então somente o nosso pensamento; tudo

246
aquilo que está unido está de novo isolado como anterior-
mente se procedermos à junção de uma outra maneira, cir-
cunstância essa que depende do arbítrio. Uma verdadeira
união não é concebida antes de se ter mostrado um vínculo
de união para além do conceito. (Expressamo-nos assim
numa perspetiva empírica; numa perspetiva transcendental,
deveríamos dizer: antes de se ter mostrado aquilo que no
pensamento é necessário para a união.) Na nossa exposição,
foi isto que aconteceu. No conceito daquilo que há que
proteger, todos os indivíduos confluem numa unidade, em
consequência da necessária indeterminação inerente à ques-
tão de saber quais os indivíduos que irão precisar de uma
proteção visível e, mais ainda, a que indivíduo irá a prote-
ção beneficiar de maneira imperceptível, ao reprimir por
intermédio da lei a vontade má, antes que ela venha à
superfície.
A imagem mais apropriada para ilustrar este conceito é 19
a de um produto organizado da natureza, imagem a que se
recorreu com frequência nestes últimos tempos<30l para des-
crever os diversos ramos do poder público como consti-
tuindo uma unidade, mas, tanto quanto me é dado saber,
não para dar a conhecer a relação civil no seu todo. Tal
como no produto da natureza, cada uma das partes só pode
ser o que é nesta conexão e fora desta conexão não seria,
pura e simplesmente, aquilo que é; fora de qualquer cone-
xão orgânica, não seria mesmo nada, porque sem a ação
recíproca de forças orgânicas que se conservam umas às
outras em situação de equilíbrio não haveria nenhuma
forma que persistisse, mas sim um combate eterno do ser e
do não-ser, combate que nós nem sequer podemos conce-
ber; do mesmo modo, é só na conexão estadual que o
homem obtém uma determinada situação na série das coi-
sas, um ponto de apoio na natureza, e cada um obtém esta

247
determinada situação relativamente aos outros e à natureza
unicamente pelo facto de que está nesta determinada cone-
xão. Fora desta situação, só haveria lugar a uma fruição pas-
sageira, mas nunca se poderia contar com algo futuro; e até
mesmo esta fruição passageira careceria de legitimidade, se
pensarmos que existem também outros seres semelhantes a
nós que teriam o mesmo direito a uma tal fruição.
Mediante a união de todas as forças orgânicas, constitui-se
a Natureza; mediante a união do arbítrio de todos, consti-
tui-se a Humanidade. - A essência da matéria bruta, que
deve ser pensada unicamente em paralelo com a matéria
organizada e como parte do universo organizado, consiste
em que na matéria bruta não pode encontrar-se nenhuma
parte que não tenha em si mesma o fundamento da sua
própria determinação, nenhuma parte cuja força motriz
não possa ser explicada completamente pelo seu ser e o seu
ser pela sua força motriz; a essência da matéria organizada
consiste em que não se encontra nela nenhuma parte que
tenha em si mesma o fundamento da sua determinação e
que nela não se encontra nenhuma força motriz que não
suponha um ser fora dela, nem nenhum ser que não supo-
nha uma força motriz fora dele. A mesma relação existe
entre o homem isolado e o cidadão. O primeiro age sim-
plesmente para satisfazer as suas necessidades e nenhuma
necessidade é satisfeita a não ser por via do seu próprio
agir; aquilo que é exteriormente é-o somente graças a si. O
cidadão, pelo contrário, tem diversas coisas que fazer e que
deixar de fazer, não por causa de si mesmo, mas por causa
dos outros; ao invés, as suas necessidades mais elevadas são
satisfeitas sem a sua intervenção, graças à ação dos outros.
No corpo orgânico, cada parte conserva continuamente o
todo e, ao conservá-lo, conserva-se a si própria; é da mesma
maneira que o cidadão se relaciona com o Estado. De

248
facto, não há necessidade nem num caso nem no outro de
uma disposição especial para esta conservação do todo, pois
cada parte, ou cada cidadão só se conserva a si próprio na
situação que lhe foi destinada pelo todo: e é precisamente 20
na medida em que o todo conserva cada uma das partes
nesta situação que o todo volta a si mesmo e se conserva a
si próprio.

249
SEGUNDA SECÇÃO DA DOUTRINA DO DIREITO POLÍTICO

DA LEGISLAÇÃO CIVIL

§ 18. Sobre o espírito do contrato civil ou de propriedade

I. O contrato acima descrito relativo à propriedade


em geral, que constitui a primeira parte do contrato polí-
tico, fundamenta a relação jurídica de cada indivíduo com
todos os outros indivíduos no Estado, sendo, por conse-
guinte, a base daquilo a que chamamos legislação civil,
Direito Civil, etc. Só temos, portanto, de examinar comple-
tamente este contrato; e, com isso, esgota-se o objeto da
nossa investigação na presente secção.
A essência do direito originário é, nos termos da
demonstração acima produzida, uma interação duradoura,
que depende unicamente da vontade da pessoa, entre a pró-
pria pessoa e o mundo sensível exterior. No contrato de
propriedade, é atribuída com caráter de exclusividade a
cada indivíduo uma parte determinada do mundo sensível
como esfera desta sua interação; e esta parte do mundo sen-
sível está garantida a cada indivíduo sob duas condições:
que ele não perturbe a liberdade de todos os demais nas
suas esferas respetivas e que ajude a protegê-las com a sua
contribuição no caso destas virem a ser agredidas por um
terceiro.

251
Em primeiro lugar, é-lhe atribuída uma esfera para o
exercício da sua liberdade e nada mais que isso. Esta esfera
contém certos objetos, determinados pela liberdade que lhe
cabe. Consequentemente, até onde se estenda a liberdade que
lhe cabe, até aí e não mais além, estende-se o seu direito de
propriedade sobre os objetos. Ele recebe-os exclusivamente
com vista a um cerro uso; e é somente deste uso dos objetos
e, sobretudo, daquilo que é prejudicial para este uso que ele
tem o direito de excluir quem quer que seja. O objeto do
contrato de propriedade é uma atividade determinada.
(Recordemo-nos do que acima foi dito. Que eu tenha
submetido algo aos meus fins é o primeiro fundamento de
toda a propriedade, de acordo com o conceito de direito
originário. - Mas a que fins? Esta questão coloca-se a qual-
quer um no momento da celebração do contrato social, que
21 tem de ser integralmente determinado e determinante.
É só este fim declarado e reconhecido nas coisas que é
garantido e nada mais do que isso; e a propriedade do
objeto só se estende até à consecução deste fim, como é, de
imediato, claro.)

II. Ora, estes fins pode ser muito diferentes, inclusiva-


mente quanto ao uso do mesmo objeto, sendo-o, por con-
seguinte, quanto ao uso de objetos de espécies distintas.
Coloca-se a questão de se não pode, porventura, subordi-
nar-se todos os fins possíveis do cidadão a um único fim?
A pessoa, ao agir, pressupõe sempre a sua própria per-
manência; o fim do seu agir presente reside sempre no
futuro e a sua permanência é causa no mundo sensível,
simplesmente na medida em que continua a fluir entre o
momento presente e o futuro. Liberdade e permanência
estão unidas essencialmente e quem garante a primeira
também garante necessariamente a segunda. Na atividade
presente está contido o futuro.

252
A natureza destinou os homens, que são os únicos
seres de que temos de tratar aqui, à liberdade, isto é, à ati-
vidade. A natureza alcança todos os seus fins e, por conse-
guinte, providenciou seguramente também para que este
seja alcançado, sendo, de todo em todo, de esperar que efe-
tivamente o seja. Que disposições poderia ela então adotar
para impelir os homens à atividade?
Supondo que todo o homem terá desejos para o
futuro, então a natureza alcançaria seguramente o seu fim
se tivesse providenciado no sentido de que a possibilidade
de um futuro em geral para este ser estivesse condicionada
pela atividade presente. Ao invés, no desejo do futuro estaria
incluída a necessidade da atividade presente. O futuro esta-
ria condicionado pela atividade presente; na atividade pre-
sente estaria necessariamente compreendido o futuro .
Mas, uma vez que poderia mesmo haver homens que
não tivessem qualquer desejo no futuro, a exigência da per-
manência não está fundamentada em nada mais do que na
atividade presente, que, por sua vez, está condicionada ape-
nas pela exigência do futuro; por conseguinte, as disposi-
ções adoradas pela natureza consistiriam num círculo
vicioso, e assim ela teria de reunir ambos, atividade pre-
sente e futuro, num terceiro elemento presente, que é a dor.
À dor presente está ligada, se a permanência é ameaçada, a
atividade presente e o desejo e a possibilidade de perma-
nência. Esta dor é a fome e a sede; e acontece que a necessi-
dade de alimentação é por si só o móbil originário, do
mesmo modo que a sua satisfação é o fim último do Estado
e de toda a vida e esforço humanos; é evidente que
enquanto o homem permanecer sob a direção da natureza 22
simplesmente e não se elevar a uma existência superior, esta
necessidade é por si só a síntese suprema, que concilia todas
as contradições. O fim supremo e universal de toda a ativi-
dade livre é, por conseguinte, o de poder viver. Este fim

253
todos o têm; e, portanto, na medida em que a liberdade em
geral esteja garantida, está garantido este fim. Sem a conse-
cução deste fim, não seriam, em absoluto, possíveis a liber-
dade e a permanência da pessoa.

III. Obtemos assim uma determinação mais preCisa


do uso da liberdade atribuída a cada particular no contrato
de propriedade. Poder viver é a propriedade absoluta inalie-
nável de rodos os homens. Vimos já que lhes foi atribuída
com exclusividade uma certa esfera de objeros para um
certo uso. Mas o fim último deste uso é o de poder viver.
A consecução deste fim está garantida; é este o espírito do
contrato de propriedade. O princípio de roda a Constitui-
ção racional é: todos devem poder viver do seu trabalho.
Todos os indivíduos subscreveram com todos os outros
indivíduos este contrato. Por conseguinte, rodos promete-
ram a todos que o seu trabalho deve ser efetivamente o
meio para a consecução deste fim: e o Estado tem de tomar
disposições neste sentido. (Num povo em que rodos andas-
sem nus, o direito de exercer o ofício de alfaiate não seria
um direito; ou, se deve existir um tal direito, então o povo
deve deixar de andar nu. Atribuímos-te o direito de execu-
tar tais trabalhos - isto significa o mesmo que dizer: obri-
gamo-nos a comprar-tos.)
Além disso, todo o direito de propriedade se funda no
contrato de todos com todos os outros, que reza assim:
todos nós nos reservamos isto, na condição de te deixarmos
a ti aquilo que é teu. Portanto, assim que alguém não possa
viver do seu trabalho e não se lhe tenha deixado aquilo que
para ele é, em absoluto, seu, o contrato deixa, por com-
pleto, de existir em relação a ele e, a partir desse momento,
ele deixa de estar juridicamente obrigado a reconhecer a
propriedade de quem quer que seja. Assim, para que não se
crie por sua causa urna insegurança da propriedade, todos

254
devem, nos termos do Direito e em consequência do con-
trato social, ceder algo do que é seu, para que ele possa
subsistir. - Desde o momento em que alguém padece de
necessidade, aquela parte da propriedade do outro que é
requerida como contributo para o ali viar da necessidade
deixa de pertencer a quem quer que seja, passando a per-
tencer de direito ao necessitado. É logo no contrato social
que devem ser adoptadas medidas para uma tal repartição;
e este contributo a favor do necessitado é tanto condição de
roda a justiça civil como o é a contribuição para o corpo
proteror, na medida em que o apoio ao necessitado é ele
próprio parte da proteção necessária. Cada um está na
posse da sua propriedade de cidadão enquanto e na condi-
ção de que rodos os cidadãos possam viver daquilo que lhes
pertence; e se não puderem, então essa propriedade cessa e 23
converte-se em propriedade destes últimos; bem entendido,
na sequência do juízo determinante do poder estadual. O
poder executivo tem em rel ação a isso tanta responsabili -
dade como a que tem em relação a rodos os outros ramos
da administração do Estado, e o pobre (bem entendido ,
aquele que participou na celebração do contrato social) tem
um direito coercitivo absoluto à assistência.

IV. O princípio estabelecido é o de que cada um deve


poder viver do seu trabalho. Por conseguinte, a possibilidade
de viver está condicionada pelo trabalho e não existe um tal
direito onde a condição não foi sa tisfeita. Uma vez que
rodos são responsáveis por que cada um possa viver do seu
trabalho e deveriam acudir em sua ajuda se ele não o puder
fazer, eles têm também, necessariamente, o direito de super-
visão sobre se cada um trabalha na sua esfera aquilo que é
necessário para viver e transferem esse direito para o poder
estadual encarregue dos direitos e assuntos da comu nidade.
Ninguém tem uma verdadeira pretensão jurídica à ajuda

255
por parte do Estado antes de ter demonstrado que fez na
sua esfera tudo o que era possível para prover à sua subsis-
tência. E que, todavia, tal não foi possível. Mas, uma vez
que mesmo neste caso não se devia deixá-lo perecer e que o
reparo de o não ter exortado ao trabalho haveria de recair
sobre o próprio Estado, o Estado tem então necessaria-
mente o direito de supervisionar como é que cada um
administra a sua propriedade de cidadão. - Tal como,
segundo o princípio anterior, não deve haver pobres, tão-
-pouco, de acordo com o presente princípio, deve haver
ociosos num Estado conforme à razão. -Uma exceção legí-
tima ao último princípio será revelada com mawr porme-
nor mais à frente .

V Por conseguinte, o contrato de propriedade com-


preende as seguintes ações: a) Todos mostram a todos e, ao
prestar a garantia, ao todo, como uma coletividade, do que
é que se propõem viver. Este princípio vale sem exceção.
Quem não souber fornecer esta indicação não pode ser cida-
dão, pois não pode nunca ser obrigado a reconhecer a pro-
priedade dos outros. b) Todos, e por via da garantia, a cole-
tividade, permitem a cada um esta ocupação profissional,
exclusivamente sob um certo ponto de vista. - Não pode
haver ocupação profissional no Estado sem a sua permissão.
Cada um deve indicar expressamente a sua ocupação profis-
sional e, por conseguinte, ninguém se converte em cidadão
em gera~ mas, quando se entra no Estado, entra-se ao
mesmo tempo numa certa classe de cidadãos. Não pode
nunca haver indeterminação a este respeito. A propriedade
dos objetos pertence a cada um somente na medida em que
tem necessidade deles para o exercício do seu ofício. c) O
fim de todos estes trabalhos é poder viver. Todos, e por via
da garantia, a comunidade, constituem-se em garantes
perante cada cidadão que o seu trabalho atingirá este fim e

256
obrigam-se pelo seu lado a empregar todos os meios para
isso. Estes meios fazem parte do direito completo de cada
um que o Estado tem que proteger. O contrato diz a este
respeito: cada um promete fazer o que lhe seja possível para
poder viver graças às liberdades e direitos que lhe cabem; 24
em contrapartida, a coletividade promete, em nome de
todos os indivíduos, conceder-lhes mais se, não obstante,
ele não tiver ainda o suficiente para poder viver. Todos os
indivíduos se obrigam a contribuir nesse sentido, tal como
o fizeram para a proteção em geral, pelo que os mecanis-
mos de assistência estão já instituídos no próprio contrato
social, tal como está instituído um poder de proteção. O
acesso ao primeiro é, tal como o acesso ao segundo, condi-
ção de entrada no Estado. O poder estadual tem a supervi-
são sobre esta parte do contrato tal como sobre todas as
suas outras partes; e tem o direito de coerção, bem como o
poder de forçar qualquer um ao seu cumprimento.

§ 19. Aplicação completa dos princípios estabelecidos sobre a


propriedade

I. O modo que a natureza encontrou para nos forçar


à atividade livre é o seguinte.
O nosso corpo é um produto organizado da natureza
e nele a organização persiste de maneira ininterrupta, o que
se depreende do conceito de organização em geral, tal
como acima foi demonstrado. Mas a tarefa da natureza
organizadora em geral consiste ou em que a matéria bruta é
acolhida no corpo e só então organizada nele ou então que
a matéria já organizada é nele acolhida e é nele organizada.
Além disso , nesta tarefa da natureza pode ocorrer ainda
uma de duas coisas: ou é a natureza ela própria que traz os

257
matena1s a organizar para a esfera de ação do corpo, ou
então ela contou com a atividade própria do produto para
trazer esses materiais ou para os pôr à sua disposição. Este
último caso só se verifica nos seres que são articulados para
o movimento livre. Ora, dado que nas duas determinações
que acabam de ser enunciadas é a arte da natureza que
obviamente prepondera, pode bem acontecer que as duas
determin ações coincidam, quer dizer, que nos corpos que
estão articulados para o movimento livre a organização só
seja possível graças a materiais já organizados, enquanto
que nos corpos que não estão articulados para o movi-
mento livre a organização produz-se através da matéri a
bruta. Sem nos deixarmos envolver aqui numa investigação
totalmente alheia ao nosso propósito, com o fito de saber
porquê e de acordo com que leis é que isto é assim, conten-
temo-nos simplesmente com a indicação de que é assim . As
plantas são fo rmadas por matéria bruta, ao menos por uma
matéria que, para nós, é bruta e desorganizada; os animais,
pelo co ntrário, alimentam-se apenas do reino do que está
organizado. Aquilo que parece ser uma exceção a esta
25 última regra não o é. Quando o ferro, pedras ou areia são
engolidos pelos animais, porventura por causa do próprio
instinto natural, isto não acontece para alimen tar o an imal,
uma vez que es tas matér ias não são digeridas, mas antes
para expelir do corpo ingredientes nocivos .
Ora, pode muito bem acontecer que criaturas articula-
das se alimentem, por sua vez, de outras criaturas arti -
culadas ou que comam carne. Parece que estas criaturas se
situam a um nível superior da organização. O homem está
obviam ente destinado a obter o seu alimento de ambos os
reinos da natureza organizada.

II. É condição da existência continuada de um Estado


que esteja disponível uma m assa suficiente de alimentos;

258
caso contrário, os homens renunc1anam à sua associação e
teriam de dispersar-se.
Toda a organização tem lugar de acordo com leis natu-
rais, que o homem pode somente conhecer e dirigir, mas
não modificar. O homem pode colocar a natureza nas con-
dições, que ele conhece, em que se verifique a aplicação das
suas leis e contar então que a natureza, pelo seu lado, não
falhará nesta aplicação, adquirindo, assim, o homem a
faculdade de promover e fazer acrescer a organização. É de
esperar que a natureza venha a precisar de uma tal ajuda
quando, por via da liberdade, com a qual a natureza não
pode contar, uma pluralidade de homens queira coexistir
num lugar. Sendo assim, a promoção da organização é o ali-
cerce do Estado, na medida em que é a condição exclusiva
sob qual somente os homens podem permanecer juntos.
Primeiro que tudo, será necessário o acréscimo do
reino vegetal para a alimentação dos homens e do gado. De
acordo com as leis da sua natureza, as plantas estão ligadas
ao solo, crescem a partir dele e estão fixadas nele durante
todo o tempo em que a organização continua a existir. É de
esperar que muitos homens se dediquem em exclusivo à sua
produção e cultivo, e um tal direito deve ser-lhes conce-
dido, pois é a própria existência do Estado que está condi-
cionada pelo exercício deste direito.
A organização progride no tempo, de acordo com cer-
tas leis, e não se pode perturbar a natureza no desempenho
dessas leis. É, pois, absolutamente necessário, em ordem a
alcançar o fim visado, que em cada parte cultivada do reino
vegetal tudo permaneça tal como aquele que o cultiva o
conheceu, uma vez que ele tem de contar com isso no seu
procedimento ulterior; que, por conseguinte, o solo que ele
cultiva lhe seja concedido exclusivamente para ser utilizado
na atividade agrícola. Assim, teríamos de tratar em primeiro
lugar:

259
26 A. Da propriedade do agricultor sobre a terra

1. A terra é o suporte comum da Humanidade no


mundo sensível, a condição da sua subsistência no espaço,
por conseguinte, a condição da sua existência sensível na
sua globalidade. A terra, em particular, considerada como
massa, não é um objeto possível desta posse, uma vez que,
enquanto substância, não pode estar submetida a nenhum
fim exclusivo que um homem possa ter; e excluir todos os
outros do uso de uma coisa sem ser capaz de indicar um
uso para ela é, tal como vimos anteriormente, contrário ao
Direito. (Poder-se-ia dizer: a terra é utilizável para construir
casas; mas então ela já está modificada e não é utilizada
enquanto substância, mas somente como um acidente
dela.) Portanto, o direito do agricultor sobre um determi-
nado pedaço de terra não é senão o direito de cultivar por
si só produtos neste pedaço de terra e de excluir qualquer
outro deste cultivo e de qualquer outro uso deste terreno
que seja contrário a este uso.
O agricultor não tem, por conseguinte, direito de
impedir um uso do mesmo pedaço de terra que não seja
prejudicial à agricultura, por exemplo, a exploração mineira
ou o pastoreio no campo onde já foi feita a colheita e que,
de momento, não vai voltar a ser semeado, a não ser que
tenha ele próprio o direito de guardar o gado. O Estado
tem o direito de permitir ao mineiro que escave os pedaços
de terra que já foram repartidos e o agricultor não tem, de
modo algum, o direito de colocar objeção a isso; tudo isto
na condição de que o campo não se torne inseguro ou não
entre efetivamente em derrocada, caso em que o agricultor
teria de ser indemnizado, seja pelo mineiro, seja pela
Estado, em conformidade com o que a esse respeito disser
o contrato.

260
Os campos são repartidos entre os indivíduos com a
garantia do Estado e assinalados por marcos, a fim de que
exista um Direito seguro. Deslocar um marco é, por conse-
guinte, um crime diretamente contra o Estado, na medida
em que torna inseguro o Direito e provoca litígios inso-
lúveis.
Todo o agricultor que não seja senão agricultor deveria
poder ganhar a sua subsistência com o trabalho do seu
campo. Se não o pudesse fazer com todo o seu trabalho,
ter-se-ia, uma vez que ele não pode ser senão agricultor,
de proceder a uma nova repartição e dar-lhe algo mais, de
acordo com os princípios acima enunciados. Quanto à
questão de se cada um trabalha o seu campo de modo sufi-
ciente a, pelo menos, poder ganhar a sua subsistência é algo
que está sob a supervisão do Estado. Mais adiante indicar- 27
-se-á com maior pormenor uma razão pela qual esta super-
visão vai ainda mais longe.
Como cidadão em geral, o agricultor tem de pagar a
sua contribuição para as necessidades do Estado. Tanto
quanto nos foi até agora dado perceber, ele não pode pagar
a sua contribuição a não ser com os produtos das suas ter-
ras. Enquanto ele não tiver pago esta contribuição, nada é
propriedade sua, pois não cumpriu ainda o contrato em
consequência do qual algo se torna sua propriedade. Aquilo
que resta após a dedução destes tributos deve o Estado, de
acordo com o contrato, protegê-lo contra todas as usurpa-
ções dos outros; mesmo o Estado, pelo menos no que nos
foi até aqui dado a ver, não tem a mínima pretensão em
relação a estes bens. Portanto, só os produtos do agricultor
são sua propriedade absoluta; é a própria substância destes
produtos que lhe pertence e não meramente, como no caso
do campo, um acidente desta substância. (Vamos encon-
trar mais adiante modificações mais pormenorizadas deste
direito de propriedade.)

261
(A proposição: os produtos do meu trabalho são minha
propriedade, proposição na qual alguns quiseram fundar o
direito de propriedade em geral, encontra-se aqui confir-
mada. Como princípio de todo o direito de propriedade,
foi-lhe feita a objeção de que então se deveria primeiro
demonstrar o seu direito a empreender este trabalho. O
que, no contexto do Estado, é bem possível demonstrar;
todos aqueles com os quais o indivíduo se encontra em
interação, e, portanto, em relações jurídicas, conferiram-lhe
com o seu assentimento o direito a realizar este trabalho. É
unicamente sob esta condição que a proposição indicada é
válida no Estado; e, uma vez que, em geral, é só no Estado
que algo tem validade jurídica, a proposição só é válida em
geral sob esta condição.)
2. Em relação àquilo que cresce de modo selvagem
numa terra cultivada, há que supor que o possuidor da
terra o submeteu ao seu fim de cultivo; e, portanto, que
isso lhe pertence legitimamente. Por isso, não pode perten-
cer a um estranho, uma vez que o estranho, ao dispor
disso, interfere com a sua própria livre disposição da sua
terra, o que o impediria, portanto, de alcançar os fins que
lhe estão garantidos.
3. A terra não cultivada é propriedade da coletividade;
pois no momento de repartição da terra não foi dada em
propriedade a nenhum indivíduo. A este respeito, há que
distinguir cuidadosamente entre a substância e os acidentes.
A substância, a própria terra, é algo que a coletividade con-
servou para uma futura repartição, caso esta venha a ser
necessária. Os acidentes, aquilo que nela cresce de modo
selvagem, não podem ser guardados, e sem isso pereceriam,
pelo que é conveniente que possam ser utilizados. O que é
mais apropriado é que a coletividade faça uso deles para os
seus fins públicos, juntando-os aos rendimentos do Estado
28 ou convertendo-os num bem comunitário. Tornam-se com

262
isso um contributo que todos prestam, sem que ninguém
desembolse um único centavo. No entanto, há que observar
a este propósito o seguinte:
a) Aquilo cuja propriedade não está expressamente
determinada no contrato não é propriedade de nenhuma
das duas partes e não é, no Estado, propriedade de nenhum
cidadão individual (Pane I, § 12) . Por conseguinte, no con-
trato dos indivíduos com o Estado no seu todo tem de ser
expressamente determinado se todos os produtos que cres-
cem de modo selvagem, ou se só alguns, e quais, devem
valer como bens comunitários. Por exemplo, o cone das
madeiras (o direito sobre as florestas) . Aquilo que não é
mencionado não é coisa de ninguém, é uma coisa que cabe
ao primeiro, obviamente de entre os cidadãos, que se apo-
dere dela; pois, de outro modo, perder-se-ia sem ser utili-
zada. A terra não está ainda submetida aos fins de ninguém,
pelo que tem de ser inteiramente permitido calcorreá-la
(para cortar e apanhar madeira, colher frutos silvestres, etc.).
b) Aquilo que cresce de modo selvagem deve sempre
ceder espaço ao cultivo, pois que com este se ganham mais
meios de subsistência. Por conseguinte, as terras incultas
devem ser repartidas, desde que as necessidades do indiví-
duo o exijam; e aquilo que alguém quer possuir como pro-
priedade fundiária não pode permanecer sem ser cultivado.
O uso dos acidentes foi concedido a alguém somente sob
a condição de que a terra estava por cultivar. Logo que a
terra venha a ser cultivada, decai o fundamento do seu
direito. O Estado é compensado pela perda que sofre com
isso mediante impostos sobre as novas terras de cultivo. -
Com isto, não se quer, de modo algum, dizer que, por
exemplo, todas as florestas devem ser desmatadas, mas sim-
plesmente, que a extração da madeira deve ser igualmente
produzida artificialmente, com o que as florestas obtêm,
por assim dizer, os direitos dos solos agricultados.

263
B.
Uma vez que estamos a tratar da propriedade fundiá-
ria, tratemos igualmente da mineração, a que já fizemos alu-
são. - Os seus produtos - metais, metalóides, etc. - encon-
tram-se a meio caminho entre os produtos organizados da
natureza e a matéria bruta, constituem a transição da natu-
reza desta última para os primeiros. fu leis de acordo com
as quais a natureza os produz ou são totalmente impossíveis
de descobrir, ou então não foram, pelo menos até agora,
descobertas numa extensão tal que os metais possam ser
artificialmente cultivados, tal como os frutos, isto é, que
possam dirigir a natureza, de acordo com o nosso arbítrio,
29 na formação desses produtos. Formados pela natureza sem
a nossa intervenção, eles são simplesmente achados. - Em
si, cada indivíduo deveria ter liberdade para dizer que quer
procurar metais, como cada um tem a liberdade para dizer
que quer cultivar frutos, e que o interior da terra deveria
ser repartida entre os mineiros, da mesma maneira que a
superfície foi dividida entre os agricultores. Cada um pos-
suiria então como sua própria uma porção do subsolo para
o seu uso, da mesma maneira que o camponês possui por-
ções da superfície para o seu; e os metais achados perten-
cer-lhe-iam como coisa sua, tal qual como os frutos cultiva-
dos pertencem ao agricultor. - Mas, a atividade mineira
não pode ser exercida assim, em parte pela insegurança da
atividade mineira, dado que a produção dos metais não
depende do arbítrio do homem, pelo que não se pode con-
tar com que a atividade mineira venha a prover à subsistên-
cia de quem a ela se dedica, e em parte porque a porção
determinada que foi explorada não pode tornar a ser explo-
rada. Seria necessário que essa atividade fosse empreendida
por uma sociedade que existisse de modo estável, que
pudesse suportar atrasos nos resultados e que pudesse espe-

264
rar com paciência pelo ganho final . Nenhuma sociedade se
encontra melhor qualificada para isto, pelas razões acima
enunciadas, do que o próprio Estado, que, para além disso,
como em breve se demonstrará, tem ainda uma razão espe-
cial para tomar posse dos metais. A propriedade do subsolo,
portanto, continua legitimamente a pertencer à coletivi-
dade: ela permite trabalhá-lo e os mineiros tornam-se traba-
lhadores assalariados (ponto de que se falará mais adiante
com maior pormenor), obtendo o salário que lhes foi deter-
minado, quer descubram muito, pouco ou nada. A minera-
ção é, por conseguinte, um bem comunitário natural, tal
como as florestas.
É segundo este mesmo princtp!O que se deve julgar
sobre o direito de propriedade em relação a tudo aquilo
que a natureza produz do mesmo modo, tal como pedras
preciosas, âmbar e outras pedras raras a que qualquer pes-
soa possa atribuir um valor, pedreiras, depósitos de argila e
areia, ou similares. O Estado tem o direito de fazer desses
objetos um bem comunitário e, uma vez que ele próprio os
faz buscar em quantidade suficiente (está obrigado a isso,
para que não surjam entre a população queixas contra a
falta deles), tem direito a proibir a sua busca a todos os
demais. Se não for assim, e se alguém quiser fazer desta
busca o seu ramo de atividade e a sua posição social deter-
minada, precisa para isto, uma vez que o Estado tem de
saber do que é que cada um vive, da autorização expressa
do Estado, que também lhe pode conceder um privilégio
exclusivo para certas circunscrições, de modo a que, a partir
daí, ninguém tenha o direito de retirar dessas circunscrições
qualquer objeto desse género. Ou, finalmente, quando não
ocorre nenhuma das duas situações, tais objetos, uma vez
que não são propriedade de ninguém, cabem ao primeiro
que os tenha acidentalmente encontrado. A questão princi-
pal é aqui a de que só a lei expressamente promulgada (a 30

265
declaração expressa de que a apropriação teve lugar, tal
como foi acima referido), mas nunca uma lei tacitamente
pressuposta, exclua os cidadãos da tomada de posse.
Pedreiras e coisas do mesmo género são, em muitos
lugares, deixadas ao agricultor que cultiva a terra. De
acordo com os princípios acima enunciados, o seu direito
não se funda na propriedade da terra, mas sim no silêncio
da lei. Sempre que se trate de algo com importância, que
sobreleva o rendimento resultante do cultivo da terra, nada
impede que o Estado se aproprie do terreno e que transfira
para um outro lugar o direito fundamentado que tem o
agricultor de cultivar o frutos da terra, providenciando-lhe
uma porção de terra tão grande e tão boa como a anterior.
É, tal como sempre, evidente que o enriquecimento do
Estado com estas prerrogativas teria de reverter em favor
dos cidadãos individuais e que, em paralelo com o enrique-
cimento do Estado, os impostos diretos teriam de diminuir,
a não ser que as necessidades do Estado aumentem na
mesma proporção.

c.
Há também sobre a terra animais cujos acidentes têm
uma utilidade para os homens, estão submetidos aos seus
fins, ou então cuja própria subsistência é utilizável, a sua
carne é para comer, a sua pele é para manufaturar, etc. Se,
primeiro que tudo, quisermos submeter apenas os seus aci-
dentes para deles fazer um uso regular, então devemos pôr
o animal sujeito a nós; e, uma vez que os animais só
podem alimentar-se e manter-se graças à matéria organizada
e que mesmo depois de colocados pelo homem sob o seu
controlo não é de esperar que a simples natureza os venha a
governar, é preciso vir em auxilio da natureza para alimen-
tar esses animais, isto é, é preciso que sejamos nós a cuidar

266
da sua alimentação, tal como nos compete. Uma vez que a
natureza, como é, em geral, o caso na organização, e, por-
tanto, também aqui, seguirá um curso regular, o fim indi-
cado está condicionado pela posse exclusiva do animal, pelo
facto de que quem o alimenta, o guarda, cuida dele sou eu
só e não outra pessoa e que, em contrapartida, sou eu só
que disfruto das vantagens que ele pode oferecer.
Cada indivíduo tem , em princípio, o mesmo direito
que qualquer outro para se apoderar de um determinado
animal. Tal como não é possível aduzir-se a priori qualquer
razão pela qual este prado deveria ser meu e não do meu
vizinho, também não é possível aduzir qualquer razão pela
qual só eu, e não o meu vizinho, é que poderia ordenhar
esta vaca. A propriedade exclusiva dos animais só pode, por
conseguinte, ser adquirida pelo contrato de propriedade
com o Estado.
Mas com os animais não se passa o mesmo que se 31
passa com uma porção de terra, que permanece sempre no
mesmo lugar e que é designada com exatidão quando é
designada a localização no espaço em que se encontra; o
animal não permanece no mesmo sítio, mas pode movi-
mentar-se livremente. Qual deve, por conseguinte, ser o
sinal que indica que esta determinada cabeça de gado per-
tence como coisa sua a esta determinada pessoa e não a
qualquer outra?
1. Em primeiro lugar, se não fossem todas, mas ape-
nas algumas, as espécies de animais a tornar-se propriedade
exclusiva de determinadas pessoas, ter-se-ia, antes de mais,
de definir que espécies de animais em geral deveriam se r
objeto de um direito de propriedade e quais não deveriam
ser: de modo que a pessoa a cuja sujeição fosse trazido um
certo animal poderia saber de imediato que este animal, se
não é propriedade sua, é, com toda a certeza, propriedade
de alguma outra pessoa, mesmo que não saiba precisamente

267
de qual, uma vez que esta espécie tinha sido declarada pelo
Estado como não podendo ser outra coisa senão proprie-
dade. Se, por exemplo, tenho o direito a caçar, direito a
que nos vamos referir adiante com maior pormenor, posso
atirar sobre um veado, mas não sobre um cavalo que não
conheço. Porque não sobre este último, tal como sobre o
primeiro? Pelo facto de que sei que um cavalo pertence
necessariamente a alguém, apesar de não saber quem é o
seu proprietário. Mas, por exemplo, se alguém domestica
um veado, então este é, sem dúvida, propriedade sua. O
veado escapa-se-lhe e eu abato-o. Alguém pensa que eu hei
de ter a mesma responsabilidade do que se tivesse abatido
um cavalo? A razão disto é que não foi o veado, mas sim o
cavalo, que foi declarado como uma coisa que só pode ser
propriedade. O direito do possuidor mantém-se, mesmo
que o animal se subtraia ao seu controlo e fundamenta-se
no contrato de propriedade originário, que estabelece que
animais devem ser no Estado considerados como proprie-
dade. A esta espécie de animais chamamos animais domés-
ticos.
A razão que determina que são precisamente estas
espécies de animais a ser declarados como propriedade
reside na adequação dos seus acidentes para satisfazer as
necessidades dos homens, na possibilidade de os domesticar
e na necessidade de que deles se cuide.
Mas não se pense que esta domesticação e estes cuida-
dos são o verdadeiro fundamento jurídico do dono; o ver-
dadeiro fundamento só pode ser o contrato, de tal modo
que, se viesse a ser introduzida no Estado uma nova espécie
de animais de criação, como, por exemplo, o búfalo ita-
liano ou o canguru, o direito de propriedade destes animais
teria primeiro de ser garantido pelo Estado, sancionado por
uma lei e tornado público, pois que, de outro modo, o
animal desconhecido poderia ser tomado por um animal

268
selvagem e tratado como tal. (A situação seria diferente se a 32
pessoa mantivesse o animal fechado na sua quinta, situação
em que se converteria em propriedade sua em razão do
lugar em que se encontrava, de acordo com os princípios
do Direito doméstico, de que se falará mais adiante com
maior pormenor). Além disso, o Estado tem o pleno direito
de impedir a guarda de certos animais, por exemplo, cães
que não sejam necessários, ou uma exposição de leões,
ursos ou macacos.
2. Mas a que dono em particular é que pertence, pois,
esta determinada cabeça de gado que, segundo a sua espé-
cie, foi, em geral, declarada como propriedade? Das duas
uma: ou os animais permanecem na terra do seu proprietá-
rio e ao cuidado direto dele, de modo a que este possa sem-
pre declará-los como seus - caso em que, no entanto, o
direito permanece sempre muito mais incerto, dado que
cada um pode facilmente fazer passar como sendo seu o
gado que foi roubado ou que se extraviou, desde que o
tenha dentro do seu rebanho ou na terra que é sua; ou os
animais de vários donos são misturados e conduzidos em
conjunto à pastagem; mas como pode então o proprietário
provar quais as cabeças de gado que são suas? Mortunada-
mente, o instinto animal compensou aqui, em parte, a
negligência do legislador. O animal doméstico habitua-se
ao seu estábulo e apressa-se a voltar a ele, e o juiz decide de
acordo com o veredito do animal. Se não ocorrem mais lití-
gios sobre esta posse, isso há que agradecê-lo tão-somente à
simplicidade e à honestidade das pessoas do povo, porven-
tura também a muitas das suas superstições. Mas então que
outro remédio é que se tem contra o roubo de gado senão
fechar bem o seu estábulo e que meios de prova existem
sobre a ocorrência do roubo? Não seria de exigir num
Estado bem organizado que as cabeças de gado fossem
designadas judicialmente e que estas marcas fossem tão

269
invioláveis e tão submetidas à supervisão da lei como os
próprios marcos territoriais? Assim, não seria fácil haver
confusão e o roubo seria sempre possível de provar.
(À semelhança do que acontece com os cavalos dos exérci-
tos, em que uma tal marcação é realmente possível.) -Toda
a venda deveria ser anunciada judicialmente, com a marca
do animal vendido, e, deste modo, seria aqui também
alcançada a segurança pretendida.
3. Com outros tipos de animais que podem ser objeto
de propriedade, a propriedade é determinada pelo local em
que se encontram; desde que sejam de uma espécie tal que
possam ser fechados num determinado espaço e que, por-
ventura, tenham de o ser para a realização dos fins que com
eles prosseguimos. Logo, este lugar é dado em propriedade
ao proprietário para que dele faça o uso de guardar nele
este determinado animal, e o animal é propriedade sua na
medida em que está neste lugar (viveiros de peixes, aquá-
33 rios, mesmo gaiolas). Se o peixe está fora do viveiro ou o
pássaro fora da gaiola, não são propriedade de ninguém. (A
carpa continua a ser propriedade em terra firme quando
um viveiro foi dividido em ribeiros, dado que a carpa não
se reproduz nos ribeiros; não seria este o caso se a carpa
tivesse chegado a um rio, pois que então o proprietário não
poderia fazer prova da sua propriedade. Está a meio cami-
nho entre o animal selvagem e o animal doméstico: em
terra é animal doméstico, no rio é selvagem. Não é isto que
acontece com os lúcios e peixes semelhantes.)
4. Toda a propriedade é concedida em relação com o
fim que com ela deve ser alcançado; assim também com a
propriedade dos animais. Ora, a substância da maioria dos
animais tem por si mesma uma utilidade, a sua carne pode
comer-se ou, pelo menos, as diferentes partes dos seus cor-
pos podem ser trabalhadas; mas, ao mesmo tempo, os seus

270
acidentes têm uma utilidade (o leite das vacas, o trabalho
dos bois, os ovos das galinhas, etc.)
Portanto, pode muito bem acontecer que o direito
sobre a substância do animal seja limitado; algo que há que
decidir com base no contrato originário e nas leis que estão
neles fundadas; sem que com isso a propriedade em geral,
que pode incluir mesmo os acidentes, seja suprimida ou
limitada, não podendo aí argumentar-se: se eu não posso
fazer com o meu animal tudo o que quero, então como é
que ele é meu? É só de um modo limitado que ele é teu,
é-o somente para um certo uso que o Estado autorizou.
Assim, poderia ser lei que deve sempre ser conservada uma
certa quantidade de gado e que abaixo dessa quantidade
não se possam fazer abates. - A ser assim, o Estado tem
também de ter tomado medidas para que seja produzida a
forragem necessária, pois que senão a legislação acabaria
para se contradizer a si própria.
Os animais reproduzem-se e as suas crias são um aci-
dente cuja utilização é concedida às pessoas. Com o animal
de origem, é, ao mesmo tempo, dada ao seu proprietário
como sua roda a descendência do animal; do mesmo modo
que com o primeiro grão de trigo lhe são dados rodos os
grãos que podem ser produzidos a partir dele, uma vez que
foi concedido o direito de criar gado e de cultivar trigo.
Mas o crescimento dos rebanhos pode muito bem ser limi-
tado até um certo ponto.
5. O animal movimenta-se livremente e alimenta-se
dos produtos da terra; por isso, no caso de um animal pro-
vocar danos, surge um conflito entre o direito de proprie-
dade do agricultor e do dono do gado, que é o seguinte: eu
tenho o direito no Estado de cultivar o campo e os produ-
tos deste são inteiramente meus, diz o primeiro; e eu, res-
ponde o segundo, renho nesse mesmo Estado o direito de
criar gado e esse gado está destinado pela sua natureza, que

271
é muito bem conhecida pelo Estado, a ir livremente à pro-
cura do seu alimento. Este conflito deve ser arbitrado pelo
Estado mediante leis que estão fundadas no contrato de
propriedade originário, leis por via das quais o Estado ou
34 impõe a uma das partes, o dono do gado, que mantenha o
gado que é seu sob vigilância ou, então, de modo mais
equitativo, impõe também à outra parte que proteja bem
o seu terreno com cercas. Aquela das partes que descura o
dever de cuidado que lhe é imposto não só deve ressarcir os
danos daí resultantes, como, além disso, incorre em sanção
penal. Se, depois de tomadas todas as precauções exigidas
pela lei, mesmo assim se produzem danos, há que os consi-
derar como um infortúnio pelo qual nenhuma das partes é
responsável e que o Estado tem de suportar.
6. Admite-se que certas espécies de animais estão des-
tinadas a poder ser unicamente propriedade. Essas espécies
chamam-se domésticas e aquelas que não estão compreendi-
das nelas são, pelo simples facto de não estarem compreen-
didas nelas, espécies selvagens, isto é, não são propriedade
de ninguém. São precisamente estas espécies animais as que
são declaradas selvagens, porque são precisamente estas
que não podem ser domesticadas e, portanto, os seus aci-
dentes não podem ser submetidos aos fins do homem. No
entanto, na medida em que a sua substância é urilizável
para algo que só seria possível com a sua morte, uma vez
que não podem ser domesticadas, elas são um bem que a
coletividade não repartiu, um bem comum, portanto. Não
podem ser propriedade de nenhum indivíduo antes de o
indivíduo ter procedido à sua captura. - Uma vez que estes
animais não podem nunca ser mantidos no interior das
fronteiras do Estado, não podendo, assim, ser reservados
para ocasiões futuras, como o é a terra não cultivada, é
muito apropriado proceder à sua captura onde quer que os
encontremos.

272
Existe entre eles uma grande diferença. Das duas uma:
ou estes animais estão confinados a um elemento que não
está submetido aos fins do homem, pelo menos na medida
em que os homens nele e dele vivam, como, por exemplo, a
água (o caso dos peixes selvagens); ou então, mesmo que
esses animais vivam no mesmo elemento e se alimentem do
mesmo elemento do qual o homem extrai a sua alimentação
(isto é, a terra), o prejuízo que esses animais causam não é
considerado muito elevado (o caso dos pássaros pequenos,
que comem grande quantidade de bagos de cereal e de
fruta, mas que, por outro lado, diminuem também em
grande medida o número de insetos prejudiciais) . O modo
jurídico de proceder em relação a estes objetos não é sim-
ples. Há que praticar a pesca (a captura de pássaros é algo
bastante acidental); e, a fim de que exista aqui uma certa
ordem e que a pesca não seja totalmente destruída por uma
prática desprovida de regras, é adequado que o seu aprovei-
tamento seja repartido entre os indivíduos por zonas deter-
minadas, a ser-lhes atribuídas de modo exclusivo; indiví-
duos esses que devem então ser considerados em relação ao
uso das zonas determinadas como qualquer outro proprietá-
rio, por exemplo, o proprietário da terra na atividade agrí-
cola. Decorre dos princípios acima enunciados que não lhe
é permitido nem impedir um uso do mesmo lugar que não
lhe acarrete prejuízo, por exemplo, a navegação nas suas
partes dos rios, nem perturbar qualquer um dos usos que
foram autorizados a par do seú, como, por exemplo, o cul-
tivo dos campos nas margens dos rios.
Algo diferente acontece com os animais selvagens que 35
causam dano ao homem e perturbam os seus fins, e aqui
incluem-se aqueles que são propriamente designados como
animais selvagens, em especial a caça grossa. É dever do
Estado, que garantiu a cada um a consecução em segurança
dos seus fins , proteger especialmente a agricultura contra a

273
devastação causada pelos animais selvagens, pois a agricul-
tura é a primeira a sofrer com essa devastação. O estado sel-
vagem deve em toda a parte ceder o lugar à civilização e as
ocupações irregulares, com cujo produto não há que contar
para o sustento da população, devem ceder o lugar às
ocupações regulares, cujo produto pode de antemão ser
tomado em linha de conta. É, portanto, de esperar de cada
Estado racional que, em primeira linha, não considere de
modo algum os animais de caça como algo de útil, mas
como uma coisa prejudicial, não como um provento,
mas como um inimigo. A primeira finalidade da caça é a
proteção da agricultura e não a posse da peça de caça. O
Estado teria, na sequência deste ponto de vista, que se ocu-
par desta proteção por meio dos seus serventuários, exata-
mente do mesmo modo como tem de proteger contra os
ladrões, o fogo e a água. Não estaria então sujeito a qual-
quer dúvida saber se o camponês em cujo terreno surge
uma peça de caça tem o direito de a matar, sem antes cha-
mar as pessoas que estão designadas para a caça: tem esse
direito, da mesma maneira que aquele em cuja casa se
declara um fogo tem o direito de o apagar, sem que com
isso as pessoas designadas pela administração<3 1l para a
extinção dos incêndios interponham queixa contra ele.
Mas então, uma vez que a caça comporta também
vantagens consideráveis, não há que pressupor que o Estado
e, para que o possa fazer, os súbditos mediante os seus
impostos tenham de pagar por ela; pelo contrário, é de
esperar que a caça se rec_ompensará e se manterá por si
mesma. O que é mais conveniente é que o direito de caça
seja concedido aos indivíduos em propriedade por sectores,
como a pesca dos peixes selvagens. Observe-se e com-
preenda-se bem que, com isso, os animais não se tornam
diretamente propriedade; não o são até que o caçador os
tenha abatido: o que se torna propriedade exclusiva é o

274
direito de caça nesta determinada zona. No entanto, uma
vez que o fim principal do Estado é, a este propósito, a
proteção da agricultura, o caçador só pode obter este
direito na condição expressa de que os animais selvagens
sejam efetivamente impossibilitados de causar danos e que
o proprietário da caça seja obrigado a reparar todos os
danos ocasionados pelos animais selvagens na sua zona de
caça: isto decorre inexoravelmente do contrato que o indi-
víduo celebrou com o Estado sobre a sua propriedade e do
contrato que o Estado tem que celebrar com o caçador.
Não existe para ninguém um fim de cuidar e conser-
var a caça, a não ser para o próprio caçador. Este fim só lhe
é permitido na medida em que os animais selvagens não
constituam um entrave aos fins da civilização, fins que
sobrelevam sempre a animalidade, quer dizer, na medida
em que os animais selvagens permaneçam na floresta. 36
Aquele que os fosse ali matar atentaria contra a propriedade
do caçador. Quem se deparar com eles no seu terreno tem
o direito de os abater, para impedir os danos. A vida dos
animais selvagens não está, de todo em todo, garantida; em
geral, a sua vida não é no Estado um fim possível, mas só a
sua morte constitui um fim . O animal abatido cabe àquele
que tem o direito de caça nesta zona e, se o animal provo-
cou danos, deve ser este a repará-los; mesmo que o animal
não tenha qualquer valor, está, mesmo assim, obrigado a
fazê-lo. Mas então que fundamento jurídico teria o caçador
para apresentar queixa contra isso? - "O animal que foi
morto poderia ter ainda gerado muitos outros ou eu pode-
ria ter todo o prazer de ser eu próprio a matá-lo" é uma
linguagem que contraria todo o Direito e toda a razão. - A
primeira finalidade da caça é a proteção da civilização,
todos os outros fins são contingentes. Haveria ainda que
impor ao caçador outras obrigações que se referem a este
fim, tais como o extermínio dos predadores, que são ani-

275
mais dos quais ele não pode retirar qualquer utilidade, mas
cuja vida tão-pouco lhe causa diretamente prejuízo (aqueles
que lhe fazem oposição, como raposas, lobos, etc., ele exter-
mina-os logo) , como, por exemplo, os milhafres e aves de
rapina semelhantes, os pardais, mesmo as lagartas e outros
. .
InSetOS nOCIVOS.
Se o caso que admitimos em primeiro lugar viesse a
verificar-se, isto é, se a caça fosse somente um ónus sem
vantagens, então as autoridades teriam de cuidar dela. Mas,
uma vez que é o segundo caso que se verifica, e que à caça
está associado um benefício considerável, o qual - e é aqui
precisamente que reside o mal -, em regra, aumenta à
medida que se cumprem em menor grau as obrigações,
pelo que poderiam frequente e facilmente suscitar-se quei-
xas contra o caçador, a caça deve encontrar-se sob a super-
visão estrita das autoridades. As autoridades não podem,
por conseguinte, reservar para si a caça, que, de acordo
com a primeira perspetiva recai sobre elas como um ónus,
uma vez que a caça está associada a proventos; pelo contrá-
rio, têm de a alienar. Se a caça fosse deixada nas mãos das
próprias autoridades, estas seriam em relação ao camponês
simultaneamente parte e juiz em causa própria, um juiz
corrompido pelo proveito e pelo prazer; o que contraria
todo o Direito. É um absurdo monstruoso ligar à opressão
da lavoura o ganho e o prazer de quem não reconhece
nenhuma autoridade acima de si, mas que constitui ele
próprio a autoridade suprema.

37 o.
Todos os direitos de propriedade até agora descritos
referem-se à posse dos produtos da natureza considerados
simplesmente enquanto tais; isto, quer se ajude a natureza
na sua produção, como na agricultura e na criação de gado,

276
quer se busque somente os produtos por ela produzidos
sem qualquer ajuda do engenho humano, como na ativi-
dade de mineração, na exploração das florestas selvagens, na
pesca e na caça. Queremos, por isso, designar estas classes
de cidadãos com um termo geral, os produtores.
Ora, é muito bem possível que estes produtos brutos
careçam ainda de uma preparação particular pelo engenho
humano para se tornarem apropriados para os fins do
homem e nós, nesta investigação inteiramente empírica,
sem qualquer dedução a priori, queremos apoiar-nos
somente no facto de que é assim. É de esperar que outros
cidadãos se irão dedicar em exclusivo a esta elaboração dos
materiais em bruto para os adaptar aos fins dos seus conci-
dadãos: e isto dá uma segunda classe de cidadãos, a que
vou chamar artesãos, na aceção mais ampla do termo. A
distinção entre as duas classes é clara e a denominação é,
em si, perfeitamente correta. Aqueles que mencionamos
' anteriormente abandonam inteiramente a natureza a si pró-
pria, não lhe prescrevem nada, mas colocam-na somente
em condições de ela poder aplicar a sua força formadora.
Aqueles que só procuram os produtos nem sequer isto
fazem. Logo que a natureza tenha completado a sua tarefa,
o trabalho dos produtores chegou ao fim; o produto está
maduro ou existe o produto bruto. - Entram então em
cena os da segunda classe, que já não contam, em absoluto,
com o concurso da natureza, na medida em que o impulso
formador do produto ou está já extinto em virtude do pro-
duto ter atingido a sua maturidade ou porque eles próprios
têm de proceder à sua extinção para atingir o seu fim. Eles
juntam as partes inteiramente de acordo com o seu próprio
conceito e é neles próprios e não na natureza que reside a
força motriz. Algo que foi produzido desta maneira chama-
-se produto da arte. Cada fio do tear é um tal produto.
Ora, na verdade, o termo artesão foi utilizado de modo

277
mais específico para designar classes particulares desses tra-
balhadores. Mas este uso linguístico não pode prejudicar o
nosso, que se funda a priori numa distinção correta e que,
de modo algum, exigimos que se torne universal, mas que
só reivindicamos, pressionados pela necessidade, para esta
investigação.
É necessário que seja atribuído a um certo número de
cidadãos de modo exclusivo o direito de trabalhar certos
objetos de uma certa maneira. Se não têm um direito
exclusivo, então não têm propriedade. Renunciaram às ocu-
pações dos outros, mas estes não renunciaram à sua. O
38 contrato de propriedade celebrado com eles é unilateral:
limita-se a criar obrigações, mas não atribui direitos. É, por
conseguinte, nulo e inexistente. -A um grupo de cidadãos
autorizado em exclusivo para realizar um certo trabalho
sobre um certo produto chama-se corporação. Os abusos nas
corporações, que são resquícios da barbárie passada e da
incompetência geral, não deveriam existir; mas as corpora-
ções, essas devem existir. A liberalização geral destes ramos
de atividade vai diretamente contra o contrato de proprie-
dade originário.
O artesão deve poder viver do seu trabalho, tal como
foi demonstrado acima. Há que distinguir em geral duas
classes de artesãos: aqueles que empregam simplesmente o
seu trabalho, mas aos quais a matéria não pertence como
sua (operariz), e aqueles em que a matéria é sua propriedade
(opifices). Aos primeiros deve o Estado garantir o trabalho;
aos segundos, o mercado para as suas mercadorias.
(Deve proibir-se os indivíduos de serem eles próprios a
fabricar os seus tamancos ou as suas vestimentas em tecido?
Só numa situação de miséria extrema ou perante a pior das
organizações do Estado é que isto poderia ocorrer a quem
quer que fosse, a alguém que não tivesse em conta o tempo
e as energias de que dispõe e que carecesse em absoluto de

278
um equivalente que pudesse oferecer; pois, de outro modo,
nada teria a ganhar com isso, mas teria sim a perder. Por
isso, não é algo que haja que tomar em consideração na
legislação de um Estado bem organizado.)
O conteúdo do contrato de todos com os artesãos é o
seguinte: vós tendes de prometer fornecer-nos este tipo de
trabalho em quantidades suficientes e capazmente; em con-
trapartida, nós prometemos aceitá-lo somente de vós. Se as
corporações não oferecem um trabalho capaz, perdem o
direito exclusivo que obtiveram por via do contrato; por-
tanto, o exame de todo aquele que quer ser admitido na
corporação, isto é, no contrato, é um assunto da comuni-
dade. O governante ou, porventura, em nome dele a pró-
pria corporação, enquanto direção colegial para este sector
da administração, ·deve calcular quantas são as pessoas que
podem viver de cada ocupação e também quantas são as
pessoas que são necessárias para satisfazer as necessidades da
população.
Se nem todas podem viver dessa ocupação, o Estado
enganou-se nas contas: há que reparar esse engano e indicar
aos indivíduos outros ramos de atividade.

E.
Mas o artesão não se alimenta das suas obras, mas de
produtos. Por conseguinte, estes têm sempre de estar dispo-
níveis em quantidade que seja suficiente, pelo menos de
uma colheita até à outra, para que os habitantes, tanto os
produtores como os artesãos, possam assegurar a sua sobre-
vivência.
Ora, o artesão só pode pretender os produtos do pro- 39
durar em troca do seu trabalho ou daquilo que manufatu-
rou e, ao invés, o produtor só pode pretender o trabalho ou
os artigos manufaturados em troca dos seus produtos.

279
Produzir-se-á um intercâmbio, que o Estado tem de
regular, quer dizer, organizar de uma maneira tal que em
troca de cada trabalho (ou em troca de cada artigo manufa-
turado) estejam disponíveis ou sejam oferecidos tantos pro-
dutos quantos os que o artesão necessite para viver durante
o tempo da fabricação; e, ao invés, que para cada produto
do produtor disponivel o produtor venha a ter, de acordo
com a relação que acaba de ser indicada, o artigo manu-
faturado de que especificamente necessita. - Deve haver
aqui um equilíbrio perfeito entre produtos brutos e artigos
manufaturados.
Não pode haver mais artesãos do que os que se podem
alimentar com os produtos da terra. Um solo improdutivo
não tolera luxos . O povo tem então de limitar os seus
gastos. (Este princípio sofre uma forte restrição por via do
comércio externo, a que não atendemos aqui, pois conside-
ramos cada Estado como um todo autossubsistente. Uma
vez que o comércio externo torna um povo dependente e
não há que contar com a sua duração regular, haveria que
recomendar a cada Estado que se organize de tal modo
que possa prescindir dele.)
Cada um deve poder ter com a maior rapidez possível
aquilo de que necessita. Este tratamento do intercâmbio
exige que haja pessoas que se lhe dediquem em exclusivo: a
classe dos comerciantes. O direito de praticar o comércio é
atribuído de maneira exclusiva, como constituindo a sua
propriedade no Estado, a um número determinado de cida-
dãos, que o Estado deve calcular.
Os comerciantes têm de poder viver do comércio.
Além disso, o comércio está sob a supervisão do Estado,
ponto sobre o qual havemos de voltar a falar.
Tais contratos de intercâmbio, quer tenham sido cele-
brados a propósito do uso da força de trabalho ou sobre
coisas, quer tenham sido celebrados diretamente entre pro-

280
dutores e artesãos ou com intermediação do comerciante
(contratos estes que foram resumidos na fórmula do, ut des,
focio, ut focias, do, ut focias, focio, ut des) estão sob a garan-
tia do Estado e o Estado preocupa-se com o seu cumpri-
mento, pois são algo que deve em absoluto ter validade,
para que seja possível uma relação jurídica entre os homens
na sua coexistência. O Estado não pode garantir aquilo que
não conhece; por conseguinte, estabelece leis que determi-
nam quais os contratos que devem ser válidos e quais não o
devem ser. Um contrato celebrado contra a lei não tem vali-
dade. Um contrato celebrado sem a lei não tem validade
jurídica, recaindo a matéria no âmbito da moral e da
honra. Toda a validade dos contratos procede, direta ou
indiretamente, por intermédio da lei positiva, da lei do
Direito, de acordo com o princípio: aqui lo sem o qual 40
nenhuma relação jurídica seria possível tem uma validade
jurídica absoluta.
Neste intercâmbio de produtos por artigos manufatu-
rados e força de trabalho existe naturalmente uma vanta-
gem decisiva do lado do produtor. Este pode, pelo menos
em grande parte, subsistir sem as obras do artesão, mas este
não o pode fazer sem os produtos do primeiro. Ora, no
contrato social foi prometido ao artesão que deve poder
viver do seu trabalho, quer dizer, que deve permanente-
mente poder ter à sua disposição os produtos convenientes
(o critério foi já indicado). O produtor está, portanto, em
virtude do contrato social, obrigado a vender. Mas, de
acordo com o que vimos anteriormente, os seus produtos
são sua propriedade absoluta e, por conseguinte, ele deveria
ser livre de os vender a um preço tão elevado quanto puder.
Todavia, tal como acabamos de demonstrar, isto não pode
ser-lhe permitido. Por conseguinte, seria necessário estabele-
cer um preço máximo para os víveres e as matérias-primas
mais correntes para a fabricação de artigos . Se, então, o

281
produtor não quisesse vender a este preço e não devendo
ser reconhecido ao Estado o direito de o obrigar pela força
física a vender, o Estado teria, pelo menos, de poder coagir
a sua vontade. O modo mais conveniente do Estado alcan-
çar este fim seria através da venda em estabelecimentos pró-
prios, cuja instalação lhe devia ser muito fácil, uma vez
que, de acordo com a teoria acima exposta, o agricultor
tem de pagar em produtos os seus impostos. O artesão não
está, de modo nenhum, em situação de pressionar em . ter-
mos consideráveis o produtor, pois tem sempre necessidade
de víveres. (Falo, precisamente, da organização do Estado
que é aqui descrita e não da organização habitual, em que o
agricultor tem que pagar os seus impostos em numerário,
sendo, portanto, amiúde muito fácil para aquele que possui
dinheiro espoliá-lo dos seus produtos.)
Há, todavia, que estabelecer uma distinção entre aque-
les artigos manufaturados que são indispensáveis para o
produtor e aqueles que não o são. - Aos primeiros, perten-
cem os utensílios da lavoura, em geral tudo aquilo que diz
respeito à produção ou à apanha dos produtos, bem como
o vestuário de proteção em climas rigorosos e o abrigo. Para
estes objetos tem de ser estabelecido, tal como para os pro-
dutos, um preço máximo; e, a fim de que o Estado possa
fazer respeitar a sua lei, é preciso que existam nos seus esta-
belecimentos os utensílios da lavoura e o vestuário de pri-
meira necessidade; e que tenha ao seu serviço pedreiros e
carpinteiros, com os quais possa mandar construir habita-
ções, se for caso disso. O produtor pode abster-se das
necessidades que são meramente ditadas pelo luxo, se são
demasiado dispendiosas para ele. A sua fruição não lhe está
garantida. (O Estado deve velar para que aquilo que é
supérfluo, em particular aquilo que só pode ser obtido gra-
41 ças ao comércio externo, e com cuja continuidade não se
pode contar, não se torne indispensável. A maneira mais

282
apropriada para que tal possa acontecer é a imposição de
taxas elevadas sobre tais artigos. O propósito de tais medi-
das não deve ser que a arrecadação da taxa ocorra com fre-
quência, mas sim que não ocorra. Se ocorrer com frequên-
cia, então há que elevá-la sempre. O que é preciso é que
isto não aconteça só depois de, em virtude da incúria do
Estado até aí, tais artigos se terem convertido em necessi-
dade, tendo, em certa medida, a fruição desses artigos sido
garantida, por via do silêncio da lei até esse momento.)

F.
Estamos enredados numa contradição.
Tese. Em resultado do contrato social, a todo o cida-
dão que cumpra o seu dever de proteção e de assistência é
garantida como contrapartida pelo Estado a propriedade
absoluta e ilimitada do remanescente. Cada um deve poder
deixar deteriorar, perecer, deitar fora aquilo que é seu, deve
poder fazer disso aquilo que quiser, desde que, com isso,
não cause danos positivos a ninguém.
Antítese. O Estado reclama permanentemente tudo o
que é remanescente, os produtos do produtor, os artigos
manufaturados e o trabalho do artesão para o necessário
intercâmbio; isto, em virtude do princípio contido no con-
trato social: cada um deve poder viver do seu trabalho e
deve trabalhar para viver. O contrato de propriedade ínsito
no contrato social encontra-se, por conseguinte, em contra-
dição consigo próprio. O contrato de propriedade e uma
das suas implicações diretas contradizem-se.
Tão logo encontremos a razão da contradição, fica a
contradição resolvida.
O Estado reclama o remanescente, não em relação à
sua forma, enquanto remanescente e propriedade, mas em
razão da sua matéria, reclama o remanescente porque é algo
que se utiliza para viver.

283
Para resolver a contradição pela raiz teria, portanto, de
se separar a forma e a matéria do remanescente. O Estado
deveria poder dispor livremente do elemento material, sem
tocar no elemento formal.
Sem fazer gala de uma profundidade de espírito que é
aqui desnecessária, resolvo de imediato a questão. Tem de
haver uma mera forma da propriedade, um mero símbolo
seu, que designe tudo o que tem utilidade e finalidade no
Estado, sem que esse símbolo tenha ele próprio a mínima
finalidade que seja; pois que só assim é que o Estado estaria
legitimamente a reclamá-lo para o uso público.
É a isto que chamamos dinheiro. O uso do dinheiro
42 tem necessariamente de ser introduzido no Estado. Com
isto, fica a dificuldade resolvida. O produtor não pode
reservar para si os seus produtos, mas tem de os ceder. Mas
não são eles sua propriedade absoluta, garantida pelo
Estado? - Ele não deve cedê-los sem nada em troca, mas
como contrapartida de artigos manufaturados. Mas neste
preciso momento não precisa de artigos manufaturados,
pelo menos daqueles que vós lhe ofereceis. Nesse caso,
recebe dinheiro. - O mesmo acontece, por seu turno, com
o artesão.
O Estado tem a obrigação de proporcionar artigos
manufaturados ao produtor, em troca dos seus produtos, e
produtos ao artesão, em troca dos seus artigos manufatura-
dos. Se um deles não quis até agora o equivalente que lhe é
trazido em troca daquilo que é seu, recebe por ele o sím-
bolo do seu valor em dinheiro. É como se a mercadoria
tivesse ficado guardada para ele. Cada um deve poder ter
em cada momento, a troco do seu dinheiro, tudo aquilo
cuja fruição lhe foi garantida pelo Estado; pois que cada
moeda nas mãos de um privado é um símbolo de uma
dívida do Estado.

284
O montante de dinheiro que circula no Estado repre-
senta a globalidade daquilo que há para vender na circuns-
crição territorial do Estado. Se com uma quantidade de
dinheiro constante aumenta a quantidade daquilo que há
para vender, o valor do dinheiro aumenta na mesma pro-
porção; se com uma quantidade constante daquilo que há
para vender a quantidade do dinheiro aumenta, o valor
deste diminui na mesma proporção. Por conseguinte, se um
Estado é considerado isoladamente, não interessa se há nele
mais ou menos dinheiro; este acréscimo ou diminuição é
meramente aparente. A quantidade maior não tem um
valor mais elevado do que a mais pequena, dado que ambas
representam sempre a mesma coisa, o conjunto daquilo que
há para vender na circunscrição territorial do Estado; e para
cada parte determinada de todo o dinheiro em circulação
há de sempre haver a mesma parte determinada daquilo
que há para vender.
Está ínsito no conceito de dinheiro, como vimos, que
o elemento material do dinheiro não tem, em absoluto,
nenhuma finalidade para as pessoas. O valor desse ele-
mento material deve fundar-se simplesmente na opinião
geral e no consenso. Cada um tem apenas de saber que
qualquer outro o reconhecerá como equivalente desta parte
determinada daquilo que há para vender. O ouro é, a este
respeito, uma moeda muito boa, pois o seu verdadeiro
valor, a sua utilidade, quase que se reduz a nada face ao
seu valor imaginário, como símbolo. A prata não é, nem de
longe, uma moeda tão boa, pois tem uma considerável ade-
quação intrínseca para ser trabalhada. Estes materiais, por
causa da sua raridade e porque a sua quantidade não pode
ser arbitrariamente aumentada por qualquer Estado, torna-
ram-se moeda em todo o mundo. A moeda de papel e de
couro é a moeda mais adequada para um Estado isolado,
desde que possa impedir a sua contrafação por particulares,

285
pois que o valor do material é insignificante face ao valor
artificial. Além disso, mesmo que o aumento arbitnfrio da
43 quantidade de moeda pelo Estado seja muito fácil de fazer,
tal não acarreta prejuízos, uma vez que, de acordo com a
observação feita anteriormente, o valor da moeda está
numa relação de proporção inversa em relação á sua quanti-
dade. Mas uma vez que nos dias de hoje pelo menos todos
os Estados civilizados praticam o comércio externo e que os
estrangeiros muito dificilmente poderiam estar de acordo
em aceitar com o mesmo valor a moeda do Estado que a
multiplica até ao infinito, estes tipos de moeda, a moeda de
papel e a moeda de couro, perderão consideravelmente
valor, inclusivamente no interior do Estado, em relação ao
ouro e à prata, que têm o mesmo valor no interior e no
exterior do Estado; e isto é tanto mais assim quanto mais
mercadorias imporrar o Estado do estrangeiro e quanto
menos as que tiver para exporrar, resgatando, por essa via, a
sua moeda nacional.
A cunhagem de moeda cabe apenas ao Estado, pois
que só ele pode garantir o seu valor a todos os particulares.
Por isso, as explorações mineiras pertencem necessariamente
ao domínio público.
Os impostos incidem sobre os produtos ou os arrigos
manufaturados dos cidadãos. Podem, como é evidente, ser
pagos também em dinheiro, uma vez que o dinheiro é o
símbolo de rodas as coisas que foi autorizado pelo próprio
Estado. Só que cada um deve ser livre de os pagar também
em espécie, se assim quiser; pois que foi assim que as coisas
foram instituídas na sua origem. A fim de que haja igual-
dade e uniformidade nos impostos, estes têm de ser estabe-
lecidos em espécie, dado que o valor de uma determinada
moeda é muito variável; e, no caso de serem pagos em
dinheiro, há que calcular quanto custa presentemente no
comércio a coisa que é tomada como padrão para determi-

286
nar o imposto. Todavia, no Estado que descrevemos, onde
se fixou um preço máximo para os bens de primeira neces-
sidade, esta alteração do valor da moeda não será muito
considerável.
Aquilo que resta após o pagamento dos impostos é, de
acordo com o contrato político, propriedade pura. Mas
uma vez que, de acordo com o mesmo contrato, o Estado
tem o direito de obrigar qualquer um a compartilhar essa
propriedade com os cidadãos que dela necessitem, o titular
da propriedade recebe em troca dinheiro. Este dinheiro é,
então, propriedade pura absoluta, sobre a qual o Estado já
não tem nenhum direito. Cada peça de numerário que pos-
suo é, ao mesmo tempo, o símbolo de que já cumpri rodas
as minhas obrigações cívicas. Estou a este respeito comple-
tamente subtraído ao controlo do Estado. Os impostos
sobre a posse do dinheiro são completamente absurdos.
Todo o dinheiro foi, pela sua natureza, já objero de dispo-
sição.
As provisões obtidas com dinheiro próprio para uso
pessoal e não para o comércio, que se encontra sob a super-
visão do Estado, e, em geral, tudo o que é comprado para
uso pessoal, como mobiliário, peças de roupa, objeros de
valor, são, do mesmo modo e pela mesma razão, proprie-
dade absoluta.

G. 44

Em consequência do contrato social, o Estado tem a


responsabilidade de proteger e garantir a cada um a pro-
priedade em dinheiro e tudo o que neste mesmo âmbito se
situa, abreviadamente dito, toda a propriedade abso luta.
Ora, rodas estas coisas, e em particular o dinheiro, são no
seu conjunto de uma espécie tal que a sua propriedade não
pode, de rodo em todo, se r determinada por relação a pes-

287
soas determinadas. (Que a terra de cultivo que está situada
entre este e aquele terreno, identificada por tais marcos fun-
diários, me pertence a mim e não a outra pessoa, isto deve
estar inscrito nos livros de registo da minha localidade; se
surgir a este respeito um litígio, estes mesmos registos hão
de decidir, sem mais. Mas corno e pode indicar que esta
determinada moeda de ouro me pertence a mim e não a
outra pessoa? Todas as moedas se parecem e devem parecer-
-se urnas com as outras, urna vez que estão destinadas a
mudar de proprietário sem qualquer outra formalidade.)
Além disso, o Estado não consegue, de modo algum,
ter conhecimento de quanto é que cada um possui em
numerário e coisas similares, e, se o conseguisse, não deve-
ria fazê-lo; o cidadão não tem de tolerar isto, pois a este
respeito encontra-se para além de qualquer supervisão do
Estado. Corno pode então o Estado proteger aquilo que
não conhece, que não deve conhecer e que, pela sua natu-
reza, é totalmente indeterminável? Teria de o proteger de
uma maneira indeterminada, isto é, em geral . Mas para que
tal seja possível, teria de estar ligado e inseparavelmente
associado a algo determinado, a algo que, urna vez que
estes objetos se regem por um Direito que lhes é próprio e
que só a eles se aplica, seria expressamente estabelecido
corno o paradigma da propriedade absoluta, inviolável pelo
próprio Estado e totalmente subtraída ao seu controlo. Este
elemento determinado teria de ser visível, conhecido e
determinável pela pessoa do proprietário.
Este elemento determinado ao qual está ligado o ele-
mento indeterminado pode ser de dois géneros; e esta dis-
tinção resulta de urna distinção que ocorre no elemento
indeterminado que há que determinar. Pois o Estado con-
cedeu a todo o cidadão, desde que ele tenha satisfeito os
encargos públicos, o uso dos bens que ele próprio cultivou,
rnanufaturou ou comprou. Por conseguinte, é mediante

288
este uso direto concedido pelo Estado que é designada e
determinada uma propriedade no Estado. Há que pressu-
por que aquilo que alguém utiliza diretamente lhe pertence,
até demonstração em contrário; pois que deve supor-se
que num Estado bem administrado essa pessoa não veio a
aceder a essa utilização contra a vontade da lei. Mas se uma
pessoa faz um uso direto de uma coisa, essa coisa fica ligada
ao corpo da pessoa. Pois que aquilo que alguém tem nas
suas mãos ou traz sobre o seu corpo é seu, é de quem tem
essa coisa nas suas mãos ou sobre o seu corpo; e, com isso,
apresenta-se um sinal suficiente de que a coisa é sua.
O dinheiro que tenho nas mãos, que conto, que trago no
meu vestuário, é meu, tal como é meu o vestuário ao qual 45
ele está ligado (os vagabundos trazem sempre toda a sua
propriedade absoluta sobre o corpo).
Mas disse-se que não é apenas aquilo que eu utilizo de
imediato, mas também aquilo que destino para um uso
futuro, que constitui a minha propriedade absoluta. Ora,
não é de esperar nem de presumir de mim que eu traga
tudo isto permanentemente sobre o corpo. É, portanto ,
preciso que haja um substituro do corpo por intermédio do
qual aquilo que está ligado a ele seja designado como sendo
minha propriedade. É isto a que chamamos a casa (o aloja-
mento, no sentido mais lato do termo: o quarto que
alguém arrendou, o baú da criada, a caixa do correio, etc.).
A minha casa em geral encontra-se diretamente sob a pro-
teção e a garantia do Estado e, por essa via, também o está
diretamente tudo aquilo que está contido nela. O Estado é
garante contra qualquer intromissão violenta. - Mas o
Estado não sabe, nem deve saber, o que há lá dentro. Os
objetos particulares enquanto tais encontram-se, portanto,
sob a minha proteção pessoal e sob o meu próprio domínio
absoluto; o mesmo acontece com tudo o que faço em
minha casa - obviamente, desde que o efeito da minha

289
atuação permaneça no interior das suas paredes. O controlo
do Estado vai até ao fechar da porta e a partir daí começa
o meu. A fechadura da porta é a linha de fronteira entre o
poder do Estado e o poder privado. É para isso que existem
as fechaduras, para possibilitar que cada um pessoalmente
se proteja. Em minha casa, sou sagrado e inviolável, mesmo
perante o Estado. Nas questões civis, o Estado não pode
prender-me dentro de casa, mas deve aguardar que eu me
encontre em terreno público. Vamos, todavia, ver, a propó-
sito da doutrina da legislação criminal, como é que se p erde
este direito doméstico.
A minha propriedade absoluta é determinada por
intermédio da minha casa. Se algo se encontra dentro dela
- obviamente, com o consentimento e o conhecimento do
Estado -, então essa coisa é minha propriedade absoluta.
Que eu tenha uma casa e que algo se encontre dentro dela
é, no quadro da Constituição que aqui descrevemos, prova
segura de que eu cumpri as minhas obrigações para com o
Estado: sem o ter feito e antes de o fazer, nada tenho; pois
o Estado começa por me subtrair tudo aquilo de que eu lhe
sou devedor.

H.
Se eu sou senhor e protetor absoluto em minha casa,
no sentido mais estrito do termo, isto é, no meu quarto, se
não tiver casa p rópria, tudo o que nela se encontra está sob
o meu domínio e sob a minha proteção.
46 Ninguém pode, sem o meu consentimento, entrar em
minha casa. - Nem mesmo o Estado me pode forçar a dar
essa autorização, uma vez que nem ele pode entrar nela sem
o meu consentimento. No interior da casa, já não nos
encontramos debaixo do controlo e da garantia do Estado,
mas sob o nosso controlo e garantia e, por conseguinte,

290
naquilo que à nossa segurança pessoal diz respeito reme-
temo-nos à boa fé e confiança recíprocas. O que se passa
dentro de casa é um assunto privado e pode ser perdoado;
o que se passa em público é um delito público, em que o
perdão do ofendido não absolve. Dentro de casa, existe um
contrato tácito sobre a segurança recíproca de pessoas e
bens. Quem desrespeita este contrato celebrado com base
na boa-fé tem falta de honradez, quer dizer, torna-se insus-
ceptível de voltar a ter-se confiança nele. (Foi assim que,
desde sempre, em todas as nações, decidiu um sentido ético
profundamente implantado. Em toda a parte se considera
falta de honradez o dono da casa ofender o seu convidado
sob o seu próprio teto e que este ofenda o seu anfitrião.
Em toda a parte pesou sobre o furto doméstico uma infâ-
mia que não recaía sobre o roubo realizado com violência
em público. Este último é, pelo menos, tão nocivo como o
primeiro; não é, portanto, no interesse pessoal que esta opi-
nião universal se poderia fundar. Mas o roubo é enérgico,
opõe abertamente uma força a outra força que não confia
nela; o furto é cobarde, utiliza a confiança do outro para o
prejudicar.)
Tudo o que está dentro de casa, o dinheiro em nume-
rário, o mobiliário, os víveres, etc. (exceto estes últimos no
caso dos comerciantes), está subtraído ao controlo do
Estado e a sua propriedade não está, de todo em todo , dire-
tamente assegurada. Todos os contratos celebrados a este
respeito são celebrados com base na boa-fé. - (A menos
que a parte se declare, para efeitos deste ato, como comer-
ciante e que queira fazer garantir o assunto pelo Estado,
coisa que cada um, se não tem confiança, deve ter liberdade
de fazer, devendo o Estado fazer leis para este efeito.) Se
empresto dinheiro, fiando-me na palavra de honra do
outro, e se este não respeita a sua palavra e nega a dívida,
então não tenho ajuda por parte do Estado: com razão,

291
pois que o nosso contrato não foi celebrado com garantia
do Estado e eu não posso provar juridicamente a dívida. Se,
ao invés, eu receber dele uma livrança, uma vez que o
Estado declarou a livrança como meio jurídico de prova da
dívida, então o nosso contrato está celebrado com garantia
do Estado e o Estado deve-me neste caso a sua proteção. Se
os contratos celebrados com base na boa fé não são respei-
tados, o lesado não recebe ajuda por parte do Estado; mas
aquele que os desrespeitou é desonrado.
A honradez do cidadão é a opinião que os outros têm
daquele que se comporta com boa-fé; isto, obviamente, nos
47 casos em que o Estado não pode garantir nada, pois onde o
Estado presta garantia, tudo é sujeito a coação, não sendo
matéria de boa-fé.
O Estado não tem o direito nem o poder de ordenar
que os cidadãos confiem uns nos outros; pois que o Estado
ele próprio está erigido na base da desconfiança universal e
não goza de confiança, nem nele se deve confiar, como
demonstramos a propósito da Constituição na sua globali-
dade.
Mas o Estado tão-pouco tem o direito de proibir a
confiança em geral. Certamente que está no seu pleno
direito de proibir que aquilo que está sob sua jurisdição seja
acordado com base na mera boa-fé, bem como de anular os
efeitos jurídicos de tais negociações. Pois de outro modo
haveria lugar à propagação da desordem e ser-lhe-ia impos-
sível garantir os direitos, que desconhece, dos privados. Um
terreno, um jardim, uma casa só podem ser alienados sob
supervisão da autoridade; pois a autoridade tem de saber
quem é, em cada momento, o verdadeiro proprietário. Mas
dado que o Estado não pode de modo nenhum intervir
nesta esfera da propriedade absoluta, nem pode tomar
conhecimento daquilo que cada um com ela faz, uma vez
que deve ser permitido ao indivíduo deitar fora, destruir,

292
etc., a sua propriedade, porque não haveria então este de
poder cedê-la com base na boa fé? É, pois, preciso que o
dinh eiro em numerário e os valores pecuniários possam ser
prestados independentemente da supervisão do poder de
autoridade.
Não obstante, o Estado deve proteger a propriedade
absoluta de cada cidadão. O que pode fazer para a prote-
ger contra a ausência de honradez? Nada mais do que
advertir todos os cidadãos contra os homens não honrados que
conhece.
O direito e o dever de o fazer estão ínsitos no contrato
de propriedade: o Estado deve proteger contra todos os
perigos; mas a ausência de honradez é um grande perigo.
Tem, por conseguinte, tanto quanto isso esteja ao seu
alcance, de tornar esse perigo impossível. Para as faltas de
honradez aqui indicadas há que cominar a pena de infâmia.
(Somente para as faltas de honradez aqui indicadas; pois o
Estado não pode modificar a opinião comum, especial-
mente se está fundamentada na essência do homem, como
aquela de que aqui se trata. Voltaire, por exemplo, propõe
que se comine com a infâmia o duelo. Isto é impossível,
pois não se pode levar as pessoas a considerar como tendo
falta de honradez aquele que se expõe a si próprio ao
mesmo perigo de morte que o outro (se bem que os possa-
mos considerar insensatos); tal como, em contrapartida,
qualquer pessoa considera desonroso o assassinato. Mas o
Es tado não pode proibir que se confie numa pessoa sem
honra. Quem o quiser fazer pode fazê-lo por sua conta e
fi SCO.
Ninguém tem o direito de exigir que o outro confie 48
nele; ou que o Estado a tal o obrigue. A confiança adquire-
-se e é dada livremente. Mas cada um tem o direito de exi-
gir não ser declarado sem culpa sua como alguém que não
é honrado. A confiança do outro é para ele um grande

293
bem, que pode vir eventualmente a adquirir e que depende
da boa vontade do outro. Ele não pode ser privado desta
possibilidade; e se alguém tal procurar fazer, há lugar a
quetxa contra essa pessoa.
O direito à honra no Estado é, pois, em bom rigor,
apenas o direito de não passar, sem culpa sua, por alguém
que não é honrado. O Estado garantiu este direito por
via do facto de que ele próprio como um todo e todos
os indivíduos renunciaram, em consequência da lei do
Direito, a interferir no curso natural das coisas e da opinião
comum relativamente a este ponto. É um direito mera-
mente negativo.

I. Do direito à segurança e inviolabilidade pessoais

A liberdade e a inviolabilidade absoluta da pessoa de


cada cidadão não estão expressamente garantidas no con-
trato social, mas estão sempre pressupostas como decorrên-
cias da sua personalidade. É numa tal liberdade e inviolabi-
lidade que integralmente se funda a própria possibilidade
do contrato social e de tudo aquilo sobre que se contrata.
Não se pode bater num cidadão, golpeá-lo ou sequer detê-
-lo sem perturbar o exercício da sua liberdade, sem apoucar
a sua vida, o seu bem-estar e a sua livre atividade. Golpes
ou feridas provocam dor; mas cada um tem o direito de
estar tão bem quanto possa e a natureza lhe permita. Qual-
quer outro ser livre não tem o direito de o perturbar nesse
plano. Atentar contra o corpo de uma pessoa é violar todos
os direitos do cidadão de uma vez só; é, portanto, decerto
um crime no Estado, uma vez que o exercício de todos os
seus direitos está condicionado pela liberdade do seu corpo.
Nos lugares públicos- tudo o que se situe fora de casa
é lugar público, por exemplo, o terreno de cultivo (o jar-
dim é comummente considerado espaço doméstico e bene-

294
ficia dos seus direitos) -, encontro-me sempre sob proteção
e garantia do Estado. Toda a agressão contra a minha pes-
soa perpetrada num lugar público é um crime público; o
Estado deve, no exercício das suas funções e sem que para
isso necessite de uma queixa particular (ex officio), investi-
gar e punir e os privados não podem regular esta matéria
por acordo.
Mas no interior da casa não nos encontramos nem 49
debaixo da proteção do Estado, nem debaixo da sua jurisdi-
ção, se bem que a casa, ela própria, se encontre. No que a
esta diz respeito, uma intromissão com violência, seja de
dia ou de noite, é um crime público e está subordinada às
regras a ele atinentes. Mas aquele que se introduz em
minha casa sem ter procedido a arrombamento, sem ter
rebentado uma fechadura (foi para este efeito que se intro-
duziu o hábito de bater à porta, hábito que não deveria ser
abandonado, e a resposta "entre' equivale à atribuição de
um direito), esse está em minha casa com o meu assenti-
mento e na base de uma boa fé recíproca. Não supus que
ele cometeria uma agressão violenta contra mim ou contra
aquilo que é meu, senão não o teria admitido em minha
casa.
Mas se ela comete uma agressão violenta contra a
minha pessoa ou contra os meus bens, ou contra ambos, e
se eu, por acaso, me defendo pessoalmente contra a agres-
são inicial, será que posso então exigir e esperar proteção
do Estado?
Em primeiro lugar, o Estado não sabe o que se passa
em minha casa, não tem o direito de publicamente o saber,
nem de agir como se o soubesse. Para que o Estado viesse a
sabê-lo, seria preciso que, oficialmente enquanto Estado, de
uma maneira juridicamente válida, eu próprio lhe desse
disso conhecimento, quer dizer, seria preciso que eu apre-
sentasse queixa. (Aqui, mas somente aqui, vale o princípio:

295
onde não há queixoso, não há juiz; mas este princípio não
se aplica àquilo que acontece em lugares públicos. Tabernas,
cafés e similares, em suma, todos os lugares em que se é
bem-vindo em razão do dinheiro, são lugares públicos, pra-
tica-se aí o comércio. Os nossos Estados procedem amiúde
a um alargamento desmesurado desta regra jurídica, que só
é válida parcialmente.) Se as partes quiserem pôr-se amiga-
velmente de acordo, o Estado não tem de inquirir sobre
ISSO.
Mas está então o Estado obrigado a aceitar as queixas
relativas às ofensas privadas e a administrar a justiça e por
que razão? Pela seguinte razão: o Estado tem, na sequência
do contrato social, também de me proteger na minha casa e
proteger tudo o que nela se encontra; só que ele não o
pode fazer diretamente, porque isso iria contra o meu
direito, mas apenas de modo indireto, só na globalidade.
A proteção direta seria contrária ao meu direito, porque a
condição dessa proteção, o conhecimento por parte do
Estado daquilo que se passa em minha casa, seria contrária
ao meu direito. Se eu renuncio a este direito, dando volun-
tariamente conhecimento ao Estado do que aí se passa,
submeto-lhe voluntariamente de um modo direto aquilo
que só indiretamente lhe estava submetido. Aquilo que
voluntariamente submeto à jurisdição do Estado adquire os
direitos de tudo o se que encontra debaixo da garantia do
Estado. - É óbvio que isto deve ser tomado em conta na lei
penal e que esta disposição deve ser tornada pública, a fim
50 de que ninguém espere a impunidade em relação às ofensas
privadas e se encontre defraudado nesta expetativa.
Mas com esta decisão metemo-nos numa grande difi-
culdade. Se, por exemplo, alguém é assassinado em sua
casa, não pode apresentar queixa. Serão os seus familiares a
apresentar queixa, dir-se-á. Mas se não tem familiares ou se
foram estes que o mataram? O Estado não tem jurisdição

296
sobre aquilo que se passa dentro de casa; não há, por conse-
guinte, especialmente no último caso, qualquer proteção da
lei, mas sim uma legislação que, ao tornar perigosa para o
agressor a vida do ofendido, deixando-o apenas em total
segurança através da morte do ofendido, convida todo o
agressor a levar a coisa até ao fim e a preferir matar de ime-
diato aquele cuja denúncia receia.
Isto não pode ser. É preciso, portanto, que a razão
tenha uma solução especial para este caso. Propomo-nos
procurá-la.
Se a vítima do homicídio continuasse viva, poderia
apresentar queixa ou perdoar. Foi injustamente assassinada;
deveria ainda viver e o Estado sabe apenas que ele vive,
uma vez que ele foi morto fora da sua esfera. O Estado
deve continuar a exigir-lhe que decida sobre este caso; a sua
vontade deve, pois, de acordo com o Direito externo per-
feiro, ser considerada pelo Estado como continuando a
existir. A vítima do homicídio não determinou esta von-
tade: mas ela está determinada, declarada e garantida pela
vontade geral de rodos os cidadãos, considerados como indi-
víduos e como súbditos; não pela vontade comum do Estado,
que aqui julga, decide e garante, mas não quer, exige ou
apresenta queixa. - (Falar-se-á, a propósito dos testamentos,
mais pormenorizadamente desta garantia da última vontade
de um morto pela vontade geral dos indivíduos, conceito
que é completamente novo para a nossa investigação. Esta
vontade geral de todos os indivíduos (do público) e a
garantia que ela proporciona intervém precisamente aí onde
depende de rodos os indivíduos estabelecer que o morto
tinha tido uma vontade e que esta vontade é válida, porque
neste caso rodos eles desejam ter uma vontade e fazê-la
valer.) Como deveria ser então a vo ntade do morto, de
acordo com a vontade geral? Essa vontade deveria ser apre-
sentar queixa; é isso que lhe declara a vontade geral. Deve-

297
ria haver aqui um represemame da vomade geral o que à
última vomade do morto diz respeito, alguém que fosse
aqui o queixoso, uma espécie de acusador público: pois o
Estado não sabe, nem pode saber, o que verdadeirameme se
passou. Qualquer particular tem o direito de solicitar ao
acusador público que este cumpra o seu dever. Qualquer
um tem o direito de lhe fazer participação do assumo e, se
ele não apresemar queixa, de apresemar queixa comra ele
próprio.
51 Qualquer particular deve não someme ter o direito,
mas deve também estar obrigado a informar sobre aquilo
que sabe sobre tais ocorrências; e se não o fizer é ele pró-
prio punível e recai sobre ele queixa por parte do represen-
tame que acabamos de referir. O Estado em geral está,
neste setor do poder público, obrigado a preocupar-se com
a morte dos seus cidadãos e com a maneira como morrem.
O óbito é um assumo público. Os médicos devem estar sob
o comrolo do Estado. E assim, invertendo a situação, passa
a ser do imeresse do agressor preservar a vida do ofendido,
pois que enquanto este permanecer em vida pode perdoá-
-lo; depois da morte do ofendido, o agressor cai nas mãos
do público e do seu represemante; e este não pode, em
razão da sua própria segurança, conceder o perdão.
É aqui que se situa o direito de legítima defesa, que
nos propomos tratar já em seguida.
Ninguém tem o direito de defender à custa da sua
imegridade física a propriedade designada pelo Estado, o que
poria necessariameme em perigo a vida quer do agressor
quer do defensor; pois cada um pode ulteriormeme fazer
prova da sua posse, sendo emão reimegrado na situação
amerior e punido o culpado. (Por exemplo, se alguém pro-
cede à colheita de uma terra de cultivo alheia.) Pode, isso
sim, e compete-lhe fazê-lo, remar reunir testemunhos e
provas sobre a pessoa do culpado.

298
Ao invés, qualquer pessoa tem o direito de defender,
mesmo pondo em perigo a vida do agressor, a propriedade
não designada, quer dizer, uma propriedade cuja titulari-
dade só é indicada pelo facto de que a pessoa a traz sobre si
e consigo ou a tem em sua casa. - Aqui não se pode per-
guntar: o que é a vida, face ao dinheiro? Isto é, porventura,
um juízo sobre o que é bom, não sobre o que é conforme
ao Direito. Cada um tem o direito absoluto de não deixar
que o esbulhem com violência do que quer que seja e de
impedir isso por todos o meios. - Se eu protejo a minha
propriedade com a minha própria pessoa, então uma agres-
são com violência contra a minha propriedade é também
uma agressão contra a minha pessoa. Se a agressão se dirigir
desde o início contra a minha própria pessoa, então tenho
naturalmente o mesmo direito de legítima defesa. O funda-
mento deste direito reside em que o auxílio do Estado não
está imediatamente à mão, enquanto a defesa, uma vez que
a agressão se dirige contra uma propriedade insubstituível,
tem de acontecer de imediato.
Isto assinala igualmente o limite do direito de legítima
defesa. Eu tenho este direito unicamente na medida em que
o Estado não me pode defender; não depende, portanto, de
mim que ele não o possa fazer e eu estou juridicamente
obrigado, na medida em que tal dependa de mim, a torná-
-lo possível. Numa situação de perigo, estou obrigado a
pedir de imediato a sua ajuda; isto sucede com o gritar por
socorro. Isto é absolutamente necessário e é condição exclu-
siva de um direito de legítima defesa. Esta circunstância
tem de ser incluída na legislação e inculcada nos cidadãos
desde a juventude, para que eles se acostumem a ela. Pois o
que é que sucede se eu assassino alguém e digo: ele atacou- 52
-me e só poderia salvar a minha própria vida com a sua
morte? O morto não pode acusar-me de mentir; por conse-
guinte, não se pode compreender porque é que eu não

299
deveria afirmar a mesma coisa se fosse eu próprio o agres-
sor. A segurança geral seria muito prejudicada com isso.
Mas se eu tiver pedido socorro posso prová-lo ou, pelo
menos, não se pode provar o contrário em meu desfavor,
pelo que beneficio da presunção de inocência. (A lei das
doze tábuas<32l autorizava a vítima do roubo a matar o
ladrão que opusesse resistência. Com razão, se o roubo dis-
sesse respeito a propriedade não designada; pois que nin-
guém pode ser obrigado a deixar-se esbulhar de algo que
lhe pertence e que não pode ulteriormente provar que é
propriedade sua. Ele tinha o direito de recuperar pela força
aquilo de que foi espoliado. Nesse caso, porém, a defesa do
ladrão seria agressão contra a sua própria pessoa e a sua
própria vida e o agredido tinha então o direito de se defen-
der pondo em perigo a vida do ladrão. Mas a lei exigia que
nessa circunstância ele gritasse por socorro. E, mais uma
vez, com razão; e só com esta limitação é que a primeira lei
podia encontrar aplicação. Com o seu gritar por socorro,
ele punha-se em situação de conseguir que o público fosse
testemunha da sua inocência; ou de receber ajuda que
desarmasse o ladrão e dominasse a sua pessoa, libertando o
proprietário da necessidade de o matar para conservar a sua
propriedade.)
A agressão ou acontece num lugar público (no sentido
já explicitado do termo) ou na minha casa. No primeiro
caso, a aplicação dos princípios enunciados não acarreta
qualquer dificuldade. No segundo caso, nenhum particular,
nem tão-pouco o Estado, tem o direito de entrar em minha
casa. Mas com o meu grito de socorro autorizo o Estado e
qualquer pessoa a entrar nela; submeto, então, diretamente
ao Estado aquilo que inicialmente o Estado só indireta-
mente tinha que proteger. O meu grito de socorro é uma
queixa; é, por conseguinte, renúncia ao meu direito domés-
tico.

300
Todo aquele que oiça chamar por socorro está juridi-
camente obrigado pelo contrato político a vir em auxílio,
de acordo co m os princípios acima enunciados. Pois todos
os indivíduos prometeram a todos os indivíduos protegê-
-los. Ora, o chamar por socorro constitui o anúncio de que se
está perante um perigo que o representante do poder de prote-
ção, o Estado, não pode remediar de imediato. Por conse-
guinte, com um chamar por socorro transmite-se a cada
indivíduo não só o direito mas também o dever cívico de
assegurar diretamente proteção. Se se puder demonstrar que
alguém ouviu chamar por socorro e não veio prestá-lo, essa 53
pessoa é punível, pois agiu contra o contrato social; e a
legislação tem de tomar isto em consideração. Este auxílio
na necessidade não é somente um dever de consciência e um
dever cristão, é um dever cívico absoluto.
Aqueles que vieram prestar auxílio nada mais têm de
fazer e nada mais podem fazer do que separar os contendo-
res e pôr termo à continuação da violência entre eles; mas
não têm, de modo algum, de decidir a favor de um ou do
outro. Se desaparece o fundamento, desaparece aquilo que é
fundado. Mas o direito à proteção direta funda-se no
perigo presente. Mas este foi agora eliminado, pelo facto de
ser presente, e pode esperar-se pelo auxílio do Estado, que é
o único juiz legítimo entre eles. (Por exemplo, que o ladrão
que seja apanhado seja espancado pela populaça é uma bar-
baridade que é contrária ao Direito e que é punível. Desa-
parecido o perigo para a pessoa ou para os bens, a autori-
dade volta a ser o único protetor e juiz.)
Existe ainda um outro caso de autotutela, baseado
num pretenso direito de necessidade, de cuja teoria vamos
tratar já em seguida. Este direito deve ter lugar quando dois
seres livres, não porque um tenha atacado o outro, mas em
virtude de uma mera causalidade da natureza, chegam à
situação de que um deles só pode salvar-se mediante o

301
desaparecimento do outro e que, se nenhum dos dois é
sacrificado, são ambos que desaparecem. (É a este propósito
que surge o exemplo de escola da tábua de salvação a que
se encontram agarrados dois náufragos, mas que só pode
suportar um, tábua essa que, por razões de comodidade, se
transformou em tempos mais recentes numa barcaça dotada
com as mesmas qualidades. Propomo-nos definir rigorosa-
mente o caso mediante conceitos e abster-nos de dar exem-
plos.)
Foi feiro um grande esforço para resolver esta questão
jurídica e deram-se-lhe respostas muito diversas<33 >; tudo
isso por que não se pensou de maneira suficientemente
rigorosa o princípio de toda a apreciação jurídica. -A ques-
tão da doutrina do Direito é a seguinte: como podem
diversos seres livres enquanto tais coexistir entre si? Na
medida em que se coloca a questão do modo dessa coexis-
tência, pressupõe-se a possibilidade da coexistência em
geral. Se essa possibilidade deixa de existir, então a primeira
questão, relativa à determinação da possibilidade, ou seja, a
questão-de-direito, desaparece também por completo. Mas
é este o caso aqui, de acordo com a nossa pressuposição
explícita. Não existe, por conseguinte, nenhum direito
positivo a sacrificar a vida do outro para preservar a minha
própria; mas também não é ilícito, isto é, não conflitua
com um direito positivo do outro, salvar a sua vida à custa
da minha; pois aqui não é já de direito que se trata.
A natureza retirou-nos a ambos o direito à vida e a decis'ão
incumbe à força física e ao arbítrio. No entanto, uma vez
54 que é preciso considerar ambos como submetidos à lei do
Direito, sob a qual, depois do ato, voltarão a estar em rela-
ção aos outros, pode descrever-se o direito de necessidade
como o direito de se considerar como totalmente eximido a
roda a legislação jurídica. (Acabamos de dizer: a decisão
incumbe ao arbítrio. Ora, o arbítrio que não está determi-

302
nado pela lei do Direito encontra-se submetido a uma
legislação superior, a legislação moral; e nesta lei poderia
haver então uma prescrição para o nosso caso. Assim é.
Não faças nada, diz esta lei, mas deixa o assunto ao cui-
dado de Deus, que bem pode salvar-te, se assim for a sua
vontade, e a quem tens de te entregar, se não for essa a sua
vontade. Mas não é este o lugar apropriado para este tema,
pois aqui temos de lidar unicamente com o Direito).
Após o exercício do direito de autodefesa, seja em
resultado de uma agressão ou de um acaso, aquele que o
exerceu tem de responder perante o Estado. Pois ele colo-
cou-se sempre debaixo das leis do Estado e não quer deixar
de ser considerado como estando submetido a essas leis;
ora, naquele caso, ele eximiu-se a elas, porque aí nenhuma
lei jurídica podia valer. É a ele que incumbe a indicação de
que ocorreu o caso desta invalidade. Quem não se apre-
senta de livre vontade ao juiz cria uma presunção de culpa
contra si. A última vontade do morto é presumivelmente a
seguinte: que o assunto seja objeto de investigação. Por
conseguinte, é ao acusador público, que referimos anterior-
mente, que compete apresentar queixa; seja, no caso do
autor pura e simplesmente não se ter apresentado, para o
levar a tribunal, caso em que, se for demonstrável que teria
podido apresentar-se antes, a sua má ação fica logo meio
provada (pois que se ele tem confiança na justiça da sua
causa, porque é que receia o tribunal?); seja, no caso do
autor se apresentar voluntariamente em tribunal, para apre-
sentar em tribunal a parte contrária. O acusado não está
obrigado a apresentar a prova positiva de que foi um caso
de legítima defesa, uma vez que muito poucos são os casos
em que seria capaz de o fazer, mesmo nas causas mais jus-
tas, pois trata-se de uma situação passageira e não habitual.
Se não for produzida contra ele prova negativa de que não

303
foi esse o caso, tal é suficiente para que o processo judicial
contra ele seja suspenso. Mas não está completamente
absolvido, se não puder produzir prova positiva de que agiu
em legítima defesa e enquanto continuar a ser possível que
se venham a produzir no futuro outras circunstâncias
que joguem em seu desfavor. - Desta mera suspensão do
procedimento tratar-se-á com maior pormenor na doutrina
da justiça criminal.
Assim, os bens e a honra do cidadão ficam rigorosa-
mente determinados e, tal como a sua vida, conveniente-
55 mente assegurados; e não se pode ver como é que poderiam
ser melhor assegurados.

K.
Vamos agora examinar a aqulSlçao da propriedade,
indagação que, como se mostrará de imediato, engloba ao
mesmo tempo a indagação sobre o abandono da proprie-
dade.
Aqui trata-se somente da aquisição da propriedade no
sentido mais próprio do termo, ou seja, da aquisição pela
qual o património de alguém aumenta efetivamente; ou
que, em virtude das duas espécies de propriedade, a relativa
e a absoluta, pelo menos, altera a sua natureza. Não se trata
aqui, de modo algum, do simples intercâmbio de uma coisa
de determinado valor por outra do mesmo valor - não é do
comércio que aqui se trata, matéria sobre a qual já dissemos
o necessário e que não constitui propriamente uma aquisi-
ção, mas simplesmente uma troca. Tão-pouco se trata da
aquisição originária, que seria ao mesmo tempo uma aqui-
sição para o Estado, um acréscimo do próprio património
do Estado. Esta aquisição está diretamente submetida às
condições do contrato de propriedade originário. Trata-se
somente da transmissão plena da propriedade de um cida-

304
dão para outro cidadão - trata-se, portanto, de um objeto
específico da legislação civil e é só disso que aqui nos ocu-
pamos -, de tal modo que a propriedade do Estado conti-
nua a ser a mesma, mudando apenas a relação dos cidadãos
entre si: trata-se da transmissão a um cidadão que ou não
tinha esta propriedade ou que não possuía o seu valor nesta
espécie de propriedade.
A propriedade tem uma dupla natureza: absoluta, sub-
traída ao controlo do Estado (v. g. dinheiro e valores); e a
que está diretamente submetida a esse controlo (v. g. terras
de cultivo, jardins, casas, licenças civis, etc.).
Se cada uma das duas espécies de propriedade é inter-
cambiada com a outra, quer dizer, se uma venda está con-
cluída, então cada uma das partes adquire uma espécie de
propriedade que não tinha, sendo, por conseguinte, aqui
que a análise se torna pertinente. - Não se coloca a questão
de saber se o contrato de compra e venda deve ser cele-
brado sob o controlo (judicial) do Estado e sob a sua
garantia. O Estado tem, decerto, jurisdição sobre o objeto
da propriedade, protege-o e atribui-o a tal pessoa determi-
nada; o Estado tem, portanto, de saber quem é o proprietá-
rio. Ninguém é possuidor legítimo de um tal objeto, a não
ser em virtude do seu reconhecimento pelo Estado.
A única questão que poderia suscitar-se seria a de 56
saber em que medida está o Estado obrigado a dar o seu
consentimento a todos os acordos sobre tais objetos cele-
brados entre privados e em que medida pode recusá-los e
invalidar o contrato.
Em primeiro lugar, a intenção juridicamente funda-
mentada do Estado em relação a toda a propriedade que é
atribuída para ser utilizada é que seja utilizada conveniente-
mente para as necessidades do Estado. O comprador deve,
pois, ser exortado a utilizá-la e estar na disposição de o
fazer, por exemplo, praticando a agricultura na terra de

305
cultivo que comprou ou exercendo o ofício para o qual
adquiriu uma licença e compreender que o faz para satisfa-
zer as necessidades do Estado; caso contrário, algo estaria a
ser subtraído ao Estado. - Quanto a saber se se podem
comprar casas com o propósito de as demolir, isso depende
da disposição particular da lei, que deve orientar-se de
acordo com as circunstâncias.
Além disso, uma vez que o vendedor, relativamente ao
seu dinheiro, que é propriedade absoluta, está inteiramente
subtraído ao controlo do Estado, de acordo com a natureza
de uma tal propriedade, se bem que o Estado deva velar
para que seja assegurada a sua subsistência, a compra e
venda deve ser levada a cabo de maneira a que a subsistên-
cia do vendedor seja assegurada em todos os casos e que o
vendedor não venha nunca a constituir um encargo para
o Estado. Este asseguramento pode conseguir-se ou pela via
do vendedor vir a conservar na sua casa ou nas suas terras
aquilo que se chama de remanescente ou então pela via de
vir a colocar o seu capital em segurança sob supervisão do
Estado. Ele não é proprietário absoluto do seu dinheiro,
porque este é o único meio de prover ao seu sustento
e porque ele é responsável perante o Estado pela possibili-
dade da sua subsistência. Como é óbvio, quem vende
renuncia a uma propriedade, ao mesmo tempo que adquire
uma outra, o mesmo sucedendo com o comprador.
Um segundo modo de aquisição e perda de proprie-
dade é o modo absoluto, quando aquele que adquire a pro-
priedade não dá qualquer equivalente àquele que a perde
em seu favor: doação e testamento. - Comecemos com a
doação.
A propriedade transmitida por doação ou é relativa ou
é absoluta. Assim como em relação à primeira nenhum
contrato em geral é válido sem supervisão judicial, uma
doação de propriedade relativa não é válida sem que haja

306
supervisão judicial. - No entanto, a doação de propriedade
absoluta é válida quando houver transmissão manual. Não
pode, por conseguinte, surgir um litígio sobre o facto de se
aquilo que foi oferecido foi aceite ou não. A doação não
produz efeitos jurídicos se, no caso de se tratar de proprie-
dade relativa, o donatário não tiver aceite a doação em tri-
bunal; tratando-se de propriedade absoluta, se a não receber
em mãos ou se não declarar que a quer receber.
Na doação verifica-se precisamente a condição que se
verifica na compra e venda. O doador deve conservar para
si próprio o suficiente para poder viver.
Ninguém tem o direito de reclamar a devolução 57
daquilo que foi doado, uma vez que por via do contrato o
donatário torna-se proprietário legítimo e sem reservas.
Através do testamento algo é transmitido após a morte
do testador. Suscita-se aqui a importante questão de saber
como é que a vontade de um morto pode obrigar os vivos?
O conceito de Direito só vale para pessoas que podem
encontrar-se e que efetivamente se encontram numa relação
de influência recíproca no mundo sensível. Por conse-
guinte, o falecido não tem, à primeira vista, direitos
nenhuns e a sua propriedade reverte para o Estado, que é o
primeiro possuidor, uma vez que nenhum indivíduo pode
entrar na posse sem a sua permissão. Mas é muito bem
possível que uma pessoa nutra em vida desejos relativa-
mente a outras pessoas para o período subsequente à sua
morte. A firme convicção de que estes desejos sertão satis-
feitos constitui, frequentemente, em resultado da firme
convicção por parte daqueles que nisso estão interessados
que assim acontecerá, uma vantagem real em matéria, por
exemplo, de melhores cuidados, de devoção e de amor por
parte daqueles que podemos instituir como nossos herdei-
ros, coisas que são em vida um bem considerável. Dito de
modo abreviado, o acreditar na validade dos testamentos é

307
para os vivos um bem, na base do qual eles podem perfeita-
mente adquirir um direito. É só sob este ponto de vista que
a questão deve ser considerada. Não é, de modo algum,
de direitos dos mortos que se trata, pois os mortos não têm
direitos, mas somente de direitos de pessoas vivas.
Onde quer que essa necessidade de as pessoas acredita-
rem na validade dos testamentos se evidencie, ela deve ser
tida em conta no contrato de propriedade. Todos querem
garantir a todos essa convicção. - Mas este contrato, ponto
a que não deve deixar de se prestar atenção, é um contrato
opcional, quer dizer, uma relação jurídica entre os homens
é perfeitamente possível sem ele, como vimos anterior-
mente. Não é necessário que surja um litígio sobre a
herança das pessoas falecidas. O Estado está lá para se
encarregar disso. (É necessário o contrato sem o qual não
pode existir numa relação jurídica em geral. O contrato
relativo aos testamentos não é deste tipo: e, nesta perspe-
tiva, chamo-lhe contrato opcional.)
Mas esta convicção só se pode produzir na medida em
que os testamentos tenham valor de lei, isto é, valham sem
exceção. Portanto, se todos quiserem garantir essa espe-
rança, eles têm, certamente, de querer essa lei do Estado:
os testamentos devem valer. Todos, com base no seu pró-
prio interesse, garantem ao moribundo a validade da sua
última vontade; ao fazer isto, garantem perante si mesmos a
validade da sua última vontade; o direito do moribundo
fica ligado ao direito de todos os cidadãos que lhe sobrevi-
vem. Não é a sua vontade, a vontade do moribundo, mas a
vontade universal que obriga os vivos que nisso estão inte-
ressados, e particularmente o Estado, que, de outro modo,
58 teria o direito à herança. O Estado, como vontade coletiva
(volonté générale), é, portanto, aqui uma das partes e a von-
tade universal (volonté de tous) é a outra parte no contrato.

308
A superv1sao sobre o Direito testamentário cabe ao
substituto ou representante da vontade de todos, anterior-
mente descrito. Neste processo, ele é, face à autoridade,
autor e tem de velar pela execução dos testamentos. Ele não
se encontra subordinado, como os restantes magistrados, ao
controlo do poder executivo, pois este poder é parte (se
bem que seja perante ele que tem de apresentar queixa e
que seja por ele que tem de ser punido); encontra-se direta-
mente subordinado ao controlo do povo. Qualquer parti-
cular que observe algo incorreto deve ter o direito de o
denunciar. De resto, não é necessário neste caso que tercei-
ros se imiscuam nisto, uma vez que há interessados direta-
mente no assunto.
Os testamentos deveriam ser feitos sob supervisão e
com a assistência deste magistrado; e com assistência de tes-
temunhas. Estas testemunhas representam o público, o qual,
como se mostrou, tem empenho na validade de tais pres-
crições.
Que os testamentos sejam em geral juridicamente váli-
dos é algo que é inteiramente opcional: por conseguinte, é
de igual modo totalmente opcional e depende unicamente
do que vier a dispor a vontade universal, quer dizer, a
vontade do legislador, determinar até onde deve chegar o
direito de se transmitir os bens por testamento; no entanto,
é preciso que algo seja expressamente determinado a este
respeito, pelo que é necessário, pois, fazer leis. Depende do
legislador, que deve ter em conta a situação particular
do Estado, determinar se a sucessão não testamentária deve
ser introduzida e até onde deve limitar a livre disposição da
propriedade (o legar). Há uma só limitação necessária a
priori, precisamente a mesma que encontramos a propósito
da doação em geral: os parentes sobrevivos, por exemplo, a
viúva, devem viver e os filhos devem receber educação, isto
é, devem ser postos em situação de adquirirem eles próprios

309
uma propriedade. Esta possibilidade não deve ser suprimida
pela liberdade dos testamentos, pois o Estado deve ser o
garante da subsistência dos parentes sobrevivas.
Não pode haver nenhum modo de aquisição, para
além dos que foram indicados, que deva ser permitido no
Estado. A nossa investigação relativa à propriedade está, por
conseguinte, integralmente concluída.

59 § 20. Sobre a legislação penal

Tese. Aquele que viola num ponto que seja o contrato


social, faça-o intencionalmente ou por negligência, ai onde
no contrato se contava com a sua circunspeção, perde, rigo-
rosamente falando, todos os seus direitos como cidadão e
como pessoa e fica completamente destituído de direitos.
Demonstração. Como consequência do conceito de
Direito em geral, alguém tem direitos unicamente na con-
dição de ter feito da regra do Direito a lei inviolável de
todas as suas ações e na condição de que seja capaz de ser
efetivamente determinado pela representação desta lei em
todas as manifestações da liberdade que nela se enquadram.
Quem viola intencionalmente a lei não está no primeiro
caso; quem a viola por negligência não está no segundo.
Em ambos os casos, não se verifica a condição da capaci-
dade jurídica, a capacidade de se integrar numa sociedade
de seres racionais; não se verificando essa condição, não se
verifica, consequentemente, o condicionado: a capacidade
jurídica. Deixam de ter direitos.
Esta relação não é modificada pelo contrato de cidada-
nia enquanto tal. Todos os direitos positivos que o cidadão
tem só os tem na condição de que os direitos de todos os
outros cidadãos estejam seguros perante ele. Se não é o
caso, seja por causa da sua vo ntade que é resolutamente

310
contrana ao Direito ou por imprevidência, o contrato é
anulado. Não existe já entre ele e os demais cidadãos a rela-
ção jurídica instaurada pelo contrato social e, como fora
deste contrato não há relação jurídica nem fundamento
possível para ela, deixa de existir em geral qualquer relação
jurídica entre ambas as partes.
Todo o delito exclui do Estado (o criminoso é pros-
crito, quer dizer, a sua segurança está tão pouco garantida
como a de um pássaro, torna-se ex lex, hors de foz). Esta
exclusão teria que ser executada pelo poder do Estado.
Antítese. O fim do poder estadual não é outro senão o
da segurança recíproca dos direitos de todos perante todos e
o Estado não está obrigado senão a uma coisa: a empregar
os meios suficientes para alcançar este fim. Se este fim
pudesse ser alcançado sem proceder a esta exclusão absoluta
de todos aqueles que de algum modo cometeram um
delito, o Estado não estaria necessariamente obrigado a
impor esta pena em relação a um delito contra o qual ele
poderia proteger os seus cidadãos de outra maneira. Não 60
haveria razão para a introduzir em tais casos, mas até agora,
a bem dizer, também não haveria razão para a não introdu-
zir. A decisão seria opcional. Ora, é tanto do interesse do
Estado conservar os seus cidadãos, se isto puder ser conci-
liado com o seu fim principal, como é do interesse de cada
indivíduo não ser, em razão de cada delito, declarado desti-
tuído de direitos. Seria, pois, sob todos os pontos de vista,
conveniente substituir por outras penas a exclusão, de que,
em bom rigor, é merecedor todo o delito, em todos os
casos em que a segurança pública não seja posta em causa
com tsso.
Isto só poderia acontecer graças a um contrato de
todos com todos, contrato que se converteria daí para a
frente em norma para o poder executivo. O conteúdo desse
contrato seria o seguinte: todos prometem a todos, na

311
medida em que tal seja compatível com a segurança
pública, não os excluir do Estado em razão dos seus delitos,
mas permitem-lhes expiar esta pena de outra maneira. Cha-
memos a este contrato contrato de expiação.
Este contrato é útil tanto para todos (o todo estadual),
como para cada indivíduo. O todo obtém com isso a pers-
petiva de conservar o cidadão, cuja utilidade sobreleva a sua
nocividade, bem como a obrigação de aceitar a expiação; o
indivíduo obtém o pleno direito de exigir que se lhe admita
esta expiação em lugar da punição mais severa de que é
merecedor. Existe um direito do cidadão, um direito muito
útil e importante, a esta expiação.
Este contrato converte-se em lei do Estado e o poder
executivo fica obrigado a respeitá-lo.

I. Tal como foi indicado, o contrato de expiação não


se aplica para além dos limites que sejam compatíveis com
a segurança pública. Alargado para além desses limites,
passa a contrariar o Direito e a razão; e num Estado em
que estes limites fossem ultrapassados não haveria sequer
Direito, isto é, a segurança pública não estaria nele suficien-
temente garantida e esse Estado não poderia obrigar nin-
guém a entrar nele ou a permanecer nele.
A pena não é um fim absoluto. Se se afirma que o é,
seja explicitamente ou formulando proposições que não se
podem enunciar senão supondo implicitamente uma tal
premissa (por exemplo, o veredicto inapelável, categórico:
quem matou, deve morrer), a pena deixa de fazer sentido.
A pena é um meio para alcançar o fim último do Estado, a
segurança pública, e o único propósito que com ela se pros-
segue é que, com a ameaça da pena, o delito seja evitado.
O fim almejado pela lei penal é que o caso da sua aplicação
61 não se verifique nunca. A ameaça da pena deve reprimir a
vontade má e produzir a vontade boa que escasseia, fazendo

312
asstm com que o castigo não seja nunca necessário. Mas
para que este fim possa ser alcançado, é preciso que cada
cidadão saiba com certeza absoluta que, se comete um
delito, a ameaça da lei abater-se-á infalivelmente sobre ele.
(A pena existe, por conseguinte, também em função do
exemplo, com a finalidade de que todos mantenham a
firme convicção de que a aplicação da lei penal é infalível.
A primeira intenção da lei penal era dissuadir o criminoso
de cometer um crime. Como esta intenção não foi satis-
feita, a punição do criminoso tem uma outra intenção: pre-
venir que os demais cidadãos e ele próprio no futuro
venham a cometer o mesmo crime. O exercício da justiça
penal é, portanto, um ato público. Todo aquele que ouviu
falar de um crime deve também ouvir falar da punição
desse crime. Seria uma evidente injustiça para todos aqueles
que no futuro venham a cair na tentação de pecar contra
esta mesma lei não os pôr ao corrente de que o crime pre-
térito foi efetivamente punido. Obteriam com isso a espe-
rança de impunidade.)
O princípio material das penas positivas no Estado foi
já indicado e demonstrado mais acima (§ 14). Cada um
deve necessariamente pôr em jogo os seus próprios direitos
e liberdades (a sua propriedade, no sentido mas amplo do
termo) exatamente na mesma medida em que foi tentado,
por motivo interesseiro ou por imprudência, a violar os
direitos de outrem. (A pena deve ser equivalente ao dano,
poena talionis. Que cada um saiba: o mal que causas ao
outro não é ao outro que o causas, mas unicamente a ti
mesmo.) O espírito deste princípio é, como vimos igual-
mente, o seguinte: é preciso que seja dado um contrapeso
suficiente à vontade injusta ou à imprudência.
Onde for aplicável este princípio, o contrato de expia-
ção pode valer; então, como vimos, com a sua aplicação
efetiva pode, certamente, contar-se com a segurança pública.

313
A questão de até onde é que legitimamente se estende o
contrato de expiação está, pois, se bem que só em parte,
resolvida - veremos mais adiante porque é que é só em
parte - com a resposta à questão: até onde é possível esta-
belecer um contrapeso à vontade má ou à imprudência?

II. Este contrapeso ou é possível ou é impossível, seja


pela natureza das coisas, seja em virtude da situação parti-
cular do sujeito em relação ao qual se calcula a eficácia da
lei penal.
Em primeiro lugar, pela natureza das coisas. Precisa-
mente porque aquele que está tentado a infringir a lei quer
algo, ele deve ser impedido de manifestar a sua vontade em
ações. Para poder ser possível esperar eficácia da lei, é, por-
tanto, preciso que a sua vontade vise realmente a posse
deste elemento material. Tem de haver uma vontade mate-
rialmente má, uma vontade egoísta e que cobice os bens
62 alheios. - O mesmo sucede com a imprudência. Na medida
em que o incauto tem pelo menos a prudência suficiente
para não se infligir a si próprio um certo dano, deve ser
possível obrigá-lo a ter cuidado em não infligir o mesmo
dano a outrem. Neste último caso, há lugar apenas a ressar-
cimento de danos, porque se supõe que o valor da proprie-
dade do outro se perdeu por completo: no primeiro caso, o
agressor não se limita a restituir ao legítimo possuidor
aquilo de que se apropriou indevidamente, como, para
além disso, tem igualmente de pagar, como castigo, uma
compensação de valor idêntico.
(É aqui o lugar onde se pode esclarecer por completo
a teoria do contrapeso. Se não se retira ao ladrão mais do
que aquilo de que ele se apropriou, o seu único castigo é
ter-se esforçado em vão. Uma vez que ele deveria necessa-
riamente pressupor como possível não ser descoberto, por-
que, caso contrário, não se teria seguramente dado a um tal

314
trabalho em vão, o seu cálculo era o seguinte: ou sou des-
coberto ou não sou. Se se verifica a primeira eventualidade,
restituo aquilo que nem sequer era meu; verificando-se a
segunda, ganho. Não posso perder em nenhum dos casos .
Mas se se introduzir a pena de perda equivalente, a perda
do criminoso no caso de ser descoberto é equivalente ao
que seria o ganho no caso de não ser descoberto. Por conse-
guinte, para ele se atrever a cometer o crime, a balança das
probabilidades teria de propender para o lado da não des-
coberta. Mas uma tal probabilidade não deve existir num
Estado bem governado.)
O princípio do contrapeso não é, pela natureza das
coisas, aplicável, se a vontade é formalmente má, isto é, se o
dano é provocado não em ordem a obter um ganho, mas
apenas com vista a fazer mal. Uma tal vontade não é dis-
suadida pela pena de perda equivalente: o homem mau,
que se regozija com o mal que provoca, aceita de muito
bom grado sofrer uma perda, desde que o seu inimigo
venha a sofrer também um dano. Se não se encontrar outro
meio para proteger os concidadãos contra uma tal vontade
formalmente má, dever-se-ia impor a exclusão do Estado
para todo o delito que dimane dessa vontade.
Temos aqui, pela primeira vez, um caso em que há
que considerar no delito a disposição anímica e as intenções
e estabelecer a pena em função disso. Se é isto simples-
mente que os jurisconsultos têm em mente quando querem
basear a sua apreciação jurídica na importância moral do
delito, têm toda a razão. Mas se estivessem a falar da única
verdadeira moralidade pura, cometeriam um grande erro.
Nenhum homem pode, nem deve, ser a este respeito o juiz
do outro. A única finalidade da punição civil, o único crité-
rio da graduação da pena, é a possibilidade de segurança 63
pública. Causar danos à segurança pública, sem outro pro-
pósito que não seja causar danos, não pode punir-se com

315
maior severidade do que o causar danos à segurança pública
por motivos interesseiros, na base do argumento de que
evidenciaria um grau mais elevado de imoralidade. - A
moralidade é uma única só e não admite graduações: con-
siste no querer do dever, unicamente porque é reconhecido
como dever; de resto, se se tratasse da aptidão para essa
moralidade, quem é que poderia afirmar que aquele cujo
crime evidencia, pelo menos, energia e coragem, seria por
esse facto mais perverso do que aquele que é movido ape-
nas pelo interesse? Esta pessoa haveria de ser punida com
maior severidade, porque o temor de uma pena mais
ligeira, a pena de perda equivalente, não garante suficiente
segurança face a ele.
Então, surge a questão de como se pode saber e
demonstrar validamente em relação ao Direito externo em
que caso se enquadra aquele que violou a lei e qual o prin-
cípio de punição que lhe deve ser aplicado?
Em relação a quem puder provar que tinha necessi-
dade daquilo que subtraiu ao outro, para que fins é que o
necessitava, que utilizou efetivamente isso para estes fins,
etc., deve admitir-se que cometeu o crime por motivos
interesseiros. Em relação a quem não o puder provar, se,
por exemplo, essa pessoa não tiver tomado para si a pro-
priedade do outro nem quiser vir fazê-lo, mas a tiver des-
truído sem proveito para quem quer que seja, surge então
uma outra dúvida. É que o dano não intencional de que
não resulte qualquer benefício para o seu autor e o dano
provocado com dolo são em termos da sua manifestação
exterior muito semelhantes. Como é que se pode distinguir
um do outro? - Há para o dano provocado com dolo dois
critérios, um externo e outro interno. O critério externo
aplica-se quando se podem indicar as ações livres preceden-
tes que só se podem conceber como um meio para o fim
da infração. Ao invés, quem assegura que foi por inadver-

316
tência que causou dano ao outro tem de poder provar que a
sua ação Livre tinha um fim muito diferente, que só aciden-
talmente pode estar ligado ao dano provocado ao outro.
Esta prova positiva não pode ser dispensada. Quem não
puder produzi-la é como se remetesse já para o plano da
intenção dolosa. - No entanto, pode ser sempre possível
um concurso de circunstâncias tão singulares que dê a apa-
rência de intenção maléfica premeditada, apesar de tal não
ter fundamento. Daí que seja preciso ter em conta o crité-
rio interno, vale dizer, saber se houve hostilidade em rela-
ção à vítima, conflitos entre as duas partes, etc., ou se
aquele que é acusado de intenção maléfica se tornou na sua
vida pretérita suspeito de tais disposições anímicas. - Ora,
se a suspeita não é confirmada pelo conjunto das circuns-
tâncias, mas se estas também não a afastam de maneira
convincente, o que pode muito bem acontecer, o que há 64
que fazer então? Uma grande parte dos jurisconsultos reco-
menda neste caso uma sentença mais branda; mas esta
indulgência em relação ao culpado é de uma grande dureza
e injustiça para com a comunidade. Se refletirmos com
rigor sobre o caso, encontramos a solução nele próprio.
A investigação não está concluída e não foi possível con-
cluí-la com as provas disponíveis até ao momento; o acu-
sado não é condenado nem absolvido com as provas adu-
zidas e, por conseguinte, o juiz não tem de o condenar
nem de o absolver. É indubitável que incorreu em negligên-
cia e, de momento, é a punição por negligência que ele
deve sofrer. No que à sua vontade má diz respeito, há que
deixar que se vá e que atue de modo a que se possa
conhecê-lo melhor e que se encontrem, porventura, as pro-
vas que faltam . Que permaneça, por um tempo mais longo
ou mais curto, dependendo das circunstâncias, sob vigi-
lância especial da autoridade, respeitando a sua liberdade,
porque de outro modo não se poderiam observar as suas

317
disposições anímicas. Esta autoridade prestará atenção a se
daquilo que está em litígio não resultam consequências que
possam decidir a questão - aquilo que resulta de um acon-
tecimento é, frequentemente, um meio tão bom ou melhor
de descoberta da verdade do que aquilo que o precedia;
especialmente, se a autoridade deixa ir o suspeito por um
certo tempo, no convencimento de que ninguém o está a
vigiar, e o deixa prosseguir em liberdade os seus propósitos.
Ela vai prestar atenção a se com as suas ações futuras se
confirma ou desaparece a suspeita contra ele. No primeiro
caso, o procedimento intentado contra ele é reaberto; no
segundo caso, decorrido o tempo determinado pela lei, está
plena e formalmente absolvido. Esta suspensão do proce-
dimento judicial foi anteriormente proposta aquando da
indagação sobre o direito de legítima defesa e ela deve ser
recomendada em geral para todos os casos de suspeita não
fundada. Num Estado bem organizado, ninguém que esteja
inocente deve ser castigado; mas também nenhum delito
pode deixar de ser punido.
Há ainda que observar que a lei deveria proclamar
expressamente que o dano causado ao outro unicamente
para lhe fazer mal será punido com maior severidade do
que se esse mesmo dano tivesse sido provocado por motivo
interesseiro. É preciso que cada um tenha tido previamente
conhecimento da lei em conformidade com a qual é
punido, pois, caso contrário, a punição conteria uma injus-
tiça. Além disso, o fim da lei penal, dissuadir a prática do
crime, só pode se atingido graças ao conhecimento geral da
lei penal. O Estado deve promulgar expressamente leis,
obviamente leis equitativas e materialmente adequadas,
sobre o que é que deve ser punido como imprevidência que
atenta contra o Direito, por conseguinte, sobre o cuidado
que cada um deve ter em determinados casos e em determi-
nadas ações em si permitidas, para não causar dano a quem

318
quer que seja. Aquele que observa o cuidado prescrito na 65
lei deve ser absolvido. O dano que apesar desse cuidado
venha a surgir deve ser considerado como um mal enviado
pela natureza, um mal que aquele que o sofre tem de
suportar ou que, de acordo com as circunstâncias, a autori-
dade deve reparar se tiver culpa na produção desse mal, seja
por deficiência das leis, seja por negligência das medidas de
polícia.
A desculpa de que aquele que cometeu o crime não
estava, em virtude de cólera ou embriaguez, na posse da sua
razão absolve decerto da acusação de uma vontade delibera-
damente má; mas numa legislação racional, está longe de
atenuar a transgressão, antes a agravando no caso de se tra-
tar de um estado habitual do réu. Pois uma única ação ilí-
cita pode não ser mais do que a exceção numa vida que é
quanto ao mais e por regra irrepreensível. Mas aquele que
diz: costumo ficar tão encolerizado ou tão embriagado que
deixo de ser senhor dos meus atos, está a confessar que se
transforma regularmente num animal e, por conseguinte,
que é incapaz de viver em sociedade com seres racionais.
Ele tem de perder a sua liberdade até haver certeza de que
melhorou ou então ser excluído sem piedade. - As nossas
legislações perdoaram demasiado, sobretudo com base na
desculpa da embriaguez; e com isso desonram-se a si pró-
prias. Se uma nação ou uma classe social numa nação não
puder abandonar este vício, a legislação não pode decerto
impedir que todo aquele que o queira fazer perca a razão
na sua casa, em conjunto com aqueles que lhe quiserem
fazer companhia nisso, desde que fiquem fechados em casa
até terem recuperado a razão, pois neste caso o Estado não
toma conhecimento da sua situação. Mas aquele que se
encontre em situação de embriaguez num espaço público
deve legitimamente ser posto sob prisão.

319
Em virtude da posição social do sujeito, a ameaça de
perda equivalente é inaplicável àqueles que nada têm a per-
der, uma vez que não possuem mais nada a não ser o seu
corpo (capite censz) . -A esse propósito, ninguém se deveria
queixar de injustiça, dizendo: se alguém abastado, a quem
nada faz falta, rouba, não põe com isso em causa senão
o seu património, que porventura tem em excesso; mas o
pobre, a quem aquilo que tem faz a maior das faltas, se
rouba, deve ser punido com maior severidade. Esta objeção
assentaria na suposição inteiramente errónea de que o
Estado seria o juiz moral das pessoas e que a pena teria de
ter uma relação de equivalência com a sua indignidade
moral. O Estado quer com esta lei apenas proteger a pro-
priedade. Mas a ameaça: aquilo que tu retiras ao outro será
subtraído àquilo que é teu é uma ameaça que, na verdade,
não produz efeitos em relação àquele que nada tem. Pois
este pensará: gostava de ver alguém a querer retirar-me o
que quer que seja; é isto o que se ouve realmente dizer em
Estados que não deram qualquer atenção a este problema,
nem tinham o direito de fazer o que quer que fosse a este
66 propósito, porque não se tinha introduzido nenhum con-
trolo sobre a administração da propriedade nem instituído
um Direito dos pobres. É, por conseguinte, preciso que o
Estado proteja doutra maneira os seus cidadãos contra este
tipo de pessoas. Veremos mais adiante se isto deve suceder
necessariamente por via de exclusão do Estado ou se resta
ainda ao pobre um outro meio qualquer.

III. Contra a vontade de se insurgir diretamente


contra a lei e o seu poder não há contrapeso possível.
O máximo que pode e deve acontecer é que a lei afirme
apenas a sua autoridade tal como foi estabelecida; mas ela
não pode admitir, como contraposição àquilo que o crimi-
noso se propunha, que haja uma duplicação do rigor contra

320
todos, que haja uma duplicação da sua força com a contri-
buição de todos. Todos seriam, então castigados pelo crime
de um só. Por conseguinte, não há aqui lugar, pela natureza
das coisas, à pena de perda equivalente; e a pena de priva-
ção de direitos não pode ser aplicada.
Este crime contra o Estado é cometido de uma dupla
maneira: ou é cometido indiretamente contra o Estado na pes-
soa dos seus cidadãos, na medida em que com eles é o contrato
que é violado, contrato em que o Estado como tal é, ele pró-
prio, parte; ou é cometido diretamente contra o próprio Estado,
por meio de rebelião e alta traição.
Expliquemos em primeiro lugar o primeiro caso. Está
ínsito no contrato social um contrato dos indivíduos com
todos os indivíduos relativamente à propriedade, que o
Estado como tal (entendido como o conjunto dos indiví-
duos entrelaçados num todo organizado) não subscreve,
mas somente garante. Além disso, está ínsito nele um con-
trato dos indivíduos com o próprio Estado (no sentido
indicado) : o contrato em que o Estado promete ao cidadão,
desde que ele tenha cumprido os seus deveres cívicos, pro-
teger a sua propriedade absoluta, a sua integridade flsica e a
sua vida, fazendo-o em geral e em todos os casos. O Estado
em si próprio excluiu-se por completo desta propriedade
absoluta e renunciou a qualquer pretensão a seu respeito;
em relação a ela, não tem quaisquer direitos, mas somente
deveres. O Estado é contraparte do cidadão, respondendo
perante ele diretamente e por si próprio em relação a qual-
quer violação desta propriedade. Ora, se um indivíduo
viola esse contrato do Estado, seja por intromissão violenta
(não em razão de um simples furto doméstico, que é um
crime privado que pode ser perdoado ou em relação ao
qual, no caso de ser punido, há lugar a pena de perda equi-
valente) ou atentado contra a integridade física e a vida de
um cidadão, está a atentar diretamente contra o Estado, na

321
medida em que está a romper com o contrato subscrito
pelo Estado e, na medida em que está a romper com o
contrato subscrito pelo Estado e, tanto quanto o possa
fazer, torna-o indigno de confiança e perjuro e anula o seu
contrato com o lesado. - Segundo a ordem das coisas, o
Estado torna-se parte adversária do lesado, sendo contra ele
que o lesado haveria de apresentar queixa, pois ele tinha-se
colocado na situação de garante da impossibilidade de uma
tal agressão. Foi nesta situação que o criminoso pôs o
Estado; atacou o próprio Estado. E o princípio acima
enunciado é-lhe aplicável: ele deve ser declarado como des-
tituído de direitos.
67 Diretamente praticados contra o Estado são os crimes
de rebelião e de alta traição. Existe rebelião quando alguém
procura renuir ou reúne efetivamente um poder contra o
Estado e se opõe a ele. Existe alta traição quando alguém se
serve do poder que lhe foi concedido pelo próprio Estado
para perturbar ou destruir os fins do Estado; ou também
quando não se utiliza o poder que lhe é confiado para pro-
mover esses fins , usando, assim, a confiança da nação para
frustrar os seus propósitos. O não uso do poder é para a
segurança pública tão perigoso como o seu abuso, sendo,
portanto, igualmente punível. Que te sirvas do poder que
te foi concedido para cometer violências ou que permitas,
com o não uso desse poder, as violências dos outros é para
nós a mesma coisa. Em qualquer dos casos, somos oprimi-
dos. Uma vez que alguém tenha aceite o poder, a nação
conta com a execução dos fins para os quais ela o conce-
deu; e não toma quaisquer outras disposições. Se essa
mesma pessoa tivesse simplesmente renunciado logo ao
cargo, coisa a que tinha pleno direito, a nação ver-se-ia
obrigada a ir buscar outra pessoa; mas o facto de o ter
aceite e de que não o exerce torna impossível enquanto nele
permanecer o exercício desse cargo por outra pessoa.

322
Entrar em rebelião só os privados o podem fazer; só
são susceptíveis de cometer alta traição aqueles que partici-
pam no poder público.

IV Todos os tipos de crime expostos até aqui são de


molde a propiciar uma exclusão absoluta do Estado, dado
que a única forma de expiação que conhecemos até agora, a
pena de perda equivalente, se lhes não aplica. - Resta, no
entanto, a questão de se não poderia haver ainda um outro
meio de expiação para além do da perda equivalente. Se
assim fosse, então haveria, pelas razões acima enunciadas,
lugar para introduzir este meio onde ele for aplicável, em
vez da exclusão absoluta do contrato de cidadania.
Consideremos, em primeiro lugar, o caso do pobre
que furta algo por motivos de interesse pessoal e não tem
nada, quando o que foi furtado já não existe, para reparar o
prejuízo e satisfazer a sanção pecuniária; deve, então, proce-
der-se realmente contra ele com a pena de exclusão? Em
lugar disso, existe uma outra saída, graças à qual se lhe
pode fazer cair em so rte o favor da lei. Ele tem uma pro-
priedade sobre as suas forças e deve satisfazer com o seu
trabalho tanto a reparação como a sanção pecuniária; e isto,
como é óbvio, de imediato, pois até ter pago com o seu
trabalho ele não é cidadão, tal como sucede com todas as
penas, pois, em rigor, com a prática de qualquer delito
opera-se a caducidade do direito de cidadania. Somente
após o cumprimento da pena é que o condenado volta a ser
cidadão. Além disso, este trabalho tem de ser necessaria-
mente prestado sob a supervisão do Estado. Ele perde, pois,
a sua liberdade até que a pena tenha sido cumprida (a pena
em casa de trabalho, que deve ser claramente distinguida da
pena em estabelecimento prisional ou em instituto de reabili-
tação, como explicaremos mais adiante). Por um lado, deste 68
modo, é dada satisfação à lei da perda equivalente; por

323
outro, a pena é de natureza a que, desde que a polícia esteja
organizada de maneira tal que não seja de esperar que o cri-
minoso escape à detenção, se possa muito bem contar com
que cada um seja dissuadido da prática do delito, em vir-
tude da ameaça desta pena.
A vontade formalmente má ou um crime direto contra
o Estado tornam absolutamente impossível que o crimi-
noso, com as suas disposições anímicas atuais, seja tolerado
por mais tempo na sociedade. A pena de exclusão é absolu-
tamente necessária em relação a ele e ela está já declarada
contra ele, tanto pela lei do Direito como pelo fim do
Estado.
Mas não é absolutamente necessário que o criminoso
persista nestas disposições anímicas. Por conseguinte, é pos-
sível estabelecer um segundo contrato sobre a expiação
substitutiva da exclusão, que deva, sem qualquer dúvida,
ser reconhecida como legal, contrato cujo conteúdo é o
seguinte: todos prometem a todos propiciar a oportunidade
de tornaram a ser capazes de viver em sociedade, se se achar
que no presente são incapazes disso; e, o que está incluído
também neste contrato, de os voltar a admitir entre eles
depois de verificada a sua regeneração. -Um tal contrato é
opcional e é benéfico: mas reverte em favor de todos e o
criminoso recebe, portanto, graças a este contrato, um
direito à tentativa de regeneração.
Em primeiro lugar, a pena imposta como consequên-
cia deste contrato é uma expiação substitutiva da exclusão
total, portanto, um favor jurídico para com o criminoso.
Mas cada um pode renunciar ao seu direito; e depende de
cada um aquilo que quer ou não tomar como fovor. ao rejei-
tar este favor, o criminoso revela-se como um malvado
incorrigível que despreza a disciplina e há que o expulsar
sem mais delongas. Que não se acredite que isto seja abrir
um caminho para se eximir à pena e que oferecendo a pos-

324
sibilidade desta opção se frustra o fim da lei, a dissuasão do
crime. Se o Estado está organizado de forma racional e se
os Estados vizinhos também o estão, a exclusão do Estado é
o destino mais terrível que pode vir ao encontro de um
homem, como se mostrará com maior pormenor mais
adiante; e não se deve esperar que alguém faça esta escolha
ou que, tentado a cometer um crime, se tranquilize com a
ideia de que se o seu crime vier a ser descoberto é esta a
escolha que fará. - (Esta é uma observação a fazer também
em relação à pena de perda equivalente, a saber, que o cul-
pado devia submeter-se a ela de livre vontade, pois ela é
igualmente um favor jurídico. Mas neste caso, não é, de
rodo em rodo, de supor que alguém escolherá a perda do
rodo , que está diretamente ligada à exclusão, em vez da
perda de uma parte).
Por outro lado, neste contrato tratava-se de regenera-
ção. Não, de modo algum, de regeneração moral das dispo- 69
sições anímicas interiores. Pois a este respeito ninguém é
juiz de ninguém. Do que se tratava era de regeneração polí-
tica, dos costumes e das máximas para a ação eferiva. Tal
como a disposição moral é o amor do dever pelo dever, a
disposição política é, ao invés, o amor de si mesmo em
razão de si mesmo, a preocupação pela segurança da sua
pessoa e da sua propriedade; e o Estado só pode adoptar
como sua lei fundamental, sem qualquer reserva, esta lei:
ama-re a ri mesmo sobre rodas as coisas e ama os teus con-
cidadãos em razão de ri mesmo. Este amor por si mesmo
que tudo pervaga converte-se, nas mãos da lei penal, preci-
samente no meio de forçar o cidadão a não causar lesão aos
direitos dos outros, na medida em que renuncia a esta
preocupação que faz com que cada um dê ao Estado a
garantia que é exigida e na base da qual o Estado o con-
serva. Para quem não renha tal preocupação , a lei perde
roda a eficácia. Uma pessoa pode livrar-se dessa preocupa-

325
ção de duas maneiras: ou se eleva acima dela por pura
moralidade e se esquece do seu eu empírico no fim último
da razão na sua globalidade, caso em que a lei penal não
tem nenhum papel a desempenhar, na medida em que a
justiça política ocorre por si própria, como dever; ou por-
que não se chega a ter essa preocupação e não se presta
qualquer atenção ao seu próprio bem-estar por rudeza e
barbárie. Caso em que a lei penal não pode desempenhar
qualquer papel e esse homem é absolutamente incapaz de
viver entre outros homens. A regeneração política é o
retorno à preocupação com a sua própria segurança.
Aquele que causa um prejuízo apenas para fazer mal
manifestou, para além da maldade interior, em relação à
qual o Estado não é juiz, uma brutalidade em matéria de
costumes e uma falta de preocupação consigo próprio que é
inabitual. Se em lugar desta brutalidade surgissem suavi-
dade e moderação, se o culpado começasse então a preocu-
par-se com a sua própria segurança, coisa a que será
movido pela amplitude da pena e os diversos males a ela
inerentes, então poderia vir a ser admitido de novo na
sociedade. O mesmo acontece em relação àquele que aten-
tou com violência contra os bens ou a pessoa de outrem. É
selvagem e insociável. No primeiro caso, acresce ainda o
desejo irrefreável dos bens do outro. Que aprenda simples-
mente a amar o seu próprio bem e a dar-lhe valor e a
orientar o seu espírito para a conservação desse bem. Um
bom gestor daquilo que é seu não é nunca um gatuno ou
um ladrão; só o esbanjador o é. - O rebelde pode, muitas
vezes, ser um sonhador bem intencionado, só que equivo-
cado. Que corrija os seus conceitos, que aprenda a conhecer
o quer há de benéfico na Constituição civil em geral e em
particular na do seu Estado e então talvez se torne num dos
mais excelentes cidadãos. - Somente o culpado de alta trai-
70 ção é que agiu sem honra e sem lealdade; não voltará

326
nunca a obter a confiança do povo para o desempenho de
um cargo público. Está habituado ao poder e ao mando e
não quererá contentar-se facilmente com uma obscuridade
modesta e com uma pequena atividade privada. Mas isso
dependeria de se poder fazer baixar suficientemente as suas
expectativas. Isto pode ser difícil: mas quem quereria afir-
mar que é absolutamente impossível? (Dionísio tornou-se
mestre-escola em Corinto) (3 4l . A este propósito, a regra
principal é a seguinte: não perder a esperança na regenera-
ção dessa pessoa e não fazer que ela própria perca a espe-
rança na sua regeneração; por outro lado, fazer com que ela
conserve ainda uma certa satisfação com a sua situação,
bem como a esperança de vir a ter uma melhor. Os dois
objetivos são favorecidos pelo facto , entre outros, de que
eles escolheram livremente esta situação em vez da exclusão
do Estado, cometendo a si próprios a tarefa de se emenda-
rem. Eles confiarão em si próprios, uma vez que o Estado
confia neles.
Ora, estes estabelecimentos de correção têm de ser
convenientemente organizados. Em primeiro lugar, é pre-
ciso separá-los efetivamente da sociedade, de acordo com
o espírito da lei. O Estado tem uma pesada responsabili-
dade por todos os danos provocados por estes indivíduos
que foram temporariamente excluídos da sociedade. Nessa
medida, portanto, eles perderam totalmente a sua liber-
dade. Mas aquele que se deve regenerar tem de ser livre e
aquele que há de julgar sobre a sua regeneração tem igual-
mente de ser livre. A máxima capital é, pois: estas pessoas
têm, dentro dos limites necessários, de ser livres e viver em
sociedade umas com as outras. -Nada para eles sem traba-
lho. Seria o maior erro destas instituições que as necessida-
des dos presos estivessem satisfeitas, independentemente de
trabalharem ou não e que a ociosidade fosse castigada com
o tratamento mais degradante, com pancada, e não com a

327
sua consequência natural, a privação. Por outro lado, todo
o produto do seu trabalho, depois de se descontar o seu
sustento, deve pertencer-lhes. Do mesmo modo, a sua pro-
priedade no Estado, se a tiverem, tem que ser abolida e
posta, entretanto, sob a tutela do Estado, dando-lhes isso a
conhecer. O amor à ordem, ao trabalho, à propriedade
devem surgir e como é que isso poderia acontecer se a
ordem e o trabalho não lhes servissem para nada e se eles
não pudessem adquirir qualquer propriedade? É preciso que
estejam sob vigilância e ao mesmo tempo que não o este-
jam. Desde que não atuem contra a lei, a vigilância não
deve ser visível; mas logo que violem a lei, têm de ser ime-
diatamente punidos pela violação.
(Para isto temos de nos socorrer de regiões isoladas, de
ilhas e áreas costeiras desertas, se se trata de um Estado
marítimo. E não existem ilhas semelhantes nos grandes rios
em regiões interiores? O Estado que, a este propósito,
71 hesita perante os custos não merece qualquer resposta. Para
que devem então servir as receitas do Estado, senão para
semelhantes fins? Além disso, os custos não seriam assim
tão elevados se estes estabelecimentos estivessem adequada-
mente organizados e cada pessoa se ocupasse com aquilo
que aprendeu a fazer. Uma pessoa que é capaz de prover ao
seu sustento quando vivia só, poderá fazê-lo muito melhor
onde um conjunto de pessoas vivam umas com as outras; e
deduzir-se-á ainda algo para os custos de vigilância. Obvia-
mente, se em tais estabelecimentos se verificam reiterada-
mente desvios de fundos, então esses estabelecimentos tor-
nam-se dispendiosos.)
O fim do Estado e a condição em razão da qual o
Estado continua a manter os culpados é a regeneração. Eles
têm, por conseguinte, de se regenerar efetivamente, senão o
condicionado, a paciência do Estado, deixa de existir. Seria
muito conveniente que o criminoso pudesse ele próprio,

328
em função do seu grau de degenerescência, determinar o
tempo para proceder à sua regeneração, mas com a reserva
de ter mais tarde liberdade para o prolongar numa certa
medida. Tem de ser imposto a rodos, de acordo com as cir-
cunstâncias, um prazo perentório para a regeneração. Não
se trata, como enfatizamos acima, de regeneração moral,
mas unicamente de regeneração política, sendo que não são
as palavras, mas os aros, que são decisivos para aferir se essa
regeneração teve lugar. E a esse respeito, graças à organiza-
ção que foi descrita, especialmente se, em função dos sinto-
mas de regeneração, o rigor da vigilância se vai pouco a
pouco atenuando, a fim de que as verdadeiras disposições
do detido se possam desenvolver livremente, não há de ser
difícil decidir se o amor pela diligência e pela ordem ocupa-
ram o lugar do desregramento e se a docilidade de espírito
substituiu a brutalidade. É evidente que aqueles que estão
encarregados de ajuizar sobre isto são homens compreensi-
vos e conscienciosos, a quem se devem atribuir responsabi-
lidades pela vida futura destas pessoas.
Aqueles que se regeneraram reintegram-se na socie-
dade e são integralmente restabelecidos na sua situação
anterior. Estão, graças à pena e à subsequente regeneração,
completamente reconciliados com a sociedade. Se conside-
rarmos estas institUlçoes como meios efetivos de regenera-
ção e não meramente como punição e se deixarmos rein-
gressar na sociedade apenas aqueles que efetivamente se
regeneraram e não aqueles que, tendo estado detidos por
um certo período de tempo, se tornaram, no fundo, piores,
em resultado de um tratamento inadequado, não haveria
também na opinião pública lugar a desconfiança contra
eles, mas sim confiança.
Aqueles que não se regeneraram decorrido o prazo
peremptório são excluídos da sociedade como incorrigíveis.

329
Esta instituição deve, ao mesmo tempo, ser punição e,
como tal, dissuadir do crime. A perda da liberdade, a sepa-
ração da sociedade, a vigilância rigorosa, tudo isto é sufi-
72 cientemente terrível para aquele que agora é livre; além
disso, nada impede que aqueles que estão cá fora se lhes
represente o destino dos detidos como sendo ainda mais
duro do que efetivamente é, como nada impede que se lhes
imponham sinais distintivos que atemorizem os que não
estão presos, desde que isso não constitua em si mesmo um
sofrimento e sem embrutecer os espíritos: por exemplo, ves-
tuário distintivo, uma corrente que não cause dor e não
entrave demasiado os movimentos. O prisioneiro habitua-se
a isso e em relação ao que está cá fora isso causa a impres-
são que convém que seja causada.

V O único crime em relação ao qual não há lugar a


tentativa de regenerar o criminoso e em relação ao qual há,
por conseguinte, que proceder sem mais delongas à exclu-
são absoluta é o homicídio intencional e premeditado (não o
homicídio que resulte acidentalmente de um outro ato de
violência) . A razão para que isto seja assim é a seguinte: há
que ter cuidado com aquele que matou, pois ele pode bem
voltar a matar. Mas o Estado não tem o direito de obrigar
quem quer que seja a pôr a sua vida em perigo. Não pode-
ria, por conseguinte, obrigar quem quer que fosse a tomar
a seu cargo a vigilância de um assassino, que, para poder
regenerar-se, teria de ter um certo grau de liberdade; e
muito menos poderia obrigar os outros reclusos, que estão
detidos para que se regenerem, a tolerar um assassino no
meio deles.
(Disse: o Estado não tem o direito de obrigar quem
quer que seja a pôr a sua vida em perigo. Mas cada um
tem o direito de a pôr em perigo voluntariamente. Se exis-
tissem, pois, associações e fundações de caridade que quises-

330
sem tomar sobre si todos os perigos, ousando, mesmo com
um assassino, tentar a sua regeneração, tal deveria ser-lhes
permitido, na condição apenas de que os locais de detenção
dos assassinos estivessem suficientemente guardados para
que pudéssemos assegurar-nos contra a sua evasão. É desejá-
vel, por razões que serão mostradas adiante de modo mais
aprofundado, que existam associações deste tipo.)
Que há então que fazer com aqueles que estão absolu-
tamente excluídos do Estado, porque são assassinos e ou
não obtiveram a prova provisória da regeneração ou não se
quiseram submeter a esta prova ou então porque falharam
nesta prova? Esta é de longe a indagação mais importante
na teoria das penas. Graças a esta investigação, esperamos
pôr termo a um conjunto de confusões; e, ao contrário do
que é habitual, não nos limitaremos a afirmar, mas vamos
proceder a essa demonstração.
a) A declaração de destituição de direitos é o que há
de mais grave que o Estado enquanto tal pode decretar
contra qualquer ser racional. Dado que é em virtude do
contrato que o Estado é Estado para cada indivíduo, o
Estado nada mais pode fazer do que declarar revogado
o contrato. Ambos, o Estado e o indivíduo, passam a partir
daí a ser nada um para o outro, pois sem este contrato não
existe nenhuma relação jurídica; eles não têm qualquer rela-
ção entre si, não são nada um para o outro. Tudo o que o 73
Estado faça ainda para além disso, fá-lo à margem do
direito baseado no contrato; e, uma vez que fora do con-
trato não há nenhum direito positivo que seja determinado
e determinável, fá-lo sem que para isso tenha qualquer
direito que seja.
b) Mas o que é que resulta da declaração de desti-
tuição de direitos? O tratamento totalmente arbitrário do
condenado; não é que se tenha um direito a fazê-lo, mas
também não existe um direito em contrário; portanto, o

331
condenado é declarado como coisa, tal como uma cabeça
de gado. - Não se pode dizer: em relação ao animal, tenho
um direito, o de matar este animal (mas esse direito só
existe em virtude da relação com os restantes cidadãos no
Estado); mas tão-pouco posso dizer: não tenho esse direito.
É que aqui não se trata em absoluto de ter um direito, mas
de capacidade física. Da proposição meramente negativa de
que não existe nenhuma razão em contrário vai uma grande
distância em relação à proposição positiva: existe uma razão
para que assim seja. -Assim acontece com aquele que está
absolutamente excluído do Estado. Não pode invocar-se
nenhuma razão decorrente do Direito (externo) pela qual o
primeiro que tal lhe aprouver não deva apoderar-se dele,
torturá-lo a seu bel-prazer e matá-lo; mas tão-pouco pode
invocar-se uma razão para agir assim.
c) Se alguém o fizer e se o tiver de facto feito, o que
resultaria daí? Não uma sanção do Estado, pois o conde-
nado não tem quaisquer direitos; mas o desprezo dos
homens, a perda da honra. Aquele que tortura um animal
por prazer ou que o mata sem qualquer finalidade ou pro-
veito é desprezado como um bárbaro desumano, é ostraci-
zado e detestado, e a justo título que assim é. Muito mais o
seria quem cometesse tais aros contra um ser que, apesar de
tudo, continua a ter um rosto humano. Por conseguinte,
guardemo-nos de fazer isso, não por causa de um direito do
outro, mas por respeito para connosco próprios e pelos nos-
sos semelhantes (não se trata aqui do aspeto moral deste
ato, mas unicamente das suas consequências na sociedade).
d) O que acontece com o Estado a este respeito? Em
primeiro lugar, em relação ao condenado o Estado já não é
verdadeiramente Estado, já não representa nada para ele,
uma vez que todas as expiações se fundam num contrato
bilateral. O Estado tem, por seu lado, o direito de impor
esta expiação; aquele que violou a lei tem, por seu lado, o

332
direito de requerer que não seja castigado com maior seve-
ridade. Mas a exclusão não se funda no contrato social;
pelo contrário, funda-se na nulidade desse contrato. A par-
tir desta exclusão, as duas partes já não são nada uma para
a outra e se o Estado mata o criminoso, não é enquanto
Estado que o faz, mas enquanto força fisica mais poderosa,
enquanto mera força da natureza. - O Estado tem as mes-
mas razões que o privado para evitar matar; não por res-
peito ao direito daquele que foi destituído de direitos e que
não tem nenhum direito, mas por respeito a si próprio, aos
seus cidadãos e aos outros Estados.
No entanto, existe uma razão susceptível de poder
mover o Estado a matar o criminoso; a razão de que só 74
dessa maneira se pode proteger dele. Dado que não existe
absolutamente nenhuma razão em contrário, é essa a razão
decisiva para que assim seja. O criminoso é então um ani-
mal daninho que é abatido, uma torrente devastadora que é
contida, em suma, uma força natural que é afastada pela
força natural do Estado.
A morte do criminoso não é, de modo nenhum, uma
pena, mas somente uma medida de segurança. Isto dá-nos
a visão de toda a teoria da pena de morte . O Estado
enquanto tal, enquanto juiz, não mata; revoga apenas o
contrato e é esta a sua ação pública. Se, depois disso, mata,
tal acontece não por intermédio do poder judicial, mas por
intermédio da polícia. O condenado deixa de existir para a
legislação e cai sob a alçada da polícia. Isto não sucede em
consequência de um direito positivo, mas por necessidade.
Aquilo que só a necessidade desculpa não é nada honroso; é
preciso, portanto, que, como tudo aquilo que é desonroso
mas necessário aconteça com pudor e em segredo. - Que o
criminoso seja estrangulado ou decapitado na prisão! Com
a rotura do contrato (que é muito pertinentemente sinali-
zada com o quebrar do bastão), ele está já civicamente

333
morto e apagado na memória dos cidadãos. Aquilo que fisi-
camente se lhe faz já não diz respeito ao cidadão. É por si
só evidente que ninguém pode ser morto antes da anulação
do contrato social.
(O que pode a razão dizer sobre o espetáculo que
acompanha as execuções ou sobre a prática de pendurar o
corpo dos executados ou prendê-los a uma roda e coisas
semelhantes - à semelhança dos selvagens que penduram à
sua volta os escalpes dos inimigos que mataram?)
A morte do criminoso é algo contingente, não po-
dendo, portanto, de modo algum ser anunciada na lei; mas
a exclusão do Estado é anunciada na lei. É natural que da
exclusão possa muito bem resultar a morte. É por isso que
no cumprimento da lei a exclusão - mas só a exclusão -
acontece necessariamente de maneira pública.
Agravar a pena de morte com tormentos é selvajaria.
O Estado torna-se então um inimigo selvagem, sádico e
vingativo, que tortura o seu inimigo antes de o matar, para
que este sinta a morte (ut mori se sentiat).
(Às vezes é necessário fazer escutar a razão aduzindo
exemplos. A este propósito, existe um que é muito conhe-
cido. Na república romana, o exílio era permitido àquele
que (no Estado) merecesse a morte (capitis damnato).
Somente se fosse de recear que causasse perigo, como no
caso dos conjurados à volta de CatilinaC3 5l , é que os roma-
75 nos se permitiam matá-lo; não em público, mas na prisão.
Não foi por causa desta execução em si, mas foi porque, ao
arrepio da formal legal, o processo dos conjurados foi deci-
dido no Senado e não foi presente ao tribunal do povo, que
o cônsul Cícero<36l foi enviado para o exílio; e com todo o
direito.)
e) Há ainda que considerar uma questão a propósito
da execução do criminoso, questão que não podemos deixar
de ter em conta, pese embora não se tratar propriamente de

334
um ponto de vista jurídico. Trata-se do facto de que está
absolutamente proibido pela lei moral, em qualquer caso
que seja, matar intencionalmente (não, porventura, pôr em
perigo a vida do outro por causa de um qualquer fim orde-
nado pela razão) . Todo o ser humano deve ser considerado
como um meio de promoção do fim da razão. Ninguém
pode renunciar à crença de que o outro, por mais corrom-
pido que possa estar no momento presente, pode ainda ser
reabilitado, sem, com isso, renunciar ao seu próprio fim
que lhe é estabelecido como necessário pela razão. A rigo-
rosa demonstração desta afirmação deve ser levada a cabo
no local onde deve ser exigida, num sistema moral. Por-
tanto, a um privado não lhe é permitido matar; em vez de
o fazer, ele tem antes de pôr em risco a sua própria vida.
Não é isso que se passa com o Estado, considerado aqui
como poder administrativo; que, enquanto tal, não é
nenhuma pessoa moral, mas uma pessoa jurídica. O gover-
nante pode, decerto, fazê-lo e pode em certos casos estar
moralmente obrigado a pôr em risco a sua própria pessoa,
enquanto homem, mas não a vida dos outros ou até
mesmo a do Estado, isto é, a vida, a segurança e a Consti-
tuição jurídica de todos.
fi A execução dos celerados incorrigíveis é, portanto,
sempre um mal, se bem que necessário, e é, portanto, uma
tarefa para o Estado torná-la desnecessária. - Ora, o que
tem o Estado de fazer com os criminosos que são condena-
dos, se não os deve matar? A prisão perpétua é uma sobre-
carga para o próprio Estado e como é que o Estado poderia
obrigar os cidadãos enquanto tais a suportar os respetivos
custos, que não poderiam ser empregues para nenhum dos
seus possíveis fins, uma vez que não é de esperar qualquer
reabilitação e reintegração no Estado? Não resta senão o
banimento perpétuo - não a deportação: esta é uma
medida prisional e o Estado conserva o controlo sobre os

335
deportados. Se é de recear que o criminoso regresse, que
seja marcado de modo indelével, o menos dolorosamente
possível, pois o Estado não pode ter aparência de torcioná-
76 rio (aparência que ele se dá, por exemplo, quando associa
ao banimento a flagelação). Isto também não é uma pena,
mas uma medida de segurança, e é da competência da
administração.
O que deve acontecer com aquele que é assim mar-
cado e expulso do Estado? Essa questão não é colocada pelo
cidadão, mas pelo homem. Que se retire para uma região
inóspita, que viva entre os animais; isto aconteceu, pelo
acaso das circunstâncias, a homens que não eram crimino-
sos, mas cada indivíduo que na Constituição aqui descrita
recebe a marca do ferro é um criminoso incorrigível.
Observação. Contra esta teoria das penas em geral e da
pena de morte em particular foi estabelecido um Direito
penal absoluto*, segundo o qual a pena judicial deve ser
considerada não como um meio, mas como constituindo
em si própria um fim e deve fundar-se num imperativo
categórico inquestionável. Dado que nesta teoria, em razão
desta inquestionabilidade de partida, pode dispensar-se a
prova das afirmações dos seus proponentes, tem-se por bem
acusar aqueles que pensam de modo diferente de sentimen-
talismo e de humanitarismo afetado e chamar-lhes, sem
mais, sofistas e charlatães; o que é inteiramente contrário à
igualdade (de razões) e à liberdade (de emitir as suas opi-
niões apoiando-as em razões) que enaltecemos e a justo

* Também o esrimado senhor jacob(37l deu muiros anos anres, na sua dourrina
filosófica do Direiro, a sua aprovação ao grande homem , se bem que não infa-
lível, a que me refiro acima. Ele percebe muiro bem e sabe sem dúvida melhor
que ninguém com quanras dificuldades rerá esra reoria de se confronrar, mas
não pode rerirar-lhe o seu aplauso e espera que com o rempo esra reoria se
venha a rornar verdadeira. Ora, esse rempo chegou precisamenre agora.

336
título exigimos no âmbito da filosofia. O único aspeto
notável deste sistema, ao qual poderíamos dar o nosso
assentimento, parece-me ser o seguinte: "Nunca se ouviu
contar, diz-se, que um condenado à morte por homicídio
se tenha queixado de que a sua pena tenha sido excessiva e
injusta; qualquer pessoa se riria na sua cara se assim se
exprimisse"<38 l. Pondo de lado o facto de se rir na cara, isto 77
é de tal modo verdade que se um indivíduo acusado de um
crime de sangue fosse ele próprio assassinado por um poder
inteiramente injusto e que não tinha conhecimento da sua
culpabilidade, o próprio culpado, quando recordasse o seu
próprio crime, e aqueles que dele tivessem conhecimento
teriam que concluir que ele não foi , em absoluto, tratado
de modo injusto. É inteiramente verdade que estamos obri-
gados a julgar que, numa ordem moral do mundo, sob um
juiz omnisciente e de acordo com leis morais, não se
comete nenhuma injustiça contra aquele que é tratado em
conformidade com a lei que ele próprio estabeleceu; e esta
conclusão, que se impõe a todas as pessoas, funda-se num
imperativo categórico. Não existe, portanto, nenhuma con-
trovérsia sobre se há injustiça para com o homicida se ele,
por sua vez, tem que perder a vida de um modo violento.
A questão a que havia de dar resposta era completamente
diferente; de onde é que para qualquer mortal provém o
direito a este governo moral do mundo, o direito a fazer ao
criminoso aquilo que ele merece? E esta questão exclusiva-
mente jurídica é a que o nobre Beccaria<39) tinha em mente,
alguém que, sem dúvida alguma, não desconhecia este juízo
moral. Quem atribuir este direito ao soberano terreno está
seguramente obrigado , como acontece nesse sistema, a
apresentar como inquestiondvel o seu título jurídico e
a fazer derivar a autoridade do soberano de Deus, a consi-
derar o soberano como representante visível de Deus e a
todo o governo como uma teocracia. Assim, na teocracia

337
78 judaica, era absolutamente pertinente o princtpw: quem
derramar sangue deve, por seu turno, derramar o seu, olho
por olho, dente por dente. Só que estas premissas deveriam
começar por ser demonstradas.
Para além disso, afirmações deste género não são, em
absoluto, ajustadas num sistema jurídico em que se atribui
ao povo o poder legislativo e no qual o legislador não pode
ao mesmo tempo ser governante; devemos, pois, acreditar
que estes fragmentos constituem uma abordagem muito
antiga(40l e que, por mero acaso, vieram perder-se aqui.

VI. Aquele que por maldade atinge a honra de


alguém inocente perde, naturalmente, ele próprio a sua,
pois torna-se insuscetível da confiança dos outros. - Uma
vez que o Estado é, em todo o caso, devedor de compensa-
ção à vítima inocente, dá conhecimento público do facto e
deixa, como é justo, que a opinião pública siga o seu livre
curso. Pelo urinhos e troncos são os meios de chamar a
atenção da população e fazer-lhe sentir a vergonha. -
Devem ser o menos dolorosos possível (ao contrário, por
exemplo, do suplício da roda) e são em si próprios penas,
não devendo estar associados a outras penas se o crime não
envolver, pela sua natureza, desonra. Aquele que está em
reabilitação não perde a honra; aquele que é necessário
excluir não pergunta pela honra, pois abandona o Estado.
Só quando tal é implicado pela natureza do crime é que é
preciso acrescentar a pena de desonra, por exemplo, no
furto doméstico.

79 VII. A reparação dos danos tem sempre de ser efe-


tuada. O lesado volta-se diretamente para o Estado, que era
no contrato social quem constituía para ele o garante con-
tra todos os danos; o Estado volta-se para o criminoso,
enquanto este continue a ter alguma coisa. É perfeitamente

338
claro que a vmma não tem de suportar, por exemplo, os
custos da investigação. Para que é que paga regularmente
os seus impostos? É para o criminoso que o Estado tem de
voltar-se. À exclusão absoluta está associada, sem mais, o
confisco da totalidade do património.
Aquele que sofre um dano no seu corpo ou na sua
saúde deve ser muito bem tratado, a expensas do Estado.
É a mínima das compensações, mas também a única possí-
vel, que se lhe pode oferecer pela sua perda irreparável.

VIII. Como vimos, existem em geral dois diferentes


tipos de penas: as que se fundam num contrato e as que se
fundam na nulidade absoluta do contrato. É, sem mais,
claro que o cidadão está obrigado a submeter-se ao pri-
meiro tipo de penas, sem que a tal seja coagido, dado que,
num certo outro aspeto, essas penas são também os seus
direitos; é também claro que ele poderia de modo perfeita-
mente conveniente ser forçado a esta submissão voluntária,
uma vez que são possíveis penas ainda mais duras e que ele
continua ainda a pôr em jogo, como penhor da sua sub-
missão, todos os seus bens que ainda não perdeu. Deve
pôr-se voluntariamente à disposição da investigação e pode
ser punido se o não fizer. Não existe, por conseguinte,
nenhuma razão para que o Estado se assenhoreie da sua
pessoa.
Ao invés, o culpado não pode prestar qualquer garan-
tia se a sua ação é de natureza quer a provocar a exclusão
absoluta da sociedade, quer a exclusão momentânea, em
estabelecimento correcional; pois, no primeiro caso, perdeu
categoricamente todos os seus direitos e no segundo per-
deu-os problematicamente (no caso de não vir a emendar-
se) . Por conseguinte, nestes casos o Estado tem de se asse-
nhorear da pessoa do culpado. - O direito de coação do
Estado começa com a propriedade relativa da pessoa; conti-

339
nua, se esta não for suficiente para a reparação do crime,
até à propriedade absoluta e, se o culpado não paga volun-
tariamente aquilo que deve, o direito de coação do Estado
penetra na sua casa e, por fim, se esta já tiver sido perdida,
volta-se para a pessoa do culpado.

340
TERCEIRA SECÇÃO DA DOUTRINA DO DIREITO POLÍTICO 80

SOBRE A CONSTITUIÇÃO

§ 21.

1. Princípio regulador. A ciência que tem que ver com


um Estado particular determinado por características con-
tingentes (empíricas) e que considera qual é a maneira mais
conveniente de nele realizar a lei do Direito chama-se Polí-
tica. Todas as questões a ela atinentes não têm nada que ver
com a nossa ciência, a doutrina do Direito, que é pura-
mente a priori e devem ser escrupulosamente separadas
dela.
Todas as questões que se possam suscitar sobre a deter-
minação particular da única Constituição conforme ao
Direito são desta espécie. A razão disso é a seguinte: o con-
ceito de Constituição que expusemos completa a solução
do problema da razão pura, de como é possível a realização
do conceito de Direito no mundo sensível? Portanto, com
este problema a ciência dá-se por concluída. Deste modo, a
Constituição está determinada a priori. Se agora deve ser
ainda mais determinada, isto só pode efetuar-se mediante
dados empíricos. Vamos indicar individualmente as possí-
veis questões e demonstrar que a resposta a essas questões
se funda na situação acidental dos povos.
a) A primeira coisa que foi demonstrada na doutrina
da Constituição era o princípio: o poder do Estado tem

341
necessariamente de ser transferido e não pode, de modo
nenhum, continuar nas mãos da coletividade. A este propó-
sito surge, em primeiro lugar, a questão de saber se deve
transferir-se para um só homem ou para vários (a questão
da forma regiminis, como lhe chama Kant no escrito Para a
81 Paz Perpétua), se o Estado em relação às pessoas que detêm
o poder deve ser uma monarquia ou uma aristocracia(4 1l .
Pois a democracia é inadmissível nesta acepção.
Ambas as formas de governo são legítimas; escolher
entre elas é, por conseguinte, questão de prudência. Vou
abreviadamente indicar o fundamento da decisão: de mui-
tos indivíduos, que modificam reciprocamente as suas opi-
niões na interação de uns com os outros, pode esperar-se
mais sabedoria, mas, precisamente por isso, maior lentidão;
além disso, dado que cada um pode passar a responsabi-
lidade para os outros e sentir-se em geral coberto pela plu-
ralidade dos culpados, o eforato não atuará tão energica-
mente sobre eles. Um presidente de governo vitalício pode,
porventura, errar mais facilmente, mas nas suas mãos o
poder é mais eficaz; e a responsabilidade, que recai exclusi-
vamente sobre a sua cabeça, atua mais fortemente sobre ele.
O governo tem, pois, no último caso, mais força e vitali-
dade. A decisão poderia, portanto, ir no sentido de que
onde o governo tem necessidade de mais força, em parte
por causa do povo que não está ainda acostumado a uma
legalidade rigorosa e da mentalidade da nação em geral, em
parte por causa da ausência de Direito e de lei a relação
com os outros povos, há que preferir a monocracia; mas
onde a Constituição conforme ao Direito já operou e já
produziu a situação anteriormente descrita, de tal modo
que a lei opera graças ao mero peso interior, aí há que pre-
ferir a Constituição republicana. Seja um homem só ou um
corpo coletivo o governante supremo, é fácil de ver que
todos os funcionários que lhe estão subordinados devem ser

342
nomeados por estes governantes supremos; e, igualmente,
que estão submetidos unicamente às suas ordens e à sua
jurisdição. Pois só a autoridade suprema é responsável
perante a nação e, em geral, só é responsável pelo seguinte:
pelo facto de que o Direito e a justiça reinem no Estado.
Mas ela não pode assumir esta responsabilidade, se não
tiver uma possibilidade ilimitada de escolha das pessoas por
intermédio das quais administra a justiça e se estas não lhe
estiverem completamente submetidas.
b) Uma segunda questão consiste em saber se é
melhor que seja o povo a nomear os seus representantes
diretos (na democracia acima indicada como legítima) ou
que os faça nomear pelos próprios representantes, ou então
que introduza uma sucessão hereditária. - No que se refere
aos éforos, a questão foi já anteriormente decidida, em 82
geral e para todos os casos, com base em princípios jurídi-
cos absolutos. Ela só subsiste, por conseguinte, em relação
aos administradores do poder executivo. E aqui a resposta à
questão depende, pois, de factos empíricos, em particular
do grau de cultura do povo, que só se pode alcançar por via
de uma legislação anterior que seja sábia e justa. Um povo
que deve ser ele próprio a escolher os seus governantes tem
de ser já um povo muito educado: pois a eleição, de acordo
com os princípios anteriores, tem de ser por unanimidade,
para poder ser universalmente válida. No entanto, a unani-
midade que é exigida é só a unanimidade relativa; portanto,
é sempre de recear que uma parte da minoria seja excluída
ou obtenha um governante contra a sua vontade. Mas todas
as ocasiões para gerar divisões e fações entre os cidadãos
têm de ser afastadas pela Constituição. Assim, enquanto o
povo não tenha ainda atingido este alto grau de cultura é
melhor que o direito de eleição seja alienado de uma vez
por todas, o que obviamente só pode efetuar-se por unani-
midade absoluta, e que seja introduzida para sempre uma

343
forma estável de sucessão dos governantes. Na República,
os governantes podem cooptar-se por eleição; se o eforato é
suficientemente eficaz, a todos eles importará proceder
nesta eleição com o maior dos esmeros. Na monocracia,
não é fácil imaginar quem é que deverá eleger o monocrata,
não sendo o povo a fazê-lo, pois que, como foi dito, não
deve votar. Por conseguinte, não poderia em absoluto ser
eleito, mas teria que ser determinado por nascimento. -Por
outro lado, a sucessão hereditária tem vantagens adicionais
que tornam aconselhável a sua introdução, por exemplo, o
facto de que o príncipe está completamente separado do
povo e nasce e morre sem ter relações privadas com ele.
c) Poderia suscitar-se a questão relativa à condição do
contrato de transmissão que há que celebrar com os admi-
nistradores do poder executivo; a questão dos seus direitos
pessoais, liberdades, proventos e das fontes destes que há
que lhes atribuir. Mas esta avaliação é exclusivamente empí-
rica. Já foi anteriormente indicado de onde devem provir os
rendimentos para o fim público, incluindo, naturalmente, o
sustento das pessoas que têm nas suas mãos o poder de
Estado, isto é, o princípio das finanças, e este princípio já
foi aplicado aos casos que se suscitaram. - Cada um deve
contribuir em proporção com a sua necessidade de prote-
ção; o poder de proteção deve ser adequado à necessidade
de proteção; e assim obtém-se ao mesmo tempo um critério
determinado sobre os impostos que devem ser cobrados aos
cidadãos- os impostos são variáveis, uma vez que a necessi-
dade de proteção é, sem dúvida, variável. O governante,
enquanto conservar nas suas mãos o poder supremo, não
83 pode ser detido, mas poderia muito bem ser chamado a
prestar contas perante um tribunal do povo sobre o exercí-
cio desse poder, caso, por exemplo, o éforo deduzisse acusa-
ção contra ele; pois é próprio do Direito público que os

344
súbitos paguem impostos apenas para as necessidades do
Estado e não para outros fins arbitrários.
d) Pode colocar-se a questão da organização judiciária.
Demonstrou-se que o poder executivo constitui simultanea-
mente a instância suprema e irrecorrível. É claro, com base
no que foi dito antes, que o poder executivo nomeará juízes
subalternos que administrem o Direito em seu nome,
podendo recorrer-se deles para o poder supremo e que
serão responsáveis perante ele. Restaria, por conseguinte,
apenas a questão sobre a forma da investigação judicial, a
questão do processo.
As provas judiciais são produzidas como rodas as pro-
vas; e o processo rem, portanto, como fonte principal a
lógica, o senso comum em geral. Observámos, onde era
necessário fazê-lo, a saber, a propósito das próprias ques-
tões de Direito, o que acontece quando a prova positiva
incumbe a uma das partes e quando esta é absolvida com
base na prova negativa, não podendo ser provado nada con-
tra ela. Em regra, o demandante deve aduzir a prova posi-
tiva, inclusivamente se o demandante é o Estado, pois
enquanto tal não é juiz, mas parte. Mas quanto a saber se a
prova produzida é suficiente, quanto a isso é juiz.
Em relação à prova mediante juramento, há muitas
reservas a colocar. Ou este juramento é considerado como
não sendo mais do que uma garantia solene e as formalida-
des exteriores que lhe estão associadas têm como única
finalidade evitar qualquer ligeireza de espírito e levar as pes-
soas a prestar atenção e a refletir sobre a importância de
uma tal garantia; a pressuposição a fazer aqui seria, por
conseguinte, a de que alguém que é capaz de afirmar publi-
camente algo que é falso é igualmente capaz de prestar um
falso juramento. Ou então, pressupõe-se que o juramento é
algo mais do que uma garantia solene e que a mesma pes-
soa que não tinha pudor em assegurar publicamente algo

345
que era falso teria objeção a prestar um falso juramento.
No primeiro caso, poderia perguntar-se como é que a outra
parte, se o processo diz respeito a uma questão cível, ou a
comunidade política no seu conjunto, se se tratar de um
assunto público, podem ser juridicamente obrigadas a acre-
ditar nesta garantia e fazer depender dela a decisão do juiz,
uma vez que o Estado se funda ele próprio na desconfiança
universal. No segundo caso, para além desta mesma obje-
ção, suscita-se uma outra ainda maior: o que, na verdade,
tem de se pressupor que seja capaz de impedir aquele que
não tem qualquer objeção em afirmar publicamente uma
falsidade de reforçar essa fals idade com um juramento.
Dado que não receia ser culpado de uma mera falta à ver-
84 dade, ele teria então que acreditar que a invocação de Deus
como testemunha é um meio sobrenatural, incompreensível
e mágico de atrair o castigo divino se se jura em falso. Esta
é, sem dúvida, a verdadeira natureza da superstição, que é
inteiramente contrária à religião moral. O Estado deveria
neste caso contar com a persistência da imoralidade e favo-
recê-la com todas as suas forças, dado que fez depender
disso toda a sua segurança, o que é um contrasenso. Por
conseguinte, o juramento só se pode apresentar como uma
garantia solene e não pode ter lugar a não ser nos assuntos
privados em que uma das partes aceita voluntariamente
fazer depender o caso desta proclamação da contraparte.
Volenti non fit injuria. Num assunto público, não se pode
nunca recorrer ao juramento, pois o governante não pode
dispor de nenhum dos direitos da comunidade política. -
Se, simplesmente, a legislação tiver suficiente cuidado em
não deixar sem sanção pública tudo aquilo que necessite
dessa sanção, se a polícia é suficientemente vigilante, se o
juiz não tem na cabeça apenas o seu formulário, mas, para
além disso, também bom senso, não haverá nunca necessi-
dade de juramento.

346
e) Por outro lado, poderia colocar-se a questão sobre o
modo de reunir o povo para a eleição dos éforos ou tam-
bém, depois da proclamação do interdito, para julgar os
administradores do poder executivo. No que ao primeiro
ponto diz respeito, deve perceber-se de imediato que os
éforos que se encontram em funções (o seu número é uma
questão da Política e está determinado pela quantidade da
população, pelo grau de cultura e pelo grau habitual de
ordem, sendo que um grau mais elevado de cultura e de
ordem torna suficiente um menor número de éforos)
devem anunciar a eleição, supervisioná-la, contabilizar os
votos e apurar o resultado - evidentemente, como já foi
dito acima, sem orientar a votação, porque os novos éforos
são os seus futuros juízes, ou sem que lhes seja permitido
suspender o eforato. Para contabilizar os votos no tribunal
do povo têm de ser eleitos pelo povo e de entre os éforos
homens particulares (síndicos), uma vez que os éforos são
eles próprios parte nessa votação.
2. Por conseguinte, para uma doutrina pura do
Direito a única investigação que nos falta fazer é sobre a
polícia - sobre a sua natureza, os seus deveres e os seus
limites.
Em primeiro lugar, o que é a polícia?; isto é, o
conceito de polícia tem que se r deduzido. - O Estado ,
enquanto tal, encontra-se com os súbditos, enquanto tais,
num contrato recíproco, em consequência do qual existem
para ambas as partes direitos e deveres. Nos casos em que o
súbdito pode demandar e acaba por demandar, está encon-
trado o elemento de ligação entre ambos. Mas indicámos
um conjunto de coisas que não estão sujeitas a demanda,
na medida em que o Estado tem oficiosamente de velar por
elas . Por conseguinte, deve haver para estes casos um ele- 85
mento de ligação particular entre o poder executivo e os
súbditos, elemento esse que é, precisamente, a polícia. É só

347
por seu intermédio que é possível a influência recíproca, a
interação duradoura entre ambas. A polícia é, portanto, um
dos requisitos absolutamente necessários de um Estado e a
doutrina relativa à polícia em geral pertence a uma dou-
trina pura do Direito natural.
O Estado encontra-se em relação aos súbditos num a
dupla relação: por um lado, tem deveres para com eles, os
deveres de proteção em conformidade com o contrato; por
outro, tem direitos, os de obrigar os súbditos a cumprir os
seus deveres de cidadãos e a obedecer às leis. Os casos
em que ocorrem uns ou outros, direitos ou deveres, é a
polícia que os fornece: ela é a intermediária em ambas as
relações entre o Estado e os súbditos. Tal como o veredicto
do juiz faz referência à lei positiva em relação ao cidadão,
também a polícia se refere a esta lei em relação à autoridade
do Estado. A polícia fornece o caso em que a lei se vai
aplicar.
Consideremos, em primeiro lugar, o dever de proteção
que o Estado deve exercer por intermédio da polícia. -
Poder-se-ia crer, no que à população diz respeito, que cada
cidadão fará com que o Estado se lembre desse dever e exi-
girá a proteção decorrente do contrato. Mas, frequente-
mente, um dano já ocorrido é insuscetível de reparação e o
fim do Estado é mais impedir os danos aos seus cidadãos
do que os castigar quando esses danos tenham ocorrido. As
instituições de proteção e segurança são o primeiro ramo da
polícia.
Qualquer cidadão deve poder viajar livremente e
seguro contra qualquer acidente por todo o território do
Estado, tanto em virtude do seu direito de cultivar a terra,
de buscar produtos, de praticar o comércio e o intercâmbio
de mercadorias, ou, se não faz nada disto, para usufruir a
seu bel-prazer do seu património absoluto. Quanto mais
forem os homens que se juntam num lugar, tanto mais efi-

348
cazes têm de ser os dispositivos de segurança contra even-
tuais ataques. Daí a necessidade de guardas armadas e de
patrulhas, inclusivamente nas estradas principais, se estas
não forem seguras. De modo algum compete a estes servi-
dores subalternos do Estado emitir vereditos, mas sim deter
os suspeitos. É a eles próprios que há que pedir responsabi-
lidades e punir com severidade em relação a tudo o que de
mal aconteça no âmbito do território cuja guarda lhes foi
confiada.
Da proteção desta segurança da vida e dos bens faz
parte a supervisão da polícia sobre a construção das estradas.
O cidadão tem o direito de exigir boas estradas, pois o
Estado garantiu-lhe a execução das suas atividades da forma
mais rápida e mais conveniente possível, ou, se viajar exclu-
sivamente por prazer, o usufruir da sua propriedade legiti-
mamente adquirida da forma que seja para ele mais agradá-
vel. Está incluída nesta supervisão a sinalização dos lugares 86
que não são seguros mediante tabuletas de advertência e
similares. Se alguém sofrer um dano não tendo sido adver-
tido, deve exigir reparação do Estado, pois este garantiu-lhe
segurança em todas as ações que não são proibidas por lei.
Quem não fizer caso da advertência, que suporte o dano;
sem que, por outro lado, venha a ser castigado, porque cada
um é dono da sua pessoa. Inclui-se aqui o emprego de
médicos experimentados e que foram aprovados pelo Estado
- (o melhor é que esta aprovação seja feita pelas faculdades
de medicina, que são os juízes mais competentes, e que
devem ser consideradas para este ato como um órgão ofi-
cial, tal como as corporações no exame dos seus membros).
- É necessário também que a polícia exerça a supervisão das
farmácias . Tem de se proibir a aldrabice e a charlatanice a
quem as quiser praticar, mas não a quem a elas quiser recorrer,
se elas puderem ser encontradas num país em que é proi-
bido praticá-las; pois cada um é dono da sua vida.

349
No que à propriedade absoluta diz respeito, a polícia
deve protegê-la contra assaltos violentos (graças a patrulhas
noturnas) . Cabe-lhe exercer vigilância contra o perigo de
incêndio, tomar medidas para que seja dado um alarme
rápido e para a extinção do incêndio. A supervisão dos tra-
balhos hidráulicos, a proteção contra inundações e ativida-
des semelhantes, tudo isto é, em virtude do contrato social,
dever absoluto do Estado e não apenas atividade de bene-
merência.
Isto, em primeiro lugar, do ponto de vista do que o
Estado ele próprio tem de fazer. Ora, por outro lado, como
consequência do seu dever de proteção, o Estado tem o
direito de dar aos cidadãos certas leis dirigidas à segurança
dos concidadãos contra as agressões, a facilitar a vigilância e
a descobrir os culpados. Essas leis chamam-se leis de polícia
e distinguem-se das leis civis propriamente ditas pelo facto
de que estas últimas proíbem o dano efetivo, enquanto as
primeiras pretendem evitar a possibilidade de um dano.
A lei civil proíbe as ações que em si mesmas e por si mes-
mas causam prejuízo aos direitos dos outros, como o furto,
o roubo, ofensas corporais, crimes contra a vida e similares
e tais proibições são, em boa verdade, consideradas por
cada um de nós como justificadas. A lei de polícia proíbe
ações que em si mesmas e por si mesmas não causam dano
a ninguém e parecem completamente neutras, mas que
facilitam as agressões contra os outros e tornam mais difícil
a sua proteção pelo Estado ou a descoberta dos culpados.
As pessoas sem instrução tendem habitualmente a conside-
rar injustas tais proibições, por via de cuja inobservância
ninguém é prejudicado e tendem a pôr m dúvida o direito
do Estado de estabelecer tais proibições. (Assim, se obser-
varmos com maior rigor, é assim que a liberdade académica
é concebida por muitos, como libertação de todas as leis de
polícia; se bem que seja claro que deveria haver um poder

350
de polícia nas instituições académicas.) Mas o direito e o
dever de estabelecer tais leis decorre claramente do poder
de polícia do Estado. Para esclarecer a questão com um 87
exemplo: que alguém apareça armado não atenta, sem
dúvida, contra os direitos de quem quer que seja; pois o
que importa ao outro aquilo que trago sobre o meu corpo?
Mas com isso torna-se muito mais fácil causar-lhe dano e é
por isso que, na minha opinião, o Estado deveria ter pleno
direito de proibir o porte de qualquer arma e inclusiva-
mente de as ter em casa, se pudesse estar seguro de que
nenhum dos seus cidadãos se viria a encontrar em situação
de ter de as usar em legítima defesa. (Era por isso que
estava proibido na república romana aparecer na cidade
com armas e o general que esperava a honra do triunfo
devia permanecer às portas da cidade (ad urbem) até ao dia
da sua entrada triunfal, ou, se preferisse entrar antes, tinha
de depor as armas e renunciar às honras esperadas.) Mas é
absolutamente seguro que o Estado tem o direito de proibir
a posse de certas armas, por exemplo, as espingardas de
pressão de ar. Estas armas nunca podem ser necessárias para
a autodefesa. Quem tiver o direito de ter armas dessas, por-
que é que haveria de se atemorizar com o estampido?
Armas assim são, em absoluto, um instrumento para o
assassinato. - Ora, não resulta daqui, de modo algum, que
se alguém tiver uma dessas armas a venha efetivamente a
utilizar para cometer um assassinato. O assassinato está
proibido pela lei civil. Mas o assassinato torna-se com isso
mais fácil e este instrumento não é necessário para qualquer
outro fim; é por isso que ninguém deve ter armas dessas:
isto está proibido pela lei de polícia. - Que a certas horas da
noite não se tenha direito a estar na rua sem luz, isto seria
uma lei de polícia; e o propósito da lei seria o de que assim
se poderia reconhecer facilmente qualquer pessoa. Não se
prejudica ninguém pelo facto de se estar na rua sem luz,

351
mas na escuridão seria facilmente possível atentar contra
alguém e é precisamente essa possibilidade que deve ser
afastada. - Quem desrespeitar uma lei de polícia tem de se
culpar a si próprio por todos os inconvenientes que daí
resultem para si e, além disso, é suscetível de punição.
A máxima principal de qualquer polícia bem organi-
zada é necessariamente a seguinte: todo o cidadão deve, em
qualquer parte em que se encontre e sempre que seja necessário,
ser imediatamente identificável como sendo esta ou aquela pes-
soa; ninguém pode eximir-se a ser identificado pelo agente
da polícia. Isto só pode conseguir-se da seguinte maneira:
cada um deve trazer sempre consigo um documento de
identificação, emitido pela autoridade mais próxima, docu-
mento esse em que se deve descrever a sua pessoa com pre-
cisão; e isto independentemente do estatuto social. Uma
vez que as descrições meramente verbais de uma pessoa são
sempre ambíguas, seria bom que no caso de pessoas impor-
tantes, que podem, portanto, arcar também com esses cus-
tos, estivesse no documento de identificação, em vez da
descrição, um retrato fidedigno. Nenhuma pessoa será
88 admitida em nenhum lugar sem que se conheça com exati-
dão o local da sua última morada e a ele próprio graças a
esse documento de identificação. Bastante mais adiante,
vamos encontrar um exemplo notável do que pode ser con-
seguido com esse documento de identificação. No entanto,
para não perturbar o inocente prazer que pode resultar
do anonimato, deveria proibir-se os agentes da polícia,
mediante a cominação de uma pena, de exigir a apresenta-
ção deste documento de identificação por simples má von-
tade ou curiosidade, só o podendo fazer quando é necessá-
ria a verificação da identidade da pessoa; necessidade da
qual devam ser obrigadas a dar conta sempre que solicitem
a uma pessoa a sua identificação.

352
O Estado não sabe o que se passa dentro de casa; mas
aquilo que acontece na rua, espaço que se deve percorrer
para chegar a casa, está submetido à sua vigilância. Os cida-
dãos não podem, portanto, reunir-se numa casa sem que a
polícia o saiba e sem que es ta tenha tanto o poder como o
direito (uma vez que a rua está submetida à sua autoridade)
de impedir a reunião, se esta lhe levantar suspeitas. Se se
reúnem muitas pessoas num grupo bastante numeroso para
pôr em perigo a segurança pública - o que pode acontecer
com qualquer grupo se for suficientemente forte para opor
resistência à força armada da localidade -, a polícia deve
exigir que se dê conta do que as pessoas querem fazer jun-
tas e encarregar-se de vigiar se fazem efetivamente aquilo
que foi indicado. O direito doméstico deixa então de exis-
tir; ou então, se o dono da casa não quiser que isso acon-
teça, que se reúnam num edifício público. É exatamente
o mesmo em relação às concentrações da população, em
ruas, mercados e lugares semel hantes; a polícia tem o
direito de as impedir o u de as manter sob vigilância. -
O Estado deve a este respeito legislar no sentido de que, de
acordo com as circunstâncias, não devem reunir-se mais
do que um determinado número de pessoas sem que a sua
reunião e o propósito dela tenham sido indicados à polícia,
a fim de que a polícia tome, nessa conformidade, as suas
medidas.
Em relação à segurança da propriedade absoluta, há
ainda duas questões a responder, a saber: como se deve
impedir a falsificação das letras de câmbio e da moeda?
Ocupo-me com gosto destas questões, tanto mais que assim
posso mostrar, graças a uns tantos exemplos, como para
uma boa polícia é muito fácil até aquilo que é considerado
impossível.
Em primeiro lugar, as letras de câmbio. Falo de letras
de câmbio verdadeiras, de cujo valor é titular aquele que a

353
tem nas suas mãos, e não de meras consignações em que se
nomeia um determinado beneficiário. Nos grandes locais de
comércio, em especial nas feiras, uma letra muda de pro-
prietário muitas e muitas vezes durante o mesmo dia. As
pessoas por cujas mãos a letra passou porventura não se
conhecem. Ora, um comerciante não aceita facilmente uma
89 letra sem conhecer a casa dos emitentes e a mão que a
assina. Mas as assinaturas podem ser imitadas; e o simples
facto é que letras falsas são efetivamente emitidas e aceites,
pelo que a defraudação por via delas tem, pois, de ser
muito bem possível. Então, haverá um dia em que acabará
por se descobrir que a letra é falsa, quando ela voltar ao
suposto tomador. Mas como é que se pode descobrir que
ele falsificou a letra e deitar-lhe a mão para que possa res-
ponder pelo prejuízo que causou? Na organização da polícia
que foi aqui descrita, isto não apresenta a menor dificul-
dade.
Os nomes daqueles por cujas mãos a letra circulou são
anotados, sem mais, no verso da letra. Mas, de acordo com
o que é habitual, qualquer um pode dar um nome falso. Se
se inquirir sobre ele, não se encontra onde quer que seja.
De acordo com a nossa proposta, todo aquele que entrega
uma letra, se não for conhecido pessoalmente de modo pre-
ciso pelo aceitante, teria de provar por meio do seu docu-
mento de identificação quem é esta determinada pessoa,
onde é possível encontrá-la, etc. O aceitante da letra tem o
dever de deixar que se lhe apresente o documento de iden-
tificação e reconhecer com base nele o titular desse docu-
mento. Junto ao nome do tomador da letra acrescenta-se
simplesmente no verso da letra: com documento de identifi-
cação emitido por esta ou aquela autoridade. - É apenas um
par de palavras mais a escrever e um ou dois minutos mais
para ver o documento de identificação e a pessoa; e quanto
ao resto é tudo tão simples como dantes. - No caso da letra

354
ser falsa e a investigação vir a recair sobre uma certa pessoa,
onde é que essa pessoa pode ser encontrada? Na nossa orga-
nização de polícia, não é permitido a ninguém que, sem
mais, parta de uma localidade (pode ser detido às portas da
cidade) sem indicar para onde é que quer ir em seguida, o
que será anotado no registo local e no seu documento de
identificação. Não é admitido em nenhum outro lugar a
não ser no que está anotado no documento de identifica-
ção. Ao partir deste lugar está de novo submetido às mes-
mas regras, continuando-se, assim, a seguir o seu rasto. Mas
se é um estrangeiro ou viaja para o estrangeiro? Os Estados
que têm uma organização de polícia, especialmente os Esta-
dos que se dedicam ao comércio, devem chegar a um
acordo sobre este dispositivo, de maneira a que se possa
perseguir o burlão em todos os países. O documento de
identificação emitido por um Estado que não tenha aderido
a este dispositivo não é reconhecido, estando, portanto, os
seus cidadãos excluídos de apresentar uma letra de câmbio.
Isto forçará os Estados que se dedicam ao comércio a acei-
tar este dispositivo. - Mas alguém podia dizer que se
podem perfeitamente fazer falsos documentos de identifica-
ção; e, com isso, seria frustrado o resultado destas medidas.
A nossa resposta é a seguinte: esta contrafação tem de ser
tornada impossível; e para isso haveria, sem dúvida, meios
suficientes, como, por exemplo, um papel ou um pergami- 90
nho manufarurado exclusivamente para estes documentos
de identificação, como acontecia com os assinados france-
ses<42), cujo papel estava em mãos unicamente da autoridade
suprema, era fabricado sob o seu controlo e distribuído às
autoridades subalternas, que deveriam prestar contas sobre
a quantidade que utilizaram. Mas não pode haver contrafa-
ção deste mesmo papel? De facto, os assinados franceses,
mencionados como exemplo, foram, apesar desta precau-
ção, objeto de contrafação. - Podem, efetivamente, ser

355
objeto de contrafação e isto porque com a contrafação se
satisfizeram grandes interesses, tanto a avidez do lucro,
como a animosidade política; e porque o papel, uma vez
objeto de contrafação, poderia ser usado mais uma cen-
tena de vezes. Na situação que estamos a analisar, trata-se
somente da contrafação de um documento de identificação;
e, em relação a isso, deveriam ser tomadas medidas de tão
grande alcance e que requeressem tantos artifícios? A este
respeito, o máximo que se podia conseguir era emitir uma
letra de câmbio falsa e de montante considerável. Mas, abs-
traindo dos riscos que daí decorrem, valeria a pena os cus-
tos em que se incorreu e o esforço despendido?
No que se refere ao segundo ponto, a contrafação da
moeda, o Estado garante o valor do dinheiro; quem aceita
como verdadeira uma peça de numerário aceita-a com base
na palavra do Estado, cujo selo se encontrava estampado
nela; o Estado tem pois que responder perante cada cida-
dão pela autenticidade da moeda; e se alguém, sem culpa
sua, tiver sido enganado com moeda falsa, deve ser ressar-
cido pelo Estado dos danos e receber dinheiro autêntico em
lugar do dinheiro falso, como manda o Direito.
Mas em que condições foi alguém enganado sem culpa
sua? Em que condições é que se deve acreditar que não
conseguia perceber que se tratava de dinheiro falso? Faz
parte da educação dos cidadãos conhecer o dinheiro e deve
julgar-se que não era fácil perceber que se tratava de
dinheiro falso quando vdrias pessoas foram defraudadas por
seu intermédio.
Constitui, portanto, interesse direto do Estado e um
dos ramos do seu poder de polícia impedir a contrafação de
moeda e descobrir os seus autores. Como deve isto aconte-
cer? Não inquirindo as pessoas, como nas letras de câmbio,
pois ninguém pode em absoluto dizer de quem recebeu esta
ou aquela peça de numerário. - Se, todavia, se tratar de

356
montantes consideráveis, a pessoa pode muito bem sabê-lo
e, neste caso, há que proceder a inquérito. -Mas, em geral,
a polícia deve antecipar-se, exercendo uma vigilância sobre
os materiais que possam ser utilizados para o fabrico de
moeda falsa (algo que deve aprender com a Química) ,
tomando disposições no sentido de que esses materiais, à
semelhança dos venenos, não sejam fornecidos sem o nome
da pessoa que os deseja (bem entendido, verificada a sua
identidade mediante o seu documento de identificação) e sem
a indicação do uso que lhes vai ser dado. O Estado pode
fazer isto com maior facilidade, na medida em que tem na
sua posse as minas, como se mostrou acima. Que o Estado 91
se reserve o monopólio dos metais, metalóides e outros
materiais semelhantes e que os não forneça mesmo aos
pequenos vendedores de retalho sem que estes indiquem a
quem e para que uso será distribuído aquilo que acabam de
obter.
O poder executivo, para além dos deveres de proteção
mencionados, tem também o direito de velar pelo cumpri-
mento das leis, tanto das leis civis como das leis de polícia.
Tem de respo nder por qualquer crime que seja cometido
no território do Estado e ir no encalço dos criminosos. Mas
é igualmente evidente que para esta vigilância sobre o cum-
primento das leis não tem necessidade de instituições espe-
ciais, pois que, graças às instituições de proteção que foram
descritas, o poder executivo cuida simultaneamente dessa
questão. Se se verificar o caso de que alguém se comporta
ilicitamente e viola a lei, verifica-se simultaneamente o caso
de que alguém tem de ser protegido.
A condição exclusiva da eficácia da legislação e da
organização do Estado no seu conjunto consiste em que
cada indivíduo que esteja tentado a cometer um crime, vio-
lando a lei , preveja com absoluta certeza que será desco-
berto e punido de uma maneira que de antemão conhece.

357
Se o criminoso puder contar, com um alto grau de proba-
bilidade, com a possibilidade de que o crime não seja des-
coberto e punido, o que o pode então impedir de praticar
o crime? Será que, apesar das mais sábias leis que, porven-
tura, possamos ter, não continuaríamos a viver no anterior
estado de natureza, onde cada um faz o que pode e onde
ficamos sempre dependentes da vontade dos outros? Além
do que, assim sendo, é uma injustiça evidente punir com
todo o rigor da lei os poucos que são apanhados. Será que
eles não tinham, dado que viam campear à sua volta a
impunidade, a fundada expectativa de que também viriam
a beneficiar dela? Poderiam eles ser dissuadidos por uma
lei que não podiam deixar de considerar como inválida?
O remoque em relação às nossas instituições do Estado,
que permanentemente brota da boca do vulgo, segundo o
qual não se é punido por causa do crime, mas por se ter
deixado apanhar, é pertinente e justo. Exigir à serventuária
da legislação, a polícia, que deite a mão a todo o culpado
sem exceção é algo absolutamente indispensável.
Encontrei frequentemente entre os meus ouvintes
dúvidas sobre a possibilidade de satisfazer esta exigência e
não posso esperar que os meus leitores reajam de modo
diferente a esta exigência. Se a afirmação desta impossibili-
dade estivesse fundamentada, eu concluiria sem qualquer
reserva: então é também impossível o Estado em geral e
todo o Direito entre os homens. Todas as instituições a que
chamamos Estados não são, nem nunca serão, mais do que
opressão dos mais fracos pelos mais fortes sob a capa do
92 Direito, para os utilizar a seu bel-prazer; opressão essa a que
está necessariamente associada a permissão de, por seu
turno, se ressarcirem à custa dos que são ainda mais fracos ,
tanto quanto o possam fazer: e o Direito público não é
senão a doutrina que estabelece até onde pode o mais forte
chegar na sua injustiça sem prejudicar os seus interesses,

358
como MontesquieJ. 43 l ironicamente o descreve. Mas tem esta
alegação de inexequibilidade um fundamento e de onde é
que pode, então, proceder esse fundamento? Procede do
facto de não nos arrimarmos ao conceito de Estado que foi
aqui estabelecido, de não se considerar o Estado como o
conceito de um todo organizado, no seio do qual somente
é possível a estas partes continuar a existir e fora do qual,
num outro todo, as partes não podem , pura e simples-
mente, continuar a existir; procede do facto de que na
apresentação das partes individuais a imagem dos nossos
Estados habituais deixa-se sempre suplantar pela fantasia.
Não é de estranhar que a parte não queira agora integrar-se
onde quer que seja. Nos Estados habituais, a exigência de
deitar a mão ao autor de todo o ato ilícito seria, de facto ,
inexequível, ou, se pudesse vir a ser levada a cabo, se, por
exemplo, um Estado existente quisesse utilizar alguns dos
meios de polícia aqui indicados, isso seria uma injustiça
que o povo não toleraria por muito tempo e com a qual o
Estado só abriria o caminho para a sua derrocada. Pois
onde reinam, de cima abaixo, a desordem e a injustiça, o
governo só pode subsistir na medida em que permite igual-
mente ao que está por baixo uma boa dose de desordem,
desde que esta não o afere a ele.
A fonte de todo o mal nos nossos simulacros de
Estado é, pura e simplesmente, a desordem e a impossibili-
dade de impor a ordem. Que nestas condições a descoberta
de um culpado comporta aqui, com frequência, grandes e
insuperáveis dificuldades, isto decorre exclusivamente do
facto de que existe um tão grande número de pessoas de
quem o Estado se não ocupa e que não têm uma posição
social determinada no seio do Estado. Num Estado dotado
com a Constituição que aqui expusemos, cada um tem
uma posição social determinada, a polícia sabe mais ou
menos onde se encontra cada cidadão a cada hora do dia e

359
aquilo que está a fazer. Cada um tem de trabalhar e cada
um, se trabalha, tem de viver: não há cavalheiros de indús-
tria ( Chevaliers d 'industrie); pois em todo o território do
Estado não são em parte alguma acolhidos sob um teto.
Cada um pode ser identificado no local, com a ajuda do
documento de identificação que descrevemos. O crime é
algo de muito pouco habitual num tal Estado; é precedido
por um certo movimento que não é usual. Num Estado em
que tudo é ordem e onde tudo decorre alinhadamente, se a
93 polícia observa estes movimentos que não são habituais,
põe-se logo em guarda; e assim, pela minha parte, não vejo
a possibilidade de que um crime e o seu autor possam per-
manecer sem serem descobertos.
É preciso observar ainda a este respeito que o funcio-
namento da polícia aqui descrito não tem necessidade de
espiões ou de informadores encobertos. O secretismo é
sempre mesquinho, baixo e imoral. Tudo aquilo que cada
um ousa fazer, deve fazê-lo perante os olhos de todo o
mundo. A quem iria então o Estado dar estas tarefas deson-
rosas? Deve ele próprio incitar à desonra e à imoralidade e
erigi-las em dever? Pois, se o Estado autoriza por uma vez
só o segredo para alguns homens, quem é que garante que
estes não se vão aproveitar da sua clandestinidade para
cometer crimes?
Porque é que se quer então observar os cidadãos em
segredo? Para que estes não sai bam que estão a ser observa-
dos. E porque é que o não devem saber? Para que revelem
sem constrangimento os seus pensamentos sobre o governo
e os seus planos contra ele e se convertam nos seus próprios
delatores; ou para que ponham à luz do dia aquilo que
sabem sobre ações ilegais mantidas em segredo. A primeira
coisa só é necessária onde o governo e os súbditos vivem
em guerra incessante, onde estes são injustamente oprimi-
dos e estão a lutar, de acordo com o Direito bélico, para

360
recuperar a sua liberdade; a segunda só é necessária onde a
polícia no seu conjunto não é suficientemente vigilante, de
tal modo que houve alguma coisa que pôde ser mantida em
segredo perante ela. Nenhuma das duas coisas ocorre no
Estado que aqui descrevemos. - O chefe da polícia de
Paris, que tinha querido dar um uniforme aos seus infor-
madores, foi alvo de chacota de um povo corrompido e sal-
vou a vida graças a esta insignificância. Na minha opinião,
ele dava provas de um espírito são e íntegro. No Estado
aqui descrito, os funcionários da polícia podem ter uni-
forme. Eles são tanto as testemunhas honradas da inocên-
cia, como os acusadores do crime. Como é que aquilo que
é irrepreensível poderia temer e odiar o olhar da vigilância?

361
94
COMPÊNDIO DO DIREITO DA FAMÍLIA 95
(Como primeiro apêndice ao Direito natural)

PRIMEIRA SECÇÃO

DEDUÇÃO DO CASAMENTO

Nota

Tal como anteriormente teve de ser primeiramente


deduzida a necessidade da existência em comum de uma
pluralidade de seres racionais e a sua relação com o mundo
sensível para que a aplicação do conceito de Direito tivesse
um objeto, assim temos aqui de primeiro nos dar a conhe-
cer a natureza do casamento, o que temos de fazer por via
de uma dedução, para depois poder aplicar com discerni-
mento o conceito de Direito ao casamento. Da mesma
maneira que os seres racionais e o mundo sensível para eles
não chegam à existência por via do conceito de Direito,
também não é por via do conceito de Direito que o casa-
mento chega a existir. O casamento não é uma mera asso-
ciação jurídica, como é o Estado; é uma associação natural
e moral.
A dedução subsequente não é, portanto, jurídica; mas
ela é necessária numa doutrina do Direito, para obter uma
visão das proposições jurídicas que vamos postenormente
estabelecer.

363
§ 1

A natureza fez assentar o seu fim de reprodução da


espécie humana num impulso natural nos dois diferentes
sexos, impulso que aparentemente existe apenas em função
de si mesmo, na busca da sua própria satisfação. Esse
impulso é em si mesmo um fim da nossa natureza, se bem
96 que seja somente um meio para a natureza em geral. Na
medida em que as pessoas não visam senão satisfazer esse
impulso, por via das consequências naturais desta satisfação
o fim da natureza é alcançado, sem necessidade de qualquer
outra intervenção do homem.
Posteriormente, o homem pode obviamente apren-
der mediante a experiência e a abstração qual é o fim da
natureza e por enobrecimento moral propor-se este fim
aquando da satisfação deste impulso. Mas anteriormente à
experiência e no seu estado natural o homem não tem este
fim , pois que o fim último é a mera satisfação do impulso;
e assim teria de ser, para que o fim da natureza pudesse ser
alcançado com segurança.
(Quero indicar aqui a razão pela qual a natureza tem
que operar a diferenciação entre dois sexos, cuja união
constitui o único meio de reprodução da espécie, explicita-
ção que será feita em termos breves, pois não é aqui o lugar
apropriado para esta investigação.
A formação de um ser da mesma espécie é o grau mais
elevado da força formadora na natureza orgânica e esta
força opera necessariamente de forma permanente se estive-
rem presentes as condições da sua eficácia. Se estivessem
estado sempre presentes, encontrar-se-ia na natureza uma
transição constante de umas formas para outras, mas nunca
a estabilidade da mesma forma, um devir permanente, mas
nunca um ser; e não existindo nada que pudesse transfor-
mar-se numa outra coisa, nem sequer seria possível qual-

364
quer transformação, o que seria uma ideia impensável e em
si mesma contraditória. (É a mesma si tuação a que acima
chamei de co nflito entre o ser e o não ser.) Nesta base, a
natureza não é possível.
Para que a natureza seja possível, o género humano
deverá ter uma outra existência orgânica para além da
existência enquanto espécie; mas também terá de existir
enquanto espécie para poder reproduzir-se. Isto só foi tor-
nado possível porque a força formadora da espécie se distri-
buiu e como que se cindiu em duas metades absol utamente
complementares, que só na sua união constituíram um
todo capaz de se reproduzir. Ao ser dividida desta maneira,
aquela força formadora forma o indivíduo. São só os indiví-
duos, unidos e na medida em que possam ser unidos, que
têm existência e que formam a espécie; pois ser e formar
são, na natureza orgânica, uma e a mesma coisa. O indiví-
duo subsiste simplesmente como tendência para formar a
espécie. Só assim é que a força pôde ficar em repouso e
imóvel, e foi com o repouso que se chegou à forma na
natureza orgânica; e só assim é que ela se tornou natureza;
é por isso que esta lei da separação dos dois sexos forma-
dores está necessariamente presente em toda a natureza
orgânica.)

§2 97

A determinação específica desta disposição da natureza


é a de que na satisfação do impulso ou na promoção do
fim da natureza no que ao verdadeiro ato de procriação
diz respeito só um dos sexos seja ativo e que o outro seja
paSSIVO.
(Também se pode indicar a razão para esta determina-
ção mais específica. O sistema da totalidade das condições

365
para a geração de um corpo da mesma espécie teria de estar
completamente unificado algures, de tal maneira que, uma
vez posto em movimento, se poderia desenvolver por si
mesmo de acordo com as suas próprias leis. O género em
que está ínsito este sistema chama-se, em toda a natureza,
género feminino. Só o primeiro princípio motor poderia
ficar separado; e tinha de ficar separado para que existisse
uma forma estável. O género em que isto se verifica, que
está separado da matéria a formar, chama-se, em toda a
natureza, género masculino.)

§ 3

A característica da razão é a espontaneidade absoluta: a


mera passividade pela passividade contradiz a razão e anula-
-se por completo. Portanto, não é contrário à razão que o
primeiro sexo se proponha como fim a satisfação do seu
impulso sexual, uma vez que este pode ser satisfeito pela
atividade: mas é absolutamente contrário à razão que o
segundo sexo se proponha como fim a satisfação do seu
impulso sexual, porque então teria de se propor como fim
uma mera passividade. Por conseguinte, ou o segundo sexo
não é racional, mesmo que seja em termos de faculdade,
o que contradiz a pressuposição de que é de seres humanos
que se trata; ou, então, esta disposição não pode, em vir-
tude da sua natureza especial, ser desenvolvida, o que é em
si contraditório, na medida em que se admitiria então na
natureza uma faculdade que não é admitida nela; ou, final-
mente, o segundo sexo não pode nunca propor-se como
fim a satisfação do seu impulso sexual . Um tal fim e a
racionalidade excluem-se reciprocamente.
Ora, o impulso sexual deste segundo sexo, a sua mani-
festação e satisfação fazem parte do plano da natureza. É

366
necessário, por isso, que este impulso se manifeste na
mulher de uma outra form a e que, para poder coexistir
com a racionalidade, apareça como impulso para a ativi- 98
dade; na verdade, como impulso natural característico de
uma atividade que é própria apenas deste sexo.
Uma vez que a teoria que se vai expor em seguida
assenta nestas proposições, vou tentar fazer os devidos escla-
recimentos, para evitar eventuais mal-entendidos.
1. Fala-se aqui de natureza e de um impulso natural,
isto é, de algo que a mulher, desde que se verifiquem as
duas condições da sua existência, razão e impulso sexual,
encontrará em si, sem qualquer recurso à sua liberdade e dei-
xada completamente a si própria, como algo dado, originá-
rio, e que não pode ser explicado a partir de qualquer ação
livre antecedente. Com isto, não se nega a possibilidade da
mulher se rebaixar a um nível inferior à sua natureza ou de
se elevar acima da sua natureza mediante a liberdade; eleva-
ção essa que não seria muito melhor do que um rebaixa-
mento. Abaixo da sua natureza desce a mulher quando se
apouca na irracionalidade. O impulso sexual pode, então,
tornar-se consciente na sua verdadeira forma e chegar a ser
o fim consciente da ação. Acima da sua natureza viriam as
mulheres a elevar-se se a satisfação do impulso sexual não
fosse o seu fim, nem na sua forma rudimentar, nem na
forma que apresenta numa alma feminina bem formada ,
mas se fosse pensada como mero meio para outro fim pro-
posto pela liberdade. Se este fim não for um fim completa-
mente censurável (como, por exemplo, ter o título de
senhora casada e a perspetiva de garantia do sustento, caso
em que a condição de pessoa se torna num meio de gratifi-
cação), então este fim não pode ser outro senão o próprio
fim natural: ter filhos, fim que algumas delas invocam.
Mas, uma vez que elas teriam podido alcançar este fim com
qualquer homem que fosse , e, por conseguinte, não existe

367
no seu princípio de ter filhos nenhuma razão para escolher
precisamente este homem, então têm de confessar, pois é a
explicação mais aceitável que podemos admitir, que ficaram
com este homem porque era o primeiro precisamente que
podiam ter, o que não abona a favor de um grande respeito
da sua parte. Mas, mesmo abstraindo desta circunstância
questionável, talvez se pudesse conceder que aquele fim, ter
filhos, pudesse, em geral, justificar a decisão de viver com
um homem; se bem que quem conhece a natureza humana
deva duvidar que este fim assumido de maneira consciente
as conduza a este resultado, de tal forma que os filhos sejam
efetivamente concebidos com base numa ideia de procria-
ção. - Que o leitor perdoe esta clareza no esforço de mos-
trar em toda a sua crueza os perigosos sofismas com que se
procurar dissimular a negação da sua verdadeira vocação e
perpetuá-la no mundo.
99 Para caracterizar com uma imagem a inteira situação:
o segundo sexo encontra-se na ordenação da natureza num
nível mais baixo que o primeiro; é objeto de um poder do
primeiro sexo e ambos devem ser iguais enquanto seres
morais . Isto só é possível se no segundo sexo tiver sido
introduzida uma dimensão inteiramente nova, que falta por
completo no primeiro. Esta dimensão é a forma sob a qual
se manifesta o impulso sexual, que no homem se manifesta
na sua forma verdadeira.
2. O homem pode confessar o impulso sexual e bus-
car a satisfação desse impulso sem renunciar à sua digni-
dade; quero dizer: originariamente. Quem, na relação com
uma mulher apaixonada, viesse a fazer da satisfação desse
impulso o seu único fim seria uma pessoa boçal: o funda-
mento disto será mostrado mais adiante. A mulher não
pode confessar este impulso. O homem pode pedir em
casamento. A mulher não. Seria o maior rebaixamento de si
própria se o fizesse. Uma resposta negativa que o homem

368
possa obter não quer dizer mais do que: não me quero sub-
meter a ti; isto é tolerável. Uma resposta negativa obtida
pela mulher quereria dizer: não quero aceitar a submissão a
que já te entregaste; o que é, sem dúvida, intolerável. - O
raciocínio com base no conceito de Direito não tem aqui
lugar; e se algumas mulheres são de opinião de que têm de
ter tanto direito como os homens para pedir em casamento,
poder-se-ia perguntar-lhes: quem é que lhes contesta esse
direito e, por conseguinte, porque é que não fazem uso
dele? Isto é como se se questionasse se o homem não tem o
mesmo direito de voar que os pássaros. É melhor deixarmos
as questões de direitos em paz, até que haja um homem
que efetivamente voe.
É nesta única diferença que se baseiam todas as outras
diferenças entre ambos os sexos. Desta lei da natureza
da mulher decorre o pudor feminino , que não existe da
mesma forma no sexo masculino. Os homens boçais até se
vangloriam da prática da luxúria; mas nem na maior das
dissoluções morais em que o segundo sexo possa algumas
vezes ter caído, tendo com isso ultrapassado de longe a
depravação dos homens, se ouviu por uma vez que foss e
que as mulheres fizeram isso; até mesmo a prostituta pre-
fere confessar que pratica a sua vergonhosa profissão por
dinheiro e não por prazer.

§4 100

A mulher não pode assumir perante si própria que se


entrega ao prazer sexual - e, dado que no ser racional algo
só existe na medida em que o ser racional dele tem cons-
ciência, a mulher não pode em geral entregar-se ao prazer
sexual para satisfazer o seu próprio impulso; e uma vez que
tem de se entregar a ele em consequência de um impulso,

369
este impulso não pode ser outro senão o de satisfazer o
homem. Converte-se, neste ato, em meio para o fim de
outrem; pois ela não podia ser o seu próprio fim sem
renunciar ao seu fim úl timo, a dignidade da razão. Ela
afirma a sua dignidade, pese embora se converter em meio,
pelo facto de que se entrega livremente, em resultado de
um nobre impulso natural, o do amor.
O amor é pois a forma sob a qual se manife ta o
impulso sexual na mulher. Mas amor é sacrificar-se por
alguém não em resultado de um conceito, mas em resul-
tado de um impulso natural. O mero impulso sexual não
deve nunca chamar-se amor; isto é um abuso grosseiro, que
parece acabar por fazer esquecer tudo o que há de nobre na
natureza humana. Na minha opinião, não se deveria cha-
mar amor senão àquilo que acabo de descrever. No homem
não existe originariamente amor, mas impulso sexual; no
homem, o amor não é um impulso originário, mas apenas
um impulso partilhado, derivado, um impulso que só é
desenvolvido em conjugação com uma mulher que ama,
assumindo no homem uma forma completamente dife-
rente, como veremos em seguida. Só para a mulher é que o
amor, o mais nobre de todos os impulsos naturais, é inato;
é só por via dela que existe este impulso entre as pessoas,
tal como outros impulsos sociais, de que falaremos mais
adiante. Na mulher, o impulso sexual adquire uma forma
moral, porque na sua forma natural anularia por completo
a moralidade da mulher. O amor é o ponto de união mais
íntimo entre a natureza e a razão; é o único elemento em
que a natureza se incrusta na razão; é, portanto, o que há
de mais excelente em tudo o que é natural. A lei moral
exige que nós nos esqueçamos nos outros; o amor é entrega
ao outro.
Resumindo: na mulher íntegra não se manifesta ne-
nhum impulso sexual e não está presente nenhum impulso

370
sexual, mas somente o amor; e este amor é o impulso natu-
ral da mulher para satisfazer um homem. É, na verdade,
um impulso que exige urgentemente a sua satisfação; mas
esta satisfação não é a satisfação dos sentidos da mulher,
mas do homem ; para a mulher, é somente satisfação do
coração. A sua necessidade é apenas amar e ser amada.
É somente assim que o impulso para se entregar adquire
as características da liberdade e da espontaneidade, caracte- 101
rísticas que tinha de possuir para poder coexistir com a
razão. - Não existe, decerto, homem algum que não sinta
o absurdo de inverter os termos e atribuir ao homem um
impulso semelhante de satisfazer uma necessidade da
mulher, necessidade que não pode pressupor nela, não
podendo um homem imaginar-se como instrumento dessa
necessidade sem sentir vergonha até aos mais íntimo da sua
alma.
É também por isto que a mulher não é, na união
sexual, um meio para o fim do homem, em qualquer sen-
tido que seja: é um meio para o seu próprio fim, satisfazer
o seu coração; é só quando se trata da satisfação dos senti-
dos é que a mulher é um meio para o fim do homem.
Seria uma aberração dogmática ver como enganosa
esta mentalidade da mulher e dizer, por exemplo: no fim de
contas, é o impulso sexual que move a mulher, só que
de forma encapotada. A mulher não vê mais nada que o
amor e a sua natureza não vai mais além do que o amor:
por conseguinte, para além disto, a mulher não existe. Que
um homem, que não tem, nem deve ter, a inocência femi-
nina e que pode assumir tudo perante si mesmo, decompo-
nha este impulso nos seus elementos é algo que não diz res-
peito à mulher; para ela, o impulso é simples, pois é
mulher e não homem. Se fosse homem, teríamos razão em
considerar enganosa esta mentalidade; mas então, ela não

371
seria ela e tudo seria diferente. - Ou será que se quer expli-
citar o impulso fundamental da natureza feminina como
coisa em sz?

§ 5

Ao constituir-se como meio de satisfação do homem,


a mulher dá a sua personalidade; recupera a sua personali-
dade e toda a sua dignidade só porque o fez por amor por
esse homem.
Mas se este sentimento chegasse ao fim e a mulher
deixasse de ver o homem que satisfez como o mais digo de
amor entre todos os do seu sexo, se ela pudesse sequer con-
ceber a possibilidade de uma tal coisa, então ver-se-ia
perante os seus próprios olhos como desprezível por causa
desses pensamentos. Se for possível que ele não seja para ela
aquele que do seu sexo é o mais digno de amor, então, uma
vez que ela se entrega apenas a ele, de entre todos os indiví-
duos do seu sexo, ter-se-ia que assumir que não existe
nenhuma outra razão para a sua entrega senão que a natu-
reza a levou de maneira encapotada a satisfazer-se com o
primeiro que lhe apareceu, o que seria, sem dúvida, um
pensamento indigno. Uma vez que ela se entrega conser-
vando a sua dignidade, é necessário que continue a supor
que o sentimento presente não pode nunca acabar, mas que
102 é duradouro, tão duradouro como ela própria o é. Aquela
que se entrega uma vez entrega-se para sempre.

§ 6

A mulher que faz entrega da sua personalidade afir-


mando a sua dignidade como pessoa faz necessariamente
entrega ao seu amado de tudo o que tem. Se a entrega não

372
fosse ilimitada e a mulher reservasse para si nessa entrega o
mínimo que fosse estaria com isso a demonstrar que aquilo
que reservou possui para ela um valor mais elevado do que
a sua própria pessoa; o que seria, sem dúvida, um profundo
atentado à dignidade da sua pessoa. A sua própria digni-
dade assenta no facto de que ela é do seu marido por com-
pleto, tal como vive e como é, e que se perdeu para ele e
nele sem reservas. O mínimo que disso resulta é que ela lhe
cede os bens e todos os seus direitos e vai viver com ele. Só
unida a ele, debaixo dos seus olhos e nas ocupações dele é
que ela continua a ter vida e atividade. Deixou de levar
uma vida individual; a sua vida tornou-se uma parte da
vida dele (isto é muito pertinentemente indicado pelo facto
de que ela assume o nome do marido).

§7

A situação do homem é aqui a seguinte: ele, que pode


confessar a si próprio tudo o que há no ser humano,
encontrando, portanto, em si mesmo a plenitude da huma-
nidade, tem uma visão abrangente da relação na sua glo-
balidade, de uma maneira que a mulher não pode ter.
O homem vê que um ser que é originariamente livre se
lhe submete incondicionalmente com liberdade e confiança
ilimitada; vê que a mulher faz depender completamente
dele não só todo o seu destino exterior, mas também a paz
interior da sua alma e o seu carácter moral; se não a essên-
cia desse carácter, pelo menos a sua crença pessoal nele:
pois a crença da mulher em si própria e na sua inocência e
virtude depende do facto de não deixar nunca de respeitar
e amar o seu marido acima de todos os outros homens.
Do mesmo modo que a disposição moral na natureza
da mulher se manifesta pelo amor, a disposição moral na

373
natureza do homem manifesta-se pela magnanimidade. Ele
quer, antes de tudo, ser o senhor; mas em relação a quem
se lhe entrega com confiança ele despoja-se de todo o seu
poder. Ser forte em relação às pessoas que se lhe submete-
ram é próprio do castrado, que não tem força alguma face
àquele que lhe resiste.
103 Em consequência desta magnanimidade natural, o
homem está, antes de mais, obrigado na relação com a sua
esposa a ser digno de respeito, uma vez que toda a sua tran-
quilidade depende do facto de que ela o possa respeitar
acima de tudo. Nada mata de modo mais irrecuperável o
amor da mulher do que a baixeza e a falta de honra
do homem. - Em geral, o outro sexo perdoa ao nosso tudo
o resto: mas nunca a cobardia e a fraqueza de carácter.
A razão disto não é, de modo algum, a sua avaliação egoísta
da nossa proteção, mas simplesmente o sentimento da
impossibilidade de se submeter a um tal homem, como o
requer a sua vocação.
A tranquilidade da mulher depende do facto de estar
completamente submetida ao seu esposo e de não ter
nenhuma outra vontade senão a dele. Sabendo o homem
isto, a consequência é a de que, sem negar a sua própria
natureza e dignidade, a magnanimidade masculina, ele não
omite nada que possa tornar esta sujeição tão fáci l quanto
possível para a mulher. Isto é impossível se o homem se
deixa dominar pela sua esposa, pois é nisto que consiste o
orgulho do seu amor, em estar submetida e parecer que o
está, não sabendo ela outra coisa senão que o está. Os
homens que se submetem ao domínio das suas esposas tor-
nam-se com isso desprezíveis e roubam-lhes a elas toda a
felicidade conjugal . Isto só pode acontecer se o homem
sondar os desejos da mulher para satisfazer como se fosse a
sua própria vontade aquilo que ela, se deixada a si própria,
preferisse fazer. - Não se trata aqui da mera satisfação pela

374
satisfação dos seus caprichos e fantasias; do que se trata é
de agir em razão de um fim superior, faci litar que ela possa
sempre amar o seu esposo acima de todas as coisas e man-
ter a sua inocência perante os seus próprios olhos. - A
esposa cujo coração não pode estar satisfeito por uma obe-
diência que não lhe custa qualquer sacrifício não há de, por
seu lado, deixar de sondar os desejos mais ocultos do
homem e de os procurar satisfazer com sacrifício. Quanto
maior for o sacrifício, tanto maior será a satisfação do seu
coração. Daqui surge a ternura conjugal (ternura das sensa-
ções e da relação). Cada uma das partes quer renunciar à
sua personalidade, para que reine apenas a personalidade da
outra parte; só na felicidade do outro é que cada um
encontra a sua própria felicidade; o intercâmbio dos cora-
ções e das vontades torna-se perfeito. Só na união com uma
mulher que ama é que o coração masculino se abre ao
amor, um amor que se entrega sem reservas e que se perde
no objeto; só na união conjugal aprende a mulher a mag-
nanimidade, o sacrifício consciente e de acordo com o con-
ceito: e, assim, a união torna-se mais íntima a cada dia do
casamento que passa.

Corolários 104

1. É na união de ambos os sexos, portanto, na realiza-


ção do ser humano na sua totalidade como um produto da
natureza completo, e somente nessa união, que se encontra
um impulso exterior para a virtude. O homem está forçado
pelo impulso natural da magnanimidade a ser nobre e hon-
rado, porque disso depende o destino de um ser livre que
se lhe entregou com toda a confiança. A mulher está for-
çada a observar todos os seus deveres em virtude do pudor
inato nela. Ela não pode renunciar à razão em nenhum

375
aspeto que seja sem levantar perante si a suspeição de que
renunciou àquilo que é mais importante, que - pensa-
mento que é para ela intolerável ao extremo - não ama o
seu marido e que só precisa dele como meio de satisfação
do seu impulso sexual. - O homem em quem ainda está
presente a magnanimidade e a mulher em quem ainda
está presente o pudor são capazes de todo o enobrecimento:
mas estão no caminho certo de todos os vícios, se o pri-
meiro se torna infame e a mulher despudorada; como o
confirma a experiência, sem exceção.
2. Também se resolveu aqui a questão: como pode o
género humano ser conduzido da natureza à virtude? Res-
pondo: por via, unicamente, do restabelecimento da relação
natural entre os dois sexos. Não existe educação moral da
Humanidade que não comece por este ponto.

§ 8

Uma umao como a que foi descrita chama-se casa-


mento. O casamento é a união perfeita entre duas pessoas de
sexo diferente fundada no impulso sexual, união que tem
em si mesma o seu próprio fim.
Para o filósofo que investiga, o casamento está baseado
no impulso sexual de ambos os cônjuges; mas não é neces-
sário que qualquer uma das duas pessoas que quer contrair
casamento reconheça isto perante si própria. A mulher não
o pode confessar, pois só pode confessar amor. Além disso,
a constância do casamento não está, de modo algum, con-
dicionada pela satisfação deste impulso; este fim pode desa-
parecer por completo e, no entanto, continuar a existir a
união conjugal em toda a sua intimidade.
Os filósofos consideraram-se obrigados a indicar um
fim para o casamento e responderam à questão de maneiras

376
muito diversas. Mas o casamento não tem um fim exterior 105
a si mesmo; ele é o seu próprio fim. A relação conjugal é a
maneira de existir mais genuína das pessoas adultas de
ambos os sexos e é exigida pela natureza. É só nesta relação
que todas as facu ldades humanas se podem desenvolver;
fora dela ficam muitas dessas faculdades por cultivar, preci-
samente os mais admiráveis aspetos da humanidade. Se a
existência do homem em geral deva ser referida a um fim
sensível, por menos que seja, a forma dessa existência é
necessariamente o casamento.
O casamento é uma união entre duas pessoas, um
homem e uma mulher. A mulher que se entregou a
um homem não se pode entregar a outro homem, pois
a sua própria dignidade depende do facto de que ela per-
tença por completo a esse único homem. O homem, que
tem de se reger pela vontade e pelos desejos mais subtis de
uma mulher para a fazer feliz, não se pode reger pela von-
tade de várias mulheres, que não estão de acordo entre si .
A poligamia pressupõe a opinião entre os homens de que as
mulheres não são seres racionais, tal como os homens, mas
meros instrumentos para o homem, desprovidas de vontade
ou de direitos. Esta é, efetivamente, a doutrina da legislação
religiosa dos muçulmanos, que permite ter várias mulheres.
Esta religião, obviamente sem ter consciência clara das
razões subjacentes, extraiu consequências unilaterais da
vocação da natureza feminina, comportar-se passivamente.
A poliandria é completamente contrária à natureza e, por
isso, raramente se manifesta. Se não fosse uma animalidade
boçal e se pudesse basear-se nalgum pressuposto, teria de
pressupor que não existe, em absoluto, razão e dignidade da
razão.
O vínculo conjugal é, pela sua natureza, indissolúvel
e eterno e é necessariamente contraído como eterno. A
mulher não pode pressupor que deixará de amar o seu

377
marido acima de todos os homens sem renunciar à sua dig-
nidade feminina; o homem não pode pressupor que deixará
de amar a sua mulher acima de todas as mulheres sem
renunciar à sua magnanimidade masculina. Dão-se um ao
outro para sempre, porque se dão um ao outro completa-
mente.

§ 9

O casamento não é, por conseguinte, um uso artificial


ou uma instituição arbitrária, mas uma relação em que a
união entre os cônjuges é necessária e perfeitamente deter-
minada pela natureza e pela razão. Digo que é perfeita-
mente determinada, o que equivale a dizer que só um casa-
106 mento como o que foi descrito e nenhum outro vínculo
entre os dois sexos para a satisfação do impulso sexual está
autorizado pela natureza e pela razão.
Não é a lei do Direito que tem que ver com a cons-
trução ou a determinação do casamento, mas sim a muito
mais elevada legislação da natureza e da razão, que com os
seus produtos proporciona um espaço para a lei do Direito.
Considerar o casamento meramente como uma associação
jurídica conduz a representações inadequadas e imorais.
Ser-se-ia, portanto, conduzido a esse erro pelo facto de que
o casamento é, na verdade, uma vida em comum de seres
livres, como tudo o que é determinado pelo conceito de
Direito. Mas seria mau se esta vida em comum não pudesse
ser baseada e ordenada por nada mais elevado do que leis
coercitivas. O casamento tem de existir antes de se poder
falar de um Direito conjugal, tal como os seres humanos
têm de existir antes que se possa falar de Direito em geral.
O conceito de Direito não pergunta de onde é que o casa-
mento provém, como tão-pouco pergunta de onde provêm

378
os seres humanos. Só depois de o casamento ter sido dedu-
zido, como acabamos de fazer, é que é tempo de perguntar
em que medida é que o conceito de Direito é aplicável a
este vínculo, que controvérsias jurídicas podem surgir em
torno dele e como é que elas deveriam ser decididas; ou,
dado que ensinamos um verdadeiro Direito natural, que
direitos e deveres tem o administrador visível do Direito, o
Estado, em matérias conjugais em particular e sobre a rela-
ção recíproca entre os dois seres em geral. Vamos passar
agora a esta investigação.

379
SEGUNDA SECÇÃO 107

O DIREITO MATRIMONIAL

§ 10

O conjunto de todos os direitos é a personalidade; e é


o primeiro e o mais importante dever do Estado proteger a
personalidade dos seus cidadãos. Ora, a mulher perde toda
a sua personalidade e toda a sua dignidade se está forçada a
submeter-se sem amor ao prazer sexual de um homem. Por
conseguinte, é dever absoluto do Estado proteger as suas
cidadãs contra esta coação; um dever que não se funda, de
modo algum, num contrato voluntário particular, mas na
natureza das coisas e que está diretamente contido no con-
trato social; é um dever tão sagrado e inviolável como o
dever de proteger a vida dos cidadãos. (Trata-se aqui da
vida moral íntima das cidadãs.)

§ 11

Esta coação pode ser infligida às cidadãs diretamente


pela força física, chamando-se então violação. - Não pode
haver qualquer dúvida de que a violação é um crime. Com
a violação ataca-se a mulher na sua personalidade, portanto,
no conjunto dos seus direitos, da maneira mais brutal.

381
O Estado tem o direito e o dever de proteger as suas
cidadãs contra esta violentação: em parte, por meio de vigi-
lância policial, em parte pela cominação de penas para este
crime. - Crime que, antes do mais, indicia brutalidade, que
torna aquele que o pratica absolutamente incapaz de viver
em sociedade. A força da paixão não desculpa o crime, mas
agrava-o ainda mais. Quem não consegue dominar-se a
si próprio é um animal raivoso; e a sociedade não pode
desculpá-lo de nenhum modo, nem tolerá-lo no seu seio.
A violação indicia, além disso, um menosprezo sem limites
e um esquecimento de todos os direitos humanos. Nalgu-
mas legislações, a violação é punida com a morte; e se uma
legislação considerou legítimo introduzir a pena de morte, é
perfeitamente coerente que a aplique a este crime. De
108 acordo com o meu sistema, eu pronunciar-me-ia pelo inter-
namento em estabelecimento correcional, pois que, embora
o crime seja equivalente ao homicídio no que ao desprezo
dos direitos humanos diz respeito, não torna impossível a
coexistência dos homens com tais criminosos.
No que diz respeito à reparação, é evidente que
nenhuma é possível. Como poderia restituir-se à desdi-
tosa mulher a consciência de se entregar intocada ao
homem que virá a amar um dia? Não obstante, tem, tanto
quanto isso seja possível, de haver reparação; e, uma vez
que o criminoso não pode dar nada à vítima nem esta pode
aceitar nada dele a não ser bens patrimoniais, eu pronun-
ciar-me-ia pela entrega de todos os seus bens à vítima da
violação.
A mulher solteira encontra-se, como veremos mais
adiante, debaixo da autoridade dos pais, a casada debaixo
da autoridade do marido. Os queixosos seriam ou os pri-
meiros ou este último. No primeiro caso, poderia ser ela
própria a apresentar a queixa se os pais o não quisessem

382
fazer, mas não no segundo caso, porque a mulher só condi-
cionalmente é que está submetida aos pais, mas ao marido
está-o incondicionalmente.

§ 12

Esta coação podia ser infligida indiretamente às cidadãs


pela violência moral dos seus pais e parentes, na medida em
que a podem empurrar para um casamento para o qual ela
não esteja inclinada, recorrendo a tratamento violento ou à
persuasão. Não pode haver dúvida de que há que proibir e
punir o tratamento violento para induzir a mulher a casar-
-se; no que diz respeito à persuasão, esta não é crime em
qualquer outro caso; mas aqui é-o manifestamente. Noutras
situações, pode perguntar-se: porque é que te deixaste per-
suadir? Mas aqui não há lugar a uma tal pergunta. A filha
inexperiente e inocente não conhece o amor, não conhece
por completo o vínculo que lhe é proposto, pelo que é ver-
dadeiramente enganada e usada como instrumento para o
fim dos seus pais ou parentes.
Esta forma de coação é mais prejudicial e afrontosa do
que a violência física que começamos por referir, não pela
forma, mas pelo resultado. Cessada a violência física, a
mulher é livre de novo; mas com a coação psicológica, ela é
enganada de maneira infame para toda a sua vida em rela-
ção ao mais nobre e doce dos sentimentos, o amor, enga-
nada na sua verdadeira dignidade feminina e no seu carác-
ter; é rebaixada por completo e para sempre à condição de
um instrumento.
Não pode, por conseguinte, questionar-se se o Estado
tem ou não o direito e o dever de proteger com leis rigoro-
sas e vigilância atenta as suas cidadãs contra esta forma de

383
109 coação. A questão aqui é só a seguinte: a filha solteira está,
como vamos ver mais adiante, debaixo da autoridade dos
seus pais; estes são a sua primeira jurisdição e os seus tuto-
res perante os tribunais. Teriam de apresentar queixa da
coação que foi exercida sobre ela. Ora, é absurdo pensar
que vão apresentar queixa contra si próprios; pois se tives-
sem vontade que a sua coação fosse impedida pela autori-
dade do Estado, já se teriam abstido por si próprios dessa
coação.
Veremos igualmente que as filhas se subtraem à autori-
dade dos pais quando se casam. Aqui é de casamento
que estamos a falar; a filha é considerada casadoira pelos
próprios pais, que a querem forçar a casar; a lei podia,
por conseguinte, em conformidade plena à boa razão, pres-
crever que a consequência jurídica desta incitação ao casa-
mento deveria ser a emancipação da filha em relação
aos pais, tendo ela, neste caso, de passar a velar pelos
seus próprios direitos. - O veredito final do Estado neste
assunto, e daí a prescrição da lei, não poderia ser outro
senão este: os pais que se sirvam da sua autoridade para
oprimir para o resto da vida os direitos humanos dos seus
filhos serão removidos do poder paternal, sendo a filha,
conjuntamente com os bens que lhe correspondem, sub-
traída à sua autoridade e colocada sob a custódia direta
do Estado até se casar. - Mas, uma vez que, apesar desta
prescrição, sempre haveria que temer que a filha jovem
e inexperiente, habituada a uma cega obediência aos
pais, dificilmente apresentaria queixa e já que a única ques-
tão aqui é que a referida coação ao casamento não tenha
lugar, poderia permitir-se que nestes casos a autoridade
procedesse aqui oficiosamente, sem necessidade de queixa
prévia.

384
§ 13

Com o sexo masculino, as coisas passam-se de modo


completamente diferente. Em primeiro lugar, o homem, no
sentido próprio do termo, não pode ser coagido a contrair
casamento, porque isto vai contra a natureza das coisas.
Que seja convencido, isto quer dizer pouca coisa, porque
no seu caso o amor genuíno não precede, sem mais, o casa-
mento, mas é produzido por ele. Mas se compreender
aquilo que é o seu verdadeiro interesse, o homem não pode
permitir que a mulher seja coagida a casar-se com ele. Isto
vai contra os seus direitos humanos, pois priva-o da perspe-
tiva de um casamento feliz, que tem direito de exigir. - O
amor virá certamente depois, dizem muitos pais. Em rela-
ção ao homem, isto é plenamente expectável, se ele obtém 110
uma esposa digna, mas em relação à mulher é muito
incerto; e é terrível sacrificar e degradar uma vida humana
inteira a esta mera possibilidade.
O resultado do que foi dito é: o casamento tem de ser
contraído com absoluta liberdade e o Estado tem, em con-
sequência do seu dever de proteção das pessoas individuais
e, em particular do sexo feminino , o dever e o direito de
velar por esta liberdade dos vínculos matrimoniais.

§ 14

Esta supervisão do Estado sobre a liberdade do casa-


mento tem como consequência que o Estado tem de reco-
nhecer e certificar todos os casamentos contraídos entre os
seus cidadãos e as suas cidadãs.
Todo o casamento tem de ter validade jurídica, quer
dizer, o direito humano da mulher tem de não ser desres-
peitado; ela teve de se entregar de livre vontade, por amor e

385
não coagida. Todo o cidadão tem de ser levado a provar
isto perante o Estado; caso contrário, o Estado teria o
direito de lançar sobre ele a suspeita de uso da força e de o
investigar. Mas esta prova não pode ser convenientemente
aduzida senão deixando a mulher declarar judicialmente o
seu livre consentimento aquando da cerimónia de núpcias.
O sim da noiva não diz, no fundo, mais do que ela não
está a ser coagida. Tudo o resto a que o casamento obriga
resulta obviamente do facto que contraem um casamento.
Aquilo que possa significar o sim do marido será mostrado
mais adiante. Que ele não está sob coação é algo que
resulta do facto de que é ele próprio que leva a mulher à
cerimónia de núpcias. - É muito razoável que a cerimónia
de núpcias se realize perante aqueles que devem ser os edu-
cadores da moralidade do povo, isto é, o clero; mas, na
medida em que a cerimónia de núpcias tem validade jurí-
dica, o funcionário eclesiástico é um funcionário do Estado.
Por isso, os consistórios consideram-se nestas matérias como
tribunais eclesiásticos e têm toda a razão para o fazer.
Não é compreensível onde é que o Estado, e aqui o
clero em particular, que neste ponto se comporta como
legislador, vai buscar o seu direito de proibir o casamento
entre certos graus de parentesco. Se é numa aversão da
natureza contra tais miscigenações, então não é necessária
nenhuma lei de proibição; mas se não existe uma tal aversão
natural, então não pode edificar uma lei com base nela. É
compreensível que uma nação possa acreditar que a sua
III divindade ficaria indignada com semelhantes casamentos,
entre outras coisas: se assim for, o Estado não tem o direito
de ordenar tais casamentos (tal como não tem o direito em
geral de ordenar o casamento entre duas pessoas em con-
creto) , dado que não pode obrigar os cidadãos a agir contra
a sua consciência moral, mesmo que esta seja errónea. Mas
tão-pouco tem o direito de os proibir, quem acreditar

386
naquela indignação da divindade abster-se-á, sem mais, de
contrair casamento com pessoas a que esteja ligado por esses
laços de parentesco; quem não acreditar ou quiser correr
esse risco será castigado pela divindade se a crença da nação
se revelar verdadeira. Em todo o caso, deixemos que sejam
os próprios deuses a vingar-se das ofensas que lhe foram
infligidas. Não resta senão aos sacerdotes advertir lealmente e
admoestar a nação, como meros intérpretes da lei, indicar
àqueles que neles tenham fé quais são os graus de paren-
tesco que são proibidos e quais as penas divinas aplicáveis.
Não se pode conceber nenhuma outra razão para alar-
gar essa crença àqueles que não comungam dela ou que
querem correr o risco a não ser esta: que as penas para o
seu pecado podem ao mesmo tempo recair sobre os demais
inocentes. Mas esta é uma superstição maligna e perversa a
que o Estado na sua legislação não pode atender, nem pode
limitar por causa dela os direitos naturais dos outros.
Mas, independentemente de qualquer motivo reli-
gioso, pode haver motivos políticos para considerar certos
casamentos como não permitidos? O melhor que foi dito
sobre este assunto deve-se, tanto quanto me parece, a Mon-
tesquieu (De l'esprit des lois, livro 26, cap. 14). A vocação
natural dos pais foi sempre velar pela inocência dos seus
filhos, para lhes proporcionar um corpo tão intacto e uma
alma tão imaculada quanto possível. Ocupados incessante- 112
mente com esta preocupação, deviam estar eles próprios em
pessoa muito longe de fazer o que quer que seja que os
pudesse conduzir à tentação. Pelo mesmo motivo, devem
procurar implantar no filho e na filha uma repugnância
contra a união entre si. É esta também a fonte donde pro-
mana a proibição de casamento entre primos direitos. Pois
nos primórdios dos tempos, todas as crianças permaneciam
na casa paterna e os filhos de dois irmãos consideravam-
-se entre si como irmãos.

387
Duas notas a este propósito. Em primeiro lugar, esta
manutenção da castidade dentro das famílias era a preo-
cupação própria dos pais de família; mas não era, de modo
algum, matéria da legislação civil, pois isso não dizia res-
peito à lesão efetiva dos direitos de outras famílias, nem da
legislação policial, uma vez que a quebra da castidade não
torna mais fácil essa lesão; os homens ilustrados da nação
podem relembrar e ensinar este assunto àqueles que nele
não tiverem reparado, mas não podem, de modo algum,
dar, enquanto Estado, uma lei sobre a matéria. Pois, onde
desaparece o fundamento, desaparece o fundado. Este fun-
damento é aqui a vida em comum de pessoas unidas entre
si por certos laços de parentesco. No que diz respeito ao
casamento entre pais e filhos ou entre irmãos, este funda-
mento não pode desaparecer nunca. Relativamente ao casa-
mento entre primos direitos ou entre tio e sobrinha ou com
genros e noras, ou similares, este fundamento encontra-se
raras vezes na situação presente dos homens.
O coito constitui a verdadeira consumação do casa-
mento; por via dele, a mulher passa a submeter ao homem
a sua personalidade completa e demonstra-lhe o seu amor,
que é o ponto de partida da relação entre os cônjuges no
seu conjunto, tal como a descrevemos. Onde houve lugar a
coito, há que pressupor a existência do casamento, princí-
pio que especificaremos adiante com maior pormenor e do
qual se pode inferir: onde este não ocorreu, pode existir um
outro vínculo qualquer, mas não um verdadeiro casamento.
- Por conseguinte, uma promessa de casamento, seja pública
ou privada, não constitui um casamento e a rotura dessa
promessa não pode, de modo algum, ser considerada como
um divórcio. Mas pode, isso sim, constituir fundamento do
direito a exigir indemnização. A parte não culpada tem de,
na medida do possível, ser restituída ao seu estado anterior.
Mesmo a cerimónia de núpcias, se, tal como é costume, pre-

388
cede a consumação do casamento, não consubstancia o
casamento, mas reconhece antecipadamente no plano jurí-
dico o casamento que só mais tarde terá início.

§ 15 11 3

O homem e a mulher estão unidos da maneira mais


íntima. A sua ligação é uma ligação dos corações e das von-
tades . Não é, por conseguinte, de supor que entre eles
possa surgir um litígio judicial. Por isso, o Estado não tem
de dar nenhuma lei sobre a relação entre ambos os cônju-
ges, porque a globalidade da sua relação não é jurídica, mas
é uma relação natural e moral dos corações. Ambos são
uma alma só, pelo que se pressupõe que a possibilidade de
se cindirem um do outro e de se apresentarem um contra o
outro em tribunal é tão escassa como o mesmo indivíduo
se processar a si próprio em tribunal.
Logo que surja um conflito, então já ocorreu a separa-
ção, podendo então seguir-se o divórcio no plano jurídico,
matéria de que trataremos mais adiante.

§ 16

No conceito de casamento está implícita a subordina-


ção ilimitada da mulher à vontade do homem; isto não se
baseia num fundamento jurídico, mas moral. Ela tem de se
subordinar em razão da sua própria honra. - A esposa não
pertence a si própria, mas ao marido. Na medida em que o
Estado reconhece que o casamento é uma relação que se
funda não por via do Estado, mas por via de algo superior
ao próprio Estado, renuncia a continuar a considerar a
mulher como uma pessoa jurídica. O marido ocupa o seu

389
lugar; com o casamento, ela fica anulada para o Estado, em
consequência da sua vontade necessária, que o Estado
garantiu. O marido converte-se no seu garante perante o
Estado; torna-se no seu tutor jurídico; ele passa a viver toda
a vida pública dela e a ela fica reservada unicamente a vida
doméstica.
A garantia do marido em relação à mulher tem uma
explanação óbvia, pois decorre da natureza do seu vínculo,
cujos limites veremos mais adiante. - No entanto, não
deixa de ter utilidade que ele declare ainda em particular
que se constitui expressamente como garante desta mulher
em concreto. O sim do homem na cerimónia de núpcias
pode ser visto como o asseguramento desta garantia e só
nesta condição é que ele se reveste de sentido.

114 § 17

No conceito de casamento está implícito que a mulher,


que entrega a sua personalidade ao marido, entrega-lhe
simultaneamente a propriedade de todos os seus bens e
transmite-lhe exclusivamente a ele os direitos que a ela lhe
cabem no quadro do Estado. Ao reconhecer um casamento,
o Estado reconhece e garante ao mesmo tempo ao marido a
propriedade dos bens da mulher - não contra a mulher,
pois pressupõe-se que em relação a ela nenhum litígio é
possível, mas contra todos os restantes cidadãos. Em relação
ao Estado, o marido torna-se o único proprietário dos seus
bens anteriores e daqueles que a mulher tenha trazido para
o casamento. A aquisição é ilimitada, uma vez que ele é a
única pessoa jurídica que continua a existir.
Se a propriedade da mulher já está previamente decla-
rada e reconhecida pelo Estado, então é só transmitida ao
marido; mas se lhe advém dos bens dos pais, então é só

390
com a declaração pelos nubentes e a garantia pelo Estado
da propriedade de todos esses objeros que essa transmissão
tem lugar. Em conformidade com o que anteriormente
demonstramos, o Estado não rem de tomar conhecimento
da propriedade absoluta, dinheiro e valores: no entanto,
por causa de um eventual divórcio futuro e da repartição de
bens que deve então ter lugar (matéria que abordaremos
mais adiante), seria necessário que o Estado pudesse ter
conhecimento do valor dos bens trazidos para o casamento
ou, pelo menos, que se criem meios para que possa vir a ter
conhecimento em caso de necessidade. - Para tal, pode ser
depositado um documento junto da família da mulher ou
um documento selado junto dos tribunais.
Do mesmo modo, está implícito no conceito de casa-
mento a habitação em comum, o trabalho comum, em
suma, a vida em comum. Perante o Estado, os dois apare-
cem como sendo uma única pessoa; aquilo que um faz na
propriedade comum é sempre como se o outro o fizesse ao
mesmo tempo. Mas das ações jurídicas públicas é só o
homem que se ocupa.

§ 18

Não é necessária nenhuma lei do Estado para ordenar


a relação dos cônjuges entre si; tão-pouco são necessárias
leis para ordenar a relação dos cônjuges com outros cida-
dãos. Explicarei mais adiante aquilo que penso sobre as leis
relativas à rotura do casamento, na medida em que pare-
cem e são expressadas como se fossem leis sobre a proprie-
dade que devem assegurar contra roda a lesão a propriedade
da mulher em relação ao marido e a do marido em relação
à mulher. Dado que o Estado considera os cônjuges como 11 5
uma única pessoa jurídica, cujo representante exterior é o

391
marido, e o património do casal como um único patrimó-
nio, todo o cidadão individual está obrigado a considerá-los
da mesma maneira. Nos litígios judiciais, cada um deve
ater-se ao marido; ninguém pode fazer nenhum arranjo
diretamente com a mulher. O que daqui decorre é a res-
ponsabilidade dos cônjuges de dar a conhecer o seu casa-
mento àqueles com os quais estão em contato direto; o que
também é necessário de um ponto de vista moral, para pre-
venir o escândalo que resultaria de uma união ilegal ou tida
por ilegal, sendo, portanto, por intermédio do clero que
isto se efetua da maneira mais conveniente.

§ 19

Originariamente, isto é, de acordo com a mera dispo-


sição natural, o homem visa, efetivamente, a satisfação do
impulso sexual. Mas se antes do casamento, mediante refle-
xão e instrução, e no trato efetivo com as pessoas dignas do
sexo feminino (em particular, com a sua mãe), aprende que
na mulher habita o amor e que ela só é suposto entregar-se
por amor, então enobrece-se também em si próprio o mero
impulso natural. Deixa de querer apenas disfrutar, mas quer
ser amado. Uma vez que sabe que a mulher se torna des-
prezível se se entrega sem amor e que o prazer dela seria
um prazer degradante, não quererá deixar-se usar como
meio desta baixa sensualidade. Teria necessariamente de ter
desprezo por si próprio se fosse forçado a considerar-se
como mero instrumento de satisfação de um impulso ignó-
bil. É na base destes princípios que há que julgar os efeitos
do adultério da mulher em relação ao marido.
A esposa que se entrega a outro homem fá-lo ou por
amor integralmente verdadeiro, caso que vamos agora anali-

392
sar. Mas, neste caso, uma vez que a natureza do seu amor
não permite, de modo algum, dividi-lo em partes, deixou
de amar o seu marido e toda a relação como ela fica, por
conseguinte, reduzida a nada. Além disso, mesmo que
aduza o amor como desculpa, ela degrada-se, pois que, se
ela é ainda capaz de moralidade, a relação inicial com o
marido tem de apresentar-se-lhe agora como ignóbil e ani-
malesca, pelas razões indicadas acima. Se ela deixa perdurar
a aparência da relação anterior com o marido, então volta
com isso a desonrar-se por completo e da maneira mais
extrema. Ou pode deixar que o seu casamento continue a
existir por motivos de prazer sensual ou em razão de qual-
quer fim exterior. Em ambas as hipóteses, usa a sua perso- 116
nalidade para um fim baixo e converte com isto o próprio
marido em meio. - Ou, no segundo caso, entregou-se a
outro homem por prazer sensual: é, assim, de supor que
não ama o seu marido, mas que só o usa para satisfazer o
seu impulso; e isto é absolutamente indigno.
O adultério da mulher destrói, por conseguinte, em
qualquer caso a relação conjugal na sua globalidade; e o
marido não pode continuar com a mulher adúltera sem
perder a dignidade. (Isto é manifesto no sentimento univer-
sal de todas as nações que tenham um mínimo grau de cul-
tura. Em toda a parte é desprezado o marido que tolera a
devassidão da sua mulher, ficando marcado por um termo
de escárnio específico. Isto resulta do facto de que esse
homem pecou contra a honra, revelando-se ignóbil e des-
prezível.)
O ciúme do homem é caracterizado pelo desprezo
contra a mulher infiel. Se for de outro teor, como, por
exemplo, a inveja ou o ressentimento, então o homem
torna-se, ele próprio, desprezível.

393
§ 20

O adultério do marido revela uma mentalidade ignó-


bil, se a mulher com quem comete adultério se entrega a
ele não por amor, mas com uma outra finalidade; nesse
caso, ele quer apenas ter prazer. Ou é a maior injustiça con-
tra esta mulher, se ela se entrega a ele por amor. Compro-
mete-se, então, com todos os deveres do casamento, com a
magnanimidade ilimitada, com a infinita preocupação com
a sua felicidade, coisas que ele não pode cumprir.
Ora, é, com certeza indigno, mas não mortal para o
carácter, como o é no caso da mulher, que o homem vá em
busca somente da satisfação do seu impulso: mas, então, a
sua esposa pode facilmente concluir que ele também não
a trata de outra maneira e que tudo o que tinha por gene-
rosa ternura não era senão mero impulso sexual, pelo que
teria de se sentir muito desprezada. - Por outro lado, uma
mulher que ama sentirá sempre muito dolorosamente que o
mesmo espírito de entrega que ela tem pelo seu marido é
tido também por outra mulher que não ela. (Daí resulta
que o ciúme da mulher tem algo de inveja e de ódio contra
a rival.) - É, pois, muito bem possível que, com isso, o
coração da mulher se distancie do marido e é completa-
II ? mente seguro que a sua relação se torne mais amarga; e isto
vai contra a magnanimidade que o marido lhe deve.
Portanto, o adultério do marido não destrói necessa-
riamente a relação conjugal, como necessariamente acon-
tece com o adultério da mulher, mas é, no entanto, possível
que a destrua e, então, a mulher perde a dignidade perante
si própria. Em matéria de culpa, o adultério do marido não
é menos grave do que o da mulher; poder-se-ia até dizer
que é mais grave, porque com ele é a magnanimidade que
é atingida, revelando uma alma de baixos sentimentos. A
mulher pode desculpar: e a mulher digna e nobre fá-lo-á

394
certamente. Mas é penoso para o marido e ainda mais
penoso para a mulher ter de perdoar algo. O marido perde
a coragem e a força de ser o chefe de família; e a mulher
sente-se forçada a não poder respeitar o homem a quem se
entregou. É como se a relação entre ambos se invertesse.
A mulher torna-se a magnânima e o homem dificilmente
pode ser outra coisa senão o submisso.
Isto é também manifesto no juízo do vulgo. Uma
mulher que sabe da desordem do seu marido e a suporta
não é desprezada; pelo contrário, quanto mais doce e sabia-
mente se comporte perante o adultério do marido, tanto
mais será respeitada. Por conseguinte, pressupõe-se que ela
não deve buscar ajuda legal. De onde procede esta opinião,
que está tão profundamente enraizada na alma humana?
Meramente das nossas leis e meramente de nós, homens?
Ela é igualmente partilhada pelas mulheres, que se queixam
desta legislação. Funda-se também nas diferenças essenciais
entre os sexos, que referimos anteriormente.

§ 21

Para poder emmr um JUIZO fundamentado sobre as


consequências civis do adultério e do divórcio que dele por-
ventura resulte, temos de investigar, antes do mais, a rela-
ção do Estado e da legislação com a satisfação do impulso
sexual fora do casamento.
É dever do Estado proteger a honra do sexo feminino ,
isto é, tal como foi dito anteriormente, assegurar que as
mulheres não sejam coagidas a entregar-se a um homem a
não ser por amor; pois esta honra é uma parte, a parte mais
nobre, da sua personalidade. Mas cada um tem também o
direito - quer dizer, não há nenhum fundamento jurídico
externo em contrário - a sacrificar a sua personalidade. Tal

395
como cada um tem o direito externo ilimitado - não o
direito interno, moral - sobre a sua própria vida e o Estado
não pode fazer nenhuma lei contra o suicídio, assim tam-
118 bém a mulher, em particular, tem um direito externo ilimi-
tado à sua honra. Ela é exteriormente livre de se degradar
ao nível da animalidade, tal como o homem deve ser exte-
riormente livre de pensar de forma ignóbil e vulgar.
Se a mulher se quer entregar por mera luxúria ou por
outros fins e encontra um homem que renuncia ao amor, o
Estado não tem qualquer direito de o impedir.
Por conseguinte, o Estado não pode, em bom rigor
-o que há que tomar em consideração a este propósito será
explicitado mais adiante - estabelecer qualquer lei contra a
prostituição e o adultério e punir essas condutas. (Foi assim
efetivamente que se providenciou originariamente nos Esta-
dos cristãos. Os delitos desta espécie são punidos não como
transgressões de uma lei civil, mas antes como transgressões
de uma lei moral e são punidos por uma associação respon-
sável pela coerção moral, a Igreja. A pena capital para esses
delitos era sempre uma penitência. A legitimidade deste
procedimento não temos aqui que a investigar, pois esta-
mos a falar do Estado, não da Igreja. - Por exemplo: as
receitas que a cúria papal recebe das mulheres de vida fácil
constituem uma grande coerência na incoerência. É, no
fundo, a Igreja que tem de dar o seu beneplácito a este
modo de vida, pois, de outro modo, ele não podia ser pra-
ticado; e o dinheiro que se entrega é a penitência que tem
de ser antecipadamente paga pelos pecados que vão ser
cometidos.)

§ 22

A relação cujo fim último é a satisfação do impulso


sexual e que se funda no interesse próprio, com carácter de

396
permanência e publicidade, chama-se concubinato; esta
relação é tornada pública (pelo menos, para uma adminis-
tração atenta) pelo facto da vida em comum.
O Estado não pode, pela razão anteriormente indi-
cada, proibir o concubinato. Só tem de, primeiro, se con-
vencer de que não foi utilizada violência contra a mulher,
mas que ela celebrou de livre vontade este contrato verda-
deiramente vergonhoso. A mulher assim tem de o declarar,
só que não com júbilo e pompa, uma vez que a coisa é
indigna, nem perante os educadores morais, mas perante
certos serventuários da administração que estão obrigados a
ocupar-se de assuntos pouco recomendáveis.
O Estado tem, além disso, de saber que este vínculo,
por muito que ele tenha a aparência exterior de casamento,
não o é. Não tem as consequências jurídicas do casamento;
o homem não se torna o garante e tutor legal da mulher. A 11 9
ligação pode voltar a ser dissolvida, logo que qualquer um
deles o deseje, sem formalidade alguma. O Estado não
garantiu esta ligação. Tão-pouco garante as condições do
contrato e a mulher não adquire face ao marido nenhuma ·
expetativa juridicamente tutelada, pela seguinte razão: só
com uma profissão que o Estado certifica e reconhece é que
se obtém uma expetativa juridicamente tutelada. Ora, o
Estado não pode impedir a profissão que é praticada aqui,
pois isso vai para além do que são os seus direitos; mas
também não a pode certificar, pois é uma profissão imoral.
Se o homem não quiser, pois, manter a sua palavra, então
coroa simplesmente a sua baixeza e, como é de esperar,
passa a incorrer no desprezo geral contra a sua pessoa, mas
a mulher não pode apresentar queixa contra ele e será
objeto de rejeição por parte dos tribunais.

397
§ 23

Ou então - o segundo caso -, à satisfação do impulso


sexual fora do casamento não está associada a vida em
comum.
Antes de mais, pode dar-se o caso de que a mulher se
subordine à vontade do homem sem que este lhe pague ou
prometa pagamento - consista este no que ela quiser,
dinheiro, valores ou presentes; ou sem que seja expressa-
mente declarado, de qualquer maneira que seja, que a sua
subordinação não acontece por amor: assim, é de supor que
tudo acontece por amor. Que não foi com um propósito
lucrativo é evidente, mas que tenha sido por lascívia é algo
que não se pode pressupor sem prova, pois isto é contrário
à natureza da mulher. Teria de demonstrar-se expressamente
que ela é conhecida por se entregar a qualquer um. -Mas a
submissão por amor funda o casamento. Por conseguinte,
entre as duas pessoas desta nossa hipótese realizou-se um
casamento efetivo, mesmo sem ter havido votos expressos
de casamento. Como é que isto aconteceu é algo que é por
si evidente.
Falta ainda o reconhecimento público deste casa-
mento, a cerimónia de núpcias. O Estado é, em absoluto,
devedor desta cerimónia à mulher, pois é responsável pela
proteção do seu nome, tal como do seu direito de persona-
lidade. Tanto quanto é de supor, ela própria não abdicou
da sua honra, pelo que o Estado também não pode abdicar
dela. O homem pode ser coagido à celebração da cerimónia
de núpcias. Ele não é forçado à celebração do casamento,
120 pois este já foi efetivamente celebrado, mas à declaração
pública do seu casamento. Se existe nele uma aversão insu-
perável ou se existem outras razões que dificultam a persis-
tência do casamento, como, por exemplo, uma completa
desigualdade de condição social, então ele pode divorciar-se

398
a seguir à cerimónia de núpcias e este divórcio será tratado
de acordo com as leis do divórcio em geral, de que quere-
mos falar já a seguir. A mulher e o filho têm direito ao seu
nome e há que considerar, em qualquer caso, a mulher
como mulher divorciada.
(D a verdadeira desigualdade de condição social segue-
se a desigualdade de educação, uma diferença completa em
todo o sis tema das ideias, uma inadaptação à sociedade
em que só a outra parte pode viver; e, com isso, torna-se
absolutamente impossível um casamento, uma fusão com-
pleta dos corações e das almas, uma verdadeira igualdade
entre ambos; a relação será necessariamente um concubi-
nato, que tem como fim para uma das partes apenas a satis-
fação do interesse próprio e para a outra, a satisfação do
impulso sexual. Algo assim não pode nunca o Estado deixar
passar como casamento estável, nem reconhecê-lo como tal.
Mas, por natureza, só existem duas diferentes condições
sociais: a que educa apenas o seu corpo para o trabalho
mecânico e a outra que educa sobretudo o seu espírito.
Entre estes dois grupos existe uma verdadeira incompatibi-
lidade; e, para além desta, não existe mais nenhuma.)
Ou, então, pode dar-se o seguinte caso: pode provar-se
que a mulher, antes ou depois, teve relações com outros
ou que se entregou por dinheiro. N es ta última hipótese,
tem de ficar claro que ela estabeleceu expressamente um
determinado preço para a sua personalidade e que só se
entregou na expectativa desse preço ou depois de ter rece-
bido essa quantia. O facto de se ter limitado noutras oca-
siões a aceitar presentes do seu amado nada prova contra a
sua virtude. - Se puder ser feita prova disto contra a
mulher, então a mulher é uma mulher desonrada e não
goza de proteção perante a autoridade: pois esta não pode
proteger uma honra que não existe e da qual a sua própria
proprietária abdicou.

399
As prostitutas (quae quaestum corpore exercent), que
fazem da prostituição o seu único modo de vida, não
podem ser toleradas pelo Estado dentro das suas fronteiras;
o Estado tem de as expulsar do país: e isto sem quebra da
sua liberdade, que acabamos de justificar, de fazer com o
corpo aquilo que quiserem, e isto pela seguinte razão,
muito simples. - O Estado tem de saber do que vive cada
pessoa e tem de conceder-lhe o direito de praticar a sua
profissão. A pessoa que não puder indicar isto não tem
direito de cidadania. Se uma mulher indicasse ao Estado
esse modo de vida, o Estado teria o direito de a considerar
121 louca. Propriam turpitudinem conjitenti non creditur é uma
regra jurídica correta. Por conseguinte, é o mesmo que não
ter declarado nenhuma profissão. - Num Estado conve-
nientemente constituído não é provável que se verifique
este caso. Pois aí cada um tem a sua subsistência assegurada
de maneira razoável. Se estas mulheres têm uma outra ocu-
pação e o exercício da prostituição não é a sua condição
social estável, o Estado ignora esse modo de vida. A ques-
tão da força não se coloca aqui, pois estas práticas não são
do domínio público, como no caso do concubinato, com a
regular vida em comum. - O Estado não sabe nada destas
irregularidades e não garantiu aos homens a fruição destes
prazeres desonrosos, do mesmo modo que, por exemplo,
garantiu aos seus cidadãos poder andar na rua de forma
tranquila e cómoda. O controlo da saúde dessas prostitutas
não é, por conseguinte, da competência da administração
pública; e confesso que considero essa tarefa indigna de um
Estado justo. Quem quiser ser devasso tem, pois, de acarre-
tar também com as consequências naturais da sua devas-
sidão. O Estado tão-pouco garante, como é evidente,
os contratos que são celebrados sobre tais matérias. Uma
prostituta não pode apresentar queixa em situações seme-
lhantes.

400
§ 24

Apliquemos estes princtpws ao adultério. - O Estado


não pode estabelecer leis contra o adultério, nem cominar
penas, tal como não o pode fazer no caso de qualquer outra
satisfação do impulso sexual fora do casamento. Quem é o
titular dos direitos que podem ser violados mediante esta
falta? O s do marido com cuja mulher ou os da mulher com
cujo marido é cometido o adultério? É, porventura, a fideli-
dade conjugal objeto de um direito de coação? É assim,
certamente, que ela é vista nessas leis. Mas a fidelidade con-
jugal funda-se de facto, isso sim, na união dos corações.
Este é um vínculo livre que não pode ser sujeito a coação; e
se este vínculo deixa de existir, a coação à fidelidade exte-
rior, coação que só fisicamente pode ser possível, é juridica-
mente impossível e contrária ao Direito.

§ 25

Destruída a relação que deve existir entre os cônjuges


e que constitui a essência do casamento, amor ilimitado
por parte da mulher, magnanimidade ilimitada por parte 122
do marido, o casamento deixa de existir. Portanto, os cônju-
ges separam-se de livre vontade, da mesma maneira que foi de
livre vontade que se uniram. - Se o fundamento da sua rela-
ção deixou de existir, o casamento deixa, sem mais, de sub-
sistir, ainda que eles permaneçam juntos, não podendo sua
vida em comum ser considerada senão como concubinato:
a sua união deixa de ser fim em si, mas existe um fim exte-
rior a essa união, as mais das vezes o fim da vantagem tem-
poral. Ora, nenhuma pessoa pode ser incitada a cometer
algo ignóbil, coisa que o concubinato é: portanto, o Estado
não pode exigir àqueles cujos corações se separaram que
continuem a viver em comum.

401
Daqui resultaria que o Estado não teria de fazer abso-
lutamente nada na separação dos cônjuges, a não ser orde-
nar que se declare perante ele que ocorreu essa separação,
uma vez que foi ele quem reconheceu a união. Após o
divórcio, desaparecem necessariamente as consequências
jurídicas resultantes do casamento e, por isso, o Estado
tem de ser informado para tomar as suas respetivas provi-
dências.

§ 26

Ora, o facto é que a maioria dos nossos Estados pre-


tendem conhecer juridicamente em matérias de divórcio.
Não têm, de todo em todo, razão? Ou, se não deixam por
completo de ter razão, em que é que se funda o seu direito?
Sobre isto há que dizer o seguinte: pode dar-se o caso
de que os cônjuges que se vão separar peçam ajuda ao
Estado para a sua separação; e então, o Estado tem de ana-
lisar se deve prestar-lhes ajuda ou não. O resultado disto
seria o seguinte: toda a avaliação jurídica que o Estado foz
em matérias de divórcio não é senão uma avaliação jurídica
sobre a ajuda que ele próprio tem que prestar nestas matérias.
Vamos abordar este ponto com maior pormenor.

§ 27

Ou ambas as partes estão de acordo em separar-se e


estão também de acordo relativamente à partilha dos bens
e então não existe litígio judicial; portanto, tudo o que têm
que fazer é declarar ao Estado a sua separação. A questão
está resolvida entre as partes, o objeto do seu acordo é um
123 objeto da sua liberdade natural: e o Estado nem sequer

402
tem, em bom rigor, que perguntar pelas razões da sua sepa-
ração.
Se esta questão se vem a colocar, não é propriamente o
Estado que a coloca, mas sim a Igreja, como associação
moral. Ela está no seu pleno direito de o fazer; pois o casa-
mento é uma união moral e os cônjuges que se estão a
separar podem querer justificar-se perante o representante
da associação moral, a Igreja, instituição em cujo seio é de
esperar que queiram permanecer; podem querer também,
por exemplo, receber a este respeito o conselho dos seus
mestres e conselheiros espirituais . Será, além disso, muito
apropriado que os conselheiros espirituais lhes tentem fazer
advertências. Mas a este propósito há que observar o
seguinte: os membros do clero não têm nenhum direito de
coação nem para fazer confessar os motivos da separação,
nem para fazer que o seu conselho seja seguido. Se ambos
os cônjuges dizem: queremos ater-nos à nossa consciência;
ou: os vossos argumentos não nos fazem mudar de opinião,
então há que deixar as coisas como estão.
Daqui resulta: o acordo de ambas as partes rompe
juridicamente o casamento, sem que haja necessidade de
qualquer outra investigação adicional.

§ 28

Se uma das partes não está de acordo com a separação,


então o anúncio perante o Estado não é uma mera declara-
ção, mas constitui simultaneamente um pedido da sua pro-
teção e então tem lugar um conhecimento jurídico por
parte do Estado.
O que é que a parte que reclama a separação pode exi-
gir do Estado? Se o marido pede o divórcio contra a von-
tade da mulher, o sentido da sua exigência é de que o

403
Estado deve expulsar a mulher de sua casa. Se a mulher
pede o divórcio contra a vontade do marido, e uma vez que
este não pode ser expulso, na medida em que a casa lhe
pertence a ele como representante da família, e que a
mulher, desde que o queira, pode muito bem ir-se embora
- o sentido do seu pedido, digo, é o seguinte: que o Estado
force o marido a proporcionar-lhe um outro alojamento.
Quais são as leis pelas quais deve o Estado aqui
guiar-se?

124 § 29

Suponhamos o caso em que o marido intenta ação de


divórcio cível por causa do adultério da mulher. De acordo
com o que foi anteriormente dito, é contrário à honra
do marido continuar a viver com uma tal mulher e a sua
relação não pode doravante continuar a chamar-se casa-
mento, mas sim concubinato. Mas o Estado não pode for-
çar nenhuma pessoa a fazer o que quer que seja contra a
sua honra e o seu sentimento moral. Portanto, neste caso, o
dever de proteção do Estado é livrar o marido da sua
mulher. Quais, então, as razões que podiam levar a mulher
a continuar a viver com o marido? Uma vez que não há
que presumir nela o amor, será então por um qualquer
outro fim. Mas o marido não pode deixar-se utilizar como
instrumento de outros fins . Que sem apresentação de
queixa por parte do marido, o Estado não tem qualquer
direito a inquirir sobre a existência de adultério, nem divor-
ciar o marido contra a sua vontade é algo que decorre do
que foi anteriormente dito, uma vez que o adultério não é
objeto da legislação civil.
Até mesmo a Igreja não sente qualquer honra em pro-
curar convencer o marido a continuar com a adúltera e em

404
exortá-lo ao perdão. Pois a Igreja não pode aconselhar nada
que seja desonroso e imoral, como seria obviamente neste
caso a continuação da vida em comum.
Suponhamos agora o caso em que o marido intenta
ação de divórcio por falta de amor da mulher em geral. Ou
a mulher confessa esta falta de amor, hipótese em que o
Estado tem de livrar o marido da mulher; pois só o amor é
o fundamento de um casamento legítimo e onde este não
existir, a união é mero concubinato. Com que fundamento,
pois, poderia a mulher exigir continuar a viver com um
homem que já não ama, de acordo com a sua própria con-
fissão? Não poderiam ser outros motivos senão fins exter-
nos, relativamente aos quais o marido não pode prestar-se a
ser instrumento. Ou a mulher não confessa esta falta de
amor, hipótese em que o Estado não pode atuar imediata-
mente, mas rem de colocar este casamento sob rígida vigi-
lância, até que os cônjuges se reconciliem ou até que se
torne claro e demonstrável um fundamento relevante para
o divórcio. - O Estado adquire o direito de escrutínio, que
não rem sobre qualquer outro casamento, porque foi feito
juiz de uma situação que não é clara nem se pode tornar
clara para ele sem este escrutínio. (Algo que esreva subme-
tido à sua proteção indireta, foi-lhe submetido direramente
por via da ação judicial.)
A recusa por parte da mulher daquilo que, de uma
maneira muito pouco nobre, se chamou de débito conju-
gal, comprova a falta de amor e é, nessa medida, funda-
mento jurídico de divórcio. O amor procede desta submis- 125
são da mulher e esta submissão é a manifestação duradoura
do amor. Na medida em que, disse eu, ela demonstra aquela
falta de amor: pois se puder ser provada a existência de
doença ou qualquer outro impedimento físico, então a
recusa do débito conjugal não demonstra falta de amor.
Neste caso, o pedido de divórcio por parte do marido é

405
mais ignóbil do que tudo o que se possa imaginar. -Mas o
que é que aconteceria se o marido pensasse de forma tão
ignóbil? O Estado não pode então tornar-se serventuário de
uma forma de pensar de tamanha baixeza; porém, um tal
homem é indigno de uma mulher tão valorosa e é de espe-
rar que esta, sobretudo por recomendação por parte dos
elementos do clero, seja capaz de dar o seu assentimento ao
divórcio a troco de uma indemnização, com o que se obte-
ria então o acordo de ambas as partes, sendo apenas neces-
sária uma declaração perante o Estado; de tal maneira que
não se voltasse a questionar o que é que o Estado deveria
fazer nessa matéria.
Se a mulher é sujeita a investigação criminal, em que
o Estado inquire sobre a sua pessoa e a sua vida, ela é, por
esse próprio facto, separada do marido: é o Estado que lha
subtrai. O marido é, nas outras situações, o seu tutor legal.
Mas numa questão criminal, exclusivamente pessoal, por-
tanto, não o pode ser. Ela torna-se independente e, com
isso, separada do marido. Se for considerada inocente,
regressa à alçada do marido. - Se, após o cumprimento da
pena, o marido a quiser voltar a aceitar, pode fazê-lo; mas
ninguém o pode obrigar a isso, pois ele foi desonrado por
causa dela.

§ 30

Suponhamos o caso em que a mulher requer juridica-


mente o divórcio por causa do adultério do marido. - De
acordo com o que anteriormente foi dito, perdoar o marido
não só é possível e não acarreta para a mulher desonra, mas
sim honra. Por conseguinte, é aconselhável dissuadi-la de
pedir o divórcio e, inclusivamente, que demonstre paciência
por algum tempo. - (A separação de mesa e de cama.) -

406
Mas se ela persiste na sua intenção, então tem de se divor-
ciar; pois só ela conhece o seu coração e pode ajuizar se,
por causa da infidelidade do seu marido, se esgotou por
completo o amor que nutria por ele. Pois que, uma vez que
o amor está esgotado, forçar a mulher a submeter-se ao seu
marido seria contrário ao primeiro dever do Estado em
relação ao sexo feminino.
Em geral, o Estado está sempre obrigado a divorciar os 126
cônjuges a instâncias da mulher, quaisquer que sejam as
suas queixas, se, após tentativas preliminares de dissuasão,
ela persistir na sua exigência de divórcio. O sexo feminino
tem aqui de ser favorecido. A razão disso é a seguinte: com
o pedido de divórcio, pode, porventura, a mulher não pro-
var nada contra o marido; mas no que a ela própria diz res-
peito, prova a falta do seu amor e sem amor não deve ser
forçada a submeter-se. - Precisamente por isto, porque ela
não conhece, por vezes, corretamente o seu próprio coração
e ama muito mais do que aquilo que crê, são aqui de fazer
tentativas de dissuasão e procurar adiar o divórcio por um
certo tempo.
A queixa da mulher sobre a recusa do débito conjugal
por parte do marido é uma queixa que desonra o seu sexo,
um pecado contra a natureza e não pode chamar-se outra
coisa senão barbárie o facto de que o Estado - ou a Igreja,
em seu nome - admita uma queixa semelhante. Além
disso, a experiência confirma que as mulheres sentem ver-
gonha em apresentar essa razão como fundamento do
divórcio e fazem-no na maioria das vezes somente como
pretexto. Que o Estado lhes permita, pois, confessar sim-
plesmente a sua aversão em relação aos maridos.
Uma investigação criminal a que for sujeito o marido
não provoca necessariamente o divórcio. A relação é aqui
completamente diferente. O marido tem sempre de compa-
recer em tribunal em seu nome e no nome da mulher. -

407
Uma tal investigação é, no entanto, um motivo deveras
válido para que a mulher peça o divórcio, pois ela não pode
ter respeito por um criminoso. Mas se quiser permanecer
junto dele, partilhar o seu destino e aligeirá-lo na medida
em que as leis lho permitam, é completamente livre de o
fazer.
O abandono premeditado - isto é, o abandono sem
que o outro cônjuge tenha tido conhecimento dele e das
suas razões - como fundamento do pedido de divórcio
desencadeia, sem mais, o divórcio, pois a parte que abando-
nou a outra parte deve ser considerada como tendo-se ela
própria divorciado, se a parte abandonada apresentar o
pedido de divórcio. Por conseguinte, existe aqui acordo de
ambas as partes.

§ 31

Como é que há que proceder no divórcio em relação


aos bens?
Dado que os meus princípios se afastam dos princí-
pios habituais, peço que se reflita sobre os fundamentos da
decisão.
Ao mesmo tempo que submete a sua personalidade, a
mulher submete todo o seu património ao marido; mas o
marido não pode retribuir o amor da mulher de outro
127 modo senão submetendo igualmente a sua pessoa e liber-
dade, bem como todo o seu património, à mulher; mas
com a diferença que ele mantém o domínio exterior sobre
o todo. - Da união dos corações decorre necessariamente a
união dos bens, sob a superintendência do marido. De dois
patrimónios faz-se um único património.
Agora, rompe-se esta união; mas se desaparece o fun-
damento, desaparece aquilo que é fundamentado . A pri-

408
meira vista, cada uma das partes teria de ser reintegrada na
situação anterior, recuperando aquilo com que entrou para
o acervo comum.
Mas - observação que altera em muito esta conclusão
- ambos os cônjuges, durante um certo lapso de tempo,
administraram, usufruíram, aumentaram ou diminuíram
este património, tal como se fossem uma só vontade e, em
geral, como se fossem um único sujeito. O efeito desta
administração em comum não se pode suprimir, é necessa-
riamente comum a ambos e permanece comum a ambos.
Não se podem fazer os cálculos como se uma parte dissesse
à outra: eu adquiri isto ou aquilo que tu não adquiriste;
pois que se ambos viviam num verdadeiro casamento, a
necessidade de uma das partes era ao mesmo tempo neces-
sidade da outra e o ganho de uma das partes era ao mesmo
tempo ganho da outra; ambos eram uma única pessoa, de
acordo com a presunção jurídica. Tal como uma pessoa não
pode ter contas ou fazer comércio consigo própria, nem
intentar uma ação contra si própria, tão-pouco o podem
fazer os cônjuges. Mas agora, obviamente, esta relação já
não existe e a partir deste momento as coisas passam-se de
modo diferente; mas até agora era assim e o efeito desta
relação não pode ser reduzido a nada.
Mas agora a condição exterior deste efeito é o patri-
mónio trazido ao casamento; não somente em numerário,
mas também em direitos e privilégios. (Sobre as condições
interiores, a diligência, o cuidado de cada uma das partes,
não se pode fazer um cálculo.) A totalidade do património
existente ao momento do divórcio deve ser dividida, como
efeito, de acordo com a proporção dos bens que cada um
trouxe para o casamento. Quanto é que cada uma das par-
tes trouxe é algo que tem de ser passível de demonstração
em tribunal, de acordo com uma observação anteriormente
aduzida. Suponhamos, por exemplo, que a mulher trouxe

409
um terço e o marido dois terços da totalidade dos bens
com que se iniciou o casamento. A situação da totalidade
do património no momento do divórcio é investigada e o
património é repartido na mesma proporção, de tal
maneira que a mulher divorciada recebe um terço dos bens
e o marido dois terços. A mulher pode não receber de volta
aquilo que trouxe para o casamento: suporta a sua parte das
perdas se o património global diminuiu e obtém a sua
128 parte dos ganhos se aumentou. Acontece exatamente o
mesmo que numa sociedade comercial. - Outras disposi-
ções da legislação sobre esta matéria podem ter algum fun-
damento político, mas não são justas.
Como é que há que proceder num divórcio relativa-
mente à repartição dos filhos entre os pais divorciados é
algo que podemos considerar mais adiante, aquando da
análise da relação entre pais e filhos .

410
TERCEIRA SECÇÃO

CONSEQUtNCIAS PARA A SITUAÇÃO JURíDICA


RESPETIVA DOS DOIS SEXOS EM GERAL
NO SEIO DO ESTADO

§ 32

Tem a mulher no Estado os mesmos direitos que o


homem? Esta pergunta poderia, desde logo, parecer uma
pergunta ridícula. Se o único fundamento da capacidade
jurídica é a razão e a liberdade, como é que poderia existir
uma diferença de direitos entre os dois sexos, possuindo
ambos a mesma razão e a mesma liberdade?
Ora, no entanto, parece que desde que o homem é
homem as coisas se têm passado diferentemente e que o
sexo feminino foi preterido em relação ao sexo masculino
no exercício dos seus direitos. Uma concordância tão uni-
versal tem que ter um fundamento profundo e se alguma
vez a investigação desse fundamento se tornou numa neces-
sidade urgente foi nos nossos dias.
Assumindo que o sexo feminino foi efetivamente pre-
terido, quanto aos seus direitos, em relação ao sexo mas-
culino, não seria, de modo algum, suficiente aduzir como
fundamento desta preterição a menor capacidade intelectual
ou física da mulher. Especialmente em relação à capacidade
intelectual, responderiam as mulheres e os seus arautos: em

411
primeiro lugar, não se nos dá uma educação adequada e
o sexo masculino afasta-nos propositadamente das fontes
da cultura; depois, a vossa alegação nem sequer é rigo-
rosamente verdadeira, pois em relação à maioria dos
homens que são a glória do género masculino poderíamos
129 perfeitamente contrapor mulheres que nada lhes ficam a
dever, se fizermos uma justa avaliação; finalmente, mesmo
que esta desigualdade tivesse fundamento , de modo algum
implicaria uma tão decisiva desigualdade de direitos, uma
vez que também entre os homens nos apercebemos de
uma muito grande diferença de capacidades intelectuais e
físicas, sem que daí se queira retirar uma conclusão tão ine-
xorável sobre a situação jurídica respetiva de cada um dos
sexos.
Haveria, antes de mais , que inquirir apenas se as
mulheres são tão preteridas como algumas delas e, mais
ainda, alguns dos seus autoproclamados defensores alegam.
Na nossa exposição, vamos examinar cada um destes pon-
tos, pela sua ordem respetiva.

§ 33

A questão de se o sexo feminino tem a titularidade


dos mesmos direitos humanos e civis que o sexo masculino
só pode ser suscitada por quem duvide se as mulheres são
seres humanos plenos. Nós não temos dúvidas a esse res-
peito, como resulta das proposições acima enunciadas. Mas
pode levantar-se a questão de se e em que medida pode o
sexo feminino exercer os seus direitos ou até se os pode
querer exercer. Para responder a esta questão, examinemos
uma por uma as possíveis situações da mulher.

412
§ 34

Regra geral - as exceções vamos considerá-las mais


adiante -, a mulher ou é solteira (primeira hipótese), e
então encontra-se sob a autoridade paterna, tal como o
rapaz solteiro. Nisto, os dois géneros são perfeitamente
iguais. O casamento liberta-os a ambos, casamento em rela-
ção ao qual ambos são igualmente livres: ou se algum deles
deve ser favorecido, deve ser a ftlha. - Ela não pode, pura e
simplesmente, ser forçada ao casamento, nem sequer por
via de incitamento ou persuasão: o que no caso do filho é
viável, pelos motivos indicados acima.
Ou (segunda hipótese) a mulher é casada, e então a
sua própria dignidade depende de que esteja e pareça estar
completamente submetida ao marido. - Repare-se bem -
isto decorre, na verdade, da minha teoria no seu conjunto e
foi várias vezes expressamente referido, mas talvez não seja
demais insistir de novo -, a mulher não está submetida ao 130
marido de tal modo que ele tenha sobre ela um direito
de coação, mas está submetida pelo seu próprio desejo de
estar submetida, desejo que é necessariamente duradouro e
condicionante da sua moralidade. Ela poderia, se quisesse,
recuperar inteiramente a sua liberdade; mas é precisamente
aqui que reside a questão : ela não pode querer isso de
forma racional. Uma vez que a sua união é universalmente
conhecida, tem de querer aparecer aos olhos de todos os
que conhecem essa união como completamente submetida
ao homem , completamente abandonada a ele.
Portanto, em resultado da sua própria vontade neces-
sária, o marido é o administrador de todos os seus direitos;
ela quer que estes sejam afirmados e exercidos apenas na
medida em que ele o queira. Ele é o seu representante no
Estado e na sociedade no seu conjunto. Esta é a sua relação
com a sociedade, a sua relação pública. Exercer diretamen te

413
por si própria os seus direitos é algo que nem sequer lhe
pode ocorrer.
Relativamente à relação interior e doméstica, a ternura
do marido devolve-lhe tudo o que ela perdeu e ainda mais.
O marido não renunciará aos direitos de que ela é titular,
porque são os seus próprios direitos e causaria com isso
dano a si mesmo e desonrar-se-ia a si e à sua mulher
perante a sociedade. -A mulher tem também direitos sobre
assuntos de natureza pública, pois é cidadã. Considero que
é obrigação do homem, nos Estados em que os cidadãos
têm voto sobre os assuntos de natureza pública, não dar
este voto sem ter discutido o assunto com a sua esposa e ter
modificado a sua opinião através do diálogo com ela.
Levará, portanto, perante o povo aquilo que é resultado da
sua vontade comum. (Em termos gerais, um pai de família,
ao mesmo tempo que vela pelos direitos da sua esposa e
dos seus filhos, tem de ter nestes assuntos de natureza
pública uma maior influência e um voto mais decisivo do
que quem representa meramente os seus direitos como
indivíduo. Como é que se deve proceder neste sentido é
uma investigação que cabe à Política.)
As esposas exercem, por conseguinte, efetivamente, o
seu direito de voto sobre os assuntos de natureza pública;
só que não o fazem diretamente por si próprias, porque não
poderiam querer fazê-lo sem perder a sua dignidade femi-
nina, mas por intermédio da influência que têm sobre os
maridos, influência que é legítima e que se funda na natu-
reza do vínculo conjugal.
(É isto que prova também a História de todas as gran-
des revoluções políticas. Ou são instigadas por mulheres ou
são dirigidas por elas e consideravelmente modificadas.)
131 Nota. Se isto tem de ser aceite sem objeção, que exi-
gem então as mulheres e os seus arautos? O que é que,
pois, lhes foi retirado e que reivindicam agora? O objeto

414
dos direitos? Têm a sua plena titularidade. Aquilo por que
sentem apetência só pode ser a aparência exterior. Eles que-
rem não apenas exercer esses direitos, mas também que se
saiba que foram elas que o fizeram . Não querem apenas
que aconteça aquilo que desejam, mas que seja conhecido
que foram elas, precisamente elas, as suas executoras. Buscam
celebridade durante a vida e na História, após a morte.
Se é este e se pode ser apenas este o seu fim , então há
que rejeitá-las, sem hesitação, a elas e à sua pretensão; pois
elas não podem suscitar uma tal pretensão sem renunciar
ao seu valor feminino no seu conjunto. São muito poucas
das que o fazem as que o fazem a sério. Somente algumas
cabeças perturbadas entre os homens, que, na maior parte
das vezes, nunca dignificaram alguma mulher em particular
tornando-a a companheira da sua vida e que, em compen-
sação, desejam ver imortalizado em bloco na História o
género feminino, é que as convenceram a pronunciar estas
espantosas palavras, com as quais elas não podem conceber
o que quer que seja sem perderem a honra. Mesmo o
homem que faz da glória o objetivo fundamental, ou até
mesmo secundário, da sua atuação perde o mérito da sua
ação e, mais cedo ou mais tarde, mas sempre inevitavel-
mente, também a glória dessa ação. As mulheres deviam
agradecer à sua situação o facto de uma tal suspeição não
poder recair sobre elas. - Mas, o que é mais significativo, é
que as mulheres que buscam a glória sacrificam o amável
pudor do género feminino, a quem nada pode ser mais
repulsivo do que se exibir como num espetáculo. A sede de
glória e a vaidade são no homem mesquinhas, mas na
mulher são degradantes, pois destroem o pudor e o amor
abnegado pelo seu esposo, em que assenta toda a sua digni-
dade. Uma mulher sensata só do seu marido e dos seus
filhos é que pode ter orgulho, não de si própria, pois ela

415
esquece-se a si própria em razão deles. - Daí que as mulhe-
res que invejam a sério a celebridade dos homens acham-se
numa ilusão fácil de descobrir sobre o verdadeiro objeto do
seu desejo. A mulher quer necessariamente o amor de um
homem e para o suscitar quer atrair sobre si a atenção do
género masculino. Isto é uma disposição natural e não é, de
todo em todo, censurável no caso da mulher solteira. Essas
mulheres contam fortalecer os encantos próprios do género
feminino , em que não têm, porventura, suficiente con-
fiança, com os atributos com que os homens atraem as
atenções de uns pelos outros e buscam na fama um mero
132 meio de cativar o coração masculino. Se se trata de mulhe-
res casadas, o fim é tão mesquinho como perverso é o
meiO.

§ 35

Se o marido não puder ou não quiser comparecer na


Assembleia do povo, nada impede que seja a mulher a
comparecer em seu lugar e a apresentar o voto comum,
mas sempre como voto do seu marido. - (Não pode nunca
apresentá-lo como voto pessoal, sem, com isso, o desligar
do marido.) Pois se desaparece o fundamento, desaparece
aquilo que é fundamentado. Ora, a mulher não pode votar
se o marido der o voto comum. Se o não der, então é ela
pessoalmente que o dá.
Isto dá-nos simultaneamente o princípio de avaliação
para o caso das viúvas, divorciadas e para as mulheres sol-
teiras, mas que não estão submetidas ao poder paternal.
Estas mulheres não estão subordinadas a nenhum
homem: não existe, por conseguinte, nenhuma razão para
que não devam exercer por si próprias todos os direitos

416
ctvts, exatamente como o fazem os homens. - Têm o
direito de dar o seu voto na República; o direito a apresen-
tar-se em tribunal e conduzir os seus processos. Se, em
razão do seu pudor e timidez naturais, quiserem escolher
um representante legal, isto deve ser-lhes permitido e cabe-
-lhes a elas decidir as combinações a fazer com eles. Se
não quiserem escolher nenhum representante legal, não há
nenhum fundamento jurídico para as obrigar a fazê-lo.

§ 36

Todas as pessoas no Estado devem possuir propriedade


e administrá-la de acordo com a sua vontade, inclusiva-
mente a mulher solteira. - Não é preciso que esta proprie-
dade consista em propriedade absoluta, isto é, em dinheiro
ou valores: pode consistir também em direitos civis e privi-
légios. Não há nenhuma razão para que a mulher não os
pudesse possuir. - A mulher pode possuir terras de cultivo
e praticar a agricultura. (A escassez de força física não é
objeção a que assim seja. A experiência confirma que as
mulheres são capazes de lavrar, semear, etc. Nos antigos
povos germânicos, cultivavam os campos completamente
sozinhas. E aquilo que a mulher não consegue fazer por si 133
mesma pode deixar que seja feito pelos seus servidores,
como na realidade acontece.) Pode armazenar outros pro-
dutos. Pode exercer uma arte ou um ofício, desde que tal
seja adequado às suas capacidades. Pode praticar o comér-
cio, se assim o entender. - (Tudo isto acontece efetivamente
nos nossos Estados, especialmente no caso das viúvas, que
prosseguem com a atividade dos seus defuntos maridos.
Não há nenhuma razão para que isso não possa também
acontecer no caso das mulheres que ficaram solteiras.)

417
§ 37

A única coisa que as mulheres não podem fazer é


desempenhar cargos públicos, pelas seguintes e simples
razões: o funcionário público é total e completamente res-
ponsável perante o Estado, de acordo com a prova anterior-
mente aduzida; se ele próprio é a autoridade suprema, res-
ponde perante o povo; se é nomeado pela autoridade
suprema e se uma parte do poder desta lhe é transmitido,
então responde perante a autoridade. Tem, por conseguinte,
de ser completamente livre e depender sempre das suas pró-
prias decisões; de outro modo, tal responsab'ilidade seria
sempre contraditória e injusta. - Ora, a mulher é livre e
depende unicamente de si própria só enquanto é solteira. A
promessa de não se casar seria a única condição em que o
Estado poderia confiar um cargo público a uma mulher.
Mas nenhuma mulher pode razoavelmente fazer essa pro-
messa, nem o Estado pode razoavelmente aceitá-la. Pois ela
está vocacionada para amar e o amor surge nela por si pró-
prio e não depende da sua livre vontade. Se ela ama, o seu
dever é casar-se e o Estado não a pode impedir de exercer
este dever. Mas se uma funcionária do Estado se casa, então
podem dar-se duas hipóteses. Ou ela não se subordina ao
seu marido naquilo que ao seu cargo diz respeito e perma-
nece nesse âmbito completamente livre, o que seria contrá-
rio à sua dignidade feminina. Não poderia então dizer que
se entregou ao homem por completo. Além disso, onde
estão os limites precisos entre aquilo que pertence ao exer-
cício do cargo e aquilo que não pertence? O que é que dos
aspetos atinentes a esse exercício resta que não tenha, em
certa medida, influência nos aspetos da sua vida privada?
Ou ela subordina-se ao marido, inclusivamente naquilo que
diz respeito ao seu cargo, como lhe é exigido pela natureza
e pela moral. Então seria ele o funcionário e somente ele o

418
responsável. O cargo iria advir-lhe por casamento, tal como
os bens e os direitos da mulher. Mas nisto não pode o
Estado consentir - sendo os seus cargos cargos efetivos,
ocupações, e não meras sinecuras de que há que usufruir. 134
O Estado tem de conhecer e testar a aptidão e o carácter da
pessoa que investe no cargo e não pode deixar que lhe seja
imposto alguém que foi escolhido apenas por amor.

§ 38

Esta circunstância de as mulheres não estarem destina-


das a ocupar cargos públicos tem uma outra consequência,
que os arautos das mulheres aduzem como uma nova recri-
minação contra as nossas instituições políticas. Elas não
serão, muito naturalmente, educadas para a administração
daquilo que não irão nunca administrar, não serão enviadas
para escolas e universidades; e, assim, afirmam esses arau-
tos, descura-se a sua formação espiritual, mantendo-as, de
uma maneira ardilosa e invejosa, na ignorância e afastando-
-as das fontes da Ilustração. - Queremos examinar a fundo
esta acusação.
O letrado de profissão não estuda unicamente para si;
formalmente, enquanto letrado, ele não estuda para si pró-
prio, mas para os outros. Pode tornar-se servidor da Igreja,
funcionário do Estado ou médico; o que tem então de fazer
é pôr diretamente em prática aquilo que aprendeu; por
isso, aprende a forma de como aquilo que aprendeu
deve ser posto em prática e aprende-o de maneira a que a
forma faça parte daquilo que aprendeu. Ou torna-se profes-
sor em escolas e universidades de futuros letrados e então o
seu objetivo é voltar a comunicar aquilo que aprendeu e
fazer aumentar o acervo do conhecimento através de desco-
bertas pessoais, para que a cultura não fique num estado de

419
imobilidade. Tem, por conseguinte, de saber como é que o
acervo do conhecimento foi produzido, como é que ele se
desenvolve a partir da alma humana. É disto, precisamente,
que as mulheres não podem necessitar, pois não podem ser
nenhuma das duas coisas. - A única coisa da cultura do
espírito que é relevante para o uso das pessoas são os resul-
tados e estes são obtidos pelas mulheres na sociedade: em
cada estrato social, as mulheres obtêm o resultado de toda a
cultura desse estrato social. Aquilo que elas invejam em nós
é, portanto, o que é exterior e não essencial, formal, a
casca: a sua condição e o trato connosco economiza-lhes o
esforço de começar por estudar tudo isso e dão-lhes direta-
mente a essência. De resto, elas nada podiam fazer com a
forma: não estão habituadas a considerá-la como meio e
não podem habituar-se a fazê-lo, pois isto só se aprende
com o uso; elas consideram-na, portanto, como um fim em
si, como algo que em si é excelente e primoroso, resultando
135 daí que as mulheres verdadeiramente eruditas- não estou a
falar das que pensam de acordo com o são senso comum,
pois estas são muito dignas de respeito - se tornam, na
maioria das vezes, pedantes.
Para que não haja qualquer espécie de mal-entendido,
quero discutir este ponto mais em pormenor. - Não se
pode afirmar que a mulher seja inferior ao homem em
matéria de talentos espirituais; mas pode afirmar-se que o
espírito dos dois sexos tem, por natureza, um carácter com-
pletamente diferente. O homem refere a conceitos claros
tudo o que há nele e para ele e encontra esses conceitos
através do raciocínio apenas; só assim é que fica efeti-
vamente convencido e só assim é que o seu saber não é
meramente um saber fatual. A mulher tem um sentimento
natural que lhe permite distinguir o que é verdadeiro, con-
veniente e bom; não que tudo isto lhe seja dado pelo mero
sentimento, o que é impossível, mas antes que sobre aquilo

420
que lhe é trazido de fora a mulher pode ajuizar facilmente
se é ou não verdadeiro e bom, baseando-se no mero senti-
mento, sem uma compreensão clara dos fundamentos do
seu juízo. Pode dizer-se que o homem tem de fazer-se
racional, enquanto a mulher é já, por natureza, racional.
Pode facilmente inferir-se isto do traço fundamental, acima
indicado, que distingue a mulher do homem. A inclinação
natural da mulher funde-se originariamente e desde o pri-
meiro momento com a razão, porque sem esta união a sua
inclinação faria desaparecer a razão; torna-se uma inclina-
ção racional e é por isso que todo o seu sistema de senti-
mentos é racional, contando, por assim dizer, como razão.
Ao invés, o homem tem primeiro, pelo esforço e pela ativi-
dade, e subordinar todas as suas inclinações à razão.
A mulher é, portanto, pela sua própria feminilidade,
sobretudo prática e não especulativa. Ela não pode, nem
deve, penetrar no âmago das coisas que estão para além dos
limites dos seus sentimentos. (Isto explica um fenómeno
muito conhecido. Tivemos mulheres que se distinguiram
em erudição em matérias que têm que ver com a memória,
por exemplo, nas línguas e mesmo na matemática, na
medida em que esta se possa aprender; outras, que se torna-
ram famosas em matérias de ficção, na doce arte da poesia,
no romance, mesmo na narrativa histórica. Mas não tive-
mos filósofas ou inventoras de novas teorias matemáticas.)
Algumas palavras ainda sobre o desejo das mulheres de
se entregarem à escrita, desejo que entre elas se expande
cada vez mais.
Só é possível conceber dois fins da escrita: ou subme-
ter ao exame dos sábios novas descobertas nas ciências ou
divulgar aquilo que já é conhecido e estabelecido mediante
uma exposição popular. - Pelas razões acima aduzidas, as
mulheres não podem fazer descobertas. Escritos populares 136
para mulheres, escritos sobre a educação feminina, doutri-

421
nas morais para o género feminino em particular são coisas
sobre as quais as mulheres são as mais idóneas para escre-
ver: em parte, porque conhecem melhor o seu género do
que alguma vez o homem o pode conhe.cer, na medida em
que pertencem a esse género (obviamente, assumindo que
têm capacidade suficiente para se elevarem, em parte, acima
do seu género); em parte, porque, em regra, têm mais fácil
acesso a uma audiência feminina. Até mesmo o homem
culto pode aumentar o seu conhecimento do carácter femi-
nino com base neste tipo de escritos. É evidente que a
autora deve escrever como mulher e que deve aparecer no
seu escrito como mulher e não como um homem mal dis-
farçado. - Pressupus, como se vê, que a mulher escreve uni-
camente para o género feminino, para ser útil e atender a
uma necessidade detetada no seu género, e não que escreve
para o género masculino por desejo de celebridade ou por
vaidade. Para além de que, neste último caso, as suas pro-
duções teriam um valor literário menor e, com isso, o valor
moral da autora sairia grandemente diminuído. A sua obra
literária não seria então mais do que um instrumento de
coquetismo. Se a autora é uma mulher casada, obteria com
a sua celebridade literária um estatuto de autonomia que a
tornaria independente do marido e que debilitaria necessa-
riamente a relação conjugal, ameaçando dissolvê-la. Ou, se
é criticada, sentiria a crítica como uma afronta infligida ao
género feminino e os seus dias e os dias do seu inocente
esposo tornar-se-iam mais amargos.

422
QUARTA SECÇÃO

SOBRE A RELAÇÃO JURíDICA RECÍPROCA ENTRE


PAIS E FILHOS

§ 39

A relação originária entre os filhos e os pais não é


determinada unicamente pelo mero conceito de Direito,
mas pela natureza e pela moralidade, tal como o é a relação
entre os cônjuges. Deste modo, na presente investigação, tal
como aconteceu na anterior, temos de partir de princípios
que estão situados a um nível mais elevado que o conceito
de Direito, em ordem a proporcionar um objeto de aplica- 137
ção para o conceito de Direito. Pois pode muito bem acon-
tecer que nesta relação, que se funda na natureza e na
moralidade, haja determinações ulteriores que têm de ser
ordenadas por intermédio do conceito de Direito.
Aqueles que quiserem considerar a relação no seu con-
junto como meramente jurídica vêem-se forçados , pelo
pressuposto de que partem, a afirmações temerárias, como,
por exemplo, que os filhos, em resultado do ato de pro-
criação, considerado como uma espécie de fabricação (per
formationem), seriam propriedade dos pais, e coisas seme-
lhantes.

423
§ 40

O feto é gerado no corpo da mãe, como uma parte


que lhe pertence. A própria saúde e sustento da mãe
durante a gravidez estão ligados ao sustento do feto; o que
é decisivo é que isto não acontece como nos animais irra-
cionais, em que é simplesmente assim, mas com o conheci-
mento por parte da mãe desta associação necessária entre o
sustento do feto e o seu próprio sustento. Não é uma ques-
tão de mera necessidade mecânica que ela gere o feto a par-
tir de si e que o forme no seu corpo, mas é também à sua
consciência que se impõe a preocupação refletida e delibe-
rada de garantir o sustento do feto.
De acordo com uma lei indubitavelmente universal da
natureza, o filho nasce, o que não acontece sem que haja
dor. O momento em que o filho nasce é o momento em
que a mãe é aliviada da dor e é, portanto, necessariamente
um momento de alegria para ela. Está ligada pela alegria à
existência do filho.
Mesmo após o nascimento do filho não fica dissolvida
a ligação orgânica entre ele e a mãe. Na mãe continua a
estar preparado o alimento que a mãe tem tanta necessi-
dade de dar como o filho de receber.
(Pertencem a um único corpo orgânico as partes em
que uma delas tem uma tendência a ajudar à satisfação de
uma necessidade da outra, necessidade a que esta outra não
pode dar satisfação por si própria, enquanto a outra tem
uma tendência para apaziguar uma necessidade da primeira,
que a primeira não é igualmente capaz de apaziguar por si
própria. E a esta relação chamo ligação orgânica das partes.
Na medida em que a natureza não prepara em nenhuma
outra parte, a não ser no corpo da mãe, o alimento mais
conveniente para a criança recém-nascida e que não dispõe
de outro canal para a evacuação do leite da mãe senão a

424
boca do filho, subsiste entre ambos uma ligação orgamca,
apesar de em relação ao demais constituírem corpos separa- 138
dos. Parece-me que vale a pena investigar se, e em que
medida, é também válida para o reino vegetal esta lei da
natureza, segundo a qual a planta, que é aparentemente
autónoma, não se separa imediatamente (per saltum) do seu
corpo materno.)

§ 41

A lei da natureza que acabamos de indicar, quer seja


considerada nas plantas quer nos animais, impulsionará,
sem mais, as plantas ou os animais à atividade de desenvol-
verem um corpo que, em certos aspetos, lhes é exterior.
O impulso comanda com necessidade em plantas e ani-
mais; a atividade visada pelo impulso decorre dele e baseia-
-se diretamente nele. Nos seres inteligentes, porém, tem
lugar um terceiro elemento entre o impulso natural e a
ação : a consciência. Os seres inteligentes têm consciência
do impulso natural como uma sensação. Esta sensação é o
produto necessário do impulso natural e decorre direta-
mente dele: ou, mais precisamente ainda, a sensação é o
impulso natural nos seres inteligentes. Mas a ação não
decorre nem necessariamente nem diretamente, mas está
condicionada por uma intervenção da liberdade.
O impulso natural era acolher um corpo alheio como
se fosse seu. Como se manifesta no género humano na mãe
este impulso natural? Evidentemente, como um sentir da
necessidade do outro como sendo a sua própria necessidade.
Esse sentimento chama-se compaixão. Compaixão é, por
conseguinte, a forma sob a qual se manifesta o instinto
natural da mãe em relação ao filho.

425
Existe nisto um mecanismo da natureza e da razão,
associadas entre si, do qual decorre necessariamente esta
manutenção da criança - obviamente, uma vez que a razão
também opera aqui, pode opor-se resistência a este impulso
se o homem se degrada a ponto de ir contra a natureza.
Todavia, de acordo com a ordem natural da coisas, não se
opõe resistência a este impulso.
Não estamos, de modo algum, a tratar aqui do Direito.
Não se pode dizer que o filho tem um direito de exigir à
mãe esta manutenção física, do mesmo modo que não pode
dizer-se que um ramo tem o direito de crescer na árvore;
139 tal como tão-pouco pode dizer-se que a mãe tem o dever
coercível de manter o seu filho, da mesma maneira que não
pode dizer-se que a árvore tem o dever coercível de ser por-
tadora do ramo. O que está aqui em causa é a lei da natu-
reza, se bem que em relação com a razão. Nos animais, é
uma mera lei da natureza.
(Seja ainda dito o seguinte, a título de esclarecimento:
também não se trata originariamente de um dever moral,
isto é, de um dever especial de manter precisamente esta
criança. Só depois de a mãe ter sentido este impulso é que
se torna, pois, dever moral mantê-lo e fortalecê-lo. - Vere-
mos mais adiante o que é que o Estado pode e deve fazer
para elevar, mediante leis positivas, esta manutenção do
filho a um dever a que a mãe pode ser coagida.)

§ 42

Há na natureza humana em geral e, por conseguinte,


também no homem um impulso para acolher o mais fraco
e desprotegido, mostrando afeto para com ele. Este impulso
universal exprimir-se-á, sem dúvida, também no pai em
relação ao seu filho; mas, precisamente porque é um

426
impulso universal, que se funda na v1sao da desproteção,
este impulso exprime-se em relação a qualquer criança e
não existe nenhuma razão para que o pai tenha uma pre-
ferência especial pelo seu filho. Teríamos de proceder à
demonstração dessa preferência. Uma vez que a relação
entre pai e filho é uma relação simplesmente física, este
amor não pode ter nenhum outro fundamento senão o
físico. Mas um tal fundamento não existe, pois entre o pai
e o seu filho não existe qualquer vínculo físico que seja; por
conseguinte, há que concluir que o pai não tem direta-
mente nenhum amor especial pelo seu filho. Não podemos
retirar qualquer conclusão da única relação natural, o ato
de procriação, pois este ato, enquanto tal, como procriação
deste indivíduo determinado, não chega nunca à cons-
ciência.
O amor especial do pai pelo seu filho procede origina-
riamente- quais as fontes que esse amor pode encontrar na
opinião tal como ela é formada pelas nossas instituições é
matéria sobre a qual não vamos aqui debruçar-nos- da ter-
nura do pai pela mãe. Esta ternura faz seus todos os desejos
e todos os fins da mãe, incluindo, portanto, o de cuidar da
manutenção do filho. Como esta cabe, natural e necessaria-
mente, à mãe, passa a caber, por transmissão, também ao
pai. Pois ambos são um único sujeito e a sua vontade é
uma só.
Também aqui não se pode, de modo algum, falar de 140
um direito natural de coação da mãe sobre o pai em relação
à alimentação do filho. Não são suficientes os princípios
sobre os quais se poderia pensar construir tal coerção jurí-
dica. A mãe, poder-se-ia imaginar, pode dizer ao pai: tu és
a causa de eu ter um filho; por isso, alivia-me do encargo
da sua manutenção. A isto poderia o pai, com razão, res-
ponder: nem eu nem tu tivemos essa intenção; foi a ti e
não a mim que a natureza deu o filho , acarreta tu com essa

427
consequência em relação a ti, tal como se daí tivesse resul-
tado uma consequência em relação a mim seria eu a acarre-
tar com ela.
Coisa diferente seria se se tivesse celebrado entre eles
um contrato sobre a manutenção do filho. Mas também
neste caso teria o Estado de ter garantido este contrato:
caso contrário, não se teria estabelecido nenhum direito de
coação válido perante um tribunal externo, mas apenas um
dever moral interior, o qual, no nosso caso, não necessita
de ser fundado em qualquer contrato em especial, pois está
ínsito no casamento dos progenitores. Será indicado mais
adiante o que é que o Estado pode e deve fazer a este res-
peito.

§ 43

Os pais vivem juntos e a criança, entregue pela natu-


reza ao cuidado de ambos, tem igualmente de viver com
eles: caso contrário, eles não poderiam cuidar da sua manu-
tenção.
Os seres humanos têm uma tendência natural para
supor a razão fora de si, desde que isso seja minimamente
plausível, e para tratar objetos, por exemplo, animais, como
se a tivessem. Os pais tratarão o seu filho igualmente deste
modo e exortá-lo-ão à atividade livre: e assim, a razão e a
liberdade manifestar-se-ão paulatinamente nele. - Ser livre
é parte do bem-estar, de acordo com os conceitos necessá-
rios de pessoa: os pais querem o bem-estar do seu filho ,
pelo que respeitarão a sua liberdade. -Mas muitos dos usos
da liberdade seriam prejudiciais para a sua manutenção,
que é igualmente o objetivo dos pais. Eles associarão, por-
tanto, ambos os fins , limitando a liberdade da criança de
modo a que o uso desta não ponha em perigo a sua manu-

428
tenção. Mas isto é o primeiro conceito de educação. - Os
pais educarão o seu filho; isto decorre do seu amor por ele e
do cuidado pela sua manutenção .
Não se pode dizer que a criança tem um direito de 141
coação a exigir a sua educação, nem que os pais estão a tal
obrigados por um dever coercível. Será indicado o que é
que o Estado pode fazer a este respeito.

§ 44

É deve r moral universal para toda a pessoa moral-


mente boa difundir a moralidade e promovê-la em toda a
parte. Mas cada ser livre, e, portanto, também a criança, é
capaz de moralidade. Ora, a criança vive com os pais, por
outras razões, que não têm de ver com a moralidade. Mas
se os pais forem, eles próprios, morais, farão uso de todos
os meios possíveis para desenvolver a moralidade na
criança: este é o conceito de educação superior.
(Aqui não ensinamos Moral: portanto, não temos de
dizer que eles devem fazê-lo , mas apenas que o farão. Aqui
só estabelecemos as disposições naturais e morais como fac-
tos, em ordem a obter a matéria para a aplicação do con-
ceito de Direito.)
Esta educação engloba as duas finalidades seguintes:
em primeiro lugar, que as capacidades da criança sejam
desenvolvidas e cultivadas de modo a serem úteis para qual-
quer espécie de fins ; depois, que a sua sensibilidade esteja
orientada à moralidade. Para atingir o primeiro fim, a liber-
dade da criança tem de vo ltar a ser limitada: tem de ser
impedido todo o uso desta liberdade que esteja em contra-
dição com o primeiro fim, a manutenção e a saúde, e com
o segundo fim , o desenvolvimento das capacidades; todo o

429
uso da liberdade da criança que esteja de acordo com o
propósito dos pais tem de ser promovido. A primeira coisa
tem de ser proibida, a segunda tem de ser ordenada. Só em
relação ao segundo fim é que a liberdade não pode ser res-
tringida; pois só é moral aquilo que procede de uma ação
livre. A moralidade desenvolve-se a partir da própria pessoa
e não pode ser produzida por coação ou por instituições
artificiais.
Não pode dizer-se que a criança tem um direito de
coação a exigir a sua educação ou que os pais têm um dever
coercível relativamente a isso. Tal como não se pode dizer
que os pais têm em relação ao filho - em relação a outros,
vê-lo-emos a seu tempo - um direito a educá-lo e que o
filho tem o dever de se deixar educar por eles; pois a
criança não é, em geral, um possível sujeito de um direito
ou de um dever, mas antes, enquanto estiver a ser educado,
unicamente objeto da ação dos pais; a criança é aquilo e
torna-se naquilo que os pais fizerem dela.

142 § 45

Só os pais é que têm uma v1sao global do fim da


educação; os filhos não a têm, precisamente porque devem
primeiro ser educados. Por conseguinte, quais são os meios
necessários para atingir este fim é algo que só os pais
podem avaliar, não o filho. - Em relação ao filho, são juiz
em causa própria; são soberanos e o filho, enquanto o edu-
cam, está-lhes incondicionalmente submetido. Que eles
façam uso desta submissão unicamente para educar o filho
da melhor maneira que saibam fazer é para eles unicamente
uma questão de consciência, que diz respeito à sua própria
jurisdição interior.

430
§ 46

A possibilidade do Estado depende de que a dimensão


da sua população se mantenha mais ou menos constante:
pois a defesa, os impostos e o poder calculam-se com base
na população. Se esta diminui continuamente em razão
da mortalidade, este cálculo não seria adequado; ocorre-
riam desordens e, finalmente , quando restasse apenas um
pequeno número de habitantes, o Estado deixaria de existir.
Mas a manutenção da dimensão da população depende, no
entanto, de que entrem novos cidadãos no lugar dos cida-
dãos que faleceram.
Cada cidadão promete no contrato social promover
com rodas as suas forças as condições de possibilidade do
Estado: por conseguinte, também a condição que acaba de
ser mencionada. A melhor maneira de promover estas con-
dições é educar o seu filho para que tenha aptidão e habili-
dade para todos os fins racionais. O Estado tem o direito
de fazer desta educação dos filhos uma condição do con-
trato social: e assim, a educação torna-se um dever coercível
externo, não um dever diretamente para com a criança, mas
para com o Estado. É o Estado que está em posição de
impor esse dever, em virtude do direito adquirido no con-
trato social .
Falei da educação das crianças em gera4 pois é através
dela que é atingido o fim do Estado. Ora, não pode ser
deixado ao arbítrio do cidadão escolher que criança em
concreto é que ele quer educar, porque desta colisão de
arbítrios surgiriam conflitos jurídicos insolúveis, tendo
antes de ser estipulado algo relativamente a que crianças em
concreto deve cada um educar. - O mais conveniente aqui
é que o Estado siga a disposição da natureza e da razão,
contra as quais, de resto, ele não tem o direito de ordenar o
quer que seja; e, assim, impõe que sejam os pais a educar
os seus próprios filhos.

431
143 § 47

Se os filhos nascem de um casamento legítimo e racio-


nal, reconhecido pelo Estado, isto não suscita qualquer difi-
culdade. Mas se nascem fora do casamento, seja numa liga-
ção a que só falta o reconhecimento do Estado para ser
casamento (reconhecimento que, de acordo com os princí-
pios acima enunciados, tem de ser outorgado pelo Estado),
mas que logo a seguir terminou em separação, seja no con-
cubinato, então o cuidar da criança cabe a quem a natureza
confiou diretamente essa tarefa: à mãe. Pois os pais separa-
dos não podem educar em comum. Mas uma vez que o
pai, em resultado do seu dever cívico, está igualmente obri-
gado a contribuir para a manutenção da criança, então há
de satisfazer a sua contribuição em dinheiro e valores pecu-
niários equivalentes. O pai paga pensão de alimentos e a
mãe toma a seu cargo o cuidado pessoal.

§ 48

O infanticídio cometido pela mãe é, indubitavel-


mente, um crime monstruoso e antinatural, pois consiste,
nem mais nem menos, no silenciar pela mãe de rodos
os sentimentos da natureza: mas não é um crime contra
o direito externo da criança. A criança não tem nenhum
direito externo em relação à sua mãe. É um crime contra a
lei do Estado, que prescreve que as crianças devem ser edu-
cadas e, nessa medida, é uma conduta punível. O infanticí-
dio evidencia uma brutalidade e selvajaria antinaturais, con-
tando-se, por conseguinte, entre os crimes em que o Estado
deve tentar empreender a correção do criminoso. O infanti-
cídio deve ser punido com internamento em estabeleci-
mento correcional, até que a correção seja conseguida.

432
(Nalgumas antigas Repúblicas, temendo-se um grande
acréscimo de população, em particular das classes privilegia-
das, os cidadãos propriamente ditos, foi permitida a exposi-
ção das crianças, especialmente das mais débeis, e, por con-
seguinte, o infanticídio indireto. Nenhum Estado tem o
direito de prescrever o infanticídio, pois não deve prescrever
nada que seja imoral, que seja pecado contra a natureza.
Até mesmo a autorização concedida por lei expressa é sem-
pre imoral e o Estado, com isso, desonra-se a si e aos seus
cidadãos. Mas contra a permissão mediante o silêncio da lei
não há nada a objetar do ponto de vista dos princípios do
Direito, pois o Estado não tem nenhum cuidado positivo
com a moralidade dos seus cidadãos; as crianças recém-nas-
cidas só têm direitos externos porque o Estado garante a
sua vida e isto é-lhes devido somente na medida em que 144
a possibilidade da sua própria preservação disso dependa.)

§ 49

Em resultado das condições do contrato social que


foram apontadas, o Estado tem o direito de vigilância sobre
se, em geral, as crianças são mantidas, alimentadas e vesti-
das e se vivem entre as pessoas, na medida em que esta é a
condição exclusiva da sua formação como homens e como
cidadãos. Em breve veremos que este direito não se estende
aos meios escolhidos para a educação.

§50

O Estado impõe aos pais o dever de educarem os


filhos. Garante-lhes, por conseguinte, necessariamente as
condições de possibilidade desta educação. Entre estas
inclui-se a de que nenhum outro cidadão se possa apossar

433
dos seus filhos para os educar. Portanto - o Estado garante
necessariamente aos pais, contra os outros cidadãos, o direito
exclusivo de serem eles a ter os filhos à sua guarda. Se viesse a
surgir um litígio a este propósito, as leis teriam de decidir a
favor dos pais verdadeiros.
Faz parte da educação um plano contínuo e a unifor-
midade das máximas segundo as quais as crianças são trata-
das. Isto seria perturbado se alguém estranho se introme-
tesse na educação e quisesse ter influência sobre as crianças.
Tal intromissão daria lugar a queixa judicial e o Estado
teria de decidir sempre a favor dos pais verdadeiros.

§ 51

Pressupondo que os pais pensam de maneira moral,


a educação dos filhos é assunto da sua consciência. Que-
rem educar os filhos de uma forma tão moralmente boa
quanto lhes seja possível: mas cada um considera as suas
próprias máximas como as melhores e mais corretas, pois
de outro modo seria insensato da sua parte ater-se a elas.
Mas o Estado não pode intervir em matérias de cons-
ciência. Portanto, também ele não pode intrometer-se na
educação.
145 O Estado tem o direito de criar instituições públicas
de educação; mas deve depender dos pais querer utilizá-las
ou não. O Estado não tem nenhum direito de coação rela-
tivamente à utilização de tais instituições.

§52

Em relação às max1mas da educação, não é juiz o


Estado, nem este ou aquele cidadão, nem a própria criança,
porque é esta última o objeto da educação; por conse-

434
guinte, são os pais que são nesta matéria os seus próprios
juízes. Não pode nunca haver nenhum litígio jurídico entre
os filhos , que hão de ainda ser educados, e os pais. Os pais
são neste assunto a instância suprema e soberana. O Estado
não pode estabelecer nenhuma lei sobre esta relação, tal
como não pode estabelecer leis sobre a relação entre
homem e mulher.

§53

O poder dos pais sobre os seus filhos funda-se, por-


tanto, unicamente no dever dos pais de educarem os seus
filhos . Este dever de educação é instituído pela natureza e
garantido pelo Estado. Considerar os filhos como proprie-
dade dos pais e considerar os direitos dos pais sobre os
filhos como direitos de propriedade é uma opinião desti-
tuída de fundamento.

§54

De acordo com o que foi acima enunciado, o Estado


tem o direito de supervisão sobre se, em geral, a criança
está a receber educação; tem, por conseguinte, o direito de
impedir o tratamento da criança que claramente impeça a
educação: daí que não possa, de modo algum, permitir que
a criança seja tratada como propriedade, por exemplo ,
que o filho seja vendido.

§55

Só quem é livre é que pode ser responsabilizado


perante um tribunal. As crianças não são livres, dado que

435
146 estão sob a tutela dos pais. Por conseguinte, o seu tutor
legal é o pai - uma vez que ele é, simultaneamente, o
representante da mãe. As crianças não têm direitos que
o pai tenha de defender: pois eles não são ainda direta-
mente cidadãos; mas se tiverem causado danos, o pai res-
ponde pelos danos.
O lesado dirige-se ao pai, e com razão, pois as crianças
estão sob o controlo do pai e este deveria ter podido impe-
dir o dano. Se não o impediu, tem de reparar o dano. - As
crianças não podem ser submetidas a nenhuma pena
pública, pois não estão submetidas às leis coercivas externas
do Estado. Elas estão apenas submetidas às leis coercivas
dos pais. Estes castigam-nas como melhor entenderem, mas
não são castigadas pelo Estado, de que ainda não são, de
todo em todo, cidadãos.

§56

O único fundamento do poder dos pais sobre os seus


filhos é a necessidade de educação. Se desaparece o funda-
mento, desaparece aquilo que é fundamentado. Logo que o
processo de educação tenha sido finalizado, a criança torna-
-se livre.
Mas se o processo de educação está concluído é algo
que, em regra, só os pais é que podem decidir, porque
foram eles próprios que estabeleceram o objetivo da educa-
ção e só eles é que o conhecem. - Ora, ou eles julgam que
o filho está já educado e então, de livre vontade e de
acordo com o seu próprio critério, deixam-no livre. De
todo o modo, à medida que o filho vai desenvolvendo a
sua inteligência, eles devem dar-lhe mais liberdade; isto não
em consequência de um direito da criança, mas em conse-
quência de uma regra importante da educação. Se os pais

436
desatam então o último vínculo com o qual até agora os
seguravam, então os filhos são completamente livres.
Ou, na segunda hipótese: a própria natureza da situa-
ção torna claro que o fim da educação foi atingido. O fim
universal da educação é o de tornar úteis as nossas capaci-
dades para a promoção de fins racionais; e o juiz exterior
desta utilidade, juiz esse que os pais devem respeitar, é o
Estado. Ora, o Estado não pode libertar diretamente os
filhos , pois isso seria interferir na educação: mas pode fazê-
-lo indiretamente, concedendo ao filho um cargo público
ou um outro direito cívico, como, por exemplo, o grau de
mestre num ofício por intermédio da corporação, na
medida em que esta está mandatada pelo Estado para o
fazer. É então emitido o juízo sobre a utilidade das capa-
cidades. - Um cargo público liberta os filhos do poder
paternal.
Finalmente, na terceira hipótese: o processo de edu-
cação e o estado de sujeição dos filhos podem cessar se,
pela natureza da situação, deixarem de ser possíveis. Isto 147
acontece com o casamento. A filha fica subordinada ilimi-
tadamente à vontade do marido e não pode, portanto,
continuar submetida a nenhuma outra vontade, como a
dos pais. O homem tem de cuidar com uma ternura ilimi-
tada da felicidade da sua esposa; não pode ser perturbado
nesse cuidado por nenhum vontade alheia, como a dos
pa1s.
Mas, uma vez que em virtude do casamento cessa o
processo de educação e de que é só aos pais que cabe ava-
liar quando é que esse processo deve terminar, é precisa-
mente por isso que os pais têm o direito ou de recusar aos
filhos essa permissão ou de adiar o casamento.
Mas os pais não têm o direito de proibir que os filhos
se casem, como tão-pouco têm o direito de escolher em seu
lugar, pelas razões que já foram anteriormente aduzidas.

437
§57

Entre marido e mulher há comunhão de bens . Os


filhos não participam desta comunhão de bens e, em geral,
não têm propriedade alguma. Mas, então, de onde é que
pode promanar essa propriedade? Os pais são-lhes devedo-
res de alimentação e vestuário, de acordo com o que julga-
rem apropriado, pois, de outro modo, o fim de lhes pro-
porcionar educação não seria alcançado. Este dever é, como
recordamos anteriormente, um dever a cujo cumprimento
os pais podem ser coagidos pelo Estado (não pelos filhos) e
sobre o qual o Estado tem o direito de supervisão.
Mas, costuma dizer-se, os filhos trabalham e adquirem
por esse facto propriedade. - Isto só pode ser afirmado com
base na pressuposição errónea, que foi acima refutada, de
que é a formação que funda o direito de propriedade. fui
crianças são levadas a trabalhar com a finalidade de exerci-
tarem as capacidades para a educação e os proventos ocasio-
nais desse trabalho são recebidos, com todo o direito, pelos
pais, constituindo propriedade sua. A criança nada pode
fazer sem a vontade dos pais: não pode adquirir bens sem a
vontade dos pais. - Ou será que o direito de propriedade
deve fundar-se num contrato com os pais? Só aquele que é
livre é que pode contratar: mas as crianças não têm em
relação aos pais uma liberdade que seja autónoma deles. Os
filhos não podem desligar-se dos pais e ter uma vontade
própria para poderem contrapor-se aos pais como parte.

148 § 58

Todo o cidadão autónomo tem de ter um património


pessoal e tem de poder indicar ao Estado do que vive. Por
conseguinte, o Estado pode exigir, com todo o direito, aos

438
pais que deixaram de ter o filho à sua guarda que lhe atri-
buam um certo património ou, com um termo mais rigo-
roso, que lhe assegurem um dote. Mas o Estado nada pode
prescrever em relação ao montante que lhe deve ser atri-
buído, pois isso depende do livre critério dos pais.
Por ocasião do casamento, os pais dos futuros cônju-
ges têm de convencionar entre si se ambos os cônjuges
devem receber alguma coisa ou se só um deles, e quanto.
O Estado não tem de inquirir sobre a origem dos bens.
Tem apenas de questionar se a nova família, que ele
conhece apenas como família, tem suficientes meios de sub-
sistência.

§59

Depende apenas da opção dos pais querer atribuir a


um dos filhos um dote maior do que ao outro. Por injusta
que esta preferência possa ser, ela não é, no entanto, con-
trária ao Direito externo. Com base em que fundamento
jurídico é que o filho prejudicado poderia apresentar
queixa? Tudo aquilo que possui é só graças à benevolência
dos pais que o possui.

§ 60

Com a morte dos pais desaparecem por completo os


seus direitos no mundo sensível , por conseguinte, também
o seu direito de propriedade. Deve ser instituída a divisão
igual entre os filhos na sucessão ab intestato? Ou deve assis-
tir aos pais o direito de fazer testamento? Até onde pode ir
a sua livre disposição do património a favor de não familia-
res? Até onde pode estender-se a legítima? Em que medida

439
podem os sucessores ser deserdados? Estas são questões que
relevam unicamente da legislação positiva do Estado,
que decide sobre estas matérias de acordo com razões polí-
ticas. Não existem a este propósito razões cj.e decisão a
priori.

149 § 61

Abstivemo-nos até aqui de responder à questão: em


caso de divórcio dos pais, como é que os filhos devem ser
repartidos entre eles? Fizemo-lo porque não se poderia res-
ponder a esta questão sem uma visão fundamentada sobre a
relação entre pais e filhos.
Em primeiro lugar, uma vez que os pais têm um
poder ilimitado sobre os filhos, os pais que se divorciam
devem ser plenamente livres de chegar a um acordo amigá-
vel entre si. O Estado não tem nada a dizer a esse respeito,
desde que a educação dos filhos esteja assegurada. Se pude-
ram pôr-se de acordo entre si, seja em que condições for,
então não existe litígio e o Estado nada tem para decidir.
Só se os pais não puderem chegar a um acordo amigá-
vel é que há lugar a um veredito do Estado.
Só podem conceber-se duas razões para este conflito
entre os pais: ou porque nenhum dos dois quer ter de cui-
dar dos filhos, encargo que cada um deles, tanto quanto
seja possível, quer fazer recair sobre o outro; ou então, por-
que ambos querem manter junto de si os filhos, afastando,
tanto quanto possível, o outro cônjuge do exercício do
poder paternal.
No primeiro caso, há que decidir da seguinte maneira:
o dever de cuidar dos filhos, de acordo com o que dissemos
anteriormente, só é um dever direto em relação à mãe,
sendo em relação ao pai um dever indireto, derivado do seu

440
amor pela mãe. Uma vez que este - e, consequentemente,
também o fundamento natural da ternura paternal - deixa
aqui de existir, os filhos devem ser entregues ao cuidado
pessoal e à proteção da mãe; mas o pai deve contribuir, sob
o controlo e a garantia do Estado, para as despesas de
manutenção. A este respeito, deve estabelecer-se uma regu-
lamentação precisa, atendendo às circunstâncias patrimo-
niais dos pais.
No segundo caso, a decisão será a seguinte: o objetivo
juridicamente fundado do Estado em relação aos filhos é
que estes recebam a melhor educação que seja possível.
Ora, em regra - e só com base nesta regra é que podem
dar-se leis gerais - é a mãe que é a educadora mais idónea
das filhas e o pai o educador mais idóneo dos filhos. As
filhas devem ser confiadas à mãe e os filhos ao pai.
É evidente que no caso do filho resultante de uma
relação adúltera é o pai verdadeiro e não o marido da mãe
que tem de contribuir para as despesas de manutenção.

441
!50
COMPÊNDIO DO DIREITO DAS GENTES 151

E DO DIREITO COSMOPOLITA
(Como segundo apêndice ao Direito natural)

I. SOBRE O DIREITO DAS GENTES

§ 1

Cada indivíduo tem, de acordo com o que anterior-


mente vimos, o direito de forçar o indivíduo com que se
depare a entrar com ele num Estado ou a afastar-se da sua
esfera de atuação. Se um dos dois pertence já ao Estado e o
outro não, o primeiro coage o outro a associar-se ao seu
Estado. Daí decorre o seguinte princípio: quem não perten-
cer a nenhum Estado pode ser juridicamente coagido pelo
primeiro Estado que se depare com ele a submeter-se a ele
ou a afastar-se das suas imediações.
Em consequência deste princípio, todas as pessoas que
vivem à superfície da terra seriam, pouco a pouco, associa-
das num único Estado.

§ 2

Mas seria igualmente possível que grupos de pessoas


geograficamente separadas e que não sabem nada umas das
outras se associem em Estados. Neste lugar da terra esta

443
necessidade seria sentida a ser-lhe-ia dada satisfação, noutro
lugar seria sentida e satisfeita esta mesma necessidade, sem
que os primeiros soubessem nada dos segundos, nem os
segundos dos primeiros. Desta maneira, surgiriam à superfí-
cie da terra vários Estados.
É uma prova de que o Estado não é uma invenção
arbitrária, mas algo prescrito pela natureza e pela razão, o
facto de que em todos os lugares em que as pessoas vivem
conjuntamente durante um certo período de tempo e têm
um pouco de civilização instituem um Estado, mesmo que
não saibam que o mesmo acontece ou aconteceu por parte
de outras pessoas que não pertencem à sua área.
152 Uma vez que a superfície da terra está dividida por
mares, rios, montanhas e que, por esse facto, as pessoas
estão separadas entre si, foi , também por isso, necessário
que surgissem diferentes Estados.

§3
As pessoas, nestes diferentes Estados, não sabem nada
umas das outras, pelo que não mantêm entre si qualquer
relação jurídica propriamente dita, dado que, de acordo
com o que anteriormente vimos, a condição de possibili-
dade de qualquer relação jurídica é uma influência recí-
proca efetiva e com consciência.

§4

Dois cidadãos, provenientes destes diferentes Estados,


formados independentemente um do outro, encontram-se.
Cada um deles exigirá ao outro a garantia de que está em
segurança ao pé dele, exigência que tem o pleno direito de

444
fazer, tal como demonstramos; garantia essa que consiste
em que o outro se submeta ao mesmo tempo que ele ao
seu soberano. O que cada um deles exige ao outro, e com
igual direito de o fazer, pois cada um deles está inserido
numa Constituição jurídica, é: submete-te ao meu sobe-
rano. Por conseguinte, nenhum deles tem esse direito, pois
os direitos de um e do outro anulam-se reciprocamente.
No entanto, eles continuam a ter de prestar um ao
outro uma garantia recíproca. Uma vez que tal não podia
acontecer da maneira sugerida acima, como é que pode
então acontecer? - Devem submeter-se ambos a um juiz
comum; mas cada um deles tem já o seu próprio juiz. -
Hão de ser os seus juízes a associar-se e nas matérias que
dizem respeito a ambos tornar-se num único juiz comum a
ambos; quer dizer: os seus dois Estados devem assumir o
compromisso recíproco de punir e reparar a injustiça que
um cidadão do outro Estado tenha sofrido por culpa de um
dos seus concidadãos, como se fosse uma injustiça cometida
contra um dos seus próprios cidadãos.

Corolários

1. Toda a relação entre Estados funda-se na relação


jurídica entre os seus cidadãos. Em si, o Estado não é mais
do que um conceito abstrato: só os cidadãos, enquanto tais, 153
são pessoas reais. - Além disso, esta relação funda-se muito
precisamente no dever jurídico, acima mencionado, dos
seus cidadãos de prestarem uns aos outros garantia recí-
proca quando se encontram no mundo sensível. Portanto,
ao início só os Estados que confinam um com o outro é
que estão em relação entre si. Veremos mais adiante como é
que os Estados que estão espacialmente separados podem,
no entanto, entrar em relação.

445
2. Esta relação entre os Estados consiste em que garan-
tem reciprocamente um ao outro a segurança dos cidadãos
do outro Estado como se tratasse dos seus próprios cida-
dãos. A fórmula contratual é a seguinte: assumo a responsa-
bilidade de todos os danos que os meus cidadãos possam
causar aos teus, na condição de que tu assumas igualmente
a responsabilidade por todos os danos que os teus cidadãos
possam causar aos meus.
3. Um tal contrato deve ser celebrado de forma explí-
cita; e não faz parte do contrato de cidadania; e o facto de
ter sido celebrado deve ser anunciado aos cidadãos por
meio da legislação. O cidadão dá satisfação às condições do
contrato de cidadania se simplesmente se abstiver de violar
os direitos dos seus concidadãos; no contrato de cidadania
não foram contemplados os direitos dos estrangeiros. Só em
consequência deste contrato é que se converte em lei respei-
tar também os direitos dos Estados que são parte do con-
trato com este Estado; e só então é que a violação desses
direitos passa a ser um crime punível.

§ 5

No contrato entre os Estados que acabamos de descre-


ver, está necessariamente incluído o reconhecimento
recíproco, que é pressuposto como condição de possibilidade
desse contrato. Cada um dos Estados aceita a assunção de
responsabilidade do outro em relação aos seus cidadãos
como uma garantia válida e não toma em relação a estes
nenhuma outra medida de segurança: cada um dos Estados
pressupõe, portanto, que o outro tem uma Constituição
legal e pode responder pelos seus cidadãos.
Cada um dos Estados tem, portanto, o direito de jul-
gar sobre a legalidade de um outro Estado com cujos cida-

446
dãos os seus cidadãos entram em relação. No entanto, o que
é de assinalar, o objeto de um tal juízo não vai mais além
do que avaliar se o Estado vizinho é capaz de manter uma
relação externa legal. A Constituição interna não lhe diz, de
todo, respeito e ele não tem o direito de julgar sobre ela.
É nisto que consiste a independência recíproca dos
Estados.

§ 6 154

Cada povo, desde que não viva no estado de natureza,


mas tenha uma autoridade, independentemente da forma
como esta seja constituída, tem um direito de coação a
exigir o reconhecimento pelos Estados vizinhos. A prova
decorre o que foi acima exposto e já foi diretamente adu-
zida. O Estado não pode forçar os cidadãos de um outro
Estado a submeterem-se a ele, pois o Estado vizinho teria
então o mesmo direito, o que é contraditório. No entanto,
deve fazer com que o outro Estado lhe garanta a segurança
dos seus cidadãos, dando-lhe ele a mesma garantia, o que
só é possível na condição do reconhecimento. - O facto de
um Estado não reconhecer outro Estado significa fazer pas-
sar os cidadãos deste último por pessoas que não estão, de
modo algum, numa Constituição jurídica: mas daí decorre
o direito de os subjugar. A recusa do reconhecimento con-
fere , por conseguinte, um direito válido à guerra.
Os Estados são necessariamente independentes uns
dos outros e autónomos.

§ 7

Se um povo não tem qualquer forma de governação ,


não sendo, por conseguinte, um Estado, o Estado vizinho

447
tem o direito ou de o submeter a si próprio ou de o forçar
a dotar-se de uma Constituição ou, então, de o expulsar da
sua vizinhança. O fundamento disto é o seguinte: quem
não pode oferecer ao outro garantia da segurança dos seus
direitos também não pode ter nenhuma garantia que seja.
Um tal povo estaria, portanto , completamente destituído
de direitos.
(Não se receie que as potências ávidas de conquista
possam ter alguma coisa a ganhar com este princípio. Não é
fácil que exista um povo como o que acabamos de descre-
ver; e o princípio é estabelecido mais em ordem a completar
a argumentação do que com o fito da sua aplicação. Qual-
quer povo, desde que tenha alguém que o chefie na guerra,
tem, indubitavelmente, uma governação. Os republicanos
franceses derrotaram por várias vezes as potências coligadas,
enquanto estas duvidavam de que eles tivessem sequer um
governo e perguntavam com quem é que realmente deviam
negociar a paz. Deveriam, pois, ter-se informado junto da
fonte mais próxima com que estavam em contato, aqueles
que as derrotaram, sobre quem é que verdadeiramente tinha
o comando na batalha. Teriam, porventura, podido saber
que os mesmos que tinham dado a ordem para que as
potências coligadas fossem vencidas teriam podido também
dar a ordem para que fossem deixadas em paz. Finalmente,
depois de terem sofrido suficientes derrotas, refletiram, feli z-
mente, sobre esta saída e descobriram que os franceses, ape-
sar de tudo, deviam ter um governo.)

155 § 8

Os Estados vizinhos garantem reciprocamente uns aos


outros os direitos de propriedade dos seus cidadãos. Por
conseguinte, é necessário que algo seja estabelecido entre

448
eles em relação aos limites desses direitos. A determinação
destes limites teve já lugar por via do contrato que cada
Estado celebrou com os seus próprios cidadãos e não é pre-
ciso que venha agora a ter lugar. O cidadão do Estado A,
que faz fronteira com o Estado B, declarou ao seu Estado
até onde é que queria ser proprietário e o Estado deu o seu
assentimento; o mesmo aconteceu com o cidadão do
Estado B, que faz diretamente fronteira com o Estado A,
em relação ao seu Estado. Estes contratos são agora tam-
bém garantidos pelos Estados vizinhos, enquanto tais, em
nome dos seus cidadãos e perante estes. Aquilo que ao
princípio só vinculava os próprios concidadãos vincula, de
ora em diante, também os cidadãos dos Estados vizinhos.
Os conflitos que a esse propósito eventualmente possam
surgir são resolvidos como os resolvem os indivíduos no
plano do Direito natural: mediante um acordo amigável,
porque não há fundamentos jurídicos a priori para que um
objeto deva pertencer a este e não àquele. A primeira con-
dição da relação legal entre Estados é, por conseguinte, o
traçar de fronteiras. Estas têm de ser estabelecidas de modo
totalmente preciso e inequívoco: caso contrário, surgirão no
futuro conflitos de fronteiras . - Isto inclui não somente as
fronteiras territoriais, mas também a determinação precisa
de certos direitos, como, por exemplo, os direitos de pesca,
de caça, de navegação, etc. As fronteiras entre os cidadãos
tornam-se para os Estados fronteiras do Estado.

§ 9

Ambos os Estados são completamente iguais entre si


neste contrato. Aquilo que um deles faz para proteger de
danos os cidadãos do outro Estado, deve também este fazê-
-lo em relação aos cidadãos do primeiro; as leis que cada

449
um estabelece a este respeito deve também o outro estabe-
lecê-las. Mas nenhum dos Estados está obrigado a usar de
maior diligência do que o outro usa em relação a ele. Por
conseguinte, é muito bem possível que num Estado os
direitos dos concidadãos estejam mais protegidos do que
os direitos dos estrangeiros, porque, eventualmente, o outro
Estado não se prestou, pelo seu lado, a uma proteção mais
escrupulosa; é mesmo possível que a propriedade dos
estrangeiros originários de um Estado vizinho esteja mais
156 protegida do que a dos estrangeiros procedentes de um
outro Estado, porque o primeiro Estado demonstra também
pelo seu lado um maior empenho. A relação no seu con-
junto baseia-se exclusivamente no ajuste entre os Estados.

§ 10

Por este contrato, os Estados nele envolvidos obtêm o


direito a uma supervisão recíproca, a fim de verificarem se
em cada um deles se procede em conformidade a este con-
trato e se são postas em prática as leis elaboradas na sequên-
cia deste contrato. A razão para que assim seja é fácil de
descortinar. O contrato só obriga na medida em que ambas
as partes lhe dão cumprimento, pelo que ambas têm de
saber se o contrato está a ser respeitado pela outra parte
para, nessa base, poder ajuizar sobre a sua própria obrigação.
Tal supervisão só pode ter lugar no seio do próprio
Estado que está sob observação. Para exercer essa supervi-
são, os Estados devem enviar reciprocamente um ao outro
emissários diplomáticos. Pode, de resto, acontecer que para
a celebração do contrato que acabamos de descrever ou de
qualquer outro contrato em especial sejam enviados emissá-
rios de um Estado ao outro Estado; mas a sua missão tem
um carácter que é, por um lado, temporário e, por outro,

450
incidental (tais delegações são denominadas mtssoes espe-
ciais) (44) . A natureza verdadeira e originária de um represen-
tante permanente (embaixador residente, chargé d'affaires)
consiste em manter o co ntrolo sobre se o Estado a que é
enviado satisfaz as suas obrigações para com o Estado que
o nomeou; eventualmente, em recordar ao Estado a que é
enviado o dever que lhe incumbe e exigir atuações con-
formes ao contrato. Mas não lhe é permitido imiscuir-se
nos ass untos internos domés ticos do Estado a que foi
enviado; porque o Estado qu e o nomeou também não o
pode fazer.

§ 11

Dado que o emtssano diplomático exerce, num cerro


sentido, uma supervisão sobre o Estado a que é enviado,
não pode depender deste Estado; caso contrário, dever-lhe-
-ia obediência e por causa da obediência que lhe era
imposta poderia frustrar-se o objetivo d a sua missão.
Enquanto se mantiver dentro dos limites da sua função de
emissário, encontra-se submetido unicamente à autoridade
do Estado que o nomeou e só este é que tem jurisdição
sobre ele. O emissário diplomático é, por conseguinte, 157
sagrado e inviolável para o Estado a que é enviado; repre-
senta o seu próprio Estado independente. (Ao emissário
diplomático é concedida isenção legal de todas as imposi-
ções fiscais: as imposições fiscais são uma contribuição para
o poder de proteção do Estado; mas o emissário diplomá-
tico não é cidadão des te Estado. Que um emissário diplo-
m ático alargue esta isenção de natureza pessoal e se sirva
dela para fazer contrabando é algo tão indigno e vil que
não é razoável pressupor a sua possibilidade nos contratos
que os Estados celebram entre si .)

451
Se o emissano diplomático ultrapassar os limites da
sua missão, seja por tentar adquirir influência nos assuntos
domésticos, seja por incitar desordens através de aros crimi-
nosos, então o Estado a que é enviado adquire o direito
não de se tornar no seu juiz, porque ele nunca se submeteu
às leis desse Estado, mas de o enviar de volta e de pretender
compensação por parte do Estado que o nomeou.

§ 12

Desde que o contrato entre ambos os Estados seja


claro e preciso - é muito fácil chegar a uma formulação
precisa, dado que não pode nunca compreender uma
grande quantidade de objetos, pelo que uma falta de deter-
minação poria, desde logo, a nu uma vontade maléfica, que
busca um pretexto para futuras guerras -, não é fácil ou
não é mesmo possível que se cometa uma injustiça por
erro, podendo então com grande probabilidade concluir-se
que foi por má vontade. Mas, seja como for, a violação do
contrato dá direito a guerra, tal como a recusa do reconhe-
cimento. Em ambos os casos, o Estado ao qual se vai fazer
guerra mostra que não é possível uma relação legal com ele,
que ele não tem, portanto, quaisquer direitos que sejam.

§ 13
I
O direito de guerra, como todo o direito de coação, é,
como vimos anteriormente (§ 8 III) , infinito. O Estado ao
qual se faz guerra não tem direitos, porque não quer reco-
158 nhecer os direitos do Estado que lhe faz guerra. - Mais
tarde, talvez venha a pedir a paz e venha a oferecer-se para
daí em diante ser justo. Mas como é que o Estado que lhe

452
faz guerra pode ser convencido da sua seriedade e que ele
não quer apenas aguardar uma melhor oportunidade para o
esmagar? Que garantia é que pode dar-lhe de que não é
assim? - Ora, o fim natural da guerra é sempre o aniquila-
mento do Estado ao qual se foz guerra, isto é, a subjugação
dos seus cidadãos. - Pode muito bem suceder que, por
vezes, seja negociada a paz (na verdade, só um cessar-fogo),
porque um dos Estados ou os dois esgotaram as suas forças;
mas a desconfiança recíproca subsiste e o objetivo da subju-
gação continua a existir igualmente para ambos.

§ 14

Só a força armada dos Estados beligerantes é que faz a


guerra; não os cidadãos desarmados, contra os quais não é
travada. A parte do território do Estado que as suas tropas
já não conseguem proteger converte-se numa aquisição do
conquistador, uma vez que o fim da guerra é a submissão
do Estado que se combate; e o conquistador não pode
saquear os seus novos cidadãos nem assolar a sua possessão
sem agir de modo completamente contrário ao fim e à
razão e, portanto, contrário ao Direito (de guerra). Logo
que tenha expulso aqueles que defendem com armas o pais,
os desarmados passam a ser seus súbditos. Mas a parte do
território que as tropas do Estado vencido ainda protegem
não está submetida ao Estado atacante. Este não pode
devastar o território submetido, porque isso seria contrário
aos seus próprios fins; mas devastar a parte do território
que não lhe está submetida é fisicamente impossível. - A
maneira habitual de fazer a guerra é, de facto, contrária à
razão e bárbara. O conquistador devasta as províncias con-
quistadas, no afã de levar de lá tanto quanto seja possível e
deixando ao inimigo o menos possível. Não está, portanto,

453
a fazer contas de as conservar. Mas, se é assim, qual é
então a verdadeira razão para ele fazer a guerra?
Do mesmo modo, o soldado desarmado já não e Ini-
migo, mas súbdito. O facto de ele, entre nós, se tornar pri-
sioneiro de guerra, para ser trocado por outros prisioneiros
de guerra, é uma instituição arbitrária da nossa política
recente, que pensa já nos tempos em que vai voltar a entrar
em negociações com o tntmigo e que não tem nas guerras
nenhum objetivo que valha a pena e que se baste a si pró-
pno.
O objetivo de uma campanha militar não é, de modo
algum, o de matar, mas simplesmente o de expulsar e
159 desarmar aqueles que estão em armas a proteger os cidadãos
e o seu país. No combate corpo a corpo, em que um
homem se vê frente a outro homem, um deles mata o
adversário, para que este não o mate a ele; fá-lo em virtude
do seu direito próprio de autoconservação, mas não em vir-
tude de um direito de matar que lhe é conferido pelo seu
Estado; Estado que não tem esse direito e que, por isso, não
o pode conceder. Mesmo a maneira moderna de fazer a
guerra, com canhões e outras armas de fogo, pode ser vista
assim. A finalidade não é matar com as balas, mas apenas
manter o inimigo afastado das áreas em que elas caem. Se o
inimigo, mesmo assim, vai para esses lugares, é culpa sua se
é atingido por uma bala que não estava diretamente diri-
gida a ele. (De acordo com a razão, devia advertir-se pri-
meiro o inimigo de que se vai abrir fogo contra uma posi-
ção se ele não a abandonar voluntariamente, tal como se
convida primeiro as fortalezas a renderem-se, antes de se
abrir fogo contra elas.) A única coisa que na nossa maneira
moderna de fazer a guerra é absolutamente ilícita são os
atiradores de elite, que se acoitam na espessura das matas e,
a sangue frio e em segurança, apontam a um homem como
se este fosse um alvo. Para estes, a finalidade é o assassinato.

454
(O seu uso pela primeira vez contra nações civilizadas- por
parte da casa de Áustria contra a Prússia - também susci-
tou, efetivamente, a indignação geral da Europa. Agora
habi tuámo-nos a este prática e seguimo-la; por pouca honra
que isso nos dê.)

§ 15

O Estado agredido tem, como vimos, pleno direito a


fazer guerra ao Estado injusto até o ter eliminado como
Estado independente e ter unido a si os seus súbditos; a
guerra seria, então, um meio seguro e totalmente legítimo
de assegurar a legalidade nas relações entre os Estados,
desde que se pudesse encontrar um meio pelo qual o Estado
que tem a causa justa pelo seu lado fosse sempre o ven-
cedor e o mais poderoso. Mas, dado que também entre os
Estados não é quem tem razão quem tem mais poder, por
intermédio da guerra poderia ser a injustiça, tanto ou mais
que o Direito, que acabaria por ser promovida.
Mas a guerra continua a ser o único meio de coagir
um Estado: haveria, por conseguinte, que refletir sobre a
forma de organizar as coisas de modo a que fosse a causa
justa sempre a vencedora e a mais poderosa. - A força
resulta da quantidade; portanto , vários Estado deveriam
aliar-se co m o intuito de afirmar uma relação jurídica entre
eles e atacar o Estado injusto apoiados na sua força unida.
- Não é fácil pôr em dúvida que, por essa via, nasceria uma 160
potênci a sempre vitoriosa, mas há uma questão mais
importante ainda: como é que se pode conseguir que esta
união de Estados se pronuncie sempre a favor daquilo que
é justo?
Vou começar por aprofundar esta ideia.

455
§ 16

Vários Estados unem-se e garantem uns aos outros, e


mesmo a qualquer Estado que não faz parte da aliança, a
sua independência e a inviolabilidade do contrato que
acaba de ser descrito. A fórmula desta confederação seria a
seguinte: todos nós prometemos exterminar, com base na
união das nossas forças, o Estado, mesmo que faça parte da
confederação, que não reconheça a independência de um
de nós ou que venha a romper o contrato existente entre
ele e um de nós.
Chamo a isto a fórmula de uma confoderação, pois,
aquilo que descrevemos seria uma liga de povos, não um
Estado de povos. A diferença baseia-se no seguinte: o indiví-
duo pode ser coagido a entrar no Estado, pois, caso contrá-
rio, não é de todo possível estabelecer com ele uma relação
jurídica. Mas nenhum Estado pode ser coagido a entrar
nesta confederação, pois pode também achar-se numa rela-
ção jurídica fora dela. O Estado estabelece uma relação
jurídica com os Estados vizinhos pelo mero facto de os
reconhecer e celebrar com eles o contrato acima descrito :
nenhum Estado tem o direito de coagir outro Estado para
que este lhe proporcione proteção positiva. - Trata-se, pois,
de uma associação voluntária, que, de modo algum pode
vir a ser fundada por coação, e uma tal associação chama-se
uma confederação.

§ 17

A questão de se a independência de um Estado é reco-


nhecida ou não resolve-se imediatamente com base no facto
de se o outro Estado se compromete com ele no contrato
acima descrito: se o fez, reconheceu-a; se recusa fazê-lo, não

456
a quer reconhecer. Sobre esta circunstância não pode a con-
federação equivocar-se no seu veredicto. - Mas a confedera-
ção não pode emitir consciente e voluntariamente um juízo
injusto, sem que o mundo inteiro veja que é injusto; e, em
todo o caso, deve poder contar-se, esperemos, com um
mínimo de pudor da sua parte. A resposta à questão de se
o contrato é ou não cumprido depende, por um lado, da
plausibilidade do facto alegado como prova e, por outro, 161
dos termos do contrato. Em primeiro lugar, no que diz res-
peito ao primeiro ponto, todos os Estados devem, em vir-
tude do direito de cidadania, proceder com publicidade;
portanto, deve poder apurar-se se, efetivamente, algo acon-
teceu ou não. O Estado acusado de uma omissão tem de
produzir prova positiva de que teve lugar aquilo que se lhe
exigia, por exemplo, que um criminoso foi punido ou um
dano reparado, etc., devendo assim, certamente, poder
tirar-se algo a limpo. Se um Estado não quisesse compare-
cer perante o tribunal da confederação, renunciaria deste
modo à sua causa e haveria que proceder contra ele. - Um
Estado que não pertencesse à confederação poderia, por
exemplo, dizer: que me importa este tribunal? Não é o meu
juiz. Ao que devia responder-se que, em virtude do con-
trato, é, não obstante, responsável perante a outra parte. Se
a outra parte se faz agora substituir pelo tribunal da confe-
deração, tem, sem dúvida, pleno direito de o fazer.
No que se refere ao teor do contrato, é à confederação
que passa a caber o direito de aferir em última instância
sobre a clareza e precisão do contrato, uma vez que é com
base nele que a confederação deve julgar. Todos os contra-
tos com os Estados confederados é com a sua garantia que
devem ser celebrados . A confederação não pode tolerar a
imprecisão destes contratos, pois é com base neles que deve
administrar a justiça entre as partes em conflito. - É por
essa via que fica assegurada a sua própria legitimidade.

457
A confederação não pode julgar injustamente sem que
todos vejam que assim é. - Considere-se , além disso ,
que estes diversos Estados, divididos nos seus interesses par-
ticulares, não podem ter nenhum interesse comum em pro-
ceder injustamente. Uma sentença injusta oferece um
exemplo contra eles próprios. Será de acordo com os prin-
cípios com que eles julgam os outros que eles próprios
virão a ser julgados.

§ 18

A confederação há de poder proceder à execução das


suas sentenças. Isto consegue-se, como se depreende clara-
mente do que foi dito acima, por via de uma guerra de ani-
quilamento contra o Estado condenado pelo tribunal da
confederação. A confederação deve estar, por conseguinte,
armada. Poderia colocar-se a questão de se deve ser reunido
um exército da confederação permanente ou se só em efe-
tivo caso de guerra deve ser reunido um exército executivo,
com base nas contribuições dos Estados confederados.
Dado que o caso de guerra, esperemos, se apresentará rara-
mente e que no futuro não há de vir a apresentar-se nunca
mais, eu inclinar-me-ia para a segunda opção: pois, que
sentido faz um exército confederal permanente, pressu-
162 pondo que ele, na maior parte do tempo, vai ter de estar
inativo?

§ 19

Mas, dir-se-á, não foi ainda demonstrada a absoluta


impossibilidade de que a confederação dos povos pronuncie
um veredito injusto. Isto é impossível de demonstrar, do

458
mesmo modo que não pode demonstrar-se no Direito polí-
tico a impossibilidade absoluta de um veredito injusto por
parte do povo reunido em assembleia. Enquanto não apare-
cer à face da terra a razão pura em pessoa e ela não vier a
assumir a função de juiz, deve haver sempre um juiz de
última instância, que, pelo facto de ser finito , pode enga-
nar-se ou pode ter uma vontade maléfica; a tarefa consiste
apenas em encontrar alguém em relação a quem isto seja o
menos possível de recear: esse alguém é, no que toca à rela-
ção civil, a nação; no que toca à relação entre os Estados, é
a confederação de povos que descrevemos.

§ 20

À medida que esta confederação se vai alargando e,


a pouco e pouco, abarcando a terra por inteiro, sobrevém a
paz perpétua, que é a única relação legítima entre os Esta-
dos, pois a guerra, ao ser conduzida por Estados que são
juízes em causa própria, pode fazer triunfar tão facilmente a
injustiça como o Direito; ou, mesmo que a condução da
guerra esteja sob a direção de uma confederação de povos
justa, ela não é senão o meio para o atingimento de um
fim, o da manutenção da paz: mas nunca o fim último em
SI mesmo.

459
II. DO DIREITO COSMOPOLITA

§ 21

Todo o cidadão tem o direito a prosseguir as suas pró-


prias atividades em qualquer ponto do território do Estado.
Este direito faz parte dos direitos civis que lhe estão garan-
tidos pelo contrato social. O emissário diplomático do
Estado estrangeiro tem direito, em virtude do contrato
entre os dois Estados, a vir ao país do seu destino, a viajar
através dele e a dirigir-se a todos os locais onde o seu cargo
lhe exigir. Tem direito a prosseguir o seu objetivo, a super- 163
visão do cumprimento das prestações decorrentes do con-
trato, e, por conseguinte, tem também direito aos meios
para esse fim. O emissário diplomático apresenta as suas
credenciais de plenos poderes na fronteira e constitui então
dever do Estado a que é enviado permitir-lhe a entrada. A
sua rejeição incondicional como emissário diplomático - se
não houver razões particulares de insatisfação com a sua
pessoa e se o Estado que rejeita não declarar ao Estado
acreditante que aceitaria de bom grado uma outra pessoa -
daria fundamento a um direito à guerra. Pessoas individuais
procedentes de um Estado reconhecido e amigo deslocam-
-se a um outro Estado, seja pelos seus assuntos pessoais,
seja simplesmente por prazer. Neste caso, julga-se em con-
formidade aos contratos vigentes. Se ambos os Estados
garantiram um ao outro a segurança dos seus respetivos

461
cidadãos, inclusivamente quando se deslocam ao terntono
do outro Estado, o cidadão encontra-se, assim, seguro, gra-
ças a este contrato. Que é um cidadão deste Estado em par-
ticular prova-o mostrando o seu passaporte na fronteira.
Mas se entra no território do Estado um estrangeiro
que não foi enviado por um Estado aliado nem tem direito
a fazê-lo em resultado de um contrato celebrado com esse
Estado, o que é legítimo fazer? Esta é a única questão jurí-
dica ainda pendente, questão a que tem de responder o
Direito cosmopolita.

§ 22

Todos os direitos positivos, ou seja, os direitos a algo,


fundam-se num contrato. Ora, este estrangeiro recém-
chegado não tem a seu favor qualquer contrato que seja
com o Estado que está a visitar; nem um contrato que
tenha celebrado pessoalmente, nem um contrato que possa
invocar que tenha sido celebrado a seu favor pelo Estado de
que é originário; dado que, de acordo com a nossa pressu-
posição, ele ou não é de nenhum Estado ou o Estado que
ele está a visitar não conhece o seu Estado e não tem com
ele qualquer contrato. Está ele desprovido de direitos ou
tem ele, apesar de tudo, direitos e, se os tem, quais e com
que fundamentos? - Tem o direito do homem originário,
que precede todos os contratos jurídicos e que só ele é que
torna possíveis: o direito a pressupor que todas as pessoas
podem estabelecer com ele, mediante contratos, uma relação
jurídica. É este e só este o verdadeiro direito do homem
que cabe ao homem enquanto homem: a possibilidade de
adquirir direitos. Esta possibilidade, mas unicamente ela,
deve caber a qualquer um, desde que a não tenha feito
expressamente precludir por via dos seus aros. - Isto torna-

462
-se, porventura, mais claro por meio de contrastação. Por
exemplo, se um Estado denuncia o contrato de cidadania
em relação a um determinado cidadão, este perde todos os
direitos positivos que adquiriu po r meio desse contrato ; 164
mas ele não perde apenas esses direitos, mas também o
direito a adquirir direitos nesta sociedade, porque já
demonstrou a sua impossibilidade absoluta de estabelecer
uma relação jurídica com o Estado. O recém-chegado tem
tão poucos direitos positivos como o primeiro; mas tem ,
isso sim, o direito de exigir que se admita a possibilidade
de entrar com ele numa relação jurídica.
Deste direito decorre o direito de entrar no território
do Estado estrangeiro; pois quem tem o direito ao fim tem
também o direito aos meios; mas ele não pode tentar entrar
numa relação jurídica com este Estado sem vir ao encontro
dele no seu território e sem lhe propor o estabelecimento
de uma conexão com ele.
É neste direito de circular livremente sobre a superfície
da terra e de se propor estabelecer uma conexão jurídica
que se consubstancia o direito de simples cidadão do
mundo.

§ 23

O fundamento do direito do estrangetro recém-che-


gado para entrar no território do Estado era o seu direito
de procurar e de solicitar entrar em relação com os cida-
dãos deste Estado. Antes do mais, o Estado que é visitado
tem, pois, o direito de perguntar ao estrangeiro o que é que
ele quer e obrigá-lo a explicar-se sobre isso. Se ele não se
explica, desaparece o fundamento do direito e ele deve ser
exp ulso para fora das fronteiras do território. - O mesmo
acontece se ele oferece explicações, mas a sua solicitação

463
não é aceite, extinguindo-se então o fundamento do seu
direito e sendo ele, legitimamente, remetido para fora das
fronteiras. No entanto, isto deve levar-se a cabo sem pôr
em causa a sua integridade física. Pois resta-lhe a possibili-
dade de entrar em relação com um outro Estado, depois de
as coisas terem falhado com este. Fazê-lo é o seu pleno
direito, que não lhe pode ser negado.

§ 24

Se a sua solicitação é aceite, ele passa a estar a partir


desse momento diretamente (a título pessoal, sem que do
seu lado se interponha nenhum Estado) numa relação con-
tratual com este Estado e os direitos respetivos de ambas as
partes são determinados por este contrato. Em primeiro
lugar, ele já reconheceu este Estado como um sujeito jurí-
165 clico e, por conseguinte, também os direitos de propriedade
dos seus cidadãos individuais. Não necessita de prometer
isto expressamente, pois este reconhecimento decorre dire-
tamente da celebração do contrato. Ele fica submetido às
restantes leis do Estado simplesmente pelo facto de se ter
submetido ao contrato.
Além disso, este Estado passa a ser necessariamente o
seu juiz; pois, uma vez que nenhum outro Estado se inter-
pôs em seu lugar, como acontece no caso dos emissários
diplomáticos, não há outro juiz que possa julgar sobre os
assuntos do seu interesse. Por mais incómoda que esta cir-
cunstância lhe possa parecer, ele deve submeter-se a ela,
pois é uma circunstância inevitável.

464
NOTAS DO TRADUTOR
NOTAS

(I) Fichre visa aqui as posições de Carl C hristian Erhard Schmid (1 76 1-


- 1812), expressas, sobretudo, em «Bruchsrücke aus ei ner Schrifr über die
Philosophie und ihre Prinzipien>> [Fragmentos de um escriro sobre a filosofia
e os seus princípios], arrigo publicado no número de fevereiro de 1796 do
Philosophisches journal einer Gesellschaft Teutscher Gelehrten, revisra filosófica
que rinha sido fundada em )ena, em 1795, por Friedrich lmmanuel Nie-
rhammer (1766-1848) e de que Fichre viria a ser co-ediror. Os argumentos
de Fichre sobre a incapacidade de Schmid para compreender a verdadeira
narureza do mérodo transcendental, a que ele alude nesra nora, são desen-
volvidos em «Yergleichung des Herrn Prof. Schmid aufgesreUren Sysrems
mir der Wissenschafrslehre» [Co mparação do sis rema ap resentado pelo
senhor Prof. Schmid e a doutrina da ciência], arrigo publicado rambém no
Philosophisches journa~ por alruras da Páscoa de 1796.
Nes re arrigo, Fichre uriliza co nrra Schmid uma linguagem cá usrica,
concluindo co m a afirmação da inexistência des re como auror filo sófico.
Schmid tinha adquirido a sua reputação, sobretudo, co m as várias obras de
divulgação da fil osofi a kanriana que publicou: em 1786, rinha apresentado
Kritik der reinen Vernunft im Gnmdrisse zu Vorlesungen nebst einen Worter-
buch z um leichtern Gebrauch der Kantischen Schriften [Co mpêndio para
lições da Crfrica da Razão Pura, juntamente com um dicionário para um
uso mais fáci l dos escriros de Kant]; logo a seguir, publica duas apresenta-
ções populares da filosofia prárica de Kant: em 1790, Versuch einer Moral-
philosophie [Ensaio de Filosofia Moral]; em 1793, Grundriss der Moralphilo-
sophie [Compêndio de Filosofia Moral]. Fichre acreditava, como confessava
numa carra a Go rclieb Hufeland (1 760- 18 17), de 8 de março de 1794, rer
caprado com muiro maior profundidade o espíriro da filosofia kantiana do
que o rinha fe iro Schmid.

467
(2) Apesar da recensão ter aparecido, em fevereiro de 1795, nos Annalen der
Philosophie und des philosophischen Geistes, sem indicação do nome do autor,
é de Jakob Sigismund Beck (1 761-1840) que se trata. Beck era um dos mais
notáveis discípulos de Kant, a quem se deve uma exposição pormenorizada
e original da filosofia crítica (em 3 volumes), Erliiuternder Auszug aus den
kritischen Schriften des Herrn Prof Kant, auf Anrathen desselben [Resumo
Explicativo dos Escritos Críticos do Senhor Prof. Kant, a instâncias do
mesmo], exposição que foi publicada entre 1793 e 1796.

(3) Fichte está a referir-se a Carl Christian Erhard Schmid, Grundrif des
Naturrechts. Für Vorlesungen [Compêndio de Lições de Direito Natural],
Francoforte e Leipzig, 1795, maxime §94. Schmid adverte, no prefácio a
este livro, contra as consequências sociais e políticas nefastas de certas inova-
ções em filosofia, não sendo difícil entrever que era Fichte que Schmid
tinha em mente. Tais insinuações conduziram Fichte a publicar uma << Decla-
ração >> no Allgemeine Literatur-Zeitung, de Jena, de 14 de novembro de
1795, a que Schmid entendeu por bem responder com uma <<Contra-Decla-
ração», publicada no mesmo periódico a 12 de dezembro de 1795. Estas
querelas político-ideológicas não podiam deixar de acicatar a rivalidade filo-
sófica que existia entre os dois autores e o clima de animosidade pessoal que
entre eles se estabeleceu.

(4) As Vorlesungen über die Bestimmung des Gelehrten -existe tradução em


língua portuguesa, Lições sobre a Vocação do Sábio, a cargo de Artur Morão,
Lisboa, 1999 - , publicadas em Jena em setembro de 1794, correspondem às
preleções feitas nesse ano à comunidade universitária de Jena e procuram
divulgar o seu sistema de filosofia a um público alargado.

(5) Johann Benjamim Erhard (1766-1827) teve uma influência não despi-
cienda na consolidação de algumas das teses expostas em Fundamento do
Direito Natural segundo os Principias da Doutrina da Ciência, nomeadamente
a autonomia do Direito face à Moral e a teorização sobre o direito de pro-
priedade. Os escritos de Erhard a que Fichte faz aqui alusão são, para além
de <<Apologie des Teufels», publicado no Philosophisches journal einer Gesells-
chaft Teutscher Gelehrten, em 1795, <<Ueber das Recht des Volks zu einer
Revolurion » e << Beitrage zur Theorie der Gesetzgebung», publicados no
mesmo ano, no mesmo periódico ; e, porventura, também << Die Idee der
Gerechtigkeit ais Princip einer Gesetzgebung>>, publicado nesse mesmo ano
na revista Die Horen, dirigida por Friedrich Schiller (1 759-1805).

468
(6) Fichte refe re-se ao artigo de Salomon Maimon (1 754-1800), publicado
no Philosophisches journal einer Gesellschaft Teutscher Gelehrten I (1 795) e
intirulado «Ueber die ersten Gründen des Naturrechts>> . Fichte tinha Mai-
mon em grande consideração e o desenvolvimento da Doutrina da C iência
fichteana é, em grande medida, devedor da reinterpretação da filosofia kan-
ti ana levada a cabo por Maimon, mormente em Streifreien im Gebiet der
Philosophie (1 793) .

(7) O escrito de Kant, Para a Paz Perpétua, dado à estampa em 1795, foi
objeto de rece nsão por Fichte, publicada no Philosophisches Journal einer
Gesellschaft Teutscher Gelehrten, nos in lcios de 1796.

(8) Fichte refere-se ao Traité pour rendre la Paix p erpétuelle en Europe


(1 7 15), de C harles lrénée Castel de Saint Pierre (1658-1743) e às observa-
ções críticas a esse texto contidas no Extrait du projet de paix p erpétuelle de
Momieur l'Abbé de Saint Pierre (1761) , da autoria de Jean-Jacques Rousseau
(1712-1 778).

(9) Se Fichte tivesse esperado alguns meses mais, até à publicação, em


janeiro de 1797, da primeira parte de A Metafisica dos Costumes, os Princí-
pios Metafisicas da Doutrina do Direito, poderia ter uma visão mais porme-
norizada do modo como Kant procede à "dedução" do co nceito de Direito.
Mais pormenorizada, mas não de molde a afastar dúvidas e perplexidades.
Na "Introdução à Doutrina do Direito", Kant refere que o Direito tem que
ver apenas co m a relação formal de cada um com a liberdade de ação de ter-
ceiros e, tanto na "dedução" transcendental do co nceito de posse (Besitz)
como na "construção" do conceito de Direito por via da coerção recíproca
(§ E da "Introdução à Doutrina do Direito"), explicita esse modo de "dedu-
ção" - o que representaria, no essencial, uma coincidência com as posições
de Fichte. Mas na "Introdução à Doutrina da Virtude", na segunda pane de
A M etafisica dos Costumes, os Principias Metafisicas da Doutrina da Virtude,
torna claro que rodos os deveres, quer os deveres jurídicos quer os deve res
de virtude, devem ser derivados com base num único princípio da morali-
dade objetivamente válido, o imperativo categórico. Por isso, a "dedução" do
co nceito de Direito com base numa lei permissiva não pode ser atribuída
a Kant: mas pode, isso si m, se r imputada a um co njunto de seguidores de
Kant, como Gottlieb Hufeland (1760-1817), Karl Leonhard Reinhold
(1 758- 1823), Salo mon Maimon (1 754- 1800) e, claro está, a Fichte (1 762-
- 1814).

469
(lO) Fichte entende por "democracia" o sistema político em que o povo
exerce diretamente o poder executivo e, assim, tal como Kant o faz, consi-
dera a democracia uma forma de "despotismo".

(11) Na falta de melhor equivalência, traduzimos por "ação" o termo


" Tathandlung' , uma das noções centrais da Doutrina da Ciência de Fichte.
No § 1 de Grundlage der gesammten Wissenschaftslehre (1 794), quando, em
obediência à intenção sistemática da sua filosofia, se lança na busca do prin-
cípio primordial, do princípio primeiro absolutamente incondicionado de
todo o co nhecimento humano, acaba por o encontrar na noção de " Tathan-
dlung': não é um "facto" empírico da consciência, "mas está na base de toda
a co nsciência e só ela é que a torna possível " (sondern vielmehr aliem
Bewfutsein zum Grunde liegt, und allein es moglich macht). É um termo cen-
tral do vocabulário filosófico de Fichte, que ele usa para exprimir a unidade
sintética originária da autoco nsciência, co mo noção de base da filosofia
transcendental.

(12) No livro David Hume über den Glaubm oder Idealismus und &alismus,
Ein Gespriich, Breslau, 1787, Friedrich Heinrich Jacobi (1743-1819) expu-
nha que os conceitos de causa e efeito, bem como as nossas representações
do tempo, dependiam da nossa relação com o mundo e não podiam, como
Kant pretendia na Crítica da Razão Pura, ser explanados somente com base
na razão teórica.

(13) Fichte confronta-se aqui, de novo (cf. supra, nota 1), com a filosofia de
Carl Christian Erhard Schmid (1761-1812), cuja Empirische Psychologie
(1791) dava curso a uma interpretação psicologista de Kant. No escrito
«Bruchstücke aus einer Schrift über die Philosophie und ihrer Prinzipien•,
publicado no Philosophisches }ournal einer Gesel/schaft Teutscher Gelehrten, em
fevereiro de 1796, Schmid procede à interpretação da vontade, do enten-
dimento, da razão e dos fenómenos da consciência como "factos da cons-
ciência" ( Tatsachen des Bewuj?tseins) . É contra esta interpretação empirista e
psicologista que Fichte propõe vincar o ponto de vista da filosofia transcen-
dental, sublinhando a "espontaneidade" ou carácter ativo do suj eito trans-
cendental, que se reflete na noção de "Tathandlung' - por contraposição a
" Tatsache". A confrontação global com a filosofia de Schmid é levada a cabo
por Fichte no escrito <Nergleich ung des von Herrn Prof. Schmid aufgestell-
ten Systems mit der Wissenschaftslehre», que veio a ser também publicado
no Philosophisches journal, por alturas da Páscoa de 1796.

470
(14) "Amtojr, qu e aqui traduzimos por "embate', é um termo que Fichte
utiliza pa ra significa r a oposição à, de outro modo ilimitada, atividade de
autoposição do sujeito. No fin aJ da "Segunda Parte" (1 795) de Grundlage
der gesammten Wissemchaftslehre, rel ativa ao "Fu ndamento do conhecimento
teórico", Fichte dá nota de que a rep rese ntação é impossível sem este
"embate" (Amtojf) de aJgo que é exterior ao Eu e que é, portan to, irredutível
à "espontaneidade" do suj eito.

(15) A argum entação de Fichte sobre co mo podem os efeitos no mundo


sensível ser reco nduzidos a conceitos segue a exposição que Kant, na Critica
da Faculdade do j uízo (1 790), faz da faculdade do juíw co mo faculdade de
pensar o particular co mo contido no universaJ e apoia-se na distinção kan-
tiana entre "faculdade do juíw determ inante" e "faculdade do juíw refle-
xiva" - na primeira, o universaJ é dado e o particular é nele subsumido pela
fac uldade do julw; na segunda, o particular é dado e a fac uldade de juíro
deve enco ntrar para ele o unive rsal: cf. Kant, Crítica da Faculdade do
juízo, XXVI.

(1 6) Fichte refere-se ao livro Génesis, do Antigo Testamento.

( 17) Fichte está aqui a remeter para Gnmdlage der gesammten Wissemchafts-
lehre, § 2.

(18) Apesar de pretender o co ntrário, Fichte afas ta-se aqui do modo co mo


Kant co ncebe a intuição empírica, na "Es tética TranscendentaJ" da Critica
da Razão Pura, em que Kant afirma qu e a intuição "apenas se verifica
na medida em que o objecto nos fo r dado", o que só é possível "se o objeto
afttar o espirito de certa maneird' (B 34) . Em rel ação a Kant, Fichte radica-
liza a função co nstituinte originária do Eu, dando origem a um ideaJismo
integraJ.

(19) O sublinh ar do carácter absolutamente ativo do Eu, da "espontanei-


dade" absoluta do sujeito transce nd entaJ, co nstitui a nota essenciaJ da Dou-
trin a da C iência de Fichte relativa men te à doutrin a da "experiência" que
Kant apresenta na Critica da Razão Pura. Fichte es tá aqui remeter para o
modo co mo Kant co ncebe a "sfntese produtiva da imaginação": cf. Kant, Crí-
tica da Razão Pura, A 11 8 e segs.

47 1
{20) Fichte refere aqui um a das form ulações do imperativo categórico, que
Kant enuncia no § 7 da Crítica da Razão Prática, co mo " lei fondamental da
razão p rática purd'.

{2 1) Plínio, o Velho {23-79), Natura/is historia, liber VI I.

{22) Para mui tos dos auto res do D ireito natural co ntemporâneos de Kant e
que se inspiravam na sua filosofia, a natureza relacional do Direito implicava
a "dedu ção" do se u co nceito como problema de coo rdenação das esferas
do "arbítrio" individual . Sendo o problema do Direito o da circunscrição do
âmbi to das ações possíve is pela liberdade, a catego ri a normativa fund a-
mental da ciência do D ireito natu ral seria a "permissão" (Erlaubnis). Esta
linha de pensamento é dese nvolvida, co m di fe rentes modulações, po r
autores como Go tclieb Hufeland {1760- 18 17), Versuch über den Grundsatz
des Naturrechts, Leipzig, 1785, T heodor Schmalz {1760- 183 1), Das reine
N aturrecht, 2.a ed., Kõnigsberg, maxime § 24, Karl H einrich H eydenreich
(1 764- 1801 ), System des Naturrechts nach kritischen Princip ien. Erster Theil,
Leipzig, maxime pág. 84 e seg. Karl Leonh ard Reinhold {1758- 1823), na
quinta das suas Cartas sobre a Filosofia Kantiana, publicadas no Der Teutsche
Merkur, em 1786- 1787, segue a mesma linha de raciocínio para fund amen-
tar a es pecific idade do D ireito natu ral em relação à Mo ral . No entanto,
Fichte e es tes auto res equivoca m-se {cf. supra, nota 9) quando pretendem
que Kant se baseia na noção de "permissão" e não na lei fund am ental da
razão prá ti ca pura, o imperativo categó rico, para "deduzir" o co nceito de
Direito.

{23) Fichte remete- nos aqu i, no que à apresentação do método sintético diz
respeito, para Grundlage der gesammten Wissenschaftslehre, § 3. No Funda-
mento do Direito Natural, Fichte reco rre profusamente ao método sintético
que, no essencial , co nsiste no seguin te: começa por tematizar uma co ntradi-
ção {ou um circulo vicioso) rel ati vamente a um certo co njunto de proposi-
ções, procurando em seguida um "principio superior" susceptível de eli mi-
nar (aujheben) a contradição e que não está co ntido no referido conjunto de
proposições, não podendo, portanto, ser derivado analiticamente dele. Uma
"ciência filosófica real'; que não seja, pois, uma "mera filosofia de fórmulas ';
apoia-se neste método sintéti co. É evidente que o método sintéti co de
Fichte an tecipa o método dial éctico de H egel .

472
(24) Fichre recorre aqui à lisra das ca regorias (qua nridade, qualidade, rel a-
ção, modalidade) que Kanr apresenra na "Tábua das Caregorias" da Crítica
da Razão Pura.

(25) Espinosa (1632-1677), Tractatus theologico-politicus, Hamburgo, 1670,


cap. XVl: "Nam certum est naturam absolute consideratam jus summum
habere ad omnia, quae potest, hoc est, jus naturae eo usque se extendere, quo
usque ejus potentia se extendit; naturae mim potentia ipsa Dei potentia est,
qui summum jus ad omnia habet: sed quia universalis potentia totius naturae,
nihil est praeter potentiam omnium individuorum simul, hinc sequitur unum-
quodque individuum jus summum habere ad omnia, quae potest, sive, jus
uniuscuiusque eo usque se extendere, quo usque ejus determinata potentia se
extendit."

(26) Fichre reporra-se ao ensinamenro de Kanr, segundo o qual as leis jurí-


dicas são leis morais que se referem a relações exreri ores enrre arbírrios: o
que é objero do dever jurídico é a ação ex rern a e não a arirude moral inre-
rior. Esra ideia de indiferença peranre a ari rude moral ( Gesinnungsindi/ferenz)
repo rra-se à co nceprualização de C hrisrian Thomasius (1655-1 728), que
refere a obrigação jurídica co mo obligatio externa: cf. Chrisrian T homasius,
Fundamenta juris naturae et gentium, Halle e Lei pzig, 1705 , lib. I, cap. IV,
§ 61 e segs.

(27) Fichre volra a caracrerizar (cf. supra, nora 10) a democracia como um a
form a de desporismo e a defender a necessidade da represenração polírica.
Kanr ap resenrava na sua reoria consrirucional como remédio co nrra o des po-
rismo a divisão dos poderes; Fichre avança, em alrern ariva, co m a insriruição
do "eforaro".

(28) Deve remerer-se aq ui para as explicações que Fichre fornece em Grun-


dlage der gesammten Wissenschaftslehre (1794) sobre o papel produrivo da
"imaginação" (EinbildungskraftJ; no enran ro, a relação enrre indererminação
co nceprual e a "oscilação" (schweben) é aprofundada, so menre, em Wissens-
chaftslehre nova methoda (17961 1799) .

(29) Cf. Jea n-Jacques Rousseau, Du contrat social: Príncipes du droit politi-
que, Amsrerdão, 1762 , liv. I, chap. Vl .

473
(30) Cf, por exemplo, Kant, Critica da Facuúiade do Juízo, § 65 .

(31) Traduzimos aqui "Polizet" por "administração": o sentido iluminista de


"Polizey" alude às tarefas do Estado na prossecução do bem-estar coletivo,
no quadro de uma concepção "eudemonista" sobre os fins do Estado.
O conceito material moderno de "polícia" só foi consolidado na Alemanha
pela juspublidscica liberal dos inícios do século XIX (Aretin, Rorreck, etc.).
f. nesta aceção que, noutros contextos, traduzimos "Polizei" por "policia';
especialmente no § 21.

(32) Lex duodecim tabularum, circa 450 a. C.

(33) O tratamento do ius necessitatis é recorrente nos aurores do Direito


natural profano moderno: cf, por exemplo, Grócio, De jure bel/i ac pacis,
livro II, cap. VI; Gorrfried Achenwall e Johann Stephan Pürrer, E/ementa
Iuris Naturae, Gõrringen, 1750, maxime §§ 205 e segs.; Kant, A Metafisica
dos Costumes (1797), rrad. portuguesa, Lisboa, 2005, pág. 50. A casuística
do naufrágio a que Fichte faz alusão está já presente em Cícero, De Officiis,
III, 89-90.

(34) Dionísio, o jovem, nascido circa 395 a. C., reinou em Siracusa a parcir
de 367 a. C. Vencido em 344 a. C., foi enviado para Corinro, onde se tor-
nou mestre-escola.

(35) Lucius Sergius Catilina (108-62 a. C.). Os acontecimentos referidos


por Fichte tiveram lugar nos finais de 63 a. C.

(36) Marcus Tullius Cicero (106-43 a. C.). Foi banido de Roma no ano
58 a. C., em resultado da execução ilegal dos apoiantes de Catilina.

(37) Ludwig Heinrich Jakob (1 759-1827), professo r de filosofia em Halle e


editor dos Annalen der Philosophie und des philosophischen Geistes, publicação
que era uma espécie de porta-voz do kantismo "ortodoxo". A obra de Jakob
a que Fichte se refere é Philosophische Rechtslehre oder Naturrecht, Halle,
1795 . Fichte critica aqui a defesa da pena de morte por Kant e a sua conce-
ção retributivista da pena criminal.

(38) Cf Kant, A Metafisica dos Costumes, Lisboa: Fundação Calouste Gul-


benkian , 2005, pág. 213.

474
(39) Cesare Bonesano Beccaria (1738-1794), autor de Dei delitti e delle
pene, Livorno, 1764 (existe tradução em língua portuguesa, da autoria de
José Faria e Costa, Dos Delitos ( das Penas, Lisboa: Fundação Calouste Gul-
benkian, 1998). O livro de Beccaria constitui o expoente paradigmático da
humanização do Direito penal promovida pela cultura iluminística.

(40) Fichte faz aqui alusão, entre outros, aos livros Génesis 9: 6 e Pxodo
21: 24, do Antigo Testamento.

(41) Fichte remete para o "Primeiro artigo definitivo para a paz perpétua".
Só que, como assinalam os editores (Reinhard Laurh, Hans Gliwitzky e
Richard Schottky) desta "Segunda Parte ou Direito Natural Aplicado" do
Fundamento do Direito Natural segundo os Princípios da Doutrina da Ciência,
na edição das obras completas de Fichte promovida pela Academia das
Ciências da Baviera, Fichte refere aqui a questão da forma regiminis,
quando, de acordo com a conceptualização e a terminologia de Kant, se
deveria estar a referir à questão da forma imperii (cf. GA I, 4, pág. 81, nota
14, in fine).

(42) Trata-se de uma espécie de papel-moeda que circulou durante o


período da Revolução em França.

(43) Charles de Secondat Montesquieu (1689-1755).

(44) Decidimos por uma tradução não literal de "Ambassaden" por "missões
especiais" , pois pareceu-nos um equivalente mais adequado à terminologia e
ao Direito diplomático da atualidade.

475
CRONOLOGIA
DA VIDA E DA OBRA DE FICHTE
Cronologia da vida e da obra de Johann Gottlieb Fichte
(1762-1814)

1762: Fichte nasce a 19 de maio, em Rammenau, na Saxó-


nia, num meio familiar economicamente carenciado.

1774-1780: Estudos liceais em Pforra. Dada a extrema


pobreza da família de Fichte, a sua educação em Pforta e,
mais tarde, em Wittenberg e Leipzig foi custeada pelo barão
Ernst Haubold von Miltitz (1739-1774) , que tinha ficado
impressionado com a sagacidade e precocidade intelectual
da criança. Falecido o barão, pouco depois de Fichte ter
iniciado os estudos em PForta, em 1774, a sua família con-
tinuou a custear os estudos de Fichte, orientando o jovem
para uma futura carreira eclesiástica.

1780: Estudos de Teologia em Jena e Wittenberg.

1781: Estudos de Teologia em Leipzig.

1784: Vê-se forçado a interromper os estudos de Teologia


em Leipzig, por causa da cessação do patrocínio económico
proporcionado pela família do barão Haubold von Miltitz.

1788-1879: Preceptor em Zurique, na casa do hoteleiro


Amon Ott, lugar para cuja obtenção contou com os présti-

479
mos de um certo Christian Felix WeiíSe (1726-1804), fun-
cionário das Finanças. Tanto Ott como WeiíSe eram mem-
bros da loja maçónica de Zurique Modestia cum Libertate.
Não é, portanto, completamente infundada a reputação de
"jacobinismo" que acompanha Fichte desde os seus tempos
de Zurique.

1790: Apronta Aphorismen über Religion und Deismus [Mo-


rismos sobre a religião e o deísmo]. O escrito evidenciava
algum conhecimento da Crítica da Razão Pura (1781), de
Kant (1724-1804). Numa carta ao seu amigo mais chegado
e anterior colega de estudos em Pforta, Friedrich August
Weisshuhn (1 7 58-1795), de agosto-setembro de 1790,
Fichte dá conta, em tom esfusiante, da profunda impressão
que lhe tinha causado a leitura da Crítica da Razão Prática
(1788), fazendo, igualmente, referências entusiásticas à Crí-
tica da Faculdade do juízo (1790), bem como à réplica de
Kant a Johann August Eberhard (1739-1809), a figura
de proa da reação da escola wolffiana contra a filosofia de
Kant: em volta de Eberhard, professor de metafísica em
Halle, o lugar do nascimento e o bastião do wolffianismo
na Alemanha, agrupavam-se os Popularphilosophen raciona-
listas, que constituíam a expressão filosófica dominante da
Aufkliirung em terras germânicas. Fichte, que até então tinha
estado filosoficamente sob a influência do leibnizianismo-
-wolffianismo, abraça decididamente a filosofia kantiana.

1791: A 4 de julho, trava conhecimento com Kant (1724-


-1804), em Konigsberg. A 18 de agosto, envia a Kant o
manuscrito de Versuch einer Kritik aller 0./fenbarung
[Ensaio de uma Crí rica de toda a Revelação]. Permanece
em Konigsberg até outubro, altura em que as contingências
económicas o forçam a aceitar um lugar de preceptor em
Danzig, onde permanece cerca de um ano.

480
1792: Na primavera, é publicado, em Konigsberg, o Ensaio
de uma Crítica de toda a Revelação, após algumas complica-
ções com a censura prussiana. A obra, publicada anonima-
mente, é inicialmente atribuída ao próprio Kant. A reputa-
ção de Fichte como filósofo afirma-se de imediato. No
outono, é convidado para o mais importante jornal literário
de língua alemã, o Allgemeine Literatur-Zeitung, de Jena.

1793: Publica anonimamente, em Danzig, Zurückforderung


der Denkfreiheit von den Fürsten Europas, die bisher unter-
drückten: Eine Rede [Um Discurso em Reclamação da
Liberdade de Pensamento aos Príncipes da Europa, que até
aqui a Reprimiram] *. O alvo do escrito eram as leis de cen-
sura da Prússia de 1788, que quase impediram a publicação
do Ensaio de uma Crítica de toda a Revelação e que tinham
sido brandidas também contra a publicação da obra de
Kant, A Religião nos Limites da Simples Razão (1793). Fichre
publica, também anonimamente, em Danzig, a primeira
parte de Beitrag zur Berichtigung der Urtheile des Publikums
über die franzosiche Revolution [Contribuição para a correc-
ção dos juízos do público sobre a revolução francesa].
Chega a Zurique, em junho, com a intenção de contrair
casamento com a noiva, Marie Johanne Rahn (1755-1819),
sobrinha do poeta Friedrich Gordieb Klopstock ( 1724-
-1803). O casamento rem lugar a 22 de outubro.
Publica no Allgemeine Literatur-Zeitung, n.0 303 (30 de
outubro), uma recensão do livro de Leonhard Creuzer,
Skeptische Betrachtungen über die Freiheit des Willens [Consi-
derações cépticas sobre a liberdade da vontade], obra prefa-
ciada pelo professor de filosofia de Jena, Carl Christian
Erhard Schmid (1761-1812), à altura o principal divulga-

* Exisre rradução e apresenração desre rexro , a cargo de Artur Morão, Edições


70, Lisboa, 1999.

481
dor da filosofia de Kant; também no Allgemeine Literatur-
-Zeitung, n. 0 304 (31 de outubro), publica uma recensão a
F. H. Gebhard, Ueber die sittliche Güte aus uninteressierten
Wohlwollen. As duas recensões constituem um prenúncio
das linhas gerais da Doutrina da Ciência.
Nos primeiros meses de 1793, Fichte terá aderido à maço-
naria em Danzig.

1794: Na primavera, promove em Zurique uma série de


conferências sobre a filosofia crítica, a convite de Johann
Kaspar Lava ter (17 41-1801) e na casa deste, para um
pequeno círculo de intelectuais. A última conferência desta
série é Über die Würde des Menschen [Sobre a dignidade
humana] , a única que não se perdeu e que restou em forma
escrita. Em maio, Fichte chega a Jena, em cuja universidade
vai suceder na cátedra de filosofia a Karl Leonhard Rei-
nhold (1758-1823), que se tinha transferido para a univer-
sidade de Kiel. Entrementes, em fevereiro de 1794, Fichte
tinha publicado no Allgemeine Literatur-Zeitung uma recen-
são ao livro de Gotclob Ernst Ludwig Schulze (1761-1833),
dado à estampa em 1792 e intitulado Aenesidemus oder über
die Fundamente der von dem Herrn Professor Reinhold in
]ena gelieferten Elementar-Philosophie. Nebst einer Vertheidi-
gung des Skepitizismus gegen die Anmassungen der Vernunft-
kritik [Enesidemo ou sobre os fundamentos da Filosofia
Elementar, publicada em )ena pelo senhor Prof. Reinhold.
Juntamente com uma defesa do cepticismo contra as pre-
sunções da crítica da razão]. O alvo de Schulze era a filoso-
fia transcendental kantiana e a "Filosofia Elementar" de
Reinhold, como nova versão da filosofia kantiana, num
espírito mais sistemático. Já em )ena, Fichte publica Über
den Begriff der Wissenschaftslehre [Sobre o conceito da dou-
trina da ciência] e Einige Vorlesungen über die Bestimmung

482
des Gelehrten [Lições sobre a Vocação do Sábio] *. Em
setembro, promove a edição dos primeiros fascículos de
Grundlage der gesammten Wissenschaftslehre [Funda-
mento da doutrina da ciência completa]; o restante da
obra será impresso em julho/agosto de 1795.

1795: Publica, em janeiro, Über Belebung und Erhohung


der reinen Interesse for Wahrheit [Sobre o estímulo e o acrés-
cimo do interesse puro pela verdade]; na primavera, dá à
estampa Von der Sprachfohigkeit und dem Ursprunge der
Sprache [Sobre a capacidade linguística e a origem da lin-
guagem]. Em julho/agosto, é publicado Grundriss des Eigen-
tümlichen der Wissenschaftslehre in Rücksicht auf das theore-
tische Vermogen [Compêndio do específico da doutrina da
ciência em relação à faculdade teórica] .
Perturbações da vida académica, causadas pela agitação
estudantil, tinham conduzido Fichte a um curto exílio
voluntário em Osmannstadt, aldeia próxima de Weimar,
impedindo-o de lecionar durante o verão de 1795. É neste
período que se entrega à redação de Fundamento do Direito
Natural segundo os Princípios da Doutrina da Ciência, que
pretendia ser a primeira aplicação ou extensão dos princí-
pios do seu sistema filosófico. Regressa a Jena no outono
de 1795.

1796: Publica, em março, a primeira parte de Grundlage


des Naturrechts nach Prinzipien der Wissenschaftslehre [Fun-
damento do Direito Natural segundo os Princípios da Dou-
trina da Ciência]. Entra em polémica com Carl Christian
Erhard Schmid (1761-1812), cujo artigo «Bruchstücke aus
einer Schrift über die Philosophie und ihrer Prinzipien»

* Existe tradução e apresentação deste texto, a cargo de Artur Morão, Edições


70, Lisboa, 1999.

483
[Fragmentos de um escrito sobre a filosofia e os seus prin-
cípios], publicado no Philosophisches journal de fevereiro
desse ano, procurava ser uma retomação crítica de alguns
dos pontos de vista das filosofias de Kant, Reinhold e
Fichte: o escrito de Fichte «Vergleichung des von Herrn
Prof Schmid aufgestellten Systems mit der Wissenschafts-
lehre» [Comparação do sistema apresentado pelo senhor
prof Schmid e a doutrina da ciência], independentemente
de ser um ataque bastante violento a Schmid, constitui
uma apresentação interessante das linhas fundamentais da
Doutrina da Ciência.

1797: Publica, no vol. V do Philosophisches journal einer


Gesellschaft Teutscher Gelehrten, em fevereiro, o artigo
«Annalen des philosophischen Tons» [Anais sobre o tom
filosófico], que deveria ser o primeiro de uma série de
artigos sobre o modo de conduzir os debates em matérias
filosóficas. Apesar de os debates filosóficos serem, à época,
travados num tom apaixo nado , o estilo excessivamente
cáustico de Fichte não deixava de causar alguma incomodi-
dade. O pretexto para o artigo tinha sido uma recensão ao
livro de Fichte, Fundamento do Direito Natura4 publicada
em dezembro de 1796 na revista Gottingische Anzeigen von
gelehrten Sachen, onde, para além da distorção dos argu-
mentos centrais do livro, se apodava Fichte de jacobino e
inimigo da ordem pública. Fichte estava convencido, prova-
velmente com razão, que o verdadeiro autor da recensão
anónima era, nem mais nem menos, do que Gotdob Ernst
Ludwig Schulze (1761-1833) , seu antigo colega liceal em
Pforta e que já tinha atacado com violência o Ensaio de
uma Crítica de toda a Revelação (1793), de Fichte. Apesar
do contexto polémico, o artigo de Fichte é interessante por
explanar o que o autor entende por "dedução" filosófica, a
relação da experiência com a consciência e o modo como se
procede à "dedução" da intersubjectividade como condição

484
de autoconsciência em Fundamento do Direito Natural. No
artigo, Fichte reage também com acrimónia, sem nomear o
autor, às acusações contidas num escrito anónimo, mas da
autoria de Schelling (177 4-1854), intitulado «Allgemeine
Uebersicht der neuesten philosophischen Literatur» [Cons-
pecto geral da literatura filosófica mais recente], que vem
publicado no mesmo número do Philosophisches journal
Ainda em 1797, publica, também no vol. V do Philoso-
phisches journa~ «Erste Einleitung in die Wissenschafts-
lehre» [Primeira introdução à doutrina da ciência] e nos
vols. V e Vl, «Zweite Einleitung in die Wissenschaftslehre»
[Segunda introdução à doutrina da ciência] . No vol. Vll do
mesmo periódico, publica <•Versuch einer neuen Darstel-
lung der Wissenschaftslehre» [Ensaio de uma nova exposi-
ção da doutrina da ciência].
Em setembro de 1797, tinha sido dada à estampa a
segunda parte de Fundamento do Direito Natural segundo os
Princípios da Doutrina da Ciência.

1798: Publica Das System der Sittenlehre nach den Prinz i-


pien der Wissenschaftslehre [O sistema da Ética segundo os
princípios da doutrina da ciência] .
Fichte publica, no outono de 1798, no Philosophisches
journal einer Gesellschaft Teutscher Gelehrten, periódico de
que é co-editor, um artigo sobre filosofia da religião, intitu-
lado «Ueber den Grund unseres Glaubens in einer gotdi-
chen Weltregierung» [Sobre o fundamento da nossa crença
num governo divino do mundo]. O escrito procurava ser
uma retificação dos pontos de vista contidos num artigo do
anterior colega de Fichte em Jena, Friedrich Karl Forberg
(1 770-1848), intitulado «Entwicklung des Begriffs der Reli-
gion» [DesenvolvimentO do conceito de religião], onde o
autor defendia que a crença religiosa é estritamente equiva-
lente a uma ordem moral do mundo. Fichte começou por
aconselhar Forberg a retirar o artigo, mas perante a insis-

485
tência deste na publicação resolve escrever para o mesmo
número do Philosophisches ]ournal o referido ensaio «Sobre
o fundamento da nossa crença num governo divino do
mundo». A publicação simultânea dos artigos de Forberg e
de Fichte dá origem a uma polémica pública violenta: o
assunto é levado ao conhecimento das autoridades de
Dresden e do eleitor da Saxónia, o duque Friedrich August
(1 750-1827). Circula contra Fichte e Forberg um panfleto
anónimo, intitulado Schreiben eines Váters an seinen studie-
renden Sohn über die Fichteschen und Forbergerischen Atheis-
mus [Carta de um pai ao filho estudante sobre o ateísmo de
Fichte e de Forberg]. A controvérsia alarga-se a toda a Ale-
manha no ano seguinte e acaba por ditar o fim da perma-
nência de Fichte em Jena (1794-1 799), o período mais pro-
fícuo da sua produção intelectual.

1799: O ambiente liberal da corte de Weimar - encabe-


çada pelo duque da Saxónia-Weimar-Eisenach, Karl August
(1757-1828)- e o prestígio da universidade de Jena, que se
tinha tornado o centro intelectual dos Estados germânicos,
aconselhavam uma atitude contemporizadora das autorida-
des em relação a Fichte, cujo prestígio era iniludível. Pro-
curando cingir-se a uma mera admoestação oficial, a corte
de Weimar é confrontada com a intenção de Fichte de
desencadear uma polémica pública sobre o assunto e com a
ameaça de demissão de Fichte da universidade, transmitida
ao conselheiro Christian Gottlob Voigt (1743-1819), por
carta de 22 de março, se alguma repreensão lhe viesse a
ser feita. A atitude de Fichte fortalece o campo dos seus
adversários e priva-o de alguns apoios de monta, como o de
Goethe (1749-1832), que tinha intercedido a favor do cha-
mamento de Fichte para a universidade de Jena (no que
teria sido também secundado por Voigt). Em 29 de março
de 1799, o patrono da universidade de Jena, o duque Karl

486
Augusr (1757-1828), declara aceitar, com efeitos imediatos,
a demissão de Fichte.
Em junho de 1799, Fichte deixa Jena, em direção a
Berlim, onde chega anónimo e sem a família. As posições
de Fichte em matéria religiosa e o carácter belicoso que
demonstrou ao longo da polémica tinham conduzido à
rotura com o velho amigo dos tempos de Zurique, Johann
Kaspar Lavater (1741-1801). Por outro lado, numa carta
aberta publicada em março de 1799, texto que viria a ter
grande influência nos primórdios do movimento român-
tico, Friedrich Heinrich Jacobi (17 43-1819) lançava contra
a Doutrina da Ciência, de Fichte, a acusação de "subjeti-
vismo" , tópico que haveria de ser desenvolvido por Hegel
(1770-1831). Karl Leonhard Reinhold (1758-1823) acen-
tua as distâncias em relação à filosofia de Fichte e vem
anunciar publicamente a sua convergência com as posições
filosóficas de Christoph Gottfried Bardili (1761-1808), no
escrito, publicado em 1801, intitulado Beytrdge zur leichtern
Uebersicht des Zustandes der Philosophie beim Anfonge des
19. jahrhunderts [Contributos para um mais fácil conspecto
da situação da filosofia no início do século XIX] . Numa
declaração publicada a 29 de agosto de 1799, no Allgemeine
Literatur-Zeitung, lmmanuel Kant (1724-1804) qualifica a
Doutrina da Ciência como um sistema incompatível com a
filosofia crítica.

1800: Fichte publica Der geschlossene Handelsstaat [O


Estado comercial fechado] e Die Bestimmung des Menschen
[0 destino do homem].

1801: Schelling (1 77 5-1854) publica Darstellung meines


Systems der Philosophie [Exposição do meu sistema da filo-
sofia], onde, apesar do tom conciliatório, são visíveis as
distâncias em relação ao idealismo subjectivo de Fichte; em

487
setembro de 1801, Hegel (1770-1831) publica Dijferenz
des Fichteschen und Schellingschen Systems der Philosophie
[Diferença entre os Sistemas Filosóficos de Fichte e de
Schelling] *, onde defende a superioridade do idealismo
objectivo de Schelling. Fichte apresenta uma nova exposição
da Doutrina da Ciência (Darstellung der Wissenschaftslehre).

1802: Novas publicações de Grundlage der gesammten


Wissenchaftslehre [Fundamento da doutrina da ciência com-
pleta] e de Grundriss der Eigentümlichen der Wissenchafts-
lehre [Compêndio do específico da doutrina da ciência].
Em 1802/1803 expõe, anonimamente, sob forma epistolar,
os fundamentos da filosofia da maçonaria, na revista maçó-
nica de Berlim Eleusinien des neunzehnten jahrhunderts
Oder Resultate vereinigter Denker über Philosophie und Ges-
chichte der Freimaurerei, cujos editores eram, anonima-
mente, Johann Karl August Christian Fischer (1765-1816)
e Ignatius Aurelius FeiS!er (1756-1839).

1804: No inverno de 1804/1805, apresenta na Academia


das Ciências de Berlim uma série de prelecções que vem
mais tarde a reunir e a publicar sob o título Grundzüge des
gegenwdrtigen Zeitalters [Traços fundamentais da era atual] ,
onde desenvolve uma filosofia especulativa da História.

1805: Professor na universidade de Erlangen. Apresenta


Ideen for die innere Organisation der Universitdt Erlangen
[Ideias sobre a organização interna da universidade de
Erlangen]. Esboça outros planos de organização universi-
tária.

* Existe tradução em língua portuguesa de Carlos Moruj ão, publicada pela


Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2003.

488
1806: Publicação de Grundzüge des gegenwdrtigen Zeitalters
[Traços fundamentais da era atual]. Fichte apresenta Die
Anweisung zum seligen Leben [Incitamento à vida feliz],
sobre filosofia da religião. Continua a fazer preleções em
Berlim. A tomada da cidade pelas tropas francesas leva-o a
partir para Konigsberg, onde leciona no semestre de
inverno de 1806/1807. A ocupação de Konigsberg pelos
exércitos napoleónicos obriga-o a fugir para Copenhague,
cidade onde prepara Reden an die deutsche Nation [Discur-
sos à Nação Alemã].

1807: Pronuncia os Discursos à nação alemã, na cidade de


Berlim, ainda ocupada pelas tropas francesas.

1808: Publicação dos Discursos à Nação Alemã* . Apesar de


Fichte se manter fiel ao democratismo e ao cosmopolitismo
característicos do seu pensamento político, este livro é
considerado como uma das referências fundamentais do
nacionalismo alemão do século XIX, tendo sido objecto
de apropriação pela orientação nacional-popular da direita
antidemocrática alemã nas primeiras décadas do século XX.

1810: Nova apresentação da Doutrina da Ciência, intitu-


lada Die Wissenschaftslehre in ihrem allgemeinen Umrisse
[A doutrina da ciência no seu traçado geral].

1811: Fichte torna-se o primeiro reitor eleito da recém-


-fundada universidade de Berlim.

1812: Renuncia ao cargo de reitor da universidade de Ber-


lim. Elabora uma nova versão da Doutrina da Ciência.

• Existe tradução em língua portuguesa, de Alexandre Franco de Sá, com uma


introdução de Diogo Ferrer, ed itada pelo Círculo de Leitores, Lisboa, 2009.

489
Redige Das System der Rechtslehre [O sistema da doutrina
do Direito] e Das System der Sittenlehre [O sistema da
ética]. Redige o manuscrito Ueber das Verhiiltnis der Logik
zur Philosophie oder transzendentale Logik [Sobre a relação
da lógica com a filosofia ou lógica transcendental], que
serve de base a um curso universitário.

1813: Redige Einleitungsvorlesungen in die Wissenschaftslehre


[Lições introdutórias à doutrina da ciência] e uma nova
versão da Doutrina da Ciência. Apronta o manuscrito Die
Tatsachen des BewufJtseins [Os factos da consciência].

1814: Morre em Berlim, a 29 de janeiro, aos 51 anos, de


tifo.

490
ÍNDICE GERAL
NOTA SOBRE A TRADUÇÃO....................... ..... ..... ...................... V

APRESENTAÇÃO- O Fundamento do Direito Natural e o


sistema do idealismo transcendental........... ...... .. .. ... ... ... .......... VII

FUNDAMENTO DO DIREITO NATURAL


SEGUNDO OS PRINCÍPIOS DA DOUTRINA DA CitNCIA

PRIMEIRA PARTE

INTRODUÇÃO
I. Como se distingue uma ciência filosófica real de uma
mera filosofia de fórmulas.................... ........................... . 5
II. O que tem o Direito natural, como uma ciência filosó-
fica real, em particular que proporcionar... ...................... 12
III. Sobre a relação da presente teoria do Direito com a
kantiana. ............ ...... ... .................. ........ ...... ..... .. ... ........ .... 16

PRIMEIRA SECÇÃO

DEDUÇÃO DO CONCEITO DE DIREITO

§ 1. Primeiro teorema. Um ser racional finito não pode pôr-se a


si mesmo sem se atribuir a si próprio uma atividade causal
livre.......... .... .... ............ .... ... ... .......... .. ... ... ............ ... ........ .. 23
Demonstração. ...... ..... .... .... ................ .. ..... ..... ........ ... ........ 23
Corolários....... ... .. .... ............ .. .... .. ... ... ... .. .... ........ ....... ... .... 27

493
§2. Consequência. Mediante este ato de pôr a sua faculdade
para uma atividade causal livre, o ser racional põe e
determina um mundo semlvel fora de si ............................. 30
Corolários...... ....................... .................. .... ... .. ............. ... . 31
§3. Segundo teorema. O ser racional finito não pode atribuir-
-se a si próprio uma atividade causal livre no mundo
sensível sem a atribuir também a outros e, portanto,
sem admitir outros seres racionais finitos fora de si.............. 37
Demonstração.. ............................. .. .................................. 37
Corolários............... ......................................................... . 48
§4. Terceiro teorema. O ser racional finito não pode admitir a
existência de outros seres racionais finitos fora de si sem se
pôr com eles numa relação determinada, que se chama
relação jurldica .................................................................. 50
Demonstração.... .... ........................ ... ..... ... ............... ......... 50
Corolário.. .................................... ... ................................. 57
Corolários .... ... ............ ...... ... .... .. ... ... ... .... ................. ... ..... . 64

SEGUNDA SECÇÃO

DEDUÇÃO DA APLICABILIDADE DO CONCEITO


DE DIREITO

§5. Quarto teorema. O ser racional não pode pôr-se como


individuo que age causalmente sem se atribuir um corpo
material e sem, por essa via, o determinar..................... ..... 69
Demonstração...... ............. ................................................ 69
§6. Quinto teorema. A pessoa não pode atribuir-se um corpo
sem o pôr como estando sob a influência de uma pessoa que
lhe é exterior e sem o determinar ulteriormente deste modo. 75
Demonstração. .................................................................. 75
Corolários......... ................................................. ............... 97
§ 7. Demonstração de que, mediante as proposições enunciadas,
é possível a aplicação do conceito de Direito.... .......... .......... 103

494
TERCEIRA SECÇÃO

APLICAÇÃO SISTEMÁTICA DO CONCEITO DE DIREITO


OU A DOUTRINA DO DIREITO

§8. Dedução da divisão de uma doutrina do Direito .. ........ ...... 111

CAPÍTULO PRIMEIRO DA DOUTRINA DO DIREITO

DEDUÇÃO DO DIREITO ORIGINÁRIO

§9. De que maneira pode pensar-se um direito originário?.. .... 133


§10. Definição do direito originário. ..... .. ....... ................... ..... .. 135
§ 11. Análise do direito originário .. .... .. ...... .. ......... .......... .......... 136
§12. Passagem para a investigação do direito de coação através
da ideia de um equilibrio do Direito............................... 143

CAPÍTULO SEGUNDO DA DOUTRINA DO DIREITO

SOBRE O DIREITO DE COAÇÃO

§13. .......... ... ....... ..... ................. .. ............... ........ ... ................. 165
§ 14. O principio de todas as leis de coação................... .. ... ....... 167
§ 15. Sobre a instituição de uma lei de coação .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 174

CAPÍTULO TERCEIRO DA DOUTRINA DO DIREITO

DO DIREITO POLfTICO OU DO DIREITO


NUMA COMUNIDADE POL(TICA

§ 16. Dedução do conceito de comunidade política.. ............ ...... 179

495
SEGUNDA PARTE
ou
DIREITO NATURAL APLICADO

PRIMEIRA SECÇÃO DA DOUTRINA DO DIREITO POLÍTICO

DO CONTRATO DE CIDADANIA

§17. A .......... ....... .............. .... ................... ....... ................ ..... .. 227
B ................................................................................... . 231
Corolário..... .......... .... ..... ............................... .......... ....... 246

SEGUNDA SECÇÃO DA DOUTRINA DO DIREITO POLÍTICO

DA LEGISLAÇÃO CML

§18. Sobre o espírito do contrato civil ou de propriedade .......... 251


§19. Aplicação completa dos princípios estabelecidos sobre a
propriedade .... ..... .... ....... ... ..... .... ...... ... ... ... ...... ... .. .......... . 257
A. Da propriedade do agricultor sobre a terra ................ .. 260
B.............................................................................. ... . 264
c ................................................................................. . 266
D ................................................................................. . 276
E. ········· ·· ······················· ·· ············································· 279
F. ........................................................ .. .................. .. ... 283
G. 287
H . ..................................................................... ............ 280
I. Do direito à segurança e inviolabilidade pessoais ........ . 294
K . ..................................... .................................... ....... . 304

§20. Sobre a legislação penal... ................................................ . 310

496
TERCEIRA SECÇÃO DA DOUTRINA DO DIREITO POLÍTICO

SOBRE A CONSTITUIÇÃO

§21. 341

COMPÊNDIO DO DIREITO DA FAMÍLIA


(como primeiro apêndice ao Direito natural)

PRJMEIRA SECÇÃO : Dedução do casamenro ....... ................. ..... .. . 363


SEGUNDA SECÇÃO: 0 direito matrimonial.................................. 381
TERCEIRA SECÇÃO: Consequências para a relação jurídica respetiva
dos dois sexos em geral no seio do Estado...... 411
Q UARTA SECÇÃO: Sobre a relação jurídica recíproca entre pais e
filhos. ... .. ..... ... .... .................. ......... ............. 423

COMPÊNDIO DO DIREITO DAS GENTES


E DO DIREITO COSMOPOLITA
(como segundo apêndice ao Direito natural)

I. Sobre o Direito das gentes.......... .. ...... .. ..... ........... ..... ........ 443
II. Do Direito cosmopolita.............. .. ...... .. ............... .............. 461

NOTAS DO TRADUTOR... .. ..................................... .... ...... 465

CRONOLOGIA DA VIDA E DA OBRA DE FICHTE ...... 477

497
Esta tradução portuguesa de FUNDAMENTO
DO DlREITO NATURAL, de Johann Gottlieb
Fichte, foi composta, impressa e brochada
para a Fundação Calouste Gulbenkian, nas
oficinas da Imprensa Portuguesa.

A tiragem é de 750 exemplares

Outubro de 20 12

Depósito Legal: 350119/ 12

ISBN : 978-972-31-1455-3

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