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ISSN: 1984-2406
Centro Universitário Padre Anchieta Jundiaí/SP Graduação e Pós-Graduação em Letras
EDIÇÃO 24
ANO 10
NÚMERO 3
NOVEMBRO 2017
Abstract: In this interdisciplinary article, we intend to study how the installation of tenements
in Imperial Brazil occurred, socially and historically. At the same time, it is our intention also
to show how this problem was recorded in the experimental novel by Aluísio Azevedo, O
Cortiço. Following the footsteps of Zola, the Brazilian writer, adopting an objective stance,
seeks to defend the idea that the medium is a determining factor of the behavior of its
characters, which results in a process of exclusion and misery of the less favored social classes
within a social system that preludes the coming of Capitalism.
1
Professor Titular da USP e Coordenador do Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas da UNISA.
São Paulo, Brasil, alcgomes@uol.com.br
2
Professor do departamento de História da PUCSP, professor do Mestrado Interdisciplinar em Ciências
Humanas da UNISA. São Paulo, Brasil, luizhistoria@yahoo.com.br
3
Professor do Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas UNISA. São Paulo, Brasil,
Intersecções – Edição 24 – Ano 10 – Número 3 – novembro/2017 – p.5
O nascimento do cortiço no Brasil
O artigo dois da Lei de Terras não deixa dúvidas de que nos anos finais do Império, a
posse da terra passa a ocupar um lugar de destaque nas preocupações e estratégias que o Estado
doravante adota para organizar um novo modelo de sociedade. Na busca dessa nova
conformação social o indivíduo que não consegue comprovar documentalmente que é o
proprietário do espaço ocupado seria, pois, considerado um fora da lei. Aqui possivelmente se
encontram algumas pistas da genealogia perdida dos cortiços4 e da pecha pejorativa que eles
ocupam no imaginário da população brasileira.
4
“Caixa cilíndrica de cortiça, na qual as abelhas se criam e fabricam o mel de cera” (Novo Dicionário
Aurélio da Língua Portuguesa). A apropriação do termo para as habitações coletivas pode, possivelmente, ser
associado ao que essas abelhas fazem em suas colmeias, ou seja, faz lembrar os minúsculos casulos em que as
abelhas-operárias trabalham.
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Na segunda metade do século XIX, o Rio de Janeiro convive com uma intensa e
permanente entrada de imigrantes em seu território. Paralelamente a essa novidade, ocorre
também um exponencial crescimento demográfico que salta de 235.000 habitantes em 1870
para 522.000 em 1890. A combinação desses dois fenômenos altera a paisagem urbana da
cidade carioca e gera a urgente necessidade de se buscar alternativas de moradias baratas para
acomodar a população de trabalhadores estrangeiros que chegavam para trabalhar na lavoura
do café, bem como para atender a demanda dos nativos que aumentava cada dia mais com a
participação dos escravos libertos.
A primeira alternativa encontrada para atender o pleito dos novos moradores foi a
construção das estalagens, um tipo de casas térreas agrupadas em fileiras com o objetivo de
melhor aproveitar o espaço da construção. Essa forma de moradia conseguiu sobrevida até
meados de 1850, aproveitando-se sempre da estrutura deixada pelas antigas freguesias centrais5.
Nessas localidades, os terrenos livres foram destinados para a construção de minúsculas casas
que buscavam atender à afluência cada vez maior de escravos libertos. Na esteira dessa
experiência surgem as casas-de-cômodos, antigas mansões coloniais dos endinheirados da
cidade, agora sublocadas. Apesar de possuir uma característica arquitetônica diferente, as casas-
de-cômodos tinham a mesma funcionalidade das freguesias centrais, ou seja, muitos de seus
espaços – banheiro, tanque, pátio e corredor – eram de uso coletivo, o que empresta a essas
moradias o indistinto nome de “cortiços”.
A inexistência de banheiros individuais nos cortiços e casas-de-cômodos, que os
possuíam apenas na estrutura coletiva, agravam os problemas de saúde de seus moradores e
transforma esses locais em focos de epidemia. A fim de combater o perigo que essas moradias
representam, em 1870, o governo imperial proíbe os cortiços nas áreas urbanas. A proibição,
contudo, não surtiu efeito, principalmente por contrariar os interesses de muitos membros da
família imperial que tinham nesses estabelecimentos uma fonte de lucro.
É nesta paisagem em transformação que Aluísio de Azevedo, escreve o romance O
Cortiço, em 1890. João Romão, personagem principal da obra que transita ora na legalidade,
ora na ilegalidade é resultado direto das contradições desse período. Assim, em busca de
vantagens, Romão edifica seu ganha-pão e utiliza-se de todos os expedientes para alcançar um
lugar de destaque na sociedade.
5
Forma de organização que predominou no Brasil colônia e império até ser substituída pelas Câmaras
Municipais em 1828. Designa um espaço administrado por um Pároco que detinha o controle de uma base
territorial e formava um distrito eclesiástico onde o povo definia seu espaço de moradia. Daí a expressão: “eu
pertenço à freguesia tal”.
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Temos aqui o embrião das favelas contemporâneas, e foi na esteira dessas
transformações que, em 1897, no morro da Providência, surgiu a primeira favela tal qual a
concebemos na atualidade: uma habitação de baixo custo que alcançou êxito imediato junto à
população das grandes cidades. Talvez por isso, na década de 1920, esse tipo de moradia fez-
se realidade inarredável na paisagem urbana dos bairros da Zona Sul do Rio de Janeiro. Foi
uma alternativa que se impôs como modo de viver para os pobres e, por isso mesmo,
rapidamente responsabilizada pela deterioração da região e de seus costumes. A realidade não
guarda, pois, nenhuma similitude com a ficção, ou seja, enquanto João Romão deu-se bem,
como veremos adiante na análise do romance, aumentando o número das casas, no mundo real
a questão da saúde pública é evocada, para que se promova a reurbanização das cidades e assim
destruir os insalubres cortiços focos de epidemias e doenças que colocava em risco a vida da
“população de bem”. Os motivos desse temor estão também anunciados na obra de Aloísio de
Azevedo:
[...] todos os cortiços deveriam ter um portão de ferro, que se fecharia ao toque
de recolher; a partir dessa hora, um dos habitantes passaria a servir de porteiro,
ficando com a obrigação de abrir a porta para os outros moradores e de
comunicar as eventuais irregularidades ao inspetor de quarteirão.
(CHALHOUB, 1996: 31)
A demonstração de boa vontade não convenceu o poder público, que se via cada vez
mais cobrado por urbanistas e sanitaristas, que exigiam maior rigidez nas ações contra os
moradores dos cortiços. Com o apoio da elite da cidade carioca, o governo aumenta as restrições
e elenca as péssimas condições físicas dos cortiços: insalubridade, precária distribuição dos
espaços internos, falta de ventilação e iluminação natural. Assim, após expor os perigos que a
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falta de planejamento dessas moradias poderiam causar à saúde da população, a presença dessas
habitações coletivas na região central do Rio de Janeiro foi progressivamente desaparecendo.
Aquelas que resistiam eram vigiadas e perseguidas pelos serviços de higiene, que impunham a
seus proprietários a obrigação de realizar melhorias de caráter sanitário para continuar a existir
como moradia coletiva (LOBO, 1989: 91-92). Ocorre que o órgão municipal de licenciamento
de construções proibia a realização dessas obras inviabilizando, assim, a sua permanência no
centro da cidade.
Na esteira desses acontecimentos, veio a primeira grande intervenção do poder público
sobre o espaço urbano carioca que resultou em uma ação conjunta dos governos municipal e
federal visando a melhorar a saúde sanitária e à circulação da população naquela cidade. O
idealizador dessas reformas foi o Prefeito Pereira Passos (1902-1906) que, após temporada de
estudos em Paris, retorna ao Brasil e busca aplicar nos trópicos o modelo de organização social
que havia presenciado na Europa.
Sob sua batuta, os casarões que serviam de sede aos cortiços foram demolidos e as ruas
remodeladas para atender às novas necessidades de circulação. O alargamento das ruas permitiu
o arejamento, ventilação e melhor iluminação do centro e ainda a adoção de uma arquitetura de
padrão superior.
Foi por essa época que muitas favelas surgiram nas bordas da cidade, pois com a
destruição dos cortiços, parte das pessoas foi para a periferia da cidade e a outra parte buscou
refúgio no morro formando, assim, as primeiras favelas brasileiras. Efeito colateral resultante
de uma política intransigente adotada pelo poder público que, com suas medidas unilaterais,
conseguiu apenas transferir os problemas de local, uma vez que as reformas não foram capazes
de trazer alternativas para que a população pobre pudesse ter uma vida diferente da que levava.
Permanecem, pois, responsabilizados pelo atraso social da nação e por conta disso empurrados
indefinidamente para as bordas da sociedade.
Não sendo superior aos outros homens e seu meio, o heroi é um de nós:
reagimos a um senso de sua humanidade comum, e pedimos ao poeta os
mesmos cânones de probabilidade que notamos em nossa experiência comum.
Isso nos dá o herói do modo imitativo baixo, da maior parte da comédia e da
ficção realística (grifos do autor) (FRYE, 1974: 40).
Essa aproximação do heroi dos tempos modernos da massa, da qual se distingue por
uma prerrogativa atávica de sobrevivência, faz que nosso olhar se dirija para baixo, para o
mundo dos deserdados da sorte. Se antes do Naturalismo, a escolha da escória da humanidade
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como personagens e de um cortiço como o espaço a ser representado seria impensável, durante
a vigência do século XIX6, esta escolha se configura como essencial na literatura, a ponto de
criar esse tipo de “tragédia baixa” da modernidade. Mas, ao reunir pessoas de um mesmo e
baixo estrato social e que trabalham em atividades tão distintas – pedreiros, pequenos
comerciantes, lavadeiras, padeiros, prostitutas, etc. –, Aluísio Azevedo procura fornecer ao
leitor a fotografia de um mundo em ebulição, ainda mais depois da passagem da Monarquia
para a República, que sofre transformações profundas. Verifica-se nele, inclusive, o esboço de
uma insipiente e paupérrima Revolução Industrial, numa referência a fábricas de massas e de
velas e à máquina a vapor e do surgimento de um esboço de capitalismo, que se desenha na
expansão do comércio e na consequente oferta diversificada de mercadoria:
Em vista do fato de O Cortiço documentar tão bem uma realidade social em ebulição,
refletindo as profundas transformações da época e de uma forma quase científica em sua
diversidade de situações, seria bom refletir agora sobre esse caso híbrido de ficção e ciência,
que deu ensejo ao surgimento do chamado “romance experimental” de que trataremos a seguir.
6
Durante o Romantismo há a presença dos deserdados da sorte, mas sempre vistos com uma aura de
idealidade, como acontece, por exemplo, nos romances de um Victor Hugo, como Os Miseráveis e O Corcunda
de Notre-Dame.
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O Cortiço, um romance experimental
Mas a idéia de uma literatura determinada pela ciência causou surpresa, por
não ter sido bem explicitada e compreendida.
Farei aqui tão-somente um trabalho de adaptação, pois o método
experimental foi estabelecido com uma força e uma clareza maravilhosas por
Claude Bernard, em sua Introdução ao Estudo da Medicina experimental. Este
livro, de um cientista cuja autoridade é decisiva, vai servir-me de base sólida.
[...] No mais das vezes, bastará substituir a palavra “médico” pela palavra
“romancista” (os grifos são nossos) (ZOLA, 1982: 25).
Claude Bernard demonstra que este método aplicado ao estudo dos corpos
brutos, na Química e na Física, deva ser igualmente aplicado ao estudo dos
corpos vivos, em Fisiologia e Medicina. Vou tentar provar por minha vez que,
se o método experimental conduz ao conhecimento da vida física deve
conduzir também ao conhecimento da vida passional e intelectual (1982: 26).
Durante dois anos o cortiço prosperou de dia para dia, ganhando forças,
socando-se de gente. E ao lado o Miranda assustava-se, inquieto com aquela
exuberância brutal de vida, aterrado defronte daquela floresta implacável que
lhe crescia junto da casa, por debaixo das janelas, e cujas raízes, piores e mais
grossas do que serpentes, minavam por toda a parte, ameaçando rebentar o
chão em torno dela, rachando o solo e abalando tudo (AZEVEDO, 1984: 21-
22).
[...]
Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas
a sua infinidade de portas e janelas alinhadas.
[...]
Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração
tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara,
incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco
palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre
as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do
pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do casco;
os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pêlo, ao contrário
metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as
barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão (AZEVEDO, 1984: 28-
29).
É bem significativo que o autor humanize o cortiço por meio da figura da personificação
– “o cortiço acordava” e, em contrapartida, mostra os seres humanos de uma forma impessoal
– “aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas”, o que provoca não só a indistinção entre
homens e mulheres, como também os faz indissociavelmente ligados ao espaço físico. Com
isso, quer mostrar o meio (identificado no primeiro fragmento com a selva primordial, em que
se dá o surgimento genesial e brutal da vida), que determinará inexoravelmente o
comportamento de seus habitantes, ou seja, o homem passará a ser entendido apenas como
mero epifenômeno do espaço, a sua extensão, o que ficará bem patente mais adiante quando se
Nota-se aí o embate entre razão e instinto, este dominando aquele – Jerônimo sente, mas
não pode “conceber”, embriagando-se e mergulhando nos “limosos pântanos sombrios”. Tais
pauis como que representam o mundo baixo dos instintos, o mundo do inconsciente, ativado
pela atração puramente sensorial, em que ele mergulha, ativando a besta humana ancestral.
Esse embate revela ou é indício de outro mais amplo, ou seja, aquele que se dá entre a
civilização e a natureza e que nos permite entender O cortiço como um livro de feições também
darwinianas, porquanto se vêem em seus protagonistas, ao mesmo tempo, um processo de
adequação, de superação e de submissão ao meio, na medida em que os mais fortes adequando-
se com mais conveniência ao meio, superam-no e, por conseguinte, submetem os mais fracos.
Assim, podemos organizar os personagens em três grupos distintos:
Referências
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1987.
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1982.
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Paulo: Companhia das Letras, 1987.
GUÉRIOS, Rosário Farâni Mansur. Dicionário etimológico de nomes e sobrenomes. 2. ed., São
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SILVA, Ligia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. São Paulo: Ed.
Unicamp, 1996.