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Gabriel Pereira Vieira

1
O menino ambicioso
não de poder ou glória
mas de soltar a coisa
oculta no seu peito
escreve no caderno
e vagamente conta
à maneira de sonho
sem sentido nem forma
aquilo que não sabe.

Carlos Drummond de Andrade

Este livro é apenas uma experiência estética.


O autor não necessariamente compartilha das opiniões sociais,
metafísicas, psiconalíticas ou políticas nele expressas.

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SUMÁRIO

Estilhaços .............................................................................5

Abaporu ..............................................................................19

Taquicardia (Contos) ...........................................................23

Haicais à moda brasileira....................................................31

Q Q Q Q Q Q Q Q Q Q ........................................................37

Móbile ................................................................................39

Trampolim ...........................................................................45

Descoberta de Eros .............................................................53

Incerteza .............................................................................61

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ESTILHAÇOS

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I

O dia acorda. O grande astro se espreguiça sobre a cidade


bocejando luz nos edifícios e ruas. Assisto a isso pela imagem que me
chega através do basculante do banheiro. A imagem distorcida me dá a
impressão de estar admirando um quadro impressionista embaçado. Dia
ideal. Dia ideal para meter uma bala na cabeça e acabar de vez com
tudo isso.
Fazer versos. Mas versar sobre o quê neste fim de vida? Sobre o
quê se pode versar hoje em dia uma alma sensível e elevada e angustiada
e infeliz e divina? Uma Alma instintiva egoísta e narcisista?
Foder a mais perfeita das mulheres pra acordar e a transa fugir
sendo devorada pela óptica dos olhos externos. Se fosse cego, como
seria meu sonho?

II

Minha noiva me espera. Escovo os dentes, não faço a barba. Noiva.


Até quando manterei esse relacionamento ordinário e vulgar? Ela é
totalmente inocente. Eu que sou o culpado, confesso. Porque há um
culpado. Em todo conflito há um culpado.
Essa enxaqueca do diabo! Aspirina me dá náuseas. O melhor a
fazer é tomar um banho gelado e agüentar.
Café preto e puro. De manhã tenho enjôo; ou talvez o enjôo seja
causado pela manhã. Como saber? Sei que tenho enjôo, tomo apenas
um café preto, puro, pego as chaves do carro e saio.

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III

Ligo o rádio numa emissora que só toca música brasileira.


Enquanto ouço, meu pensamento se entrelaça à canção. Me perco
nas emoções alheias. Como se não bastasse as minhas... Quase tenho
uma overdose de angústia.
Uma canção me entra nos poros. Travessia. Sinto o suplício dos
mineiros.
Quase atropelei um pivete. O menino se precipitou e não esperou
o sinal fechar pra exibir sua faceta de malabarista. Eu, desatento,
desacelerei o carro apenas no limite entre o susto e o desastre. Meu
farol sentiu a respiração ofegante do moleque. Eu nada senti. Senti apenas
um desconforto por manter uma indiferença diante do olhar espantado e
inocente daquela criatura corrompida.
Estou quase chegando na casa dela. Mas vou ligar e desmarcar o
encontro. Invento uma razão qualquer. Alô? Ô meu bem, o povo do banco
me ligou, disseram pra chegar mais cedo hoje. Não falaram por que, mas
em todo caso. Beijo. Até de noite.
Por que a punir com minha presença? Ausentando-me, poupo-a
de mim.
Sigo no carro. Ter desmarcado o encontro me deixou livre. É cedo
pra beber. Vou comprar cigarro.

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IV

Coloco no bolso as três notas de um real, algumas moedas, a chave


do carro, e saio. O mercado fica do outro lado da rua. Enquanto estiver
atravessando, quem sabe o que acontecerá? Algum bêbado pode estar,
nesse segundo, rasgando o sinal vermelho e vindo em direção a mim.
Quem sabe o que acontece quando se atravessa para o outro lado?
(O que se esconde na face oculta da sombra da besta?)
Estou sempre saindo. Agora a pouco saí do carro, neste momento
estou saindo do mercado com o maço na mão e o troco em bala. Imagino
cada cigarro queimando, enquanto caminho com meus duros passos de
marcha militar. Meu prazer reside mais na chama, na cinza, do que na
fumaça entrando nos pulmões atravessando violentamente os alvéolos.
Pego o isqueiro, observo o combustível; a chama sai fácil, flamejante,
alta toca a ponta e queima instantaneamente o tabaco. Ah, quem me
dera minha vida fosse como essa chama e meu corpo o cigarro que ela
consome por completo numa fúria regada a álcool e oxigênio.

Olho no relógio: 10:00. O sino da Igreja bateu. Me lembrei da


primeira vez em que fui assistir uma missa. O padre, um gordo sabido
que suava vermelho como que se tivesse levado uns tapas, falava para a
dúzia de fiéis que se dispersavam ajoelhados pelos bancos de madeira
vermelha. Quando cresci nunca mais voltei na casa do senhor. Creio
que ele também não sentiu muito a minha falta.
Experimentei maconha, tabaco, álcool e ácido. Sempre tive o
organismo forte, nunca me viciei gravemente. Há uma hora deixei o
carro estacionado perto do mercado onde comprei cigarro. E venho
caminhando. Pararei na livraria que há aqui por perto. E esperarei por
lá até a hora do trabalho. Como a carga de hoje é leve – quatro horas –
não estou desanimado (desesperado) como de costume. Os ânimos são
mais sensíveis à expectativa do que à ação.

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VI

Não penso na velhice. Não que eu a considere algo terrível,


insuportável. Não: simplesmente a acho inexpressiva. Não penso nas
rugas, nos cabelos escassos, nas juntas fracas, no joelho detonado, nas
crises hepáticas, nas cirroses, nas epidemias que exterminam os velhos,
no coração desgastado, nos olhos cansados; nem nas nostalgias, nas
lembranças inesquecíveis e que em verdade só ganham a condição de
inesquecíveis quando morrem porque mortas podem ser maiores do que
foram em vida porque podem ser depuradas em um misto de hipocrisia
e ingenuidade. Não penso no diabo, nos andares infinitos dos purgatórios
divinos. Quando eu não mais lembrar minha data de nascimento e estiver
morto e sem tempo nem espaço, numa sexta inexistente dimensão, não
pensarei com saudade dos tempos em que fui algo. O nada me fascina.
O nada, apenas.

VII

Os livros me perdem de mim mesmo. Naufrago em minha própria


lama. Fico submerso nos pensamentos com minha máscara de oxigênio
feita de carne, osso e cartilagem. Diluída nas palavras há toda uma
vida, há o corpo do autor se decompondo e se transformando em adubo
para novos floresceres.
Cheguei aqui na livraria às dez e quinze se meu relógio ou meus
óculos não me enganam. Agora são onze e meia. Onze e meia. Melhor ir
pro maldito banco. Mas são quatro horas, apenas quatro horas de suplício.
Vejo meu carro estacionado do outro lado da rua. Quando estava
lá indaguei o que poderia acontecer ao atravessar para o outro lado.
Atravessei. Nada aconteceu. Nada acontece. Agora, voltando e
atravessando a mesma rua, não mais me pergunto o que pode acontecer,
não mais imagino o bêbado rasgando o sinal vermelho, não mais creio
no inusitado: creio no carro estacionado e na chave suspensa no ar pelo
chaveiro.

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VIII

Estaciono o carro e subo as escadas. Não tomo o elevador. Prefiro


subir degrau por degrau oxigenando os pulmões, me exaustando antes
para depois ficar horas sentado em frente à tela do monitor. Logo me
desligarei da vida humana e meu corpo agirá como um autômato frio,
uma máquina que obedece a programações monótonas pré-determinadas
– como se fosse um personagem de Chaplin.
Chego na seção, confirmo minha entrada, cumprimento meia-dúzia
de meio-amigos, e me dirijo à cadeira giratória. Ligo o monitor, ajeito a
tela, a luz, as cores, estalo meus dedos de aço, passo graxa nas
articulações e óleo nas juntas.
Começo a trabalhar.
O tédio me pega desprevenido. Enquanto meus olhos passeiam
distraídos pela tela, minha consciência foge dos sentidos e desliza para
o subconsciente. Lembro dos sonhos que tenho tido.
O penúltimo deles foi particularmente emocionante. E seria ainda
mais se Eu não tivesse abandonado, anos atrás, a fé cristã que minha
mãe tanto me incentivara a preservar. Pode-se dizer que, de certo modo,
a preservei imaculada, pura, em resumo: intocada. Descobri desde cedo
que quem não reza não peca. Eu peco e não rezo. Não rezo e peco.
No sonho me via vestido com apenas alguns trapos de pano sujos,
repugnantes, e, tão velhos, que pareciam se decompor sobre a minha
pele. Mas, antes que pudesse reclamar da minha vestimenta, senti uma
dor agonizante pungente lancinante me torturando. Um borrão negro
nublava minha vista e, quando este se esvaiu, pude perceber que estava
pregado numa cruz. Crucificado. Olhei para o lado e vi mais dois homens
também crucificados. Um deles falava algo que, devido à distância e à
dor, não consegui ouvir. Abaixo de nós se encontravam dezenas de
pessoas, desde soldados a mães desesperadas.
Só fui tomar consciência do que realmente estava acontecendo
quando um dos crucificados, fitando o céu com os olhos úmidos e
brilhantes, gritou: Pai, perdoai-os porque eles não sabem o que fazem. E
fechou os olhos. Então a terra começou a tremer, as nuvens agitadas se
abriram e de lá saiu uma luz. A luz me cegava e percebi que iria acordar
naquele momento. Mas, antes, ainda consegui mirar os olhos uma última
vez na cruz do homem.

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IX

Volto ao carro, giro as chaves, destravo o freio de mão, engreno a


marcha. E saio.
A imagem dela me volta como um soco. Ontem a vi de relance.
Como uma sombra que logo se dissolve no asfalto ensolarado.
A vi por segundos, mas sei que a vi. A vi a vi a vi. Havia nela algo
dela mesma que me fez ter certeza de que era ela. A imagem embaçada
dos meus óculos-escuros não me enganaram. Era ela. Jamais deixaria
de a reconhecer. Creio que mesmo cego seria capaz de reconhecê-la em
meio a multidão do centro. A vi, depositei meus olhos sobre ela. E
percebendo que ela me observava tentei exprimir todo meu ódio desprezo
asco nojo. E consegui apenas exprimir minha incerteza. Era como se
diante dela me banhava de ingenuidade. E diante dela... A vi e não
consegui sequer exprimir uma raspa de decepção. Eu que antes planejava
vinganças fúteis e infantis, humilhações exemplares, fiquei estático
diante dela. Que roupa ela vestia, com quem estava, não sei, mas insisto
que a vi, simplesmente.

Com as mãos dentro da camisa desabotoada ela arranhava minhas


costas. E com as costas lenhadas eu beijava-lhe o colo e descia em
direção aos peitos, e, antes que pudesse alcançar os seios, parava. A
deixava na expectativa e voltava a beijar-lhe o pescoço.
A mão repousada sobre a perna se movia como um elevador quando
nos agarrávamos como duas bestas na véspera do apocalypse. Doação.
Furto. Não sei bem o que era aquela relação. Se era saudável ou doentia,
simplesmente não conseguia evitá-la. Meus instintos e impulsos saltavam
como uma hiena que espera a carcaça já devorada. E enquanto a beijava
me lembrava do que me diziam. Estaria eu fazendo papel de abutre
comendo a carne já mastigada, comendo a sobra o resto do corpo já
explorado?

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XI

Libertina, me diziam, puta, vadia. Me alertavam sobre seu pudor,


sua decência- ou falta de decência. Me relatavam dezenas de casos,
todos em seus detalhes mais sórdidos.
E no entanto não cri. Se hoje me contassem os mesmos casos com
os mesmos sórdidos detalhes talvez parasse para refletir. Uma vagabunda.
Mas seu olhar me falava o contrário. E não apenas o olhar, mas os gestos,
a fala. Ela se defendia antes que eu pudesse acusá-la. Se queixava dos
julgamentos que faziam dela. E essa confidenciabilidade, essa intimidade
fazia com que eu tivesse vergonha de duvidar da sua versão. Ela me
confidenciava tudo o que fazia, como se vestia, com quem saia, como e
onde, quando e porque.
Ela andava com os homens, com os homens conversava e com eles
passava a maior parte do tempo. E por isso, dizia ela, por isso a chamavam
de puta. Argumentos convincentes que rodavam na atmosfera onde ela
advogava a favor de si mesma. E eu a absolvi. Inocente, declarei,
inocente, e repetia sempre, sempre.

XII

Noite. Um Deus no qual não acredito acordou mais cedo hoje pra
me atormentar. Mal acabou de tocar o sino das seis horas, e já me sinto
abater por uma angústia divina. O vampiro, o vampiro. Minha fé se
contorce sobre as minhas costelas; caio sobre o assoalho. Se fosse justo,
deus não me apertaria dessa maneira, não me entregaria essa forca,
essa faca, essa.
É preciso não sentir medo. Mas como não sentir medo, se o medo
é o que me ocupa mais a vida. Sem o medo de que seria? E sem a vida?

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XIII

Nesse momento todos os meus passos ecoam, se encontram, se


confundem. Sinto em mim todas as sensações já sentidas. Tudo vivido
se revolta e se destrói, pensamentos se desconhecem. Sucumbo. Sinto
que estarei extinto e na minha extinção poderei reconhecer quem fui.
Porque não sou mais, nem mais serei.
Estou morto, imóvel, imutável. Cego. Mudo. Porém ainda ouço as
vozes que outrora me aconselharam e me guiaram para o horror. Essas
vozes que agora meus ouvidos repelem e ignoram. Estou morto porque
quero estar morto. E quem conhece a morte, a mais viva impulsiva e
explosiva morte, apenas quem a conhece é capaz de nascer.

XIV

O que me atormenta vem de um narcisismo absoluto que sinto.


Não me custa admitir isso. Mas meu narcisismo é tão completo que me
paraliso. Me paraliso com medo de me perder, mas paralisado me sinto
incompleto. Como posso viver incompleto e estagnado, impedido de
avançar. É preciso continuar, mas como posso continuar dessa maneira?

XV

Conhaque. Cachaça. Cerveja. Cerveja, por favor. Ou conhaque?


Não, conhaque, é melhor conhaque. Esses estilhaços de vida, esses
fragmentos, esses lapsos que me ocorrem enquanto a angústia cochila.
Caleidoscópio de cores cinzas. Diversos tons. Mas tons de cinza.

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XVI

Madrugada.
Rezo. Minha prece particular não se revela nem a mim mesmo.
Um desejo oculto de adorar a um deus me faz unir as mãos e erguê-las
aos céus, emocionado, chorando, tendo a caridade e a sabedoria de amar
um pai que abandonou o filho.

XVII

São quase seis da manhã. Devia fazer versos. Mas versar sobre o
quê neste fim de vida? Sobre o quê se pode versar hoje em dia uma alma
sensível e elevada e angustiada e infeliz e divina? Uma Alma santa pura
imaculada. Uma Alma instintiva egoísta narcisista.
Minha vida foi se acumulando sobre meus ombros e hoje me custa
andar. Não sei onde depositar essa minha existência. Esse acúmulo é tal
que não consigo diferenciar o lixo do ouro. Sou obrigado a carregar tudo
com medo de perder o que me mantém vivo. Ou então, incendiar tudo
(lixo, entulho, ouro, prata, ferro, angústia, esperança, tristeza, conflito,
fome, ressentimento, ambição, resignação, raiva, ódio, ira, fúria, cólera,
peito, consciência, sanidade, som, cheiro, cor) incendiar tudo. E apenas
um segundo me bastaria para terminar com isso.

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XVIII

O espelho me causava fascínio completo. Os contornos, as cores,


os traços: tudo formava uma magnífica pintura viva. Movia-me na frente
do vidro acompanhando minha imagem (ou sendo acompanhado por
ela, não sei bem) e ficava preenchido de uma satisfação de sexo ou de
doce. Ficava extasiado.
Certa vez, havia aprimorado meu egoísmo a tal ponto que um
simples gesto de altruísmo me causava náuseas. Vomitei no colo da
caridade. Mas ela soube punir-me tão severamente que nunca mais,
nunca mais...
Sou orgulhoso. Sou orgulhosíssimo. E justifico-me dizendo que
posso ter orgulho porque sou bom. E essa é a maior demonstração de
orgulho que posso ter.
Mas se, por um lado, sou orgulhoso desse tanto, por outro, sou
humilde a ponto de admitir esse meu orgulho; e sou tão orgulhoso, que
mesmo na minha humildade tenho orgulho de ser humilde.

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XIX

Pego o caderno. Faço uma estória:


“Em meus tempos de promotor vi um curioso episódio da vida de
dois seres humanos – um réu e sua advogada – bem intencionados em
viver.
Esperando pela decisão do juiz, os dois se retiram para uma sala.
Estando sozinhos, o homem empurra a porta, que bate mas não se fecha,
deixando à vista de quem ali passasse o que acontecia dentro daquela
saleta.
Então, subitamente, ele agarra a advogada, coloca-a no colo e passa
a mão em suas coxas; depois, trilhando suavemente o caminho de suas
pernas, foi até onde as duas se encontram. Uma fúria de volúpia invadia-
lhe o corpo e as mãos compulsivamente apalpavam-na toda; os dedos se
moviam como tentáculos. A mulher soltou um gemido e ele avançou
para seu seio. E começou a sugá-los, morena pele começava a corar,
marcada por esparsas manchas rosas que se espalhavam por todo o corpo.
Ele a lançou para cima com uma força de Thor, ela sorriu, alucinada,
deixando-se levar pela devassidão. Logo estariam em cima da mesa
cometendo pecados e se esforçando para serem originais.”
Certas vidas são banais demais para o sexo..
Escrevo como quem escreve um testamento ininterrupto; cada
frase, cada palavra, cada letra é testemunha de um instante morto, de
um instante passado que com suas mãos sem luva abusam de meu
presente–agora.
Cada segundo meu é irmão de outro. E um dia todos se reunirão
para velar as cinzas do que fora o corpo do pai. Cremem-me.

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Abaporu

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Os tambores ainda ressoavam o som grave, o som grave se
confundia com as eufóricas vozes roucas dos negros e vermelhos. O
completo frenesi que tinha se tornado fez com que o ritual saísse do
controle dos homens e dos deuses. Se antes não havia regras morais,
agora não havia limites físicos. Os olhares eram como faróis, guiando
cada um o próprio caminho. Confusas, as mãos tocavam um ao outro,
tocavam o próprio corpo. Os dentes rasgavam a carne daquele branco,
que era brutalmente devorado pelas bocas sedentas. O sangue azul-
avermelhado que jorrava quando alguma artéria se rompia coloria a
pele dos tribais; o sangue que tingia a tez do canibal desenhava em seu
peito o valor que encerrava; as memórias que corriam nas veias do branco
eram lentamente digeridas pelos antropofágicos. Cada pedaço era
disputado com uma ira inacreditável; e cada copo de sangue entornado
fazia com que os negros e vermelhos alucinassem. Uns caiam ébrios,
outros não suportavam e despencavam mortos, e seus corpos não eram
aproveitados no próximo banquete. Assim se seguiu a cerimônia, por
dias ficaram naquele estado de insânia, até que, em certa manhã, os
tribais olharam-se e perceberam que começaram a se devorar;
alimentavam-se uns dos outros; haviam perdido o controle, sofriam na
pele rasgada e no músculo mordido as dores da antropofagia; não mais
digeriam, não mais digeriam: apenas devoravam impetuosamente,
incontroladamente. Desejaram fugir, mas a realidade se jogava na frente
de suas pupilas dilatadas, não distinguiam mais o real do imaginário, o
conveniente do possível; foram se devorando até que não restasse mais
fome nem mais alimento nem mais quem se alimentasse. Haviam se
extinguido e precisariam ressurgir, não das suas cinzas, mas de seus
mórbidos cadáveres envenenados e vulgarizados, machucados e
maculados. Precisariam recuperar a identidade, a alma, trazê-la de volta
ao corpo arrancado e mutilado.
Mas renascerão, renascerão, basta um grito de coragem, basta
que um corpo acorde, se levante e grite. Eles se reerguerão, porém com
uma vantagem: saberão como se comportar diante de uma mesa de
banquete: da próxima vez usarão talheres, com toda a certeza , usarão
talheres.

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TAQUICARDIA

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UMA TEMPORADA NO INFERNO
TEMPORADA

A viagem que fariam tinha por destino o Inferno. O Inferno ficava


do outro lado da ilha; partiriam logo pela manhã.
Arrumaram as malas e foram para o cais. O capitão já os esperava
a alguns minutos. Desculparam-se pelo atraso e partiram.
O mais velho dos três perguntou ao capitão se ele costumava visitar
o Inferno freqüentemente. Ao que ele respondeu lacônico: “Visito
sempre, sim senhor.”
A viagem, que começara calma, começava a mostrar sinais de
turbulência. As ondas transformavam o barco em uma gigante gangorra
que oscilava entre a paz e a histeria. O barco rangia por completo, desde
as tábuas aos dentes dos marinheiros. O céu, limpo de estrelas, estampava
um denso negrume manchado pela luminosidade da lua. Os gritos na
ilha já podiam ser ouvidos daquela distância; estavam quase chegando.
Os três amigos foram perguntar ao capitão como fariam para entrar
na morada do diabo, se precisavam de alguma autorização prévia, algum
visto. Quando chegaram à cabine viram o leme sendo guiado por si
mesmo. Não viram capitão, nem marinheiro, nem ninguém. Estavam
sozinhos; cada um não enxergava o outro, de modo que, todos em um
mesmo lugar, compartilhavam da mesma completa solidão.
Chegaram; o barco atracou. Desceram do navio. Silêncio completo.
Não viram nenhuma instalação, nenhum funcionário. Apenas um garoto
com uma perna amputada tomando vinho e fumando haxixe acompanhado
por um embriagado senhor de bigode, flores e cachimbo.

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NAVIO
NAVIO

Andava pelo cais do porto. O navio se preparava para sair. Os


últimos marinheiros se preparavam para embarcar. A névoa ocultava a
imagem do grande barco. F. assistia a toda essa situação sem nenhuma
reação; se perguntassem a ele o que fazia ali no porto àquela hora,
responderia que não sabia. Não esperava nada, nenhuma mercadoria
nem ninguém; nem mesmo pretendia embarcar. Estava ali por um impulso
indescritível que tivera; as sensações, como agulhas, espetavam sua
pele fazendo com que ele arrepiasse num misto de dor e prazer.
O último marinheiro subia no navio. Um homem vestindo uma
farda branca anunciava a partida. F., prestes a sair dali, estava confuso
com toda a situação, pois esperava que algo acontecesse: não sabia o
que nem como, mas pressentira que algo iria acontecer. E nada
acontecera. Revoltou-se “desde quando acreditas em pressentimentos?”
– perguntou-se. “Nunca acreditaste em nada sobrenatural, não é agora
que começarás a acreditar”. Dois passos dados para fora da plataforma
onde estava, surgiu-lhe a imagem de uma pessoa. A imagem foi se
tornando cada vez mais nítida, até que uma possível miragem no meio
do nevoeiro branco-lácteo se tornou uma real forma de mulher, com
carne e malícia no olhar. A mulher aproximou-se de F. de forma impetuosa
e rápida, embora com a serenidade própria das mulheres fortes. Agarrou-
lhe pelas mãos; este se deixou levar. Atração intensa, pulsante. Sentia
correr-lhe o sangue em brasas; o bafo quente que exalava tornava
perceptível a ansiedade que aquela situação lhe provocava. E mais do
que ansiedade: intensidade. Intensa a mulher, suas formas, o olhar. Não
a conhecia, sequer a tinha visto. Mas se deixou levar, antes pela volúpia
do que pela confiança. Aquela mulher, Afrodite encarnada em pele
morena, olhava-o de maneira intrigante.
Prosseguiram e avançaram contra o nevoeiro. Ele numa espécie
de transe, contemplava apenas a imagem da bela mulher e revivia de
uma única vez todas as emoções; tudo o que ele vivera até ali pulsava
simultaneamente em seu corpo e todo o seu corpo se dedicava a
ressuscitar toda a emoção vivida.
Quando F. acordou – porque se pode dizer que até ali ele estava
em uma espécie de sonambulismo ou hipnose – percebeu-se em cima
de um banco de madeira. Olhou ao redor e não viu ninguém. O mesmo

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nevoeiro cobria o horizonte.
Minutos mais tarde percebeu que o chão onde pisava oscilava:
havia embarcado no navio.

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FIM

Ela me olhava ainda uma última vez. Mas esse último olhar não
possuía vida. Assim como não possuía vida todos os olhares e gestos e
falas dela nestes últimos anos. “O Fim”, ela me disse, tranquilamente,
como um pai que traduz ao filho o The End no final do desenho animado.
E, como um pai (não como uma mãe, mas como um pai) ela me dizia
frases suaves, consoladoras, conselhos. E gaguejava, soluçava. Reparei
que uma lágrima escorria para dentro de sua boca, sem que ela
percebesse. Ela engoliu a lágrima e o catarro e, empenhando o revólver,
lamentou sua sorte, pediu-me perdão. E atirou. Uma bala feriu na barriga.
Caí inconsciente e, na minha inconsciência, também estava inconsciente.
Acordei, parece-me, duas semanas após, no hospital. Quanto a ela, nunca
mais tive nem mesmo busquei notícias.

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O PROFETA ESQUIZOFRÊNICO
PROFETA

O espectro o acompanhava pelas noites e pelos dias. Não tinha


medo; sequer percebera que era um espírito desencarnado aquele que
caminhava longos percursos em sua companhia. Conversaram,
conheceram-se. Quando F. descobriu que se tratava de um fantasma,
recebera a notícia com espanto. Enquanto achava tratar-se de um homem
em carne viva, olhava-o com o mesmo olhar que olhava a todos; quando
soubera que a carne que o compunha era feita de luz e vento, passou a
olhá-lo de maneira diferente: percebia luminosidades intensas em certas
partes do corpo do amigo, assim como em sua voz acreditava ouvir
cânticos sagrados. Era um vulto, porque ele o quis, porque ele fez com
que virasse vulto; sua crença, sua necessidade De enxergá-lo diferente,
agora que descobrira a verdade, fez com que ele enxergasse o Espectro
como um Ser iluminado e divino. Nada mudara no exterior; apenas uma
revolução ocorrera no interior de F.
O que ele julgava concreto desabou no abismo do misticismo;
começou a crer que os mundos temporal e espiritual formavam um só
plano. Enxergava a verdade, que se escancarava em sua frente. Fora,
pela primeira vez, louco. E assim julgaram-no lúcido.
Fundou a “Igreja da Salvação do Espectro Divino Feito de Luz e
Vento”; aceita doações pelo telefone de contato.

29
IRACEMA
IRACEMA

A flecha o atingia; o peito banhado em sangue jorrava a vida - que


agora se esvaia tão rápida, como se todos os anos se resumissem a
segundos. F. não relembrou todos os momentos de sua vida, não teve o
famoso “flashback” que costuma ter quem está prestes a morrer, nem
mesmo ouviu cânticos divinos de anjos que o convocavam ao céu. Não
ouviu mais nada, apenas sentiu. Sentiu sua pele se arrepiar, sentiu em
sua nuca o vento gelado. Suava. Suava até que não mais houvesse sal
em seu corpo. Sangrava, o jorro coagulava o instante da vida; seus
músculos se enrijeciam; foi ficando vermelho, vermelho como o magma
que ardia em seu interior e que, agora, prestes a entrar em erupção,
provocava-lhe ânsias e calores. Deliciava-se com o perfume das flores,
que eram como um bálsamo para seus últimos momentos. Não havia
mais amargura. Começava a delirar. Saboreava o néctar que lhe
depositava na boca a virgem de cabelos longos. Era uma virgem morena,
cabelos negros, olhos castanhos, lábios desenhados com a pena de Vênus.
Sua voz, suave como uma lira ou uma flauta, descansava-lhe os ouvidos.
Sentia, agora, todos os seus sentidos, um por um, se despedindo
do seu corpo. Não havia mais o som da voz da virgem: apenas sua
harmonia; o doce do mel não mais lhe lambuzava o paladar; os perfumes
foram levados pelo vento que ele não mais sentia a gelar-lhe a nuca; não
havia mais toque da mulher morena; não havia mais mulher, nem morena,
nem virgem, nem nada. Naquele último momento descobriu a verdade e
encerrou-a em seu espírito que extinguia com seu corpo. Mais tarde os
vermes comeriam seus olhos, sua gordura e membros de sua falecida -
que deus a tenha - alma.

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HAICAI À MODA
BRASILEIRA

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32
de todas as minhas esposas
apenas você faz sexo
como as mariposas

Deus inventa todo o tempo.


Eu, mais modesto, invento
Apenas este momento.

meu amor decola


basta um gole
de coca-cola

Gozo o estado
de estar nada mais
que parado

33
No céu, invisível,
Deus passeia
Num dirigível.

Sade invade
minha sala:
que sede!

Nas trilhas marcadas


Sigo as pegadas
Dos meus pés.

A cana no campo.
O canto do cortador:
canto doce de dor.

34
paulo leminski

A estrela cintila.
Ela explodiu
mas ainda brilha.

Desatento espero
E no meu sudoku
Coloco um zero.

Beleza I

Esse sou Eu:


Orfeu
da língua portuguesa.

Beleza II

Esse sou Eu:


Orfeu
de língua presa.

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36
q q q q q q q q q q q
q u u u u u u u u u q
q u a a a a a a a u q
q u a d d d d d a u q
q u a d r r r d a u q
q u a d r o r d a u q
q u a d r r r d a u q
q u a d d d d d a u q
q u a a a a a a a u q
q u u u u u u u u u q
q q q q q q q q q q q

37
38
MÓBILE

39
40
I

passe pela praça


peça informação
fale com o velho
fale com o cão
quem responderá
responderá que não

II

trinca o coração
de cristal
que com o sopro
do animal
deixa de ser puro
pra ser irracional

III

passo correndo
meu passo invento
e percorro sedento
meu todo momento

IV

quem me disse
falou mentira
quem me diria
falaria falsidade
mas quem não me falou
esse contou a verdade.

41
V

bungee-jump suicida (Mt 4, 5-7)

pulo sobre o vento


o vento não me acode
se deus está presente
a todo momento
me pergunto:
como é que pode?

VI

grito
e o giro do eco
percorre o mundo
chega ao cônsul suíço
chega ao cônsul sueco

grito
e o eco a girar
percorre janelas
sempre a procurar
a tua garagem
pra estacionar.

VII

uma carta apressada


sem correção nem reflexão
puro impulso e só ação
é a melhor maneira
de expressar na folha manchada
toda a existência machucada
mas inteira

42
VIII

PUBERDADE AOS DEZ ANOS

Me espie no meu momento precoce.

IX

COUVERT ARTÍSTICO

Você paga o motel.

Poema calado

Nem nasceu
Já foi censurado

XI

cato a emoção bruta


que brota do chão

com muita força e luta


amasso a massa
asso o pão

e por fim
como o alimento
digiro o sentimento
vomito a canção

43
44
TRAMPOLIM

45
46
HIDROFOBIA

nosso amor era firme


um ermo quente e seco
nítida pintura, sem eco
sem becos

rígido como um atômico relógio


mecânico como um tear
dengoso como o ópio
sufocante como o ar

estátua quimérica do prazer


bicho do trópico
cerbérico cão a morder
ente ciclópico

possuíamos apenas um olho


grande como um repolho,
a grande pupila dilatada
que ora via tudo,
ora não via nada

amor sem rima


lima d’alma
polia as protuberâncias ásperas da mesquinharia
até que um dia não havia mais nada pra polir
não porque atingíramos a perfeição
mas porque o bicho pegou hidrofobia
e devorou o coração.

47
matar-me enquanto há vida
enquanto há pólvora e revólver
virar cinza enquanto há vento
poeira quintenssência
matar-me na minha ausência
no exato momento
do meu nascimento
e no abstrato cimento
do meu tormento.

rezo ajoelhado sobre meu cadáver


já estou morto
e um anjo torto gordo
desses que vivem na sombra
fumando haxixe e ópio
vem me ressuscitar
me despertar do meu ócio.

48
quem me dera fazer o poema cru
o poema nu
indecente
que fizesse as freiras desmaiarem rubras
envergonhadas e excitadas
o poema morto
fora
da sintaxe do idioma
o poema exato
inteiro
o poema
último
nada na forma de tudo
engajado recluso maldito
poema que fizesse dito
o que até agora fez-se
mudo

tropeço nos trópicos


trampolim tropical
dividido entre a razão
e o irracional
eu sigo delirando
girando gritando
eu sou só um homem
eu sou só um deus

49
Fantasmas me perseguem.
Fecho os olhos como que tentando, através do sonho, acordar
mas os fantasmas continuam a me espiar, a me perseguir, a devorar
minhas costelas.
Os fantasmas, assim como os anjos, possuem asas.
Eles flutuam ao meu redor
boiando no ar em minha órbita.
Minha visão foge a fim de me esconder
como se, cego, não houvesse mais sofrimento
como se o martírio repousasse diante das pálpebras
como se Deus preferisse a escuridão à luz

buzinas ruídos da televisão gritos de ambulante


hélice de helicóptero telefones e celulares
roncos das motos, dos motores, dos caminhões, do comércio
alto-falantes panfleteiros bolsa de valores
ah! ninguém aí tem um violão não?

50
CALEIDOSCÓPIO

um poema como uma canção


um livro como um disco
que soe suave como uma emoção
de quem compulsivamente ri
de quem está prestes a parir
ou parar

quem diz que nada é


mais rápido que a luz
nunca viu o diabo
fugindo da cruz

flertando com a poesia


submerso no instante
pode ser que da minha estante
saia um verso

julguei que seria fácil


fácil como o ócio
mas se mostrou flácido
como um viciado em ópio

ah rio
que sede é essa?
sede de cio

o jornal pesado e denso


atira balas perdidas
e inflama a mão com a inflação

51
52
DESCOBERTA DE EROS

53
54
a pele nua
ela toda conspirava
e reunia no instante
a sensação o arrepio
como uma corrente
a emoção foi se expandindo
sendo transmitida
e cada poro suava
como numa coreografia hormonal

A caravana se alvoroça com o toque da guitarra.


A cigana se levanta e sobre o luar embriagado se encharca dos raios da
lua.
Os olhares cobiçosos dos homens extraem de sua imagem todo o gozo
que conseguem;
Porém, todo o gozo que, com o olhar, extraem, não é suficiente.
É preciso o cheiro, é preciso sentir a pele ardente da cigana.
Tocá-la.
Mas a cigana é intocável, pura, imaculada.
Apesar de toda a malícia que sua dança transpira, a cigana é virgem.
E virgem continuará a ser, eternamente.

55
Moças doces como maçãs vermelhas
estourando-se na juventude rubra e explícita
que irrompe dos contornos de seu corpo
erguido aos céus ao topo do Ser

Em um ritmo tribal contorna as formas de seu próprio monumento


tinge sua carne de sangue
tinge seu sangue de fogo
eterniza um instante
o instante em que não há a tradição:
há apenas: Luz, câmera, ação.

Dispo-me.
Peça por peça vou ficando nu
E depois de nu exploro os caminhos do meu corpo.
Descubro sensações
E depois, mais além, no corpo de mulher
Experimento novos gostos e sabores
No toque, no cheiro,
Na pele da mulher deslizo minha mão
Apalpo os seios
Acaricio as partes mais macias
Arrepio-me com o soluço e com o suspiro e com o arrepio dela
E a reação dela faz mais da minha reação.
Sei o que posso, ela me ensina o que é licito e o que é intransponível.
Porque há um limite
E no limite, no cume, no clímax, apenas no limite, no cume, no clímax
do prazer
É que Eu me controlo. Se é que me controlo.

56
CASTIDADE
CASTIDADE

Sofria e gozava todos os prazeres. A mulher se contorcendo, ele


entrando em estado de nirvana. Meditava sobre aquelas formas, sobre
aquele corpo de mulher. E seu pensamento ia mais fundo do que seu
sexo. Seu pensamento a lambuzava por completa; seu pensamento a
tornava mais nua do que ela poderia estar; a despia por completa; não
havia segredo, ele a gozava diretamente, a tocava intensamente; bebia
na fonte original o prazer do sexo e da volúpia; o corpo era uma espécie
de canal que fazia com que ele descobrisse na mulher a arte venérea do
prazer. Ele extraia, sorvia de seus seios a embriagante sensação de
relaxamento. Prazer, prazer. Prazer até o limite do céu. Cada poro seu
suava, gemidos rompiam o silêncio da castidade e do pudor. Gozaram-
se, arranharam-se, pintaram-se cada um com a cor do outro, sentiram a
verdade suprema que reside na emoção máxima do fim.

OS PEIXES

Os peixes nadam
por entre as algas que lhe tocam as escamas úmidas
no lago cercado por gramíneas orvalhadas.

Os peixes oiriçados
se contorcem em um frenesi de presa.
Chove. Os peixes desmaiam. O lago transborda,
invade o poço. Poço escuro
que à luz da razão seria impenetrável.
No entanto o balde cai adentrando o poço
O estrondo explode o poço

O vento suspira
suspensa a lua se esconde com frio
e se cobre com as nuvens de lã.
O sapo a busca no espelho d’água.
Enxerga apenas estrelas cadentes.

57
SONETO I

Se gosto de ti assim, Lívia, desejando-a


Carnalmente, é porque desejo-a sinceramente
E, por mais que Eu esteja amando-a,
Meu amor, de tão devasso, não mente.

Seria justo dizer a ti que não te quero


Para o mesmo propósito que se quer uma puta,
Sendo que assim não estaria sendo sincero?
Mas mesmo assim , Lívia, me escuta,

Porque o que declaro a ti é mais honesto


Do que uma declaração de amor platônico;
E se te peço que reconheças esse protesto

Como uma real manifestação de meu amor,


É porque ele não tem nada de cômico,
Apesar de também não ter nenhum pudor.

58
SONETO II

Ninfômana, Ah! Ninfômana sedenta,


Insaciável, sedutora pecadora, que mesmo
Com todos os gozos físicos não se contenta.
Ninfômana loura que fica a andar a esmo,

A buscar quem te sacie, quem te dê


Os prazeres da carne, e que de emoção
Te faça, por instantes mágicos, gemer.
Ninfômana que não tem amor nem paixão.

Ai daquele que te julga, Ninfômana, porque


A verdade é que tu não escolhestes ser assim;
Não te perguntaram, nem de ti ouviram um sim.

E reconhecendo que não foi culpa sua, que


Tu não escolheste insaciável ser,
Como poderia negar-te o meu prazer?

59
ANTI-ROMANTISMO

Não há mais esperanças para um romântico. O romântico está à


margem: somos criminosos.
Caçam-me nos bares, nas casas e até nos bordéis.
“Proibida a entrada de românticos”. Ignoro a placa. Ergo a coluna;
solto os braços que oscilam no tempo, como dois pêndulos de um mesmo
relógio, e entro no bar. Mas a mensagem se impôs. “Proibida a entrada
de românticos”. Por que fui ignorar o maldito aviso?
Agora me resta sofrer a penitência da cruz. Aceitar o castigo de
quem desobedece ao pai.

60
INCERTEZA

61
62
Ainda chegará o dia
Em que do meu rosto rebentará
A minha verdadeira face
E meu mais quente vivo
Discreto disfarce
E as ruas antes cobertas por carros e edifícios
Ficarão enfim nuas
E abertas para abraçar meus delírios e suplícios
Ainda esse dia chegará
Em que tudo o que se disse
Será apenas um eco
Um eco do que se dirá.

Ainda não conheci a morte.


Ouvi apenas boatos
de que foi presa por porte
de armas e tráfico de drogas.
(Mas sem provas)

Aguardo ansioso o dia em que


finalmente a conhecerei.
Por agora a espero
como tantas vezes
a vida esperei.

63
VERSOS DE SANGUE E LÁGRIMA

Há uma gota de sangue em cada poema.


Mário de Andrade

Meus versos, além de sangue, possuem lágrimas


e tantas outras secreções de emoções:
esperma, pus, suor, saliva.

Minha Poesia chega a possuir carne, nervos,


olfato e paladar.
Possui cheiro, gosto e forma,
linhas, desenho e cor.
Tem o sabor de que eu sempre quis provar.
É feita de chuva , areia, vidro e anis.

Minha Poesia me revolta por não ser perfeita.


Emancipo-a. Deserdo-a.
Minha Poesia é uma puta numa seita
de ricos homens mascarados de capuz.
Ela começa no fim e termina na luz.

Minha Poesia já nasceu livre e responsável pelas suas atitudes.


Culpo-a e culpando-a isento-me de toda a responsabilidade de não fazer
versos perfeitos
ou ainda, de fazer versos feios.

64
ÓPERA DA AMBULÂNCIA
DA

na nuvem de buzinas que se deposita no solo do asfalto


uma ambulância caminha sôfrega

(será que leva meu corpo?)

a manada de carros se espanta


idosas olham apavoradas para o cofre rubro-branco que talvez leve meu
corpo
a cidade parece ter parado para observar a ópera da ambulância que
corre aos tropeções

camelôs se esquecem dos guarda-chuva


mendigos se esquecem da miséria perene com a qual se acostumaram e
da qual dependem
o calor infernal é abanado pelo ruído da sirene
e dez mil poemas se irrompem dela para se diluírem no ar

enquanto isso meu corpo ainda passa na avenida getúlio vargas


lembro de um maiakovski mal-traduzido e da falsidade dos meus versos
e tenho a macia impressão que meus quinze minutos de fama são estes
nos quais os espectadores admiram um ser anônimo e anêmico.

65
INCERTEZA
INCERTEZA

As sensações se revolvem em mim


como um pêndulo oscilando entre a verdade e a mentira.
Os grãos de areia do ponteiro do meu relógio
dissociam-se.
Os minutos, as horas e os dias se confundem em mim
de tal maneira que Eu não sei se este poema
foi feito em uma hora ou em um ano.

As sombras dos executivos se arrastam na calçada como os corpos dos


indigentes
Seus sapatos apressados deslizam na cidade de empreende-
dores na cidade turbulenta de ações de prédios colossais
de prédios-coliseus.
Na cidade agitada a verdade se decifra pelos signos dos outdoors
pelas buzinas pelos carros que passam
pelos helicópteros que lançam aos céus suas hélices e giram
na rotação dos negócios
os arranha-céus e as construções
os guindastes que se erguem aos céus sem asas
martelos que socam o suor e as lágrimas
as vigas que suspensas se fixam e fixadas suportam o peso dos homens
e de suas angústias e ambições e crenças e decepções:
vigas que suportamos homens e seus peitos carregados.
As vitrines refletem o pântano que se forma no interior das costelas
entre um órgão e outro
as janelas incontáveis todas elas espiam o pântano dos corações
as pilastras do museu vêem os homens se desgastando e se tornando
artefatos de uma civilização já em decadência.

66
saio sigo meus passos
e passo pelos meus passos dados no passado
o passado retorna a mim de maneira súbita e me derruba com um soco
sigo o passado que retorna às origens
à origem irei através de meus próprios passos
num ritmo de devaneio e consciência
oscilo no tempo
meço os minutos e descubro tamanhos e formas diferentes para as horas
descubro formas para as ações
descubro a forma do passado
e como uma sombra o sigo em direção à origem
distante peregrinação eterna
mas à origem irei seguindo socando saindo da caverna

67
O PALHAÇO

Quando fui palhaço de circo, uma vez alguém me perguntou (creio


que foi o mágico) por que EU tinha escolhido tal singular profissão.
Preparei-me para dar uma resposta óbvia, com um ar de esnobe que me
acompanha sempre. Porém não respondi nem o óbvio nem o absurdo.
O espetáculo começara, precisávamos ir. O mágico logo esqueceu
o que me perguntara, afundando as mãos na cartola para tirar, de seu
infinito interior, exclamações e fantasias. Mas a pergunta roía-me. Minha
fantasia foi se desbotando, se desgastando; as risadas invadiam-me na
forma de interrogatórios.
O mágico afundando as mãos na cartola negra.
E EU atento àquele espetáculo, observando a decadência de um
palhaço.

68
AZUL

Escrevia compulsivamente em sua máquina. Sabia que estava


fazendo algo inédito, original, único. E sabia que, tão único quanto o
poema, era aquele instante. Se parasse ia perdê-lo; e, perdendo-o, não
conseguiria viver. Soube naquele momento que toda a sua vida fora
destinada àquele poema.
O sangue começava a jorrar, a hemorragia se agravara. Mas
continuava a escrever. Suas mãos trêmulas, azuis; os olhos fechados, a
face rubra se empalidecendo. E escrevia, escrevia com uma harmonia
inabalável... Chegou a sorrir quando deu o ponto final. Desabou, o sorriso
gravado na face, o instante congelado e a certeza de que estava vivo.

69
BONUS(ODE MALDITA)
MALDITA)

emaranhado de confusões e emoções depositadas, ajuntadas,


empilhadas

trago a aguardente ardente e minhas vísceras queimam


do furor do vício
tomo em meus braços a dama luxúria
e me esbaldo em volúpia e indecências
ah libertinagem, me socorra em seus braços
ó despudor, enveredo-me em seus largos caminhos

ó loucura

comi a hóstia por gula


bebi o vinho por querer me embriagar

fui sou um poeta maldito


que perdeu-se no tempo
e ridículo lamenta sua fortuna
enquanto há fome e miséria e desgraça ao redor

não quis comungar-me


não quis Cristo em mim
não quis dividir a fé inabalável e rija que tenho em mim:
toda minha fé é em meu ser
e meu ser é o todo perpétuo que necessito

divirto-me com os escândalos


com o machismo
com a cretinice

70
o ócio me fez refém
rendi-me

ó Cristo, perdoai-me pois ele não sabe o que faz

que figura é aquela pintada de púrpura?


que espécie de besta é essa que me encara e me tenta?
besta vestida como uma mulher de rebolado sensual

por favor, autoridade divina


algum bálsamo que me faça ter nos céus o relaxamento dos opiáceos
alguma virgem ninfômana me esperando no édem em préstimo dos
meus pecados

gira em torno de mim as vontades divinas


as profecias
as leis e os pecados capitais

sirva-me, tentação, sirva-me


adiantaria resistir-me a mim mesmo?
o campo em chamas e Eu rindo da minha ventura
os navios naufragando,a grande estrela candente urânica riscando o
céu de pavor
e Eu questiono meu fado
a escuridão banhando os céus mas meu fadário ofusca as desgraças
que percorrem os trópicos
e a esquizofrenia abafa o toque final das trombetas

fui traidor e posei-me de mártir.

71
O tempo escorre e me inunda até a cintura;
de cima observo meus pés atolarem na eternidade.

meu rosto transborda do espelho


e me invade por completo.

minha sombra arrasta-se no chão


a pagar pelos meus pecados.

sombra... sombra...
até tu espia-me!

até tu acompanha o medo que me vigia


e me segue em meus gestos
e em meus reflexos.

O tempo escorre
o corpo transmuta-se na areia da ampulheta do ser.

72
DISSOLUÇÃO D
DISSOLUÇÃO AS CORES DO CINZA
DAS

I.

Cinza
As nuvens Cinzas se banham numa coloração
Exploram as meridionais linhas
Nos observatórios oculares

As lentes opacas se transparecem


E em uma furiosa rajada de desejo
Se Pintam de Amarelo as nuvens Cinzas

2.

Amarelo
Estróina cor garbosa
Rompe o calor
Ardor se esvaindo por entre as nuvens
Liquefazendo os Amarelos
Pingam as gotas mais espessas
E nas gotas mais espessas saem esbravejando
Uma fúria de Azul
O Azul se moldando na forma de púrpura
Mas por enquanto é Azul
Azul
Azul

73
3.

Deixe o desnecessário
As cores são cores
Se fazem cores
Mesmo no Branco e no Preto há a dose de cor e lirismo
No intervalo o quadro se pinta
Um quadro apenas de cores
Sem traços nem linhas nem formas
De geometria sem círculos e retângulos
A geometria das cores

4.

Azul das nuvens


Vapores dispersos
Um banho que lava o mais limpo
Seca e lava e seca
AH Azul suas tonalidades
O Verde se aproxima
Chega o celeste do celeste
Toca na intensidade máxima
Azul chegas a possuir as cores que não possuem nenhuma outra cor
Cor que maneira de dizer
Por que não notas musicais
Azul chegas ao limite
E dissocia-se
Forma-se o Verde
Surge o Verde

74
5.

Nos ramos se mostra


E se alarga por extensões mágicas
Quase desaparece de tão agudo o feixe de luz
És fábrica de alimento
És fábrica
Se estenda
Rompe os limites
Alimentos
As luzes estourando
Gira as manivelas doces e verdes
És associação da luz
És luz
Sai de ti um ramo mais intenso
Vermelho

6.

Explosão
Derretimento
Quente calor puro
Apenas calor
Infreável inegável
Sabores Vermelho
Corres e é sentido
E derramado e lamentado
E chorado
Por vezes glorificado
Honrado emocionado
As pilastras da religião
E por que não Púrpura

75
7.

Nas asas
A cor Púrpura
Voa a cor Púrpura
A Púrpura asa
A Asa Púrpura
Asa e Púrpura
Nos contornos das asas a Púrpura
Nas linhas da Púrpura os círculos
E nas suas interseções A Asa voa
Voa A Púrpura
Nas formas da Asa

8.

E o vôo chega a essa cor quase branca


Que Cor seria?
E importa isso?
Desadornada e desarmada
Segue para a linha de combate
Se descobrirá por completa
Fugirá as impurezas
Tornará enfim
No fim
A Cor que se espera
A Cor que se toca
A Cor que se bebe
Branco

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9.

Branco
Pureza
Cristal lácteo
Espessa forma de sabor gosto cheiro forma
Chegas à mistura das cores
Sopa
Bebida
Álcool
Embriaguez
Chuva
Empinas soberano
O resto são cores
O Branco é mais do que cores
O Branco é Branco

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Contatos:
republicamasmorra@yahoo.com
ori2008@hotmail.com

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