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do território no Brasil
Lúcia Cony Faria Cidade
Glória Maria Vargas
Sérgio Ulisses Silva Jatobá
Resumo Abstract
No quadro cíclico de crise e recuperação da In the cyclical background of crisis and recovery
economia capitalista ao longo do século XX, a of the capitalist economy throughout the
criação de um mercado mundial pressupunha 20th century, the creation of a world market
uma relativa autonomia territorial dos Estados presupposed some territorial autonomy of the
nacionais. Durante a acumulação intensiva, os national States. During intensive accumulation,
espaços nacionais tendiam a apresentar siste- national spaces tended to present hierarchical
mas urbanos hierárquicos, áreas polarizadas urban systems, polarized areas and,
e, freqüentemente, desenvolvimento desigual. frequently, unequal development. With the
Com a reestruturação da economia mundial restructuring of the world economy towards
em direção à acumulação flexível, algumas flexible accumulation, some of the regularities
das regularidades começaram a se modificar. started to change. There were consequences
Houve conseqüências sobre o desenvolvimento concerning economic development and the
econômico e sobre a dinâmica espacial de dife- spatial dynamics of different countries, such
rentes países, como a intensificação do papel as the growing role of networks. The text
das redes. O texto busca compreender em que aims to understand to what extent different
medida diferentes regimes de acumulação con- accumulation regimes condition different
dicionam diferentes formas de configuração forms of territorial configuration. The
territorial. A análise toma o cenário internacio- analysis adopts the international scenario
nal como contexto geral para processos histó- as background for historical processes in
ricos do desenvolvimento espacial brasileiro. Brazilian spatial development.
Palavras-chave: regime de acumulação; Keywords: accumulation regime;
território; região; desenvolvimento territorial; territory; region; territorial development;
desenvolvimento regional; desenvolvimento regional development; Brazilian spatial
espacial brasileiro. development.
nacional. A captura do Estado por frações se trabalha com escalas, uma periodização
do Centro-Sul,sob o discurso das desigual- no âmbito mundial, mais amplo, pode ser
dades regionais e da integração, foi muito desdobrada ou ajustada ao se tratar da
bem documentada por Chico de Oliveira escala nacional e assim sucessivamente.
(1977, pp. 75-78). Períodos mais recentes podem ser tra-
Em anos recentes, as redes territoriais tados em mais detalhe do que períod os
têm servido de base para interesses nacio- anteriores.
nais e também internacionais voltados para Considerando a necessidade de um
a consolidação de áreas produtivas em ativi- tratamento específico para os sistemas
dade e para a incorporação de novas áreas explicativos de referência, o próximo item
ao modelo dominante. Um exemplo obser- trata de formulações teóricas que servem
vado por Silva são as agroindústrias, cres- de apoio para a discussão dos processos em
centemente articuladas a redes de apoio ur- análise. Em seguida, apresentam-se aspec-
bano, redes técnicas e redes de escoamento tos essenciais para a compreensão do con-
da produção (2008). Configura-se um cená- texto mundial e suas transformações em
rio no qual forças internas e externas atuam décadas recentes, em dois períodos: a fase
sobre o Estado para garantir a implantação de acumulação intensiva e a fase de acumu
e manutenção de uma malha territorial em lação flexível. Após, trata-se dos rebati-
sintonia com os requisitos da acumulação. mentos dessas mudanças na escala Brasil e
Assim, entre as questões de reflexão estão: sua combinação com processos nacionais,
Quais as relações entre mudanças no regime por meio de uma periodização articulada 15
de acumulação e dinâmica territorial? Qual à escala mundial. As notas teóricas a se-
o papel do Estado e das políticas públicas de guir abordam, na primeira parte, os temas
desenvolvimento na configuração do territó- espaço, território e região e, na segunda,
rio brasileiro? desenvolvimento, regime de acumulação e
Um dos pressupostos deste trabalho é produção do espaço capitalista.
que o contexto socioeconômico e ambien-
tal concidiona ações públicas e privadas de
gestão do território. Os resultados dessas
ações tendem a se projetar sobre diferen-
Notas teóricas:
tes dimensões, entre as quais a organiza- dinâmica do espaço,
ção espacial. Outro pressuposto considera desenvolvimento e
que processos dominantes com gênese na configuração territorial
escala mundial, embora sem um rebati-
mento mecânico ou absoluto, tendem a se
refletir na escala nacional; essa, por sua Espaço, território e região
vez, apresentaria efeitos sobre a escala
regional e a local. Uma perspectiva com- A temática relativa ao território e à região
plementar é a análise da dinâmica tem- pode ser inicialmente referida a uma
poral, que pode ser compreendida com o conceituação do espaço mais abstrata e
auxílio da periodização.Na medidaem que abrangente. Para Santos, o espaço inclui
O resultado dessa contradição na paisagem nos recortes territoriais, dos seguintes pro-
aparece como o padrão existente de desen cessos: 1) homogeneização; 2) integração;
volvimento desigual. A tendência à diferen 3) polarização; e 4) hegemonia. O autor
ciação espacial de níveis e condições de de- acrescenta que todas as linhas de análise so-
senvolvimento teria como base histórica a cial que trataram do desenvolvimento desi-
divisão do trabalho na sociedade, que traria gual dos espaços regionais trataram desses
implícita a divisão territorial do trabalho. processos por meio de proposições teóricas
Ainda que as condições naturais tenham (Brandão, 2007, p. 70).
sido uma fundação original da divisão do O primeiro processo é o de homogenei-
trabalho,em sociedades mais desenvolvidas, zação. A homogeneização seria uma forma
essa reflete uma dinâmica social relaciona- de estabelecer requisitos básicos universais
da ao consumo produtivo e ao desenvolvi- para a valorização do capital, dessa forma
mento das forças produtivas (Smith, 1988, tornada progressivamente mais ampla. O
pp. 149 e 152-153). segundo processo é o de integração. Na vi-
Ao lado da tendência para a diferencia- são de Brandão, a integração trata da dinâ-
ção, Smith observa que existe uma tendên- mica coercitiva da concorrência, que passa
cia do capital para uma equalização. Assim, a atuar nos espaços abertos pela homoge-
ainda que o espaço geográfico se diferencie neização de forma seletiva e impositiva. O
internamente em espaços absolutos distin- terceiro processo é a polarização. O avanço
tos, em diferentes escalas, o espaço global é das forças produtivas incorre em polari-
produzido como um espaço relativo. Dessa dades, “campos de forças” distribuídas no 19
forma, a necessidade de expansão de merca- espaço de forma desigual; e centralidades,
dos pelo espaço global e, ainda, a tendência que expressam estruturas de dominação ca-
à uniformização das condições de produção racterizadas pela assimetria e pela irreversi-
e do desenvolvimento das forças produti- bilidade. O quarto processo é o de hegemo-
vas seriam fatores de uma equalização. A nia. O autor esclarece que a configuração
contradição entre a tendência à diferencia- política e a correlação de forças de um país
ção e a tendência para a equalização seria expressam cortes regionais e locais bastan-
determinante do desenvolvimento desigual. te nítidos (ibid., pp. 71-83).
Assim, a acumulação de capital cresce, por Os processos que se estabelecem no
um lado, por meio do desenvolvimento da espaço em decorrência da dinâmica da
divisão do trabalho e, por outro lado, pelo acumulação contribuem para estabelecer
nivelamento de modos de produção tradi- uma configuração territorial em contínua
cionais às condições de produção dominan- mutação. Além disso, para compreender
tes (ibid., pp. 169-170). processos espaciais é essencial incorpo-
Em visão que revisita e reconceitualiza rar uma perspectiva histórica. No caso
abordagens anteriores, Brandão propõe al- de processos que se originam na escala
guns processos-chave para a compreensão mundial e se expandem pelos espaços na-
do movimento desigual da acumulação de cionais, embora caiba evitar rebatimen-
capital no espaço. Para o autor, a análise crí- tos mecanicistas, é útil referir-se a ten-
tica necessita de uma verificação articulada, dências relativas à acumulação intensiva
das sociedades avançadas e aos mercados setor industrial, dinamizado por investimen-
emergentes que estavam sendo aos poucos tos crescentes, ultrapassou a agricultura e
incorporados ao sistema fordista de produ- tornou-se o novo motor da economia brasi-
ção e consumo de massa. leira. Diante da opção pela concentração de
Em paralelo a fortes investimentos es- renda com vistas à continuidade da acumu
tatais, a poderosa intervenção do Estado na lação, o grande crescimento econômico que
economia criava condições para a emergên- se seguiu, no entanto, contribuiu para ali-
cia de uma classe média com maior poder mentar as desigualdades.
aquisitivo, concentrando a renda em uma
parcela restrita da população, localizada geo
graficamente na Região Sudeste. Não coinci- Ações de desenvolvimento regional
dentemente, aí também estavam localizadas brasileiro até o final dos anos 1960
as principias indústrias que necessitavam de
uma mão-de-obra melhor qualificada e, con- Nessa fase, além do Plano de Metas
seqüentemente, melhor remunerada, que, (1956/1961), destacaram-se as políticas
por outro lado, também formava o mercado de expansão do modelo de acumulação es-
consumidor para os sofisticados produtos tabelecido no Centro-Sul, assinaladas por
por elas produzidos (Jatobá, 2006). Oliveira como uma forma de destruição das
economias regionais. Seria um movimento
que destrói para concentrar, enquanto se
Cenário produtivo do fordismo apropria do excedente das outras regiões 27
periférico brasileiro até o final para centralizar o capital. Assim, as políti-
dos anos 1960 cas de redução das disparidades regionais
iriam além da esfera econômica; envolve-
Os esforços de industrialização em curso riam movimentos na estrutura de poder e a
desde os anos trinta caracterizavam-se pela cooptação do Estado. Essa dinâmica estaria
substituição horizontal de importações, tam- particularmente representada no estabeleci-
bém conhecida como industrialização res- mento de órgãos como a Superintendência
tringida. A partir do Plano de Metas (1956- de Desenvolvimento do Nordeste – Sudene
1960) do governo Kubitscheck, foi iniciado (criada em 1959) (Oliveira, 1977, p. 76).
o aprofundamento do modelo por meio da Becker e Egler lembram que entre as
substituição vertical de importações, basea- estratégias de desenvolvimento regional
da na industrialização pesada. Adotando ca- adotadas pela Sudene estava o incentivo ao
racterísticas de um Estado desenvolvimen- estabelecimento, no Nordeste, de unidades
tista, as políticas públicas atuaram de forma produtivas originárias do Sudeste volta-
a promover os investimentos necessários das para a substituição de importações.
nos setores de bens de capital, bens inter- Para os autores, essas ações contribuíram
mediários e bens de consumo durável. para acentuar o rápido aumento popula-
O governo buscou atrair capitais inter- cional de regiões metropolitanas do Nor-
nacionais inseridos no sistema fordista, em deste, que acompanhou um processo tam-
particular os da indústria automobilística. O bém verificad o em metrópoles localizadas
em outras áreas do país (Becker e Egler, trinta, por uma rede dendrítica, na qual di-
1993, p. 87). ferentes núcleos de uma área se conectam
A incorporação do país ao modelo de em um centro urbano de convergência co-
acumulação intensiva transformou o perfil mum. Assim, fluxos de mercadorias vindas
da produção manufatureira nacional, pro- do interior, como produtos agrícolas ou mi-
movendo a criação de um parque industrial nerais destinados à exportação, eram enca-
até então inexistente. Para isso, foi determi- minhados para cidades litorâneas estabeleci-
nante a implantação, pelo Estado brasileiro, das como portos, que faziam a ligação com
de uma infra-estrutura de apoio à base pro- os mercados internacionais. Até o início da
dutiva, permitindo também a expansão dos década de cinqüenta, as regiões ainda eram
mercados de consumo. A estratégia consistiu relativamente isoladas, enquanto os bens aí
na expansão da malha rodoviária a regiões, produzidos tendiam a ficar circunscritos a
até então isoladas, criando condições para mercados regionais, que eram protegidos de
a circulação de mercadorias e na realização uma concorrência externa por esse mesmo
de investimentos estatais em setores-chave isolamento. De fato, apesar de a indústria
para a produção, como os de energia, mine- paulista ser, já nessa época, mais desenvol-
ração e siderurgia (Jatobá, 2006). vida e potencialmente mais competitiva do
As ações de cunho vertical estão en- que as das outras regiões, as dificuldades
tre os traços principais das políticas de de- de interação eram muito grandes devido à
senvolvimento regional da época. O Estado precariedade da malha rodoviária. Essa or-
28 brasileiro, por vezes com a participação de ganização espacial ainda relativamente equi-
instituições financeiras internacionais, bus- librada começou a se modificar nos anos
cava promover investimentos privados, em cinqüenta, com o aprofundamento da subs-
um contexto no qual se via o crescimento tituição de importações.
econômico enquanto uma resposta a ações Um dos requisitos essenciais da mudan-
estabelecidas de fora para dentro, o desen- ça no padrão de acumulação, que buscava se
volvimento exógeno. Em um contexto no articular ao fordismo, e da integração do
qual predominavam capitais originários de mercado nacional sob o domínio do Sudeste
outras regiões para as quais os lucros tam- foi a construção de infra-estrutura produti-
bém eram canalizados, processos produtivos va e a expansão das redes de circulação e
locais tendiam a gerar benefícios limitados distribuição de mercadorias pelo território
para as populações das áreas nas quais se nacional. Assim, a avançada indústria manu-
instalavam. fatureira de São Paulo foi capaz de atingir e
conquistar os mercados das outras regiões,
que não tinham condições de competição.
Efeitos do fordismo periférico Nesse cenário, o Estado, por meio das polí-
sobre a organização espacial ticas de desenvolvimento regional e de equi-
brasileira até o final dos anos 1960 pamento do território, teve um papel duplo.
Contribuiu, por um lado, para a diferen-
Estabelecida na fase colonial, a estrutura es- ciação, ao apoiar a acumulação de capitais
pacial brasileira caracterizava-se, até os anos pelas indústrias do Sudeste, por outro lado,
Nota
(1) Os autores agradecem ao parecerista anônimo por comentários que permitiram o aprimora-
mento do texto.
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Recebido em maio/2008
Aprovado em ago/2008
Resumo Abstract
Este artigo se propõe a uma abordagem crí This article provides a critical approach to
tica da diferenciação espacial no âmbito da space differentiation in the scope of social
dinâmica social, especialmente sob a condi dynamics, especially under today’s capitalist
ção capitalista na contemporaneidade, quan condition, when the contradictory and
do a dimensão contraditória e desigual de unequal dimension of capitalism’s territorial
realização territorial do capitalismo, sob os accomplishment, under the impacts of
impactos da globalização acelerada, se re accelerated globalization, is more exacerbated.
vela mais recrudescida e, desse modo, rea In this way, the article stimulates studies about
vivando os estudos em torno da região e da regions and regionalization.
regionalização. Keywords: globalization; space
Palavras-chave: globalização; diferen differentiation; region; regionalization;
ciação espacial; região; regionalização; terri territory.
tório.
propiciados pela força do capital, pelo ar nada ou quase nada parece ser efetivamen
cabouço científico-tecnológico e pela infor te controlável. Essa complexidade, melhor
mação (e os discursos a ela relacionados) dizer totalidade fragmentária e contradito
entabulam condições que ampliam subs riamente autodestrutiva, impõe dificuldades
tancialmente as possibilidades operacionais e limites quanto à identificação, demarcação
dos sujeitos, bem como ações de caráter e qualificação de suas expressões constituti
decisório, conquanto também produzam in vas, representando grandes desafios às di
seguranças ao plano da vida pessoal. Daí se versas áreas do conhecimento, à ação do Es
compreender certa busca por identidades de tado e às práticas dos movimentos sociais.
caráter mais estabilizador, arena em que o Por isso, urge o desenvolvimento de um
regionalismo pode ser encarado como uma conhecimento relacional capaz de apreen
condição a operar compensações diante dos der criticamente a complexidade geográfica
constrangimentos provocados pela globali contemporânea. Considerando-se que esta
zação, sugerindo uma vinculação quase que se apresenta como um mosaico de situações
orgânica entre regionalismo e identidade. em movimento, esse conhecimento requer,
Sob o intenso desenvolvimento das assim, a operacionalização concomitante da
forças produtivas, alcançado principalmente sucessão e da simultaneidade dos eventos,
nas últimas décadas, a formação desse efeti pari passu a valorização do sujeito de conhe
vo caleidoscópio territorial engendra, entre cimento e suas práticas espacializadoras no
outras expressões, a conformação de perife mundo sensível.
rias pobres no âmbito de países avançados, 39
assim como manifestações espaciais moder
nas e desenvolvidas na chamada periferia
do sistema. Essa situação se revela como A geografia como
uma explícita manifestação da redefinição um conhecimento
da questão social sob o capitalismo contem genuinamente relacional
porâneo e de seus mecanismos de coesão e
fragmentação, que são engendrados no e
para além dos processos de produção, por Estando a Geografia devotada fundamen
tanto não se reduzindo a eles. E aqui não talmente ao estudo das relações entre a
seria recomendável e nem prudente forçar sociedade, na sua diversidade, e a nature
interpretações que pretendam certa organi za – progressivamente convertida em natu
zação esquemática desse cenário, e menos reza humanizada pelo trabalho socialmente
ainda mediante a utilização de categorias realizado –, vislumbra-se a efetiva unicida
tradicionais num universo social em que a de da Geografia, isto é, a inseparabilidade
extensão de poder de seus atores hegemôni homem/natureza. Inseparabilidade que, no
cos torna-se de difícil aferição, mal admitin entanto, expõe uma condição humana cons
do uma avaliação arrazoada por meios esta trangida e reduzida pela degradação do tra
tísticos. Nessa arena do capitalismo global, balho (e da natureza) sob os fundamentos
os mecanismos de controle se mostram cada e a lógica de uma economia de exploração
vez mais limitados e impotentes, em que ou ainda de uma capitalização ampliada e
extenuante, com decorrências devastadoras mas também como o seu reflexo e condição.
e intoleráveis, conquanto acirre diferenças Nesse sentido,
e racismos de toda ordem, cujas especifici
dades locais e regionais não podem ser elu [...] o espaço deve ser considerado co
didas pela análise. Trata-se de uma condi mo um conjunto indissociável de que
ção que só ideologicamente implica alguma participam, de um lado, certo arranjo
positividade, mas que logo se dissolve ante de objetos geográficos, objetos natu
as pulsações do mundo sensível, a revelar rais e objetos sociais, e, de outro, a vida
uma estrutura social na qual o humano está que os preenche e os anima, ou seja, a
profundamente subordinado à lógica da va sociedade em movimento. O conteúdo
lorização do capital, relegando a vida a uma (da sociedade) não é independente da
condição inferior e secundária. forma (os objetos geográficos), e cada
A inseparabilidade aludida – permeada forma encerra uma fração do conteúdo.
por contradições – sugere a concepção de O espaço, por conseguinte, é isto: um
uma Geografia que articule e integre os ter conjunto de formas contendo cada qual
mos dessa relação, sem, contudo, homoge frações da sociedade em movimento. As
neizá-la e tão pouco fetichizá-la, pois cons formas, pois, têm um papel na realiza
ção social. (Santos, 1988, pp. 26-27)
tituída essencialmente como relação social e
não como relação entre coisas. Desse modo,
a idéia de natureza não é aqui reduzida a um As relações sociais, que também se re
40 recurso estritamente, como pressupunha velam como relações com a natureza, com
a ciência moderna (o que, de certo modo, portam mediações, podendo-se destacar a
sancionou ao capitalismo a sua apropriação do trabalho, pela qual historicamente o ho
e exploração generalizada), ou mesmo na mem viabiliza a sua reprodução social no e
tureza enquanto campo de possibilidades às pelo espaço. À medida que o trabalho social
intervenções antrópicas. Trata-se essencial mente realizado se objetiva espacialmente,
mente de uma concepção de natureza que isso equivaleria a dizer que o homem reali
comporta o sentido do trabalho alienado za a sua existência e reprodução social como
conquanto se revele como condição e limite um processo permanente e diversificado de
à realização da vida. produção do espaço, no qual as sociedades
Com o advento da modernidade, as re inscrevem as suas marcas, desigualdades e
lações entre os homens e destes com a na diferenças. Dito de outra forma, é a realiza
tureza conformam-se progressivamente sob ção do tempo no e pelo espaço, movimento
o capitalismo e sua dinâmica evolutiva. Daí a permanente que responde por sua formação
importância de nos debruçarmos sobre a na e organização. Dado que as possibilidades
tureza, as especificidades e o sentido da(s) de articulação e integração entre suas va
geografia(s) do capitalismo e suas implica riáveis são múltiplas, haja vista as possibi
ções na sociedade e na existência, portanto lidades proporcionadas pelo arcabouço téc
do espaço e de suas múltipas expressões. nico-científico atual,tal movimentosignifica
Vale dizer que o espaço não se apresen o redimensionamento do espaço geográfi
ta apenas como um produto da sociedade, co diferenciado e, portanto, dos próprios
acompanhe a história das civilizações desde senvolvidas, porém articuladas entre si. Eis
os seus primórdios,com o desenvolvimento o aspecto da combinação da lei do desenvol
das forças produtivas e a dinâmica da socie vimento desigual e combinado, combinação
dade de classes sob o capitalismo, o que se que não se refere apenas à coexistência num
verá é que o processo de regionalização ad mesmo território de modos de vida diferen
quire maior complexidade e diversidade, que tes, mas também à conectividade espacial
se expressa por um maior retalhamento do entre os territórios (Correa, 1986, p. 45).
espaço humanizado em inúmeras porções Assim, a lógica contraditória do desenvol
regionais. Essas inúmeras porções com vimento do modo de produção capitalista
põem mosaicos socioespaciais cada vez mais projeta-se espacialmente pela construção/
integrados por redes, sugerindo que não há destruição de formações territoriais em di
como se considerar a região como entidade ferentes partes do mundo, levando também
autônoma, principalmente nas condições da frações de uma mesma formação territorial
globalização atual. Portanto, é com o modo a conhecerem processos desiguais de valori
de produção capitalista que o processo de zação, produção e reprodução do capital, po
regionalização se torna mais contundente, dendo daí resultar a conformação de regiões
dimensionando-se pela simultaneidade dos (Oliveira, 1999, p. 75).
processos de diferenciação e integração na Em contrapartida ao plano da globali
esteira da crescente mundialização da eco zação econômica desenvolve-se uma ampla
nomia a partir do século XV. O movimento e efetiva segmentação espacial da cadeia
44 de unificação que historicamente ela engen produtiva, deflagrando a especialização fun
dra consubstancia-se, também, como um cional dos lugares, o que implica o desen
“movimento de diversificação, que consagra volvimento das redes a fim de assegurar o
o princípio da unidade e diversidade na His funcionamento do sistema. Esse movimento
tória” (Santos, 1986, pp. 16-17). entabula um novo localismo “globalizado”,
qual seja:
Se o espaço se torna uno para atender
às necessidades de uma produção glo [...] um localismo sistematizado e ra
balizada, as regiões aparecem como as cionalizado que visa absorver as merca
distintas versões da mundialização. Esta dorias ao produzir e reproduzir consu
não garante a homogeneidade, mas, ao midores. [...] É preciso agora acelerar
contrário, instiga diferenças, reforça- a rotatividade e não a implantação, e o
as e até mesmo depende delas. Quanto capital está, portanto, produzindo he
mais os lugares se mundializam, mais terogeneidade, transformando lugares
se tornam singulares e específicos, isto em mercadorias. (Ibid., p. 240)
é, únicos. (Ibid., pp. 46-47)
Vale dizer que a interdependência eco
Assim, sob a lógica do capital, os meca nômica não se dá, verdadeiramente, de for
nismos de diferenciação de áreas tornam-se ma homogênea, mas por etapas ou níveis di
mais evidentes e perceptíveis, precipitando ferenciados, o que suscita uma abordagem de
a formação de regiões desigualmente de caráter multidimensional a fim de apreender
Diante disso, pode-se afirmar que, sob portanto, de suas variadas expressões. Entre
o capitalismo e a lógica do capital, processos os geógrafos, o conceito de região comporta
de formação de regiões em escalas variadas – uma pluralidade de significados e acepções
ainda que instáveis e mutantes – continuarão que derivam dessas matrizes de pensamen
a ter o seu curso, de modo a impulsionar o to, trazendo certas dificuldades e variações
ressurgimento e a reconstrução de regiões de ordem conceitual e operacional. Essa
e áreas diferenciadas – envolvendo diversas polissemia em torno do conceito de região
formas de aglomeração –, dado que a espa confere à análise espacial um horizonte de
cialização diferencial lhe é inerente. possibilidades, daí a sua riqueza para a pes
quisa e para a reflexão acadêmica. Lembran
do que a reflexão sobre o conceito de região
passa, necessariamente, pela discussão das
Região e regionalização noções de espaço e de tempo, do método
e da escala; escala aqui compreendida como
A relação entre região e regionalização tem relação complexa de variáveis que embasam
sido fonte de debates acalorados, de polê os recortes territoriais.
micas e controvérsias, tanto na geografia Essa reflexão implica o reconhecimento,
como em áreas afins. A começar pelo fato já bastante difundido, de que as novas con
de que não há consenso quanto ao significa dições do mundo atual desnuda insuficiên
do de região, categoria que expõe sentidos cias e limites de abordagem da região e da
46 variados, conquanto a região seja corren regionalização em matrizes tradicionais, ao
temente utilizada com variadas conotações. mesmo passo que revoga a idéia simplista e
Não raro, a região se reveste de forte cará equivocada de fim da região, concebida co
ter ideológico, no sentido de produzir misti mo decorrência de uma suposta homogenei
ficações geográficas, podendo operar como zação deflagrada pela globalização. Acerca
um instrumento de manipulação política. disso, nos diz Santos:
Malgrado a noção de região exista des
de a Antiguidade, comparecendo em diver [...] na mesma vertente pós-moderna,
sos domínios do conhecimento humano para que fala de fim do território, e de não
além da Geografia e da própria ciência – co lugar, inclui-se, também, a negação da
mo bem atesta o seu uso no âmbito do sen idéia de região, quando, exatamente,
so comum como referência de localização e nenhum subespaço do Planeta pode es
extensão –, evidencia-se, entretanto, que a capar ao processo conjunto de globaliza
forma de abordagem e apreensão da região, ção e fragmentação, isto é, individuali
bem como dos processos que lhe dão ori zação e regionalização. (1996, p. 196)
gem, estão condicionados pelas correntes ou
escolas de pensamento geográfico historica Portanto, ao contrário de uma supos
mente constituídas. Assim, o que caracteriza ta homogeneização e suplantação do espaço
cada “escola” são seus fundamentos teóricos pelo tempo, idéia central do conceito de des
e metodológicos, “escolas” que representam territorialização, o que se constata é o cres
modos de apreender as realidades espaciais, cimento de expressões locais e regionais.
Notas
* Esta produção se vincula ao projeto autônomo de pesquisa Território e sociedade no ho-
rizonte de uma geografia libertária: percursos de uma epistemologia do desejo, que ora
desenvolvo junto ao Departamento de Artes e Humanidades da Universidade Federal de
Viçosa.
(1) O filósofo Henri Lefebvre é categórico ao assinalar que “no capitalismo, a base econômica
comanda. O econômico domina. As estruturas e superestruturas organizam as relações de
produção (o que em nada exclui os atrasos, os distanciamentos e as disparidades). Os pró-
prios conflitos se devem às relações de produção. Apesar de haver nessa sociedade uma
coerência (sem a qual ela cairia em pedaços, ou melhor, sem a qual ela não poderia ter-
se formado), apesar da coesão interna, sem chegar a suprimir as contradições, conseguir
atenuá-las, protelar os efeitos, há ‘modo de produção’ e mesmo ‘sistema’. A riqueza das
sociedades ‘nas quais reina o modo de produção capitalista’ se anuncia como uma imensa
acumulação de mercadorias” (1999, p. 112, grifo nosso; os trechos e as expressões entre
aspas simples são citações de Marx, extraídos por Lefebvre d’O capital). Anthony Giddens,
por sua vez, relaciona a proeminência do econômico mais especificamente ao processo
de inovação tecnológica. Argumenta acerca disso que, em virtude de o empreendimento
capitalista apresentar uma “natureza fortemente competitiva e expansionista, [...] a inova-
ção tecnológica tende a ser constante e difusa” e que, dessa forma, “dadas as altas taxas de
inovação na esfera econômica, os relacionamentos econômicos têm considerável influên-
cia sobre outras instituições” (1991, p. 62, grifo nosso).
(2) Sobre essa questão em específico, Harvey (1992) refere-se ao esgotamento do fordismo-
53
keynesianismo e ao advento de um novo paradigma do capitalismo, que ele desig-
na de “acumul ação flexível”, movimento que compreende como uma “transição” de
paradigmas.
(3) De acordo com Lefebvre (1999, pp. 135-136, grifo do autor), “esse ‘mundo da mercadoria’
tem sua lógica, sua linguagem, que o discurso teórico encontra e ‘compreende’ (dissipan-
do conseqüentemente suas ilusões). Tendo sua coerência interna, esse mundo quer espon-
taneamente (automaticamente) se desenvolver sem limites; e pode fazê-lo. Ele se estende
ao mundo inteiro; é o mercado mundial. Tudo se vende e se compra, se avalia em dinhei-
ro. Todas as funções e estruturas por ele engendradas entram nesse mundo e sustentam-no.
No entanto, esse mundo não chega a se fechar. Sua coerência tem limites; suas pretensões
decepcionarão aqueles que apostam na troca e no valor de troca como absoluto. Com
efeito, uma mercadoria escapa ao mundo da mercadoria: o trabalho, ou antes, o tempo
de trabalho do trabalhador (proletário). Ele vende seu tempo de trabalho e continua, em
princípio, livre; mesmo se crê ter vendido seu trabalho e sua pessoa, ele dispõe de direitos,
de capacidades, de poderes que minam a dominação absoluta do mundo da mercadoria
sobre o mundo inteiro. Por essa brecha podem entrar os ‘valores’ repelidos, o valor de uso,
as relações de livre associação etc. Não é uma brecha ocasional; é mais e melhor; a con-
tradição se instala no coração da coesão do capitalismo”.
(4) Segundo Sandra Lencioni, os movimentos regionalistas “[...] emergem como força política
no momento em que o processo de globalização procura açambarcar e homogeneizar
todo o espaço. O movimento regionalista nega o nacional, podendo se fechar em sua par-
ticularidade, e se coloca com um sentido totalmente inverso de outrora, quando afirmar
a identidade regional era afirmar a identidade nacional, pois a construção do sentido de
pertencer a uma região integrada num todo harmônico, sob a direção do Estado, afirmava
o sentimento nacionalista. Sinais de outros tempos: o regionalismo nega o nacional e a
identidade nacional num contexto em que o nacional, que se dilui no bojo do processo de
globalização, nega o regional” (1999, pp. 199-200).
(5) Por situação, Pierre George compreende como “[...] uma soma de dados adquiridos, de re-
lações organizadas em ordem sucessiva. Algumas dessas relações continuam a ser funcio-
nais, integradas na evolução atual, enquanto que outras pertencem a uma herança que se
degrada progressivamente e deixam, ao contrário, de ser funcionais”. Esclarece, ainda, que
“[...] a situação se define necessariamente em primeiro lugar por limites espaciais, mesmo
quando a influência do espaço local ou regional se combina com efeitos de uma plura-
lidade espacial. Mas a evolução da situação pode comportar deslocamentos dos limites
regionais ou locais, expansão ou retração do referido espaço. As heranças de situações an-
teriores não correspondem necessariamente aos mesmos dados espaciais da situação atual
e, desembocando em outra situação a curto prazo, pode-se ser conduzido a reconsiderar a
posição espacial” (1968, p. 22).
(6) A idéia de apropriação está referenciada aos diversos modos pelos quais o espaço é ocupa-
do, tanto por formas materiais (objetos) como por atividades inscritas territorialmente (que
configuram os usos da terra), e ainda por indivíduos e segmentos sociais variados. Quando
54 a apropriação do espaço se realiza de forma “sistematizada e institucionalizada” ela “po-
de envolver a produção de formas territorialmente determinadas de solidariedade social
(Harvey,1992, p. 202).
(8) Pensa-se aqui principalmente em ações de caráter coletivo e que envolvam na sua origem e
trajetória uma reflexão pública.
(9) Por democracia direta compreende-se uma situação (ou regime político) em que as de-
mandas e os problemas sociais não apresentam como mediação única o Estado e seus
representantes, mas, para além deles, outros agentes da sociedade civil, a exemplo de
movimentos sociais diversos que atuam numa perspectiva mais independente e de caráter
autogestionário, de modo que os indivíduos atuem mais diretamente nos processos decisó-
rios, o que modernamente implicaria o emprego do recurso da delegação e da descentra-
lização político-territorial.
(10) Obviamente, não estamos considerando como parte integrante desses movimentos ONGs
que atuam pautadas pela lógica do mercado, muitas delas, aliás, representando interesses
de empresas transnacionais.
Referências
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Recebido em maio/2008
Aprovado em ago/2008
56
Abstract
Resumo Changes in the political and territorial
As mudanças na reconfiguração política e ter- reconfiguration of the cities, associated
ritorial das cidades, associadas à crise fiscal with the fiscal crisis of the State, have had
do Estado, tiveram impactos negativos sobre negative impacts on the Brazilian Federative
a organização Federativa brasileira. No início organization. At the beginning of the present
da presente década, a questão da reforma do decade, the matter of State reform opens a
Estado abre um amplo debate político cen- wide political debate focusing on the expansion
trado no aprofundamento do projeto de des- of the decentralization project and on the
centralização e na necessidade de cooperação need of cooperation among local states and
entre os entes locais, estaduais e nacionais. the national sphere. This process results
Esse processo resulta na institucionalização in the institutionalization by the Federal
pelo Governo Federal da Lei de Consórcios Government of the Law of Public Consortiums
Públicos (Lei n. 11.107/05). 1 Este artigo re- (Law n. 11.107/05).1 This article aims at a
flete sobre modelos e escalas territoriais de reflection on territorial scales and models of
gestão e governança consorciada, a partir dos shared management and governance, based
aportes da experiência de Coopération Inter- on the contribution of the French experience
communale, (Cooperação Intermunicipal) na of Coopération Intercommunale (intercity
França.2 Discute os avanços e limites do mo- cooperation).2 It also discusses the progress
delo francês avaliando sua contribuição para o and limitations of the French model, evaluating
futuro da cooperação territorial consorciada its contribution to the future of shared
no Brasil. territorial cooperation in Brazil.
Palavras-chave: consórcios; gestão; terri- Keywords: consortiums; management;
tório; intercomunal; comunidades de aglome- territories; intercommunal; communities
ração; comunidades urbanas; comunidades de of agglomeration; urban communities;
comunas. communities of communes.
Um outro fator destacado pelo relatório tada para o Departamento com um au-
e também constatado nos estudos da Datar, mento médio de 6,1% por ano (3,6%
trata-se do agravamento das desigualdades em francos constantes) portando este
regionais que configuram a organização es- tipo de despesas a 53 bilhões de fran-
pacial e econômica do país. Nos anos noven- cos em 1997 contra 26 bilhões em
ta, as grandes tendências do desenvolvimen- 1985.21
to desigual persistiram: as regiões do sudes-
te restaram como principais beneficiárias do Ainda é importante salientar que essa
crescimento econômico, enquanto aquelas progressão foi feita em uma conjuntura de
integrantes do norte e do nordeste – mais equilíbrio financeiro em um contexto de boa
populosas – foram submetidas ao êxodo in- gestão que permitiu às coletividades locais
dustrial, e o centro da França tem continua- realizar uma política apreciável de redução
do a perder população. As regiões do oeste de encargos (Mauroy, 2000, p. 17).
e sudoeste têm se beneficiado de uma nova Não resta dúvida que essa revolução
dinâmica, fazendo parte das regiões onde o intermunicipal trará ao país melhores con-
crescimento tem sido mais forte, juntamen- dições de competir com o desenvolvimen-
te com a do leste. to no espaço europeu que se organiza em
Um breve balanço do processo de des- torno das grandes metrópoles, centros e
centralização, de seu peso na redistribuição regiões dinâmicas. Do mesmo modo, esse
do poder e na aproximação das decisões do movimento permitirá o estabelecimento de
lugar de sua aplicação, as realizações e as novas relações entre municípios e as inter- 67
transformações que ela trouxe à vida dos communalité (intermunicipalidades), pro-
cidadãos permite avaliar alguns de seus re- piciando um novo papel na paisagem ins-
sultados. titucional aos municípios, departamentos e
A descentralização se traduziu, em par- regiões.
ticular, pelo desenvolvimento considerável Portanto, longe de ser uma simples
dos equipamentos locais. Segundo dados do resposta aos problemas da gestão pública
relatório, local, a cooperação intermunicipal se ins-
creve em um debate mais amplo, que revisa
[...] no ano de 1998 o esforço de in-
mais largamente a organização territorial e
vestimento das coletividades territoriais a vida política francesa.
representou, fora o reembolso da dí- Nessa direção, devem ser questionados
vida, mais de 180 bilhões de francos, alguns estrangulamentos que se evidenciam,
correspondendo a cerca de três quartos na atual conjuntura, com respeito ao futuro
do investimento público nacional. As cenário da organização territorial e política
despesas de investimento das Regiões francesa e que podem servir de reflexão na
conheceram um aumento médio anual adoção de futuras práticas de consorciamen-
de 11,3% (9,1% francos constantes) to público no Brasil.
entre 1986 e 1997 passando de 11 bi- Aspectos a destacar são as questões da
lhões em 1987 a 37 bilhões de francos competência institucional e da legitimidade
em 1997. A mesma evolução é consta- democrática.
O problema das competências de cada cada vez mais complexa. Os três níveis tra-
ente territorial constituiu objeto de longa dicionais – a região, o departamento e o
análise por parte da comissão que referencia município – foram acrescidos de novas es-
o modo de convivência entre as esferas de truturas locais, a exemplo dos sindicatos
decisão: com vocação única ou múltipla e dos dife-
rentes modos de cooperação intermunicipal,
[...] se passou, em vinte anos, de um além do surgimento de diversos tipos de
princípio de descentralização por blo- contratos– de villes e ou de pays, instâncias
cos de competências, a um sistema de habilitadas a contratualizar com o Estado.
parceria no qual todo mundo faz tudo, Essa complexidade expressa a inadaptação
notadamente no domínio social. (Ibid.) do tamanho dos diferentes níveis e o custo
econômico que é gerado ante o grande nú-
As razões atribuídas são de três ordens: mero de estruturas.
Por sua vez, as coletividades territo-
[...] A clareza da escolha de 1983 não riais não se constituem nos únicos atores da
era sem dúvida que aparente. Daí a ori- descentralização e da vida local. Organismos
gem de muitas das imbricações existen- sociais, estabelecimentos públicos, associa-
tes. Um segundo elemento de dificulda- ções encarregadas de missões dos serviços
de reside na generalização de uma pro- públicos vêm ampliar a armadura institu-
ximidade contratual, em especial entre cional do serviço público local, que se torna
68 o Estado e as coletividades. Enfim, um cada vez mais difuso à compreensão do ci-
terceiro fator de complexidade resulta dadão e usuário.
das extensões de competências da parte Um outro elemento que dificulta a arti-
dos serviços do Estado. (Ibid.) culação entre os diversos níveis são os prin-
cípios de autonomia constitucional de cada
A situação é igualmente contrastante um deles, que determina que uma coletivi-
no que concerne às competências desiguais. dade não pode se sobrepor hierarquicamen-
De um lado, os distritos ou as comunidades te a outra.
fortemente integradas do ponto de vista das Esses princípios, no entanto, não impe-
missões e da tributação e, de outro, grupa- dem que sejam buscadas formas de diálogo
mentos que se caracterizam por um défi- para o exercício de competências partilhadas
cit de atribuições. Alguns eleitos são então entre as diversas coletividades de níveis e
obrigados a buscar financiamentos para as vocações diferentes. Nesses aspectos, o re-
despesas de seu município. A cooperação latório destaca:
é para eles um meio de captar dotações
ou subvenções do Estado, da região ou da [...] a ausência de uma estrutura de coo
União Européia ou do departamento. peração “vertical” que venha a permitir
Outro elemento trata-se da multiplici- a reunião de coletividades de diferentes
dade dos níveis e a ausência de coordenação. níveis. Isso se acompanha de um déficit
O modelo institucional de descentralização de diálogo entre as coletividades, da au-
francês tem sido pautado por uma estrutura sência de uma articulação das políticas
que podem conduzir a dupla utilização como taxa profissional de zona ou de aglo-
ou mesmo a incoerências e contradi- meração. Tarefas de gestão são confiadas a
ções. (Comission pour l’Avenir, 2000) distritos ou a comunidades e certos sindica-
tos se lançam à cooperação intermunicipal
Ausência de uma visão estratégica clara através de projetos de desenvolvimento.
por parte do Estado também é frisada pelo A adesão de um município a diversos
relatório: estabelecimentos de cooperação é a regra.
Ela é o resultado de diversas preocupações
[...] o Estado não tem senão que, me- e estratégias dos eleitos, visando evitar a
diocremente, tirado proveito da descen- formação de Estabelecimentos muito pos-
tralização. A ausência de estratégias e santes. As superposições de competências,
as hesitações marcam o lado onde ele a delegação de uma mesma competência
exerce localmente competências. Raras comunal a muitos EPCI, o exercício por um
são as políticas públicas que têm sido município de uma competência oficialmente
explicitamente redefinidas em função delegada a um grupamento, o exercício de
da descentralização. Em particular a competências que não lhe foram delegadas,
política de aménagement du territoire o caráter vago, complexo e confuso da re-
(ordenamento do território) não tem partição de atribuições entre grupamen-
sido redefinida na ótica de uma divisão tos e municípios-membros não são raros e
de competência entre o Estado e as re- excepcionais.
giões”. (Ibid.) Para aumentar ainda mais a confusão, 69
alguns EPCI aderem a outros Estabeleci-
Esse fato conduz a uma falta de clareza mentos Públicos de Cooperação Intermuni-
quanto às responsabilidades induzindo ne- cipal e, como os grupamentos existentes são
cessariamente a conflitos de competências e seguidamente de tamanho insuficiente, se
impedindo o bom andamento das ações, o vê emergir novas formas de cooperação em
que se traduz em uma organização comple- Estabelecimentos Públicos de Cooperação
xa e opaca. Intermunicipal que relevam a cooperação in-
Os cidadãos e muitos eleitos se perdem formal, como no caso das associações.
nas multiplicações dos tipos de grupamentos Do lado jurídico, os estatutos legais
(sindicatos, distritos, comunidades urbanas, existentes se prestam mal à constituição de
de municípios ou de cidades, para falar nas intermunicipalidades (estabelecimentos in-
principais, deixando-se de lado a cooperação termunicipais) fortes, sem mesmo invocar a
informal que opera por vias as mais diver- possibilidade de instituições supracomunais.
sas). Eles compreendem mal o que as dife- O quadro do estabelecimento público que
rencia. As comunidades urbanas ou de mu- foi tomado de maneira programática parece
nicípios ou mesmo certos distritos dispõem mal adaptado e será mais e mais inadaptado
de uma tributação própria de tipo adicional. à medida do desenvolvimento de missões de
As comunidades de cidades e certos distri- cooperação intermunicipal e do aumento em
tos, comunidades urbanas ou de municípios pujança de uma intermunicipalidade de pro-
beneficiam-se de uma tributação específica jeto. A constituição de grupamentos dotados
de competências diversas e dispersas é pou- tação nos órgãos deliberativos são ocupadas
co compatível com o princípio da especifici- de forma majoritária pelos eleitos. Tal é ca-
dade que caracteriza a doutrina dos estabe- so dos conselhos municipais, dos conselhos
lecimentos públicos. A evolução institucional das comunidades urbanas, dos conselhos de
tem conduzido a que esses estabelecimentos quartiers (bairros), etc., e dos cargos de di-
públicos elevem o imposto como das coleti- reção política da administração.
vidades territoriais. Certos grupamentos de Um exemplo concreto é o da compo-
cooperação são, em realidade, coletividades sição dos conselhos de bairros, instâncias
territoriais em potencial (Le Saout, 1998). consideradas de maior proximidade com o
A questão da legitimidade democrática, cidadão nas quais estão previstas a partici-
sobretudo, dos mecanismos de democra- pação de “personalidades representativas”
cia representativa, ultrapassa, por si só, o dos habitantes e das associações, onde os
debate da descentralização do Estado e da representantes são designados pelos maires,
reorganização territorial. Em primeiro lu- tendo os conselheiros municipais assento nos
gar, pode-se questionar em que medida a conselhos de quartiers , e sendo o mesmo
democracia representativa ainda se constitui presidido pelo eleito adjunto encarregado do
na forma mais adequada de expressão dos bairro. Assim, a designação de personalida-
anseios da sociedade em um contexto mun- des do bairro e de representantes associati-
dial onde se fazem presentes uma infinida- vos não significa que os demais setores da
de de redes de atores sociais e econômicos? população sejam ou se sintam representados
70 Em segundo, se, através dos mecanismos da e mobilizados a participar.
democracia representativa, torna-se possível Além disso, a presença dos conselhos
hoje fazer frente aos problemas da exclusão de bairros, por si só, não representa um
decorrentes da fragmentação social derivada projeto de reforçamento da cidadania de
do modelo de acumulação do capital, pós- base, mesmo considerando que estes criem
fordista e flexível, sem que se leve em conta melhores condições para gestão urbana do
a participação direta da sociedade? território da cidade e que possibilitem aos
É evidente, no caso da França, a enor- eleitos um maior domínio sobre os proble-
me expressão que têm os representantes mas e a compatibilização dos serviços com
eleitos na definição da agenda pública e no as necessidades do orçamento. A ausência
controle sobre os mecanismos de regulação da participação direta do cidadão no que
da sociedade, mesmo considerando a ainda concerne aos seus interesses mais diretos e
forte presença dos sindicatos e das orga- os vínculos que se estabelecem entre eleitos,
nizações sociais. O Estado na França resta população ou entre estes e os representan-
profundamente imbricado, tanto em nível tes associativos tendem a favorecer a pre-
legal quanto institucional, pela presença do sença de laços clientelistas.
controle dos partidos e de seus eleitos. Isso Levando em conta que é através do con-
ainda é mais verdadeiro quando se observam trole decisório desses canais que se procede
as instâncias de controle político nas esferas à definição do ideário de governo e das polí-
do poder local (o município, a comunidade ticas públicas voltadas para as áreas urbanas,
urbana, etc.), onde as funções de represen- a questão a colocar é como incitar grupos
Notas
(1) A Lei n° 11.107, de 6 de abril de 2005, está a tratar das normas gerais de contratação de
consórcios públicos.
73
(2) Coopération Intercommunale (Cooperação Intermunicipal) concerne a associação entre vá-
rios municípios.
(3) Sancionada pelo presidente Lula a lei que norteia a associação de municípios, Estados e
a União para a realização da gestão dos serviços públicos de interesse comum. A Lei n°
11.107, de 6 de abril de 2005, está a tratar das normas gerais de contratação de consórcios
públicos, trazendo ainda profundas alterações na lei de licitações.
(6) Fiscalité Propre (Tributação Própria percebida pelos municípios). Association des Maires de
France (2000).
(7) Segundo Arretche (2004, p. 22), “no ano de 2002, de um total de 5.560 municípios existen-
tes, 5.537 haviam assumido a gestão parcial ou integral dos serviços de saúde”.
(8) O Grupo de Trabalho Interministerial – GTI foi instituído por meio da Portaria n. 1.391, de
28 de agosto de 2003. O grupo se fundamentou na opinião de especialistas de referência
local e regional, internacionais sobre o tema.
(9) O parágrafo 1º, inciso II, do art. 6º da Lei define que o consórcio público com personalidade
jurídica de direito público integra a administração indireta de todos os entes da Federação
consorciada. Enquanto o parágrafo 2º define que, no caso de ser revestir de personalidade
jurídica de direito privado, o consórcio público observará as normas de direito público no
que concerne à realização de licitação, celebração de contratos, prestação de contas e
admissão de pessoal.
(17) Taxe Professionnel Unique (taxa profissional única): tributo municipal percebido sobre as
empresas, profissionais liberais e assimilados; representa a metade da fiscalidade comunal
direta e varia segundo regiões. Le Saout (1998).
(18) Lei n. 99-586 de 12 de julho de 1999, Lei Chevènement (deputado autor do projeto).
(20) M. Pierre Mauroy foi antigo primeiro-ministro, senador, ex-prefeito da cidade de Lille e
presidente da Comunidade Urbana de Lille.
(22) Além dos conselhos municipais e estaduais (de Saúde, de Educação, da Criança e do Ado-
lescente, etc.), regidos constitucionalmente, se evidenciam os orçamentos participativos,
as conferências, fóruns, comissões câmaras temáticas etc.
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cios_Porto_Alegre_WladimirRibeiro.pdf>. Acesso em: 18 ago 2006.
Recebido em maio/2008
Aprovado em ago/2008
Fonte: http://www.ign.fr 77
c A comunidade urbana serve de quadro para cooperação intermunicipal entre as grandes aglomerações.
c É caracterizada pelas aglomerações com mais de 500.000 habitantes.
c Inclui alguns dos principais centros urbanos da França metropolitana, à exceção de Paris.
Fonte: http://www.marseille-provence.com/
78
Fonte: http://www.agglo-larochelle.fr/
c As comunidades de aglomeração são categorias jurídicas voltadas às cidades médias, cuja criação é reser-
vada às zonas urbanas.
c Só pode ser criada sob condições de um mínimo de população de 50.000 habitantes, comportando a
existência de um município centro que agrupe acima de 15.000 habitantes. Esta exigência não se aplica aos
municípios-sede dos departamentos.
c São espaços onde o tamanho permite definir políticas da aglomeração nos domínios dos setores estruturantes,
como transportes, urbanismo e habitação.
c As comunidades de aglomeração devem exercer competências, obrigatórias ou opcionais, cujo conteúdo
preciso é definido pela lei, a menos que ela não dependa de uma decisão sobre seu interesse comunitário.
79
Fonte: http://www.dgcl.interieur.gouv.fr/
Resumo
O artigo analisa as relações entre os espaços Abstract
regionais e a cidade, tendo como ponto de par- The present paper analyzes the relations
tida a idéia de que os processos espaciais res- between regional spaces and the city,
ponsáveis pela integração de cidades e regiões supported by the notion that spatial processes
demandaram, nos últimos anos, a busca de no- responsible for the integration of cities and
vos conceitos, como o de “cidade-região”. No regions have demanded the emergence of
primeiro momento, analisamos a questão da es- new concepts in recent years, such as the
cala de análise como problema-chave, mas que concept of “city-region”. Firstly, we focus
deve estar diretamente relacionado à noção de on the question of scale analysis as a key
ação. No segundo momento, a reflexão voltou- problem which must be directly related to
se para o processo de integração entre cidades the notion of action. Secondly, we turn to the
e regiões, culminando com uma curta reflexão integration process between cities and regions
sobre o papel das cidades-médias. Em seguida, and subsequently provide a brief discussion on
elaboramos uma reflexão sobre o conceito de the role played by medium-sized cities. This
“cidade-região”, alertando para a matriz polí- is followed by an analysis of the concept of
tica do conceito, assim como para algumas de “city-region”, highlighting its political matrix
suas imprecisões conceituais. Com isso, termi- as well as some conceptual inaccuracies. We
namos o artigo levantando preocupações sobre conclude this paper by stating our concerns
a adoção de conceitos que reforçam, em muitos about the adoption of concepts which often
casos, determinadas hierarquias espaciais. reinforce certain spatial hierarchies.
Palavras-chave: cidade; região; cidade- Keywords: city; region; city-region; political;
região;política; escala. scale.
De resto, o que é uma “região ganhadora”? Uma região que se afirma (do pon-
to de vista dos empregos, das riquezas, da arte de viver) pela sua própria ac-
tividade ou uma região que vive à custa das que perderam até mesmo de uma
parte de seus próprios habitantes? Será a hierarquia das regiões a constatação
de um êxito desigual (porventura provisório) ou a causa das vantagens de que
desfrutam as primeiras, que seriam então os centros de uma periferia?
Se admitimos, em qualquer que seja a e dos recursos, por isso é relacional. E es-
latitude, falar em espaço urbano-regional é sa ação poder ser traduzida no movimento
porque a resposta às questões colocadas é pendular de milhares de pessoas, evidência
positiva. Vejamos o exemplo do mercado de incontestável da integração dos espaços
trabalho. A oferta de emprego em Goiânia, urbano-regionais ou mesmo da ação das fir-
por exemplo, é determinada por um conjun- mas e corporações. A ação também é colo-
to de fatores, dentre os quais a concentra- cada em relevo nas interpretações acadêmi-
ção de serviços, comércio, indústrias, fator cas que procuram classificar e hierarquizar
estimulado pela sua condição de capital. É as diversas formas espaciais, a exemplo das
através da oferta de emprego, serviços e inúmeras tipologias de cidades existentes.
bens de consumo duráveis e não duráveis Essa ação também é produto dos interes-
que Goiânia se relaciona com os demais mu- ses governamentais, que muitas vezes se
nicípios de sua região. Essa oferta atinge encontram presos aos recortes territoriais
de diferentes maneiras o espaço urbano de administrativos. Assim, quando pensamos
Goiânia e o espaço urbano dos demais muni- em escala, estamos no referindo à escala de
cípios que compõem a Região Metropolitana ação, o que implica dizer que seu limite cor-
de Goiânia. Em Goiânia, a oferta de empre- responde ao limites das ações dos diversos
go interfere, entre outros pontos, na eco- atores sociais no espaço urbano-regional.3
nomia da cidade, gerando renda e tributos
que podem ser revertidos para políticas de
infra-estrutura urbana, moradia, programas 83
sociais, custeio da máquina governamental
A cidade e a região:
e pagamento do funcionalismo. Já para os reconhecer processos
demais municípios, a oferta de emprego em
Goiânia estimula o deslocamento diário de Para compreender os laços entre as cidades
pessoas e a conseqüente drenagem de ren- e as regiões, é preciso considerar a relação
da para a capital, já que os gastos diários entre a sociedade e o território, atentando,
dos trabalhadores, bem como parte dos im- especialmente, para o processo de urbaniza-
postos dos empregadores são recolhidos na ção. Ao partir desse pressuposto, podem-se
base territorial da capital.2 Nesse caso, o estabelecer diferenças entre o processo de
emprego da terminologia urbano-regional é constituição de um dado território e a im-
plenamente justificável. portância das cidades, tal qual já fez Santos
Não se trata, pois, de hierarquizar as (1982, 1996). No Brasil, em 2000, exis-
escalas, mas de ter a clareza de que são um tiam 5.507 municípios e um número equi-
ponto de partida para o reconhecimento de valente de cidades. A diferenciação entrees-
processos sociais materializados no espaço ses municípios vai muito além da toponímia.
urbano-regional. Na discussão sobre a esca- Em 2000, na região Norte, a média de área
la, o que esta em questão é a ação. Essa ação dos municípios foi de 8.582,02 km2, sendo
não é casual. Ao contrário, por isso Raffes- que, no Amazonas, estado com maior área
tin (1993) fala da ação como programa. Es- proporcional dos municípios, a média foi
sa ação influencia a distribuiçãodas pessoas de 25.334,60 km2. Já na região Sudeste,
a média de área dos municípios, no mesmo Deve-se lembrar, ainda, que apenas um
ano, foi de 554,92 km2 e, no Centro-Oeste, critério arbitrário como o volume po-
3.601,72 km2 (IBGE, 2000b). Em relação pulacional pode implicar consideráveis
à população, considerando o mesmo ano, modificações durante um dado período
as diferenças se invertem, já que as regiões de tempo, haja vista a freqüência relati-
Sudeste e Sul são igualmente as mais popu- vamente alta com que as cidades podem
losas e as mais fragmentadas. A simples cor- ascender ou descender na hierarquia do
relação entre área, população e o número tamanho demográfico. Este é o caso,
de municípios dá idéia da complexidade dos especialmente, das cidades médias, pois
recortes municipais e regionais brasileiros e muitas vezes elas possuem os requisitos
dos desafios políticos e interpretativos. para a criação e desenvolvimento de pó-
A análise dessas diferenças são deter- los tecnológicos e também se mostram
como alternativa a excessiva concentra-
minantes para a compreensão das relações
ção industrial das regiões metropolita-
entre as cidades e as regiões. Imperatriz,
nas, fatores que normalmente atraem a
no Maranhão, com população em 2007 de
população.
229.671, é um exemplo típico. Sua área de
abrangência é muito mais elástica do que os
seus 1.368 km2 (IBGE, 2007). Essa cidade Ainda podemos destacar dois pontos.
exerce influência na região do Bico do Pa- A questão da densidade do território, o
pagaio, assim como no Sul do Maranhão. A que significa que uma determinada cidade,
84 oferta de emprego, a pujança do setor ata- independentemente do número de habitan-
cadista, a concentração de serviços ligados tes, pode ter maior capilaridade regional
à saúde e educação, além do suporte às ati- que outras, de maior tamanho populacional.
vidades agrícolas dos municípios da região, Outra questão é a associação, nos termos
tornam essa cidade um típico pólo regional. uma política territorial, da cidade média às
Mas essa não é apenas uma realidade do Sul políticas de intervenção regional ligadas aos
do Maranhão, uma vez que ocorrem proces- tradicionais pólos de desenvolvimento, cuja
sos semelhantes em vários estados, a exem- origem remonta à política francesa de amé-
plo de Goiás, Minas Gerais, Pará, Piauí, nagement du territoire.4
Ceará, entre tantos outros. Cidades como A partir dos pontos levantados, aparece
Imperatriz se enquadram, do ponto de vista uma questão interessante. Tradicionalmen-
demográfico, em um hiato existente entre te, tanto na compreensão acadêmica quanto
os ambientes tipicamente metropolitanos e nas políticas governamentais, foi destinada
uma imensidão de cidades pequenas, cuja maior atenção aos arranjos metropolitanos,
população é inferior a 20.000 habitantes. o que pode ser comprovado pela revisão do
Assim, as denominadas cidades médias, que percurso histórico das regiões metropolita-
no primeiro momento foram definidas pe- nas brasileiras. Nesse caso, o destaque não
lo critério demográfico, começam a exigir se dava pela abrangência territorial, mas
novas formas de interpretação que incluam, pela concentração demográfica, uma vez
especialmente, o espaço regional. Amorin que essas regiões sempre abrigaram por-
Filho e Rigotti (2002, p. 10) destacam: ção significativa da população brasileira,
por exemplo, um vasto movimento no e isso serve para diferentes formações re-
emprego chamado “setor de serviços”, gionais, especialmente porque a integração
bem como conjuntos industriais com- econômica tornou os problemas (degrada-
pletamente novos em regiões até en- ção ambiental, falta de saneamento básico,
tão subdesenvolvidas (tais como “Ter- desemprego, carência de infra-estrutura ur-
ceira Itália”, Flandes, os vários vales e bana, etc.) mais visíveis. É o fato político,
gargantas do silício, para não falar da a necessidade de reconhecer/estimular res-
vasta profusão de atividades dos países postas para além da escala municipal, que
recém-industrializados). justificaria, teoricamente, falar em “cidade-
região”. Seguindo esse raciocínio, Scott et
O que Harvey (1996) e outros estu- al. (2001) enxergam um mundo pontilhado
diosos manifestam é a territorialização das de “cidades-regiões-globais”, o que não pa-
transformações contemporâneas em espa- rece facilmente empiricizável, já que na lis-
ços específicos que são, via de regra, adje- ta dessas felizes cidades (a maioria coincide
tivados de regiões. Esse ponto de partida com ambientes metropolitanos) não encon-
pode ser averiguado de diferentes formas tramos referências aos arranjos políticos e
em Harvey (1996), Scott et al. (2001), nem mesmo pistas sobre a coesão entre os
Friedmann (1997), Benko e Lipietz (1994). atores regionais, o que torna muito abstra-
Os processos descritos por Harvey (1996) ta a avaliação da capacidade de resposta aos
ocorrem em diferentes formações regionais, desafios regionais e globais. Na verdade, há
86 como a européia e a norte-americana e tam- uma dificuldade em visualizar tanto os desa-
bém com diferentes conteúdos, sejam me- fios quanto os atores. Nesse sentido, salvo o
tropolitanos, foco do estudo de Scott et al. aspecto político-ideológico, a mesma crítica
(2001) ou envolvendo núcleos urbanos me- feita a Ohmae (1996), sobre a naturalização
nores, como na Terceira Itália.6 Mas a ques- e protagonismo da “região-ator”, também
tão que permeia a reflexão não passa por cabe a Scott et al. (2001).7
apenas reconhecer a existência de processos Tanto na análise da literatura quanto
econômicos que integram cidades e regiões. no debate sobre as políticas governamen-
Agnew (2000, p. 106) coloca a questão da tais, os argumentos sobre a existência das
seguinte forma: “cidades-regiões” parecem basear-se em dois
pontos principais: 1) a abertura ao merca-
A questão é que essas regiões raramen- do global tornou mais frágeis as estruturas
te coincidem com as regiões político- locais e regionais, o que, em alguns casos,
institucionais. Portanto, há um déficit coincide com mudanças na base produtiva,
político na capacidade das cidades-re- com impacto direto na oferta de emprego;
giões administrarem seus negócios. O 2) de posse desse diagnóstico e baseado na
Estado ainda controla a maior parte das idéia de reestruturação, caberá aos atores
alavancas das políticas e planos de ação. locais-regionais (o regional é uma forma de
dizer que os problemas da reestruturação
O foco do debate sobre as “cidades- atingem mais que uma cidade) reunir for-
regiões” passa a ser, desse modo, político ças para superar os problemas. Não se trata
Notas
(1) Para uma discussão aprofundada sobre o espaço intra-urbano, consultar Villaça (1998).
(2) A oferta de emprego em uma determinada região também interfere na dinâmica do mercado
imobiliário, seja por meio da valorização do mercado de locação, especialmente nas áreas
onde existe concentração de serviços, seja por meio da oferta de novas áreas residenciais. 89
A proximidade de certas regiões de Goiânia, por exemplo, pode determinar o valor de
comercialização dos lotes, especialmente quando estes atendem à demanda solvável da
capital.
(3) A definição de ator de Markusen (2005, p. 58) parece bem útil: “Defino atores como institui-
ções que funcionam como agentes decisórios, empreendedores que decidem estabelecer
ou criar firmas em determinados locais e trabalhadores que tomam a decisão de migrar.
(...) Outros atores são, também, importantes – entidades de caráter não lucrativo, coopera-
tivas, grupos comunitários, associações profissionais, organizações religiosas, indivíduos e,
acima de tudo, o Estado”.
(4) A determinação de políticas para correção, na escala nacional, dos “desníveis regionais”,
foi acompanhada do aprimoramento das teorias regionais. Sobre esse assunto, consultar
Andrade (1987).
(5) O interesse pelo estudo das cidades médias, em diferentes perspectivas metodológicas,
aumentou bastante nos últimos anos. Um bom exemplo do potencial desses estudos é en-
contrado em Spósito, Spósito e Sobarzo (2006).
(6) A chamada Terceira Itália, localizada no nordeste e norte daquele país, é tida como uma
das regiões mais prósperas da Itália. O que chama a atenção dos estudiosos é o fato de es-
sa região, considerada deprimida até o segundo quartel do século XX, ter conseguido ala-
vancar-se via modernização dos setores tradicionais como vestuário (confecções), móveis,
calçados, curtumes, tecidos, entre outros, organizados por pequenas e médias empresas
familiares, com estrutura flexível e cooperação setorial, via, por exemplo, consórcios para
pesquisa e qualificação de mão-de-obra.
(7) Na verdade, os referidos autores relacionam esse processo a um novo regionalismo, algo
que, considerando as características do regionalismo, especialmente em relação ao Estado
nacional, também não encontra evidências facilmente empiricizáveis. “A partir da década
de 1970, no entanto, um novo regionalismo começou a emergir e se sobrepor firmemente
a este regionalismo devolutivo mais antigo. O novo regionalismo não é tanto um efeito
de iniciativas emanadas do governo central, mas uma resposta direta a tensões e pressões
movidos pela emergência da cidade-região como ator importante na economia mundial”.
Ver Scott et all (2001, p. 18).
(8) Algumas políticas regionais contemporâneas partem da idéia de que é necessário construir
coesões para lidar com os mais variados problemas. Uma boa reflexão sobre essas políti-
cas em diferentes regiões brasileiras é encontrada em Cruz (2005) e Araújo (2000).
Referências
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Debates. São Paulo, n. 41.
Recebido em maio/2008
Aprovado em ago/2008
Resumen Abstract
En el marco del objetivo de ordenación terri- Considering the main goals of spatial planning,
torial, el concepto de gobernabilidad se viene the concept of governability has become a
destacando como el elemento de soporte y critical element for institutional balance and
equilibrio institucional para lograr “políticas support, in order to promote “sustainable
sostenibles”, que cumplan los requisitos de policies” that will result in environmental,
mejora medioambiental, social y económica, a social and economic improvements in the long
largo plazo. Pero ¿en que consiste esta nueva term. However, what are the main concepts
“modalidad de gobierno”? ¿Qué parámetros underlying this new form of government?
pueden delimitar la gobernabilidad del terri- What parameters can define spatial
torio, en particular de las grandes aglomera- governability, particularly in large metropolitan
ciones metropolitanas, que mezclan distintos agglomerations, which mix different levels
niveles de decisión? El presente texto es una of decision? This paper is a contribution to
contribución para discutir estos temas y propo- the discussion of these issues, and proposes
ne seis líneas de actuación – mejorar el gobier- six lines of action – improvement in the
no y la ordenación de regiones metropolitanas governability and management of metropolitan
es trabajar sobre los retos de competencias y regions means working on the trends of the
marco jurídico, de recursos humanos, económi- legal aspects, of technological, economic and
cos y tecnológicos, de democracia y liderazgo, human resources, leadership and democracy,
de participación y capital social, de estrategia social capital and public participation, spatial
territorial y de colaboración para la implanta- strategy and cooperation in the development
ción de proyectos. of urban projects.
Palabras clave: gobernabilidad territorial; Keywords: spatial governability; metropolitan
gobernabilidad metropolitana; región metropo- governability; metropolitan region; spatial
litana; estrategia territorial; ordenación territo- strategy; spatial planning; metropolitan
rial; planeamiento metropolitano. planning.
países, pero ya en 1991 los gobiernos se que por su lado al Greater London le podrá
han decidido a construir un puente rodo- corresponder París junto a toda la primera
ferroviario entre sus territorios continen- corona de la Región Ile-de-France (7,2 y 6,3
tales, para fortalecer el desarrollo conjunto millones de habitantes respectivamente) (Fi-
de las ciudades y su conexión internacional, gura 1). Lo específico de Londres es que su
ya que el puente permite la accesibilidad di- ámbito geográfico configura en simultáneo
recta al nuevo aeropuerto de Copenhagen. una región y un grande municipio, aunque
A través de esta estrategia común en infra- su carácter es sobretodo metropolitano, ya
estructuras de transportes, los dos países que por cierto la atracción urbana de la capi-
fomentan una política de cooperación am- tal se extiende hacia las regiones vecinas de
pliada a la ordenación territorial de toda South East y East of England, en el sur del
la región, que tantas veces resulta difícil Reino Unido.
dentro de un solo país.2 Del lado danés, las La cooperación para el desarrollo de
reformas de los ámbitos territoriales de la Oresund y la autoridad del Gran Londres
administración pública pueden ser también son casos muy particulares, pero represen-
un ejemplo para otros casos. La extinción tan dos esfuerzos de buena gobernabilidad
de 14 condados dará lugar a solamente 5 territorial. Volviendo a este tema, importa
regiones, bien así como los actuales 273 clarificar de qué hablamos entonces, cuan-
municipios irán bajan a 99 – los de menos do empleamos la idea de un nuevo modo de
de 20 mil habitantes tendrán que unirse gobernar.
a vecinos, siendo esta también una opción La literatura urbanística ha tomado el 95
para los de más de 20 mil. Las regiones concepto de gobernabilidad del campo de las
perderán entonces competencias de plani- ciencias sociales (Kooiman, 1993) y lo ha
ficación, a favor del Estado central y de la definido como un punto de equilibrio para
nueva administración local. la implantación de los objetivos de equidad,
El caso de Londres es también especial, competitividad y sostenibilidad (Fernández
dada la dimensión metropolitana de la en- Güell, 2005).3 Un territorio metropolitano,
tidad de gobierno de la ciudad, el Greater que tiene una elevada complejidad en cuan-
London Authority (GLA), cuyo Presidente to a las necesidades, será pues gobernable
es electo directamente para competencias cuando se mantengan las disfuncionalidades
generales como planeamiento, transportes, bajo control, mientras se producen acciones
medioambiente, seguridad, cultura y salud. colectivas capaces de resolver problemas y
Al contrario de la mayoría de las ciudades abordar el desarrollo, en el sentido de las
europeas, en que la capital es administrati- direcciones deseadas (Lefèvre, 2005). De
vamente un solo municipio, Londres tiene hecho, es la demanda de mayor participa-
33 distritos, que se pueden considerar como ción de los agentes sociales y empresariales
entidades de gestión local. Si lo analizamos (organizaciones no gubernamentales, aso-
en comparación con París, vemos que la po- ciaciones públicas-privadas) la que indica un
blación de los 13 distritos centrales (Inner claro cambio de paradigma en los procesos
London) está próxima del municipio capital de toma de decisión, en consecuencia del au-
(2,8 y 2,2 millones de habitantes), siendo mento del poder de la información.
96
Recursos humanos
económicos y Democracia
tecnológicos y
liderazgo
Competências
y Participación
marco jurídico y
capital social
98
Colaboración para
la implantación de Estrategia
proyectos territorial
vertical, las competencias se reparten aún con valor jurídico, por la simplificación legal
horizontalmente en sectores concurrentes, en códigos de urbanismo más integrados y
como por ejemplo los de infra-estructuras, objetivos, por una descentralización de com-
transportes, medioambiente, turismo, salud, petencias siempre que se justifique y por la
vivienda y educación, que muchas veces pro- mayor demanda de participación cívica en la
ponen objetivos contradictorios entre sí – lo toma de decisiones (Oliveira, 2004).
que a uno favorece, a otro perjudica.
Los principales instrumentos para la
ordenación metropolitana son sin duda los
planes territoriales, que a escala urbana sue-
Recursos humanos,
len tener poder vinculante, de regulación económicos y tecnológicos
sobre los usos y formas admisibles de ocu-
pación del suelo, lo que es común en países Mismo considerando su importancia, mayor
europeos, 4 bien así como la existencia de o menor según los casos, la verdad es que la
planes de escala superior, supra-municipal, definición de competencias y las eventuales
metropolitana y regional, estos de carácter reformas del marco jurídico no son más de
integrado o estratégico, que dan las pautas que un parámetro a condicionar la gober-
para el desarrollo de los recursos y activi- nabilidad territorial de las grandes regiones
dades. Pero el mismo territorio puede ser urbanas. Desde luego se coloca siempre la
aún parcialmente objeto de planes especiales cuestión paralela de que recursos se pueden
de la administración central, necesarios para aplicar en los diferentes niveles e institucio- 99
la protección de paisajes culturales y áreas nes. En este contexto, hablar de recursos
vulnerables o ecológicas, o interesados por no es únicamente colocar el problema en
ejemplo únicamente en uno de los sectores el campo de las finanzas públicas, porque
arriba mencionados, lo que seguramente habrá que mirar igualmente a las dimensio-
complica el acuerdo de prioridades. nes humanas y tecnológicas de los recursos,
En un marco jurídico particularmente que se gestionan en el sentido de mejorar
complejo como el territorial, no solamente la gobernabilidad y la ordenación de estos
por la coordinación que exige, consideran- territorios.
do los varios ámbitos de competencias, sino El capital humano está presente en el
porque tampoco responde al desarrollo de discurso político y oficial, pero la realidad
procesos económicos de las empresas, las es que la inversión en recursos humanos
reformas legales tienden a corregir tardía- queda casi siempre muy por debajo del ni-
mente los problemas diagnosticados, cuando vel necesario, mismo sabiendose de que es
lo que deberían de hacer sería anticiparlos, un elemento crítico para la evolución social
ya que las situaciones que van a aparecer y económica de los territorios. En particular
mañana no serán las mismas de hoy. en la administración pública, lo que dificulta
Algunas de las tendencias comunes en también la mayor capacidad de gobernar es
Europa para solucionar los conflictos de la tradicional inercia en pasar información
competencias en la ordenación del territo- de un departamento a otro. Al revés de un
rio, pasan por el repliegue del planeamiento funcionamiento en vertical, los organismos
estatales precisan sobretodo de apostar por social y legitimidad política. Según nos con-
el cambio de información en horizontal, es firma Christian Lefèvre (2005), el “sentido
decir, desarrollar los procesos no solamen- de pertenencia ha permanecido en las mu-
te en el ámbito de cada área gubernamental nicipalidades o en unidades de gobierno tra-
pero sobretodo entre distintos sectores. dicional existentes, porque la identidad es
En cualquier caso, recursos técnicos un producto de la historia y el tiempo. En
de coordinación supra-municipal parecen verdad, los ordenamientos metropolitanos,
indispensables, para asegurar la coherencia sean supra-municipales o inter-municipales,
de la estrategia territorial. En ese sentido, son recientes y como tal no pueden tener
el apoyo de instrumentos tecnológicos e una densidad o consistencia histórica simi-
informáticos es una herramienta en la cual lar, como las viejas instituciones políticas.”
la gobernabilidad debe seguir trabajando, Además, los aparatos técnicos y administra-
porquetambién ahí se plantean serios retos: tivos descentralizados del Estado no están
la seguridad de la información, el tiempo organizados territorialmente en ámbitos
que es necesario para validarla, la equidad metropolitanos y en algunos casos tampoco
en su acceso, el cruce de datos estadísticos el gobierno regional es elegido democrática-
y mayortrabajo intergubernamental en red, mente por los ciudadanos.
por poner algunos ejemplos. El voto popular es una condición im-
Sobre los recursos económicos se tra- portante para construir la legitimidad de un
ta un poco de lo mismo, porque para los gobierno metropolitano. Esto se puede ha-
100 ciudadanos lo que importa es reconocer los cer de una forma directa para elección de
efectos, deseablemente positivos, que ha un Presidente, o indirecta, a través del voto
producido la inversión pública y no tanto el para una asamblea, que después designará
hecho de confirmar de que departamento o y pasa a controlar las políticas del órgano
nivel administrativo salió la dotación finan- ejecutivo, como suele ocurrir en la mayoría
ciera. En realidad, para el balance de cos- de los Estados y municipios europeos. Pero
tes y beneficios, si cuentan los resultados de mismo la elección puede no ser suficiente en
los proyectos, como veremos más adelante. términos de legitimidad, si le falta la respon-
La experiencia muestra que los problemas sabilidad de dar cuentas de los resultados de
urbanos y territoriales no se resuelven con la acción de gobierno, que se justifica por su
mucho dinero en cima, al contrario, medidas lado con el aumento de competencias a ese
de gran éxito han resultado de esfuerzos lo- nivel metropolitano, lo que obviamente no
cales sin grandes medios disponibles. será también fácil de conseguir, por la re-
sistencia conservadora de la Administración
Central y de los alcaldes de los distintos mu-
nicipios vecinos.
Democracia y liderazgo Con este vínculo a la construcción de
la democracia metropolitana se completa
Otro de los problemas más relevantes pa- la primera parte de los parámetros de go-
ra la gobernabilidad metropolitana es que bernabilidad territorial, más relacionada
su escala de actuación carece de identidad con el contexto institucional. La formación
Rui Florentino
Arquitecto. Professor de Urbanismo da Faculdade de Engenharia da Universidade Católica
Portuguesa (Lisboa, Portugal).
rflorentino@fe.lisboa.ucp.pt
Notas
(1) Investigación que el autor tiene en curso, para los casos de Madrid, Barcelona, Paris y
Lisboa.
(3) Según la definición de Jan Kooiman, “una sociedad es gobernable cuando no hay mucha 105
diferencia entre las necesidades (problemas) y las capacidades (soluciones).” Fernández
Güell añade que “la buena gobernabilidad es el resultado de sumar la acción de gobierno,
la involucración de agentes socioeconómicos y la participación ciudadana.”
(4) A excepción del Reino Unido, donde mismo los planes municipales tienen un carácter de
referencia u orientación, más abierto a la posibilidad de negociación.
(5) Livingstone fue el último presidente de la Greater London Council, la anterior entidad me-
tropolitana, que el gobierno Thatcher abolió en 1986. En 2000, en la primera elección
para el GLA, Ken Livingstone ha vuelto a ganar, siendo entonces elegido como indepen-
diente, ya que el Partido Laborista había apoyado otro candidato.
(6) Fernández Güell (2007) se está aquí refiriendo, en concreto, a la metodología de planificación
estratégica de ciudades.
Referencias
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HALL, P. (1988). The city of enterprise. Cities of tomorrow. Oxford, Blackwell Publishing.
Recebido em maio/2008
Aprovado em ago/2008
Resumo Abstract
O artigo aborda os modelos de ordenamento This article focuses on the disputing planning
territorial em confronto no processo de metro- models in the metropolization process
polização da região de Lisboa. Um, a partir do occurring in the Lisbon region. One of them,
planeamento municipal, formaliza a cidade alar- within the municipal planning structure,
gada. Outro, concebido à escala regional, apos- embodies the enlarged city. The other one,
ta na cidade compacta. A execução do modelo outlined on a regional scale, rather gambles
extensivo conduziu a uma estrutura de cidade on the compact city model. Implementing the
distendida. Esta ocupação, objecto de críticas, extensive model has led to a stretched-out city.
permanece activa, bem como os factores que This occupation model remains a reference
a induzem, o que justifica as reticências sobre to local authorities as well as the factors
a inversão de tendências com uma expressão that trigger it, justifying doubts on a claimed
que signifique mudança de paradigma. O mo- reversal trend, sizeable enough as to mean a
delo de contenção proposto pressupõe uma change in paradigm. The proposed containment
forte acção voluntarista da Administração e um model is closely associated with unmistakable
envolvimento empenhado dos municípios nessa and engaged action by the Administration, as
estratégia, (ainda) não salvaguardado. Por isso, well as commitment to this strategy by the
identificam-se factores críticos na mudança que municipalities. Therefore, critical factors to
importa controlar para caminhar no sentido da master in the process change are identified in
convergência. the article, in order to achieve convergence.
Palavras-chave: metropolização; cidade alar- Keywords: metropolization; enlarged city;
gada; cidade compacta; planeamento regional; compact city; regional planning; municipal
planeamento municipal; gestão do território. planning; territorial management.
rede viária de grande capacidade e a reduzi- •interesse colateral sobre o espaço rural
da taxa de motorização. e manifesta dificuldade em interpretar e or-
A integração de Portugal na UE obriga à denar as dinâmicas que afectam as franjas
definição em plano eficaz dos investimentos urbanas;
candidatáveis a financiamento comunitário.
• admissibilidade de construção em espaço
Este facto leva à revisão2 do enquadramento
rural (áreas agrícolas, florestais, agro-flores-
legal do PDM, aligeirando o seu conteúdo
tais, ...), de vários usos (habitação, indústria,
e processo de elaboração, mas tornando-o
equipamentos, turismo, ...), referenciados a
obrigatório. Em consequência, durante os
uma dimensão mínima da parcela;
anos 90, todo o território metropolitano fi-
ca coberto com orientações de ordenamento • os planos posteriores a 1995 tendem
Classes de uso do solo PMOT Área total (ha) Área total (%)
Equipamentos metropolitanos e infraestruturas 11542,7 4,1
Estrutura verde agrícola 75719,7 26,6
Estrutura verde agro-florestal 24455,3 8,6
Estrutura verde florestal 42507,8 14,9
Estrutura verde indústria-extractiva 1046,3 0,4
Estrutura verde zona única 64281,8 22,6
Urbano consolidado 29578,3 10,4
Urbano industrial 7892,4 2,8
Urbano livre 3649,3 1,3
Urbano não consolidado 21323,0 7,5
Urbano recreio e lazer 1250,2 0,4
Por classificar* 27307,5 9,6
Total 310554,17 100
* Corresponde principalmente à rede viária principal
Fonte: DGOTDU, vários anos.
114
116
Figura 2 – Esquema do modelo territorial para a AML (PROT-AML)
limite da AML
0 2 4 6 8 km
ordenamento do território quando estas Mas os municípios não optam pela revi-
contrariem os objectivos visados com as são dos PDM em vigor, apesar de propostas
normas do PROT-AML que motivaram aí contempladas contrariarem/inviabilizarem
a situação de incompatibilidade. Quando orientações consagradas no plano regional,
a alteração referida no número anterior nomeadamente no que se refere aos cor-
não possa dispensar uma reavaliação redores ecológicos, espaços verdes vitais
global das propostas de ocupação e uso e áreas de maior sensibilidade ambiental.
do solo no âmbito de uma acção de pla- Aliás,é precisamente para esses espaços que
neamento ou quando não seja possível
se tem dirigido o apetite de grandes grupos
determinar com segurança, por razões
financeiros e promotores imobiliários, ten-
de escala ou pela natureza das disposi-
do conseguido a aprovação de verdadeiras
ções em causa, o alcance ou a própria
“mini-cidades” sob a cobertura de empre-
existência da incompatibilidade, deve a
endimentos turísticos, algumas vezes exi-
reavaliação necessária processar-se em
bindo mesmo a chancela ecológica dada por
procedimento próprio de elaboração,
algumas organizações ambientalistas que,
alteração ou revisão de plano municipal
sob o pretexto da necessidade de assegurar
de ordenamento do território.
sustentabilidade ao empreendimento, aca-
Para dar cumprimentos ao determina- bam por aceitar o trade off entre as restri-
do na Lei,11 o PROT identifica as incompati- ções ambientais e os benefícios económicos
bilidades dos PMOT com a estrutura regio- que se possam obter. Assim, surgem algu-
118 mas situações de difícil ultrapassagem for-
nal do sistema urbano das redes, das infra-
estruturas e dos equipamentos de interesse mal, já que no actual quadro legal o PROT
regional. (de natureza estratégica) apenas vincula os
municípios e não os particulares (por exem-
Detectaram-se mais de uma centena plo: um particular desencadeia a urbanização
de incompatibilidades, particularmente da sua propriedade, em conformidade com
com a Rede Ecológica Metropolitana as orientações do PDM, mas esta aprovação
(...), embora só em 13 casos (...) es- contraria as orientações regionais, a que a
sas incompatibilidades obrigam a revi- autarquia está vinculada).
sões significativas dos PDM. (Ferreira, A ambiguidade destas situações justifi-
2002, p. 40) cou um despacho12 do Ministro do Ambiente
Ordenamento do Território e Desenvolvi-
Assim
mento Regional, determinando:
(...) as incompatibilidades de alcance a adopção das disposições contidas no
•
de gestão reactiva, que colocam na iniciativa que tem que ser enquadrado nas soluções
privada grande parte (senão mesmo o exclu- de intervenção (Soares, 2005). Uma atitude
sivo) da expansão territorial, são marcadas voluntarista deve encarar tal circunstância
for falta de objectivos relativos ao interesse como uma oportunidade, já que a cidade
colectivo a defender na organização do ter- policêntrica está lançada e a periferia tem
ritório. ganho autonomia (em emprego, em equi-
Assim sendo, como promover a conver- pamentos, em serviços). Assim, é necessário
gência dos dois modelos? Para tal, defende- apostar em operações de requalificação/col-
se como indispensável contrariar/neutralizar matação dos espaços urbanos da periferia,
algumas das causas determinantes no cresci- ajustadas às especificidades dos diferentes
mento da cidade fragmentada e na expansão tecidos urbanos, embora seja certo que a
urbana difusa: (re)estruturação da cidade alargada difere
• persistência na densificação da rede ro- da gestão da cidade compacta (Portas, Do-
doviária de grande capacidade, em prejuízo mingues e Cabral, 2003).
do investimento nas redes de transporte 3 - Revalorizar a cidade existente.
colectivo; Esta exige uma actuação diversificada, que
• ausência de controlo sobre as mais-valias envolve acções de grande dimensão e com-
fundiárias geradas pelos planos e ainda me- plexidade ou apenas de “acunpultura urba-
nos da sua apropriação (ao menos parcial) na” (Lerner, 2005). Nas primeiras podem
por parte dos poderes públicos; integrar-se operações de regeneração urba-
120 • fraca agilidade e difícil operacionalização na sobre áreas funcionalmente obsoletas e
dos mecanismos para a regeneração da cida- ou abandonadas (por exemplo importantes
de consolidada; troços das frentes ribeirinhas do estuário
• valorização do espaço não urbano/rural do Tejo, antigas áreas industriais ou de ar-
sempre dependente de usos urbanos, sejam mazenamento, equipamentos abandonados
empreendimentos residenciais ou turísticos, ou com localizações desajustadas (quartéis,
seja apenas uma habitação. prisões, ...). São intervenções mais difíceis
Depois, a intervenção municipal deve de “montar”, pela elevado envolvimento fi-
privilegiar três frentes de actuação: esta- nanceiro e escassez de recursos públicos.
bilizar a mancha urbana; (re) estruturar a Mas muitos destes espaços são propriedade
cidade alargada e revalorizar a cidade exis- pública, o que permite a criação de parcerias
tente, caminhando no sentido defendido pe- de diferente natureza (público-privadas, pri-
lo PROT. vadas-privadas), mas onde a Administração
1 - Estabilizar a mancha urbana. Esta tem de garantir a salvaguarda dos interesses
é uma acção fundamental, que passa pela colectivos da cidade/área metropolitana. As
“libertação” da valorização dos espaços não segundas estão associadas à requalificação
urbanos/rurais do licenciamento da constru- e animação das áreas residenciais, actuan-
ção e da urbanização. do sobre o espaço público, o favorecimento
2 - (Re)estruturar a cidade alargada. A da reabilitação do edificado, a facilidade da
matriz de dispersão da urbanização na AML mobilidade, a instalação dos equipamentos
é um dado incontornável (Soares, 2002), colectivos e do comércio de proximidade.
Como se pode constatar ao longo deste líticas sectoriais se têm sempre sobreposto a
texto, o diagnóstico dos problemas da AML uma visão de conjunto, como dos municípios,
está feito, o enquadramento conceptual pa- sempre ciosos de conservarem os seus pode-
ra o seu ordenamento territorial explicitado res territoriais e temendo qualquer raciona-
e as principais propostas de intervenção pa- lidade supra-municipal que lhes retire auto-
ra resolver as suas insuficiências estruturais nomia no licenciamento da urbanização. Só
claramente formuladas e constam já de ins- quando estes dois bloqueios políticos forem
trumentos de gestão territorial aprovados ultrapassados será possível passar dos pla-
pelo governo central. A questão está por nos à sua concretização, criando desse modo
isso na ausência de mecanismos eficazes pa- as condições para que o processo de trans-
ra as levar à prática, o que encontra fortes formação do território da AML seja efecti-
resistências, tanto ao nível da administração vamente conduzido pelos poderes públicos
central do Estado, onde as estratégias e po- segundo objectivos de interesse colectivo.
Margarida Pereira
Licenciatura em Geografia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Doutoramen-
to no ramo de Geografia e Planeamento Regional, especialidade de Planeamento e Gestão
do Território, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Professora Auxiliar com Nomeação Definitiva no Departamento de Geografia e Planeamento 121
Regional da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (Lisboa,
Portugal).
ma.pereira @fcsh.unl.pt
Notas
(1) Decreto-Lei nº 208/82, de 26 de maio.
(3) Ao abrigo da Lei nº 91/95, de 2 de setembro (estabelece o regime excepcional para a recon-
versão urbanística das Áreas Urbanas de Génese Ilegal).
(4) No actual quadro legal português, compete à administração local a classificação e quali-
ficação do solo (em rural e urbano), através dos planos municipais de ordenamento do
território, de natureza regulamentar, com a definição de usos e parâmetros urbanísticos.
O processo de urbanização está reservado aos particulares detentores da propriedade que,
respeitando aquelas orientações, promovem o loteamento, a infra-estruturação e a cons-
trução da respectiva propriedade.
(5) Isto é, esta entidade tem adoptado uma atitude de indefinição sobre as decisões estruturan-
tes para a Área Metropolitana de Lisboa, não dizendo não nem sim, já que o seu processo
de constituição compromete uma visão metropolitana e não permite mais do que visões
municipais, poucas vezes convergentes.
122
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Recebido em jun/2008
Aprovado em ago/2008
Resumo
O surgimento de localizações para novas ativi- Abstract
dades econômicas, os empreendimentos imo- The emergence of areas for the development
biliários daí decorrentes, as políticas públicas of new economic activities, the real estate
associadas aos novos empreendimentos ou a enterprises that derive from them, the public
ausência delas têm levado ao aumento da den- policies associated with the new enterprises or
sidade e da ocupação de determinadas áreas da their absence, have caused the intensification
cidade de São Paulo, ao mesmo tempo em que of the density and occupation of certain areas
a evasão de algumas atividades econômicas e in the city of São Paulo, while the evasion of
de população ocasionaram o abandono e a de- some economic activities and population have
gradação de outras áreas. led to the abandonment and degradation of
O presente artigo tem como objetivo analisar as other regions.
transformações no espaço urbano e o processo The aim of this paper is to analyze the urban
de valorização imobiliária ocorridos na porção space transformations and the increase in
sudoeste da cidade de São Paulo, a partir dos value of real estate that have been occurring
anos 1990, como conseqüência da implementa- in the Southwestern part of the city of São
ção das Operações Urbanas Faria Lima e Água Paulo since 1990, as consequences of the
Espraiada, identificando os impactos físico-es- implementation of the Faria Lima and Água
paciais e socioeconômicos dessas transforma- Espraiada Urban Operations, and to identify
ções para outras áreas da cidade e, principal- physical and socioeconomic impacts on the
mente, para as áreas do entorno. city.
Palavras-chave: valorização imobiliária; in- Keywords: increased real estate value; urban
tervenção urbana; projetos urbanos; legislação; intervention; urban projects; legislation; shared
operação urbana consorciada; São Paulo. urban operation; São Paulo.
e 2004 foram obtidos cerca de R$300 viário que possibilitou a ligação da Avenida
milhões provenientes de contrapartida Jornalista Roberto Marinho com a Margi-
financeira, em função da concessão de nal Pinheiros, incluindo nessa intervenção a
potencial adicional de construção. Em construção de uma ponte estaiada, que, con-
relação ao investimento privado, houve forme afirmação do governador José Serra,
ampla adesão de novos empreendimen- “trata-se de uma obra faustosa” que irá be-
tos, notavelmente os de alto padrão e neficiar o transporte público individual.
não residenciais. A Operação Urbana Água Espraiada
abrange um perímetro de 1.426 ha lindeira
A Operação Urbana Consorciada Água ao córrego de mesmo nome, na zona sul de
Espraiada foi aprovada pela Lei 13.260 de São Paulo. Ela foi instituída, como citado em
2001, com um programa de intervenções, parágrafo anterior, com o principal objetivo
segundo a própria lei, que visava de complementar a Avenida Jornalista Ro-
berto Marinho, ou seja, objetivamente, es-
[...] a complementação do sistema sa operação urbana vem dar continuidade à
viár io e de transportes, priorizando obra de abertura da Avenida Água Espraiada
o transporte coletivo , a drenagem, a iniciada no governo do prefeito Paulo Ma-
oferta de espaços livres de uso público luf em 1995. Nessa época, havia no local 68
com tratamento paisagístico e o provi- núcleos de favelas lineares com uma popula-
mento de Habitações de Interesse Social ção superior a 50 mil pessoas e também na
para a população moradora em favelas. região; entre a Marginal Pinheiros e a Aveni- 129
(grifo nosso) da Luís Carlos Berrini, ficava a favela Jardim
Edith, formada aproximadamente por três
Para tal, previa, fundamentalmente, a com- mil famílias, num terreno de 68 mil metros
plementação da Avenida Jornalista Roberto quadrados (Fix, 2001). Para a abertura da
Marinho (antiga Água Espraiada) até a Ro- avenida, foi necessária a remoção das popu-
dovia dos Imigrantes, passando pela Mar- lações das favelas existentes, o que ocorreu
ginal Pinheiros; implantação de viadutos de de acordo com os interesses do mercado
acesso e de um complexo viário, com pontes, imobiliário em nome de uma “revitalização
interligando a Avenida Jornalista Roberto do espaço urbano”. As decisões sobre essa
Marinho com as marginais do Rio Pinheiros obra foram impostas pelo governo:
e implantação das vias locais margeando a
Avenida Água Espraiada. [...] um projeto propondo o aumento
As intervenções previstas, seguindo uma da faixa da avenida e o seu prolonga-
ordem de prioridades, serão executadas pa- mento até a Rodovia dos Imigrantes,
ralelamente à venda de Cepac’s, ou seja, eles com quatro pistas expressas e duas
serão lançados e negociados de forma casada locais. Como não se tratava de uma
com a execução das obras previstas na lei. Os operação urbana, não havia o com-
recursos auferidos com a venda do primei- prometimento de manter a população
ro lote de Cepac’s colocado no mercado fo- desapropriada no mesmo perímetro
ram investidos na implantação do complexo e, nesse caso, o governo optou por
Fonte: IBGE.
130
Fonte: IBGE.
Fonte: Embraesp.
132
Figura 5 – Lançamentos imobiliários antes e depois de 1995
Fonte: Embraesp.
dois são responsáveis por quase 70% dos Observa-se, também, que antes mesmo
lançamentos nesses cinco anos, enquanto no de a lei da operação urbana ser aprovada
anel periférico se localizaram 14% desses pelo legislativo, ou seja, quando ainda es-
lançamentos. tava em fase de discussão, a região já pas-
Entre os anos de 1996 e 2000 (Figura sava a ser alvo de especulação imobiliária,
4), o maior número de lançamentos aconte- processo que se acentuou com a aprovação.
ceu no anel intermediário seguido pelo anel Ainda é possível verificar que o processo de
exterior, mas houve um pequeno aumen- valorização imobiliária decorrente das inter-
to de lançamentos no anel periférico. Isso venções urbanas extrapolou os limites pre-
mostra que grande parte população de alta vistos na operação consorciada, o que indica
renda, que é o foco de interesse do merca- a necessidade de um olhar atento também
do imobiliário, continuou se instalando na para o entorno imediato da região, sem per-
parte mais central do município, onde, de der de vista que essa parcela da cidade é so-
uma forma mais geral, ocorreram os im- mente parte de um todo e que essas ações
pactos das Operações Urbanas Faria Lima e devem ser vistas como parte de uma estra-
Água Espraiada. Os poucos lançamentos ve- tégia maior de desenvolvimento da cidade.
rificados no anel periférico foram os condo- Segundo Sandroni e Biderman (2005),
mínios horizontais e verticais em forma de
empreendimentos fechados voltados para a [...] na região da Faria Lima houve
classe média/alta, considerados por Caldeira cerca de 15% de valorização no preço
(2000) “enclaves sociais”, que vêm contri- médio do metro quadrado e antigas re- 133
buindo de forma significativa para a segre- sidências unifamiliares de classe média
gação e para a exclusão, fomentando as de- deram lugar a edifícios de apartamento
sigualdades socioespaciais. de classe média alta e também de edifí-
É possível, portanto, identificar uma cios comerciais de alto padrão, levando
continuidade no processo de periferização à elitização.
no município paulista. As taxas de cresci-
mento e de incremento populacionais indi- Criou-se uma nova centralidade que con-
cam os anéis mais externos como destino centra dinheiro e poder e reforça a segre-
da população, em contrapartida, também há gação socioespacial, exercendo, sem dúvida,
indicação de maior concentração da renda um impacto na reestruturação espacial da
nos anéis interior, central e intermediário, cidade.
ou seja, os moradores da periferia, que são A compreensão da dinâmica com que se
a maioria, ainda apresentam níveis de ren- processam essas grandes intervenções urba-
da mais baixos que os residentes nas áreas nas e das modificações estruturais geradas
centrais. As favelas continuam se instalan- por elas é fundamental para a proposição de
do, preferencialmente, na região periférica políticas públicas compatíveis com um de-
do município e os lançamentos imobiliários senvolvimento sustentável da cidade. Além
residenciais, que são direcionados à classe disso, o processo especulativo do mercado
mais alta, têm como alvo as zonas mais va- imobiliário, indiscutivelmente, é determinan-
lorizadas da cidade. te na ocupação do espaço, respondendo de
forma significativa pela expansão do tecido finiria uma área de abrangência (Figura 5),
urbano. Isso indica que o estudo da atuação constata-se que, dos lançamentos imobi-
dos agentes imobiliários também é impor- liários ocorridos em todo o município en-
tante para a compreensão dessas interven- tre 1985 e 2004, o Morumbi aparece em
ções e, principalmente, para a definição das primeiro lugar, com 741 imóveis, seguido
ações do poder público. por Moema (355), Butantã (292), Jardins
Focalizando a área das duas operações (208), Campo Belo (162), Pinheiros (151),
urbanas e seu entorno imediato, o que de- Itaim (149) e Brooklin (137). No cenário
Fonte: Embraesp.
Tabela 3 – Áreas com maior número de lançamentos imobiliários entre 1985 e 2004,
por total de imóveis e por total de unidades lançadas
geral da cidade, dos dez primeiros distri- com o total de unidades lançadas no perío
tos no ranking de lançamentos, somente do estudado (Tabela 3), é possível perce-
três estão fora da área de abrangência das ber que o Morumbi, o Butantã, Moema e
operações urbanas: Tatuapé, Vila Mariana e Jardins mantêm a mesma posição, ou seja, 135
Santana, apontando para a existência de es- estão entre os quatro primeiros colocados.
peculação imobiliária na área. Já o Brooklin, o Jardim Marajoara e, mais
Fazendo uma comparação entre todos acentuadamente a Vila Olímpia, mudam de
os lançamentos ocorridos nos dez primeiros posição, ou seja, em virtude do maior nú-
anos – 1985 a 1994, ou seja, antes da opera- mero médio de apartamentos por lança-
ção urbana Faria Lima (1.562 lançamentos), mento, eles assumem um lugar à frente no
com os ocorridos entre 1995 e 2004 (1.706 ranking, evidenciando maior verticalização
lançamentos), observa-se que esse número nessas áreas.
praticamente se manteve (Tabela 2). Quando Deve ser destacado que os distritos do
são analisadas as áreas separadamente, a Morumbi e Butantã são, territorialmente,
diferença é observada de forma acentuada maiores que Moema, Jardins, Brooklin e Vi-
em alguns pontos da região, como, Chácara la Olímpia, o que indica que, em relação os
Flora, Alto da Boa Vista, Santo Amaro, Ibi- dois primeiros, esses quatro últimos tiveram
rapuera e, principalmente, Butantã. maior densificação construtiva.
Do total de unidades lançadas na re- Uma análise separada das duas décadas,
gião de estudo, mais uma vez, o Morumbi de 1985 a 1994 e de 1995 a 2004, tanto
aparece em primeiro lugar, com mais de por empreendimento imobiliário como por
32.000 unidades, seguido por Butantã, unidades lançadas, mostra que o Morumbi,
Moema, Jardins, Brooklin e Pinheiros (Ta- que esteve bastante à frente ao longo dos
bela 3). Comparando o total de imóveis últimos 20 anos, perdeu posição, ou seja, na
1985 a 1995 a
Zonas de valor % % TT
1994 2004
Jardim Europa 167 34.6 316 65.4 483
Jabaquara 2.876 37.0 4.899 63.0 7.775
Vila Santa Catarina 741 37.0 1.261 63.0 2.002
Água Funda 150 38.1 244 61.9 394
Jardim Marajoara 2.840 38.4 4.548 61.6 7.388
Aeroporto 356 42.2 488 57.8 844
Sumaré 254 44.0 323 56.0 577
Vila Madalena 1.080 45.2 1.307 54.8 2.387
Moema 7.771 45.9 9.174 54.1 16.945
Jardins 4.547 47.9 4.952 52.1 9.499
Vila Nova Conceição 1.386 50.8 1.340 49.2 2.726
Campo Belo 2.241 53.7 1.934 46.3 4.175
Vila Mascote 2.203 54.8 1.820 45.2 4.023
Alto de Pinheiros 822 57.7 603 42.3 1.425
Pinheiros 4.733 58.2 3.401 41.8 8.134
Itaim 3.682 58.8 2.578 41.2 6.260
Real Parque 1.434 59.8 963 40.2 2.397
Morumbi 19.211 59.9 12.851 40.1 32.062
Santo Amaro 2.144 64.2 1.198 35.8 3.342
136
Alto da Boa Vista 148 64.9 80 35.1 228
Brooklin 5.672 65.6 2.975 34.4 8.647
Butantã 12.938 66.1 6.622 33.9 19.560
Ibirapuera 446 71.6 177 28.4 623
Chácara Santo Antonio 1.933 71.9 755 28.1 2.688
Chácara Flora 1.631 72.1 632 27.9 2.263
Vila Olímpia 4.633 74.1 1.618 25.9 6.251
Planalto Paulista 78 81.3 18 18.8 96
Total 86.117 56.2 67.077 43.8 153.194
Fonte: Embraesp.
Claudino Ferreira, é uma visão bastante eco- mente “rentabilizável” numa ótica financeira
nomicista, muito centrada numa concepção da exploração da capacidade do solo para
do solo urbano como mercadoria ilimitada- albergar construção, via verticalização.
Nota
* Esse texto é resultado da pesquisa de pós-doutorado intitulada “Reestruturação Urbana e Desi-
gualdades Socioespaciais: município de São Paulo“, desenvolvida junto ao Núcleo de Estudos e
Pesquisas Urbanas/Observatório das Metrópoles São Paulo do Programa de Estudos de Pós-Gra-
duação em Ciências Sociais e do Departamento de Sociologia da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, sob a coordenação da Profa. Dra. Lucia Bógus.
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SASSEN, S. (1991). The Global City: New York, London and Tokyo. Princeton, Princeton
UniversityPress.
Recebido em maio/2008
Aprovado em jul/2008
Resumo
O trabalho sintetiza os resultados da análise da Abstract
dinâmica social, econômica e institucional do TThis paper summarizes the results of the
Paraná, que mostram que a natureza da inser- analysis of the social, economic and institutional
ção desse estado na divisão social do trabalho dynamics of Paraná, which show that the the
vem se dando heterogeneamente, tornando di- insertion of this State in the social division of
ferentemente integradas as partes de seu terri- labor has been occurring in a heterogeneous
tório. Discute a absorção, pela estrutura de pla- form, integrating parts of its territory in
nejamento do desenvolvimento do estado, dos different levels. It discusses how the State’s
resultados dessas análises e das linhas de ação development planning structure absorbs
propostas em função dessa heterogeneidade e the outcomes of this analysis and the lines
da diversidade presente. Conclui que o conheci- of action proposed based upon the present
mento não se transforma necessariamente em heterogeneity and diversity. It concludes that
ações objetivas. knowledge does not necessarily turns into
Palavras-chave: desenvolvimento regional; objective actions.
planejamento do desenvolvimento; divisão so- Keywords: regional development; planning
cial do trabalho; espacialidades do Paraná; es- of development; social division of labor;
pacialidades relevantes; espacialidades social- Paraná’s spatialities; relevant spatialities;
mente críticas. critical spatialities.
integradas as partes de seu território. Para cípios com participação superior a 0,25%;
confirmar tal hipótese, foram organizadas entre eles, somente Curitiba e Paranaguá
duas matrizes básicas de análise. A primei- respondem por 63,17% do total do esta-
ra, contemplando, sempre que possível, um do (desconsiderando os serviços públicos,
período entre os anos 1970 e 2005 (em que acentuam ainda mais esse perfil). Vem
séries atingindo a informação mais recen- seguido do VAF da Indústria, para o mes-
te disponível), relacionou informações so- mo ano, no qual Araucária, Curitiba e São
bre valor adicionado fiscal (VAF), emprego José dos Pinhais somam 50% do total. As
formal, ocupação e produção agropecuária, empresas entre as 300 maiores do estado
infra-estrutura científico-tecnológica, infra- estão presentes num conjunto comparativa-
estrutura viária e principais centralidades mente menos concentrado: 68 municípios
urbanas. Uma superposição das informações (Tabela 1). No entanto, enquanto em 36
temáticas espacializadas, demarcando a con- deles há apenas uma empresa, em Curitiba
junção dos indicadores de melhor participa- encontram-se 69. A distribuição no terri-
ção e melhor desempenho econômico-social tório dos municípios com as maiores par-
no conjunto, concentração de ativos institu- ticipações ressalta as aglomerações, acom-
cionais e a evolução na posição central na panhando e sedimentando a economia do
rede de cidades evidenciou os municípios e estado.
“espaços relevantes”.4 Entre os indicadores contemplados
Tendo como corte a participação do para análise dos ativos institucionais, fo-
144 município no total do Estado igual e/ou su- ram selecionados os referentes à presença
perior a 0,25%, 5 essa matriz mostrou o da infra-estrutura técnico-científica (Tabela
grau de concentração presente na geração 2). Os mesmos confirmaram a concentração
da riqueza do VAF estadual (Figura 1). O espacial, dando ainda maior conteúdo à re-
VAF dos Serviços, em 2003, apresentou levância de determinadas espacialidades (ver
maior concentração, com apenas 24 muni- Figura 1).
Fonte: SETI.
Nota: Informações trabalhadas pelo Ipardes.
esse modelo insere o Paraná na divisão so- de geração de riquezas, ativos institucionais
cial do trabalho especialmente a partir de e na diversidade de opções produtivas, de
seu potencial em recursos naturais. Ao lon- comércio e de serviços. Outra distinção com
go do tempo, o estado consolidou seu papel relação àquele espaço é que as atividades
centrado na exploração desses recursos e na agropecuárias ainda mantêm participação
agroindustrialização e, mais recentemente, significativa no total da sua produção. Nes-
na incorporação de segmentos modernos e sa espacialidade, ao mesmo tempo em que
internacionalizados da indústria. se constata uma unidade no desempenho
de sua função na divisão social do trabalho,
distinguem-se relações que irradiam de uma
Os “vários Paranás” condição de bipolaridade, impondo sub-re-
cortes espaciais a partir de Londrina, num
Espacialmente, as situações de maior ho- vetor para o Norte Pioneiro, e de Maringá,
mogeneidade percorrem um amplo espec- num vetor para o Noroeste.
tro, abarcando desde grandes conjuntos de A porção Oeste é considerada como o
municípios, conjuntos mais dispersos e indi- 3º espaço relevante, tendo Cascavel como
víduos (referindo-se a municípios), configu- principal pólo, desenvolvendo um vetor de
rando distintas espacialidades no estado (ver dinamismo em direção a Toledo e Marechal
Figura 1). Cândido Rondon. Em grau de importância,
Entre os “espaços relevantes”, destaca- essa espacialidade guarda menor distancia-
se uma espacialidade de máxima relevância, mento com o 2º espaço do que este para 147
concentração e densidade, formada pela com o 1º espaço relevante, diferenciando-
aglomeração metropolitana de Curitiba, pelo se nitidamente de ambos. Sua articulação à
entorno de Ponta Grossa e por Paranaguá, divisão social do trabalho se dá a partir de
denominada 1º espaço relevante. Essa espa- um número menor de atividades, ligadas,
cialidade participa de forma mais integrada, fundamentalmente, à produção agroindus-
nacional e internacionalmente, na divisão trial, assim como aos serviços. Sua posição
social do trabalho, a partir do desempenho fronteiriça, cuja centralidade se manifesta
de um conjunto de atividades econômicas em Foz do Iguaçu, assegura-lhe o desem-
diversificadas, concentrando os principais penho de funções importantes nas relações
constitutivos da sociedade paranaense, no internacionais e no comércio, elevando seu
que se refere ao poder econômico, político peso na geração de riquezas e estreitando
e ideológico. vínculos do Paraná com os países do Merco-
Duas espacialidades com elevada rele- sul. Agrega-se o turismo, pela presença do
vância são identificadas no Norte Central e Parque Nacional do Iguaçu, onde se encon-
Oeste do Estado. No Norte Central, as aglo- tram as Cataratas do Iguaçu, dos municípios
merações de Londrina e Maringá polarizam lindeiros ao Lago de Itaipu e pelo comércio
o 2º espaço relevante que, historicamente, de fronteira.
sustenta uma matriz produtiva diversificada, Quatro recortes foram apontados co-
que se assemelha à do 1º espaço, mantendo, mo espacialidades de média relevância. Um
contudo, uma grande distância nos volumes deles é a espacialidade especializada do
favorecida, também, pela localização privi- porção paranaense, que se estende em di-
legiada num dos mais importantes corre- reção ao aglomerado metropolitano, histó-
dores viários do estado, a BR 277. Campo rica no que concerne a isolamento, pobreza
Mourão tem como explicação da verticalida- e dependência. Os demais municípios, com
de das relações o fato de sediar a Coamo elevada incidência entre os mais críticos,
Agroindustrial Cooperativa – considerada a fazem parte da mancha contínua na porção
maior cooperativa agroindustrial da América central do estado, que se alonga no sentido
Latina –, colocando-se sob comando dessa Norte Pioneiro/Centro-Sul, aproximando-
importante unidade empresarial. Extrai sig- se e contornando a porção sul de Cascavel,
nificativo excedente de seu entorno, o que reunindo ainda um grande número de muni-
lhe assegura expressão econômica e política cípios com no mínimo uma ocorrência entre
e lhe permite instrumentalizar sua estrutura os 10% mais críticos do conjunto de indica-
de comércio e de serviços, estreitando seus dores analisados. Outras manchas contínuas
vínculos externos, porém sem grandes des- menores margeiam as fronteiras com Santa
dobramentos regionais. Catarina e com São Paulo, porém, não tão
Espacialidades com mínima relevância problemáticas quanto as anteriores.
são identificadas nos municípios de fronteira A porção central do estado apresenta
com o estado de Santa Catarina, que usu- fatores socioculturais importantes, como
fruem da sinergia das relações fronteiriças a presença de reservas indígenas, comuni-
que se manifestam nas pequenas aglomera- dades quilombolas, assentamentos rurais,
ções ou ocupações contínuas entre centros além de uma estrutura fundiária predomi- 149
urbanos dos dois estados. Reproduzem, em nantemente de grandes estabelecimentos
parte, a história de ocupação do Centro-Sul rurais, entre outros que, certamente, pos-
paranaense, pautada no extrativismo; repre- suem papel contributivo na realidade atual.
sentam um vetor de entrada das atividades As restrições no uso do solo, bem como o
econômicas catarinenses; e recebem os efei- modelo econômico extrativista (madeira/
tos da dinâmica econômica metropolitana, erva mate) que remonta aos primórdios da
nesse caso facilitados pela infra-estrutura exploração capitalista nessa região, são fato-
viária. Espacialidades de mínima relevância res determinantes. Acresce-se a isso o fato
são identificadas também no Norte Pioneiro, de a maioria desses municípios encontrar-se
que conta uma história de apogeu e deca- ilhada – ou seja, contornada – pelo princi-
dência ligados à economia cafeeira, que le- pal sistema viário do estado, sendo pouco
gou a possibilidade de consolidação de pou- recortada internamente por outras vias de
cos, mas importantes ativos institucionais. transporte.
Essa porção do Paraná ainda estabelece for- Observa-se que os municípios com as
tes vínculos com o estado de São Paulo. maiores incidências entre os mais críticos
O outro conjunto de municípios rela- apresentam elevadas proporções de ocupa-
tivamente homogêneos corresponde aos ção formal na agropecuária e no setor públi-
“espaços socialmente críticos”. Pequena co. Em sua grande maioria, são municípios
parte desses municípios encontra-se na fai- rurais, localizados em áreas com menor po-
xa demarcada como Vale do Ribeira, em sua tencial para uso agrícola da terra e de baixo
Ou seja, por mais que se produza uma Uma política de desenvolvimento regional e
base técnica com argumentos capazes de toda ordem de problemas e soluções que ela
viabilizar a organização de uma agenda para envolve não se esgota em uma ou duas ges-
o desenvolvimento, fatores de ordem polí- tões governamentais. Reiterando, para que
tica, exigências de financiadores e reduzida se efetive, essa política tem de ser assumida
margem de pressão de municípios e seg- como um projeto de sociedade.
mentos interessados se fragilizam perante a Assim, é preciso superar a visão limita-
ausência de um Estado forte. da de ações imediatas, de crédito rápido, co-
Seguindo trajetória similar, a Políti- locando em seu lugar a verdadeira noção de
ca Nacional de Ordenamento do Território Estado, que se constrói com e na história,
(PNOT), pensada como instrumento de cres- pela ação contínua e coletiva. Ou seja, rom-
cimento econômico, justiça social e desen- per com a conduta do abandono ou destrui-
volvimento sustentável (Brasil, 2006), vem ção de projetos e ações desencadeadas por
tendo os mesmos destinos da PNDR, eviden- governantes sucessivos, sem uma séria ava-
ciando que no Brasil, o maior desafio talvez liação do que vinha se realizando e os impac-
seja o de tirar do papel, do plano teórico, tos sociais decorrentes, propondo caminhos
da simples formulação as políticas nacionais opostos, sem fundamentos sólidos, somente
consideradas e, efetivamente, assumir sua com o propósito de se colocar em evidên-
implementação, numa sistemática de gestão cia. Em síntese, superar a visão estreita de
articulada e controle social. que cada gestão governamental inicia uma
Planejamento regional é um processo nova história. Os governantes que ficam na 159
que coloca ao Estado o papel de propor e história são justamente aqueles que, ao pro-
articular ações de base territorial, antecipar jetarem o futuro, desencadeiam políticas e
situações e projetar o futuro. Talvez, no ações que vão além do seu tempo.
Paraná e no Brasil, se esteja na fase de re- Não se quer dizer com isso que o pla-
estruturar o Estado para implementar uma nejamento regional seja estático, inviolável,
política com esse perfil. Reestruturar é a uma certeza que se perpetua, independen-
palavra adequada considerando o desmonte temente das mudanças que acontecem em
sofrido pelo Estado brasileiro e o parana- qualquer nível. Enfatiza-se: é um processo.
ense em particular. Ou seja, criar condições Mudanças de natureza global e macro, em
para que políticas formuladas se efetivem. sua dimensão territorial, refletem no pla-
Mas é ao longo da implementação que o Es- nejamento realizado, demandam revisão de
tado se organiza. procedimentos, criação de novas soluções,
Entretanto, há outros dois aspectos reforço a propostas já existentes, enfim,
fundamentais nessa trajetória. O primeiro é correção de rumo, sem abandonar ou des-
o entendimento da sociedade de que esse é considerar a trajetória realizada. Mas os
o caminho, o que se efetiva pelos canais já fundamentos da política, consubstanciados
existentes de participação popular e que de- num projeto que é, antes de tudo, da socie-
vem ser ampliados. O segundo diz respeito dade, implementado sob a condução do Es-
à perspectiva pela qual o Estado é gerido. tado, devem ser firmemente sustentados.
Rosa Moura
Geógrafa pela Universidade de São Paulo. Doutoranda em Geografia pela Universidade Fede-
ral do Paraná. Pesquisadora do Núcleo de Desenvolvimento Regional e Urbano do Instituto
Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social – Ipardes. Pesquisadora da Rede Obser-
vatório das Metrópoles, Projeto Instituto do Milênio-CNPq (Paraná, Brasil).
rmoura@pr.gov.br
Diócles Libardi
Veterinário e Especialização em Economia Rural pela Universidade Federal do Paraná. Pesqui-
sador do Núcleo de Estudos do Desenvolvimento Regional e Urbano do Instituto Paranaense
de Desenvolvimento Econômico e Social – Ipardes (Paraná, Brasil).
diocles@pr.gov.br
Notas
(1) Disponíveis em www.ipardes.gov.br.
(3) Espacialidade é a expressão usada para designar um recorte espacial de porção do território
que se peculiariza por algum traço determinante na interação de dinâmicas sociais, cultu-
rais, econômicas, ambientais, institucionais e territoriais, no fenômeno de produção do es-
paço, configurando uma morfologia particularizada por padrões de continuidade, relações
intensas ou articulações. Desconsidera divisões territoriais ou político-administrativas, ex-
pressando um fato (urbano-regional, regional) em si.
(5) A escolha do limite inferior em 0,25%, quando em participações no total do estado, deve-se
ao pressuposto de que, numa situação igualitária, considerando os 399 municípios para-
naenses, essa participação hipotética seria de aproximadamente 0,25%. No caso de séries
históricas, esse marco de corte foi mantido, mesmo reconhecendo que o número de muni-
cípios do estado era menor entre os anos de 1970 e 1991.
(6) Municípios agrupados em classes que representam performance econômica e social acima
da média estadual (Silva Neto, 2006).
(7) Estudos que vêm sendo realizados pela mesma equipe de pesquisadores do Ipardes, tendo
sido concluída a análise pormenorizada do 3º espaço – porção oeste paranaense – (Ipar-
des, 2008), e iniciada a organização das informações para análise de dois outros conjun-
tos: a porção Sudoeste e o 1º espaço relevante.
(9) Há previsão de construção, na região Centro Expandido, de uma usina hidrelétrica, de duas 161
pequenas centrais termelétricas, fábrica de biodiesel e de metanol.
(11) São quatro os eixos estratégicos deste Programa: planejamento estratégico, desenvolvi-
mento local e regional, liderança e micro e pequena empresa.
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XX, n. 1, jan/jul, pp. 49-75.
Recebido em maio/2008
Aprovado em ago/2008
163
Resumo Abstract
O texto apresenta uma abordagem política do This article presents a political approach
significado histórico de uma cidade, com o fo- to the historical meaning of a city, having
co voltado para Brasília. A nova capital federal Brasília in the spotlight. The new federal
é analisada em função das diferentes políticas capital is examined due to the role it played
implementadas pelos governos brasileiros, a in the implementation of different policies by
partir de Juscelino Kubitschek, passando pe- diverse Brazilian governments, from Juscelino
lo regime militar e alcançando o processo de Kubitschek’s period up to the democratic
transição democrática. Algumas idéias servem transition process. Some ideas are used as
de parâmetro analítico para abordar a dimen- an analytical parameter to approach the
são política de Brasília, como, por exemplo, de- political dimension of Brasília, as for example,
senvolvimento econômico, unidade territorial e economic development, national and territorial
nacional, isolamento urbano e autoritarismo, unit, urban isolation and authoritarianism,
utopia realizada, espaço urbano como cenário realized utopia, and urban space as political
político. scenario.
Palavras chaves: urbanismo e política; pla- Keywords: urbanism and politics; urban
nejamento urbano; Brasília; cidade e governo; planning; Brasília; city and government; federal
capital federal capital.
Muitos são os tipos de cidades. Existem pela sua “origem”, isto é, a maneira como
desde aquelas que florescem espontanea- se dá a fundação de uma cidade imprime-lhe
mente no lento fluxo da história até as que sua natureza histórica. Assim, ao analisar os
são levantadas imediatamente pela vontade motivos das grandezas e da decadência de
construtora do homem. Brasília é uma cidade Roma, Maquiavel trata das cidades que “os
cuja origem encontra-se na artificialidade da habitantes, espontaneamente ou movidos
política, nasceu de um projeto visionário do pela tribo de maior autoridade, decidem ha-
governante Juscelino Kubitschek de Oliveira bitar em conjunto“ (Maquiavel, 1979, p. 20)
e se materializou pelo plano arquitetônico e e das cidades “construídas por um príncipe,
urbanístico de Oscar Niemeyer e Lucio Cos- não com o propósito de ali fixar residência,
ta. Assim como a política foi uma invenção mas exclusivamente para a sua glória, como
iniciada pelos gregos, Brasília é um projeto dá exemplo a cidade de Alexandria, estabele-
inventado por alguns homens que agem no cida por Alexandre” (ibid., p. 20). No caso de
interior de instáveis relações de forças. Não Brasília, temos o envolvimento de um sujeito
é à toa que, entre as diferentes noções de construtor respaldado pela idéia de uma nova
política, destaca-se aquela que a vincula com capital que vem atravessando a história brasi-
o termo grego polis (politikós), “que significa leira desde a Independência. Se o projeto de
tudo o que se refere à cidade e, conseqüen Juscelino concretiza-se no início da década de
temente, o que é urbano, civil,público e até 60, os antecedentes do ideário de uma nova
mesmo sociável e social” (Bobbio, 1986, capital vem de longe: Visconde de Porto Se-
166 p. 954).Nesse sentido a retomada do proje- guro, Francisco Adolfo de Vernhagen, já co-
to de uma nova capital brasileira constituiu- gitara uma cidade no planalto central do país;
se num significativo trunfo político para o José Bonifácio de Andrada, o Patriarca da
governo Kubitschek que, na retórica popu- Independência, em 1823, indica a necessida-
lista de “crescer cinqüenta anos em cinco”, de da cidade; a Constituição de 1891 registra
incorporou o entusiasmo coletivo nacional. a fundação de uma nova capital; e, inclusive,
E, desde sua inauguração,em 1960, a cidade sob o governo de Getúlio Vargas foi indicado
vem enfrentando diferentes conjunturas polí- um local indeterminado no planalto central
ticas, refletindo a história do país. para alocar a nova capital do país.1
Brasília emerge, assim, de um longo
processo de afirmação do ideal de integra-
ção territorial e político do país, que se inicia
no período colonial, com a fuga da família
A cidade, a unidade
imperial de Portugal e a instalação da Corte
territorial e a de D. João VI no Brasil, atravessa o Império,
centralização do poder cuja política está calcada na proposta da cen-
tralização política pelo Poder Moderador e
Nicolo Maquiavel, em “Comentários sobre expresso na primeira Constituição Brasileira
a Primeira Década de Tito Lívio”, chama (outorgada) e alcança a República, principal-
a atenção para o fato de que as cidades e, mente com o Estado Novo (1937-1945),
portanto, Estados e Impérios são marcados quando Getúlio Vargas impõe a centralização
política como estratégia de controle governa- militares anteriores, bem como aquelas que
mental. Brasília, nesse sentido, realiza não só brotavam na sua gestão, a política desenvolvi-
a utopia da nova cidade e do novo país, mas mentista de Juscelino incentivou não só a mo-
também encarna o andamento efetivo do pro- bilização de recursos humanos e financeiros,
jeto de integridade territorial e de integração mas também o apoio popular. Nesse sentido,
nacional do país, ante o esfacelamento da uni- Juscelino afirma enfaticamente a instauração
dade experimentada pela América espanhola. do “novo” e a aceleração do tempo político ao
Brasília ganha reatualização histórica ao ser propor o desenvolvimento de cinco décadas
incorporada como um elemento fundamental durante o seu governo. Brasília será a síntese
no modelo desenvolvimentista de Juscelino perfeita desses objetivos. Uma nova capital
Kubitschek. como símbolo de um novo governo, de um
Dessa forma, interessa abordar neste novo começo e de uma nova nação.
artigo os componentes políticos que moti- Brasília é o projeto político composto
varam a criação de Brasília e marcaram al- por múltiplas facetas: incorpora o entusias-
gumas fases do seu crescimento urbano. Se mo coletivo nacional; dinamiza o fluxo dos
num primeiro momento a cidade é pensada imigrantes trabalhadores agora atraídos pe-
como conseqüência de uma determinada polí- la construção da cidade; direciona a vontade
tica de crescimento econômico, em outra eta- construtora de intelectuais e artistas; e inclui
pa histórica a cidade torna-se um território na vida brasileira a sinalização de um futuro
fértil para viabilizar os governos militares. país mais justo e mais rico. Juscelino emer-
Assim, no final dos anos 50 e início dos anos ge como o governante que propõe romper 167
60, Brasília emerge como expressão de um com os modelos do passado e potencializar
novo olhar político sobre a unidade nacional, o país para ingressar numa etapa moderna.
já no final da década de 1960 e na década Kubitschek arma um grande lance político ao
de 1970, a nova capital federal constitui-se colocar a ação governamental em torno de
em espaço facilitador de utilização de técni- um “novo começo”, identificando seu gover-
cas governamentais autoritárias dos regimes no com o esforço para construir de manei-
militares. ra particular o espaço público, traduzindo a
O nacional-desenvolvimentismo é uma construção de uma nacionalidade cosmopolita
política que se instaura solidamente no Brasil, e equiparável a parâmetros internacionais. No
sob o governo de JK, enfatizando a criação interior desse dinâmico movimento político
de um parque industrial, formação do mer- pensado por Juscelino, Brasília é pedra fun-
cado interno e o vínculo com o capital inter- damental, idéia nacionalista que convive com
nacional: os ingredientes considerados neces- as agitações culturais e ideológicas do período
sários para realizar o crescimento econômico personificadas pelo Iseb (Instituto Superior
do país. Juscelino Kubitschek implanta uma de Estudos Brasileiros), CPC (Centro Popular
“experiência (que) resultou num governo de Cultura da União Nacional dos Estudantes)
politicamente estável, apesar de marcado e pelo ritmo da Bossa Nova.
por crises militares no começo e no fim do A estratégia política de JK, portadora de
período” (Benevides, 2002, p. 23). Buscan- um otimismo inovador, reflete-se no âmbito
do neutralizar resquícios de crises políticas e das áreas da arte e da política, à medida que
[...] sem ignorar a relação ambivalente não conseguiu administrar a crise de 1964,
e, por vezes precária, existente entre pois a conjuntura política era outra, com um
estética, técnica e política, torna-se ne- sistema partidário polarizado, estando o pró-
cessário refletir sobre o convívio da in- prio partido fragmentado, sem possibilidade
dustrialização com a vanguarda artística de gerenciar os conflitos que marcaram aque-
promovida pelo discurso modernizador le período pré-golpe.
de Kubischek. A arquitetura, em escala Após nove meses da inauguração de
bem maior do que outras manifestações Brasília, Jânio Quadros assumiu a Presidência
culturais representaram para o gover- da República, no dia 31 de janeiro de 1961.
no, uma maneira visível e popular de Na Praça dos Três Poderes, Juscelino Kubits-
novamente redefinir os conceitos de
chek passou oficialmente o cargo para Jânio
território e de apropriação na era mo-
Quadros. Na festa de posse do novo governo
derna. (Souza,2002, p. 109)
compareceram 1.500 pessoas vindas de vá-
rias partes do Brasil, mas eram oriundas, na
Assim, o governo de JK irá surgir como sua maioria, de São Paulo, local político do
sensível às manifestações populares e como novo governante. Nesse momento da posse,
articulador das expressões e desejos cultu- Brasília tornou-se um radiante pólo político,
rais engendrados por diferentes intelectuais, repetindo a festa de sua inauguração. A cida-
assumindo então a tarefa modernista de pro- de atrai, então, a atenção do país.
jetar uma nova capital. Deve ser ressaltada a
168 maneira eficiente que levou JK a se apropriar
da arquitetura tendo em vista armar uma es-
tratégia geopolítica para o país.
Interregno: entre
Tal eficiência deve-se muito ao gover-
nante, mas também à sua agremiação po-
o isolamento local
lítica. O PSD (Partido Social Democrata) foi e outros palcos nacionais
o partido de Juscelino Kubitschek e que se
caracterizou como um partido de centro, A cerimônia de transmissão do cargo não foi
sempre buscando a “conciliação e moderação” tranqüila, pois Juscelino havia sido informado
(Hippolito, 1985) e o equilíbrio e era marca- que Jânio Quadros faria um pronunciamento
do por membros e lideranças com experiência extremamente crítico ao seu governo. En-
e, segundo analistas, com competência admi- tretanto, as críticas ao governo de Juscelino
nistrativa. Durante o governo de Juscelino, o somente aconteceram quando Jânio Quadros
PSD teve uma posição de centro e ajudou a fez um pronunciamento em cadeia nacional
promover e preservar uma estabilidade políti- de rádio, no programa Hora do Brasil. O no-
ca, estabelecendo alianças com a UDN (União vo presidente acusou Kubitschek de privile-
Democrática Nacional), com o PSP (Partido giar certos grupos econômicos e políticos e
Social Progressista) e com o PTB (Partido de ter aumentado a dívida externa do país,
Trabalhista Brasileiro). dentre outros aspectos.E a cidade de Brasília
Entretanto, o PSD, diferentemente de era considerada um dos fatores importante
outros momentos de crise na história política, desse endividamento do país.
Goulart, foi Tancredo Neves, político mineiro anticomunistas da sociedade brasileira, como
do PSD. Esse sistema vigorou até janeiro de a União Cívica Feminina, Sociedade Rural Bra-
1963, quando se realizou um plebiscito para sileira, dentre outros, e foi realizada em São
que os eleitores brasileiros se manifestassem Paulo, sob a liderança de D. Leonor de Bar-
contra ou a favor da preservação do Parla- ros, mulher do então governador Adhemar
mentarismo, vencendo a volta ao regime de Barros, liderança política do PSP. O Ipes
Presidencialista. (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e o
O governo Goulart formulou e tentou Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democráti-
colocar em prática uma política econômica ca), criados pelos setores mais conservadores
planificada, sintetizada no Plano Trienal. Os e com apoio dos Estados Unidos, também
pontos mais importantes desse plano eram fizeram uma oposição ferrenha ao governo
a manutenção da taxa de crescimento do de João Goulart.
produto, a redução da inflação e das desi- João Goulart, por sua vez, realizou, no
gualdades regionais e a melhor distribuição dia 13 de março de 1964, um grande Comí-
de renda. Para sensibilizar a opinião pública, cio na Central do Brasil, na cidade do Rio de
o governo fez uma campanha a favor das Janeiro, convocando o povo a apoiar as refor-
reformas de base (agrária, bancária, fiscal, mas de base, propagadas pelo seu governo.
administrativa) e da política externa inde- A anterior capital federal demonstrava ainda
pendente. A reforma agrária adquiriu uma sua vitalidade política. Nessa mesma cidade
preeminência sobre as outras reformas e en- teve lugar um motim dos marinheiros, que se
170 controu fortes resistências em vários setores rebelaram contra as condições de trabalho a
da sociedade brasileira. que eram submetidos por seus superiores. Os
Goulart enfrentou oposição ao seu go- marinheiros rebeldes são presos e logo a se-
verno no Congresso Nacional, principalmente guir Jango manda soltá-los, provocando uma
através das ações da UDN (União Democrá- reação crítica das Forças Armadas e, principal-
tica Nacional), que emperrou o andamento mente, dos almirantes da Marinha Brasileira.
de vários projetos enviados pelo Executivo, A destituição de João Goulart estava
além de encontrar resistências no interior das sendo articulada pelas Forças Armadas, com
Forças Armadas. Por adotar uma política na- apoio dos governadores de São Paulo, Adhe-
cionalista, sofreu represálias por parte dos mar de Barros, e de Minas Gerais, Magalhães
Estados Unidos e de outros países que desa- Pinto, com a presença da CIA americana e
provavam tal política. Vários segmentos que outros políticos como Carlos Lacerda, ex-
se opunham ao seu governo se organizaram governador do estado do Rio de Janeiro.
para depô-lo e assumir o poder do Estado. Na madrugada de 31 de março de 1964
No dia 31 de março de 1964 João Goulart tanques do Exército ocupam o estado da Gua-
foi deposto por um golpe militar. nabara e, no dia 1º de abril, a zona sul da
As grandes manifestações contra o go- cidade do Rio de Janeiro também é tomada.
verno de Jango ocorreram em cidades no João Goulart, ao saber das manobras milita-
eixo Rio/São Paulo. A primeira manifestação, res que estavam ocorrendo nos estados de
“Marcha da Família, com Deus, Liberdade”, Minas Gerais e São Paulo, viaja para Brasília,
foi convocada por setores conservadores e que não oferecia segurança ao presidente, por
Vera Chaia
Graduada em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutora em
Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Professora do Programa de Estudos Pós-
Graduados em Ciências Sociais e do Departamento de Política da Faculdade de Ciências Sociais
e Coordenadora e Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política – Neamp, da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pesquisadora do CNPq (São Paulo, Brasil).
vmchaia@pucsp.br
Miguel Chaia
Graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutor em
Sociologia pela Universidade de São Paulo. Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados
em Ciências Sociais e do Departamento de Política da Faculdade de Ciências Sociais e Coorde-
nador e Pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política – Neamp, da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (São Paulo, Brasil).
mwchaia@pucsp.br
Nota
(1) Tal medida no governo Getúlio Vargas permitiu que Juscelino acelerasse a mudança da ca-
pital do Rio de Janeiro para Brasília
177
Referências
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Recebido em mar/2008
Aprovado em jun/2008
Resumo Abstract
O artigo resultou de pesquisa realizada junto This article is the result of a research study
ao Memorial do Imigrante, SP, cujo objetivo carried out at the Immigrant’s Memorial of
foi a construção de um banco de dados sobre São Paulo. It aimed at the construction of a
a entrada de imigrantes refugiados em São database about the entrance of refugees in São
Paulo, no pós-Segunda Guerra Mundial, entre Paulo after the Second World War, between
1947 e 1951. Trabalhou-se com uma amostra 1947 and 1951. We worked with a sample of
de pouco mais de 10%, de um total de mais 10% of a total of more than 5,000 forms. We
de 5.000 fichas. Considerou-se a inserção dos considered the immigrants’ insertion in industrial
imigrantes nas ocupações industriais e nas em- occupations and in employing companies, as
presas empregadoras do período, a localização well as the location in the territory of those
no território dessas empresas e residências, companies and residences, with the objective
com o objetivo de entender as formas de agru- of understanding the forms of agglutination of
pamento de cada uma das nacionalidades que each nationality that composed those groups
compõem o grupo de imigrantes provenientes of immigrants, which originated from Eastern
da Europa do Leste e que se encontravam em Europe and were in refugee camps. The results
campos de refugiados. Os resultados revelam can help to understand the urban history and
uma faceta da história urbana da imigração em the development of working class districts in
São Paulo. São Paulo.
Palavras-chave: São Paulo; bairros; indús- Keywords: São Paulo; districts; industry;
tria; imigrantes; refugiados. immigrants; refugees.
características gerais da sua evolução, como aponta caminhos percorridos nas primeiras 183
“mão-de-obra qualificada” e, especialmente, fases, em que a busca de empregos era de-
a formação dos bairros industriais. terminante. Há diferenças entre a concen-
Embora seja um fato mais ou menos tração das empresas e das residências, que
aceite, que não há formação de quistos ou talvez se deva ao processo descrito ante-
bairros étnicos em São Paulo, como é o caso riormente, em que à tendência de concen-
de Nova York, por exemplo, podemos dizer tração industrial se soma a busca dos locais
que há evidentes concentrações étnicas. Tal- em que os aluguéis ou os terrenos eram
vez a não visibilidade desse grupo de nacio- mais baratos.
nalidades na cidade de São Paulo e no inte- De uma maneira geral, também as pro-
rior se deva exatamente ao fato de que se fissões declaradas no passaporte no momen-
tratam de grupos menos expressivos nume- to da chegada a São Paulo determinaram as
ricamente. A localização desses imigrantes oportunidades de trabalho na chegada dos
na cidade de São Paulo evidencia aglomera- imigrantes, mas indicam algumas diferenças
ções que nos ajudam a entender as aproxi- entre as efetivamente desempenhadas no
mações a determinados grupos, como os de primeiro emprego.
mesma nacionalidade ou religiosos. A locali- Ou seja, se havia 71% dos imigrantes
zação também é determinada pela oferta de classificados como operários qualificados,
oportunidade de trabalho. 21%, como técnicos e profissionais de ní-
A concentração/dispersão dos imigran- vel médio e superior e 9% como serviços
tes pelos bairros na cidade de São Paulo e ocupações não qualificadas, os empregos
Serviços e
Operários Téc. Prof. Nível
ocupações Total
qualificados médio e superior
não qualificadas
Passaporte 71,0% 20,6% 9,1% 100%
1º emprego 79,6% 11,7% 8,6% 100%
efetivamente conseguidos nos primeiros ríodo examinado. Assim, foi possível acom-
contratos em São Paulo indicam um aumen- panhar, através das mudanças de emprego,
to daqueles classificados como operários as trajetórias ascendentes desses primeiros
qualificados para quase 80%, ao passo que técnicos qualificados que compunham o gru-
os classificados como técnicos de nível médio po. Além disso, as ocupações de nível mé-
e superior caem para 11,5%, enquanto que dio e superior já envolviam, desde o início,
os serviços se mantêm, praticamente. Esse cargos como engenheiros, assistentes de
dado é significativo, na medida em que in- várias ordens, calculistas, administradores,
dica um primeiro ajuste das qualificações ao químicos, especialistas em hidráulica, em
mercado de trabalho e salários ao chegar, laticínios, embutidos, papéis, gráfica, rádio,
de acordo com as condições paulistas. elevadores, professores, etc.
Uma análise das ocupações que com- Uma análise da distribuição das ocupa-
põem cada uma dessas categorias profissio- ções entre nacionais e estrangeiros poderia
nais ajuda também a compreender o leque de mostrar em que medida os estrangeiros
opções que eram oferecidas aos imigrantes. realmente ocupavam os postos mais quali-
Um quadro demonstrativo das principais ficados. No entanto, isso demandaria outro
profissões, oferecido pelo Departamento de tipo de fontes. De qualquer maneira, é bom
Imigração e Colonização à época, evidenciam lembrar que estávamos sob a legislação dos
semelhanças entre as profissões encontradas chamados 2/3 (dezembro de 1930), que
na pesquisa (profissões desempenhadas pe- visava proteger o trabalhador nacional, o
los “Displaced persons” – Dps, RIC n. 1950). que provocou muitas nacionalizações, con- 185
Os operários qualificados referiam-se a forme pudemos verificar nos depoimentos
ocupações especializadas na indústria metal- e nas anotações das fichas preenchidas no
mecânica como automecânicos, eletricistas, momento da chegada. A julgar, entretanto,
ferramenteiros, ajustadores, montadores, pelas justificativas dos defensores da imigra-
serralheiros, torneiros-mecânicos, etc., assim ção contidas nos artigos da revista Imigra-
como soldadores, vidreiros, ferreiros, enca- ção e Colonização analisados em trabalho de
nadores, carpinteiros, marceneiros, etc., que 2007 (Salles, 2007), os estrangeiros eram
refletiam bem o estágio de desenvolvimento muito bem-vindos quando se tratava de de-
da indústria paulista na época, ou seja, uma sempenhar tarefas que exigiam qualificação.
indústria a caminho da industrialização pesa- Dessa maneira, as empresas empre-
da que caracterizaria o desenvolvimentismo gadoras nesse momento, muitas das quais
da época JK com a implantação da indústria já colocavam as suas necessidades junto às
automobilística na década seguinte. autoridades e à Hospedaria, de modo que
Na medida do possível, acompanhou-se boa parte já chegava com um contrato de
os depoimentos orais colhidos pela Profa. trabalho, eram empresas de médio e gran-
Sonia M. de Freitas e disponíveis junto ao de porte, como frigoríficos, construtoras,
Arquivo da Biblioteca do Memorial do Imi- firmas de engenharia, mecânica, de auto-
grante, bem como realizaram-se entrevis- peças, de produtos alimentícios, de tecidos
tas com alguns membros significativos das e estamparia, de motores, como a montado-
nacionalidades imigrantes presentes no pe- ra da General Motors, indústria de couros,
Outras
Centro Norte Sul Leste Oeste Total
regiões
Nacionalidades
nº % nº % nº % nº % nº % nº % nº %
Total 110 100 19 100 50 100 31 100 48 100 47 100 305 100
186 mineração, etc. Entre as empresas, estão sobretudo Mooca, Belenzinho, Ipiranga, Ta-
relacionados nomes, muitos dos quais es- tuapé, Vila Bela, Vila Zelina, Vila Prudente,
trangeiros, como a Swift, a Armour, a Ge- São Caetano, Santo André, São Bernardo,
neral Motors, a Firestone, ou pertencentes etc. De uma maneira geral, os poloneses se
a imigrantes como as Indústrias Reunidas F. encontram em maior número, na Zona Oes-
Matarazzo, a Fichet Schwartz e Hautmont, te (39,6%), Sul (36%) e Centro (20%). Os
a Fiação de tecidos e estamparia Ipiranga ucranianos, mais concentrados em São Cae-
Jafet, etc. tano, encontram-se em 22,6% na Zona Les-
A Tabela 4 fornece uma idéia da dis- te, depois Oeste (12,5%), Norte (10,5%),
tribuição dos imigrantes pelas empresas, se- Sul (8%), Centro (4,5%). Para os húngaros,
gundo diferentes regiões da cidade de São há uma maior concentração em empresas da
Paulo. Zona Norte (21,1%), Leste (12,9%), Oeste
Como se verificou pela análise efetuada (12,5) e menor no Centro (9,1%). Os baltas
por Langenbuch sobre a estruturação dos e os russos se concentram mais em empre-
bairros naquele momento, há uma nítida sas localizadas no Centro e Zona Norte.
concentração em bairros industriais que Com relação aos locais de residência,
compõem o Centro, a Zona Sul, Leste e Oes- há diferenças interessantes no que se refe
te, que são zonas de expansão industrial na re à concentração e que nos auxiliam na
década de 1940, sobretudo as regiões Oeste compreensão dos caminhos seguidos pelos
em expansão, a Água Branca, a Lapa, Vila grupos em São Paulo. As escolhas, como
Romana, Vila Anastácio, Osasco; Sul/ Leste, dissemos, do local de moradia, dependiam,
Outras
Nacionalidades Centro Norte Sul Leste Oeste Total
regiões
nº % nº % nº % nº % nº % nº % nº %
Total 54 100 21 100 107 100 76 100 93 100 42 100 393 100
é claro, em grande medida, das oportunida- tratava fornecia a moradia ou moravam no 187
des de emprego e de salário e se deveram emprego, em casos de serviços domésticos.
também, em grande parte, às oportunidades Quando se tratava, porém, de aluguel, a es-
oferecidas pelo mercado imobiliário em São colha se dava pelos bairros mais próximos
Paulo, à formação dos bairros residenciais, ao trabalho e aos parentes e conterrâneos.
etc. No entanto, dada a residência anterior No entanto, essa aproximação também era
das mesmas nacionalidades em São Paulo, bastante reveladora do processo de adap-
as opções são bastante reveladoras das re- tação dos imigrantes; havia aglutinação por
lações que então se estabeleceram em São nacionalidade, mas a filiação religiosa ou po-
Paulo. lítica também determinava a aglutinação.
Os mecanismos de adaptação a São Entre os poloneses, por exemplo,
Paulo, tanto para os imigrantes que ha- os católicos e os judeus formavam grupos
viam chegado pela IRO, quanto para aque- distintos. O Sr. Zdzislaw (entrevistado por
les que vieram através de cartas de chama- Freitas, 1994-), por exemplo, polonês, ca-
da de parentes ou amigos, eram bastante tólico, mecânico de profissão e cuja primeira
semelhantes. Em ambos os casos, além do ocupação foi numa indústria automobilísti-
emprego, a primeira providência a tomar ca, chegou bastante jovem, com a família,
era a moradia. Nos primeiros tempos, fica- e escolheu a Vila Zelina, por razões de pa-
vam em casa de parentes ou amigos, até o rentesco e de vizinhança com outros conter-
primeiro salário permitir o aluguel de uma râneos já residentes no bairro. Era prove-
casa. Em alguns casos, a empresa que con- niente de uma família de agricultores, cujo
pai era proprietário de um moinho na região europeu, pessoas de quem ficaram amigas
de Chelm, lugarejo a Leste da Polônia, a 40 depois. A primeira moradia em São Paulo
km da fronteira russa, rica em grãos, trigo, foi na Vila Zelina, onde já se encontravam
centeio, batata e beterraba para produção os poloneses residentes em São Paulo, além
de açúcar. Sua história é semelhante, em de outras nacionalidades do Leste europeu.
muitos pontos, à dos judeus poloneses, no Imediatamente se filiaram à Sociedade Po-
entanto, há diferenças bastante marcantes, lonesa Joseph Pilsudski, marechal libertador
já na própria Europa. A família perde a pro- da Polônia em 1918. O pai conseguiu em-
priedade quando a Polônia é invadida por prego no Moinho Gambá, na Borges de Fi-
russos e alemães durante a guerra. Nessa gueiredo. Para o entrevistado, que era espe-
ocasião já existia a United Nations Refuges cializado em mecânica, o primeiro emprego
Rehabilitalion Association (UNRRA) e a fa- foi na Mecânica Nacional, fábrica de tornos
mília pôde se refugiar no campo de refu- mecânicos do Grupo Matarazzo, passando
giados na Alemanha, ainda em 1943. Ali o depois para a Usina de Aços Villares em São
entrevistado teve oportunidade de estudar Caetano. No segundo emprego, o salário su-
mecânica e tornou-se técnico em mecâni- biu 50% em relação ao primeiro. Da Villares
ca. No final da guerra, a família trabalhava passou para a Vemag, indústria automobi-
numa fábrica de blocos de concreto. Com a lística, e de lá para a Mercedes, sempre se
criação dos campos de refugiados por na- aperfeiçoando na profissão (o que dá uma
cionalidades, pela UNRRA, lá ficaram até idéia das várias trajetórias semelhantes de
188 1949, período em que freqüentou a escola, técnicos especializados e com qualificação).
o ginásio e a escola técnica. O pai, com o Casou-se e foi morar no bairro do Paraíso
auxílio da UNRRAe da Cruz Vermelha, arru- com os sogros. A relação com a colônia se
mou trabalho, mas como não queriam voltar dá através da Sociedade Polonesa, que fica
à Polônia, onde haviam sido expropriados, ao lado da Estação Armênia do Metrô, onde
optaram pela emigração. Várias possibilida- os poloneses se reúnem todos os sábados
des se apresentavam além do Brasil: Cana- e domingos, e da Igreja, a Capela Polone-
dá, Austrália, EUA e Argentina. Dizia que os sa, Nossa Senhora Auxiliadora, com missa
solteiros podiam ir para o Canadá, a família em polonês e localizada no bairro do Bom
poderia ter ido para os EUA, mas ele tinha Retiro. Pratica o escotismo juntamente com
20 anos e teria que fazer o serviço militar e amigos poloneses. A língua é falada em casa,
havia a guerra da Coréia. Pretendiam então ao lado do português – até os netos sabem
ir para a Argentina, onde tinham parentes. polonês. Lêem jornais escritos em polonês, o
Subitamente, entretanto, a Argentina fe- Ziarna I Zlosy (Espiga), dirigido por padres
chou a imigração. Como tinham parentes e também o Stepien, dirigido por salesianos
também em São Paulo, vieram para o Brasil. naturalizados brasileiros.
Chegaram na Ilha das Flores onde permane- Além disso, a trajetória de um judeu
ceram até surgir a oportunidade de trabalho polonês é um pouco diferente: o Sr Abraão
em São Paulo, onde ficaram duas semanas (Freitas, 1994-), judeu polonês, cujo pai
na Hospedaria. O relato da viagem é de que pertencia a um grupo de resistência na Po-
havia muitas outras nacionalidades do Leste lônia e conseguiu se refugiar na Itália, teve
a mãe aprisionada num campo de concen- Paulo. Não possuímos dados, entretanto,
tração para mulheres, tendo sido resgatada tão minuciosos. Não há como, a não ser
apenas depois da guerra. Uma vez tendo se pelos depoimentos, dimensionar detalha-
decidido pelo Brasil porque a mãe foi incen- damente as diferenças de nível educacional,
tivada por um irmão, além de terem tido senão fornecer um perfil geral.
auxílio internacional e da Hebrew Interna- Assim, as Tabelas 2 e 3, sobre as
tional Association (HIAS) vieram para São ocupações, pode auxiliar na análise das
Paulo onde foram acolhidos pela comunida- qualif icações. É nítida a diferença entre
de judaica; primeiro foram morar no bair- poloneses e ucranianos, por exemplo, e os
ro de Santana e depois no Bom Retiro. A húngaros, baltas e russos, no que se refe-
comunidade promovia eventos para ajudá- re à concentração nas ocupações classifica-
los e integrá-los. O pai, que era comerciante das como operários qualificados, técnicos e
antes da guerra, começou como mascate de profissionais de nível médio e superior e os
roupas, logo conseguiu comprar uma ca- serviços e ocupações não qualificados. Po-
sa própria no Bom Retiro. O entrevistado loneses e ucranianos apresentam uma con-
estudou no Colégio Renascença e estudou centração maior entre os operários quali-
depois na PUC. Começou a trabalhar no ficados e ocupações menos qualificadas do
Renascença como auxiliar de limpeza, ainda que entre os profissionais de nível médio
criança, depois passou a inspetor de alunos. e superior. Entre os húngaros, baltas e
Secretário, Vice-Diretor e Diretor da Esco- russos, a maior concentração está entre as
la. Conta que os demais alunos eram judeus ocupações mais qualificadas, como já in- 189
poloneses, alemães, russos, lituanos, além dicavam os artigos da revista Imigração e
de espanhóis e portugueses. Colonização (RIC) e os argumentos da Co-
Dessa forma, parece que a colônia missão Brasileira encarregada de selecionar
identificada com o idioma e a cultura po- os imigrantes deslocados.
lonesa, de maioria católica, em São Paulo, Na sua trajetória posterior em São
existia mais ou menos paralelamente e sem Paulo, os húngaros serão empresários bem-
contactos diretos com a colônia dos judeus sucedidos, intelectuais e profissionais libe-
poloneses. Isso parece ser válido, também, rais. Assim se apresentam nos depoimen-
para todas as outras das nacionalidades que tos, como uma comunidade bem-sucedida
estudamos, na medida em que, como os em São Paulo.
poloneses, os demais também apresentam Quanto aos russos, não se apresentam
nítidas divisões por diferentes vinculações muitos empresários entre eles, são um gru
religiosas. po com alto nível cultural e educacional no
Há diferenças no nível educacional de terreno das artes e da cultura européia,
cada um dos grupos, também, o que deter- música e idiomas. Em artigo sobre os rus-
mina o destino profissional, de certa forma. sos no Chile (Norabuena e Uliánova, 1996,
Seria preciso uma análise detalhada, dentro pp. 2-3),as autoras afirmam que há um “bai-
de cada etnia, da qualificação profissional, xo prestígio das atividades burguesas” entre
do nível educacional e dos caminhos per- os russos nobres e ilustrados, o que pode
corridos na trajetória profissional em São ter influenciado nas escolhas ocupacionais
que os dirigentes e associados não es- persistênciada idéia da volta aos seus países
tavam empenhados em reunir a comu- de origem, volta que implicava mobilização
nidade ucraniana residente no Brasil e, política, pelo menos para parte significativa
em particular, em São Caetano: seus deles, mobilização importante e que perma-
interesses estavam voltados para o de- neceu por algum tempo, pelo menos para a
senrolar dos acontecimentos político- primeira geração do pós-guerra, o que sig-
sociais na Ucrânia da época. (Jovanovic, nificou, ao nosso ver, um elo importante,
1992, p. 25) um vínculo muito forte que sedimentou as
identidades (e as diferenças) que se forma-
Ou seja, ram então, e as intermediações das insti-
tuições com a sociedade paulista da época
[...] os reais interesses do povo ucra- e com os seus conterrâneos anteriormente
niano se resumem no estabelecimento
aqui presentes.
de um país soberano, democrático e
As observações feitas acima para os
republicano (clara alusão à Rússia Im-
ucranianos valem para uma parte signifi-
perial e ao governo soviético instalado
cativa dos russos, mas nem tanto para os
no começo dos anos 20).
húngaros que, depois da tentativa de levan-
Esse fato tem uma indicação clara de que te popular em 1956, de cunho nacionalista,
sufocado pelo Exército soviético com enor-
[...] a primeira corrente imigratória me derrame de sangue, não visualizam um
192 pres ente em São Caetano se compu- retorno possível.
nha de dois tipos básicos de pessoas: Além das divisões regionais apontadas
um grupo de ex-oficiais do Exército acima, as diferenças entre as diferentes le-
ucraniano e um grupo de trabalhado- vas se davam em função das origens sociais
res que abandonaram suas terras em e familiares. Havia a experiência bastante
decorrência das precárias condições de comum, dos campos de trabalhos força-
vida. (Ibid.) dos. Entretanto, dada a situação vigente na
Europa do Leste, misturavam-se pequenos
Essas observações valem também pa- camponeses e agricultores que tiveram suas
ra os russos e para as outras comunidades terras invadidas, com proprietários rurais
presentes em São Paulo. Se, por um lado, de grande porte e mesmo industriais, pes-
interessava reconstruir as vidas pessoais e soas pertencentes na origem à burguesia
familiares num país de inúmeras possibili- russa, por exemplo, intelectuais, professo-
dades, que poderia lhes permitir “esquecer, res, profissionais liberais. Essas diferenças
perder-se no mundo”, “não serem mais determinavam as trajetórias na Europa e,
encontrados”, como disse uma depoente posteriormente, no Brasil. Sendo assim,
húngara, para uma boa parte das comuni- em São Paulo, as comunidades formaram
dades tratou-se de preparar a volta. Uma subgrupos em torno de algumas institui-
das dimensões interessantes, então, pre- ções, associações, Igrejas e pessoas, assim
sentes nos depoimentos, e inesperadas, do como procuraram se aglutinar nos bairros
processo vivenciado pelos “deslocados”, é a em que já existiam conterrâneos que, por
Nota
(1) Esse retrospecto se baseia em Langenbuch (1976).
Referências
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cipais profissões dos imigrantes deslocados de guerra, colocados no estado de São Paulo
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UNB, n. 2.
196
Recebido em maio/2008
Aprovado em ago/2008
Abstract
The Cerrado (Woodland Savanna) of Brazil’s
Central-West region continues threatened as a
result of the occupation of its soil by exportable
products, which have been fundamental,
Resumo from 1970 onwards, to the development of
Os Cerrados do Centro-Oeste continuam the region. The production of commodities
ameaçad os pela ocupação de seu solo com replaced the natural vegetation with soy
produtos exportáveis, determinantes, a par- beans, maize, sorghum and pastures, which
tir de 1970, para o desenvolvimento da re- do not feed the ground waters of the Cerrado,
gião. A produção de commodities substituiu affecting more than 300 watercourses. Two
a vegetação natural por soja, milho, sorgo e distinct moments marked the occupation of
pastagens e estas não alimentam os lençóis the Central-West region: the 1970-1980
freáticos dos cerrados, afetando mais de 300 period, when the economic transformations
cursos d’água. São dois momentos distintos imposed a process of perverse occupation
dessa ocupação: de 1970 a 1980, período on the biome, as a result of agriculture and
em que as transformações econômicas impu- farming modernization, and the decade of
seram um processo de ocupação perversa ao 1990, when the effects of this occupation,
bioma cerrado; na década de 1990, os efeitos associated with the transformations provoked
dessa ocupação se manifestam de forma mais by globalization, manifested themselves more
contundente, provocando um processo de strongly, leading to an extensive process of
concentração urbana de grandes proporções. urban concentration.
Palavras-chave: ocupação dos cerrados; Keywords : occupation of the cerrado;
commodities; Centro-Oeste; concentração ur- commodities; Brazilian Central-West region;
bana; desenvolvimento regional. urban concentration; regional development.
de convivência mais profunda, enfim, sau- faz com que a vegetação e a vida animal
dades das raízes ligadas essencialmente ao nos cerrados sejam mais importantes
cultivo da terra. sob o solo do que acima de sua superfí-
Outro aspecto tem a ver com a forma cie (Floresta de cabeça para baixo), aju-
como se utiliza o solo e os problemas am- da a explicar a ausência de campanhas
bientais derivados de seu uso. Sendo assim, públicas voltadas a sua preservação. (o
cabe uma pergunta: existe uma correlação grifo é nosso).
entre ocupação e desigualdades sociais nas
cidades, frutos de um processo desordena- Ao se fazer uso intensivo de pivôs, 2
do e perverso de ocupação do cerrado no colocam-se em risco as fontes perenes de
Centro-Oeste? água, muitas delas provenientes de “águas
Primeiramente, por que perverso? O profundas”. A esse respeito, Abramovay
“perverso” pode ser explicado a partir de (1999, p. 9) estima que o consumo de água
três variáveis que se complementam e são em pivôs, em certas épocas, chega a 3,45
indispensáveis no processo de transforma- bilhões de litros utilizados em irrigação dia-
ção da região numa grande produtora de riamente, apenas no estado de Goiás – cer-
commodities (grãos, cana-de-açúcar, car- ca de 20 vezes o consumo doméstico diário
nes e algodão, entre outros): ver o cerrado do milhão de pessoas que vive em uma ci-
como área de fronteira; utilizar largamen- dade como Goiânia. “É um risco, uma vez
te pivôs de irrigação e usar intensivamente que não se tem conhecimento confiável dos
fertilizantes, sobretudo agrotóxicos. Inú- aqüíferos da região, suas áreas de recarga e 201
meros estudos, principalmente do Centro descarga, seus ciclos internos e sua capaci-
de Pesquisas Agropecuárias dos Cerrados dade de suporte”.
(CPAC) e da Empresa Brasileira de Pesquisa Em 2003, essa situação de conflito
Agropecuária (Embrapa), têm apontado as entre irrigação e abastecimento urbano
fragilidades do cerrado no que se refere à fez com que o Ministério Público de Goiás
sua forma de ocupação, ou seja, ocupar esse lacrasse pivôs centrais, para que não se
bioma como área de fronteira é exaurir dele comprometesse o abastecimento de cidades
toda a fertilidade que possui, fertilidade es- inteiras.
sa que tem como função garantir o futuro Outro problema está relacionado ao
do próprio bioma. uso de fertilizantes e agrotóxicos, sobre os
Mais uma vez, vale registrar as obser- quais só recentemente o Congresso Nacional
vações de Abramovay (1999, p. 5) quanto à produziu legislação específica visando o con-
abundância de água nos cerrados e sua fun- trole de sua utilização. Ainda assim, um con-
ção irrigadora do próprio solo: trole mais efetivo esbarra na morosidade e
deficiência do aparato de fiscalização. Surge,
Essa concentração do período das chu- portanto, a hipótese de que também é perti-
vas sucedida por uma prolongada seca nente relacionar as desigualdades sociais nas
(4 a 7 meses) determina a estratégia cidades às questões ambientais advindas de
adaptativa das plantas de buscar água um processo produtivo não sustentável do
a dez metros de profundidade, o que ponto de vista ecológico, não as associando
apenas às formas clássicas de explicação das melhoria das precárias estradas rodoviárias
desigualdades que, em parte, estão rela- e a implantação de infra-estrutura, ao longo
cionadas ao forte processo migratório e ao do tempo, foram importantes para a con-
êxodo rural. formação dos núcleos urbanos, porém insu-
Migrar, num primeiro momento, não é ficientes para dar a densidade demográfica
uma decisão que se faz de forma tranqüila, necessária à ocupação do Centro-Oeste.
pois significa romper com laços familiares, Reconhece-se, também, que o inves-
com relações de vizinhança. Na verdade, é timento maciço do setor público, principal-
uma profunda ruptura com o modus viven- mente nas esferas federal e estadual, pro-
dus no qual se estava inserido por um longo duziu estímulos à formação de uma rede
período de tempo. Num segundo momento, urbana que se configurou de forma dispersa
quando o migrante já está novamente ins- na maior parte do território, porém densa
talado, ainda que em situação precária, ele em pontos específicos como Brasília, Goiâ-
se engaja no propósito de promover trans- nia, Campo Grande e Cuiabá. A decisão do
formações pessoais e familiares, buscando Estado de atuar como principal agente es-
obter melhores condições de vida. truturador da região se acentuou, sobretu-
No caso do cerrado, o processo perver- do a partir dos anos 30, com a política de-
so de preparo da terra, visando ampliar a nominada “Marcha para o Oeste” e a criação
produção de grãos e de carne, está exaurin- da Superintendência de Desenvolvimento do
do as potencialidades naturais de seu solo e Centro-Oeste (Sudeco) em 1967, que pas-
202 tornando o acesso à água cada vez mais di- sou a coordenar as ações e investimentos
fícil, na medida em que o lençol freático vai públicos destinados ao Centro-Oeste.
ficando mais profundo. Como conseqüência, Como destaque de ações concretas,
várias nascentes secaram.3 deve-se salientar a construção de Goiânia,
cuja pedra fundamental foi lançada em 24
de outubro de1933. Já nos anos 50, antes
mesmo da construção de Brasília, Goiânia já
Formação da rede era um núcleo urbano expressivo, com uma
urbana no Centro-Oeste população acima de 100 mil habitantes e
um comércio dinâmico, sinalizando que ti-
Apesar de o Centro-Oeste, no seu conjunto, nha vocação e assumiria muito brevemente
se apresentar como um território de baixa a condição de núcleo polarizador, o que de
densidade demográfica, pode-se dizer que, a fato ocorreu.
partir dos anos 70, formou-se aí uma rede A construção de Brasília, a partir da se-
urbana que desempenha papel importante gunda metade dos anos 50, consolidada no
na estruturação do espaço regional-urbano. início da década de 1960, intensificou ainda
No processo histórico, identificam-se alguns mais o processo de ocupação da região, na
vetores que dinamizaram a ocupação do medida em que atraía um contingente signi-
Centro-Oeste. Assim, estímulos endógenos ficativo de imigrantes. A implantação dessas
como as atividades mineradoras, a pecuá- duas capitais planejadas no Planalto Central
ria extensiva, a implantação de ferrovias, a possibilitou a formação do “eixo” Goiânia-
1940 1950
1977 1989
204
estados de Goiás, Mato Grosso, Mato Gros- tariamente nas cidades. Esse grau eleva-
so do Sul e pelo Distrito Federal. do de urbanização vem ocorrendo a partir
O Centro-Oeste brasileiro ocupa 18,8% dos anos 1970. Até então, a população do
do território nacional e possui uma popula- Centro-Oeste era predominantemente ru-
ção de mais de 11,5 milhões de habitantes, ral. Isso significa que a dinâmica econômica
representando 6,9% da população total das cidades existentes era determinada pelo
brasileira. Desse contingente, 86,7% resi- setor rural, cuja base econômica era cons-
dem nas cidades, conforme Tabela 1. tituída por uma economia de subsistência,
Percebe-se que todos os estados da o que, em termos de renda, empobrecia a
região têm sua população vivendo majori- economia de toda a região.
Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Depto. de População e Indicadores Sociais, Censos Demográfico.
Esses dados, para Milton Santos (1996, Esse estudo reconhece, portanto, que a
p. 61), mostram a região Centro-Oeste co- região tinha como característica uma popu-
mo um espaço muito receptivo aos fenô- lação rarefeita, o que lhe conferia um aden-
menos de urbanização, dado, segundo ele, samento pouco significativo e uma economia
o seu caráter de despovoamento. Por isso, assentada em formas arcaicas de relações
descobre que a região: sociais (pecuária extensiva, agricultura de
subsistência, regime de posse da terra e de
Pode, assim, receber uma infra-estru- trabalhadores agregados), o que implicava
tura nova, totalmente a serviço de uma “uma relação socioeconômica com grande
economia moderna, já que em seu ter- capacidade de resistência aos estímulos do
ritório eram praticamente ausentes as mercado”.
marcas dos precedentes sistemas técni- Observando-se os dados da população
cos. Desse modo, aí o novo vai dar-se em termos absolutos (Tabela 3), pode-se
com maior velocidade e rentabilidade. E verificar que, até a década de 1960, a popu-
é por isso que o Centro-Oeste conhece lação do Centro-Oeste representava menos
uma taxa extremamente alta de urbani- de 5% da população brasileira. A partir da
zação, podendo nele se instalar, de uma década de 1970, esse percentual se ampliou,
só vez, toda a materialidade contem- passando de 5,4% para 6,9%, conforme o
porânea indispensável a uma economia Censo 2000. Verifica-se que 60,6% da po-
exigente de movimento. pulação do Centro-Oeste está concentrada
206 no estado de Goiás e no Distrito Federal.
Outra interpretação, mais recente, não De 1940 até o final dos anos 60, as
reconhece a região como um vazio econô- taxas de crescimento populacional, apresen-
mico ou demográfico, na medida em que o tadas na Tabela 4, foram superiores às das
ciclo mineratório possibilitou a emergência demais regiões do país. A partir dos anos
de núcleos urbanos necessários às ativida- 70, continuaram ascendentes, porém em ín-
des econômicas da mineração. Segundo dices menores. Cabe destacar que as taxas
estudo do IPEA, IBGE, Unicamp/IE/Nesur de crescimento do Centro-Oeste só perdem
(2002, p. 163), para o Norte do país, o que evidencia o pa-
pel desempenhado pela região como “porta
[...] não se tratava de uma área até en- de passagem” para o processo de interiori-
tão desocupada, ou um grande vazio, zação do desenvolvimento.
como é suposto freqüentemente. Em A partir de 1970, portanto, com exce-
função do legado histórico, a região ção da região Norte, as taxas de crescimento
dispunha de núcleos e experiências de anual da população total do Centro-Oeste
vida urbanas importantes, ainda que foram superiores à taxa nacional e às das de-
dispersas, tipificando uma ocupação mais regiões do país. Ressalte-se que todos
descontínua e sustentada por uma ba- os estados do Centro-Oeste também tive-
se econômica tradicional, subproduto ram incremento populacional acima do con-
característico da atividade mineratória junto das demais regiões do país, sendo que
originária. o Mato Grosso, puxado por aglomerações
Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Depto. de População e Indicadores Sociais. Censo Demográfico.
Fonte dos Dados Básicos: IBGE, Censos Demográficos de 1940 a 1991. Tabela extraída do Relatório MPO/
SEPRE “Revisão das Estratégias de Desenvolvimento do Centro-Oeste: Relatório Final da Coordenação
(1998)”. 1991/2000 – IBGE – Download – Censo/Dados do Universo
como Sinop e Alta Floresta, registrou taxa expulsão existentes na dinâmica econômica
de crescimento geométrico de 5,4% no pe- capitalista de outras regiões, com efeitos
ríodo 1980-91, reduzindo para 2,4% no perversos em uma economia como a brasi-
período 1991-2000. Nesse período, Goiás e leira, quanto de atração, existentes no Cen-
o Distrito Federal obtiveram as maiores ta- tro-Oeste. Sem a combinação desses dois fa-
xas, 2,5% e 2,8% respectivamente. tores, atração de um lado e expulsão de ou-
Ora, manter taxas expressivas de cres- tro, o “fenômeno” não teria transformado a
cimento populacional e sustentá-las duran- região num espaço econômico e urbanizado,
te um longo período (de 1950-1980) jus- integrado à economia nacional e internacio-
tifica-se tanto pela existência de fatores de nal e integrador da região Norte.
oportuna a argumentação de Borges (1999, Esse tipo de economia tem suas espe-
p. 8) de que, com os incentivos e financia- cificidades assentadas numa dinâmica que
mentos governamentais, a produção no exige, de um lado, cada vez mais capital (ca-
campo passou a atuar sob a lógica capita- pital inovado) e, de outro, cada vez menos
lista no complexo grãos e carne, com bus- mão-de-obra (especialmente qualificada) e,
ca crescentes de produtividade, voltando-se por conseqüência, novos produtos em que
prioritariamente à exportação. se incorporam cada vez mais trabalho mor-
to em detrimento do trabalho vivo.
As mudanças que ocorreram no pro-
cesso de reprodução do capital na região fo-
Conformação de uma ram radicais, pois evoluíram de um processo
rede urbana concentrada de acumulação simples para um processo de
acumulação ampliada, ou seja, se antes pro-
O processo de desenvolvimento urbano do duziam valores de uso, passaram a produzir
Centro-Oeste revestiu-se de uma dinâmica praticamente valores de troca. Isso não sig-
contraditória marcante. De um território nifica que sua economia tenha sido fechada,
pouco adensado e com uma base econômi- havendo comercialização apenas entre os
ca extremamente precária, evoluiu para um seus próprios membros e nunca com o ex-
processo acelerado de urbanização sustenta- terior, mas sim que o porte de sua produção
do por uma economia voltada para o abas- e, conseqüentemente, de sua comercializa-
210 tecimento do mercado externo. A economia, ção (ou seja, as transações comerciais) foi
até o final dos anos 60, atraía um tipo de insuficiente para assegurar a continuidade
mão-de-obra que demandava tecnologia de de um processo ininterrupto de produção e
baixo custo e, portanto, não era poupadora de consumo de escala.
de força de trabalho. Os migrantes que para Em outros termos, a produção ante-
cá se dirigiam estavam ligados às atividades rior tinha como objetivo principal abaste-
de natureza tradicional e eram basicamente cer a própria região e, muito raramente, o
constituídos de trabalhadores despojados de mercado externo, já que produzia excedente
meios de produção. apenas para os mercados locais, portanto,
Com o advento da modernização da insuficientes para atender à demanda exter-
agricultura e a intensificação industrial das na. Isso permite concluir que as disparidades
economias urbanas, num quadro de de- regionais não seriam superadas enquanto os
pendência, alterou-se o perfil do migrante. investimentos públicos se dirigissem predo-
Entraram em cena os migrantes vindos do minantemente para o grande capital.
sul do país, detentores de capital, de novos No que se refere ao desenvolvimento
conhecimentos e apoiados por incentivos da produção para o mercado externo, os
governamentais. A combinação de capital, dados da Tabela 5 ajudam a entender essa
trabalho mais qualificado para lidar com dinâmica, na medida em que mostram o
equipamentos modernos e incentivos fiscais crescimento expressivo das exportações de
engendraram uma nova economia, voltada excedentes do Centro-Oeste pós-1970, so-
para o mercado externo. bretudo de produtos semimanufaturados e
Semi-
Brasil e regiões Básicos Manufaturados Total
manufaturados
Brasil 3,45 9,58 3,86 4,62
Região Norte 9,62 23,59 5,13 12,7
Região Nordeste -1,05 8,28 2,4 3,01
Região Sudeste 3,54 8,28 3,26 4,03
Região Sul 2,43 9,02 6,22 5,01
Região Centro-Oeste 16,48 20,85 11,99 16,82
Mato Grosso 22,23 48,08 9,02 20,82
Mato G. do Sul 19,61 39,29 15,21 20,88
Goiás 8,76 10,96 21,57 10,39
Distrito Federal -5,72 – 2,37 6,49
Fonte dos Dados Básicos: Ministério da Indústria e Comércio e do Turismo. Elaboração: Atlas Regional das
Desigualdades. IPEA/DIPES, IBGE.
Obs.: No campo onde não constam valores, não foi possível calcular a taxa de crescimento, pois, em alguns
anos, não ocorreram exportações. Tabela extraída do Relatório MPO/SEPRE “Revisão das Estratégias de De-
senvolvimento do Centro-Oeste: Relatório Final da Coordenação (1998)”.
manufaturados. Esses produtos são resul- externos e, num segundo momento, funcio- 211
tado dos novos processos produtivos im- naram como “imãs”, atraindo para si e para
plantados, advindos dos vários complexos seus respectivos entornos grandes contin-
agroindustriais de grãos-carnes, evidencian- gentes populacionais, já como fruto de uma
do o amadurecimento econômico da região mobilidade mais interna do que externa.6
no sentido de cumprir o papel de que fora Essa dinâmica resultou num processo
incumbida como região de fronteira, ou se- de “urbanização concentrada”, o que im-
ja, produzir excedentes para exportação e, plicou a existência de poucas cidades com
com isso, contribuir para o equilíbrio da ba- população elevada, ou seja, apenas 2,6 dos
lança comercial brasileira. municípios possuem população superior a
A mudança do perfil econômico da re- 100 mil habitantes. No entanto, estes, jun-
gião, evidenciada pelo comportamento das tos, detêm metade do contingente popula-
exportações, trouxe elementos que altera- cional da região (49,9%), lembrando que
ram a dinâmica das cidades e seus respecti- nesse quantitativo existem duas capitais:
vos funcionamentos. O processo de urbani- Brasília, capital nacional, e Goiânia, capital
zação, visto sob o aspecto populacional, foi regional, ambas com população acima de
extremamente acelerado em todo o Centro- 1 milhão de habitantes. No outro extremo,
Oeste, principalmente nas cidades médias encontram-se 32,1% dos municípios com
e grandes. Num primeiro momento, elas população de até 3 mil habitantes, onde re-
tiveram sua população aumentada em fun- sidem apenas 4,2% da população. Se, por
ção dos vários fluxos migratórios internos e um lado, esses números revelam a força de
Nº de
Distribuição por Estados População por Estado População total
Classes de municípios
população Resi-
MS MT GO DF MS MT GO DF Nº % %
dentes
até 3 mil 0 9 40 – 0,0 20,5 96,9 – 49 11,0 117,4 1,0
de 3 a 5 mil 8 22 64 – 33,5 89,2 246,1 – 94 21,1 368,9 3,2
de 5 a 10mil 20 34 55 – 146,9 250,1 390,9 – 109 24,4 787,9 6,8
de 10 a 20 mil 28 39 36 – 394,5 554,7 499,4 – 103 23,1 1.448,7 12,4
de 20 a 50 mil 16 15 31 – 438,8 469,2 959,7 – 62 13,9 1.867,8 16,1
de 50 a 100 mil 3 4 10 – 235,7 271,6 729,3 – 17 3,8 1.236,6 10,6
de 100 a 500 mil 1 3 5 – 164,9 848,9 987,9 – 9 2,0 2.001,7 17,2
de 500 a 1 milhão 1 0 0 – 663,6 0,0 0,0 – 1 0,2 663,6 5,7
mais de 1 milhão 0 0 1 1 0,0 0,0 1.093,0 2.051,1 2 0,4 3.144,2 27,0
Total 77 126 242 1 2.078,0 2.504,4 5.003,2 2.051,1 446 100 11.636,7 100
atração das médias e grandes cidades, de isso, reduzir a pressão migratória sobre os
outro, fica evidente a incapacidade das po- municípios maiores.
líticas locais e regionais no sentido de reter Já as cidades pequenas, com menos de
212 nos municípios menores sua população. Em 20 mil habitantes, têm sistematicamente ce-
outros termos, a modernização agrícola dos dido sua população para as cidades médias,
anos 70 desencadeou um processo de de- e estas, para as cidades grandes. Mesmo os
sertificação populacional que afetou grande municípios com menos de 100 mil habitan-
parte dos municípios do Centro-Oeste. tes possuem capacidade limitada de reten-
Ressalte-se que no Centro-Oeste, se- ção de seus moradores, certamente por não
gundo o Censo 2000, existem 446 municí- possuírem uma rede de serviços e de comér-
pios, sendo: 242 no estado de Goiás, onde cio capaz de atender às suas expectativas.
residem 43,0% da população da região; Dentre as cidades mais receptoras,
77 no Mato Grosso do Sul, com 17,9% da encontram-se as que estão na faixa de 100
população; 126 no estado de Mato Grosso, a 500 mil habitantes. Essas cidades recebe-
com 28,3% da população e o Distrito Fede- ram população da própria região e de ou-
ral, com 17,6% da população centroestina. tras regiões do país. No entanto, o topo da
Outro aspecto a ser considerado é que, “urbanização concentrada” está também nas
nos municípios de porte médio, as possibili- cidades com população acima de 500 mil ha-
dades de vida mais digna e com menos de- bitantes e menos de 1 milhão. Nesse pata-
sigualdades sociais são maiores. Nesse sen- mar, apenas duas cidades, Cuiabá (com me-
tido, políticas públicas voltadas para muni- nos de 483 mil) e Campo Grande (com 663
cípios desse porte deveriam ocupar priorita- mil). A Região Metropolitana de Goiânia e
riamente a agenda dos governantes, com o a Região de Desenvolvimento Integrado do
objetivo de fortalecer sua economia e, com Entorno (RIDE-Brasília) possuem, juntas,
mais de 4,5 milhões, ou seja, mais de 1/3 da mais disperso, apesar da existência de cen-
população (39,5%) de todo o Centro-Oeste. tros polarizadores como as capitais e outras
A concentração fica mais evidente quando aglomerações urbanas de menor porte, que
se observa a população residente urbana, foram importantes enquanto espaço estra-
em que aproximadamente 65% moram em tégico para alavancar a fase seguinte. A par-
Goiáse no Distrito Federal. tir dos anos 70, o perfil da região alterou-
Quanto à evolução da população urbana se com o crescimento acelerado de algumas
no Centro-Oeste, verifica-se que, com exce- cidades e a dinamização de centros urbanos
ção de Mato Grosso, a taxa de crescimento é de pequeno porte existentes em seu entor-
superior à média nacional. As maiores taxas no, ensejando o surgimento de uma rede ur-
de crescimento ocorreram em Goiás no pe- bana sem a construção de mecanismos que
ríodo de 1950-70, devido à construção de assegurassem a articulação e a complemen-
Goiânia e de Brasília, e no Mato Grosso no taridade entre as cidades (ver Michel Roche-
período de 1980-91. A explicação tem a ver fort, 1998, p. 19).
com a anexação de parte do estado do Ma- A idéia de “rede urbana” estimula
to Grosso ao recém-criado estado do Mato pensar na possibilidade concreta de que é
Grosso do Sul. necessário que as cidades se articulem em
Todo esse processo resultou na eleva- função de objetivos comuns, criando verda-
ção da taxa de urbanização da região, que deiras “redes de cidades”, o que implica ne-
passou de 21,5% em 1940, 48% em 1970 cessariamente romper com as formas ver-
para 86,7% em 2000, sendo que no Distrito ticalizadas e hierarquizadas ainda hoje pre- 213
Federal essa taxa atinge 95,6% (Tabela 1). dominantes e evoluir para formas que pri-
Obviamente, a população rural, em vilegiem o poder sinergético que há nessas
termos absolutos, vem decrescendo a taxas “redes”, em maior escala, e nas cidades, em
elevadas, refletindo um processo rápido de escala menor. Isso significa que as cidades,
deslocamento da população rural para as ao invés de competirem entre si, devem es-
periferias das cidades pequenas, médias e tabelecer relações de complementaridade,
grandes. de modo que “o específico” de cada cidade
Vale destacar que as ações governamen- da rede seja potencializado e não sufocado,
tais, de um lado, estimularam o desenvol- neutralizado.7
vimento da região, sobretudo as atividades A Tabela 7 mostra em quais centros
agropastoris e agroindustriais a partir dos urbanos está concentrada a grande maio-
anos 70; de outro lado, porém, provocaram ria da população total do Centro-Oeste.
grandes impactos nos espaços urbano e ru- Observa-se que 57,4% estão concentrados
ral, alterando sobremaneira o seu perfil. em apenas 40 municípios, o que correspon-
O conjunto dos dados disponibilizado de a 9,0% dos 446 municípios da região.
para a região dá a medida do quanto a rede Só as capitais dos estados abrigam mais de
urbana no Centro-Oeste está concentrada 4 milhões de habitantes, correspondendo a
em poucas cidades, onde as relações se dão 36,9% da população total do Centro-Oeste.
de forma verticalizada e hierarquizada. Até Outro espaço de grande concentração po-
os anos 60, as cidades assumiam um perfil pulacional é o denominado eixo Goiânia-
214
Aristides Moysés
Economista pela Universidade Católica de Goiás. Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Professor Titular do Departamento de Ciências Econômi-
cas e Coordenador do Mestrado em Desenvolvimento e Planejamento Territorial da Univer-
sidade Católica de Goiás. Professor do Mestrado em Ecologia e Produção Sustentável. Coor-
denador e Pesquisador do Observatório das Metrópoles: Núcleo Goiânia/Instituto do Milênio-
CNPq. Técnico do Departamento de Ordenação Socioeconômico da Secretaria Municipal de
Planejamento da Prefeitura de Goiânia (Goiás, Brasil).
arymoyses@uol.com.br
Notas
* Trabalho apresentado no XII Encontro Nacional da Anpur – Associação Nacional de Pós-
graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional - ST 2 - Rede urbana e estrutura
territorial em Belém, Pará – 21 a 25 de maio de 2007, com o título “Ocupação e urba-
nização dos Cerrados do Centro-Oeste e a formação de uma Rede urbana concentrada e
desigual”.
(1) Os cerrados, segundo Abramovay (1999), ocupam um quarto do território brasileiro, num
total superior a 200 milhões de hectares. Desse total, 155 milhões de hectares estão no
Planalto Central e 38,8 milhões de hectares no Nordeste (Freire, 1997, p. 201), dos quais a
maior parte (30,3 milhões de hectares) na região Meio-Norte; 43,3% da superfície do Ma-
ranhão é composta de cerrados e 64,7% da do Piauí (Rocha, 1997, p. 63). Existem áreas de
cerrados ainda em Rondônia, Roraima, Amapá e Pará, bem como em São Paulo.
(2) Dentre as técnicas de irrigações utilizadas na agricultura moderna, cujos objetivos princi-
pais são o fornecimento controlado de água e a fertilização do solo com a deposição de
elementos necessários para torná-lo mais produtivo, destaca-se o Pivô Central. Trata-se de
um sistema de tubulação metálica com aspersores, montado sobre uma estrutura metálica
com rodas, sendo uma das extremidades o ponto central (ponto do pivô) de onde é bom-
beada água, fertilizantes, inseticidas e fungicidas. Esse sistema se move como hélice e é
capaz de irrigar áreas ente 50 e 130 hectares
(3) O ITS estima que mais de 300 cursos d’água secaram no Centro-Oeste em conseqüência da
forma de ocupação do cerrado.
(5) “Grande parte deste dinamismo está associado às características de fronteira aberta do Cen-
tro-Oeste, à sua extensão territorial e às potencialidades naturais e sociais de sua região,
tais como a vasta vegetação típica do cerrado, recursos hídricos em abundância, recur-
sos minerais, taxas crescentes de população alavancadas por um fluxo migratório intenso”
(Moysés et alii, 1999).
(6) Esse fenômeno foi chamado de “desconcentração urbana” por vários autores, dentre eles
Luiz César de Queiroz Ribeiro (1994).
(7) Com a emergência das cidades globais, fala-se hoje em rede de cidades globais. Trata-se de
um espaço em que um conjunto de atividades econômicas e de integração sociocultural
ocorre em tempo real, graças ao avanço da tecnologia computacional e das telecomuni-
218 cações. A esse respeito, existe vasta literatura. Nesse novo contexto, a cidade ocupa papel
central. Autores como Sassen (1991; 1998; 1999), Borja (1998), Castells (1999), Ascher
(1998), Ianni (1994), Hall (1998), de leitura obrigatória, focalizam a cidade como o novo
ponto cardeal das questões urbanas.
(8) Não há consenso entre os estudiosos do bioma cerrado, para os quais as áreas de cerrados
preservadas variam de 20 a 50%; na década de 1990 e nos anos 2000, a situação vem se
agravando com o uso intensivo de tecnologias defensivas para os interesses econômicos,
mas agressivas para o meio ambiente. Entretanto, há consenso quanto às possibilidades de
seu desaparecimento no futuro, caso as reservas ainda existentes não sejam preservadas.
(9) No caso de regiões onde ocorreu desmatamento para permitir a expansão da agricultura, a
recuperação exige a intervenção humana, ou seja, o replantio de espécies nativas do cerra-
do. Para recuperar totalmente essas áreas a estimativa é de 50 a 100 anos.
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biental da USP. abramov@usp.br - Disponível em: http://www.econ.fea.usp.br/abramovay/
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Recebido em maio/2008
Aprovado em ago/2008
220
Resumo Abstract
O objetivo do trabalho é pensar as relações en- The purpose of this paper is to think about
tre a cidade e a proliferação de condomínios the relation between the city and the spread of
fechados. Para tanto, procura desenvolver ar- gated communities throughout it. To achieve
gumentos sobre o modo como a cidade é re- this, it develops arguments on the way the
tratada por parcela significativa do pensamento city is portrayed by a significant part of the
social, bem como sugerir a pertinência de pen- social thought, and suggests the pertinence of
sar de outro modo as relações entre cultura de reflecting, in a different perspective, on the
consumo, estilos de vida, segregação, violência relations between culture of consumption,
e espaço construído, com o intuito de compre- lifestyles, segregation, violence and constructed
ender a cidade e a proliferação de condomínios space, with the aim of understanding the city
fechados. and the spread of gated communities.
Palavras-chave: condomínios fechados; cultu- Keywords: gated communities; culture of
ra de consumo; violência; segregação; relações consumption; violence; segregation; social
sociais; cidade. relations; city.
de uma sensibilidade que se abre para o que esvaziamento de sentido de tudo aquilo que
diversamente a informa, mesmo que de um se entende como público e, por intermédio
modo aparentemente avesso, agressivo ou, de recursos lógicos de coerência, procuram
ainda, negativo. assimilar à cidade a vulgaridade das postu-
ras restritivas e preventivas ao contato com
estranhos, as manifestações reclusas de sen-
timentos, de aspirações, de afetividades, etc.
Notas preliminares sobre Desse modo, a cidade – outrora considerada
referências analíticas o palco privilegiado para a exposição e o en-
e questões conceituais contro com a alteridade – passa a refletir
em seus espaços mais diversos as imagens
É notório o fato de que, ao se voltarem pa- do isolamento físico e social que, por sua
ra a proliferação de condomínios fechados, vez, denotam posturas e decisões intimis-
numerosas análises o integram ao debate tas, eventualmente consideradas tirânicas,
sobre as cidades como uma das evidências compreendidas como próprias à privacidade
empíricas mais recentes da difusão de um dos sentimentos, às intenções e aos gestos
comportamento elitista e asséptico em rela- individuais.
ção a tudo que o espaço público representa e Observe-se, contudo, que, na crítica
acolhe.2 Nesse sentido, ao se projetarem co- aos condomínios fechados, um corpo social
mo opção de moradia para os estratos mais moral e politicamente reconstituído ressur-
abastados, os condomínios fechados consoli- ge (não mais esfacelado ou fragmentado, 223
dam uma imagem bastante coesa de grupos como se poderia esperar). Nela, são a ho-
sociais que, efetivamente, têm condições de mogeneidade e a coesão social dos grupos
adquirir e de morar nas áreas mais caras da mais abastados e, por oposição, do restante
cidade, sejam aquelas que originariamente da sociedade enquanto massa excluída do e
concentram a alta renda, sejam aquelas que pelo mercado, que efetivamente orientam o
mais recentemente passam a ser ocupadas debate.4
por empreendimentos desse tipo – muitas Para se ter uma idéia melhor do que
vezes, confirmando e demonstrando o des- aqui se alude, observe-se o comentário de
locamento das elites dentro de um mesmo Boaventura de Souza Santos (1999) a pro-
vetor espacial.3 pósito do que ele chama de “proliferação da
Note-se, entretanto, que essa perspec- lógica de exclusão”:
tiva analítica supõe uma sutil inversão do
quadro de referências estabelecido pela lite- Analisemos antes de mais os riscos.
Julgo que todos eles se podem resu-
ratura especializada.
mir num só: a emergência do fascismo
Não raro, as análises que têm como
societal. Não se trata do regresso ao
foc o os condomínios fechados partem da
fascismo dos anos trinta e quarenta. Ao
idéia de que a sociedade experimenta as
contrário deste último, não se trata de
conseq üênc ias do chamado retraimento
um regime político, mas antes de um
social. Com efeito, buscam demonstrar que
regime social e civilizacional. Em vez de
o recrudescimento da intimidade implica o
não só se neutralizam as diferenças nas si- nele se realiza. Logo, essas relações duram
militudes como, o que me parece mais gra- o período que devem durar, nem mais nem
ve, as faz silenciar.7 menos. São, porém, cristalizadas pelo corte
Complementarmente, parece-me que analítico que as toma como referência.
por “contaminação”, as noções de “grupo” e Note-se que, não obstante o fato de
de “sociedade” se forjam, como de costume, que continue a funcionar, essa lógica de teor
no sentido extremo da domesticação das di- totalizante já não tem mais a mesma eficá-
ferenças e das particularidades: o indivíduo cia. Dentre outras coisas, isso se dá porque
considerado integrante de determinado gru- seu efeito planificador torna inaudita a pre-
po passa a ser visto como uma metáfora do sença do outro. Não o elemento estranho
grupo e, a um só tempo, como há uma re- e exterior ao grupo, para o qual se deve
lação lógica de pertencimento entre grupos atentar e do qual se deve resguardar, mas o
e sociedade (lembrando que cada sociedade outro que, no cotidiano, está dentro do pró-
constrói sua própria versão de ser humano e prio grupo, e, mais especificamente, dentro
que as concepções sobre o ser humano são do próprio condomínio fechado.
reveladoras da natureza cultural dessa socie- Qualquer tentativa de compreensão so-
dade), o indivíduo passa, então, a ser visto bre “o muro dentro do muro” – e, dentro
como uma metáfora viva da própria socieda- de seus limites físicos, dos portões e das
de. Disso decorrem combinações já bastante cercas, além de outros muros que definem
conhecidas entre indivíduos inertes, grupos as próprias residências – torna-se, por isso,
estagnados e sociedade totalizante, pala- inviável, visto que não se admite que tais 225
táveis à análise e aos esquematismos, que elementos justificam-se, senão pelo “incô-
muito pouco têm a dizer sobre uma gama modo”, pela “ameaça” que a alteridade, ain-
de acontecimentos que caracterizam a socie- da que familiar (leia-se, o próprio vizinho),
dade contemporânea.8 representa. O vizinho é sempre um estranho
Por fim, o que se torna realmente pro- que mora ao lado e, como tal, assim será
blemático é a percepção de uma estabilida- potencialmente tratado.10
de basilar contínua, que nega toda e qual- A fixação do indivíduo em um único
quer agitação interna, gerando a crença de grupo tornou-se, com efeito, delicada, bas-
que o que motiva a existência do grupo e tante improvável, bem como tornaram-se
sua coesão é algo permanentemente pre- inviáveis as análises e os conceitos que dessa
sente e invariável para o próprio indivíduo. imobilidade dependem, dada sua incapacida-
No mais das vezes, esquece-se que a lógica de estrutural de atualização. Isso porque,
que orienta a formação do grupo é fugaz e, dentre outras coisas, tais análises e concei-
por isso, ele não se sustenta ad infinitum.9 tos não dão conta das infinitas interseções
Mais ainda, esquece-se que essas uniões são entre grupos (o que desloca a ênfase nas
instáveis: dão-se por motivos específicos relações internas ao grupo para as relações
que permitem a aglutinação de pessoas em que se dão nas fronteiras existentes entre
torno da busca por soluções pontuais para grupos) e, sobretudo, daquelas que o pró-
demandas comuns e também pela satisfação prio indivíduo cria cotidianamente com ou-
que advém do encontro com o outro, que tros indivíduos, nos mais diversos contextos
e pelas mais diversas razões. Logo, há que lhes forma e sentido. Trata-se de conhecer
se considerar que o indivíduo não assume o outro (o indivíduo, suas sensações, suas
mais a condição una de portador de todas opções, etc.) sem transformá-lo no mesmo
as virtualidades do grupo. Ele está em trân- (nos grupos com os quais dialoga). Trata-
sito. Movimenta-se freneticamente e dilui, se, ao fim, de afastar-se das antinomias
desse modo, as essencialidades tangíveis clássicas do pensamento social; de apontar
(uma cultura, um território, uma forma de suas limitações; e, de algum modo, seguir
organização política etc.) tão caras ao pen- adiante, quiçá ao rés do chão, como pro-
samento moderno, o que obriga a pensar põe Michel de Certeau (1994), a fim de
indivíduos e grupos de um ponto de vista aproximar-se mais daquilo sobre o qual se
flexível e relacional. pronuncia a análise.
Em suma, se a definição de um padrão Exposto isso, cumpre apreciar, ainda,
comportamental narcisista e sua aceitação uma ordem complementar de problemas re-
enquanto categoria explicativa denota a au- lativos às opções de consumo e suas implica-
sência de sensibilidade analítica para com os ções no tocante ao processo de proliferação
mais variados processos manifestos em con- de condomínios fechados.
textos de grandes cidades, não seria o seu
inverso tão desastroso quanto aquilo que
nega, ao afirmar uma ordem social totali-
zante, que tem agora a coletividade como Relações entre
226 premissa analítica? Em ambos os casos, é a cultura de consumo
interessante notar, cria-se algo com caráter e a proliferação de
definitivo: explicações conclusivas sobre co-
mo aquilo que se aloja sob o dístico de “so-
condomínios fechados:
cial” se produz na cidade e tem seus efeitos um pouco mais do mesmo?
sobre ela: o que nega a imbricação criativa e
contínua entre o indivíduo e a sociedade e, À medida que os condomínios fechados são
mais especificamente, entre esses e os espa- tomados como uma das expressões materiais
ços das cidades, muito embora, frise-se, se daquilo que Pierre Bourdieu (1983) definiu
afirme o contrário. como “gostos de classe e estilos de vida”, é
No debate sobre as cidades e a proli- normalmente aceito que a opção de morar
feração de condomínios fechados, privile- em empreendimentos desse tipo coloque em
giar analiticamente o indivíduo ou a socie- relevo bens de consumo codificados como al-
dade e, ainda, a proeminência de um sobre go a que se confere status social elevado.
o outro é, acima de tudo, sustentar um De modo geral, sabe-se bem, o uso de
equívoco. O desafio que se impõe é perce- expressões como “modos” ou “estilos de
ber as sutilezas com que posturas e senti- vida”, “alta cultura”, “cultura de massas” e
mentos individuais – que podem, a um só “poder simbólico”, denota certamente a im-
tempo, ser extensivos aos grupos sociais, portância atribuída a alguns elementos com-
sem, contudo, neles se dissolverem – se partilhados por diversos grupos sociais, de
refletemnos espaços da cidade, conferindo- onde se conclui que, em contextos definidos,
constitui uma das mais ricas expressões da mais efêmero ao mais duradouro. E
potencialidade de conflito social engendra- nesse complexo, a esfera da indiferença
das pela cidade e, em que pesem os julga- é relativamente limitada, pois nossa ati-
mentos de valor sobre suas causas e efeitos, vidade psicológica responde por um de-
sua apreciação em negativo constitui, para- terminado sentimento a quase todas as
doxalmente, e desde o começo, empecilho impressões que vêm de outra pessoa. A
para a percepção mais ampla de um elemen- natureza subconsciente, fugidia e mu-
to fundamental às análises sobre a socieda- tável desse sentimento apenas aparen-
de e o espaço em construção: o modo in- ta reduzi-lo à indiferença. Na verdade,
trínseco e inevitavelmente conflituoso como tal indiferença seria para nós tão pou-
co natural quanto seria insuportável o
se manifestam as mais diversas formas de
caráter vago de inumeráveis estímulos
relação social.
contraditórios. A antipatia nos protege
Visto que a metrópole agrega um gran-
desses dois perigos típicos da cidade;
de número de pessoas com interesses bas-
a antipatia é a fase preliminar do anta-
tante diferenciados e, parafraseando Simmel
gonismo concreto que engendra as dis-
(1987, p. 14), “a maneira metropolitana de
tâncias e as aversões, sem as quais não
vida é certamente o solo mais fértil para a
poderíamos, em absoluto, realizar a vi-
reciprocidade” – entendida, aqui, como re-
da urbana. A extensão e a combinação
lação social –, é bastante razoável que se
da antipatia, o ritmo de sua aparição e
compreenda que a vida na cidade é efetiva- desaparição, as formas pelas quais é sa-
mente marcada pela iminência do conflito. tisfeita, tudo isso, a par de elementos 231
Isso porque mais literalmente unificadores, produ-
zem a forma de vida metropolitana em
Onde as relações são puramente ex-
sua totalidade insolúvel; e aquilo que
ternas e ao mesmo tempo de pouca
à primeira vista parece desassociação,
importância prática, esta função [a de
é na verdade uma de suas formas ele-
oposição entre partes constitutivas da
mentares de sociação. (pp. 127-128)
relação] pode ser satisfeita pelo con-
flito em sua forma latente, isto é, pela
Sabe-se bem, no cotidiano, o contato
aversão e por sentimentos de mútua es-
com a alteridade e, em decorrência disso, os
tranheza e repulsão que, num contato
embates inerentes às relações sociais impli-
mais íntimo, não importa quão ocasio-
cam a criação de dispositivos emocionais e
nal, transforme-se imediatamente em
físicos. No contexto da metrópole, esses dis-
ódio e lutas reais.
Sem tal aversão, não poderíamos imagi- positivos se tornam vários e refletem, com
nar que forma poderia ter a vida urba- maior ou menor intensidade, o grau de tole-
na moderna, que coloca cada pessoa em rância para com as diferenças que a própria
contato com inumeráveis outras todos cidade comporta.13
os dias. Toda a organização interna da Nesse sentido, os condomínios fechados
interação urbana se baseia numa hierar- representam somente uma das incontáveis
quia extremamente complexa de simpa- formas pelas quais o espaço absorve e
tias, indiferenças e aversões, do tipo reflete a potencialidade de conflito que a
que deseja e exprime parte significativa do sua natureza – a síntese de elementos que
pensamento social, deveria caminhar aos trabalham juntos, tanto um contra o outro,
passos largos, em marcha contínua, rumo quanto um para o outro – resguarda-lhe es-
a um mundo mais civilizado –, como reco- ta ambigüidade e, com efeito, suscita novas
nhece o próprio Elias (1997), faz com que formas de sociação.
o exame do problema da violência física na
vida social seja freqüentemente norteado Essa natureza [a do conflito] aparece de
pelo tipo errado de pergunta. Ajustar-se-ia modo mais claro quando se compreen-
melhor aos fatos e seria, assim, mais pro- de que ambas as formas de relação – a
veitoso, se as perguntas fossem formuladas antitética e a convergente – são funda-
com vistas ao que possibilita a convivência mentalmente diferentes da mera indife-
normal e pacífica entre tantas pessoas, e rença entre dois ou mais indivíduos ou
não como é possível que pessoas, vivendo grupos. Caso implique a rejeição ou o
em sociedade, possam agredir fisicamente e fim da sociação, a indiferença é pura-
matar umas às outras. mente negativa; em contraste com a
Nessa mesma direção inclina-se Simmel negatividade pura, o conflito contém
(1983, p. 122), ao observar que, algo de positivo. Todavia, seus aspectos
positivos e negativos estão integrados;
podem ser separados conceitualmente,
[...] sob um ponto de vista comum,
mas não empiricamente.
pode parecer paradoxal se alguém per-
Assim como o universo precisa de “amor
guntar, desconsiderando qualquer fenô- 233
e ódio”, isto é, de forças de atração e
meno que resulte do conflito ou que o
de forças de repulsão, para que tenha
acompanhe, se ele, em si mesmo, é uma
uma forma qualquer, assim também a
forma de sociação.
sociedade, para alcançar uma determi-
nada configuração, precisa de quantida-
Ora, como bem argumenta esse autor, des proporcionais de harmonia e desar-
monia, de associação e competição, de
Se toda a interação entre os homens é tendências favoráveis e desfavoráveis.
uma sociação, o conflito – afinal, uma (Ibid., pp. 123-124)
das mais vívidas interações e que, além
disso, não pode ser exercida por um in- Se, para Simmel e para Elias, o conflito
divíduo apenas – deve certamente ser se destaca como elemento potencialmen-
considerado uma sociação. E de fato, te presente em todas as instâncias da vida
os fatores de dissociação – ódio, inve- social, isso ocorre porque ambos colocam
ja, necessidade, desejo – são as causas em relevo o caráter constitutivo, estrutura-
do conflito; este irrompe devido a essas dor ou fundador de outras expressões do
causas. (Ibid., p. 122) social, que nele potencialmente residem.
Nesse sentido, as condições de vida criadas
Para Simmel, o conflito estaria destina- pela metrópole oferecem uma boa mostra
do a resolver dualismos divergentes, a re- da positividade com que o conflito se mani-
solver a tensão entre contrastes, visto que festa, visto que, nela, inúmeros processos
motivados por ele podem, ao longo de seu Fruto da imbricação de universos hu-
desenvolvimento, deflagrar um comporta- manos coexistentes, de séries de arranjos
mento cooperativo entre os indivíduos. estruturais que se fazem registrar ao longo
Parece-me ser exatamente esse com- do tempo, a cidade exercita sua capacidade
portamento cooperativo que, na contempo- de articular valores e teores nem sempre
raneidade, faz com que o cenário urbano, consoantes, aglutinando e acentuando di-
mas não só ele, se torne pano de fundo para ferenças, ensejando conflitos e permitindo
o desenrolar e o recrudescimento de séries conciliações muitas vezes inesperadas. Dis-
sucessivas de ações reativas e adaptativas à so se desprendem sensações confusas, que
violência, respaldadas, frise-se, pelos e nos dificilmente, dadas suas características ima-
mais diversos níveis sociais. nentes, repousariam apaziguadas.
Nesse contexto, a violência e o medo, O “teatro das colisões hostis entre ho-
além de se constituírem enquanto referên- mens” – para citar a feliz expressão cunha-
cias para a mudança de hábitos, horários, da por Elias (1998, v. 1, p. 191) – tem
trajetos, etc., também aglutinam pessoas como enredo a própria vida em sociedade.
em torno de idéias comuns sobre o uso dos Nela, o conflito é uma das mais vívidas ex-
espaços públicos e, mais especificamente, pressões de sua concretude – o que torna
sobre a constituição física dos espaços pri- extremamente importante a compreensão
vados, o que, grosso modo, remete à difu- dos sentidos que ele resguarda. Para tan-
são do que se pode pertinentemente cha- to, é evidente a necessidade de ampliação
234 mar de “arquitetura do medo”.15 do universo discursivo no qual se situam os
Nos dias atuais, à medida que a sen- problemas analíticos cunhados a partir da
sação de desconforto gerada pela violência cena contemporânea, o que, por sua vez,
se encontra na base das motivações apon- constitui exercício instigante e prolífero.
tadas para o surgimento e a efetivação de Nesse ambiente de argumentações e
empreendimentos como os condomínios fe- debates, uma perspectiva sociologicamen-
chados – concorrendo com uma vasta lista te positiva do conflito – como a que reside
de razõesque levam as pessoas a optar por nos trabalhos de Elias e de Simmel – certa-
neles residir –, seria razoável que a litera- mente possui lugar de destaque, visto que
tura especializada se aproximasse, sem os acarreta outras possibilidades e aponta para
preconceitos de outrora, dos matizes rela- caminhos quiçá mais interessantes de serem
cionais entre a violência e o medo e a pro- percorridos na busca por adequação, atua
dução do espaço residencial na cidade e que lização, aprimoramento e desenvolvimento
nisso aprofundasse. Mais que isso, a se con- do instrumental analítico à realidade vivida.
siderar que a proliferação de condomínios Sabe-se, contudo, que essa busca e o reco-
fechados pode ocasionar mudanças sensí- nhecimento das limitações que lhe são ine-
veis na configuração espacial das cidades, rentes requerem, como aqui se tentou ar-
é pertinente que se analise mais de perto gumentar, (re)avaliações sensíveis, inclusive
quão estreita e fecunda é essa relação, o de um ponto de vista formal.
que efetivamente não convém que se perca Seguramente, a cidade é uma des-
pelas razões até aqui criticadas. sas formações duradouras que, dada sua
Notas
(1) Como observa Maria A. R. de Carvalho (2000, pp. 47-55, passim), embora a discussão sobre
a violência no Brasil esteja apontando para questões mais amplas – a delinqüência, o des-
regramento e a generalização social de práticas violentas –, derivadas de causas igualmen-
te mais complexas, como a ausência de uma cultura cívica e a insociabilidade que tem
presidido o processo de individuação nos grandes centros urbanos do país, é ainda maciça
a recorrência à exclusão social como variável explicativa do crescimento das práticas vio-
235
lentas, assim como é inegável que a denúncia do padrão de desigualdade existente segue
sendo o ângulo hegemônico das análises sobre o alto grau de conflito presente nas cidades
brasileiras. Por outras palavras, embora se esteja abandonando a preocupação estrita com
os nexos de pobreza e o crime, estes ainda constituem o cerne da discussão sobre a vio-
lência no Brasil.
(2) O interesse despertado pelo tema “condomínios fechados” se verifica ante o grande núme-
ro de abordagens recentes voltadas para o fenômeno de sua proliferação, originárias de
campos do conhecimento diversos (antropológico, sociológico, geográfico, político e eco-
nômico), em níveis analíticos tanto macro como micro. Veja-se Andrade (2004). A autora
realiza interessante levantamento sobre diversas contribuições à compreensão do tema,
bem como uma discussão mais aprofundada sobre algumas conclusões já consagradas por
pesquisas diversas e, mais precisamente, sobre a aplicabilidade do conceito de segregação
para a compreensão deste fenômeno.
(4) Além dos fatores que aqui se pretende explorar, é de uma total incongruência a operação
a que se submete o chamado “objeto de reflexão”, seja por circunstâncias diacrônicas,
se levadas a sério forem as evidências históricas apresentadas pela própria literatura, seja
pelo disparate epistemológico que essa mudança de referencial produz. Por conseguinte, e
com razão, pode-se perguntar: afinal, de que sociedade se está falando? De uma sociedade
destruída pelo vigor do narcisismo? De uma sociedade bipartida, composta, de um lado,
por proprietários, consumidores, cidadãos estabelecidos e, de outro, por não proprietários,
alijados do consumo e excluídos pelo capital? E, ainda: qual é a referência analítica? O
indivíduo ou grupo?
(5) Nesse estudo já bastante conhecido, o autor se estende até a sexta forma de fascismo socie-
tal, não sendo preciso mais do que o já exposto para se perceber o tom demasiado áspero
e as expressões bastante pesadas com que ele retrata as alterações, inclusive espaciais, de-
correntes da perda relativa da capacidade reguladora do Estado ante os interesses privados
e, sobretudo, os interesses de grupos com forte capital patrimonial.
(6) Ao chamar a atenção para os diversos fatores associados à produção do espaço residencial
na cidade, Luciana Teixeira de Andrade (2004, p. 11) denomina “armadilha etnocêntrica”
a atitude de “pensar os ricos como capazes de fazer escolhas e os pobres como totalmente
condenados pelas condições objetivas” e realiza algumas considerações que têm o escopo
de evitá-la.
(7) Uma excelente crítica ao efeito de grupo pode ser encontrada em Boudon e Bourricaud
(2001, pp. 253-260).
(8) A propósito das implicações clássicas e problemáticas relativas ao uso do conceito de iden-
tidade, sobretudo a perda ou diluição de sua dimensão contrastiva concreta, bem como
as relações forçosas que se estabelecem entre o indivíduo, o grupo e a sociedade, veja-se
Durham (1986). Cf. Montero (1997).
(9) A expressão latina ad libitum (“à escolha”, “à vontade”, “a seu bel-prazer”) surge como al-
ternativa bastante interessante para expressão do desejo de estar-junto, comum às pessoas
ao freqüentarem grupos distintos. Contraposição bastante razoável, visto que a lógica da
qual se pretende afastar aprisiona o indivíduo em um único e permanente grupo social, ad
infinitum (“até o infinito”).
(11) Embora Park reserve ao termo “estrutura” à designação dos elementos físicos visíveis da
cidade (como prédios, casas, ruas etc.) e à expressão “ordem moral”, a designação dos
fenômenos concernentes à natureza humana, a junção entre esses fatores resulta, para o
autor, em um “complexo cultural comum”, que determina, em última instância, o que é
característico e peculiar na cidade, em contraste com a vida em aldeia e a vida no campo.
(13) Vale lembrar, é também por esse motivo que Simmel, com a sofisticação e o refinamento
que lhes são característicos, atribui ao dinamismo e à intensidade da vida na metrópole
a originalidade do fenômeno psíquico denominado atitude blasé, que consiste no esgo-
tamento nervoso, na incapacidade de reagir a novas sensações com energia apropriada e
no embotamento do poder de discriminar, diante da rapidez, da violência e da contradi-
toriedade de significados e de valores com que as pessoas são estimuladas. Disso resulta
um comportamento de natureza social comum aos indivíduos submetidos às condições
impostas pelo modo de vida metropolitano: uma reserva moral que, mais do que apenas
indiferença, sugere “uma leve aversão, uma estranheza e repulsão mútuas, que redundarão
em ódio e luta no momento de um contato mais próximo, ainda que este tenha sido provo-
cado” (Simmel, 1987, pp. 16-17).
(14) É no século XVIII, com Rousseau – para quem a reconstrução hipotética da história da
humanidade culmina com a legitimação da desigualdade entre os homens –, que a crítica
às condições de acumulação, apropriação e distribuição de bens materiais e culturais ad-
quire os contornos primeiros de um discurso social e político. É, também, a partir de suas
contribuições que o pensamento social constrói, com outros matizes, sua própria crítica à
nascente sociedade capitalista. Cf. Rousseau (1983).
(15) Não se negligencia, aqui, o processo de superexposição midiática, que, como se sabe,
responde, em alguma medida, pela amplificação exponencial da criminalidade e pela irra-
diação de uma sensação crescente de insegurança e de medo, nem seus efeitos sobre o os
contextos socioespaciais. Para um tratamento aprofundado da questão, consulte-se Pereira
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Recebido em maio/2008
Aprovado em jul/2008
Resumo Abstract
O texto propõe a reflexão sobre a relação en- The text proposes a reflection on the relation
tre sociabilidade nas grandes cidades latino- between sociability in the large Latin American
americanas que atravessam transformações cities that are undergoing socio-spatial
socioespacial e os desafios da coesão social em transformations and the challenges of social
democracia. Assumimos como ponto de parti- cohesion in a democracy. We assume that the
da que a qualidade das relações sociais é alta- quality of social relations is highly dependent
mente dependente do grau das desigualdades on the level of unequal distribution of wealth,
na distribuição da riqueza, da renda, do poder income, power and also on the resources that
e também dos recursos que fundamentam o support social prestige, honor and recognition.
prestígio, a honra e o reconhecimento sociais. We take into account the existence of
Levamos em consideração a existência de im- important processes – urban growth, the
portantes processos – crescimento urbano, expansion of the education level and of
expansão do nível educacional e das comunica- telecommunications, the strong incorporation
ções, a forte incorporação dos direitos sociais of social rights into political discourses –
nos discursos políticos – que contribuem pa- that contribute to elevate aspirations and to
ra elevar as aspirações e criar expectativas de create expectations of equality and material
igualdade e de participação material e imaterial and immaterial participation of the urban
da população urbana e aumentam a probabili- population, thus increasing the probability of
dade de tensões sociais. O texto procura explo- social tensions. The text tries to explore to
rar em que medida a sociabilidade nas grandes what extent sociability in large cities depends
cidades depende do jogo das forças menciona- on the interplay of the forces mentioned
das anteriormente. above.
Palavras-chave: metrópoles; socialibilidade; Keywords: metropolises; sociability; residential
segregação residencial; coesão social. segregation; social cohesion.
Ruben Kaztman
Mestre em Sociologia pela Universidade de Berkeley. Diretor do Instituto de Programa de
Investigación sobre Integración, Pobreza y Exclusión Social da Universidade Católica do Uru-
guay e Coordenador do Grupo de Estudo sobre Segregação Urbana (Montevideo, Uruguai).
kaztman@adinet.com.uy
Notas
(*) Versão anterior deste artigo foi escrito como contribuição ao projeto Nova Agenda de Coe
são Social para a América Latina, realizado pelo iFHC-Instituto Fernando Henrique Cardo
so e pelo CIEPLAN-Corporación de Estudios para Latinoamérica. O projeto foi realizado
em 2006, graças ao apoio da União Européia e do PNUD. As informações e opiniões 257
apresentadas pelos autores são de sua responsabilidade pessoal e não representam neces
sariamente nem comprometem as instituições associadas ao projeto.
(1) Ver Topalov (1988; 1994; 1996) sobre a relação entre a reforma social e a reforma urbana e
seu papel na constituição da percepção coletiva da necessidade de um sistema institucio
nal de regulação e de proteção social que fundamentou as bases do Estado do Bem-Estar
Social.
(4) Ibid.
(5) Essa é a argumentação de alguns trabalhos sobre o Brasil que têm procurado encontrar os
fundamentos da violência urbana na decomposição do sistema híbrido de reciprocidade
formado historicamente em razão da modernização conservadora ou seletiva, sem que
seja substituído por regras fundadas nos direitos de cidadania. Ver a esse respeito Soares
(1997) e Velho (1996). Para uma interpretação em que se confronta a hipótese de crise do
sistema híbrido de reciprocidade, ver Souza (2003).
(6) Sobre a dimensão da violência geradora dessa subcultura, ver Soares (2000). Segundo esse
autor, a violência nas favelas do Rio de Janeiro e, de maneira mais geral, nos bairros po
bres, gera as seguintes tendências: desorganização da vida associativa e política das comu
nidades; imposição de um regime despótico nas favelas e bairros populares; recrutamento
(8) Identificação e análise das áreas socialmente vulneráveis das metrópoles, Observatório das
Metrópoles, www.observatoriodasmetropoles.ufrj.br.
(9) Para Santiago de Chile, Flores (2008) e Sabattini, Cáceres e Cerda (2002); para Ciudad de
Mexico, Solís (2006); para Rio de Janeiro, Ribeiro (2005) e Alves, Franco e Ribeiro (2008);
para Belo Horizonte, Soares, Rigotti e Andrade (2008); para São Paulo, Torres, Ferreira e
Gomes (2004); para Buenos Aires, Suarez e Groissman (2008); para Montevideo, Kaztman
e Retamoso (2008).
(10) Certamente, a contribuição das classes médias e altas à manutenção dos espaços públicos
que posibilitam interação interclasse não descansa somente em seu nível aversão à desi
gualdade. Também intervém o temor das externalidades que freqüentemente acompa
nham a deterioração da qualidade de vida das maiorias sociais e dos serviços públicos que
utilizam a instabilidade política, o descenso da legitimidade das instituições, conseqüen
temente, as dificultades das elites em mobilizar a vontade coletiva em apoio a projetos de
mudanças – e, sobretudo, cada vez mais, as conseqüências da insegurança pública sobre
as suas condições de vida.
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Recebido em jun/2008
Aprovado em set/2008