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TRADUÇÃO
FARHI NETO, Leon1
FARHI, Monique2
BOVE, Laurent3
A referência constante, nas últimas obras de Henri Atlan, à obra de Spinoza [Atlan,
1999, 2002 e 2003]4 explica a escolha do meu assunto para este Colóquio. A ideia de auto-
organização apareceu no campo teórico contemporâneo durante os anos 60, nos Estados
Unidos, e ela foi introduzida na França pelas pesquisas do biólogo e filósofo Henri Atlan.
Para começar, algumas palavras sobre o conceito de auto-organização. A auto-
organização é um paradigma elaborado por diferentes disciplinas (ciências biológicas,
ecológicas, sociais, econômicas, políticas, psicológicas, linguísticas, cognitivas etc.), e,
isso, depois que o conceito foi forjado em um imenso arquipélago científico em que se
navega entre físico-química, biologia e cibernética. No entanto, é essencialmente do
universo cibernético (da autorregulação e da retroação) que nasceu a ideia de uma auto-
organização dos sistemas complexos. Em 1979, em uma obra intitulada Entre o cristal e a
fumaça: ensaio sobre a organização do vivente, Henri Atlan forjava o conceito de um
“princípio de complexidade pelo ruído”, que introduz a ideia de uma conversão contínua
do acaso em novas significações, para um sistema cujo processo de complexação é a
negação tendencial de uma ordem, porém, indispensável a essa conversão. É, então, entre
duas formas de morte, o cristal (como ausência de complexidade) e a fumaça (como
ausência de ordem), que se desdobram as estruturas fluidas e dinâmicas da organização do
vivente, como processos de desorganização indefinidamente recuperada. No processo do
“acaso organizacional” de Henri Atlan, a matéria se auto-organiza, então, ao se
complexificar. E, assim, depende da potência mesma dos corpos e / ou da sua
complexidade que o aleatório seja fonte de destruição ou de criação.
1
Tradutor. Doutor em Filosofia (UFSC/2012). Professor de Filosofia na Universidade Federal do Tocantins.
leon@uft.edu.br
2
Tradutora. Graduada em Arte e Educação (UDESC/2009).
3
Professor emérito da Universidade de Amiens, pesquisador da UMR 5037, ENS-Lyon. {N.T.: Este artigo
resulta de uma conferência realizada por Laurent Bove, na Universidade Federal do Tocantins, em
Palmas/TO, no dia 24 de novembro de 2014, no quadro do Colóquio Desafios da Pesquisa na
Contemporaneidade}.
4
Cf. a resenha de Les étincelles de hasard, t. 1, [Bove, 2000].
16
Na época em que ele concebe este novo modelo epistemológico, Henri Atlan não
conhece ainda o pensamento de Spinoza ou, pelo menos, – conforme ele me confidenciou
pessoalmente – ele tem desse pensamento uma leitura muito redutora: para ele, Spinoza é
um pensador situado nos antípodas daquele modelo, pois Spinoza é, como ele imagina, um
pensador do determinismo absoluto, um determinismo que se assemelha bastante a uma
“necessidade fatal” que exclui do real, portanto, toda possibilidade de criação ou de
novidade. No entanto, a relação de Henri Atlan a Spinoza, nos anos 80, vai se transformar
fundamentalmente com a evolução transtornadora dos estudos spinozistas, os quais
modificarão profundamente a ideia que se tinha, na época, de Spinoza, e que o próprio
Atlan tinha da “necessidade” spinozista.
Com efeito, o que foi descoberto – digamos, a partir dos grandes comentadores de
Spinoza, que são Gilles Deleuze e Alexandre Matheron, e, na sequência, por aqueles que
vão esclarecer e aprofundar essas novas perspectivas de leitura – é que, se Spinoza é, de
fato, um pensador da necessidade (o que todos sempre souberam, sem, aliás, bem o
compreender, até o ponto de acusar essa filosofia de fatalismo), Spinoza é, também e
sobretudo, um pensador do dinamismo da complexidade (o que, na história da
interpretação do spinozismo, é uma descoberta bastante recente). E é sobre esse segundo
aspecto da leitura de Spinoza – à qual o meu próprio trabalho contribuiu – que se voltará,
mais particularmente, hoje, a minha reflexão.
A complexidade do real é, em primeiro lugar, para o autor da Ética, aquela de um
Deus-substância-única, radicalmente identificado à Natureza5. Mas é, também, a indicação
disso que Spinoza nomeia a perfeição de todas as coisas naturais, que é aquela mesma da
sua “potência” singular ou da sua “virtude”6. O Deus-Natureza spinozista, com efeito,
produz, ao se produzir, uma infinidade de coisas7 – o que Spinoza chama de “modos”8. E
esta produção se realiza segundo uma infinidade de maneiras, o que permite conceber,
dinamicamente, essências singulares e, consequentemente, também, coisas singulares;
5
É no prefácio da IV parte da Ética que Spinoza escreve que falar de “Natureza” é a mesma coisa que falar,
no sentido estrito, de “Deus”: Ratio igitur, seu causa, cur Deus, seu Natura agit, et cur existit, una,
eademque est [Spinoza, 2007, p. 264]. {N. T.: para as citações da Ética, em geral, utilizamos a tradução de
Tomaz Tadeu. Entretanto, quando julgamos necessário manter a conexão interna entre o vocabulário francês
de L. Bove e os termos da tradução francesa por ele utilizada [Spinoza, 1988], vertemos diretamente para o
português as citações que ele faz em francês da Ética.}
6
“Por virtude e potência compreendo a mesma coisa”, Ética IV, definição 8.
7
“No mesmo sentido em que se diz que Deus é causa de si mesmo, também se deve dizer que é causa de
todas as coisas”, Ética I, proposição 24, escólio.
8
Ética I, definição 5.
17
9
“Da necessidade da natureza divina devem se seguir infinitas coisas, de infinitas maneiras (isto é, tudo o
que pode ser abrangido sob um intelecto divino)”, Ética I, proposição 16.
10
Ética IV, prefácio, p. 265.
11
“Aquilo pelo qual se diz que as coisas são determinadas a operar de alguma maneira é necessariamente
uma coisa positiva”, Ética I, demonstração da proposição 26.
12
“A virtude, enquanto referida ao homem, é sua própria essência ou natureza, à medida que ele tem o poder
de realizar coisas que podem ser compreendidas exclusivamente por meio das leis de sua natureza”, Ética IV,
definição 8.
13
Spinoza escreve a G. H. Schuller: “Chamo livre, quanto a mim, uma coisa que é e age exclusivamente pela
necessidade da sua natureza; coagida, aquela que é determinada por uma outra a existir e a agir de uma certa
maneira determinada. [...] Você bem o percebe, eu não faço consistir a liberdade em um decreto livre, mas
em uma livre-necessidade”, carta 58 [a partir da tradução de Appuhn, 1965, t. 4].
14
Ética III, definição 1.
15
Ética III, definição 2.
18
16
Esse é o sentido das reformas democráticas dos Estados no Tratado político. Cf. acerca disso nossa
introdução ao Tratado político, “Da prudência dos corpos. Do físico ao político” [ Bove, 2002, p. 9-101].
17
Ética II, postulados 1 e 2.
18
“Por coisas singulares compreendo aquelas coisas que são finitas que têm uma existência determinada. E
se vários indivíduos contribuem para uma única ação, de maneira tal que sejam todos, em conjunto, a causa
de um único efeito, considero-os todos, sob este aspecto, como uma única coisa singular”, Ética II, definição
7.
19
Ética III, proposição 2, escólio.
20
Carta 30 a Henri Oldenburg [Appuhn, 1965, t. 4].
19
segundo a qual, em primeiro lugar, essa coisa, por sua essência singular, “se persevera”
[Breton, 1983, p.73]21.
Meu ponto será examinar a articulação da complexidade (do real e / ou do real, ele
mesmo, como complexidade) com esse pensamento da potência, que é aquele da dinâmica
da perseverança causal das coisas. Para tanto, nós lemos, no conatus spinozista, uma
ontologia da “prudência” ou da estratégia imanente das coisas finitas (estratégia imanente
às relações de força nas quais essas coisas estão apreendidas). Mas, uma prudência (e / ou
uma estratégia) que é independente de qualquer teleologia. Daí, um uso paradoxal de uma
noção de prudência sem finalidade e, no terreno da política e da história, uma prudência
que deve ser pensada à parte do espaço da representação da lei, assim como do par
soberania-obediência (voltaremos a isso) [Bove 1996 e 2002, p. 9-101]22.
No Tratado político IV, 5, Spinoza escreve: sanè cautio non obsequium – “essa
prudência não é uma obediência” – sed humanae naturae libertas est – “mas, pelo
contrário, a liberdade da natureza humana”23. A liberdade como necessidade: aquela dos
processos dinâmicos imanentes de afirmação das potências. Ser sui juris – depender de seu
próprio direito, quer dizer, de sua própria potência... – ou ser alterius juris – depender do
direito de um outro, ou estar sob a sua dominação – é uma distinção fundamental, em
Spinoza, nisso que ela deixa claro a definição da liberdade como autonomia e, no seu
sentido mais forte, como livre-necessidade (tanto no tocante aos seres humanos quanto aos
corpos políticos24).
Jean Cavaillès, filósofo matemático, que se reivindicava do spinozismo (e de quem
George Canguilhem disse que, sob a dominação dos nazistas, ele foi “resistente por
lógica”25 [Canguilhem, p.36]), declara, muito corretamente, diante da Sociedade Francesa
de Filosofia (naquela época de orientação kantiana): “Autonomia, logo, necessidade”
[Cavaillès, 1939, p. 9]. Devemos dizer, também, autonomia, logo, complexidade. Spinoza
repete, sem cessar, que o que faz a potência de agir ou de existir de um corpo, e, por isso
21
Essa expressão, de Stanislas Breton, ecoa a afirmação de Alexandre Matheron que, desde a abertura de
Individu et Communauté chez Spinoza, escreve que “todo indivíduo é parcialmente ou totalmente
autoprodutor, conforme o seu dinamismo interno precise ou não de certas condições exteriores para se
exercer; e, do fato dessa autoprodutividade, ele pode ser considerado, para a análise, seja como ‘naturante’,
seja como ‘naturado’ ” [Matheron, 1969, p. 12].
22
Cf. nossa entrevista em português “Uma filosofia de resistência à dominação”, in Baruch Spinoza. Um
convite à alegria do pensamento, Revista IHU On-line (Revista do Instituto Humanitas Unisinos), n° 397,
ano XII, 06-08-2012, São Leopoldo, p. 61-66.
23
Adotamos, para o Tratado político, a tradução de É. Saisset que nós retificamos [Bove, 2002, p. 155].
24
Tratado político II, 9 [Bove, 2002, p. 125 e nota 16, p. 134].
25
É Georges Canguilhem quem sublinha.
20
mesmo, a capacidade desse corpo a praticar ações que dependem só dele (de ser “causa
adequada”), é o seu grande número de aptidões a agir e a padecer, de uma só vez, de
múltiplas maneiras... o que permite, também, à alma desse corpo pensar por ela mesma,
quer dizer, adequadamente, livremente, racionalmente26. Daí a distinção spinozista –
conforme o que pode um indivíduo singular para a sua conservação – dos regimes de sua
causalidade ou de sua potência: causalidade “adequada” ou “inadequada”27.
Causalidades adequadas ou inadequadas nos dão, assim, a grade de leitura ou de
inteligibilidade de todo o real das coisas finitas, que esse real, em sua atividade de
perseverança, caia sob o saber da física, da ética ou da política (e da história). Do ponto de
vista da lógica da potência causal de um singular, conatus e “prudência” são indissociáveis
[Bove, 2006]. Essa prudência natural das coisas, que, a diferentes graus, é o próprio
processo da atualidade da liberdade efetiva de uma “natureza”, na e pela necessidade
universal, envolve, necessariamente e dinamicamente, potência de resistência, de
socialidade, de conhecimento e de emancipação política. Examinemos esses diferentes
aspectos da prudência. Do corpo humano ao corpo político28.
Spinoza parte de uma definição geral do corpo – inscrita sobre o plano de
imanência de sua concepção da Natureza ou de Deus – a fim de determinar, mais
precisamente, o que pode ser o corpo “humano”, do qual nossa alma é a ideia: “Por corpo,
escreve, compreendo um modo que exprime, de maneira definida e determinada, a essência
de Deus, enquanto considerada como coisa extensa”29. Um corpo, então, é, em primeiro
lugar, uma certa quantidade de potência de agir ou “uma parte da infinita potência de Deus
ou, dito de outra maneira, da Natureza”30; uma potência singularmente interligada,
segundo uma certa lei ou uma certa relação pela qual se comunica, nele, o movimento31.
No segundo tomo de sua obra, As Centelhas do acaso, Henri Atlan indica que essa relação
pode se compreender, hoje, como a “descrição matemática de um sistema dinâmico, em
que um sistema de equações exprime as mudanças temporais que os diferentes
componentes produzem uns sobre os outros”. [Atlan, 2003, p. 206]. Cada corpo é
26
Ética II, proposição 13, escólio. E Ética IV, proposição 18, escólio.
27
Ética III, definição 1 e 2.
28
Resumimos, no que se segue, os resultados de estudos ulteriores, aos quais nós nos permitimos remeter o
leitor, para um tratamento mais exaustivo, [Bove, 1999, 2002 et 2005]. O autor encontrará também nossas
principais teses em nossa obra em português, Espinosa e a psicologia social. Ensaios de ontologia política e
antropogênese, ed. Autêntica, Belo Horizonte, 2010.
29
Ética II, definição 1.
30
Ética IV, proposição 4, demonstração.
31
Ética II, proposição 13, definição.
21
afirmação e de resistência que vale não somente frente às coisas exteriores, mas no interior
da coisa, em sua maneira própria de operar sobre aquilo que lhe acontece (em, por e sobre
a sua complexidade mesma), e, assim, de dispor, a sua maneira, suas próprias afeições. Se,
com efeito, escreve Spinoza, em um mesmo sujeito, são suscitadas duas ações
contraditórias, colocando, assim, o corpo em perigo, “deverá necessariamente dar-se uma
mudança, em ambas, ou em apenas uma delas, até que deixem de ser contrárias”34. É a
prudência necessária do corpo que impõe a sua lei de não-contradição dinâmica e, de certa
maneira, a medida da sua própria complexidade, em e por todas as suas operações de
perseverança no presente. Sua prudência, sua estratégia ou sua liberdade. Uma liberdade
que remete, necessariamente, sempre, a uma necessidade natural e a uma potência, ao
mesmo tempo, individuante (gradualmente constituinte da autonomia) e individualizante
(gradualmente constituinte de uma singularidade). E essa liberdade – que é aquela do real
singular se fazendo (ou sendo desfeito), em e pelas suas determinações dinâmicas – é
aquela de todos os modos da Natureza. E essa liberdade será tão maior, quanto mais forem
capazes de complexidade os seus modos. Complexidade das alianças ou das conexões
resistentes que constituem um corpo singular, que só persevera em seu ser (aquele mesmo
da singularidade da sua conexão – e / ou sua equação pessoal) conforme as suas alianças
regeneradoras com uma multidão de outros corpos, aos quais um corpo está
necessariamente ligado.
Sem alianças, com efeito, assim como sem potência de resistência, o que Spinoza
chama de “direito” de um corpo qualquer (quer dizer, sua potência singular de existir)
seria, como o indica o Tratado político, II, 15, mais teórico do que real. Um corpo
realmente existente é, sempre, já o dissemos, um corpo composto, complexo, uma “união
de corpos”. Portanto, é, em primeiro lugar, de uma aliança resistente da complexidade que
se deve falar, para caracterizar a realidade do corpo.
Esse princípio de aliança ou de socialidade, inseparável do princípio de resistência,
tem por efeito, em Spinoza, estabelecer a continuidade de uma física, ou de uma fisiologia
da troca, com uma ética da comunicação, que é, também, uma ética da autonomia. Spinoza
destaca os dois critérios que fazem a perfeição (quer dizer, a potência de agir ou de existir)
do corpo humano: a grande amplitude do poder desse corpo a afetar, ou a ser afetado, de
múltiplos modos (grande amplitude que, na multiplicação relacional, apenas a cultura e a
história podem, efetivamente, atualizar), e [segundo critério] a aptidão para a autonomia
34
Ética V, axioma 1.
23
desse corpo, no e pelo aumento tendencial da sua complexidade. Escreve Spinoza: “Digo,
porém, de modo geral, que quanto mais um corpo supera os outros, por sua aptidão a agir e
a padecer de várias maneiras simultaneamente [...], tanto mais o seu espírito supera os
outros, por sua aptidão a perceber mais coisas simultaneamente; e quanto mais as ações de
um corpo dependem só dele [...], tanto mais seu espírito é apto a compreender de maneira
distinta”35. Entretanto, que as ações de um corpo possam depender “só dele” (isso é a sua
potência de causalidade adequada) nos remete não a uma lógica da autarquia, mas, muito
pelo contrário, a uma autonomia dinâmica aberta, isto é, à maior aptidão desse corpo à
multiplicação da comunicação e da troca com uma multidão de outros corpos.
E esse princípio dinâmico da troca, constitutivo e reprodutivo no domínio da
fisiologia do corpo humano36, vale, também, no plano ético, em que não se trata mais
apenas de se reproduzir biologicamente, mas, sim, de dar a maior produtividade de vida,
quer dizer, o maior gozo do existir, à equação que determina, em Deus e por Deus (ou
Natureza), uma singularidade a se fazer. Daí, a sábia regra de vida ou o uso dos prazeres
formulado por Spinoza (no escólio que se segue ao corolário 2 da proposição 45 da Ética
IV), que se refere, ao mesmo tempo, ao princípio da troca fisiológica (porém, expandindo-
a à grande diversidade das carências de um corpo humanizado pela cultura) e à correlação
– à qual Spinoza também já se referira – entre a extensão da aptidão do corpo a afetar e a
ser afetado e a aptidão (e / ou a potência) da alma a compreender. Daí, a natureza
essencialmente corporal, dispositiva e quantitativa de um projeto ético (envolvendo a
produção de afetos ativos e de conhecimento adequado) que Spinoza inscreve no mesmo
movimento daquele do crescimento natural da criança ao adulto, como aumento da
complexidade do corpo humano37.
Daí, nessas condições, a importância de um projeto ético de organização dinâmica
e racional das conexões do corpo individual. Organização, no e pelo conhecimento
verdadeiro ou adequado: essa é a via ensinada pela Ética. Mas, organização, também, das
conexões constituintes do corpo comum: esse é o projeto, em parte, do Tratado teológico-
político e, sobretudo, do Tratado político, que trata das organizações que poderiam ter os
Estados, de forma monárquica ou aristocrática, ao funcionar como corpos capazes de
causalidade adequada.
35
Ética II, proposição 13, escólio.
36
Cf. particularmente os lemas 4 a 7 (e seu escólio), assim como os postulados 1 a 4 que se seguem à
proposição 13 de Ética II.
37
Ética V, proposição 39 e seu escólio.
24
38
Tratado político VIII, 12.
25
semelhante, tido por seu “igual”39. A resistência à dominação do homem pelo homem é,
conforme Spinoza, afetivamente, logicamente e necessariamente, primeira. Ela envolve um
forte sentimento de igualdade (originado da semelhança se nos referimos às leis da
imitação explicadas na terceira parte da Ética) e de defesa da singularidade.
É dessa natureza necessária da multidão que deve ter se deduzido, necessariamente,
nas origens da história, o consenso sobre a forma do governo coletivo: a saber, a
democracia. Spinoza define a democracia, no capítulo V, 9, do Tratado teológico-político,
como uma “sociedade inteira” que exerce “colegialmente o poder, a fim de que, dessa
maneira, todos tenham que obedecer a si mesmos, sem que ninguém, precisa Spinoza,
tenha que obedecer a seu igual”. Spinoza chega ao ponto de escrever “que não há
propriamente obediência na sociedade em que o poder está nas mãos de todos e em que as
leis vigoram por consentimento comum”40. O ponto de vista da complexidade é, assim, o
ponto de vista de uma radicalidade democrática que, sob a própria instituição da
democracia (como forma de governo do poder soberano), concerne o movimento real da
constituição do corpo comum. Spinoza coloca, assim, a questão política da complexidade
no cerne da sua ontologia da potência. Sob o direito soberano, que é aquele, jurídico, de
um poder instituído, a soberania, como direito, tornou-se a afirmação imanente da potência
politicamente constituinte da complexidade41. Esse deslocamento do sentido da soberania,
de um direito instituído à potência constituinte da complexidade, está no cerne do Tratado
político.
Se considerarmos juridicamente as coisas, permanecemos em uma concepção
abstrata do corpo político, de onde expulsamos, imaginariamente, o exercício plural das
potências reais determinadas (o que Spinoza chama, por sua vez, de direito natural). A
teoria da soberania (como é o caso em Hobbes) impunha, então, o problema da obediência
à Lei como problema político maior. Contudo, se considerarmos a verdade efetiva da
39
“Nada é mais insuportável aos homens do que estar submetidos a seus iguais e ser dirigidos por eles”,
Traité théologico-politique V, [8], p. 221; cf. também o capítulo XVII [4] p. 541 e [25] p. 573, e Tratado
político VIII, 12. Na tradução para o português, Tratado teológico-político V, p. 86: “Porque o que os
homens menos suportam é estar submetidos aos seus semelhantes e ser comandados por eles”. Cf. também:
XVII, p. 253 e p. 271.
40
Traité théologico-politique V, [9] p. 221. Tratado teológico-político V, p. 86.
41
O modelo inverso da dinâmica da autonomia aberta da democracia é o Estado teocrático perfeito. No
Estado de Moisés (se ele tivesse sido perfeito), teria havido um controle absoluto da socialização, isto é, a
partir do funcionamento sistêmico das instituições, uma comunicação imutável do movimento entre as partes
do corpo coletivo, eternamente a mesma, segundo os mesmos afetos recíprocos. Pode-se, então, dizer desse
Estado, tal como o concebe Spinoza no Tratado teológico-político, o que Henri Atlan diz da torre de Babel:
“autofabricação planificada e coordenada do ser humano, de um Adão coletivo e unidimensional” [Atlan,
1999, p. 74]. Essa solução liquida integralmente a liberdade e a criatividade da potência da multidão, que foi,
de uma vez por todas, atualizada na e pela imaginação política de Moisés [Bove, 2005].
26
42
Esse é o ponto de vista anunciado do Tratado político: cf. particularmente: I, 3 e III, 3, onde Spinoza passa
do ponto de vista da “permissão legal” àquele da verdade efetiva das coisas (que é aquele da prática).
27
corpos de que somos feitos e a constituição dinâmica de sua liberdade. Uma liberdade da
qual nós podemos ser (sobre a base de nossa prudência) os princípios viventes de auto-
organização, por meio de nossa diversidade e de nossas singularidades, do conhecimento
e da ação política (e esse é o projeto ético-político spinozista). O modelo spinozista de
auto-organização se abre, assim, a uma ontologia imanente e de apropriação do tempo e da
história. O tempo aberto das cooperações e das resistências, um tempo da constituição do
ser como potência coletiva de transformação e de emancipação.
Referências
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Paris. Tradução para o português: Entre o cristal e a fumaça, Zahar, Rio de Janeiro.
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BOVE, L. (2005), « Politique : "j'entends par là une vie humaine"», Multitudes n° 22,
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