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ÉTICA E MORAL

José Henrique Silveira de Brito.

1.É tradição iniciar os cursos de Ética chamando a atenção para o facto


de o recurso à etimologia das palavras "ética" e "moral" nada orientar
para a distinção do conteúdo dos dois termos. I Ética apresenta-se como
uma formação nominal de origem grega, que se pode associar ao género
feminino de dois adjectivos triformes, por um lado TJfhxós ("que diz
respeito aos costumes", "relativo ao carácter e à moral"), e outro etJlxós
("usual", "habitual", "familiar"). O primeiro dos adjectivos, recuperado
por Heidegger,2 é derivado do substantivo neutro Êthos (escrito com eta:
TJfJos),já presente na mais antiga poesia grega, a significar "morada",
"toca", "lugar onde vivemos", "estância"; a partir de Hesiodo, o termo
assume uma evolução semântica particularizada, associada a um emprego
psicológico e moral, passando a corresponder à significação "maneira de
ser habitual", "disposição de espírito", "carácter", interioridade de que
brotam os actos.) O segundo, fixado por Aristóteles,4 apresenta-se tam-

. Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa, Braga.


I Para uma introdução geral à Ética cf. VAZ, Henrique C. de Lima - Escritos
de Filosofia IV. Introdução à Ética Filosófica I. São Paulo, Edi~ões Loyola, 1999,
pp. 7-76. Cf. também, do mesmo autor, Escritos de Filosofia. 11Etica e cultura. São
Paulo, Edições Loyola, 1988.
2 Cf. HEIOEGGER, M. - «Lettre sur l'humanisme». In: 10 - Questions m.
Paris: Gallimard. 1966,p. 138.Nas pp. 135-143o autor fala da Ética. Sobre toda esta
problemática, em especial sobre a «dimensão moral» do agir humano, cf.
LADRIERE, Jean - «Le concept de tldimension éthiquetl». 10 - L'éthique dans l'uni-
vers de la rationalité. Saint-LaurentlNamur: FideslArtel, 1997, pp. 21-42.
3 Lima Vaz chama a atenção para o facto de T/()os,escrito com eta, ser «a
transposição metafóricada significação original com que o vocábulo é empregadona
língua usual grega e que denota a morada, covil ou abrigo dos animais. [00']A trans-
posição metafórica para o humano de ethos para o mundo humano dos costumes é
extremamente significativa e é fruto de uma intuição profunda sobre a natureza e
sobre as condições do nosso agir (praxis), ao qual ficam confiadas a edificação e
preservação de nossa verdadeira residência no mundo como seres inteligentes e
livres: a morada do ethos cuja destruição significaria o fim de todo sentido para a
16 José Henrique Silve ira de Brilo ÉTICA E MORAL 17

bém como um derivado de outro substantivo neutro grego, Éthos (escrito que chama «ma petite éthique»,9 constatando que etimologicamente os
com épsilón: El?as), a significar "uso", "costume", "hábito", "carácter", dois termos são sinónimos, decide por convenção utilizar o termo "ética"
"modo de ser", que se adquire pela acção repetida, "hábito" no sentido de para se referir à procura da vida boa, com e pelos outros em instituições
perfeição, actualização de si em que consiste o próprio homem.5 Ambas justas, e "moral" para se referir ao conjunto de normas que regem em
as formas nominais gregas, Tli}os e Ei}os, com uma provável origem concreto o agir que pretende atingir essa vida boa.lo Posteriormente, num
indo-europeia comum, e associada, na língua grega, à forma verbal Ei}ro, texto de 2000, o autor, reconhecendo que os especialistas não se enten-
"ter o costume", foram, desde a Antiguidade utilizadas para traduzir con- dem sobre o sentido a dar a cada uma das duas palavras, mas que concor-
dam «na necessidade de dispor de dois termos», propõe utilizar
ceitos aproximados.6
O termo moral tem a sua origem no latim, mos - moris, e signi-
«o conceito de moral para o termo fixo de referência e de lhe atribuir uma
fica "costume", "carácter", "módo de ser". Como é evidente, do ponto de
dupla função, a de designar, por um lado, a região das normas, dito de
vista etimológico, a sinonímia dos termos "ética" e "moral" é perfeita, o outro modo dos princípios do permitido e do proibido, por outro lado, o
que explica que no linguajar de todos os dias eles se apresentem como séntimento da obrigação enquanto face subjectiva da relação de um sujeito
sinónimos. É por isso comum afirmar que determinado comportamento é a essas normas». I1
moral ou ético, ou que determinada pessoa é do ponto de vista moral, ou
do ponto de vista ético, irrepreensível. Com o termo "ética" Ricoeur aponta em duas direcções; «a ética
anterior apontando para o enraizamento das normas na vida e no desejo, a
2. Seguindo a sugestão dada pelo estudo etimológico dos termos que ética posterior visando inserir as normas nas situações concretas».12 À
aponta para lhes atribuir o mesmo sentido, há autores que os utilizam ética anterior chama-lhe «ética fundamental». 13
indistintamente como Roque Cabral por vezes faz,7e outros que recorrem Estas distinções ricoeurianas evidenciam uma realidade aceite
aos dois termos para significar conceitos diferentes.8 Ricoeur, no texto pelos especialistas da filosofia moral: por um lado, a vida moral é vivida
em obediência a um conjunto de valores, princípios e normas que regem a
vida propriamente humana» [VAZ, 'Henrique C. de Lima - Escritos de Filosofia IV.
vida de uma comunidade.14 A este nível, julgar da moralidade do agir é
Introdução à Ética Filosófica I, p 13]. verificar se ele está ou não conforme a norma moral, conforme o princí-
4ARlSTÓTELES -Ética a Nicómaco, 1103a 17-19. pio moral. Está-se num primeiro nível em que se procuram esses princí-
5 Para uma explicação mais desenvolvida da etimologia destes termos, cf.
ARANGUREN, José Luis L. - Ética. Madrid: Alianza Editorial, 1994, (1958), pp.
19-26; CABRAL, Roque - Temas de Ética. Braga: Publicações da Faculdade de 9 RICOEUR, Paul- «De la morale à I'éthique et aux éthiques». AA. VV. - Un
Filosofia UCP, 2000, pp. 33 e 76 e NEVES, Maria do Céu Patrão - «Paideia e siecle de philosophie. 1900-2000. Paris: GallimardlCentre Pompidou, 2000, p. 103,
ethos». Arquipélago. Série Filosofia nO6. 1998, pp. 89-90. Para uma apresentação da nota I.
etimologia e desenvolvimento do ethos, do ethos à ética e desenvolvimento da ética 10Cf. RICOEUR, Paul- Soi-même comme un autre. Paris: Seuil, 1990, p. 200
comosabercf. VAZ, HenriqueC. Lima - Escritos de Filosofia. II Ética e cultura. e ss. Sobre este tema cf. RlCOEUR, Paul - «Éthique et morale».Revista Portuguesa
Col.: Filosofia n° 8, São Paulo, Edições Loyola, 1988. Para o tema do ethos, a cons- de Filosofia. 46(1990), pp. 5-17 e RENAUD, Isabel Cannelo Rosa; MICHEL,
tituição da ética e uma perspectiva da ética em alguns autores fundamentais do pen- Michel - «Moral».Logos.Vol3, cols. 959-960.Este últimotexto é uma excelente
sar Ocidental cf. V AZ, Henrique C. de Lima - Escritos de Filosofia. IV. Introdução introduçãogeral à Ética.
à Ética Filosófica I. Col.: Filosofia. São Paulo, Edições Loyola, 1999. 11RICOEUR, Paul- «De la morale à l'éthique et aux éthiques», pp. 103-104.
6 A redacção deste apartado deve muito às preciosas indicações da Professora 12Idem, p. 104.
Ana Paula Pinto, da área de Línguas e Literaturas Clássicas do Curso de Humanida- 13Idem, p. 107.
des da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa, em Braga. 14Sobre a questão da comunidade ética, cf. OLIVETTI, Marco - «Le probleme
7Cf. CABRAL, R. - Temas de Ética. Braga: Publicaçõesda Faculdade de Filo- de la communauté éthique». Qu 'est-ce que l'homme? Bruxelles: Facultés Universi-
sofia UCP, 2000, p. 78. taires de Saint Louis, 1982, pp. 324-343. Sobre a situação contemporânea em que há
8 Para uma exposição sobre diversas acepçães ética e moral cf. LADRlERE, uma civilização universal e a necessidade, impossivel de satisfazer, de uma comuni-
Jean - «Le concept de "dimension éthique"». In: 10 - L'éthique dans l'univers de la dade ética universal, cf. VAZ, Henrique C. de Lima - Escritosde Filosofia. m. Filo-
rationalité. Saint-LaurentlNamur: Fides/Artel, 1997,pp. 22-24. sofia e Cultura. São Paulo: Edições Loyola, 1997,pp. 139-151.
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18 José Henrique Silveira de Brito ÉTICA E MORAL 19

pios e regras. Por outro lado, há um segundo nível que é aquele em que se à vivência da vida moral como expressão da humanidade do ser
procuram as características dessa!) normas e a sua justificação ou funda- humano. 19
mentação. Está-se então perante uma reflexão mais profunda que nor-
malmente se designa com o termo "ética". É a distinção feita por José 3. Afirma Ricoeur que «há um problema moral, porque há coisas
Luis Aranguren entre moral vivida e moral pensada:s Quanto à existên- que é preciso fazer ou que vale mais fazer do que outras».20 Se o agir
cia deste dois níveis de reflexão, há acordo entre os filósofos da moral. humano fosse neutro, não haveria problema moral. O problema moral
Na utilização dos termos para os designar, é que o acordo desaparece, surge porque as coisas, as acções não têm todas o mesmo valor. E porque
embora a distinção feita por Ricoeur seja bastante partilhada, tal como se é que há coisas que têm de ser feitas ou que é bom que sejam feitas? Num
verifica com Adela Cortina. texto sobre a dimensão ética Jean Ladriere afirma que há um problema
Esta filósofa chama moral ética porque «a existência é constitucionalmente atravessada por um voto
fundarpental, por um querer profundo, que visa a sua própria realização
«[à]queles códigos e juízos ql,1epretendem regular as acções concretas dos autêritica, e que, correlativamente, ela tem o encargo de assegurar para si
homens, oferecendo normas de actuação com conteúdo à pergunta "que mesma, na sua acção, esta mesma realização».21
devo, como homem, fazer?,,».16
A realização da existência leva à ponderação dos valores em pre-
sença e à elaboração de uma escala de valores, o que hoje suscita grandes
A moral é aquele conjunto de regras, princípios e valores a que, na
dificuldades. Há uma grande tentação de dizer que os valores não são
concretude da vida quotidiana, o ser humano deve obedecer para viver
universais, que todas as morais têm o mesmo valor. Os antropólogos e os
humanamente; a moral é imediatamente normativa. A ética, por sua vez,
sociólogos apontam nessa direcção, mas é preciso não esquecer que a
é a reflexão sobre a dimensão moral que caracteriza o humano e que é
Antropologia e a Sociologia não são a Ética. É muito cómodo dizer que
irredutível a qualquer outra dimensão do homem, seja ela psicológica,
todas as morais têm o mesmo valor, mas quando isso nos afecta, como
social ou histórica. A ética é uma reflexão crítica, filosófica sobre a moral
diz José António Marina, «é outro cantar»;22terá o mesmo valor a moral
na procura daquilo que a caracteriza e a justifica. Para Adela Cortina e
dos skins-heads e uma moral que respeita os outros? Se olharmos para o
Emilio Matínez, a ética tem três funções: (I) clarificar o que é o moral e
futuro, melhor reconhecemos como seria bom criar uma moral universal.
quais as suas. características específicas; (2) fundamentar a moralidade;
A primeira função da ética é precisamente clarificar, procurar os porquês
(3) aplicar aos diversos âmbitos da vida humana o que se descobriu nos
desse que fazer ou fazer melhor. É esta tentativa de esclarecimento que
dois primeiros pontos. I?Xavier Etxeberria acrescenta que também é fun-
muitas vezes leva a descobrir que determinada norma que era vivida
ção da ética «precisar igualmente os bens supremos e/ou regras ou impe-
como norma moral, se transformou em mera norma social, ou que deter-
rativos que se constituem como referente moral último das nossas
minado valor moral concretizado em determinado comportamento,
acções».18Com Annemarie Pieper, acrescentarei mais uma função: incitar
devido a circunstâncias históricas, a descobertas científicas, deixou de se
expressar de determinada maneira, deixou de ser vivido na obediência a
determinadas normas e passou a ser concretizado numa conduta diferente.
É esta reflexão ética que levará à descoberta de uma característica ftm-
15Para este autor, a moral filosófica parte da vida, da vida moral, que não foi
inventada pelos filósofos, mas que faz parte da vida de cada homem enquanto 19PIEPER, Annemarie - Ética y Moral. Una introducción a la filosofia prá-
homem; a ética é uma «moral pensada» que parte da «moral vivida». Cf. tica. Barcelona: EditorialCrítica, 1990, p. 10.
ARANGUREN, José Luis L. - Ética, p. 10. 20RICOEUR,Paul- «De la morale à l'éthique et aux éthiques», p. 105.Sobre o
16CORTINA, Adela - Ética minima. lntroducción a la filosofia prática. 4' ed. tema porque é que há hoje um problema moral hoje cf. LADRIERE, Jean - «Le
Madrid: Editorial Tecnos, 1994, p. 81.
17 Cf. CORTINA, Adela; MARTÍNEZ, Emilio - Ética. Madrid: Ediciones conce~t de "dimension éthique"», pp. 29-36.
1 LADRIERE, Jean - «Le concept de "dimension éthique"», p. 34.
Akal,~. 23. 22 MARINA, José António - Ética para náugrafos. 4' Ed. 1995 (1' 1995).
8 ETXEBERRIA, Xavier - Temas Básicos de Ética. Col.: Ética de las Barcelona: EditorialAnagrama, p. 68. Sobre este tema cf. pp. 66-68. Há uma tradu-
Profisiones. Bilbao: Desclée De Brouwer, 2002, p. 24. ção portuguesa destaobra publicada pela Caminho, 1996.

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20 ÉTICA E MORAL 21
José Henrique Silveira de Brilo

damental da norma moral: a sua universalidade, que tantas questões sus- A Ética empresarial, que nasceu nos anos 70, teve a sua origem
citará. É na tentativa de esclarecimento da vida moral que se há-de na crise de confiança gerada por uma série de escândalos que afectaram a
encontrar a articulação da noção de dever, tão presente na vida moral, sociedade americana, quer na esfera política quer na esfera propriamente
com o desejo, tão constitutivo do ser humano quanto é o dever; será nesta económica26. Para além desta crise que levou ao aparecimento desta ética,
função de esclarecer que se deverá explicitar o lugar e alcance da razão e hoje as empresas vêem-se perante problemas para os quais não há solu-
da sensibilidade na vida moral, e a sua articulação na razoabilidade, con- ções feitas. Os especialistas consideram que o movimento de globaliza-
ceito fundamental para uma vida equilibrada, mas tão dificil de afinar. ção é imparável e que poderá ser benéfico para os países menos desen-
Uma das funções da "ética anterior", para utilizar a denominação de volvidos se for feita com regras. Que normas devem reger as relações
Ricoeur, é a da fundamentação da moral, da norma moral, do código entre as empresas e a sociedade, as empresas e o estado, as empresas e a
natureza?
moral. Por que razão a conduta humana não é axiologicamente neutra?
Por que é que o ser humano deve viver moralmente? Por que é que a vida
humana bem vivida deve procurar o bem e evitar o mal? Por que é que o A. Costuma apontar-se como ponto de partida da reflexão moral a
dever moral deve ser obedecido? O que é que é o bem? O pluralismo exp~riência subjectiva do ditame da consciência moral, a existência de
moral implicará os incomensuráveis morais? Haverá estranhos morais normas morais presentes em todas as culturas, a experiência do mal. A
como os entende Engelhardt?23 Será possível e aceitável o relativismo moral não é, pois, estranha ao homem, não lhe é extrínseca, não é alguma
moral? Será que a relatividade moral não levará necessariamente ao rela- coisa que se lhe acrescenta. Como afirma Jean Ladriere: «a ética impõe-
tivismo?24Como conviver com o pluralismo moral e que critérios permi- -se pela sua própria virtude, sem ter que se apoiar num fundamento exte-
rior; ela pertence à constituição do humano».27 É vivendo moralmente
tem hierarquizar os diversos códigos morais?
A terceira função da ética é "ética posterior". Aqui procura-se que o homem se realiza, atinge a plenitude. A moral não é um bloqueio
fazer o regresso da reflexão sobre a vida moral à moral prática, concreta; para a pessoa, um colete de forças, mas caminho para a sua realização. É
isto é, o objectivo dessa ética é partir da moral filosófica para a vivência nesta linha de pensamento que se devem entender as normas morais pois
da moral. Trata-se de elaborar o que hoje se chamam "éticas aplicadas". que, se é verdade que, como diz Ricoeur,
A filosofia parte da vida para regressar à vida; a ética parte da experiência
«a moral não pressupõe mais nada do que um sujeito capaz de se pôr pondo
moral para, após uma reflexão de segundo grau, regressar à vida moral.
urna norma que o põe corno sujeito. Neste sentido pode-se tomar a ordem
Esta função pode confrontar-se com duas situações. Uma é a procura da moral corno auto-referencial»,28
tradução na vida moral do que se encontrou na reflexão das outras duas
funções da ética. A segunda visa encontrar o modo de viver moralmente o certo é que esta norma tem as suas particularidades que suscitam
situações que foram despoletadas por descobertas científicas, novos con- várias questões e uma delas, que vale a pena tratar, é a da sua distinção
textos sociais, alterações de costumes. Dois bons exemplos de éticas apli- entre normas morais e normas jurídicas.
cadas são a Bioética e a Ética Empresarial. A primeira teve origem nas A Ética e o Direit029são dois sistemas normativos cuja distinção é
novas circunstâncias criadas pela evolução vertiginosa da tecnociência e a de relevante importância. Os dois sistemas são constituídos por normas,
descoberta da autonomia do doente, a tal ponto que um dos maiores espe-
cialistas da matéria, o Prof. Luís Archer, diz que a Bioética é «avassala-
dora»2s. Bioética, sua origem e evolução cf. o excelente livro de JONSEN, Albert R. - The
Birth of Bioethics. New York/Oxford: Oxford University Press, 1998.
26Cf. BRlTO, José Henrique Silveira de - «A Ética na vida da empresa». Re-
23 ENGELHARDT,
Jr, H. Tristram - Fundamentosda bioética.São Paulo: vista Portuguesa de Filosofia. 55(1999), pp. 413-426
Edições Loyola, 1998, p. 32. 27 LADRIERE,Jean- «L'humanismecontemporain».ID. - Lafoi chrétienne
24 Sobre a relatividade moral cf. ETXEBERRIA, Xavier - Temas Básicos de et le Destin de la raison. Paris: Les Éditions du Cerf, 2004, p. 32.
28RICOEUR, Paul- «De la morale à I'éthique et aux éthiques», p. 107.
Ética, ~p. 160 ss. 29Esta parte do texto segue as distinções feitas por ETXEBERRlA, Xavier-
2 ARCHER, Luís - «Bioética: avassaladora, porquê?». Brotéria - cultura e
Temas Básicos de Ética, pp. 131-138. Sobre a noção de Direito cf. MACHADO, 1.
informação. 142(\996), pp. 449-472. Para urna visão global bastante completa da
22 José Henrique Silveira de Brito ÉTICA E MORAL 23

isto é, são sistemas prescritivos, embora o que caracteriza essa prescriti- determinado sistema jurídico e determinado sistema ético normativo.
vidade seja distinto. Uma primeira diferença reside na exigência de posi- Quanto à vinculação conceptual, a questão é mais complexa, havendo
tivação. As normas morais valem para a consciência moral, sendo o seu quatro posições sobre esta matéria. Há quem defenda uma vinculação ou
valor independente da sua integração num sistema jurídico positivo. As integração absoluta, quem argumente a favor de uma separação radical;
normas jurídicas, pelo contrário, só valem depois de promulgadas pelo quem considere que há uma separação relativa e quem afirme que apenas
poder político competente. se deve verificar uma integração relativa.
Uma segunda diferença está no modo de coacção que a prescriti-
vidade implica. As normas morais têm uma sanção interna, é a própria 5. As relações entre Ética e religião, que hoje se vivem numa tensão
consciência moral que exerce a coacção. As normas jurídicas, por seu de variável intensidade mas -regrageral bastante baixa, passaram por uma
turno, têm mecanismos exteriores de coacção concretizados no poder história de uma conflitualidade enorme devida fundamentalmente à não
repressivo do Estado. clarificação dos conceitos. Há pois que clarificar o que é a moral e o que
Uma terceira distinção pode fazer-se atendendo ao seu tipo de é uma 'religião para que a distinção permita ultrapassar velhos equívo-
institucionalização. As normas morais remetem para mundos pessoais na cos.3{
medida em que valem para a pessoa enquanto ser moral. As normas jurí- A ética filosófica foi aparecendo quando a ética se foi desvincu-
dicas, por seu lado, estão institucionalizadas em códigos, o seu grau de lando da religião, o que se verificou através de um processo lento e que
institucionalização é total. Como afirma Simone Goyard-Fabre: atingiu diversos graus de profundidade desde a defesa da separação radi-
calou a separação com possibilidade de inter-relação. Em defesa da pri-
«Longe [...] de designar, como se tende muitas vezes a acreditar meira posição foram apresentados vários argumentos desde a afirmação
hoje, as prerrogativas múltiplas dos indivíduos que se denomina."direitos do sem sentido do religioso ou a consideração de ele ser prejudicial, ou
do homem", o direito é, quaisquer que sejam a diversidade dos sistema por se considerar que a ética é fundamentalmente ética pública que se
jurídicos e a variedade que a história lhe impõe, um instrumento da disci- deve remeter exclusivamente para aquilo que se obtém por acordo racio-
plina social».30
nal. Em defesa da separação com inter-relação entre a ética e a religião
foi apresentado o argumento da distinção e inter-relação que necessaria-
Em quarto lugar, pode fazer-se a distinção entre normas morais e
mente existe entre éticas de máximos e éticas de mínimos pois que nin-
normas jurídicas atendendo à forma de as cumprir. No Direito, o que
guém vive apenas uma ética de mínimos; cada um constrói a sua ética de
conta é o cumprimento material da norma; o desconhecimento da lei não
máximos partindo da ética de mínimos da comunidade em que está inte-
desculpa o seu incumprimento. No campo moral, diferentemente, a inten-
grado e a ética de máximos vivida por um crente atende às motivações
ção é decisiva no cumprimento da norma.
que a sua religião lhe apresenta.32
Por último, deve atender-se a que o Direito pode incorporar nor-
A moral e a religião distinguem-se, pois que a religião não se esgota
mas morais, mas deve centrar-se nas normas básicas da convivência; o
na moral. É evidente que todas as religiões propõem um ideal de vida,
que ele visa especialmente é evitar danos a terceiros. As normas morais,
mas a estrutura formal do fenómeno religioso é muito mais abarcante. No
pelo contrário, são mais globais, elas visam o bem moral: a realização da
centro da experiência religiosa está "a confrontação do homem com a
pessoa pela vivência das normas morais.
Pode perguntar-se se há vinculação do ponto de vista fáctico e con- 31Nesta parte do nosso texto daremos particular atenção ao tratamento que o
ceptual entre Ética e Direito. Há, efectivamente, vinculação fáctica entre tema mereceu a Xavier Etxeberria (TemasBásicos de Ética. Col.: Ética de las Profi-
siones. Bilbao: Desclée De Brouwer, 2002, pp. 65-72) e a Roque Cabral (<<Moral
Baptista - Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador. 10' impressão. Coim- racional e moral evangélica». BRlTO,José Henrique Silveira de (Coord.) - Bioética.
bra: Livraria Almedina, 1997, pp. 31-62, em especial sobre a relação entre Direito e Questões em debate. Braga: Publicaçõesda Faculdade de Filosofia UCP, 2001, 85-
-92). Ao falar de religião teremos em mente fundamentalmente as religiões mono-
Ética,EP.59-62. . .
GOYARD-FABRE, Simone - «La philosophie du droit». JACOB, André teístas, particularmente o cristianismo.
(dir.) - Encyclopédie philosophique universelle. I L'univers philosophique. Paris: 32A problemática das relações entre éticas de máximos e de mínimos será
Presses Universitaires de France, p. 179. desenvolvida posteriormente.
24 José Henrique Silveira de Brito ÉTICA E MORAL 25

realidade essencial,,;33e essa experiência vive-se através do pensamento, Se aplicarmos as considerações anteriores ao Cristianismo, veri-
pois que uma religião implica sempre um conjunto de crenças; através da ficamos que, como todas as religiões, o Cristianismo não é primariamente
acção, uma vez que todas as religiões implicam sempre um culto e um um sistema moral, mas um sistema religioso porque o seu âmbito de sen-
serviço; e através de uma comunidade, uma vez que uma religião implica tido é o Transcendente (fé) que se celebra (culto). Ele tem uma determi-
sempre a existência de uma comunidade com as suas instituições concre- nada concepção de Deus e da sua oferta de salvação através da pessoa e
tas devidamente organizadas. Essa experiência tem o seu sentido e o seu mensagem de Jesus de Nazaré a que se acede por meio de uma experiên-
fundamento na cosmovisão religiosa global, oferecida às acções dos fiéis. cia e não por mera adesão intelectual.34 A adesão ao Cristianismo é a
Essa narrativa orienta a acção, motiva o crente, legitima o seu agir e é, de adesão à pessoa de Jesus Cristo. Essa adesão, não sendo uma moral,
certo modo, uma sanção. Este esquema formal ganha conteúdo concreto inclui uma moral como parte essencial da sua mensagem e suposto de
nas diversas religiões. salvação porque há no Cristianismo um privilégio da moral devido ao
O religioso não se confunde, portanto, com o moral porque o que lugar basilar que nele ocupa a praxis como é evidente na resposta de
verdadeiramente caracteriza o religioso é a procura do transcendente que Cris~' à pergunta sobre qual é o maior mandamento "Amarás ao Senhor
se manifesta na atitude de adoração e procura de salvação, pelo que a teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu enten-
religião não se reduz à moralidade e, ao integrá-la, fá-lo de diversos dimento. Esse é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é seme-
modos. lhante a esse: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Desses dois man-
Os modos de inserção da moralidade na religião são diversos e, damentos depende toda a Lei e os Profetas" Mt 22,37-40) e na afirmação
atendendo às diversas religiões, pode dizer-se que há três modelos domi- de São João na sua carta "quem não ama o seu irmão que vê, não pode
.,
nantes. Um dos modelos, presente por exemplo na AntÍgona de Sófocles, amar a Deus a quem não vê" (110 4, 20-21) ou o chamado hino à caridade
considera que a rectidão está na conformidade das acções humanas com de São Paulo (tCor 13, 1-13). A chave da dimensão moral do cristia-
um princípio superior aos homens e aos deuses. Modelo diferente é o que nismo é o amor.
fundamenta a validade da decisão ética na obediência a um mandamento A separação da ética da religião, originando uma ética filosófica, foi
divino. Aqui o fundamental é o Senhor, cuja vontade deve ser obedecida um fenómeno, como veremos mais adiante, vivido no Ocidente em que
pelo homem que, porque obedece, é santo como o Senhor. É um modelo confluíram dinâmicas sociais e desenvolvimento do pensamento, tendo
que, de alguma maneira, pode encontrar-se na tradição judaica e mesmo levado a uma completa autonomia da ética relativamente à religião, che-
numa certa concepção cristã, embora com pouca base evangélica. Um gando mesmo Kant a afirmar que «a moral enquanto fundada no conceito
terceiro modo de inserção, prevalecente em religiões místicas, considera a do homem como um ser livre que, justamente por isso, se vincula a si
obediência dos preceitos como via de acesso àqueles estados em que con- mesmo pela razão a leis incondicionadas, não precisa nem da ideia de
siste a libertação e salvação. Neste modelo a Ética é encarada como outro ser acima do homem para conhecer o seu dever, nem de outro
caminho ascético que prepara para a iluminação e união em que consiste móbil diferente da própria lei para o observar»/5 verificando-se autono-
a salvação. É um tipo de inserção da ética na religião que se encontra nas mia total da "autonomia da ética".
religiões orientais. Uma vez separadas, com sua autonomia e particularidades, convém
Sempre houve tensões entre a moral e as outras dimensões da reli- perguntar se ética e religião se relacionem? A questão coloca-se a partir
gião. Assim no Judaísmo é conhecida a tensão entre a visão dos profetas de três pontos de vista: social, pessoal, no caso dos crentes, e a nível.
e a dos sacerdotes, em que os primeiros privilegiavam a moral em detri- reflexivo com consequências práticas.
mento do culto. Ainda no Judaísmo, no caso do sacrificio de Isaac, parece
que a moral se sacrifica à fé. Esta tensão acontece porque a proposta de 34 Cf., por exemplo,BENTOXVI- CartaEncíclica"Deusé amor".Braga:
salvação, como a da valorização moral, tendem a afirmar-se como abso- Editorial A.O, 2006, nOI.
lutas. Ora há que harmonizar as duas propostas. 3S KANT, I. - A religião dentro dos limites da razão. Lisboa: Edições 70,
[1793] 1992, p. 11. Cf. KANT, I. - Metafisica dos costumes. Trad., apresentação e
33 ETXEBERRIA, Xavier - Temas Básicos de Ética. Col.: Ética de las notas de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, § 13 da "Dou-
Profisiones. Bilbao: Desclée De Brouwer, 2002, p. 67. trina da virtude".
26 José Henrique Silveira de Brito ÉTICA E MORAL 27

A nível social essa relação é importante porque no espaço público moral está profundamente marcada pela dimensão histórica do viver
devem conviver crentes de diversas religiões, cuja moral remete para a humano; para .utilizar uma expressão heideggeriana: a historicidade é um
sua fé, e não crentes com autonomia relativa a qualquer crença, daí a dos existenciais da norma moral.39Como diz Ladriere, a ética «faz valer
necessidade de encontrar referências comuns partilhadas que não reme- uma exigência global, mas toma apenas o seu conteúdo na concretude das
tam para uma religião, porque poria em causa a liberdade de crença. circunstâncias particulares». 40
A nível pessoal aquela relação, no caso dos crentes, é fundamen- A consequência desta historicidade é o pluralismo moral hoje tão
tal porque eles vivem uma dupla referência, ética e religiosa, e há que evidente e que se começou à manifestar com toda a clareza com a
elaborar uma resolução harmoniosa das tensões. A este nível a questão Reforma Protestante. Até ao eclodir deste movimento reformador, na
está fundamentalmente nas referências últimas que levam ao agir porque, sociedade europeia, para ficarmos com um exemplo que nos é familiar e
no que se refere ao conteúdo, cOQcretamente no que diz respeito à moral em que esse pluralismo foi assumido em dimensões inimagináveis nou-
cristã, há um consenso alargado de que neste aspecto as morais religiosas tras culturas, havia uma homogeneidade cultural bastante acentuada e daí
e a morallaica não se distinguem. Normas morais como "não matar", a exisfência do que se podia designar por "código moral único". A
"ser solidários", etc. são válidas para crentes e não crentes. O que distin- Europa cristã bebia a sua moral na tradição cristã; a Igreja, espalhada por
gue uns e outros está essencialmente na motivação última do agir.36 todo o território, com a sua mensagem fundada na Revelação bíblica,
A nível reflexivo, com consequências práticas, deve discutir-se se a caldeada com determinada leitura da Antiguidade Clássica, criara o
ética que aspira a ser referência comum da convivência deve estar à mar- código moral universal vivido na cristandade.41 A partir do Renasci-
gem de toda a referência religiosa. mento, a situação mudou profundamente. A revolução científica, o con-
tacto com outras culturas, as «Guerras de Religião», o aparecimento da
6. As normas não são puras invenções de cada um; são realidades Imprensa, o colapso das cosmovisões tradicionais levaram a uma nova
que a pessoa encontra na sociedade onde vive. Diz Sanchéz Vázquez que etapa na moral, em que se procuraram novas concepções para a orienta-
ção dos diversos âmbitos da vida.
«a moral é um sistema de normas, princípios e valores, de acordo com os Com a Reforma Protestante e a revolução cultural sua contempo-
quais se regulam as relações mútuas entre indivíduos, ou entre eles e a rânea, a referida unidade cultural da Europa acabou e surgiu uma dificul-
comunidade, de tal maneira que as ditas normas, que têm um carácter histó- dade que teve de ser superada: a partir do momento em que a unidade da
rico e social, se acatam livre e conscientemente, por uma convicção íntima, Igreja foi posta em causa, tornou-se indispensável encontrar uma moral
e não de um modo mecânico,exteriore impessoal».37 .
que regesse o comportamento moral do cidadão no espaço público, inde-
pendentemente da religião que professasse. A Reforma levou à necessi-
Cada ser humano é socializado numa comunidade que, fruto de uma
longa história, encontrou um conjunto de regras, princípios e valores, em
que a humanidade, Luís Archer chama-lhe humanitude,38 se exprime e 39 Sobra a historicidade das normas morais, cf. RENAUD, Michel - «A
que deve ser assumido para se viver humanamente. Isto significa que a historicidade das normas morais». BRITO, José Henrique Silveira de (Coord.) -
Temasfundamentais de ética. Actas do Colóquio de Homenagemao Prof. P. Roque
Cabral, S.J. Braga: Publicações da Faculdade de Filosofia.UCP, 2001, pp. 17-29.
36Sobre esta problemática é muito esclarecedor o texto de Roque Cabral já Sobre esta historicidade, pluralismo, movimento da vida moral e sua compreensão,
referido «Moral racional e moral evangélica». BRlTO, José Henrique Silveira de pode ler-se GÓMEZ-HERAS, José Maria García - Ética y hermenéutica. Ensayo
(Coord.) - Bioética.Questõesemdebate.Braga:Publicaçõesda Faculdadede Filoso- sobre la construcción moral dei "mundo de la vida" cotidiana. Madrid: Editorial
fia UCP, 2001,85-92. . Biblioteca Nueva, 2000. No que se refere ao pensamento de Habermas sobre estes
31 SÁNCHEZ VÁZQUEZ, Adolfo - Ética. 4°Ed. (Ia é de 1969 do México). temas, o 7° capítulo do livro é muito instrutivo, quer em termos de compreender o
Barcelona: Editorial Crítica, 1984,p. 81. Sobre as relações entre ética e cultura, cf. pensamento do autor alemão quer em termos de compreender as questões em si
VAZ, Henrique C. Lima - Escritos de Filosofia. 11Ética e cultura. Col.: Filosofia nO mesmas.
8, São Paulo, Edições Loyola, 1988. 40 LADRlERE, Jean - «L'humanisme contemporain». ID. - La foi chrétienne

38 ARCHER, Luís - «Profeciasdo Gene Ético: Confronto entre Tecnocosmos e et le Destin de la raison. Paris: Les Éditions du Cerf, 2004, p. 32.
Humanitude». Cadernos de Bioética. 12(2003),nO30, pp. 7-15. 41Tenha-se presente a obra de.Santo Agostinho e São Tomás de Aquino.
28 José Henrique Silve ira de Brito ÉTICA E MORAL 29

dade de encontrar formas de expressão do humano independentes da reli- viverá a procura da sua felicidade. O que a moral civil exige são os
gião de cada um, embora compatíveis com a sua prática. Foi a Reforma mínimosjustos a partir dos quais cada um se realiza. Estamos perante
que tomou necessário o aparecimento da moral civil. Em A Obra ao uma distinçãofundamentalentremoral de mínimose moral de máximos.
Negro de Marguerite Yourcenar42encontramos, a nível da literatura, a A moralcivil é pluralista.Emtermos de Adela Cortina,o
descrição das condições que tomaram indispensável o aparecimento da
moral civil. Este caminho, como o romance mostra, não foi fácil; foi «Pluralismo moral significa [...] que os cidadãos dessa sociedade que
necessário, por exemplo, separar o altar e o trono que a laicização da vida sofreu o processo de modernização,partilham uns mínimos morais, ainda
pública permitiu, o que foi alcançado através de um processo longo e que não partilhema mesmaconcepção completade vida boa».45
doloroso. A laicidade da sociedade foi muitas vezes utilizada para pro-
mover um laicismo infrene, mais sectário como aquilo que procurava As éticas teleológicas deram espaço às éticas deontológicas; o
combater. Na nossa história portuguesa, encontramos vários exemplos acento na vida boa deu lugar ao acento no dever. As éticas de mínimos
destes fenómenos turbulentos, compreensíveis como acidentes de per- não prOpõem um ideal de vida a alcançar; apresentam uma moral vazia de
curso de uma caminhada que se dirigia para a saída de um código moral conteúdo que será preenchida por cada um, desde que esse conteúdo não
único, independente do que se poderia chamar "Código moral católico", afecte os outros. Não se pense, contudo, que na sua vida a pessoa vive
muitas vezes defendido mais por razões políticas que religiosas. Sinto- uma moral de mínimos; cada um procura a sua felicidade e esta implica
maticamente, Pombal não acabou com a Inquisição; transformou-a na uma moral de máximos.
Real Mesa Censória. O homem como ser moral, e não como ser natural, surge com a
Com a Reforma Protestante deu-se um sublinhar do lugar do indiví- Modemidade, época histórica em que a pessoa já não aparece como
duo em detrimento da instituição, sendo disso sinal evidente o ideal pro- subordinada a uma lei moral dita natural.46 Com o pluralismo, a moral
testante consubstanciado na expressão Sola fides. sola Scriptura, sola natural dá lugar a uma moral fundada na autonomia. Como ser autónomo
Gratia. Neste novo contexto, em que a unidade ideológica tinha sido e livre, a pessoa dá a si a sua lei, frente à natureza que lhe aparece como
quebrada e o individualismo afirmado, havia que encontrar uma possibi- subordinada. O «conquistai a terra» do Génesis adquire o seu pleno sen-
lidade de convivência no espaço público, cuja moral não podia ser nm- tido na Modemidade na qual o homem não é encarado como ser natural e
dada na religião que já não era factor de unidade.43 Havia que encontrar submetido à lei natural, mas como ser moral, pertencente ao reino da
uma moral de mínimos que permitisse a convivência de pessoas com cre- liberdade. Na Modemidade, o homem deixa de andar à volta da natureza
dos diferentes a partir dos quais cada um construiria a sua felicidade. e é esta que passa a andar à volta do homem; é este, o homem, que pres-
A moral civil44reconhece que, se é verdade que todos têm como creve as leis à natureza.47Costuma dizer-se que com a Modemidade se
ideal a felicidade, o modo de a entender é diferente de pessoa para pes- passa de uma moral heterónoma para uma moral autónoma, isto é que
soa, pelo que um ideal de felicidade pode ser proposto, mas não imposto. com a Modemidade o homem passa de súbdito a soberano, senhor de si,
Daí que a moral civil deixe a cada um espaço para realizar o seu ideal de que passou da menoridade à adultez.48Com a Modemidade passa-se dum
felicidade, uma ambição privada, e exige que, no espaço público, sejam jusnaturalismo da lei natural para um jusnaturalismo dos Direitos Huma-
impostas condições mínimas, exigidas a todos, a partir das quais cada um nos, dando-se a laicização do conceito de pessoa que tende a descristiani-

42Porto: Público Comunicação social, 2002.


43 Sobre a mudança de paradigma moral da Idade Média para a Modernidade,
pode ler-se o excelente capitulo 4 da obra de GÓMEZ-HERAS, José Maria García - 4SCORTINA, A. - Éticamínima, p. 50.
Ética y hermenéutica. Ensayo sobre la construcción moral dei "mundo de la vida" 46Sobre a noção de Lei Natural, cf. CABRAL, R. - Temas de ética, pp. 63-66.
cotidiana.
47KANT, I. -Prolegómenos a toda a metafisicafutura que queira apresentar-
44 Sobre a moral de mínimos e a ética da discussão do espaço público, cf. -se como ciência. Lisboa: Edições70, 1982, p. 98.
RENAUD, Michel - «Ética de hoje, ética de amanhã». ARCHER, Luis; BISCAIA, 48 Sobre este tema pode ler-se com muito proveito KANT, I - «Resposta à per-
Jorge; OSSWALD, Walter; RENAUD, Michel - Novos desafios à Bioética. Porto: gunta: o que é o IIuminismo». 10 - A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edi-
Porto Editora, 200 I, pp.13-19. ções 70,1988, pp. 173-179.
30 José Henrique Si/veira de Brito ÉTICA E MORAL .31

zar este conceito e a fazer a transição de uma concepção segundo a qual a mereceu, pelo menos numa primeira aproximação, aceitação unânime foi
vida da pessoa é sagrada para a afirmação da autonomia da pessoa.49 primeiramente apresentada por Kant: o homem é um fim e não um meio e
Estas últimas considerações mereciam uma reflexão aprofundada toda a norma que brote dessa concepção de pessoa como fim e não como
para não darem aso a mal entendidos, mas não há oportunidade agora meio é uma norma moral.
para a fazer. 50 É neste contexto que se compreende o aparecimento das várias Filo-
Apesar do surgimento da pluralidade moral, a verdade é que uma sofias Morais, das várias Ética Fundamentais.52
das principais inspirações das normas da moral pluralista continuou a ser
a religião, muitas normas morais se assemelham às apresentadas pelas
religiões. O que muda radicalmente é o modo de fundamentar as normas
morais. Pode dizer-se que a Modemidade traz como problema funda-
mental da ética a sua justificação. Até à Modemidade a moral era uma
moral religiosa, neste sentido: a~ normas eram de inspiração religiosa e a
justificação última para lhes obedecer estava na sua origem religiosa.
Com o fim da unidade religiosa e o movimento da Ilustraçã051 surgiu a
necessidade de encontrar uma fundamentação da moral de outra natureza
que não a religiosa, uma vez que esta tinha deixado de ser aceite univer-
salmente. Surge assim uma diversidade grande de fundamentações da
moral, todas elas centradas no homem, uma vez que o lançar mão de uma
realidade transcendente para fundamentar a moral se tomou impossível
no espaço público. Como primeira indicação de exemplos dessa diversi-
dade, e, por outro lado unidade, encontramos Hume e Kant. O primeiro
faz a justificação da norma moral no sentimento que ela desperta no
homem, na pessoa; Kant considera que a norma moral é a que o sujeito
moral dá a si mesmo. Um fica pelo sentimento e o outro pela razão prá-
tica, mas em ambos é no homem que se centra a fundamentação da moral.
Com a Modemidade passa-se a um antropocentrismo, a uma moral antro-
pológica cuja diferença radica nas diferentes concepções de pessoa que
estão em presença, mas mesmo assim procura-se uma unidade, uma con-
cepção de pessoa que seja admitida por todos. Essa formulação que

49 Cf. JONSEN,AlbertR. - TheBirth of Bioethics,p. 337. Este autor afinna


que o princípio cristão da santidade da vida pela sua secularização, obra iniciada por
Paul Ramsey passando por Eduard Shils, tennina em Daniel Callahan como princípio
moral da autonomia (p. 338).
50Sobre este tema da autonomia e heteronomia cf. CABRAL, Roque - «Liber-
dade e ética: autonomia e heteronomia?» e «Lei ou legisladornaturab>. (ID. - Temas
de Ética. Braga: Publicações da Faculdade de Filosofia UCP, 2000, pp. 201-208 e
255-260, respectivamente); NEVES, Maria do Céu Patrão - «A problemática con-
temporânea da autonomia moral». BRlTO, José Henrique Silveira de (Coord.) -
Temasfundamentais de ética. Actas do Colóquio de Homenagem ao Prof. P. Roque 52Para uma análise da Ética na cultura contemporânea em que se encontra uma
Cabral, S.J. Braga: Publicações da Faculdade de Filosofia UCP, 2001, pp. 143-178. panorâmica geral desde o século XVII cf. VAZ, Henrique C. Lima - «Ética e razão
51 Cf. CORTINA, A. -Ética mínima, pp. 141-268. moderna».Síntese Nova Fase. 22(1995), pp. 53-85.

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