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Sob a marca do Dragão

Enquanto avançava pela vila, o dragão que tinha gravado no seu pescoço e face direita
latejava-lhe na pele escondida pelo capuz das suas vestes em tons de branco e cinzento. A sua
experiência dizia-lhe que outro dragão estava por perto, mas quem? Ele tinha conhecido dois,
mas já nenhum deles se encontrava presente na sua vida. No entanto, este latejar tinha um
quê de diferente. Estava curioso. Olhava em volta enquanto passava por uma venda de fruta.
Havia demasiada gente na praça principal da vila. Ninguém em especial lhe atraía a atenção e
ele também não queria dar nas vistas. Naqueles tempos em que a nova fé proliferava, quem
apresentasse marcas e celebrasse rituais da antiga tradição, arriscava-se à tortura e, por vezes,
mesmo à fogueira. A sua marca do dragão era mágica e tinha aprendido a escondê-la com
artifícios mágicos, revelando-a apenas quando desejasse. Teria o outro dragão ali na praça
aprendido a mesma artimanha?

Ele não ligava à magia que se dizia correr-lhe no sangue, embora não tivesse forma de a negar.
Nos seus vinte e quatro anos de vida a magia tinha sido sempre para si uma evidência. No
entanto, não servia ou praticava a Arte. Não mais do que lhe aprouvesse. E quem lhe pagasse,
receberia a sua atenção e os seus préstimos de igual forma, professasse a nova ou a antiga fé.

Decidira deixar a procura pelo dragão para um outro momento com menos movimento em
volta. Rafael procurava informações do paradeiro da sua mais recente tarefa; tinha um novo
trabalho encomendado em mãos. Uma história de vingança familiar tinha-o levado a um
aprendizado de ódio, violência e a uma vida em que vendia o crime e a morte a soldo. Seguia
as pisadas dos homens da sua família. Todos eles serviam a irmandade. Considerava que se as
pessoas têm um caminho a percorrer na vida, aquele era o seu. Viviam-se tempos
tumultuosos, em que a luta pelo poder entre uns e outros se tornava cada vez mais declarada.
Aqueles que como ele serviam a irmandade com as armas, faziam-no cada vez menos para
proteger os que a integravam das barbáries dos povos nómadas, assim como os
conhecimentos que professavam de outras irmandades e da igreja, e cada vez mais para servir
interesses pouco espirituais.

A irmandade do amparo vestia-se com a roupagem do catolicismo, garantindo a sua


autonomia e alguma segurança. No entanto, o seu objectivo último era preservar o
conhecimento dos antigos, face à proliferação de novos costumes e leis impostos pela igreja.
Rafael sentia-se em sintonia com o ideal, mas pensava que, à semelhança de outras
irmandades, os seus membros se deixavam corromper por aquilo que representava e
conseguia a sua independência da lei local. O avô paterno, que não conhecera, havia jurado
lealdade à irmandade e adoptado os seus ideais desde a sua formação. A traição de um
companheiro levara-o à morte, que os seus três filhos juraram vingar, mas essa era uma
história que ele não gostava de lembrar, ou pelo menos o que conhecia dela. Todos eles
serviram a irmandade. O seu pai e um tio, mais novo que este, haviam no entanto se desviado
um pouco destes ideais. Deixando-se levar pelo ódio e o sentimento de vingança, pareciam ter
colocado em questão qualquer tipo de lealdade, vendendo as suas aptidões para o ofício a
quem pagasse bem por elas. Procuravam nos prazeres da vida que os seus feitos lhes
permitiam comprar, aquilo que não tinham obtido com os seus actos de vingança: paz de
espírito!

Rafael, no entanto, aceitava apenas os trabalhos que considerasse serem justos. Considerava-o
uma questão de honra! Os tempos eram outros e ele dedicava à irmandade uma obediência
que não era cega. Se a situação o pedisse, não hesitava em agir contra esta, desde que o ideal
de quem o contratasse lhe parecesse mais nobre. Uma espada de dois gumes com que
procurava lidar com o maior dos cuidados. Ainda assim, apesar da corrupção que muitas vezes
testemunhava e as tarefas que lhe eram entregues e considerava pouco coerentes com o que
era defendido pela antiga tradição, não deixava de servir a irmandade. Quanto mais não fosse
por carregar a marca do dragão. Na formação desta e para proteger a informação de tudo o
que estava para vir no mundo dos homens, os deuses, a seu pedido, concederam-lhes uma
protecção especial: o poder do dragão. Este foi distribuído em seis partes e por seis homens,
cada um deles possuindo o poder de um dragão. Eram estes os dragões: da água, da terra, do
fogo, do ar, do sol e da lua. Cada um destes homens, que havia demonstrado a sua lealdade á
irmandade, continha em si a magia e sabedoria do seu dragão, representado na sua pele de
uma forma mágica, legado que era continuado através do filho varão. A magia que Rafael
transportava em si era a do dragão do sol.

Um vislumbre de quem procurava levou a sua atenção dos seus pensamentos. Tinha acabado
de passar por si o homem que o levaria a quem havia escutado o que não devia. Deveria segui-
lo. Não podia arriscar perder-lhe o rasto, pois levá-lo-ia a quem poderia expôr os reais
propósitos da Irmandade do Amparo. Procurava segui-lo de longe, mas a quantidade de
pessoas que se encontrava na praça àquela hora do dia, obrigava-o a aproximar-se mais do
que gostaria. O homem que seguia olhava em volta e pareceu-lhe desconfiado, olhando para
trás por diversas vezes. Numa delas, teve de desviar-se para uma rua que saía da praça para
não dar demasiado nas vistas. Viu que, um pouco mais à frente, uma escada encostada
proporcionava um acesso fortuito ao telhado de uma casa, ao qual subiu num ápice. Preferiu
aquele ponto de vista previligiado. Foi seguindo os seus passos por cima dos telhados, vendo-
se forçado a saltar sempre que uma rua se atravessava no meio. O homem já não olhava para
trás com tanta insistência. Parecia-lhe certo de que ninguém o seguia. Mais à frente, viu-o
parar junto ao ferreiro, olhou em volta e, calmamente, entrou na rua ao lado. Era uma
pequena rua sem movimento, onde um homem parecia aguardá-lo. Rafael estava logo acima
deles e, não havendo ninguém por perto, podia facilmente ouvir o que diziam.

- Mensageiro?

- Sim.

- Preciso que uma missiva chegue com urgência à aldeia de Cabo. Que nada se atravesse no
teu caminho. Ela deve chegar ao seu destino.

- E quanto vale essa entrega?


- Um saco de moedas. – disse, soltando uma bolsa da sua cintura e atirando-a na direcção do
outro.

O mensageiro abriu a bolsa, olhou para esta e de novo para o outro homem.

- Disseram-me que podia confiar que seria entregue.

- E será.

- Óptimo! Deverá ser entregue ao padre Carlos, no templo de Santa Catarina. – disse
entregando-lhe uma carta.

O outro anuiu e guardou-a, juntamente com a bolsa.

Era definitivamente ele. Não podia deixar aquela mensagem ser entregue, nem perder o seu
emissor de vista, pelo que tinha de agir de imediato. Olhou em volta. Ninguém por perto.
Saltou do telhado para uma carroça que estava um pouco mais à frente e daí para o chão. Ao
ouvir algo, os dois homens olharam na sua direcção. Viram-no aproximar-se e pareciam não
perceber de onde ele tinha saído. Ao vê-lo, o emissor da mensagem soube de alguma forma
que ele era um enviado da irmandade. Precipitou-se na direcção oposta, mas Rafael já o tinha
alcançado e desferiu um golpe de espada deixando-o prostrado no chão. O outro homem
correu para alcançar a rua principal, que levava à praça, mas um punhal certeiro apanhou-o
antes de o conseguir. O homem nada parecia saber sobre o assunto, mas para além de não
poder deixar aquela carta seguir caminho, tinha o cauteloso hábito de não deixar
testemunhas. Rafael apressou-se a chegar até ao mensageiro. Guardou a carta e a bolsa e
arrastou o corpo para junto do outro. Tudo continuava calmo em volta. Lembrava-se de ter
visto guardas não muito longe dali. Seria uma questão de tempo até os encontrarem. Tinha de
sair dali. Colocou de novo o capuz sobre a cabeça, voltou à rua principal e misturou-se no meio
dos aldeões.

A sua tatuagem começou a latejar de novo. Pensou que fora algures por ali que a sentira
anteriormente. Olhou em volta. Pareceu-lhe que o seu dragão o levava em direcção à venda.
Parou para observar a rapariga que arranjava a fruta na banca. Algo nela lhe chamava a
atenção. Ficou atento. Era uma jovem bonita, morena, que aparentava ter quase vinte anos. O
seu olhar descansou, então, nas suas mãos. Do seu pulso esquerdo parecia-lhe sair uma garra,
brilhando, escondida por baixo de um largo punho em pele. Ele chegou perto, agarrou-lhe a
mão, virando-a ligeiramente e empurrando com os dedos a pele que lhe cobria o antebraço.
Apanhada desprevenida, ela não conseguiu evitá-lo. A sua mão direita foi em auxílio da outra,
segurando no pulso e procurando esconder a sua marca. Mas ele já tinha visto parte do que
queria; era um dragão. No entanto, o punho de cabedal não permitira ver qual. Continuou a
segurar aquela mão, olhando a rapariga, procurando descortinar algo. Ela percebeu com
aflição que ele tinha visto a sua marca.

- Qual é o teu nome? – o estranho perguntou.

- Diana, mas... por favor, senhor...! – o seu olhar suplicava que ele não revelasse o seu segredo.
O facto de ele usar armas à vista não lhe parecia bom augúrio.
Ele olhava-a fixamente, usando as suas aprendizagens para captar o que ia pela mente dela.

- ... por favor, senhor! – suplicava ela.

Percebendo a imagem do seu receio, ele libertou a sua mão, que ela escondeu de imediato, ele
colocou o dedo sobre os lábios, pedindo silêncio e virou um pouco a face, passando o dedo
pelo rebordo do capuz. O gesto foi subtil, mas suficiente para permitir antever a sua face
tatuada.

Ele também tinha uma marca, pensou ela. O seu queixo descaiu com a surpresa e a
curiosidade suplantou o receio de ser acusada de bruxaria. Ela levantou a mão com a intenção
de afastar o seu capuz e ver melhor aquela marca. Ele percebeu e segurou-a a meio caminho.
Tirou uma moeda da bolsa que tinha à cintura, colocando-a na mão da rapariga. E ao mesmo
tempo que a libertava, pegava numa maçã para levar,afastando-se então.

- Senhor...!

Ele não parou e ela não quis chamar a atenção sobre si ou sobre ele, já que ambos pareciam
carregar aquilo que muitas vezes considerava como uma maldição. Ela pensou que a sua
marca podia ser escondida com a roupa, mas a dele... Para ele devia ser mesmo uma maldição
carregá-la! O latejar da pele debaixo do seu dragão afastou-a daqueles pensamentos, levando-
a a ajeitar o punho de pele e a olhar em volta.

A morte dos seus pais, da qual pouco sabia devido à sua tenra idade, levara-a a um início de
vida numa casa que a acolhera junto a outros órfãos. Na sua adolescência, voltou a perder a
figura materna, acometida por uma doença que lhe fora mortal. Lutando com dificuldades,
fazia o que podia para seguir a sua vida em frente e procurava sempre fazê-lo com um sorriso.
Vendia fruta na praça da vila para ajudar a levar comida para casa, onde vivia com o seu pai de
acolhimento e mais dois irmãos de criação, um rapaz e uma rapariga; ele mais velho e ela mais
nova do que Diana. Da sua marca também nada sabia, apenas que era algo de família.

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2

Assim que chegou a Quebir, a meio dia de viagem, Rafael foi ao encontro de Lucas, o braço
direito de Elias, que era quem estava à frente daquele mosteiro da irmandade. Era ele quem
por norma lhe pedia para tratar dos assuntos que necessitavam de atenção urgente e tinham a
ver com a protecção dos seus membros. Entregou-lhe a carta e contou-lhe ter resolvido o
assunto. Após a leitura desta, Lucas aparentava um ar de consternação.

- Mais alguém sabe o que ele ouviu. Diz aqui que um amigo de confiança lhe recomendou o
mensageiro por acreditar que, detentor daquela informação, ele se encontraria em perigo!

- Alguma pista sobre a sua identidade?

- Nenhuma. Tens de descobrir-lhe o rasto e resolver a situação urgentemente! O assunto não


pode espalhar-se! – disse, aproximando-se de Rafael e enfatizando a importância da resolução
daquela situação.

- Partirei de imediato!

- Conto que farás um bom trabalho!

Rafael inclinou-se num cumprimento respeitoso e saiu de imediato.

Ao chegar à vila de onde tinha saído na manhã desse mesmo dia, dirigiu-se à taverna. Já era
noite. Procurou saber que notícias corriam nas bocas do aldeões, assim como encontrar
informações sobre as amizades do defunto. Ficou a saber que a notícia da morte de ambos já
se tinha espalhado. Um dos aldeões com quem bebia disse-lhe que ele costumava ir ali com
uns indivíduos que viviam junto à muralha, na zona leste. De nada lhe valia ir até lá essa noite.
Não tinha pormenores suficientes para identificar quem seriam ou onde viviam. Decidiu
descansar e estar lá de manhã bem cedo.

No dia seguinte, ao chegar perto da muralha viu uma mulher sentada numa pedra junto a esta.
Ele parou. Sentiu o seu dragão voltar à vida. Só podia ser a rapariga da venda. Aproximou-se
devagar, observando-a. Parecia absorta nos seus pensamentos. Ao chegar perto dela, quase
lhe pareceu que ela dera pela sua presença. Ela agarrou no pulso esquerdo, uma maçã rolou
pelo chão e o seu punhal cravou-se na peça de fruta, parando-a. Ela ouviu o som da lâmina
atravessando a maçã, olhou para trás e levantou-se assustada ao vê-lo. O seu pé resvalou,
levando-a a desequilibrar-se sobre a beira da muralha, quase junto ao chão naquele local. Num
ápice ele agarrou o seu braço, puxando-a para si, em segurança. Diana afastou-se da beira
assustada, com as mãos no peito. Depois olhou para o homem atrás de si e recuou uns passos,
afastando-se dele.

- Não era minha intenção assustá-la! – disse enquanto tirava o capuz.

Ela olhou a sua face e baixou o olhar, respirando fundo.


“Não é ele! Não tem a marca!” captou ele da rapariga.

Ele fitou-a com alguma demora e acabou por dizer:

- Sim, sou eu.

Ela sentiu-se confusa. Quase parecia que ele lhe lera os pensamentos.

Ele virou um pouco a face, continuando a olhá-la e de súbito o seu dragão começou a surgir na
sua pele, do pescoço para a cara.

O queixo de Diana descaiu com a surpresa.

- Como é que...?! – ela começou a dizer.

- Aprendi a escondê-la para minha segurança.

Ela pensou que se a marca era um sinal de magia, ele tinha de facto a magia em si.

- Não sei porquê, mas tinha quase a certeza de que seria.

Ela falava a verdade, pensou ele. Não parecia conhecer as dicas do dragão.

- Porquê? – perguntou ele.

- Não sei. – respondeu ela segurando o seu pulso e sentindo o dragão por debaixo.

- Talvez por o dragão lhe latejar na pele?!

- Não, quer dizer, sim... ou melhor não sei! Como sabe que...?

- Sempre que um dragão encontra outro, ele parece acordar. Podemos senti-lo quando
estamos perto. – Rafael respondeu.

- Então é por isso... Não fazia ideia! Nem sabia que mais alguém pudesse ter uma marca como
a minha!...

Ele deu uma risada larga. A “sua” marca! Ah!

Ela sentia-se confusa e ele percebia-o. Ela olhou demoradamente a marca que ele ostentava
na face e pescoço.

- O que significa?

O desconhecimento que ela apresentava sobre algo tão importante como o seu próprio
dragão, parecia-lhe impressionante. Divertido, explicou:

- É o dragão do sol!

- Aquilo é o sol? – perguntou apontando a bola dourada.

- Hum... – disse anuindo.


- A minha marca também tem uma bola assim...

Ela teimava em chamar marca ao dragão, pensou ele. Mas sorriu satisfeito por ser um dragão
do sol como ele. Embora sendo difícil de acontecer, sabia ser possível; os dois dragões com
quem já se tinha cruzado na sua vida, eram portadores do poder do mesmo dragão.

- Mas é um pouco diferente! – continuou ela.

O sorriso logo se desvaneceu. Aquilo só podia significar uma coisa.

- Mostra-me! – disse de uma forma mais seca e autoritária, que ela nem notou com toda
aquela nova informação.

Ela tirou o punho de pele que lhe cobria todo o antebraço e mostrou a sua marca. A bola que o
seu dragão segurava era prateada.

- Então quer dizer que a minha pode ser a lua!? – pensava alto.

- ... Sim! É o dragão da lua. – disse, sendo o último dragão que alguma vez esperaria encontrar.

- O que isso quer dizer?

- Que não sei se deva confiar em ti!

Agora Diana notara a diferença no trato que ele lhe dirigia. Sentira-se novamente confusa.

- Como assim?

- Os nossos dragões representam energias diferentes... opostas...

- ...sim?

- Não sabes mesmo nada do teu dragão?

- Sei apenas que é algo de família, mas perdi os meus pais muito nova, nada sei das suas
tradições e cultos...!

- Cultos?!

Um ameaço de gargalhada seguiu a sua interjeição.

- Isto representa a magia que te corre nas veias! – disse segurando-lhe o braço.

- Deve ser um engano. Não há magia nenhuma na minha vida! – respondeu ela soltando o seu
braço das mãos do estranho.

- Não sejas tola, rapariga!

- Ofende-me! Digo que nada sei e nenhuma magia possuo. Esta marca é apenas uma maldição
que carrego e que tenho de esconder a todo o custo pela minha vida! – disse irritada.

- Sei que falas a tua verdade. Posso vê-lo! Mas vejo também que não te conheces a ti mesma!
– disse ele vendo uma chama acesa de que ela própria não tinha consciência.
- Claro que me conheço! E como assim, pode vê-lo?!

- Os teus pensamentos são coerentes com as tuas palavras.

- Os meus... os meus pensamentos?!

- Sim. Posso vê-los se...

- Como...?!

Agora sim, estava verdadeiramente irritada.

- Como se atreve?! Isso é uma invasão... um abuso!

Impressão dele ou tinha deixado de os ver?

- Não pode ser considerada uma invasão. - Respondeu Rafael.


- Como não?!
- Porque só posso ver o que me permitires ver. Só consigo captar o que emitires. Eu não o
considero uma invasão se o fizeres!
- Claro! Como se o pudesse fazer!...
- Claro que sim! A magia está em ti, quer queiras quer não.
- Não saberia como...!
- Parece-me que já o fazes, embora não tenhas consciência disso.
- Não me parece.
- Então porque é que não os consigo ver desde que te chateaste?

Ela sentia-se cada vez mais confusa.


- Não fiz nada! Não saberia como...
- Em que pensaste?
Ela ficou calada por alguns momentos.
- ... Que gostaria de correr uma cortina de veludo preto sobre os meus pensamentos, pois são
só meus! – acabou por dizer.
- Pronto! É o suficiente! Foi a forma que encontraste naturalmente.
- Não devia gozar comigo dessa forma!... – tudo aquilo lhe parecia empolgante, mas de difícil
existência na sua vida.
- Estou a falar muito a sério! Digo-te que não capto nada desde que te chateaste. – disse,
começando a ficar irritado.
Ela tentava absorver tudo o que aquilo significava. Deu alguns passos afastando-se, voltando
depois a aproximar-se, olhando-o, acariciando o seu dragão em silêncio.
- ... e... agora ficam ocultos? ... os pensamentos?
- Por agora. Sem treino, à medida que vais relaxando, eles vão voltando a estar mais visíveis.
- Como é que sabes?
Ele arqueou uma sobrancelha e ela percebeu. De súbito, o seu acesso voltou a ser bloqueado.
- ... Quer dizer que preciso ter cuidado com os meus pensamentos? Ter cuidado com o que
penso?
- Basicamente.
Diana continuou pensativa e ele não sabia em que ela pensava agora.
- Porque é que eu tenho isto no meu braço? – acabou por perguntar.
- Porque tens um destino traçado pela magia.
- E qual é esse destino?
- O teu. – disse encolhendo os ombros.
Ela ficou novamente em silêncio.
- E o teu? – acabou por perguntar.
- ... é o meu. – respondeu ele de uma forma mais ríspida, querendo finalizar o assunto ali.
- Claro. – disse ela notando o seu desconforto. - Somos desconhecidos, certo? Nem sei o teu
nome...
- ... Rafael.
Ela estendeu-lhe a mão num cumprimento.
- Diana.
Ele estendeu o braço, segurando a mão de Diana na sua e pôde sentir o seu dragão latejar
mais forte.
Ela pensou que quanto mais próximos os dragões, mais forte era aquela sensação.
- Porque é que sinto isto? – perguntou segurando o seu dragão.
Ele pareceu não querer responder.
- Já disse que um dragão reconhece outro!
- Sim, mas porquê? – ela insistiu.
Um pensamento surgiu na sua mente sem que ela percebesse de onde ou o que representava.
Era a imagem dos dois dragões, um ao contrário do outro, completando um círculo.
Ele não queria falar-lhe na história dos dragões, nem no destino que lhe estava traçado.
Ela aproximou o seu braço do pescoço dele, parecendo seguir o latejar do seu dragão e
pousando a sua mão no rosto marcado de Rafael. O seu dragão parecia ter vida. Poderia ser a
sua imaginação, mas parecera-lhe que a sua lua prateada tinha reluzido.
- E porque fica mais forte quanto mais próximo?
- Porque eles querem a pele um do outro...!
Uma imagem de ambos sentindo-se um ao outro, respirando-se, beijando-se passou na mente
de Diana. De súbito, ela olhou-o nos olhos, tirou a mão, corou, baixou a cabeça, procurando
não se denunciar e... correu a cortina.
Antes do “apagão” ele captou a imagem, sentiu-a literalmente.
- Eles querem matar-se um ao outro! – disse, empurrando a dúvida que se queria instalar e
rematando o assunto.
Ela recuou com os olhos bem abertos, olhando-o fixamente.
- Porquê?! – perguntou chocada.
- Porque são energias opostas.
- Mas porquê? O que é diferente muitas vezes complementa-se. Não tem de ser branco ou
preto! Não tem de procurar-se eliminar o contrário!
- A história dos dragões não é essa!
- Conta-me essa história! – pediu.
Ele não tinha a mínima vontade. Estava claro que ela não conhecia a história, pensava ele! Mas
também não estranhava que ela pensasse assim. O seu dragão era quem tinha sofrido mais
perdas. O sentimento estava-lhe no sangue!
- Por favor! – insistiu ela interrompendo os seus pensamentos.
- ... Outro dia. – acabou por dizer, procurando livrar-se da sua insistência.
- Por favor... parece que há parte de mim que não conheço! Nada sei sobre o passado da
minha família! Preciso de saber mais!
- Tudo a seu tempo! Outro dia conto, agora não! Tenho de ir. Atraso-me.
- Outro dia, então. – respondeu ela um pouco decepcionada, vendo-o afastar-se.

Os seus pensamentos estavam em tumulto. Lembrou-se que devia perguntar-lhe como


poderia esconder o seu dragão, como ele parecia referir-se sempre à sua marca. Dar-lhe-ia
muito jeito se o conseguisse. Não teria de preocupar-se em esconder a garra que teimava em
estender-se quase até à sua mão, como que reclamando pela luz do sol. Poderia até deixar que
a pele do seu braço voltasse a ter a mesma cor que a pele em volta, pensou quase sorrindo.
Rafael afastou-se de Diana. Ainda lhe custava acreditar que ela tivesse o poder do dragão da
lua, pois tanto quanto sabia este encontrava-se extinto. Diana parecia-lhe simpática e parecia
nada saber sobre o poder do seu dragão, a sua história ou como as suas histórias se cruzavam,
mas não podia confiar nela. E naquele momento não se podia distrair do seu objectivo. Os seus
pensamentos teimavam voltar àquele encontro e à descoberta do dragão da lua, mas Rafael
forçava-se a concentrar a sua atenção na tarefa que tinha em mãos.

Ao chegar às casas, perguntou a um aldeão se lhe sabia dizer onde encontrar alguém que
conhecesse o falecido. Fingiu conhecê-lo, estar de passagem, querer visitá-lo e ter acabado de
saber o sucedido. Como não era dali, ninguém o conhecia.
- Quero saber algo mais. – dizia Rafael, fingindo um ar consternado.
- Ruy e Timoteo conheciam-no bem, eram companheiros de trabalho e de conversa. Pode
encontrá-los umas casas mais abaixo. – disse o homem apontando a direcção.
Agradeceu e avançou na direcção que o outro apontou. Encontrou um dos mencionados mais
à frente e contou de novo a sua história. Ele disse-lhe que nada mais sabia sobre a morte do
seu amigo do que aquilo que andava na boca do povo; que ele e outro tinham sido
encontrados mortos numa ruela, provavelmente assaltados. Contou ainda que havia um outro
amigo que tinha ficado mais abalado, pois mal saía sequer de casa. O assunto interessou-o.
Rafael quis saber onde poderia encontrá-lo. Procurou-o onde lhe fora dito que o encontraria,
mas a casa encontrava-se vazia. Parecia-lhe que tinha levado diversas coisas e saído meio à
pressa e não há muito tempo, pois ainda havia um cheiro de hypocras no ar, o vinho doce e
condimentado.
«Não posso deixar que me veja!» captou Rafael na sua mente. «Se for um deles, sou um
homem morto!»
Ele ainda se encontrava por ali.
- Está aqui alguém? – tentou Rafael.
Do outro lado apenas silêncio.
- Procuro alguém que tenha informações sobre um amigo meu!... – ele ia falando e andando,
procurando captar algo mais, assim como a sua origem.
«E se não tiver nada a ver?! Não, é melhor não arriscar.» - continuava o outro a pensar.
Rafael pensou então que este se encontraria por trás de uma trave onde se encontravam
outras madeiras encostadas. Continuou a andar naturalmente nessa direcção.
- Que pena! Parece que não encontrarei aqui quem me possa ajudar! – procurava despistá-lo.
Ao passar ao lado da trave, olhou para o lado e fingiu alguma surpresa ao encontrá-lo ali. O
homem pareceu assustado, mas não fugiu.
- ...Posso ajudá-lo? – acabou este por perguntar a medo.
- Espero que sim. Procuro alguém que conhecesse Artur, um dos homens que foram
encontrados mortos numa ruela!
- Não sei se posso ajudá-lo... – o outro dizia.
- Procuro saber algo mais sobre o sucedido. Há muito que não o via, passei por aqui, aproveitei
para visitá-lo e soube o que aconteceu. Que tragédia!
- Conhecia-o?!
- Sim, mas, como disse, há muito que não o via. O que aconteceu? Foi mesmo um assalto,
como dizem? Ele tinha mulher? Filhos? Alguém que possa precisar de ajuda neste momento?
«Não deve ser enviado dos hereges da irmandade, nada parece saber!»
- Não. Cuidava apenas do seu pai. Também nada mais sei do que se diz por aí. Uma tragédia!
Rafael nada disse, olhando-o apenas e perscrutando os seus pensamentos.
«Está muito calado. Confunde-me. O estranho nada pode desconfiar de que sei o que o
matou.»
- Parece-me que sabe mais do que conta. – acabou Rafael por dizer.
O homem parecera ficar mais assustado e recuou um pouco.
- Nada mais sei, de verdade!
Rafael avançava, acompanhando o movimento do homem, deixando-o deveras assustado.
«É um deles! E agora? Tenho de convencê-lo que o Artur nada me contou sobre o que ouviu.»
- Tens razão...!
«De que é que ele está a falar?!»
- Eu sou um deles e o que preciso é saber o que sabes.
Agora era definitivamente caso para fugir. O homem tentou fazê-lo, mas Rafael fora mais
rápido e segurou as suas vestes, continuando a avançar até o encostar a uma mesa que se
encontrava mais atrás.
- Nada sei, juro!
«Claro que vão querer proteger o seu segredo a todo o custo! Sou um homem morto!»
- Que sabes tu do nosso segredo?
«Como é que...? Parece que me lê o pensamento!»
- Que sabes tu do nosso segredo?! – insistiu Rafael.
- Nada sei sobre segredo algum!
Entretanto, o homem agarrara num utensílio de cozinha que se encontrava em cima da mesa e
tentara agredi-lo para se libertar. Rafael pegou num punhal e encostou-o à sua garganta.
- Falaste a alguém sobre o segredo que não sabes? – perguntou ironicamente.
«Devia tê-lo feito, sim.»
- Já disse que não sei de que fala!...Por favor...?!
- Desculpa, não é nada pessoal.
E dizendo-o, fez a lâmina do seu punhal deslizar na garganta do homem, matando-o. Rafael
largou-o e este escorregou até ao chão. Deixou-o ali, saindo rapidamente.

Ao cair da noite, não muito longe dali, Diana deitava-se e todos os acontecimentos do dia
voltavam à sua mente. Não é que em algum momento tivessem deixado de lá estar, mas agora
podia dedicar-lhes toda a sua atenção. O seu dragão, o dragão de Rafael, o latejar... a lua do
seu dragão reluzindo. Olhava a sua marca, que agora lhe parecia um simples desenho, algo
sem vida. Claro que teria sido a sua imaginação! Magia a correr-lhe pelas veias... Ah! Virou-se
para o outro lado, como que procurando virar as costas àquela tolice. Mas lembrou-se das
vezes em que sentira o latejar na sua pele debaixo do dragão. Olhou-a a de novo. Nada sentia.
Lembrou-se do que ele lhe tinha dito sobre os pensamentos, da cortina... e então voltou a
imagem de ambos sentindo-se mutuamente, respirando-se, beijando-se! Ela achava que Rafael
era um homem jovem, bonito, com boa figura; nao era cega, podia vê-lo. Mas dele nada sabia
para além de que tinha uma marca como a sua e que usava a magia, o que naqueles dias
representava perigo. Para além de ele achar que os seus dragões se queriam matar um ao
outro! O pensamento deixou-a desconfortável. Voltou a virar-se para o outro lado, mas não
conseguiu afastar aquela imagem. Podia ser impressão sua, mas parecia sentir o seu dragão na
sua pele.

Estava cansada e não demorou muito a adormecer, mas a sua mente continuou bem activa e,
nos seus sonhos, o seu dragão parecia voltar à vida, voando para fora do seu braço, querendo
mostrar-lhe algo. O dragão indicou-lhe que olhasse para a sua lua e esta parecia ter vida
própria, brilhando muito mais do que o que pudesse alguma vez ter imaginado vê-la brilhar no
seu braço. Nesta começaram a formar-se algumas imagens e ela viu uma criança pequenita,
brincando no chão. Uma mulher aproximava-se, da qual ela só conseguia ver a figura; era
como se uma neblina escondesse as suas feições. Sentia uma forte emoção, não percebia se
vinha da mulher, se da criança, se de si mesma por algum motivo. Era um misto de medo e...
amor?!
«- Corremos perigo, meu doce! A última coisa que queria era separar-me de ti, mas temo pela
tua vida! Espero que um dia o compreendas e me perdoes! Espero que tudo corra bem e possa
ir buscar-te em breve, mas agora é preciso! »
Ela sentia que a pequenita não percebia o que a mãe lhe dizia, mas sentia a sua dor e
começava a chorar.
«- Deixo-o contigo... estará seguro contigo e irá sempre proteger-te, Diana!»
A mulher pegou no bracito da criança e não demorou muito tempo antes que ela visse um
dragão tomar forma no seu braço, brilhando, foi como se voasse através da sua pele, passando
para o braço da criança. A pequenita parou de chorar, riu-se com o dragão e a sua lua prateada
brilhante, que tinham acabado de pousar no seu braço! A criança olhou para a mãe divertida e
ela pôde ver o seu rosto claramente!
- Mãe! – disse Diana, acordando de súbito e sentando-se na cama.
Raios, pensara! Porque acordara agora? Lembrava-se que, em criança, sonhava muito com a
sua mãe, que lhe dizia apenas “estarei contigo sempre que precises, minha filha”. Mas nada
como naquela noite. Voltou a deitar-se e deixou-se estar sossegada, queria adormecer
rapidamente e voltar àquele sonho, mas o resto da noite foi, para si, silenciosa.
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3

No dia seguinte, Diana estava na venda de fruta, sentindo-se inquieta. Queria que Rafael
aparecesse para lhe contar o seu sonho e saber se poderia ter algo a ver com o dragão ou se
seria apenas a sua mente a pregar-lhe partidas. Tinha-lhe parecido tão real! E se as coisas se
tivessem passado como no seu sonho? A sua mãe dizia correrem perigo e temer pela sua vida.
De que falaria ela? Talvez a mulher que a criara soubesse de algo, mas também já não podia
perguntar-lhe. E o seu pai de criação? Era melhor nem pensar nisso! Era de poucas falas e
sempre fora avesso a conversas que tivessem a ver com a sua família de origem. O que a sua
mãe dissera no sonho fazia-a crer que poderia ter algo a ver com o seu dragão. Mas se fosse,
seria mais um motivo para o considerar uma maldição que a tinha levado a ficar sem os seus
pais. Tantos pensamentos cruzavam a sua mente que não conseguia concentrar-se naquilo que
fazia. Voltou a lembrar-se de Rafael. Pensou como lhe daria jeito que a sua irmã ali estivesse
para tomar conta da venda. Queria procurá-lo, contar-lhe o que acontecera. Tinha tantas
coisas para lhe perguntar! Qual seria a sua história? Como teria recebido ele o seu dragão?
Procurava vê-lo em cada rosto, mas nem sombra daquele misterioso homem. A sua mente
dizia-lhe que não podia confiar nele, mas algures em si sentia que sim. «Tudo a seu tempo»,
forçava-se ela a recordar. «Quando menos esperar ele aparece», procurava ela convencer-se,
voltando uma vez mais a sua atenção à fruta, à banca e aos fregueses.

Não passou muito tempo até que a sua irmã passou por ali.
- Que bom que estás aqui! – disse prontamente Diana, assim que a viu.
- Vim entregar uma encomenda aqui perto e antes de voltar para casa lembrei-me de ti e
pensei que podia passar pela praça!
- Os deuses ouviram-me, pois precisava mesmo de ti aqui. Preciso de sair um pouco. Não me
demoro. Substituis-me?
- Não devo demorar-me. Tenho outra encomenda para entregar no caminho.
Dália, irmã de Diana, ajudava seu pai a trabalhar o couro e a fazer a entrega das encomendas.
- Vá lá! É só um pouco. Não demoro!... – insistia Diana.
- Onde vais?
- Preciso encontrar uma pessoa. Não demoro. Obrigada! És uma enviada dos deuses! – disse
sem demora, afastando-se rapidamente.
- Não te demores! – ainda pediu Dália sorrindo.
Diana desapareceu por entre os aldeões.
Rafael deveria ter já voltado a Quebir, mas uma parte de si queria ficar mais tempo pela vila.
Queria saber mais sobre a portadora da magia do dragão da lua, a mulher com que o seu
destino se cruzava. Consigo tinha crescido a ideia de que um dia se cruzaria com o dragão da
lua e travaria uma luta da qual sairia vencedor. Desde miúdo sonhava com o dia em que o
encontraria, matando o portador do dragão e domando-o, realizando o destino que lhe tinha
sido profetizado: a unificação do poder dos dois dragões. No entanto, nos seus devaneios de
criança, nunca tinha imaginado que este seria uma mulher. Crescia sabendo que a família que
guardava este poder já não existia, mas pelo simples facto do seu destino mágico não ter
mudado, sonhava que de alguma forma o dragão da lua voltaria ao Reino dos homens. A
impaciência da adolescência trouxera-lhe finalmente a certeza de que isso não aconteceria e
durante muito tempo se sentiu revoltado com os Deuses por não lhe darem a oportunidade de
realizar o seu destino mágico. Para quê ter um se não havia possibilidade de o realizar? Não
fazia qualquer sentido. Até ao dia que encontrou Diana e viu a sua “marca”. De um momento
para o outro, os Deuses decidiram agraciá-lo, pensava, mas de uma forma tortuosa. Não por o
seu portador ser uma mulher, mas por ser alguém que poderia comparar a uma criança em
matéria de magia. Ela nada sabia sobre o seu próprio dragão! Nada sabia sobre a magia que
lhe corria no sangue! Ele procurava sempre justificar os seus actos com um propósito maior e
fazê-lo apenas porque era o seu destino não lhe parecia agora algo de tão grandioso. Se fosse
um dos que haviam sido portadores daquele poder no passado, parecia-lhe ter razões de sobra
para poupar o mundo de tal perfídia. Mesmo sem conhecer Diana, dela sentia luz e não a
sombra. Mas apesar de ter virado costas a qualquer destino que lhe tivesse sido imposto pelos
Deuses, era difícil esquecer todo o seu investimento para aquele momento. Não podia apenas
olhar para o lado e seguir em frente... não sem saber um pouco mais sobre a tortuosa jogada
dos Deuses.
Quando Rafael viu Diana ao longe, afastando-se da venda de fruta, onde deixara outra rapariga
no seu lugar, decidiu segui-la. Conheceria um pouco mais sobre os seus costumes para
conhecer um pouco mais sobre ela própria. Sabia que se fosse simplesmente ter com ela, a
história dos dragões lhe seria cobrada e não tinha a mínima vontade de lhe falar sobre isso.
Não naquele momento. Sabia que ela sentiria o seu dragão assim que se aproximasse um
pouco mais, mas estava demasiada gente na praça para não o fazer. Decidiu segui-la pelos
telhados. Dessa forma ela não o veria. Subiu agilmente pelos apoios do telhado de uma casa
próxima, numa rua lateral. Com rapidez chegou lá acima sem ser visto. Decidiu aproximar-se
um pouco mais e focar a sua atenção nos seus pensamentos. Tal como esperava, apanhou-a
desprevenida.
«Preciso encontrá-lo. Preciso contar-lhe!»
Ficou atento. A quem se referiria?
«Onde será que posso encontrar Rafael?»
Procurava-o? Continuou a segui-la, atento. Aproximou-se um pouco mais.
Diana sentiu a sua pele latejar sob o dragão. Olhou em volta. Sentia que ele estava por perto,
mas não o encontrava com o olhar. Rafael apercebeu-se. Ele também sentia o seu dragão.
«Procuras por mim?» - ele arriscou.
Diana voltou a cabeça rapidamente, mas não o viu. Olhou em volta. Sentiu-se confusa. Quase
podia jurar que o tinha ouvido bem perto de si!
«Ouviste bem, sou eu!»
Ela assustou-se! Tinha a certeza que o ouvira, mas continuava sem o ver. Agora recuava,
olhando em volta, assustada.
- O que se passa? Onde estás?
Algumas pessoas que passavam perto, olhavam-na de soslaio e seguiam caminho, afastando-
se.
«Perto. Bem perto!»
Ela virou-se de novo. Nenhum rosto conhecido em volta. Recuava. Pensava que ou
enlouquecia ou aquilo era fruto de magia e nenhuma das opções lhe agradava ou sossegava
nem um pouco.
- Ei! Cuidado! Olha para onde segues! – refilou um aldeão em quem tinha esbarrado ao recuar.
Diana esboçou um gesto de desculpas, mas continuava em sobressalto, virando-se, olhando a
toda a volta. Rafael achou que deveria terminar a brincadeira. Parecia-lhe que a qualquer
instante ela dispararia dali a correr.
«Na tua mente. Tem calma! Procuravas-me?»
Cada vez mais assustada, soou um grito interno e começou a afastar-se, voltando, em direcção
à praça. Subitamente, a mente de Rafael tinha ficado turva, uma neblina negra surgia e queria
instalar-se. Ele cambaleou, pousou a mão no telhado onde se encontrava. Lutando contra a
insconsciência que forçava caminho, procurou aproximar-se do beiral e descer, mas ainda
estava um pouco longe. De novo o negrume invadindo a sua mente, deixando de ver, e uma
vez mais vislumbrando a luz em volta, lutando contra o apagão que ameaçava acontecer a
qualquer instante. Cambaleou de novo e, escorregando, chegou mais próximo do beiral.
Conseguia forçar a consciência do mundo em volta apenas por alguns segundos de cada vez,
por entre aquela neblina que se adensava cada vez mais. Viu uma carroça com feno um pouco
mais à frente, só tinha de conseguir lá chegar e cairia em segurança. Continuou a lutar. Já na
direcção da carroça, deixou-se cair, encurtando a distância entre si e o chão. Da carroça caiu,
desta vez para o chão. Cambaleando tentou aproximar-se da rua principal.
Enquanto Rafael se debatia contra a escuridão que avançava na sua mente, Diana tinha
hesitado na sua fuga. Sentia que algo estava errado. Sentia o seu dragão latejar de uma forma
diferente. Não era um latejar mais fraco, mas mais lento. Pequenos flashes surgiam na sua
mente e ela não percebia de onde vinham. Imagens que vinham e iam de uma rua, casas,
gente ao fundo... Ela não percebia, mas pressentia que algo não estava bem com Rafael. Só
podia ser por isso, nunca lhe tinha acontecido nada como aquillo. Ela avançava pela rua,
procurando-o sem êxito. Sentia-se cada vez mais ansiosa, para além de assustada. Rafael
tornou a levantar-se e caminhou um pouco mais em direcção à rua principal, na direcção de
Diana. Não sabia porquê, mas não podia investir as suas forças em pensamentos
desnecessários naquele momento. Seguia o seu instinto. Não estava muito longe, viu a torre
que antecipava a vista da saída da citadela.
Diana viu uma nova imagem na sua mente, desta vez uma torre. Parou. A torre era um pouco
mais à frente. Correu. Pensou que aquela seria a vista da torre a partir da rua quase em frente
a esta. Rapidamente chegou até lá. Um pouco mais à frente, Rafael tombava, cedendo à
neblina e à escuridão.
- Rafael! O que se passa? O que tens?
Ele abriu os olhos, viu Diana por entre a neblina e esboçou um fraco sorriso. Voltou a fechá-los.
- Sossega... – ainda disse, antes de ceder por completo à inconsciência.
Dificilmente sossegaria sem saber o que se passava. Mas já não estava assustada por si, estava
preocupada com ele. Colocou a mão na face de Rafael: não lhe parecia estar quente, não
parecia transpirar, tinha as cores normais, mas tinha perdido os sentidos. O que se passaria
com ele? Não tinha dúvidas que as imagens que tinha visto, estavam a ser emitidas por ele. O
que se passava consigo, também? Não sabia o que pensar. A sua vida encontrava-se dentro
dos limites do normal antes do seu caminho se cruzar com o de Rafael. «Calma!» Pensava.
«Tem sido muita informação, só estou a precisar de digeri-la! É só isso!»
Não passou muito tempo até que Diana sentiu o latejar do seu dragão acelerar o ritmo. Olhou
para Rafael e viu-o abrir os olhos, finalmente despertando. Ela teve vontade de disparar um
série de perguntas, mas achou melhor esperar um pouco, dar-lhe tempo para se recompor. Ele
levantou-se lentamente e ela imitou o seu gesto.
- Estás bem? – acabou por perguntar.
Parecia-lhe que ela não fazia a mínima ideia do que tinha acontecido. Ele sondava a sua mente,
mas esta estava muito agitada.
- Sim, estou bem.
Ele não dizia mais nada. Ela continuou a olhá-lo e ele devolvia o seu olhar.
- O que aconteceu? – acabou por perguntar Diana, impaciente.
- O que aconteceu?! Tu aconteceste!
- Eu?! Não percebo. O que é que eu fiz?!
- Usaste a magia contra mim!
- Eu?! Claro que não! Usar a magia como?! Nem sei o que aconteceu! Estava aflita, ouvi-te,
mas não te encontrei... uma série de imagens estranhas à minha mente surgiram nos meus
pensamentos...! Achei que algo de errado se passava contigo!... Encontrei-te, então, caído
nesta rua!
Diana estava visivelmente agitada.
- Mas fizeste-o! Voltaste a usar a magia sem te aperceberes. Parece-me que precisas de
aprender a controlá-la!
- O que é que aconteceu? Não fiz nada!
Diana dava cada vez mais sinais de inquietação.
- Tentei comunicar contigo, assustaste-te e enviaste energia na minha direcção, procurando
bloquear-me. Não esperava! Apanhaste-me completamente desprevenido, num local onde era
tudo menos seguro cair desacordado!
Diana olhou-o demoradamente. Ele parecia-lhe convicto do que dizia, mas ela nada tinha feito!
Afastou o olhar, procurando rever os acontecimentos, os seus pensamentos, procurando
descortinar algo mais. Rafael captava os seus pensamentos com facilidade, ela parecia-lhe
demasiado nervosa para sequer se lembrar de os bloquear. Recordava a voz na sua cabeça,
sem o ver em volta, os rostos das pessoas, sentia-a assustada, um grito surdo... um grito! As
nuvens a taparem a lua... noite cerrada sem luar! De onde vinham aquelas imagens?!
Confusão. Diana olhou novamente Rafael nos olhos.

- Não sei o que aconteceu!... O que está a acontecer comigo?


- Pode ser que a magia esteja a despertar em ti... ou que nunca tenhas dado pela sua
manifestação, sem a orientação de alguém que o percebesse... ou...
Rafael calou o seu pensamento. Ou o seu lado sombra estaria a despertar, pensava,
reclamando a sua herança! Não. Ela estava deveras assustada, defendeu-se instintivamente,
tal como o tinha feito com os seus pensamentos da última vez que se tinham encontrado!

- Ou...? – perguntou Diana, estranhando o seu corte.


- ... ou algo mais que nos escape à razão.
O rosto de uma jovem surgiu na sua mente. Era a rapariga que ela tinha deixado no seu lugar,
na venda. Diana sentiu uma nova preocupação.
- Tenho de ir! – disse.
- Espera! Procuravas-me. Querias algo?
Diana nunca mais se lembrara do que a tinha levado até ali. Estava confusa. Rafael viu a
imagem do dragão da lua surgir na sua mente, a lua reluzindo, seguiu-se a imagem do seu
próprio rosto, do seu dragão, a imagem de ambos, próximos, sentindo-se um ao outro, a
imagem de um dragão mudando de pouso para o braço de uma criança, o rosto de uma
mulher com traços parecidos com os de Diana... as imagens rodopiavam na sua mente. Diana
ainda estava assustada e agitada com todos os acontecimentos. Estava a deixar-se levar pelo
remoinho de pensamentos. Ele podia senti-lo de tal forma que teve de cortar a ligação com a
sua mente.
- Querias algo? – repetiu Rafael, procurando interromper o fluxo de pensamentos de Diana.
Ela lembrou-se uma vez mais de Dália.
- Noutra altura. Agora devo ir. Desculpa se... Não foi minha intenção... Até depois!
E saiu apressada, quase correndo até à praça, onde a sua irmã a esperava.

Diana percebeu ao chegar que, pela sua cara, Dália estava pronta a dar-lhe um raspanete pela
demora, mas assim que viu a sua agitação pareceu esquecê-lo.
- O que aconteceu? Estás bem?
- Estou. Desculpa. Acompanho-te na entrega e na volta a casa. Ajudas-me a recolher a fruta
nos cestos?
- Sim, claro! Mas o que aconteceu que te deixou tão perturbada?
- Depois, Dália! Agora ajuda-me!

Diana seguiu calada, pensativa, todo o caminho. Ela agradecia o silêncio de Dália e a paciência
que esta havia aprendido a ter quando queria arrancar-lhe alguma confidência. Ao chegar a
casa, Diana e Dália rapidamente arranjaram maneira de sair juntas até onde pudessem
conversar descansadas. Foram até atrás da casa, apanhar alguma roupa que secava no
estendal. Dália fazia questão de olhá-la nos olhos, como que dizendo «estou à espera!».
- Encontrei alguém que tem uma marca como a minha...
- Deveras?! Disse-te o que significa?
- Representa a magia do dragão da lua.
Dália levava as mãos à boca, que se abria surpreendida. Parecia ser um misto de entusiasmo e
medo pela confirmação de que ela teria de manter escondida aquela marca pela sua
segurança.
- E a dele representa a magia do dragão do sol.
- Ele?! – disse a sua irmã sorrindo.
Diana ignorou a sua provocação.
- E o que aconteceu para estares tão perturbada quando voltaste?
- Têm-se passado coisas estranhas... Quando estou perto de Rafael – é o seu nome – sinto o
dragão latejar na minha pele. Ele diz que os dragões despertam quando se aproximam uns dos
outros...
- Há mais?! – perguntou Dália empolgada.
- Parece que sim. E quando fui encontrá-lo hoje, ouvi a sua voz na minha mente, mas não o vi
em lado nenhum. Assustei-me e... não sei o que aconteceu, mas ele diz que, para me proteger,
o deixei inconsciente. Juro que não sei o que aconteceu! Não sei o que pensar!...
- Que há magia em ti! Se ao menos tivesses alguém do teu sangue de quem pudesses ter mais
informações...
- Sim... mas não tenho...
- E se falares com o nosso pai? Pode ser que possa dizer-te algo mais...
- Se lhe contar o que me está a acontecer, é bem capaz de me mandar para outro lugar
qualquer! Ele nada quer que tenha a ver com magia perto dele. Nunca percebi muito bem…
parece um misto de medo e revolta engolida!
- Pergunta-lhe apenas sobre o teu passado, a tua família de sangue... Não lhe contes nada
disto!
- Temo que não seja um assunto do seu agrado, mesmo após tantos anos.
- Que mal poderá fazer? Pergunta e logo saberás!
- Talvez...
Diana voltara a pensar no dragão do sol.
- Sabes que ele consegue esconder o seu dragão? Quer dizer, fazê-lo desaparecer!...
- Desaparecer da pele?
- Sim... ele tem o dragão tatuado em parte da sua face e pescoço – pior do que o meu para
esconder! E consegue fazer com que ele desapareça e apareça na sua pele!
- Será que também podes fazer o mesmo? Isso era fantástico! Seria mais seguro! Esconder
essa marca de um marido não é fácil! Acho que esse é o forte motivo pelo qual o nosso pai
ainda não te obrigou a desposar alguém!
- Então mesmo que possa aprender a fazê-lo, nada podes dizer, pois ainda não é de minha
vontade desposar quem quer que seja! – disse, mostrando-se um pouco irritada.
- E... é bem parecido, Rafael? – perguntou Dália, colocando uma expressão inocente na sua
cara.
Diana olhou-a nos olhos e acabou por rir.
- És incorrigível, maninha!
Dália era mais nova que Diana e, com as suas 15 primaveras, já pensava em constituir família.
Determinada a encontrar um bom partido para ela e para a sua irmã mais velha, não perdia
uma oportunidade para tentar fazê-la interessar-se por alguém. Diana irritava-se muitas vezes
com este ímpeto da sua irmã, no que tocava à sua pessoa, mas já havia se habituado aos seus
devaneios e não conseguia evitar de gostar de vê-la encantada com o seu sonho.
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