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A BRUTALIDADE DE UM PACIFISTA: AS DIMENSÕES DA VIOLÊNCIA NO

POEMA “UIVO”

SILVA, Anielson Ribeiro da1

RESUMO

Este trabalho propõe uma investigação sobre o fenômeno da violência e sua implicação no âmbito da literatura,
visando desmistificar a noção existente de violência, incutida pelos teóricos liberais, no senso-comum e, até
mesmo, no meio acadêmico. Para isso, a pesquisa esboça uma análise sociológica do poema “Uivo”, de Allen
Ginsberg. Deste modo, o artigo busca aprofundar os aspectos teóricos que elucidam como a violência não se
limita somente ao sentido vulgar de agressão física, mas que tem, pelo menos, duas dimensões: tanto pode
representar um desejo de alteração completa do fluxo socialmente naturalizado das coisas quanto pode-se
manifestar como a contenção desse desejo, do policiamento e da manutenção do status quo. Assim, no interior
do poema, percebe-se como a própria produção literária está permeada pelas relações sociais da sociedade
capitalista americana e do contexto do pós-guerra, mesmo que no sentido de ir contra essa lógica. Para
compreender essas questões, podem-se destacar alguns apontamentos do método dialético de Hegel (2005), os
conceitos de capitalismo como religião e violência divina em Walter Benjamin (2011; 2013) e as contribuições
de Slavoj Zizek (2014) sobre violência subjetiva e violência objetiva. Nesse sentido, a poesia de Uivo está
tomada por essa violência da alteração, a desvelar os limites da linguagem impostos pela literatura do
establishment, e, assim, Ginsberg dialeticamente aproxima significante e significado, ficção e realidade,
literatura e história, exigindo com sua violência poético-subjetiva um novo modo de ser e de escrever, ao mesmo
tempo.

Palavras-chave: Literatura. Poesia. Violência. Capitalismo.

INTRODUÇÃO (OU DIAGNÓSTICO)

O título escolhido para este trabalho não é meramente uma provocação, mas o
resultado de uma investigação teórica sobre o conceito de violência. Parece um tanto quanto
incoerente dizer que Allen Ginsberg, um dos fundadores da beat generation2, “papa” dos
hippies, zen-budista e famoso por seus discursos pacifistas contra a guerra no Vietnã, possa
ter sido um escritor que experenciou a violência em sua linguagem poética. Ainda mais: é um
risco afirmar que há violência na linguagem, que segundo o senso comum é o meio par
excellence da não-agressão e do diálogo. Antes, é preciso desmitificar e estabelecer
consistência ao sentido geral do fenômeno da violência.
Todo fenômeno é uma totalidade de determinações em movimento que o levam a
ser arrancado para fora e aparecer. Para compreender o fenômeno, é preciso penetrá-lo através
do conhecimento científico até o seu conceito. Para Hegel (2005), fora do conceito, o que há é
extensão e profundidade vazias, idênticas à superfície imediata. O conhecimento científico
demanda uma renúncia da superficialidade desse fenômeno, ir a fundo em sua investigação
1
Graduando do curso de Língua Portuguesa e suas Literaturas pela UPE – Campus Petrolina. E-mail:
anielson.ribeiro777@gmail.com
2
Movimento literário americano surgido nos anos 50.
estrutural e, por fim, retornar ao objeto com um algo a mais, que é o conceito. É desta forma
que é possível entender até que ponto a aparência é determinada por sua essência. O conceito
de violência, atualmente, está estritamente dominado pela aparência no discurso liberal, que
se reproduz no senso comum, em que cabe somente uma noção da violência como
manifestação de agressão física, vandalismo ou terror sanguinário. Nesse sentido, o sujeito
violento é aquele que está fora de seu comportamento usual, que rompe com alguma espécie
de contrato social. O que não é exatamente falso, mas é unilateral e mantém a ideia sempre
em seu começo, não avança no aprofundamento em direção à sua substância. Ao deter o
fenômeno num fosso ideológico limitado, incutindo que violência e bestialidade são
sinônimos perfeitos, mantém-se o conhecimento do objeto apenas no senso comum, que é
intuição, não ciência; e, aí sim, a aparência de uma ideia que circula sem conceito será sempre
usada como arma para domesticação dos dominados:

O bem-conhecido em geral, justamente por ser bem-conhecido, não é


reconhecido. É o modo mais habitual de enganar-se e de enganar os outros:
pressupor no conhecimento algo como já conhecido e deixá-lo tal como está.
Um saber desses, com todo o vaivém de palavras, não sai do lugar – sem
saber como isso lhe sucede. Sujeito e objeto etc.; Deus, natureza, o
entendimento, a sensibilidade etc. são sem exame postos no fundamento,
como algo bem-conhecido e válido, constituindo pontos fixos tanto para a
partida quanto para o retorno. O movimento se efetua entre eles, que ficam
imóveis; vai e vem, só lhes tocando a superfície. Assim o apreender e o
examinar consistem em verificar se cada um encontra em sua representação
o que dele se diz, se isso assim lhe parece, se é bem-conhecido ou não
(ibidem, p. 43).

Para uma melhor compreensão das formas de violência, é interessante


verificarmos as colocações de Slavoj Zizek. Para o filósofo e psicanalista esloveno, há duas
principais manifestações de violência: uma subjetiva e outra objetiva. A violência subjetiva é
aquela manifestação que está na superfície e é diretamente visível, exercida por um agente
claramente reconhecível, ou seja, emana de um sujeito determinado, como em revoltas
populares, atos terroristas, homicídios, agressões físicas e morais, depredação de propriedade
privada ou pública etc. Enquanto que a violência objetiva, i. e., aquela do objeto-sistema, está
anonimamente envolta em um simulacro ideológico aparentemente “abstrato”, mas é, na
verdade, a expressão das relações autopropulsivas que determinam as estruturas sociais da
realidade: a concentração de riqueza, as consequentes pobreza e marginalização de camadas
sociais inteiras, além das sutis manifestações de racismo ou machismo estruturais etc.
(ZIZEK, 2014).
Para Walter Benjamin (2011), uma causa só se transforma em violência quando
interfere em relações éticas, ou seja, quando intervém no direito e na justiça, o que implica em
questões do Estado. Assim, para se combater a violência de uma manifestação popular, p. ex.,
o Estado utiliza a sua violência institucionalizada, retroativa e protecionista (polícia, leis etc.).
Entretanto, se dermos um passo para trás e verificarmos o porquê da violência da primeira,
poderemos constatar que muito provavelmente é gerada por algum problema condicionado
pelo próprio Estado: seja a negligência do poder público, a retirada de direitos etc. Portanto, a
violência exercida pelo manifestante é retroativa antes mesmo da violência estatal sê-la, i. e.,
a manifestação é sintoma de uma enfermidade societária. Mas a violência do Estado, seja em
forma de má distribuição ou de encarceramento, para quem vê de fora, será tida como
anticorpos do sistema imunológico e não o próprio corpo estranho causador da inflamação. É
como numa febre: pensamos necessário combatê-la, quando, na verdade, ela é apenas um
sintoma, um ato de resistência do organismo, não a doença. E apesar de, no plano do aparente,
essas diferenças se apresentarem como independentes, i. e., apesar da violência do Estado
combater a violência do manifestante, em sua essência, uma não existe sem a outra, e se
dissolvem em uma unidade conflitiva. Para elucidar isso, basta recorrer concisamente ao
método dialético:

O jogo das duas forças consiste, pois, nesse ser-determinado oposto de


ambas, em seu ser-para-um-outro nessa determinação, e na absoluta troca
imediata das determinações [...] A solicitante, por exemplo, é posta como
meio universal; e em contraste, a solicitada como força recalcada. Mas a
primeira só é meio universal porque a segunda é força recalcada; ou seja,
essa seria antes a solicitante em relação à outra, pois faz que ela se torne o
meio. Aquela só tem sua determinidade mediante a outra (HEGEL, 2005, p.
113).

Nesse caso, a violência da manifestação é aparentemente solicitante e a


intervenção dos aparelhos do Estado, a força solicitada para sua contenção; mas, na realidade,
são dois lados de uma mesma moeda: o Estado capitalista é que cria as condições para que a
primeira seja antes solicitada, e só então aciona os aparelhos que a contenham. Desta forma,
se a violência é um problema social, a força solicitada não a resolve, pois não vai ao cerne da
questão, já que, para isso, seria necessário substituir a própria dinâmica do Estado que a
regula – a renovação do organismo após a febre. Assim, percebe-se que a violência não é
somente uma demonstração de força física ou um insulto direto a alguém, mas tem, pelo
menos, duas facetas: a violência subjetiva, que é uma perversão, uma ruptura e um desejo de
subversão que se lança na direção do fluxo “natural” das coisas, e a violência objetiva, que
opera violentamente a manter a legitimidade do sistema contra qualquer perturbação. A partir
disso, discutiremos como a violência é experenciada no poema em questão.

1 Ginsberg entre os estudiosos da guerra

O poema “Uivo”, escrito em 1955, foi dedicado ao escritor neodadaísta Carl


Solomon, amigo de Ginsberg. O contexto histórico foi o então recente fim da Segunda Guerra
Mundial e o início dos conflitos da Guerra Fria, bipolarizada entre o macarthismo reacionário,
burguês e anticomunista e a ortodoxia burocrata estalinista. Por isso, os versos de “Uivo”
carregam essas nódoas de seu tempo, a angústia existencial, a busca pelo real sentido de
liberdade. Afinal, toda literatura é ideológica e mantém certa relação com seu tempo histórico;
é histórica porque tem sempre como referencial os padrões de seu contexto específico. O que
não significa necessariamente subserviência às regras de seu tempo. Por sua vez, a ideologia
na literatura emerge por produzir sobre o leitor, enquanto ser social, efeitos de percepção e de
posicionamento sobre o mundo, independentemente de o texto ser, p. ex., realista, distópico
ou um conto de fadas. A leitura fará com que o sujeito celebre, seja indiferente ou se
incomode com a sociedade em que vive, tendo como referencial o texto lido. Nesse sentido, a
poesia moderna de Ginsbeg exala um sentimento ambíguo entre a aproximação participativa e
uma repulsa, que é a manifestação de um desejo de mudança em relação à realidade. De
qualquer forma, a literatura é formada por um conjunto de discursos e signos ideológicos que
remetem a algo exterior ao texto, com intencionalidades latentes ou visíveis, seja no momento
da escrita ou da leitura. Desse modo, a literatura, ao participar da história, também produz
história.
Ginsberg era judeu, zen-budista e pacifista, mas, sobretudo, foi um fenômeno
símbolo de rebelião estética e comportamental que influenciou toda uma geração de
descrentes e órfãos do sonho americano. Portanto, o poeta beat praticou um tipo de violência
subjetiva, pois incitava a quebra do ciclo pacificador das normas estabelecidas. Sua literatura
refletia muito bem os anseios e a realidade crua de sua época, através uma escrita alucinada
que, com frases aparentemente desconexas, impunha um desejo de liberdade e de descobertas
sem limites no âmbito da significação. Assim, a poesia de Ginsberg é o extrato quimérico da
própria realidade: um surrealismo sem sono, a impecável transcrição do american nightmare.
Para o establishment da época, entretanto, se tratava apenas do produto de uma mente
perturbada. Mas, afinal, quem eram realmente os loucos: os que estavam nos manicômios ou
os que estavam nas trincheiras da guerra?
Para exemplificar como a arte mantém uma relação com seu contexto histórico, há
uma anedota em que, durante a Segunda Guerra, um oficial alemão visita o estúdio de
Picasso, em Paris, e fica horrorizado com o vanguardismo de “Guernica”, e pergunta: “Foi
você quem fez isso?”. Então, tranquilamente, Picasso responde: “Não, isso foi feito por
vocês” (ZIZEK, 2014, p. 23). Essa poderia muito bem ser a resposta de Ginsberg aos seus
críticos, contudo, não foram os nazistas que afligiram mais uma vez a um judeu, mas o
próprio Estado americano que escreveu com sangue essa travessia pelo inferno chamada
“Uivo”, que denuncia seu conservadorismo sistêmico, sua homofobia e seu racismo
estruturais. O que se percebe nos versos iniciais:

Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de


fome, histéricos, nus,
arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma
dose violenta de qualquer coisa,
[...] que pobres, esfarrapados e olheiras fundas, viajaram fumando sentados
na sobrenatural escuridão dos miseráveis apartamentos sem água quente,
flutuando sobre os tetos da cidade contemplando jazz,
[...] que passaram por universidades com olhos frios e radiantes alucinando
Arkansas e tragédias à luz de Blake entre os estudiosos da guerra
que foram expulsos da universidade por serem loucos & publicarem odes
obscenas nas janelas do crânio
que se refugiaram em quartos de paredes de pintura descascada em roupa de
baixo queimando seu dinheiro em cestos de papel, escutando o Terror
através da parede (GINSBERG, 2006, p. 25).

Nesse trecho, pode-se constatar que a linguagem está infectada pela violência, não
só no sentido de descrevê-la, mas no próprio sentido de ser, com suas indigestas combinações
que se lançam com cólera contra as limitações da língua. Além disso, as descrições dos
ambientes de pobreza e sujeira têm um papel importante para a sua poética, não de forma a
celebrá-las como pretendia o futurismo fascista de Marinetti 3 quanto à guerra, mas para
impactar ferozmente ao denunciá-las como armas de uma guerra histórica oculta no âmago da
própria América. Esse choque se dá porque, enquanto esperamos da poesia somente o doce
aroma das flores, Ginsberg nos faz sentir o odor pútrido dos apartamentos pobres, das ruas
sujas e do “Terror através da parede”, e isso nos desestabiliza, evoca um estranhamento em
relação à ordem:

A sujeira de qualquer tipo nos parece inconciliável com a civilização [...]


Mas, enquanto não podemos esperar que predomine a limpeza na natureza, a
ordem, pelo contrário, nós copiamos dela [...] A ordem é uma espécie de
compulsão de repetição que, uma vez estabelecida, resolve quando, onde e
3
BENJAMIN, 1985, p. 195.
como algo deve ser feito, de modo a evitar oscilações e hesitações em cada
caso idêntico (FREUD, 2011, p. 38).

Deste modo, se a limpeza é civilizatória (não-natural), enquanto a sujeira é


bárbara, e copiamos aquela através da ordem, tudo o que rompe com a rotina da limpeza
aparece como violência e desagrado aos nossos olhos. Assim, a limpeza em geral é a
sublimação do instinto de parcimônia direcionada para a ordem, mas a sujeira neste poema é
a sublimação direcionada contra a ordem. Jacques Lacan (1999) complementa mostrando que
a violência é a ruptura com o objeto pacificador da dispersão pulsional, que seria a linguagem
enquanto um âmbito de não-agressão, ou seja, pertencente ao Simbólico. Assim, a linguagem
se transforma em violência quando extravasa o plano do Simbólico por excesso de pulsão e de
gozo e, desta forma, retorna para o Real. A poesia do “Uivo”, essa “ode obscena nas janelas
do crânio”, é o melhor exemplo da violência da significação, pois a tensão que ela exige eleva
os significados ao infinito, pressiona as palavras para fazer implodir os microcosmos do
cotidiano em sensações ilimitadas que nos ferem com ódio, loucura, miséria e a sujeira da
imoralidade. Entretanto, a insurreição deste poema deve ser entendida não somente como uma
revolta contra a pobreza dos “apartamentos sem água quente”, ou seja, não apenas como
exterior ao texto, mas também como uma rebeldia interna contra todas essas relações de poder
que moldam a literatura enquanto produto social da cultura. Assim, essas instâncias se
determinam mutuamente e a poesia, aqui, fricciona tudo isso em uma dialética da destruição.

2 Um molotov contra Moloch: o capitalismo como religião

A segunda parte de “Uivo” faz referência a uma divindade pagã (amalequita) que
é citada na Bíblia, para a qual eram ofertados sacrifícios humanos, principalmente crianças,
conhecida como Moloch. Segundo Benjamin (2013), o capitalismo não é só condicionado
pelas relações com a religião, como Max Weber afirma quanto ao protestantismo, antes, o
próprio sistema se configura como uma estrutura ético-religiosa. A alusão ao deus-devorador,
portanto, pode ser entendida como uma crítica à civilização capitalista da modernidade.
Ginsberg desenvolve uma alegoria poético-mística para a personificação desse deus do
capitalismo, em evidência nos trechos:

Que esfinge de cimento e alumínio arrombou seus crânios e devorou seus


cérebros e imaginação? Moloch!
[...] Moloch cuja mente é pura maquinaria! Moloch cujo sangue é dinheiro
corrente! Moloch cujos dedos são dez exércitos! Moloch cujo peito é um
dínamo canibal (GINSBERG, 2006, p. 34).

A característica essencial das grandes metrópoles urbanas é representada aqui pela


imponência dessa “esfinge de cimento e alumínio” que, com sua dinâmica, devora nosso
tempo e nossas potencialidades sem, antes, nos fazer a charada, pois é ela mesma a charada e
a resposta. Para não ser desvelada e preservar sua existência, porque a investigação do seu
funcionamento é o primeiro passo para sua destruição, a esfinge consome nossas imaginações,
mas não nos deixa sem nada (pois o nada é sempre desejo de ser), pelo contrário, ao sugar
nossa força das horas de trabalho nas fábricas, nos escritórios etc., em lugar dessa energia
imediata, o que nos alimenta é uma espécie de excremento ideológico do que Moloch
devorou: é assim que, no capitalismo, os explorados se relacionam com a reprodução do
mundo que produziram, de uma maneira precária. Aos versos seguintes, segue uma
personificação ainda mais evidente de Moloch, “cuja mente é pura maquinaria” e “seu sangue
é dinheiro corrente”: é o signo da grande indústria e de seu progresso desenfreado, que
aniquila ou se apropria de todas as relações primitivas, inclusive do próprio Deus, em nome
do capital. Nos trechos “cujos dedos são dez exércitos” e o “peito é um dínamo canibal”,
pode-se compreender a corporificação simbólica da guerra e do imperialismo em Moloch,
pois o deus-devorador necessita de holocaustos constantes em seu nome para manter o seu
coração bombeando o dinheiro que flui em suas veias.
Pode-se sentir toda a verve incendiária da rebeldia nas linhas deste poema, o que
descortina a face monstruosa de Moloch e que nos leva à percepção do caos da ordem. Quem
seria o maior representante da religião do capitalismo, senão os Estados Unidos da América?
Moloch representa a dimensão espectral da ideologia burguesa e seu receptáculo de
“incorporação” é o imperialista Estado americano. Nesse sentido, fica claro porque o texto se
refere ao deus pagão como um lugar:

Moloch em quem permaneço solitário! Moloch em quem sonho com anjos!


Louco em Moloch! Chupador de caralhos em Moloch! Mal-amado e sem
homens em Moloch!
Moloch que penetrou cedo na minha alma! Moloch em quem sou uma
consciência sem corpo!
[...]
Eles quebraram suas costas levantando Moloch ao Céu (GINSBERG, 2006,
p. 35).
Deste modo, o eu lírico estabelece uma relação de pertencimento tempo-espacial a
Moloch. Mas o capitalismo em si é um não-lugar, que é aparentemente abstrato, mas é real na
medida em que conduz a produção e a reprodução da vida social dos indivíduos: penetra
nossas almas. O capitalismo como religião é essa fantasmagoria circulante e que se solidifica
através dos poderes de dominação do Estado, é o sistema adquirindo a ressignificação mística
da miragem ideológica em que habitamos, é toda a estrutura político-econômico-teológica que
determina nossas percepções individuais sobre a realidade social. E é no trecho “Moloch em
quem sou uma consciência sem corpo”, que se pode entender melhor a solidificação dessa
estrutura através do olhar pessimista do autor, pois mesmo que se compreenda a realidade,
enquanto as relações de produção que determinam as inter-relações sociais continuarem sendo
capitalistas, os corpos continuarão “levantando Moloch ao Céu”, enquanto sentem o peso da
miséria, da solidão e do desamor em suas costas. É fundamental, portanto, evidenciar que há
algo, na poética ginsbergiana, de valioso e proponente de uma reestruturação radical que não
pode ser largado às idealizações pacifistas ou místicas.
Se o capitalismo é uma religião, esta existe sem dogmas nem teologia, pois
consegue cooptar, a partir da produção, todas as relações sociais para manutenção do seu
funcionamento, incluindo a maioria das manifestações “antiburguesas”, como o próprio
hedonismo da liberação sexual dos anos 60; a transformação das lutas feministas e
antirracistas em produtos para cabelo, perfumes, estampas em roupas de grife etc. O único
dogma do capitalismo é o próprio sistema capitalista, que é também um mito, em que não há
uma transcendência expiatória-salvadora, mas sim um aprofundamento da culpa e do
desespero inerentes. Assim, o Estado burguês se apresenta como seu fervoroso sacerdote. Ele
repreende qualquer tensão no fluxo natural das coisas através de sua violência objetiva
institucionalizada e absorve essa perturbação. A violência objetiva é uma violência invisível,
sustenta a normalidade, que, porventura, é o referencial que faz com que percebamos algo
como subjetivamente violento. Essa violência objetiva é configurada para barrar qualquer
tentativa humana de agir histórica e livremente, é um disciplinamento imperceptivelmente
inquisidor contra os hereges da religião de Moloch.

3 O dilaceramento do Eu: visões de Rockland

A terceira e última parte do poema Uivo se dirige diretamente a Carl Solomon.


Ginsberg o conheceu em seu internamento no Instituto Psiquiátrico de Columbia. Logo
depois, Solomon fora transferido para o Pilgrim States. A troca pelo nome do hospital
psiquiátrico de Rockland, inúmeras vezes evocado como um refrão, tem apenas intenção
poética: Rockland significa “terra da rocha”, uma referência à aridez desértica experimentada
no lancinante uivo do poeta, como se enfrentasse junto ao seu amigo os quarenta dias no
deserto e já estivessem em direção ao Gólgota da crucificação. Esse companheirismo é
expresso nos versos:

Carl Solomon! Eu estou com você em Rockland


onde você está mais louco do que eu
Eu estou com você em Rockland
onde você deve sentir-se muito estranho
Eu estou com você em Rockland
onde você imita a sombra de minha mãe
[...]
Eu estou com você em Rockland
onde você martela o piano catatônico a alma é inocente e imortal e nunca
poderia morrer impiamente num hospício armado,
Eu estou com você em Rockland
onde com mais cinquenta eletrochoques sua alma nunca mais retornará a seu
corpo de volta da sua peregrinação rumo a uma cruz no vazio
Eu estou com você em Rockland
onde você acusa seus médicos de loucura e prepara a revolução socialista
hebraica contra o Gólgota nacional e fascista
Eu estou com você em Rockland
onde você rasga os céus de Long Island e faz surgir seu Jesus vivo e humano
do seu túmulo sobre-humano (GINSBERG, 2006, p. 36-37).

Cada verso aqui é ferino, é a violência se manifestando em seu misterioso estágio


divino devastador. E a violência divina é um gesto destrutivo de caráter revolucionário. A
aniquilação instituída por esta não é vazia, não é um fim em si mesma; é, contudo, a criação
de uma abertura para a possibilidade de uma mudança efetiva e da fundação reivindicativa de
uma justiça pelos sofridos séculos de violência sob o jugo das classes dominantes
(BENJAMIN, 2011). Para compreender isso, é necessário notar que o eu-lírico não evoca o
mote “Eu estou com você em Rockland” apenas como singela proposição de companheirismo,
mas como forma de justiça: não é só o eu lírico que se sente com Carl Solomon onde a alma
“nunca poderia morrer impiamente”, mas principalmente o leitor. Ginsberg utiliza a catarse
como forma de violência e induz ao estranhamento que revela a estrutura caótica da realidade.
Para fazer o leitor “despertar em Moloch” e romper com as barreiras psicológicas da ideologia
burguesa, o eu lírico o leva até o calvário de Solomon, porquanto é preciso não só denunciar,
mas, sobretudo, fazê-lo sentir os eletrochoques, a fome, o desespero, a lobotomia e o próprio
sofrimento. Assim, o leitor atravessa uma reinterpretação radical da cena da transfiguração de
Cristo para se tornar, primeiro, eu lírico ao se integrar ao texto através do mote “eu estou com
você em Rockland” e, ao compartilhar esse fardo, se tornar Solomon e tomar o padecimento
como seu. É através dessa violência que a poesia de Ginsberg arranja um momento de
abertura no Eu, para ascender da própria experiência tranquila e ser-um-Outro-em-si, pois

[...] não é a vida que se atemoriza ante a morte e se conserva intacta da


devastação, mas é a vida que suporta a morte e nela se conserva, que é a vida
do espírito. O espírito só alcança sua verdade na medida em que se encontra
a si mesmo no dilaceramento absoluto (HEGEL, 2005, p. 44).

Em vista disso, é pelo olhar do leitor sobre o Outro que Ginsberg tenta incitar a
violência, não por vias de uma abstrata solidariedade humana, mas através da desconfiança a
respeito da vitória dos dominadores: um olhar que é o vir-a-ser da solidariedade com os
dominados. Como entendido no verso “sua alma nunca mais retornará a seu corpo de volta da
sua peregrinação rumo a uma cruz no vazio”, o poema é o testemunho da crucificação de um
Jesus vivo e americano, que é imagem e semelhança de todos os pobres, abandonados e
massacrados pela América, dos que morreram em manicômios usados, muitas vezes, como
forma de castigo para aqueles que ousaram pensar além dessa “simples vida”, como Allen
Ginsberg4 e Carl Solomon, que “imita a sombra de minha mãe” 5. A violência divina é a
manifestação do excesso, a pulsão desse “túmulo sobre-humano” transpondo a regularidade
da lei da religião do capitalismo, aquilo que reside na potência de romper com o direito e
subverter a ordem, sendo expresso no verso “onde você acusa seus médicos de loucura”. A
ruptura com esse modo limitado de vida através da violência divina é o que o eu-lírico evoca
em “revolução socialista hebraica”: profanar o profano, retomar a vida das garras de Moloch.
“Uivo” é uma oração em que ecoa, por detrás de cada verso, as lamúrias do “Eli,
Eli, lama sabachthani”6. Mas, se o Cristo bíblico sofreu sua morte no lugar de todos os
homens para perdoá-los e, assim, cortar o laço que os prendiam à antiga lei, o crucificado de
“Uivo” sofre não para salvá-los da culpa, mas para açoitá-los com ela, para dissipar o efeito
anestésico que age sob os oprimidos e fazê-los sentir novamente a dor de sua própria morte,
para que cada um se sinta responsável pela própria salvação e, ao mesmo tempo, pela do
outro7 e, deste modo, abrir a possibilidade de um Acontecimento que romperá com a
4
Segundo Willer (2009), o poeta beat se internou por decorrência dos escândalos envolvendo seu
comportamento e sua literatura.
5
Naomi Ginsberg, judia e comunista, também internada por distúrbios mentais. Pode-se notar, nesta
passagem, um sentimento que remete à relação edipiana de Allen com sua mãe sendo transferido para
Solomon.
6
“Senhor, Senhor, por que me abandonaste?” (Mateus 27:46).
7
“Assim, sou responsável por mim e por todos e crio uma determinada imagem do homem que escolho ser; ao
escolher a mim, estou escolhendo o homem.” (SARTRE, 2014, p. 21)
naturalização mítica de um sistema que se interpôs como uma onipresença político-teológica
sem início nem fim – um eterno “agora”. Para isso, com os termos de Benjamin (1985), é
preciso friccionar os estilhaços messiânicos até implodir o continuum da história, interromper
o tempo-de-agora e transformá-lo em um percurso transitório interminável. A poesia de
Ginsberg consegue abarcar essa dimensão messiânica, marcando a si mesma com as feridas
dos fantasmas do passado para vingá-los através desta auto-revolução poética permanente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A rebeldia existente no poema analisado mostra que não se pode reduzir a


realização e a compreensão de uma obra a uma relação sociedade-arte e que, para estabelecer
um reconhecimento dialético coerente do fenômeno literário enquanto produto social, é
preciso também perceber que, mesmo com todas as forças dominantes que o afetam e o
afligem, o artista nunca é um mero espelho passivo que respeita objetivamente as leis
impostas pela sociedade do seu tempo; mas, sobretudo, é necessário compreender que o artista
tem um grande poder de subjetivação, i. e., tudo que passa por ele se transforma, se combina e
pode ser devolvido à realidade como um objeto artístico que resguarda um conteúdo
explosivo. Mas, mesmo com todo esse espírito de revolta contido nas linhas desse poema e
exaltado por este artigo, é preciso reiterar, para não deixar lacunas de más interpretações
idealistas, que não são poemas ou molotovs que fazem revoluções, mas a organização de
homens e mulheres.
A análise dos fragmentos destacados evidencia como a dimensão violenta do
poema “Uivo” é manifesta. A violência, portanto, não pode ser entendida simplesmente, no
sentido liberal, como mera intenção de agressividade física, mas é aqui expressa através de
um desejo contestador, que hostiliza a aparente realidade pacífica da “alta literatura” e conduz
a linguagem a uma nova manifestação de ser livre. Entretanto, é impossível conhecer
verdadeiramente uma obra de arte ao exilá-la no plano estético; a arte é um produto social do
seu tempo, mas, concomitantemente, também interfere na dinâmica de percepção sobre a
sociedade. É nesse momento de anseio pelo novo que a literatura pode se constituir como
violência subjetiva, e então se torna a causa a ser combatida pela violência do já-estabelecido,
que, por sua vez, é objetiva, sistêmica e repreende tudo aquilo que tentar subverter a ordem
existente. E, no caso de “Uivo”, a ordem em questão é o capitalismo, que se reflete tanto
como elemento histórico-social estruturante do tecido textual como no trato dado inicialmente
pelo establishment à obra já socializada, pois é assim que esse sistema político-econômico
funciona: penetra em todas as relações sociais de base e assume uma estrutura político-
teológica em que naturaliza este “modo de vida”, como se existisse desde o início dos tempos
uma maneira determinada de crer, de ser, de escrever etc., e, portanto, convence seus “fiéis”
de que não há alternativa. Em “Uivo”, essa estrutura é representada pela figura monstruosa de
Moloch. Para não ser cooptada, a violência subjetiva do novo precisa exceder essa vida
artificial da literatura – saltar aos olhos -, provocar o estranhamento que revela as
contradições da realidade e então infringir a lei para se transformar na violência divina
revolucionária. Essa poesia enfurecida tem o dedo de Deus.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1985. 257 p.

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