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Fundamentos Teóricos

O desenvolvimento do psiquismo
2 e o ensino escolar
“A educação não apenas influi em alguns processos de desen-
volvimento, mas reestrutura as funções do comportamento em
toda sua amplitude. (VIGOTSKI, 2004, p.99)

Juliana Campregher Pasqualini

V imos no capítulo anterior que a


prática pedagógica orienta-se pela
tríade forma-conteúdo-destinatário,
Vigotski inaugura uma nova abor-
dagem do processo de desenvolvimen-
to infantil, compreendendo-o como
sendo condição fundamental para o processo histórico-cultural. O autor
trabalho do professor conhecer a crian- refuta concepções inatistas que com-
ça e compreender cientificamente seu preendem o desenvolvimento como
desenvolvimento. Também no capítulo um processo de maturação de potên-
anterior vimos que a contribuição fun- cias internas previamente dadas, e da
damental da psicologia para a prática mesma forma se opõe a concepções
pedagógica é justamente elucidar as ambientalistas, que desconsideram o
leis do desenvolvimento do psiquismo papel ativo da criança como sujeito de
da criança sobre o qual incide o ato pe- seu processo de desenvolvimento e em-
dagógico. Nesse capítulo, nos dedicare- pregam os mesmos princípios e concei-
mos à apresentação da teoria elabora- tos para explicar a conduta humana e
da pela Escola de Vigotski para explicar animal. Além disso, Vigotski não pode
o desenvolvimento do psiquismo huma- ser considerado um autor interacionis-
no, derivando implicações pedagógicas. ta, pois sua teoria não explica o desen-
No capítulo seguinte, com base no siste- volvimento a partir da interação entre
ma teórico aqui exposto, nos debruça- fatores biológicos e sociais, mas pressu-
remos sobre os diferentes períodos do põe uma relação complexa entre o de-
desenvolvimento da criança desde seu senvolvimento cultural e as disposições
ingresso na educação infantil até a tran- naturais da espécie, em que a cultura
sição ao ensino fundamental. supera dialeticamente as determina-

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ções naturais, como discutido no pri- O desenvolvimento do psiquismo:
meiro capítulo de fundamentação teó- processos psíquicos elementares e
rica dessa proposta. superiores
Para Vigotski, o desenvolvimento
infantil não pode ser explicado a partir É a vida em sociedade que cria as
de leis naturais universais. O elemen- condições para a apropriação da cul-
to decisivo para explicar o desenvol- tura, processo que forma no homem
vimento psíquico infantil é a relação funções e capacidades que não se de-
criança-sociedade. As condições histó- senvolveriam natural ou espontanea-
ricas concretas, o lugar que a criança mente. Vigotski se preocupou em elu-
ocupa no sistema de relações sociais e cidar os mecanismos responsáveis pela
suas condições de vida e educação são formação de novas capacidades e fun-
determinantes do percurso a ser per- ções psíquicas não naturais. Para com-
corrido pelo desenvolvimento psíquico. preendermos suas proposições a esse
Isso significa que o desenvolvimento é respeito, nos debruçaremos sobre sua
um fenômeno historicamente situado análise do processo de formação das
e culturalmente determinado, ou seja, funções psíquicas.
um processo histórico-cultural. Podemos entender por função psí-
Quando nasce um bebê, temos ali quica uma capacidade ou propriedade
um “candidato à humanização”, um re- de ação de que dispõe nosso psiquis-
presentante da espécie homo sapiens. mo no processo de captação da reali-
Como se processará o desenvolvimento dade objetiva. Somos capazes de cap-
do psiquismo desse bebê? Quais qua- tar sensorialmente sons e imagens e
lidades esse psiquismo conquistará? perceber mudanças no ambiente: sen-
Não é possível responder essa questão sação e percepção são dois exemplos
a priori. Isso porque o desenvolvimen- de funções psíquicas. Somos capazes,
to do psiquismo humano depende... também, de fixar nossos sentidos em
depende das mediações que lhe serão um determinado estímulo do meio e
oportunizadas, depende das oportuni- registrá-lo em nosso psiquismo: aten-
dades de apropriação da cultura huma- ção e memória são também exemplos
na que lhe serão (ou não) garantidas. de funções psicológicas. Constituem,
Isso porque o que move o desenvolvi- ainda, funções psíquicas (ou processos
mento psicológico “é a vida em socie- funcionais) a linguagem, o pensamen-
dade (...)” (MESQUITA, 2010, p. 74). to, a imaginação, e as emoções e senti-
mentos (MARTINS, 2013).

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com uma série de capacidades naturais


Vigotski não estabeleceu de forma necessárias inclusive à sobrevivência e
perpetuação da espécie. Mas Vigotski
precisa quais sejam as funções
e Leontiev nos falam sobre funções
psíquicas superiores. Mais do
psíquicas novas, não naturais: que fun-
que delimitar ou precisar um rol ções são essas?
de funções, o interesse do autor Vigotski defendeu a necessidade de
residia em buscar explicações sobre se distinguir entre funções psíquicas ele-
o que promove o salto qualitativo mentares, comuns a homens e animais,
do psiquismo humano na direção e funções psíquicas superiores, exclusi-
vamente humanas. Determinadas capa-
dos comportamentos complexos
cidades do nosso psiquismo, segundo a
culturalmente formados. Lígia
argumentação do autor, desenvolvem-
Márcia Martins, em sua tese de se como produto da vida social, e não
livre-docência, apoiada no estudos biológica. Isso porque a apropriação dos
da obra de Vigotski e de outros signos da cultura vai dando direção ao
autores de sua Escola, defende próprio desenvolvimento biológico da
que os processos funcionais criança, determinando, em última ins-
tância, a própria constituição cerebral e
responsáveis pela formação da
a formação de sistemas funcionais.
imagem subjetiva da realidade
Para Vigotski, o que diferencia, es-
objetiva são: sensação, percepção, sencialmente, o psiquismo humano
atenção, memória, linguagem, do animal, é que a conduta animal é
pensamento, imaginação, emoção determinada pela estimulação do am-
e sentimentos (MARTINS, 2013). biente (externo e interno), enquanto o
homem tornou-se, historicamente, ca-
paz de superar essa determinação, con-
Diante do exposto, não é difícil per- quistando a capacidade de dominar o
ceber que funções psíquicas não são próprio comportamento.
exclusivas ao homem, pois os animais Podemos ilustrar essa ideia pen-
também são capazes de atentar e me- sando no desenvolvimento da aten-
morizar, por exemplo. Logo, existem ção. Animais são capazes de focalizar a
funções psíquicas naturais, garantidas atenção em um determinado estímulo
pela natureza, e isso vale tanto para os do meio: um som, por exemplo, ou um
animais quanto para o homem. Nosso determinado objeto. A intensidade da
aparato biológico já vem “equipado” atenção e o tempo de duração dessa re-

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ação dependerão da força do estímulo, trar em uma história ou outra ativida-
ou seja, do quanto aquele estímulo si- de qualquer a despeito de elementos
naliza o atendimento de necessidades distrativos do ambiente: os estímulos
naturalmente importantes para aquela podem até continuar provocando dis-
espécie animal ou fruto de processos de trações, mas ela aprende a redirecionar
condicionamento ou aprendizagem. A sua atenção para a atividade. O mesmo
visão (ou mesmo o barulho) da coleira vale para a memória. Temos mecanis-
costuma despertar imediatamente a mos naturais de memorização, me-
atenção nos cachorros, assim como sons diante os quais determinados estímulos
que possam sinalizar algum perigo. Isso são “retidos” em nosso psiquismo, a
também acontece conosco: determina- depender da força dos estímulos. Mas
dos estímulos chamam nossa atenção, historicamente, nós, humanos, desen-
de forma involuntária. O alarme de um volvemos a capacidade de dirigir nossa
carro que dispara, por exemplo, chama memória de modo intencional, isto é,
imediatamente a atenção das pessoas. criamos mecanismos culturais de me-
Temos uma predisposição natural para morização (que incluem, por exemplo,
atentar para estímulos de cores fortes e o estabelecimento de associações entre
vibrantes, assim como para objetos em estímulos). Somos capazes, portanto,
movimento. Mas além dessa modalidade de nos propormos a memorizar algo,
de atenção involuntária, que constitui dirigindo conscientemente nossa pró-
uma função psíquica natural/ elementar, pria memória, a despeito da força ou
nós, humanos, desenvolvemos mecanis- fraqueza do estímulo.
mos para dirigir de modo intencional e Esses exemplos ilustram o que, para
consciente nosso próprio processo de Vigotski, constitui o traço essencial dos
atenção. processos psíquicos superiores, exclusi-
Até a fase pré-escolar, a atenção da vamente humanos: o autodomínio da
criança tem um funcionamento essen- conduta. Segundo a teoria vigotskiana,
cialmente elementar. De certa forma, nos tornamos capazes de dominar nos-
podemos dizer que a criança é “refém” so próprio comportamento mediante
da estimulação do meio: por isso elas se a internalização dos signos da cultura.
dispersam com tamanha facilidade! Os Em outras palavras, o autodomínio da
processos educativos proporcionam à conduta se realiza por intermédio do
criança a oportunidade de se apropriar signo. Vejamos, então, o que Vigotski
de mecanismos para dominar a própria entende por signo.
atenção. Mediante esse processo, ela Os signos são meios auxiliares para
vai se tornando capaz de se concen- a solução de tarefas psicológicas. Imagi-

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nemo-nos diante da necessidade de me- seu comportamento, interrompendo a


morizar um número de telefone: como brincadeira e preparando-se para a ida
nosso psiquismo pode resolver essa ta- ao parque. Processo semelhante ocorre
refa? É bastante provável que optemos quando uma criança se dispersa durante
por recorrer ao auxílio da escrita, regis- a leitura de uma história, por exemplo,
trando o número na agenda ou em um e a professora se dirige a ela dizendo:
pedaço de papel, por exemplo. A escri- “Maria, vamos descobrir o que acontece
ta, nesse caso, é um meio auxiliar para no final dessa história?”. Esse enuncia-
resolver essa tarefa psicológica. Vigotski do é suficiente para redirecionar os pro-
explica que, historicamente, os homens cessos psíquicos da criança, que volta a
viram-se diante da necessidade de pro- concentrar-se na história. Dizemos que
duzir dispositivos auxiliares para orien- a fala da professora, em ambas situa-
tar sua conduta no ambiente, como se ções, constitui um estímulo de segunda
fossem “ferramentas psicológicas”. ordem, isto é, um signo, cujo significa-
O ambiente a nossa volta nos apre- do altera a relação das crianças com os
senta uma série de estímulos (visuais, demais estímulos do meio. É justamente
auditivos, sonoros etc.), que podemos isso que caracteriza o signo: sua função
chamar de estímulos de primeira or- de dirigir a conduta humana.
dem. Os signos também são estímulos, Algumas pessoas têm o costume de
mas de natureza diferente: são estímu- fazer uma marca com a caneta na su-
los de segunda ordem. Os estímulos perfície da mão (um X, por exemplo),
de segunda ordem (signos) têm uma quando precisam se lembrar de algo.
função diferente da mera estimulação Ao olhar para o X, a pessoa se lembra
do ambiente. Pensemos em uma sala daquilo que precisa fazer: comprar um
de aula da educação infantil em que as remédio na farmácia, ligar para o con-
crianças brincam e conversam todas ao sultório médico, passar no supermer-
mesmo tempo: temos aí uma infinidade cado. O X não é, portanto, uma marca,
de estímulos sonoros difusos. Em deter- mas um signo, que possui um determi-
minado momento, a professora anun- nado significado, capaz de redirecionar
cia: “Crianças, é hora do parque!”. As a conduta do indivíduo.
palavras da professora constituem tam- O signo orienta a conduta humana
bém um estimulo sonoro, assim como por comunicar um significado determi-
os demais estímulos presentes naque- nado, ou seja, ele representa algo. Ob-
le ambiente, mas cumprem um papel serve esses exemplos de signos da nossa
muito diferente: diante do anúncio das cultura e perceba como já nos apropria-
professoras, as crianças redirecionam mos de seus significados:

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Figura 1: Signos da cultura. Fonte: Elaborado pela autora

O signo pode ser um gesto, uma imagem, um som, um objeto, uma forma,
uma posição etc. Mas o principal sistema de signos de que dispomos é a lingua-
gem. A palavra é o signo por excelência.
A criação e o emprego de signos constituem, para Vigotski, o traço essencial
e distintivo das formas superiores de conduta humana, pois a mediação do signo
permite que se rompa a relação direta e imediata com o ambiente, característica
do psiquismo animal. A relação do homem com o entorno passa a ser mediada
pelos signos da cultura.

A mediação dos signos é o “divisor de águas” entre as formas inferiores/


simples e superiores/complexas de conduta, na medida em que o signo
provoca uma ruptura na fusão situação-ação que marca o psiquismo animal.
O processo de internalização de signos desponta, no pensamento
de Vigotski, como princípio que regula e explica os comportamentos
culturalmente formados, tornando-se, para o autor, a categoria central de
análise do desenvolvimento e da aprendizagem. (MARTINS, 2013)

As formas psíquicas elementares são completamente determinadas pela esti-


mulação do meio. As funções superiores, por sua vez, tendem à autoestimulação
por meio da criação e do emprego de estímulos-meio artificiais, que colaboram
na determinação da própria conduta do homem. Afirma Vigotski: enquanto na
memória natural ‘algo se memoriza’, na memória cultural, com a ajuda dos sig-
nos, ‘o homem memoriza algo’.
Assim, à medida que aprende e se desenvolve, apropriando-se dos signos e
seus significados, o mundo vai ganhando significado para a criança e sua conduta
vai se tornando objeto de sua consciência e autodomínio.

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Os estudos de Vigotski demonstra- vimento, a criança começa a aplicar a si


ram que em um primeiro momento o própria as mesmas formas de compor-
signo existe para a criança na relação tamento que a princípio outros aplica-
com o outro, ou seja, em processos in- vam a ela, isto é, a criança assimila as
terpsíquicos. O adulto vai revelando e formas sociais da conduta e as transfere
transmitindo para a criança os significa- para si mesma. Essa lei é válida, de acor-
dos dos signos da cultura, empregando- do com Vigotski (1995), para todo em-
-os para direcionar e orientar a conduta prego de signos. Eis o que nosso autor
da criança no ambiente. afirma a esse respeito:
Quando confeccionamos um car-
O signo, a princípio, é sempre um
taz com a rotina de atividades do dia,
meio de relação social, um meio de
estamos apresentando à criança um
influência sobre os demais e tão so-
conjunto de signos que auxiliam na
mente depois se transforma em meio
regulação da conduta, pois colaboram
de influência sobre si mesmo. (...) Se
na tomada de consciência da sequência
é certo que o signo foi a princípio um
de atividades a serem desenvolvidas.
meio de comunicação e tão somente
Esses signos passam a mediar a relação
depois passou a ser um meio de con-
da criança com sua própria atividade e
duta da personalidade, faz-se eviden-
com o tempo que passa na escola, na
te que o desenvolvimento cultural se
medida em que ela adquire consciên-
baseia no emprego dos signos e que
cia de que ao término de determinada
sua inclusão no sistema geral de com-
tarefa todos irão para o parque, por
portamento transcorreu inicialmente
exemplo. Inicialmente, esses signos so-
de forma social, externa (VYGOTSKI,
mente desempenham propriamente a
1995, p.146-7).
função de signo se for garantida a me-
diação da professora. Aos poucos, con- Lembremo-nos do exemplo que
tudo, a criança vai se apropriando des- mencionamos anteriormente, relatan-
ses signos e passa a recorrer a eles de do uma situação em que uma criança se
forma autônoma. Esse exemplo ilustra dispersa durante a leitura de uma histó-
o processo de apropriação ou internali- ria pela professora. Diferentemente da
zação do signo. criança, nós, adultos, somos capazes de
Vigotski apoia a proposição de perceber que estamos nos dispersando
Pierre Janet (1859-1947), que afirma a e conscientemente redirecionar nossa
existência de uma lei geral que regula atenção para um determinado objeto
o desenvolvimento da conduta, qual ou fenômeno. Para isso, adotamos me-
seja: ao longo do processo de desenvol- canismo semelhante ao que a professo-

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ra utiliza com as crianças, mas nesse caso para dirigir nossa própria conduta, não
mais dependendo de instruções externas, mas recorrendo à auto-instrução, no
plano interno do nosso psiquismo. Na medida em que internalizamos os signos da
cultura, vamos desenvolvendo mecanismos para dominar nossos próprios proces-
sos psíquicos.

internalização

interpsíquico intrapsíquico
inter = ‘entre’ intra = ‘dentro’
na relação com o como conquista da
outro/ educador individualidade da criança

Figura 2: Lei genética geral do desenvolvimento psíquico. Fonte: Elaborado pela autora.

Assim, o signo, que a princípio é introduzido por meio de processos interpsí-


quicos, é internalizado e converte-se em instrumento psicológico no plano intrap-
síquico. Essa é, para Vigotski, a lei genética geral do desenvolvimento psíquico:
Toda função psíquica superior existe antes no plano externo, interpsíquico,
como relação social, para então converter-se em “órgão da individualidade da
criança”, ou seja, firmar-se como conquista interna de seu psiquismo. Pensemos
na atenção voluntária, para ilustrar esse processo. A criança pequenina não dis-
põe dessa capacidade cultural: sua atenção é essencialmente involuntária, deter-
minada pela estimulação do ambiente. Os estímulos fortes chamam sua atenção
e ela se dispersa facilmente. O professor, que já conquistou essa capacidade, deve
“emprestá-la” para seus alunos, dirigindo a atenção das crianças por meio de sig-
nos. Em sendo garantida essa mediação no plano interpsíquico, a criança começa
a aplicar a si própria as mesmas formas de comportamento que a princípio o adul-
to aplicava a ela: a criança começa a utilizar a linguagem para dirigir seu próprio
comportamento. É bastante comum observarmos as crianças descrevendo para o

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professor o que estão fazendo: “prô, eu tô pintando com a tinta amarela... ago-
ra eu tô misturando com a verde”. É importante perceber que não se trata de
processos distintos, pois nesse caso agir e falar constituem uma unidade: a partir
de um determinado momento do desenvolvimento, a fala passa a acompanhar e
dirigir a ação, como veremos a seguir. Isso representa um importante salto qua-
litativo no desenvolvimento da criança na direção da tomada de consciência e
controle da própria conduta, pois a linguagem, como sistema de signos, promove
uma profunda reorganização de todos os processos mentais.
 

internalização

interpsíquico intrapsíquico

Figura 3: Lei genética geral do desenvolvimento psíquico em seu duplo movimento. Fonte:
Elaborado pela autora.

Vale lembrar que as conquistas que se firmam no plano intrapsíquico abrem


para a criança novas possibilidades de ação e novas formas de relação no plano
interpsíquico, podendo tornar mais rica sua atividade interpsíquica, o que, a de-
pender das possibilidades criadas pelo contexto em que está inserida a criança,
retroalimenta o desenvolvimento intrapsíquico.
O pleno desenvolvimento das funções psíquicas superiores, segundo Vygotski
(1995), só pode ser alcançado na adolescência. Na primeira infância e idade pré-
-escolar o funcionamento psíquico da criança se assenta fundamentalmente nas
funções elementares. Diante dessa constatação, cabe a pergunta: quais as implica-
ções para o trabalho do professor de educação infantil? A primeira é compreender
o funcionamento psíquico típico da faixa etária, desconstruindo expectativas de

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que a criança pequena possa ter pleno controle sobre sua própria con-
duta1. Conforme Mukhina (1996), nos primeiros anos de vida a criança
responde de forma imediata aos estímulos do ambiente: “a criança na
primeira infância age sem refletir, movida por desejos e sentimentos
de cada momento concreto. Esses desejos e sentimentos são provoca-
dos pelo imediato, pelo que está a sua volta; por isso seu comporta-
mento depende das circunstâncias externas. (MUKHINA, 1996, p. 143).
Ao mesmo tempo, não podemos esperar que a criança supere
naturalmente esse funcionamento psíquico elementar, pois, como
vimos, a gênese do autodomínio da conduta é social e seu ponto
de partida é o interpsíquico. Assim, é fundamental percebermos o
quanto as premissas para o desenvolvimento dos processos psíquicos
superiores já podem (e devem!) ir sendo construídas com a criança
pequena. Como explica Pasqualini (2006, p.132): “o ensino junto à
criança de 0 a 6 anos deve constituir uma primeira etapa do proces-
so de superação das relações naturais e imediatas do sujeito com o
mundo (funções elementares) que ascenderão a processos superiores
mediante a apropriação de instrumentos culturais”. O controle cons-
ciente do comportamento começa a se formar na idade pré-escolar:
“nessa idade, as ações volitivas coexistem com as ações não premedi-
tadas ou impulsivas, resultantes de sentimentos ou desejos circuns-
tanciais” (MUKHINA, 1996, p.220). Esse desenvolvimento dependerá
das relações sociais que se estabelecem com a criança.

O papel da linguagem no desenvolvimento da conduta volun-


tária

Considerando a importância da linguagem na formação dos pro-


cessos psíquicos da criança, faz-se relevante compreender a natureza
da palavra, seu processo de apropriação pela criança e o papel da fala
na regulação dos processos psíquicos.
A palavra é um signo que designa um objeto. A principal função
da palavra, de acordo com a psicologia histórico-cultural, é seu pa-
1
Vale observar que o autodo-
pel designativo, ou seja, sua propriedade de substituir o objeto. Ao
mínio da conduta não deixa de nomear os objetos do mundo, as palavras fazem com que o mundo
ser um desafio mesmo para os se “duplique” para o homem: “o homem sem a linguagem só se rela-
adultos! cionava com aquelas coisas que observava diretamente, com as que

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podia manipular. Com a ajuda da lin- situação em que são emitidas, do gesto
guagem, que designa objetos, passa a que as acompanha, ou mesmo da ento-
se relacionar com o que não percebe di- nação, as palavras designam diferentes
retamente e que antes não entrava em fenômenos e objetos. Não é possível
sua experiência.” (LURIA, 1987, p. 32). compreender o que a criança pretende
Com isso, o homem ganha a possibi- comunicar com a palavra senão em re-
lidade de operar mentalmente com os ferência ao contexto. Isso significa que
objetos mesmo em sua ausência, pois inicialmente existe uma dependência
se torna capaz de evocar mentalmente essencial do significado da palavra em
imagens, objetos e ações independente- relação ao chamado contexto simpráxi-
mente da presença real desses objetos. co em que ela é emitida.
Em outras palavras, passamos a cons- Na sequência, a criança começa a
truir representações dos objetos e fe- adquirir a morfologia elementar da
nômenos. Na vida cotidiana, isso pode palavra. Com isso, o significado de
parecer banal, mas significa uma revolu- cada palavra se reduz, pois ela passa
ção do ponto de vista do psiquismo! a designar um objeto determinado. A
palavra torna-se, assim, independente
de seu contexto simpráxico, ou seja,
A criança inicialmente percebe o supera-se o entrelaçamento da pala-
mundo de forma sincrética (fusão vra com a situação prática.
desordenada de elementos). Isso faz com que a criança sinta a ne-
Portanto, o fato de ir se tornando cessidade de ampliação do vocabulário,
capaz de nomear os diferentes ou seja, ela sente necessidade de adqui-
rir novas palavras que possam designar
elementos de uma situação visual
mais objetos, e também as qualidades,
é extremamente importante, pois
ações, relações. Segundo Luria (1987),
a palavra destaca e diferencia é esse processo que explica o surpre-
um objeto do outro, superando endente salto no desenvolvimento do
a conexão sincrética e tornando vocabulário da criança que se observa
possível estabelecer relações entre por volta de 1 ano e meio: “até esse
tais objetos. período, a quantidade de palavras re-
gistradas no vocabulário da criança é
de 12 a 15 e, neste momento, sua quan-
As primeiras palavras aprendidas tidade sobre subitamente para 60, 80,
pela criança, nos dizeres de Luria (1987), 150, 200.” (p. 31). A palavra converte-se
são difusas e amorfas. Dependendo da em um signo autônomo que designa

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um objeto, ação ou qualidade (e poste- pela influência dos estímulos do entor-
riormente uma relação) e, dessa forma, no (as características dos objetos). Veja-
torna-se um elemento do complexo sis- mos um experimento realizado por Lu-
tema de códigos da língua. ria com bebês que retrata bem esse fato:
Assim, podemos entender o desen-
O experimento consiste no seguinte:
volvimento da linguagem na primeira
colocam-se diante da criança uma sé-
infância como a história da emancipa-
rie de brinquedos, um peixinho, um
ção da palavra do terreno da prática, no
pintinho, um gatinho, uma pequena
transcorrer da qual a palavra ganha au-
xícara, etc. Todos estes objetos são
tonomia em relação à situação concreta.
bem conhecidos para a criança. O ex-
Em síntese, para Luria (1987, p. 33):
perimentador diz: ‘pega o peixinho’,
(...) com a aparição da linguagem mas este objeto está colocado um
como sistema de códigos que desig- pouco mais distante do que a xícara
nam objetos, ações, qualidades e re- ou é menos brilhante que o pintinho
lações, o homem adquire algo assim ou o gatinho. (...) A criança fixa o
como uma nova dimensão da consci- olhar sobre o objeto nomeado, diri-
ência, nele se formam imagens subje- ge-se a ele, mas no caminho encontra
tivas do mundo objetivo que são diri- outros objetos e pega não o nomeado
gíveis, ou seja, representações que o pelo adulto, mas aquele que provo-
homem pode manipular, inclusive na cou sua reação de orientação imedia-
ausência de percepções imediatas. Isto ta. (LURIA, 1987, p. 97).
consiste na principal conquista que o
A criança se dirige ao objeto no-
homem obtém com a linguagem.
meado, “o peixinho”, mas no caminho
Além da função designadora, a pa- se depara com “uma pequena xícara”,
lavra, como signo, exerce a função de a qual chama sua atenção: isso é sufi-
regulação da conduta, possibilitando o ciente para que a instrução verbal seja
autodomínio do comportamento. Se- “esquecida”. Isso significa que a influ-
gundo Luria (1987), a primeira etapa ência visual dos objetos ainda tem pre-
do desenvolvimento da função regu- valência sobre a palavra. O resultado
ladora da linguagem da criança é a ca- do experimento é diferente se o expe-
pacidade de se subordinar à instrução rimentador, além da instrução verbal,
verbal do adulto. realizar com o objeto uma série de
A princípio, embora a criança se sub- ações: apontá-lo com o dedo, levan-
meta à indicação verbal do adulto, seu tá-lo, balançá-lo. Nesse caso, o objeto
comportamento é facilmente alterado denominado pela palavra é reforçado

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pela ação e a criança é capaz de aten- Na etapa seguinte, a criança passa


der corretamente à instrução. a dominar o uso da língua e dar “or-
Luria (1987) constatou que é so- dens” a si mesma, ou seja, passa a utili-
mente por volta do fim do terceiro ano zar sua própria linguagem para orien-
de vida que aparece a possibilidade de tar sua conduta. Esse é o momento em
a criança se submeter à instrução verbal que a criança manifesta a fala exterior
“pura” do adulto, o que implica supe- ou fala egocêntrica.
rar a influência visual imediata dos ob- Vigotski demonstrou com seus ex-
jetos. Essa conquista deve ser pensada perimentos que, por volta dos quatro
como um objetivo do trabalho com os anos de idade, fala e ação constituem
bebês e crianças pequeninas! uma unidade. Quando a criança se vê
Na primeira etapa do domínio da diante de um problema complexo, a
linguagem, a professora se dirige à fala é tão importante quanto a ação
criança orientando sua atenção por para a resolução da situação-problema.
meio de instruções verbais (“pega a bo- A fala egocêntrica tem a função de pla-
neca”, “levanta a mão”, “onde está o nejamento de determinadas ações de
pincel?”). Ao fazer isso, a professora re- iniciativa própria:
organiza a percepção da criança, sepa-
rando o objeto nomeado do fundo ge- A fala da criança é tão importante
ral: quando o adulto assinala um obje- quanto a ação para atingir um objeti-
to do entorno com um gesto indicador, vo. As crianças não ficam simplesmen-
ele está centrando a atenção da criança te falando o que elas estão fazendo;
em um ponto dominante que se disso- sua fala e ação fazem parte de uma
cia pela primeira vez do conglomerado mesma função psicológica complexa,
de impressões. Ao mesmo tempo, a ins- dirigida para a solução do problema
trução verbal orienta os atos motores em questão.
da criança por meio da linguagem da Quanto mais complexa a ação exigida
professora. Luria (1987) explica que, pela situação e menos direta a solu-
nesse momento, a ação voluntária está ção, maior a importância que a fala
“dividida” entre duas pessoas: o ato adquire na operação como um todo.
motor da criança começa com a alocu- Às vezes a fala adquire uma importân-
ção verbal da professora e termina com cia tão vital que, se não for permitido
as próprias ações da criança. Portanto, seu uso, as crianças pequenas não são
“o desenvolvimento da ação voluntá- capazes de resolver a situação.
ria da criança começa com um ato prá- Essas observações me levam a con-
tico que a criança realiza por indicação cluir que as crianças resolvem suas
do adulto.” (LURIA, 1987, p. 95) tarefas práticas com a ajuda da fala,

81
assim como dos olhos e das mãos. linguagem egocêntrica precede
Essa unidade de percepção, fala e a socialização da linguagem e do
ação, que, em última instância, provo-
pensamento. Vigotski defende
ca a internalização do campo visual,
uma interpretação inversa: a
constitui o objeto central de qualquer
análise da origem das formas caracte-
linguagem primordial da criança
risticamente humanas de comporta- é puramente social, sendo a
mento (VYGOTSKY, 1994, p. 34-35, linguagem egocêntrica uma forma
grifo nosso). transitória da linguagem exterior
A princípio, a criança age e em se- para a linguagem interior.
guida fala. Suas palavras são a parte
final da solução prática do problema. Na etapa seguinte desse proces-
Nessa etapa, a criança ainda não é ca- so de desenvolvimento, por volta dos
paz de diferenciar verbalmente o que 4-5 anos, a criança passa a apresentar
fez antes e o que fez depois. Em uma a ação simultânea da linguagem e do
situação experimental em que deve pensamento. Surge o pensamento du-
escolher um objeto dentre vários, por rante a ação. A linguagem se faz ego-
exemplo, ela primeiro escolhe e depois cêntrica. É o momento em que a crian-
explica porque escolheu um ou outro ça recorre às auto-instruções, ou seja,
objeto. O mesmo ocorre no desenho: a emite comandos verbais para si mesma:
criança de menor idade desenha e so- diz “vou subir no banquinho” e sobe,
mente ao terminar é capaz de falar so- em seguida diz “agora vou pegar a bo-
bre o que desenhou. neca”, e pega. No desenho, a criança
começa a falar sobre o que está dese-
nhando, por partes. A princípio, essas
Vigotski diverge da análise de
relações são pouco firmes.
Piaget quanto à natureza e função
Por fim, a criança começa a ser capaz
da fala egocêntrica na criança. de planejar verbalmente a ação, e so-
Para Piaget, a fala egocêntrica mente depois a executa. A criança fala
existe como expressão ou reflexo sobre o que vai desenhar antes, e só en-
do caráter egocêntrico do tão desenha. Essa capacidade começa a
pensamento da criança, enquanto se formar na transição para a idade esco-
lar. Com isso, torna-se possível o plane-
na teoria vigotskiana constitui
jamento de atividades, sua realização e
um instrumento do pensamento
a comparação de seus resultados com as
realista da criança. Para Piaget, a finalidades propostas (MARTINS, 2007).

82 Fundamentos Teóricos
Fundamentos Teóricos

A fala externa vai deixando de ser superiores, a criança vai tomando cons-
necessária na medida em que a criança ciência dessas ideias e assumindo o con-
avança no processo de internalização trole voluntário sobre o movimento de
da linguagem, ou seja, na medida em seu pensamento.
que esta se transforma em um processo As primeiras ideias estão funda-
interno intrapsíquico de autorregula- mentalmente vinculadas às experiên-
ção da conduta: a linguagem externa cias afetivas da criança na sua relação
da criança interioriza-se. Assim, alcan- com o entorno e a sua percepção sen-
ça-se a subordinação da ação não mais sorial. A princípio, é o afeto que desem-
à linguagem do adulto, mas sim à pró- penha o papel principal na formação
pria linguagem (interna) da criança. do significado da palavra para a crian-
É desta forma, segundo Luria (1987), ça. Assim, tomando a palavra cachor-
que se forma na criança a ação volun- ro como exemplo, temos que ela pode
tária consciente. Como explica Vigotski significar algo assustador para a crian-
(2001), são as estruturas da linguagem, ça, caso ela já tenha sido mordida por
ao serem apropriadas pela criança e esse animal, ou algo agradável, caso
converterem-se em linguagem interna, sua família tenha um cachorro com o
que constituirão as estruturas básicas qual brinca e se diverte, por exemplo:
de seu pensamento. “a palavra cachorro possui um sentido
afetivo e neste consiste a essência da
O desenvolvimento do pensamen- palavra” (LURIA, 1987, p. 52).
to na criança Num momento seguinte do processo
de desenvolvimento do pensamento, as
Uma ideia fundamental no pen- imagens práticas advindas da experiên-
samento vigotskiano é que os signi- cia concreta da criança estarão por trás
ficados das palavras se desenvolvem. do significado da palavra: “ao cachorro
Quando a criança aprende uma pala- se pode dar de comer, o cachorro vigia a
vra, o processo de apropriação de seu casa, o cachorro briga com o gato” (LU-
significado não está terminado, mas RIA, 1987, p. 52).
apenas começando! Isso equivale a di- Com o desenvolvimento do pensa-
zer que as ideias que a criança elabora mento na idade pré-escolar, portanto,
sobre o mundo se desenvolvem. as imagens captadas pelos sentidos
Não só as ideias infantis se desen- são transformadas em uma expressão
volvem, mas seu movimento vai se tor- verbal mentalizada. As representações
nando cada vez mais complexo. Com o formadas pela criança referem-se àqui-
desenvolvimento das funções psíquicas lo que pode ser observado e constatado

83
pela percepção. Já não encontramos mais, aqui, a percepção imediata do mundo
externo, mas uma percepção mediada pelas palavras que nomeiam os diferentes
objetos e atribuem a eles significado. No entanto, ainda há, notadamente, uma
primazia do plano concreto das imagens. Esse tipo de pensamento, predominante
na idade pré-escolar, pode ser chamado, de acordo com o psicólogo Vasili Davidov,
de pensamento empírico (MARTINS, 2007). Seu desenvolvimento implica o intenso
contato prático da criança com a realidade social, que promove uma maior comple-
xidade e solidez das ideias que a criança elabora sobre o mundo. Isso significa que a
escola de educação infantil deve promover a ampliação do contato da criança com
a realidade social, para além dos estreitos limites da vida cotidiana.
O pensamento empírico opera com base em representações sensoriais. Dife-
rentemente dele, teremos posteriormente o desenvolvimento do pensamento
teórico, que opera por meio de conceitos. O pensamento da criança na primeira
infância e idade pré-escolar ainda não opera com conceitos, o que só será plena-
mente possível na adolescência – se forem garantidas as necessárias condições
educativas para esse desenvolvimento.
A principal diferença entre o pensamento empírico e o pensamento por con-
ceitos é o sistema. Quando o significado da palavra passa a estar inserido em um
sistema de categorias hierarquicamente subordinadas, estamos falando propria-
mente de pensamento conceitual. Assim, para o estudante em idade escolar, o
cachorro é um animal que se inclui em uma hierarquia de conceitos subordinados
entre si. Podemos observar como se dá esse desenvolvimento na figura “Esque-
ma da composição dos campos semânticos na ontogênese” elaborada por Luria
(1987, p.53) e reproduzida abaixo, retratando a estrutura do significado da pala-
vra ‘cachorro’ na idade pré-escolar e na idade escolar:

84 Fundamentos Teóricos
Fundamentos Teóricos

(criança)
(A) Morde

(dono) Ladra, cuida da casa


Obedece ao dono Cachorro (estranho)

Sai para passear Brinca com o gato


(dono) (gato)

(B) vivo inanimado

animal vegetal

animal doméstico animal selvagem

cavalo Cachorro gato

basset ovelheiro

“Roy” “Chiquinho”

Figura 4: Desenvolvimento da estrutura do significado da palavra. FONTE: reproduzido de LURIA,


1987, p.53.

Com o desenvolvimento do sistema conceitual, de caráter abstrato, torna-se


possível ao sujeito realizar operações de dedução e inferência sem que a experi-
ência direta se faça necessária.
Embora o sistema de conceitos seja uma conquista de um momento posterior
do desenvolvimento da criança, as bases para sua formação são construídas já na
educação infantil. Os conceitos práticos que marcam a idade pré-escolar não desa-
parecem, mas tornam-se subordinados aos conceitos teóricos gerais. Isso significa
que o trabalho anterior do pensamento não se perde, ao contrário: os conceitos
mais simples são incorporados aos mais complexos. O pensamento não recomeça
do zero a cada novo estágio do desenvolvimento, mas recria o significado a partir
do que já está formado, complexificando sua estrutura psíquica. Ao aprender o
conceito “animal”, este incorpora o conceito “cachorro” anteriormente formado
pela criança: o primeiro supera por incorporação o segundo.
Essa teorização nos provoca reflexões sobre os significados da cultura que de-
vemos trabalhar com as crianças. A criança pequena ainda não opera cognitiva-
mente com conceitos propriamente ditos, mas com noções. Isso significa que não

85
há espaço na educação infantil para trabalharmos com conceitos
científicos? O professor deve centrar seu trabalho exclusivamente
em conceitos práticos, cotidianos, espontâneos?
“Não se trata de transmitir à criança pré-escolar conhecimen-
tos vinculados exclusivamente a seu cotidiano, adiando o trabalho
com o conhecimento científico para a idade escolar.” (PASQUALI-
NI, 2010, p. 27). É fundamental que o professor insira nas atividades
pedagógicas o conhecimento científico, enriquecendo a experiência
pessoal da criança, introduzindo em suas vivências cotidianas na es-
cola o conhecimento científico, possibilitando assim a formação de
conceitos prático-espontâneos ricos em conteúdo, mesmo porque
as noções formadas na educação infantil atuarão como mediadores
na apropriação dos conceitos científicos na sequência da escolariza-
ção da criança:

(...) mesmo que as atividades organizadas na educação infantil devam


levar em consideração que os vínculos da criança com a realidade se
organizam predominantemente a partir dos conceitos espontâneos,
as ações sistematizadas pelo professor no processo de ensino, consi-
derando o vir-a-ser da criança, podem orientar-se para o desafio de
a criança se apropriar de conceitos científicos. (ABRANTES, 2011, p.
232, grifo nosso)

Na medida em que compreende que o sistema de generalizações


muda ao longo do desenvolvimento da criança, o professor pode pla-
nejar ações pedagógicas voltadas à complexificação dos significados.
Quando a criança pequenina aprende a nomear a Lua, o elemento
primordial do significado dessa palavra está provavelmente vincula-
do a ser esse objeto um foco de luz visível em ambientes escuros, as-
sim como abajures, lanternas, lustres e outros focos de luz2. A noção
2
O significado da palavra Lua é
que a criança constrói sobre a Lua ainda se apoia em uma proprieda-
utilizado por Marta Khol de Oli-
veira para ilustrar a tese vigot- de externa e não reflete a essência desse objeto, pois a Lua é um cor-
skiana sobre o desenvolvimen- po celeste que não emite luz. É importante, então, que ela avance no
to do significado da palavra, no sentido da diferenciação entre a luz da Lua, da lanterna e do abajur,
livro Vygotsky: aprendizado e
identificando a Lua como corpo celeste, assim como o Sol e as (de-
desenvolvimento: um processo
sócio-histórico, publicado pela mais) estrelas, para que em um momento posterior possa compreen-
Editora Scipione em 1997. der que a Lua é um satélite que gira em torno do planeta Terra. Temos

86 Fundamentos Teóricos
Fundamentos Teóricos

aqui um desenvolvimento em espiral: aparentemente voltamos a trabalhar com a


criança um mesmo conteúdo, mas já não se trata mais do mesmo conteúdo, pois o
significado se enriquece e se complexifica, apoiando-se em novos mecanismos de
generalização. Essa espiral avança na direção da formação do conceito.

Figura 5: A espiral como imagem que representa o


movimento do desenvolvimento psíquico

 
Ainda em relação ao desenvolvimento do pensamento na criança, cabe desta-
car propriedades do pensamento teórico cujas bases podem (e devem!) ser inten-
cionalmente formadas pelo professor de educação infantil.
Quando discutimos o desenvolvimento do pensamento, falamos do tipo de
ideias que a criança vai formando sobre o mundo, que expressam e orientam a
relação da criança com a realidade. Em linhas gerais, podemos dizer que o pensa-
mento teórico é capaz de captar o movimento da realidade e suas contradições,
indo além da aparência empírica dos fenômenos e revelando a possibilidade de
sua transformação ativa pelo homem. As ações educativas junto à infância devem
se orientar por esses princípios, os quais se expressam tanto na forma quanto no
conteúdo das atividades propostas pelo professor. É preciso combater a formação
de uma relação fatalista e passiva da criança com a realidade e, portanto, de uma
compreensão estática e acrítica do real: “o pensamento teórico tem a possibi-
lidade de refletir a realidade não apenas como ela existe imediatamente, mas
também como ela poderia e deveria ser para atender as necessidades dos seres
humanos.” (ABRANTES, 2011, p. 57)

Relações entre desenvolvimento, ensino e aprendizagem

Ao defender a pertinência do conhecimento científico na educação infantil


e propor como objetivos para a prática pedagógica a formação das bases para o
desenvolvimento do pensamento teórico e do autodomínio da conduta, estamos

87
pressupondo uma determinada relação entre os processos de ensino
e desenvolvimento infantil. O ensino é, por nós, compreendido como
fonte de desenvolvimento, uma vez que a formação de novas capa-
cidades no psiquismo depende das mediações que serão oportuniza-
das à criança.
Vigotski dedicou-se a analisar as relações entre ensino, aprendi-
zagem e desenvolvimento, tomando como ponto de partida uma
revisão crítica das formulações teóricas existentes a sua época. De
acordo com o autor, a explicação mais difundida para a relação en-
tre aprendizagem e desenvolvimento considera esses dois processos
como independentes entre si. O desenvolvimento é visto como um
processo de maturação sujeitos às leis naturais; a aprendizagem, por
sua vez, “aproveita” as oportunidades criadas pelo processo de de-
senvolvimento. Nessa concepção, que foi objeto de crítica por parte
de Vigotski, considera-se que é o desenvolvimento que determina o
que as crianças estão aptas ou não a aprender, ou seja, a aprendiza-
gem depende do desenvolvimento: para essa teoria, o desenvolvi-
mento cria as potencialidades e a aprendizagem as realiza.
Piaget pode ser considerado um representante dessa concepção,
na medida em que considerava que o indicador do nível do pensa-
mento infantil não é o que a criança sabe ou o que ela é capaz de
apreender, mas a maneira como essa criança pensa em um campo
onde ela não tem nenhum conhecimento. Vigotski esclarece que é
por essa razão que Piaget, em suas pesquisas, evita fazer perguntas
à criança sobre temas a respeito dos quais ela já possa ter adquirido
algum conhecimento. Na visão do pesquisador suíço, se fizéssemos
3
Podemos notar, portanto, que esse tipo de pergunta à criança, estaríamos obtendo não resultados
embora Vigotski considerasse do pensamento, mas resultados do conhecimento. Piaget eviden-
Piaget um eminente pesquisa- temente não desconsidera a transmissão dos conteúdos da cultura
dor cujas contribuições para a
(aprendizagem/ conhecimento), mas elege como seu objeto de aná-
psicologia da infância são ines-
timáveis, não compartilhava de lise o desenvolvimento espontâneo do pensamento da criança, ou
sua concepção de desenvolvi- seja, as tendências do pensamento da criança em sua forma pura,
mento infantil e da forma como independente dos conhecimentos a ela transmitidos3.
esse pesquisador abordou as
Adotando-se essa concepção, seria possível uma diferenciação
relações entre aprendizagem
e desenvolvimento (e entre co-
entre o que é produto do desenvolvimento e o que é produto do
nhecimento e pensamento). ensino. Certas habilidades do pensamento (forma do pensamento)

88 Fundamentos Teóricos
Fundamentos Teóricos

seriam resultantes do processo de desenvolvimento, enquanto conhecimentos


e hábitos sociais (conteúdo do pensamento) seriam transmitidos pelo ensino. O
professor que se orienta por essa concepção se pergunta se a criança já atingiu
determinado nível de desenvolvimento (isto é, se já desenvolveu determinadas
funções psíquicas e habilidades do pensamento) que a permita começar a apren-
der um determinado conteúdo. Quando novas potencialidades do pensamento
surgirem, serão possíveis também outras aprendizagens.
Para Vigotski, essa concepção capta um aspecto fundamental da relação en-
tre aprendizagem e desenvolvimento, que se refere à dependência da primeira
em relação ao segundo: é fato que a aprendizagem depende do desenvolvi-
mento! Isso significa afirmar que a aprendizagem se encontra indiscutivelmen-
te na dependência de certos ciclos de desenvolvimento já percorridos: não se
pode ensinar equações matemáticas na idade pré-escolar, pois essa aprendiza-
gem requer certo grau de maturidade de funções psíquicas ainda não acessíveis
nesse período do desenvolvimento.
 

internalização

interpsíquico intrapsíquico
ensino-aprendizagem desenvolvimento

Figura 6: Representação das relações entre ensino, aprendizagem e desenvolvimento. Fonte:


Elaborado pela autora.

89
Contudo, para o autor, essa depen- análise de Vigotskii (2001), o psicólogo
dência da aprendizagem em relação ao ou professor que avalia o estado do de-
desenvolvimento não é principal, mas senvolvimento da criança não deve le-
subordinada. Se é verdade que a apren- var em conta somente as funções já de-
dizagem depende do desenvolvimen- senvolvidas, mas também aquelas em
to, mais importante é compreender a processo de desenvolvimento.
relação inversa: o desenvolvimento de- Para identificar as funções psíqui-
pende do processo de ensino-aprendi- cas que estão iniciando seu ciclo de
zagem. O ensino, como processo que se desenvolvimento, Vigotski defendia
realiza no plano interpsíquico, produz ser necessário um novo procedimento
desenvolvimento, ou seja, engendra de avaliação. O professor deve aten-
conquistas no plano intrapsíquico. tar não apenas ao que a criança já é
É no contexto das análises sobre a re- capaz de realizar com autonomia, ou
lação entre aprendizagem e desenvolvi- seja, não basta avaliar o desempenho
mento que Vigotski formula o conceito independente da criança. Tem funda-
de zona de desenvolvimento próximo. mental importância como indicador de
Essa talvez seja a proposição mais co- seu desenvolvimento o desempenho
nhecida de Vigotski. Mas Chaiklin (2011) da criança em colaboração com um par
assevera que o significado desse concei- mais desenvolvimento. A avaliação do
to é mais bem elaborado e consistente desenvolvimento deve envolver, por-
do que tem sido comumente difundi- tanto, a intervenção do adulto, a quem
do. É preciso que avancemos no enten- cabe mediar a solução da tarefa, ofere-
dimento da zona de desenvolvimento cendo auxílio à criança na resolução de
próximo como conceito científico. problemas que ela ainda não é capaz
Na obra vigotskiana, o conceito de de resolver sozinha.
ZDP vincula-se ao problema da avalia- Ao enfrentar sozinha uma deter-
ção do desenvolvimento intelectual. minada tarefa, a criança se utiliza de
Para o autor, a psicologia tradicional suas funções e capacidades psíquicas já
limitava-se a estabelecer o nível de formadas, aquilo que já se consolidou
desenvolvimento intelectual atual da como uma conquista de seu psiquismo.
criança, por meio de testes que verifica- A ajuda do adulto, por sua vez, é capaz
vam os problemas que a criança era ca- de mobilizar funções psíquicas que ain-
paz de resolver sozinha. Seria um movi- da não estão formadas na criança, mas
mento semelhante a se avaliar um jar- que já começam a despontar, ou seja,
dim considerando apenas o que já flo- funções que estão iniciando seu ciclo de
resceu, sem atentar para os brotos. Na desenvolvimento: são justamente essas

90 Fundamentos Teóricos
Fundamentos Teóricos

as funções que constituem a zona de de- sibilidade se concretize, o ensino não


senvolvimento próximo da criança. pode se limitar a exercitar as funções
Vigotski pôde concluir que a apren- psíquicas já formadas (desenvolvimen-
dizagem de novos conteúdos pela to real ou atual); é preciso colocar em
criança não apenas se apoia nas fun- movimento e fazer avançar as funções
ções já amadurecidas, ou seja, naquilo psíquicas que estão despontando no
que já se formou e se consolidou em psiquismo da criança, ou seja, o ensino
seu psiquismo, mas provoca a forma- deve mobilizar e provocar o desenvol-
ção de novas capacidades. Quando a vimento das capacidades psíquicas que
criança começa a aprender determi- se encontram na zona de desenvolvi-
nado conteúdo, as funções psíquicas mento próximo da criança.
necessárias para sua apropriação não É importante também destacar que,
estão ainda formadas. É justamente a embora em colaboração a criança sem-
apropriação do conteúdo que desenca- pre possa fazer mais do que sozinha,
deará ou provocará o desenvolvimento determinadas tarefas não poderão ser
de novas capacidades psíquicas ou ha- resolvidas mesmo com ajuda ou orien-
bilidades do pensamento. Referindo-se tação do adulto: “(...) em colaboração
particularmente à aprendizagem da com outra pessoa, a criança resolve
escrita, Vigotski (2001, p. 311) infor- mais facilmente tarefas situadas mais
ma que suas investigações permitiram próximas do nível do seu desenvolvi-
constatar que: mento, depois a dificuldade da solução
cresce e finalmente se torna insuperá-
(...) as funções psicológicas sobre que
vel até mesmo para a solução em cola-
se baseia a linguagem escrita ain-
boração” (VIGOTSKI, 2001, p. 329). Isso
da não se começaram a desenvolver
significa que existe um limite na zona
quando o ensino da escrita se inicia e
de desenvolvimento próximo, que será
este tem que se erguer sobre os ali-
diferente para cada criança em cada
cerces de processos rudimentares que
momento do seu desenvolvimento.
mal estão começando a surgir por
Aquilo que a criança não consegue re-
essa altura.
solver nem mesmo com ajuda está ain-
Isso significa que o ensino e a da fora de suas potencialidades inte-
aprendizagem orientam e estimu- lectuais naquele momento (razão pela
lam processos de desenvolvimento na qual não é possível se ensinar equações
criança. Em outras palavras: a apren- matemáticas na educação infantil).
dizagem antecede o desenvolvimento O desafio que se coloca para o pro-
para promovê-lo. Para que essa pos- fessor é identificar aquilo que já está

91
formado no psiquismo da criança em termos de suas capacidades e funções psíquicas e aquilo
que está em vias de formação, ou seja, o próximo desenvolvimento. A mediação do adulto, por
meio de demonstrações, oferecimento de modelos, perguntas sugestivas, indicação do início da
solução, etc., cria condições para que aquilo que hoje se encontra na zona de desenvolvimento
próximo possa se consolidar como conquista do desenvolvimento real intrapsíquico da criança:

A investigação demonstra sem margem de dúvida que aquilo que está situado na zona de desen-
volvimento potencial [próximo] numa primeira fase realiza-se e passa ao nível do desenvolvimento
atual em uma segunda fase. Noutros termos, o que a criança é capaz de fazer hoje em colaboração
conseguirá fazer amanhã sozinha. (VIGOTSKI, 2001, p. 331)

Vale notar, como explica Prestes (2010, p. 173), que a característica essencial da zona de
desenvolvimento próximo ou iminente, conforme tradução proposta pela autora, é a das
possibilidades de desenvolvimento, “(...) pois se a criança não tiver a possibilidade de con-
tar com a colaboração de outra pessoa em determinados períodos de sua vida, poderá não
amadurecer certas funções intelectuais e, mesmo tendo essa pessoa, isso não garante, por si
só, o seu amadurecimento”. A mediação qualificada de um par mais desenvolvido se mostra,
portanto, fundamental.

ATENÇÃO:
Zona de desenvolvimento próximo é um conceito que se refere às possibilidades de
desenvolvimento psíquico da criança. Nesse sentido, Chaiklin (2011) salienta que o conceito
não diz respeito à aprendizagem, mas ao desenvolvimento. O ensino que incide sobre a zona
de desenvolvimento próximo não é aquele que simplesmente apresenta à criança novas
informações ou conhecimentos que ela desconhecia anteriormente. Nem toda aprendizagem
provoca desenvolvimento! O que Vigotski tenta nos dizer é justamente que determinadas
aprendizagens apenas exercitam aquilo que já está formado na criança. Somente agimos
sobre a zona de desenvolvimento próximo, provocando desenvolvimento psíquico, quando
transmitimos à criança conhecimentos cuja complexidade demanda capacidades e processos
de pensamento ainda não formados em seu psiquismo. Para isso, precisamos estruturar,
organizar e mediar sua atividade, de forma que, ao se relacionar com o conteúdo de ensino e
dele se apropriar, novas capacidades e funções psíquicas possam se formar.

92 Fundamentos Teóricos
Fundamentos Teóricos

A atividade como fonte do desen- dirigem-se a fins particulares. Os fins


volvimento psíquico específicos para os quais se dirigem as
ações constituem seu “para quê”, ou
Vimos no tópico anterior que o de- seja, indicam os resultados parciais que
senvolvimento psíquico se produz a se pretende atingir por meio de cada
partir dos processos de ensino e apren- ação. Tais resultados parciais, articula-
dizagem. Isso significa que é a partir da dos, respondem ao motivo da ativida-
apropriação pela criança dos conheci- de, que constitui seu “por quê?”.
mentos e habilidades historicamente Um exemplo pode nos ajudar a com-
conquistados pelo conjunto dos ho- preender esse complexo conceito: pen-
mens proporcionada pelo ensino e pela semos na necessidade de alimento. Após
aprendizagem que novas capacidades e algumas horas sem comer, somos aco-
funções se desenvolvem em seu psiquis- metidos por uma sensação de fome, que
mo. Para compreender como se dá esse sinaliza a necessidade de nos alimentar-
processo, é preciso lançar mão de mais mos. Que objeto pode satisfazer essa
um conceito do sistema teórico elabo- necessidade? Uma fruta, um chocolate,
rado por Vigotski e seus colaborado- uma refeição? Ao delinearmos o obje-
res: a categoria atividade. Isso porque a to (refeição) que atende à necessidade
apropriação das objetivações da cultura (fome) constitui-se um motivo, o qual
pela criança se dá na medida em que ela desencadeia uma atividade. Esta ativi-
realiza o que Leontiev (1978) chamou dade é constituída por diversas ações: ir
de atividade adequada, ou seja, aque- até o supermercado, retornar para casa,
la que reproduz os traços essenciais da preparar o alimento, etc.
atividade humana encarnada no objeto, A satisfação do motivo depende do
requerendo da criança e, por isso, nela encadeamento de todas estas ações,
formando, novas ações e operações. que constituem a atividade como um
A atividade é o processo pelo qual todo. Cada ação isoladamente não
o homem se relaciona com o mundo, atende o motivo: cozinhar o alimento,
satisfazendo uma determinada neces- por exemplo, não sacia a fome do indi-
sidade. A atividade está orientada para víduo. Mas esta ação está ligada ao mo-
um objeto que atende à necessidade, tivo que a provocou. Podemos dizer, en-
isto é, está orientada para um motivo. tão, que cada ação está orientada para
Em sua forma desenvolvida, atividade um fim específico. Vai-se ao supermer-
pode ser definida como um processo cado (ação) para comprar o alimento
desencadeado por um motivo e consti- (fim), cozinha-se o alimento (ação) para
tuído de uma cadeia de ações, as quais torná-lo comestível e saboroso (fim).

93
Os fins seriam resultados parciais ou intermediários da atividade. Eles
obedecem ao motivo, pelo qual foram estipulados.
Assim, o significado de uma ação específica (cozinhar o alimento,
por ex.) não se encerra em si mesmo. Não cozinhamos o alimento
apenas para torná-lo próprio para nosso consumo, mas porque te-
mos fome! Em outras palavras, o significado da ação aparece em suas
ligações com os motivos da atividade na qual se insere, o que implica
a necessária participação da consciência.
Para compreender a estrutura da atividade humana, precisamos
introduzir ainda o conceito de operação. As operações referem-se ao
como se efetivam as ações, ou seja, o conceito de operação pode ser
definido como a maneira de se executar uma ação, maneira essa que
depende das condições nas quais a ação é realizada. Estamos aqui
nos referindo, por exemplo, às diferenças entre lavar a roupa na má-
quina de lavar, no tanque ou na beira de um rio: podemos dizer que
a finalidade é a mesma, qual seja, ter roupas limpas para vestir, mas
as condições nas quais a ação se realiza são notadamente diferentes,
exigindo, portanto, operações bastante distintas.
Logo, as operações constituem o conteúdo prático e indispensável
da ação, seus componentes operacionais, determinados pelas condi-
ções em que esta ação se desenrola. Conforme exemplo apresentado
por Leontiev (1978), a ação de atirar requer inúmeras operações, den-
tre elas colocar-se em determinada posição, segurar e apontar a arma,
determinar corretamente a mira, reter a respiração, efetuar o disparo.
Como explica Pasqualini (2006) a partir da teorização de Leontiev,
as operações muitas vezes formam-se inicialmente como processos
que visam um fim, isto é, como ações. Isso pode ser facilmente visua-
lizado na aprendizagem de uma nova habilidade: para o aprendiz de
tiro ao alvo, colocar-se na posição correta é a princípio um fim cons-
4
Vale lembrar que o significa- ciente. Tendo dominado esta ação, seu resultado se torna meio de
do da ação de atirar não pode execução de outra: segurar e apontar a arma, cujo resultado, por sua
ser compreendido senão em
vez, se tornará meio de execução da ação de puxar o gatilho com a in-
referência à atividade na qual
essa ação está inserida: prática
tensidade adequada. O que inicialmente eram ações independentes
esportiva de tiro ao alvo, treina- se converte em operações que realizam uma única ação, ou seja, me-
mento, atividade profissional de ras condições para a ação de acertar o alvo, todas elas subordinadas
um policial, etc. a esse único fim4. Processo semelhante ocorre quando aprendemos

94 Fundamentos Teóricos
Fundamentos Teóricos

a dirigir um carro: controlar a marcha e controlada. Não devemos, portanto,


é, para o aprendiz iniciante, uma ação propor tarefas complexas envolvendo
em si mesma, mas logo se converte em o uso do pincel nesse momento inicial,
simples operação (automatizada). mas apenas tarefas exploratórias, pro-
Pensando na apropriação pela porcionando que o manuseio desse ins-
criança dos instrumentos da cultura no trumento passe ao plano operacional.
contexto da escola de educação infan- Quando domina o uso do instrumento,
til, podemos ilustrar o princípio da con- a criança liberta sua atenção das opera-
versão de ações em operações a partir ções necessárias a seu manuseio e pode
da aprendizagem do uso da tesoura. concentrar-se na finalidade da ação,
Em um primeiro momento, dominar ou seja, na pintura propriamente dita.
o uso da tesoura é algo bastante com- A medida em que a criança vai avan-
plexo e configura, para a criança, uma çando, o professor deve propor tarefas
finalidade em si mesma, demandando mais complexas, visando a formação de
toda sua atenção. Vale lembrar que a fi- novas operações motoras e cognitivas.
nalidade dessa ação precisa ser constru- Sforni (2004) explica que para que
ída no plano interpsíquico, ou seja, na as ações passem para um lugar infe-
relação entre a criança e o objeto me- rior na estrutura da atividade, tornan-
diada pelo professor. Dominar o uso da do-se operações, é preciso que a crian-
tesoura exige da criança, como vimos, a ça esteja inserida em um contexto que
reorganização de seus movimentos na- produza, objetivamente, a necessida-
turais, a formação de novas operações de de novas ações, reafirmando, por-
motoras e cognitivas. Na medida em tanto, a importância da intervenção
que a criança se apropria do instrumen- mediadora do professor que organiza
to e passa a dominá-lo, o uso da tesoura a atividade da criança.
deixa de ser uma finalidade em si mes- O processo inverso também pode
ma (ou seja, uma ação) e torna-se uma acontecer, ou seja, operações podem
operação a serviço de uma ação mais se complexificar a tal ponto que se con-
complexa: uma atividade de recorte e vertem em ações. Isso acontece quando
colagem ou a montagem de um crachá, aquilo que a criança muitas vezes fazia
por exemplo. Análise semelhante pode no plano operacional, sem mesmo pres-
ser feita em relação à aprendizagem tar muita atenção, passa a ser, a partir
do uso do pincel. Em um primeiro mo- das mediações dos adultos, objeto de
mento, é preciso que a criança domine sua atenção consciente, tornando-se
os movimentos necessários para utilizar mais rico e complexo. Os rabiscos ou
esse instrumento de forma intencional garatujas infantis surgem como meras

95
operações. À medida que a criança é nando-se a outro sistema de atividade”
convidada a explorar as possibilidades (PASQUALINI, 2006, p. 93-4). Essa com-
do desenho, o ato de desenhar vai se preensão é fundamental para nós, edu-
revestindo de intencionalidade, tor- cadores, pois trabalhamos justamente
nando-se objeto de atenção consciente visando a complexificação estrutural e
da criança, ou seja, vai se convertendo ampliação da riqueza de conteúdos da
em uma ação. O desenho passa a se atividade de nossos alunos por meio da
orientar por uma determinada finali- apropriação das objetivações da cultura.
dade, o que significa que a criança vai Dissemos anteriormente que a ativi-
se tornando capaz de orientar cons- dade em sua forma desenvolvida pode
cientemente sua conduta. O mesmo se ser definida como cadeia de ações arti-
dá quando um determinado movimen- culadas por um determinado motivo.
to que a criança realiza sem perceber, Essa é uma observação importante. A
como parte de uma ação qualquer, se complexidade estrutural que descreve-
converte em um passo de dança: o mo- mos acima ainda não está presente na
vimento torna-se objeto da atenção conduta da criança pequenina: não é di-
consciente da criança e ela passa a bus- fícil perceber que ainda não estão garan-
car intencionalmente sua realização. tidas intervinculações entre ações e me-
Quando isso ocorre, a relação da crian- diações conscientes entre motivos e fins.
ça com o próprio movimento já não é Como explicam Eidt e Martins
mais a mesma, fazendo-a avançar na (2010), a infância marca o início da
direção do autodomínio da conduta. constituição da atividade, que tem a
Esses exemplos nos ajudam a perce- possibilidade de se complexificar e en-
ber que a estrutura da atividade não é riquecer; desse modo, podemos dizer
estática, ao contrário: está em perma- que a atividade constitui, para a crian-
nente movimento: “(...) a atividade é ça pequena, uma meta do processo de
um sistema altamente dinâmico, carac- desenvolvimento humano. Embora fa-
terizado por transformações ocorrendo lemos em atividade do bebê, atividade
constantemente” (LEONTIEV, 1980, p. da criança pré-escolar, é preciso ter cla-
57). Assim, “no processo de desenvolvi- reza de que a criança pequena começa
mento humano, ações automatizam-se a alçar o processo de desenvolvimento
e convertem-se em operações, opera- mediante operações.
ções complexificam-se e convertem-se A capacidade de estabelecer fina-
em ações, ações complexificam-se e lidades para suas ações não surge es-
convertem-se em atividade e ativida- pontânea ou naturalmente na criança,
des convertem-se em ações, subordi- mas precisa ser conquistada por ela,

96 Fundamentos Teóricos
Fundamentos Teóricos

sendo que essa conquista depende fun- Quando o professor propõe uma
damentalmente das condições de edu- determinada atividade para seus alu-
cação que lhe são proporcionadas. O nos, essa atividade demanda das crian-
mesmo pode ser afirmado em relação ças o exercício de determinadas capaci-
à capacidade de estabelecer intervin- dades. Por exemplo: a tarefa de recon-
culações entre as ações. Inicialmente, tar uma história exige que a criança se
esse processo precisa ser garantido no concentre na história que está sendo
plano interpsíquico, ou seja, na depen- contada, se esforce para compreender
dência das intervenções e mediações o que está sendo narrado e memorize
do professor. É fundamental que o pro- o conteúdo para ser capaz de reprodu-
fessor, ao propor determinada ativida- zi-lo. Essa ação coloca em movimento a
de pedagógica, construa com a criança atenção (concentrar-se na história), o
finalidades para suas ações, finalidades pensamento (compreender a narrativa)
essas que a criança não apenas compre- e a memória (registrar para posterior
enda mas sinta-se inclinada ou motiva- reprodução) da criança, isso sem falar
da a perseguir, isto é, que mobilizem na própria linguagem. Já a tarefa de es-
a criança afetiva e cognitivamente. palhamento na pintura a dedo exige da
Como veremos no capítulo dedicado criança coordenação motora e tomada
à periodização do desenvolvimento, de consciência sobre os próprios movi-
as chamadas atividades produtivas de- mentos, desenvolvendo, ainda, a per-
sempenham um importante papel na cepção da criança, pois demanda ob-
formação da capacidade de planeja- servação e análise do espaço da folha e
mento das ações. sua ocupação, resultando em replane-
Finalizando nossa incursão pelo jamento e reorganização da ação.
conceito de atividade, em que analisa- Ao demandar determinadas capaci-
mos sua estrutura e desenvolvimento, dades e funções psíquicas, a atividade
vale pontuar a estreita relação exis- faz com que essas funções se desen-
tente entre a atividade da criança e o volvam. Mas é preciso ter clareza que
desenvolvimento de suas funções psí- nem toda atividade promove desen-
quicas. Como postula Martins (2013), volvimento. As funções só avançam se
as funções psíquicas superiores não se a atividade requerer seu desempenho
desenvolvem em atividades que não as na zona de desenvolvimento próxi-
requeiram! Isso porque o desenvolvi- mo. Por isso é tão importante que o
mento dessas funções encontram-se na professor planeje cuidadosamente as
dependência dos processos concretos atividades, com propósitos, objetivos
em que estão envolvidas. e procedimentos claramente definidos

97
e combinados com as crianças. É preci- compreensão pelo professor do concei-
so que o desenvolvimento das funções to de atividade, uma vez que ele será o
psíquicas seja intencionalmente busca- eixo para analisar os períodos ou fases
do pela criança como condição para a do desenvolvimento psíquico infantil
realização da ação: se compreende a na perspectiva histórico-cultural. Como
finalidade da ação e se sente afetiva- veremos no próximo capítulo, cada
mente inclinada/motivada a alcançá-la, novo período do desenvolvimento será
a criança esforça-se por avançar em sua marcado pela emergência e consolida-
capacidade de memorização ou con- ção de uma nova atividade que guia-
centração, por exemplo. rá o desenvolvimento do psiquismo. A
Por fim, se o desenvolvimento das transição a um novo período do desen-
funções psíquicas superiores depende volvimento equivale, assim, à transição
da atividade, esse mesmo desenvolvi- a um novo tipo principal de atividade
mento torna possível um desempenho da criança, o que pode ser ilustrado
melhor da atividade correspondente, pelo jogo de papéis, que é um exemplo
como evidencia Leontiev (2001, p.78): de atividade que se torna dominan-
te na idade pré-escolar. No interior de
(...) uma distinção apurada entre to-
um determinado período, assistimos à
nalidades de cor, por exemplo, é
reconstrução das ações e operações da
frequentemente o resultado da exe-
criança, que cria condições para a mu-
cução de uma atividade tal como o
dança de atividade-guia (salto qualita-
bordado, mas essa distinção, por sua
tivo) que caracterizará a transição a um
vez, facilita uma escolha mais apurada
das cores para o bordado, isto é, torna
possível uma execução mais aprimo-
rada dessa atividade.

Logo, o desenvolvimento das fun-


ções psíquicas e da atividade estabe-
lecem entre si mútua dependência,
impulsionando o desenvolvimento in-
fantil em direção às formas superiores
de funcionamento psíquico histórico e
culturalmente conquistadas pelo gê-
nero humano.
Finalizando esse capítulo, chama-
mos atenção para a importância da

98 Fundamentos Teóricos
Fundamentos Teóricos

novo período.
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100 Fundamentos Teóricos

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