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TRÊS ASES E UM CURINGA: da leitura

José Luiz Foureaux de Souza Júnior, PhD


Universidade Federal de Ouro Preto

O incidente é fútil (é sempre fútil), mas atrai


para ele toda a minha linguagem. Eu o transformo
imediatamente num acontecimento importante, pensado
por alguma coisa que se assemelha ao destino. É uma
capa que cai sobre mim, arrastando tudo. Inúmeras e
mínimas circunstâncias tecem assim o negro véu de
Maya, a tapeçaria das ilusões, dos sentidos, das
palavras. Começo a classificar o que me acontece. O
incidente vai agora enrugar como o caroço embaixo dos
vinte colchões da princesa; como um pensamento
diurno que se espalha pelo sonho (...).
Roland Barthes, Fragmentos de um discursos amoroso)

O que vou apresentar aqui é mais um ensaio que tenta relacionar três tipos de leitura – a crítica,

a teórica e a histórica – que o estudioso da literatura habitualmente faz em separado. Esta articulação

entre os três tipos de leitura é analisada numa perspectiva metodológica e comparada a um modelo

famigeradamente chamado de “científico”. Como todo ensaio, não vou desfiar um rosários de aporias

e/ou um emaranhado de axiomas para a finalização de um tratado. É claro que a idéia de rizoma – a que

se vincula, obviamente e indiscutivelmente ao pensamento de Deleuze – está implícita aqui. Isto porque

as idéias vão se articulando como o desenvolvimento de raízes que não seguem uma ordem
previamente estabelecida, a não ser por sua natureza... botânica. Não é o caso aqui! Uma outra idéia

implícita aqui é a de que o exercício da leitura é um ato solitário, como já firmou Harold Bloom e

requer esforço do leitor, unicamente. Neste sentido, reforço minha atitude de instigar o meu leitor a ir

atrás das referências que faço. Neste jogo de sedução, tento atrair a atenção do próprio leitor, para a

importância de seu ato.

A atividade incontornável dos críticos, dos teóricos, ou dos historiadores literários, é a da

leitura. Não obrigatoriamente a primeira, mas incontornável. Digo “não obrigatoriamente a primeira”,

porque pode-se formular hipóteses críticas, teóricas, ou históricas, em qualquer ordem, a partir, sempre,

de uma leitura prévia do corpus a considerar. De qualquer maneira, a partir desta leitura “primeira”, a

do corpus – objeto de uma investigação que vai se desenvolver crítica, teórica ou historiograficamente

–, pois tem-se, inicialmente, uma idéia que é herdada de outras aquisições. Da mesma maneira, tem-se

a possibilidade de deduzir hipóteses a partir de postulados gerais, uma vez estabelecido que as questões

surgem através da “colheita de dados” em que se constitui a leitura. Estas, por sua vez, podem ser

estruturadas de maneira a propiciar o seu equacionamento, ou não, depois da leitura construída.

(POPPER, 1980, p.95).

A palavra leitura não é inócua. A sua etimologia familiariza-a com o verbo colher e com o ato

posterior à colheita que é o de juntar e arrumar o que foi colhido. O verbo legere, que deu ler em

português, significava por isso “reunir, juntar, colher, apanhar (flores, frutos, etc.)”. Em grego, o verbo

tinha o sentido de “reunir”. Desta forma, este verbo não deixa de se conjugar a pelo menos um dos

sentidos do parente grego logos, que é o de “contar”, na dupla acepção de “somar” e de “narrar”. Em

complementação, é interessante lembrar que logos deriva do grego légw, que significava originalmente

“dizer”, de onde saíram palavras importantes para a literatura, como apólogo, diálogo, epílogo e

apologia. (MARTIN, 1985, p.96s). No entanto, uma palavra não se define só pela sua etimologia, tal

como um filho não se explica só pelo pai. A rede conceitual coberta por toda a “família” da palavra que

dá origem a leitura contribui para formar uma idéia completa das potencialidades do étimo e do campo
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semântico envolvidos pelo uso desse termo. Não deixa de ser procedente, no caso, que a leitura seja

prima, não importa agora o grau, mas prima de eleger e coligir, de lógos e de lei. Tomando o termo que

mais interferência vem a exercer no campo de trabalho contido pelo perímetro dos estudos literários, é

oportuno lembrar que logos significava, já para Heráclito, “um princípio subjacente e organizador do

universo, relacionado com o significado comum de logos como proporção”. (PETERS, 1983)

Na verdade, o ato da leitura visa reunir, de uma forma organizada, pelo menos alguns dos

elementos do universo textual, elegendo uma proporção, uma “regra de ouro”, que os relacione

produtivamente. É assim que se chega à constatação de que este percurso semântico é o que garante ao

leitor a sua chegada à leitura precisa daquilo a que a hermenêutica chama de maneira geral

“interpretar”, confundindo-se muitas vezes o termo com o “compreender” ou “explicar”. A

interpretação não pressupõe, se se respeitar o histórico da palavra, apenas dar um sentido à totalidade

das partes, mas dar-lhe “o verdadeiro sentido”. Nunca é demais lembrar que esta verdade é “subjetiva”,

sempre. A procura do “verdadeiro” e único sentido prende-se com o fato de a palavra significar

originalmente “traduzir de uma língua para outra”, ou seja, ser intérprete, o que implicava a traição

necessária de optar por um sentido apenas. O que interpreta era, em latim, antes de tradutor, o “agente

entre duas partes, intermediário, medianeiro, negociador”. O intérprete literário traduz, por

conseqüência, para uma linguagem não poética, para uma “língua artificial” um sistema de

comunicação, se se seguir as idéias de Umberto Eco; o que já é considerado característico neste

processo, de acordo com as idéias de Lotman quando se refere ao “sistema de simulação secundário”.

Note-se que aqui se pode inferir a idéia de negociação, o que propicia o estabelecimento de um

consenso, como pressuposta pelo próprio Umberto Eco, quando constrói o conceito de “interpretante”.

Termo que é definido resumidamente como “o mecanismo semiótico através do qual o significado é

predicado de um significante”, o que pressupõe a idéia “ativa” da metalinguagem. (ECO, s.d., p. 154)

No entanto, o seu trabalho não se distingue do dos exegetas da Bíblia, pois ambos traduzem um

significado oculto ou latente. O mesmo sucede com os intérpretes dos filósofos mais estudados nas
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Universidades. A tarefa do intérprete não deriva, portanto, do que há de específico na atividade

literária, mas de ser ele o tradutor de um sistema de simulação secundária para um sistema “artificial” e

autorizado. Tal sistema inclui o mito e a religião.

O verbo interpretar tem, no dicionário, um significado quase igual aos anteriores: “explicar o

sentido mais ou menos claro de: interpretar uma lei”. Tal acepção ficou mais especificada no século

XIX, quando então se acrescentou o sentido de “anotar”. No entanto, vários autores já distinguiam

entre as anotações e as interpretações com base na imagem da clarificação: estas procuravam um

sentido geral único, aquelas aclarar os significados ou explicá-los parcialmente. Ou seja, a anotação

instrui, e a interpretação apresenta as razões pró e contra. As anotações, neste sentido, respaldam as

explicações, que, por sua vez, facilitam aos leitores o alcance mais sofisticado do sentido que percebem

quando da leitura. A definição de dupla face, que se pode estabelecer entre explicação e interpretação,

quase sempre coloca o sujeito leitor numa mesma posição. A diferença está em nesta capacidade de

“facilitar” o alcance do(s) sentido(s), expressão que, para designar o trabalho do intérprete, seria

substituída pela fixação de um sentido único, em torno do qual examinam os intérpretes “as razões pró

e contra”. As explicações, contrariando o que o “senso comum” geralmente supõe, dão a perceber ao

leitor as entrelinhas que for descobrindo. Este atalho interpretativo não tem, no entanto, a pretensão de

fechar o sentido numa suposta verdade. Não é por acaso que é sempre preferível usar a palavra

“exegeta” em vez de “hermeneuta” ou “intérprete”. Hermeneuta significava intérprete no grego antigo,

apesar de sua etimologia um tanto obscura. (MARTIN, 1985, p.63) “Exegeta” vem de um verbo grego

que significava explicar. Esse verbo tem como étimo outro que exibia dois sentidos: crer, e olhar

como. Isso dá a este verbo uma riqueza e uma propriedade maiores.

Em parte, a explicação leva a “olhar como” num dos usos da expressão: ver como funciona a

obra de arte literária, uma ou várias. No outro, dos usos da expressão (o mais comum), ela é sinônimo

de analogia, imagem ou metáfora: dar a ver uma coisa através de uma segunda. A essência do

conhecimento, “ver como funciona” é imitativa, lembra R. Kearney em A poética do possível, e vinha
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sendo dito já desde Aristóteles que, na Poética, já diz que o homem aprende imitando. Conhecer é ver

como, ver uma coisa como outra, a partir de outra. A formação das imagens exposta pela neurobiologia

nos últimos anos confirma essa idéia, e muito particularmente no que diz respeito aos “sistemas de

simulação secundária”, que se fundamentam nas imagens estimuladas por evocação, tanto quanto se

servem de “uma língua natural como material.” A observação, que para Karl Popper é o fundamento

empírico de uma ciência (POPPER, 1980, p.30), consiste na experimentada reconstrução figurativa do

objeto observado. A leitura explicativa é uma observação feita sobre o texto (o objeto observado) visto

como, no duplo sentido de como funciona e visto em comparação com outros tipos de discurso,

inclusive o literário.

Esta leitura constitui, não só a componente experimental dos estudos literários críticos e

históricos, como também a tarefa principal dos teóricos e, por isso, da leitura teórica. Se uma leitura

inicial colige os elementos e os anota, ela forma a nossa primeira imagem total do texto, o seu primeiro

fantasma. Ela fixa os limites da primeira compreensão, sobre a qual se organiza ou reúne os elementos

e as anotações. Por sua vez, a explicação abre algumas das várias perspectivas que permitem perceber

melhor o funcionamento de cada passagem do texto, principalmente para os que não estão

familiarizados com os problemas da composição poética. Isto é feito a partir da imagem total que

resulta das anotações, mas não esgota o que a partir delas se pode referir. É aqui que se percebe a

extrema força método-epistêmica da palavra interpretação. Isso se dá pelo simples fato de que explicar

se forma a partir do prefixo ex (prefixo de negação, ou significando o movimento de dentro para fora) e

do verbo latino plico, “dobrar, enroscar, enrolar (um manuscrito); sendo plícito o enrolado e explícito o

desdobrado. Desta forma, o sentido de explicar fica articulado à imagem de um texto fechado, que visa

dar um sentido único, definitivo, à leitura. Ou seja, muitas vezes, por equívoco, falácia ou

desconhecimento, usa-se explicar quando se devia dizer interpretar e vice-versa. Como, por exemplo,

pode-se inferir das idéias de Umberto Eco, quando diz que “o interpretante não é apenas um simples

signo que traduz um outro signo (mesmo se muitas vezes o é); é sempre e em todos os casos um
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desenvolvimento do signo, um incremento cognoscitivo estimulado pelo signo inicial”. (ECO, s/d, p.

155)

A leitura é desenvolvida em dois momentos: um (o dos apontamentos) analítico; outro

explicativo. O desenvolvimento de cada um destes aspectos dá origem a um gênero próprio: o crítico e

o teórico respectivamente. A crítica é, numa certa perspectiva, o estudo dos critérios. A crítica literária

será, nessa medida, o estudo dos critérios utilizados em literatura – mais precisamente, na composição

de obras literárias ou poemas. Fica assim estabelecida uma diferenciação entre significado comum e

comentário retórico à literatura. Tal posicionamento lembra Croce e sua “caracterização da poesia”,

caso esta expressão seja considerada no sentido de um estudo dos critérios e não propriamente do

“conteúdo da poesia, (do) sentimento que a poesia exprimiu”, para continuar na esteira do teórico

italiano.

O crítico julga sempre, mas não o mesmo que o teólogo ou o juiz. A palavra “crítica” tem na

sua origem, como “critério”, um verbo cujo significado primeiro era o de “apartar, escolher, estremar,

separar”, razão pela qual o crítico era primo da crise, que era a discriminação decisiva num

julgamento. Em uma das suas acepções (“escolher”), o crítico se aproximava assim do leitor, e na outra

(“separar”) se declarava especificador, analista. Pela sua etimologia, a crítica não é, portanto, somente

o estudo dos critérios, ela não se reduz a uma “prática analítica”, porque esse estudo construcionista é

realizado para produzir depois um julgamento que permita escolher entre o verdadeiro e o falso, o fruto

bom e o que já não presta para comer. A análise dos critérios de composição serve então para

fundamentar o julgamento, a separação entre o que é e o que não é. No caso da literatura,

especificamente, o verdadeiro e o falso podem-se traduzir como o que seja e o que não seja poético. O

enquadramento jurídico em que se desenvolveu, num dado momento, o campo semântico da palavra,

exige o enfoque da retórica, pois quando o sujeito julga, ele é julgado. É preciso então convencer quem

lê da justeza das posições deste mesmo sujeito que “julga”, é preciso argumentar. Daí se generalizou a

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visão retórica da crítica, passando-se a atribuir a categoria de substância àquilo que era apenas

conseqüência.

No entanto, o crítico não é propriamente um advogado. O crítico só precisa ter meios para

destrinçar o poético do não poético, ele só precisa definir os critérios que permitirão distinguir, por

exemplo, o discurso ficcional de outros discursos – como se costumou dizer, em certo momento, a

ficcionalidade ou a literariedade (problema já antigo, e cujas “soluções” são absolutamente

insatisfatórias). Estes meios, para enfocar a questão nos estudos de Wittgenstein – de “semelhanças de

família”, que não é substancialista – apenas atualizam as que Aristóteles, na Poética, desenvolvia ou

potenciava. No momento em que define critérios distintivos, ainda que só a partir do levantamento dos

que usou o poeta para compor a obra, o trabalho do crítico pode imiscuir-se no campo teórico, numa

relação desejável pelas implicações biunívocas entre os dois gêneros. Convém, apesar dessa vantagem,

separar a crítica literária da teoria, uma vez que a função de ambas é diferente: fornecer os critérios que

permitam aferir acerca da poeticidade dos textos que se nos apresentam publicamente como tal.

É claro que tudo caminhou muito, em outras direções. No entanto, este embasamento nunca se

perde. E mais, sem ele, nada do que se estuda hoje em termos de crítica e/ou teoria se sustentaria. É

costume utilizar-se termos não reparando no seu significado etimológico. Se por acaso se fala dele é

para relacionar visão e teoria. No entanto, as origens e a história da palavra esclarecem sem

empobrecimento a tarefa do teórico.

A palavra Theoria compunha-se de duas raízes: a primeira, Thea, significando “espectáculo” e,

daí, por generalização, “vista”. A segunda aparece igualmente em Theore, que designava o deputado

dos Estados gregos aos grandes jogos: trata-se do verbo oraw, que nomeava o ato de “vigiar” – o

théore vigiava, era essa sua missão. O teórico (o que via), a partir disso, surge por oposição ao prático

(o que negociava), numa dualidade marcada pela responsabilidade moral de um e pela negociação do

outro. Quando o significado de Theoria passa, depois, a ser o de visão filosófica ou sistemática, ele já

traz consigo toda esta carga semântica. A theoria é então, mais que uma visão, a vigia do espetáculo. O
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espetáculo era o teatro e este, uma representação poética da vida; o theore, por sua vez, é enviado em

nome da cidade, melhor, em nome de quem dirigia institucionalmente a polis. Pode-se, pois, dizer que

a theoria é a tradução política da representação poética da vida, no sentido em que é a interpretação,

socialmente marcada, do labor artístico.

Por isso, a Teoria da Literatura, se fosse definida só em função destes dados, não seria um

policiamento da literatura em nome do Estado, mas a leitura do espetáculo literário para a

representação politicamente organizada e em função da cidade. Quer dizer que a teoria faz e estabelece

oficialmente (e por ofício) a ligação institucional entre a comunidade politicamente representada e a

literatura, explicando àquela o que se passa nesta, o que a poesia é na sua existência, a cada momento.

Se no poeta predomina a responsabilidade pessoal da criação, da invenção e da composição, no teórico

predomina a responsabilidade social da leitura – para isso é que ele precisa construir uma “visão geral”

da literatura, uma visão referencial na qual se processem e se enquadrem as explicações e as

interpretações de cada uma das obras. Ao construir uma visão geral, o teórico procura por vezes o que

há de comum a todas as “partes” da literatura, algo suposto naturalmente literário, específico da arte

verbal – aqui ele pode ser confundido com o crítico. No crítico, porém, se a responsabilidade é à

mesma social – na medida em que ele vai dizer o que é e o que não é poesia falando num discurso, não

obrigatoriamente científico, mas “completamente inteligível”. (FRYE, 1957, p.17, grifo meu) Sua

avaliação é feita por referência à descoberta dos critérios de composição poética, é “técnica”. Enquanto

se preocupa com a arte da composição, o seu julgamento é meramente artístico e o seu procedimento

procura ser exato na medida em que traz para a linguagem racional, avaliando-a e explicando-a, a

utilização do critério.

Desta maneira, ainda que hoje vista como superada, estabelece-se esta separação entre a teoria

(visão geral da literatura que enquadra “moralmente” as leituras conseqüentes) e a crítica

(determinação da poeticidade a partir do estudo criterioso das composições tidas como poéticas). O

objetivo do crítico (a determinação da poeticidade de uma obra) e o ponto de partida do teórico (a visão
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geral da literatura) vivem uma espécie de relação de causa e conseqüência, tendo por objeto principal o

segundo termo das expressões crítica literária e teoria da literatura.

Para completar esse raciocíonio, é necessário fazer referência a uma terceira disciplina, que não

é a da leitura crítica nem a da leitura teórica, mas a da leitura histórica. A sua pertinência tem sido

discutida e polemizada por muita gente, o que torna obrigatória uma reflexão sobre ela. De forma geral,

a idéia dominante foi a de que os “métodos” das ciências “históricas”, “humanas” ou “sociais” são

intrinsecamente diferentes dos métodos das “ciências naturais”. Karl Popper, em obra aqui já referida,

desmonta este tipo de posicionamento ainda articulados por René Wellek que, no entanto, reagia a uma

apropriação primária ou superficial do método científico, apropriação que estará na base do

historicismo. Wellek se coloca alinhado a uma idéia abrangente do que seja a teoria da literatura – um

organon de métodos. (WELLEK e WARREN, s/d, p.14-17) É claro que não se pode encontrar

aquiescência entre este tipo de definição e os posicionamentos atuais. No entanto, é aí que se encontra

o respaldo para a distinção entre o estudo da literatura nos aspectos diacrônico e sincrônico, por

exemplo.

No aspecto sincrônico teríamos a crítica literária, no diacrônico a história literária ou da

literatura, sendo a teoria o “estudo dos princípios da literatura e das suas categorias, dos seus critérios e

matérias semelhantes”. A definição de Wellek respeita o traço de “visão geral” que estava bem no

começo da história por assim dizer intelectual da palavra theoria. Para ele, a visão geral é a que junta a

leitura histórica e a leitura crítica, refletindo sobre o conjunto e concedendo aos críticos e historiadores

pontos de apoio teórico. É uma visão geral “tradicional”. Mas, pelas razões expostas até aqui, não é

apropriado simplesmente afirmar que a crítica tenha que deixar de estudar os critérios e as categorias,

ou que a história da literatura tenha que deixar de estudar os princípios e as matérias dominantes. Há de

se contextualizar as idéias da dupla de teóricos anglo-saxões para que não se perca o que de

interessante possa se aproveitar deles. Portanto, esta visão pressupõe que o estudo da literatura em

geral, e a história da literatura em particular, são feitos a partir da leitura das obras – este é o
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“fundamento” inescapável. Tal pressuposto não deixa de “dominar” os estudos literários há muito

tempo, e aceita-se facilmente que esse é o seu trajeto “natural”.

À luz dos procedimentos metodológicos pensados para as Ciências Sociais e Humanas, o

posicionamento de Wellek é historicista, no sentido de que fala Popper como aqui referido. Num certo

sentido, o historicismo consiste apenas na crença de que se pode penetrar a mentalidade das épocas e

perceber intrinsecamente as atitudes e as obras que marcam essas épocas. Por via de conseqüência,

seria possível desnudar os vícios e equívocos dos padrões de “comportamento” crítico, teórico e/ou

historiográfico. A visão que Popper tem do historicismo ainda guarda certa operacionalidade,

chamando a atenção para o fato de que para este tipo de trabalho de leitura, o melhor passo

metodológico parte da leitura das obras, daí alçando vôos articulatórios com os conceitos que

constroem uma espécie de “explicação” interpretativa. Nessa medida, tentar isolar a História da

literatura da leitura crítica e da teoria, argumentando falaciosamente que a História se ocupa de fatos

verificáveis, enquanto o “criticismo” se preocupa com opiniões e crenças (uma vez que parte das

“idéias” e não das obras), parece não proceder: nada mais superado!

Como Wellek nota, trata-se de uma posição insustentável. Isto porque a História menos crítica é

a menos literária. Em segundo lugar, porque não há fato histórico mais fixo para examinar que uma

obra – objeto central da atenção crítica ou teórica – após a morte do seu autor. O texto “escrito”, ainda

que acrescido de anotações, mudanças e/ou revisões, mesmo que post mortem, não “muda”. Podem

mudar as teorias, os enquadramentos históricos e as leituras críticas pela descoberta de manuscritos. No

entanto, o “conjunto de letras” que forma o livro não muda. O que muda é o seu funcionamento para o

leitor, o seu funcionamento histórico no sentido que a palavra toma em Jauss, ou ainda, no sentido de

constatar que este funcionamento é um predicado constantemente modificável, por ação da

subjetividade do leitor. Por isso mesmo, a tarefa do historiador literário é mais dificilmente “científica”

do que a do crítico ou do teórico, porque ele resumirá as anotações, explicações e interpretações das

leituras críticas e teóricas adequando-as ao que na mesma época é dito sobre outros aspectos da
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atividade cultural. Ele aproxima interpretações ou explicações sobre processos diacronicamente

marcados: nada é mais arbitrário, nesse tipo de estudo, nada é mais enganador do que o agrupamento

das obras sob paradigmas cronológicos ou categóricos.

A História da Literatura não tem sido, realmente, uma ciência, mas uma forma de historicismo,

de importação de métodos que são defendidos como os mais apropriados aos estudos históricos, e que

são absorvidos com um pressuposto determinista35. Se o objectivo central do historicismo é, quando se

dá o passo idêntico para a Sociologia, o de estabelecer as leis da transformação social36, quando ele

salta para os estudos literários o que pretende é, quando muito, "estabelecer as leis da transformação"

literária. O objectivo em si é discutível, porque não precisamos pressupor a existência de "leis"

imutáveis para estudarmos a "transformação". Mas um dos problemas principais do historicismo em

literatura, ou da suposição dos métodos "históricos" como os mais apropriados à ciência literária, não

se prende só com o objectivo; nasce de considerarem, os seus defensores, que a inserção dos eventos

literários no contexto histórico, e o seu enquadramento nas constantes da "evolução" de uma literatura,

dão por si sós a imagem de como funciona o sistema respectivo.

Esta procura de exclusividade científica foi sentida já noutras áreas, por exemplo na Sociologia ou

no estudo de artes como a da pintura. A redução é sempre a mesma: "A ciência social não é mais do

que história"37; a ciência literária também não seria mais do que isso. Ora o sistema tem variáveis

internas, ele é o resultado da sociedade e da história mas também é o resultado de si mesmo, facto para

o qual os formalistas e estruturalistas haviam chamado a nossa atenção. Há modos de um texto

funcionar que não dependem da época em que ele foi escrito, nem da nossa, mas de condições

estruturais, por assim dizer38, que se podem repetir em locais e tempos diversos tal como sucede com

muitos fenómenos físicos39. Por isso concordamos com Wellek em que as vertentes sincrónica e

diacrónica, a do crítico e a do historiador, devem ser conjugadas para alcançarmos uma visão geral das

obras literárias.

No entanto o conceito de estudo da literatura de Wellek junta-se com o dos historicistas no ponto
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fulcral que é o da definição dos métodos. A crença que o anima é a de que as leis do sistema se atingem

por indução. Por indução, na lógica, e pelo menos desde Bacon, quer dizer partindo dos factos

acumulados para inferir os princípios que os produziram; consequentemente, o raciocínio por indução é

um raciocínio a posteriori. No nosso caso: só depois de escritas as obras que definem a literatura

podemos estabelecer, por exemplo, o que seja a literariedade, e fazêmo-lo por inferência.

Nos estudos histórico-literários os historicistas defendem que a inferência funciona por abdução,

ou seja, por um tipo de raciocínio que só pode ser um silogismo frágil, alcançar uma conclusão

meramente consensual, e a partir do levantamento dos indícios disponíveis como dissémos. Os estudos

históricos e literários haviam, por isso, de ser uma espécie de parente pobre da ciência, que não podia

garantir explicações cabais. E viam-se remetidos a uma espécie de beco sem saída, o "de toda a

história: isto é, para descobrir o esquema de referência [...] temos de estudar a história; mas não

podemos estudar a história sem termos em mente algum esquema de selecção"40. Como diria Fidelino

de Figueiredo, é aqui que desempenha o seu papel a hipótese. Que Wellek exemplifica falando no

soneto, "um certo esquema externo, patente, de classificação" que "proporciona o ponto de partida

necessário"41. O exemplo é ainda o de uma forma historica e geograficamente muito marcada, mas

proporciona ainda assim uma identificação estrutural que atravessa mais do que um período e mais do

que uma história literários. De qualquer modo é ainda abdutivo.

A abdução era, para Charles Peirce, o método para a criação das hipóteses e a tarefa descrita por

Wellek faz isso. Porém, a construção de suposições provisórias, tal como delas fala Fidelino de

Figueiredo42, não segue obrigatoriamente essa origem, se considerarmos o seu funcionamento na

maioria das ciências.

Fidelino de Figueiredo era, nessa altura, uma espécie muito bem definida de historicista: reconhecia

que a construção da hipótese detinha um "grande papel" nas ciências exactas, encontrando nos

cientistas ao mesmo tempo "os maiores constructores do saber" e os "grandes creadores de

hypotheses"; mas acha que a crítica só pode falar de factos "singulares". A originalidade do seu
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pensamento vem depois e consiste em perceber que as hipóteses eram criações; e ela está limitada pela

ideia de que a crítica tende a tornar "verdades definitivas" as hipóteses "historico-litterarias, quando se

confirmam documentalmente por um dado novo, não pela repetição experimental".

Neste último ponto Fidelino de Figueiredo está preso ao que disse antes sobre a "singularidade" das

explicações histórico-literárias, motivo pelo qual não prevê que a revisitação de um mesmo documento,

sob nova hipótese, testa ainda compreensões anteriores, sendo por essa repetição experimental que

testamos os programas de leitura anteriores, "singulares" ou estruturais eles sejam. Ora, marcado pelo

"indutivismo", Fidelino de Figueiredo supõe que, da notícia de um novo "dado", chegamos à

confirmação de uma hipótese anterior por generalização, inferência e abdução.

Mas é de supor que os críticos literários não visem ditar "verdades definitivas", e também é de esperar

que não se reportem apenas a factos singulares, mas a exemplos que expõem critérios gerais de

composição seguidos pelos poetas, critérios que são passíveis de uma definição estrutural.

O método indutivo nem sequer detém a exclusividade como passo inicial 43, por razões a que nos

dedicaremos agora.

Em primeiro lugar a inferência, que se liga à indução, ela funciona realmente nos processos intuitivos,

como estudou a Psicologia44. É quando nos deparamos com um escasso número de dados que a

inferência funciona melhor e nos tipos de personalidade mais intuitivos. Ou seja, quando ainda o

conhecimento sobre um assunto não é grande é que se torna preciso construir hipóteses por inferência.

A partir daí a inferência intuitiva deixa de ser pertinente, podendo mesmo ser rejeitada. Vejamos que

argumentos há para rejeitá-la.

Em primeiro lugar, a fraca ou vaga previsibilidade comummente apontada às ciências humanas

não obriga ao uso do método indutivo, como defendem os historicistas; e também é característica das

"antecipações de largo escopo" de que fala Popper45, antecipações que se encontram por igual na

astronomia.
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Em segundo lugar a previsibilidade existe nos estudos literários e é assegurada por mecanismos

autoreguladores do sistema, como sejam os determinados pelos géneros, os cronótopos, os temas. Os

dispositivos discursivos estudados pela retórica e úteis à poética, tal como os preceitos de "escola" e

"militância", baseiam-se também no conhecimento prático de efeitos previsíveis de usos tipificados da

palavra. Conhecimento equivalente ao que na música permite associar uma variação melódica fraca a

um sentimento de tristeza, ou um ritmo irregular ao sentimento de alegria ou, mais genericamente, a

um estado de excitação46.

Todos estes preceitos e efeitos são detectados pelo crítico na descodificação dos textos e postos

em relação directa com uma poética ou uma estética, por um lado, e, por outro lado, com uma história,

pois as categorias literárias são dinâmicas.

Mas o historicismo, apesar de não o ser em Wellek, é tendencialmente separador, caindo na

tentação de criar dicotomias falsas ou de apontar inimigos entre os vizinhos. Bateson fê-lo separando a

história da literatura da crítica e da teoria; recentemente, a impugnação da pertinência textual e da

prepotência da teoria acorda-se, mesmo quando não confessadamente, à relativização das

interpretações que se prende, não só com o deconstrucionismo, também com a valoração excessiva da

posição histórica do leitor. Estamos, aí, perante um novo tipo de historicismo, aquele que

militantemente rejeita a possibilidade de previsão "de coisas que ainda nem sequer existem (o

aparecimento de novas obras literárias)". Esta espécie nova de historicismo vem até ao presente; veja-

se um exemplo, que é o de Rui Estrada em A Leitura Da Teoria47.

A maioria destes autores nega a pertinência de estudos textuais usando como argumento o facto de

eles não terem a capacidade de prever as obras. A perspectiva que imputam aos estudos textuais é a do

indutivismo, ou seja, a de que a investigação em literatura só é verdadeira no que diz respeito aos

factos, aos livros, passados. É evidente a redução de campo: pressupõe-se que as profecias prevêem as

obras, não o funcionamento, emergência, mudança ou desaparecimento possíveis, ou os efeitos

esperados, das estratégias e recursos que as constituem. O esvaziamento "ontológico" das obras, que a
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vaga interpretacionista não põe em causa em si próprio, mesmo praticando-o ou defendendo os direitos

inalienáveis da leitura, ignora como é devedor do historicismo, sobretudo após a chamada de atenção

de Jauss para as problemáticas da recepção literária.

A marca separadora do historicismo está de resto presente nesse livro de Rui Estrada, pela

dicotomia exasperada sobre que se estriba combatendo a teoria em nome da leitura. Procurando-se,

como diz, "não cair em nenhum destes extremos" (o da indeterminação absoluta e o da absoluta

determinação das "obras literárias"), e não tomando por gratuito gosto pelo centro a frase, a conjugação

entre as várias disciplinas, não o seu isolamento, mostrar-nos-á o quanto elas são complementares e o

quanto contribuem para o equilíbrio entre a experiência da intraduzibilidade e a constatação de

recorrências, ou a identificação de técnicas eficazes o suficiente para as reconhecermos.

Rui Estrada força um pouco a nota ao falar na conflitualidade "histórica" entre leitura e teoria. É

um princípio científico básico o de que a experimentação (ou leitura) serve para que a teoria reconheça,

ao mesmo tempo, duas coisas importantes: que "não apenas a tentativa, mas o erro são necessários"48,

mas também que a disciplina científica deve planear a sua própria contradição. A leitura é, nesta

perspectiva, por natureza, a experimentação da possibilidade de contradição da teoria, e aceitamos esse

postulado na versão que dele dá o próprio ensaísta49; mas também compreendemos que, reescrevendo a

teoria, a leitura crítica devolve a esta os critérios principais e próprios da arte após a sua verificação,

numa obra ou em várias. Ou seja, complementa a teoria (melhor seria dizer: a hipótese) ao tentar

contradizê-la e ao provocar e elaborar a sua reformulação. A conjugação dos esforços disciplinares da

área é, por isso, determinante sem que tenha pretensões totalitárias, ou seja, é explicativa, mais do que

interpretativa.

A conjugação da leitura crítica, da leitura teórica e da leitura histórica acciona um método

científico aceitável como tal, mesmo no sentido contemporâneo de "ciência". Em conjunto as três

leituras estabelecem critérios, examinam-nos através de experiências textuais ou de contextualizações

experimentais, e reformulam a visão geral após a reflexão sobre os resultados de cada experiência. Os
15
trabalhos académicos são, na maioria dos casos, experiências localizadas num processo de exame de

uma hipótese, que tanto pode ser crítica, como histórica ou teórica. O conjunto das leituras age portanto

como se alguém seguisse, desse modo, um método hipotético-dedutivo (hipótese -> experiência ->

reformulação), que não vemos porque não há-de ser aplicado ao estudo da literatura.

Porém a visão tradicional da relação entre a teoria e a crítica, mesmo na versão de Rui Estrada,

aponta para discursos teóricos, discursos históricos e discursos críticos separadamente, pressupondo-se

que de um lado ficam as hipóteses ("teorias") e do outro a sua reescrita, ou a análise dos factos. A

conjugação do esforço teórico, histórico e crítico de que falamos é diferente: ela propõe-se

experimentar, pelas vantagens da sua simultaneidade, as três vertentes no mesmo discurso ou no

mesmo ensaio. O erro de muitos teóricos e ensaístas é precisamente o de pensarem que a teoria explica

a leitura50, esquecendo-se de que ela a implica.

História literária e história da literatura

Ao falarmos no historicismo, referimo-nos indistintamente à história da literatura, à história

literária e à leitura histórica. Cabe agora fazermos uma distinção entre esses três termos.

A leitura histórica não coincide por inteiro com o que se chamava história da literatura, com o que,

por exemplo para Bateson, era história da literatura.

Os campos que envolvem a leitura poético-literária definem-se por termos como psico-crítica,

socio-crítica e outros que remetem para uma sociologia da literatura, uma psicologia das relações

reguladas no triângulo autor - obra - leitor, que se podia chamar uma psicologia da literatura, uma

filosofia da literatura, etc. Neste etc entra a história da literatura, termo que devemos distinguir de uma

história literária, tal como distinguimos a filosofia literária51 da filosofia da literatura, ou uma

sociologia literária52 de uma sociologia da literatura53, ou, finalmente, a antropologia literária da

antropologia da literatura54.

Não é por acaso que as histórias da literatura são sempre acompanhadas por biografias dos
16
autores, a par ou não de uma crítica das suas obras, reservada a edições de luxo académico. É que são

histórias e, portanto, precisam de personagens. São histórias da literatura, das personagens literárias e

dos seus feitos numa dada sociedade, demarcada no calendário e no mapa.

Diferentemente, a personagem das histórias literárias é a literatura, o "processo literário". Mas o

processo literário num sentido específico, o vislumbrado por Chklovsky ao pensar os géneros e a

intertextualidade, esse é já o de uma leitura histórica da poesia no sentido que definimos acima,

dependente do estudo dos critérios e penetrada pela compreensão teórica, funcionando numa das

vertentes da experimentação das hipóteses da engenharia literária.

As explicações do leitor especializado são dadas, então, no sentido de mostrar ao leitor

generalizado como determinados traços ou critérios ali empregues sustentam umas e outras hipóteses

de leitura.

A estas três vertentes da recepção profissional da poesia há só que somar agora a quarta, a

metodológica, exemplificada pelas reflexões que acabámos de fazer.

O método

Até aqui falámos do método puxados pelas discussões acerca da história literária. Discussões em

torno de um eixo central: o de colocar a leitura, não disciplinarmente no interior do seu campo, mas em

face das ciências da vida ou das ciências exactas. O dilema sobre a cientificidade dos estudos literários

(a teoria, a crítica e a história) divide os ensaístas que se debruçaram sobre o assunto, levando uns a

integrar (inteira ou parcialmente) esses estudos no campo científico, e outros a rejeitar liminarmente

uma tal integração. Sem dúvida que o segundo grupo é hoje muito comum, o que nos leva a examiná-

lo. Mas agora falando no método em si.

O nosso ponto de partida será, naturalmente, o oposto: achamos que a leitura literária, de acordo

com as reflexões da secção anterior, é uma actividade científica. Para que as actividades de leitura e as

reflexões sobre elas tenham um carácter científico é preciso que o seu método apresente o mesmo

carácter.
17
A cientificidade do método exige que, na situação receptiva que idealizamos, existam as

condições essenciais ao processo de criação na ciência. As três condições fundamentais são: a

existência de um problema insólito; a existência de hipóteses ou antecipações de solução do problema;

e a possibilidade de experimentar essas hipóteses.

Na leitura de uma obra podemos encontrar as três condições: a exigência de originalidade conduz

à primeira; o carrilhão de hipóteses e teorias que a disciplina acumulou ao longo dos séculos sustenta a

segunda; e a publicação dos textos garante a terceira.

Julgamos ter exemplificado o funcionamento do processo com um estudo resumido no livro

Quicôla : Estudo. Fazendo uma leitura comparativa, da lírica escrita em Angola na segunda metade do

século passado com o tratado de metrificação de António Feliciano de Castilho, deparámos com

preceitos que não eram respeitados. Preceitos que eram complexos de regras, como o que determinava

que as oitavas fossem escritas assim: a estrofe dividia-se em dois períodos, o primeiro terminando

rigorosamente a meio; a rima [B] devia assentar em palavras agudas e as restantes em graves, podendo

ser esdrúxulos ou não os termos que não rimavam (versos 1 e 5). A maioria dos poetas não seguia

rigorosamente essas regras, o que fez com que, num momento inicial, não pensasse no facto; porém o

facto não jogava com o habitual seguidismo dos versejadores angolenses em relação aos ditames de

Castilho, o que me fez desconfiar de que podia haver uma outra hipótese para ler essas fugas que não as

interpretasse como "desleixo". De facto havia: na maioria dos casos a colocação do cumprimento e do

incumprimento da regra compunha simetrias as mais variadas. O passo seguinte foi o de saber se a

composição de simetrias era circunscrita a fenómenos de incumprimento de regras canónicas, ou se

elas surgiam também a partir de outras variações formais, ou técnicas. Efectivamente isso acontecia,

com a distribuição dos tipos de rima (pobre / rica; grave / aguda) e em relação a regras que podiam ser

próprias só de um dado poema. Foi necessário, então, construir uma hipótese de leitura para cada

composição, chegando-se a formulações do tipo: «se as rimas dos versos pares são agudas nas estrofes

ímpares, serão graves nas estrofes pares»; as hipóteses iam-se transformando conforme progredíamos
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na verificação, até sermos capazes de explicar as variações existentes pelas figuras que elas

compunham. Isso permitiu-nos concluir que os poetas desse tempo em Angola praticavam uma lírica

figurativa, charadística, barroca, personalizando as regras do mestre da escola ultra-romântica luso-

brasileira55. A partir do postulado inicial (haver significado no incumprimento de uma regra) chegámos

uma hipótese de leitura nova: o ultra-romantismo angolano devia ser lido como arte figurativa, barroca,

pré-concreta.

O método de que vimos falando, ao operar assim, não ignora nem desvaloriza a importância do

raciocínio analógico e metafórico.

A analogia era vista como própria de um discurso não-racional, artístico ou outro. No entanto, o

estudo da analogia integra hoje, por exemplo, as pesquisas sobre a criatividade científica e tecnológica,

aquela que gera os discursos tidos por modelos de racionalidade. Num texto destinado a estudar a

"estimulação das faculdades criadoras nos grupos de investigação pelo método sinético", W. J. J.

Gordon distingue quatro tipos de analogias. Estas analogias não são as figuras características do

"estilo" dos cientistas, mas quatro tipos de raciocínio analógico empregue pelos cientistas quando

precisam de criar hipóteses:

A analogia pessoal (em que o investigador se coloca no papel de "uma ou muitas componentes do

problema", imaginando-se «mola», «engrenagem», «molécula», «avião», etc). Esta analogia integra-se

no que a Retórica antiga chamava de personificação e não deixa de ser significativo que a Retórica e o

estudo da criatividade científica estejam tão próximos.

A analogia directa (quando o investigador transfere um conjunto de conhecimentos de uma área

para outra56, ou do estudo de um elemento para o de outro, o que levava Gordon a aconselhar a

familiaridade com as mais diversas disciplinas57).

A analogia simbólica (a substituição momentânea do objecto de estudo por uma imagem de

variáveis controladas mais facilmente).


19
A analogia fantástica (uso do devaneio para descobrir hipóteses novas).

Estes quatro tipos de analogia acompanham também o estudioso da literatura em qualquer das três

vertentes (crítica, histórica ou teórica). A analogia pessoal desde logo na medida em que o leitor

especializado se tenta colocar, ora no papel do autor, ora no papel de outro(s) leitor(es); a analogia

directa, essa, é de tal forma intensa que chegou, por vezes, a desviar a disciplina dos seus objectivos

específicos, e desembocou recentemente nas teorias sobre a inter e a transtextualidade; a analogia

simbólica sustentou, precisamente, muitas dessas leituras que nos conduziram para fora do específico

do nosso trabalho, como por exemplo as interpretações psicanalíticas das obras, equiparadas a orgãos e

aos sonhos; finalmente, as analogias fantásticas alimentam as hipóteses mais audaciosas na leitura

literária.

A integração do estudo da analogia nas considerações sobre a criatividade científica levou, nos

anos 80, Fustier a considerar a "ascese logica" a "mãe da criatividade", precisamente pelo que ela tem

de... analógico: "porque desenvolveu em nós a capacidade de apreender as semelhanças"58, facto que

terá contribuído para que Einstein dissesse que "o jogo combinatório parece ser a característica

essencial do pensamento criativo"59.

Uma analogia afortunada é a metáfora. Associada por muitos autores, e das mais diversas formas,

ao discurso lírico, ela é no entanto fundamental para estudar a criatividade científica. A tal ponto que

levou Rouquette, no seu manual sobre o assunto, a reservar um capítulo à "teoria elementar da

metáfora". Ela fornece o analogon que permite ao investigador ultrapassar o estado de incerteza pela

aceitação de uma "certeza" provisória, ou "substituída"60. Este analogon, ou representação metafórica, é

muito mais abstracto "do que as imagens físicas de que conservam as formas, as propriedades

topológicas e, sob certas condições, as distâncias"61.

A metáfora tem, segundo Rouquette, "duas funções complementares [...] no discurso científico e

técnico: uma de valor heurístico, a outra de finalidade didáctica". A componente heurística, que se
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define "pela aplicação da negação", ocupa um lugar central, visto que "assenta em primeiro lugar na

exploração da incerteza e na sua conversão em cobertura ou afastamento". A meta procurada é o

"equilíbrio ótimo entre incerteza inicial e cobertura", que faria, de acordo com Westcott, a metáfora

fecunda, aquela que "deve simultaneamente ser bastante afastada para se revelar interessante, e

suficientemente próxima para permanecer ilegível"62.

Esta definição de metáfora aparenta-se com o método científico, de que procuramos fazer um

resumo acima: tem com ele em comum o carácter insólito, que de resto às obras literárias é também

requerido; tem a situação problemática (expressa pela "incerteza inicial"); e tem a hipótese

experimentada (com base nos mais diversos ensaios para integrar o insólito na categoria da cobertura

ou na do afastamento). A constituição de uma metáfora é como a apresentação de conclusões numa

comunicação académica: numa comunicação académica, ou num relatório científico, procede-se à

reorganização do espaço teórico anterior em função da experiência desenvolvida; na metáfora dá-se,

por uma analogia inédita mas legível, a recomposição do espaço semântico anterior.

A metáfora aparenta-se ainda com o método científico pela função heurística de outros tipos

metafóricos "negativos", como a "negação" ou interrogação da "cobertura" (o que é que faz dois

objectos parecidos não poderem ser os mesmos?), ou ainda pela "negação do afastamento", mais rara

esta. Dos três tipos, o tipo ideal (aquele que é colocado "em primeiro lugar") é o que mais nos interessa,

por um segundo motivo: porque esta definição de metáfora se aparenta igualmente com a que foi dada

por Aristóteles na Poética, e parece-me até que podemos capitalizar sobre a comparação das duas,

ambas atentas à função heurística e à definição lógica da "substituição".

O caminho é, portanto, de grande exigência lógica, mas também de grande incidência sobre

analogias e contrastes que visam facilitar a emergência de novas hipóteses.

21
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36 - K. Popper, A Miséria do Historicismo, p. 34.

37 - K. Popper, A Miséria do Historicismo, p. 34.

38 - Cf. Rosalind Krauss, O Mito Da Vanguarda E Outros Mitos Modernos; Wellek, op. cit., pp. 318-

319.

39 - K. Popper, op. cit., pp. 78-79.

40 - O autor reconhece isso: "Devemos reconhecer que estamos perante um círculo lógico: o processo

histórico tem de ser julgado por valores, enquanto a própria escala de valores resulta da história" (p.

321).

41 - p. 326.

42 - Aristarchos, 2ª ed. rev. e precedida de dois estudos de Tristao de Athayde, Rio de Janeiro, H.

Antunes, 1941. , p. 117. Para ele a hipótese era "o expediente de suppôr provisoriamente coisas".

43 - K. Popper, op. cit., p. 105.

23
44 - V. Michel-Louis Rouquette, A Criatividade, Lisboa, Livros do Brasil, sd (ed. or.: Paris, PUF,

[1973]).

45 - A Miséria do Historicismo, p. 31.

46 - V. Rodrigo Sá Nogueira Saraiva, «A Música, Porta Para O Sagrado», in A Vivência Do Sagrado,

Lisboa, Huguin, 1998, p. 193.

47 - Braga ; Coimbra, Angelus Novus,1996, p. 2.

48 - Karl Popper, op. cit., p. 69.

49 - Op. cit., p. 10.

50 - Cf. Rui Estrada, op. cit., p. 11. Explicar não tem aqui, naturalmente, o sentido que demos à palavra

no nosso texto.

51 - P. ex., a que Fidelino de Figueiredo tentou em A luta pela Expressão, Lisboa, Ática, 1960.

52 - Por exemplo a do romance neo-realista no espaço lusófono.

53 - Como a de Pierre Bordieu.

54 - V. O prefácio de José Carlos Venâncio ao livro A Autobiografia Lírica De «M. António» : Uma

Estética E Uma Ética Da Crioulidade Angolana (Évora, Pendor, 1997).

55 - O que fizemos, para além daquele livro, em Notícia Da Literatura Angolana (Lisboa, IN-CM, no

prelo) e, antes, na conferência «O Barroco E As Origens Da Literatura Angolana», lida no Palácio

Fronteira, Lisboa, em 1992.

56 - Michel-Louis Rouquette, em A Criatividade, p. 116, onde resume estes tipos de Gordon, dá o

exemplo de Graham Bell, que "tomou por modelo o funcionamento do tímpano para construir o seu

telefone".

57 - Rouquette, loc. cit..

58 - M. Fustier, Pratique De La Créativité, Paris, ESF, 1985, citado por Teresa Vergani em Educação

Matemática, Lisboa, Univ. Aberta, 1993, p. 62.

59 - Citado por Teresa Vergani, op. cit., p. 63.


24
60 - Cf. op. cit., p. 126.

61 - Vignaux, op. cit., p. 231 (citação de J. F. Richard, «Introdution», Traité De Psichologie Cognitive,

II, Paris, Dunod, 1990).

62 - Rouquette, op. cit., pp. 121-122.

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