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Os cinco sexos: porque macho e fêmea não são o


bastante1
Por Anne Fausto- Sterling2

Em 1843 Levi Suydam, de vinte e três anos, morador de Salisbury,


Connecticut, pediu ao conselho local que fosse validado seu direito de votar
como um whig3 numa controvertida eleição local. O pedido levantou uma
porção de objeções do partido de oposição, por razões que devem ser raras
nos anais da democracia americana: foi dito que Suydam era mais mulher
do que homem e por isso (uns oitenta anos antes do sufrágio ser estendido
a mulheres) não poderia obter a permissão para votar. Para dar fim à
disputa, um médico, William James Barry, foi chamado para examinar
Suydam. E, provavelmente depois de encontrar um falo, o bom doutor
declarou que x possível eleitorx era homem4. Com Suydam a salvo em seu
lado, os whigs venceram a eleição por um voto de diferença.

Mas o diagnóstico de Barry mostrou-se de certa forma prematuro. Em


poucos dias ele descobriu que, apesar do falo, Suydam menstruava
regularmente e tinha uma abertura vaginal. Tanto seu físico quanto suas
predisposições mentais eram mais complexas do que a princípio se
suspeitava. Elx tinha ombros estreitos e quadris largos e sentia atração
sexual por mulheres. “As propensões femininas de Suydam, como gostar de
cores alegres, de retalhos de chita, e de compará-los e colocá-los juntos,
assim como uma aversão a – bem como uma inaptidão para – trabalhos
corporais , eram notadas por muitas pessoas”, escreveu Barry. Não está
claro se Suydam perdeu ou manteve seu direito ao voto, ou se o resultado
da eleição foi revertido.

1
Livremente traduzido por Alice Gabriel. Originalmente o texto aparece em The
Sciences March/April 1993, p.20-24.
2
Anne Fausto-Sterling é professora de Biologia e Estudos das Mulheres no
Departamento de Biologia Molecular e Bioquímica da Universidade Brown em Rhode
Island, EUA.
3
O partido Whig era um partido estadunidense operante em meados do século
dezenove. Formado em oposição às políticas do presidente Andrew Jackson e do
Partido Democrático. Tem esse nome em homenagem aos American Whigs de
1776, que lutaram pela independência do país.
4

Nota da Tradução: costuma-se usar diferentes notações para linguagem inclusiva


(ou linguagem abrangente); às vezes usa-se a “@” no lugar do “o” do masculino
genérico, ou o “x”, há quem use “i” ou “e”, que fica mais falável, ou o/a. Eu tenho
minhas preferências pessoais, mas ao longo do texto usarei o “x” para designar a
não pertença aos sexos reconhecidos socialmente – ou seja, para falar das pessoas
intersexuais. Isso porque Fausto-Sterling insiste em dizer que intersexos formam 3
novas categorias sexuais (poderíamos fazer uma notação pra cada categoria?).
Quando for o caso de desestabilizar o caráter geral do masculino, usarei a “@”, mas
só porque ela parece muito com uma letra nessa fonte.
2

A cultura ocidental é profundamente comprometida com a ideia da


existência de apenas dois sexos. Mesmo a linguagem recusa outras
possibilidades, então para escrever sobre Levi Suydam eu tenho que
inventar convenções como “elx” para denotar alguém que obviamente não
é nem macho nem fêmea ou que talvez seja os dois sexos ao mesmo
tempo. Legalmente, também, todo adulto é ou homem ou mulher, e a
diferença evidentemente não é trivial. Para Suydam ela significava o voto;
hoje ela significa estar livre ou isenta do recrutamento militar, bem como
estar sujeita de várias maneiras a uma série de leis que governam o
casamento, a família e intimidade humana. Em muitas partes dos Estados
Unidos, por exemplo, duas pessoas legalmente registradas como homens
não podem ter relações sexuais sem infringir os estatutos anti-sodomia.

Mas se o estado e sistema legal estão interessados em manter um sistema


sexual bipartido, eles estão desafiando a natureza. Porque biologicamente
falando, existem muitos graus entre fêmea e macho; e, dependendo de
como determinamos as coisas, poderíamos argumentar que nesse espectro
existem ao menos cinco sexos. E talvez até mais.

Por algum tempo investigador@s médic@s reconheceram o conceito do


corpo intersexual. Mas a literatura médica standard usa o termo intersexo
como um nome geral para os três maiores subgrupos que misturam as
características masculinas e femininas: xs chamadxs hermafroditas
verdadeiros, a que chamo de hermes, que possuem um testículo e um
ovário (gônadas, ou os receptáculos de produção de esperma e óvulos), xs
pseudo hermafroditas masculinxs ( mermes) que têm testículos e alguns
aspectos da genitália feminina, mas não ovários; e xs pseudo hermafroditas
femininxs (fermes), que tem ovários e alguns aspectos da genitália
masculina, mas lhes falta os testículos. Cada uma dessas categorias é em si
mesma complexa; por exemplo, a porcentagem de características
masculinas ou femininas pode variar enormemente entre membrxs de um
mesmo subgrupo. Além disso, a vida pessoal das pessoas em cada
subgrupo, suas necessidades especiais e os seus problemas, atrações e
repulsões permanece inexplorada pela ciência. Mas com base no que é
conhecido sobre elxs eu sugiro que os três intersexos, hermes, mermes e
fermes merecem ser considerados sexos adicionais cada qual em seu
próprio direito. Na verdade, eu ia argumentar também que o sexo é um
continuum vasto e infinitamente maleável que desafia as limitações, mesmo
que consideremos cinco categorias.

Não é surpresa que seja extremamente difícil estimar a freqüência da


intersexualidade, quem dirá a freqüência de cada um dos três sexos
adicionais: não é o tipo de informação que se fornece numa entrevista de
emprego. O psicólogo John Money da Universidade John Hopkins,
especialista no estudo de defeitos congênitos dos órgãos sexuais, sugere
que intersexos podem constituir até 4% do total de nascimentos. Como
costumo apontar para minhas/meus alun@s na Universidade Brown, num
corpo discente composto de 6.000 estudantes se essa fração realmente
3

está correta, implicaria haver 240 intersexuais no campus – certamente o


suficiente para formar uma organização estudantil minoritária.

Na realidade, porém, poucxs dessxs estudantes chegariam à universidade


em sua forma sexualmente diversa. Recentes avanços em fisiologia e
tecnologia cirúrgica permitem a@s médic@s identificar a maioria dxs
intersexuais no momento de seu nascimento.

É quase imediata a entrada dessas crianças em programas de controle


hormonal e cirúrgico para que elas possam se infiltrar silenciosamente na
sociedade como machos e fêmeas heterossexuais “normais”. Eu enfatizo
que o motivo não está de maneira alguma ligado a uma conspiração. As
metas dessa política são genuinamente humanitárias, refletindo o desejo da
comunidade médica de que essas pessoas possam se “encaixar” tanto física
como psicologicamente, entretanto, as pressuposições por trás desse desejo
– de que existem apenas dois sexos, de que a heterossexualidade é normal,
de que existe apenas um verdadeiro modelo de saúde psicológica –
permanecem praticamente sem serem examinadas.

A palavra hermafrodita vem dos nomes gregos Hermes – conhecido de


várias maneiras: como o mensageiro dos deuses, o patrono da música, o
controlador dos sonhos ou protetor dos animais – e Afrodite, a deusa do
amor sexual e da beleza. De acordo com a mitologia grega, esses dois
deuses geraram Hermafroditus, que aos quinze anos se tornou metade
macho e metade fêmea quando seu corpo se fundiu com o corpo de uma
ninfa, pela qual se apaixonou. Em algumxs verdadeirxs hermafroditas os
testículos e ovários crescem separadamente, mas bilateralmente, em
outras, eles crescem juntos, dentro do mesmo órgão, formando um
ovotéstis. Não raro, ao menos uma das gônadas funciona bastante bem,
produzindo ou células espermáticas ou óvulos, bem como níveis funcionais
de hormônios sexuais, andrógenos ou estrógenos. Apesar de na teoria umx
verdadeirx hermafrodita possa se tornar tanto mãe quanto pai de uma
criança, na prática os dutos e tubos apropriados não estão configurados de
maneira que óvulo e esperma possam se encontrar.

Em contraste com verdadeiras hermafroditas, as pseudo-hermafroditas


possuem duas gônadas do mesmo tipo juntamente com a configuração
cromossômica usual: macho (XY) ou fêmea (XX). Mas sua genitália externa
e características sexuais secundárias não correspondem a seus
cromossomos. Assim, mermes têm testículos e cromossomos XY, no entanto
têm vagina e clitóris e, na puberdade, muitas vezes desenvolvem seios.
Porém, elxs não menstruam. Fermes têm ovários, dois cromossomos X e, às
vezes, úteros, mas elxs têm a genitália externa masculina, ao menos
parcialmente. Sem a intervenção médica elxs podem desenvolver barba,
vozes graves e pênis de tamanho adulto.

Nenhum esquema de classificação poderia fazer mais do que sugerir a


variedade de anatomia sexual que pode ser encontrada na prática clínica.
Em 1969, por exemplo, dois pesquisadores franceses, Paul Guinet da Clínica
4

Endócrina de Lyon e Jacques Décourt da Clínica Endócrina de Paris,


descreveram noventa e oito casos de hermafroditismo verdadeiro – mais
uma vez: pessoas com tecido ovariano e testicular ao mesmo tempo-
unicamente de acordo com a aparência da genitália externa e dos dutos
que a acompanham. Em alguns casos, as pessoas exibiam um
desenvolvimento fortemente feminino.Tinham aberturas separadas para
uretra e vagina, uma vulva fissurada definida pelos grandes e pequenos
lábios, ou lábios vaginais, e, na puberdade, desenvolveram seios e
começaram a menstruar. Era o clitóris de tamanho avantajado e
sexualmente alerta – ameaçando crescer, na puberdade, como um pênis –
que normalmente levava essas pessoas a procurar atendimento médico.
Membrxs de um outro grupo também apresentavam seios e um tipo
corporal feminino e, além disso, menstruavam. Mas seus lábios eram
parcialmente fundidos, formando um escroto incompleto. O falo (aqui um
termo embriológico para uma estrutura que durante o desenvolvimento
usual formará um clitóris ou um pênis) tinha o comprimento entre 1,5 e 2,8
polegadas5, no entanto, essas pessoas urinavam através de uma uretra que
se abria dentro ou perto da vagina.

A forma mais freqüente de verdadeirxs hermafroditas encontradas por


Guinet e Décourt –cinqüenta e cinco por cento de sua amostragem – era de
hermafroditas com um físico mais masculino. Em tais pessoas, a uretra
corre através do falo ou perto do falo, que parece mais com um pênis do
que com clitóris. Todo e qualquer sangue menstrual sai periodicamente na
micção. Mas, apesar da aparência relativamente masculina da genitália,
seios crescem na puberdade. É possível que uma amostragem de mais
casos dxs chamadxs verdadeirxs hermafroditas (superior aos noventa e oito
casos estudados por Guinet e Décourt) revelaria ainda mais contrastes e
sutilezas. Basta dizer que as variedades são tão diversas que só é possível
saber quais as partes estão presentes e o que está conectado aonde após
cirurgia exploratória.

A origem embriológica de hermafroditas humanxs se encaixa naquilo que é


conhecido sobre desenvolvimento sexual masculino e feminino. Geralmente,
as gônadas embrionárias escolhem cedo a via sexual que seguirão:
masculina ou feminina; para o ovotéstis, porém, essa escolha é precipitada.
Da mesma forma, o falo embrionário costuma acabar como um clitóris ou
um pênis, mas a existência de estados intermediários não é nenhuma
surpresa para @ embriologista. Existem também inchaços uro-genitais no
embrião que, normalmente, ou permanecem abertos e acabam por formar
lábios vaginais ou se fundem e acabam formando um escroto. Em alguns
hermafroditas, porém, essa escolha de abrir ou fechar é ambivalente. Por
fim, todos os embriões mamíferos têm estruturas que podem tornar-se o
útero e as trompas de falópio, presente nas fêmeas, bem como estruturas
que podem se tornar parte do sistema de transportes espermático, presente
nos machos. Tipicamente, um dos conjuntos de órgãos genitais primordiais

5
3,81cm e 7,112cm, respectivamente.
5

se degenera, seja o masculino ou o feminino, e as estruturas que sobram


alcançam seu futuro sexualmente apropriado. Em hermafroditas, ambos os
conjuntos de órgãos desenvolvem-se em diferentes graus.

A intersexualidade é, em si, notícia antiga. Hermafroditas muitas vezes


aparecem em histórias sobre a origem humana. Estudios@s antig@s da
Bíblia acreditavam que Adão começou sua vida como um hermafrodita que
foi mais tarde dividido em duas pessoas - um macho e uma fêmea - depois
de cair da graça. De acordo com Platão, eram três os sexos - masculino,
feminino e hermafrodita -, mas o terceiro sexo perdeu-se com o tempo.

Os livros da lei judaica, tanto o Talmud quanto o Tosefta, listam uma série
de regras para as pessoas do sexo misto. O Tosefta proíbe expressamente
hermafroditas de herdarem os bens de seus pais (como filhas), de isolarem-
se com mulheres (como filhos) ou de se barbearem (como homens). Quando
hermafroditas menstruam devem ser isoladxs dos homens (como
mulheres); não podem servir como testemunha ou como sacerdotes (como
mulheres), mas as leis de pederastia se lhes aplicam.

Na Europa, surgiu um padrão no final da Idade Média que, num certo


sentido, permaneceu até os nossos dias: hermafroditas eram obrigadxs a
escolher um papel de gênero estabelecido e se agarrar a ele. A pena para a
transgressão era muitas vezes a morte. Assim, em 1600 a umx hermafrodita
escocesx que vivia como mulher foi enterradx vivx após engravidar a filha
de seu mestre.

Por questões de herança, legitimidade, paternidade, sucessão ao título e


elegibilidade para certas profissões, os sistemas jurídicos modernos anglo-
saxônicos requerem que todx recém-nascidx seja registradx como do sexo
masculino ou feminino. Hoje, nos EUA, a determinação do sexo é governada
por leis estaduais. O estado de Illinois permite que uma pessoa adulta mude
o sexo registrado em sua certidão de nascimento mediante um atestado
médico da realização da cirurgia apropriada. Mas, a Academia de Medicina
de Nova Iorque, por outro lado, tem tido uma opinião contrária. Apesar das
alterações cirúrgicas da genitália externa, a Academia alegou, em 1966,
que o sexo cromossômico permanece o mesmo. Por essa medida, a vontade
de uma pessoa de esconder o seu sexo original não pode prevalecer sobre o
interesse público na proteção contra fraudes.

Durante este século, a comunidade médica tem completado o que o mundo


jurídico começou – o apagamento completo de qualquer forma de sexo
encorporado6 que não corresponda a um padrão heterossexual macho-
fêmea. Ironicamente, um conhecimento mais sofisticado da complexidade
dos sistemas sexuais levou à repressão dessa mesma complexidade.

Em 1937 o urologista Hugh H. Young da Universidade John Hopkins publicou


um volume intitulado Anormalidades Genitais, Hermafroditas e Doenças
6
Nota da Tradução: Traduzo o termo “embodied” pelo neologismo
“encorporado” seguindo Eduardo Viveiros de Castro, visto que nem “encarnar”
nem mesmo “incorporar” parecem termos adequados. (VIVEIROS DE CASTRO, E.
A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.)
6

Relacionadas à Glândula Adrenal. O livro é notável pela sua erudição, visão


científica e mente aberta. Nele, Young levantou uma série de casos, rica e
cuidadosamente documentados, para demonstrar e estudar o tratamento
médico de tais "acidentes de nascimento.". Young não emitiu juízos de valor
sobre as pessoas que estudou, nem tentou coagir a iniciarem tratamento
aquelas pessoas intersexuais que recusaram essa opção. E ele demonstrou
imparcialidade invulgar ao referir-se àquelas pessoas que tiveram
experiências sexuais como homens e mulheres como "hermafroditas
praticantes."

Um dos casos mais interessantes de Young foi umx hermafrodita chamadx


Emma, que tinha crescido como uma pessoa do sexo feminino. Emma tinha
um clitóris do tamanho de um pênis e uma vagina, o que tornou possível
para elx praticar sexo heterossexual "normal" tanto com homens quanto
com mulheres. Quando adolescente Emma manteve relação sexual com
uma série de garotas que lhe atraíam profundamente, mas com a idade de
dezenove elx se casou com um homem. Infelizmente, ele proporcionava
pouco prazer sexual à Emma (embora ele não tivesse queixas) e, por isso,
durante todo esse casamento – e os casamentos subseqüentes dela – Emma
manteve casos extraconjugais com mulheres. Com certa freqüência elx
tinha sexo prazeroso com elas. Young descreve Emma como aparentando
"ser bastante contente e até mesmo feliz." Em certa ocasião, Emma contou-
lhe de seu desejo de ser um homem, coisa que Young disse ser
relativamente fácil de realizar. Mas a resposta da Emma mostrou-se
surpreendente:

Você teria que remover essa vagina? Eu não estou certa a respeito
disso, porque ela é meu ticket refeição. Se você fizer isso, eu teria de
abandonar o meu marido e começar a trabalhar, então eu acho que
vou mantê-lo e ficar como estou. Meu marido me sustenta direito, e
mesmo que eu não tenha nenhum prazer sexual com ele, eu tenho
muito prazer com minhas namoradas.

Ao mesmo tempo em que Young iluminou a intersexualidade com a luz da


razão científica, ele começou a sua supressão. Porque o seu livro é também
um tratado sobre os mais modernos métodos hormonais e cirúrgicos de
transformar uma pessoa intersexual em machos ou fêmeas. Pode ser que
Young seja diferente de seus sucessores, por julgar e controlar menos
suas/seus pacientes e suas famílias, mas, ainda assim, foi ele que forneceu
as fundações sobre as quais as práticas atuais de intervenção foram
construídas.

Em 1969, quando os médicos ingleses Christopher J. Dewhurst e Ronald R.


Gordon escreveram As Desordens Intersexuais, as aproximações médicas e
cirúrgicas à intersexualidade beiravam um estado de uniformidade rígida.
Não é surpreendente que tal endurecimento de opinião tenha acontecido na
época da mística feminina - do vôo para os subúrbios e da estrita divisão de
papéis familiares em função do sexo do pós-Segunda Guerra Mundial. Que o
consenso médico não fosse tão universal assim (ou ainda, que ele
parecesse preparado para quebrar-se a qualquer momento) pode ser
captado a partir do tom quase histérico do livro de Dewhurst e Gordon, que
contrasta nitidamente com a calma razão do trabalho pioneiro de Young.
Considere a sua descrição de umx recém-nascidx intersexual:
7

Só podemos tentar imaginar a angústia dos pais. Que um recém-


nascido tenha tal deformidade ... [afetando] uma questão tão
fundamental como o próprio sexo da criança ... é um acontecimento
trágico, que imediatamente evoca visões de uma pessoa desajustada
psicologicamente e condenada a viver para sempre na solidão e
frustração, como uma aberração sexual.

Dewhurst e Gordon advertiram que tal destino miserável seria a sina do


bebê se o caso fosse tratado indevidamente; “mas felizmente", eles
escreveram, "com o devido tratamento, as perspectivas são infinitamente
melhores do que os pobres pais - emocionalmente atordoados pelo evento -
ou mesmo qualquer pessoa com conhecimento do assunto jamais poderia
imaginar."

O pressuposto de que, sem cuidados médicos, hermafroditas estariam


condenad@s a uma vida miserável tornou-se rapidamente um dogma
científico. Mas existem poucos estudos empíricos para dar suporte a esse
pressuposto e algumas pesquisas usadas para construir um caso de
tratamento médico acabam, ao mesmo tempo dando subsídios contrários a
esse mesmo tratamento. Francies Benton, outrx dxs hermafroditas
praticantes de Young , "não tinha se preocupado com a sua condição, não
quis ser mudadx, e estava desfrutando vida". O mesmo pode ser dito de
Emma, a dona de casa oportunista. Mesmo Dewhurst e Gordon, que
insistiam sobre a importância psicológica do tratamento de pessoas
intersexuais na fase infantil, reconheceram grande sucesso em "alterar o
sexo" de pacientes mais velhxs. Eles relataram vinte casos de crianças
reclassificadas em um sexo diferente após a idade de dezoito meses, que
era considerada a idade crítica. Eles afirmaram que todas as
reclassificações foram "bem sucedidas", e então se perguntaram se um
novo registro poderia ser "recomendado mais facilmente do que [fora]
sugerido até agora."

O tratamento da intersexualidade neste século fornece um belo exemplo do


que o historiador francês Michel Foucault chamou de biopoder. Os
conhecimentos desenvolvidos em bioquímica, embriologia, endocrinologia,
psicologia e cirurgia deram aos médicos o controle sobre o sexo do corpo
humano. As múltiplas contradições neste tipo de poder requerem certo
escrutínio. Por um lado, o “tratamento” médico da intersexualidade foi
certamente desenvolvido como parte de uma tentativa de libertar as
pessoas de uma dor psicológica presumida (embora não fique evidente se a
dor é da paciente, dos pais ou do médico). E se aceitamos o princípio de que
em uma cultura divida pelo sexo, as pessoas só conseguem realizar seu
maior potencial de felicidade e de produtividade se tiverem a certeza de
pertencer a um de apenas dois sexos conhecidos, então devemos
reconhecer que a medicina moderna tem sido extremamente bem sucedida.

Por outro lado, as mesmas realizações médicas podem ser lidas não como
um progresso, mas como um modo de disciplina. Hermafroditas têm corpos
ingovernáveis. Elxs não se encaixam naturalmente em uma classificação
binária, e só algo como uma calçadeira cirúrgica pode encaixa-lxs nesse tipo
de classificação. Mas por que deveríamos nos importar com o fato de uma
"mulher" – definida como uma pessoa que tem mamas, uma vagina, um
útero e ovários e que menstrua – ter também um clitóris grande o suficiente
para penetrar a vagina de outra mulher? Porque deveríamos nos importar
8

com o fato de existirem pessoas cujo equipamento biológico lhes permite


ter relações sexuais "naturalmente" tanto com homens quanto com
mulheres? As respostas parecem residir numa necessidade cultural de
manter distinções bem marcadas entre os sexos. A sociedade dita o
controle dos corpos intersexuais porque eles borram a diferença e conectam
a grande divisão dos sexos. Na medida em que hermafroditas literalmente
incorporam ambos os sexos, elxs desafiam crenças tradicionais sobre
diferença sexual: elxs possuem a habilidade irritante de viver às vezes
como um sexo e, outras vezes, como outro, e elxs levantam o espectro da
homossexualidade.

Mas e se as coisas fossem totalmente diferentes? Imagine um mundo no


qual o mesmo conhecimento que permitiu a medicina intervir no tratamento
dos pacientes intersexuais, fosse colocado ao serviço de múltiplas
sexualidades. Imagine que os sexos fossem multiplicados para além dos
limites atualmente imagináveis. Teria de ser um mundo de partilha de
poderes. Paciente e médic@, mãe/pai e filh@s, masculino e feminino,
heterossexuais e homossexuais - todas essas oposições e outras ainda
teriam de ser dissolvidas como fonte de divisão. Surgiria uma nova ética de
tratamentos médicos, que permitiria ambigüidade em uma cultura na qual a
divisão sexual estaria superada. A missão central do tratamento médico
seria a de preservar a vida. Assim a preocupação central em relação a
hermafroditas não seria a de saber se eles podem não se conformar à
sociedade, mas a de saber se eles correm potencialmente risco de vida -
hérnias, tumores gonadais, desequilíbrio na absorsação de sais causado
pelo mau funcionamento da glândula adrenal - que muitas vezes
acompanha o desenvolvimento hermafrodita... No meu mundo ideal, a
intervenção médica para intersexuais aconteceria raramente antes da idade
da razão, o tratamento subseqüente seria um projeto de cooperação entre
médic@ e paciente e outr@s consultor@s treinad@s em questões de
multiplicidade de gêneros.

Eu não acho que a transição para a minha utopia seria suave. Sexo, mesmo
de tipo supostamente "normal" heterossexual, continua a causar enormes
ansiedades na sociedade ocidental. E seguramente uma cultura que ainda
está para aceitar - religiosamente e, em alguns estados, legalmente - a
antiga e relativamente simples realidade do amor homossexual não aceitará
facilmente a intersexualidade. Não há dúvida de que a arena mais
problemática seria, de longe, a criação de filh@s. Desde a época vitoriana,
pais e mães têm se inquietado, por vezes até ao ponto de pura negação,
sobre o fato de suas crianças serem seres sexuais.

Tudo isso e muito mais explica amplamente porque crianças intersexuais


são geralmente espremidas em uma das duas categorias sexuais
dominantes. Mas quais seriam as conseqüências psicológicas de tomar uma
rota alternativa - criar descaradamente crianças como intersexuais?
Superficialmente, esse nó parece cheio de perigo. O que, por exemplo,
aconteceria com a criança intersexual no meio da crueldade implacável do
pátio escolar? Na hora da ducha, depois da aula de ginástica, que horrores e
humilhações aguardariam x intersexual quando sua anatomia fosse exibida
em toda a sua glória não tradicional? Para começar: em qual turma de
ginástica poderia ela/e se registrar? Qual banheiro usaria? E de que maneira
mamãe e papai lhe ajudariam a atravessar o campo minado da puberdade?
9

Nos últimos trinta anos essas questões têm sido ignoradas, e a comunidade
científica tem, com notável unanimidade, evitado contemplar a via
alternativa de uma intersexualidade desempedida. Mas investigador@s
modern@s tendem a ignorar um conjunto substancial de casos, a maioria
deles compilados entre 1930 e 1960, antes da intervenção cirúrgica tornar-
se desmedida. Quase sem exceção, esses relatórios descrevem crianças
que cresceram sabendo que eram intersexuais (embora não alardeassem o
fato) e que se ajustaram à sua condição invulgar. Alguns dos estudos são
ricamente detalhados – descrevendo até mesmo as tais duchas após a aula
de ginástica (que a maioria dxs intersexuais evitava sem incidentes); dentre
eles não há caso de psicose ou suicídio.

Ainda assim, as nuances de socialização entre intersexuais clamam por uma


análise mais sofisticada. É evidente que, antes que a minha visão da
multiplicidade sexual possa ser realizada, as primeiras crianças intersexuais
e seus pais e mães terão de ser pioneir@s corajos@s que suportarão o peso
das dores de crescimento da sociedade7. Mas, a longo prazo - apesar de que
poderia demorar gerações para ser alcançado - o prêmio poderia ser uma
sociedade em que a sexualidade fosse algo a ser comemorado por suas
sutilezas, e não algo a ser temido ou ridicularizado.

7
Nota da tradução: vale notar que no inglês a expressão growing pains (de
acordo com o Novo dicionário de expressões idiomáticas americanas de Luiz Lugani
Gomes) tem o duplo sentido de “dores do crescimento” e “dificuldades e problemas
que ocorrem no início de um projeto”.

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