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Apresentação
A Ética Farmacêutica de que precisamos no Brasil e afora
Milton Morris Silverman (1910-1997), professor de farmacologia
estadunidense (Nas faculdades de Medicina de San Francisco e de Stanford), e divulgador científico, no Prefácio de “Mágica em Garrafas”1 (Magic in a bottle, 1941), assinala que “usamos contra as doenças essas drogas puras, ou deixamos que os doutores no-las receitem, porque o que nos interessa é o resultado e de nenhum modo as complexidades subsistentes atrás delas. Mas é preciso que haja algo mais atrás das drogas, algo além dos resultados e de formulas quimicas e da atordoante filosofia farmacodinamica. É pre4ciso que haja homens”. Referia-se às biografias e contribuições científicas de Friedrich Wilhelm Adam Sertürner (1783-1841) e a morfina (1806), Pierre-Joseph Pelletier (1788-1842) e a quininina (1810), William Withering (1741-1799) e a Digitalis (1785), Karl Koeller (1857-1944) e a cocaina (1884), Joseph Lister (1827-1912) a Paul Ehrlich (1854-1915) da anti-sepsia (1867) à quimioterapia antiinfectante (1907), Hermann Kolbe (1818-1884) à aspirina (1898), Emil Fischer (1852-1919) e Joseph von Mering (1849-1908) e os barbitúricos (1905), Christiaan Eijkman (1858-1930) e as vitaminas (1890), Charles Edouard Brown-Séquard (1817-1894) e os hormônios (1856), que se encerram com Gerhard Domagk (1895-1964) e os sulfanilamida (1935). A época de edição de “Mágica em Garrafas” atesta a moderna terapêutica e prenuncia o ímpeto da descoberta de novos fármacos–antibióticos, outros quimioterápicos antiinfectantes, anti-hipertensivos, anti-histamínicos, antipsicóticos, antidepressivos etc – particularmente nas três décadas seguintes. A um só tempo da oferta de produtos farmacêuticos singulares para o alívio de doenças, surgiu de modo alarmante uma variedade de produtos de mesma categoria farmacológica para o tratamento de um conjunto definido de sintomas de uma enfermidade. A influência das empresas farmacêuticas, nos anos 1950, assim foi percebida por Joshua Harold Burn (1892-1981), notável farmacologista inglês, da Universidade de Oxford: “Se um manufactor farmacêutico consegue persuadir alguns médicos a receitarem o seu próprio produto, ganha muito mais dinheiro. Assim, o manufactor farmacêutico bombardeia os médicos com aliciantes prospectos de propaganda, lindamente impressos, e envia os seus representantes aos médicos, para vencer graças à persuação pessoal. Muitos médicos se deixam aliciar desta maneira. E pode-se calcular facilmente como é intensa a competição entre as várias firmas para cativar os médicos e quanto dinheiro se gasta com isso. Escusado seria dizer que esse dinheiro tem de ser recuperado. E é óbvio que tem de ser recuperado através do doente, pelo preço do medicamento. Portanto, o doente paga o custo da competição entre os manufactores”2. Milton Silverman e Philip R. Lee escreveram Pills, Profits and Politics (University of California Press, 1974)3, um alentado volume que dá conta de sórdidas práticas comerciais das indústrias farmacêuticas americanas, das transnacionais, numa época em que não se falava em globalidade – conceito que aliás não aplica à indústria de fármacos pois ela sempre foi global – e fazem reflexões profundas sobre o ciclo dos farmácos, da produção à utilização. Ao tratarem do papel do farmacêutico, de modo antecipado apontaram uma tendência de vanguarda na profissão (ainda incipiente no Brasil): “Alguns farmacêuticos – especialmente os recém-graduados afirmam (e com frequência demonstram) que agora eles conhecem mais do complexo campo dos produtos farmacêuticos que a maioria dos médicos e podem servir melhor aos pacientes prestando serviços como educadores de saúde para a comunidade, especialmente em assuntos relacionados a remédios, e servindo como peritos de informação farmacêutica nas equipes de saúde. Esta proposta tem sido calorosamente apoiada por alguns médicos, embora condenada como heresia clínica por outros.” Mas a consciência de que um produto farmacêutico é um “fármaco com informação relevante” e que “para fazer o melhor uso dele, requer-se não somente o fármaco e a informação, mas também instrução e habilidade no uso da informação”, conforme assinalou Andrew Herxheimer4, só adensou-se em meados de 1980 – o marco foi a “Conferência de peritos sobre o uso racional de produtos farmacêuticos”, (Quênia), 25-29 de novembro de 1985, sob os auspícios da Organização Mundial de Saúde5. A indústria farmacêutica nos dias de hoje refinou seus métodos de aliciamento 6 (por exemplo, cria-se a necessidade de um produto do qual não há comprovação de ter custo-efetividade em relação a outro, alertando [ou aterrorizando?] o público por meio de painéis, estandes em centros comerciais etc sobre o perigo de uma doença, como foi o caso da trombose venosa profunda) de profissionais de saúde, particularmente médicos e farmacêuticos (não obstante continuar usando meios tradicionais de indução, que não têm sido regulados a contento, quando se considera o fracasso da regulação instituída pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Resolução RDC nº 102, de 30 de novembro de 2000, e da falta de resultados quanto à Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.595, de 18 de abril de 2000 e à resolução CFM nº 1.701, de 2003, cujo texto foi consolidado em 13 de janeiro de 2004). O controle da promoção farmacêutica – providência sanitária insubstituível para prevenir danos a ser exercida no plano coletivo pelos órgãos oficiais de proteção à saúde e no plano individual pela atuação de profissional de saúde, tem de considerar as cinco dimensões da avaliação de fármacos 7 (produtos farmacêuticos) e de seus correspondentes (produtos médico-farmacêuticos): “eficacidade – o novo tratamento é de alguma forma melhor que as opções existentes, no tocante a benefícios tangíveis para os pacientes?” [...], “Efeitos adversos – são comuns, mais leves? Raros mais sérios? [...] Existe risco de interações entre fármacos? [...] conveniência – é fácil de usar? [...]. O preço de um produto farmacêutico e o custo do tratamento são a quarta dimensão. Uma cópia mais barata de um produto perigoso ou ineficaz é ainda muito caro. Um novo produto que é mais caro mais bem menos avaliado que um fármaco antigo, não é um avanço. [...] A quinta dimensão é a presteza da empresa para divulgar informações acerca de seu produto. [...] Que garantia existe se a empresa não está ocultando informação importante? (ou não a divulga na primeira oportunidade?) [...] É indispensável que o farmacêutico e os outros profissionais que lidam com fármacos direta ou indiretamente conheçam a dimensão que engloba as anteriores, a da ética farmacêutica que é proporcionada por esta esplêndida dissertação de Arnaldo Zubioli sobre o benefício farmacêutico. O mercado está cada vez mais abarrotado de produtos farmacêuticos e médico- farmacêuticos, que jamais atingirão uma condição essente – um levantamento feito na França, pela Revue Prescrire, de 1981 a 2002, revelou que de 2.693 novos fármacos (excluem-se produtos de venda sem prescrição e extensões de linha – novas concentrações e novas formulações) só 7 (0,3%) eram grandes avanços terapêuticos, 73 (2,7%) constituíam um avanço considerável, 212 (7,9% ofereciam alguma vantagem, 432 (16,0%) eram possivelmente úteis, 1.780 (66,1%) nada tinham de novo, 73 (2,7%) eram inaceitáveis e 116 (4,3%) continuavam sob avaliação8. Os profissionais de saúde devem meditar sobre esta ponderação de Joel Lexchin 9, professor da School of Health Policy and Management (York University) e do Departamento de Medicina Comunitária e da Família, da Universidade de Toronto, Canadá, que mostra parte da essência da ética farmacêutica: “Dada a falta de provas de que a maioria dos novos fármacos tenha qualquer vantagem terapêutica sobre os tratamentos existentes, que deveriam os clínicos fazer? Em média, os pacientes ficarão em melhor situação se os clínicos evitarem usar os novos produtos farmacêuticos até que sejam avaliados por cinco anos, a menos que haja prova cabal de superioridade sobre tratamentos estabelecidos”. Para realizar o cuidado farmacêutico na acepção mais ampla possível, que não se resume à dispensa farmacêutica, mesmo realizada com o rigor científico indispensável – atividade feita por outros homens ( e mulheres) que não inventaram ou elaboraram os produtos farmacêuticos –, é preciso conhecer algo mais do que a “filosofia farmacodinâmica”: é o que explana Arnaldo Zubioli, na Ética Farmacêutica, um tratado resultante de sua práxis de docente, pesquisador, conferencista, conselheiro do Conselho Regional de Farmácia do Paraná e do Conselho Federal de Farmácia, entre outros desempenhos de seu mister de farmacêutico, em que conjuga, há cinco lustros, de forma harmônica, sempre como servidor público, sua dedicação precípua à farmacologia e à deontologia farmacêutica, ou seja, com a compreensão profunda de phármakon (o que alivia, o que cura; mas também veneno) e do princípio basilar das práticas de saúde da Grécia Clássica, e que nos chegou pela tradução latina. Primum non nocere (antes de tudo, não causar dano) – o fundamento da ética. Ética Farmacêutica não se destina apenas aos futuros farmacêuticos e aqueles que atuam no ofício, mesmo há algum tempo. Deve interessar a todos os profissionais de saúde, a começar dos prescritores (médicos e cirurgiões-dentistas), e todos os integrantes de uma equipe de saúde (por exemplo, enfermeiros e psicólogos) que realizam cuidados de saúde que envolvem assistência farmacêutica íntegra, ou atenção farmacêutica individual, seja no setor público de saúde, ou na particular. Esta Obra contém diretrizes sólidas, porque fundadas em legado humanista, entrelaçado pelo conhecimento científico que deve servir a todos, para que se possa realizar, entre outros aspectos, o diálogo entre o prescritor, o dispensador e o paciente (usuário) quanto a produtos farmacêuticos e tudo que se relacione com a terapêutica, incluindo a não farmacológica. O farmacêutico Candido Fontoura da Silveira (1885-1974), pioneiro do estudo das questões da Farmácia, mentor de associações farmacêuticas, e também proprietário de indústria farmacêutica, no discurso de agradecimento à homenagem prestada a ele, na Associação Brasileira de Farmacêuticos, em novembro de 1932, no Rio de Janeiro, considerou: “A Farmácia não é um simples comércio: é uma profissão a um tempo científico e comercial, em que se joga com os sagrados interesses da saúde pública. Todos os povos cultos estudam com a máxima atenção o problema da farmácia por constituir uma necessidade social. A ela recorrem todos sem distinção de credo, cor, nacionalidade ou posição social. Para que o farmacêutico se realize, nesse variado trato e para o bem que a nação dele espera, é indispensável que seja uma pessoa de muitas qualidades. Que seja de integridade moral a toda prova não só na manipulação dos medicamentos como também para encaminhar aos competentes as consultas que diariamente lhe chegam, quando não as possam resolver; que seja bondoso, paciente para com os enfermos, que tenha grande tolerância pela doutrinas médicas, científicas, políticas e religiosas. Essa tolerância íntima, sincera e sem azedumes, só pode ser obtida por meio de grande cultura e tempo. Só o tempo e o estudo nos convencem de que em todas as doutrinas há uma parte de verdade, embora a verdade, integral não esteja em nenhuma”.10 José Bento Monteiro Lobato (1882-1948), o maior editor do país, e grande difusor do conhecimento científico, amigo íntimo de Cândido Fontoura, certamente espelhado nas qualidades do líder farmacêutico, mas também no trato das questões de saúde, disse, segundo o próprio Cândido Fontoura em “página magnífica” – [...] O farmacêutico é um verdadeiro cidadão do mundo. Porque, por maiores que sejam a vaidade e o orgulho dos homens, a doença os abate – e é então que o farmacêutico os vê. O orgulho humano pode enganar todas as criaturas: não engana ao farmacêutico”.11 Arnaldo Zubioli é o professor que incorporou esta herança intelectual de próceres de nosso país que se debruçaram sobre as questões farmacêuticas, e soube transmiti-la neste livro de sua maturidade, fazendo jus ao escutínio lobatiano de uma profissão mais importante do campo sanitário, e que ainda (pasme-se!) não tem o pleno reconhecimento de sua importância social no Brasil, isto talvez porque tem uma raiz nefasta, a influência mercantil – assinalada pelo historiógrafo médico Lycurgo de Castro Santos Filho12 (1910-1998) – sobre a prática científica surgida no Brasil Império – no que diz respeito à nobre atividade de aviar receitas e fórmulas –, e que nunca foi coibida nos Regimentos de Saúde, na regulação da República Velha e depois na moderna legislação sanitária pós-1930, ou seja, a prática tolerada durante longo tempo, do “aluguel de nome” para o exercício de uma profissão de saúde nos estabelecimentos farmacêuticos, em que pese eventuais formalidades contrárias, situação que está sendo erradicada nos dias de hoje, mas cuja repercussão ainda fomenta uma falsa consciência sanitária – a que não há primado da ciência sobre o lucro –, o que desdoura a profissão irmã da medicina, e da qual se distinguia, até o Renascimento. Arnaldo Zubioli realizou um trabalho, possivelmente sem igual em língua portuguesa, que contribui para a realização do ideal farmacêutico fontouriano, e creio que mais do que isso é o testemunho de um educador que constrói a cidadania num país dependente que ainda não assimilou os ensinamentos dos povos cultos.
Anais da 1ª Conferência Internacional de Países de Língua Lusófona e Tcheca - Educação, Arte, Tecnologias e Empreendedorismo - Czech Republic And Lusophonic Countries: Education, Art, Digital Technology in Teaching International Conference 2020