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Lílian Cruz

Neuza Guareschi

Sobre a psicologia
no contexto da infância:
da psicopatologização
à inserção política
On psychology in the context of childhood:
from psychopathology to political insertion

Resumo
Este artigo objetiva fazer um resgate histórico da infância no Brasil a partir do perí-
odo denominado filantrópico-higienista até os dias atuais. Inicia com o Movimento da
Escola Nova, com a instauração sutil das formas de disciplinarização. Logo, a introdução
da Psicologia nas políticas públicas se deu através dos estudos sobre o desenvolvimento
infantil e as diferenças individuais, que resultaram e subsidiaram o trabalho dos profissio-
nais desta área no Juizado de Menores, na FUNABEM, bem como nas atuais entidades
de abrigos, já reordenadas a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente. Conside-

______
Lílian Cruz é Psicóloga, Mestre em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS), Doutoranda em Psicologia
(PUCRS) e Docente na UNISC.
2
Neuza Guareschi é Psicóloga, Mestre em Psicologia Social e da Personalidade (PUCRS), Doutora em Educação
(University of Wisconsin-Madison), Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUCRS e
Coordenadora do Grupo de Pesquisa Estudos Culturais, Identidades/Diferenças e Teorias Contemporâneas.

Endereço para correspondência:


Lílian Cruz - Rua Comendador Albino Cunha, 53/206 CEP: 91040-040 - Porto Alegre. Telefone (0-xx51)
33624085 - E-mail: liliancruz2@terra.com.br
Neuza Guareschi - Av. Nilópolis, 374/401 CEP: 90460-050 - Porto Alegre Telefone (0-xx51) 33886775 E-
mail: nmguares@pucrs.br

Aletheia 20, jul./dez.Canoas


Aletheia 2004 n.20 jul./dez. 2004 p. 77-90 77
rando algumas pesquisas sobre o discurso psi, problematizamos a inserção da Psicologia
no debate sobre as políticas públicas, especificamente na área da infância denominada
vulnerável.
Palavras-chave: Psicologia e Políticas Públicas, Infância e Adolescência, Profissio-
nais e Entidades.

Abstract
This article aims to do a historical review of childhood from the period called phi-
lantropic-hygienist up to today. It begins with the New School Movement, with the sub-
tle instauration of forms of discipline. Thus, the interface of psychology with the studies
on childhood development and individual differences, that resulted and supported the
work of the professionals of this area in the Juizado de Menores, at FUNABEM. As well
as in shelter entities, already reorganized through the Estatuto da Criança e do Adoles-
cente. Seeing some researches on the psychological discourses, we problematize the in-
troduction of Psychology in the debate about public policies, specifically in the chil-
dhood area entitled vulnerable.
Key words: Psychology and Public Policies, Childhood and Adolescence, Professi-
onals and Entities.

A ‘infância’ pode ser considerada um cena a família, os vínculos parentais, as ins-


objeto de estudo recente na pesquisa. Até tituições escolares, os sistemas disciplina-
porque a própria ‘noção de infância’ é um res e punitivos, os cuidados e as formas de
acontecimento novo, que se consolidou a criação dos filhos, dentre tantas outras te-
partir do clássico estudo de Ariès (1981). máticas imbricadas na história da infância.
Corazza (2002) vai dizer que, embora este Apontamos que em todas estas a psicolo-
seja uma referência para a historiografia da gia está presente.
vida cotidiana, também recebeu suas críti- Assim, este artigo objetiva fazer uma
cas, principalmente no que se refere à au- breve retrospectiva da história da infância no
sência de comprovações das hipóteses e Brasil como uma forma de compreender-
também por não ter contemplado todo o mos a atual configuração das políticas pú-
segmento das classes sociais em desvanta- blicas nesta área. Iniciamos com o Movimen-
gem. Entretanto, a autora afirma existir to da Escola Nova, com a instauração sutil
unanimidade em reconhecer que “Ariès não das formas de disciplinarização. Logo, a in-
somente abriu um novo caminho de pes- serção da psicologia com os estudos sobre o
quisa, bem como estabeleceu um conjunto desenvolvimento infantil e as diferenças in-
de categorias para trabalhar este novo ob- dividuais, que resultaram e subsidiaram o
jeto infância” (p.83). Dentre estas podemos trabalho dos profissionais desta área no Jui-
citar, descoberta, invenção, conceito, natureza, zado de Menores, na FUNABEM, bem
sentimento e consciência. Estas categorias con- como nos atuais equipamentos de proteção
tinuam sendo “contestadas, refutadas, re- à infância, já reordenados a partir do Esta-
visadas, por isto mesmo, incitaram uma tuto da Criança e de Adolescente (ECA).
abundante produção discursiva que cons- Considerando algumas pesquisas sobre o
tituiu esse novo campo epistemológico” discurso psi, problematizamos a inserção da
(p.83). psicologia no debate das políticas sociais
Importante considerar que nesta públicas, especificamente na área da infân-
“nova orientação historiográfica”, Corazza cia denominada vulnerável.
(2002) cita a influência da produção fou- Através de uma sucinta contextualiza-
caultiana, pois através da história social, seja ção histórica referente as políticas públicas
em seu método e seus temas, colocou em na área da infância, no período compreen-

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dido entre 1880 a 1924, constatamos que perigosos, instituindo-se a noção de peri-
este caracteriza-se pela introdução das idéi- culosidade. Isto significa, segundo Foucault
as higienistas-eugênicas 3 . Nesta época, (1996), que os indivíduos devem ser consi-
embora o monopólio no atendimento a derados pela virtualidade de seus compor-
menores4 ainda fosse de entidades priva- tamentos, e não por infrações efetivas. A
das, percebe-se o fomento da participação partir desta noção, formam-se uma série de
do Estado nesse campo. Lembremos do instituições nomeadas instituições de seqües-
cenário brasileiro. O país passara por mu- tro, cuja finalidade é fixar os indivíduos a
danças econômicas e políticas, como o fim aparelhos de normatização, buscando en-
do regime de trabalho escravo e a imigra- quadrá-los e controlá-los ao nível de suas
ção de trabalhadores europeus. Como co- virtualidades. Tais formas de organização e
rolário, o crescimento demográfico (negros controle da sociedade são características do
libertos, nacionais migrados do campo, es- que Foucault convencionou chamar de “so-
trangeiros, mulheres e crianças) acarretou ciedade disciplinar”, em que um dos pila-
no saturamento do mercado de trabalho e, res desta é a vigilância 5 . Desta forma, o dis-
curso do modelo disciplinar é fundado na
logo, as cidades cresceram de forma desor-
norma, produzindo uma sociedade de nor-
denada em áreas em processo de moderni-
malização. Essa norma serve para que o
zação. E o êxodo não se deu acompanhado
indivíduo possa balizar seu comportamen-
de proporcional aumento de empregos,
to pelo comportamento “médio”, codifica-
nem de serviços públicos voltados à educa- do como “normal”.
ção e à saúde (Bulcão, 2002). As conseqü- É neste cenário, onde a preocupação é
ências foram visíveis nas grandes capitais, a vigilância do que pode vir a ser perigoso
onde um grande contingente de crianças e que ganha força a preocupação com a pre-
adolescentes vivendo nas ruas, sob condi- venção (Bulcão, 2002). Assim, podemos di-
ções insalubres, ganham visibilidade, jun- zer que a prevenção fundamenta-se na idéia
tamente com as epidemias. Desta forma, os eugênica, de que purificando a raça se evi-
chamados menores tornam-se um proble- tariam os caracteres nocivos presentes nas
ma do poder público. As intervenções es- “raças inferiores”6 . Esta preocupação estava
tatais na questão do atendimento à meno- relacionada com o inchaço das cidades e os
ridade marginalizada pelas redes de moder- riscos que ocasionava à saúde. Com isto, há
nização das cidades começaram nesta épo- uma reorganização da Medicina, que deslo-
ca. As medidas higiênicas, visando a tirar ca seu objeto da doença para a saúde, au-
as crianças das ruas e a interná-las em ins- mentando sua entrada na sociedade, bem
tituições apropriadas, denominadas casas como sendo utilizada como apoio técnico-
de correção, tinham como método a edu- científico ao exercício do poder do Estado e
cação pela disciplina do trabalho (Martins de diferentes micro-poderes.
& Brito, 2001).
Neste sentido, percebe-se a preocupa- ______
ção com a gestão e a tutela dos chamados 5
Segundo (Foucault, 1996, p.88), “a vigilância per-
manece sobre os indivíduos por alguém que exerce
sobre eles um poder. E enquanto exerce esse poder
______ tem a possibilidade tanto de vigiar quanto de consti-
3
Essas idéias não são equivalentes, mas complemen- tuir, sobre aqueles que vigia, a respeito deles, um
tares. A primeira, tendo como pressuposto a sanida- saber. Um saber que tem agora por característica não
de, o controle de doenças e epidemias, servindo qua- mais determinar se alguma coisa se passou ou não,
se que como padrão estético, como sinônimo de lim- mas determinar se um indivíduo se conduz ou não
po, higidez. Já a segunda, caracterizando uma crença como deve, conforme ou não à regra, se progride ou
numa raça superior, numa humanidade racial, servin- não, etc”.
do de fator de inclusão ou exclusão social pela condi- 6
Martins e Brito (2001) lembram que a maior parte
ção étnica/racial. da população brasileira era constituída por mestiços,
4
Utilizaremos a terminologia menores justamente por considerados degenerados pelas teorias importadas
ser aquela que conceituava determinados segmentos da Europa, que aqui se transformavam em idéias na-
da infância, na época. cionalistas de embranquecimento do povo.

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Bulcão (2002) refere que a higiene se número de crianças que perambulavam
fez presente através do saber médico, onde pelas ruas estava fazendo aumentar a cri-
a preocupação era higienizar os espaços minalidade. Muitos autores, como Bulcão
públicos para poder melhor controlá-los. (2002), Rizzini e Pilotti (1995) e afirmam
Contudo, a limpeza das cidades passava que a infância foi judicializada neste perío-
pelos hábitos e comportamentos das famí- do e que o termo ‘menor’ foi incorporado
lias, tornando urgente a intervenção dos ao nosso vocabulário devido aos juristas.
médicos nesse campo, criando a necessi- Rizzini e Pilotti (1995) enfatizam que não
dade de uma educação sanitária para as houve nenhum tipo de problematização à
famílias7 . Como conseqüência das transfor- categoria ‘menor’ e que este termo incluía
mações familiares emergiram os sentimen- as seguintes classificações: abandonado,
tos de intimidade e de infância, até então delinqüente, desviado e viciado.
desconhecidos (Frontana, 1999). Um novo Os campos da psicologia e da pedago-
olhar recai sobre a criança, concebendo-a gia também se organizaram neste contex-
como um ser em desenvolvimento, como to, com o objetivo de estabelecer uma nova
matriz físico-emocional do adulto. Um ser educação que possibilitasse a produção de
que inspira cuidados e proteção no decor- um novo cidadão e o assentamento de uma
rer do seu desenvolvimento, constituindo- nova raça: sadia e ativa. Na década de 20
se uma das estratégias para se obter um disseminaram-se as campanhas e reformas
adulto moldado às exigências de um Esta- sob a denominação de “Movimento da Es-
do que se pretendia moderno, o que só cola Nova”. Segundo Pinto (2003), este
poderia ser viabilizado mediante investi- movimento surgiu a partir das discussões
mento numa formação do indivíduo que realizadas na Associação Brasileira de Edu-
lhe permitisse incorporar as idéias de pá- cação (ABE), criada em 1924. A ABE8 or-
tria, de nação moderna. A partir deste prin- ganizava os chamados “reformadores soci-
cípio, inverteram-se os papéis no âmbito da ais”, produzindo a função do técnico in-
família, onde a criança passou a ocupar um dispensável e eficiente para tratar das ques-
lugar central. Contudo, a centralidade da tões educacionais, criando, assim, uma eli-
criança, absorvendo a atenção e o amor dos te intelectual que acreditava ter a responsa-
pais, permitiu que a família perdesse sua bilidade de dirigir a população brasileira no
primazia na sociedade, cedendo lugar e processo de transformação do país através
poder ao Estado. Este assumiu para si o da educação. A autora enfatiza que: “guiar
papel de defensor da família e da proprie- e reformular os costumes, os gestos, os sen-
dade. Desta forma, a autora atenta para a timentos e até os corpos da grande massa
relação de interdependência que começa a em que se constituía a população brasileira
se esboçar entre o Estado e a família. passava a ser uma das tarefas desses profis-
Associada à intervenção da Medicina, sionais” (p.271)9 .
neste mesmo contexto, surge o discurso no
campo jurídico. É a vez dos juristas preo- ______
cuparem-se com a infância, pois o grande 8
É importante salientar também que o movimento da
ABE pressupunha uma educação laica, pública e para
______ todos e, neste sentido, foi altamente perseguida pela
7
A preocupação dos médicos com os altos índices de Igreja Católica que via, assim, perda de sua influência
mortalidade infantil fez com que estes direcionassem social. Como diz Foucault, o poder não é só negativo,
as campanhas para a formação de um novo modelo ele também cria coisas, é positivo.
familiar. Neste sentido, Bulcão (2002) aponta para a
9
Podemos dizer que a psicologia se insere na área da
redefinição do papel da mulher, uma vez que, através educação entre 1931 e 1934. Neste período, mais do
do discurso da valorização desta, visavam convencê- que comemorar a infância, buscou-se comemorar as
la da importância do cuidado permanente e direto crianças tomadas como objetos psico-médico-bioló-
com os filhos. O discurso científico foi utilizado para gico, passíveis de serem medidas, testadas e denomi-
persuadir a mulher na responsabilidade pela felicida- nadas normais e anormais. Pinto (2003) afirma que
de do lar. A estratégia era tomar a mulher como alvo as mudanças em relação as escolas teve a intenção,
para atingir toda a família. prioritariamente, disciplinar.

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Importante salientar que a Escola Nova caberia à psicologia “descobrir” os mais e
possuía o respaldo científico, podendo ser os menos aptos - através de mensuração de
observado todo o movimento paralelo de aptidões naturais - , pois os pedagogos e
valorização do discurso científico em detri- psicólogos europeus e norte-americanos
mento de outros saberes que porventura exis- acreditavam na possibilidade de identificar
tissem. É exatamente neste sentido que os e promover os mais aptos a partir dessas
estudos da psicologia eram bastante valori- técnicas científicas. Acreditavam que desta
zados, ou seja, o objetivo era melhor conhe- forma, gerariam uma sociedade mais igua-
cer aquela a quem se pretendia ensinar: a litária.
criança. Esta, que vinha recebendo grandes Neste período é criado o Laboratório
investimentos por parte de vários setores da de Biologia Infantil, órgão anexo ao Juiza-
sociedade, como os médicos e os juristas, do de Menores10 . Proposto em 1935, mas
desde o início da Primeira República. Desta passando a funcionar apenas em 1936, o
forma, o “mito da ciência” fortalecia-se en- Laboratório tinha por objetivo auxiliar o
tre intelectuais, ocorrendo uma verdadeira Juizado a ser mais eficiente em suas fun-
cientificização da educação. Aos poucos, as ções de abrigar e distribuir as crianças que
escolas vão deixando se penetrar por deter- necessitavam de proteção e assistência pe-
minados saberes, isto é, por “outras instân- las diversas instituições disponíveis. Desta
cias reguladoras para a tarefa de disciplina- forma, o Laboratório destinava-se a “for-
rização infantil, como a psicologia, a estatís-
tica, a biologia, a antropologia e a sociologia, ______
10
O Juizado atualmente é denominado 1º Vara da
que incutiam à pedagogia o status de ciên- Infância e Juventude. O início efetivo das funções do
cia” (Pinto, 2003, p.274). Juizado de Menores ocorreu em 1924. Este tinha
A psicologia destacava-se por seus es- como objetivo assistir, proteger, defender, processar
tudos acerca do desenvolvimento e das di- e julgar menores abandonados e delinqüentes. Tam-
bém avaliava e dava pareceres em casos relativos à
ferenças individuais, isto é, por deter um
perda ou suspensão do pátrio poder, à destituição de
conhecimento científico sobre o homem. tutela e à nomeação de tutores. Fazia exame do esta-
Desta maneira, podemos observar uma do físico, mental e moral das crianças; além de avaliar
mudança de enfoque, no movimento da a situação socioeconômica e moral dos pais ou res-
Escola Nova, na medida em que a psicolo- ponsáveis. Para alcançar tais objetivos, fez-se neces-
sária a construção de instrumentos de avaliação e
gia vai se consolidando como uma ciência classificação da clientela. Um dos instrumentos foi o
experimental. Segundo Patto (1996), a Es- exame médico-pedagógico, que assumiu diferencia-
cola Nova passa do objetivo inicial de cons- das formas ao longo dos anos. No primeiro modelo
truir uma pedagogia afinada com “as po- adotado pelo Juizado, as análises médica e pedagógi-
ca eram realizadas separadamente e eram bem deta-
tencialidades da espécie à ênfase na impor-
lhadas. O exame pedagógico tinha a finalidade de
tância de afiná-la com as potencialidades dos averiguar o grau de alfabetização e outras possíveis
educandos, concebidos como indivíduos que habilidades de crianças e adolescentes. Já o exame
diferem entre si quanto à capacidade para médico investigava antecedentes hereditários, do
aprender” (p.61). meio familiar, incluindo as condições higiênicas da
habitação e a moralidade dos familiares; além das
A psicologia, ancorada em estudos ex- condições físicas e intelectuais, bem como o caráter
perimentais e de observação de crianças, da criança, incluindo temperamento, afetividade, con-
reforça as noções de variabilidade entre os duta, presença de perversões sexuais e alcoolismo.
indivíduos e de capacidades individuais De maneira geral, a maior parte das perguntas não
eram preenchidas pelo médico. Posteriormente foi
diferenciadas. Nunes (1994) citado por Pin-
adotado um modelo que conjugava os exames médi-
to (2003) afirma que a psicologia era repre- co e pedagógico. Este continha apenas duas pergun-
sentada como uma ciência da qual depen- tas, que procuravam verificar se a criança sabia ler e
dia o progresso da educação, sendo os tes- escrever e se possuía alguma forma de alienação ou
tes uma das possibilidades para sua aplica- deficiência mental, epilepsia, cegueira, ou se necessi-
tava de cuidados especiais. A reestruturação do
ção nas escolas. Patto (1996) enfatiza que, Juizado de Menores ocorreu em 1935, após a morte
sendo cada indivíduo diferente do outro, do juiz Mello de Mattos (Oliveira, 2001).

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necer as bases científicas para o tratamen- quanto aos aspectos sociais que compõe o
to médico-pedagógico da infância abando- “desvio”13 .
nada e delinqüente” (Oliveira, 2001, p.238). Neste sentido, Martins e Brito (2003)
Ou seja, acreditava-se que o mesmo mode- apontam que a função primordial na vigên-
lo científico - de classificação - poderia cia da Doutrina da Situação Irregular14 era
transformar o aparelho assistencial, soluci- a produção de relatórios técnicos, nos quais
onando o “problema da infância”. enfocavam a etiologia da infração e as cau-
Como já poderíamos supor, a psicolo- sas da suposta “desagregação familiar” des-
gia apresentava-se como um dos instrumen- tes sujeitos. Os laudos daquele período re-
tos capazes de determinar as causas do des- produziam o padrão das elites sociais no que
vio do menor [itálico nosso]. Desta forma, o diz respeito à família, trabalho e moradia.
exame psicológico procurava investigar o Assim, a família era encarada como um pi-
nível intelectual da criança e a existência, lar para a recuperação dos jovens denomi-
ou não, de distúrbios psíquicos. Oliveira nados “infratores”. Contudo, se o simples
(2001) esclarece que não há indícios refe- fato de um jovem não contar com a presen-
rentes aos meios utilizados para tais diag- ça do pai na família, esta já era considerada
nósticos11 . como desagregada ou desestruturada. Evi-
De acordo com as finalidades do Jui- dencia-se que o fator determinante que per-
zado de Menores de observar, conhecer, mitia incluir (ou excluir) estes jovens em cer-
estudar e classificar a criança, o Laborató- tas medidas de ressocialização era a origem
rio de Biologia Infantil lança mão de dois sócio-econômica de suas famílias. Neste con-
assuntos de caráter psicológico: a psicotéc- texto, “a reintegração social estaria calcada
nica e o estudo da personalidade da crian- em uma total adaptação do jovem às regras
ça12 . Assim, a “investigação dos interesses
e do senso ético de crianças e jovens seria
______
feita mediante o uso de testes, objetivando 13
Segundo Oliveira (2001), o diagnóstico psicológico
não só classificar, mas resgatar o desviante, realizado no Laboratório, quanto ao tratamento, in-
enquadrando-o à normatividade dos regis- cluía a “psychotherapia”, o ensino profissional ou em
tros da mão-de-obra infanto juvenil” (Oli- classe especial e a “reeducação moral”. Contudo, na
veira, 2001, p.240). Desta forma, os saberes maioria dos casos a indicação era para internação em
estabelecimento disciplinar. Os próprios mentores do
científicos, especificamente o pensamento Laboratório não estavam satisfeitos, pois a falta de
psicológico, legitimou atitudes de exclusão estabelecimentos que pudessem cumprir as determi-
e desqualificação de crianças e jovens po- nações promovia a descontinuidade dos serviços.
bres e delinqüentes, uma vez que fez (ou Assim, em 1938, o Laboratório e o Juizado de Meno-
res passam por uma reorganização, sendo anexado
ainda faz) recair a terapêutica sobre o indi-
ao Laboratório um estabelecimento oficial de tria-
víduo desviante, esvaziando discussões gem para crianças do sexo masculino, antigo Abrigo
de Menores.
14
Esta Doutrina norteou os Códigos de Menores de
______ 1927 e1979, que procuravam legitimar uma inter-
11
Como exemplo de diagnóstico psicológico reali- venção estatal absoluta sob crianças e adolescentes
zado no Laboratório de Biologia Infantil, Alencar pobres, rotulados menores, sujeitos ao abandono e
Neto (1939) citado por Oliveira (2001), escreve: considerados potencialmente delinqüentes. Podemos
Oligofrenia com instabilidade motora; enurese; per- dizer que a concepção política social implicada era a
sonalidade instável; débil mental; Q.I. 68; memória de um instrumento de controle social. Importante
mecânica de números e palavras soltas ótima; me- acrescentar que diferentes projetos de alteração do
mória de idéias muito fraca. Muito sugestionável Código de Menores foram elaborados nas décadas
(processo n. 419 de 1935, exame realizado em 22/ de 60 e 70. Esses projetos podem ser agrupados em
03/37). duas correntes: uma favorável à inclusão dos dez prin-
12
Salientamos que o cargo de psicólogo ou psicóloga cípios da Declaração dos Direitos da Criança de 1959
- ou até psicologista - poderia ser ocupado por pro- na legislação específica brasileira e outra contrária a
fissionais de qualquer especialidade (educador, esta inclusão. Prevaleceu a corrente contrária à inclu-
psiquiatra, enfermeiro) devido à ausência de forma- são e, assim sendo, a equação “menor= criança +
ção de profissionais em psicologia. pobreza” permaneceu inalterada (Bulcão, 2002).

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e imposições institucionais, ou seja, o sujei- precisavam ser punidos e excluídos do con-
to ‘adestrado’, passivo e conformado era vívio em sociedade” (p.246).
considerado apto para retornar ao convívio Os idealizadores e defensores do SAM
social” (p.372/373). acreditavam que o modelo repressivo, bem
Lembremos que o psicólogo apenas foi como a contenção, faria extinguir a crimi-
reconhecido e legitimado em 1962, “com a nalidade. Por outro lado, Martins e Brito
função de adequar, ajustar e adaptar o in- (2001) mostram a contradição, uma vez que
divíduo ao mundo moderno” (Ayres, 2002, tanto a criança como o adolescente autor
p.122). Entretanto, percebemos que o dis- de ato infracional, que chegassem ao Jui-
curso psi já se encontrava disseminado em zado eram considerados delinqüentes na-
algumas práticas cotidianas, como no cam- tos, indivíduos de má índole e dotados de
po jurídico. Ayres afirma que dentre as alto grau de periculosidade. Desta forma,
matrizes que nortearam a trajetória da psi- fica claro que as instituições corretivas, “sob
cologia, duas se destacaram. Uma advinda o manto de uma proposta pedagógica adap-
do serviço social (assistencialista e cliente- tacionista, ou, mais tarde, reabilitadora,
lista) e a outra proveniente da concepção apenas institucionalizavam a exploração da
dicotômica da medicina (saúde/doença, mão-de-obra de crianças e adolescentes
normal/patológico, tratamento/prevenção). pobres, inviabilizados pela lei” (p.246).
Talvez tenha predominado a herança As autoras afirmam que o SAM, a par-
da cientificidade médica. E, assim, no cam- tir de 1960, começou a receber muitas crí-
po jurídico, o psicólogo – supostamente ticas, como falta de higiene, instalações ina-
neutro e objetivo – tenha sido chamado para dequadas, superlotação, ensino precário e
desvelar o “verdadeiro indivíduo”, com o exploração do trabalho dos internos. Além
objetivo de subsidiar a decisão do juiz. disto, a crítica mais dura e grave refere-se à
Neste sentido, Miranda Junior (1998) lem- acusação de contribuir para a marginaliza-
bra que a primeira solicitação à psicologia ção dos jovens pobres e “ineficaz no com-
ocorreu no campo psicopatológico, advin- bate à criminalidade, exatamente por usar
da da justiça. Os psicólogos eram nomea- métodos repressivos e arbitrários” (p.247).
dos pelo juiz como peritos, para que emi- Frontana (1999) salienta que os métodos
tissem laudos informando à instituição ju- utilizados pelo SAM eram denunciados sis-
diciária, “um mapa subjetivo do sujeito di- tematicamente pela imprensa como respon-
agnosticado” (p.29). O diagnóstico psico- sáveis pelo agravamento da criminalidade
lógico servia para classificar e controlar os juvenil, uma vez que suas instituições eram
indivíduos e eram realizados com o uso de consideradas “escolas do crime”, sendo
instrumentos e técnicas de avaliação psi- acusadas de formadoras dos “piores ban-
cológica. Neste sentido, dentre os esforços didos” que a opinião pública conheceu.
no sentido de definir políticas sistemáticas Com o Golpe Militar de 1964, o SAM
de intervenção, com o intuito de “recupe- é extinto. Neste período se instrumentaliza
rar” e “reintegrar” os jovens ao meio social, de fato a intervenção pública sobre os me-
foi fundado o Serviço de Assistência do Me- nores, através de uma política nacional ar-
nor (SAM), em 1942. Junto a este surgem ticulada de institucionalização, em que se
os reformatórios, que abrigavam – sob regi- consolida a Doutrina da Situação Irregular.
me disciplinar – “menores delinqüentes”. No regime militar, a dimensão social da re-
A estrutura destes era análoga ao sistema alidade brasileira esteve sempre subordina-
penitenciário (Martins & Brito, 2001). As- da aos requisitos da dimensão econômica.
sim, a disciplina e o trabalho eram os mei- Assim, a política dirigida aos “menores”
os empregados para corrigir condutas que também se ordenou em correspondência às
respondiam a defeitos morais. “Crianças e demais políticas sociais, revelando forte
adolescentes eram tratados da mesma for- obediência ao tipo de desenvolvimento eco-
ma que adultos criminosos; entendia-se que nômico e de dominação política posto em

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prática pelo regime autoritário (Frontana, tuíam dois campos básicos de interesse do
1999). Neste contexto, (Frota, 2002) a polí- Estado autoritário ao criar a FUNABEM.
tica de atendimento à infância passou a ser O primeiro era a preocupação com a con-
regulamentada por dois documentos legais: duta anti-social “que justificava a elevação
a Política do Bem-Estar do Menor (PN- do ‘menor’ à categoria de problema social
BEM) e, posteriormente, o Código de Me- a ser tratado dentro dos preceitos ditados
nores. A PNBEM era definida por um ór- pela Doutrina de Segurança Nacional”
gão central, a Fundação Nacional do Bem- (p.89). O outro campo refere-se à presença
Estar do Menor (FUNABEM), e executada cada vez maior de “menores” nas ruas das
nos estados pelas fundações estaduais do cidades, “vulneráveis ao comportamento
bem-estar do menor (FEBEM). Pode-se di- ilícito e criminoso, significando um fator
zer que a FUNABEM foi criada com o ob- de risco para a ordem pública, e era essa a
jetivo de formular e implantar a PNBEM, situação de risco que se evidenciava como
esta última com a incumbência de fixar as problema a ser equacionado e soluciona-
bases para uma nova estratégia de atendi- do” (p.89).
mento ao chamado “problema do menor”, A partir do pressuposto de que o “me-
em consonância com os novos tempos e a nor” com conduta anti-social era conside-
imagem de eficiência e modernidade do rado como um ser “doente” que necessitava
Estado brasileiro. de “tratamento”, a ação corretiva da FUNA-
Frontana (1999) aponta que os princí- BEM fundamentou-se em métodos terapêu-
pios e diretrizes que norteariam tal política ticos-pedagógicos desenvolvidos com a fi-
deveriam incorporar as mais modernas e nalidade de possibilitar a “reeducação” e a
avançadas concepções formuladas pelo dis- “reintegração” do “menor” à sociedade.
curso científico, “conferindo-lhe uma cre- Para Passetti (1999), a intenção ao se adotar
dibilidade derivada do culto à ciência como esta nova metodologia científica, fundamen-
guardiã da verdade” (p.87). Desta forma, os tada no conhecimento “biopsicossocial”, era
detentores do saber [itálico nosso], médicos, de romper com a prática repressiva anterior,
psicólogos, sociólogos, advogados, pedago- criando um sistema que “considerasse as
gos, entre outros, propuseram-se a formu- condições materiais de vida dos abandona-
lar e executar a PNBEM. Assim, as questões dos, carentes e infratores, seus traços de per-
relacionadas ao “problema do menor” foram sonalidade, o desempenho escolar, as defi-
repensadas e discutidas, com o objetivo de ciências potenciais e as de crescimento”
construir um saber oficial e um novo tipo (p.357). O autor acrescenta que a referida
de atendimento à infância e à adolescência política de atendimento pretendia mudar
“que pudesse equacionar problemas como comportamentos não pela reclusão do in-
o ‘desvio de conduta’, a ‘delinqüência’, a ‘cri- frator, mas pela educação em reclusão. Assim,
minalidade’, a ‘desordem familiar’, enfim, a educação não priorizava a correção de des-
tudo aquilo que se considera estar na base vios de comportamentos, mas visava formar
da marginalidade social” (p.87). um indivíduo para a vida em sociedade.
Entendemos que tanto a FUNABEM Neste sentido, Frontana (1999) diz que a FU-
como as FEBEMs surgiram, então, no cen- NABEM voltava-se para a utilização de polí-
tro de uma proposta fundamentada na pre- ticas de prevenção capazes de evitar que o
missa de que “tais instituições não poderi- “menor” incorresse no processo que levaria
am orientar suas ações segundo critérios à marginalização, à medida que a marginali-
meramente paliativos, mas sim por estraté- dade representava um fator de risco para a
gias e propósitos suficientemente abrangen- ordem e paz social. O esforço institucional
tes a ponto de consolidá-las como institui- para prevenir a “marginalização do menor”
ções diferentes” (Frontana, 1999, p.88). era parte importante do conjunto de estra-
Assim, a correção e a prevenção das causas tégias destinadas a estabelecer o bem-estar
do “desajustamento” do “menor” consti- nacional.

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A promessa do regime militar à popu- ta forma, duas categorias sobre a juventu-
lação era de que - através da FUNABEM - de foram produzidas: a do subversivo e a
o infrator teria um lugar exemplar de edu- do drogado. Categorias estas que escapa-
cação sem repressão. Afirmava que o trata- vam ao modelo de família sadia e estrutu-
mento “biopsicossocial” reverteria a “cul- rada e com sonhos de ascensão social. E as
tura da violência” que se propagava pelos práticas psi ajudaram a fortalecer as cren-
subúrbios com os conflitos entre gangues e ças nos modelos e nas homogeneidades.
com isso contribuiria para acabar com a Ainda no cenário acima descrito, a
marginalidade formando jovens responsá- pesquisa intitulada “especialistas nos anos
veis para a vida em sociedade (Passetti, 70: o esquadrinhamento dos corpos no es-
1999). Os reformadores falharam; e o resul- paço do Juizado de Menores” (Coimbra,
tado foi a estigmatização de crianças e jo- Matos & Torralba, 2002) faz uma impor-
vens de periferia como menores perigosos. tante análise referente a atuação dos espe-
Lembremos que em 1979 iniciava-se, cialistas atuantes nesse espaço jurídico atra-
- ainda que de forma incipiente - o proces- vés de processos referentes à perda e/ou re-
so de abertura política do país. Nesta épo- formulação do vínculo familiar15 . Exami-
ca, a PNBEM sofria severas críticas, muitas nando os processos, percebe-se que os es-
destas estabelecendo paralelos entre o an- pecialistas do juizado ocupavam um lugar
tigo SAM e a supostamente nova FUNA- de saber que excluía as experiências e o
BEM, agora chamada escola do crime. Tor- modo de ser daqueles que recorriam a essa
nava-se visível a eficiência do Estado na instância jurídica em busca de auxílio. Na
produção de “menores abandonados, menores medida em que essas pessoas divergiam do
de rua, menores em situação de risco, através modelo oficial estabelecido pela ditadura
de suas políticas/práticas de exclusão soci- militar, eram desqualificadas. Através do
al. Era preciso portanto mudar a imagem: estudo percebe-se uma aderência do dis-
o discurso terapêutico dava lugar ao da pre- curso da assistente social a padrões fixos
venção” (Ayres, 2001, p.251). de moradia, educação, saúde, bem-estar e
Concomitantemente, os especialistas higiene. “Sobre a situação familiar, há uma
da área social ganhavam visibilidade. Se- importância dada ao modelo de organiza-
gundo Coimbra (1995), através de seus sa- ção da família burguesa. Além disso, reco-
beres, muitos destes desqualificaram a vida nhecemos na fala desse profissional uma
de crianças pobres e interferiram, ou até predominância do discurso psi ao realçar a
determinaram, seus destinos. E desta for- ausência de conflitos familiares” (p173).
ma, a família pobre continuava a ser res- Denota-se também que “o discurso mora-
ponsabilizada pelo comportamento de seus lista e hegemônico da classe média perpas-
filhos. A diferença é que a penalização (nas sa a fala do profissional, travestido de ver-
décadas de 1970 e 1980) era sustentada dade científica e amparado pelo selo da
pelo discurso dos especialistas, que atesta- proteção ao ‘menor’” (p.173).
va o fracasso da família no atendimento à Lembremos que nas discussões trazi-
prole. A autora salienta que nos anos 70, as das pelo PNBEM, houve a reformulação do
práticas psicológicas eclodiram no país. Código de Menores. Este tinha o objetivo
Contudo, estas eram totalmente distantes de “proteger a sociedade” dos “distúrbios
dos chamados novos movimentos sociais, patológicos” da exclusão social, onde inclu-
uma vez que fortaleceram as subjetivida- íam-se os “menores”. Neste sentido, as au-
des hegemônicas produzidas durante aque-
le período. Coimbra e Leitão (2003) lem- ______
bram que na Doutrina de Segurança Naci- 15
As autoras, através da abordagem histórico-
onal tudo que escapasse às formas de inte- genealógica, escolhem o recorte histórico de 1974 a
1985 por englobar o boom da psicologia e da psicaná-
riorização naturalizadas era considerada lise no Brasil, bem como a reformulação do Código
perigoso, e assim, deveria ser banido. Des- de Menores, em 1979.

Aletheia 20, jul./dez. 2004 85


toras nos convocam a refletir sobre o traba- em que a posição do psicólogo como “es-
lho dos especialistas que atuavam segundo pecialista perito” é ratificada, na medida em
os princípios do PNBEM, uma vez que eles que seus discursos autorizados/científicos
possuíam “um papel fundamental na dis- acabam por conferir uma ‘essência’ às for-
seminação e fortalecimento de uma políti- mas alternativas de convivência familiar,
ca, cuja idéia central era zelar pela infância pelo deslocamento do foco de questões so-
com o intuito de produzir os futuros cida- ciais para os aspectos individuais. A pes-
dãos brasileiros” (p.181). quisa aponta para formas descontextuali-
Ayres (2001) salienta que a prática de zadas de compreender as questões sociais,
desqualificação realizada pelos técnicos do uma vez que fragmentam o sujeito em dois
Juizado (psicólogos e assistentes sociais) pólos distintos, ainda que tangenciados:
legitimavam os motivos da família quanto indivíduo e sociedade. Como conseqüên-
à desistência do pátrio poder, supondo a cia, o aparato institucional vai produzindo
pobreza como natural e imutável, bem um processo de desqualificação das formas
como associada à incapacidade para assis- de vida das famílias pobres, reforçando a
tir os filhos. Silva (1998) acrescenta que o produção de subjetividades incompetentes,
princípio da destituição do pátrio poder de famílias incapazes de solucionar seus
afirmou-se neste período e que a sentença problemas18 . A partir disto, a autora adver-
de abandono retirou a criança da responsa- te sobre a necessidade de uma revisão dos
bilidade dos pais, da comunidade e da so- fundamentos/conceitos teóricos que vem
ciedade, transferindo-a para o Estado. Essa sustentando a prática hegemônica denomi-
condição jurídica da criança é que justifi- nada produção/naturalização da perda do vín-
cou e legitimou sua internação até os 18 culo familiar.
anos – a institucionalização propriamente Gomes e Nascimento (2003), também
dita – e que configurou a categoria de cri- adotando o enfoque-genealógico para pen-
anças denominada filhos do Governo. Con- sar os movimentos de proteção dirigidos à
siderando este contexto, bem como a di- infância e juventude pauperizados, afirmam
vulgação e a repercussão dos dados da pró- que o confinamento e a desqualificação dos pais
pria FUNABEM (a cada dois brasileiros estão presentes nas práticas e discursos que
menores de 19 anos, pelo menos um en- atravessam os equipamentos sociais, tais
contrava-se em situação de carência) outra como Juizados, escolas e abrigos. “Tanto a
estratégia de assistência à população infan- internação quanto a atribuição de culpa à
to-juvenil ia sendo gestada (Pinheiro, família ainda ocupam a cena das práticas de
2001)16 . assistência” (p.323). Neste recente estudo,
Em relação ao período de 1985 e 1994 as autoras apontam que “tal como os médi-
(transição entre o Código de Menores e o cos-higienistas e os juristas do início do sé-
ECA), Ayres (2002)17 realizou em estudo culo, alguns dos atuais técnicos recomen-
dam medidas disciplinares aos desviantes e
______ o fazem apoiados em um saber científico,
16
A ruptura com a cultura excludente e persecutória
tido como inquestionável” (323).
foi sendo construída gradativamente. O marco desta
ocorreu em 1990, com a criação do ECA, atendendo Lembremos que as relações de poder
ao disposto no artigo 227 da Constituição Federal de são múltiplas e atravessam a produção do
1988. Para saber mais sobre este período, sugerimos conhecimento (Foucault, 1996), não haven-
ler Pinheiro (2001). do relação de poder sem a constituição de
17
O estudo mencionado, partindo da abordagem his-
tórico-genealógica, propôs-se a pensar a produção ______
da categoria perda do vínculo familiar e seus efeitos 18
Segundo o estudo de Barbosa, Ayres, Princeswal,
impressos nas práticas dos especialistas do judiciário Carvalho & Oliveira (2002), “as famílias que aportam
na área da infância e juventude, dentre eles, o psicó- ao Juizado não apenas são desqualificadas pelos es-
logo. A análise ocorreu a partir de uma pesquisa feita pecialistas, como também assumem tal discurso, jul-
em processos do Juizado da Infância e da Juventude gando-se incapazes por não estarem enquadradas
do Rio de Janeiro. nos modelos hegemônicos” (p.202).

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um campo de saber. Os saberes são com- veremos todos os problemas apenas melho-
preendidos por Foucault como dispositivos rando a renda. Neste sentido, Demo (1995)
políticos articulados com as estruturas so- faz uma dura crítica ao ECA, na medida
ciais. Neste sentido, os dados da referida em que esta Lei “expressa uma das políti-
pesquisa mostram alguns especialistas cas sociais mais divorciadas das relações de
como proprietários desse “suposto saber”, mercado e por isso frouxa, setorialista, ine-
ocupantes de um lugar instituído, cristali- ficiente e inexpressiva” (p.102). É neste sen-
zado e naturalizado, e que atuam com a tido que ele afirma que o problema não pára
crença na neutralidade positivista defendi- de crescer, uma vez que nada se resolve en-
da ainda hoje pela ciência. Assim, a “pro- quanto a pobreza não for atingida. Acres-
dução de saberes sobre os indivíduos, sua centa que o problema do ECA é o de culti-
normalidade ou anormalidade e os efeitos var a cidadania assistida, passando longe
dessa prática fazem com que os especialis- das raízes do problema. Por conta disto, não
tas estejam diretamente envolvidos no pro- é preventivo, superdimensionando a força
cesso de produção de subjetividades” (Go- de políticas sociais setoriais, reduzindo-as
mes & Nascimento, 2003, p.325/6). na prática à educação e assistência. Como, por
Podemos perceber que à psicologia ain- exemplo, propor proteção [itálico nosso] à
da é endereçada uma solicitação dicotomi- criança e ao adolescente, “revelando logo
zada: individual/social; normal/patológico; uma tendência assistencialista, quando na
família estruturada/desestruturada, bem verdade, a posição mais correta seria a de
como o acolhimento desta por uma parte da garantir o direito ao desenvolvimento inte-
psicologia. Muitos profissionais ainda pau- gral. Trata-se tipicamente de oportunidade
tam - e talvez sempre o façam - suas práticas [itálico nosso] , não apenas de proteção”
em concepções naturalistas do conhecimen- (p.101). A raiz do problema está na pobre-
to, calcados na objetividade e neutralidade, za política19 , embora a pobreza material seja
propondo a existência de um homem aprio- a mais imediata e empurre a criança e o
rístico que se realizará a partir do meio. Con- adolescente para a rua.
siderando que o discurso científico está pro- A análise realizada por Demo (1995)
duzindo subjetividades desqualificadas (fa- demonstra que as estratégias emancipató-
mílias incompetentes e negligentes), como rias deveriam favorecer atividades de pro-
os sujeitos poderão assumir funções na or- dução e participação, apoiando-se em três
dem social vigente? Ao se sentirem incapa- aspectos na relação entre política social e
zes de prover seus filhos, por exemplo, pre- política econômica. A política social deve
cisam da tutela ou da assistência dos cha- manter diálogo com a política econômica,
mados saberes científicos, onde a psicologia uma vez que toda política social carece de
ocupa lugar privilegiado. financiamentos provenientes dos setores
Sabemos, contudo, que a tutela está na produtivos. O segundo aspecto diz respei-
contramão da cidadania, uma vez que esta to à viabilização de propostas dependentes
não emancipa o sujeito. Queremos dizer da economia, como o atendimento assis-
com isto que as famílias não podem dis- tencial à criança - que implica o acesso a
pensar todos os aparatos possíveis, como emprego e renda de sua família. E o tercei-
os serviços públicos, as entidades não-go- ro refere-se à educação básica, que não deve
vernamentais e a assistência social. Contu-
______
do, de nada adianta os abrigos para crian- 19
“Por pobreza política compreende-se a dificuldade
ças e adolescentes em situação de risco pes- histórica de o pobre superar a condição de objeto
soal e social, se suas respectivas famílias tam- manipulado, para atingir a de sujeito consciente e
bém encontram-se “em risco”. E como a organizado em torno de seus interesses. Manifesta-
se na dimensão da qualidade, embora seja sempre
pobreza é, via de regra, um fenômeno fa-
condicionada pela carências materiais também. Mas a
miliar, o suporte a esta parece essencial. essas jamais de reduz, apontando para o déficit de
Muito embora seja notório que não resol- cidadania” (Demo, 1996, p.20).

Aletheia 20, jul./dez. 2004 87


representar apenas instrumentação mais sim como uma Lei, por si só, não se consti-
efetiva da cidadania, mas também da pro- tui como instrumento de transformação,
dutividade. como vimos através do discurso psicológi-
A questão central parece ser como cri- co acerca do vínculo familiar.
ar as oportunidades. Quais práticas psicoló- Contudo, concebemos a história como
gicas favorecem a emancipação dos sujei- um campo de forças em luta, onde um cer-
tos, dos grupos e das comunidades? Como to discurso emerge como hegemônico den-
ampliar os projetos de trabalho e geração tre outros. Logo, há outros discursos. As-
de renda? Se estes questionamentos inqui- sim, podemos dizer que o ECA representa
etam, ecoam, também lançam-nos ao cam- uma ruptura. E, embora as mudanças tra-
po das invenções, criações; logo o desafio zidas na gestão das políticas de assistência
está colocado. Aliado ao desafio está a im- social e da criança e do adolescente ainda
portância de se investir em produção de sejam um desafio quanto à implementação
conhecimento, uma vez que a temática é e consolidação, percebe-se o fortalecimen-
complexa e pouco estudada. Acreditamos to dos conselhos de assistência, de direitos
que com produção e sistematização de co- da criança e adolescente e tutelares, mili-
nhecimentos cria-se alternativas de inter- tantes e intelectuais dos diversos setores da
venção. E, para tal, torna-se urgente o for- sociedade. Lembremos que a possibilidade
talecimento dos recursos. Sabemos que é de plena participação da sociedade civil na
uma tarefa difícil, pois a própria categoria gestão das políticas públicas ainda é recen-
psi, segundo o estudo realizado por Barbo- te no país. Além disso, para a maioria das
sa e cols. (2002), remete às autoridades di- categorias profissionais, trabalhar com po-
tas competentes como Governo, ONGs e líticas públicas implica em uma ruptura
sociedade civil, o encargo da implementa- paradigmática apontando também para
ção das políticas públicas, julgando-as do uma sensibilização para tópicos ainda pouco
domínio dos políticos. E nós? Não fazemos contemplados na acadêmica, como: direi-
parte de sociedade civil? tos humanos, cidadania, movimentos soci-
Mesmo que, historicamente, o psicó- ais e conselhos.
logo tenha pouco se apropriado desta te- Um desafio premente refere-se à for-
mática, está atravessado por ela, uma vez mação acadêmica que, algumas vezes, ain-
que a prática deste profissional (e de qual- da privilegia o conhecimento técnico cien-
quer outro) sempre obedece a alguma polí- tífico utilizando-se de concepções e práti-
tica pública. Se entendermos que as ações, cas avaliativas e adaptacionistas. Neste sen-
estratégias e planos de intervenção, no que tido, percebemos um equívoco quando al-
se refere à área da assistência à infância, guns profissionais afirmam estar desenvol-
adotam um conjunto de enunciados - ex- vendo projetos emancipadores só por tra-
plícitos ou não - a execução estará perpas- balharem com a população pobre. Por ou-
sada pelas políticas adotadas, independen- tro lado, há docentes e pesquisadores com
temente se for por parte do Estado ou não. postura interrogativa frente ao conhecimen-
Existem profissionais, por exemplo, que se to psicológico, bem como na busca de pres-
queixam da forma como o serviço é execu- supostos epistemológicos comprometidos
tado, alguns reivindicam melhorias às dire- politicamente.
ções, mas são poucos os que participam dos Para finalizar, gostaríamos de dizer que
fóruns de discussão e formulação das polí- as problematizações trazidas aqui são um
ticas, como por exemplo os conselhos regi- desafio para o campo psi. Concordamos
onais de assistência social, as comissões lo- com Coimbra e Leitão (2003) quando con-
cais de saúde, abertos a qualquer cidadão, cebem o campo das intervenções como um
onde são definidas as diretrizes dos servi- território assumido como político, onde as
ços. A existência de espaços democráticos, lutas são cotidianas. Apostamos na proposta
por si só, não garante a participação. As- transdisciplinar, onde seja possível a “con-

88 Aletheia 20, jul./dez. 2004


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