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A JUSTIÇA PENAL

NEGOCIAL COMO
HORIZONTE PARA UM
NOVO PROCESSO PENAL

André Machado Maya1

1 Doutor e mestre em Ciências Criminais pela Pontífica Universidade Católica do Rio Grande do
Sul (PUCRS). Especialista em Ciências Penais pela PUCRS e especialista em Direito Público pela
UniRitter. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado) da Fundação Escola
Superior do Ministério Público (FMP). Advogado

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André Machado Maya A Justiça pena negocial como horizonte para um novo processo penal

1 Introdução 2 Os novos riscos e os efeitos destes na


persecução penal
O presente ensaio é resultado de reflexões oriundas de
pesquisas e debates havidos no âmbito do Grupo de Pesquisa As relações sociais contemporâneas são marcadas, na sua
denominado Direito Fundamental à Segurança e Direitos de liber- essência, por uma complexidade que cresce na mesma medida
dade: a complexa harmonia em matéria penal, no ano de 2018. em que se agudiza o processo de globalização mundial. Na dé-
Durante os trabalhos, e tomada como ponto de partida a premis- cada de 1980, já passados mais de trinta anos, Ulrich Beck (1998)
sa sociológica da sociedade de risco, de um lado, e a constatação cunhou a expressão “sociedade de risco” com o intuito de de-
da expansão do sistema penal como uma realidade atual, de ou- finir a sociedade que surgia com o que denominava de “nova
tro, inúmeras questões relacionadas à utilização do Direito Penal modernidade”. O fenômeno da globalização, ainda incipiente, já
e do Processo Penal como instrumentos de concretização de um estava ali presente na sua teoria sociológica, cuja essência estava
Direito Fundamental à Segurança foram problematizadas, em es- no método comparativo entre dois estágios da sociedade: a in-
pecial no tocante à preservação das garantias processuais penais, dustrial, de dois séculos antes, estática e estruturada sobre bases
as quais, neste momento, encontram-se em transição de um mo- referenciais sólidas, como a indústria, a família e a religião; e a
delo de persecução penal pautado na obrigatoriedade da ação moderna, dinâmica e identificada pela revolução científica e pela
penal para outro estruturado sobre o princípio de oportunidade. consequente diluição daquelas bases referenciais em detrimento
Este ensaio materializa um pequena parte dessas proble- de um fenômeno identificado como individualismo.
matizações, com especial ênfase no principal dilema do processo Em apertada síntese, o que caracteriza a sociedade de risco
penal brasileiro na atualidade: manter-se fiel à obrigatoriedade da de Beck (1998) não são propriamente os riscos, mas a dinâmica
ação penal e à tradição romano-germânica de justiça criminal ou social deles decorrentes. Dito de outra maneira, o que caracte-
ceder às tentações da Justiça Negocial, pautada na oportunidade riza aquela é a forma como a sociedade lida com as situações
da ação penal, que se espalha pelo mundo como uma espécie de risco nos âmbitos social, político e econômico, ou como es-
de americanização do Direito. O intuito, aqui, não é aprofundar sas situações ensejam transformações nos modelos de relações
questões cuja complexidade demandaria estudo bastante mais sociais, em especial resultantes do medo e da insegurança. Nas
detido, mas pontuar questões determinantes para o processo palavras do sociólogo alemão:
penal no momento atual, em que novos riscos e novas demandas
por segurança impõem uma necessária atualização das metodo- Os riscos da modernização são o ajuste conceitual, a versão
categorial em que se captam socialmente as lesões e des-
logias de persecução penal conhecidas e sedimentadas há quase
truições da natureza imanente à civilização, se decide sobre
um século no Brasil. sua vigência e urgência esse dispõe sobre o modo de sua
A esse intuito, o ensaio inicia pontuando os novos riscos ocultação e/ou elaboração. (BECK, 1998, p. 89).
e os efeitos destes na persecução penal. O segundo momento
Assim compreendida a teoria, assume especial relevância
é dedicado a uma reflexão sobre a exigência de eficiência e os
a noção de individualismo enquanto fenômeno característico da
efeitos daí decorrentes para o processo penal. Ao final, é posta a
sociedade moderna e diretamente relacionado à dinâmica social
reflexão sobre a justiça negocial como novo horizonte e a neces-
de administração das situações de risco. Trata-se, aqui, da libera-
sidade urgente de uma regulamentação legislativa, ao efeito de
ção dos indivíduos em relação às estruturas de classe estamentais
ajustar os mecanismos consensuais aos preceitos estruturantes
próprias da sociedade industrial. O indivíduo moderno volta-se a
do Estado Democrático de Direito.
si próprio e abandona os vínculos tradicionais, transformando-se

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na própria unidade de reprodução do social no mundo da vida um fenômeno também cultural e social, para além de meramente
(BECK, 1998, p. 95-99). Disso resulta, além do incremento do de- econômico. Castells (1999) trabalha, agora, o conceito de socieda-
semprego, uma situação de crescente incerteza, instabilidade e, de em rede, ou sociedade da informação, cuja complexidade está
consequentemente, um labirinto de insegurança (BECK, 1998, p. diretamente relacionada à revolução tecnológica. Neste ponto,
126). assumem relevância as tecnologias de rádio, televisão, telefone
Esse cenário desenhado por Beck na década de 1980 se e principalmente computadores, que uma vez empregadas pelas
acentuou com a consolidação da globalização. Eliminaram-se as pessoas no contexto social, político e econômico geram novas
fronteiras geográficas e disso resultou um processo de integra- comunidades em âmbito não apenas local, mas principalmente
ção mundial que inseriu a sociedade do século XXI em um cenário global. É o que se verifica com as atuais redes sociais.
de complexidade ainda mais agudizado do que o imaginado por As consequências da revolução tecnológica, no entanto,
Beck, ao qual Bauman (2008, p. 127) se refere com acentuado não são puramente benéficas. As facilidades proporcionadas
pessimismo, identificando essa abertura propiciada pela globa- pelas tecnologias, as quais marcam a sociedade da informação,
lização, porque seletiva e vinculada aos interesses capitalistas, também servem às práticas delitivas, surgindo novos riscos na
como “a causa primeira da injustiça, e assim, indiretamente, do mesma medida em que riscos já conhecidos são acentuados. O
conflito e da violência”. meio ambiente está atualmente exposto a riscos inerentes ao
A observar esse cenário, Giddens (2002a, p. 21) define o modo de produção de bens do capitalismo globalizado, sendo
“mundo moderno” como um “mundo em disparada”, em “des- diversos em níveis quantitativos e qualitativos, em comparação
controle” (2002b, p. 14), destacando a aceleração das mudanças com aqueles característicos da sociedade industrial e mesmo da
sociais e a maior amplitude e profundidade com que essas mu- década de 1980.
danças afetam as práticas e os modos de comportamento dos O sistema econômico-financeiro está igualmente exposto
indivíduos, em comparação com as formatações sociais anterio- a riscos desconhecidos antes da democratização da internet e
res. A par disso, a relação entre evolução científica e incremento da revolução dos meios de comunicação. A paz pública, que no
de riscos é inequívoca, tanto quanto a gestão desses riscos por século passado era ameaçada pelo terrorismo no seu formato
aqueles que dominam a ciência. No dizer de Beck (1998, p. 80), tradicional, com a revolução tecnológica, passa a ser ameaça-
a consciência do risco não é laica, mas determinada pela ciên- da pelo denominado ciberterrorismo. Em todos esses casos, a
cia, do que resulta incertezas, insegurança e medo. Daí porque insegurança é potencializada tanto objetivamente quanto subje-
Bauman (2008, p. 132) apregoa que “a geração mais tecnologi- tivamente. Os efeitos de práticas delitivas são mais intensos no
camente equipada da história humana é aquela mais assombrada ambiente da sociedade em rede, assim como o medo inerente a
por sentimentos de insegurança e desamparo”. Do mesmo modo, esses riscos é aumentado, seja pelo desconhecimento dos possí-
Castells (2005, p. 60) destaca a insegurança como característica veis efeitos dessas ameaças, seja pela exploração desses riscos
marcante dessa sociedade, inerente ao desenvolvimento des- pela imprensa.
controlado das ciências e das tecnologias e à possibilidade da Nesse cenário, enfim, ao Estado são direcionadas deman-
utilização daquela em prejuízo da natureza e do meio ambiente. das por segurança e, inevitavelmente, o Direito Penal surge como
Esse cenário, perfeitamente demarcado nas últimas duas instrumento simbólico de resposta. Simbólico porque de eficácia
décadas do século XX, como destacado, se agudizou nessas pri- apenas aparente, na medida em que o incremento quantitativo e
meiras décadas do século XXI com o avanço acelerado dos meios qualitativo de Direito Penal não tem gerado os resultados espera-
de comunicação, propiciado pelo surgimento e pela consequente dos em termos de segurança, mas, ainda assim, produz um efeito
democratização da internet, que consolidou a globalização como sedativo da sociedade com o atrativo de ser a medida mais céle-

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re para alcançar este efeito. A expansão do Direito Penal, ou da já destacado no ponto anterior, é a forma como a sociedade
intervenção penal, é uma característica inafastável da sociedade lida com as situações de risco nos âmbitos social, político e eco-
de risco, impulsionada pela pretensão de segurança (RIPOLLÉS, nômico, ou como essas situações ensejam transformações nos
2005). Com ela se verifica a flexibilização do devido processo le- modelos de relações sociais, em especial resultantes do medo e
gal e a incorporação de práticas persecutórias próprias de outros da insegurança, o que caracteriza, para Beck (1998), a sociedade
modelos de processo penal, tudo em busca de assegurar mais de risco.
eficiência à persecução penal (MAYA, 2019). A persecução penal característica dessa sociedade é mar-
cada pela flexibilização de regras e pela antecipação ao ilícito ou
pela prevenção deste, agora não apenas pelo Direito Penal, mas
3 A exigência de eficiência e os efeitos também pelo Processo Penal. À tipificação de crimes de peri-
desta na persecução penal go abstrato, no plano do Direito Penal material, se equivalem os
meios de investigação ou de produção de prova praticados com
A exigência de eficiência é uma tônica da sociedade atual. o intuito de combater organizações criminosas e também o uso
Direcionada à persecução penal, a pretensão de eficiência se desmedido das prisões preventivas e a relativização das regras,
confunde com celeridade, ou seja, com imediatidade da respos- no plano processual penal.
ta estatal a determinado ilícito penal noticiado pela imprensa.
Nessa conjuntura, a compreensão onto-antropológica de
Tais demandas são compreensíveis no contexto da sociedade em
eficiência (WEDY, 2013, p. 21) perde espaço e sustentação. A
rede, tecnológica, na qual a velocidade das comunicações sociais
ideia de um processo no qual a celeridade e as garantias este-
conduz a sociedade ao patamar do instantâneo. Por meio da in-
jam em equilíbrio (FERNANDES, 2008), a prestação célere da
ternet e especialmente por meio das redes sociais e dos canais
jurisdição criminal seja efetivada com a irrestrita observância das
de comunicação que possibilitam transmissões ao vivo, como Fa-
regras que compõem o devido processo legal e a eficiência seja
cebook e Youtube, as notícias circulam pelo mundo em tempo
compreendida como a combinação equilibrada entre duração
real. Pessoas se comunicam também em tempo real. Nesse ce-
razoável do processo e garantismo não resiste à tentação do ins-
nário, é natural que a expectativa social em relação à persecução
tantâneo. O processo penal é inserido na lógica da aceleração e
penal seja de celeridade, de instantaneidade, o que acaba por
da velocidade e será eficiente na medida em que apresente uma
gerar um tensionamento, em especial pelo fato de que a per-
solução rápida à sociedade. A legitimidade da decisão judicial
secução penal brasileira segue o tempo da década de 1940, da
passa a estar atrelada mais ao tempo e menos ao devido proces-
comunicação por carta e dos anos de ouro do rádio no Brasil, em
so legal.
evidente descompasso com o atual estágio social.
Nesta busca por respostas imediatas, então, mecanismos
De outro lado, para além da velocidade das comunicações,
processuais próprios de outros modelos de administração da jus-
também a nova dinâmica social característica da sociedade de
tiça criminal passam a ser incorporados ao ordenamento jurídico
risco e, agora, da sociedade em rede, impõe uma aceleração
brasileiro, como fórmulas aptas a tornar a prestação jurisdicional
da persecução penal. Os novos riscos, no atual formato social,
mais célere e adequada aos padrões da sociedade em rede. Fala-
decorrem da utilização dos recursos tecnológicos por organiza-
se aqui dos instrumentos característicos da justiça negocial. No
ções criminosas estruturadas para a prática de ilícitos penais que
ano de 1995 entrou em vigor no Brasil a Lei dos Juizados Espe-
atingem bens transindividuais, como o sistema financeiro (lava-
ciais Criminais, com as previsões de transação penal e suspensão
gem de capitais e evasão de divisas), a paz pública (terrorismo
condicional do processo aplicáveis aos denominados crimes de
e ciberterrorismo) e a administração pública (corrupção). Como
menor potencial ofensivo. Nas primeiras décadas deste século se

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consolidou no Brasil a colaboração premiada como instrumento JÚNIOR; WUNDERLICH, 2019). Neste cenário, a busca por uma
negocial de aceleração da justiça criminal e de combate à crimina- coerência sistêmica mínima impõe a reflexão sobre os rumos a
lidade organizada, agora com foco nos crimes de maior potencial seguir, para o que se deve considerar não apenas a necessidade
ofensivo. Ao observarem esse cenário, Reale Júnior e Wunderli- de ajuste do tempo do processo, mas também, e especialmente,
ch (2019) identificaram duas dimensões de justiça negocial. Com a função do processo penal.
o advento da Lei 12.850/2013, e posteriormente com as práti- A persecução penal própria da sociedade de risco, ou da
cas adotadas no âmbito da operação Lava Jato, a colaboração agora denominada sociedade em rede, materializa a forma como
premiada se consolidou como metodologia de investigação de o Estado lida com a criminalidade que afeta bens jurídicos pró-
meios de prova e de aceleração da persecução penal de crimes prios dessa formatação social contemporânea, na sua essência
empresariais e praticados contra a administração pública. transindividuais. O uso dos recursos tecnológicos por organiza-
Os aparentes benefícios, no entanto, são naturalmente ções criminosas gera novos riscos e incrementa riscos até então
acompanhados por aspectos negativos. Naturalmente, surgiram conhecidos. A velocidade das práticas ilícitas é diferente, assim
impasses e dúvidas acerca da aplicabilidade deste instituto, em como os efeitos destas, se comparada com os ilícitos penais contra
especial quanto aos seus limites e ao seu procedimento, dada bens jurídicos individuais, como patrimônio e vida, por exemplo.
a regulamentação deficitária da mencionada legislação, da qual Frente a isso, a relação entre liberdade e segurança no âmbito
resultam insuperáveis lacunas. Para além disso, merece também processual penal resta afetada. A tradicional função do processo
reflexão a incorporação de um mecanismo negocial próprio de penal – de instrumento de limitação ao exercício do poder puni-
um sistema de administração de justiça anglo-saxão ao Direito tivo do Estado e, portanto, de tutela das liberdades individuais
Processual Penal brasileiro, de origem romano germânica. As – cede espaço para a função de concretização do dever de prote-
incompatibilidades daí decorrentes são consequências das di- ger direitos fundamentais, o que decorre do reconhecimento da
ferenças fundantes de ambos os sistemas. Como compatibilizar natureza também objetiva desses direitos (FELDENS, 2012).
a colaboração premiada com o princípio de obrigatoriedade da Do direito à segurança, previsto em diferentes dispositivos
ação penal, por exemplo? Por que para os crimes empresariais, da Constituição Federal, decorre o dever de assegurar a maior
característicos da sociedade de risco e atentatórios de bens jurí- eficácia possível aos direitos fundamentais, imposto ao Estado.
dicos transindividuais, é possível a negociação e até mesmo uma Consoante precedentes da Corte Americana de Direitos Huma-
imunidade ao suspeito, e nos crimes comuns, que atentam con- nos (Casos Garibalbi versus Brasil; Gomes Lund e outros versus
tra bens jurídicos individuais, essa possibilidade é vedada? Como Brasil; Ximenes Lopes versus Brasil, Kawas Fernández versus
conciliar a possibilidade de imposição de sanções extrapenais Honduras e Castillo Páez versus Peru), em algumas situações –
com o princípio da legalidade? a depender da relevância constitucional do bem jurídico – essa
Perguntas como essas expõem as contradições internas segurança há de ser efetivada por meio do Direito Penal e do
resultantes das inúmeras reformas parciais da legislação proces- Processo Penal. Trata-se, aqui, dos mandados de criminalização e
sual penal brasileira, em especial da incorporação de mecanismos das obrigações processuais penais positivas (FISCHER; PEREIRA,
processuais próprios de sistemas que operam em outra lógica 2018, p. 58).
(princípio de oportunidade, due process of law em uma perspec- Com as novas tecnologias, logo, surgem novos riscos e no-
tiva procedimental) ao nosso processo burocrático, obrigatório, vas demandas ao Estado, dos quais decorrem novas formas de
escrito e orientado à busca da verdade real, do que resulta que tutela, inclusive pela via penal. Seria inimaginável a persecução
a legitimação da decisão judicial é material e não procedimen- penal de ilícitos transnacionais praticados por organizações cri-
tal. Esta é a denominada “americanização do Direito” (REALE minosas com regras oriundas da década de 1940. Disso decorre,

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em um paralelo ao que Sánchez (2006) sustentou em relação à ex- Consequência disso, já destacada, é a relativização das
pansão do Direito Penal, o surgimento de diferentes velocidades regras processuais em busca de celeridade. Tendo como base
processuais penais. A necessidade e a obrigação de tutela penal a premissa legitimadora da verdade real, consagrou-se a lógica
(lato sensu) de novos bens jurídicos expostos a riscos próprios de que os fins justificam os meios e, assim, a inobservância das
da sociedade em rede exigem metodologias de investigação e regras processuais desimporta quando o resultado alcançado
persecução penal adequadas a essa formatação social, sem as retrata a verdade. Com base nessa premissa, as nulidades são re-
quais a prestação jurisdicional penal não será eficiente, tampouco lativizadas (inclusive as ditas absolutas), as regras procedimentais
efetiva.2 são consideradas não vinculantes, o juiz abandona sua posição
Não se trata, portanto, apenas de celeridade, mas de ade- de imparcialidade e provas ilícitas passam a ser admitidas, por
quação da persecução penal a um novo formato de sociedade. exemplo. O cenário é de esvaziamento da garantia do devido
O desafio, nesse âmbito, é compatibilizar essa adequação com processo legal. Afinal, qual o conteúdo dessa garantia constitu-
garantias humanitárias fundamentais ao controle do exercício cional quando todas as regras processuais são flexibilizadas?
do poder estatal e, pois, à concretização da democracia. A exi- Dessa constatação decorre que a formatação codificada
gência de eficiência aplicada ao processo penal, então, impõe do processo penal brasileiro, porque defasada no tempo, não
a implementação de mecanismos processuais aptos a propiciar é mais apta à finalidade pretendida. De nada adiantam regras
um resultado eficaz, mas com irrestrita observância das garantias que determinam o afastamento do juiz por aparente suspeição,
fundamentais. que estabelecem o procedimento de produção de determinado
meio de prova ou mesmo que exigem determinada prova para a
demonstração da materialidade se essas são flexibilizadas e su-
4 A justiça negocial como o novo horizonte peradas em razão da ausência de prejuízo. De nada adianta a
e a necessidade de uma regulamentação previsão teórica de garantias que na law in action não são con-
urgente cretizadas. Impõe-se rumar para um modelo no qual as garantias
sejam efetivamente concretizadas.
O cenário posto é de um direito processual penal em É nesse âmbito que se coloca a questão da justiça negocial.
transformação, em busca de adaptação a um novo modelo de so- Os instrumentos desta, como a transação penal, a aplicação de
ciedade. O Código de Processo Penal brasileiro é de 1941 e sua pena imediata e a colaboração premiada, inserem a persecução
base principiológica está inequivocamente superada pelo adven- penal em uma nova velocidade, outra vez no sentido utilizado
to dos postulados democráticos que estruturam a Constituição por Sánchez (2006) para o Direito Penal material. Observadas
Federal de 1988 e a Convenção Americana de Direitos Humanos, determinadas garantias mínimas, e havendo consenso, a solução
da qual o Brasil é signatário. Disso resulta a inadequação de di- imediata afigura-se razoável e apta a otimizar o espaço jurisdicio-
versos dispositivos, o que há muito vem sendo apontado pela nal, contribuindo para a eficiência (celeridade com garantias) da
doutrina (CHOUKR, 2018; GIACOMOLLI, 2014). De outro lado, persecução penal tradicional, reservada essa para determinados
sua estrutura burocrática, pautada na escrita e na centralidade crimes e para os casos nos quais não houver consenso. No dizer
do juiz, por exemplo, é agora percebida como defasada e como de Reale Júnior e Wunderlich (2019), “é cediço que, se aplicadas
causa principal da morosidade do sistema de administração de com segurança, as soluções negociadas na seara penal podem
justiça criminal brasileiro. contribuir para a resolução de conflitos, para a redução da mo-
rosidade judicial e para a diminuição do inchaço penitenciário.”
2 A propósito, sobre a distinção entre efetividade e eficiência, veja-se: FERNANDES, 2009.

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Efetivamente, no âmbito da criminalidade organizada, delo de persecução penal romano germânico, como a legalidade
o incentivo à colaboração por meio de acordos é uma medida e a obrigatoriedade da ação penal.
adequada à pretensão de eficiência da persecução penal. Sua
necessidade, de outro lado, decorre da elevada complexidade
do modus operandi dos crimes econômicos e praticados contra Referências
a administração pública, bem como da já mencionada exigência
da imediata atuação estatal na investigação e reprovação des- AGOSTINI, Renata. ‘É hora de o Congresso mudar a lei da
ses delitos. Ademais, o alargamento dos espaços de consenso no colaboração premiada’, diz criminalista. Portal Estadão. 24 jun.
processo penal é uma tendência mundial. 2019. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/
geral,e-hora-de-o-congresso-mudar-a-lei-da-colaboracao-premiada-
Assim compreendidos, os mecanismos consensuais ou ne-
diz-criminalista,70002884568. Acesso em: 02 jul. 2019.
gociais poderão contribuir para um resultado mais eficiente da
persecução penal. Naturalmente, porém, o regramento desses BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Tradução Carlos Alberto
mecanismos precisa ser aprimorado. Bem delimitadas as hipóte- Medeiros. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
ses e os procedimentos, por certo, no âmbito da negociação, o BECK, Ulrick. La sociedade del riesgo. Hacia una nueva modernidade.
acusado terá concretizadas garantias que atualmente não o são Barcelona: Paidós, 1998.
na persecução penal tradicional. Entretanto, a adequação desses
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
mecanismos ao ordenamento jurídico brasileiro pressupõe regras
Diário Oficial da União: Brasília, DF, p. 1, 5 out. 1988.
procedimentais rígidas e bem definidas, imprescindíveis ao con-
trole do exercício do poder punitivo pelos órgãos de persecução BRASIL. Decreto no. 678, de 6 de novembro de 1992. Promulga a
penal (CALLEGARI, 2019)3 e ao incremento dos níveis de con- Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José
fiança nas instituições e de segurança jurídica (REALE JÚNIOR; da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Diário Oficial da União:
WUNDERLICH, 2019). Brasília, DF, p. 15562, 09 nov. 1992.

Este parece ser o cenário que se apresenta. A tendência ne- BRASIL. Decreto-Lei no. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código
gocial, consagrada pela lei 12.850/2013, alcançou os projetos de Penal. Diário Oficial da União: Rio de Janeiro, p. 2391, 31 dez. 1940.
reforma do Código Penal e do Código de Processo Penal, ambos BRASIL. Decreto-Lei no. 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de
em tramitação no Congresso Nacional. Em ambos há previsões Processo Penal. Diário Oficial da União: Rio de Janeiro, p. 19699,
explícitas de justiça negocial, agora também para crimes comuns, 13 out. 1941.
observados alguns requisitos e certa limitação relacionada à san-
BRASIL. Lei nº. 12.850, de 2 de agosto de 2013. Define organização
ção penal abstratamente cominada. Do mesmo modo, o recente
criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de
Projeto Anticrime apresentado pelo ministro da Justiça alarga
obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento
sobremaneira os espaços de consenso na persecução penal. Ine-
criminal; altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940
quivocamente, portanto, a justiça negocial é o novo horizonte.
(Código Penal); revoga a Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá
O desafio é estabelecer um regramento que ofereça garantias
outras providências. Diário Oficial da União: Brasília, DF, p. 3, 05
suficientes no âmbito de um modelo negocial apto a justificar o
ago. 2013.
abandono de princípios tão fundamentais à estruturação do mo-
BRASIL. Lei no. 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre
os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências.
Diário Oficial da União: Brasília, DF, p. 15033, 27 set. 1995.
3 A propósito, vide-se entrevista concedida pelo autor ao periódico Estadão: AGOSTINI, 2019.

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CALLEGARI, André Luís; LINHARES, Raúl Marques. Colaboração Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/6330-
Premiada: lições práticas e teóricas. Porto Alegre: Livraria do Justica-negocial-e-o-vazio-do-Projeto-Anticrime. Acesso em: 02 jul.
Advogado, 2019. 2019.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Tradução Roneide RIPOLLÉS, José Luis Diez. De la sociedad del riesgo a la seguridad
Venâncio Majer; atual. para a 6. ed. Jussara Simões. (A era da ciudadana: un debate desenfocado. Revista Electrónica de Ciência
informação: economia, sociedade e cultura, v.1) São Paulo: Paz e Penal y Criminologia, n. 07, p. 01-37, jan. 2005.
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