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Meine dacquse Macoviten Wervinn —Asoipie Jo Mai jeduep (RE HuroKA DA UNiVERSIDADRER-sAORALLO Copyright © 1996 by Autres 1M edlgto. 1996 2 eigo 2000 Duos Intereacionss de Catslogagio na Pblicaso (CIP) (ClinaraBrasileta do Live, SP, Brasil) Na Metropole: Texios de Antopolopa Urbana / José Gui- Iharme C. Magnan; Lilian de Laces Torres (erganizadores). ao Poul: Bditora da Universidade de Sto Palo; Faposp, 2000, NBN §5.314.0356-1 1. Amropotogia urbana 2, Cultura 3. Sociologia urbana Magnan, osé Guiterme C. 1Tores, Lili de Lucca. pea0i8 cpp-20776 Indices par tio siemice 1, Aupoigi tans: Sosicigin 307.76 iron roner vad 8 Fidup - Hdtoa da Univeridae de Sto Paslo ‘Av Pru Lehto Custer, reves J 374 (andr = Bed Aig Rotors Cidade Usiverstea AKIN. 400 = Sap Paula SP = Hel Fox (Ose) 3884S "Tl cen} 1) MF AT08 73818-4150, ewwanplifoduyy~ ena: eduspeedasybe wou teu 20 1 Foto dep fogs SUMARIO 9 Apresentagao_ 2 Quando o Campo é a Cidade: Fazendo Antropologia 124 156 196 na Metropole José Guilherme Cantor Magnani Programa de Paulista: Lazer no Bexiga e na Avenida Paulista com a Rua da Consolagdo Lilian de Lucca Torres As Esquinas Sagradas: 0 Candomblé e o Uso Religioso da Cidade Vagner Goncalves da Silva ‘A Cidade das Torcidas: Representagdes do Espaco Urbano entre os Torcedores ¢ Torcidas de Futebol na Cidade de Séo Paulo Luis Henrique de Toledo Janela para 0 Mundo: Representagses do Piiblico sobre © Circuito de Cinema de Sio Paulo Heloisa Buarque de Almeida O Retrato do Nation Disco Club: Os Neodandis no Final dos Anos 80 Marinés Antunes Calil 22 299 Severinos, Janudrias ¢ Raimundos: Notan de uma. Pesquisa sobre os Migrantes Nordestinos na Cidade de ‘So Paulo Rosani Cristina Rigamonte Cidade em Festa: O Povo-de-Santo (¢ Outros Povos) Comemora em Siio Paulo Rita de Cassia Amaral Posficio Maria Liicia Aparecida Montes APRESENTACAO Neste livro sio descritos e analisados alguns aspectos da dina mica cultural urbana a partir de uma abordagem particular, a da antropolo} Sao sete textos sobre modalidades de lazer, lugares de encon- tro, formas de ser ¢ atuar de personagens que, com seu compor- tamento, se apropriam de determinados espacos da cidade (no caso, a cidade de Sao Paulo), dando-Ihes novos e surpreendentes significados, Os freqiientadores do circuito club, o piblico da Mostra Inter- nacional de Cinema, os integrantes das torcidas organizadas, 0 ritmo de algumas manchas tradicionais de lazer, as marcas do povo- de-santo na cidade ¢ suas festas caracteristicas, a presenga sempre atual da cultura nordestina — esses sio os temas tratados nesta cole- tanea, O objetivo é identificar sua presenca, descrever seus tragos peculiares ¢ analisar de que maneira atividades aparentemente tio dispares contribuem para o carter metropolitano da cidade. Os autores sio ou foram alunos do Programa de Pés- Graduagéo em Antropologia Social da Universidade de Si0 Paulo, ¢ seus trabalhos tém como eixo um recorte particular da vida social no contexto urbano, focalizando lazer, sociabilidade, praticas culturai capitulo inicial, a titulo de introdugdo, organiza ~ principal- mente para um publico mais amplo ~ a trajetéria dos estudos na rea da antropologia urbana e discute os principais problemas que tal enfoque envolve, assim como as possibilidades que propicia, © posficio 18 o conjunto das etnografias que constituem 0 nicleo do livro, buscando juntar, aqui e ali, pistas que apontem a existéncia de légicas ¢ sentidos mais gerais, proprios da vida metropolitana. Os autores do primeiro capitulo e do posficio sao professores que vém se dedicando j4 h4 algum tempo, no ensino e na Pesquisa, a questdes relativas & dindmica cultural na cidade: 0 pri- meiro é 0 orientador dos trabalhos que deram origem aos textos integrantes da coletinea, ¢ a segunda, exercendo o papel de inter- locutora, faz a primeira reflexdo sobre eles. (© que se pretende € oferecer, a partir de monografias curtas mas com base em pesquisas mais amplas, algumas facetas da riqueza cultural e diversidade dos modos de vida que caracteri- zam um grande centro urbano, Os organizadores QUANDO 0 CAMPO E A CIDADE fazendo antropologia na metropole Jose Gunervie CANTOR MAGNANI (9.12.13; CRUZAMENTO DA RUA DA CONSOLACAO COM A A, PAULISTA, DESTAQUE PARA, (OS OMSFACULOS A TRAV SSIA DF PEDESTRFS. ree rE HE ree eee reer ee ee eee ee eee eee eee eee mer E sempre lindo andar na cidade de Sao Paulo CO ctima engana, a vida ¢ grana, em Séo Paulo A joponesa lowra, a nordestina moura de Sao Paulo Gatinias punk, wom jeto iangue, em Sao Paulo Na grande cidade me realizar ‘Morando num BNE Na perileria, a fabriea escurece 0 dia Premeditando o Breque, Sdo Paulo, Sao Paulo Contrapondo esta cangdo aquela outra, mais conhecida até — Sampa! - ¢ que terminou celebrizando a esquina das avenidas Ipiranga com Sao Joao, teriamos, com imagens vivas e numa lin- guagem poética, os dilemas e possibilidades que caracterizam, em outro registro, a reflexio antropoldgica. O “avesso do avesso”, recurso através do qual o estrangeiro por fim consegue ver algum_ 1. Agua coisa acontece no meu corasHo/ Que si quando eraza Ipiranga © a avenida Sio Joio/ E que quando eu cheguei por aqui Eu nada entendi! Da dura poesia con- frets de tuas exquinay’ Da deselegincia dscreta de tas meninas! Anda nio bavia para mim Ria Lee! (A tua mais completa tradugA0)/ Alguma coisa acontace no mett corario’ Que s6 quando cruza a Ipiranga ea avenida Sto Jodo Quando eu te encarsi frente a frente! E nlo vi o meu rosto/ Chame de mau gorio o que wi De "mau gosto, ‘ma gosto"! B que Narciso acha feioo que ado & espelha/ EA mente apavorn © que sind nio & mesmo velho! Nada do que nio era antes, quando no somos mutantes! E foste um dificil comega! Afasto 0 que no conhego! E quem vem de eutro sonho feliz de cidade! Aprende depressa a chamar-te de relidade’ Porgue ex 0 avesso do avesso do avesso do aveso/ Do povo oprimico na la, nas wilt, Favela’ Da forvs da fran que exgue e dest coisas beas! Da fea famara que sobe,apagando at eetrclas! [Bu ejo surge teus poctas de Campos e esparos! Tuas oficinas de oresas cus du tes di chuva/ Panamcricas de Aficesutdpiess tirmulo do sambal Mas possivel novo Quilnmnbo de Zumbi E os Novos Baianos pasiciam na tua gatos! E novos basanos te pede curtir numa boa (Caetano Wa), js sentido e beleza em comportamentos que inicialmente 0 choca- ram (“chamei de mau gosto 0 que vi"), contrasta com a visio dos \“nativos”, que simplesmente acham lindo caminhar pelo seu lago (veja adiante, pp. 30-31). O referente é 0 mesmo para ‘ambos; o primeiro, porém, o interpreta pelo angulo do estranha- mento (“quando eu cheguei por aqui eu nada entendi”), enquan- to, para os tiltimos, é absolutamente familiar: “a deselegancia discreta de tuas meninas” no & senio “o jeito ianque”, o visual punk da “japonesa loura” ou da “nordestina moura”. Mais se poderia dizer sobre Sao Paulo e seus moradores com- parando 0 texto das duas cangdes, assim como outros paraleli mos poderiam igualmente ser explorados entre o discurso poético a pesquisa antropologica. Existe, contudo, uma questao prévia: se 0 assunto ¢ essa cidade, tdo proxima ¢ conhecida, por que, jus- tamente, antropologia — disciplina que usualmente evoca culturas distantes, no tempo ¢ no espaco, com seus personagens exdticos, comportamentos estranhos, ritos desconhecidos? Essa ¢ na verdade uma associacdo que de certa forma tem a ‘ver com a propria origem dos estudos antropoldgicos, em fins do século x1x, quando se procurava uma explicacdo para o fendme- no da diversidade de costumes entre os povos. Néo era uma ques- to nova: sem ir muito para tris, desde a época das primeiras grandes viagens maritimas, despertavam vivo interesse as fabulo- as histérias que os viajantes traziam sobre povos “selvagens”, 2 respeito dos quais se discutia até mesmo se pertenciam ao géne- 10 humano. Ainda que diferentes tradigdes, mentalidades e costumes fos- sem também percebidos no seio das sociedades ocidentais (eram considerados a base do “genio” ou o “espirito” de uma nacido), 0 gue continuava chamando a atengio era o contraste entre estas iiltimas, “civilizadas”, € os povos “primitivos” com os quais se estava em contato, nas colénias e possesses. Explicar as diferen- ‘688, agora partindo do principio - com fundamento nos postula- dos darwinistas ~ de que todos pertenciam a mesma espécie, cis a tarefa da antropologia em seus primérdios. E qual foi a resposta, na época? Tais diferengas foram conside- radas sinais de estagios sucessivos num processo evolutivo tinico: enquanto alguns povos evoluiram rumo a patamares mais eleva- — t dos, outros teriam permanecido nas primeira etapas, presos a sis- temas religiosos, prineipios morais, meios técnicos e atividades econémicas — formas culturais, em suma — mais simples, atrasa- das, primitivas. Desde entao, muita coisa mudou: a antropologia deixou para tis essa perspectiva evolucionista, pastou por uma fase marcada pela pesquisa de campo, elaborou outros conceitos e paradigmas, abriu novas areas de investiga¢éo. Nunca abandonou, porém, a preocupagao inicial, fundante, a respeito da diversidade cultural. ‘$6 que, deixando de associar o diferente a0 airasado, se desvinci lou da idéia de que seu objeto era constituido pelos povos consi- derados “primitivos”. Essa mudanca chega a seu termo induzida pela aguda cons- cigncia do processo de extingao de nagdes indigenas e também pela recusa de antigos povos colonizados, agora independentes, a serem considerados objeto de estudos antropologicos. Esses foram os fatores que levaram Claude Lévi-Strauss a se perguntar, na década de 60, se “a antropologia nao corre o risco de tornar- se uma ciéncia sem objeto” (Lévi-Strauss, 1962:21). E ele proprio quem da a resposta ao demonstrar que 0 objeto da disciplina no é propriamente o estudo de um determinado tipo de sociedade, mas que “enquanto as maneiras de ser ou agit de certos homens forem problemas para outros homens, haverd lugar para uma reflexdo sobre essas diferencas que, de forma sempre renovada, continuario a ser 0 dominio da antropologia [...]. Se um optimum de diversidade é condi¢ao permanente do desenvolvimento da humanidade, podemos estar certos de que dessemelhancas entre sociedades e grupos nao desaparecerio seniio para se reconstituir em outros planos” (idem: 26)?, Nessa mesma diregio, conclui Geertz, “agora somos todos nativos”+ (1988), Esse ajuste de foco — gragas ao qual no se necessita ir muito Jonge para encontrar o “outro” — terminou revelando uma reali- dade que aparentemente nada fica a dever ao exotismo que tanto 2. “Lud/a cvllzagio ocidental, tomando-se ctda dis mais completa, e estendendonte 2 toda a tera ebitads, apresenta dende jem seu boj esses denvics diferencias que = aniropologia tem por Fangio estudar, mas que até agora no the era possrelsenio iuilzagdes distinas e longinauas (ian: lc i)" ‘ espantava os europeus em contato com os povos “primitivos basta uma caminhada pelos grandes centros urbanos ¢ logo se entra em contato com uma imensa diversidade de personagens, ‘comportamentos, habitos, crengas, valores. Alids, ndo deixa de ser curioso que, para designar formas de sociabilidade ¢ cultura de grupos jovens, por exemplo — neodandis, clubbers, grafiteiros, darks, punks, grunges, goticos, funks, blacks, torcedores, heavies, breakers, carecas, roqueiros, rappers, headbangers, night rollers, igua- boys -; se use a expresso “tribos urbanas”...” ‘Mas 0 que importa ao olhar antropolégico nfo é apenas 0 reconhecimento e registro da diversidade cultural, nesse e em outros dominios das priticas culturais, mas também a busca do Y¥ significado de tais comportamentos: so experiéncias humanas ~ de sociabilidade, de trabalho, de entretenimento, de religiosidade = que s6 aparece como exéticas, estranhas ou até mesmo peri- gosas quando seu significado & desconhecido. © processo de acercamento € descoberta desse significado pode ser trabalhoso', mas 0 resultado ¢ enriquecedor: permite conhecer e participar de uma experiéncia nova, compartilhando-a com aqueles que a vi- vem como se fosse “natural”, posto que se trata de sua cultura, ‘Nao foi nada facil entender uma nova realidade, por parte de “quem vem de outro sonho feliz de cidade”, como era 0 caso dos “novos baianos da cacao”, Mas, finalmente, “passciam na tua garoa e te podem curtir numa boa”. ‘So Paulo ~ como outras grandes cidades ~ constitui um espa- ¢0 privilegiado para experiéncias desse tipo, dada a procedéncia de seus habitantes, a riqueza de suas tradigdes culturais, a varie- dade de seus modos de vida e, por conseguinte, a infinita possi- jbilidade de trocas ¢ contatos que propicia. Mas também alimenta lrepresentagdes que a identificam com o ethos do trabalho, com a Hformalidade e frieza das relacdes impessoais, 0 anonimato da vida cotidiana. A desigualdade social, a violéncia ~ desde a poluigio sonora e visual até a criminalidade -, passando pelas conhecidas € gritantes contradigdes urbanas, so outros farores. presentes 4, Sabre on equivocos do uso conrente dessa expresso veja Magnani, 1992 4. Para ume discussio sobre esuatégias atuais de abordagem de contatos *trnsculto- rie” ea "modo de representa” do trabalho etnogrtico, via Marcus & Fischer. 10K, ¢ Cllfiord & Mureuy, 1980. quando se avalia a qualidade de vida que oferece. Sem negar a realidade desses fatores, nem procurar amenizar suas conseqiién- cias, € possivel mostrar que a cidade oferece também lugares de lazer, que seus habitantes cultivam estilos particulares de entrete- nimento, mantém vinculos de sociabilidade ¢ relacionamento, ym modos e padres culturais diferenciados. ‘Trata-se, enfim, de uma metrépole, com suas mazelas ¢ tam- bém com os arranjos que os moradores fuzem para nela viver (ou sobreviver), combinando 0 antigo ¢ 0 moderno, o conhecido ¢ a novidade, o tradicional ¢ a vanguarda, a periferia ¢ 0 centro. Do pove oprimido nas filas, nas vias, favelas/ Da forga da grana que ergue « destt6i coisas belas/ Da feia fumaga que sobe, apagando as estrelas/ Eu rejo surgir teus poetas de Campos e espagos (.} Mas, antes de passar aos textos que compéem 0 nucleo desta coletanea, é preciso voltar 4 questdo colocada anteriormente, que retorna em outros termos: nao mais por gue antropologia, ¢ sim, de que modo essa ciéncia, formada no estudo de sociedades de pequena escala, lida com a complexidade caracteristica de uma metrépole. Esrupos sopre CIDADE: ANTECEDENTES, “Da porta da minha barraca”, escreveu Evans-Pritchard nas primeiras paginas de sua cléssica etnografia, “podia ver 0 que acontecia no acampamento ou aldeia ¢ todo 0 tempo era gasto na companhia dos Nuer”. Se esta passagem de Os Nuer ~ “Uma Descrigao do Modo de Subsisténcia ¢ das Instituicdes Politicas de um Povo Nilota” (Evans-Pritchard, 1978 [1940]:20)*- constitui a imagem classica da pesquisa de campo, nada mais distante, eno, das condigdes 5. Ems passagem de Os Nuer inspirou o titulo de ur texto (Rosaldo, 1986), From te Dior of His Ten The Fiekteorker and the nstor, que pe em duvida exatamente ‘gue ¢ autor considers ser a preseuposicio bsica de um determinado tipo de einogra fa: terextade Ite ter presencia iat) ou aq no & nocessariamente garantia de sinetividads, © props da taste, au, pena entabelecet um contraponte entre dhuns stay ton de ps HEHEHE EEE eee eee eee eee eee eee eee eee eee ee ee eee eee eee eee eee eee eee eee eee de trabalho de um antropélogo as voltas com questées ¢ proble- mas caracteristicos das modernas sociedades urbano-industriais, cujo campo é a cidade: da janela de seu apartamento nio tem dian- te de si o espetaculo da vida social em sua totalidade, e mesmo que conviva mais intensamente com o grupo que est estudando, nem sempre gasta todo o tempo em sua companhia. Cabem, por conseguinte, as perguntas: podem os antropélo- gos, com os conceitos ¢ instrumentos de pesquisa forjados no estado dos entio chamados povos “primitivos” ~ observacio par- Ite, analise qualitativa, foco de ané Para recor- ies empiricos bem limitadoa ¢ definidos , dar conta da complexidade que caracteriza_as sociedades contemporaneas? Como estabelecer as mediagSes necessérias entre 0 carnpo — particularizado, minucioso, atento pat instincias interpretativas_mais_amplas? Poderdo superar, os antropélogos, a tentagdo do “padrao aldeia” e assim articular a singularidade de seu objeto com outras variaveis da vida urbana, 'principalmente nas grandes e superpovoadas metrépoles? Apesar de nao mais se aceitar ~ com razio — a oposigao entre, “sociedades simples” (e muito menos “primitivas”) versus “socie- dades complexas” para estabelecer 0 ponto de corte entre aque- les grupos iradicionalmente estudados pelos antropélogos e as ‘SSciedades urband-industriais, nio se pode negar que o modo de ‘operar dessa disciplina, seja qual for o contexto de seu estudo, carrega inevitavelmente as marcas das primeiras incursdes a campo. Que no deixam de ser particularmente sentidas — seja como vantagem ou dificuldade — quando o que se tem pela fren- te so problemas, objetos e temas préprios das sociedades con- tempordneas, na sua escala ¢ complexidade caracteristicas. E, se a antropologia segue estudando aqueles grupos tradicio- ‘ais, ndo é por uma estranha fidelidade a antigos modelos ou puro conservadorismo, mas porque as questdes levantadas pelo modo de vida (organiza¢ao social, mitologia, religido, estruturacio da familia, relagGes com a natureza etc.), escala e temporalidade des- sas sociedades continuam enriquecendo os métodos de pesquisa ¢ alimentando a reflexao ~ nao apenas sobre elas, mas sobre a nossa ¢ outras sociedades. Como ja se afirmou, ndo é o lado suposta- mente exotico de praticas ou costumes o que chama a atengdo da antropologia: trata-se de experiéncias humanas, ¢ o interesse em conhecé-las reside no fato de constituirem. arranjos. diferentes, particulares — e, para o observador de fora, inesperados -, de temas e questes mais gerais e comuns a toda a humanidade. A antropologia, ld ou cd, na floresta ou na cidade, na aldeia ou na mewépole, ndo dispensa o cardter relativizador que a presen- ¢2 do “outro” possibilita. E esse jogo de espelhos, é essa imagem y de si refleda no outro que oflenta ¢ conduz o olhar em busca de conceituosa 86 enxerga 0 exetismo, quando nao o perigo, a anor- \malidade. Dito isso, néo se pode desconhecer, entretanto, que 0 estudo das modernas sociedades nacionais traz novos desafios e proble- mas para a pesquisa ¢ reflexdo antropoldgicas. Trata-se, com efei- to, de sociedades organizadas com base em principios que introduzem outra escala ¢ outros graus de complexidade nas esfe- ras da economia, do poder, da organizagio social, da produgio simbélica. E que dizer, entdo, da cidade — forma de implantagio espacial predominante dessas sociedades -, principal versio metrépole, que abriga, concentra ¢ multiplica toda essa complexidade> ‘Até o presente, a antropologia, a ciéncia do homem, tem-se preocupado principalmente com o estudo dos povos primitivos. Mas © homem civilizado & um objeto de investigacdo igualmente interessante, ¢ ao mesmo tempo sua vida € mais aberta i observagio e ao estude. A vi variadas sutis © complicadas, mas 0s motivos fund: dois casos. Os mesmos pacientes métados de observagio despendidos por antropblogos tais como Boas ¢ Lowie no estudo da vida e maneiras do indio orte-americano deveriam ser empregados ainda com maior sucesso na investi- gacdo dos costumes, creneas, priticas socials e concepsdes gerais de vida que prevalecem em Little Italy, ov no baixo North Side de Chicago, ou no registro dos felkwoays mais sofisticados dos habitantes de Greenwich Village e da vii inhanga de Washington Square em Nova York (Park, 1915, apud Velho, 1987:28}, Apesar desse apelo, feito nos termos da época por um dos pio- neiros no estudo de questdes urbunas, a produgdo antropolégica na fren 6 recente © pouco sintematizada, o que dificulta a tarefa SSSuS5ES5505555s5555550555555550555=5550552505S58s8S5555"==<=="==—"———"s""ScSSEeEEEEESESEY "Gaueseeneseqeseseeeseusseeetseesseaeee====——""”-—" =—+o=7peeeeeeeeeseeSeseneseeeseeeen de compor quadros de referéncia. Por outro lado, cidade nao era Precisamente a forma de assentamento dos povos que consti- tuiam seu objeto inicial e privilegiado de analise. De qualquer forma, dada a relativa indiferenciacio de areas ¢ interesses te6ri- 08 por parte de alguns autores clissicos, antropélogos ou nao Emile Durkheim, Ferdinand Tonnies, Georg Simmel, Max We- ber, entre outros —, nio custa uma ripida alusio a eles, em busca de pistas que permitam demarcar a especificidade do fendmeno urbano, Nao é o caso, evidentemente, de resumir 0 pensamento desses autores; 0 propésito é identificar, neles, temas e linhas de ise que alimentaram a reflexio sobre questoes relativas & cidade ¢ a sua dinamica E possivel, de inicio, descobrir um elemento recorrente que é 0 conceito de comunidade, em geral se opondo ao de sociedade. A expressio ficou conhecida a partir do texto de’Ténnies, mas pode- se reconhecer a mesma argumentagao na terminologia durkhei- miana de “solidariedade mecénica” versus “solidariedade orgit ca” ~ com algumas nuances, recobrem a mesma problematica. Segundo Ténnies, esquematicamente, comunidade marcada Por lagos de sangue, relacdes primaérias, consenso, rigido controle social; sociedade, ao contririo, caracteriza-se pela presenca de relagdes secundarias, por convencdo, anonimato, troca de equiva- lentes. Por meio dessa oposicao, o autor descreve a transformagio de uma forma tradicional de vida sob a influéncia de uma econo- mia predominantemente baseada na troca: de uma Europa paro- quial ¢ agriria para uma sociedade cosmopolita e comercial. A conseqtiente perda de autonomia da economia doméstica para uma producio voltada para o mercado significa, para ele, despo- ja'o trabalho de “estilo, dignidade e encanto” (Mellor, 1984:290). Essa oposi¢do serviu para Simmel distinguir 0 tipo metropoli- tano espécie de personalidade intelectual, calculista, reservada - em contraste com o habitante da pequena cidade, onde a vida descansa sobre relacionamentos emocionais mais profundos. Como Ténnies, Simmel vai mostrar a transi¢ao da comunidade tradicional para uma sociedade predominantemente urbana industrializada, A andlise de Max Weber ressalta o carter da racionalidade presente na cidade medieval do Ocidente, com base na comuni- dade ~ associagio local, militar ¢ politicamente auténoma em face do senhor feudal. Sé ela, com a nova classe dos mercadores € artesdos, rompe com os lagos, tabus e religido clanicos; razio pela qual, diferentemente do que ocorreu no Oriente, se tornou condigo para o surgimento do capitalismo. Mais tarde essas ci- dades de governo proprio e autOnomo dissolvem-se no interior dos Estados nacionais: as metrépoles que surgem na esteira da Revolug&o Industrial completam a desintegragio daquele mode- lo de vida urbana. A cidade medieval como parimetro, algo nostélgico, do ideal de comunidade surge como trago comum a esses autores na and- lise ¢ julgamento da sociedade e cidade contemporineas a eles: vale lembrar que todos viveram a realidade da cidade européia pos-liberal, emergente das revolugdes de 1848, marcada pela intervengdo do Estado no ordenamento urbano. Outro seré 0 ponto de partida de um importante geupo de pesquisadores que, no outro lado do mundo, fizeram da cidade seu objeto de preocupacdo ¢ estudo, Trata-se da Escola de Chi- cago, nome que terminou agrupando esses pesquisadores, mem- bros do Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago, com intensa atividade no periodo que vai da Primeira Guerra Mundial até os anos 30. Para W. I. Thomas, R. E, Park, E. Burguess, R. MacKenzie ~ 0s pioneiros -, 0 referencial que sustentava a linha interpretativa ¢ as andlises empiricas no era a transformagio da cidade medie- val sob as injungdes da Revolugio Industrial, como acontecia com 08 tedricos europeus. © que tinham diante dos olhos era vertiginoso crescimento de Chicago, nos anos 20, a partir de cor- Tentes migratérias, com a correspondente seqiiela de problemas que tal fenémeno acarretava. As mudangas eram rapidas, os gru- os que disputavam os espacos eram heterogéneos ¢ a comps Gio, feroz. Se a influéncia dos autores europeus faz-se sentir ~ 0 bindmio comunidade versus sociedade esté presente -, 0 ponto de referén- cia € 0 da ecologia. Trata-se de explicar a dinémica urbana atra- vés de conceitos como dominagio, invasdo, sucesso, dominancia € outros ~ diferentes formas que adquire a competi¢io por espa- 60, recursos, controle politica - que delimitam as “areas natu- " fais”, produzindo as diferentes “zonas” concéntricas da cidade. Aqui, comunidade ¢ entendida como o resultado de relagdes sim- bidticas, ao passo que sociedade depende da comunicacao entre seus membros que compartilham atitudes, sentimentos, idéias comuns. A Escola de Chicago também ficou conhecida pelos estudos empiricos que realizou sobre temas especificos como delingiién- cia, prostituiciio, criminalidade etc., que terminaram agrupados sob a classificagao de “patologia social”. E possivel distinguir ou- tra tendéncia, ainda, no interior dessa escola: so os “etndgrafos” de Chicago, conforme a denominagio de Ulf Hannerz (1986), que enfatiza o carter propriamente antropolégico de sua produ- do, ainda que essa aproximacio se deva mais em fungao da esco- tha de temas € métodos do que por orientagao tedrica. Este autor cita cinco estudos que denomina “etnografias”: “The Hobo”, de N. Anderson (1923), sobre o modo de vida de trabalhadores sazonais ¢ andarilhos; “The Gang”, de F. M. ‘Trascher (1927), um levantemento e descrigdo de gangues juve- nis em Chicago; “The Ghetto”, de L. Wirth (1928), sobre o bair- to judeu; “The Gold Cost and the Slum”, de H. W. Zorbaugh (1929), um estudo de seis “Areas naturais” com os diferentes modos de vida de scus moradores, desde a classe superior até 0 mundo das pensdes baratas; ¢, por iiltimo, “The Taxi-Dance Hall”, de P. G. Cressey (1932), anélise dos personagens ¢ regras que presidiam 0 funcionamento dos célebres saldes de danga “por cartio”. Ainda que um pouco posterior, caberia nesta lista “Street Corner Society”, de W. F. Whyte (1943), estudo que uti- lizou a técnica da observa¢io participante entre grupos de jovens de origem italiana em Boston. Louis Wirth e Robert Redfield, no final dos anos 30, represen- tam, respectivamente, a culminacdo de duas tendéncias da Escola de Chicago. © primeiro, com sua famosa definiglo de cidade ~ “para fins sociolégicos, uma cidade pode ser definida como um niccleo relativamente grande, denso e permanente, de individuos socialmente heterogéneos” (apud Velho: 96) ~ e a énfase no car: ter segmentirio, utilitarista, transitério das relagdes que imp3e 408 individuos. Robert Redfield, ao contririo, aponta para a “anticidade” ~ civilizagao cultura de folk: niicleo pequeno, iso- lado, analfabeto ¢ homogéneo, com um forte sentimento de soli- dariedade grupal. Esses pélos antagénicos terminaram constituindo a conhecida proposicio do continuum folk-urbano — linha a0 longo da qual se distribuiriam os assentamentos humanos, da aldeia a metr6pole -, inspiragao dos nao menos conhecidos “estudos de comunidade” no Brasil, principalmente em Sao Paulo, no final da década de 40°. ANTROPOLOGIA URBANA EM SAO PALLO Diferentemente do que ocorreu nos Estados Unidos, nio foi ‘um grande centro urbano mas pequenas localidades interioranas que por aqui constituiram o principal objeto das pesquisas sob influéncia da Escola de Chicago: Cunha, Bofete, Cruz das Almas, Guaratingueté, Itapetininga, comunidades caigaras do litoral ~ caso de Sao Paulo. Dificil dizer, por outro lado, se tais pesquisas eram antropoldgicas ou sociologicas, pois a base tedrico-metodo- Iogica de ambas as disciplinas era a mesma desde a implantacao das ciéncias sociais em moldes académicos, em So Paulo’. Apesar dessa base comum, algumas fronteiras iam sendo esta- belecidas e, no caso especifico da antropologia, pela escolha de seus objetos ou de suas “tarefas”, para usar os termos do profes- sor Emilio Willems. De acordo com o entio responsivel pela dis- ciplina na Faculdade de Filosofia, Ciéncias ¢ Letras, as “trés tarefas maximas da antropologia no Brasil” eram: o estudo de culturas indigenas ¢ seus contatos com a civilizago; 0 estudo das 6. Os Pareies do Rio Bont: Estudo bre 0 Caipira Paubiaa e a Tunsfermasto des sue Meis de Vida, de Antonio Candido (1964); Toun and Counery in Rural Braz de Marvin Harris (1956); Foalugao da Esruura Social de Guaroinguers mom Periods de Trexe Anos, de Lucila Hermann (1048); Familia ¢ Comunidade: Um Esto Secoligice de Haperininga, Sa0 Paulo, de Oracy Nogueira (1962); Crus dar Almas, ¢ Brasilan iags, de David Pierson (1951); Amazon Teun’ a Sealy of Man in che Tropics, de ©. ‘Wagley (1953); Bustos Island: a Gagara Community in Sowhern Brash de Emilio Wills ¢ Gioconda Mussolini (1952); Cunha: Tradicao ¢ amigo om uma Cxlnra Rural do Bras de Emilio Willems (1947). {A antropologia, que vinha seado ministrada desde 1936 nos programas de Etnografi, Geral ede Sociologia na Faculdade de Filosofia, Cigneias ¢ Letras, aparece oficiamen- {emo earical 2 partic de 1941.*A grande comurieagaa entre eas dua se deu sob a égide do funcionaliem, quer na aua versdo frances, in veri anpnvumericena, com Malinowski Brown de um lad cute ows se out (Durham, 1982: 160 a culturas caboclas € o estudo da aculturacdo de certos grupos étni- ‘608 € raciais, como negros, japoneses, alemies etc.* Essa formulagio oferece uma pista para entender a reduzida produgao de trabalhos relativos 4 cidade de So Paulo: os objetos privilegiados da antropologia brasileira eram constituidos pelas Populacoes indigenas, no que sem duvida seguia a tendéncia geral da disciplina desde sua forma¢io, na Europa e nos Estados Unidos; vinham, em seguida, as comunidades “rasticas” ou “caboclas”; e por fim as “minorias étnicas” e seus problemas de “aculturagdo” e “assimilacdo” a sociedade nacional. Analisando a produgio da época, conclui Eunice Durham que antropologia nem 2 sociologia estavam preocupadas em investigar as grandes transformages sociais em curso. Ao contritio, preocuparam-se smbas ‘com as bases sobre as qu de rural tradicional, a populacto negra e seu passado escravo, a imigragio cestrangeira do século anterior. (Durham, 1982:161), 1 transformagao estava operando, isto é, a socieda- ‘S6 mais recentemente é que a pesquisa antropoldgica voltou- se para a cidade de Sao Paulo em busca de temas e objetos de estudo. E verdade que se pode apontar um antecedente ilustre: trata-se de Claude Lévi-Strauss, cujo célebre livro Tristes Trépicos, publicado em 1955 — vinte anos apés sua estada como professor visitante na recém-criada Faculdade de Filosofia, Ciéncias ¢ Letras -, contém passagens sobre a cidade de Sao Paulo dos anos 30. Mas nfo é nesse texto que se refere & sua metedrica experién- cia de campo na cidade. Na entrevista concedida a Eribon Didier, que resultou no livro De Perto ¢ de Longe, Lévi-Strauss afirma que iniciou suas expedigdes As tribos indigenas 8. Carta de 27 de agosto de 1943, enviada a Arthur Ramos, apud Azeredo, 1986:49-50. “Tal fermulacio como base de programa de ensina © pesquisa revelou-se bestante “doradoura, pois passedos mais de vinte anos vamos encontrits quase nee mesmos termos na texto “Cadeira de Antropologia: Organizago e Atividades”, Faculdade de Filosofia, Cigneias ¢ Letras, Us: “a, Investigagdo da cultura ¢ da vida socal indige- ni e dos processos de transformasio resllantes de contatosintertzibus e com pop lugdes ncobrasieiras; b. Andlise de comunidades risticas © de mudancas sécio-culturais que nelas se nperam:c. Finalmente, estudo dex procestos de acura ‘elo e de ewitmlagte de minoria iene no Breil” (Hoge Pereira 1966: 1) «a partie do primeiro ano letivo. Em vez de volear para a Franca, miaha mulher © eu fomes para o Mato Grosso, para as aldeias eadiveu ¢ borore, Mas eu ja tinhs comegado a fazer etnologia com os meus alunos: sobre a cidade de Sio Paulo ¢ sobre o folclore dos arredores, do qual minha mulher se ocupava mais especificamente (Lévi-Strauss & Didier, 1990:32). Folclore: talvez seja essa uma das chaves para mapear outros trabalhos da area de antropologia sobre S40 Paulo, no periodo em que a disciplina apenas comecava a ser ministrada, de forma sistematica, no espaco académico, Sem entrar na discussio sobre as diferengas entre folclore e antropologia, entio e agora, seria obtigatorio, contudo, mencionar a contribuicao de inimeros pes- quisadores, a comegar por Mario de Andrade, incentivador de estudos na area, a partir do Departamento Municipal de Cultura (1935)*, A cidade de Sao Paulo, por conseguinte, a no ser de forma fragmentaria e episédica, nao forneceu temas e objetos de interes- se para a pesquisa antropoldgica; isso s6 vai ocorrer mais tarde, na década de 70. As profundas transformagdes pelas quais o pais vinha pasando desde o final dos anos 50 em sua base econémica, no esquema de poder ¢ na composigdo social foram temas de importante producdo das ciéncias sociais, principalmente da so- ciologia, economia ¢ ciéncia politica: watava-se de explicar o modelo de desenvolvimento em curso para entender suas conse- giiéncias no sistema produtivo, as mudangas nas instituigdes poli- ticas ¢ as contradigbes que se acirravam na estrutura social. E a antropologia? Continuava fiel as “trés tarefas”, estudando populagdes indigenas, relagdes raciais, religides populares, fami- 9, A diversidade dos esrudesfletricose de seus enfoqaes torn impossvel, aqui, qual quer pretensto de sequerciti-los, quamio mis de distinguir agueles eu objeto & a Cidade de Sto Paulo, Florestan Femandes, ele préprio autor; quando sino, de ini ‘meras pesqusas a drea do flcioe,fornece uma visio abrangente em “A Einologta © 4 Scciologia no Brasil", de 1958. Se foste para citar, a sta nfo poderia omitir Cornéio Pires, Amsdeu Amaral, Oneyda Alvarenga, Alec Maynard Araijo, Luis Shiny Rossini Tavares de Lima e muitos outros mais. Cumpre ressaltar, contudos que tecorte wadicionalmente privegiado dos lerantamentos, estudos ¢ pest Fle rics tom sido a drea curs, quando centemplada, x cidede ¢ conaiderada enquanis lugar de persisténcla “sobrevivéncia™,ennforme a vind de ans de tages a eal lia, migrantes... temas e personagens que nao estavam, por certo, rno centro dos acontecimentos. Mas nos anos 70 a antropologia comega a adquirir maior visi- bilidade ¢ prestigio, fendmeno entretanto que nao se deve credi- tar exclusivamente “A qualidade de nossa producdo intelectual”, como observa Eunice Durham (1986), Para @ autora, um dos fatores dessa popularidade é 0 fato de que os grupos tradicional- mente estudados pela antropologia — indios, negros, camponeses, favelados etc. — passam de “minorias”, “desviantes”, “marginais” ‘a “novos atores politicos”, protagonizando movimentos sociais, exigindo participagdo na sociedade!. O mesmo ocorre com temas caros a reflexio antropolégica como religido, sexualidade, papel da mulher na familia e na sociedade, a cultura popular outros: so pensados como “formas de resisténcia”, de contesta~ do, de luta, Essa conjuntura ~ politica, académica, institucional"! — abriu espaco para estudos de cariter antropolégico sobre a realidade dos grandes centros urbanos, pois era preciso conhecer de perto esses atores, seu modo de vida, aspiragSes — jé que conceitos ‘como “consciéncia de classe”, “interesses de classe” ¢ outros nao davam conta de uma dindmica que se processava no cotidiano. Quem so? Onde moram? Em que acreditam? Como passam seu tempo livre? Nesse particular a antropologia estava a vontade, ois, no trato com qualquer grupo constante das “trés tarefas”, 10, Cabe agui uma mengio @influéncia de M, Castells (1972) sobre significative conju 1 de pesquitss de orientacdo sociolgice sobre "movimentos soiais urbanos. Pa ‘exte autor, que critcava 0™mito da cultura urbana” ~ referencia as premissts na and lise de Wirth e outros autores da Escola de Chicago ~ no se podia falar de uma teo- ta especficn do expaco: 0 que ha s¥o desdobramentos e especies da teora da ‘estrutura social. E nesse quaéro que cntzam os movimentos sociis urbanos, formas ‘de consituiedo ¢ orgenizacdo de “novos atores” de umm processo politico na futa por ‘cquipumentos participacto na romada de deisdes sobre ordenamento urbaoo. H, Lefebire (1969), 20 contririo, recupera a irredurbiidade do urbano ~ "a cidade como artefato” ~ enguanto objeto de tellexio e intervengio. 14, Eunice Durham (1982) ressalta ainda a amplagdo da rede de ensino superior, @ cexpansio dos cursos de pés-graduacio, a maior feelidade de acesso a drgios de forzento & pesquisa, como CNP, Capes, Fine e, especificamente em Sto Paulo, Fundagio de Amparo ¢ Pesquisa (Fapesp), Ac lado da ampliacao do mercado de tr- batho que esac quadro representou, também pera antropélogor, @ autora cits atra- sho que 0 estrutualime vie antropologia — exercie sobre a intelectualidade bras ‘ais perguntas sempre estiveram presentes, norteando a pesquisa emografica. Os temas € objetos centrais passaram a ser: 0s moradores da periferia de Sao Paulo; estratégias de sobrevivéncia na metropo- Jes religides populares urbanas; comunidades eclesiais de base; cultura ¢ festas populares; formas de lazer © entretenimento; movimentos feminista, negro, homossexual; representages poli- ticas ¢ participagao em associagdes de bairro; estratégias popula- res de sade, e tantos outros'?, © Laver € 4 LOGICA 00 Prnae lazer estava, por conseguinte, entre os temas que comega- vam a despertar interesse. Mesmo assim, a epoca da realizagao da minha pesquisa em bairros da periferia da cidade de Sao Paulo, entre 1978 € 1980", ainda foi preciso argumentar em favor de sua pertinéncia: afinal de contas tratava-se de uma atividade pouco valorizada porque, pensava-se, esta nas antipodas daquilo que se considera o lugar canénico da formacao da consciéncia de classe e, além de ocupar uma parte minima do tempo do traba- Ihador, nao apresenta implicagdes politicas explicitas. As objegdes mais correntes eram: Em primeiro lugar, é considerado irrelevante, enquanto tema de pesquisa: hi coisas mais “sérias” como o trabalho, a politic. Alids, nem mesmo existe: no caso especifico dos trabalhadores, hi quem constete que o tempo livre & basice 12, Segundo levantamento realizado pela Astociagio Hrasileira de Antropotogia (1988), de um total de 532 tests de doutorade e disseresges de mestrado na érea da ante pologis, defendidas entre 1947 e 1687, contamvse 46 cuio recorte geogrifice @ 0 Extado de Sio Paulo e vine sobre a cidade. Para cfeitos comparatis, consult list por mim arrolada em artigo recente (1992): so 42 crus de tests e dissertagdes de ‘orienta¢do antropolégica defendidas entre 1972¢ 1991, relacionados com a cidade de ‘Sto Paulo, 13, Serviu de base pata minha rese de douteramento, defendida em 1982 no Depar- tamento de Ciéncias Socais da Faculdade de Filosafia, Letras ¢ Ciéncias Humanay dda Universidade de Si0 Paulo ¢ inttuiads Feng no Pala: O Ciro-Teare Chen. Formas de Laser e Cuirurs Ppular (publicada eay 1984 com « titulo esa nn Pda Cultura Popdar Laser na Cidade). Laser € deep A Represonade Sova bs Petco na Calne Popular fot tore de doutoramentadefendida por Maria Lica ‘Montes (1080), no mestno Departamento vom have em trabals relizado na mesma Syme “| mente utilizado para complementar es magros orcamentos domésticos; quando existe ressente-se da falta de espaco, equipamentos, ou entio esti irremediavel- mente contaminado pelos masi-media, nio passando, portanto, de valvula de escape e alienaciio (Magnani, 1984:11). A argumentasio, contudo, prosseguia: atividade marginal, instante de esquecimento das dificuldades cotidianas, lugar, cenfim, de algum prazer ~ mas talvez por isso mesmo possa oferecer um angulo inesperado para a compreensio de sua visdo de mundo: é li que os trabalhado- res podem falar e ouvir sua propria lingua (idem:22). Havia, porém, uma questiio mais de fundo na origem dessa recusa em estudar o lazer no contexto do bairro, a partir das for- mas concretas de desfrute por parte dos moradores. E que, para uma visio mais tradicional, o_lazer sé pode ser pensado como ‘ontraponto a0 trabalho. O contexto de seu surgimento, com efeito, é o dos primeiros tempos da Revolug3o Industrial, quan- do a disciplina, o ritmo ¢ intensidade do trabalho s6 conheciam um limite: 0 da exaustio fisica e psiquica daqueles contingentes de trabalhadores arrancados de seu tradicional modo de vida, no qual a interrupso do trabalho — seja agricola, artesanal, de cole- ta era ditada pelos ciclos da natureza ¢ legitimada por um calen- dario religioso que marcava o tempo através das festas ¢ rituais. © nascente capitalismo, porém, inaugura uma nova ordem sécio-econémica em que a produgio ja ndo era determinada pelas necessidades de consumo do grupo doméstico, mas tinha como eixo o mercado, que aliés fornecia umn dos fatores envolvi- dos no processo produtivo: a forca de trabalho, O problema da conservacio desta dizia respeito unicamente a seu vendedor que, de posse do salirio, devia arcar com os custos — alimentagio, alo- jamento, satide, descanso. ‘Melhores e mais humanas condigdes de vida e trabalho foram, entretanto, desde os infcios do sistema capitalista, conquistas da classe trabalhadora. O que no deixa de constituir um paradoxo: © tempo livre, necessario ¢ funcional do ponto de vista da légica do capital - como fator indispensavel para a manutencdo € repro- dugio da forca de trabalho -, é resultado da luta do movimento operario pela diminui¢io da jornada de trabalho, descanso sema- nal remunerado, férias e outros beneficios. Para muitas tendéncias do movimento operario organizado, 0 tempo livre era de suma importincia, pois representava nao apenas a necessaria reposi¢ao da energia gasta mas ocasifio de desenvolvi- ‘mento de uma cultura prépria ¢ independente dos valores burgue~ ses, Representagdes teatrais, competi¢&es desportivas, sessies de ‘canto ¢ miisica, leituras, passeios, além de debates e cursos de for- mago — tais eram as formas através das quais os militantes preen- chiam seu tempo livre. A questio do lazer, portanto, surge dentro do universo do trabalho ¢ em oposicao a ele: a dicotomia é, na ver- dade, entre tempo de trabalho e tempo livre ou liberado, ¢ por lazer entende-se geralmente 0 conjunto de ocupacdes que 0 preenchem. A pesquisa, entretanto, sem evidentemente negar esse fator LF Constitutive do lazer na sociedade moderna, preferiu situd-to em ouiro contexto, ndo menos determinante, pois se tratava das con- iges reais e concretas de seu exercicio, no espago do bairro. A mudanga era: da légica do capital — para a qual o significado do lazer ja_esté dado, nao sendo preciso nenhuma pesquisa para explici-lo — para a légica do “outro”, na outra ponta do processo. E 0 que se viu foi um amplo e variado e jo tempo livre nos finais de semana dos bairros de periferia: circos, bailes, festas de batizado, aniversirio e casamento, torneios de futebol de varzea, quermesses, comemoragées ¢ rituais religiosos (catélicos e dos cultos afro-brasileiros), excursdes de “farofeiros”, asscios etc. So, evidentemente, modalidades simples e tradicio~ nais, que nao tém o brilho e a sofisticag’o das tltimas novidades da industria do lazer, nem apresentam conotacées politicas ou de classe explicitas, mas estéo profundamente vinculadas ao modo de vida ¢ as tradigdes dessa populacao. Analisando mais de perto as regras que presidem 0 uso do tempo livre por intermédio dessas formas de lazer, verificou-se ‘que sua dinamica ia muito além da mera necessidade de reposi- 0 das forcas dispendidas durante a jornada de trabalho: repre~ seniava, antes, uma oportunidade, através de antigas e novas formas de entretenimento ¢ encontro, de estabelecer, revigorat ¢ exercitar aqui regras de reconhecimento ¢ lealdade que garan- tem a rede basica de woclabilldade, O que nao & de pouca impor- tncia para uma populacdo cujo cotidiano nio se caracteriza exa~ tamente pelo gozo pleno dos direitos de cidadania. Assim, tomando-se como ponto de partida o espaco onde sd0 {61 possivel distinguir um sistema de oposigdes cujos 3 termos so “em casa” versus “fora de casa”. Na primei- #?ra categoria, “em casa”, estavam aquelas formas de lazer associa- das a ritos que celebram as mudangas significativas no ciclo vital ¢ tém como referéncia a familia, ou seja, festas de batizado, ani- versario, casamento etc, O segundo termo da oposigio, “fora de casa”, subdividia-se, por sua vez, em ‘na vizinhanga” ¢ “fora da vizinhanga”. O primeiro engloba locais de encontro ¢ lazer ~ 08 bares, lanchonetes, saldes de baile, sales paroquiais ¢ terreiros de candomblé ou umbanda, campos de futebol de varzea, o circo etc, ~ que se situam nos limites da vizinhanga. Esto, portanto, sujeitos a uma determinada forma de controle, do tipo exercido por gente que se conhece de alguma maneira — seja por morar perto ou por utilizar os mesmos equipamentos como ponto de Snibus, telefone puiblico, armazém, farmacia, centro de saiide, quadra de esportes. ‘Quando o espagp ~ ou um segmento dele ~ assim demarcado torna-se ponto de referéncia para distinguir determinado grupo de freqiientadores como pertencentes 2 uma rede de relagdes, recebe o nome de pedaco: YE 0 tezmo na realidade designa aquele espaco intermedifrio entre 0 privado (casa) ¢ 0 piblico, onde se desenvolve uma sociabilidade bisica, mais ampla ue a fundada nos lacos familiares, porém mais densa, significativa¢ estvel que 1s relagSes formais ¢ individualizadas impostas pela sociedade (idem:138) E nesses espagos em que se tece a trama do cotidiano: a vida do dia-a-dia, a pritica da devogio, a troca de informagées pequenos servigos, os inevitaveis conflitos, a participagdo em ati- vidades vicinais. E também o espago privilegiado para a pratica do lazer nos fins de semana nos bairros populares. Dessa forma, © pedago & a0 mesmo tempo resultado de praticas coletivas (entre ‘as quais as de lazer) e condicio para seu Pertencer a essa rede implica o cump: regras de lealdade que funcionam também como protegao, inclu- sive quando as pessoas aventuram-se para o desfrute de lazer fora do_pedago, como acontece com disputas de futebol em outros bairros, excursdes, idas a saldes de baile ou a outros equipamen- tos de lazer situados em pontos afastados do bairro. Pescoss de pedagos diferentes, ou alguém em sxnsite por um pedago que do 0 seu, sio muito cautelosas: 0 conilito, a hostilidade estio sempre latentes, pois todo lugar fora do pedago & aquela parte desconhecida do mapa e, portan- 10, do perigo (idern:139) Como se pode ver, os momentos de lazer ndo podem ser con- siderados apenas por seu lado instrumental, passivo ¢ individua- lizado — reposicao das energias gastas no processo produtivo. Isto porque, como a anilise da categoria pedago permitiu verificar, existe um componente afirmativo referido ao estabelecimento & reforgo de lacos de sociabilidade, desde o niicleo familiar até 0 circulo mais amplo que envolve amigos, colegas, “chegados” (no Ambito do pedaco) e desconhecidos (fora do pedace). Finalizando, cabe observar que a nogdo “nativa” de ini- cialmente incorporada ao sistema de oposi¢des construido para ordenar a multiplicidade de formas de lazer, mostrou-se de mais, proveito, revelando-se boa para pensar a dinémica no bairro. Assim, de mero termo no interior de um sistema de classificacao, terminou assumindo o papel de categoria que descreve. uma par- ticular forma de sociabilidade ¢ apropriacio do cspaco. ‘Até aqui, 0 contexto foi o bairro na periferia de So Paulo. O que acontece, porém, em outros pontos do territério urbano, como a regiéio central, por exemplo ~ geralmente caracterizada pelo anonimato, impessoalidade nas relagdes e percorrida por gente de varias procedéncias? Como se estabelecem, ai, as redes de sociabilidade, ja ndo marcadas por relagdes de familia e vizi nhanca ou por praticas compartilhadas no horizonte do dia-a- dia? Sair da periferia em diregdo ao centro significa, além de deixar 0 bairro, abandonar a légica do pedaco? Do Barro ao CentRO As indagagdcx wuncitudan pelas conclusdes da pesquisa ante- aCe eee eee eee eee eee CeCe eee eee eer eee Eee eeEe rior motivaram a realizagdo de outro estudo, que, para no per- der a possibilidade de comparaco, continuou sendo sobre lazer enquanto pritica que supde a formacao de vinculos ¢ implica determinadas formas de relago com o espaco € equipamentos urbanos ~ agora no centro da cidade, evidentemente, (© projew intivulava-se Os Pedagos da Cidade" ¢, também em relagdo ao trabalho precedente, apresentava uma inovagdo: foi uma atividade coletiva, realizada pelos membros do Nicleo de Antropologia Urbana (NAU). Esse grupo, de inicio um espaco informal de discussio que reunia alunos de pés-graduacéo em antropologia social, sob minha orientagao, terminow agregando estudantes de graduacdo ¢ de outras areas, interessados em antropologia urbana'’, O projeto representou uma oportunidade concreta de treinamento e pritica de pesquisa para dezenove pes- quisadores, em 28 sessdes de trabalho ¢ quinze idas a campo, em diferentes grupos. Claro que todos estavam familiarizados com a pritica da etno- grafia: € uma forma de operar ~ aprendia-se em aula — que no exclui, ao contririo, supde @ utilizagio de quadros tedricos mais 14, Peaquisa realiznds entre 1989 © 1990 na cidade de Sto Paulo, com apoio do CNP © ‘participari dos integrentes do NAU (ve nota seguinte) tanto na fase de cole de ddados como nas dscassdes que se seguiam is idas 2 campo. Em diferentes momen- tos e com graus de envoivimento também diferentes, dela participaram: Heitor Frogol, Vagner Goncalves da Siva, Rita de Cassia Amaral, Lilan de Lucca Torres, Heloisa Buarque de Almeida, Luiz Henrique Toledo, Liliana Souza e Sive, Days Pereimutter, Yara Schereiber, Leticia Vidor, Yara Cunha Oli, Alexandre Leone, ‘Wilson Rizzo, Domingos Lesncio da Silva, Elena Grosbaum, Daniel Annemberg, André Luiz de Alcénrara, James de Abreu 15, Ineiaimente, quando fol formado, em 1988, 0 NAU era composto apenas por orien- tandos meus de pérgraduacao (Programa de Pos-Graduacdo em Antropologia Social, Departamento de Antropologis, FFLCH/USP)¢ o que se propainha era estabe~ lecer um esparo de debates que permitisee transcender o eariter demasiadamente incividualizad e soitno da atvidade de pesquisa com vistas & distertagdo ou ese PPorém, devdo ao interesse cada ver maior que rea da entropologia urbana vinha despertando entre alunos de graduacio, conviel alguns dos estudamtes que aviam cursada as disipinas A Pesquisa Antropoldgica no Contexto Urbano e Seminars fem Antropologia I A experigncia de colocar em tomo da mesma mesa alunos com objctos de extodo variados e, principalmente, em diferentes exapes de pesquisa reve- louse sumamente ensiquecedoru: estabeleceu-se um sistema de rocas com base na reciprocidade, cujos trates ranscendiam a esfera da discussio academia: a ineviti- ‘el inseguranca que acompanhs os primeiro passos da pesquisa passava ser mini- rizade tendo-te em vista 0 caminko ji percorrido dor colegas em fases mais adiantadas. amplos, o conhecimento de variaveis mais abrangentes, a inser- ¢o em processos histéricos pertinentes. E a alternancia entre ambos os niveis — o trabalho com 0s significados no nivel local ¢ sua coloca¢do em quadros mais gerais - descrita por Geertz atra- vés dos termos experience-near e experience-distant, que caracteriza a perspectiva interpretativa. Mas, como bem observa Mariza Peirano, niio hi como ensinar a fazer pesquisa de campo como se ensina, em outras cién- cias sociais, métodos estaisticos, téenicas de surveys, aplicagio de question’ ios. Na antropologia, a pesquisa depende, entre outras coisas, de biografia do pesquisador, das opgies tedricas da disciplina em determinado momento, do contexto histérico mais amplo e, nlio menos, das imprevisives situagdes que se cconfiguram no dia-a-dia no local da pesquisa, entre pesquisador € pesquisados. Se esses imponderdveis so comuns também nas outras ciéncias sociais, na antropologia eles ficam ressaltados pela relaglo de estranhamento que a pesquii- sa de campo pressupde e que resulta na questio do exctismo “candnico™ da dis

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