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TRADUÇOES
DA CULTURA
,Perspectivas
criticas feministas
(1970-?010)
TRADUÇÕES DA CULTURA
Perspectivas críticas feministas (1970-2010)

ORGANIZAÇÃO
Izabel Brandão
Ildney Cavalcanti
Claudia de Lima Costa DEDICATÓRIA
Ana Cecilia Acioli Lima
REVISÃO .......
Maria Heloisa Melo de Moraes
REVISÃO TÉCNICA ~ Zahldé Muzart (in memoriam), que nos fez
Gerusa Bondan {Â__.óuvir as vozes das mulheres escritoras brasileiras.
CAPA Com Cecília Meireles, afetuosamente, podemos dizer: "eu
Gracco Bonetti quero a memória acesa depois da angústia apagada".
OBRA: No Jardim elétrico I AR TIS TA: Marta Emília
DIAGRAMAÇÃO
Nice Cipriani I nicecipriani4@gmail.com
IMPRESSÃO
Impressul I www.impressul.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

B816t Brandão, Izabel (Org.)


Traduções da Cultura: Perspectivas Críticas Feministas (1970-2010) /lzabel
Brandão, lldney Cavalcanti, Oaudia de Lima Costa, Ana Cecília A cioli Lima
(Organizadoras). -Florianópolis: EDUFAL; Editora da UFSC, 2017.
840pp.:

ISBN 978-85-7177-851-1 (EDUFAL)


ISBN 978-85-328-0814-1 (Editora da UFSC)

1. Movimento Feminista 2. Feminismo - Brasil I. Brandão, Izabel (Org.)


li. Cavalcanti, lldney (Org.) ill. Costa, Claudia de Lima IV. Lima, Ana Cecília
Acioli (Org.) V. Título
CDD301.412

APOIO
CNPq, EDUFAL, EDUFSC, EditoraMuJheres

4 llzabel Brandão llldney Cavalcanti l Claudia de Uma Costa I Ana Cecma Acioli Uma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas criticas fuministas [197D-2D10J I5
Queer e hierárquica que classifica a homossexualidade como
um desvio de uma heterossexualidade privilegiada e
Annamarie Jagose naturalizada. Muita crítica conservadora .,.. para não dizer
linguisticamente ingênua- foi feita a essa apropriação, com
o argumento de que uma palavra "inocente" estava sendo
pervertida de seu uso apropriado. Quando o livro de John
Homossexual, lésbica ou gay, queer
Boswell, Christianit.y, Social T olerance, and H omosexuality: gay
people in western europe from the beginning of the christian era
')Qesar de seu amplo uso, queer como um. termo to the fourteenth century (1980), foi publicado, Keith Thomas
We autodescrição é um fenômeno relativamente (1980) repreendeu o editor por permitir o uso descuidado
recente, apenas a mais recente de uma série de palavras que de gay por Boswell: "A História sugere que tentativas de
passaram a constituir o campo de força dahomossexualidade resistir a mudanças semânticas são quase invariavelmente
a partir do século XIX. A palavra homossexualidade - malsucedidas" (p. 26) .. Ele escreveu: "Mas parece uma pena
cunhada em 1869 pelo médico suíço Károly María Benkert que a Editora da Universidade de Chicago tenha, nesse caso,
- não era usada de forma abrangente na Inglaterra até os cedido tão prontamente" (p. 26). Thomas então especificou
anos 1890, quando foi adotada pelo sexólogo Havelock Ellis. o que havia de errado com esse uso do termo:
O termo continua tendo um uso corrente, mas, por causa da A primeira objeção é política. Uma minoria sem dúvida
sua inevitável associação com os discursos patologizantes tem o direito de se rebatizar com um termo que carregue
da medicina, hoje é raramente utilizado como um termo conotações mais favoráveis, de forma a validar seu próprio
de autoidentificação. "Descrever alguém como 'um/a comportamento e se livrar do escândalo. Mas não é de se
esperar que quem não faz parte daquela minoria observe
homossexual"', escreve Simon Watney (1992), "significa esse novo uso, particularmente quando o _novo rótulo
imediatamente adentrar uma teoria pseudocientífica da parece ser inapropriadamente bizarro e, inlplicitamente,
sexualidade que pertence mais apropriadamente à era da pode se aplicar por extensão a todas as outras pessoas ...
máquina a vapor do que ao final do século XX". A segunda objeção a gay é linguística. Durante séculos, a
palavra significou (aproximadamente) "alegria", "leveza",
Mais recentemente, nos anos 1960, libertárias/ ou"exuberantemente alegre". Atribuir a ela um significado
os romperam estrategicamentE;! com o termo totalmente diferente é nos desprover de um item de
"homossexualidade" ao anexarem a palavra gay, vocabulário até então indispensável e, incidentalmente,
reempregando, assim, uma gíria do século XIX que, transformar em nonsense muito da nossa herança literária
(p. 26).
anteriormente, descrevia mulheres de moral duvidosa.
O termo gay foi mobilizado como um contraponto Apenas quinze anos mais tarde as objeções de Thomas
especificamente político à categorização sexual binária parecem cômicas. Sua indignação em relação ao termo gay
como não apenas representando mal os/as homossexuais,
mas, também, como deslegitimando os/as heterossexuais
1
N. da T.: Por um bom tempo o termo queer foi usado como uma gíria para designar,
de forma pejorativa, pessoas homossexuais, e, por isso mesmo, expressava a violência de sua imensa felicidade enquanto uma categoria, não
homofóbica. Como uma estratégia de minar o preconceito embutido na palavra queer, conseguiu ser mais persuasiva que a sua ansiedade de
o termo foi incorporado e ressignificado por novos modelos teóricos, nascidos dos
feminismos, dos estudos gays e lésbicos, e, sobretudo, das teorizações de Judith Butler que o homônimo gay pudesse danificar a linguagem e a
sobre gênero e identidades.

436 jlzabel Brandão llldney Cavalca~ti I Claudia de Uma Costa I Ana Cecflia Acioli Uma
TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas (1970-2010J I 437
literatura. De fato, a popularidade do termo gay ratifica o de um termo livre de ideologias" (DYNES, 1990, p.
seu potencial como um adjetivo livre do fardo da história 1091). Os exemplos de Chauncey e Dynes funcionam como
patologizante da sexologia. alertas de que noções equivocadas da evolução histórica
Traçar a evolução etimológica é, usualmente, uma raramente correspondem aos paradigmas mais fechados
tarefa mais geral do que precisa. Enquanto, até certo ponto, que pretendem descrevê-los. Mesmo assim, o caminho
os termos ''homossexual", "gay'' ou "lésbica" e queer marcam percorrido por "homossexual", "gay'' e "queer'' descreve,
mudanças históricas sucessivas na co:n.ceitualização do sexo de forma precisa, os termos e as categorias de identificação
entre pessoas do mesmo sexo, sua aplicação real tem sido, comumente usadas para enquadrar o desejo entre pessoas
muitas vezes, menos previsível, frequentemente precedendo do mesmo sexo no século XX.
ou vindo depois dos períodos que, respectivamente, Apesar de esses termos serem claramente relacionados
caracterizam. Por exemplo, George Chauncey observa que entre si, os argumentos construtivistas indicam que não se
nas várias subculturas que constituíam o complexo mundo trata apenas de diferentes formas de falar a mesma coisa,
gay da Nova Iorque pré-Segunda Guerra, o termo queer e, portanto, não podem ser erroneamente considerados
pré-datava o termo gay.
sinônimos. Como Simon Watney (1992) argumenta,
Ele (1994) ressalta que
[...] longe de serem questões triviais, tais questões de
[...] por volta dos anos 1910 e 1920, os homens que mudança e contestação no nível de identidades pessoais
se identificavam como diferentes de outros homens, íntimas são fundamentais para a nossa compreensão dos
primariamente com base no seu interesse homossexual, ao mecanismos do poder dentro de uma perspectiva mais
invés de uma condição de gênero efeminado, geralmente ampla da Modernidade.
se chamavam de queer (p. 101).
Queer não é simplesmente o exemplo mais recente de
Ao contrário, o termo gay "[ ... ]começou a entrar em
uma série de palavras que descrevem e constituem o desejo
uso primeiro nos anos 1930, e sua primazia se consolidou
entre iguais de forma trans-histórica, mas, pelo contrário,
durante a guerra" (p. 19). Recentemente, em 1990, a
é uma consequência da problematização construtivista de
Enciclopédia da homossexualidade glosou queer como quase
qualquer termo supostamente universal. Observando na
um termo arcaico, concluindo - prematuramente, no final
proliferação discursiva recente dos estudos de gays e lésbicas
das contas - que
certa hesitação ou autoconsciência sobre quais termos usar
[...] o declínio da popularid.ade da palavra poderia,
portanto, refletir a maior visibilidade e aceitação, nos
em quais circunstâncias, James Davidson (1994) diz:
dias de hoje, de homens gays e lésbicas e a crescente Queer é de fato a solução mais comum a essa crise moderna
consciência de que a maioria deles/as são pessoas comuns da enunciação, uma palavra tão viajada que pode tanto ser
e inofensivas (DYNES, 1990, p. 1091). usada confortavelmente nas salas-de-estar do século XIX,
adaptando-se aos sussurros e insinuações, como nas ruas
Apesar de admitir que nos Estados Unidos do século dos anos 1990, onde sua visibilidade cresce e toma a forma
XX queer foi provavelmente o termo vemacular pejorativo de um slogan de empoderamento (p. 12).
contra homossexuais mais popular, a Enciclopédia reporta Davidson argumenta que queer "[ ... ]não produz nada,
incredulamente que "[...] até hoje alguns homossexuais apenas confúsão" (p. 12). O termo crítico queer provou ter
ingleses mais velhos preferem o termo, muitas vezes até um senso histórico altamente elástico. Entretanto, tem
fingindo acreditar que se trata
43 8 llzabel Brandão 1lldney Cavalcanti I Claudia de Uma Costa I Ana Cecflia Acioli Uma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas (1970-20101 I 439
sido mobilizado mais comumente não como um descritor Marias Purpurinas ifag hags). 2 Mais censura e chantagem,
e Orton. Então, houve Stonewall (1969) e todos nós nos
retrospectivo ou trans-historicizante, mas como um termo
tomamos gays. Houve o feminismo, t~bém, e algumas
que indexa precisamente e especificamente formações de nós nos tomamos feministas lésbicas e até lésbicas
culturais dos finais dos anos 1980 e nos arios 1990. Ao separatistas. Houve drag e clones e machorras e políticas
descrever a transição de 'homossexual' para gay, Weeks e o Gay Sweatshop. 3 Depois, veio a AIDS, que, através da
discussão intensa sobre as práticas sexuais (como opostas
(1977) argumenta que esses termos: a identidades sexuais) fez eclodir o movimento Queer na
[...]não são apenas novos rótulos para realidades antigas: América (Estados Unidos). Então, a manifestação gigante
eles apontam para urna realidade em transformação, da paranoia Thatcherista, a cláusula 28, que provocou a
tanto nas formas como urna sociedade hostil rotulava rápida união entre as políticas lésbicas e gays no Reino
a homossexualidade, como na forma como quem era Unido. A criança é Queer, e urna criança problema, com
estigmatizado via a si próprio (p. 3). certeza (p. 14).
Similarmente, ao se distinguir daqueles termos que Embora esse relato tenha um tom muito humorístico
formam sua histór~a semântica, queer igualmente destaca para ser uma genealogia convincente de queer como uma
uma "realidade em mudança", cujas dimensões serão categoria, sua invocação paródica de causa e efeito históricos
examinadas adiante. certamente dramatiza as continuidades e descontinuidades
ambivalentes que caracterizam a evolução do termo queer.
O contexto pós-estruturalista de queer Apesar de a mobilização do termo queer no seu sentido
Queer marca tanto uma continuidade quanto um mais recente não possuir uma data exata, geralmente se
rompimento com modelos anteriores de liberação gay considera que foi adotado mais popularmente no início dos
e lésbica. Modelos feministas lésbicos de organização anos 1990~ Queer é o produto de pressões culturais e teóricas
funcionavam como corretivos à tendenciosidade específicas que, cada vez mais, têm estruturado debates
masculinista de uma liberação gay que já havia nascido (dentro e fora da academia) sobre questões de identidade
de insatisfações com organizações homófilas anteriores. lésbica e gay. Talvez a problematização mais significativa
Da mesma forma, queer exerce uma: ruptura que, longe a esse respeito tenha sido a feita pelo pós-estruturalismo
de ser absoluta, é significativa apenas no contexto do à compreensão de identidade e das operações do poder
seu desenvolvimento histórico. A varredura histórica da do movimento pela liberação gay e das feministas lésbicas.
evolução gay, simulada por Susan Hayes (1994), localiza Esse fato levou David Herkt (1995) a argumentar que
queer como o último de uma série de eventos relacionados: [...] a identidade gay é 'perceptivelmente um construto
filosoficamente conserVador, baseado em premissas que
Primeiro houve Sappho (os bons velhos tempos). Depois,
houve o homoerotismo aceitável da Grécia ·clássica, os
excessos de Roma. Então, saltando, casualmente, dois 2
N. da T.: Termo usado para se referir a uma mulher heterossexual que se associa
milênios, houve Oscar Wilde, sodomia, chantagem e exclusivamente com homens homossexuais e/ou bissexuais, ou a mulheres cujos
prisão, Forster, Sackville-West, Radclyffe Hall, inversão, melhores amigos são gays.
3
Companhia de teatro fundada em Londres, em 1974, com o objetivo de conscientizar
censura; então, efeminados, sapatão (mulher-macho, heterossexuais da opressão que exercem contra gays e, também, de se contrapor às
caminhoneira) e femme (sapatilha), viados, rainhas, representações estereotipadas dos/as homossexuais, oferecendo figuras mais próximas
à realidade. Outro propósito do grupo, expresso em seu manifesto de 1975, era expor
o caráter opressivo da sexualidade, tanto para heterossexuais como para gays. A
Companhia se dissolveu em 1997.

440 llzabel Brandão llldney Cavalcanti I Claudia de üma Costa I Ana Cecilia Acioli üma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas [1970-201 OJ I 441
não mais possuem uma relação acadêmica convincente do progressivo, do liberador, do revolucionário, etc., na
com teorias contemporâneas sobre identidade e gênero (p. mudança social (p. 370).
46).
De fato, como um modelo intelectual, queer não foi
A deslegitimação de noções liberais, liberacionistas, produzido unicamente pelas políticas e teorias lésbicas
étnicas e até separatistas de identidade gerou o espaço e gays, mas tem sido constituído por conhecimentos
cultural necessário para a emergência do termo queer; historicamente específicos que formam o pensamento
sua não especificidade garante que não seja alvo de ocidental do final do século XX. Transições semelhantes
críticas recentes feitas contra as tendências excludentes de podem ser vistas tanto na teoria e prática feminista como
"lésbica" e "gay'' como categorias identitárias. Apesar de na pós-colonial, quando, por exemplo, Denise Riley (1988)
não haver um consenso acerca da definição exata de queer, problematiza a insistência do feminismo nas "mulheres"
as esferas interdependentes do ativismo e da teoria que como uma categoria unificada, estável e coerente, e Henry
constituem seu contexto necessário têm passado por várias Louis Gates (1985) desnaturaliza "raça". Tais mudanças
transformações. conceituais tiveram um grande impacto dentro dos estudos ,
Antes de considerar os debates específicos sobre a e ativismos lésbicos e gays e representam o contexto histórico
eficácia de queer, é importante compreender que os modelos para qualquer análise de queer.
de identidade, gênero e sexualidade que, em grande parte, Tanto os movimentos de lésbicas como os de gays
sustentaram a agenda queer, mudaram, e reconhecer as eram comprometidos fundamentalmente com a noção de
implicações de tais mudanças nas teorizações sobre poder políticas de identidade por pressuporem que a identidade
e resistência. Ao distinguir a Frente de Liberação Gay da era o requisito necessário para uma intervenção política
Nação Queer, Joseph Bristow e Angela R. Wilson (1993) efetiva. Queer, por outro lado, exemplifica uma relação
consideram significativo, em termos de definição, que"[ ... ] mais mediada com categorias de identificação. O acesso
uma política de identidade antiga tenha sido substituída às teorizações pós-estruturalistas sobre identid~de como
por uma política da diferença" (p. 1-2). Da mesma maneira, sendo provisórias e contingentes, somado à consciência
Lisa Duggan (1992) observa que, em modelos queer, "[ ... ]a crescente das limitações das categorias identitárias em
retórica da diferença toma o lugar da ênfase liberal, com termos de representação política, permitiu que queer
foco na assimilação, na semelhança' com outros grupos" (p. emergisse como uma nova forma de identificação pessoal
15). Ao identificar a diferença como um termo crucial para e de organização política. "Identidade" é, provavelmente,
os conhecimentos e modos de organização queer, essas/es uma das categorias culturais mais naturalizadas que cada
teóricas/os mapeiam uma mudança que não é específica a um de nós habita: sempre pensamos no nosso "eu" como
queer, mas característica do pós-estruturalismo em geral. algo que existe fora de todas as molduras representacionais,
Como afirma Donald Morton (1995), e como marcando, de alguma forma, um ponto de realidade
inegável. Na segunda metade do século XX, contudo,
Em vez de um efeito local, o retorno de queer deve
ser compreendido como o resultado, no campo da
tais alegações aparentemente lógicas e autoevidentes
sexualidade, do encontro (pós)moderno com- ou rejeição a à identidade foram radicalmente problematizadas
-perspectivas iluministas relativas ao papel do conceitual, em várias frentes, por teóricos como Louis Althusser,
do racional, do sistemático, do estrutural, do normativo, Sigmund Freud, Ferdinand de Saussure, Jacques Lacan e
442 jlzabel Brandão I lldney Cavaicanti I Claudia de Uma Costa I Ana Cecilia Acioli Uma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas [1970-20101 I 443
Michel Foucault. Coletivamente, seus trabalhos tomaram Assim como a abordagem estruturalista marxista
possíveis certos avanços na teoria social e nas ciências da subjetividade, a psicanálise disponibiliza à cultura
humanas que, nas palavras de Stuart Hall (1994), efetuaram uma narrativa que complica a pressuposição de que uma
o "' descentramento' final do sujeito cartesiano" (p. 120).4 identidade é a propriedade natural de qualquer indivíduo.
Consequenternente, identidade foi reconceitualizada A teorização de Sigmund Freud sobre o inconsciente desafia
como uma fantasia ou mito cultural persistente. Pensar mais além a noção de que a subjetividade é estável e coerente.
identidade como uma construção 'mitológica' não é o Ao estabelecer a influência formativa de processos mentais
mesmo que dizer que categorias de identidade não tenham e psíquicos importantes dos quais um indivíduo não tem
efeito material. Ao contrário, significa entender - como consciência, a teoria do inconsciente tem implicações
faz Roland Barthes em Mitologias (1978) - que a nossa radicais ao pressuposto do senso comum de que o sujeito
compreensão de nós mesmas/os como sujeitos coerentes, é tanto inteiro como capaz de se autoconhecer. Além disso,
unificados e autodeterminantes é um efeito daqueles códigos interpretações do trabalho de Freud - particularmente
representacionais comumente usados para descrever o self pelo psicanalista francês Jacques Lacan - estabelecem a
e, através dos quais, consequentemente, as identidades subjetividade como algo que deve ser aprendido, em vez
passam a ser entendidas. A compreensão de Barthes de algo que já está pronto. A subjetividade não é uma
sobre subjetividade questiona a aparente naturalidade ou propriedade essencial do self, mas algo que se origina fora
"verdade" autoevidente da identidade, que tem sua origem dele. A identidade, portanto, é um efeito de identificação
histórica na noção de René Descartes do self como algo que com e contra outros: por estar sempre em movimento, e
é autodeterminante, racional e coerente. sempre incompleta, trata-se de um processo, ao invés de
Reconsiderando a ênfase de Karl IYiarx na estrutura uma propriedade.
de restrições ou condições históricas que determinam as
Em algumas de suas iru1uentes aulas. sobre a
acões de um indivíduo, Louis Althusser argumenta que nós
linguística estrutural, proferidas entre 1906-1911, Ferdinand
não preexistimos como sujeitos livres: ao contrário, somos
de Saussure argumenta que a linguagem não apenas
constituídos como tal pela ideologia. Sua tese central é a de
reflete como também constrói a realidade. Para Saussure,
que os indivíduos são "interpelados" ou "chamados'~ como
a linguagem não é um sistema de segunda ordem cuja
sujeitos pela ideologia, e que essa interpelação é alcançada
função seja a de simplesmente descrever o que já existe. Ao
por meio de uma mistura convincente de reconhecimento
contrário, a linguagem constitui e toma significante aquilo
e identificação. Essa noção é in1portante para qualquer
que ela aparenta apenas descre:Ver. Além do mais~ Saussure
exame mais aprofundado sobre políticas identitárias,
define a linguagem como um sistema de significação
porque demonstra como a ideologia não apenas posiciona
que precede qualquer falante individual. A linguagem é
os indivíduos na sociedade, como também confere a eles
comumente confundida como o meio pelo qual expressamos
seu senso de identidade. Em outras palavras, mostra como
nossos "eus autênticos", e nossos pensamentos e emoções
a identidade de alguém já é constituída pela ideologia em
p1ivadas. Saussure, contudo, nos pede que consideremos
vez de, simplesmente, pela resistência a ela.
nossas noções de um self privado, pessoal e interior como
algo já constituído pela linguagem.
4
Cf. Chris Weedon (1987); Diana Fuss (1989); Barbara Creed (1994).

444 lizabel Brandão I lldney Cavalcanti I Claudia de Uma Costa I Ana Cecflia Acioli Uma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas (1970-2010J I 445
As teorias de Althusser, Freud, Lacan e Saussure Ao 'definir os efeitos do poder como repressão,
fornecem o contexto pós-estruturalista em que emerge ac~itamos uma concepção puramente jurídica daquele
poder; identificamos o poder a uma lei que diz não;
queer. O historiador francês Michel Foucault dedicou-se que possui, acima de tudo, a força de uma interdição.
mais explicitamente a desnaturalizar noções dominantes Agora, eu acredito que essa é uma concepção totalmente
de identidade sexual. Ao enfatizar que a sexualidade não negativa, limitada e superficial do poder, que tem sido
é essencialmente um atributo pessoal, mas uma categoria curiosamente compartilhada. Se o poder nunca foi nada
além de repressor, se nunca fez nada além de dizer não,
disponibilizada pela cultura - e que se trata do efeito do você realmente acredita que conseguiríamos obedecê-
poder ao invés de ser simplesmente seu objeto - os escritos lo? O que dá ao poder a sua força de controle, o que faz
de Foucault têm sido crucialmente significativos para o com que seja aceito, é simplesmente o fato de que ele não
desenvolvimento do ativismo e dos estudos lésbicos ~ apenas carrega uma força que diz não, mas também que
se espalha, e que produz coisas, induz ao prazer, forma
gays, e, subsequentemente, queer. Afirmar isso não significa conhecimento, produz discursos; deve ser considerado
alegar que existe literalmente uma conexão causal entre o como uma rede produtiva que percorre todo o corpo
trabalho de Foucault e a prática e teoria queer. No entanto, social mais do que como um modelo negativo cuja função
como observa Diana Fuss (1989), a obra de Foucault sobre a é a repressão (p. 36).
sexualidade ressoa com Na análise de Foucault (1981), identidades sexuais
[... ] os questionamentos entre teóricas/os e ativistas gays marginalizadas não são simplesmente vítimas das
sobre o significado e a aplicabilidade d~ categorias como operações do poder. Pelo contrário, elas são produzidas
"gay", "lésbica", e "homossexual", em um contexto por essas mesmas operações:
pós-estruturalista que torna problemáticas quaisquer
afirmações de identidade (p. 97).5 Durante dois séculos, o discurso sobre sexo tem sido
multiplicado em vez de rarefeito; e se tem carregado
O argumento de Foucault de que a sexualidade é uma consigo tabus e proibições, tem, também, · de uma
produção discursiva, em vez de uma condição natural, forma mais fundamental, garantido a consolidação e a
faz parte de sua argumentação mais ampla de que a implantação de todo um mosaico sexual (p. 53).
subjetividade moderna é um efeito de redes de poder. Não Essa ênfase nos aspectos produtivos e facilitadores
apenas negativo ou repressivo, mas também produtivo e do poder altera profundamente os modelos pelos
facilitador, o poder é" exercido a partir de inúmeros pontos" quais tradicionalmente ele tem sido compreendido.
sem um efeito predeterminado. (FÓUCAULT, 1981, p. 94). Consequentemente, a reavaliação que Foucault faz do
Ao contrário do conceito popular de que o sexo existe além poder afeta significativamente muitas das análises dos
das relações de poder e, no entanto, é reprimido por elas, estudos lésbicos e gays.
Foucault (1979) defende que o poder não é primariamente Já que não pensa o poder como uma força
uma força repressora: fundamentalmente repressora, Foucault (1981) não
endossa estratégias em prol da liberação, como romper
5
David Halperin (1995) argumenta de forma cuidadosa como o trabalho de Foucault com proibições e se assumir publicamente. De fato, porque
se relaciona com as prioridades e as práticas dos novos movimentos sociais. Em
vez de argumentar que o primeiro simplesmente inspira o segundo, ele sugere que a
a ideia da repressão sexual moderna é amplamente aceita,
teorização de poder feita por Foucault foi uma consequência do seu conhecimento desses Foucault especula que a crítica discursiva da opressão,longe
movimentos e de sua experiência neles, e que muitos dos seus conceitos influentes
circularam, subsequentemente, em circunstâncias mais mediadas (p. 25-26). de identificar corretamente os mecanismos do poder,"[ ... ] é

446 llzabel Brandão I lldney Cavalcanti I Claudia de Uma Costa I Ana Cecflia Acioli Uma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas (1970-20101 I 447
na verdade parte da mesma rede histórica que a coisa que homossexualidade foi construída em relação a estruturas
denuncia (e que, sem dúvida, representa erroneamente) de poder e de resistência. A emergência do/a homossexual
ao chamá-la de 'repressão (p. 10). Foucault questiona a
111 11
como uma espécie" demonstra a capacidade polivalente
crença liberacionista de que dar voz a identidades lésbicas do discurso:
e gays previamente negadas e silenciadas seja uma forma de É inquestionável que o surgimento, no século XIX, da
desafiar o poder, e, assim, induzir um efeito transformador. psiquiatria, da jurisprudência, e da literatura sobre
Como Foucault (1981) é resoluto na sua posição toda uma série de discursos a respeito das espécies e
subespécies de homossexualidade, inversão, pederastia,
antiliberacionista nessa questão, ele algumas vezes é lido e "hermafroditismo psíquico" possibilitou um grande
- talvez de forma não muito surpreendente, dada a visão avanço nas formas de controle social nessa área da
corrente do que ele critica como ~,a hipótese repressiva" - 'perversão'; mas tomou possível também a formação de
um discurso 'reverso': a homossexualidade começou a
como advogando o derrotismo político (p. 15).
falar em causa própria, a exigir o reconhecimento da sua
No entanto, Foucault (1981) também argumenta legitimidade ou 'naturalidade', geralmente utilizando o
que 11
onde há poder, há resistência" (p. 95), uma
[ ... ] mesmo vocabulário, e as mesmas categorias pelas quais
resistência coextensiva ao [poder] e absolutamente sua
11 era cientificamente desqualificada (FOUCAULT, 1981, p.
101).
contemporânea" (FOUCAULT, 1988a, p. 122). Assim como
o poder, a resistência é múltipla e instável; coagula-se em O discurso, então, ·está inteiramente dentro dos
alguns pontos, se dispersa em outros, e circula no discurso. mecanismos do poder (embora não necessariamente ao seu
'Discurso' é a coleção heterogênea de enunciados que se serviço). A análise de Foucault enfocao discurso como um
relacionam a um conceito em particular, e, dessa maneira, modo de resistência, não para contestar o seu conteúdo,
constitui e contesta o seu significado - aquela "[ ... ] série mas para particularizar suas operações estratégicas. Uma
de segmentos descontínuos cuja função tática não é nem vez que a sexualidade é um dos seus exemplos principais,
uniforme, nem estável" (FOUCAUI. T, 1988a, p. 100). Da Foucault considera as identidades sexuais como os efeitos
mesma forma que alerta contra a ideia de que o poder discursivos de categorias culturais disponíveis. Desafiando
demarca apenas relações hierárquicas, Foucault (1988a) as maneiras mais comuns de se compreender o poder e a
também insiste em que o discurso não é simplesmente resistência, seu trabalho tem um apelo óbvio para as teorias
a favor ou contra algo, mas infinitamente promíscuo e e práticas lésbicas e gays - e, subsequentemente, queer.
11
polivalente: Apesar de Foucault (1988b) tratar o autor" como um efeito
[...] não devemos imaginar um mundo discursivo textual em vez de uma presença real, sua identidade pública
dividido entre o discurso aceito e o discurso excluído, enquanto um homem gay pode muito bem ter facilitado os
ou entre o discurso dominante e o dominac;lo; mas como estudos gays inspirados na sua obra.
umamultiplicidade de elementos discursivos que podem
participar em diversas estratégias (p. 100).
Ainda mais explicitamente do queAlthusser, Saussure,
Freud e Lacan, Foucault reconceitualiza radicalmente a
Quando descreve a relação entre discursos e identidade de maneiras que deram novas formas aos estudos
estratégias, e demonstra como um único discurso pode lésbicos e gays. A crítica recente à política identitária- tanto
ser usado estrategicamente para fins de oposição, dentro como fora dos círculos lésbicos e gays - não surgiu
Foucault especificamente exemplifica como a categoria da

448 llzabel Brandão 1lldney Cavalcanti I Claudia de Uma Costa I Ana Cecilia Acioli Uma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas criticas feministas !1970-20101 I 449
simplesmente porque a reificação de qualquer identidade Sexuality (História da sexualidade I: a vontade de saber}--c-.. - ]
singular seja considerada algo excludente. Aconteceu (1981, v. 1)1 de Foucault, é, para David Halperin (1995);-----··
porque, no pós-estruturalismo, a próprianoçãodeidentidade "a única fonte intelectual mais importante de inspiração
como um senso coerente e estável de self é entendida como política para os/as ativistas contemporâneos/as da AIDS"
uma fantasia cultural, em vez de um fato demonstrável. As (p. 15), então, para Eve Kosofsky Sedgwick (1993), o Gender
objeções à ênfase que as políticas lésbicas e gays davam à Trouble, de Butler, corresponde ao livro mais influente para
identidade foram baseadas, inicialmente, no fato de que a teoria queer:
a categoria fundacional de qualquer política identitária Qualquer pessoa que esteve na conferência de Rutgers
inevitavelmente exclui sujeitos potenciais em nome da sobre estudos lésbicos e gays, e ouviu Gender Trouble sendo
representação. Evidentemente, políticas identitárias referido ensaio após ensaio, não pode evitar o espanto
lésbicas e gays que meramente replicam a opressão de raça e com o impacto produtivo que esse trabalho denso e até
imponente tem tido no recente desenvolvimento da teoria
classe são inadequadas. Entretanto, a política da identidade e leitura queer (p. 1).
não pode ser recuperada simplesmente por uma atenção
escrupulosa aos eixos da diferença. Porque, como o pós- Rosemary Hennessy (1994) relata de maneira similar
estruturalismo também demonstra, as políticas identitárias que Judith Butler é citada de forma mais persistente e
são evisceradas não apenas pelas diferenças entre sujeitos, abrangente do que qualquer outro/a teórico/a queer. Apesar
como também pelas diferenças irreconciliáveis dentro de de Gender Trouble ser estruturado mais proeminentemente
cada sujeito. Como argumenta· Diana Fuss (1989), "[... ] em termos do feminismo, um dos seus feitos mais influentes
teorias de 'identidades múltiplas' não conseguem desafiar é o de especificar S.9,1ll.O gênero funciona cQmo,.,ym col)~o
efetivamente a compreensão metafísica tradicional de regulador que privilegia a heterossexualidade e, além disso,
identidade como unidade" (p. 103). como á desconstrução ae
modelos normativos--de gênero
Tegitima posições de sujeito lésblca e g.a:y. •
Performatividade e identidade ~ · Butler argui:rientâ ::--"d.";fü"rma controversa - que o
feminismo trabalha contra os seus objetivos explícitos,
Dentro dos estudos lésbicos e gays, a teórica que se considenrr "mulheres" como sua categoria fundante.
mais tem contribuído para desvelar os riscos e llinites Isso porque o termo "mulheres" não significa uma l·
i da identidade é Judith Butler. No /seu livro amplamente
unidade natural, mas, sim, uma ficção reguladora, cuja
citado, Gender Trouble: feminism and the subversion of aplicação inadvertidamente ,reproduz aquelas relações
identity (Problemas de Gênero: feminismo e subversão da normativas entre sexo, gênero e desejo que naturalizam a
identidadé) (1990), Butler desenvolve o argumento de heterossexualidade. ''A matriz cultural através da qual a
Foucault acerca das operações do poder e da· resistência identidade de gênero toma-se inteligível"~ escreve Butler
para demonstrar as formas em que as identidades (1990),
marginalizadas são cúmplices dos próprios regimes de
exige que certos tipos de 'identidades' não possam' existir'
identificação aos quais procuram se opor. Se The History of -ou seja, aquelas em que o gênero não corresponde ao sexo

7
N. da T.: A tradução para o português é de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A.
6
N. da T.: A tradução é de Renato Aguiar (2003). Guilhon Albuquerque (1988).

450 J!zabel Brandão 1 lldney Cavalcanti 1 Claudia de üma Costa I Ana Cecflia Acioli üma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas [1970-20,1 OJ J 451
e aquelas em que as práticas do desejo não correspondem "Que tipo de repetição subversiva poderia questionar
nem ao sexo nem ao gênero (p. 17).
a própria .Prática reguladora da identidade?", pergunta
Em vez de naturalizar o desejo entre as pessoas do Butler (1990, p. 32). ·Ela argumenta que os fracassos ou
mesmo sexo na homossexualidade - que é a estratégia confusões de gênero - aquelas repetições performativas
comum dos movimentos de lésbicas e gays - Butler contesta que não consolidam a lei, mas que (lembrando a ênfase de
a verdade de gênero em si, argumentando que qualquer Foucault nos aspectos produtivos do poder) são, mesmo
compromisso com uma identidade de gênero funciona, assim, geradas por aquela lei- destacam o caráter discursivo, .
em última análise, contra a legitimação dos sujeitos em vez de essencial, de gênero. A heterossexualidade é
homossexuais. naturalizada pela repetição performativa de identidades
Não mais uma base natural para a solidariedade, de gênero normativas. Butler defende que tal naturalização
gênero é reconfigurado por Butler (1990) como uma ficção deve ser contestada por meio de uma repetição deslocada
~cultural, um efeito performativo de atos reiterados: de sua performatividade, que chame a atenção para aqueles
Gênero é a estilização repetida do corpo, uma série de atos
processos que consolidam as identidades sexuais. Uma das
repetidos dentro de uma moldura reguladora rígida que é estratégias que ela recomenda é uma repetição paródica das
congelada ao longo do tempo, para produzir a aparência normas de gênero. Em vez de demarcar uma distância entre
de substância, de uma forma natural de ser (p. 33). si e o original parodiado, o tipo de paródia que Butler (1990)
Consequentemente, não existe nada de autêntico a temem mente"[ ... ] é a da própria noção de algo original" (p.
respeito de gênero, nenJ:luma 'essência' que produza sin~s 138). Consequentemente, a heterossexualidade não é mais
confiáveis de gênerO. A razãõ pela qual "[ ... ] não há uma considerada como o original do qual a homossexualidade
identidade de gênero por trás das expressões de gênero" é é uma cópia inferior. Ao defender a paródia coino uma·
que a identidade é constituída performativamente pelas estrat~gia de ~sistênciê, Butler pretende demonsti-~
próprias 'expressões' que acreditamos ser o seu resultado" que os domínios de gênero e da sexualidade não são
(p. 25). A heterossexualidade, que passa como natural organizados em termos de originalidade e imitação. O que
e, portanto, não precisa ser explicada, é reconfigurada eles manifestam, pelo contrário, são as infinitas - apesar de
por Butler como uma produção discursiva, um efeito do fortemente reguladas- possibilidades da performatividade.
Ao persistentemente desnaturalizar gênero e
sistema sexo/gênero que pretende meramente descrevê-la.
sex~alidade, Butler problema:tiza muitos dos pressupostos
Como Foucault, que explícita a imp~rtância das estratégias
mru.s caros aos movimentos d~ liberação gay e do feminismo
discursivas e o seu potencial revisionista, Butler (1990)
lésbico, inclusive as formas como recorrem aos sensos
identifica gênero como "uma prática discursiva contínua
de comunalidade e coletividade. Michael Wamer (1992)
[...] aberta à intervenção e à ressignificação" (p. 33). Sua
aponta para as descontinuidades nos respectivos modelos
ressignificação estratégica dos modelos normativos de
teóricos, quando compara o manifesto Radicalesbian com o
gênero é alcançada pela encenação de gênero de maneiras trabalho de Butler:
que enfatizam a forma em que "[ ...] a 'unidade' de
As Radicalesbians começaram o seu manifesto "O que é uma
gênero é o efeito de uma prática reguladora que busca lésbica?" assim: "Uma lésbica é a fúria de todas as mulheres
tomar a identidade de gênero uniforme, por meio da condensadas a ponto de explosão". Se Butler pudesse ser
heterossexualidade compulsória" (p. 31). persuadida a considerar a questão "O que é uma lésbica?"

452 llzabel Brandão I lldney Gavalcànti I Claudia de Uma Gosta I Ana Cecilia Acioli Uma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas !1970-f01 OJ I 453
como sendo digna de resposta, ela possivelmente _noç~_de_petf.2~'ttti~~~d~~!i1Jíkr.a.trat~m.lit~r@.ne.ut~
responderia que "uma lésbica é a incoerência do binarismo
de gênero e da heterossexualidade condensada a ponto de ~~~~e, e se concentrem naquelas encenações
paródia" (p. 19). · teatraliZadas de gênero que interrogam, de forma
autoconsciente, as relações entre sexo, gênero e desejo. A
Enquanto Butler está interessada em todas as
performatividade figura, por exemplo, nos trabalhos de
performatividades que repetem a lei com diferença, ela
Judith Halberstam (1994) sobre masculinidade feminina,
foca drag como uma prática que reconfigura as normas
de Cathy Schwichtenberg (1993) sobre Madonna, e no de
heterossexuais dentro de um contexto gay:
Paula Graham (1995) sobre a lésbica masculina e camp. 8
Na mesma medida em que drag cria um retrato unificado Enquanto o conceito de performatividade inclui essas e
de 'mulher' ... também revela o caráter distinto daqueles
aspectos da experiência de gênero que são falsamente outras instâncias autorreflexivas, tenta explicar, igualmente
naturalizados como uma unidade pela ficção reguladora . - embora de forma menos óbvia -, aquelas produções de
da coerência heterossexual. Ao imitar gênero, drag gênero e de identidades sexuais do dia a dia que parecem,
implicitamente revela a estrutura imitativa do próprio gênero - em grande parte, resistir a uma explicação. Porque
assim como o seu aspecto contingente. De fato, parte do prazer,
da vertigem da performance está no reconhecimento de gênero é performativo, não porque é algo que o sujeito
uma contingência radical na relação entre sexo e gênero deliberadamente e ludicamente assume,. mas porque,
face a configurações culturais de unidades causais que através da reiteração, consolida o sujeito. A esse respeito, a
são regularmente consideradas naturais e necessárias performatividade é a pré-condição do sujeito.
(BUTLER, 1990, p. 137-138 [grifos no original]).
Em um livro posterior, Bodies that Matter (1993a),
Butler não considera drag como uma paródia Butler analisa as aplicações reducionistas do seu trabalho, e,
essencialmente subversiva. Ao contrário, na sua encenação particularmente, a tendência a considerar performatividade
literal, oferece um modelo cultural efetivo para desconstruir literalmente e teatralmente em termos de drag. Apresentado
aqueles pressupostos arraigados que privilegiam certos pela autora como um exemplo de performati~dade, drag
gêneros e sexualidades ao atribuir a eles "naturalidade" foi entendido por muitas/os de suas/seus leitoras/es como
e "originalidade". Ela argumenta de forma igualmente sendo "o exemplo de performatividade"; assim, satisfez
eilfática - apesar de não tão memorável, como ·usos "[ ... ] as necessidades políticas de um movimento queer
posteriores do seu trabalho demonstram - a favor da emergente, no qual o aspecto público do agenciamento
eficácia de todas as performances de gênero perturbadoras teatral se tomou central" (p. 231). Distanciando-se
que "[ ...] repetem e deslocam por meio da hipérbole, da daqueles/as que entendem gênero como resultado de
dissonância, da confusão interna, e da proliferação dos uma performance voluntária, Butler enfatiza que "[ ... ] a
próprios construtos pelos quais são mobilizadas'~ (BUTLER, performatividade não se trata nem de um jogo livre, nem
1990, p. 31).
8
N. da T: Assim como a noção de Kitsch, camp pode se referir a algo de mau gosto. O
A noção de performatividade de Butler tem passado termo começou a circular no início do século XX, com a conotação de algo exagerado,
por uma espécie de hipercirculação. Mencionada en passant ostensivo, afetado e, também, a homens de comportamento efeminado. No seu famoso
ensaio "Notes on camp", de 1964, a filósofa estadunidense Susan Sontag enfatiza que os
aqui, tratada com mais rigor ali, foi altamente produtiva elementos centrais de camp são o artifício, a frivolidade, a pretensão ingênua da classe
para os estudos lésbicos e gays nos anos 1990. É mais média e o excesso. Assim, camp está geralmente ligado a uma atração pelo que não é
natural, ao artifício, ao exagero, à afetação. Trata-se de uma estética marcada pela ironia
~~'- contu___@'--qge críticos/a~_.9..1:!~ . se .a.Ero_F_!i@l da em relação a tudo o que é dominante.

454 llzabel Brandão I lldney Cavalca·nti I Claudia de üma Costa I Ana Cecfiia Acioli üma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas (1970-,201 OJ I 455
de uma autoapresentação teatral; nem, muito menos, um problema·. quando se busca incluir lésbicas em noções
pode ser simplesmente igualada à performance" (p. 95). de camp e queer que dependem da 'performatividade'
Para contrariar essas leituras equivocadas predorrrinantes do feminino?" (JEFFREYS, 1994, p. 461).· O problema de
do seu trabalho - e para desencorajar a compreensão de Jeffreys, contudo, surge apenas quando "performatividade"
performatividade como algo voluntário e deliberado (no sentido butleriano) é mal interpretada, como sendo um
Butler (1993a) introduz as noções de "constituição" e fingimento e, assim, menos real que alguma outra verdade
"restrição": de gênero subjacente. No entanto, a significância teórica
A performatividade não pode ser entendida fora de da performatividade de Butler é que todos os gêneros - e
um processo de iteração, de uma repetição de normas não simplesmente aquele que dramatiza a sua teatralidade
regularizada e restrita. E essa repetição não é encenada
por um sujeito; essa repetição é o que possibilita o sujeito de forma autoconsciente - são performativos. Já que as
e constitui a condição temporal para o sujeito. Essa lésbicas - não mais nem menos que qualquer outro grupo
iteração implica que "performance" não é um ato ou constituído enquanto sujeito pela repetição de normas de
um evento singular, mas uma produção ritualizada, um gênero- "encenam" gênero, não há problema em teorizar o
ritual reiterado sob e por meio de restrições; sob e por
meio da força da proibição e do tabu, com a ameaça de
lesbianismo dentro de modelos que se baseiam na noção de
ostracismo e até de morte, controlando e impondo a forma performatividade de Butler.
e a produção, mas não, eu insisto, determinando-as por Jeffreys (1994) persiste em ler Butler equivocadamente,
completo de antemão (p. 95 [grifos no original]). apesar do fato de que toma como evidência o próprio artigo
Butler reitera o fato de que gênero, sendo performativo, em que Butler explicitamente corrige tais equívocos. Apesar
não é como vestuário, e, portanto, não pode ser vestido ou de Butler especificamente descrever gênero como "[...]
despido por escolha própria. Pelo contrário, é restrito ...:. não performativo, uma vez que se trata do efeito de um regime
simplesmente no sentido de ser estruturado por limitações, regulador das diferenças de gênero, no qual os gêneros são
mas porque (dadas as estruturas reguladoras nas quais divididosehierarquizadossobrestrições" (BUTLER,1993b, p.
a performatividade é significativa) a restrição é o pré- 21 [grifos no original]), Jeffreys sustenta que a compreensão
requisito da performatividade. ' de Butler sobre gênero está "afastada de um contexto de
Apesar de Butler cuidadosamente especificar· sua relações de poder" (p. 81). Jeffreys (1994) também trivializa
posição antivoluntarista -e enfatizar que a performatividade a ênfase de Butler no potencial subversivo de se entender
não é algo que um sujeito faz, mas um processo pelo qual gênero performativamente:
esse sujeito é constituído -, sua noção de performatividade Quando uma mulher é,. espancada pelo homem violento
tem sido criticada como uma representação ingênua de com quem vive, isso se dá porque ela adotou o gênero
condições materiais mais complexas. Tratando literalmente feminino na sua aparência? A solução seria ela adotar o
gênero masculino durante o dia e andar por aí de camiseta
a noção de performatividade de Butler, Sheila Jeffreys ou perneiras de couro? (p. 81).
representa-a de forma errônea como uma forma quase
teatral, e não como o registro da vida gendrada diária. . Claramente, a resposta - tanto para Butler como para
"Certamente seria difícil não perceber", ela pergunta, Jeffreys- é não. Vale notar- precisamente porque Jeffreys
tanto de forma retórica quanto contraintuitiva, "que surge não o faz - que Butler (1993b) argumenta especificamente
que"[ ... ] a performatividade de gênero não é uma questão
456 llzabel Brandão llldney Cavalcanti I Claudia de Uma Gosta I Ana Gecma Acioli Uma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas criticas feministas [1970-2010J I 457
de escolher qual gênero seremos hoje" (p. 22). Jeffreys A publicação de Gender Trouble coincidiu com um número
ignora a ênfase não voluntarista do argumento de. B.utler. de publicações que afirmava que 'as roupas faziam as
.mulheres', mas eu nunca pensei que gênero fosse como
Consequentemente, ao criticar a noção de performatiVIdade roupas, ou que as roupas fizessem a mulher (p. 231).
de Butler, Jeffreys não apenas simplifica ao extremo o
posicionamento teórico de Butler, mas tarribém deixa de Apesar de entender que a performatividade não é
reconhecer o seu próprio reducionismo enquanto uma "a expressão eficaz da vontade humana na linguagem"
deficiência da posição que ela busca desacreditar. (BUTLER, 1993a, p. 187), Elizabeth Grosz (1994) questiona
Em um ensaio que é mais atento ao texto de Butler a centralização de gênero na performatividade, alegando
e, por isso, mais persuasivo, Kath Weston (1993) tru:nbém que "[ ...] gênero deveria ser compreendido como um tipo
critica a ênfase na performatividade. Apesar de considerar de sobreposição em uma fundação pré-estabelecida, que é
produtivos alguns aspectos da teoria da performatividade, o sexo - uma variação cultural de um substrato mais ou
esta autora considera "a estrutura inadequada para menos universal e fixo" (p. 139). Como consequência de
compreender as complexidades do gendramento em caracterizar gênero dessa forma, Grosz (1994) argumenta
relações lésbicas" (p. 5). As críticas de Weston, contudo, que as considerações de Butler sobre a performatividade
baseiam-se, também, em uma leitura equivocada de deveriam enfocar sexo de forma apropriada:
performatividade como uma teatralidade voluntária. A força dos argumentos já tão poderosos de [Butler] se
Concluindo que a performatividade falha na "[ ...] sua fortaleceriam, eu acredito, se em vez do jogo gerado por
um termo de alguma forma além da dimensão do sexo, da
promessa de um empoderamento pessoal/político"_ (P; ordem do gênero, ela enfocasse as instabilidades do sexo e
5) - sem dúvida falharia, já que empoderamento nao e dos corpos em si (p. 140).
o que a performatividade promete -, Weston destaca_ o
Tal mudança de enfoque iria desnaturalizar o sexo ao
que ela acredita ser inadequado sobre a compreensao chamar a atenção para o fato de que
performativa de gênero, introduzindo o tropo do guarda-
[...] existe uma instabilidade no próprio âmago do sexo e
roupa. "Quando uma lésbica abre a porta do armário para dos corpos, que o corpo é o que ele é capaz de fazer, e que
escolher uma roupa para a noite", ela escreve, "o tamanho o que qualquer pessoa é capaz de fazer está bem além da
do seu contracheque limita as escolhas disponíveis" (p.14). tolerância de qualquer cultura (p. 140).
Não temos como discutir a precisã~,dessa observação. No Recomendar que sexo - uma categoria que
entanto, reduzir a compreensão de performatividade de historicamente tem sido teorizada como mais "natural"
Butler ao guarda-roupa- a roupas e à aparentemente infinita que gênero - seja desnaturalizado é válido. Entretanto, o
possibilidade de vestir e despir identidades de gênero - é projeto de Butler está bem mais próximo de Grosz do que
um equívoco sério. O título de Weston (1993) -"Do clothes ela reconhece. Porque, apesar de Butler inegavelmente
make the woman?" (As roupas fazem a mulher?) - sugere priorizar gênero, ela não o mobiliza, como sugere Grosz,
que, em uma teoria da performatividade, as roupas fazem em oposição a uma noção mais fundacional de sexo.
as mulheres. Entretanto, Butler (1993a)- em uma passagem Pelo contrário, ela questiona explicitamente esse tipo de
representada de maneira fortuita com o mesmo vocabulário reificação do sexo:
- afirma enfaticamente que não:

458 llzabel Brandão llldney Cavalcanti I Claudia de üma Costa I Ana Cecnia Acioli üma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticgs feministas 11970-f0101 I 459
Se o caráter imutável do sexo é contestado, talvez mundo. A desconstrução rigorosa da identidade efetuada
esse construto chamado "sexo" seja tão culturalmente
construído quanto gênero; de fato, talvez sempre tenha por Butler está mais evidente na forma como os estudos
sido gênero, com a consequência de que a distinção entre lésbicos e gays passaram a cultivar uma suspeita sobre a
sexo e gênero, no final das contas, não exista. eficácia da identidade, sua "crise sobre a identidade gay''
(COHEN, 1991, p. 82). Na sequência da crítica de Butler, a
Não faria sentido, então, definir gênero comoainterpretação
cultural de sexo, se o sexo em si é uma categoria marcada homossexualidade - como a heterossexualidade - passa a
pelo gênero. Gênero não deve ser concebido meramente ser entendida como o efeito de práticas de significação, um
como a inscricão cultural de significado sobre um sexo "efeito de identidade" que se concentra em certos corpos:
preexistente ... ·[porque] deve também des!gnar o próprio "Homossexual, como 'mulher', não é um nome que se
aparato de produção pelo qual os sexos sao estabeleados
(BUTLER, 1990, p. 7). refere a um 'tipo natural' de coisa", explica David Halperin
(1995). "É uma construção discursiva, e homofóbica, que foi
Ao contestar o suposto caráter imutável do sexo, mal interpretada como objeto sob o regime epistemológico
Butler (1990) faz as seguintes indagações: conhecido como realismo" (p. 45). Como resultado dessa
E o que é "sexo" mesmo? É natural, anatô~~o, suspeita profunda em relação à classificação, as categorias
cromossômico, ou hormonal, e como pode uma cntica de identidade passaram a · ser consid~radas cúmplices
feminista avaliar os discursos científicos que pretendem
estabelecer tais "fatos" para nós? O sexo tem uma história? das próprias estruturas que a sua afirmação pretendia
Cada sexo tem uma história diferente, ou histórias? Existe destronar. Para Butler (1993a),
uma história de como a dualidade do sexo foi estabelecida, [...] categorias identitárias tendem a ser instrumentos
uma genealogia que pudesse expor as opções binárias de regimes reguladores, seja como as categorias
como uma construção variável? Os fatos ostensivamente normalizadoras de estruturas opressoras ou como os
naturais do sexo são discursivamente produzidos pelos pontos de apoio para uma contestação libertadora daquela
vários discursos científicos a serviço de outros interesses mesma opressão (p. 13-14).
políticos e sociais? (p. 6-7).
Anteriormente considerada pré-requisito para a
Ao recusar a distinção comumente aceita entre sexo
intervenção política, a afirmação de identidades coletivas é
e gênero, e ao desmontar aquelas relações supostamente
agora rotineiramente entendida como uma forma de colocar
causais que estruturam a diferença entre os dois, Butler -
em circulação efeitos maiores que sua intenção inicial.
como Grosz - destaca a "instabilidade no próprio âmago
Em um óbvio contraste com aqueles modelos
do sexo".
libertadores ou étnicos gays ou lésbicos que afirmam a
Debates sobre a performatividade exercem
identidade, promovem a "sàÍda do armário", e proclamam
uma pressão de desnaturalização sobre sexo, gênero,
a homossexualidade sob o termo "orgulho", os estudos
sexualidade, corpos e identidades. Ao se proliferar como
lésbicos e gays nos anos 1990 começaram a questionar e
um modelo explanatório - e estar sujeita a contestações
a resistir a categorias de identidade e à sua promessa de
e negociações - a performatividade tem gerado . um
unidade e efetividade política. Esse "reconhecimento da
novo engajamento com aqueles processos pelos qurus as
condição precária da identidade e uma consciência total dos
categorias de identidade que habitamos determinam nosso
processos complicados de formação de identidades, tanto
conhecimento e nossas formas cotidianas de ser/estar no
físicas como sociais", que Diana Fuss (1989, p. 100)propôs

460 IIzabel Brandão 1 lldney Cavalcanti I Claudia de Uma Costa I Ana Cecflia Acioli Uma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas criticas feministas (197012010) I 461
em relação à política identitária de gays e lésbicas agora é sofisti~ada dos entrelaçamentos entre identidade e poder,
a base comum da prática e teoria queer. Frequentemente, como fica evidente nocomentário de David Halperin (1995):
as categorias 'lésbiCa' e gay são ambas interrogadas e
O desencanto com a liberação [não] procede meramente
desnaturalizadas até ao serem mobilizadas no discurso de uma crescente consciência de que a vida gay gerou
crítico e na prática política. Ed Cohen (1991) escreve sobre a o~ ~eus próprios regimes disciplinares, suas próprias
sua dificuldade para se identificar com a categoria 'homem tecmcas de normalização, na forma de cortes de cabelo
gay', porque acha que a suposição implícita de uma obrigat~rios, c~etas, práticas alimentares, piercing
corporéUS, acessonos de couro, e exercício físico [... ]
coletividade não é convincente: Fundamentalmente, acredito que o afastamento de um
Ao predicar 'nossa' afinidade com base na afirmação de modelo liberatório de política gay reflete um entendimento
uma 'sexualidade' comum, nós tacitàmente concordamos aprofundado das estruturas discursivas e seus sistemas de
em não explorar quaisquer contradições 'internas' que repre~entação que determinam a produção de significados
minam a coerência que desejamos a partir da certeza ~e~a:s, .e que microadministram as percepções
imaginada de uma comunalidade inabalável ou de uma mdiVIduru.s, de modo a mante.r e reproduzir as estruturas
sexualidade incontestável (p. 72). do privilégio heterossexista (p. 32).

Similarmente, Butler discute sua ambivalência sobre Esse "entendimento aprofundado" de como a defesa
escrever um ensaio para uma antologia que, por ter como de identidades lésbicas e gays pode, inadvertidamente,
subtítulos Lesbian theories, gay theories, parece identificá-la reforçar aquela mesma hegemonia heterossexual que
com os próprios termos que contesta: elas/eles são programaticamente opostas/os tem gerado
Sou cética em relação a como o 'Eu' é determinado enquanto um imperativo "'- uma vontade até - de adotar modelos
opera sob o título do signo lésbica, e não me sinto mais analíticos· que questionem a autenticidade da identidade,
confortável com a sua determinação homofóbica do que e, particularmente, aqueles que criticam a relação
com aquelas definições normativas oferecidas por outros/ supostamente causal entre uma identidade fixa e uma
as membros da "comunidade gay e lésbica (BUTLER, 1991,
política efetiva.
p.14).
As implicações de tal crítica para as políticas lésbicas
Os esforços extenuantes para desnaturalizar categorias ~ gays são consideradas por Diana Fuss (1989), quando ela
aparentemente autoevidentes, como "identidade" e mdaga: ·
"sexualidade", é discernível, aqui, /no trabalho diacrítico
A política é baseada na identidade, ou é a identidade
que tanto Butler como Cohen delegam às aspas: "nosso/a", baseada na política? A identidade é um construto natural
"sexualidade", "Eu", "comunidade gay ou lésbica". A político, histórico, psíquico ou linguístico? Quais ~
mesma estratégia é empregada incansavelmente por implicações da desconstrução da identidade para aquelas/
Valerie Traub (1995), que sempre usa a palavra "lésbica" es ~u: abraçam uma política de identidade? Os sujeitos
femrmstas, gays ou lesbicos podem · se dar ao luxo de
entre aspas. dispensar a noção de identidades unificadas e estáveis, ou
O descontentamento generalizado com aquela versão devemos começar a basear nossas políticas em outra coisa
de política identitária defendida tanto pelos modelos que não identidade? Em outras palavras, qual é a política
libertadores como étnicos de homossexualidade é gerado da 'política da identidade'? (p. 100).
não apenas por um senso de resistência a uma nova Apesar de queer não ser um termo popular de
normatividade, mas também por uma compreensão mais autoidentificação na época em que Fuss articulou essas
462 llzabel Brandão I lldney Cavalcanti I Claudia de Uma Costa I Ana Cecflia Acioli Uma
TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas !1970-20101 I 463
questões, sua aplicação recente é frequentemente informada • A transição- efetuada pela educação do sexo seguro
pelas questões de identidade, comunidade e política de que - para a ênfase nas práticas sexuais sobre as identidades
ela trata aqui. Um escrutínio semelhante das identidades sexuais (BARTOS, 1993; DOWSET, 1991);
lésbicas e gays pode ser visto no engajamento da teoria queer • O reconhecimento equivocado da AIDS como uma
com as análises críticas pós-estruturalistas da subjetividade doença gay (MEYER 1991) e da homossexualidade como
e das identidades individuais ou coletivas, sua cristalização uma forma de fatalidade (HANSON, 1993; NUNOKAWA,
pragmática e emprego de posições de sujeito recentemente 1991);
reconfiguradas, e na sua atenção às formações discursivas • A política de coalizão da maior parte do ativismo da
dos vários termos pelos quais homossexualidade, em AIDS que repensa a identidade em termos de afinidade em
particular, e sexualidade, de maneira mais gerat são vez de essência (SAALFIELD, 1991) e, portanto, inclui não
categorizadas. apenas lésbicas e homens gays, mas, também, bissexuais,
transexuais, trabalhadoras/es do sexo, pessoas com AIDS,
O discurso HIV/AIDS trabalhadoras/es da saúde, e pais e amigas/os de gays;
Se a teoria pós-estruturalista pode ser considerada • O reconhecimento imperativo de que o discurso
como parte do contexto queer, então, a emergência de queer não se trata de uma "realidade" separada ou de segunda
enquanto um termo diacrítico pode ser ligada, de maneira ordem, e a ênfase subsequente na contestação, ao resistir às
plausível, a avanços fora- mas não separados- da academia. representações dominantes do HIV e da AIDS e representá-
O contexto em que queer é citado com mais frequência, nesse los de outra forma (EDELMAN, 1994);
sentido, é a rede de ativismo e teoria criada pela epidemia • O repensar da compreensão tradicional acerca do
de AIDS, partes das quais entenderam que queer oferece funcionamento do poder em embates interseccionais sobre
uma rubrica suficientemente ampla e afirmativa para a epidemiologia, pesquisa científica, saúde pública e políticas
intervenção política. Nesse sentido, queer é compreendido de imigração (HALPERIN, 1995). .
como uma resposta não apenas "[ ... ] à crise da AIDS Essas são apenas algumas das pressões
[que] desencadeou uma renovação do ativismo radical" multidirecionais que a epidemia da AIDS põe sobre
(SEIDMAN, 1994, p. 172), mas, também, à "crescente categorias de identificação, poder e conhecimento. Sua
homofobia vinda à tona pela respoE?ta pública à AIDS" (p. relação com a emergência de queer como um termo
152). Que série de efeitos- postos em circulação em tomo facilitador e potente é mais do que mera coincidência.
da epidemia de AIDS - nutriu e necessitou daquelas novas Enquanto as respostas à epidemia de AIDS -
formas de organização política, educação e teorização govemamentat científica, ativista, teórica - não podem ser
que são produzidas sob a rubrica de queer? Uni.a resposta totalmente responsabilizadas por criar as condições em que
adequada a essa questão tem que levar em consideração o queer surgiu como um termo significativo, a necessidade
seguinte: urgente de resistir a construções dominantes sobre o HIVf
• As formas em que o status do sujeito ou indivíduo é AIDS reforçou uma revisão radical das políticas lésbicas
problematizado nos discursos biomédicos que constroem a e gays contemporâneas. Comentando sobre os fracassos
AIDS (HARAWAY, 1989); históricos ou limitações dos movimentos de lésbicas e de
gays- tais como a atenção inadequada a diferenças internas,
464 llzabel Brandão I lldney Cavalcanti I Claudia de üma Costa I Ana Cecnia Acioli üma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas [1970-2010) I 465
e a inabilidade de colaborar efetivamente com outros temos a chance, em outras palavras, de desafiar, como
movimentos de liberação -, Douglas Crimp (1993) escreve: sugere Andreas Huyssen ser o dever do pós-modernismo
deve, 'a ideologia do sujeito' (como masculino, branco e
A crise da AIDS nos colocou face a face com as de classe média [e devemos acrescentar, já que ele não o
consequências tanto do nosso separatismo como de nosso faz, heterossexual]), desenvolvendo noções alternativas
liberalismo. E é nessa nova conjuntura política que a e diferentes de subjetividade (EDELMAN, 1994, p. 111
palavra queer tem sido reivindicada para designar novas [grifos no original]).
identidades políticas (p. 314).
Talvez não seja surpreendente, nesse contexto, a
As "novas identidades políticas" possibilitadas por conclusão de Edelman que"[ ... ] tal mutação do sujeito gay
queer muito frequentemente intentam desnaturalizar já pode ser vista no processo pelo qual, em certos locais,
aquelas categorias que a AIDS igualmente tomou estranhas. 'gay' está sendo reescrito como queer" (p. 113).
Thomas Yingling (1991) observa que, assim como queer, As mobilizações mais públicas do termo queer têm
[os] efeitos materiais da AIDS esvaziam tantos de nossos sido, sem dúvida, no ativismo da AIDS, que, por sua vez,
pressupostos culturais sobre identidade, justiça, desejo, e
conhecimento que parecem, às vezes, capazes de ameaçar
tem sido um dos locais mais visíveis da reestruturação
todo o sistema de pensamento ocidental - aquilo que das identidades sexuais. A relação entre o novo ativismo
mantém a saúde e a imunidade da nossa epistemologia: descentralizado e a crescente proeminência de queer como
a presença psíquica da AIDS significa o colapso da um termo que pode direcionar a atenção para a identidade ·
identidade e da diferença que recusa ser excluído dos
sistemas de autoconhecimento (p. 292).
sem a cristalizar é contextual em vez de causal. Certamente,
debates (dentro daquilo que uma vez foram contextos
Um reconhecimento similar do "colapso da lésbicos e gays) sobre como reconfigurar subjetividades e
identidade e da diferença" faz com que Lee Edelman (1994) identidades de forma diferente têm sido em parte reforçados
argumente que queer e AIDS estão interconectados, porque e em parte provocados pela nova urgência geraqa pela crise
cada um é articulado por meio de um entendimento pós- da AIDS. No entanto, tais debates acerca da identidade e
modernista da morte do sujeito, e ambos compreendem a das formas mais eficazes de se garantir transformação social
identidade como um local curiosamente ambivalente: ''A têm sido igualmente energizados, embora de modo menos
'AIDS', então, pode ser considerada como uma crise na espetacular, pelos avanços nos círculos pós-estruturalistas,
modelação ou articulação social das subjetividades" (p. feministas e pós-coloniais. Todos eles questionam a noção
96), e, assim, "uma oportunidade para remodelá-las" (p. de uma identidade estável - não simplesmente porque é
96). Na medida em que a AIDS permite- e, às vezes, exige uma ficção, mas porque é o tipo de ficção que pode muito
- um repensar radical da constituição cultural e psíquica bem funcionar contra os interesses daqu.eles/as que alega
da subjetividade em si, Edelman encontra nela a promessa representar.
de uma subjetividade reestilizada, que poderia rearticular
noções correntes não apenas de identidade, como também Identidade queer
de política, comunidade e agenciamento:
Dada a extensão do seu compromisso com a
Nós temos a chance de deslocar aquela lógica [opressora desnaturalização, queer não pode ter nem uma lógica
da cultura] e começar a articular a extensão de opções
do que pode se tomar um sujeito pós-moderno; nós
fundacional, nem um grupo de características consistentes.

466 llzabel Brandão I lldney Cavalcanti I Claudia de üma Costa I Ana Cecflia Acioli üma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas criticas fEministas [1970-~010J I 467
"Não há nada em particular a que necessariamente se refira", Até mais do que os modelos lésbicos e gays a partir
escreve David Halperin (1995 [grifos no original]). "É uma dos quais se desenvolveu, queer foge de qualquer descrição
identidade sem essência" (p. 62). Essa indeterminação programática, porque é apreciado de formas diferentes em
fundamental faz de queer um objeto de estudo difícil; contextos diferentes. Frequentemente usado como uma
sempre ambíguo, sempre relaciona!, tem sido descrito como abreviação conveniente no lugar dos mais pesados "lésbica"
"uma teoria altamente intuitiva e parcialmente articulada" e "gay", queer tem sido um benefício para subeditores/as.
(WARNER, 1992, p. 19). A ambiguidade de queer é Os jornais das comunidades gays e lésbicas evidenciam um
frequentemente citada como a razão para a sua mobilização. entusiasmo com queer como o sinônimo preferido de lésbica
Definindo queer como um termo que"[ ... ] marca um espaço e gay, como Stephen Angelides (1994) percebeu:
flexível para a expressão de todos os aspectos de não (anti, Uma olhada rápida nas páginas de dois jornais lésbicos
contra-) à produção e recepção cultural conservadora e gays da Austrália - Melbourne Star Observer e Sydney
(heterossexual)", Alexander Doty (1993) considera o termo Star Observer- mostra o quanto o termo queer está sendo
atraente, na medida em que ele também quer utilizado nesse contexto. De "Cartuns queer'' a filmes queer,
a seção de cartas à/ao editor/a intitulada "Falando de
[... ] encontrar um termo com alguma ambiguidade, forma queer'', as páginas estão saturadas com referências
um termo que possa descrever uma gama ampla de queer direcionadas especificamente à comunidade lésbica
impulsos e expressões culturais, incluindo espaços para e gay (p. 68 [grifos no original]).
descrever e expressar a queerness9 da bissexualidade, da
transexualidade e da heterossexualidade (p. 2:.3). Livros recentes similarmente preferem queer em
Queer é amplamente percebido como um títulos como Queering the Pitch: the new lesbian and gay
questionamento de compreensões convencionais de musicology (BRETT et al., 1994) e A Queer Romance:
identidade sexual ao desconstruir as categorias, oposições lesbian and gay men and popular Cculture (BURSTON;
e equações que as sustentam (HENNESSY, 1994, p. 94); RICHARDSON, 1995). Outras vezes, queer é utWzado para
no entanto, "[ ...] exatamente o que queer significa ou indicar uma distância crítica da política de identidade que
inclui ou a que se refere não é de forma alguma fácil de sustenta as noções tradicionais de comunidade lésbica e gay.
dizer" (ABELOVE, 1993, p. 20). Em parte, porque é, um Nesse sentido, queer marca uma suspensão da identidade
termo necessariamente indeterminado, Sedgwick (l994) como algo fixo, coerente e natural. Mas queer também
argumenta, em uma entrevista concedida a Hodges, que se pode ser usado para significar uma forma diferente de
autodenominar queer "[ ...]dramatiza a diferença entre o que identidade, que é consistente e única, como no caso de
você se chama e o que as outras pessoas lhe chamam. Existe algumas das mobilizações da Queer Nation. 10 Evitando
a noção de que queer só pode ser usado na primeira pessoa" as análises críticas pós-estrUturalistas das categorias de
(p. 27). A sugestão provocadora de Sedgwick de que, apesar identidade, queer funciÓna aqui mais como um termo
de sua circulação rotineira como um termo descritivo, queer da moda do que teórico. É usado como uma maneira de
apenas pode ser autodescritivo, enfatiza o quanto queer se distinguir as lésbicas e os gays ultrapassadas/os das/os
refere à autoidentificação e não a observações empíricas de novas/os, em que essa distinção pode ser registrada não
características de outras pessoas. tanto historicamente como variações da compreensão da
10
9
N da T.: Em português: o caráter queer. N. da T.: Em português: nação queer.

468 jlzabel Brandão I lldney Cavalcanti I Claudia de Uma Gosta I Ana Gecflia Acioli Uma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas [1970-2010J I 469
formação das identidades, mas estilisticamente, como, identificação ·.além de sexo e gênero. Descrevendo queer
por exemplo, no uso de piercings corporais. Ou queer pode como "contra a assimilação e o separatismo", Rosemary
ser usado para descrever uma constituição aberta, cuja Hennessy (1994) argumenta que o projeto queer marca
característica comum não é a identidade em si, mas um
[... ]um esforço para falar a partir de, e para as diferenças
posicionamento antinormativo em relação à sexualidade. e aos silêncios que têm sido suprimidos pelo binário
Dessa maneira, queer pode excluir lésbicas e homens gays homo/hetero, um esforço para desmontar as identidades
cuja identificação com a comunidade e identidade marca monolíticas "lésbica" e "gay'', incluindo as formas
uma legitimidade relativamente recente, mas inclui todas intricadas em que as sexualidades lésbicas e gays são
flexionadas pela heterossexualidade, raça, gênero e etnia
aquelas identificações sexuais que não são consideradas (p. 86-87).
normais ou sancionadas.
Como a teoria da performatividade, que, em grande Sedgwick (1993) faz uma afirmação ainda mais forte
parte, apoia o seu projeto, queer opta pela desnaturalização quando observa, em trabalhos recentes, que queer está
sendo sofrendo uma expansão:
como a sua estratégia principal. Demarca
[...] um domínio virtualmente smommo a Por dimensões que não se incluem em gênero e
homossexualidade e, ainda assim, sugestivo de uma sexualidade de forma alguma: as formas em que raça, etnia,
nacionalidade pós-colonial se entrecruzam com esses e
ampla gama de possibilidades sexuais ... que desafiam a
distinção familiar entre normal e patológico, hetero e gay,
outros discursos que constituem identidades, discursos
homem masculino e mulher feminina (HANSON, 1993, p. que fraturam identidades, por exemplo. Intelectuais e
artistas de cor cuja autodefinição sexual inclui queer... estão
138).
usando queer como um ponto de apoio para representar de
Como o movimento pela liberação gay inicial, queer forma mais fiel as complexidades fractais da linguagem,
da pele, da migração, do estado (p. 9 [grifos originais]).
confunde as categorias que garantem a normatividade
sexual; difere de seus/suas predecessores/as por evitar Ápesar de algumas pessoas reclamarem. que queer
a ilusão de que seu projeto é o de descobrir ou inventar codifica um preconceito eurocêntrico, que o torna insensível
alguma sexualidade livre, natural e primeva. Ao rejeitar o às políticas das comunidades étnicas, em grande parte
que Michael Warner (1993) chama de "a lógica minoritária baseadas na identidade (MAGGENTI,1991;MALINOWITZ,
de tolerância ou uma simples política de representação 1993), os trabalhos recentes aos quais Sedgwick se refere
de interesses", e favorecendo, em seu lugar, "uma aqui indicam que o impulso de desnaturalização de queer
resistência mais completa aos regimes do normal" (p. xxvi), pode muito bem encontrar uma articulação precisamente
demonstra seu entendimento de que a sexualidade é um naqueles contextos aos quais.à julgam indiferente.
efeito discursivo. Já que queer não toma para si nenhuma Evidentemente, não existe uma definição de queer
materialidade ou positividade específica, sua resistência amplamente aceita; de fato, muitas das formas mais
àquilo de que difere é necessariamente relaciona! em vez comuns de se entender o termo se contradizem de
de uma oposição. maneira irresolúvel. Mesmo assim, a flexão de queer que
Queer tem ocupado um registro predominantemente comprovou ser a mais subversiva das nocões estabelecidas
sexual. Sinais recentes indicam, contudo, que o seu projeto de identidade, comunidade e política é a que problematiza
de desnaturalização está funcionando em outros eixos de as consolidações normativas de sexo, gênero e sexualidade

470 llzabel Brandão llldney Cavalcanti I Claudia de üma Costa 1Ana Cecfiia Acioli üma
TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas (1970-201 OJ I 471
- e que, consequentemente, critica: todas aquelas versões BRETT, Philip; WOOD, Elizabeth; THOMAS, Gary C. (Orgs.).
de identidade, comunidade e política que são consideradas Queering the Pitch: the new gay and lesbian musicology. New
como desenvolvimentos "naturais" de tais consolidações. York: Routledge, 1994.
Ao recusar a cristalização em qualquer forma específica, BRISTOW, Joseph; WILSON, Angela R. (Orgs.). Activating
queer mantém uma relação de resistência ao que quer que Theory: lesbian, gay and bisexual politics. London: Lawrence
constitua a normalidade. Ao tempo em que tem consciência & Wishart, 1993.
dos locais múltiplos e até contraditórios que queer significa,
a Teoria queer enfatiza esse seu aspecto, e a pressão analítica BURSTON, Paul; RICHARDSON, Colin (Orgs.). A Queer
Romance: lesbians, gay men and popular culture. London:
que efetua naquilo que Sedgwick (1993) chama de
Routledge, 1995.
[...] a rede aberta de possibilidades,lacunas, sobreposições,
dissonâncias e ressonâncias, lapsos e excessos de BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão
significado, em que os elementos constitutivos do gênero da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro:
e da sexualidade de qualquer pessoa, não podem ter (nem Civilização Brasileira, 2003.
é possível impor a eles) um significado monolítico (p. 8).
Tradução de Ana Cecília Acioli Lima - - -. Bodiesthat Matter: on the discursive limits of "sex".
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472 llzabel Brandão I lldney Cavalcanti I Claudia de Uma Costa I Ana Cecnia Acioli Uma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas [1970-20101 I 473
normalização", ou seja, para a análise de enraizados O olhar oposicional: espectadoras negras
processos micro e macro de reprodução da ordem e da bellhooks
normatividade social, que incluem mas não se limitam a
questões de gênero e sexualidade.

Referências ~ pensar em espectadoras negras, lembro-me .


BENTO, Berenice; PELÚCIO, Larissa. "Despatologização u;áe ter sido punida, quando criança, por olhar
do gênero: a politização das identidades abjetas". Estudos fixamente, com aqueles olhares severos, diretos e intensos
Feministas, v. 20, n. 2, p. 569-581, mai./ago. 2012. que as crianças dirigiam aos adultos. Esses olhares eram
vistos como afrontas, como gestos de resistência, como
MISKOLCI, Richard. "A teoria queer e a sociologia: o desafio·
desafios à autoridade. O "olhar fixo" sempre foi político
de uma analítica da normalização". Sociologias, n. 21, p. 150-
na minha vida. Imaginem o terror da criança que passou a
182, jan./jun. 2009. entender, por meio de castigos que se repetiam, que o olhar
~plguém pode se.r..p.erig,qs_p.,. A criança que aprendeu b;m~
fingir que não vê, quando necessário. Ainda assim, quando
punida, a criança ouve dos pais: "Olhe para mim quando
estou falando com você". Porém, a criança tem medo de
olhar. Tem medo, mas fica fascinada pelo olhar. Há poder
no olhar.
Fiquei perplexa quando li, pela primeira vez, nas
aulas de história, que senhoras/es de escravas/os (homens,
mulheres e crianças) puniam escravas/os por olhçrr. Fiquei
pensando como essa relação traumática com o olhar havia
orientado a conduta de pais e mães negros/as e afetado
pessoas negras em sua condição de espectadoras/es. A
política da escravidão, de relações racializadas de poder,
era tal, que aos escravos e às escravas era negado o direito
de olhar. Ao relacionar essa estratégia de dominação àquela
utilizada por pessoas adultas nas comunidades rurais
negras, no sul dos Estados Unidos, onde fui criada, sofri
ao pensar que não havia nenhuma diferença entre brancas/
os que haviam oprimido pessoas negras e nós. Anos mais
tarde, quando li Michel Foucault, pensei novamente nessas
relações, · nas maneiras pelas quais o poder enquanto
dominação se reproduz em locais diferentes, empregando,

482 ilzabel Brandão 1lldney Cavalcanti 1Claudia de Uma Costa I Ana CeciTia Acioli Uma TRADUÇÕES DA CULTIJAA- Perspectivas críticas feministas [1970-~010J I 483
de maneira similar, recursos, estratégias e mecanismos é conceituar ·essa 'presença' em termos de poder, mas
de controle. Urna vez que eu tinha consciência, quando l<lçslizar es~~er corno totalmente externo a nós - corno
criança, de que o poder de dominação que as/os adultas/os força extrínseca, qtja influência}2oc,ies_gr~Sê!lê~a, corno
exerciam sobre mim e sobre meu olhar não era tão absoluto a serpente troca de pele". Franz Fanon (1967) lembra-se, em
a ponto de eu nunca ousar olhar, espiar furtivamente, olhar Black Skin, White Masks (Pele negra, máscaras brancas4 ), que 0
fixamente de forma perigosa, eu sabia que as/os escravas/os poder,_es:tálanto no interior g,uanto no exterior:
__,__ __ ==='="--,~~__..

haviam olhado. As tentativas de reprimir o nosso direito, o [... ] os movimentos, as atitudes, os olhares do Outro
direito de pessoas negras de olhar, produzira em nós1 um me fixaram ali, no mesmo sentido que uma solução
desejo quase irresistível de olhar, um anseio rebelde, um química é fixada por um corante. Fiquei indignado; exigi
.olhar oposicional. Ao olhar corajosamente, declaramos de uma explicação. Nada aconteceu. Eu quebrei. Agora os
fragmentos foram reunidos novamente por um outro self.
forma desafiadora: "Não vou apenas olhar fixamente. Quero Esse 'olhar', a partir de- por assim dizer- um lugar do
bérn que meu olhar modifique a realidade". Mesmo Outro, nos fixa, não somente em sua violência, hostilidade
nas piores circunstâncias de dominação, a habilidade e agressão, mas também na ambivalência de seu desejo.
de manipular o olhar de alguém, face às estruturas de Os espaços do agenciamento existem para pessoa~
dominação que continham esse olhar, abre possibilidade negras, na medida em que podemos tanto interrogar o olha:u
para_Qj!gg:n~trull~rt!Q,· Em grande parte de sua obra, Michel
do Outro quanto olhar em retrospectiva, e também olh 1
oucault insiste em descrever a dominação em termos
um para o outro, nomeando o que vemos. O "olhar" foi e
de "relações de poder", corno parte de um esforço para
é um local de resistência para pessoas negras colonizadas
desafiar a presunção de que"[ ...] o poder é um sistema de
em escala global. Os grupos subordinados nas :r:elaçõe
dominação que controla tudo, e que não deixa espaço para
de poder aprendem, por experiência, que existe um olh
a liberdade" .2 Ao afirmar, enfaticamente, que em todas as
crítico. que "olha" para documentar, e que é oposicional
relações de poder"[ ...] há necessariamente a possibilidade
de resistência", o autor convida a/o pensadora/or crítica/o Na luta da resistência, o poder do dominado para afirmar
a examinar aquelas margens, lacunas e lugares, no corpo e agenciamento, reivindicando e cultivando a "consciência" I

pelo corpo, onde o agenciamento pode ser encontrado. politiza as "relações com o olhar"- aprende-se a olhar de
No ensaio "Cultural identity and cinematic certa maneira, para que se possa resistir.
representation" (Identidade cultural e representação Quando a maior parte da população negra nos Estados
cinernática), Stuart Hall chama a atenção para que haja Unidos teve, pela primeira vez, oportunidade de assistir a
reconhecimento do nosso agenciamento corno espectadoras/ filmes e a programas de televisão, ela o fez com a plena ~
es negras/os. O autor posiciona-se contra a construção, consciência de que os meios de comunicação de rnassa1;;:::
pelas/os brancas/os, de representações da negritude3 corno eram um sistema de conhecimento e poder, que reproduzia · ~
totalizante. Afirma sobre a presença branca: "O erro não e mantinha a supremacia branca. Olhar fixamente para a ~
televisão, ou para o cinema mainstream,S e envolver-se em
1
N. da T.: Ao longo do texto, a autora mescla a terceira pessoa do singular com a terceira
do plural, quando se refere a pessoas negras. A tradução mantém essa concordância
4
ideológica, para respeitar a inclusão do original. N. da T.: Traduzido para o português por Renato da Silveira e publicado pela editora
2
N. da T.: As traduções aqui presentes são de minha responsabilidade, e foram realizadas da Universidade Federal da Bahia (2008).
5
para fins de citação neste artigo. N. da T.: A expressão "mainstream cinema" pode também aparecer como "cinema
3
N. da T.: No original "blackness". dominante".

484 lizabel Brandão I lldney Cavalcànti I Claudia de Uma Costa I Ana Cecma Acioli Uma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas [1970-2010) I 485
\\9.>J' u .I I
-'~·Li-o WrA "o(~ c;\ ~v!V'\ No p-rCA~lJ @

Q}J>~' L
\\suas imagens, era engaja:t-'se na negação da representação particularmente, por momentos de "ruptura", quando
~s/os negras/os. Foi ~:Ólhar oposicional das/os negras/os as/os espectadoras/es resistem à "completa identificação
que reagiu ~ essas ryÍações com ~ olhar,~éJJb,.d~sS!nYQ~y~r

ffi
com o discurso do filme". Tais rupturas definem a relação
um du~I!l.ll :md.,gp~1ep~, pr2~~~12or pessoas ne~s. entre espectadoras/es negras/os e o cinema mainstream,
'AS/ôs espectadoras/es negras/os da televisão e do cinema anterior à integração racial. Nesse sentido, o prazer
mainstream podiam traçar o progresso de movimentos alguém em assistir a um filme, no qual as representações

~=s==~:::,rn~~;:~~:!asu:a f~r:;:c:e~~~~ue
políticos a favor da igualdade racial, por meio da construção
de imagens. Elas/es assim fizeram. Em meu ambiente
familiar de negras/os da classe trabalhadora, em um bairro restaurava a P.!~sença onde ela era negada. A discussão od
racialmente segregado, no sul dos Estados Unidos, assistir crítica que acontecia no decorrer do filme, ou na sua ~
televisão era uma maneira de desenvolver
~-··-
a condição de ·' - conclusão, mantinha a distância entre as/os espectadoras/es ;:!j
espectadora crítica. A menos que se trabalhasse no mundo e a imagem. Filmes produzidos por pessoas negras também . <;s
branco, que ficava do outro lado, aprendia-se a olhar para estavam sujeitos a questionamento crítico. Uma vez que._~
pessoas brancas quando se olhava fixamente para elas na esses filmes vieram a existir, parcialmente em reação ao
tela. Olhares negros, por serem constituídos no contexto fracasso do cinema dominado por pessoas brancas, para ~
dos movimentos sociais a favor de um melhoramento representar as/os negras/os de maneira que não reforçasse S? ·
racial, eram ..Qlhares interrogadores. Achávamos· graça em a supremacia branca, eles também eram analisados de \2
programas como Our Gang e Amos 'n' Andy, por causa modo a averiguar se suas imagens eram entendidas como ..:::::.
das representações da cor negra por pessoas brancas, mas coniyentes_com as práticas cinematográfica~ominantes.~
também olhávamos criticamente para esses programas. J?lhares pegros, críticos e interrogadores,
Antes da integração racial, espectadoras/es negras/os preocupavam-se, principalmente, com questões de raça
de filmes e d_e televisão vivenciaram prazer visual num e racismo, com a manejra_~ual_ a Q,_qmiiÍ.açã(). :r~çigl
contexto em que o ato de olhar dizia respeito, também, ao ~~gi"~Lºª--Eelª-~/os brancas/os sobredeterminava a
confronto e à contestação. representação.:.., Rara.ro..,e:ni;e se....preQCJlflalram com= gêne..t.o.
Ao escrever sobre relações das/os negras/os com o Enquanto espectadores, homens negros podiam repudiar a
olhar, em "Black British Cinema: spe;ctatorship and identity reprodução do racismo no cinema e na televisão, a negação
formation in territories" (O cinema negro britânico: da presença negra, mesmo · quando conseguiam sentir
formação identitária e de espectatorialidade nos territórios), como se estivessem se rebelando contra a supremacia
Manthia Diawara (1989) identifica o poder das/os branca por meio da ousadiá do ato de olhar, ao engajar-
espectadoras/es: "Cada narração coloca as/os espectadoras/ se nas políticas falocêntricas do ato de serem espectadores.
es numa posição de agenciamento; e raça, 6 classe e relações Considerando as circunstâncias públicas da vida real, nas
sexuais influenciam a maneira pela qual essa subjetividade quais homens negros eram assassinados/linchados por
é preenchida pelas/os espectadoras/es". Ele se interessou, olhar· para as mulheres brancas/ e considerando que o

6 N. da T.: Embora o conceito de "raça" remeta a concepções ultrapassadas de


7
características biologicamente distintas, não utilizo o termo "etnia", que seria mais N. da T.: No original "white womanhood", expressão sem equivalente em português e
apropriado nos textos contemporâneos, em respeito ao texto original. recorrente no ensaio de hooks.

486 jlzabel Brandão llldney Cavalcànti I Claudia de üma Costa I Ana Cecfiia Acioli üma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministes [1970-~010l I 487
olhar dos homens negros era sempre sujeito ao controle o poder dos ·. discursos em 'fazer violência' às pessoas,
e/ou à punição pelo Outro poderoso branco, a esfera violência que é material e física, apesar de produzida por
privada das telas da televisão ou dos teatros escuros podia discursos abstratos e· científicos, bem como por discursos
desencadear o olhar reprimido. Lá era possível "olhar" dos meios de comunicação de massa". Com a possível
para as mulheres brancas sem uma estrutura de dominação exceção dos primeiros filmes de raça, as espectadoras
que vigiava, interpretava e punia o olhar. Aquela estrutura negras tiveram que desenvolver relações com o olhar num
da supremacia branca que assassinara Emmet Till após ter contexto cinematográfico que constrói nossa presença como
interpretado seu olhar como violação, como "estupro" da ausência, que nega o "corpo" das mulheres negras, de forma
mulher branca, não pôde controlar as reações dos homens a perpetuar a supremacia branca, que traz consigo um ato
negros às imagens da tela. Em seu papel como espectadores, falocêntrico de ser espectadora, segundo o qual as mulheres
esses homens conseguiam entrar num espaço imaginativo que devem ser admiradas e desejadas são ''brancas". (Filmes
de poder falocêntrico que mediava a negação racial. Essa recentes não seguem esse paradigma. No entanto, recorro
relação gendrada com o ato de olhar fez a experiência dos ao passado na intenção de mapear o desenvolvimento da
homens negros espectadores ser radicalmente diferente da espectorialidade das mulheres negras).
experiência das mulheres negras espectadoras. A maioria Conversando com mulheres negras de todas as
dos homens negros que foram cinegrafistas independentes idades e classes sociais, ein partes diferentes dos Estados
representava, nos filmes, as mulheres negras como obj.etos Unidos, sobre suas relações fílmicas com o olhar, percebo
do olhar masculino. O olhar dos homens negros tinha repetidas vezes reações ambivalentes ao cinema. Poucas
um escopo diferente do olhar das mulheres negras, fosse das mulheres negras com quem conversei lembravam-se
olhando pela câmera, fosse como espectadores assistindo do prazer dos filmes de raça. Mesmo as que se recordavam,
aos filmes, fosse em filmes mainstream ou em filmes de sentiam que o prazer era interrompido e usw;pado por
"raça",8 tais como os de Oscar Micheaux. Hollywood. A maioria das mulheres negras com quem
As mulheres negras escreveram pouco sobre o ato falei admitiu que nunca foi ao cinema com a expectativa
de ser espectadora negra, sobre nossos costumes de ir de ver representações convincentes da feminilidade negra.
ao cinema. Um arcabouço crescente de teoria e crítica de Todas tinham plena consciência do racismo no cinema e do
cinema, de autoria de negras, começou a surgir há pouco apagamento das mulheres negras. 10 Anne Friedberg (1990),
tempo. O silêncio prolongado de mulheres negras como em ensaio intitulado "A Denial of Difference: Theories
espectadoras e como críticas foi u.Ina reação à ausência, à of Cinematic Idenfification" • (Uma recusa à diferença:
negação cinematográfica. Em "The Technology of Gender" teorias de identificação cinematográfica), salienta que
(A tecnologia de gênero9), Teresa De Lauretis {1987), na "[ ... ] a identificação somente pode ser feita por meio do
esteira de Monique Wittig, chama a atenção para "[ ...] reconhecimento, e todo reconhecimento é, em si, uma
confirmação implícita da ideologia do status quo". Até
mesmo quando as representações de mulheres negras
a N. da T.: No original "'race' movíes", expressão sem equivalente em português e
recorrente no ensaio.
9 N. da T.: Tradução de Susana B. Funck, publicado no Boletim do GT A Mulher na 10
N. da T.: No original "black womanhood", expressão sem equivalente em português e
Literatura (n. 4, 1992), posteriormente publicado por Heloisa Buarque de Hollanda
recorrente no ensaio de hooks.
(Org.). em Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura, pela Rocco (1994).

TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas [1970-20101 I 489


488 IIzabel Brandão llldney Cavalcanti I Claudia de lima Costa I Ana Cecfiia Acioli lima
estavam presentes no cinema, nossos corpos e nosso ser inscritas na narrativa cinematográfica mainstream, a partir
de Birth ofa Nation (O nascimento de uma nação). Como
estavam ali para servir - para evidenciar as mulheres
tarefa seminal, esse filme identificava o lugar e a função que
brancas e mantê-las como objetos do olhar falocêntrico.
as mulheres negras ocupariam no cinema. Era óbvio que
Julie Burchill (1986), comentando a caracterização
não havia lugar para elas.
hollywoodiana de mulheres negras no filme Girls on Film,
Pensando no meu passado, no que conceme a
descreve essa presença ausente: imagens das :mulheres negras na tela, escrevi um ensaio
As mulheres negras têm sido mães sem fiJhos (Mamães - curto, intitulado "Do you remember Sapphire?" (Lembra-
que jamais conseguem esquecer o espetáculo repugnante
de Hattie MacDaniels paparicando Vivian Leigh, que tinha
se de Sapphire?), que tratou da negação da representação
um sorrisinho afetado, e perguntando, de maneira tola, das mulheres negras no cinema e na televisão, e da nossa
"O que meu bebê vai vestir?"). Lena Horne, a primeira rejeição dessas imagens. Ao identificar a personagem
artista negra a assinar contrato de longo prazo com uma "Sapphire" de Amos 'n' Andy (Amos e Andy) como aquela
produtora importante (MGM), parecia ter medo, mas representação na tela da feminilidade negra que vi pela
na verdade estava bem animada. Ficou furiosa quando
Tallulah Bankhead a cumprimentou pela palidez de sua primeira vez na infância, escrevi:
face e pelas suas feições não-negroides. 11 Até naquela época ela era pano de fundo, enfeite. Era
chata, reclamona. Estava ·ali para suavizar as imagens
Quando atrizes negras como Lena Home apareceram dos homens negros, para fazê-los parecer vulneráveis,
nos filmes mainstream, a maioria das/os espectadoras/es tranquilos, engraçados e inofensivos aos olhos de uma
brancas/os não tinha consciência de que estava olhando plateia branca. Estava ali como se fosse um homem vestido
mulheres negras, exceto quando o filme continha de drag, como uma vadia castradora, como alguém a quem
se mente, a quem se engana, alguém que o público branco
informações específicas de que tratava de negras/os. Burchill e negro podia odiar. Bode expiatório de todos os lados.
é uma das poucas críticas de cinema que ousou examinar Ela não era nós. Ríamos com os homens n.egros, com as
a intersecção de raça e gênero em relação à construção da pessoas brancas. Ríamos dessa mulher negra que não era
categoria "mulher" enquanto objeto do olhar falocêntrico, nós. Nem ao menos desejávamos estar ali na tela. Como
poderíamos, .se nossa imagem, visualmente construida,
no cinema. Com sua astúcia típica, a autora afirma: "O que era tão feia .. Não queríamos estar ali. Não a queríamos.
dizer sobre a pureza racial, quando todas as melhores loiras Não queríamos que nossa construção fosse essa coisa
já foram morenas (Harlow, Monro~1 Bardot)? Creio que se feminina, negra e odiada - enfeite, pano de fundo. Sua
pode dizer que não somos tão brancas quanto achamos que imagem de mulher negra não era o corpo de desejo. Não
havia nada para ver. Ela não era nós.
somos". Burchill poderia facilmente ter escrito "não somos
tão brancas quanto gostaríamos de ser", uma vez que é Mulheres negras adultás tinham uma reação diferente
12
óbvio que a obsessão de se ter mulheres ultrabrancas como à Sapphire. Identificavam-se com suas frustracões e
estrelas de filmes foi uma prática no cinema que procurava angústias. Ressentiam-se do modo como as pessoas
manter uma distância, uma separação entre a imagem e o zombavam dela. Ressentiam-se da maneira pela qual
Outro -as mulheres negras. Era uma maneira de perpetuar aquelas imagens na tela podiam atacar as mulheres negras,
a supremacia branca. As políticas de raça e gênero estavam e de como poderiam nos nomear como chatas, reclamonas.
Por outro lado, reivindicavam Sapphire como delas, como
11N. da T.: No original "non-negroidness". símbolo daquela parte furiosa de si mesmas, parte que as
u N. da T.: No original "ultra-white".
TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas !1970-~010J j 491
490 jlzabel Brandão llldney Cavalcanti I Claudia de Uma Costa I Ana Cecilia Acioli Uma
pessoas brancas e homens negros não poderiam sequer mulher branca retratada na tela. Depois de assistir a filmes,
começar a entender. sentir o prazer, ela diz: "Mas voltar para casa ficava difícil".
As representações convencionais de mulheres negras Voltar para casa é voltarmo-nos para nós mesmas.
perpetraram violência contra a imagem. Em reaç~o a essa Nem todas as espectadoras negras submeteram-se àquele
agressão,muitasespectadorasnegras bloquearamarm~gem, espetáculo de regressão por meio da identificação. A maioria
ignoraram-na, não dando importância nenhuma ao cme~a das mulheres com quem conversei sentiu que resistia, de
em suas vidas. Havia espectadoras/es cujo olhar era de deseJO forma consciente, à identificação com os filmes. Dizia que
e cumplicidade. Assumindo uma postura de subordinação, essa tensão fazia com que as idas ao cinema não fossem
essas pessoas submeteram-se à capacidade do cinema de prazerosas; às vezes eram até dolorosas. Uma mulher negra
seduzir e trair. Sua visão estava "ofuscada" 13 pelo cinema. disse: "Eu sempre conseguia ter prazer com os filmes,
Cada mulher negra com quem eu conversava, que ia muito contanto que não os examinasse muito profundamente".
ao cinema e que gostava muito dos filmes de Hollywood, Para as espectadoras negras que "examinaram muito
dizia que, para que se pudesse vivenciar completamente o profundamente"; o encontro com a tela era doloroso. A
prazer do cinema, tinha que se fechar à crítica,~ análise; era opção de algumas de nós em parar de olhar era um gesto
preciso esquecer o racismo. Principalmente, nao pensavam de resistência. Dar as costas era uma maneira de protestar,
sobre o sexismo. Qual era, então, a natureza desse olhar rejeitar a negação. Meu prazer na tela terminou, de forma
de adoração das mulheres negras - esse olhar que podia abrupta, quando minhas irmãs e eu assistimos pela primeira
trazer o prazer em meio à negação? Toni Morrison, em vez ao filme Imitation of Life (Imitação da vida). Ao escrever
seu primeiro romance, The Bluest Eye (O olho mais azul~ ),
4
sobre essa experiência, no texto "Sapphire", referi-me ao
constrói um retrato da espectadora negra. Seu olhar e o filme diretamente, confessando:
olhar masoquista da vitimização. Ao descrever as relações Até agora eu havia me esquecido de você, aquela imagem
com o olhar, Miss Pauline Breedlove, uma mulher pobre, da na tela vista na adolescência, aquelas imagens que me
classe trabalhadora, doméstica em casa de próspera família faziam parar de olhar. Estava ali, em Imitation of Life,
aquela confortável imagem de mamãe. Havia algo familiar
branca, afirma: nessa mulher negra que trabalhava arduamente, que
Parece que a única hora que eu era feliz era quando tava amava tanto a filha, tanto que até doía. Realmente, como
no cinema. Ia sempre que podia. Chegava cedo, antes d~ meninas negras sulistas assistindo a esse filme, a mãe de
filme começar. As luz se apagava e ficava tudo escuro. Aí Peola nos lembrava das grandes mamães que trabalhavam
a tela se iluminava e eu entrava direto no fUme. Os homem arduamente, e que iam à igreja. As grandes mamães que
branco tomando conta tão bem das mulher, e todos bem conhecíamos e que amávamos. Consequentemente, não
vestido, as casa grande e limpa, com a banheira no mes~o era essa imagem que capturava nosso olhar; ficávamos
aposento que o toalete. Aqueles filme me· dava mmto fascinadas por Peola.
prazer (MORRISON, 2003, p. 124).
Referindo-me a ela, escrevi:
Para vivenciar o prazer, Miss Pauline, sentada no Você era diferente. Havia alguma coisa assustadora
escuro, deve imaginar-se modificada, transformada na nessa imagem de beleza negra, sensual, sexual, jovem,
traída - aquela filha que não queria ser confinada pela cor
N. da T.: No original "gaslighted".
13 .
N. da T.: o romance foi traduzido para o português por Manoel Paulo Ferrerra, para a
14 negra, aquela 'mulata trágica' que não queria ser negada.
Companhia das Letras (2003).

492 jlzabel Brandão 1lldney Cavalca'nti I Claudia de Uma Costa I Ana Cecflia Acioli Uma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas !1970-201 OJ I 493
'Deixe-i:ne escapar dessa imagem para sempre', poderia oposicional. b ato de nos posicionar fora daquele prazer
ter dito. Sempre me lembrarei dessa imagem. Lembrei-me de olhar, segundo Mulvey, era determinado por uma
de como choramos por ela, por nosso self desejado e não "separação entre ativo/mas~o e passivo/feminino".
realizado. Ela era trágica porque não havia lugar no cinema Espectadoras negras ativamente optaram por não se
para ela, nenhum filme bonito. Ela também era imagem identificar com o sujeito imaginário do cinema, uma vez
ausente. Era melhor então que fôssemos ausentes, pois, que tal identificação as incapacitava.
quando estávamos ali, era humilhante, estranho, triste. Ao olhar para filmes com um olhar oposicional, as
Choramos a noite toda por você, pelo cinema que não tinha mulheres negras eram capazes de avaliar, de forma crítica,
lugar para você. E, como você, paramos de achar que um a construção cinematográfica da condição das mulheres
dia seria diferente. brancas enquanto objetos do olhar falocêntrico; e, assim,
Quando retomei ao cinema, já moça, após um longo escolher não se identificar com a vítima, tampouco com
período de silêncio, eu havia desenvolvido um olhar o algoz. As espectadoras negras, que se recusavam a
oposicional. Eu não me deixava magoar pela ausência identificar-se com as mulheres brancas, que não aceitavam
da presença das mulheres negras, ou pela inclusão da o olhar falocêntrico de desejo e posse, criaram um espaço
representação violadora. Eu também interrogava os crítico no qual· a oposição binária - que Mulvey coloca
filmes, nutria uma maneira de enxergar além da raça e do como "mulher como imagem I homem cÓmo portador do
gênero, e procurava aspectos de conteúdo, de forma e de olhar" -era constantemente desconstruída. Na condição de
linguagem. Filmes estrangeiros e filmes norte-americanos espectadoras críticas, as mulheres negras olhavam a partir
independentes eram os principais lugares das minhas de um local de rompimento, semelhante ao lugar descrito
relações fílmicas com o olhar, embora eu também assistisse por Annette Kuhn (1985) em The Power of The Image (O
a filmes hollywoodianos. poder da imagem):
Subitamente, espectadoras negras passaram a ir ao [...] os atos de análise, de desconshução e de leitura
cinema, cientes da maneira pela qual a raça e o racismo 'contra a corrente',I6 oferecem um prazer adicional - o
determinavam a construção visual de gênero. Tanto em prazer da resistência, de dizer 'não'; não para o deleite
Birth of a Nation ou nos programas da Shirley Temple, 'não sofisticado', por nós e por outros, de imagens
culturalmente dominantes, mas para as eshuturas de
sabíamos que as mulheres brancas ~ram a diferença sexual poder que nos pedem que as consumemos de maneira não
racializada, que ocupava o lugar do estrelato nas narrativas crítica e em maneiras altamente limitadas.
cinematográficas mainstream. Presumíamos que as mulheres
A crítica cinematográfica mainstream feminista não
brancas também sabiam disso. Ao ler o provocativo ensaio
reconhece, de maneira alguma, a condição das mulheres
de Laura Mulvey, "Visual Pleasure and Narrative Cinema"
negras de serem espectadoras. Não considera ao menos a
(Prazer visual e cinema narrativo15), a partir de uma
possibilidade de que as mulheres podem construir um olhar
perspectiva que reconhece a raça, pode-se ver claramente
oposicional por meio do entendimento e da consciência
por que espectadoras negras, que não se deixavam enganar
das políticas de raça e racismo. A teoria cinematográfica
pelos filmes mainstream na mídia, desenvolviam um olhar
feminista enraizada numa estrutura psicanalítica, que
15
N. da T.: a. tradução deste ensaio de Mulvey, nesta Antologia. 16
N. da T.: No original "against the grain".

494 lizabel Brandão I lldney Cavalc~nti I Claudia de Uma Costa I Ana Cecfiia Acioli Uma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas !1970-2D10J I 495
não leva em consideração fatores históricos, e que impasse, um certo bloqueio na teorização[ ... ] Ao enfocar
privilegia a diferença ·sexual, anula, de forma intensa, o a tarefa de descrever, detalhadamente, os atributos das
rimlheres como efeito do aparato, a teoria cinematográfica
reconhecimento da raça. Isso encena novamente e reflete o feminista participa na abstração das mulheres.
apagamento da condição das mulheres negras no cinema,
silenciando qualquer discussão acerca da diferença racial O conceito "Mulher" apaga a diferença entre mulheres
- da diferença sexual racializada. Apesar das intervenções em contextos sócio-históricos específicos, entre mulheres
da crítica feminista visando à desconstrução da categoria definidas precisamente como sujeitos histqricos em vez de
"mulher", que destacam. a significância da raça, muitas sujeitos psíquicos (ou não sujeitos). Embora Doane não se
críticas cinematográficas feministas continuam a estruturar concentre na raça, seus comentários referem-se diretamente
seu discurso como se falassem sobre "mulheres", quando, ao problema do apagamento da raça. Somente quando se
na verdade, falam somente sobre mulheres brancas. Parece · / imagina a "mulher" abstratamente, quando a mulher se
irônico que a capa da recente antologia Feminism and toma ficção ou fantasia, pode a raça não ser vista como
Film Theory (Feminismo e teoria fílmica), organizada por significativa. Será mesmo que devemos imaginar que os
Constance Penley, apresenta uma imagem gráfica, que textos teóricos feministas que escrevem apenas sobre as
é uma reprodução da foto das atrizes brancas Rosalind imagens de mulheres brancas, que classificam esse sujeito
Russell e Dorothy Arzner no cenário do filme Craig's histórico específico na categoria totalizante "mulher", não
Wife (A mulher de Craig) (1936), mas nenhum ensaio da "veem" a brancura da imagem? Pode muito bem ser que
antologia reconhece que a mulher "sujeito" em discussão estejam engajados num processo de negação que elimina a
é sempre branca. Ainda que haja fotos de mulheres negras necessidade de revisar maneiras convencionais de pensar
de filmes, reproduzidas nos textos, não há reconhecimento a psicanálise como paradigma de análise, e a necessidade
da diferença racial. de SE;" repensar um arcabouço de teoria cinematográfica
Pareceria muito simplista interpretar essa falta de feminista que esteja firmemente enraizada em uma
visão apenas como uma expressão de racismo. É importante negação da realidade de que o sexo/sexualidade pode não
considerar que isso também se refere ao problema de se ser o significante primário e/ou exclusivo da diferença.
estruturar a teoria cinematográficafem:inistanumanarrativa O ensaio de Doane aparece numa antologia bem recente,
totalizante de mulher como objeto, çuja imagem funciona Psychoanalysis & Cinema (Psicanálise & cinema), organizada
somente para reiterar e reinscrever o patriarcado. Mary Ann por E. Ann Kaplan. As teorias presentes nessa antologia,
Doane (1990) trata essa questão no ensaio "Remembering novamente, não reconhecem nem discutem a diferença
Women: Physical and Historical Construction in Film racial, excetuando um ensaio intitulado "Not Speaking
Theory" (Lembrando mulheres: construção física.e histórica with Language, Speaking with No Language" (Não falando
na teoria fílmica): com a língua, falando com nenhuma língua). Esse ensaio
E esse apego à figura de uma Mulher degeneralizáveP 7 problematiza noções de orientalismo ao examinar o filme
como produto do aparato indica porque, para muitas/os, a Adynata, de Leslie Thomton. Ainda assim, na maioria dos
teoria cinematográfica feminista parece ter chegado a um
ensaios, as teorias adotadas são consideradas problemáticas
se a raça é incluída como categoria de análise.
17
N. da T.: No original "degeneralizible Woman".

49 6 jlzabel Brandão I lldney Cavalcanti I Claudia de Uma Costa I Ana Cecflia Acioli Uma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas [1970-20101 I 497
Construir a teoria fílmica feminista nessa esteira uma estratégia que nos protege da violência perpetrada
possibilita a produção de uma prática discursiva que e defendida por discursos da comunicação de massa. Um
nunca precisa teorizar nenhum aspecto da representação novo enfoque na raça e na representação no campo da
das mulheres negras ou de sua condição de espectadoras. teoria fílmica poderia intervir, criticamente, na repressão
Contudo, a existência de mulheres negras na cultura da histórica reproduzida em algumas arenas da prática crítica
supremacia branca problematiza, e toma complexa, a contemporânea, possibilitando um espaço discursivo para
questão geral da-identidade e da representação femininas, debater a condição de espectadoras das mulheres negras.
bem como a condição das mulheres de serem espectadoras. Quando perguntei a uma mulher negra, na faixa de
Se, como sugere Friedberg (1990), "A identificação é um vinte anos de idade, obsessiva frequentadora de cinema,
processo que exige que o sujeito seja deslocado por um por que pensava que não havíamos escrito sobre a condição
outro é um procedimento que faz a separação entre o de espectadoras das mulheres negras, comentou: "Temos
self e o outro e, assim, reproduz a própria estrutura do medo de nos referir a nós mesmas como espectadoras
patriarcado". Se a identificação "[ ... ] exige uniformidade, porque temos sofrido muitos ataques por conta do 'olhar'".
necessita de similaridade, proíbe a diferença" - será que Um aspecto desse ataque era a presunção imposta de que
devemos supor que muitas/os críticas/os feministas do as relações das mulheres negras com o olhar não eram
cinema que estão "superidentificadas/os"18 com o aparato suficientemente importantes para serem teorizadas. A
cinematográfico mainstream fazem teorias que reproduzem teoria fílmica como eixo crítico nos Estados Unidos foi, e
as finalidades totalizantes desse aparato? Por que a crítica continua a ser, influenciada pela dominação racial branca,
fílmica feminista, que mais reivindicou o terreno da sendo também seu reflexo. Uma vez que a crítica fílmica
identidade e da representação das mulheres, bem como feminista estava inicialmente enraizada no movimento
a subjetividade como seu campo de análise, permanece de liberação das mulheres que, por sua vez, era imbuído
absurdamente em silêncio a respeito da cor negra e, de práticas racistas, essa crítica não se abriu ·ao terreno
especificamente, a respeito de representações da condição discursivo nem o tomou mais inclusivo. Recentemente,
até mesmo as/os teóricas/os do cinema que são brancas/os
das mulheres negras? Assim como o cinema mainstream tem
e incluem uma análise de raça não demonstram interesse
forçado, historicamente, as espectadoras negras conscientes
nas mulheres negras enquanto espectadoras. Laura Mulvey
a não olhar, muitas/os críticas/os feministas de cinema não
(1987), na introdução da coletânea de ensaios Visual and
permitem a possibilidade de um diálogo teórico que poderia
Other Pleasures, descreve se"4. interesse romântico inicial
incluir as vozes das mulheres negras. É difícil falar quando
pelo cinema hollywoodiano: . ·
se ~ente que ninguém está ouvindo, quando parece que um
jargão ou uma narrativa especial foi criada, de forma que Apesar do fato de que este grande amor, não questionado
e não analisado anteriormente, tenha entrado em crise,
apenas as/os escolhidas/os possam entender. Não é de se devido ao impacto do feminismo no meu pensamento no
admirar que nós, as mulheres negras, temos, na maioria início da década de setenta, ele também teve uma enorme
das vezes, limitado a conversas nossos comentários críticos influência no desenvolvimento de meu trabalho crítico,
em relação a filmes. Deve ser reiterado que esse gesto é em ideias e em debates na cultura cinematográfica com
que me preocupei durante aproximadamente os quinze
anos que se seguiram. Aos olhos afetados pela mudança
18
N. da T.: No original "overidentified". que a consciência trouxe, os filmes perderam sua magia.

_498 llzabel Brandão I lldney Cavalcanti I Claudia de üma Costa 1Ana Cecflia Acioli üma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas [1970-2010l I 499
Ao assistir a filmes a partir de uma perspectiva los. Logicamente há um deleite a mais se, no processo de
feminista, Mulvey chegou naquele lugar de desavença, interrogação, depara-se com uma narrativa que convida as
que é o ponto inicial para muitas mulheres negras que espectadoras negras a engajarem-se no texto sem ameaça
analisam o cinema no contexto da realidade, vivenciada e de violação.
dilicil, do racismo. Entretanto, seu relato de fazer parte de De forma significativa, comecei a escrever crítica de
uma cultura ffimica, cujas raízes estão num relacionamento cinema em reação ao primeiro filme de Spike Lee, She's Gotta
instituído de adoração e amor, demonstra como teria sido Have It (Ela quer tudo). Contestei sua reprodução de práticas
dilicil entrar para esse mundo repentinamente, na condição cinematográficas patriarcais e mainstream, que representam,
de espectadora crítica cujo olhar se formara na oposição. explicitamente, as mulheres (no caso, as mulheres negras)
Devido ao contexto da exploração de classe e da como objetos do olhar falocêntrico. O investimento de Lee
dominação racial e sexista, tem sido apenas por meio da nas práticas patriarcais no cinema que refletem padrões
resistência, da luta, da leitura e de olhar "contra a corrente" dominantes o toma o candidato negro perfeito para entrar
que as mulheres negras têm conseguido valorizar o no cânone hollywoodiano. Seu trabalho imita a construção
nosso processo de olhar suficientemente para poder, cinematográfica das mulheres brancas enquanto objetos,
publicamente, dar nome a esse olhar. Fundamentalmente, substituindo seus corpos como texto no qual se escreve
as espectadoras negras que assumem a oposicionalidade do o desejo masculino pelos corpos das mulheres negras.
seu olhar desconstroem teorias da condição das mulheres Trata-se de transferência sem transformação. Ao entrar
de serem espectadoras, que têm contado substancialmente para o discurso da crítica cinematográfica, a partir do
com a presunção de que, segundo Doane (1990), no ensaio local politizado da resistência, do não querer, segundo
"Woman's Stake: Filming the Female Body" (O jogo da uma mulher negra da classe trabalhadora que entrevistei,
mulher: filmando o corpo feminino), "[ ...] as mulheres só "[ ...] de ver mulheres negras na posição que as mulheres
conseguem imitar a relação dos homens com a linguagem, brancas sempre ocuparam no cinema", comecei a pensar
ou seja, assumir uma posição definida pelo falo/pênis criticamente sobre a condição das mulheres negras de
como supremo árbitro da falta". Sem se identificar com serem espectadoras.
o olhar falocêntrico, tampouco com a construção das Durante anos assisti a filmes independentes e/ou
mulheres brancas como falta, as .espectadoras críticas estrangeiros. Era a única mulher negra presente no cinema.
negras constroem uma teoria de reláções com o olhar, nas Sempre imaginava que, em cada cinema nos Estados
quais o deleite visual do cinema é o prazer da interrogação. Unidos, havia outra mulher negra assistindo ao mesmo
Cada espectadora negra com quem conversei, com raras filme, e imaginando por que era a única espectadora negra
exceções, relatava estar "alerta" no cinema. Ao contar como visível. Lei:nbro-me de ter tentado compartilhar o cinema
foi influenciada pelo fato de ser espectadora crítica de filmes de que tanto gostava com uma das minhas cinco irmãs. Ela
hollywoodianos, a cinegrafista negra Julie Dash declara: ficou "enfurecida" porque eu a levei para um lugar onde
"Faço filmes por ter sido uma espectadora assim!" Ao olhar era necessário ler legendas. Para ela, isso era uma violação
os filmes hollywoodianos à distância, de uma perspectiva das noções hollywoodianas do que é ser espectadora, do
crítica politizada que não queria ser seduzida por que é ir ao cinema com fins de entretenimento. Quando
narrativas que reproduziam sua negação, Dash assistia aos perguntei o que a fizera mudar de ideia com o passar dos
filmes mainstream várias vezes, pelo prazer de desconstruí- anos, o que a fizera adotar esse tipo de cinema, ela disse que

500 llzabel Brandão llldney Cavalca~ti 1 Claudia de Uma Costa 1 Ana Cecflia Acioli Uma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas (1970-20101 I 501
fazia associação desse cinema com a tomada de consciência relação a essas produções. Até o momento, a maioria das
crítica: "Aprendi que havia mais no ato de olhar do que discussões que encontrei sobre a condição de espectadoras/
. aquilo a que havia sido exposta quando assistia a ~es es das pessoas negras concentra-se nos homens. Em "Black
(hollywoodianos) comuns". Eu concordava com Isso, Spectatorship: Problems of Identification and Resistance"
apesar de a maioria dos filmes que eu adora~a serem to~os (Espectorialidade negra: problemas de identificação e
p;roduzidos por pessoas brancas. Consegma me engaJar resistência), Manthia Diawara (1989) sugere que "os
neles porque não tinham, em sua estrutura profunda, um componentes da diferençal// entre os elementos de sexo,
1

subtexto que reproduzia a narrativa da supremacia branca. gênero e sexualidade provocam diferentes leituras do
Em resposta, ela disse que esses filmes desmistificavam mesmo material. O autor acrescenta que essas condições
a "brancura",19 uma vez que as vidas que retratavam produzem um/a espectador/a "resistente", e concentra sua
pareciam menos enraizadas em fantasias de fuga. Ela reflexão crítica na masculinidade negra.
sugeriu que eles eram mais como"[ ...] o que entendíamos A publicação recente da antologia The Female Gaze:
por vida e o lado mais profundo da vida". Sempre mais Women as Viewers of Popular Culture (Olhar feminino:
seduzida e encantada por filmes hollywoodianos do que mulheres como espectadoras da cultura popular) me
eu, ela salientou que espectadoras negras que não tinham entusiasmou, especialmente pela inclusão do ensaio "Black
consciência precisariam "fugir", precisariam não ser mais
Looks" (Aparência negra), de Jacqui Roach e Petal Felix, que
prisioneiras de imagens que encenam um drama de ;nossa
buscam tratar da condição de espectadoras das mulheres
negação. Embora ela ainda assista a filmes hollywoodianos,
pois"[...] eles são de grande influência na cultura"-, não se negras. O texto apresenta questões provocadoras que não
foram respondidas: Existe um olhar das mulheres negras?
sente mais enganada nem vitimizada.
Conversando com espectadoras negras, examinando Como as mulheres negras se identificam com as políticas de
textos, tanto na ficção quanto em ensaios acadêmicos representação de gênero? Para concluir, as autoras afirmam
a respeito de mulheres negras, observei a relação entre que as mulheres negras temos "[ ... ] nossa própria realidade,
o campo da representação na comunicação de massa e a nossa própria história, nosso próprio olhar- olhar que vê o
capacidade das mulheres negras de nos construírem _como mundo de forma bem diferente de qualquer outra pessoal//.
1

sujeitos na vida cotidiana. A exte:hsão da sensaçao de Entretanto, não nomeiam nem descrevem essa experiência
desvalorização que as mulheres negras sentem, bem como de ver "de forma bem diferente". A ausência de definição
sua sensação de serem objetificadas·, desumanizadas nesta e de explicação sugere que estão assumindo uma postura
sociedade, determina o escopo e a textura de suas relações essencialista, segundo a qual se presume que mulheres
com o olhar. As mulheres negras cujas identidades foram negras, enquanto vítimas da' opressão racial e de gênero,
construídas na resistência, por práticas que desafiam a têm um campo de visão diferente, que lhes é inerente.
ordem dominante, eram mais propensas a desenvolverem Muitas mulheres negras não "veem de forma diferente"
um olhar oposicional. Agora que há um interesse crescente justamente porque suas percepções da realidade estão tão
em filmes produzidos por mulheres negras, e que esses profundamente colonizadas, moldadas pelas maneiras
filmes se tomaram mais acessíveis ao público, é possível dominantes do saber. Trinh T. Minh-ha (1989) aponta em
falar na condição de espectadoras das mulheres negras, em "Outside In, Inside Out" (Pelo avesso e pelo direito): "A
subjetividade não consiste meramente em falar de si... quer
t9 N. da T.: No original "whiteness".
seja essa fala tolerante ou crítica".

502 lizabel Brandão llldney Cavalcanti I Claudia de üma Costa I Ana Cecüia Acioli üma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas [1970-2010l I 503
A condição de espectadoras críticas das mulheres do domínio de·. práticas discursivas cinematográficas. No
negras surge como local de resistência apenas quando filme, Dash utiliza a estratégia do cinema hollywoodiano
essas mulheres, individualmente, resistem à imposição de suspense para minar as práticas cinematográficas que
das formas dominantes do olhar e do saber. Enquanto negam às mulheres negras um lugar nessa estrutura. Ao se
que todas as mulheres negras com quem conversei tinham problematizar a questão de identidade "racial", retratando
consciência do racismo, tal consciência não correspondeu, o disf arce,20 repentinamente

questiona-se a capacidade dos
automaticamente, à politização, nem ao desenvolvimento homens brancos de olhar, definir e saber.
de um olhar oposicional. Quando isso aconteceu, mulheres Quando Mary Ann Doane descreve, em "Woman' s
negras, individualmente, deram nome ao processo, de Stake: Filming the Female Body'', a maneira pela qual as
forma consciente. O termo "condição de ser espectadora práticas cinematográficas feministas podem elaborar "uma
sintaxe especial para uma articulação diferente do corpo
na resistência", de Manthla Diawara, não descreve
feminino", nomeia um processo crítico que "[ ... ] desfaz a
adequadamente o terreno da condição de espectadoras
estrutura da narrativa clássica por meio de uma insistência
das ·mulheres negras. Fazemos mais do que resistir.
nas suas repressões". É uma descrição eloquente, que
Criamos textos alternativos que não são meramente define exatamente a estratégia de Dash em lllusions,
reações. Enquanto espectadoras críticas, mulheres negras ainda que o filme apresente falhas e funcione em meio a
participam de uma vasta gama de relações com o olhar. certas convenções que não são contestadas de forma bem-
Contestam, resistem, revisam, interrogam e inventam em sucedida. Por exemplo, o filme não indica se a personagem
níveis múltiplos. Certamente, quando vejo o trabalho das Mignon fará filmes hollywoodianos que subvertem e
cinegrafistas negras Camille Billops, Kathleen Collins, transformam o gênero fílmico, ou se ela simplesmente
Julie Dash, Ayoka Chenzira, Zeinabu Davis, não preciso assimilará e perpetuará a norma. Ainda assim, de forma
"resistir" às imagens, mesmo que escolha assistir a seus subversiva, lllusions problematiza a questão da raça e da
filmes com um olhar crítico. condição de ser espectador/a. Pessoas brancas no filme são
As pensadoras críticas negras, preocupadas com a incapazes de "ver" que a raça informa suas relações com o
criação de um espaço para a construção da subjetividade olhar. Embora se disfarce para ganhar acesso ao maquinário
radical das mulheres negras e com a maneira pela qual a da produção ·cultural representada pelo cinema, Mignon
produção cultural informa essa possibilidade, reconhecem continuamente reafirma seus laços com a comunidade
completamente a importância da comunicação em massa, negra. O elo que possui com a jovem cantora negra Esther
especialmente o cinema, como um local poderoso para a Jeeter é confirmado por gestos carinhosos, frequentemente
intervenção crítica. Certamente o filme lllusions (ilusões), expressados pelo contato olho no olho, o olhar direto,
de Julie Dash, identifica o terreno do cinema hollywoodiano não mediado, do reconhecimento. Ironicamente, o olhar
como um espaço de grande poder na produção do sexualizado dos homens brancos, que objetifica e que
conhecimento. Ainda assim, a cineasta cria uma narrativa deseja, ameaça penetrar os "segredos" dela e atrapalhar
fílmica na qual a protagonista negra reivindica tal espaço o processo. Metaforicamente, Dash sugere que o poder
de forma subversiva. Ao inverter a estrutura de poder da das mulheres negras para fazer filmes será ameaçado
"vida real", oferece às espectadoras negras representações 20
l'!·
da T.: No filme, a afro-americana se faz passar por uma mulher branca que trabalha
que desafiam noções estereotipadas que nos colocam fora na mdústria cinematográfica.

504 llzabel Brandão llldney Caval~anti I Claudia de Uma Costa I Ana Cecília Acioli Uma TRADUÇÕES DA CUlTURA· Perspectivas criticas feministas [1970-20101; I 505
e minado por esse olhar dos homens brancos, que busca das/os negras/os, movimentos estes que são sexistas. Elas
reinscrever o corpo das mulheres negras numa narrativa contestam velhas normas e desejam substituí-las por novos
de prazer voyeurístico, no qual a única oposição relevante entendimentos a respeito da complexidade da identidade
é masculino/feminino; e o único lugar para o feminino é negra e da necessidade de lutas pela liberação que tratam
a condição de vítima. Tais tensões não são resolvidas pela de tal complexidade. Ao se vestirem para ir a uma festa,
narrativa. Não é nem um pouco evidente que Mignon Louise e Maggie reivindicam o "olhar". Ao olhar uma para
triunfará sobre o "olhar" supremacista, branco, dominador, a outra, fitando o espelho, parecem estar completamente
capitalista e imperialista. concentradas no encontro com a feminilidade negra. O
Ao longo de fllusions, o poder de Mignon é confirmado mais importante é como se veem, não como serão vistas por
por seu contato com a mulher negra mais jovem, que outros. Ao dançar no ritmo de "Let' s get loose", mostram
protege e de quem cuida. Esse processo de reconhecimento seus corpos - não para um olhar colonizador voyeurístico,
especular possibilita que as duas mulheres negras definam mas para aquele olhar de reconhecimento que afirma a
sua realidade, além da realidade a elas imposta pelas sua subjetividade, e que as constitui como espectadoras.
estruturas de dominação. O olhar compartilhado das duas Ao empoderarem-se mutuamente, ansiosamente deixam
mulheres reforça a solidariedade entre elas. Na condição o âmbito privatizado e confrontam o público. Rompendo
de sujeito mais jovem, Esther representa um público em com representaÇões do corpo das mulheres negras,
potencial para os filmes que Mignon possivelmente venha que são estereotipadas, racistas e sexistas, essas cenas
a produzir, filmes nos quais as mulheres negras serão o foco convidam o público a olhar de fortna diferente. Agem,
narrativo. O recente longa-metragem Daughters of the Dust assim, para interferir criticamente e transformar práticas
(Filhas da poeira), de Julie Dash, ousa posicionar as mulheres cinematográficas convencionais, modificando noções do
negras no centro da narrativa. Esse foco levou críticas/os ato de serem espectadoras/es. fllusions, Daughters of the
(principalmente homens brancos) a analisar o filme de forma Dust e A Passion for Remembrance empregam uma prática
negativa, ou expressar reservas. Evidentemente, o impacto cinematográfica de desconstrução, para minar as grandes
do racismo e do sexismo sobredeterrrrina de tal forma a narrativas cinematográficas existentes, mesmo quando
condição de ser espectador/a- não apenas a maneira pela reteorizam a subjetividade no campo do visual. Sem
qual olhamos, mas também com quem nos identificamos - fornecer representações positivas "realistas" que emergem
que espectadoras/es que não são mulheres negras acham somente como reação à natureza totalizante das narrativas
difícil ter empatia com as personagens principais do filme. existentes, esses filmes oferecem pontos de partida
Ficam sem rumo quando não há uma presença branca no radicais. Abrindo espaço para a afirmação da condição de
filme. espectadoras críticas das mulheres negras, não oferecem
Outra representação de mulheres negras que apoiam simplesmente representaÇões diferentes, mas imaginam
umas às outras por meio do reconhecimento da luta comum novas possibilidades transgressoras para a formulação da
pela subjetividade é retratada na obra coletiva de Sankofa, identidade.
Passion of Remembrance (Paixão de recordação). No filme, Nesse sentido, essas obras explicitam uma prática
desde o inicio da narrativa, duas mulheres negras, as amigas crítica que nos proporciona maneiras diferentes de pensar
Louise e Maggie, lutam com a questão da subjetividade, por a subjetividade das mulheres negras e sua condição de
seus lugares nos movimentos progressistas de liberação espectadoras. Para o cinema, proporcionam novos aspectos

506 llzabel Brandão Jlldney Cavalc~nti 1Claudia de Uma Costa 1Ana Cecflia Acioli Uma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas criticas feministas [1970-201qJ I 507
de reconhecimento, alinhando-se com a visão de Stuart Hall a "Woman' s Stake: filming the female body".
respeito de uma prática crítica que reconhece que a identidade PENLEY, Constance (Ed.). Feminism and Film Theory. New
é constituída "não fora, mas dentro da representação", York: Routledge, 1988.
convidando-nos a olhar o cinema"[ ... ] não como um espelho
de segundo plano que seguramos para ver refletido o que FANON, Franz. Black Skin, White Masks. New York: Monthly
já existe, mas como forma de representação que seja capaz Review, 1967.
de nos constituir como novos tipos de sujeitos e, assim, ___. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da
possibilitar que descubramos quem somos". É essa prática Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
crítica que permite a produção de uma teoria fílmica feininista
que trata da condição de espectadoras das mulheres negras. FRIEDBERG, Anne. "A Denial of Difference: theories of
Analisando e olhando em retrospectiva, as mulheres negras cinematic identification". In: KAPLAN, E. Ann (Eds.).
envolvem-se num processo no qual vemos a história como Psychoanalysts & Cinema. London: Routledge, 1990.
a contra-memória, utilizando-a como forma de conhecer o KUHN, Annette. The Power of the Image: essays on
presente e inventar o futuro. representation and sexuality. New York: Routledge, 1985.
Tradução de Raquel D'Elboux Couto Nunes ___. A tecnologia de gênero. Boletim do GT A Mulher na
Literatura, n. 4. Tradução de Susana B. Funck. Florianopólis:
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Indiana University Press, 1989. .
DIAWARA, Manthia. "Black British Cinema: spectatorship
and identity formation in territories". Public Culture, v. 1, n. 3, PENLEY, Constance (Ed.). Ferriinism and Film Theory. New
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508 ilzabel Brandão llldney Cavalcanti I Claudia de üma Costa I Ana Cecflia Acioli üma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas [1970-201ffi I 509
Não sou uma mulher? Revisitando a interseccionalidade
Avtar Brah & Ann Phoenix

Introdução

f:)/1 época da guerra contra o Iraque, em


\_// (}991, críticas feministas ao então conhecido
discurso da 'sororidade global' eram comuns. Enquanto
caíam as bombas americanas e britânicas sobre o Iraque
mais uma vez, em março de 2003, muitas das 'antigas'
questões que debatemos sobre a categoria 'mulher'
assumiram urgência crítica mais -üma vez; embora elas
agora carreguem o peso das circunstâncias globais do início
do século XXI.
Este trabalho objetiva discutir brevemente alguns
'velhos' debates que continuam centrais no esforço de
tomar relevante a agenda feminista nos dias de hoje. Para
isso, reVisitamos os debates sobre 'interseccionalidade' que
ajudaram a avançar os feminismos em décadas anteriores.
A primeira parte deste trabalho aborda algumas conversas
internas de longa data entre diferentes correntes do
feminismo, as quais já ofereceram importantes percepções
a respeito dos problemas contemporâneos. Revisitando
esses acontecimentos históricos, não queremos sugerir
que o passado provê uma resposta para o presente sem
problematizá-lo. Pelo contrário, poderíamos almejar
aprender com essas percepções - e construir, a partir
delas, por meio da crítica - de maneira que possam
esclarecer impasses atuais. Por isso, quando começamos
com os debates do século XIX, não é porque existe uma
correspondência direta entre a escravidão e as formas de
govemamentalidade do século XXI, mas, sim, para indicar

TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas [1970-2010l;l 661


que algumas questões que emergiram naquela época político, cultural, físico, subjetivo e experiencial - se
podem ajudar a iluminar e elucidar nossos emaranhados interseccionam em contextos historicamente específicos. O
atuais com problemáticas similares. conceito ressalta que as diferentes dimensões da vida social
A segunda parte do trabalho comenta como textos não P<;dem ser separadas em vertentes discretas e puras.
autobiográficos e de pesquisa empírica analisaram a E importante ter em mente que a frase "Não sou uma
interseccionalidade. Argumentamos que a necessidade mulher?" foi inicialmente introduzida no léxico feminista
de compreender as complexidades propostas pelas norte-americanq, e britânico por uma mulher escravizada
intersecções de distintos eixos de diferenciação é tão urgente chamada Sojourner Truth (o nome que ela escolheu, em
hoje quanto foi no passado. Na seção final, examinamos vez do seu nome original Isabella, quando se tomou uma
brevemente a contribuição de recentes desenvolvimentos pregadora itinerante). A pergunta precede em um século
teóricos à análise da 'interseccionalidade', os quais têm alguns de nossos textos feministas mais recentes sobre o
potencial para nutrir novas e profícuas agendas feministas. assunto, como Am I that name? (Sou este nome?), de Denise
Riley (2003/1998) ou Gender Trouble (Problemas de gênero1),
Não sou uma mulher? A 'verdade' de Sojourrier de Judith Butler (1990). Acerca disso é também importante
Uma temática essencial e sempre relevante do lembrar que a primeira sociedade antiescravagista de
feminismo é a importante questão do que significa ser uma mulheres foi formada em 1832 por mulheres negras em
mulher em diferentes circunstâncias históricas. Através dos Salem, Massachusetts, nos Estados Unidos. Ainda assim,
anos 1970 e 1980, esta preocupação foi o assunto de muito a ausência das mulheres negras foi visível na Convenção
debate, à medida que o conceito de 'sororidade global' era Antiescravagista de Seneca Falls, em 1848, em que as
criticado pelo seu fracasso em levar em conta as relações de delegadas, em sua maioria brancas e de classe média,
poder que nos dividiam (HARAWAY, 1991; DAVIS, 1981; debateréml a moção para o sufrágio feminino. Muitas
FEMINIST REVIEW, 1984; MOHANTY, 1988). Um século questões surgem quando refletiinos sobre a ausência de
antes, contestaçõesentrefeministasemlutasantiescravagistas mulheres negras na Convenção. Quais, por exemplo, são
e campanhas para o sufrágio feminino também trouxeram as implicações de um evento que exclui a mulher negra
à tona conflitos similares. Sua lembrança ainda repercute do imaginário político de um feminismo designado para
entre nós porque as inter-relações 1entre racismo, gênero, fazer a campanha pela abolição da escravatura? Que
sexualidade e classe social estavam no âmago dessas consequências tais negações tiveram para a constituição
contestações. Certamente, nós começamos este trabalho com de formas gendradas . de "br~cura" na representação
a locução política do século XIX "Não sou uma mulher?" do sujeito normativo para o imaginário ocidental? Como
precisamente porque - ao desafiar fundamentalmente eventos como esse marcaram a compreensão relaciona! de
todas as noções a-históricas ou essencialistas de 'mulher' si entre mulheres brancas e negras? Principalmente, o que
- ela captura perfeitamente todos os elementos principais ocorre quando o sujeito subalterno - nesse caso, a mulher
do debate sobre 'interseccionalidade'. Nós concebemos a negra- repudia tais gestos de silenciamento?
'interseccionalidade' como um conceito que denota os efeitos
complexos, irredutíveis, variados e variáveis que advêm
1
quando eixos de diferenciação múltiplos - econômico, N. da T.: Traduzido para o português por Renato Aguiar e publicado pela Civilização
Brasileira em 2003.

662 IIzabel Brandão llldney Cavalcanti I Claudia de Uma Costa I Ana Cecfiia Acioli Uma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas [1970-20101, I 663
Sabemos, a partir de biografias de mulheres como mulher? Eu podia trabalhar tanto quanto, e comer tanto
Sojoumer Truth, que muitas delas falaram alto e claro. Elas quanto qualquer homem - quando eu conseguia comida
- e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu
não seriam enjauladas pela violência da escravidão mesmo gerei crianças e vi a maior parte delas ser vendida para a
quando violentamente marcadas por ela. O discurso de escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe,
Sojoumer Truth, em 1851, na Convenção de Direitos das ninguém a não ser Jesus me ouviu. E não sou uma mulher?
Mulheres em Akron, Ohio, demonstra muito bem o poder (TRUTII, 1851).
histórico de um sujeito político que desafia os imperativos de Esse discurso pioneiro desconstrói cada verdade
subordinação e, assim, cria novas visões. Tal poder (o qual, sancionada sobre gênero em uma formação social patriarcal
de acordo com Foucault, simultaneamente disciplina e cria escravagista. De modo mais geral, o discurso oferece uma
novos sujeitos) e suas consequências são muito maiores do crítica devastadora de processos sócio-políticos, econômicos
que as perdas e ganhos de uma vida individual que articula e culturais de' alterização', enquanto chama a atenção para a
uma específica posição política de sujeito. Sojoumer Truth importância simultânea da subjetividade- da dor subjetiva -
nasceu escrava (de um rico proprietário holandês que vivia e da violência sobre as quais seus perpetradores não querem-
em Nova York). Ela fez campanha tanto para a abolição da ouvir falar ou reconhecer. Simultaneamente, o discurso traz
escravatura quanto para direitos iguais para as- mulheres. à tona a importância da espiritualidade para essa forma de
Já que ela foi iletrada por toda sua vida, não há registro ativismo político, quando o sofrimento existencial entra
formal de seu discurso e, de fato, existem duas versões em contato com seu inconsciente e é sancionado através da
dele (GATES; McKAY, 1997). A primeira foi publicada no crença na figura de um Jesus que ouve. A identidade política,
The Anti-Slavery Bugle, Salem, Ohio, no dia 21 de junho de aqui, nunca é dada, mas performatizada através da retórica
1852. Entretanto, a versão que se encontra em circulação é e da narração. As reivindicações de identidade de Sojoumer
uma mais dramática, recontada em 1863 pela abolicionista Truth são, portanto, relacionais, construídas em. relação
e presidenta da- Convenção, Frances Gage. O que fica às mulheres brancas e a todos os homens, demonstrando
evidente é que as palavras de Sojoumer Truth tiveram um claramente que o que chamamos de 'identidades' não são
impacto enorme na Convenção e que os desafios que elas objetos, mas processos constituídos nas relações de poder e
expressam prenunciaram as manifestações de feministas através delas. --
negras mais de um século depois: É como crítica, prática e inspiração que esse discurso
Bem, crianças, onde há mUito barulho, deve haver algo contém lições cruciais para nós, hoje. Com certo tom de
fora de ordem, eu penso entre os negros do Sul e as lamento, mas desafiador, o disd.rrso, politicamente afiado,
mulheres do Norte - todos falando sobre direitos - os
mas com a sensibilidade poética, realiza os movimentos
homens brancos estarão em maus lençóis muito em breve.
Mas sobre o que é tudo isso? Aquele homem ali diz que analíticos de uma "mente descolonizada", usando,
as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, aqui, o insight crítico de Wa Thiongo (1986). O discurso
e ser carregadas para atravessar valas, e ter os melhores rejeita conclusões definitivas. Todos nós temos extrema
lugares onde quer que estejam. Ninguém me ajuda a necessidade de mentes abertas e descolonizadas na época
conseguir melhor lugar algum. E não sou uma mulher?
Olhem para mim! Olhem para meu braço. Eu arei a terra, atual. Além disso, Sojoumer Truth desafia poderosamente
eu plantei e eu recolhi a colheita em celeiros. E nenhum pensamentos essencialistas de que uma categoria específica
homem poderia estar à minha frente. Eu não sou uma de mulher é essencialmente isso ou essencialmente aquilo
664 jlzabel Brandão llldney Cavalcanti I Claudia de üma Costa I Ana Cecfiia Acioli üma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas criticas feministas (1970-20101 J 665
(por exemplo, que mulheres são necessariamente mais Tais descentràmentos atingiram novos patamares
fracas que homens ou que mulheres negras escravizadas quando alimentados por energias políticas geradas
não são mulheres). Essa questão tem importância crítica pelos movimentos sociais da segunda metade do último
hoje, quando a sedução dos novos orientalismos e seus E;éculo - movimentos anticoloniais pela independência,
desejos concomitantes de 'desvelar' mulheres muçulmanas os movimentos por direitos civis e o Black Power, o
provou ser atraente até mesmo para algumas feministas em movimento pela paz, protestos estudantis e o movimento
um mundo 'pós-11 de setembro'. dos trabalhador,es, o movimento das mulheres ou o
Há milhões de mulheres hoje que continuam movimento de gays e lésbicas. Seja qual for a manobra
marginalizadas, tratadas como um 'problema', ou hegemônica alvo do protesto- a condição das sexualidades
construídas como o ponto focal de um pânico moral - subordinadas, as injustiças de classe, ou outras realidades
mulheres na pobreza, sofrendo doenças, falta de água e de subalternas -, o conceito do sujeito autorreferente e
saneamento adequado; mulheres que estão, elas mesmas unificado da modernidade agora se tomou o sujeito de
.e/ou suas famílias, espalhadas pelo globo como migrantes ostensiva e explícita crítica política. Projetos políticos como
econômicas, trabalhadoras indocumentadas, refugiadas ou o Combahee River Collective, a organização feminista lésbica
em busca de asilo; mulheres cujos corpos e sexualidades são negra de Boston, apontavam, já em 1977, para a futilidade
comodificados~ fetichizados, criminalizados, racializados, de se privilegiar apenas uma dimensão da experiência
disciplinados e regulados através de uma miríade de como se ela constituísse o todo da vida. Ao invés disso,
regimes representacionais e práticas sociais. Muitas de nós, falaram sobre estar "ativamente comprometidas com lutar
ou talvez todas nós, de um modo ou de outro, continuamos contra a opressão racial, sexual, heterossexual e de classe"
a ser 'aclamadas' como sujeitos na imaginação diaspórica e advogaram "o desenvolvimento de análises e práticas
de Sojourner Truth e de seu massivo potencial de des- integradas já que os maiores sistemas de opressão estão
fazer os movimentos hegemônicos das ordens sociais interligados" (p. 272). ·
que nos confrontam hoje. Ela encena a dispersão e a O conceito de 'opressões simultaneamente
disseminação tanto em termos de sermos membros de uma interligadas', entendidas como sendo tanto locais
diáspora histórica, mas, também, igualmente no sentido quanto globais, foi uma das primeiras e mais produtivas
de desarticular, romper e des-centrar a complacência formulações da subsequente teorização de um "sujeito
precariamente suturada e a autodeclarada importância de descentrado" (ver, por exemplo, Hooks, 1981). Como
certos feminismos. Norma Alarcón (1990) sugeriu,, em sua análise do livro
This bridge called my back- uma coleção norte-americana de
Descentramentos da modernidade tardia escritos políticos por mulheres de cor -, o sujeito teórico
Desde Sojourner Truth, muitas feministas defenderam de Bridge é uma figura de multiplicidade, representando a
consistentemente a importância de se examinar a consciência como um "lugar de vozes múltiplas" (p. 365),
'interseccionalidade'. Uma característica-chave da análise entendida"[... ] não necessariamente como tendo origem no
feminista da 'interseccionalidade' é a preocupação com o sujeito, mas como discursos que atravessam a consciência
'descentramento' do 'sujeito normativo' do feminismo. e com os quais o sujeito precisa lutar constantemente" (p.
365). Essa figura é portadora de modos de subjetividade que

666 lizabel Brandão I lldney Caval~ranti I Claudia de Uma Costa I Ana Cecflia Acioli Uma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas 11970-20101 I 667
estão profundamente marcados pela "~olênci~ psíq~ca e
mulheres muçulmanas e não muçulmanas são construídas
material", demandando uma exaustiva reconfiguraçao da
como intransponíveis. Conflitos internos dentro da
teoria feminista" (ALARCÓN, 1990, p. 365).
OWAAD, assim como entre grupos de mulheres brancas,
Na Grã-Bretanha, fizemos reivindicações semelhantes
especialmente no que diz respeito à homofobia, mostraram-
quando mulheres provenientes da África, do Caribe e do
se salutares. Mesmo quando o feminismo negro' britânico
1

sul asiático passaram a ser consideradas "negras" :m


assumiu uma identidade política distinta do 'feminismo
coalizações políticas, desafiando, assim, as conotaçoes
branco', engajando-o em debates teóricos e políticos, ele
essencialistas do racismo (GREWAL et al., 1988; BRAH, 1996;
não ficou imune a contradições dentro de sua própria
MIRZA, 1997). Este projeto específico do feminism~ ne~o
heterogeneidade. Esses conflitos internos aos diferentes
britânico foi forjado. através do trabalho de orgaruzaçoes
feminismos, bem com entre eles, prefiguraram as teorias da
locais de mulheres em tomo de questões como salário e 1
diferença' que surgiram mais tarde.
condições de trabalho, legisl~ção para ~~~tes, vio~ê~cia
fascista, direitos reprodutivos e v10lencra domestica. Gênero, raça, classe e sexualidade
Em 1978, grupos locais se articularam para formar um
organismo nacional chamado Organization of .worr:en of Durante os anos 1980, houve muita· controvérsia
Asian and African Descent (OWAAD) (Orgaruzaçao de acerca da melhor forma de teori.Zar o relacionamento entre
Mulheres de Descendência Asiática e Africana). Essa as correntes citadas acima. As maiores diferenças nas
rede realizava conferências anuais, publicava um boletim abordagens feministas compreendiam aquelas entre os
e servia como um canal de transmissão de informação, feminismos socialistas, liberais e radicais, com a questão
conversas intelectuais e mobilização política. O diálogo que do racismo sendo um ponto de conflito entre as três. Nós
se estabeleceu compreendeu análises contínuas do racismo, não temos a intenção de recontar tal debate aqui. Em vez
classe e gênero, com intenso debate sobre os modos de disso, está seção discute a importância de uma abordagem
enfrentar seus efeitos, permanecendo, ao mesmo tempo, interseccional, primeiro, examinando a contribuição do
atento às especificidades culturais: feminismo para questões de gênero e classe, e, depois,
investigando os ganhos obtidos quando o foco passa a
Nosso grupo se organiza co;n base na ~dad~ afr~­
asiática e, apesar desse princrpio ser mantido, nos nao abranger outras dimensões. Estamos cientes de que classe
evitamos os problemas que tru unidade pode apre,s~nt~, social continua a ser uma categoria controvertida, cujos
ao contrário, mantemos discussões contínuas[ ... ]. E ob~r1o significados variam a partir das diferentes perspectivas
que temos que levar em corlta nossas ~erenças cultur~ e teóricas. Nosso enfoque é um pouco diferente. Preocupa-
isso influenciou o modo como consegmmos nos orgaruzar
(OWAAD in MIRZA, 1997, p. 43). nos, principalmente, a maneira como as narrativas acerca
da classe e suas intersecções são tecidas em alguns estudos
. A atenção cuidadosa de trabalhar por dentro, autobiográficos e empíricos.
através e transversalmente às diferenças culturais, é uma Na introdução de um livro que é hoje um clássico,
herança muito significativa desse feminismo e pode servir Truth, dare or promise: girls growing up in the fifties, Liz
de mecanismo para lidar com a questão da diferença Beron (1985) discute como o fornecimento de suco de laranja
cultural hoje, quando, por exemplo, diferenças entre para crianças de origem operária deu a elas a sensação de

668 j lzabel Brandão 1 lldney Cavalcanti I Claudia de üma Costa I Ana Cecftia Acioli üma
TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas [1970-20101 I 969
que tinham direito de existir. A implicação disso- de que social (e suas intersecções com gênero) é simultaneamente
classe social produz direitos/falta de direitos de existir, e subjetiva, estrutural e tem a ver com posição social e práticas
de que decisões sobre políticas sociais afetam tais direitos - cotidianas. Não obstante, se considerarmos as intersecções
está vividamente demonstrada neste exemplo. No mesmo de 'raça' e gênero com classe social, a narrativa se toma
livro, Valerie Walkerdine (1985) - que vem discutindo ainda mais complexa e dinâmica.
classes sociais consistentemente nos últimos vinte anos -
'A raça importa', escreve o· filósofo negro americano
descreve um passeio com uma amiga de classe média em Comel ,West (1993). Na verdade, classe, gênero e
um píer na costa. Ao passarem por uma família operária, raça . importam, e são importantes porque estruturam
elas percebem que colocam brown sauce?- em suas batatas interações, oportunidades, conscientização, ideologia e
fritas. Quando sua amiga perguntq. 'como eles podem formas de resistência que caracterizam a vida americana
[...] São importantes na configuração da localização
fazer isso?', Walkerdine é imediatamente interpelada como social de diferentes grupos na sociedade contemporânea
operária e forçada a reconhecer a' alterização' de sua herança (ANDERSEN, 1996, p. ix).
operária nesse discurso sobre hábitos culinários infesta~o
Anne McClintock (1995) utiliza-se de análise
de classicismo. Em trabalhos posteriores, a autora tambem
interseccional, argumentandó que, para entender o
discute a tendência da classe média a ver os operários como
colonialismo e o pós-colonialismo, deve-se, primeiramente,
'animais em um zoológico' (WALKERDINE; LUCEY, 1989)
reconhecer que 'raça', gênero e classe não são esferas
e considera as maneiras como a classe social se expressa nas
distintas e isoladas da experiência. Pelo contrário, elas
práticas cotidianas, bem como os investimentos afetivos por
passam a existir por e através de relações contraditórias
ela produzidos (WALKERDINE; LUCEY, 2002). Algumas
e conflitantes entre si. Condizente com o argumento
jovens mulheres de classe média, por exemplo, es:av~
de Catherine Hall (1992, 2002), McClintock mostra que
sujeitas a expectativas cujo significado era o de que Jamais
vitorianos conectavam 'raça', classe e gênero de maneira
conseguiriam um desempenho bom o suficiente para
que promoviam a distinção de classes na Grã-Bretarlha e o
agradar seus pais. . _ imperialismo fora dela.
Embora a intersecção entre 'raça' e classe socral nao
seja analisada no exemplo de Walkerdine, ela é presença o imperialismo não é algo que aconteceu em outro
lugar - um fato desagradável da história, externo à
silenciosa, na medida em que são ~s práticas de operários/ identidade ocidental. Pelo contrário, o imperialismo
as brancos/as que estão sujeitas, no exemplo de 1985, ao e a invenção da raça foram aspectos fundamentais da
olhar escopofilico fascinado. De forma similar, o trabalho modernidade industrial dq ocidente. A invenção da raça
de Beverley Skeggs (1997) com jovens operárias brancas nas metrópoles urbanas ... tomou-:se central não apenas
para a autodefinição da classe média, mas também
na região noroeste da Inglaterra mostrou a -luta dessas para o policiamento das 'classes perigosas': operários,
jovens por respeitabilidade e sua consciência, muitas vezes irlandeses, judeus, prostitutas, feministas, gays e lésbicas,
dolorosa, de estarem sendo julgadas mais severamente do criminosos, a massa militante, e assim por diante. Ao
que mulheres de classe média. Nesses exemplos, classe mesmo tempo, o culto da domesticidade não era apenas
urha irrelevância trivial e fugaz, pertencente à esfera
privada e 'natural' da família. Longe disso, argumento
2
N. da T.: Trata-se de um molho amiúde usado na ln&laterra que em m;::~~ que o culto da domesticidade foi uma dimensão crucial,
se assemelha ao molho para bife (steak sauce) norte-americano. E uma mistura de v
condimentos que lhe dão uma coloração amarronzada. mesmo se dissimulada, das identidades masculinas bem

670 jlzabel Brandão llldney Cavarcanti I Claudia de Uma Costa I Ana Cecflia Acioli Uma
TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas criticas feministas [1970-20101 I p71
como femininas - inconstantes e instáveis como eram não veem de que formas são privilegiadas, e que liberais
(McCLINTOCK, 1995, p. 5).
brancos bem intencionados geralmente lutam para manter
No nível das práticas cotidianas e da subjetividade, privilégios para seus filhos, enquanto negam que estejam
Gail Lewis (1985) demonstra como 'raça' e gênero se fazendo isso. Porém, as dinâmicas de poder e privilégios
intersectaram com o posicionamento de classe trabalhadora modelam as experiências-chave de suas vidas. N ancie
de seus pais, de forma que suas relações inconstantes de Caraway (1991), a partir de uma posicionalidade de classe
poder eram compreensíveis apenas como situações locais, diferente, argum,enta que uma noção simplista racializada
embora com bases globais. Sua mãe (uma mulher branca) era de privilégio é altamente insatisfatória para analisar as
responsável por lidar com funcionários públicos por causa experiências de mulheres operárias brancas vivendo na
das experiências racistas sofridas pelo casal em relação a pobreza.
seu pai (um negro). Nesses momentos, a 'branquidade' de No decorrer dos últimos vinte anos, a maneira como
sua mãe (FRANKENBERG, 1993) se toma um significante classe é discutida em discursos políticos, populares e
de superioridade sobre seu marido negro. Por outro lado, acadêmicos mudou tão radicalmente que, como diz Sayer
já que seu pai e sua mãe - marcados por convenções (2002), determinadas/os sociólogas/os acharam embaraçoso
patriarcais da época relacionadas à heteronormatividade falar com participantes de pesquisa sobre classe. Esta
- acreditavam ·que homens deviam lidar com o mundo tendência é evidente, também, em círculos governamentais,
exterior, isso tinha implicações em seu relacionamento como quando o discurso sobre eliminar a pobreza infantil
em casa, onde seu pai prevalecia. Lewis (2000) desenvolve vem substituir análises mais abrangentes de desigualdade
sua análise das intersecções de 'raça', gênero e classe ao de classes. Enquanto o atual governo não quer usar a
estudar as diversas práticas diárias de assistentes sociais linguagem de desigualdade de classe, ele se comprometeu
negras em relação aos seus clientes e colegas brancos e em erradicar a pobreza infantil em vinte anos. Entretanto,
negros, bem como seus superiores brancos. Ela demonstra é importante perguntar se um comprometimento em
que a intersecção de raça', gênero e classe é vivenciada
1
erradicar a pobreza infantil pode ser atingido plenamente
subjetivamente, faz parte da estrutura social e envolve sem a erradicação da pobreza entre os pais. Por exemplo,
tratamento diferenciado (e muitas vezes discriminatório). 3 um estudo feito por Middleton, Ashworth e Braithwaite
Outros trabalhos autobiográficos também (1997) descobriu que um por cento das crianças não tem
demonstram tais intersecções. Por exemplo, bell hooks uma cama ou colchão para si mesmos, cinco por cento
(1994) escreve sobre como ela rapidamente aprendeu que vivem em casas úmidas e não têm acesso a frutas frescas
trabalhadores negros nos arredores da Universidade de todos os dias, ou pares novos de sapatos que sirvam. Mais
Yale a cumprimentavam na rua, enquanto trabalhadores de de dez por cento das crianças com mais de dez. anos dividem
classe média a ignoravam. Usando sua própria experiência o quarto com um parente do sexo oposto. Não obstante,
de mulher branca, judia e de classe média, Paula de forma contraintuitiva, mais da metade das criancas
Rothenberg (2000) examina as intersecções de raça', gênero definidas como "não pobres" tinham pais definidos co~o
1

e classe social. Ela argumenta que as pessoas geralmente "pobres". Seus pais diziam que às vezes eles não gastavam
dinheiro com roupas, sapatos e entretenimento para se
3
Cf. Dill (1993). certificarem de que seus filhos e filhas estariam providos.
672 jlzabel Brandão llldney Cavalcanti I Claudia de Uma Costa I Ana Cecnia Acioli Uma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas !1970-201Dl I 673
I
Uma em vinte mães disse que elas, às vezes, não comiam da classe operária não constituem uma categoria unitária e
para prover para seus filhos. Mães solteiras geralmente homogênea, e a sua participação no ensino superior varia
relatavam isso. Na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, entre diferentes grupos. A participação é menor dentre
estudos recentes, de Ehrenreich (2002) e Toynbee (2003), aqueles/as operários/as de mão de obra não qualificada
oferecem outra lembrança oportuna de como trabaJhos e entre aqueles/as que residem em áreas de baixa renda.
operários estafantes e mal pagos continuam a diferenciar Estes fatores de classe se articulam com 'raça' e etnia para
as experiências das mulheres. produzir padrõ,es complexos de participação no ensino
De suas análises dos dados de 118 autoridades locais superior (CVCP, 1998; MODOOD, 1993).
de Educação, Gillborn e Mirza (2000) descobriram que O reconhecimento da importância da
a classe social faz a maior diferença quando se trata da interseccionalidade fomentou novas maneiras de pensar
obtenção de educação, seguida por 'raça', e, depois, por sobre a complexidade e multiplicidade das relações
gênero - embora eles tenham reconhecido que classe e de poder, bem como dos investimentos emocionais
seus efeitos estão sempre entrelaçados com 'raça' e gênero. (ARRIGHJ, 2001; KENNY, 2000; PATTILLO-MCCOY,
Precisamos dar mais atenção aos processos que estruturam 1999). Especificamente, o reconhecimento de que 'raça',
a classe social (tanto para a classe média quanto para a classe social e sexualidade diferenciavam as experiências
classe operária), caso queiramos que os procedimentos das mulheres provocou rupturas nas noções de uma
de inclusão e exclusão social sejam levados a sério. Como categoria homogênea de mulher - com suas suposições
disse Daiane Reay (1998) com relação à educação, isso não de universalidade que mantinham o status quo em relação
acontece porque diferentes classes sociais veem a educação à 'raça', classe social, e sexualidade -, ao mesmo tempo
de forma diferente- a posição da classe média é geralmente em que questionou suposições de gênero. Assim sendo, a
vista por ambos os lados como central para a mobilidade interseccionalidade está em sintonia com o rompimento do
social e o sucesso. Porém, mães da classe média contam pensamento modernista a partir das ideias teóricàs do pós-
com mais capital cultural associado ao sucesso que seus colonialismo e pós-estruturalismo.
pares da classe operária- por exemplo, elas estão mais bem
munidas para prover seus filhos e filhas com uma educação Pós-colonialismo, pós-estruturalismo, diáspora e
compensatória (ajuda nas tarefas da escola, por exemplo), diferença
bem como gozam de mais prestígio (e confiança) para As teorias feministas dos anos 1970 e 1980 foram
confrontar professores e professoras quando creem que norteadas por repertórios conceituais vindos, em grande
seus filhos e filhas não estão sendo ensinados ou exigidos parte, de tradições teóricas e filosóficas da modernidade
o suficiente. . e do iluminismo europeu, tal como o liberalismo e o
De forma semelhante, o grupo Classe Social e marxismo. A crítica 'pós-moderna' dessas perspectivas,
Participação Abrangente nos Projetos de Educação Superior, incluindo suas reivindicações universalistas, · teve
baseado na então Universidade de N orth London (ARCHER; precursores nas práticas críticas do anticolonialismo, do
HUTCHINGS, 2000; ARCHER; PRATT; PHILLIPS; 2001), antirracismo e do feminismo. As abordagens teóricas do
concluiu que classe social tem uma influência impactante pós-moderno encontraram pouca expressão na crítica
na participação no ensino superior. No entanto, as pessoas
67 4 lizabel Brandão I lldney Cavalcànti 1Claudia de üma Costa I Ana Cecflía Aciolí üma 1RADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas criticas feministas !1970-2010J.I 675
I
ferrúnista anglófona do final dos anos 1970. Mas, durante quanto a 'colônia' foram profundamente alteradas pelo
os anos 1990, essa crítica se tomou uma grande influência, processo colonial, e que estas histórias articuladas têm
em particular na sua variante pós-estruturalista. O trabalho uma função constitutiva de nosso presente. Estudos
de estudiosos que consideravam a veia pós-estruturalista ferrúnistas pós-coloniais ressaltam processos subjacentes
produtiva atravessava distintos campos teóricos, como o aos discursos coloniais e pós-coloniais sobre o gênero.
da teoria do discurso, da desconstrução, da psicanálise, Frequentemente, esses escritos utilizam-se de preceitos
da teoria· queer e da crítica pós-colonial. Diferentemente pós-estruturalis,tas, especialmente a análise do discurso
das análises onde processos poderiam ser reificados e de Foucault ou a desconstrução de Derrida. Alguns/
vistos como personificados de forma essencial nos corpos algumas estudiosos/as tentaram combinar abordagens pós-
dos indivíduos, os diferentes ferrúnismos poderiam ser estruturalistas com teorias neomarxistas ou psicanalíticas.
percebidos como representando relações historicamente Outros/as transformaram a 'teoria da fronteira' ('border
contingentes, contestando campos de discursos e locais theory') (ANZALDÚA, 1987; YOUNG, 1994; LEWIS,
de múltiplos posicionamentos do sujeito. O conceito 1996; ALEXANDER; MOHANTY, 1997; GEDALOF, 1999;
de 'agência' foi substancialmente reconfigurado, MANI, 1999; LEWIS, 2000). Um desenvolvimento similar
especialmente através da apropriação pós-estruturalista está associado com a valorização do termo diáspora. O
da psicanálise; Novas teorias da subjetividade tentaram conceito de diáspora é cada vez mais utilizado para analisar
compreender a vida psíquica e emocional sem recorrer à a mobilidade das pessoas, das mercadorias, do capital e
ideia de uma divisão entre interior/exterior. Enquanto todo das culturas da globalização e do transnacionalismo. O
esse fluxo intelectual levou a uma reavaliação da noção de conceito é desenvolvido para analisar configurações de
'autenticidade' experiencial, enfatizando as limitações da poder- tanto produtivas quanto coercitivas- em encontros
'política da identidade', o debate também demonstrou que 'locais' e 'globais' e em espaços e momentos históricos
a experiência em si não poderia se tomar uma categoria específicos. Em seu trabalho, Brah (1996, 2002) fala sobre
redundante. De fato, ela permanece sendo crucial na o conceito de diáspora na mesma linha que a teorização de
análise como uma 'prática de significação' no centro da 'fronteira' de GloriaAnzaldúa, bem como o muito debatido
maneira como atribuímos sentido ao mundo, simbólica e conceito ferrúnista de 'políticas de pertencimento'. A
narrativamente. intersecção desses três termos é compreendida através do
No geral, conversas críticas, porém produtivas, conceito de 'espaço diaspórico', que cobre os emaranhados
com o pós-estruturalismo resultaram em novas teorias das genealogias da dispersão com os emaranhados de 'ficar
para remodelar a análise da 'diferença' (BUTLER, 1990; no lugar' (' staying put'). O terino 'desejo pelo lar' ('homing
GREWAL; KAPLAN, 1994; WEEDON, 1996; SPIVAK,. desire') é usado para pensar a questão da morada e do
1999). Uma vertente distinta deste trabalho preocupa-se pertencimento; e tanto o poder quanto o tempo são vistos
com o potencial de juntar as forças das teorias modernas como processos multidimensionais. O conceito de 'espaço
com as percepções pós-modernas. Tal abordagem tomou diaspórico' abraça a intersecção da' diferença' em suas formas
várias formas. Alguns desenvolvimentos, especialmente no variadas, dando ênfase tanto para as dinâmicas emocionais
campo da crítica literária, levaram aos estudos pós-coloniais, e psíquicas quanto para as diferenças socioeconômicas,
com suas ênfases na visão de que tanto a 'metrópole' políticas e culturais. A diferença é, portanto, concebida como
676 jlzabel Brandão 1lldney Cavalcanti I Claudia de üma Costa 1Ana Cecfiia Acioli üma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas [1970-201?1 I 677
relação social, experiência, subjetividade e identi~ade. Lar
modos de governabilidade nas vidas de seres humanos
e pertencimento são, também, temas, de no~as literaturas
explorados, racializados, etnizados, sexualizados, e
sobre identidades de 'raças-mistas que mterrogam o
conceito de 'raça' como um discurso essencialista com religionalizados de formas diferentes e em diferentes partes
efeitos racistas (TIZARD; PHOENIX, 2002/1993; ZACK, do mundo? O que essas experiências vividas dizem a nós
- vivendo como vivemos neste lugar chamado Ocidente -
1993; IFEKWUNIGE, 1999; DALMAGE, 2000): Da me~ma
forma, ·a ideia de que alguém é de raça-rmsta s~ tiver sobre nossos próprios posicionamentos, responsabilidades,
políticas e nossa, ética? Nós tentamos indicar que diálogos
pais brancos e negros é problematizada.. ~U: vez di~so, o
foco analítico é sobre subjetividades vanave1s e var1ad~s, feministas e imaginações dialógicas proporcionam
identidades e os significados específicos vinculados as ferramentas poderosas para desafiar os jogos de poder que
'diferenças'. presenciamos frequentemente na cena mundial.
Tradução de Claudia Santos Mayer
Suscitando novas e urgentes questões & Matias Corbett Garcez
Em 2003, a segunda guerra contra o Iraque trouxe à
tona muitas preocupações feministas, tais como a cres~e~te Fonte
militarização do mundo, o papel crítico do comple~o mili:ar
e industrial como uma tecnologia de governança rmpenal, BRAH, Avtar e PHOENIX, Ann. ''Ain't I a Woman? Revisiting
intersectionality". Journal oflnternational Women's Studies, v. 5,
a feminilização do mercado de trabalho g~o~al ~ dos ~uxos n. 3,2004.
migratórios, a reconstituição deJormas raarus diferenaadas
de sexualidade como parte constitutiva de crescentes Referências
regimes de 'globalização' e as pro~das desigualdades
de poder e riqueza nas diferentes regwes do ~un.do. Uma ALARCÓN, Norma. "The Theoreticai Subject(s) of This Bridge
consideração acerca da interseccionalidade hlstoncame~te Called My Back". In: ANZALDÚA, Gloria (Org.). Making Face,
enraizada e com uma visão para o futuro suscita mu:tas Making Soul!Haciendo Car~s: creative and criticai perspectives
perguntas urgentes. Por exemplo: quais s~o .as implic~çoes, by feminists of color. San Francisco: Aunt Lute Books, 1990.
para os feminismos contemporâneos~ das últimas versoes de ALEXANDER, Jacqi; MOHANTY, Chandra T. Feminist
imperialismos pós-modernos que espreit~ pelo m~~o? Genealogies, Colonial Legacies, Democratic Futures. New York:
Que tipos de sujeitos, subjetividades e identidades po~tica: Routledge, 1997.
são produzidos por essa conjuntura quando a fantasia, d
mulher muçulmana velada que 'precisa ser resgatada '.a ANDERSEN, Margaret. "Introduction". In: CHOW, Esther
retórica do 'terrorista', e o discurso ubíquo da democra~a Ngan-Ling; WILKINSON, Doris; ZINN, Maxine Baca (Orgs.).
se tornam um álibi para construir novas hegemomas Race, Class & Gender: common bonds, different voices.
Thousand Oaks: Sage, 2007. p. 1-16. [1996]
globais? Como desafiar binários simplistas que colocao;
o secularismo e o fundamentalismo como polos oposto ANZALDÚA, Gloria. Making Face, Making Soul/Haciendo
mutuamente exclusivos? Qual é o impacto desses novos Caras: creative and criticai perspectives by feminists of color.
San Francisco: Aunt Lute Books, 1990.
678 llzabel Brandão llldney Cavalcanti I Claudia de Uma Costa I Ana Cecflia Acioli Uma
TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas (1970-20101 j 679
Referências A epistemologia do sul, a colonialidade de gênero e o
feminismo latino-americano
GREBOWICZ, Margret; MERRICK, Helen. Beyond the Cyborg
- Adventures with Donna Haraway. New York: Columbia Breny Mendoza
University Press, 2013.
HARAWAY, Donna. "Birth of the Kennel: a lecture by Donna Introdução
Haraway", Aug. 2000. Disponível em: <http:llwww.egs.edul
facultyIdonna-harawayI articles/birth-of-the-kennel/>. Acesso
em: 15 jul. 2014. r:-7}esenciamos, neste momento, uma conjuntura
___. Simians, Cyborgs, and Women: the reinvation of nature. Z/-'~olítica e epistemológica singular na América
London: Free Association Books, 1991. Latina. Depois de mais de duas décadas de democracia
neoliberal, experimenta-se um movimento em direção a
___. The Companion Species Manifesto: dogs, people, and
uma esquerda que se vê a si mesma estabelecida em novos
significant otherness. Chicago: Pricly Paradigm Press, 2003.
movimentos sociais dos setores mais excluídos por esta
___. The Haraway Reader. New York; London: Routledge, democracia, que não são nem os operários industriais das
2004. cidades, nem os agricultores minifundiários ou assalariados
de outrora. Dentro do contexto latino-americano atual,
são os movimentos indígenas os que se levantam como a
"vanguarda" do novo auge "movimentista", ainda que não
no sentido marxista-leninista, senão mais como um ator
que tem o privilégio de operar com uma nova racionalidade
política baseada em sua outredade1 e em sua sublevação
contra a colonialidade do poder que rege nossas sociedades
desde sua submissão, ao poder imperial do ocidente, em
1492. O Foró Social Mundial aparece, neste sentido, como o
espaço no qual os distintos movimentos sociais do porão
das sociedades latino-americanas e do mundo convergem
para criar, nas palavras de'- Arturo Escobar (2003), um
"paradigma outro" ou um conhecimento de outro mundo.
Ao mesmo tempo em que o Foro Social Mundial
se descreve como um novo fenômeno social e político
que defende a diversidade e a eclosão ontológica de
sujeitos até agora invisibilizados e violentados pela

1 Termo cunhado pelo crítico e ensaísta mexicano Octavio Paz em seu livro O arco e a lira
(1982).

752 llzabel Brandão llldney Cavalcanti I Claudia de üma Costa I Ana Cecilia Acioli üma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas !1970-2,0101 I 753
modernidade (SANTOS, 2008), o capitalismo e o do pensamento feminista e da questão do gênero? Como
conhecimento eurocêntrico, na academia latino-americana se podem articular o feminismo e o gênero nesta nova
e estadunidense, constroem-se como conhecimentos epistemologia do sul (como dos Santos Souza denomina as
inovadores que buscam nutrir-se desseímpetomovimentista novas teorias), de maneira que o sofrimento e os sonhos
na América Latina e do espírito do Foro Social Mundial. das muJheres sejam levados em conta e seus conhecimentos
Vale dizer, aqui, que, apesar de ser o Foro Social Mundial não fiquem soterrados como é de costume? Que lugar
um movimento transnacional que busca, por sua vez, um ocupam as feministas latino-americanas no surgimento e
diálogo intercultural, o componente latino-americano constituição da epistemologia do sul e qual pode ser sua
dentro dele é forte e define em boa medida o conteúdo dos contribuição?
novos conhecimentos que se tecem desde o subcontinente e
dos acadêmicos da diáspora latino-americana nos Estados O novo ethos masculino na epistemologia do sul
Unidos. Começam a abundar as resenhas dopós-ocidentalismo
Segue-se uma reflexão sobre esses novos latino-americano em textos tanto em espanhol quanto em
conhecimentos latino-americanos que se autoanunciam inglês. À margem, até há pouco tempo, entre os grandes
como uma resposta alternativa ao conhecimento debates sobre o pós-modernisriw e o pós-colonialismo dos
eurocêntrico e, inclusive, masculinista, amplamente sul-asiáticos dentro da academia norte-americana, a crítica
esperada através de cinco séculos de colonização. Esses latino-americana da modernidade e da colonialidade
conhecimentos se autodefinem como transmodemos, começa a se colocar no centro. Sua abordagem é, além de
transcapitalistas, transocidentais, transposcoloniais e, radical, original e representa a abertura do que se· pode
ocasionalmente, como feministas. Como tal, não somente chamar o arquivo latino-americano dentro dos debates sobre
prometem uma nova prática política que redefina a a modernidade e a colonialidade. No entanto, submetida a
democracia liberal-ocidental realmente existente e uma um escrutínio feminista, essa nova corrente de pensamento
ruptura epistemológica que abra espaço a conhecimentos latino-americano revela ainda grandes limitações em sua
subalternizados pelo eurocentrismo. Esses conhecimentos compreensão do lugar que ocupa o gênero em seu objeto
vão além, inclusive, do pós-colonialismo sul-asiático e de pesquisa. É notória, por sua vez, uma ausência de
árabe que parecem, às vezes, inchlir alguns elementos referências a escritos feministas procedentes da América
feministas. Além disso, também possibilitam a construção Latina. Este fato, talvez, não deva surpreender, visto que a
de novas subjetividades enunciativas a partir da "ferida grande maioria dos autores dessa nova corrente é homens
colonial". Tais conhecimentos/subjetividades auguram não latino-americanos, brancos e mestiços, heterossexuais e de
somente a ansiada liberação do trauma da conquista, mas, classe média. Entretanto, chama a atenção que, quando se
também, o fim da teleologia do eurocentrismo e a egologia faz Um. gesto em direção ao feminismo, faça-se pensando
do ocidente, bem como o começo do pós-ocidentalismo. exclusivamente em feministas chicanas como Gloria
Minha reflexão sobre estes novos conhecimentos Anzaldúa ou Cheia Sandoval, e não no feminismo latino-
inspirados geopoliticamente na América Latina está americano. Esta omissão merece nossa atenção e reflexão.
guiada por três perguntas: Quão distante chega o novo Para entender a maneira como esta nova perspectiva
"conhecimento outro" latino-americano em sua inclusão latino-americana escamoteia as lutas das muJheresda região

754 jlzabel Brandão llldney Cavalcantrj Claudia de lima Costa 1Ana Cecflia Acioli lima TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas [1970-2010/ J 755
é preciso realizar uma análise cuidadosa de seu aparelho A ideia de raça, segundo Quijano, reordena todas
conceitual e de sua terminologia. Discutirei apenas dois de as áreas de existência humana básicas que comportam
seus maiores expoentes, dando maior ênfase ao trabalho em si todas as lutas de poder pelo controle de recursos
do sociólogo peruano Arubal Quijano, e fazendo algumas e os produtos que deles se derivam: o sexo, o trabalho, a
observações preliminares de um dos trabalhos mais recentes autoridade coletiva e a subjetividade/intersubjetividade. A
do filósofo da libertação, o argentino Enrique Dussel. partir desta perspectiva, a ideia de raça reordena os regimes
Ambos os autores tentaram, de alguma maneira, incluir de gênero preexistentes nas sociedades colonizadas e antes
gênero dentro de seus aparelhos conceituais e receberam de sua colonização. Assim, o gênero fica subordinado
certa atenção de algumas teóricas feministas. No caso de à lógica de raça: talvez como antes, quando o gênero era
Aníbal Quijano, a argentina María Lugones realizou uma subordinado em relação à categoria de classe.
importante crítica de seu trabalho. E eu fiz a minha em meu Finalmente, Quijano define o eurocentrismo como
trabalho sobre colonialidade da democracia. Minha leitura a construção do conhecimento do mundo com base na
crítica de Quijano foi elaborada antes de conhecer o texto de invenção da Europa e dos europeus como a versão mais
Lugones, mas me parece que é possível entretecer ambas as completa da evolução humana na história do planeta. O
críticas para desvelar alguns dos problemas do tratamento correlato do eurocentrismo seria a compreensão das gentes
de gênero dentro da obra de Quijano. É o que tento fazer a das colônias como povos sem história e a negação de
seguir. suas epistemologias e, inclusive, de seu status como seres
humanos. Neste argumento, o eurocentrismo não somente
O gênero na teoria de Aníbal Quijano conduz à construção de subjetividades e intersubjetividades
Ambal Quijano (2008) cunha o termo da colonialidade entre europeus e não europeus que se baseiam em oposições
do poder para descrever o padrão de poder que se binárias; tais como civilização e barbárie, escravos e
estabelece com a coroa espanhola no século XVI, em todo assalariados, pré-modernos e modernos, desenvolvidos
território da América, e que logo se estende sobre todo o e ·subdesenvolvidos etc.; mas, principalmente, assume a
planeta, à medida que os poderes imperiais do ocidente se universalização da posição epistêmica dos europeus.
alternam no avassalamento do que conhecemos hoje éomo Pois bem, María Lugones (2007) reconhece o poder
gentes do terceiro mundo: ameríndios, africanos da África explicativo do termo dacolonialidade do poder de Quijano
e do Caribe, América do Sul, Centro e Norte, asiáticos, e retira daí seu .conceito da colonialidade de gênero.
árabes e mestiços. (Deveríamos acrescentar os aborígenes Entretanto, o faz baseando-se .em uma crítica construtiva
da Austrália e os maori de Nova Zelândia). Unido a seu dos preconceitos de gênero que ela encontra implícitos
conceito da colonialidade do poder, Quijano iri.troduz "a na definição da colonialidade do poder de Quijano. De
ideia de raça", que surge com a ideia do "descobrimento" acordo com Lugones, na narrativa lógica do conceito da
e que serve para reclassificar socialmente, e de forma colonialidade do poder, Quijano comete o erro de supor
estratificada, as gentes nas colônias segundo sua relação que gênero - e inclusive a sexualidade -, forçosamente, é
com o cristianismo, a "pureza do sangue" e as línguas elemento estruturador de todas as sociedades humanas. Ao
europeias. supor que isso é assim, a priori, Quijano aceita sem perceber
as premissas patriarcais, heterossexuais e eurocentristas
756 llzabel Brandão llldney Cavalcanti I Claudia de üma Costa I Ana Cecflia Acioli üma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas cnticas feministas [1970-2019i I 757
que existem sobre gênero. Ela se apoia no trabalho de foram racializàdas, mas, também que, ao mesmo tempo,
Oyuronke Oyewumi (1997), feminista nigeriana, e em foram reinventadas como "mulheres" de acordo com
Paula Allen Gunn (1992), feminista indígena, dos EUA, códigos e princípios discriminatórios de gênero ocidentais.
para nos provar como o gênero, junto com a ideia de raça, A colonização criou as circunstâncias históricas para que
foi, ao mesmo tempo, construtos coloniais para racializar as mulheres africanas e indígenas da América do Norte
e generizar as sociedades que dominavam. Segundo estas perdessem as relações relativamente igualitárias que tinham
feministas africanas e indígenas, não existia, nas sociedades com os homens. de suas sociedades e caíssem não somente
yorubás, nem nos povos indígenas da América do Norte, um sob o domínio dos homens colonizadores, mas também sob
princípio organizador parecido ao de gênero do ocidente o dos homens colonizados. A subordinação de gênero foi o
antes do "contato" e da colonização. Estas sociedades preço que os homens colonizados pagaram para conservar
não dividiam nem hierarquizavam suas sociedades com certo controle sobre suas sociedades. É esta transação dos
base em gênero, e as mulheres tinham acesso igualitário homens colonizados com os homens colonizadores o qufi:!
ao poder público e simbólico. Suas línguas e sistemas de explica, segundó Lugones, a indiferença com relação ao
parentesco não continham uma estrutura que apontasse sofrimento das mulheres do terceiro mundo que os homens,
a uma subordinação das mulheres aos homens. Não inclusive os homens da esquerda do terceiro mundo,
existia uma diVisão sexual do trabalho e suas relações manifestam com seu silêncio em torno da violência contra
econômicas se baseavam em princípios de reciprocidade as mulheres na atualidade.
e complementaridade. O princípio organizador mais Esta confabulação dos homens colonizados com
importante era, ao contrário, a experiência baseada na seus colonizadores é o que impede a construção de laços
idade cronológica. Em síntese, o biológico anatômico sexual fortes de solidariedade entre as mulheres e os homens do
pouco tinha a ver com a organização social. Era o social o terceiro/ mundo em processos de libertação. Mas ignorar
que organizava o social. a historicidade e colonialidade de gênero também cega as
Estas sociedades - nos dizem estas feministas mulheres brancas do ocidente, a quem, igualmente, custou-
pós-coloniais - tinham, além do mais, em alta estima a lhes reconhecer a interseccionalidade de raça e gênero e
homossexualidade e reconheciam mais de dois "gêneros", sua própria Curn.plicidade nos processos de colonização
contrariando o dimorfismo sexual típico do ocidente. e dominação capitalista. Por isso, é difícil às feministas
Considerar que gênero é um conceito anterior à sociedade ocidentais, ainda hoje, construir alianças sólidas com as
e à história, como faz Quijano, tem o efeito de naturalizar mulheres não brancas em seus países e do terceiro mundo.
as relações de gênero e a heterossexualidade, e, pior ainda É exatamente na reflexão sobre as difíceis alianças do
- nos diz Lugones -, serve para encobrir a forma como as feminismo transnacional onde penso que· minha crítica
mulheres do terceiro mundo experimentaram a colonização a Quijano se enlaça com a de Lugones, ainda que eu dê
e continuam sofrendo seus efeitos na pós-colonialidade. mais importância à intersecção gênero, raça e classe, e à
Dever-se-ia concluir que, nos processos de colonização, as consequência que isso tem para o exercício real da cidadania.
mulheres destas partes do mundo colonizado não somente Como Lugones, não me sinto à vontade com a
compreensão de gênero de Quijano. Sua ideia de raça torna-
2 Verbos referentes aos conceitos de "raça" e "gênero", respectivamente. se um conceito totalizante que invisibiliza o gênero como
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categoria histórica e como instrumento da colonialidade a uma divisão, racial do trabalho na qual o trabalho não
do poder, ao mesmo tempo em que obstaculiza uma livre, não pago (escravidão e servidão) esteve reservado
análise interseccional de raça, gênero, classe e sexualidade. para os não europeus; e o trabalho livre assalariado, para os
Suponhamos, por um momento, que se Quijano e outros europeus.Porisso-disseQuijano-vemosageneralizaçãodo
pós-ocidentalistas assoCiassem a ideia de raça - que surge trabalho assalariado onde há maioria branca e a coexistência
na conquista cristã da América - com as caças às bruxas de trabalho assalariado e trabalhos não assalariados nos
e à Santa Inquisição na Europa, seria mais fácil, talvez, países onde a população indígena conserva uma presença
outorgar a gênero seu conteúdo histórico e estabelecer a significativa. Quijano recorre, sem dificuldade, ao arquivo
relação que guarda o genocídio de mulheres com a expansão histórico ao longo da América do Norte e do Sul para provar
do cristianismo e o genocídio na América. Mas, como a que uma ideologia da supremacia branca foi crucial para
maioria dos pós-ocidentalistas, Quijano não consegue ver o diferenciar o trabalho dos escravos do trabalho assalariado.
genocídio contra as mulheres ou o feminicídio na Europa, O historiador norte-americano David Roediger (2007) nos
que sucede paralelamente à expulsão dos judeus e mouros ilustra o mesmo com o exemplo dos Estados Unidos e a
e à colonização da América como uma comparação da forma como a escravidão no sul aumentou à medida que
ideia de raça. Talvez seja isto o que as feministas africanas o trabalho assalariado se generalizava entre os homens
e indígenas intuem ao propor que o conceito de gênero brancos. O interessante é que Quijano é consciente de que o
imposto na colônia não existia como tal em suas sociedades. trabalho assalariado esteve reservado somente para homens
O antecedente histórico do genocídio de mulheres ou brancos, mas não se aprofunda neste fato. Se o analisasse,
feminicídio que significou a caça às bruxas, ao longo de ver-se-ia forçado a reconhecer que, no interior da definição
vários séculos na Europa, ainda não tinha acontecido em do trabalho assalariado há, igualmente, uma conotação
seus territórios. Isso aconteceria mais tarde, como efeito da de gênero e não somente uma racial. Há duas coisas que
colonização e da colonialidade de gênero que se desenvolve se podem deduzir deste fato. Uma, que Quijano ·e os pós-
como parte da estrutura colonial. ocidentalistas reconhecem que o trabalho livre assalariado
Entretanto, Quijano faz um trabalho esplêndido ao nos como forma principal do capitalismo não poderia ter se
mostrar como a ideia de raça serviu para codificar a divisão desenvolvido~ nem sustentado, a longo prazo, sem as
do trabalho entre escravidão e trabalho assalariado, dentro colônias. Sem a escravização dos africanos e a servidão
do sistema capitalista moderno colonial. Ou seja, reconhece indígena não haveria capitalismo. Por outro lado, deveria
a intersecção de raça e classe, mas ignora por completo "a levar em conta que, para generalizar o trabalho assalariado
ideia de gênero" que se produz, concomitàntemente, com "livre", primeiro, passou-se por uma domesticação das
a ideia de raça. Para Quijano, o sistema de castas colonial mulheres na metrópole e, logo, elas foram submetidas a
serviu não somente para classificar racialmente os sujeitos um regime de gênero nas colônias. Na Europa, vimos como
colonizados, mas também serviu para designar os tipos de isso foi realizado de forma sistemática mediante a caça às
trabalho aos quais as pessoas tinham acesso. As relações bruxas, desde o século XV, tanto por parte dos protestantes,
sociais de capital e trabalho que se engendraram a partir da como pela Santa Inquisição católica. Mais tarde, veríamos
experiência colonial com a Espanha, e, logo, com a Inglaterra algo semelhante no que Marx chamou o processo de
e os Estados Unidos, estiveram, desde o princípio, sujeitas acumulação primitiva que desapossou a massa camponesa
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e separou em boa medida as mulheres da esfera produtiva, isso, ainda que' o trabalho assalariado masculino estivesse
ao mesmo tempo em que as converteu em donas de casa sujeito à exploração capitalista, o pacto serviu para assentar
ou operárias exploradas. Nas colônias vimos tal processo as bases da figura do cidadão masculino: um indivíduo
com as violências massivas de mulheres indígenas como livre, que possui controle sobre seu corpo e que tem o direito
instrumento de guerra de conquista e o assentamento e o tempo .para a participação política; direitos legais, civis,
colonial, a perda de seu status social e político, a escravização, individuais e políticos que excluem as mulheres e escravos.
a redução à servidão, e a intensidade letal do trabalho, entre Ou seja, sem a ~xpansão da escravidão nas colônias não
outras coisas. Esta "domesticação" continua, hoje, com haveria tal cidadão e chefe de lar masculino branco no
os feminicídios, o tráfico de mulheres pobres, o turismo ocidente. Em breve, a fusão da ideia de raca e a ideia de
sexual, a maquialização3 e a feminização da indústria, bem gênero são chaves para configurar a cidadania livre que
como a pobreza sob o capitalismo neoliberal. conheceu o ocidente ao se configurarem o capitalismo e a
Entretanto, como Lugones, percebo que a imposição democracia liberal. Poderíamos concluir que a democracia
das categorias de raça e gênero produziu rachaduras liberal real existente no ocidente foi possível somente
profundas nas solidariedades possíveis entre as mulheres para esta fusão de raça e gênero. Por isso, devemos falar
da metrópole e da periferia, e entre os homens e mulheres não somente da colonialidade de gênero, mas, também,
da periferia. Mas não deveríamos excluir as divisões que se da colonialidade da democracia liberal. Ou, dito de outra
dão também entre as mulheres da periferia. Em particular maneira, sem a colonização, não seria possível estabelecer
na América Latina, que se caracteriza por uma colonização os estados nacionai~ do ocidente, nem os capitalismos
interna depois de sua emancipação colonial da Espanha. patriarcais racistas. E compreendendo esse processo que
A definição racializada do trabalho assalariado chegamos a ver a confluência do sistema heterossexista,
criou as bases para um pacto social entre capitalistas e a do sistema de gênero colonial moderno do qual. nos fala
classe operária masculina de origem europeia (brancos) Lugones, com o capitalismo e a democracia liberal.
em detrimento dos trabalhadores não assalariados, não É importante enfatizar que o pacto social de gênero
brancos. Implicou um pacto social entre homens, um pacto entre homens brancos . constituiu uma comunidade de
de gênero, parecido ao contrato sexual de que trata Carol interesses que excluiu as mulheres brancas. Estas não
Pateman (1988), que, entretanto, ignora a dimensão de raça obtiveram o mesmo acesso nem à cidadania, nem ao
e a colonialidade do poder. O pacto social de gênero teve trabalho assalariado. As mulheres brancas perderam o
implicações políticas na conformação da cidadania e não controle sobre seus corpos côm' a caça às bruxas e não se
somente econômicas na construção de classe. beneficiaram da colonialidade do poder da mesma maneira
De fato, a definição do trabalho assalariado como que seus congêneres. Elas tiveram que lutar pelo acesso ao
um privilégio de homens brancos europeus impediu que trabalho assalariado nas mesmas condições que os homens
a maioria dos homens brancos pobres caísse na escravidão, e, até hoje, pela cidadania. Isto nos indica que o pacto de
e os liberou, ao mesmo tempo, do trabalho doméstico. Por gênero entre homens brancos, na realidade, descansa sobre
uma base precária. Por um lado, depende de relações
3
capitalistas de exploração entre homens e, por outro
Efeito de mascarar, de disfarçar trazendo o componente da maquiagem como truque
industrial. lado, requer a subordinação das mulheres. O pacto pode

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romper-se facilmente pela radicalização dos trabalhadores de maneira pérversa na guerra contra o terrorismo e a
masculinos, a rapacidade dos capitalistas, cada vez que os institucionalização da tortura, assim como se vislumbrou
colonizados se rebelam; ou quando as mulheres brancas no caso Abu Ghraib, dos Estados Unidos.
lutam por entrar no pacto social dos homens brancos, entre Na guerra contra o terrorismo, o estratagema da
outras coisas. Sem colocar barreiras ao trabalho é).ssalariado colonialidade de gênero ficou desmascarado com a
ou mantendo salários baixos, abaixo da sobrevivência, e justificativa da invasão do Afeganistão e do Iraque em nome
sem submeter a uma cidadania incompleta os não brancos da libertação daq mulheres oprimidas do Oriente Médio. O
europeus - mulheres e homens - da periferia, o status dos governo dos Estados Unidos recorreu ao velho dispositivo
homens brancos se veria seriamente ameaçado. Mas, o de poder colonial (ao qual recorreram os ingleses e
acesso das mulheres brancas ao trabalho assalariado e à franceses no Oriente Médio) de usar para seus propósitos
cidadania completa é igualmente desestabilizador. Isso cria de recolonização o pretexto de libertação das mulheres das
uma tensão entre homens e mulheres brancas que beneficia colônias da barbárie patriarcal às quais estão submetidas.
o capital, porque mina a solidariedade e~tre os gêneros no O interessante, neste caso, é que um setor do feminismo
.mercado trabalhista e na esfera política. E preciso, também, e da população feminina norte-americana não somente
manter relações de trabalho de superexploração na periferia consagrou a invasão, mas também exigiu ser parte da
para conter as pressões dos distintos lados e impedir, a todo operação militar. As novas gerações de mulheres (brancas
custo, que se estabeleçam democracias na periferia. e não brancas), no ocidente, interpretam como parte das
A democracia do ocidente não pode coexistir com a lutas feministas o direito de participar em iguais condições
democracia nos países do terceiro mundo, mas também não que os homens nas guerras de agressão de seu governo. Os
pode realizar-se por completo em suas próprias geografias. novos direitos que algumas feministas do Norte Global
As contradições internas das democracias capitalistas reclamam incluem a participação nas tropas de cqmbate e
acabaram beneficiando, entretanto, as mulheres brancas nos serviços de inteligência que usam a tortura como meio
da metrópole que, pouco a pouco, puderam extrair uma legítimo para seus objetivos de segurança nacional. Neste
quota econômica e política ao pacto social dos homens sentido, as formas de tortura que aconteceram em Abu
brancos - evidentemente, desde que aceitassem os termos Ghraib, com suas conotações pornográficas, constituem uma
racistas do pacto -, algo que até agora tramaram com os nova versão da colonialidade de gênero e de sexualidade.
homens brancos, particularmente mediante o privilégio A singularidade de Abu Ghraib recai no .fato de que, talvez
heterossexual que se dá através do matrimônio e os pela primeira vez na história do ocidente, mulheres brancas
benefícios extraídos das conquistas dos direitos civis das estiveram à frente da cadeia ·de comando e exerceram,
pessoas afro-americanas. Podemos dizer que o avanço diretamente, a:s torturas e humilhações sexuais contra os
de seus direitos civis dependeu da superexploração das homens da colônia.
mulheres negras, latinas e indígenas dentro de seus países, No passado, as mulheres brancas tinham sido,
e das mulheres da periferia. Exploração que hoje se estend~ frequentemente, mais espectadoras e cúmplices silenciosas
às mulheres migrantes no contexto da economia global. E da necropolítica que caracteriza a colonialidade do poder,
importante assinalar que, na atualidade, este pacto colateral como as guerras coloniais, ou como motivo do crime,
entre homens e mulheres brancas da metrópole se manifesta e espectadoras gozosas dos linchamentos de homens
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TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas [1970-2010J J 765
negros nos Estados Unidos, na cúspide do apartheid yankee, Gênero nas Vinte teses de política de Enrique Dussel
mas não tinham sido autoras intelectuais ou diretas da Recentemente, Enrique Dussel (2008) colocou sobre
opressão colonial. A guerra contra o terrorismo redefiniu a a mesa uma nova teoria e uma proposta política baseada
colonialidade de gênero e levou-a a outro nível. em teses que nos ajudam a responder nossa pergunta. As
Por esta razão, é difícil esperar, proximamente, um vinte teses detalham um programa que, em suas palavras,
ataque sério contra o sistema de gênero moderno co~onial lançam as bases para uma civilização transmodema,
capitalista por parte das mulheres brancas da metropole. transcapitalista, ·mais além do liberalismo e do socialismo.
Uma solidariedade transnacional entre mulheres da De acordo com seus próprios enunciados, o modelo político
metrópole e da periferia, nestas circunstâncias, segue sendo que propõe é o mais próximo ao perfeito que podemos
um grande desafio que há que se reformular e se resolver. chegar neste momento histórico, no qual os excluidos do
A ironia é que a cumplicidade racista das mulheres branc~s sistema moderno colonial capitalista neoliberal penetram na
nas novas aventuras coloniais incorpora as mulheres nao história em espaços como o Foro Social Mundial, o movimento
brancas de classe trabalhadora, em nome do feminismo. dos zapatistas ou as novas assembleias constituintes.
Mas, talvez, o mais trágico é que a mesma incorporação Neste conglomerado de movimentos que tomam o cenário
das mulheres (brancas e não brancas) ao estratagema da político pela primeira vez,. as· feministas são levadas em
colonialidade de gênero serve como reforço do pacto de conta por sua particular demanda em relação ao respeito
gênero entre homens brancos e de sua própria opressão aos direitos das mulheres. A incorporação de demandas
como mulheres. O escandaloso abuso sexual das mulheres feministas refletiria o slogan zapatista que Dussel retoma
alistadas no exército norte-americano e, em geral, a em seu plano político e que exige um mundo onde todos e
hiperssexualização e hipermasculinização do militarismo todas caibamos: o mundo menos exdudente possível.
estadunidense são provas disso. Dússel interpreta este enunciado zapatista como um
A colonialidade do poder e a colonialidade de gênero fundamento político que nos ajudaria a criar uma categoria
operam em nível interno na América Latina tamb~m .. Con:o únificadora de todos os movimentos, classes, raças,
nos dizem os pós-ocidentalistas, a independenaa nao feminismos etc. A diversidade e as demandas particulares
significou uma descolonização de nossas socieda~es. ?s devem ser negociadas em tomo de um bloqueio hegemônico.
mesmos dilemas das metrópoles se encontram no mtenor Esse bloqueio hegemônico é o que ele chama "povo", a
de nossas sociedades. No final das contas, existe uma comunidade, ou o nós das tradições indígenas da América
aliança entre os homens colonizados e os colonizadores que Latina, que difere do sentido de 'comunidade totalizante do
oprime as mulheres nas colônias, tal como ~ identifica:am ocidente, no qual.as diferenças são eliminadas. O que Evo
Lugones e muitas feministas latino-amencanas. EXIste, Morales chama "o bloco social dos oprimidos".
além do pacto entre homens brancos e o pacto colateral Pois bem, o conceito de povo não é novo dentro da
entre homens e mulheres brancas ocidentais, outro pacto tradição da esquerda latino-americana e tem sido muito
no coração da América Latina que deve ser profundamente criticado tanto pela esquerda quanto pela direita por sua
analisado por nós, as feministas latino-americanas. Como ambiguidade e, frequentemente, por suas pretensões
os homens latino-americanos imaginam a dissolução desse demagógicas ou populistas. O conceito de povo é visto,
í
pacto secreto entre homens da colônia?
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TRADUÇÕES DA CULTIJRA- Perspectivas críticas feministas (1970-20101 J 767
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com frequência, como uma categoria unitária. As feministas base em papéis e se expõem ao olhar de outros atores, de
da região e Estados Unidos têm tido ampla experiência do outros sistemas intersubjetivos. Estabelece que o público é
que significa operar com categorias unitárias que dizem o político por definição e que o público político é o único
representar a diferença e a opressão. Sabemos muito bem que espaço onde é possível a mudança civilizatória.
a categoria unitária de gênero excluiu as mulheres pobres, A partir de uma perspectiva feminista, conservar esta
indígenas, afrodescendentes e lésbicas, entre outras. Por divisão significa um retrocesso no pensamento político.
outro lado, já vimos que o gênero, ao fundir-se com a raça, Recordemos o yelho slogan de que "o pessoal é político",
serviu como instrumento de dominação nos processos de por excelência um fund~ento do feminismo. Resultaria
colonização e capitalismo. As lésbicas disseram algo similar problemático para as mulheres despolitizar e definir o
com relação à sexualidade ao revelarem o gênero como âmbito privado como desprovido de conflitos de poder ou
uma categoria que depende de uma matriz heterossexual e como âmbito "pré-político", porque, como bem sabemos, as
de abjeção do lesbianismo. mulheres não se encontram protegidas de serem observadas
Em algumas ocasiões, . as feministas assinalaram a e atacadas por outros membros de outros sistemas
Dussel que o conceito de pobreza que é utilizado dentro intersubjetivos nos âmbitos privados. O privado não é
da teologia da libertação e que mantém estreita relação unidimensional;. ali se transferem sistemas intersubjetivos
çom o conceito de povo que agora se utiliza opera como que operam tanto em nível público quanto privado. Partir
um conceito hegemônico indiferenciado, que não inclui os de uma separação entre o privado e o público conservaria,
sofrimentos das mulheres. Por exemplo, Elina Vuola (2003) para as feministas, não somente a colonialidade de gênero,
identificou a carência de uma ética sexual na teologia da mas, também, a concepção liberal eurocêntrica da política
libertação. Segundo esta autora, na teologia da libertação que Dussel diz querer abolir. Na medida em que este autor
ficam fora a violência contra as mulheres, as violações e o considera que a exclusão das mulheres e as demandas
assédio sexual, as mortes por abortos ilegais, a mortalidade feministas somente podem ser resolvidas nó público,
materna e infantil, assim como os feminiddios. Os teólogos os conflitos da vida cotidiana e a microHsica do poder
da libertação, que bem reconhecem o sofrimento de classe, no privado ficam sem, teorização. O âmbito onde ocorre
aceitam sem discussão a doutrina do Vaticano quando se boa parte das violações dos direitos das mulheres ficaria
trata dos direitos reprodutivos da~ mulheres. Não parece representado como parte do pré-político. Mas, pior ainda,
que Dussel tenha prestado atenção a esta crítica feminista, o translado dos micropoderes do âmbito privado ao âmbito
e sua intenção de ser mais inclusivo com o termo povo não público- como as torturas sexuais do tipo Abu Ghraib, ou
consegue, ainda, se desligar de sua orientação masculinista. as violações sexuais de mulheres, ou os assassinatos de
Em primeiro lugar, chama a atenção que seu transexuais e lésbicas em crises políticas como o golpe de
tratado político das vinte teses retenha a divisão público/ estado em Honduras - seria incompreensível dentro do
privado. Dussel começa afirmando que o privado é o esquema de Dussel, se vemos o privado e o público como
espaço intersubjetivo que protege os sujeitos de serem esferas separadas. Sua definição da política, para nossa
observados e atacados por outros membros de outros perspectiva feminista, continua sendo muito masculinista.
sistemas intersubjetivos. Enquanto que o público é o espaço O interessante, não obstante, é como os prindpios
intersubjetivo no qual os sujeitos se desempenham com éticos que Dussel escolhe para redefinir a "nova" política
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foram tomados de imaginários femininos tanto ocidentais a conversação da' vida; trata-se, igualmente, da criação de
quanto orientais e ameríndios que algumas feministas do uma vida na qual os seres humanos cresçam e prosperem
Norte Global utilizaram em suas próprias formulações do · livres de violência, e desenvolvam uma intersubjetividade
político. Tomemos sua ideia de que a nova política tem como tanto no privado quanto no público, baseada na
objetivo a perpetuação da vida. Esta nova política prioriza reciprocidade e na não violência. O modelo político do
o desejo de manter-se como vida antes do desejo de matar. pensamento matemo promove uma economia de cuidado
O novo paradigma político negaria a necropolítica da razão e a preservação qa vida no planeta, da mesma maneira
genocida ocidental que justifica .a morte de mais de dois que Dussel imagina um sistema político e econômico que
terços da humanidade e de seus recursos, e promoveria tenha como fim a conservação da vida eternamente - como
a existência continuada e contígua à vida dos outros: os se.a Terra jamais fosse extinguir-se. Os novos movimentos
excluídos. Isso equivale a sobreviver prosperando ao lado feministas contra a não violência, da quarta onda, como
do outro: os excluídos, os pobres, o povo. É uina política, Code Pink, que ressurgiram na esteira da guerra contra
tal como chama Dussel, da alteridade. O ethos da política o terrorismo, baseiam-se em premissas que recordam o
da alteridade, em suas palavras, é a própria vida. A vida pensamento maternal de Ruddick. Poderíamos dizer que
concreta de cada pessoa é o princípio e o fim. A vocação este pensamento feminista vai mais longe que Dussel,
política deve estar dirigida à satisfação das necessidades pois é profundamente antimilitarista e não justifica a
vitais do povo, onde reside o poder. A função das instituições violência sob nenhuma circunstância. Ao contrário, Dussel,
políticas é cumprir com este mandato do povo. surpreendentemente, conserva o direito ao uso da violência
Nutrindo-se dos zapatistas novamente, a prática no caso de autodefesa da comunidade, ainda que não nos
política se baseia em mandar obedecendo, escutando diga quando é que chegamos ao ponto no qual a violência
quem nos antecede. E não em uma renúncia e alienação do se justificaria.
poder de sua fonte, o povo. O ponto de partida da política Podemos admitir, não obstante, que a política da
da alteridade não pode ser o indivíduo isolado como fora alteridade de Dussel, na medida em que tem a vida
Robinson Crusoé. Dussel exclama, em um momento de como princípio e fim máximo, representa um avanço
iluminação, que Robinson Crusoé não poderia nem sequer no pensamento masculinista da política de esquerda da
ter nascido sem a comunidade... Mas, sem uma mulher região, que, no passado, foi militarista, inclusive em sua
também não, acrescentaríamos as feministas, revelando, fase parlamentarista. Incorpora importantes premissas do
mais uma vez, o ofuscamento das relações de gênero nos pensamento feminista, ainda que apareçam desconectadas
conceitos unitários de comunidade e povo. do pensamento dos movimentos indigenas, o que ele
O contraditório é que Dussel não consiga reconhecer o prefere, e que não sejam reconhecidas, explicitamente, em
princípio feminino, e inclusive feminista, que está presente seu discurso. Mas preserva elementos masculinistas que
em seu discurso. O novo paradigma político que propõe devem ser assinalados e submetidos a um maior escrutínio.
conserva certa semelhança com o pensamento maternal de Se o pensamento pós-ocidentalista pretende levar a sério
Sara Ruddick (1989) e a construção de uma política de paz a inclusão das vozes das mulheres, necessita estabelecer,
e não violência. O trabalho matemo, neste sentido- igual também, um diálogo com as feministas latino-americanas.
à política da alteridade -, tem como princípio fundamental É evidente~ nos escritos de Dussel e de outros expoentes,

77O I lzabel Brandão I lldney Cavalcanti· I Claudia de Uma Costa I Ana Cecilia Acioli Uma I 771
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TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas !1970-2010J
que este diálogo ainda não começou. As fentinistas latino- os pós-ocideritalistas. Mas desconheço uma teoria fentinista
americanas devem, por sua vez, elaborar um pensamento da re~ão ~ue se aprofunde em sua própria experiência
pós-ocidental que . articule e revele a forma na qual a colo:rual e :p~s-colonial. As chicanas não podem substituir a
colonialidade de gênero, raça, classe e sexualidade continua teona fe~sta.latino-americana. A própria Lugones, que
determinando nossas sociedades e nosso pensamento, e~entou a Idem da colonialidade de gênero de Quijano,
inclusive o fentinista. nao baseo~ ~ua reflexão na América Latina, mas, sim, nos
avanços teonc9s de fentinistas indígenas norte-americanas
O feminismo latino-americano e a epistemologia do sul e africanas.
No começo deste artigo, propus a pergunta sobre Se bem, é certo, que as obras de autoras chicanas como
qual tinha sido a contribuição das fentinistas latino- G~oria Anzaldúa, Cherríe Moraga, Norma Alarcón, Emma
americanas na construção de uma epistemologia do sul :Pe:e: ~el~' Sandoval e outras mostraram um potencial
e quais poderiam ser suas colaborações. Sabemos que as epistermco do latino-americano", elas nos devolvem
fentinistas latino-americanas deram grandes contribuições uma imagem da América Latina dobrada e legendada.
nos debates do Foro Social Mundial e nos processos políticos Escri:a em inglês com fragmentos de espanhol e, inclusive,
da região. No entanto, a ausência de referências a autoras d~ náhuatle, e ~m um inglês co_dificado em espanhol e
fentinistas latino-americanas é notória dentro das teorias náhuatle, a. teona en~elaça a/o indígena, a/o agricultora/
que se tecem a partir do Foro. or, a/o ermgrante e a/o latino-americana/o" na textura
Por outro lado, referi-me à ausência de uma teoria ~a ~ova experiên~ia anglo, experiência por si tingida da/o
fentinista latino-americana que articule, como diria mdígena, da/o agricultora/or e da/o "latina/o-americana/o"
Nelly Richard (1996), "[ ... ] o latino-americano como uma de uma fase anterior da história do território que é hoje os
diferença que diferencia". Talvez esta falta de articulação Estados Unidos. A zona na qual se escreve " 0 chicana latino-
de uma teoria fentinista latino-americana própria seja americano" é, na verdade, um cruzamento d/fronteiras
responsável pelo silêncio em tomo das ideias fentinistas onde a colonialidade do poder anglo e espanhol se unem
da região. Por exemplo, a crítica pós-colonial do sudeste para transmutar o significado do "latino-americano".
asiático conta com uma clara vertente fentinista - com Mas~ a escrita do "latino-americano" em inglês, ainda que
a presença de grandes figuras, como Gayatri Spivak e salpicado de espanhol e náhuatle, tem o efeito de mudar
Chandra Mohanty. As mulheres indígenas na América do seu ~o~teúd~. Por mais latino-americana que pareça a teoria
Norte e as teóricas africanas, como Oyewumi, não somente f~~sta chi~ana, ela não pode apreender a experiência
conseguiram construir uma teoria de gênero com base em Vl~da das latino-americanas que não migram para o norte.
sua experiência colonial particular, como também mudaram N ao pode passar por teoria fentinista latino-americana. As
nossa maneira de pensar o gênero. As chicanas e as afro- culturas ou línguas não são transparentes umas das outras.
americanas, nos Estados Unidos, revolucionaram a teoria Semp~e há um resíduo, um restante que fica atrasado nesta
fentinista com seus conceitos, como a interseccionalidade tentativa de conversa intercultural. Sempre há algo que
de gênero, raça, classe e sexualidade, a consciência da se descarta no ato comunicativo; sempre há algo que fica
mestiça e o pensamento fronteiriço a que tanto se referem perdido na tradução de uma língua para outra, entre uma
história e outra, um lugar e outro. E o que fica perdido é
772 llzabel Brandão I lldney Cavalcanti I Claudia de Uma Costa I Ana Cecüia Acioli Uma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas 11970-2010JI 773.
o "latino-americano" da América Latina. Sem dúvida, o ou do eurost.ilamericano. O diálogo entre a mestiça, a
lugar de qual se concebe a teoria é ainda mais importante eurosulamericana, a mulher indígena e a mulher negra
se consideramos as vicissitudes recentes da colonialidade mostra ainda vestígios de uma dialética de poder entre a
de gênero que se produzem em contextos da guerra contra interlocutora cultural dominante (a mestiça identificada
o terrorismo e a economia global. com a cosmologia europeia que nega o indígena e o
A ideia pós-moderna e pós-colonial de que a condição africano, ou a posição epistêmica da eurosulamericana) e o
da transnacionalidade e as tecnologias comunicativas interlocutor subalterno. A história dos encontros feministas
globalizantes desterritorializam o conhecimento não deve nos dá razão. A ausência de um aparelho conceitual que dê
levar-nos a pensar que nossas posições como sujeitos são conta da colonialidade de gênero em sua concatenação com
intercambiáveis e reversíveis sem importar nosso lugar raça, classe e sexualidade no interior de nossas sociedades
de enunciação e nossa diferença colonial. Pensar que a e suas confabulações com as ultradireitas do Norte Global
teoria chicana articula a subalternidade de todo o "latino- dá-nos a pauta do enorme trabalho que nós, as feministas
americano" ofusca a materialidade, a ·territorialidade e a latino-americanas, ainda temos pela frente.
concretização da diferença do "latino-americano" que se
Tradução de Laureny Aparecida Lourenço da Silva
produz em sua localidade.
As feministas latino-americanas que aparecem hoje nos
Fonte
debatesmasculinistasdaregiãoenaacademiametropolitana
como o "Outro invisível" têm que reclamar seus direitos MENDOZA, Breny. "La epistemología del sur, la colonialidad
epistemológicos. Também teríamos que nos aproximar do del género y el feminismo latinoamericano". In: ESPINOSA,
projeto da descolonização da teoria. Necessitamos penetrar Yuderkis (Org.). Aproximaciones críticas a las practicas teórico
nos diálogos que se estabelecem entre pós-ocidentalistas e políticas- del feminismo latinoamericano. Buenos Aires: En La
chicanas. Necessitamos questionar os aparelhos conceituais Frontera, 2010. p. 19-36.
dos feminismos metropolitanos, inclusive o pós-colonial,
e, sobretudo, o pensamento proveniente do aparelho do Referências
desenvolvimento. Devemos, inclusive, desestabilizar
ALLEN, Paula Gunn. The Sacred Hoop: recovering the feminine
nossos próprios discursos.
in american indian traditions. Boston: Beacon Press, 1992.
Nossas alusões à diversidade devem ser reexaminadas [1986]
à luz da colonialidade do poder e da colonialidade de
gênero, levando em conta nosso próprio lugar no sistema DUSSEL, Enrique. Twenty Theses on P olitics. Durham: Duke
de colonização interna que prevalece em nossas sociedades. University Press, 2008.
A mulher indígena e africana aparece ainda à margem do ESCOBAR, Arturo. "Mundos y Conocimientos de otro Modo:
texto ou em uma sorte do indigenismo feminista que busca el Programa de Investigación de Modernidad/Colonialidad
subjugar o indígena ao mestiço, ao branco, ao ocidental. Latinoamericano". Tabula Rasa, n. 1, p. 51-86,2003.
Reconhecemos o problema da diversidade, da indígena e
LUGONES, Maria. "Heterosexualism and the Colonial/
da negra, mas não nos colocamos no problema da mestiça
Modem Gender System". Hypatia, v. 22, n. 1, p. 186-209, 2007.

77 4 I Izabel Brandão llldney Cavalcanti I Claudia de üma Costa I Ana Cecflia Acioli üma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas feministas [1970-201,0l I 775
MENDOZA, Breny. A Feminist Post-Occidental Approach to Breny Mendoza e a busca de uma teoria feminista latino-
the Contemporary Debates of Empire and Democracy. Trabalho americana
apresentado no XXVI CONGRESSO INTERNACIONAL
DA ASSOCIAÇÃO DE ESTUDOS LATINO- Maria Aparecida Andrade Salgueiro
AMERICANOS/LASA, San Juan de Puerto Rico, março
2006.
OYEWOMI, Oyeronke. The I nvention of W omen: making an reny Mendoza tem larga expenencia no
african sense of western ·gender discourses. Minneapolis: . . . ~.........__. _, feminismo desde a década de 1980, seja
University of Minnesota Press, 1997. como militante, acadêmica e educadora ou consultora em
PATEMAN, Carol. The Sexual Contract. Stanford: Stanford organizações internacionais de ponta, como as Nações
University Press, 1988. Unidas, seja como formuladora de um arcabouço crítico
e teórico que vem contribuindo para que mulheres latino-
QUIJANO, Arubal. "Coloniality of Power, Eurocentrism, americanas, em especial, entendam sua história, formulem
and Social Classification". In: MORANA, Mabel; DUSSEL, pensamento acerca de seu cotidiano, e criem estratégias de
Enrique; JÁUREGUI, Carlos A. (Orgs.). Coloniality at Large: luta e resistência em prol de uin mundo mais fraterno, justo
latin ·america and the postcolonial debate. Durham: Duke e cidadão nas questões sociais e de gênero. Nascida em
University Press, 2008. p. 181-224. Tegucigalpa, Honduras, em 1954, teve formação acadêmica
RICHARD, Nelly. "Feminismo, Experienciay Representación". na Europa e nos Estados Unidos. Após Graduação e
Revista Iberoamericana, v. 62, n. 176/177, p. 733-744, 1996. Mestrado em Ciência Política na Alemanha, obteve o
grau de Doutora nos Estados Unidos, na Universidade de
ROEDIGER, David. The Wages of Whiteness: race and the ComeU; em Planejamento Urbano e Regional. Atualmente,
making of the american working class. New York: Verso, 2007. é Professora Associada de Gender and Women's Studies na
RUDDICK, Sara. Maternal Thinking. Boston: Beacon Press, California State University, Northridge. Em sua página da
1989. Universidade, onde ah:la desde 2001, é possível perceber,
pelos vários cursos ministrados, um currículo acadêmico
SANTOS, Boaventura de Souza. "El Foro Social MundiáÍ y la
nitidamente ancorado nos estudos feministas e de gênero
Izquierda Global". El Viejo Topo, n. 240, p. 39-62, 2008.
sob o enfoque da Ciência Política.
VUOLA, Elina. "The Option for the Poor and the Exclusion Tendo militado em movimentos feministas latino-
of W omen: the challenges of postmodernism and feminism to americanos em Honduras, no Peru e na Nicarágua, seu
liberation theology''. In: RIEGER, Joerg (Org.). Opting for the trabalho preocupa-se com a organização . de redes que
Margins: postmodernity and liberation in christian theology. ultrapassem fronteiras geográficas e trabalhem com
Oxford: Oxford University Press, 2003. p. 105-126. questões ligadas a teorias pós-coloniais de gênero, raça,
classe e sexualidade. Sua pesquisa tem foco na teoria política
feminista, nos feminismos transnacionais e na teorização
pós-ocidental latino-americana, bem como nos feminismos
latino-americanos.
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Breny Mendoza é autora de inúmeros artigos e de três A partir dessa constatação, a autora propõe-se a
livros principais: Becoming a Feminist: the making of the analisar o aparelho conceitual e a terminologia daqueles
Honduran F eminist M ovement (1995); Repensando lo Politico textos, a fim de tentar compreender como esse novo enfoque
(1999) e uma obra, em coorganização, Rethinking Feminism latino-americano "escamoteia a luta das mulheres da
in the Americas (2000). Cabe citar, ainda, Reflexiones Teóricas região". Para tal, passa à análise de dois dos maiores nomes
para un Movimiento Feminista de la No-violencia (2010). Seu que tentaram incluir gênero em seus aparelhos conceituais,
novo livro, Ensayos de Critica Feminista en nuestra America, a saber, o sociólogo peruano Aruôal Quijano, e o filósofo
foi recentemente publicado (2015). argentino da libertação, radicado no México desde os anos
Em sua abordagem crítica, Breny Mendoza incorpora 1970, Enrique Dussel.
teorias feministas ligando-as diretamente a movimentos Em sua análise do gênero na teoria de Quijano,
sociais e de mulheres, como é possível ver no artigo entre tantos elementos apontados, cabe destacar que,
''A epistemologia do sul, a colonialidade de gênero e o para Mendoza, é particularmente importante o termo
feminismo latino-americano", do qual passamos a tratar. 'colonialidade do poder' cunhado por ele. A partir dele,
O artigo em tela, publicado em 2010, insere-se na Quijano introduzirá o ponto de que a ideia de 'raça'
tradição da escrita e da formulação crítica da pesquisadora reordena todas as áreas básicas da existência humana,
e leva à reflexão sobre a realidade da América Latina hoje, e, consequentemente, reordena os regimes de gênero
no início do século XXI, tendo como foco histórico o Foro preexistentes nas sociedades colonizadas. Tal observação
Social Mundial, evento anual que se iniciou exatamente no será importante, pois é a partir dela que Mendoza inicia a
raiar deste século, em 2001, com o lema 'Um outro mundo leitura crítica do trabalho de Quijano feita pela argentina
é possível'. Apesar de sua caracterização como movimento Maria Lugones. Ao reconhecer e aceitar o poder elucidativo
transnacional, é inegável seu determinante componente da expressão 'colonialidade do poder', Lugones, no
latino-americano. entanto, não se restringe a ela: vai mais longe e elabora seu
Dentro de tal contexto, Mendoza aponta a relevância próprio conceito de 'colonialidade de gênero'. Segundo a
de tal evento após "cinco séculos de colonização ao pesquisadora argentina, Quijano erra quando afirma que
· conhecimento eurocêntrico e inclusive masculinista". gênero-e, até mesmo, sexualidade-é elemento estruturador
Citando a academia estadunidense, Ip.OStra como, até pouco de todas as sociedades humanas, pois, ao fazê-lo,"[ ... ] aceita,
tempo à margem, hoje, os textos da crítica latino-americana sem dar-se conta, as premissas patriarcais, heterossexuais
da modernidade passam a se colocar no centro. Porém, e eurocentristas que existem sobre gênero". Apoia-se nos
aponta com clareza que o gênero ainda é ponto frágil nesses trabalhos de Oyuronke Oyewu:O:ú e de Paula Allen Gunn,
textos, explicando que seus autores são, em geral, homens respectivamente, feministas nigeriana e indígena dos
latino-americanos, brancos e mestiços, heterossexuais e EUA, para provar como 'gênero' e 'raça' foram, ao mesmo
de classe média, que, eventualmente, quando se referem tempo, construtos coloniais para racializar e generizar as
ao feminismo, citam apenas feministas chicanas (como sociedades que dominavam, mudando por completo uma
Gloria Anzaldúa e Cheia Sandoval), omitindo relevantes situação original, com relações relativamente igualitárias
nomes do feminismo latino-americano - fato que, no seu das mulheres com os homens de suas sociedades. Lugones
entendimento, não pode escapar à nossa atenção . mostra, assim, que a subordinação de gênero foi o preço
.,
778 jlzabel Brandão llldney Cavalcanti I Claudia de Uma Gosta I Ana Cecilia Acioli Uma TRADUÇÕES DA GUD1JRA- Perspectivas críticas feministas !1970-2010) I, 779
que os homens colonizados pagaram para conservar certo artigo para o contexto do feminismo é apresentar formulação
controle sobre suas sociedades. crítica de base latino-americana em meio a tantos textos de
Porém, apesar de se aproximar fortemente de Lugones pesquisadoras europeias ou estadunidenses. Leva a América
nesse aspecto, Mendoza ressente-se da ausência do Latina a uma reflexão sobre o feminismo com base em sua
elemento 'classe' em sua análise - dado cuja importância, própria realidade, seus problemas, suas dicotomias, seus
segundo nossa pesquisadora, não pode ser esquecido; traumas coloniais, e à luta por uma nova construção, longe
fato, cabe lembrar, também apontado por Quijano em sua da invisibilidade nessa nova configuração do pensamento
teoria. Mendoza opera, sempre, com 'gênero, raça e classe' latino-americano ou, como apresentado no artigo, na
e, segundo ela, é só dessa relação fundamental que pode 'epistemologia do sul', de tal forma que o sofrimento e os
surgir o que chama de 'exercício real da cidadania'. sonhos das mulheres não fiquem mais uma vez à margem
Ao passar a Enrique Dussel, Mendoza concentra-se ou deix~m de ser priorizados em meio a tantas outras ditas
em sua obra de 2008, Vinte teses de política. Segundo ele, essa e propaladas 'urgências' do continente.
seria uma proposta política que "[ ...] lança as bases para Contribuição relevante, ainda, do artigo, a nosso
uma civilização transmodema, transcapitalista, para além ver, é a chamada clara para que mais pesquisadoras se
do liberalismo e do socialismo", um modelo político o mais reúnam e publiquem, a fim de que a luta e a p~odução
próximo ao perfeito a que podemos chegar neste momento de conhecimento das mulheres latino-americanas se
histórico. No entanto, segundo Mendoza, a leitura atenta de faça visível a partir da percepção do que seria, de fato,
Dussel demonstra, aos poucos, que, mais uma vez, se trata a identidade latino-americana. Ao longo do artigo, e,
de "[...] uma definição da política, para nossa perspectiva especialmente, no final, Mendoza deixa outra contribuição,
feminista, que continua sendo muito masculinista". Nesse ao mostrar que muito do pouco que tem passado por
sentido, aponta para contradições dentro do pensamento 'escrita 'feminina latino-americana' ainda é eivada, como
de Dussel, na medida em que este fala de alteridade e de vimos, de base africana, indígena da América do Norte, ou
vida, mas, na formulação direta, acaba não se libertando chicana, e conclui: "Mas desconheço uma teoria feminista
da 'colonialidade de gênero'. Mendoza encerra essa parte da região que se aprofunde em sua própria experiência
do artigo mais uma vez conclamando as feministas latino- colonial e pós-colonial; as chicanas não podem substituir a
americanas a teoria feminista latino-americana". E explica com clareza,
[... ] elaborar um pensamento pós-ocidental que articule com base nas teorias de tradução intercultural:
e revele a forma na qual a colonialidade de gênero, raça,
classe e sexualidade continuam determinando nossas A zona na qual se escreve 'o chicano latino-americano'
sociedades e nosso pensamento, inclusive o feminista. é, na verdade, um cruzamento de fronteiras onde a
colonialidade do poder anglo e espanhol se unem para
A original trama apresentada por Mendoza no transmutar o significado 'do latino-americano'. Não pode
artigo, ao relacionar Quijano, Lugones e Dussel, no nosso passar por teoria feminista latino-americana. As culturas
ou línguas não são transparentes umas às outras. E o que
entendimento, traz aporte significativo para o contexto fica perdido é 'o latino-americano' da América Latina.
do estudo de feminismo, em especial no que diz respeito
à elaboração crítica e própria da América Latina nesse
referencial teórico. Assim, a contribuição fundamental do
780 llzabel Brandão llldney Cavalcànti I Claudia de Uma Costa I Ana Cecflia Acioli Uma TRADUÇÕES DA CULTURA- Perspectivas críticas fEministas [1970-2010l1' I 781

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