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Da salvaguarda de uma prática musical.

Uma etnografia do samba de roda na World Music Expo.

Lúcia Campos

Durante a World Music Expo (WOMEX), o encontro anual das redes de produção das
chamadas “músicas do mundo” na Europa, que ocorreu em Copenhagen em outubro de 2010,
Samba Chula de São Braz foi um dos grupos selecionados para se apresentar, vindo
diretamente da Bahia1. O grupo toca o samba de roda do recôncavo Baiano, até então a única
manifestação musical brasileira declarada Obra Prima do Patrimônio Cultural Imaterial (PCI)
pela UNESCO2. Ao aproximar duas instituições aparentemente antagônicas, a UNESCO,
organização internacional das Nações Unidas, e a WOMEX, um mercado musical de caráter
privado, a trajetória do grupo suscita algumas questões no que diz respeito à salvaguarda de
uma tradição musical. É possível ver no trabalho do grupo Samba Chula de São Braz as
medidas de salvaguarda do samba de roda? A atuação desse grupo está de acordo com os
princípios estabelecidos pela convenção da UNESCO? A questão que se coloca é o que se
entende por salvaguardar uma cultura musical. Trata-se de conservar sua memória, fazer seu
inventário, promover sua prática? Em outros termos, como conceber uma cultura musical
como patrimônio? Através de gravações, de suportes materiais? Através de sua promoção?
Sem querer dissipar a problemática exposta em questionamentos abstratos, proponho
um “pensamento por casos” (Passeron et Revel 2005), que se baseia na etnografia de um
concerto. De acordo com o antropólogo Denis Laborde “a tensão entre a enquete pontual e a
generalização gradativa é um instrumento heurístico de primeira importância” (Laborde 2011:
3). Ao invés de trabalhar sobre “categorias instituídas”, ele defende “trabalhar sobre a
instituição das categorias” (2011: 9-10). Valendo-me de observações, de entrevistas e de
descrições etnográficas, proponho investigar a passagem do samba de roda como prática
cultural no Brasil à sua existência no âmbito das “músicas do mundo” na Europa,
questionando se tal passagem configura-se como uma medida de salvaguarda dessa prática
musical.

Samba Chula de São Braz: da UNESCO à WOMEX

No artigo “Samba de roda, patrimônio imaterial da humanidade” (2010), Carlos Sandroni


analisa o processo de candidatura do samba de roda à terceira Proclamação de Obras Primas
do Patrimônio Imaterial da Humanidade – programa que ele coordenou3 – e discute em
seguida a implementação do “plano de salvaguarda” exigido pela UNESCO. O caráter
político da escolha do samba de roda como candidato potencial é o primeiro ponto a ser
levantado. Como descreve Sandroni, o ministro da cultura na época, Gilberto Gil, havia
proposto o samba como candidato brasileiro à proclamação. No entanto, o samba, como
gênero musical brasileiro mais conhecido no mundo, não estava de acordo com os objetivos
da terceira Proclamação, que considerava o patrimônio imaterial como estando circunscrito “a
1
Este texto é uma tradução revista e ampliada de um artigo publicado na revista Cahiers d’Ethnomusicologie 24
(2011). Ele faz parte dos meus estudos de doutoramento em curso na EHESS (Paris), que compreendem uma
etnografia multi-situada sobre músicos e grupos brasileiros que circulam nos festivais de World Music na
Europa.
2
Inscrito em 2008 na Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade (originalmente
declarado Obra Prima em 2005). Recentemente, em 2012, o frevo foi inscrito na Lista Representativa do PCI.
Para maiores informações sobre os « elementos » brasileiros inscritos nas Listas da UNESCO, ver
http://www.unesco.org/culture/ich/index.php?lg=fr&pg=00311&topic=mp&cp=BR
3
A pesquisa que fundamentou a candidatura do Samba de Roda foi publicada no dossiê relativo ao seu registro
pelo IPHAN (Sandroni 2006).
comunidades geograficamente bem delimitadas (no estilo das etnografias clássicas), e
supostamente em perigo pela mercantilização e pela crescente globalização contemporâneas”
(Sandroni 2010: 375).
O samba de roda entrava mais facilmente no modelo proposto pela UNESCO pois
trata-se de uma cultura musical circunscrita ao estado da Bahia, mais precisamente a região
do Recôncavo, e na época parcialmente desconhecida em outras partes do país. Conforme
explicado no dossier de registro no IPHAN: « O samba de roda é uma manifestação musical,
coreográfica, poética e festiva, presente em todo o estado da Bahia, mas muito
particularmente na região do Recôncavo. Em sua definição minima constitui-se da reunião,
que pode ser fixada no calendário ou não, de grupo de pessoas para performance de um
repertório musical e coreográfico… ». Os praticantes, chamados sambadores e sambadeiras,
reúnem-se em uma roda, durante a qual cantam, dançam e tocam instrumentos (como o
pandeiro e a viola machete, dentre outros)4.
Uma vez que o samba de roda do Recôncavo não tinha nenhuma organização
representativa na época, a equipe responsável pela candidatura precisou mobilizar os
sambadores e sambadeiras para realizar uma reunião com o intuito de elaborar o “Plano de
ação para a salvaguarda” em diálogo com eles. Esse plano foi estruturado em quatro eixos: a
organização (criação de mecanismos de decisão e de representação); a transmissão (através da
educação formal e não formal); a documentação (o acesso às pesquisas sobre o samba de
roda); e, finalmente, o eixo que diz respeito à nossa problemática: a difusão (através de CDs,
DVDs, internet e espetáculos profissionais, tendo em vista a presença do samba de roda na
mídia). Esse plano de ação, estabelecido para cinco anos, foi discutido e formulado durante a
candidatura em outubro de 2004, tendo sido colocado em prática a partir da declaração do
samba de roda como “obra prima da humanidade” em 2005. Desse modo, é particularmente
interessante seguir a trajetória do grupo Samba Chula de São Braz que, cinco anos depois, faz
sua primeira apresentação na Europa como um dos showcases selecionados na WOMEX.

Etnomusicólogos como mediadores nas redes de World Music

A equipe de produção do grupo Samba Chula de São Braz passeia entre os stands da
WOMEX dedicados ao Brasil. Além dos sambadores e sambadeiras, estão presentes um
produtor, seus dois assistentes e dois pesquisadores, Katharina Döring, etnomusicóloga
especialista no samba de roda, e Cássio Nobre, músico e etnomusicólogo que realiza uma
pesquisa sobre a viola de machete, instrumento do samba de roda que estava em vias de
desaparecimento5.

4
Para mais informações sobre o samba de roda tal qual ele é praticado no Recôncavo baiano, ver Döring (2002 e
2004). A etnomusicóloga Katharina Döring também coordenou o projeto “Cantador de Chula”
http://cantadordechula.wordpress.com/about/. Assim ela descreve o samba chula, “também chamado samba de
viola e samba amarrado”, diferenciando-o de outras variantes do samba de roda, como o “samba corrido” : no
samba chula “uma dupla de cantadores canta a chula e outra dupla e o coro das mulheres respondem com o
relativo, sendo um verso menor que ‘arremata’ a chula. Nessa hora, ninguém entra na roda para sambar,
esperando os homens terminarem de cantar”. Quando começa a “parte instrumental com solos de viola e de
percussão” a sambadeira samba o “miudinho” (Döring 2009).
5
Cássio Nobre explica que “A viola machete, ou simplesmente machete, é um tipo de viola de dez cordas, sendo
estas dispostas no corpo do instrumento em cinco duplas de cordas, tal como a maioria dos tipos de violas
brasileiras. Estes instrumentos musicais possuem tamanho bem menor e timbre bem mais agudo e brilhante do
que o violão, por exemplo”. Ele completa : “A viola do tipo machete, e também a viola três quartos, são ambas
violas de construção artesanal, e estão gradualmente deixando de ser utilizadas em grupos de samba do
Recôncavo Baiano”. No entanto, Nobre reconhece que “recentes iniciativas de instituições públicas e órgãos
internacionais em financiar atividades de resgate de tradições em torno do Samba de Roda do Recôncavo
Baiano”, além do “trabalho da Associação de Sambadores e Sambadeiras do Estado da Bahia, e o trabalho de
pesquisadores que se debruçam sobre o Samba de Roda, têm contribuído para a crescente divulgação e re-
Döring me explica que ela teve um papel ativo no processo de candidatura do samba
de roda e na implementação do “Plano de ação para a salvaguarda”: “Em alguns casos havia
pessoas que participavam de movimentos folclóricos, em outros não havia nenhuma
organização. Desde o início do processo, a maioria dos sambadores escolheu um nome de
grupo, decidindo quem participa e quem não participa... O que, aliás, provocou conflitos.”6
Cássio Nobre intervém: “Mas o grupo Samba Chula de São Braz já existia, é um dos mais
antigos”. Eles me dizem que há hoje “mais de cem grupos”, mas “os bons grupos, que
preservam realmente e dão uma continuidade, tem uma dezena...”. Döring afirma que depois
de declarado PCI, houve uma grande mudança no samba de roda “em todos os sentidos”, ela
vê aspectos “positivos e negativos”. Cássio relata reclamações da parte dos sambadores,
“talvez porque eles não compreendam o que significa patrimônio imaterial, é um conceito
ambíguo, eles pensam a um retorno material. Eles esperavam talvez entrar num circuito mais
profissional”. Katharina Döring explica que alguns grupos já estavam habituados a tocar em
palco, mas esses grupos tinham o “vício do folclore”: as apresentações eram muito
uniformizadas no intuito de agradar os turistas, mais do que de “defender sua tradição”. Foi
necessário trabalhar com eles no sentido de “manter as diferenças”.
Atualmente, com acesso à produção cultural, ela considera que alguns grupos
começam a ter um “comportamento profissional”, no sentido de “construir uma carreira”. No
entanto, esse processo não se dá sem conflitos, os quais ela precisa freqüentemente mediar : “
esses brancos, de fora, intelectuais, essas pessoas que só querem nos explorar...”. Por outro
lado, “há também um pessoal mais jovem que se conecta à internet e começa a ter um outro
olhar sobre o mundo. Toda a questão é de achar um meio de fazer a mediação entre todos
esses níveis”. Se por um lado, Döring diz respeitar “verdadeiramente a tradição, a cultura do
lugar”, por outros ela assume que “é preciso fazer a tradução e estabelecer pontes para
construir outros caminhos...” e afirma com convicção “senão, isso vai morrer, e não é por
causa das pessoas de fora, é por causa deles, pois os jovens não estão nem aí...”. De acordo
com ela é a discussão que está na ordem do dia: “o fato de utilizar novas ferramentas é um
modo de seduzir os jovens, de convidá-los a se juntarem a nós. Pois, para eles, a imagem do
samba chula é a imagem de velhos, pobres, que morrem de fome, de casas podres... de
práticas sem futuro”.
A etnomusicóloga está otimista com a apresentação do grupo na WOMEX: “agora eles
vão poder contar coisas que eles nunca imaginaram, e como nosso grupo tem participantes de
várias idades diferentes, é ainda mais interessante”. Para ela, uma das particularidades do
grupo Samba Chula de São Braz, face a outros grupos do Recôncavo, é a presença de
Fernando de Santana, filho de sambador. Ele faz parte do grupo e é também mediador. De
acordo com a etnomusicóloga, é ele o responsável pela formação mista do grupo: “ele mistura
conscientemente pessoas de idades diferentes, para não deixar a prática morrer...”. Esse grupo
se destaca também pelo fato de continuar a fazer sambas de roda na comunidade pois “não é
porque um grupo se profissionaliza que ele vai deixar suas raízes, é preciso ter os pés no
chão”.
A passagem da roda ao palco é um momento importante para compreender a
profissionalização em curso. É o instante em que os gestos musicais do samba de roda se
apropriam de um novo contexto, e as sonoridades agora amplificadas mobilizam uma nova
audiência e uma nova escuta. Como realizar essa passagem sem correr o risco de perpetuar a
uniformização e o “vício do folclore” descritos por Döring? Como uma prática musical
tradicional torna-se um espetáculo sem desprezar suas particularidades, suas diferenças e

valorização desta tradição” (Nobre 2009). A pesquisa de Cássio Nobre deu origem à dissertação “Viola nos
sambas do Recôncavo Baiano” (2008).
6
Nesse tópico, transcrevo trechos da entrevista que realizei com Katharina Döring e Cássio Nobre na WOMEX
(Dinamarca) em 29 de outubro de 2010.
respeitando sua força como “mediadora da identidade do grupo” (Hennion 2007)? Como ter
“os pés no chão” quando um samba de roda é realizado bem longe do Recôncavo (sua região
de origem) e se insere num “mundo da arte” (Becker 1988) profissional na Europa?

Um show ou uma roda?

Entre os diferentes palcos montados no DR Koncerthuset, o grande teatro projetado por Jean
Nouvel, em Copenhague, o grupo Samba Chula de São Braz está programado para se
apresentar em um palco relativamente pequeno e não muito alto, situado no hall da principal
sala de concertos7. Os dez integrantes do grupo tomam os seus lugares para a passagem de
som. Sambadeiras e sambadores aproveitam o momento para algumas últimas negociações
sobre a apresentação. Nicinha, uma das sambadeiras, se dirige a Fernando de Santana, o líder
do grupo; “Enquanto você responde [os versos] eu vou dançar o samba...”. O produtor
assistente intervém: “Faça como de costume, você não vai em direção ao público?”. A
sambadeira hesita: “mas o palco é muito alto” e o produtor a acalma: “não se preocupe,
vamos pedir para colocarem degraus... Você prefere ao lado ou no centro?”.
Os músicos se instalam em meia-lua com seus instrumentos: a viola de machete, o
violão, os três pandeiros (um de couro, dois de nylon), um rebolo grave, dois atabaques.
Fernando de Santana e as duas sambadeiras estão do lado esquerdo do palco, cada qual com
seu microfone. Cássio Nobre afina sua viola de machete. Os técnicos instalam os microfones
e os retornos, em seguida colocam a escada no centro do palco. As sambadeiras descem, ainda
um pouco inquietas. O produtor tenta acalmá-las: “dancem primeiro em cima do palco. Se
tiver muita gente, não se acanhem, venham fazer a roda no meio do público, eles vão dar
espaço para vocês”. Depois de cada integrante ter passado o som individualmente, todos
tocam e cantam juntos. As negociações continuam, dessa vez sobre as vozes: “cantem mais
longe dos microfones”, o produtor insiste: “façam como sempre fizeram...”
O concerto da noite se transforma rapidamente em um samba de roda. Os sambadores
e as sambadeiras se apropriam gradativamente do espaço cênico com suas vozes, seus
instrumentos e suas danças. João do Boi e Alumínio, os mestres, começam cantando à capela
com suas vozes fortes, o coro responde. Assim que percussões e cordas começam a tocar, uma
a uma as sambadeiras passeiam pelo centro do palco, dançam rodando suas belas saias
brancas. Fernando de Santana assume o papel que lhe cabe de mestre de cerimônias e
apresenta o grupo: “Samba de roda do Recôncavo baiano, Salvador, Bahia, Brasil... Samba
Chula de São Braz faz o lançamento de seu primeiro álbum no maior festival de música do
mundo! WOMEX, Copenhague, Dinamarca, Samba Chula agradece a todos vocês!”
João do Boi se dirige para o centro do palco e mostra seu passo de dança, Fernando faz
a narração: “Esse é João do Boi, o mestre da Chula. Amassa o barro, João do Boi! Homem
não samba, homem faz isso que João do Boi está fazendo: amassar o barro. Amassa o barro,
João do Boi! Vai Samba Chula de São Braz!” A roda está cada vez mais animada,
sambadeiras e sambadores cantam o refrão: “Quando dou minha risada, ha, ha...”. As
sambadeiras descem em direção ao público, todos dançam entusiasmados. Quando elas sobem
novamente ao palco, algumas pessoas do público são convidadas a subir com elas. Tento
filmar o show, mas a alegria do público me contagia e vou para o palco dançar com as
sambadeiras e os sambadores... Como em um samba de roda, progressivamente não há mais
separação entre nós, o público, e os músicos. O show torna-se uma grande roda, “como eles
sempre fizeram...”.

7
No dia 30 de outubro de 2010 (na Womex 2010).
World music e patrimônio imaterial: redes que se relacionam ?

A rede de mediações envolvida no processo de patrimonialização vai dos sambadores à


UNESCO, passando por agentes do poder público no Brasil, por pesquisadores e técnicos,
dentre outros (Sandroni 2011). Ao entrar na rede da world music, as mediações envolvem
também produtores, agentes e jornalistas. É interessante observar como a “ancestralidade” do
samba de roda, face ao samba carioca, e seu risco de extinção, que serviram de justificativa
para a escolha deste como candidato a patrimônio imaterial, são idéias retomadas em sua
divulgação como world music. No site da WOMEX, por exemplo, a música do grupo é
apresentada como: “Brazil's primordial samba”. De acordo com a analogia proposta, o samba
de roda estaria para o samba como o blues está para jazz, com uma diferença importante :
“Unlike the blues however, chula is in danger of dying out”. Os mestres sambadores João do
Boi e Alumínio são apresentados como os detentores dessa tradição. “Together with their
friends and family from the small community of São Braz, they're keeping this seminal style
very much alive. Catch it while you can.”
A apresentação do grupo Samba Chula de São Braz, em formato de show, levou para a
Dinamarca uma pequena amostra do contexto original do samba de roda. Os músicos estavam
à vontade e contagiaram o público com seu entusiasmo, deixando clara a potencialidade de
uma performance musical enraizada em práticas musicais cotidianas. Estariam eles
descontextualizados tocando neste palco, neste local, tão distantes do Recôncavo? Não foi o
caso. Sambadeiras, sambadores e os demais integrantes do grupo transformaram um
showcase da WOMEX em uma grande roda, reafirmando o poder que tem a música de
transpor imaginários ou, em uma frase, de criar um contexto.
Apesar do aparente sucesso da empreitada, a relação direta que se estabelece entre
uma manifestação musical que adquire o “selo” UNESCO e o mercado musical da world
music é uma questão bastante controversa. Isso porque a idéia de patrimônio subentende a
preservação e a proteção de determinado “bem” e uma grande desconfiança face à
comercialização. No entanto, como discutimos acima, a própria transformação de uma cultura
musical em “patrimônio” acarreta a institucionalização e, muitas vezes, uma conseqüente
formatação das práticas musicais. Ora, em matéria de formatação de músicas, os especialistas
encontram-se tradicionalmente no âmbito do mercado musical e não naquele das instituições
patrimoniais. Aqui essas duas redes, aparentemente antagônicas, se imbricam.
O problema que se coloca está no cerne do processo de patrimonialização de uma
prática musical e dos demais “bens imateriais” de forma geral: como transformar em
patrimônio e tentar preservar algo que só existe plenamente no momento presente, no instante
em que está sendo criado? Afinal a música só existe porque alguém sabe e quer tocá-la, é
impossível separar um bem imaterial daquele que o realiza. Questão determinante para se
pensar as peculiaridades dessa categoria patrimonial, que pode facilmente tender para um
paternalismo assistencialista se negligenciar a iniciativa dos atores envolvidos. E por outro
lado pode não passar de um censo parcial e impessoal se ficar a cargo apenas de
pesquisadores externos. Em última análise, só os detentores das práticas musicais estão em
posição de decidir o que fazer com elas.

A globalização do selo UNESCO: preservação pela transformação?

Fernando de Santana, porta-voz do grupo Samba Chula de São Braz diz que “antes eles
participavam das festas de Santo Antônio, Santa Barbara, São Cosme, São Damião...” e hoje
participam de eventos diversos “como essa festa, um festival de música conhecido no mundo
inteiro...”. Ele afirma que “depois do patrimônio houve essa valorização” e lembra com
entusiasmo: “nós temos hoje a casa do samba, a primeira casa de samba do mundo!”8
A trajetória do grupo Samba Chula de São Braz e sua presença na WOMEX suscitam
questões pertinentes sobre a patrimonialização e a salvaguarda de uma prática musical.
Primeiramente, é preciso reconhecer, tanto pela história do grupo como pelos testemunhos de
Döring e Santana – “após o patrimônio houve essa valorização” – o caráter necessariamente
intervencionista de todo processo de patrimonialização. De uma parte, essa idéia evidencia o
papel da etnomusicóloga como mediadora entre diferentes instâncias – o poder público, a
comunidade, o mercado – de outra, determina a importância crucial da mobilização dos
próprios atores no processo. A formação heterogênea do grupo, que reúne mestres mais
velhos, músicos jovens, um etnomusicólogo engajado na patrimonialização e um produtor
local, também membro do grupo que assume o papel de mestre de cerimônias explicando ao
público o que se passa no palco, parece ser fundamental para a sua sobrevivência. É
interessante notar que há uma iniciativa de apropriação dos mecanismos de produção cultural
que pode vir a se desenvolver em termos de sustentabilidade do grupo.
Após o show, uma questão fica em suspenso: em que medida podemos dizer que
houve uma continuidade entre a roda e a cena? A partir de qual critério essa passagem foi um
sucesso ou não? O público estava claramente participativo e entusiasmado, os músicos
estavam à vontade e pareciam tocar “como sempre fizeram”. Finalmente, toda a equipe ficou
satisfeita com a experiência. É preciso lembrar que o grupo está habituado a tocar no palco,
tendo participado de muitos festivais no Brasil. O fato de tocar pela primeira vez na Europa
não deixa de ser um importante legitimador profissional para os seus membros.
Sobre a espetacularização das músicas do mundo, Laurent Aubert afirma que essa
perspectiva “abre novos horizontes para práticas musicais que em geral estão perdendo a
ancoragem e a razão de ser em sua própria sociedade.” Ele ressalta que “ ‘a passagem ao
palco’ e a ‘difusão no exterior’ podem ter efeitos positivos, não apenas no plano econômico,
como também na auto-estima e no prestígio social que acarretam para aqueles que tiveram
sucesso na experiência”. No entanto, o autor salienta que “as referências circunstanciais de
uma música desaparecem evidentemente – ou em todo caso são profundamente modificadas –
quando ela se exprime fora de seu contexto de origem” (2010: 26).
É preciso insistir no fato de que a presença do grupo Samba Chula de São Braz na
WOMEX não é um fenômeno isolado, ela se inscreve na patrimonialização do samba de roda,
que provocou a forte valorização e a promoção dessa prática musical através da legitimação
dada pela UNESCO, que configura-se como uma espécie de “selo” de qualidade reconhecido
internacionalmente. A passagem da roda à cena internacional cria um novo contexto para os
gestos e para os sons do samba de roda, situação essa que pode ter reflexos importantes em
termos de salvaguarda. Uma vez que a patrimonialização pode acarretar uma valorização
comercial e uma conseqüente transformação do samba de roda, como conceber
simultaneamente preservação e transformação?
Com o intrigante enigma do “Barco de Thésée” (2009), Gérard Lenclud aborda os
aspectos paradoxais da relação de identidade e nos dá algumas pistas de análise: “Identidade e
mudança não são incompatíveis; em muitos casos, a preservação da identidade exige a
mudança” (2009: 234). A oposição entre movimentos de preservação ou de transformação de
uma prática musical diz respeito a disputas de poder entre diferentes grupos, às vezes de
diferentes gerações, tendo em vista a defesa de seus costumes e gostos, suas necessidades
vitais de vínculo ao mundo. Na medida em que tais conflitos, muito contextuais, passam a ser
mediados pelo poder público, ou por uma instituição de caráter internacional como a
UNESCO, com essa etnografia vemos que cada situação deve ser entendida no seu próprio

8
Entrevista realizada com Fernando de Santana (Womex, Dinamarca, 29 de outubro de 2010).
contexto e não de acordo com um cenário universal onde a globalização apareceria como o
inimigo comum das culturas locais. Podemos entender que, numa abordagem situada9, a
globalização é tão diversa quanto as culturas e as formas como elas se apropriam dessa
globalização, através de negociações pontuais. Uma patrimonialização que tentasse negar essa
relação torna-se não apenas descontextualizada, como pode tornar-se também autoritária, e
corre no mínimo o risco de não se adaptar. De acordo com o antropólogo Marshall Sahlins, o
paradoxo de nossa época é que a atenção ao local se desenvolve com a globalização, a
diferenciação das culturas acompanha sua integração. Em resposta a essa paradoxo, há uma
proliferação de resistências em vista de uma “indigenização da modernidade” (Sahlins 1999:
410).
No caso particular desse patrimônio imaterial – a música – a transformação de uma
prática musical em patrimônio pode facilmente acarretar uma mudança de status da
manifestação e a gradativa profissionalização dos músicos, daí a ligação direta com o
mercado musical, essa mesmo mercado do qual deveríamos proteger essas mesmas práticas
musicais. Ao invés de reforçar a oposição maniqueísta entre uma música-patrimônio e uma
música-mercadoria, o patrimônio visto como intocável e o mercado como corrompido, é mais
realista assumir a necessária relação entre ambos os mundos e trabalhar para uma articulação
dialógica e eficaz entre eles, e por que não segundo os princípios estabelecidos pela
convenção? Nesse sentido, abordamos tanto a patrimonialização como a “artificação”
(Heinich e Shapiro 2012) de práticas musicais tradicionais como intervenções que acarretam
necessariamente transformações. E concebemos tais transformações como parte do processo
de salvaguarda.

“A patrimônio imaterial, salvaguarda imaterial”

Nathalie Heinich faz uma síntese dos debates em torno da noção de patrimônio imaterial
identificando as tensões axiológicas que a constituem. Ela salienta, entre outras, a difícil
tarefa de articular o “mundo da pesquisa, que constitui uma proteção simbólica, por palavras e
imagens” e “o mundo da ação política, que permite uma proteção material, por medidas
concretas de salvaguarda” (2007: 2). A socióloga aponta também os riscos de derivas que tais
tensões podem provocar, entre elas o risco da passagem de práticas a objetos10. Ela aborda
diretamente a problemática que nos interessa aqui, propondo uma “resposta lapidar”: “a
patrimônio imaterial, salvaguarda imaterial”. Heinich coloca a questão: “a enquete etnológica
e o trabalho de inventário não são, logicamente, o único modo de conservação realmente
praticável do patrimônio cultural imaterial?” (2007: 4).
O risco da passagem de uma prática viva a um registro imóvel está sem dúvida no
cerne da patrimonialização em questão, e a idéia de uma “salvaguarda imaterial” torna-se
crucial. No entanto, a questão que mereceria ser colocada não é apenas sobre “como realizar
tal inventário” mas também “como manter uma prática musical viva” ou “como respeitar e
promover a vitalidade de uma cultura musical”. Em geral, ambas as necessidades vão além do
trabalho de enquete etnográfica e do trabalho de inventário se esses são concebidos de forma
unilateral por pesquisadores, sem uma verdadeira mobilização da parte dos atores envolvidos
e sem uma relação direta com a atividade musical.
Voltemos à convenção da UNESCO. Ela entende por “salvaguarda” “as medidas que
visam garantir a viabilidade do patrimônio cultural imaterial, tais como a identificação, a

9
Em referência a Marcus quando ele diz que “...o sistema global não é a moldura holística teoricamente
constituída que provê o contexto para o estudo contemporâneo de povos ou de sujeitos locais observados de
perto pelos etnógrafos, mas torna-se, pouco a pouco, o que integra e envolve objetos de estudo multi-situados e
descontínuos” (2010, p. 273, minha tradução).
10
Em outros termos, o risco da passagem do alográfico ao autográfico (Goodman 1996).
documentação, a investigação, a preservação, a proteção, a promoção, a valorização, a
transmissão – essencialmente por meio da educação formal e não-formal - e revitalização
deste patrimônio em seus diversos aspectos. » Se medidas como a identificação, a
documentação e a investigação dizem respeito à enquete etnográfica e ao trabalho de
inventário – logo de um viés de conservação, como defende Heinich – não é esse o caso das
medidas de transmissão, relativa ao domínio da educação, e principalmente da promoção, da
valorização e da revitalização que sugerem intervenções de outra ordem, ligadas sobretudo à
produção cultural. A preservação e a proteção são mais objetivos do que medidas, sujeitos à
interpretação, e nos remetem à questão persistente: o que queremos preservar e proteger? A
memória de uma cultura musical, a experiência cotidiana da música, a atividade musical? A
música como conduta social ou como prática cultural (Laborde 2005)? A música como
mediador de identidade do grupo ou como objeto transcendente (Hennion 2007)?
Para pensar a “salvaguarda imaterial” de uma prática musical, a mobilização dos
atores envolvidos é fundamental. Para certas culturas musicais essa mobilização pode se
concentrar particularmente na importância da pesquisa e do inventário, no entanto, sendo a
música uma arte que para existir plenamente precisa ser tocada ao vivo, a patrimonialização
não pode se limitar à uma idéia de preservação da memória. Nesse sentido, é importante não
negligenciar a expertise própria ao domínio da produção cultural, ou particularmente da
produção musical, se entendemos a “salvaguarda de uma música” não apenas como a
conservação de seus rastros materiais, seu registro e sua documentação, mas também
conservar os gestos, as técnicas musicais, as sonoridades que a fazem existir. Isso significa
promover sua existência presente, sua prática viva, quiçá sua passagem ao palco. Apesar da
proliferação de festivais de músicas do mundo e a importância do mercado da World Music
na Europa, a suposta oposição entre uma “música patrimônio” e uma “música mercadoria”
parece trazer problemas frente aos critérios e objetivos de patrimonialização concebidos pela
UNESCO.
Nesse sentido, uma das tensões mais flagrantes no que diz respeito ao PCI não é
apenas aquela que opõe os mundos da pesquisa e da ação política, mas a que existe entre esses
dois mundos e aquele da produção cultural. Essa tensão constitutiva oporia fundamentalmente
o patrimônio imaterial e o mercado musical. Ora, como pudemos ver com a presente
etnografia, essa oposição não se sustenta. A patrimonialização acarreta uma transformação
das práticas musicais, e o “selo” UNESCO torna-se uma referência importante que valoriza
tais práticas, inclusive no circuito comercial das músicas do mundo.
De acordo com os princípios estabelecidos pela convenção do PCI, é preciso pensar no
processo de salvaguarda como uma ação integrada, em que a pesquisa e a documentação se
desenvolvem concomitantes à prática musical. Nesse sentido, a participação efetiva dos
músicos e dos membros da comunidade é fundamental em todas as atividades, não apenas em
apresentações em festas e concertos, como também na produção cultural e no inventário de
sua própria cultura. São os etnomusicólogos que muitas vezes assumem o papel de
mediadores nesse processo, uma vez que sua formação transdisciplinar pode os tornar aptos a
fazer a ponte entre os músicos e os membros da comunidade, os mundos da pesquisa, da ação
política e da produção cultural. Sem falar da própria criação musical, quando o
etnomusicólogo se engaja como músico, podendo se tornar um aprendiz e detentor de um
saber musical em vias de desaparecimento, como é o caso de Cássio Nobre com a viola de
machete, no samba de roda.
A partir da presente etnografia, procurei discutir a evidente contradição que está no
cerne do programa de patrimonialização da UNESCO – o fato de que o “selo” UNESCO
torna-se uma marca de valorização comercial de práticas musicais anteriormente
desconhecidas – para em seguida levantar duas questões: aquela do processo de
patrimonialização, por um lado, aquela da salvaguarda de uma cultura musical, por outro
lado. O primeiro ponto coloca em evidência o papel crucial dos atores envolvidos que, para
além de reconhecer uma prática musical “como parte integrante de seu patrimônio cultural”
como defende a convenção, participam efetivamente da criação de sua cultura como
patrimônio pela experiência ativa de uma pesquisa-ação que concilie inventário e prática
musical. O segundo ponto trata da expertise própria à produção musical para dar uma nova
vida e um novo sentido à ação musical. Na medida em que uma produção musical respeitosa e
informada pode criar mecanismos para que os músicos tradicionais se apropriem de uma
outro espaço, atribuindo uma outra função a sua prática musical, o processo de salvaguarda
não estaria em pleno curso de realização? Nessa perspectiva, o mecanismo de produção
musical não assumiria uma efetiva função patrimonial? Esse breve estudo nos convida a
repensar as noções de salvaguarda e de inventário se queremos conceber uma
patrimonialização que valorize o aspecto dinâmico e vivo das práticas musicais.

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