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Regime de acumulação e configuração

do território no Brasil
Lúcia Cony Faria Cidade
Glória Maria Vargas
Sérgio Ulisses Silva Jatobá

Resumo Abstract
No quadro cíclico de crise e recuperação da In the cyclical background of crisis and recovery
economia capitalista ao longo do século XX, a of the capitalist economy throughout the
criação de um mercado mundial pressupunha 20th century, the creation of a world market
uma relativa autonomia territorial dos Estados presupposed some territorial autonomy of the
nacionais. Durante a acumulação intensiva, os national States. During intensive accumulation,
espaços nacionais tendiam a apresentar siste- national spaces tended to present hierarchical
mas urbanos hierárquicos, áreas polarizadas urban systems, polarized areas and,
e, freqüentemente, desenvolvimento desigual. frequently, unequal development. With the
Com a reestruturação da economia mundial restructuring of the world economy towards
em direção à acumulação flexível, algumas flexible accumulation, some of the regularities
das regularidades começaram a se modificar. started to change. There were consequences
Houve conseqüências sobre o desenvolvimento concerning economic development and the
econômico e sobre a dinâmica espacial de dife- spatial dynamics of different countries, such
rentes países, como a intensificação do papel as the growing role of networks. The text
das redes. O texto busca compreender em que aims to understand to what extent different
medida diferentes regimes de acumulação con- accumulation regimes condition different
dicionam diferentes formas de configuração forms of territorial configuration. The
territorial. A análise toma o cenário internacio- analysis adopts the international scenario
nal como contexto geral para processos histó- as background for historical processes in
ricos do desenvolvimento espacial brasileiro. Brazilian spatial development.
Palavras-chave: regime de acumulação; Keywords: accumulation regime;
território; região; desenvolvimento territorial; territory; region; territorial development;
desenvolvimento regional; desenvolvimento regional development; Brazilian spatial
espacial brasileiro. development.

cadernos metrópole 20 pp. 13-35 20 sem. 2008


lúcia cony faria cidade, glória maria vargas e sérgio ulisses silva jatobá

Introdução1 entre riqueza e pobreza produzidos e re-


produzidos ao longo de sua história. As
desigualdades sociais são visíveis quando se
A fase contemporânea do desenvolvimento comparam os níveis de renda, de qualidade
econômico internacional que seguiu o for- de vida e de vulnerabilidade dos distintos
dismo ou regime de acumulação intensiva grupos da população. Embora em um mes-
caracteriza-se pela emergência do capital mo país, ricos e pobres parecem viver em
financeiro e pela acirrada competitividade, dois mundos extremamente diferentes. As
apoiadas por acelerados avanços tecnoló- desigualdades entre os ramos da econo-
gicos e flexibilidade nos métodos de pro- mia se expressam nos grandes diferenciais
dução e de gestão. É também conhecida de produtividade, qualificação e remune-
como regime de acumulação flexível. En- ração que refletem diferentes níveis de
tre as tendências das últimas décadas está investimentos, complexidade tecnológica,
a constituição, consolidação e expansão de formalidade e informalidade das diferen-
blocos econômicos que limitam a autono- tes atividades. As desigualdades espaciais
mia dos Estados sobre decisões relativas a manifestam-se nos centros metropolitanos
seus territórios e estabelecem uma escala e urbanos, por meio da segregação, e, ain-
supra-regional e a mescla de redes mate- da, nas áreas rurais, articuladas de forma
riais e imateriais de apoio à acumulação diferenciada aos processos de acumulação
sobre os territórios nacionais. Outra ten- vigentes. Acompanham as desigualdades
14 dência é o aumento das conexões diretas sociais, econômicas e espaciais processos
entre empresas transnacionais localizadas intensos e continuados de degradação do
em centros metropolitanos mundiais e em- meio ambiente.
presas subordinadas em centros regionais­ No quadro do Estado reformado, com
e locais de outros países, cujas atividades grandes restrições de recursos para inves-
se regem, dessa forma, de acordo com in­ timentos públicos, políticas de apoio ao de-
teresses externos. No Brasil, esse desen­ senvolvimento social e de proteção ao meio
rolar tem adquirido contornos expres- ambiente apresentam alcance limitado. A
sivos, ilustrando a necessidade de uma lógica que se impõe, apoiada por fortes
reinterpretação, não apenas de processos­ pressões na arena política, facilitada pela
concretos como também de concepções disseminação de uma ideologia consumista
encarregadas de dar sentido a esses mo- e temperada por um mercado de trabalho
vimentos. O objetivo deste trabalho é altamente excludente, é a dos requisitos da
compreender, no quadro de diferentes acumulação. Dadas as diferentes dimen-
regimes de acumu­lação comandados pela sões desses apoios, uma das mais relevan-
escala mundial e seu centro hegemônico, tes e menos comentadas é a organização
como a dinâmica do desenvolvimento bra- territorial. Na fase de industrialização, por
sileiro recente se relaciona com a configu- trás de um discurso desenvolvimentista,
ração territorial do país. a malha territorial implantada pelo Esta-
Um dos aspectos marcantes do de- do foi estratégica para expandir a atuação
senvolvimento brasileiro são os contrastes­ de grupos regionalizados para a escala

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nacional.­ A captura do Estado por frações se trabalha com escalas, uma periodização
do Centro-­Sul,­­sob o discurso das desigual- no âmbito mundial, mais amplo, pode ser
dades regionais e da integração, foi muito desdobrada ou ajustada ao se tratar da
bem documentada por Chico de Oliveira escala nacional e assim sucessivamente.
(1977, pp. 75-78). Períodos mais recentes podem ser tra-
Em anos recentes, as redes territoriais tados em mais detalhe do que perío­d os
têm servido de base para interesses nacio- anteriores.­
nais e também internacionais voltados para Considerando a necessidade de um
a consolidação de áreas produtivas em ativi- tratamento específico para os sistemas
dade e para a incorporação de novas áreas explicativos de referência, o próximo item
ao modelo dominante. Um exemplo obser- trata de formulações teóricas que servem
vado por Silva são as agroindústrias, cres- de apoio para a discussão dos processos em
centemente articuladas a redes de apoio ur- análise. Em seguida, apresentam-se aspec-
bano, redes técnicas e redes de escoamento tos essenciais para a compreensão do con-
da produção (2008). Configura-se um cená- texto mundial e suas transformações em
rio no qual forças internas e externas atuam décadas recentes, em dois períodos: a fase
sobre o Estado para garantir a implantação de acumulação intensiva e a fase de acumu­
e manutenção de uma malha territorial em lação flexível. Após, trata-se dos rebati-
sintonia com os requisitos da acumulação. mentos dessas mudanças na escala Brasil e
Assim, entre as questões de reflexão estão: sua combinação com processos nacionais,
Quais as relações entre mudanças no regime por meio de uma periodização articulada 15
de acumulação e dinâmica territorial? Qual à escala mundial. As notas teóricas a se-
o papel do Estado e das políticas públicas de guir abordam, na primeira parte, os temas
desenvolvimento na configuração do territó- espaço, território e região e, na segunda,
rio brasileiro? desenvolvimento, regime de acumulação e
Um dos pressupostos deste trabalho é produção do espaço capitalista.
que o contexto socioeconômico e ambien-
tal concidiona ações públicas e privadas de
gestão do território. Os resultados dessas
ações tendem a se projetar sobre diferen-
Notas teóricas:
tes dimensões, entre as quais a organiza- dinâmica do espaço,
ção espacial. Outro pressuposto considera desenvolvimento e
que processos dominantes com gênese na configuração territorial
escala mundial, embora sem um rebati-
mento mecânico ou absoluto, tendem a se
refletir na escala nacional; essa, por sua Espaço, território e região
vez, apresentaria efeitos sobre a escala
regional e a local. Uma perspectiva com- A temática relativa ao território e à região­
plementar é a análise da dinâmica tem- pode ser inicialmente referida a uma
poral, que pode ser compreendida com o conceituação­ do espaço mais abstrata e
auxílio da periodização.­Na medida­em que abrangente. Para Santos, o espaço inclui

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uma combinação de materialidade e da vida ao espaço de uma nação sendo estruturado


que a anima. Para o autor, pode-se conside- por um Estado. Território combina-se, para
rar o espaço como o autor, aos processos de soberania, poder
e controle. Expressa, ainda, uma dimensão
[...] formado por um conjunto indisso- simbólica, um sentido de enraizamento,
ciável, solidário e também contraditório uma construção compartilhada e um papel
de sistemas de objetos e sistemas de na construção das identidades sociais (Cla-
ações não considerados isoladamente, val, 1999, pp. 8-11 e 16).
mas como o quadro único no qual a his- Para Santos, não é o território pro-
tória se dá. (Santos, 1996, p. 51) priamente dito e sim sua utilização que o
torna objeto da análise social, uma noção
A natureza do espaço seria, então, fruto do em constante revisão que tem de perma-
fato de que ele é formado tanto pelo resul- nente o fato de ser nosso quadro de vida
tado material das ações da sociedade na his- (Santos, 1998, p. 15). Para Raffestin, ter-
tória como pelas ações contemporâneas que ritório é um espaço no qual “se projetou um
lhe concedem um dinamismo e uma funcio- trabalho, seja energia e informação, e que,
nalidade (ibid, pp. 85-86) por conseqüên­cia, revela relações marcadas
A visão dinâmica do espaço é compar- pelo poder” (1993, pp. 143-144).
tilhada por Doreen Massey, que enfatiza Variável ao longo do tempo, a região
também os aspectos relacionais e a plurali- era vista pela geografia clássica como uma
16 dade. Massey aborda o espaço por meio de unidade espacial caracterizada por relativa
proposições. Primeiro, reconhece o espaço autonomia funcional. O espaço geral era,
como o produto de interrelações, consti- assim, constituído como um mosaico des-
tuído de interações, desde o imensamente sas unidades funcionais, por sua vez clara-
global até intimamente pequeno. Segundo, mente diferenciadas. A abordagem sistêmi-
apresenta o espaço como a esfera na qual ca retomou o conceito, adaptando-o à sua
é possível a existência da multiplicidade, perspectiva. Assim, passou a uma explicação
uma pluralidade na qual coexistem distin- da lógica interna regional que enfatizava a
tas trajetórias. Terceiro, vê o espaço como articulação funcional da hierarquia urbana
em permanente construção, produto de e a caracterização dos fluxos atuantes. A
relações embutidas nas práticas materiais, articula­ção regional era vista, nessa pers-
sempre em processo de fazer-se, jamais pectiva, como um sistema regional (Gómes
acabado, nunca fechado. A autora acres- Mendoza et alii, 1982, pp. 64 e 70).
centa que não apenas o espacial é político, Na visão contemporânea de Santos, a
mas que algumas perspectivas específicas partir da perspectiva do planeta e da his-
podem afetar questões políticas (Massey, tória como totalidades em transformação,
2008, pp. 29-30). energizada pela divisão internacional do tra-
Uma visão complementar é a pers- balho, a região e o lugar expressariam as-
pectiva do território, que enfatiza os as- pectos funcionais e permitiriam a percepção­
pectos materiais e inclui um viés político. empírica do mundo. A partir da divisão dos
Território,­ para Paul Claval, diz respeito recursos­totais do mundo, de sua distribuição­

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diferencial­ e de sua combinação local, cada conceitua:­ “Regionalismo é uma demanda


região ou lugar adquire sua especificidade. política de um grupo social identificado ter-
Assim, sua significação decorre da totalidade ritorialmente contra um ou vários mecanis-
de recursos e responde à dinâmica histórica mos do Estado.” Markusen acrescenta que
(Santos, 1996, p. 131). se as relações sociais são o sujeito do regio-
Ann Markusen, tendo em vista a difi­ nalismo, as demandas políticas sobre o Esta-
culda­de de conceituar região de forma dis- do são o seu objeto. A partir daí, a pesquisa-
sociada do marxismo e de uma teoria do dora busca uma possível definição de região
desenvolvimento, parte de um conceito ope- como “uma unidade territorial com alguma
racional, aplicado aos Estados Unidos. Con- forma de status político, real ou pretendido”
sidera região como um território delimita- (ibid., pp. 13, 15 e 16).
do, maior do que uma região metropolitana Alain Lipietz, ao abordar o caso fran-
padrão (SMSA). Naquele país, as desigual- cês, também privilegia as relações sociais,
dades regionais, em larga medida, foram mas reflete uma situação de desigualdades
absorvidas pela generalização de um padrão regionais mais significativas do que nos Es-
de acumu­lação. Assim, para a autora, muito tados Unidos. Afirma que os espaços devem
mais útil é o conceito de regionalismo. Este ser definidos a partir de análises concretas
pode ser considerado inicialmente como a e suas diferenças apreendidas a partir de
adoção de uma demanda territorial por al- diferentes tipos de dominação e de articula-
gum grupo social (Markusen, 1980b, p. 3). ção dos modos de produção (1979, p. 36).
A autora acrescenta: O autor observa também as relações entre 17
as instituições e centros de poder político
Nos últimos cem anos, muito mais do
e a distribuição do espaço socioeconômi-
que demandas econômicas ou cultu-
co. Acrescenta que, na dimensão espacial,
rais, a estrutura política e o poder po-
temos a intervenção da instância política:
lítico têm crescentemente se tornado
a) na reprodução da espacialidade do mo-
as causas­ e objetivos do regionalismo.
do de produção, ligada à administração do
(Ibid., p. 38)
território; e b) na articulação espacial dos
modos de produção, ou na evolução das ar-
Avançando na argumentação, a autora
mações regionais, que seria ligada à ação
enuncia:
regional (ibid., pp. 175-176).
O Estado é aquele conjunto identificá­ A abordagem pode ser complementa-
vel de instituições que organizam e da com uma breve visão sobre redes. Para
intervêm­ sobre todos os outros aspec- Raffestin,
tos da vida social, codificado na lei e
apoiado pela ameaça de poder de polí- Uma rede é um sistema de linhas que
cia. (Ibid., p. 9) desenham tramas. Uma rede pode ser
abstrata ou concreta, invisível ou visí-
Considerando o Estado e suas relações po- vel. A idéia básica é considerar a rede
líticas como a chave para uma caracteri- como algo que assegura a comunicação.
zação abstrata do regionalismo, a autora (1993, p. 156)

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No entender de Santos, as redes podem ser A abordagem acima apresentou, à luz


interpretadas do ponto de vista da realidade do desenvolvimento capitalista, breves co-
material e da dimensão social. Pelo ângulo mentários com vistas a um encadeamento
da realidade material, N. Curien conceitua entre os conceitos de espaço, território, re-
rede como gião e redes, buscando uma interpretação
com base na geografia histórica do capita-
[...] toda infra-estrutura permitindo o lismo. Para subsidiar a análise de proces-
transporte de matéria, de energia ou sos históricos na escala mundo e na escala
de informação e que se inscreve sobre Brasil,­que seguem mais abaixo, apresenta-
um território onde se caracteriza pela se a seguir breve abordagem sobre aspec-
topologia dos seus pontos de acesso ou tos espaciais do desenvolvimento.
pontos terminais, seus arcos de trans-
missão, seus nós de bifurcação ou co-
municação. (Cf. Santos, 1996, p. 209) Desenvolvimento, regime
de acumulação e produção
Considerando a dimensão social, a “rede é do espaço capitalista
uma imagem do poder ou, mais exatamente,­
do poder do ou dos atores dominantes” Tendo em vista as aceleradas mudanças do
(Raffestin,­ 1993, p. 157). A ênfase nos as- mundo contemporâneo diante da globaliza-
pectos hierárquicos apresenta-se não somen- ção, um tema que suscita amplos debates é
18 te nas redes de comunicação construídas ao do desenvolvimento. Ainda assim, por um
longo da história para controlar territórios, longo tempo, a questão das causas e condi-
mas também nas redes da atualidade. ções do desenvolvimento tem ocupado não
O contexto do avanço do capitalismo é apenas análises, mas também proposições de
de barreiras e incertezas. Para Harvey, não políticas cujos resultados têm se mostrado no
somente a racionalidade intrínseca à geo- mínimo incertos. Um dos aspectos particula-
grafia histórica do capitalismo, mas também res é a questão do desenvolvimento desigual,
suas contradições são essenciais ao entendi- que não se restringe a setores e ramos da
mento do processo. Algumas necessidades economia, mas ocorre também no tempo e
contribuem para conformar o espaço, como entre regiões. Na visão da economia política,
a aceleração do tempo de turnover e a eli- o desenvolvimento espacial desigual se refere
minação de barreiras espaciais. A acelera- ao progresso diferencial das relações sociais
ção do tempo de turnover implica diminuir capitalistas e setores ao longo de territórios
o tempo de circulação do capital e acelerar (Markusen, 1980a, p. 32). Uma perspecti-
o ritmo do desenvolvimento. Investimentos va de análise seria a da divisão regional do
de longo prazo, no ambiente construído, trabalho ou do processo de acumulação de
como a infra-estrutura de apoio à produ- capital e de homogeneização do espaço eco-
ção, ao consumo, às trocas e à comunicação nômico (Oliveira, 1977, p. 25).
e, ainda, projetos governamentais de largo Segundo Smith, duas tendências con-
horizonte são precondições para esses ga- traditórias atuam na produção do espaço
nhos (Harvey, 1997, p. 411). capitalista: a diferenciação e a equalização.

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O resultado dessa contradição na paisagem nos recortes territoriais, dos seguintes pro-
aparece como o padrão existente de desen­ cessos: 1) homogeneização; 2) integração;
vol­vimento desigual. A tendência à diferen­ 3) polarização; e 4) hegemonia. O autor
ciação espacial de níveis e condições de de- acrescenta que todas as linhas de análise so-
senvolvimento teria como base histórica a cial que trataram do desenvolvimento desi-
divisão do trabalho na sociedade, que traria gual dos espaços regionais trataram desses
implícita a divisão territorial do trabalho. processos por meio de proposições teóricas
Ainda que as condições naturais tenham (Brandão, 2007, p. 70).
sido uma fundação original da divisão do O primeiro processo é o de homogenei-
trabalho,­em sociedades mais desenvolvidas, zação. A homogeneização seria uma forma
essa reflete uma dinâmica social relaciona- de estabelecer requisitos básicos universais
da ao consumo produtivo e ao desenvolvi- para a valorização do capital, dessa forma
mento das forças produtivas (Smith, 1988, tornada progressivamente mais ampla. O
pp. 149 e 152-153). segundo processo é o de integração. Na vi-
Ao lado da tendência para a diferencia- são de Brandão, a integração trata da dinâ-
ção, Smith observa que existe uma tendên- mica coercitiva da concorrência, que passa
cia do capital para uma equalização. Assim, a atuar nos espaços abertos pela homoge-
ainda que o espaço geográfico se diferencie neização de forma seletiva e impositiva. O
internamente em espaços absolutos distin- terceiro processo é a polarização. O avanço
tos, em diferentes escalas, o espaço global é das forças produtivas incorre em polari-
produzido como um espaço relativo. Dessa dades, “campos de forças” distribuídas no 19
forma, a necessidade de expansão de merca- espaço de forma desigual; e centralidades,
dos pelo espaço global e, ainda, a tendência que expressam estruturas de dominação ca-
à uniformização das condições de produção racterizadas pela assimetria e pela irreversi-
e do desenvolvimento das forças produti- bilidade. O quarto processo é o de hegemo-
vas seriam fatores de uma equalização. A nia. O autor esclarece que a configuração
contradição entre a tendência à diferencia- política e a correlação de forças de um país
ção e a tendência para a equalização seria expressam cortes regionais e locais bastan-
determinante do desenvolvimento desigual. te nítidos (ibid., pp. 71-83).
Assim, a acumulação de capital cresce, por Os processos que se estabelecem no
um lado, por meio do desenvolvimento da espaço em decorrência da dinâmica da
divisão do trabalho e, por outro lado, pelo acumu­lação contribuem para estabelecer
nivelamento de modos de produção tradi- uma configuração territorial em contínua
cionais às condições de produção dominan- mutação. Além disso, para compreender
tes (ibid., pp. 169-170). processos espaciais é essencial incorpo-
Em visão que revisita e reconceitualiza rar uma perspectiva histórica. No caso
abordagens anteriores, Brandão propõe al- de processos que se originam na escala
guns processos-chave para a compreensão­ mundial e se expandem pelos espaços na-
do movimento desigual da acumulação­ de cionais, embora caiba evitar rebatimen-
capital no espaço. Para o autor, a análi­se crí- tos mecanicistas, é útil referir-se a ten-
tica necessita de uma verificação articulada,­ dências relativas à acumu­lação intensiva

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e à acumulação flexível e sua expressão incorpora empresas específicas, caracte-


espacial. rísticas da etapa anterior. A configuração
Para Santos, a configuração territorial territorial resultante, que combina formas
se compõe do conjunto de sistemas naturais diferenciadas, reflete essa convivência ao
e dos acréscimos superpostos pela socie- mesmo tempo em que lhe dá suporte. As-
dade em uma área ou país (Santos, 1996, sim, complexos produtivos que ultrapas-
p. 51). Assim, as combinações associadas saram a crise do modelo de acumulação
ao fordismo podem ser consideradas como intensiva e se integraram ao novo sistema
decorrentes­ da necessidade de utilização convivem com novas áreas de articulação
ampla de recursos e produção em larga es- aos circuitos produtivos.­ Ao se adaptarem
cala, com vistas a atender a um consumo de às novas tendências, algumas áreas passa-
massa. Ao mesmo tempo, segundo Cidade, ram a se organizar sob a forma de sistemas
em sintonia com os fatores clássicos de lo- produtivos espaciais de diferentes níveis e
calização, as grandes unidades de produção com distintas formas. Algumas dessas áreas
buscavam localizar-se em áreas próximas a apresentam potencialidades para processos
fontes de matérias-primas ou a mercados, de desenvolvimento a partir de uma base
como forma de diminuir os custos de trans- tecnológica e gerencial que favorece a ino-
portes. A formação de complexos indus- vação. Além disso, o desenvolvimento local
triais e a expansão metropolitana, propícias baseado na competitividade, na inovação e
às economias de escala e de aglomeração, em modelos de gestão depende de qualifi-
20 representaram a configuração territorial cações nem sempre disponíveis. Assim, a
típica do fordismo. Outras tendências do constituição diferencial dessas novas áreas
sistema, como a concentração e a centrali- de acumulação pode acabar contribuindo
zação de capitais e a proliferação de empre- indiretamente para o aumento das desigual-
sas multinacionais, atuaram no sentido de dades regionais.
acentuar ainda mais essas formas (Cidade, Para compreender as relações entre
1999, p. 229). mudanças no regime de acumulação e di-
No quadro das relações entre processos nâmica territorial e, também, o papel do
econômicos e sua expressão espacial, Benko Estado e das políticas públicas de desen-
identifica uma disjunção que ocorre devido à volvimento na configuração do território
reestruturação produtiva; o resultado seria brasileiro, é necessário ir além das refle-
um “mosaico de territórios diferenciados”. xões conceituais. Em sintonia com o pres-
Entre as estruturas articuladas à acumula- suposto da influência de processos globais
ção flexível estariam os pólos tecnológicos, em diferentes escalas, apresenta-se a se-
integrados a redes mundiais de tecnologia e guir um breve resgate do contexto social,
produção e com o potencial de atuar na liga- econômico e político mundial em seu de-
ção entre os quadros produtivos nacionais e senvolvimento histórico a partir do século
internacionais (Benko, 1996, pp. 24-25). XX. Mais adiante, discute-se a dinâmica
Além das empresas de produção flexí- brasileira articulada a esses processos e
vel e dos pólos tecnológicos, o pós-fordismo­ seus efeitos territoriais.

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Processo de acumulação Fordismo e configuração de


e configuração do território mundial até o final
dos anos 1960
território em escala
mundial
Cenário socioeconômico do fordismo
mundial até o final dos anos 1960
O avanço da racionalidade e da ciência oci-
dental têm servido de base para um proces- Os grandes construtores da atual integra-
so de desenvolvimento que se caracteriza ção de mercados foram os Estados Unidos
por uma crescente produção de mercadorias que, acompanhados de outros países cen-
e por um insaciável uso dos recursos da na- trais, estabeleceram as bases de uma nova
tureza. Na outra ponta do circuito produtivo etapa da acumulação capitalista ao longo do
está a esfera do consumo que, com base em século­ XX. Esse processo pode ser dividido
necessidades criadas, realimentadas e per- em duas fases: enquanto a primeira começa
petuadas, é levada a atuar em sintonia com no início do século e se prolonga até o final
as exigências de uma produção voltada pa- da década de 1960, a segunda se inicia na
ra a garantia e a multiplicação do lucro. No década de 1970 e alcança o final dos anos
Brasil, ao lado de uma oferta transbordante noventa, avançando sobre os primeiros anos
de bens e serviços mais e mais associados do século XI.
a interesses internacionais, encontra-se cada Na primeira fase, a sociedade deu gran-
21
vez menos autonomia nas atividades econô- des saltos no conhecimento científico, esta-
micas nacionais, o que se particulariza nas beleceu avanços significativos na capacidade
escalas regional e local. Mesmo os ramos de produzir mercadorias e deu continuidade
mais tradicionais, como alimentos e vestuá- à disseminação da ideologia do progresso.
rio, e mesmo as áreas mais remotas acabam Em suas manifestações culturais, o período
se modificando para abraçar conveniências pode ser considerado como um prolonga-
tecnológicas, muitas vezes, no interesse de mento da modernidade; em sua expressão
capitais de origem longínqua. Essas trans- socioeconômica, identifica-se com o fordis-
formações, que também influenciam as mo ou regime de acumulação intensiva. Na
formas de consumir, refletem tendências segunda fase, mantendo uma continuidade
de longo prazo no quadro produtivo brasi- nas grandes tendências do sistema, o capi-
leiro. Essa dinâmica, por sua vez, encontra talismo mundial estabeleceu mudanças que
condicionantes históricos em processos de serviram de escudo no enfrentamento de
transformação que, ditados pelos centros crises. Do ponto de vista cultural, esse pe-
hegemônicos, se estabeleceram ao longo do ríodo identifica-se com a pós-modernidade,
último século. enquanto, nos aspectos socioeconômicos,

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equaciona-se com o pós-fordismo ou regime e­ strutura­ em países centrais e também


de acumulação flexível. nos periféricos. O poder de controlar um
A periodização adotada não pretende mercado mundial que se massificava foi um
enquadrar diferentes países em modelos es- dos desdobramentos de uma racionalidade
tanques; pretende identificar tendências que ditada por redes financeiras hierarquizadas
podem predominar em algumas áreas­ e se (Harvey, 1991, p. 132).
manifestar de forma incompleta ou modifi-
cada em outras. Dessa forma, a breve abor-
dagem sobre esses processos gerais procura Cenário produtivo do fordismo
delinear seus principais condicionantes como mundial até o final dos anos 1960
referência para a interpretação de suas ma-
nifestações em países periféricos. No Brasil, As grandes mudanças que marcaram o
a dinâmica econômica internacional, ao se perío­d o em análise resultaram, em larga
projetar sobre o território do país, contri- medida, da organização produtiva que se
buiu para estabelecer os parâmetros de de- tornou característica do fordismo e que
senvolvimento. Por sua vez, a incorporação­ serviu de base para o rápido crescimento e
nacional no padrão de acumulação dominan- a larga expansão­ desse modelo a partir dos
te foi instrumental para relativizar os efeitos Estados Unidos. Uma das principais bases do
de crises internacionais. sistema foi o taylorismo e sua proposta de
Para fazer frente aos altos e baixos da administração científica, que se desdobrou
22 economia capitalista e à longa recessão dos na linha de montagem, essencial para a pro-
anos trinta, o governo norte-americano foi dução em larga escala e para o consumo de
forçado a abrir mão de preceitos até então massas. Em conjunto, essas características
prevalecentes de soberania do mercado. se tornaram as grandes responsáveis pela
Passou a pautar-se por ações de cunho key- expansão econômica dos países da Europa
nesiano voltadas para elevar a capacidade Ocidental e do Japão que, a partir dos anos
de compra da população. Um dos autores cinqüenta, também passaram a adotar a
que abordam o tema com uma perspectiva produção em moldes fordistas.
territorial é David Harvey. Para o estudio- Para alguns autores, como Aglietta,­
so, dois pontos de apoio sustentaram o rá- entre as principais transformações pro-
pido crescimento da demanda efetiva. Um movidas pelo sistema fordista estão mu-
importante sustentáculo foi a disponibilida- danças substanciais no processo de tra-
de de uma força de trabalho qualificada nas balho e nas condições de vida do opera-
regiões de acumulação mais avançadas dos riado, entre as quais o aumento do nível
Estados Unidos, Europa Central e Japão. de consumo e uma maior atuação dos
Outro apoio substancial foi a reconstrução sindicatos em torno de interesses coleti-
de países arrasados pela Segunda Guer- vos. Para Aglietta, o fordismo pressupõe
ra Mundial, com papel ativo do Estado, que o processo de produção se articula ao
acompanhado pela renovação urbana, pela modo de consumo no que foi chamado de
expansão espacial de redes de transpor- regime de acumulação intensiva. Enquan-
tes e comunicações e pela oferta de infra- to o trabalho assalariado se universaliza,

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seu conteúdo­ particular­ é a produção em recém-adotavam processos de substituição


massa (Aglietta,­1979, p. 117). de importações como um caminho para o
Outro autor que trata do fordismo é desenvolvimento tinham menos condições
Lipietz, para quem o modo de distribuição de absorver o modelo fordista. Assim, a
continuada do produto, encarregado de di- desigualdade foi uma das características,
rigir a congruência entre as mudanças nas tanto dos processos de acumulação que aí
condições de produção e nas de consumo se estabeleceram como da configuração ter-
em um dado período, é o que se chama de ritorial resultante. Na medida da ampliação
regime de acumulação. Seria, então, preciso do padrão de acumulação para novas áreas,
que se cumprissem alguns requisitos, encar- pode-se identificar também uma tendência
regados de garantir a reprodução continua- à equalização.
da do regime de acumulação; isso seria feito A expansão do fordismo pelo espaço
pelo modo de regulação, um sistema de for- mundial sob influência norte-americana, pro-
ças institucionais, normas e comportamen- gressivamente, levou sua racionalidade não
tos que, por meio de práticas coercitivas ou apenas para a esfera da produção, mas tam-
incitativas, levam os diferentes grupos so- bém para a do consumo, com repercussões­
ciais a se adequarem a essas forças (Lipietz, sobre as dinâmicas sociais, culturais e ter-
1982, pp. 5-6). As mudanças provocadas na ritoriais. Após uma fase de expressivo
esfera da produção e do consumo, ao se ge- crescimento,­ o modelo atingiu seu limite
neralizarem nas economias avançadas, alte- e iniciou uma trajetória de declínio e crise,
raram de forma intensa as relações sociais, que levou à necessidade de uma reestrutu- 23
enquanto afetaram profundamente o modo ração. Com vistas a garantir a sobrevivência
de interagir com o território. do modelo capitalista, a partir dos anos se-
tenta e até os dias de hoje, estabelecem-se
mudanças significativas no sistema que vêm
Efeitos do fordismo sobre alterando em larga medida as relações entre
a organização espacial mundial países e sua dinâmica social e econômica.
até o final dos anos 1960

No período em questão, ao lado da expan- Pós-fordismo e configuração


são da industrialização nos países avança- do território mundial a partir
dos, verificou-se grande crescimento agrí- dos anos 1970
cola e um aumento substancial da população
vivendo em cidades e áreas metropolitanas.
Palco de um processo de desenvolvimen- Cenário socioeconômico do pós-fordismo
to continuado, esses países já dispunham mundial a partir dos anos 1970
ou tinham condições de construir suporte
territorial e infra-estrutura em nível su- Ao lado do crescimento e fortalecimento
ficiente para dar continuidade à acumula- da hegemonia norte-americana, começou a
ção, em parte concentrada em complexos aparecer uma nova configuração geopolítica
industriais. Ao mesmo tempo, países que a partir da emergência da União Européia e

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do bloco asiático, que passaram a demandar sistema produtivo, comercial e de reinvesti-


maior participação na economia mundial. mento, que alcançava a escala mundial, além
Após um período de crescimento durante os de contornar o poder do Estado, era capaz
anos cinqüenta e sessenta, a primeira crise de promover seus interesses à revelia dos
do petróleo, de 1973, ocorreu a partir de interesses, não apenas dos Estados Unidos,
um cenário de abundância de dólares, au- mas também de outros países. Para Arrighi,
mento de preços e insegurança financeira na o resultado mais significativo da hegemonia
esfera internacional. A reestruturação eco- dos Estados Unidos foi o aumento do poder
nômica, bem como modificações no quadro das multinacionais, que foi capaz de liberar
social e político internacional, foi essencial o crescimento do capital no mundo das li-
para assegurar o retorno a uma trajetória mitações estabelecidas pelos Estados terri-
de crescimento. toriais (ibid., p. 74).
O papel central da dominação dos Es-
tados Unidos, segundo Arrighi, manteve-se
por meio de aspectos estratégicos essen- Cenário produtivo do pós-fordismo
ciais. Entre eles está o papel do Federal mundial a partir dos anos 1970
Reserve System e bancos centrais de países
associados­no controle da moeda no mundo; Para Lipietz, o apogeu do fordismo verifi-
a capacidade de definir o ritmo e os rumos cou-se na década de sessenta, quando já se
da liberalização comercial; e o aumento da estabeleciam as condições da crise que viria
24 participação de grandes companhias trans- a seguir (Lipietz, 1982, p. 21). Na verdade,
nacionais nos negócios mundiais, em par- o crescimento da economia mundial, com o
ticular diminuindo o peso das transações fordismo estabelecido nos Estados Unidos,
comerciais com relação aos investimentos Europa Central e Japão, durou até o início
diretos (Arrighi, 1996, pp. 72-73). da década de 1970. Para fazer frente ao es-
Uma das características das companhias gotamento do modelo, que a essas alturas já
multinacionais do século XX, para Arrighi, se manifestava com maior nitidez, as gran-
era seu cunho comercial e sua especialização des empresas intensificaram os investimen-
funcional, em concorrência ou cooperação tos diretos em novas áreas. Estabeleceram-
com outras empresas do mesmo tipo, em se em países como a Coréia do Sul, o México
processos produtivos localizados em dis- e o Brasil, considerados em condições de
tintos territórios. Para o autor, o aumento alavancar o processo de desenvolvimento e
de quantidade desses estabelecimentos tem constituir-se em novos mercados.
relações não apenas com sua especialização Lipietz ressalta que, nos anos setenta,
funcional, mas também com sua capacida- as ações para expandir o regime de acumula-
de de atuar em diferentes territórios. Ao ção intensiva para países que se lançavam no
se iniciar a crise da hegemonia dos Estados projeto de desenvolvimento tiveram alcance
Unidos, com a continuidade das disputas limitado. Segundo o autor, a tentativa de
com a antiga União Soviética, nos primeiros abrir novos mercados foi uma forma de es-
anos da década de setenta, as multinacionais capar da redução da taxa de lucro e da crise.­
mantinham elevado nível de autonomia. Seu O panorama de desigualdade dos países­

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receptores­ favoreceu o estabelecimento de sinalizam mudanças em direção a um novo


um fordismo periférico que, para o autor, regime de acumulação, articulado com um
seria um regime de acumulação com traços também novo sistema de regulação social
híbridos (ibid., p. 21; s.d., p. 23). e política, o regime de acumulação flexível
A ampliação do modelo fordista pa- (Harvey, 1991, pp. 145-146).
ra os países periféricos precisava aliar as As principais características do regime
vantagens locais já existentes (abundância de acumulação flexível seriam, para Harvey,
de mão-de-obra, matéria-prima e recursos mudanças nos processos de trabalho, nas
naturais) com a necessária modernização da práticas de consumo, nas formas de gestão,
logística, de forma que permitisse a insta- nos estilos de vida, nas manifestações cultu­
lação de filiais das empresas multinacionais rais, nos papéis do Estado e nos aspectos
nesses países. Suas economias de base pri- espaço-temporais. Entre outras mudanças,
mário-exportadora deveriam se transformar estão novos ramos produtivos, diferentes
em economias industrializadas, sem perder, serviços financeiros e novos mercados, num
contudo, sua vocação exportadora. Passou- quadro em que se destaca a importância das
se a produzir, na periferia, a custos redu- inovações em uma variedade de áreas, como
zidos, com mão-de-obra barata, matéria a comercial, a tecnológica e a administrativa
prima local e infra-estrutura alocada pelos (ibid., p. 147).
Estados nacionais, exportando-se a preços Alvo de diferentes pressões, os países
altamente competitivos para o centro (Jato- periféricos tentam se adaptar à acumulação
bá e Cidade, 2006). flexível, também chamada de pós-fordismo, 25
Produto da aliança entre capitais priva- que se acompanha de um receituário neoli-
dos nacionais e o capital internacional, tendo beral voltado para a desregulamentação da
à frente os Estados nacionais, o fordismo economia e para a limitação do papel social
periférico foi uma das bases do processo de do Estado. Caracterizadas pelas desigual-
substituição de importações de países que dades e pela existência de grande número
buscavam o desenvolvimento. A partir de di- de empresas tradicionais ao lado de ramos
ferentes configurações políticas, que incluí­ avançados, muitas dessas economias enfren-
ram regimes ditatoriais em diversos países tam dificuldades para promover as atualiza-
e o enfraquecimento de grupos tradicionais, ções preconizadas. Nesse quadro, tendem a
o sistema foi um dos agentes da reprodução se reproduzir as desigualdades econômicas,
de desigualdades sociais e regionais. sociais e espaciais.
Diante de dificuldades continuadas no
âmbito internacional, os anos setenta e oi-
tenta, segundo Harvey, caracterizaram-se Efeitos do pós-fordismo sobre
pela reestruturação econômica acompanha- a organização espacial mundial
da de reajustes na esfera social e política. a partir dos anos 1970
Ao mesmo tempo, surgiram inovações no
âmbito da organização industrial e, ainda, O espaço mundial caracterizou-se, para­
na sociedade e em sua organização políti- Harvey,­ por mudanças aceleradas na pro­
ca. O autor conjetura que essas tentativas dução­ do desenvolvimento desigual, não

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apenas entre setores, mas particularmen- Processo de acumulação


te entre regiões­ geográficas. Entre essas
mudanças estaria o aumento do número
e configuração do
de postos de trabalho em atividades de território na escala
serviços e a implantação de plantas indus- nacional
triais em regiões não desenvolvidas. Essas
tendências aparecem sob a forma de novos
arranjos produtivos em áreas sem tradi- Fordismo periférico
ção de desenvolvimento, como a Terceira e configuração do território
Itália, Flandres, os inúmeros aglomerados brasileiro até o final
voltados para a produção de tecnologia da dos anos 1960
informática e, nos países de industrializa-
ção recente, uma variedade de localidades Cenário socioeconômico do fordismo
(ibid., p. 147). periférico brasileiro até o final
A análise sugere que o regime de dos anos 1960
acumu­lação flexível está deixando sua mar-
ca na dinâmica territorial do capitalismo Baseado em uma economia agroexportado-
mundial. Diante das mudanças das últimas ra até as primeiras décadas do século XX, o
décadas, a capacidade de operar com eleva- Brasil caracterizava-se como uma sociedade
dos níveis de competitividade e com ganhos tradicional, em larga medida subsidiária dos
26 continuados de produtividade dependem principais centros consumidores mundiais,
em larga medida de atividades econômi- notadamente a Europa. Contava com um
cas de alto conteúdo tecnológico e de ele- largo contingente de população rural, um
vada dependência das comunicações e da conjunto de regiões relativamente isoladas
informação. Enquanto algumas regiões se entre si e vastas áreas do território ainda
enquadram nesses requisitos e ocupam a por incorporar de maneira efetiva ao quadro
frente dinâmica do capitalismo internacio- social, econômico e político do país. Tendo
nal, outras se articulam de forma incom- à frente o Estado e frações hegemônicas
pleta ao modelo e podem constituir-se em regionais com iniciativas de modernização,
áreas decadentes, estagnadas ou de cresci- a grande mudança na sociedade brasileira
mento lento. Em sintonia com as tendências estabeleceu-se a partir dos anos cinqüenta.
do capitalismo, as diferenças, por um lado, A nova proposta baseava-se na industriali-
aumentam a equalização, por outro, reali- zação, com a expansão de atividades produ-
mentam as desigualdades socioespaciais. tivas para o interior, o crescimento e con-
Embora com características específicas, es- solidação das áreas urbanas e a construção
se processo se reproduz em larga medida de um arcabouço territorial de apoio. Com
no Brasil e também pode ser interpretado a essas credenciais, esperava-se que o Brasil
partir de sua evolução histórica. pudesse finalmente se integrar às tendências

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das sociedades avançadas e aos mercados setor industrial, dinamizado por investimen-
emergentes que estavam sendo aos poucos tos crescentes, ultrapassou a agricultura e
incorporados ao sistema fordista de produ- tornou-se o novo motor da economia brasi-
ção e consumo de massa. leira. Diante da opção pela concentração de
Em paralelo a fortes investimentos es- renda com vistas à continuidade da acumu­
tatais, a poderosa intervenção do Estado na lação, o grande crescimento econômico que
economia criava condições para a emergên- se seguiu, no entanto, contribuiu para ali-
cia de uma classe média com maior poder mentar as desigualdades.
aquisitivo, concentrando a renda em uma
parcela restrita da população, localizada geo­
graficamente na Região Sudeste. Não coinci- Ações de desenvolvimento regional
dentemente, aí também estavam localizadas brasileiro até o final dos anos 1960
as principias indústrias que necessitavam de
uma mão-de-obra melhor qualificada e, con- Nessa fase, além do Plano de Metas
seqüentemente, melhor remunerada, que, (1956/1961), destacaram-se as políticas
por outro lado, também formava o mercado de expansão do modelo de acumulação es-
consumidor para os sofisticados produtos tabelecido no Centro-Sul, assinaladas por
por elas produzidos (Jatobá, 2006). Oliveira como uma forma de destruição das
economias regionais. Seria um movimento
que destrói para concentrar, enquanto se
Cenário produtivo do fordismo apropria do excedente das outras regiões 27
periférico brasileiro até o final para centralizar o capital. Assim, as políti-
dos anos 1960 cas de redução das disparidades regionais
iriam além da esfera econômica; envolve-
Os esforços de industrialização em curso riam movimentos na estrutura de poder e a
desde os anos trinta caracterizavam-se pela cooptação do Estado. Essa dinâmica estaria
substituição horizontal de importações, tam- particularmente representada no estabeleci-
bém conhecida como industrialização res- mento de órgãos como a Superintendência
tringida. A partir do Plano de Metas (1956- de Desenvolvimento do Nordeste – Sudene
1960) do governo Kubitscheck, foi iniciado (criada em 1959) (Oliveira, 1977, p. 76).
o aprofundamento do modelo por meio da Becker e Egler lembram que entre as
substituição vertical de importações, basea- estratégias de desenvolvimento regional
da na industrialização pesada. Adotando ca- adotadas pela Sudene estava o incentivo ao
racterísticas de um Estado desenvolvimen- estabelecimento, no Nordeste, de unidades
tista, as políticas públicas atuaram de forma produtivas originárias do Sudeste volta-
a promover os investimentos necessários das para a substituição de importações.
nos setores de bens de capital, bens inter- Para os autores, essas ações contribuíram
mediários e bens de consumo durável. para acentuar o rápido aumento popula-
O governo buscou atrair capitais inter- cional de regiões metropolitanas do Nor-
nacionais inseridos no sistema fordista, em deste, que acompanhou­ um processo tam-
particular os da indústria automobilística. O bém verifica­d o em metrópoles localizadas

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em outras áreas­ do país (Becker e Egler, trinta, por uma rede dendrítica, na qual di-
1993, p. 87). ferentes núcleos de uma área se conectam
A incorporação do país ao modelo de em um centro urbano de convergência co-
acumulação intensiva transformou o perfil mum. Assim, fluxos de mercadorias vindas
da produção manufatureira nacional, pro- do interior, como produtos agrícolas ou mi-
movendo a criação de um parque industrial nerais destinados à exportação, eram enca-
até então inexistente. Para isso, foi determi- minhados para cidades litorâneas estabeleci-
nante a implantação, pelo Estado brasileiro, das como portos, que faziam a ligação com
de uma infra-estrutura de apoio à base pro- os mercados internacionais. Até o início da
dutiva, permitindo também a expansão dos década de cinqüenta, as regiões ainda eram
mercados de consumo. A estratégia consistiu relativamente isoladas, enquanto os bens aí
na expansão da malha rodoviária a regiões, produzidos tendiam a ficar circunscritos a
até então isoladas, criando condições para mercados regionais, que eram protegidos de
a circulação de mercadorias e na realização uma concorrência externa por esse mesmo
de investimentos estatais em setores-chave isolamento. De fato, apesar de a indústria
para a produção, como os de energia, mine- paulista ser, já nessa época, mais desenvol-
ração e siderurgia (Jatobá, 2006). vida e potencialmente mais competitiva do
As ações de cunho vertical estão en- que as das outras regiões, as dificuldades
tre os traços principais das políticas de de- de interação eram muito grandes devido à
senvolvimento regional da época. O Estado precariedade da malha rodoviária. Essa or-
28 brasileiro, por vezes com a participação de ganização espacial ainda relativamente equi-
instituições financeiras internacionais, bus- librada começou a se modificar nos anos
cava promover investimentos privados, em cinqüenta, com o aprofundamento da subs-
um contexto no qual se via o crescimento tituição de importações.
econômico enquanto uma resposta a ações Um dos requisitos essenciais da mudan-
estabelecidas de fora para dentro, o desen- ça no padrão de acumulação, que buscava se
volvimento exógeno. Em um contexto no articular ao fordismo, e da integração do
qual predominavam capitais originários de mercado nacional sob o domínio do Sudeste
outras regiões para as quais os lucros tam- foi a construção de infra-estrutura produti-
bém eram canalizados, processos produtivos va e a expansão das redes de circulação e
locais tendiam a gerar benefícios limitados distribuição de mercadorias pelo território
para as populações das áreas nas quais se nacional. Assim, a avançada indústria manu-
instalavam. fatureira de São Paulo foi capaz de atingir e
conquistar os mercados das outras regiões,
que não tinham condições de competição.
Efeitos do fordismo periférico Nesse cenário, o Estado, por meio das polí-
sobre a organização espacial ticas de desenvolvimento regional e de equi-
brasileira até o final dos anos 1960 pamento do território, teve um papel duplo.
Contribuiu, por um lado, para a diferen-
Estabelecida na fase colonial, a estrutura es- ciação, ao apoiar a acumulação de capitais
pacial brasileira caracterizava-se, até os anos pelas indústrias do Sudeste, por outro lado,

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para a equalização, por meio da expansão­ estrangeiros na economia. Também nessa


do padrão produtivo dominante para o in- fase, embora o mercado interno tenha se
terior do país. ampliado para incorporar a classe média, as
grandes massas populares foram deixadas à
margem. A grande contração salarial, que
Pós-fordismo e configuração atingiu de maneira especialmente forte os
do território brasileiro a partir trabalhadores não qualificados, contribuiu
dos anos 1970 significativamente para a intensificação das
desigualdades sociais. Mais recentemente,
essa situação começou apresentar uma
Cenário socioeconômico do pós-fordismo
melhora, com sinais de uma diminuição da
brasileiro a partir dos anos 1970
pobreza.
Esse período começou com o cres-
Em sintonia com as transformações que cimento acelerado da economia e depois
buscavam enfrentar a crise capitalista na assistiu a uma sucessão de crises. Nos pri-
esfera internacional, mudanças estruturais meiros anos da década de setenta, houve
marcaram essa fase do desenvolvimento uma desaceleração, continuada ao longo das
brasileiro. Setor dinâmico da economia, a décadas seguintes, em decorrência da crise
indústria ultrapassou a agricultura, que até do petróleo. No início da década de oiten-
então era a responsável pela maior parte da ta, para Fiori, com a crise da dívida externa
criação de riquezas do país e das trocas co- encerrava-se a era do desenvolvimentismo. 29
merciais no mercado internacional. Ao lado A partir daí, em sintonia com os países cen-
do desenvolvimento da indústria, também a trais que retomavam a linha liberal-conser-
agricultura se modernizou, pela via da me- vadora, ia se consolidando a nova estratégia
canização, deixando estagnadas as atividades neoliberal que os Estados Unidos adotavam
nos moldes tradicionais. Embora a produção para a América Latina e seu correspondente
industrial tenha crescido significativamente, ideário (Fiori, 2001, p. 181).
ao lado de sua participação no mercado ex- O prolongamento de uma fase de bai-
terno, o país manteve-se como grande ex- xo crescimento econômico, agravado por
portador de produtos primários. Nos anos proces­sos inflacionários intensos, que sub-
recentes, a expansão da área cultivada, ao sistiram até a década de noventa, acompa-
lado de substanciais ganhos de produtivi- nhou-se de elevado endividamento público.
dade, em particular na monocultura, tem A integração aos requisitos da economia
acentuado o papel dos produtos agrícolas na globalizada sem o aumento da capacidade de
pauta de exportações brasileiras. absorção de grandes contingentes de mão-
Em um contexto de adequações à no- de-obra tem se refletido em um grande au-
va regulação internacional, a reorganização mento da exclusão social. O atual gover­no,
das atividades financeiras foi uma das po- embora faça parte de uma tradição de críti-
líticas governamentais de apoio às mudan- ca às propostas neoliberais, tem promovido
ças estruturais, o que também contribuiu ajustes em sintonia com essa visão. Assim,
para aumentar o peso dos investimentos as propostas de desenvolver políticas sociais

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abrangentes e efetivas acabam tendo alcan- Ações de desenvolvimento regional


ce limitado. brasileiro a partir dos anos 1970

Cenário produtivo do pós-fordismo Durante a fase de modernização conserva-


brasileiro a partir dos anos 1970 dora, iniciada na fase anterior com prolon-
gamento nos anos iniciais da fase em pauta,
o planejamento governamental adotou polí-
Articulado ao modelo de acumulação inten-
ticas de desenvolvimento com rebatimentos
siva dos países centrais, o sistema adotado
sobre o território nacional. Entre essas estão
nessa fase no Brasil adaptou-se às condições
o I Plano Nacional de Desenvolvimento – I
vigentes na forma de sua variante, o fordis-
PND (1972/74) e o II Plano Nacional de De-
mo periférico. Uma das condições do mo-
senvolvimento – II PND (1975/79). Parte do
delo, que era a existência de uma força de
equipamento do território por meio de infra-
trabalho com elevados níveis de qualificação,
es­trutura e de redes diferenciadas se estabe-
só pôde ser atendida em algumas regiões­
leceu a partir desses planos.
do país, como o Sudeste e o Sul. Apesar de
Ao longo de um extenso período de
propiciar, nos primeiros anos, um substan-
modesto crescimento econômico, o Estado
cial crescimento econômico, o modelo de
tem encontrado limitações para manter as
desenvolvimento adotado resultou em ele- extensas redes implantadas e para financiar
vados índices de desemprego e subemprego, investimentos produtivos. Busca potenciali-
30 acompanhados de grande concentração de zar os recursos disponíveis, de forma a pro-
renda. piciar apoio a setores articulados ao modelo
Com as mudanças em direção a uma de acumulação hegemônico. Assim, o Plano
acumulação flexível, as necessidades do Plurianual – PPA 1996/1999 (Programa
mercado levaram à elevação da intensidade “Brasil em Ação”), do Governo Fernando
do trabalho; além disso, por um lado, à ne- Henrique, selecionava “eixos de desenvolvi-
cessidade de níveis mais complexos de qua- mento” que incluíam projetos estratégicos.
lificação e, por outro lado, à substituição de Um de seus propósitos era remover obs-
postos de trabalho mais qualificados por ou- táculos para o escoamento da produção de
tros menos qualificados, e, ainda, à tercei- grandes empresas articuladas ao capitalismo
rização e a uma diminuição da estabilidade. internacional, como agroindústrias e mine-
Na agricultura, a expansão da agroindústria radoras. Após inúmeras críticas ao seu ca-
contribui para a acentuação da seletividade, ráter marcadamente econômico, a proposta
enquanto a ampliação da monocultura de foi ampliada em seguida ao PPA 2000/2003
exportação aponta para a precariedade das (“Avança Brasil”). Observe-se que o general
condições de trabalho. Nesse quadro, a po- Meira Mattos, analista e teórico da geopolí-
pulação excluída e os habitantes de áreas de tica brasileira, assinala que a estratégia geo­
economia tradicional dificilmente encontram política brasileira está contida, em parte, no
perspectivas de articulação estável ao siste- programa “Avança Brasil” (Meira Mattos,
ma produtivo. 2007, p, 52).

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Durante os dois governos Lula, seguem Ao longo do período, as ações gover-


vigentes as limitações para o financiamento namentais voltadas para o desenvolvimento
do desenvolvimento e manutenção de infra- regional refletiram as mudanças que têm
estrutura. Além disso, diante de pressões po- afetado o caráter do Estado. Na fase desen-
líticas que envolvem o próprio federalismo, volvimentista, as políticas se caracterizaram
tem havido movimentos em direção a ações pela verticalização, por seu caráter exógeno
voltadas para o território. Assim, no PPA e por uma perspectiva nacional ou regional.
2004/2007 (“Brasil de Todos”), incluem-se Na fase neoliberal, as ações enfatizaram as
programas voltados para o desenvolvimento potencialidades locais, o desenvolvimento
territorial. Programas sociais, como o Bolsa endógeno e uma perspectiva sub-regional.
Família, também buscam diminuir as desi-
gualdades sociais e regionais e seus efeitos.
Considerado por Filgueiras e Gonçal- Em busca de efeitos do pós-fordismo
ves como o marco estratégico para orientar sobre a organização espacial brasileira
ações estruturantes e a gestão macroeconô- a partir dos anos 1970
mica do segundo governo Lula, o Programa
de Aceleração do Crescimento – PAC foi Os efeitos das atividades articuladas à acumu­
lançado em janeiro de 2007. Abrangendo o lação flexível nas últimas décadas incluíram
período 2007-2010, o PAC contém medi- um período de agravamento das desigual-
das voltadas para a expansão da economia dades regionais, durante o qual aumentou
e real­ça a elevação dos investimentos em in- também a concentração de atividades eco- 31
fra-estrutura (Filgueiras e Gonçalves, 2007, nômicas e população nas regiões metropo-
pp. 197-198). litanas, em particular no Sudeste. Seguiu-se
No que toca ao desenvolvimento regio­ uma desconcentração relativa, embora não
nal­ e local, os resultados contraditórios de tenha sido homogênea. Assim, como indica
políticas de ênfase exógena predominantes Azzoni em análise do setor terciário, nas
na etapa anterior, bem como o sucesso de atividades do segmento mais dinâmico, o de
experiências em variadas localidades no serviços, principalmente os mais modernos,
cená­rio nacional e internacional, contribuí­ o desempenho do Sudeste é destacadamen-
ram para um redirecionamento. Passou a te favorável. Segundo o autor, isso indicaria
haver uma maior atenção para recursos e que o contexto da reestruturação produtiva
iniciativas locais e para o envolvimento de dos últimos anos tem contribuído para be-
outros atores, além dos governamentais neficiar áreas que já concentram boa parte
em ações de desenvolvimento. Entre as da atividade econômica nacional (Azzoni,
propostas adotadas em anos recentes está 2005, p. 570). Mais recentemente, novos
a de apoio e promoção a arranjos produ- territórios de acumulação, como os tecno-
tivos locais­ (APLs). Autores como Lemos, polos, parecem representar uma tendência
Albagli e Szapiro­ mencionam a criação, em de acentuação da concentração regional no
2003, do Grupo de Trabalho Permanente Sudeste e em suas cercanias.
para APLs – GTP (Lemos, Albagli­e Szapiro, Para Araújo, nos anos recentes,
2006, pp. 252-252). há forças concentradoras e forças de

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desconcentração.­ Assim, entre as forças de outras permanecem como espaços divididos,


desconcentração estão a abertura comercial, em um sistema capitalista que tende a pro-
mudanças tecnológicas, considerações logís- duzir movimentos de equalização e também
ticas, a proximidade do cliente final e incen- a reproduzir a desigualdade.
tivos oferecidos por governos locais. Além
disso, entre as forças de concentração es-
tão os requisitos locacionais da acumulação
flexível; e a necessidade de proximidade de Conclusões
recursos humanos qualificados, de conheci-
mento e tecnologia, de infra-estrutura eco- É importante analisar as forças dinâmicas da
nômica e de mercados consumidores de alta sociedade na promoção do desenvolvimento
renda (Araújo, 2000, p. 118). como forma de melhor compreender suas
Além dos processos da economia indus- implicações espaciais. Assim, este estudo
trial, comercial e de serviços que tendem a buscou compreender as relações entre mu-
afetar diretamente as cidades, também ati- danças no regime de acumulação e dinâmica
vidades tradicionalmente circunscritas ao territorial; e, também, o papel do Estado e
campo expandem sua influência sobre o ter- das políticas públicas de desenvolvimento na
ritório e o sistema urbano. Assim, verifica- configuração do território brasileiro
se uma acelerada expansão da agricultura O texto apresentou aspectos gerais do
capitalizada e tecnificada pelo interior do regime de acumulação intensiva, ou fordis-
32 país, partindo do Sul e Sudeste e seguindo mo, buscando compreender suas tendências
em marcha acelerada pelo Centro-Oeste em espaciais, tomando caminho semelhante
direção à Amazônia. Grupos de interesse quanto ao regime de acumulação flexível, ou
voltados para essas atividades pressionam pós-fordismo. Convém notar que ambos os
o Estado para atender suas necessidades sistemas são entendidos como referências
de redes de infra-estrutura e logística e de interpretativas de uma realidade complexa.
núcleos de apoio urbano dotados de equipa- Em ambos os casos, apresentam-se ten-
mentos e articulados a redes técnicas. dências duais: enquanto os movimentos da
Também no caso brasileiro, o desenro- acumulação atuam na direção de uma dife-
lar do modelo de acumulação flexível, ma- renciação espacial que reforça áreas já con-
tizado pelo quadro nacional, parece estar solidadas, há também movimentos de equa-
atuando sobre a dinâmica territorial do país. lização que estendem o padrão dominante e
Tanto em áreas urbanas como em rurais, a tendem a incorporar novas áreas.
busca da competitividade e da produtividade No caso brasileiro, o Estado tem si-
por grupos integrados ao modelo dominan- do bastante ativo no apoio aos centros de
te é apoiada em larga medida pela ação do acumu­lação e sua expansão, com rebatimen-
Estado. Essa ação, por meio de políticas de tos sobre a configuração do território. Parte
infra-estrutura e da ação regional, tende a desses processos pode encontrar legibilidade
atuar de forma decisiva sobre a configuração em dinâmicas originadas no espaço mundial e
do território. Também aqui, enquanto algu- outra parte tem sido estabelecida ao longo do
mas regiões se articulam a esse movimento, desenvolvimento histórico do país. O modelo

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regime de acumulação e configuração do território no brasil

de acumulação que condiciona processos ur- escalas e se manifesta de maneira bastante


banos, metropolitanos e rurais se estabelece concreta em movimentos de gestão do terri-
segundo uma lógica que perpassa diferentes tório e na configuração territorial resultante.

Lúcia Cony Faria Cidade


Arquiteta, Mestre em Arquitetura, Mestre em Planejamento Urbano e Regional e PhD em
Planejamento Urbano e Regional. Professora Associada da Universidade de Brasília, Instituto
de Ciências Humanas, Departamento de Geografia, Centro de Desenvolvimento Sustentável e
Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais (Distrito Federal, Brasil).
cony@unb.br

Glória Maria Vargas


Geógrafa, Doutora em Geografia pela Universidade de São Paulo. Pesquisadora da Universi-
dade de Brasília, Centro de Desenvolvimento Sustentável (Distrito Federal, Brasil).
yoya@uol.com.br

Sérgio Ulisses Silva Jatobá


Arquiteto, Doutor e Mestre em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.
Pesquisador e servidor público da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente do
Distrito Federal e Universidade de Brasília do Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais (Distrito
Federal, Brasil).
sj.jatoba@uol.com.br 33

Nota
(1) Os autores agradecem ao parecerista anônimo por comentários que permitiram o aprimora-
mento do texto.

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Recebido em maio/2008
Aprovado em ago/2008

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Diferenciação espacial
e análise regional sob a condição
capitalista na contemporaneidade*
Ulysses da Cunha Baggio

Resumo Abstract
Este artigo se propõe a uma abordagem crí­ This article provides a critical approach to
tica da diferenciação espacial no âmbito da space differentiation in the scope of social
dinâmica social, especialmente sob a condi­ dynamics, especially under today’s capitalist
ção capitalista na contemporaneidade, quan­ condition, when the contradictory and
do a dimensão contraditória e desigual de unequal dimension of capitalism’s territorial
realização territorial do capitalismo, sob os accomplishment, under the impacts of
impactos da globalização acelerada, se re­ accelerated globalization, is more exacerbated.
vela mais recrudescida e, desse modo, rea­ In this way, the article stimulates studies about
vivando os estudos em torno da região e da regions and regionalization.
regionalização. Keywords: globalization; space
Palavras-chave: globalização; diferen­ differentiation; region; regionalization;
ciação espacial; região; regionalização; terri­ territory.
tório.

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ulysses da cunha baggio

Introdução variados­arranjos territoriais, em diferentes


escalas geográficas, que expressam novas
territorializações e novas territorialidades
Ontologicamente, o espaço geográfico de variados matizes que, na espacialidade
compõe-se de “n” variáveis socioculturais e contemporânea, se mostram cada vez mais
fisiográficas que se manifestam tanto empí­ mutantes, móveis e até mesmo sobrepostas.
rica como abstratamente. As materialidades Esse cenário, a se afirmar como um verda­
produzidas pelo trabalho social, bem como deiro caleidoscópio geográfico, nos conduz,
aquelas engendradas pelas dinâmicas da na­ inequivocamente, a reafirmar e valorizar
tureza, constituem formas empiricamente a idéia de espaço diferenciado ou ainda de
identificáveis no território, o que nos dá novas dinâmicas de diferenciação espacial,
a paisagem geográfica. Os componentes remetendo-nos à idéia de região ou de es­
abstratos (não auto-evidentes) podem ser paço regionalizado.
exemplificados, entre outros, pelas ideolo­ Diante da afirmação de tendências glo­
gias, fluxos de informação e circulação do balizantes nas sociedades e nos lugares, o
capital financeiro. Postula-se, assim, que o conhecimento regional assume grande mag­
espaço geográfico não se definiria nem co­ nitude e pertinência analítica quanto ao des­
mo um objeto empírico nem como um obje­ vendamento e à aferição de práticas sociais
to teórico-abstrato, mas mais propriamente diversas, especialmente no que importa às
como uma situação relacional multidimen­ suas implicações regionais e regionalizantes.
38 sional de variadas escalas, proporcionando- Não se pretende aqui recair em abordagens
nos uma pluralidade de leituras geográficas demasiadamente abstratas; é preciso, pois,
do real e do mundo ou ainda de imagina­ que os atores sejam valorizados devida e
ções geográficas múltiplas. Nesse universo, adequadamente no processo de análise.
o sujeito de conhecimento e de ação é con­ Deliberadamente, tais atores (instituições,
cebido ontologicamente como um ente es­ empresas, Estado, movimentos sociais, etc.)
pacial, ao mesmo tempo em que é produtor e suas práticas adquirem um poder que se
de espacializações que se dão no plano de amplia em níveis globais, precipitando a
sua existência como ser social. constituição de um cenário marcado por
As variadas formas de intercâmbio e múltiplas regionalizações da vida cotidiana,
de integração entre variáveis (concretas e submetido a transformações sociais perma­
abstratas) conformam e explicam proces­ nentes, conquanto perpassado pela profusão
sos e dinâmicas de formação e organização de intercâmbios globais.
do território que se realizam progressiva­ Desse modo, a condição socioespacial
mente a partir de interconexões globais e da contemporaneidade implica a produção
reajustes relacionais constantes, em que de formas e expressões territoriais progres­
pesem a força do dinheiro (e das finanças), sivamente desencaixadas, mutantes e instá­
a moderna tecnologia e a informação. Da­ veis, de modo a impactar e a reduzir sen­
do que a combinação/recombinação entre sivelmente as manifestações espaciais tradi­
elas admite a diversidade, a exemplo de cionais, mais estáveis e encaixadas (Giddens,­
interações e formas híbridas, produzem-se 1991). Os mecanismos de desencaixe­

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diferenciação espacial e análise regional sob a condição capitalista na contemporaneidade

propiciados­ pela força do capital, pelo ar­ nada­ ou quase nada parece ser efetivamen­
cabouço científico-tecnológico e pela infor­ te controlável. Essa complexidade, melhor
mação (e os discursos a ela relacionados) dizer totalidade fragmentária e contradito­
entabulam condições que ampliam subs­ riamente autodestrutiva, impõe dificuldades
tancialmente as possibilidades operacionais e limites quanto à identificação, demarcação
dos sujeitos, bem como ações de caráter e qualificação de suas expressões constituti­
decisório, conquanto também produzam in­ vas, representando grandes desafios às di­
seguranças ao plano da vida pessoal. Daí se versas áreas do conhecimento, à ação do Es­
compreender certa busca por identidades de tado e às práticas dos movimentos sociais.
caráter mais estabilizador, arena em que o Por isso, urge o desenvolvimento de um
regionalismo pode ser encarado como uma conhecimento relacional capaz de apreen­
condição a operar compensações diante dos der criticamente a complexidade geográfica
constrangimentos provocados pela globali­ contemporânea. Considerando-se que esta
zação, sugerindo uma vinculação quase que se apresenta como um mosaico de situações
orgânica entre regionalismo e identidade. em movimento, esse conhecimento requer,
Sob o intenso desenvolvimento das assim, a operacionalização concomitante da
forças produtivas, alcançado principalmente sucessão e da simultaneidade dos eventos,
nas últimas décadas, a formação desse efeti­ pari passu a valorização do sujeito de conhe­
vo caleidoscópio territorial engendra, entre cimento e suas práticas espacializadoras no
outras expressões, a conformação de perife­ mundo sensível.
rias pobres no âmbito de países avançados, 39
assim como manifestações espaciais moder­
nas e desenvolvidas na chamada periferia
do sistema. Essa situação se revela como A geografia como
uma explícita manifestação da redefinição um conhecimento
da questão social sob o capitalismo contem­ genuinamente relacional
porâneo e de seus mecanismos de coesão e
fragmentação, que são engendrados no e
para além dos processos de produção, por­ Estando a Geografia devotada funda­­­men­
tanto não se reduzindo a eles. E aqui não tal­­­mente­ ao estudo das relações entre a
seria recomendável e nem prudente forçar sociedade, na sua diversidade, e a nature­
interpretações que pretendam certa organi­ za – pro­gressivamente convertida em natu­
zação esquemática desse cenário, e menos reza humanizada pelo trabalho socialmente
ainda mediante a utilização de categorias realizado –, vislumbra-se a efetiva unicida­
tradicionais num universo social em que a de da Geografia, isto é, a inseparabilidade
extensão de poder de seus atores hegemôni­ homem/natureza. Inseparabilidade que, no
cos torna-se de difícil aferição, mal admitin­ entanto, expõe uma condição humana cons­
do uma avaliação arrazoada por meios esta­ trangida e reduzida pela degradação do tra­
tísticos. Nessa arena do capitalismo global, balho (e da natureza) sob os fundamentos
os mecanismos de controle se mostram cada e a lógica de uma economia de exploração
vez mais limitados e impotentes, em que ou ainda de uma capitalização ampliada e

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ulysses da cunha baggio

extenuante, com decorrências devastadoras mas também como o seu reflexo e condição.
e intoleráveis,­ conquanto acirre diferenças Nesse sentido,
e racismos de toda ordem, cujas especifici­
dades locais e regionais não podem ser elu­ [...] o espaço deve ser considerado co­
didas pela análise. Trata-se de uma condi­ mo um conjunto indissociável de que
ção que só ideologicamente implica alguma participam, de um lado, certo arranjo
positividade, mas que logo se dissolve ante de objetos geográficos, objetos natu­
as pulsações do mundo sensível, a revelar rais e objetos sociais, e, de outro, a vida
uma estrutura social na qual o humano está que os preenche e os anima, ou seja, a
profundamente subordinado à lógica da va­ sociedade em movi­mento. O conteúdo
lorização do capital, relegando a vida a uma (da sociedade) não é independente da
condição inferior e secundária. forma (os objetos geográficos), e cada
A inseparabilidade aludida – permeada forma encerra uma fração do conteúdo.
por contradições – sugere a concepção de O espaço, por conseguinte, é isto: um
uma Geografia que articule e integre os ter­ conjunto de formas contendo cada qual
mos dessa relação, sem, contudo, homoge­ frações da sociedade em movimento. As
neizá-la e tão pouco fetichizá-la, pois cons­ formas, pois, têm um papel na realiza­
ção social. (Santos, 1988, pp. 26-27)
tituída essencialmente como relação social e
não como relação entre coisas. Desse modo,
a idéia de natureza não é aqui reduzida a um As relações sociais, que também se re­
40 recurso estritamente, como pressupunha velam como relações com a natureza, com­
a ciência moderna (o que, de certo modo, portam mediações, podendo-se destacar a
sancionou ao capitalismo a sua apropriação do trabalho, pela qual historicamente o ho­
e exploração generalizada), ou mesmo na­ mem viabiliza a sua reprodução social no e
tureza enquanto campo de possibilidades às pelo espaço. À medida que o trabalho social­
intervenções antrópicas. Trata-se essencial­ mente realizado se objetiva espacialmente,
mente de uma concepção de natureza que isso equivaleria a dizer que o homem reali­
comporta o sentido do trabalho alienado za a sua existência e reprodução social como
conquanto se revele como condição e limite um processo permanente e diversificado de
à realização da vida. produção do espaço, no qual as sociedades
Com o advento da modernidade, as re­ inscrevem as suas marcas, desigualdades e
lações entre os homens e destes com a na­ diferenças. Dito de outra forma, é a realiza­
tureza conformam-se progressivamente sob ção do tempo no e pelo espaço, movimento
o capitalismo e sua dinâmica evolutiva. Daí a permanente que responde por sua formação
importância de nos debruçarmos sobre a na­ e organização. Dado que as possibilidades
tureza, as especificidades e o sentido da(s) de articulação e integração entre suas va­
geografia(s) do capitalismo e suas implica­ riáveis são múltiplas, haja vista as possibi­
ções na sociedade e na existência, portanto lidades proporcionadas pelo arcabouço téc­
do espaço e de suas múltipas expressões.­ nico-científico atual,­tal movimento­significa
Vale dizer que o espaço não se apresen­ o redimensionamento do espaço geográfi­
ta apenas como um produto da sociedade,­ co diferenciado e, portanto, dos próprios

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diferenciação espacial e análise regional sob a condição capitalista na contemporaneidade

processos­ de diferenciação­ espacial,­ reavi­ aumenta­ o grau de vulnerabilidade das eco­


vando e fortalecendo a idéia de região e de nomias “nacionais” diante de impactos subs­
regionalização na compreensão das dinâmi­ tanciais na chamada “economia real”. Pela
cas e processos sociais do mundo atual. hipermobilidade e preeminência do capital
financeiro na economia global, proporcio­
nadas pela desregulamentação financeira,
desenvolve-se a mundialização do dólar e a
A dinâmica espacial emergência e o desenvolvimento dos fundos
do capitalismo de pensão (de empresas, grupos, corpora­
na globalização ções e indivíduos), o que conduziu à dispo­
nibilidade de um enorme volume de dinheiro
contemporânea no mercado financeiro para fins de valoriza­
ção. É nesse sentido que a globalização eco­
A dinâmica espaço-temporal do modo de nômica em andamento torna-se essencial­
produção capitalista potencializou-se como mente de égide financeira (Chesnais, 1996),
um amplo desenvolvimento das forças pro­ não se tratando aqui apenas do lucro das
dutivas, a ponto de produzir uma assincronia empresas e do capital bancário, mas de um
entre o econômico e o político, com a pree­ capital financeiro que é abstrato, que não é
minência do primeiro,1 com maior destaque propriamente para geração de riqueza, mas
ao período subseqüente à Segunda Guerra para especulação. Surge daí uma forma de
Mundial, que será marcado por um amplo dinheiro que não é capital, mas tão-somente 41
desenvolvimento da ciência e da tecnologia, dinheiro, um dinheiro virtual originado de
bem como pela introdução de um novo pa­ um vultoso processo de poupança nos países
drão de acumulação e regulamentação social mais ricos. Sua evolução alcança maturidade
e política a partir dos anos 70.2 Esse dina­ a partir, sobretudo, dos anos 90, levando à
mismo representará um forte impulso à di­ revolução da telemática – fato que vai per­
fusão do “mundo da mercadoria”,3 trazendo mitir a fluidez do dinheiro (investimentos
em sua esteira um espetacular avanço dos financeiros) em tempo real – e à aceleração
processos de internacionalização de mer­ do desenvolvimento da ciência e da tecno­
cados e da produção. Trata-se, em síntese, logia – fatores essenciais à consolidação do
de uma dinâmica evolutiva do capitalismo capitalismo científico-técnico informacional.
que consolidou a globalização, entabulando Considerando que a inovação se dá no âm­
novas formas de organização transnacional bito da pesquisa tecnológica (biotecnologia,
da produção, que conduz à redefinição das software, química fina, engenharia de novos
relações entre as economias nacionais em­ materiais, etc.), sendo realizada pelos me­
basadas na centralidade do Estado-nação. lhores pesquisadores do mundo, situados
Vale lembrar, acerca disso, a importância al­ principalmente nos países ricos, essa inova­
cançada pelo mercado financeiro e a rapidez ção fica, em grande medida, circunscrita a
com que se dão os fluxos de “dinheiro vir­ um grupo seleto de empresas no mundo. À
tual”, conquanto não haja ainda instituições medida que operam na inovação tecnológica
capazes de regulá-los. Isso, seguramente,­ de ponta, elas se situam no ápice da mega-

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ulysses da cunha baggio

acumulação­ do capital no mundo. Isso se e interpretação do mundo. Ontologicamen­


traduz na conformação de uma hierarquiza­ te, o lugar se revela como o lócus da vida e,
ção explícita, com os países ricos no topo, desse modo, como o cenário de realização
fato revelador da brutal centralização do do cotidiano, pelo qual o mundial passou a
capital. Indubitavelmente, essa condição im­ se expressar. E, embora o mundial redefi­
põe grandes desafios e dificuldades aos paí­ na o lugar, isso não representa necessaria­
ses mais pobres, o que vem a revelar certa mente a supressão das suas particularida­
centralidade da variável tecnológica como, des (Carlos, 1996, p.15). Vale dizer que,
se não o principal, um dos principais fatores com maior ou menor intensidade, todos os
na construção de uma inserção na economia- lugares do planeta são atingidos, em graus
mundo em patamares mais favoráveis. variados, pelos vetores da dinâmica global,
Esse cenário, contudo, dificilmente le­ mas, ao menos por enquanto, não propria­
vará à supressão do Estado-nação, mas mais mente todos os segmentos sociais. Nesse
propriamente a ajustes no sentido de orien­ sentido, Milton Santos e Maria L. Silveira
tar suas operações no sentido de tratamen­ (2001, p. 257) oferecem-nos uma contri­
to de aspectos estruturais e de intercâmbio buição luminosa, quando nos dizem que:
com outros estados. Ademais,
Dentro do território, podemos admitir
[...] numa economia mundial de rápida a existência de áreas em que se pode
integração, o Estado-nação é ainda mais falar de uma globalização “absoluta” e
importante do que foi antes em seu de outras em que essa globalização é
42
papel legislador, negociador, árbitro e apenas “relativizada”. As primeiras são
construtor de novas instituições regula­ áreas de presença mais plena da glo­
tórias globais, tais como a Organização balização. Nelas há concentração, com
do Comércio. (Markusen, 2005, p. 69) pequena contrapartida, de vetores da
modernidade atual, o que leva à pos­
Lembremos que a arena da política in­
sibilidade de ação conjunta de atores
ternacional ainda é dominada pelos Estados
“globais” ou “globalizados”. Nessas
ratzelianos (estados territoriais nacionais,
áreas, a tendência é que a produção,
invenção genuinamente européia a se tor­
a circulação, a distribuição e a infor­
nar um instrumento importante no controle
mação sejam corporativas, isto é, que
das sociedades, aliás, em franco crescimen­ a respectiva demanda principal seja de
to após o fim da Segunda Guerra Mundial, tais empresas. Nessas áreas de presen­
especialmente na África e na Ásia), os quais ça mais plena da globalização, há uma
requerem capacidade estratégico-militar, espécie de rendilhado mais denso de
variável ainda importante nas relações de vetores ótimos da globalização, isto é,
poder de âmbito internacional. conduzidos por atores predispostos a
É preciso não se perder de vista que a uma lógica e a um movimento que dão
realização da globalização se dá, antes de primazia aos processos técnicos e polí­
tudo, nos lugares, a partir deles, daí a con­ ticos derivados. São, em última análise,
formação que o lugar assume como instân­ vetores do dinheiro puro, subservientes
cia geográfica privilegiada para a percepção aos seus desígnios: cadeias produtivas

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diferenciação espacial e análise regional sob a condição capitalista na contemporaneidade

modernas, produtos exportáveis, ativi­ te ultrapassam os limites da sobrevivência


dades especulativas etc. Nas áreas de forçada. Esse cenário expõe a conformação
menor presença da globalização, essas de uma nova dinâmica migratória no mundo
características desaparecem ou se redu­ deflagrada por causas essencialmente so­
zem segundo toda uma gama de exten­ ciais, mais especificamente engendradas pelo
são e intensidade. crescimento econômico cego sob a lógica de
uma economia de exploração. Suas contradi­
Portanto, não é propriamente o espaço ções inerentes e instabilidades se ampliam na
que se globaliza, mas sim o lugar. Ademais, esteira da crise da terceira revolução indus­
a expressão concreta do espaço é dada pe­ trial, que vem a fortalecer os negócios e os
lo conjunto dos lugares. O mundo, então, interesses hegemônicos em detrimento do
não estaria configurado como um espaço trabalho e do trabalhador. Sob essa lógica,
global, mas mais propriamente formado os trabalhadores estão cada vez mais sujei­
por lugares da globalização, suas instâncias tos a perdas e constrangimentos, progressi­
mediadoras. vamente metamorfoseados em verdadeiras
peças reificadas da engrenagem autodestru­
tiva do moderno sistema mundial produtor
de mercadorias. Acrescente-se ainda que es­
A lei do desenvolvimento
sa condição de migração forçada sinaliza pa­
desigual e suas ra a formação de um estado de descontrole
implicações espaciais da dinâmica social do capitalismo, pondo às 43
claras sua incapacidade de realizar um efeti­
Desde o início, a lógica espacial do capita­ vo desenvolvimento social. Engendram-se aí
lismo objetiva-se territorialmente de forma comunidades e lugares matizados por uma
seletiva e pluralística, conferindo diferen­ condição de reprodução social nas bases de
ciações entre os (e nos) lugares que parti­ uma economia de aparência, conduzindo a
cipam da globalização, entabulando bases uma espécie de falseamento socioexistencial
locais e regionais de valorização diferencial ampliado.
do capital, produzindo, desse modo, parti­ Pois bem, esse traço marcante da di­
cularidades espaciais quanto às suas formas nâmica espacial capitalista remete à “lei do
de produção e reprodução. Sob essa mesma desenvolvimento desigual e combinado”,
lógica, produzem-se igualmente verdadeiros proposto por Trotsky, que é uma das leis
territórios da desolação econômica e social, da dialética, isto é, a da interpenetração dos
conquanto também o sejam de degradação contrários. Vale dizer que a contradição que
ambiental, aí incluídas as situações críticas daí resulta é uma característica­ imanente
de “terra arrasada”. Desses territórios opa­ à realidade, contradição que opera como
cos precipitam-se levas de migrantes (so­ elemento motor de sua própria transfor­
bretudo de jovens do sexo masculino) que mação. Essa lei encerra uma dimensão es­
afluem aos lugares de maior atração quanto pacial que se consubstancia no processo de
a possibilidades de vida, numa busca não ra­ regionalização, ou seja, de diferenciação
ro desesperada de condições que dificilmen­ de áreas. Embora a diferenciação de áreas

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ulysses da cunha baggio

acompanhe­ a história das civilizações desde senvolvidas, porém articuladas entre si. Eis
os seus primórdios,­com o desenvolvimento o aspecto da combinação da lei do desenvol­
das forças produtivas e a dinâmica da socie­ vimento desigual e combinado, combinação
dade de classes sob o capitalismo, o que se que não se refere apenas à coexistência num
verá é que o processo de regionalização ad­ mesmo território de modos de vida diferen­
quire maior complexidade e diversidade, que tes, mas também à conectividade espacial
se expressa por um maior retalhamento do entre os territórios (Correa, 1986, p. 45).
espaço humanizado em inúmeras porções Assim, a lógica contraditória do desenvol­
regionais. Essas inúmeras porções com­ vimento do modo de produção capitalista
põem mosaicos socioespaciais cada vez mais projeta-se espacialmente pela construção/
integrados por redes, sugerindo que não há destruição de formações territoriais em di­
como se considerar a região como entidade ferentes partes do mundo, levando também
autônoma, principalmente nas condições da frações de uma mesma formação territorial
globalização atual. Portanto, é com o modo a conhecerem processos desiguais de valori­
de produção capitalista que o processo de zação, produção e reprodução do capital, po­
regionalização se torna mais contundente, dendo daí resultar a conformação de regiões
dimensionando-se pela simultaneidade dos (Oliveira, 1999, p. 75).
processos de diferenciação e integração na Em contrapartida ao plano da globali­
esteira da crescente mundialização da eco­ zação econômica desenvolve-se uma ampla
nomia a partir do século XV. O movimento e efetiva segmentação espacial da cadeia
44 de unificação que historicamente ela engen­ produtiva, deflagrando a especialização fun­
dra consubstancia-se, também, como um cional dos lugares, o que implica o desen­
“movimento de diversificação, que consagra volvimento das redes a fim de assegurar o
o princípio da unidade e diversidade na His­ funcionamento do sistema. Esse movimento
tória” (Santos, 1986, pp. 16-17). entabula um novo localismo “globalizado”,
qual seja:
Se o espaço se torna uno para atender
às necessidades de uma produção glo­ [...] um localismo sistematizado e ra­
balizada, as regiões aparecem como as cionalizado que visa absorver as merca­
distintas versões da mundialização. Esta dorias ao produzir e reproduzir consu­
não garante a homogeneidade, mas, ao midores. [...] É preciso agora acelerar
contrário, instiga diferenças, reforça- a rotatividade e não a implantação, e o
as e até mesmo depende delas. Quanto capital está, portanto, produzindo he­
mais os lugares se mundializam, mais terogeneidade, transformando lugares­
se tornam singulares e específicos, isto em mercadorias. (Ibid., p. 240)
é, únicos. (Ibid., pp. 46-47)
Vale dizer que a interdependência eco­
Assim, sob a lógica do capital, os meca­ nômica não se dá, verdadeiramente, de for­
nismos de diferenciação de áreas tornam-se ma homogênea, mas por etapas ou níveis di­
mais evidentes e perceptíveis, precipitando ferenciados, o que suscita uma abordagem de
a formação de regiões desigualmente de­ caráter multidimensional a fim de apreen­der

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diferenciação espacial e análise regional sob a condição capitalista na contemporaneidade

as diferenciadas formas de interdependência­ reestruturação da diferenciação regional,­


e suas expressões geoeconômicas.­ Veja-se, objetivada tanto pelas novas e velhas de­
por exemplo, o caso dos mercados regionais sigualdades como pela própria recriação
integrados, que da diferença nos espaços. Esse panorama
sugere a idéia de uma renovada geografia
[...] são na realidade a forma pela qual da diferenciação espacial que desvela o re­
a globalização avança e não uma nova crudescimento dos localismos, dos regiona­
divisão do mundo ou um fechamento lismos e das desigualdades socioespaciais.
dos continentes em “blocos” alternati­ O crescimento das disparidades territoriais
vos. (Vesentini, 2000, p. 37) sob a globalização demarca e particulariza a
lógica evolutiva contraditória do capital e de
Contudo, é necessário acautelar-se quanto a sua reprodução. Elas são, portanto, produto
interpretações que supervalorizam os blocos e condição da globalização.
em detrimento do Estado-nacional, que, ao De acordo com Oliveira, sob o capita­
menos por enquanto, se apresenta como o lismo, o território se expressa como “sín­
principal agente político na organização ter­ tese contraditória” ou ainda como totali­
ritorial do mundo. dade concreta que catalisa as instâncias do
Outro fator a reforçar o traço da dife­ processo de produção e suas articulações e
renciação espacial está no próprio mercado, mediações supraestruturais (políticas, ideo­
uma vez que ele demanda a diversidade co­ lógicas, simbólicas etc.), que são aspectos
mo variável à sua sustentação e promoção. importantes à sua apreensão (1999, p.74). 45
Sob a lógica do capital, a diferença opera Como já observado, a diferenciação opera
como uma condição necessária à sua repro­ como um componente fundamental à oxige­
dução, produzindo assim configurações ter­ nação da economia de mercado, conquanto
ritoriais diferenciadas. Embora o mercado ela requeira a diversificação e a inovação
seja portador de vetores de padroni­zação, permanentes para a sua existência e repro­
como é o consumo, isso não necessariamen­ dução. A competição (e a competitividade)
te corresponde a um processo de homoge­ implica diferenciação. A criação de novos
neização socioespacial. A crença nessa idéia nichos de mercado estimulados pela valori­
tem levado à equivocada interpretação quan­ zação de hábitos locais e regionais evidencia
to ao fim da região, isto é, de sua supressão essa condição. O próprio consumo encerra
pelos vetores do capital mundializado, quan­ grande dose de ambigüidade, dada tanto
do um olhar mais atento­ à condição espa­ por sua capacidade de corromper como pe­
cial do mundo atual nos oferece evidências lo fato de precipitar, no plano da existência,
diversas do processo inverso, como bem o o desvendamento da impossibilidade de sua
demonstram, por exemplo, os movimentos fruição completa pelas sociedades desiguais.
regionalistas,4 que se acentuam.­ A idéia de Isso ocorre uma vez que o sistema busca
uma suposta homogeneização se expressa­ ininterruptamente a produção de novos ob­
ria mais propriamente como um movimento jetos e o artificialismo de novas fontes de
de fragmentação e segmentação espacial, desejo, nesta que é, efetivamente, uma so­
dando-nos um cenário­ de recomposição e ciedade de consumo dirigido.

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ulysses da cunha baggio

Diante disso, pode-se afirmar que, sob portanto, de suas variadas expressões. Entre
o capitalismo e a lógica do capital, proces­sos­ os geógrafos, o conceito de região comporta
de formação de regiões em escalas variadas – uma pluralidade de significados e acepções
ainda que instáveis e mutantes – continuarão­ que derivam dessas matrizes de pensamen­
a ter o seu curso, de modo a impulsionar o to, trazendo certas dificuldades e variações
ressurgimento e a reconstrução de regiões de ordem conceitual e operacional. Essa
e áreas diferenciadas – envolvendo diversas polissemia em torno do conceito de região
formas de aglomeração –, dado que a espa­ confere à análise espacial um horizonte de
cialização diferencial lhe é inerente. possibilidades, daí a sua riqueza para a pes­
quisa e para a reflexão acadêmica. Lembran­
do que a reflexão sobre o conceito de região
passa, necessariamente, pela discussão das
Região e regionalização noções de espaço e de tempo, do método
e da escala; escala aqui compreendida como
A relação entre região e regionalização tem relação complexa de variáveis que embasam
sido fonte de debates acalorados, de polê­ os recortes territoriais.
micas e controvérsias, tanto na geo­grafia Essa reflexão implica o reconhecimento,
como em áreas afins. A começar pelo fato já bastante difundido, de que as novas con­
de que não há consenso quanto ao significa­ dições do mundo atual desnuda insuficiên­
do de região, categoria que expõe sentidos cias e limites de abordagem da região e da
46 variados, conquanto a região seja corren­ regionalização em matrizes tradicionais, ao
temente utilizada com variadas conotações. mesmo passo que revoga a idéia simplista e
Não raro, a região se reveste de forte cará­ equivocada de fim da região, concebida co­
ter ideológico, no sentido de produzir misti­ mo decorrência de uma suposta homogenei­
ficações geográficas, podendo operar como zação deflagrada pela globalização. Acerca
um instrumento de manipulação política. disso, nos diz Santos:
Malgrado a noção de região exista des­
de a Antiguidade, comparecendo em diver­ [...] na mesma vertente pós-moderna,
sos domínios do conhecimento humano para que fala de fim do território, e de não
além da Geografia e da própria ciência – co­ lugar, inclui-se, também, a negação da
mo bem atesta o seu uso no âmbito do sen­ idéia de região, quando, exatamente,
so comum como referência de localização e nenhum subespaço do Planeta pode es­
extensão –, evidencia-se, entretanto, que a capar ao processo conjunto de globaliza­
forma de abordagem e apreensão da região, ção e fragmentação, isto é, individuali­
bem como dos processos que lhe dão ori­ zação e regionalização. (1996, p. 196)
gem, estão condicionados pelas correntes ou
escolas de pensamento geográfico historica­ Portanto, ao contrário de uma supos­
mente constituídas. Assim, o que caracteriza ta homogeneização e suplantação do espaço
cada “escola” são seus fundamentos teóricos pelo tempo, idéia central do conceito de des­
e metodológicos, “escolas” que representam territorialização, o que se constata é o cres­
modos de apreender as realidades espaciais, cimento de expressões locais e regionais.­

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diferenciação espacial e análise regional sob a condição capitalista na contemporaneidade

A aceleração do ritmo dos acontecimentos, O ressurgimento dos localismos, regio­


proporcionada pelos espetaculares avan­ nalismos ou nacionalismos tem levado ao
ços científico-tecnológicos, à medida que aumento da diferenciação e da fragmenta­
acentua a diferenciação dos eventos ante ção espaciais (movimento de fragmentação),­
os imperativos­ do mercado e da competi­ paralelamente ao desenvolvimento de pro­
tividade crescentes, suscita o aumento da cessos de integração (movimento de coe­
diferenciação dos lugares e, portanto, da ex­ são), a exemplo dos blocos econômicos e do
tensão pelo mundo do fenômeno de região regionalismo econômico-comercial. Frag­
e de regionalização. À medida que o padrão mentação e coesão são, portanto, as faces
de acumulação flexível atual se objetiva por contraditórias e mutuamente complementa­
movimentos de desconcentração da cadeia res da dinâmica territorial contemporânea,
produtiva e de segmentação geográfica dos o que responde pela formação de uma reali­
processos produtivos pelo mundo, propaga- dade multidimensional e multiescalar.
se a fragmentação do espaço, redefinin­ A compreensão atual da regionalização
do, portanto, as conformações regionais requer o seu dimensionamento como um
e a regionalização. A irradiação geográfica processo dinâmico e flexível, haja vista o fa­
dos processos de produção, cada vez mais to de ela ter se tornado bastante vulnerável
segmentados, tende a entabular especiali­ aos vetores de reestruturação espacial con­
zações regionais de variados níveis, reavi­ temporânea (Soja, 1993). A regionalização
vando, dessa forma, o interesse pelo estudo abarcaria, assim, diversas territorialidades e
do específico, do particular e do diferente articulações variadas, bem como a interação 47
em diversos campos do conhecimento. Va­ de múltiplas expressões sociais e econômi­
le dizer que a particularidade, assim como cas. Ela também comporta uma dimensão
a singularidade adquirem maior projeção política e pragmática, no sentido de sua ins­
sob os imperativos de um mesmo proces­ trumentalização pelo planejamento estatal,
so contraditório. Tal processo se objetiva, tendo em vista a consecução de políticas go­
simultaneamente, por vetores de homoge­ vernamentais tais como aquelas voltadas à
neização e de fragmentação, não havendo redução das desigualdades regionais. O que
oposição entre eles, mas sim uma relação de nos leva a encará-la não apenas como méto­
complementaridade, uma vez que a globa­ do ou instrumento analítico (e, neste caso,
lização avança produzindo fragmentação e também político, pois instituído pelo sujei­
desigualdade, evoluindo, portanto, com a to), mas também como processo efetivo no
regionalização. A renovação dos interesses âmbito da própria ação dos sujeitos. Desse
pelo particular vem acompanhada de uma modo, ela se traduz como uma ação nego­
revalorização da corologia e do estudo das ciada entre os sujeitos para a consecução
situações geográficas,5 pondo o acento nos de recortes regionais, o que se dá tanto no
processos de apropriação social do espaço6 plano da esfera objetiva da vivência quanto
e na formação correlacionada de territoria­ da dimensão abstrata do pesquisador e do
lidades.7 Os lugares tornam-se, assim, entes planejador.
a revelar o mundo e as suas contradições, à Levando-se em conta os diversos inte­
sua maneira. resses e especificidades culturais dos agentes

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envolvidos, as regionalizações promovem o Hoje,­ a região, o regional, a regiona­


redesenho permanente dos espaços de atua­ lização têm de ser assim entendidos.
ção desses atores. Mais especificamente, a (1988, p. 47)
regionalização empreendida pelo planejador
denota claramente um sentido funcionalista Haesbaert, por sua vez, nos alerta para
de abordagem do espaço e da região, o que o fato de que
não raro despreza o vivido e certas quali­
dades do existencial. Aqui, o lugar é toma­ [...] a região não deve ser definida no
do como algo exterior ao sujeito, arrostado sentido genérico de divisão ou recorte
como um construto manipulável para fins espacial, sem importar a escala, como
específicos, tratando-se mais propriamente indicam os processos de regionalização;
da demarcação de um espaço de controle e [...] ela deve ser vista como produ­
dominação pelo Estado por meio do uso do to de um processo social determinado
planejamento, a partir do qual esse espaço que, expresso de modo complexo no/
de dominação é submetido à sua lógica. O do espaço, define-se também pela es­
Estado, no entanto, ora se coloca em con­ cala geo­gráfica em que ocorre, poden­
tradição e conflito com o espaço dos inte­ do ser, assim, um tipo de território.
resses específicos da reprodução do capital, (2002, pp. 135-136)

ora se alia a ele, estabelecendo dessa forma


uma relação ambígua que faz acentuar a Esse movimento dinâmico e geografi­
formação de diferenças territoriais em di­ camente expandido engendra, igualmente,
48
ferentes escalas (local, regional, etc.). Nesse transformações constantes nas regiões.
sentido, a escala de análise regional adquire As regiões tornam-se tanto desorganiza­
grande relevância como instância particular das quanto deslocadas, conformando-
entre o local e o global. Acerca disso, Santos se cada vez mais como espaços ou áreas
assinala que descontínuas­ de difícil demarcação (Trift,
1996, p. 239).

A região torna-se uma importante ca­


tegoria de análise, importante para que
se possa captar a maneira como uma
Considerações finais
mesma forma de produzir se realiza em
partes específicas do planeta ou dentro
de um país, associando a nova dinâmica
É preciso reforçar a idéia de se buscar per­
às condições preexistentes. manentemente a aferição crítica das rela­
Não basta compreender teoricamente o ções socioespaciais, almejando a apreensão
que se passa no mundo, temos que ter de sua natureza e do seu sentido na existên­
nossa atenção também voltada para as cia humana. Há que se levar em conta, no
diferentes geografizações das variáveis processo de análise, as condições ampliadas
inerentes à nova maneira de produzir. de degradação da vida social e da economia
Não podemos desprezar esta impor­ sob os imperativos de uma mercantilização
tante via de compreensão da realidade. expandida e de sua acolitada financeirização,

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diferenciação espacial e análise regional sob a condição capitalista na contemporaneidade

que instauram o absolutismo do dinheiro “o mercado”. Ao fazê-lo, esvaziam de


e desencadeiam uma dinâmica perversa de sentido a política. Aqui, mostram sua
empobrecimento, conduzindo a vida a um ignorância ou sua insensibilidade diante
estado progressivo de sobrevivência mercan­ dos atuais processos de fragmentação e
tilizada. O avanço maciço do capital financei­ dissolução de sociedades, instituições e
ro, dado quase que de forma instantânea, sistemas de valores e normas, que são,
representa seguramente uma condição de para a vida da maioria, o verdadeiro
incerteza e de perturbação no âmbito do sis­ CAOS. (Coraggio,­2005, p.106)
tema mundial capitalista, reverberando em
todas as suas instâncias. Ao olhar de uma geografia crítica re­
novada, profícua e socialmente conseqüen­
Isso porque, longe de ficar fixa em es­ te, compreender os impactos desse proces­
truturas produtivas de relativa perma­ so nos modos de vida, logo, de suas trans­
nência, uma exagerada proporção do formações e suas correspondentes expres­
capital – seja das grandes fortunas, seja sões territoriais, apresenta-se hoje como
dos fundos de pensão – encontra mais um esforço necessário ao desvendamento
rendimento na especulação e manipula­ de práticas e relações crescentemente ins­
ção dos mercados e nas expectativas de trumentalizadas e fetichizadas pelo capital
ganho em contínua movimentação entre e sua enorme capilaridade na sociedade e
moedas, títulos e ações. no território. Nesse sentido, urge avançar
[...] Sem dúvida, ainda que o observa­ a análise e as ações práticas8 no mundo sen­ 49
dor e analista científico possam explicar sível para além da lógica estatista, perspec­
retrospectivamente e até predizer seu tiva que vem ganhando corpo na geografia
movimento tendencial, a economia con­ atual e em outros segmentos do saber,
tinua sendo determinada “pelas costas”
movimento que, seguramente, representa
da grande maioria dos atores socioe­
um ganho político e social auspicioso, que
conômicos e dos mesmos Estados. Nas
reforça a crítica necessária ao Estado e à
condições resultantes do desapareci­
economia (com a qual, sabidamente, ele
mento do bloco soviético e da acomoda­
mantém estreitas relações), iluminando as
ção da social-democracia ante o embate
suas contradições, seu sentido e o universo
conservador, a economia capitalista se
de relação de forças sociais que os perpassa
liberta da reprodução da sociedade e,
e lhes dão substância. Não se quer com isso
por muito tempo, se transforma, como
sugerir que o Estado seja politicamente ne­
na teoria, numa esfera auto-explicativa.
E, ao fazê-lo, desencadeia sua capaci­ gligenciado, o que representaria um enor­
dade destrutiva da vida. [...] Os gurus me reducionismo da questão, uma vez que
da economia e suas variações financei­ ele representa o âmbito do conjunto social
ras de curto prazo, administradores onde se entrelaçam e se consubstanciam
de uma realidade percebida com olhos relações políticas e econômicas cujos resul­
míopes ou interessados, em meio à in­ tados reverberam sobre a sociedade e os
certeza, nos ameaçam com a certeza respectivos territórios que ela circunscreve.
do caos, se tentamos voltar a dominar Nesse sentido, pode-se considerar que seja

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igualmente relevante e socialmente dese­ e, dessa forma, ilumine a interação social


jável empenhar esforços para uma efetiva de modo a imprimir mais vida aos lugares,
democratização do Estado, o que pressu­ e não a sua negação, isto é, a mortificação
põe níveis mais avançados de mobilização do espaço. Nesse sentido, há que se forjar
e organização política da sociedade, com a pelos poros da vida cotidiana a construção
crescente incorporação da sociedade, na sua progressiva de situações capazes de resti­
diversidade, nas políticas de desenvolvimen­ tuírem o desejo lúcido pela vida, revogando
to urbano, como o demonstram, por exem­ a lógica de definhamento da mercadoria e
plo, as políticas de orçamento participativo seus mecanismos de reificação das pessoas
a serem aperfeiçoadas. Mas as mudanças em objetos mercantis. A brutal mercantiliza­
requerem, no seu conjunto, a atuação de ção do espaço, sob o patrocínio explícito do
uma pluralidade de agentes, para além do Estado, circunscreve os termos da mortifica­
Estado e da lógica estatista. ção aludida, que impõe uma condição crítica
Sob as condições marcadamente cons­ à reprodução social, com a degradação do
trangedoras da reprodução social sob o trabalho e do trabalhador, tornado “coisa”
capitalismo atual, o desenvolvimento de descartável pelo sistema produtor de mer­
práticas independentes do aparelho estatal cadorias. Essa condição-limite tem precipi­
assume grande importância quanto à cons­ tado insurgências e resistências de variados
tituição de alternativas e percursos social­ matizes, parte delas ainda insuficientemente
mente mais desejáveis. Trata-se de ações de conhecidas e compreendidas, quando não
50 caráter mais propriamente autogestionário, negligenciadas. São forças emergentes que
portadoras do sentido da democracia dire­ se dão paralelamente à profusão de ações
ta,9 sintonizadas com o desejo, tanto quanto diversas portadoras do sentido da barbá­
ele seja possível, de mudanças libertadoras rie, revelando-se como vertentes díspares
de fundo. Ainda que se admita que as con­ de um mesmo processo histórico, sob uma
dições socioespaciais da contemporaneidade mesma lógica. Isso pressupõe uma tomada
encerrem dificuldades e mesmo certos limi­ de consciência quanto às causas reais des­
tes à sua realização (urbanização expandida ta condição de degradação e aviltamento do
e conformação preeminente do território humano, isto é, o fato de que elas são pro­
sob os imperativos do capital financeiro- duzidas nas contradições e nos limites (cada
rentista), ainda assim elas colocam no ho­ vez mais evidentes) do sistema produtor de
rizonte a possibilidade efetiva de um maior mercadorias, em franca e perversa expansão
envolvimento e participação renovada das na contemporaneidade.
pessoas naquilo que afeta mais diretamente Em parte considerável, os movimentos
as suas vidas, constituindo no seu conjunto autonomistas10 são portadores desse senti­
formas de atuação e operacionalização mais do, questionando as ações do Estado e a ló­
críticas e refratárias a dirigismos e coopta­ gica que as fundamenta, ações essas que se
ções do Estado. voltam à criação de espaços de dominação e
Vislumbra-se, assim, a possibilidade de controle para e pelo capital, no que impor­
um projeto social de caráter mais autôno­ ta, sobretudo, às suas frações hegemônicas.
mo, que compreenda o sentido da diferença O desenvolvimento e a difusão de práticas

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diferenciação espacial e análise regional sob a condição capitalista na contemporaneidade

autonomistas delineiam não apenas novos o campo relacional fundamental de forma­


arranjos político-territoriais, como também ção da dinâmica constitutiva de desigualda­
conferem à escala do lugar a condição de des e diferenças. Ele é, concomitantemente,
lócus ­ privilegiado de uma geopolítica não portador dos vetores do novo e do velho,
institucional estatal. o novo muitas vezes se inscrevendo sobre
A dinâmica espacial desigual e contra­ as heranças territoriais do passado, poden­
ditória do capitalismo global reafirma, as­ do até suprimi-las, mas também se hibri­
sim, as diferenças pela ação diversificada dizar com elas ou mesmo ser refutado por
de movimentos sociais de variados mati­ elas. Seria um exercício de pura presunção e
zes, dentre os quais se podem sublinhar os miopia postular que a força do novo produz
de caráter identitário, portadores de uma uma espécie de tábula rasa no conjunto dos
pluralidade de identidades. À medida que a territórios, desprezando-se, assim, as for­
globalização avança – fragilizando as iden­ mas do passado remanescentes e os fatores
tidades culturais locais, não raro tornando- de inércia.
as difusas –, faz precipitar, como já obser­ As formas localizadas de ação política
vado, uma diversidade de práticas e ações coletiva, dadas as novas possibilidades rela­
reativas pelo mundo, ou ainda, de variadas cionais engendradas pela própria globaliza­
formas de insurgências voltadas, em grande ção, se fortalecem agora, até certo ponto,
medida, à inserção socioespacial de coletivi­ desafiando e redimensionando o poder do
dades em patamares dignos, assim como ao Estado. Um olhar mais atento pelos inters­
reconhecimento e à aceitação da alterida­ tícios das grandes cidades nos revela uma 51
de, da diferença e, até mesmo, do direito gama de manifestações de resistência e de
à indiferença. No entanto, nem toda dife­ permanência, como são os casos de certos
rença é socialmente aceitável ou desejável, bairros e vilas que, até certo ponto, têm
podendo mesmo representar sérias amea­ conseguido relativamente se resguardar e
ças e constrangimentos ao convívio social, resistir às forças de fragmentação e rees­
como bem o demonstra, por exemplo, os truturação da urbanização/metropolização.
movimentos de inspiração neonazista e Nesses lugares, ainda perduram sinergias
suas práticas discriminatórias e truculen­ significativas entre moradores e destes para
tas. Nada que deponha contra o humano é com o lugar de vivência, aspectos sujeitos
aceitável, salvo na órbita estreita e viciada à dissolução se não forem suficientemente
desses movimentos e na mente doentia de valorizados e politicamente resguardados
seus adeptos e seguidores. pelos interessados. Isso sugere a confor­
As ações de resistência e de insurgência mação de territórios diferenciais e diferen­
vêm desencadeando, nos mais variados ter­ ciados, cuja unidade expõe a convergência
ritórios, diferenciadas expressões socioespa­ da extensão geográfica empírica, seus ha­
ciais, como guetos, movimentos de preser­ bitantes e costumes, dotados de territoria­
vação de bairros, entre outros, que denotam lidades insinuantes. Pode-se dizer que, até
a crescente articulação entre o global e o certo ponto, eles expõem uma cartografia
local. Vale lembrar que esse binômio global- comunitária relativamente bem demarcada,
local se traduz na contemporaneidade como própria.

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ulysses da cunha baggio

É oportuno esclarecer que o sentido­ subjetividades obscuras que engendram –


de território aqui empregado se coloca pa­ quase como um automatismo – a figura do
ra além da acepção que o qualifica como inimigo, o que seguramente representa um
um construto essencialmente material e ingrediente de perturbação às relações so­
econômico,­mas que o compreende também ciais, ao convívio e à solidariedade em nos­
como um valor simbólico, o que implica a sos tempos. Porém, compreendemos que,
valorização de práticas históricas empreen­ para uma leitura crítica da dinâmica social,
didas pelos sujeitos sociais e de suas rela­ sob aquela mesma lógica, haveria que se
ções com o espaço vivido. Bem entendido, levar em conta o necessário discernimento
isso não representa qualquer forma de cisão entre as situações em que a mercadoria é
entre o econômico e o político, uma vez que mediação relacional e aquela em que ela é
a valorização do espaço não é dada apenas só um recurso ou ainda um instrumento
pelo modo econômico stricto sensu, mas es­ na realização da relação social. Lembremos
sencialmente pelo político. É mais propria­ que, sob o capitalismo acelerado dos tem­
mente o modo político de valorização que pos atuais, essa mediação pela mercado­
circunscreve o universo relacional privile­ ria recrudesceu, generalizando-se mundo
giado no qual se produzem formas de apro­ afora, sobretudo por meio da publicidade
priação voltadas ao uso do espaço, aí incluí­ ostensiva, do consumo dirigido, que criam
das as ainda possíveis relações topofílicas e valores e estabelecem uma cultura, portan­
de pertencimento ao lugar. to, um modo de vida por ela demarcada. E
52 Tendo em vista uma melhor aferição com a ampliação da crise e a simultaneidade
das potencialidades e do alcance dessas espaço-temporal de sua ocorrência, coloca-
ações coletivas, é necessário que elas se­ se no horizonte de nossas preocupações o
jam avaliadas de forma sistêmica quanto às exercício de se pensar e forjar (por atos
suas­ possibilidades (e limites) de transfor­ práticos) as bases de uma nova forma de
mação e de melhoria das condições de vida, socialização e humanização, para além da
no que importa tanto às condições objeti­ forma social preeminente do valor. Indu­
vas como subjetivas da existência. Nunca, bitavelmente, trata-se de uma seara difícil,
como agora, as relações sociais estiveram desafiadora e, por isso mesmo, estimulan­
tão submetidas e condicionadas à lógica do te, caminho para o qual a humanidade, de
capital e do mercado, que ao instaurar o modo geral, parece estar ainda desprepara­
reino da concorrência e da competitivida­ da, mas que, no entanto, tudo leva a crer
de, instaura, igualmente, o ódio, o conflito, que este se lhe apresenta como única alter­
a discriminação, induzindo à formação de nativa a extrair luz da escuridão.

Ulysses da Cunha Baggio


Doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo; professor do curso de Geo­
grafia do Departamento de Artes e Humanidades da Universidade Federal de Viçosa (Minas
Gerais, Brasil).
ulybaggio@ufv.br

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diferenciação espacial e análise regional sob a condição capitalista na contemporaneidade

Notas
* Esta produção se vincula ao projeto autônomo de pesquisa Território e sociedade no ho-
rizonte de uma geografia libertária: percursos de uma epistemologia do desejo, que ora
desenvolvo junto ao Departamento de Artes e Humanidades da Universidade Federal de
Viçosa.

(1) O filósofo Henri Lefebvre é categórico ao assinalar que “no capitalismo, a base econômica
comanda. O econômico domina. As estruturas e superestruturas organizam as relações de
produção (o que em nada exclui os atrasos, os distanciamentos e as disparidades). Os pró-
prios conflitos se devem às relações de produção. Apesar de haver nessa sociedade uma
coerência (sem a qual ela cairia em pedaços, ou melhor, sem a qual ela não poderia ter-
se formado), apesar da coesão interna, sem chegar a suprimir as contradições, conseguir
atenuá-las, protelar os efeitos, há ‘modo de produção’ e mesmo ‘sistema’. A riqueza das
sociedades ‘nas quais reina o modo de produção capitalista’ se anuncia como uma imensa
acumulação de mercadorias” (1999, p. 112, grifo nosso; os trechos e as expressões entre
aspas simples são citações de Marx, extraídos por Lefebvre d’O capital). Anthony Giddens,
por sua vez, relaciona a proeminência do econômico mais especificamente ao processo
de inovação tecnológica. Argumenta acerca disso que, em virtude de o empreendimento
capitalista apresentar uma “natureza fortemente competitiva e expansionista, [...] a inova-
ção tecnológica tende a ser constante e difusa” e que, dessa forma, “dadas as altas taxas de
inovação na esfera econômica, os relacionamentos econômicos têm considerável influên-
cia sobre outras instituições” (1991, p. 62, grifo nosso).

(2) Sobre essa questão em específico, Harvey (1992) refere-se ao esgotamento do fordismo-
53
keynesianismo e ao advento de um novo paradigma do capitalismo, que ele desig-
na de “acumu­l ação flexível”, movimento que compreende como uma “transição” de
paradigmas.­

(3) De acordo com Lefebvre (1999, pp. 135-136, grifo do autor), “esse ‘mundo da mercadoria’
tem sua lógica, sua linguagem, que o discurso teórico encontra e ‘compreende’ (dissipan-
do conseqüentemente suas ilusões). Tendo sua coerência interna, esse mundo quer espon-
taneamente (automaticamente) se desenvolver sem limites; e pode fazê-lo. Ele se estende
ao mundo inteiro; é o mercado mundial. Tudo se vende e se compra, se avalia em dinhei-
ro. Todas as funções e estruturas por ele engendradas entram nesse mundo e sustentam-no.
No entanto, esse mundo não chega a se fechar. Sua coerência tem limites; suas pretensões
decepcionarão aqueles que apostam na troca e no valor de troca como absoluto. Com
efeito, uma mercadoria escapa ao mundo da mercadoria: o trabalho, ou antes, o tempo
de trabalho do trabalhador (proletário). Ele vende seu tempo de trabalho e continua, em
princípio, livre; mesmo se crê ter vendido seu trabalho e sua pessoa, ele dispõe de direitos,
de capacidades, de poderes que minam a dominação absoluta do mundo da mercadoria
sobre o mundo inteiro. Por essa brecha podem entrar os ‘valores’ repelidos, o valor de uso,
as relações de livre associação etc. Não é uma brecha ocasional; é mais e melhor; a con-
tradição se instala no coração da coesão do capitalismo”.

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ulysses da cunha baggio

(4) Segundo Sandra Lencioni, os movimentos regionalistas “[...] emergem como força política
no momento em que o processo de globalização procura açambarcar e homogeneizar
todo o espaço. O movimento regionalista nega o nacional, podendo se fechar em sua par-
ticularidade, e se coloca com um sentido totalmente inverso de outrora, quando afirmar
a identidade regional era afirmar a identidade nacional, pois a construção do sentido de
pertencer a uma região integrada num todo harmônico, sob a direção do Estado, afirmava
o sentimento nacionalista. Sinais de outros tempos: o regionalismo nega o nacional e a
identidade nacional num contexto em que o nacional, que se dilui no bojo do processo de
globalização, nega o regional” (1999, pp. 199-200).

(5) Por situação, Pierre George compreende como “[...] uma soma de dados adquiridos, de re-
lações organizadas em ordem sucessiva. Algumas dessas relações continuam a ser funcio-
nais, integradas na evolução atual, enquanto que outras pertencem a uma herança que se
degrada progressivamente e deixam, ao contrário, de ser funcionais”. Esclarece, ainda, que
“[...] a situação se define necessariamente em primeiro lugar por limites espaciais, mesmo
quando a influência do espaço local ou regional se combina com efeitos de uma plura-
lidade espacial. Mas a evolução da situação pode comportar deslocamentos dos limites
regionais ou locais, expansão ou retração do referido espaço. As heranças de situações an-
teriores não correspondem necessariamente aos mesmos dados espaciais da situação atual
e, desembocando em outra situação a curto prazo, pode-se ser conduzido a reconsiderar a
posição espacial” (1968, p. 22).

(6) A idéia de apropriação está referenciada aos diversos modos pelos quais o espaço é ocupa-
do, tanto por formas materiais (objetos) como por atividades inscritas territorialmente (que
configuram os usos da terra), e ainda por indivíduos e segmentos sociais variados. Quando
54 a apropriação do espaço se realiza de forma “sistematizada e institucionalizada” ela “po-
de envolver a produção de formas territorialmente determinadas de solidariedade social
(Harvey,­1992, p. 202).

(7) Compreendendo a territorialidade uma categoria relacional espaço-sociedade, mais especi-


ficamente ela “[...] corresponde ao conjunto das relações que permitem aos diversos gru-
pos fazer valer seus interesses no espaço, tornado lugar de vida”. (Bailly e Beguin, 1998,
p. 16). Nesse sentido, ela se traduz e se inscreve como um fenômeno existencial, uma
experiência possível manifesta no tempo e no espaço. É por meio da territorialidade que
um dado grupo social ou indivíduo adquire consciência do seu espaço de vida. Assim,
“[...] a territorialidade adquire um valor bem particular, pois reflete a multidimensionalida-
de do ‘vivido’ territorial pelos membros de uma coletividade, pelas sociedades em geral”
(Raffestin,­1993, p. 158).

(8) Pensa-se aqui principalmente em ações de caráter coletivo e que envolvam na sua origem e
trajetória uma reflexão pública.

(9) Por democracia direta compreende-se uma situação (ou regime político) em que as de-
mandas e os problemas sociais não apresentam como mediação única o Estado e seus
representantes, mas, para além deles, outros agentes da sociedade civil, a exemplo de
movimentos sociais diversos que atuam numa perspectiva mais independente e de caráter
autogestionário, de modo que os indivíduos atuem mais diretamente nos processos decisó-
rios, o que modernamente implicaria o emprego do recurso da delegação e da descentra-
lização político-territorial.

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diferenciação espacial e análise regional sob a condição capitalista na contemporaneidade

(10) Obviamente, não estamos considerando como parte integrante desses movimentos ONGs
que atuam pautadas pela lógica do mercado, muitas delas, aliás, representando interesses
de empresas transnacionais.

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Recebido em maio/2008
Aprovado em ago/2008

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Territórios e escalas de cooperação
e gestão consorciada: o caso francês
e seus aportes à experiência brasileira
Suely Maria Ribeiro Leal

Abstract
Resumo Changes in the political and territorial
As mudanças na reconfiguração política e ter- reconfiguration of the cities, associated
ritorial das cidades, associadas à crise fiscal with the fiscal crisis of the State, have had
do Estado, tiveram impactos negativos sobre negative impacts on the Brazilian Federative
a organização Federativa brasileira. No início organization. At the beginning of the present
da presente década, a questão da reforma do decade, the matter of State reform opens a
Estado abre um amplo debate político cen- wide political debate focusing on the expansion
trado no aprofundamento do projeto de des- of the decentralization project and on the
centralização e na necessidade de cooperação need of cooperation among local states and
entre os entes locais, estaduais e nacionais. the national sphere. This process results
Esse processo resulta na institucionalização in the institutionalization by the Federal
pelo Governo Federal da Lei de Consórcios Government of the Law of Public Consortiums
Públicos (Lei n. 11.107/05). 1 Este artigo re- (Law n. 11.107/05).1 This article aims at a
flete sobre modelos e escalas territoriais de reflection on territorial scales and models of
gestão e governança consorciada, a partir dos shared management and governance, based
aportes da experiência de Coopération Inter- on the contribution of the French experience
communale, (Cooperação Intermunicipal) na of Coopération Intercommunale (intercity
França.2 Discute os avanços e limites do mo- cooperation).2 It also discusses the progress
delo francês avaliando sua contribuição para o and limitations of the French model, evaluating
futuro da cooperação territorial consorciada its contribution to the future of shared
no Brasil. territorial cooperation in Brazil.
Palavras-chave: consórcios; gestão; terri- Keywords: consortiums; management;
tório; intercomunal; comunidades de aglome- territories; intercommunal; communities
ração; comunidades urbanas; comunidades de of agglomeration; urban communities;
comunas. communities of communes.

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suely maria ribeiro leal

Introdução uma mutação. De uma concepção geográfi-


ca abstrata, o território tornou-se um lugar
da ação viva das políticas públicas. A lógica
As experiências de cooperação entre municí- ascendente de levar em conta as questões
pios ainda se constituem, no caso brasileiro, locais substituiu uma política de organização
em práticas bastante embrionárias e pou- do território centralizada. O aparecimento
co difundidas no espaço nacional. As mais da noção de território pertinente modifi-
conhecidas são os Consórcios na área de cou a distribuição dos contratos econômicos
Saúde, na Gestão Metropolitana de Bacias e sociais. O desenvolvimento das políticas
Hidrográficas, ou Convênios estabelecidos contratuais e da Intercommunalité (Inter-
no gerenciamento de projetos de natureza municipalidade) contribuem para uma nova
institucional. Essas formas de cooperação forma de relacionamento entre as esferas
municipal, só recentemente foram regu- governamentais, não governamentais e com
lamentadas por mecanismos normativos, os setores privados. Na atualidade, o espa-
através da Lei dos Consórcios Municipais, ço territorial francês encontra uma grande
Lei 11.107, de 6 de abril de 2005. 3 Em- multiplicidade de mecanismos de Coopera-
bora possam ser identificadas algumas ex- ção Intermunicipal criados pelo poder públi-
periências consorciadas no caso brasileiro, a co e orientados segundo princípios políticos,
exemplo dos consórcios no setor da saúde, econômicos, sociais, legais e fiscais.
essas práticas ainda são pouco difundidas no
58 cotidiano da administração pública.
Na França, a Cooperação Intermunici-
pal conhece um crescimento depois da Lei de
Percursos da cooperação
12 de julho de 1999,4 relativa ao reforça- consorciada no Brasil
mento e a simplificação das formas coope-
ração entre communes5 (municípios). A ma- No Brasil, a Cooperação Intermunicipal vem
lha territorial francesa passa a se organizar se afirmando como um importante instru-
para implantar Établissements Publics de mento para o fortalecimento dos municípios
Coopération Intercommunale – EPCI à Fis- e se impõe, a cada dia, em termos de coe­
calité Propre (Estabelecimentos Públicos de rência do desenvolvimento do território e
Cooperação Intermunicipal com Tributação de eficácia na gestão pública e melhoria da
Própria - EPCI).6 solidariedade financeira e, ainda, como meio
No caso francês, a Cooperação Inter- para o fortalecimento da democracia e do
municipal vem se constituindo em prática desenvolvimento das estruturas locais.
corriqueira na vida política local para fazer A adoção de estruturas de consorcia-
face às dificuldades de gestão e governan- mento tem correspondido aos momentos de
ça de grande número de municípios. Essas maior autonomia e descentralização federa-
formas de cooperação foram intensificadas tiva, caracterizando-se como instrumento
a partir de 1982, com o projeto de reforma de cooperação, coordenação e pactuação fe-
do Estado no sentido da descentralização. derativa entre as esferas da União, estados
Os efeitos da descentralização marcaram e municípios.

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territórios e escalas de cooperação e gestão consorciada

No período que se inaugura com a destinados­ à gestão associada de serviços


democratização do país, a partir da Cons- públicos a serem utilizados pelos três entes
tituição de 1988, o debate sobre a gestão federativos. Determinava, ainda, que a ma-
consorciada passou a assumir papel central téria deveria ser objeto de disciplinamento
nas questões relativas aos processos de go- por meio de lei específica (Vital, 2005).
vernança municipal. No entanto, a ausência Em 2002, a eleição do Presidente Luis
de regulação jurídica no disciplinamento de Inácio Lula da Silva veio criar condições po-
acordos cooperativos de consórcios públi- líticas favoráveis ao projeto dos consórcios
cos e ou convênios de cooperação sempre públicos. A criação do Ministério das Cidades
se constituiu em entrave à implementação e (2003) e a realização da 1ª Conferência Na-
funcionamento de estruturas consorciadas. cional das Cidades constituem-se em passo
A falta de regulação jurídica vem associada, inicial à construção da Política Nacional de
além disso, à competição federativa induzi- Desenvolvimento Urbano – PNDU. Dentre as
da pela crise financeira do Estado brasilei- proposições para fazer face à crise urbana
ro, que tem incitado à guerra fiscal entre os brasileira, foi evidenciada a necessidade do
municípios e dificultado o atendimento das envolvimento e da estreita articulação entre
demandas das políticas públicas locais. os três níveis de governo, da sociedade civil
Ações mais consolidadas no sentido da e do setor privado na adoção de uma políti-
promoção de articulação consorciada entre ca nacional orientadora e coordenadora de
municípios podem ser identificadas a partir planos, projetos e atividades (ibid.).
da década de 2000 no segmento da Saúde, A consecução dessa política vem reque- 59
tendo como mecanismo indutor a adesão rer, portanto, a adoção de um novo pacto
dos municípios ao Sistema Único de Saúde federativo de caráter cooperativo, no qual
(SUS).7 A natureza integradora do SUS nas se possa estabelecer um equilíbrio entre a
soluções na área da Saúde Pública favoreceu autonomia e a interdependência, entre o lo-
a criação de consórcios na área da saúde, cal e o nacional, entre a unidade e a diver-
que em 2000 envolviam 1.969 municípios, sidade, de modo que passem a ganhar rele-
em comparação com 64 na habitação e 85 vância os aspectos relativos à coordenação
na limpeza urbana e 161 na área dos ser- e cooperação­ intergovernamentais (Brasil,
viços de esgotamento sanitário (Ribeiro, 2004a, pp. 7-13).
2005a, p. 11). O processo para efetivação da Lei dos
Em que pese o seu crescimento em Consórcios Públicos (Lei n. 11.107) passou
algumas áreas das políticas urbanas, os por diversas etapas, iniciando-se pela regu-
consórcios continuaram submetidos à pre- lamentação do art. 241 da Constituição Fe-
cariedade legal e sem direito à personalida- deral e a criação de um Grupo de Trabalho
de jurídica, tendo limitada a sua utilização. Interministerial – GTI,8 que esboçou uma
Em 1998, no bojo da aprovação da Emen- proposta a partir da ausculta a diferentes
da Constitucional n. 19, a Constituição, no especialistas. O esboço inicial foi também
seu artigo 241, voltou a recepcionar ex- submetido aos governadores dos estados,
plicitamente o instituto dos consórcios pú- aos prefeitos das capitais, à Frente Nacional
blicos, conceituando-o como mecanismos dos Prefeitos, à Confederação Nacional dos

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suely maria ribeiro leal

Prefeitos e a gestores de consórcios em fun- e subvenções sociais ou econômicas de ou-


cionamento (Vital, 2005). tras entidades e órgãos do governo; pode,
O texto apresentava como sugestões a ainda, nos termos do contrato constitutivo,
criação de dispositivos que ampliassem a co- promover desapropriações e instituir servi-
operação federativa entre todos os seus en- dões nos termos da declaração de utilidade,
tes; que aumentassem a capacidade instru- necessidade pública ou interesse social rea­
mental do governo federal para coordenar a lizada pelo Poder Público, podendo ainda
implementação de políticas públicas em con- ser contratado pela administração direta ou
junto com os estados, o Distrito Federal e indireta dispensada a licitação (ibid.).9
os municípios; e que fornecessem segurança O consórcio público como está previsto
jurídica ao uso dos instrumentos de consor- é o mecanismo que faltava para a execução
ciamento. Também foram incorporadas ao das funções públicas de interesse comum
texto, entre outros aspectos, as questões das regiões metropolitanas e aglomerações
relativas ao reforço à função do planejamen- urbanas instituídas pelos estados, dando aos
to no setor público, especialmente quanto municípios a oportunidade de se associarem
ao desenvolvimento regional e à prestação na gestão dos serviços e na execução de suas
de serviços públicos, o respeito às exigências obras, contando inclusive com a participação
do direito público, a observância das regras do Estado e da União.
orçamentárias e da responsabilidade solidá-
ria. Essas propostas transformaram-se no
60 Projeto de Lei n. 3.884, protocolado em re-
gime de urgência na Câmara dos Deputados Modelo francês
em 25 de junho de 2004 (Brasil, 2005). de cooperação
Em 6 de abril de 2005, a exigência de
intermunicipal
estabelecer as normas gerais de contratação
dos consórcios públicos seria sanada, por in-
termédio da Lei n. 11.107 (ibid.). A organização que estrutura o território
Os municípios foram os mais direta- francês remonta à Revolução Francesa. O
mente beneficiados por esse diploma legal, debate sobre a organização territorial é um
podendo promover consórcios públicos para dos primeiros na matéria, contido na Cons-
a realização de serviços comuns entre si ou tituição de 1789 que cria o Département
de forma conjunta com a União e estados. (Departamento) a partir de uma construção
Nos moldes postos pela Lei, o consórcio intelectual que respeita, todavia, a geogra-
trata-se de um instrumento que pretende fia. A sua criação é precedida pela anulação
trazer ganhos de eficiência na gestão e na dos diferentes níveis de circunscrição que
execução das despesas públicas e possibilitar predominavam sobre as estrutura medieval
a criação de parcerias as mais diversas. procurando romper, o mais possível, com
Nessa direção, a partir da efetivação do vínculos feudais do passado.10
consorciamento, o Poder Público pode fir- Ao inverso desse processo, as
mar convênios, contratos, acordos de qual- communes­ (municípios) foram organizadas
quer natureza, receber auxílio, contribuições­ constitucionalmente­ em 1792, levando-se­

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territórios e escalas de cooperação e gestão consorciada

em conta a realidade que estruturava o ter- aglomerações de Lille, Bordeaux, Lyon e


ritório. Elas não foram, propriamente falan- Strasbourg se reagruparam sob a forma de
do, uma criação legal, mas nomes dados pela communauté­ urbaine (comunidade urbana).
lei e dotadas de uma organização e de um A Lei de 16 de julho de 1971, relativa às
estatuto jurídico uniforme. A commune (mu- fusões de municípios, prevê a integração de
nicípio) é a estrutura de base da organização numerosas e pequenas comunidades.
administrativa francesa – “união de habitan- L‘Intercommunalité (A Intermunicipa-
tes ligados a interesses comuns”. Atualmen- lidade) surge como fato posterior, respon-
te, existem sobre o território francês 36.584 dendo, depois de longo tempo, a um desejo
communes (municípios), as quais podem ser de suprir a fragilidade política, demográfica
consideradas uma tradição francesa de orga- e fiscal dos municípios. De fato, cerca de
nização territorial onde vivem 75% da po- 32.000 deles contam menos de 2.500 ha-
pulação urbana do país.11 O debate político bitantes, cerca de 3.280 contam com me-
sobre a cooperação municipal surge após a nos de 700 habitantes; 1.200 com 200 mil,
II Guerra Mundial. A urbanização acelerada, sendo que somente 103 municípios pos-
o êxodo rural, a reestruturação industrial, o suem mais de 50.000 habitantes (Le Saout,
desenvolvimento dos meios de transportes e 1998, p. 8). Essas cifras colocam em evi-
a organização espacial das cidades passaram dência a necessidade que se impõe aos mu-
a evidenciar, ainda mais, as dificuldades da nicípios franceses de reagrupamento para
maioria dos municípios franceses para assu- fazer face às ações de gestão dos serviços
mir o desenvolvimento dos serviços locais e públicos (lixo, saneamento básico, água, de- 61
levar a termo as missões de desenvolvimen- senvolvimento econômico e organização do
to econômico e de ordenamento dos territó- território).
rios. Cerca de 80% dentre eles têm menos A Cooperação Intermunicipal se afirma,
de 1.000 habitantes, o que vem conduzindo portanto, como ponto forte na permanência
os poderes públicos a incitar o reagrupamen- da commune e se impõe mais e mais, em
to municipal. Essa reaproximação se limita, termos de coerência do desenvolvimento do
seguidamente, a realizar em comum alguns território e da eficácia na gestão e melhoria
serviços e fusões, restando a commune co- da solidariedade financeira.
mo um quadro de referência forte para seus Dez anos depois da lei relativa às fu-
habitantes e seus eleitos, podendo a mesma sões, a política de descentralização coloca
ser considerada uma tradição na organiza- novamente a gestão municipal como ques-
ção territorial francesa. tão importante. Por intermédio do ato
Numerosas reformas foram adota- fundador da Lei de 2 de março de 1982, é
das para tentar responder às exigências do votada posteriormente, em 6 de fevereiro
momento. Em 1959, foram criados: o Syn- de 1992, a Loi d’Administration Territo-
dicat Intercommunal à Vocation Multiple – riale da Répúblique – ATR (Lei de Adminis-
SIVOM­(Sindicato Intermunicipal de Vocação tração Territorial da República -ATR), que
Múltipla – SIVOM)12 para o espaço rural, e instaurou dois novos tipos de estabeleci-
o District­ (Distrito), inicialmente previsto­ mentos intermunicipais: a communauté de
para os municípios urbanos. Em 1966, as communes (comunidade­ de municípios) 13

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suely maria ribeiro leal

e a communauté­ de villes (comunidade de suir 15 mil habitantes. Essa condição não é


cidades).14 um requisito quando se trata da commune
Depois da adoção da Lei retroativa à chef du département­(município sede do de-
administração territorial da República, de partamento). Essa dupla exigência reserva à
1992, a França vê sua malha territorial se criação das comunidades de aglomeração às
organizar para implantar Estabelecimentos zonas urbanas representando espaços onde
Públicos de Cooperação Intermunicipal com o tamanho aparece como suficiente para de-
Tributação Própria. Esse movimento de co- finir políticas da aglomeração, notadamente
operação intermunicipal conhece um novo nos domínios dos setores estruturantes co-
crescimento depois da adoção da Lei de 12 mo transportes, urbanismo e habitação. Por
de julho de 1999, relativa ao reforço e à isso as communauté­ d’agglomération (co-
simplificação da Cooperação Intermunicipal. munidades de aglomeração) devem exercer
Este texto constitui uma nova fase no desen- competências, obrigatórias ou opcionais, cujo
volvimento do projeto da Intercommunalité­ conteúdo preciso­é definido pela lei, a menos
(Intermunicipalidade).15 que ela não dependa de uma decisão sobre
A Lei de 1992 é considerada particular­ seu interesse comunitário. Nesse quadro, as
mente benéfica ao mundo rural, pelo viés no- communauté­de communes (comunidades de
tadamente do desenvolvimento das comu­ni­ municípios) tendem a reencontrar sua voca-
dades de municípios, o mesmo não pode ser ção inicial de estrutura mais voltada para o
dito com respeito à estruturação do espaço meio rural e adaptada à sua Intercommunalité­
62 urbano. Com efeito, a limitação da fórmula da (Intermunicipalidade) de pequeno tamanho.
comunidade urbana, para as médias aglome- Assim, seu regime jurídico não se encontra
rações, não permitiu resolver os problemas modificado pelo voto recente do texto. Além
para cada comunidade de cidade (ville). É as- do mais, é possível mencionar a obrigação de
sim que a Lei de 12 de julho de 1999 propõe continuidade territorial, exigida quando da
uma nova arquitetura institucional para a co- criação e mesmo para extensões futuras, as-
operação intermunicipal no meio urbano, pre- sim como o encorajamento dado a escolha da
vendo a revisão da fórmula da communauté­ Taxe Professionnel­Unique (Taxa Profissional
urbaine (comunidade urbana) para as grandes Única).17­
(maiores) aglomerações, aquelas contando Constatando a complexidade das insti-
com mais de 500.000 habitantes, e de criar tuições da Intercommunalité (Intermunicipa-
para as aglomerações médias uma nova ca- lidade) a Lei de 199918 buscou racionalizar
tegoria jurídica de coo­peração: communauté­ os tipos de estruturas pondo fim aos distri-
d’agglomération (comunidade de aglome- tos e à comunidade de cidade e retendo ape-
ração).16 Os limites territoriais de uma Co- nas três categorias de estabelecimentos pú-
munidade de Aglomeração se restringem às blicos de cooperação intermunicipal com tri-
áreas urbanas. Para que uma Comunidade de butação própria: a communauté urbaine (co-
Aglomeração seja criada, a população total munidade urbana) que serve de quadro para
das Comunas (municípios) que a compõem cooperação intermunicipal nas grandes aglo-
deve ser de, no mínimo, 50 mil habitantes, merações; a communauté­ d’agglomération
e a Comuna sede­ da Aglomeração deve pos- (comunidade de aglomeração), mais voltada

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territórios e escalas de cooperação e gestão consorciada

às cidades e ao meio ambiente urbano; a conjunto dos Estabelecimentos Públicos de


communauté de communes­ (comunidade de Cooperação Intermunicipal – EPCI.
municípios) não subordinada a um limite de- Embora tenha sido alvo de intensos de-
mográfico, destinada às pequenas aglomera- bates no meio parlamentar, a Lei não veio
ções e ao meio rural. Foram ainda mantidos a introduzir a eleição direta pelo sufrágio
os Syndicats de Communes – SIVU e SIVOM universal dos delegados comunitários. Des-
(Sindicatos de Municípios) – SIVU e SIVOM e se modo, somente os conseillers municipaux
os Syndicats Mixtes (Sindicatos Mistos). (conselheiros municipais)19 poderão ser de-
O texto prevê que as comunidades de signados delegados comunitários dos Esta-
aglomeração, as futuras comunidades urba- belecimentos Públicos de Cooperação Inter-
nas e as futuras comunidades de municípios municipal: a informação e a participação dos
se apóiem sobre um perímetro contínuo e habitantes serão possibilitadas desde que o
sem divisão, do mesmo modo que todo o órgão deliberativo do grupamento poderá
grupamento se transformando em uma ou- criar comitês consultivos sobre todos os ser-
tra categoria de estabelecimentos públicos viços de interesse intermunicipal relevante e
de cooperação intermunicipal, permitindo, de competência dos estabelecimentos.
desse modo, aos grupamentos se assentarem A representação dos cidadãos é assegu-
sobre um território homogêneo e coe­rente. rada através dos órgãos eleitos pelo sufrágio
A racionalização das estruturas inter- universal para as coletividades locais, sendo
municipais passa, igualmente, pela previsão um Estabelecimento Público de Cooperação
das superposições de estruturas e de cruza- Intermunicipal administrado, conforme o 63
mentos de competências. A fim de se ante- caso, por um comité ou conseil (comitê ou
cipar aos cruzamentos de competências, o conselho) composto por délégués élus (de-
texto prevê que um município não poderá legados eleitos) pelo conseil municipal (con-
pertencer senão a um só Estabelecimento selho municipal) de cada commune membre
Público de Cooperação Intermunicipal com (município membro). O município conserva,
Tributação Própria: e facilita, por outro portanto, o controle como órgão deliberan-
lado, as retiradas dos Sindicatos de Muni- te procedendo à designação de delegados,
cípios. O projeto de lei reforma também, via conselho. Possuem, além dos comitês ou
sensivelmente, o mecanismo de representa- conselhos, um gabinete composto pelo pre-
ção, substituindo para municípios aderentes sidente e membros (vice-presidente, tesou-
a uma comunidade ou a uma comunidade reiro e secretários) eleitos pelo conselho.
urbana. O segundo ponto da simplificação A questão da legitimidade da represen-
consiste na harmonização do direito de co- tação indireta tem sido motivo de questiona-
operação intermunicipal. Esse esforço de mento por parte dos setores políticos. Hoje,
harmonização incide principalmente sobre a cerca de 80% da presidência dos Estabeleci-
designação dos delegados, a representação mentos Públicos de Cooperação Intermuni-
dos municípios, as regras de funcionamento­ cipal são ocupados por maires (prefeitos) e
e da maioria qualificada ou ainda, sobre as 18% dos presidentes possuem mandatos –
condições de criação. É assim criado um 6,3% de conseillers (conselheiros) e 11,7%
verdadeiro corpo de regras comuns para o adjoints (assessores do prefeito).

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suely maria ribeiro leal

A situação da Cooperação Intermunici- declínio­ no número de distritos e o desa-


pal na França passa por novas mudanças a parecimento das comunidades de cidade
partir de 2000. Sob a orientação normativa (DGCL – Ministère de l‘Intérieur – France,
da Lei 1999, que põe fim aos distritos e à 2001).
comunidade de cidades, os Estabelecimen- O desenvolvimento de grupamentos
tos Públicos de Cooperação Intermunicipal com tributação própria segue uma evolução
com Tributação Própria irão se restringir considerável. Embora, até 1993, os Estabe-
a três categorias: a communauté urbaine­ lecimentos Públicos de Cooperação Intermu-
(comunidade urbana), a communauté nicipal com Tributação Própria não concerne
d’agglomeration (comunidade de aglomera- senão cerca de 16 milhões de habitantes
ção), communauté de communes (comuni- repartidos sobre 466 grupamentos; a partir
dade de municípios) (ver Figuras). da adoção da Lei ATR se verá nascer uma
Em 1999, o número de Estabeleci- dinâmica real para os estabelecimentos pú-
mentos de Cooperação Intermunicipal com blicos com fiscalidade própria.
Tributação Própria equivalia a 1.680 gru- A cooperação intermunicipal na França
pamentos, divididos entre Sindicatos de obteve um enorme impulso a partir da Lei
Vocação Única (SIVU), Sindicatos de Voca- de julho de 1999. De fato, em 2000, 1.846
ção Múltipla (SIVOM), Sindicatos Mistos, Estabelecimentos Públicos de Cooperação
distritos, comunidades urbanas, Sindica- Intermunicipal com Tributação Própria rea-
tos de Aglomeração Urbana, comunidades grupavam 21.339 municípios representando
64 de municípios ou comunidades de cidades. 37,1 milhões de habitantes. O número de
Esses grupamentos abrangiam pouco mais Estabelecimentos com Taxa Profissional Úni-
de 19.000 municípios e uma população de ca triplicou entre julho de 1999 (109 estru-
34.030.789 habitantes (DGCL – Ministère turas) a janeiro de 2000 (303), como­ tam-
de l’ Intérieur – France, 2001). bém a população concernente (4,2 milhões
As comunidades urbanas somavam no para 13,1 milhões). Em 2001, o número de
ano de 2000 12 grupamentos abrangendo grupamentos com tributação própria se ele-
311 municípios, reagrupando uma popula- va a 2.000, sendo o número­ de municípios
ção de 4.638.748 habitantes. Em 2001, o reagrupados equivalente a 23.458 e a popu-
número de grupamentos é acrescido para lação a 40, 3 milhões de habitantes (DGCL –
14, incorporando 348 municípios e uma Ministère de l‘Intérieur­– France, 2001).
população acima de 6 milhões de habitan- A área urbana foi particularmente
tes. Em 2001, os efeitos da lei de 1999 marcada pelo crescimento da cooperação
já podem ser melhor observados, tendo intermunicipal: em 2000 foram criadas
havido um acréscimo significativo no nú- cerca de 50 comunidades de aglomeração,
mero de grupamentos de comunidades de sendo também significativo o aumento
aglomeração que passam de 50 em 2000 dos grupamentos com tributação própria
para 90 em 2001; o número de municípios­ particularmente­ ilustrado pela evolução
reagrupados­se amplia de 756 para 1.435; a das comunidades­ de municípios. Embora
população reagrupada passa de 5.992.885 a adoção­ da lei de 12 de julho de 1999,
para 11.456.020. Observa-se também um relativa ao reforço e à simplificação da

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territórios e escalas de cooperação e gestão consorciada

cooperação­ intermunicipal tenha multiplica- Aportes da cooperação


do as estruturas intermunicipais sobre por-
ções do território que permaneciam pobres
intermunicipal na
em grupamentos, a tipologia da prática in- França à cooperação
termunicipal demora a se revelar em anti- consorciada no Brasil
gas tradições de cooperação.
Os dados acima demonstram que pare- Os rumos da cooperação intermunicipal na
ce ser irreversível o cenário da cooperação França podem ser delineados no documento
intermunicipal francesa, o que, a longo pra- Refonder l’Action Publique Locale (Refundar
zo, vai transformar profundamente a orga- a Ação Pública Local), relatório elaborado pela
nização territorial do país. Como estima a Comission pour l’Avenir de la Decentralisation
DGCL – Ministère de l‘Intérieur – France, a (Comissão para o Futuro da Descentralização)
persistência desse movimento daqui a dez sob a coordenação de M. Pierre Mauroy.20
ou quinze anos levará a França a possuir em O relatório contempla o projeto de lei
torno de 3.500 comunidades de municípios, da descentralização a vigorar a partir de
130 comunidades de aglomeração e 20 co- 2007, que traça os novos horizontes da
munidades urbanas. ação intermunicipal francesa. As novas pers-
A distribuição da população, segundo pectivas abertas no quadro desse relatório
tipo de grupamentos, também evidencia a podem ser sintetizadas nas doze orientações
importância adquirida pelos Estabelecimen- prioritárias objeto de análise do Legislativo:
65
tos Públicos de Cooperação Intermunicipal –
EPCI. Cerca de 50% dos grupamentos con- [...] 1. Uma Cooperação Intermunicipal
tavam entre 2.000 e 20.000 habitantes. Os Democratizada; 2. Uma Coletividade
grupamentos de sindicatos são mais nume- Departamental Renovada; 3. Um Poder
rosos nas faixas de população entre 1.000 Regional Forte; 4. Uma Desconcentra-
a 50.000 habitantes; os distritos, entre ção Acrescida; 5. Competências Melhor
Distribuídas; 6. Os Princípios Reafirma-
2.000 e 50.000; as comunidades de muni-
dos; 7. Uma Democracia de Proximida-
cípios, entre 1.000 e 50.000, as comunida-
de; 8. O Acesso mais Democrático às
des urbanas e as comunidades de aglome-
Funções Eletivas; 9. Uma Melhor Segu-
ração, entre 50.000 e 300.000 habitantes.
rança Jurídica; 10. Uma Adaptação da
Essas informações são compatíveis com as
Função Pública Territorial às Exigências
regras de criação dos estabelecimentos que da Descentralização; 11. A Moderni-
determinam que as comunidades urbanas zação dos Financiamentos Locais; 12.
devem compor uma população acima de 20 Um Debate Nacional e uma Conferência
mil e as comunidades de aglomeração têm Anual. (Commission pour l’Avenir de la
que possuir no mínimo 50 mil habitantes. Centralisation, 2000)

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O modelo francês de descentralização geografia humana, social e política prepon-


passou, nos últimos vinte anos, por inúmeros­ derantemente diferente.
avanços. A ruptura com a longa tradição ja­ A questão urbana se constitui, sem dú-
cobina­ – centralizadora – propiciada depois vida, em um fator de impacto sobre a des-
dos anos oitenta pela introdução das Leis de centralização. Segundo as prospectivas esta-
1982 e 1983, redefiniu a arquitetura insti- belecidas pela Délegation à l’Aménagement
tucional em nível local provocando um movi- du Territoire et à l’Action Régionale – Datar,­
mento irreversível de mudança no modo de com base nos resultados do recenseamento
decisão, de gestão e do exercício do poder de 1999, quando se observa a evolução de-
nacional e local. mográfica do país, se constata uma repar-
No entanto, o arcabouço institucional tição da população completamente distinta
constituído nos anos oitenta e sedimentado daquela existente nos últimos vinte anos
nos anos noventa não se encontrava apto (Delegation Interministerielle, 1999).
suficientemente para fazer face às novas Em linhas gerais, dois grandes traços
transformações provocadas nas configura- podem ser observados: em primeiro lugar,
ções territoriais, políticas e sociais, de mo- a separação cidade-campo se atenua em
do a atender aos anseios de uma sociedade proveito de um terceiro tipo de organização
predominantemente urbana e integrada aos territorial, aquele das grandes áreas urba-
movimentos de globalização e mundialização nas. Cada uma delas centrada sobre um pólo
da economia. urbano, cidade – centro e periferia. As áreas
66 As aspirações por um projeto global e urbanas na França metropolitana possuem
as críticas à própria forma de democracia – cerca de 42.763.000 pessoas, ou seja, três
sobre a qual se constata certa “anorexia de- quartos da população habitam em uma das
mocrática” – estão a requerer hoje reformas 361 áreas urbanas que, em conjunto, re-
de natureza profunda no modelo de descen- presentam 20% do território. O conceito
tralização francês. do urbano modificou-se desse modo, pro-
É nessa direção que as reflexões e pro- fundamente, não sendo mais possível, como
posições contempladas no “Relatório Mau- no passado, fazer oposição entre cidade e
roy” se fundam na perspectiva de uma reno- campo.
vação democrática das instituições dentro de Em segundo lugar, os grandes territó-
uma visão global de evolução da organiza- rios se desenham. Com efeito, para além das
ção territorial visando, sobretudo, atender áreas urbanas, existe um grande dinamismo
às novas exigências dos cidadãos em matéria das municipalidades próximas e as ligações
da eficácia da ação pública. O olhar sobre o entre estas com as grandes áreas urbanas
futuro da descentralização volta-se na dire- estão se sedimentando, o que tende a acen-
ção de superar as limitações deixadas pelas tuar, ainda mais, a repartição da população.
reformas nascidas nos anos oitenta. O de- É nesse contexto que o processo de ur-
safio desse novo projeto se prende, assim, banização traz conseqüências consideráveis
à necessidade em adequar a organização sobre a evolução das estruturas urbanas das
territorial e política francesa às condições coletividades territoriais e sobre sua organi-
de uma nova época na qual se constata uma zação política.

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territórios e escalas de cooperação e gestão consorciada

Um outro fator destacado pelo relatório tada para o Departamento com um au-
e também constatado nos estudos da Datar, mento médio de 6,1% por ano (3,6%
trata-se do agravamento das desigualdades­ em francos constantes) portando­ este
regionais que configuram a organização es- tipo de despesas a 53 bilhões de fran-
pacial e econômica do país. Nos anos noven- cos em 1997 contra 26 bilhões em
ta, as grandes tendências do desenvolvimen- 1985.21
to desigual persistiram: as regiões do sudes-
te restaram como principais beneficiárias do Ainda é importante salientar que essa
crescimento econômico, enquanto aquelas progressão foi feita em uma conjuntura de
integrantes do norte e do nordeste – mais equilíbrio financeiro em um contexto de boa
populosas – foram submetidas ao êxodo in- gestão que permitiu às coletividades locais
dustrial, e o centro da França tem continua- realizar uma política apreciável de redução
do a perder população. As regiões do oeste de encargos (Mauroy, 2000, p. 17).
e sudoeste têm se beneficiado de uma nova Não resta dúvida que essa revolução
dinâmica, fazendo parte das regiões onde o intermunicipal trará ao país melhores con-
crescimento tem sido mais forte, juntamen- dições de competir com o desenvolvimen-
te com a do leste. to no espaço europeu que se organiza em
Um breve balanço do processo de des- torno das grandes metrópoles, centros e
centralização, de seu peso na redistribuição regiões dinâmicas. Do mesmo modo, esse
do poder e na aproximação das decisões do movimento permitirá o estabelecimento de
lugar de sua aplicação, as realizações e as novas relações entre municípios e as inter- 67
transformações que ela trouxe à vida dos communalité (intermunicipalidades), pro-
cidadãos permite avaliar alguns de seus re- piciando um novo papel na paisagem ins-
sultados. titucional aos municípios, departamentos e
A descentralização se traduziu, em par- regiões.
ticular, pelo desenvolvimento considerável Portanto, longe de ser uma simples
dos equipamentos locais. Segundo dados do resposta aos problemas da gestão pública
relatório, local, a cooperação intermunicipal se ins-
creve em um debate mais amplo, que revisa
[...] no ano de 1998 o esforço de in-
mais largamente a organização territorial e
vestimento das coletividades territoriais a vida política francesa.
representou, fora o reembolso da dí- Nessa direção, devem ser questionados
vida, mais de 180 bilhões de francos, alguns estrangulamentos que se evidenciam,
correspondendo a cerca de três quartos na atual conjuntura, com respeito ao futuro
do investimento público nacional. As cenário da organização territorial e política
despesas de investimento das Regiões francesa e que podem servir de reflexão na
conheceram um aumento médio anual adoção de futuras práticas de consorciamen-
de 11,3% (9,1% francos constantes) to público no Brasil.
entre 1986 e 1997 passando de 11 bi- Aspectos a destacar são as questões da
lhões em 1987 a 37 bilhões de francos competência institucional e da legitimidade
em 1997. A mesma evolução é consta- democrática.

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O problema das competências de cada cada vez mais complexa. Os três níveis tra-
ente territorial constituiu objeto de longa dicionais – a região, o departamento e o
análise por parte da comissão que referencia município – foram acrescidos de novas es-
o modo de convivência entre as esferas de truturas locais, a exemplo dos sindicatos
decisão: com vocação única ou múltipla e dos dife-
rentes modos de cooperação intermunicipal,
[...] se passou, em vinte anos, de um além do surgimento de diversos tipos de
princípio de descentralização por blo- contratos­– de villes e ou de pays, instâncias
cos de competências, a um sistema de habilitadas a contratualizar com o Estado.
parceria no qual todo mundo faz tudo, Essa complexidade expressa a inadaptação
notadamente no domínio social. (Ibid.) do tamanho dos diferentes níveis e o custo
econômico que é gerado ante o grande nú-
As razões atribuídas são de três ordens: mero de estruturas.
Por sua vez, as coletividades territo-
[...] A clareza da escolha de 1983 não riais não se constituem nos únicos atores da
era sem dúvida que aparente. Daí a ori- descentralização e da vida local. Organismos
gem de muitas das imbricações existen- sociais, estabelecimentos públicos, associa-
tes. Um segundo elemento de dificulda- ções encarregadas de missões dos serviços
de reside na generalização de uma pro- públicos vêm ampliar a armadura institu-
ximidade contratual, em especial entre cional do serviço público local, que se torna
68 o Estado e as coletividades. Enfim, um cada vez mais difuso à compreensão do ci-
terceiro fator de complexidade resulta dadão e usuário.
das extensões de competências da parte Um outro elemento que dificulta a arti-
dos serviços do Estado. (Ibid.) culação entre os diversos níveis são os prin-
cípios de autonomia constitucional de cada
A situação é igualmente contrastante um deles, que determina que uma coletivi-
no que concerne às competências desiguais. dade não pode se sobrepor hierarquicamen-
De um lado, os distritos ou as comunidades te a outra.
fortemente integradas do ponto de vista das Esses princípios, no entanto, não impe-
missões e da tributação e, de outro, grupa- dem que sejam buscadas formas de diálogo
mentos que se caracterizam por um défi- para o exercício de competências partilhadas
cit de atribuições. Alguns eleitos são então entre as diversas coletividades de níveis e
obrigados a buscar financiamentos para as vocações diferentes. Nesses aspectos, o re-
despesas de seu município. A cooperação latório destaca:
é para eles um meio de captar dotações
ou subvenções do Estado, da região ou da [...] a ausência de uma estrutura de coo­
União Européia ou do departamento. peração “vertical” que venha a permitir
Outro elemento trata-se da multiplici- a reunião de coletividades de diferentes
dade dos níveis e a ausência de coordenação. níveis. Isso se acompanha de um déficit
O modelo institucional de descentralização de diálogo entre as coletividades, da au-
francês tem sido pautado por uma estrutura­ sência de uma articulação das políticas

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territórios e escalas de cooperação e gestão consorciada

que podem conduzir a dupla utilização como taxa profissional de zona ou de aglo-
ou mesmo a incoerências e contradi- meração. Tarefas de gestão são confiadas a
ções. (Comission pour l’Avenir, 2000) distritos ou a comunidades e certos sindica-
tos se lançam à cooperação intermunicipal
Ausência de uma visão estratégica clara através de projetos de desenvolvimento.
por parte do Estado também é frisada pelo A adesão de um município a diversos
relatório: estabelecimentos de cooperação é a regra.
Ela é o resultado de diversas preocupações
[...] o Estado não tem senão que, me- e estratégias dos eleitos, visando evitar a
diocremente, tirado proveito da descen- formação de Estabelecimentos muito pos-
tralização. A ausência de estratégias e santes. As superposições de competências,
as hesitações marcam o lado onde ele a delegação de uma mesma competência
exerce localmente competências. Raras comunal a muitos EPCI, o exercício por um
são as políticas públicas que têm sido município de uma competência oficialmente
explicitamente redefinidas em função delegada a um grupamento, o exercício de
da descentralização. Em particular a competências que não lhe foram delegadas,
política de aménagement du territoire o caráter vago, complexo e confuso da re-
(ordenamento do território) não tem partição de atribuições entre grupamen-
sido redefinida na ótica de uma divisão tos e municípios-membros não são raros e
de competência entre o Estado e as re- excepcionais.­
giões”. (Ibid.) Para aumentar ainda mais a confusão, 69
alguns EPCI aderem a outros Estabeleci-
Esse fato conduz a uma falta de clareza mentos Públicos de Cooperação Intermuni-
quanto às responsabilidades induzindo ne- cipal e, como os grupamentos existentes são
cessariamente a conflitos de competências e seguidamente de tamanho insuficiente, se
impedindo o bom andamento das ações, o vê emergir novas formas de cooperação em
que se traduz em uma organização comple- Estabelecimentos Públicos de Cooperação
xa e opaca. Intermunicipal que relevam a cooperação in-
Os cidadãos e muitos eleitos se perdem formal, como no caso das associações.
nas multiplicações dos tipos de grupamentos Do lado jurídico, os estatutos legais
(sindicatos, distritos, comunidades urbanas, existentes se prestam mal à constituição de
de municípios ou de cidades, para falar nas intermunicipalidades (estabelecimentos in-
principais, deixando-se de lado a cooperação termunicipais) fortes, sem mesmo invocar a
informal que opera por vias as mais diver- possibilidade de instituições supracomunais.
sas). Eles compreendem mal o que as dife- O quadro do estabelecimento público que
rencia. As comunidades urbanas ou de mu- foi tomado de maneira programática parece
nicípios ou mesmo certos distritos dispõem mal adaptado e será mais e mais inadaptado
de uma tributação própria de tipo adicional. à medida do desenvolvimento de missões de
As comunidades de cidades e certos distri- cooperação intermunicipal e do aumento em
tos, comunidades urbanas ou de municípios pujança de uma intermunicipalidade de pro-
beneficiam-se de uma tributação específica jeto. A constituição de grupamentos dotados

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de competências diversas e dispersas é pou- tação nos órgãos deliberativos são ocupadas
co compatível com o princípio da especifici- de forma majoritária pelos eleitos. Tal é ca-
dade que caracteriza a doutrina dos estabe- so dos conselhos municipais, dos conselhos
lecimentos públicos. A evolução institucional das comunidades urbanas, dos conselhos de
tem conduzido a que esses estabelecimentos quartiers (bairros), etc., e dos cargos de di-
públicos elevem o imposto como das coleti- reção política da administração.
vidades territoriais. Certos grupamentos de Um exemplo concreto é o da compo-
cooperação são, em realidade, coletividades sição dos conselhos de bairros, instâncias
territoriais em potencial (Le Saout, 1998). consideradas de maior proximidade com o
A questão da legitimidade democrática, cidadão nas quais estão previstas a partici-
sobretudo, dos mecanismos de democra- pação de “personalidades representativas”
cia representativa, ultrapassa, por si só, o dos habitantes e das associações, onde os
debate da descentralização do Estado e da representantes são designados pelos maires,
reorganização territorial. Em primeiro lu- tendo os conselheiros municipais assento nos
gar, pode-se questionar em que medida a conselhos de quartiers , e sendo o mesmo
democracia representativa ainda se constitui presidido pelo eleito adjunto encarregado do
na forma mais adequada de expressão dos bairro. Assim, a designação de personalida-
anseios da sociedade em um contexto mun- des do bairro e de representantes associati-
dial onde se fazem presentes uma infinida- vos não significa que os demais setores da
de de redes de atores sociais e econômicos? população sejam ou se sintam representados
70 Em segundo, se, através dos mecanismos da e mobilizados a participar.
democracia representativa, torna-se possível Além disso, a presença dos conselhos
hoje fazer frente aos problemas da exclusão de bairros, por si só, não representa um
decorrentes da fragmentação social derivada projeto de reforçamento da cidadania de
do modelo de acumulação do capital, pós- base, mesmo considerando que estes criem
fordista e flexível, sem que se leve em conta melhores condições para gestão urbana do
a participação direta da sociedade? território da cidade e que possibilitem aos
É evidente, no caso da França, a enor- eleitos um maior domínio sobre os proble-
me expressão que têm os representantes mas e a compatibilização dos serviços com
eleitos na definição da agenda pública e no as necessidades do orçamento. A ausência
controle sobre os mecanismos de regulação da participação direta do cidadão no que
da sociedade, mesmo considerando a ainda concerne aos seus interesses mais diretos e
forte presença dos sindicatos e das orga- os vínculos que se estabelecem entre eleitos,
nizações sociais. O Estado na França resta população ou entre estes e os representan-
profundamente imbricado, tanto em nível tes associativos tendem a favorecer a pre-
legal quanto institucional, pela presença do sença de laços clientelistas.
controle dos partidos e de seus eleitos. Isso Levando em conta que é através do con-
ainda é mais verdadeiro quando se observam trole decisório desses canais que se procede
as instâncias de controle político nas esferas à definição do ideário de governo e das polí-
do poder local (o município, a comunidade ticas públicas voltadas para as áreas urbanas,
urbana, etc.), onde as funções de represen- a questão a colocar é como incitar grupos

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territórios e escalas de cooperação e gestão consorciada

associativos e o cidadão a participarem mais Como segundo elemento, a criação dos


efetivamente da vida democrática local. conselhos de quartiers: “[...] Criar, nas ci-
As múltiplas análises sobre a abstenção dades de mais de 20.000 mil habitantes,
nas eleições municipais têm se reportado as Mairies (Prefeituras) ou Conselhos de
ao percentual expressivo dos grupos jovens Quartiers;­ nas outras cidades encorajar este
nessa abstenção, embora se observe uma dispositivo” (proposição 71a).
tendência recente de mudança, se conside- A proposta de eleições diretas pelo su-
radas as últimas eleições na França. A situa­ frágio universal para os conselheiros das es-
ção atual de desinteresse pela democracia truturas intermunicipais, embora signifique
representativa por parte de uma parcela um avanço na forma atual de representação,
importante da população obriga a repensar não veicula, nem garante, a participação
os mecanismos de democracia direta como cidadã­ e a democratização dos processos de
caminho para fortalecer a democracia de gestão pública. Como destacado na proposi-
proximidade e a participação cidadã. ção 73a, a instância de maior proximidade
No que concerne à participação dire- com os cidadãos continua a se moldar pelo
ta do cidadão, as reformas propostas pelo sistema de designação.
Relatório Mauroy são ainda muito tímidas
e pouco acrescentam ao estatuto anterior. [...] Os membros dos Conselhos de
No capítulo primeiro da segunda parte do Quartiers são designados pelo Conse-
relatório, intitulada “Assegurar a qualidade lho Municipal sob as listas, associando
representantes das associações e dos
e a transparência da decisão local”, são des- 71
habitantes reconhecidos por seu engaja-
tacadas algumas proposições que sugerem:
mento e voluntários (proposição 73).

[...] o engajamento dos cidadãos e a


O estímulo à participação cidadã, na
disponibilidade dos eleitos [...] O obje-
tivo da comissão consiste em procurar forma prevista pelo relatório, não se con-
uma maior visibilidade do processo de substancia, assim, em um reforço à cidada-
decisão e fazer da comuna o lugar de nia coletiva, guiando-se por premissas que
exercício privilegiado da democracia. reforçam o individualismo,

A participação dos cidadãos na vi- [...] para os cidadãos que desejam se


da local, tal qual descrita no relatório, investir fortemente na vida local, em
pressupõe:­ particular, aqueles designados por suas­
organizações profissionais, sindicais ou
[...] uma melhor informação dos ha- associativas para ter assento no seio
bitantes; uma grande aproximação no das instâncias consultivas, o uso do
debate de proximidade criando no seio tempo dispensado deve ser revertido ao
das municipalidades estruturas de pro- tempo profissional. Como os eleitos, os
ximidade de informação, de debate, de representantes dos sindicatos, devem
trocas, de acompanhamento sobre os se beneficiar de créditos de horas de
projetos concernentes aos habitantes representação sindical ou eletiva (pro-
(proposição 70). posição 75a).

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No contexto atual, a associação da competição. Os limites à “boa governança”­


democracia representativa à democracia vão desde a ausência de quadros técnicos
participativa­ aparece como elemento tênue qualificados às dificuldades do atendimento
nas reformas recentes contempladas no pro- às necessidades críticas da pobreza, até a
jeto de descentralização na França, o que le- débil estrutura de organização das comuni-
va a questionar até que ponto a democracia dades locais. Outro risco a observar é o de
representativa e os canais vigentes servem surgimento de uma multiplicidade de níveis
como referencial para um cenário afirmativo institucionais derivados de estruturas con-
de cooperação territorial e de uma organi- sorciadas e que podem provocar a ausência
zação política de base aspirada pela socieda- de coordenação política e ferir os princípios
de francesa. da autonomia federativa.
No campo da legitimidade democrá-
tica, o Brasil apresenta particularidades
em relação ao caso francês. A significativa
Caminhos de uma gestão presença de redes participativas em nível lo-
e governança consorciada cal tem possibilitado o aprimoramento e a
sustentável maior transparência do processo decisório
na formulação e implementação das políti-
A experiência francesa de cooperação inter- cas públicas. No entanto, os mecanismos de
municipal traz lições e aprendizados para a participação direta encontram barreiras de
72 o futuro da gestão e governança consorcia- ordem institucional e na esfera da repre-
da no Brasil. Aspectos a realçar são algumas sentação política dos atores. As administra-
similaridades com respeito aos estrangula- ções municipais, além de pouco aptas para
mentos presentes nas estruturas de coope- dar funcionalidade aos mecanismos parti-
ração intermunicipal na França. As questões cipativos são permeadas pelo clientelismo
da competência institucional e da legitimida- político, que envolve desde o Executivo e o
de democrática evidenciam-se como princi- Legislativo até lideranças populares que, na
pais limites à funcionalidade do consorcia- maior parte, não têm a qualificação exigida
mento no caso brasileiro, para o exercício de sua função, nem a re-
Em um contexto de crise financeira, de presentatividade requerida para o aprimora-
guerra fiscal entre os municípios e de dificul- mento democrático desses instrumentos.22
dades no atendimento das demandas locais, As instâncias de participação tornam-se,
a cooperação intermunicipal pode possibili- quase sempre, figuras-fantasma no aparato
tar a ampliação da capacidade financeira dos institucional, acarretando a baixa legitimida-
municípios e induzir formas mais descentra- de política desses mecanismos. A ampliação
lizadas e democráticas de gestão e gover- indiscriminada de canais institucionais de
nança local. No entanto, deve-se ficar alerta participação, ao invés de cumprir o papel de
para os problemas críticos das desigualda- democratização, pode arrefecer o campo de
des regionais entre municípios, o que vai lutas dos movimentos sociais e favorecer a
desaguar em competências desiguais e em legitimação do Estado em detrimento da or-
um déficit de atribuições e de capacidade de ganização da sociedade civil.

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territórios e escalas de cooperação e gestão consorciada

Apesar dos limites mencionados, a da ação pública às periferias das cidades,


gestão consorciada e a governança coope- particularmente quanto a municípios de
rativa, por meio da associação intermuni- feição rural, podem se tornar instrumen-
cipal e da criação de instâncias de proximi- tos essenciais à promoção do desenvolvi-
dade junto e entre os cidadãos, a extensão mento local sustentável.

Suely Maria Ribeiro Leal


Arquiteta e Professora. Doutora em Economia Urbana pela Universidade Estadual de Cam-
pinas. Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de
Pernambuco (Pernambuco, Brasil).
suelyleal@terra.com.br

Notas
(1) A Lei n° 11.107, de 6 de abril de 2005, está a tratar das normas gerais de contratação de
consórcios públicos.
73
(2) Coopération Intercommunale (Cooperação Intermunicipal) concerne a associação entre vá-
rios municípios.

(3) Sancionada pelo presidente Lula a lei que norteia a associação de municípios, Estados e
a União para a realização da gestão dos serviços públicos de interesse comum. A Lei n°
11.107, de 6 de abril de 2005, está a tratar das normas gerais de contratação de consórcios
públicos, trazendo ainda profundas alterações na lei de licitações.

(4) Lei de julho de 1999, Lei Chevènement.

(5) Communes (municípios): menor divisão administrativa do território francês.

(6) Fiscalité Propre (Tributação Própria percebida pelos municípios). Association des Maires de
France (2000).

(7) Segundo Arretche (2004, p. 22), “no ano de 2002, de um total de 5.560 municípios existen-
tes, 5.537 haviam assumido a gestão parcial ou integral dos serviços de saúde”.

(8) O Grupo de Trabalho Interministerial – GTI foi instituído por meio da Portaria n. 1.391, de
28 de agosto de 2003. O grupo se fundamentou na opinião de especialistas de referência
local e regional, internacionais sobre o tema.

(9) O parágrafo 1º, inciso II, do art. 6º da Lei define que o consórcio público com personalidade
jurídica de direito público integra a administração indireta de todos os entes da Federação
consorciada. Enquanto o parágrafo 2º define que, no caso de ser revestir de personalidade
jurídica de direito privado, o consórcio público observará as normas de direito público no
que concerne à realização de licitação, celebração de contratos, prestação de contas e
admissão de pessoal.

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suely maria ribeiro leal

(10) Département (departamento): divisão administrativa do território francês – circunscrição


administrativa de base, eles são subdivididos em districts, cantons e communes, gozando
de uma ampla descentralização; as suas competências próprias são essencialmente: a ação
sanitária e social, equipamento rural, vias departamentais e despesas de investimento e
funcionamento das escolas públicas. Os Conseils Généraux são órgãos deliberantes dos
departamentos, sendo a autoridade executiva o presidente deste conselho. A França conta
com 100 departamentos (96 na metrópole e 4 no Outre-Mer). Moreau (1999).

(11) Commune (município). As competências próprias à commune concernem às ações de


proximidade; são estendidas no domínio econômico e social, em particular os edifícios e
equipamentos escolares do primeiro ciclo de ensino. Os órgãos deliberantes das commu-
nes são os conseils municipaux, que são providos de uma autoridade executiva municipal,
o maire (prefeito) eleito por este conselho. Le Saout (1998).

(12) Syndicat Intercommunal à Vocation Multiple (Sindicato Intermunicipal de Vocação Múl-


tipla – SIVOM): são criados por ato do prefeito sobre base de deliberação dos conselhos
municipais das municipalidades interessadas. Eles podem reagrupar municípios de todos
os tamanhos de um mesmo departamento ou de departamentos limites.

(13) Communauté de communes (comunidade de municípios). Reagrupamento de municípios


essencialmente rurais, tendendo futuramente a privilegiar agrupamentos tanto rurais como
urbanos. É criada por ato do prefeito baixo à deliberação do Conselho. Le Saout (1998).

(14) Communauté de Villes (comunidade de cidade): reagrupa municípios pertencentes a um ou


mais departamentos para formar uma aglomeração de 20.000 mil habitantes; ela é criada
por ato do prefeito baixo à deliberação do conselho.

74 (15) Association des Maires de France, La Coopération Intercommunale (Paris, 2000).

(16) Communauté d’Agglomération (Comunidade de Aglomeração): associação entre municí-


pios urbanos.

(17) Taxe Professionnel Unique (taxa profissional única): tributo municipal percebido sobre as
empresas, profissionais liberais e assimilados; representa a metade da fiscalidade comunal
direta e varia segundo regiões. Le Saout (1998).

(18) Lei n. 99-586 de 12 de julho de 1999, Lei Chevènement (deputado autor do projeto).

(19) Conseillers Municipaux (conselheiros municipais): as funções de representação nos órgãos


deliberativos (conselhos municipais e departamentais) são ocupadas de forma majoritária
pelos eleitos; o conselho municipal é presidido pelo maire (prefeito) eleito pelo conselho.

(20) M. Pierre Mauroy foi antigo primeiro-ministro, senador, ex-prefeito da cidade de Lille e
presidente da Comunidade Urbana de Lille.

(21) 1 Euro = 6,55957 FRF.

(22) Além dos conselhos municipais e estaduais (de Saúde, de Educação, da Criança e do Ado-
lescente, etc.), regidos constitucionalmente, se evidenciam os orçamentos participativos,
as conferências, fóruns, comissões câmaras temáticas etc.

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territórios e escalas de cooperação e gestão consorciada

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Recebido em maio/2008
Aprovado em ago/2008

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territórios e escalas de cooperação e gestão consorciada

Figura 1 – As 14 comunidades urbanas francesas

Fonte: http://www.ign.fr 77
c A comunidade urbana serve de quadro para cooperação intermunicipal entre as grandes aglomerações.
c É caracterizada pelas aglomerações com mais de 500.000 habitantes.
c Inclui alguns dos principais centros urbanos da França metropolitana, à exceção de Paris.

Figura 2 – A comunidade urbana de Marseille

Fonte: http://www.marseille-provence.com/

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suely maria ribeiro leal

Figura 3 – Comunidade de aglomeração de La Rochelle


Uma das 169 comunidades de aglomeração francesas

78

Fonte: http://www.agglo-larochelle.fr/

c As comunidades de aglomeração são categorias jurídicas voltadas às cidades médias, cuja criação é reser-
vada às zonas urbanas.
c Só pode ser criada sob condições de um mínimo de população de 50.000 habitantes, comportando a
existência de um município centro que agrupe acima de 15.000 habitantes. Esta exigência não se aplica aos
municípios-sede dos departamentos.
c São espaços onde o tamanho permite definir políticas da aglomeração nos domínios dos setores estruturantes,
como transportes, urbanismo e habitação.
c As comunidades de aglomeração devem exercer competências, obrigatórias ou opcionais, cujo conteúdo
preciso é definido pela lei, a menos que ela não dependa de uma decisão sobre seu interesse comunitário.

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territórios e escalas de cooperação e gestão consorciada

Figuras 4 e 5 – Estabelecimentos públicos de cooperação intermunicipal em 2007

As 2.400 comunidades de comunas francesas

Communauté de Communes à Fiscalité Additionnelle


Communauté de Communes à TPU (Taxe Professionnelle Unique
Communauté Urbaine
Communauté d’Agglomération
Syndicat d’Agglomération Nouvelle

79

169 Comunidades de aglomeração – 14 comunidades urbanas francesas

CA déjà existant au 1/1/2006


CA créées ex-nihilo
CA créées par transformation
Communautés urbaines

Fonte: http://www.dgcl.interieur.gouv.fr/

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A cidade e a região/a cidade-região:
reconhecer processos, construir políticas
Tadeu Alencar Arrais

Resumo
O artigo analisa as relações entre os espaços Abstract
regionais e a cidade, tendo como ponto de par- The present paper analyzes the relations
tida a idéia de que os processos espaciais res- between regional spaces and the city,
ponsáveis pela integração de cidades e regiões supported by the notion that spatial processes
demandaram, nos últimos anos, a busca de no- responsible for the integration of cities and
vos conceitos, como o de “cidade-região”. No regions have demanded the emergence of
primeiro momento, analisamos a questão da es- new concepts in recent years, such as the
cala de análise como problema-chave, mas que concept of “city-region”. Firstly, we focus
deve estar diretamente relacionado à noção de on the question of scale analysis as a key
ação. No segundo momento, a reflexão voltou- problem which must be directly related to
se para o processo de integração entre cidades the notion of action. Secondly, we turn to the
e regiões, culminando com uma curta reflexão integration process between cities and regions
sobre o papel das cidades-médias. Em seguida, and subsequently provide a brief discussion on
elaboramos uma reflexão sobre o conceito de the role played by medium-sized cities. This
“cidade-região”, alertando para a matriz polí- is followed by an analysis of the concept of
tica do conceito, assim como para algumas de “city-region”, highlighting its political matrix
suas imprecisões conceituais. Com isso, termi- as well as some conceptual inaccuracies. We
namos o artigo levantando preocupações sobre conclude this paper by stating our concerns
a adoção de conceitos que reforçam, em muitos about the adoption of concepts which often
casos, determinadas hierarquias espaciais. reinforce certain spatial hierarchies.
Palavras-chave: cidade; região; cidade- Keywords: city; region; city-region; political;
região;­política; escala. scale.

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tadeu alencar arrais

De resto, o que é uma “região ganhadora”? Uma região que se afirma (do pon-
to de vista dos empregos, das riquezas, da arte de viver) pela sua própria ac-
tividade ou uma região que vive à custa das que perderam até mesmo de uma
parte de seus próprios habitantes? Será a hierarquia das regiões a constatação
de um êxito desigual (porventura provisório) ou a causa das vantagens de que
desfrutam as primeiras, que seriam então os centros de uma periferia?

Benko e Lipietz. O novo debate regional (1994, p. 5)

A questão da escala expressão­dessa nova forma de agrupa-


mento demográfico, que já está, sub-
de análise: conhecimento conscientemente, desenvolvendo novas
e ação formas de agrupamento social, e, em
seguida, de governo e administração
Em um texto clássico da geografia regional, bem definidos.
Kayser (1980, p. 283) escreveu o seguin-
te: “O espaço polarizado que se organiza A constatação de Gedds (1994) remete
em torno de uma cidade é uma região”. No à questão da correspondência entre a escala
82 artigo, o geógrafo destacou a força centrí- de análise e a escala de ocorrência dos pro-
peta exercida pela cidade, que ocorreu em cessos socioespaciais. Tradicionalmente, as
função da progressiva concentração espacial duas escalas mais comuns na análise urbana
de bens e serviços e dos meios de produção foram a intra-urbana e a urbano-regional,
que interferem na dinâmica econômica re- esta última também compreendida como
gional. Essa linha de raciocínio não é nova metropolitana.1 Se admitirmos a escala co-
e foi motivada, em grande parte, pelo re- mo “um ponto de vista do conhecimento”,
conhecimento de processos socioeconômicos como escreveu Revel (1998), então essa
que romperam os limites jurídico-adminis- discussão não se reduz ao recorte espacial
trativos do que convencionalmente chama- determinado a priori, seja pelo pesquisador,
mos de cidade. Gedds (1994, p.48), obser- seja por aqueles que conduzem as políticas
vando o espaço regional londrino no início governamentais. Dessa forma, esse debate
do século XX, escreveu o seguinte: não pode passar a margem da resposta à
duas questões:
Essas cidades-região, essas cidades-
• Existem processos socioeconômicos ur-
agrupamento pedem um nome. Não
banos que interferem na organização do es-
podemos chamá-las constelações; o
paço regional?
vocábulo conglomeração parece mais
próximo­ da realidade presente, mais • Existem processos socioeconômicos re-
ainda é pertinente. E conurbações? gionais que interferem na organização do
Essa talvez seja a palavra necessária, a espaço urbano?

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a cidade e a região / a cidade-região: reconhecer processos, construir políticas

Se admitimos, em qualquer que seja a e dos recursos, por isso é relacional. E es-
latitude, falar em espaço urbano-regional é sa ação poder ser traduzida no movimento
porque a resposta às questões colocadas é pendular de milhares de pessoas, evidência
positiva. Vejamos o exemplo do mercado de incontestável da integração dos espaços
trabalho. A oferta de emprego em Goiâ­nia, urbano-regionais ou mesmo da ação das fir-
por exemplo, é determinada por um conjun- mas e corporações. A ação também é colo-
to de fatores, dentre os quais a concentra- cada em relevo nas interpreta­ções acadêmi-
ção de serviços, comércio, indústrias, fator cas que procuram classificar e hierarquizar
estimulado pela sua condição de capital. É as diversas formas espaciais, a exemplo das
através da oferta de emprego, serviços e inúmeras tipologias de cidades­ existentes.
bens de consumo duráveis e não duráveis Essa ação também é produto dos interes-
que Goiânia se relaciona com os demais mu- ses governamentais, que muitas vezes se
nicípios de sua região. Essa oferta atinge encontram presos aos recortes territoriais
de diferentes maneiras o espaço urbano de administrativos. Assim, quando pensamos
Goiânia e o espaço urbano dos demais muni- em escala, estamos no referindo à escala de
cípios que compõem a Região Metropolitana ação, o que implica dizer que seu limite cor-
de Goiânia. Em Goiânia, a oferta de empre- responde ao limites das ações dos diversos
go interfere, entre outros pontos, na eco- atores sociais no espaço urbano-regional.3
nomia da cidade, gerando renda e tributos
que podem ser revertidos para políticas de
infra-estrutura urbana, moradia, programas 83
sociais, custeio da máquina governamental
A cidade e a região:
e pagamento do funcionalismo. Já para os reconhecer processos
demais municípios, a oferta de emprego em
Goiânia estimula o deslocamento diário de Para compreender os laços entre as cidades
pessoas e a conseqüente drenagem de ren- e as regiões, é preciso considerar a relação
da para a capital, já que os gastos diários entre a sociedade e o território, atentando,
dos trabalhadores, bem como parte dos im- especialmente, para o processo de urbaniza-
postos dos empregadores são recolhidos na ção. Ao partir desse pressuposto, podem-se
base territorial da capital.2 Nesse caso, o estabelecer diferenças entre o processo de
emprego da terminologia urbano-regional é constituição de um dado território e a im-
plenamente justificável. portância das cidades, tal qual já fez Santos
Não se trata, pois, de hierarquizar as (1982, 1996). No Brasil, em 2000, exis-
escalas, mas de ter a clareza de que são um tiam 5.507 municípios e um número equi-
ponto de partida para o reconhecimento de valente de cidades. A diferenciação entre­es-
processos sociais materializados no espaço ses municípios vai muito além da toponímia.
urbano-regional. Na discussão sobre a esca- Em 2000, na região Norte, a média de área
la, o que esta em questão é a ação. Essa ação dos municípios foi de 8.582,02 km2, sendo
não é casual. Ao contrário, por isso Raffes- que, no Amazonas, estado com maior área
tin (1993) fala da ação como programa. Es- proporcional dos municípios, a média foi
sa ação influencia a distribuição­das pessoas­ de 25.334,60 km2. Já na região Sudeste,

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tadeu alencar arrais

a média de área dos municípios, no mesmo Deve-se lembrar, ainda, que apenas um
ano, foi de 554,92 km2 e, no Centro-Oeste, critério arbitrário como o volume po-
3.601,72 km2 (IBGE, 2000b). Em relação pulacional pode implicar consideráveis
à população, considerando o mesmo ano, modificações durante um dado período
as diferenças se invertem, já que as regiões de tempo, haja vista a freqüência relati-
Sudeste e Sul são igualmente as mais popu- vamente alta com que as cidades podem
losas e as mais fragmentadas. A simples cor- ascender ou descender na hierarquia do
relação entre área, população e o número tamanho demográfico. Este é o caso,
de municípios dá idéia da complexidade dos especialmente, das cidades médias, pois
recortes municipais e regionais brasileiros e muitas vezes elas possuem os requisitos
dos desafios políticos e interpretativos. para a criação e desenvolvimento de pó-
A análise dessas diferenças são deter- los tecnológicos e também se mostram
como alternativa a excessiva concentra-
minantes para a compreensão das relações
ção industrial das regiões metropolita-
entre as cidades e as regiões. Imperatriz,
nas, fatores que normalmente atraem a
no Maranhão, com população em 2007 de
população.
229.671, é um exemplo típico. Sua área de
abrangência é muito mais elástica do que os
seus 1.368 km2 (IBGE, 2007). Essa cidade Ainda podemos destacar dois pontos.
exerce influência na região do Bico do Pa- A questão da densidade do território, o
pagaio, assim como no Sul do Maranhão. A que significa que uma determinada cidade,
84 oferta de emprego, a pujança do setor ata- independentemente do número de habitan-
cadista, a concentração de serviços ligados tes, pode ter maior capilaridade regional
à saúde e educação, além do suporte às ati- que outras, de maior tamanho populacional.
vidades agrícolas dos municípios da região, Outra questão é a associação, nos termos
tornam essa cidade um típico pólo regional. uma política territorial, da cidade média às
Mas essa não é apenas uma realidade do Sul políticas de intervenção regional ligadas aos
do Maranhão, uma vez que ocorrem proces- tradicionais pólos de desenvolvimento, cuja
sos semelhantes em vários estados, a exem- origem remonta à política francesa de amé-
plo de Goiás, Minas Gerais, Pará, Piauí, nagement du territoire.4
Ceará, entre tantos outros. Cidades como A partir dos pontos levantados, aparece
Imperatriz se enquadram, do ponto de vista uma questão interessante. Tradicionalmen-
demográfico, em um hiato existente entre te, tanto na compreensão acadêmica quanto
os ambientes tipicamente metropolitanos e nas políticas governamentais, foi destinada
uma imensidão de cidades pequenas, cuja maior atenção aos arranjos metropolitanos,
população é inferior a 20.000 habitantes. o que pode ser comprovado pela revisão do
Assim, as denominadas cidades médias, que percurso histórico das regiões­ metropolita-
no primeiro momento foram definidas pe- nas brasileiras. Nesse caso, o destaque não
lo critério demográfico, começam a exigir se dava pela abrangência territorial, mas
novas formas de interpretação que incluam, pela concentração demográfica, uma vez
especialmente, o espaço regional. Amorin que essas regiões sempre abrigaram por-
Filho e Rigotti (2002, p. 10) destacam: ção significativa da população brasileira,

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a cidade e a região / a cidade-região: reconhecer processos, construir políticas

além de destacado peso na composição do complexos quanto aqueles presentes nos


PIB nacional. Já no caso das assim chama- arranjos metropolitanos. E não se trata,
das cidades médias ou mesmo das pequenas apenas, de administrar o desafio demográ-
cidades dispersas no território em manchas fico, tal como foi colocado na agenda de
descontínuas, a preocupação, tanto em re- intervenção metropolitana, que privilegiou
lação às políticas quanto em relação à re- historicamente as políticas para habitação
flexão acadêmica foi menor. É como se o e mobilidade. Muito embora as cidades mé-
processo de urbanização, cuja marca regis- dias não apareçam com freqüên­cia na mí-
trada data da década de 1970, não fosse dia, problemas como mobilidade e acessibi-
a expressão da integração econômica desse lidade urbana, violência urbana, déficit­ ha-
imenso território pontilhado de cidades pe- bitacional, pouca oferta de serviços de edu-
quenas e médias. Foi assim que a chamada cação e saúde, saneamento básico, desem-
transição demográfica ofuscou a visão mais prego, concentração de renda, também são
global do território. freqüentes em cidades como Imperatriz,
E hoje, como podemos problematizar Anápolis, Catalão, Montes Claros, Mossoró
as relações entre as cidades e as regiões? etc., e tantas outras espalhadas pelo Norte,
A primeira questão é tentar fugir da Nordeste e Centro-Oeste brasileiro.
hierarquização. A representação carto-
gráfica dos estudos da REGIC (Região de
Influên­c ia de Cidades, IBGE, 2000), por
exemplo, é ilustrativa da hierarquia urbana.
A cidade-região: 85
Estudos como esse carregam uma tradição construir políticas
que remonta à teoria dos lugares centrais
de Christaller, cujo núcleo está na idéia de O interesse pela compressão das novas di-
centralidade que, por sua vez, deriva da nâmicas territoriais, especialmente aquelas
função da cidade. Olhando atentamente, que derivam da estruturação do espaço
além da hierarquia, a riqueza desses es- urbano-regional, tem despertado interes-
tudos está no fato de revelarem arranjos se de diversas áreas do conhecimento. Em
territoriais distantes da narrativa metro- linhas gerais, a análise da literatura apon-
politana, especialmente em países com as ta que os arranjos territoriais, que de al-
dimensões territoriais do Brasil. Entretan- guma forma são adjetivados de “cidades-
to, pela natureza metodológica-quantitati- regiões”,­ são resultados do período de
va desses trabalhos, o impacto no espaço acumulação flexível, das transformações
intra-urbano foi minimizado. A noção de do sistema fordista e das novas tecnologias
“zoneamento morfológico funcional”, pro- que se transformaram em fator de produ-
posta por Amorin Filho (2005), procura ção. Harvey (1996, p.140) escreve:
associar os impactos da dinâmica regional
no espaço urbano (morfologia), sem des- A acumulação flexível envolve rápidas
prestigiar a dinâmica regional (funcional).5 mudanças dos padrões de desenvol-
A segunda questão é que os desafios vimento desigual, tanto entre setores
políticos na gestão dessas cidades são tão quanto em regiões geográficas, criando,­

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tadeu alencar arrais

por exemplo, um vasto movimento no e isso serve para diferentes formações re-
emprego chamado “setor de serviços”, gionais, especialmente porque a integração
bem como conjuntos industriais com- econômica tornou os problemas (degrada-
pletamente novos em regiões até en- ção ambiental, falta de saneamento básico,
tão subdesenvolvidas (tais como “Ter- desemprego, carência de infra-estrutura ur-
ceira Itália”, Flandes, os vários vales e bana, etc.) mais visíveis. É o fato político,
gargantas do silício, para não falar da a necessidade de reconhecer/estimular res-
vasta profusão de atividades dos países postas para além da escala municipal, que
recém-industrializados). justificaria, teoricamente, falar em “cidade-
região”. Seguindo esse raciocínio, Scott et
O que Harvey (1996) e outros estu- al. (2001) enxergam um mundo pontilhado
diosos manifestam é a territorialização das de “cidades-regiões-globais”, o que não pa-
transformações contemporâneas em espa- rece facilmente empiricizável, já que na lis-
ços específicos que são, via de regra, adje- ta dessas felizes cidades (a maioria coincide
tivados de regiões. Esse ponto de partida com ambientes metropolitanos) não encon-
pode ser averiguado de diferentes formas tramos referências aos arranjos políticos e
em Harvey (1996), Scott et al. (2001), nem mesmo pistas sobre a coesão entre os
Friedmann (1997), Benko e Lipietz (1994). atores regionais, o que torna muito abstra-
Os processos descritos por Harvey (1996) ta a avaliação da capacidade de resposta aos
ocorrem em diferentes formações regionais, desafios regionais e globais. Na verdade, há
86 como a européia e a norte-americana e tam- uma dificuldade em visualizar tanto os desa-
bém com diferentes conteúdos, sejam me- fios quanto os atores. Nesse sentido, salvo o
tropolitanos, foco do estudo de Scott et al. aspecto político-ideológico, a mesma crítica
(2001) ou envolvendo núcleos urbanos me- feita a Ohmae (1996), sobre a naturalização
nores, como na Terceira Itália.6 Mas a ques- e protagonismo da “região-ator”, também
tão que permeia a reflexão não passa por cabe a Scott et al. (2001).7
apenas reconhecer a existência de processos Tanto na análise da literatura quanto
econômicos que integram cidades e regiões. no debate sobre as políticas governamen-
Agnew (2000, p. 106) coloca a questão da tais, os argumentos sobre a existência das
seguinte forma: “cidades-regiões” parecem basear-se em dois
pontos principais: 1) a abertura ao merca-
A questão é que essas regiões raramen- do global tornou mais frágeis as estruturas
te coincidem com as regiões político- locais e regionais, o que, em alguns casos,
institucionais. Portanto, há um déficit coincide com mudanças na base produtiva,
político na capacidade das cidades-re- com impacto direto na oferta de emprego;
giões administrarem seus negócios. O 2) de posse desse diagnóstico e baseado na
Estado ainda controla a maior parte das idéia de reestruturação, caberá aos atores
alavancas das políticas e planos de ação. locais-regionais (o regional é uma forma de
dizer que os problemas da reestruturação
O foco do debate sobre as “cidades- atingem mais que uma cidade) reunir for-
regiões” passa a ser, desse modo, político ças para superar os problemas. Não se trata

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a cidade e a região / a cidade-região: reconhecer processos, construir políticas

apenas de uma perspectiva de análise, mas “cidade-região-global”, “cidade-global” etc.,


também de uma estratégia de ação, o que transformaram-se, em muitos casos, em
pode ser verificada tanto no ABC Paulista epítetos de um discurso acadêmico sedento
(Klink, 2001) quanto no Porto Cidade Re- por novidade.
gião (Silva, 2005). Vejamos um exemplo do Em resumo, a contribuição do conceito
segundo caso: de “cidade-região” não está restrita ao reco-
nhecimento dos processos socioeconômicos
Numa conjuntura em que a região e espaciais que integram as cidades aos seus
Norte­ tem sentido os efeitos de uma contextos regionais. Essa perspectiva não é
inadequação de sua estrutura produ- nova, e o retorno a Gedds (1994) ou mesmo
tiva – constituída predominantemente a Perroux (1975); é suficiente para colocar
por indústrias manufactureiras pouco reticência na originalidade desse novo con-
evoluídas em termos tecnológicos – aos ceito. A questão colocada é eminentemente
desafios da nova sociedade globalizada política, o que depende, fundamentalmente,
da informação e do conhecimento, in- de considerar a tradição das políticas territo-
serida num País de práticas extrema-
riais e até mesmo a questão federativa dos
mente centralizadoras que agravam
diversos países e não apenas o contexto de
esta situação quando são procuradas
inserção na globalização. Na tradição políti-
estratégias de continuar a canalizar –
co administrativa brasileira, a região sempre
indevidamente, pois ao seu acesso não
foi mais uma escala de intervenção do que
tem direito – fundos comunitários para
de administração. Assim, as regiões respon- 87
a Região que mais proximamente alber-
deram muito mais à centralização do que à
ga os detentores do poder, será com
descentralização, contrário do que ocorreu,
recurso aos seus próprios meios que o
por exemplo, na França. Criamos um pro-
espaço territorial Porto/Cidade/Região
terá de encontrar forma de se tornar blema interessante para o caso brasileiro.
competitivo numa Europa Comunitária Há um déficit entre os processos sociais que
cada vez mais exigente para, ela pró- insistem em mostrar a integração regional e
pria, se revelar competitivo na Europa o processo político, que insiste em fragmen-
Comunitária. (Barbosa, 2005, p. 3) tar, devido a nossa geometria do poder, o
espaço integrado. O resultado disso é que,
O fato é que, em muitos casos, existe exceção feita para raros casos, não somos
um distanciamento entre a análise acadêmi- capazes de estimular um pensar regional pa-
ca e a efetiva existência de processos políti- ra além do reconhecimento da polarização.8
cos (coesão dos atores regionais) nas esca-
las regionais resultantes da reestruturação­
da base produtiva regional, o que provoca
o esvaziamento do conceito. Não são pou- Um esforço de síntese
cos os trabalhos que trazem em seu títu-
lo a denominação “cidade-região”, sem ao Quando observamos a origem o termo
menos explicar teórica e empiricamente o região­ ( regere ), percebemos que a refle-
sentido dessa utilização. “Cidade-região”, xão que o funda, como já anotou Gomes

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tadeu alencar arrais

(1995), é essencialmente política. De mo- a exemplo de extensos espaços da África,


do resumido, podemos dizer que o concei- Ásia e América Latina.
to de “cidade-região” apresenta como mé-
• É preciso ter cuidado para não fomen-
rito a lembrança que devemos fomentar a
tar novas hierarquias construídas sobre o
discussão­ política em espaços integrados
solo fértil das velhas hierarquias. Se, antes,
por uma rede urbana densa e marcados por
a hierarquia se dava pelo tamanho da po-
desafios insti­tucionais comuns. Trata-se de
pulação, pelo peso do setor industrial e de
reconhecer que é possível ampliar o debate
serviços, agora ela se justifica pela inserção
político na perspectiva da ação regional. O
global, tendo como atributos a criatividade,
hifem, nesse caso, representa mais que um
o conhecimento e a inovação, territorializa-
sinal gráfico ou mesmo a união de dois subs-
dos, evidentemente, em poucas regiões do
tantivos. Os pontos abaixo resumem nossas
planeta.
argumentações:
• É preciso qualificar os atores, explici-
• É necessário atenção com os paralelis-
tando seus interesses na “arena regional”
mos, o que significa admitir que a natureza
(Arrais, 2007) de modo a desvendar o sig-
e operacionalidade dos conceitos é diferen-
nificado de sua ação, pois disso depende a
te, seja para o Brasil, para Europa ou mes-
percepção do que foi, do que é e do que
mo para Ásia.
será uma determinada região. Estimular o
• É necessário considerar a estrutura ter- pensar regional, uma consciência sobre os
ritorial e administrativa de cada território. problemas de uma região pode significar,
88
Na França, por exemplo, a área média das também, forjar uma falsa consciência sobre
comunas, no ano de 1991, de acordo com seu destino.
Costa (2002), foi de 15,8 km2, e do Reino
Uma teoria pode ser avaliada a partir
Unido, 505,4 km2, nada comparável à mé-
do seu potencial explicativo, o que significa
dia brasileira, que foi, em 2000, 1.546,19
que devemos considerar seu potencial de
km 2 (IBGE, 2000b). Além disso, existem
universalização. A adesão aos “novos” con-
sistemas político-administrativos diferentes,
ceitos, a exemplo da “cidade-região”, não
com modelos mais centralizados que outros,
pode ser movida apenas pela intuição, sob
o que pode influenciar as possibilidades de
o risco de esvair o debate acadêmico e com-
coesão regional.
prometer a análise das ações dos atores re-
• É necessário reconhecer que o processo gionais. É por isso que insistimos na ação,
de reestruturação produtiva, adjetivado de pois acreditamos que, a partir de sua análi-
flexível, não está generalizado em todos os se, poderemos desvendar o papel dos atores
cantos do planeta. Não podemos esquecer regionais. A história da integração regional,
que o discurso sobre a flexibilidade e a deca- em diferentes formações regionais, desde a
dência do Estado-Nação tem data e local de evolução dos transportes, das comunicações
nascimento e que, abaixo do Equador, on- e da internacionalização da economia, de-
de nunca houve pecado, há muitos lugares- monstra quanto certas cidades polarizaram
regiões-países que sequer desfrutaram das seus espaços regionais, funcionando como
“benesses” do Estado do Bem-Estar-Social, pólos regionais. Hoje em dia, em função da

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a cidade e a região / a cidade-região: reconhecer processos, construir políticas

exarcebada integração, o reconhecimento qual a cidade aparecia como protagonis-


desse processo não é mais novidade. Assim ta, pela narrativa da região-ator, produto
é preciso avançar. Mas avançar certos de da globalização, do empreendedorismo, da
que não podemos fundar outras hierarquias; aprendizagem. Enfim, é preciso indagar até
afinal, não é justo substituir, com tanta na- que ponto as idéias não continuam fora do
turalidade, a narrativa da polarização na lugar, para lembrar Schwarz (2001).

Tadeu Alencar Arrais


Doutor em Geografia pela Universidade Federal Fluminense. Professor Adjunto do Instituto
de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás (Goiás, Brasil).
tadeuarrais@ibest.com.br

Notas
(1) Para uma discussão aprofundada sobre o espaço intra-urbano, consultar Villaça (1998).

(2) A oferta de emprego em uma determinada região também interfere na dinâmica do mercado
imobiliário, seja por meio da valorização do mercado de locação, especialmente nas áreas
onde existe concentração de serviços, seja por meio da oferta de novas áreas residenciais. 89
A proximidade de certas regiões de Goiânia, por exemplo, pode determinar o valor de
comercialização dos lotes, especialmente quando estes atendem à demanda solvável da
capital.

(3) A definição de ator de Markusen (2005, p. 58) parece bem útil: “Defino atores como institui-
ções que funcionam como agentes decisórios, empreendedores que decidem estabelecer
ou criar firmas em determinados locais e trabalhadores que tomam a decisão de migrar.
(...) Outros atores são, também, importantes – entidades de caráter não lucrativo, coopera-
tivas, grupos comunitários, associações profissionais, organizações religiosas, indivíduos e,
acima de tudo, o Estado”.

(4) A determinação de políticas para correção, na escala nacional, dos “desníveis regionais”,
foi acompanhada do aprimoramento das teorias regionais. Sobre esse assunto, consultar
Andrade (1987).

(5) O interesse pelo estudo das cidades médias, em diferentes perspectivas metodológicas,
aumentou bastante nos últimos anos. Um bom exemplo do potencial desses estudos é en-
contrado em Spósito, Spósito e Sobarzo (2006).

(6) A chamada Terceira Itália, localizada no nordeste e norte daquele país, é tida como uma
das regiões mais prósperas da Itália. O que chama a atenção dos estudiosos é o fato de es-
sa região, considerada deprimida até o segundo quartel do século XX, ter conseguido ala-
vancar-se via modernização dos setores tradicionais como vestuário (confecções), móveis,
calçados, curtumes, tecidos, entre outros, organizados por pequenas e médias empresas
familiares, com estrutura flexível e cooperação setorial, via, por exemplo, consórcios para
pesquisa e qualificação de mão-de-obra.

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tadeu alencar arrais

(7) Na verdade, os referidos autores relacionam esse processo a um novo regionalismo, algo
que, considerando as características do regionalismo, especialmente em relação ao Estado
nacional, também não encontra evidências facilmente empiricizáveis. “A partir da década
de 1970, no entanto, um novo regionalismo começou a emergir e se sobrepor firmemente
a este regionalismo devolutivo mais antigo. O novo regionalismo não é tanto um efeito
de iniciativas emanadas do governo central, mas uma resposta direta a tensões e pressões
movidos pela emergência da cidade-região como ator importante na economia mundial”.
Ver Scott et all (2001, p. 18).

(8) Algumas políticas regionais contemporâneas partem da idéia de que é necessário construir
coesões para lidar com os mais variados problemas. Uma boa reflexão sobre essas políti-
cas em diferentes regiões brasileiras é encontrada em Cruz (2005) e Araújo (2000).

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Institute.

Recebido em maio/2008
Aprovado em ago/2008

cadernos metrópole 20 pp. 81-91 20 sem. 2008


Parámetros de gobernabilidad
territorial metropolitana
Rui Florentino

Resumen Abstract
En el marco del objetivo de ordenación terri- Considering the main goals of spatial planning,
torial, el concepto de gobernabilidad se viene the concept of governability has become a
destacando como el elemento de soporte y critical element for institutional balance and
equilibrio institucional para lograr “políticas support, in order to promote “sustainable
sostenibles”, que cumplan los requisitos de policies” that will result in environmental,
mejora medioambiental, social y económica, a social and economic improvements in the long
largo plazo. Pero ¿en que consiste esta nueva term. However, what are the main concepts
“modalidad de gobierno”? ¿Qué parámetros underlying this new form of government?
pueden delimitar la gobernabilidad del terri- What parameters can define spatial
torio, en particular de las grandes aglomera- governability, particularly in large metropolitan
ciones metropolitanas, que mezclan distintos agglomerations, which mix different levels
niveles de decisión? El presente texto es una of decision? This paper is a contribution to
contribución para discutir estos temas y propo- the discussion of these issues, and proposes
ne seis líneas de actuación – mejorar el gobier- six lines of action – improvement in the
no y la ordenación de regiones metropolitanas governability and management of metropolitan
es trabajar sobre los retos de competencias y regions means working on the trends of the
marco jurídico, de recursos humanos, económi- legal aspects, of technological, economic and
cos y tecnológicos, de democracia y liderazgo, human resources, leadership and democracy,
de participación y capital social, de estrategia social capital and public participation, spatial
terri­torial y de colaboración para la implanta- strategy and cooperation in the development
ción de proyectos. of urban projects.
Palabras clave: gobernabilidad territorial; Keywords: spatial governability; metropolitan
gobernabilidad metropolitana; región metropo- governability; metropolitan region; spatial
litana; estrategia territorial; ordenación territo- strategy; spatial planning; metropolitan
rial; planeamiento metropolitano. planning.

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rui florentino

Introducción porque­ condiciona estos procesos al marco


de un gobierno municipal enraizado (Mar-
tins, 1985). Apretadas entre la administra-
Para entender la posible gobernabilidad te- ción central y los municipios, el problema
rritorial de una región metropolitana, es de las entidades metropolitanas es que no
útil considerar primero una perspectiva llegan a conseguir una plena legitimidad en
general, con bases históricas y geográficas, la definición de las prioridades estratégicas
que parecen indispensables para observar de las regiones. Mismo cuando no superadas
detalladamente la organización institucional por las decisiones ministeriales de inversión
de estos territorios. En concreto en Euro- en grandes infra-estructuras de transporte
pa, marcando el contexto de esta reflexión, (puentes, autopistas, aeropuertos), la ausen-
de acuerdo con sus tradiciones históricas y cia de competencias exclusivas en el planea-
culturales, se reconocen diferentes modelos miento hace inevitable los conflictos (incluso
de organización administrativa del Estado, la oposición) con las autoridades locales y
que se caracterizan por familias de relativa entonces se pierde la dimensión estratégica
proximidad. Desde una tradición más liberal pretendida a escala metropolitana, a favor
y descentralizadora en el Reino Unido, has- de compromisos negociados, tal vez con un
ta la familia “Napoleónica” que se extiende mayor contenido político que técnico.
por el Sur (Portugal, España, Francia, Italia Si estudiamos los diferentes casos, ve-
y Grecia), que por el contrario se caracteriza remos que hay bastante relación entre el
94 por una mayor centralidad del poder estatal, contexto y la metodología de planeamiento
presente en las ciudades capitales, muchas de cada región,1 pero también por eso no
pequeñas diferencias se pueden encontrar tiene gran interés discutir en abstracto cual
entre todos los países. será el mejor sistema, porque es el contex-
En este sentido, podemos observar to institucional el que debe indicar los cri-
que las clásicas soluciones de un gobierno terios de referencia para se evaluar el gra-
territorial metropolitano, que se manejan do de validad o eficacia de esa metodología
en la mayoría de los casos, resultan de dos (Etzione, 1968). A confirmar la idea, que
posturas teóricamente antagónicas. Es cier- no hay soluciones óptimas si previamente
to que, por un lado, de manera a coordinar determinadas, están los casos más singu-
estrategias supra-municipales y planes lo- lares del Gran Londres y de la región de
cales, se justifica la creación de una entidad Oresund.
administrativa con competencias generales El estrecho de Oresund a lo largo del
sobre todo el territorio metropolitano, pe- Báltico, en el sentido Norte – Sur, une los
ro por otro, la experiencia más reciente de- países de Dinamarca y Suecia y da el nom-
muestra que procesos de asociación volunta- bre a una “región urbana transnacional”, en
ria entre municipios pueden ser capaces de torno a las ciudades de Copenhagen, Malmö
producir mejores resultados. Mientras que y Lund, que tiene hoy cerca de 2 millones
la primera solución adapta el contexto ins- de habitantes. Por cierto durante siglos el
titucional a la metodología de planeamiento, estrecho ha contribuido para el incremen-
la segunda camina en el sentido contrario, to de las relaciones comerciales de ambos

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parámetros de gobernabilidad territorial metropolitana

países, pero ya en 1991 los gobiernos se que por su lado al Greater London le podrá
han decidido a construir un puente rodo- corresponder París junto a toda la primera
ferroviario entre sus territorios continen- corona de la Región Ile-de-France (7,2 y 6,3
tales, para fortalecer el desarrollo conjunto millones de habitantes respectivamente) (Fi-
de las ciudades y su conexión internacional, gura 1). Lo específico de Londres es que su
ya que el puente permite la accesibilidad di- ámbito geográfico configura en simultáneo
recta al nuevo aeropuerto de Copenhagen. una región y un grande municipio, aunque
A través de esta estrategia común en infra- su carácter es sobretodo metropolitano, ya
estructuras de transportes, los dos países que por cierto la atracción urbana de la capi-
fomentan una política de cooperación am- tal se extiende hacia las regiones vecinas de
pliada a la ordenación territorial de toda South East y East of England, en el sur del
la región, que tantas veces resulta difícil Reino Unido.
dentro de un solo país.2 Del lado danés, las La cooperación para el desarrollo de
reformas de los ámbitos territoriales de la Oresund y la autoridad del Gran Londres
administración pública pueden ser también son casos muy particulares, pero represen-
un ejemplo para otros casos. La extinción tan dos esfuerzos de buena gobernabilidad
de 14 condados dará lugar a solamente 5 territorial. Volviendo a este tema, importa
regiones, bien así como los actuales 273 clarificar de qué hablamos entonces, cuan-
municipios irán bajan a 99 – los de menos do empleamos la idea de un nuevo modo de
de 20 mil habitantes tendrán que unirse gobernar.
a vecinos, siendo esta también una opción La literatura urbanística ha tomado el 95
para los de más de 20 mil. Las regiones concepto de gobernabilidad del campo de las
perderán entonces competencias de plani- ciencias sociales (Kooiman, 1993) y lo ha
ficación, a favor del Estado central y de la definido como un punto de equilibrio para
nueva administración local. la implantación de los objetivos de equidad,
El caso de Londres es también especial, competitividad y sostenibilidad (Fernández
dada la dimensión metropolitana de la en- Güell, 2005).3 Un territorio metropolitano,
tidad de gobierno de la ciudad, el Greater que tiene una elevada complejidad en cuan-
London Authority (GLA), cuyo Presidente to a las necesidades, será pues gobernable
es electo directamente para competencias cuando se mantengan las disfuncionalidades
generales como planeamiento, transportes, bajo control, mientras se producen acciones
medioambiente, seguridad, cultura y salud. colectivas capaces de resolver problemas y
Al contrario de la mayoría de las ciudades abordar el desarrollo, en el sentido de las
europeas, en que la capital es administrati- direcciones deseadas (Lefèvre, 2005). De
vamente un solo municipio, Londres tiene hecho, es la demanda de mayor participa-
33 distritos, que se pueden considerar como ción de los agentes sociales y empresariales
entidades de gestión local. Si lo analizamos (organizaciones no gubernamentales, aso-
en comparación con París, vemos que la po- ciaciones públicas-privadas) la que indica un
blación de los 13 distritos centrales (Inner claro cambio de paradigma en los procesos
London) está próxima del municipio capital de toma de decisión, en consecuencia del au-
(2,8 y 2,2 millones de habitantes), siendo mento del poder de la información.

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rui florentino

Figura 1 – Comparación entre los ámbitos territoriales del Greater London


y de la Region Ile-de-France. Interpretación libre del autor
(los dos planos no están obviamente a la misma escala)

96

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parámetros de gobernabilidad territorial metropolitana

De forma escueta, se puede decir que de la sociedad y los agentes económicos.


esta nueva “modalidad de gobierno” no será­ Entonces desde una idea de Administración
otra que la de gobernar en colaboración rígida, con muchas competencias lógicas y
con la sociedad civil. Según Fernández Güell teóricamente coordinadas entre sí (aunque
(2005), los elementos de gobernabilidad en posiblemente abstractas), pasando por el
el ámbito territorial se agrupan a 3 niveles, concepto de Gestión, cuyo sentido será más
desde una figura geométrica construida en de respuesta a las iniciativas privadas (a tra-
pirámide: en la base los medios, como la tec- vés del planeamiento o la regulación), llega-
nología, los recursos y el capital social, so- mos hoy al campo de la Gobernabilidad, que
portan funciones a desarrollar, los procesos se explica por la mayor o menor capacidad
operativos y las competencias organizativas, de un gobierno para llegar a acuerdos con
que a su vez potencian las condiciones para los ciudadanos y las empresas.
la ejecución de la estrategia de desarrollo, el Los “nuevos principios del urbanismo”
objetivo a cumplir en los procesos de pla- son hoy pues completamente diferentes de
neamiento y proyecto. los que los urbanistas han proclamado en
El cambio de paradigma tiene soporte gran parte del siglo XX. Según François As-
en la evolución de las ciencias políticas y de cher (2001), el desarrollo social y urbano
las culturas de gestión urbanística y metro- presenta un nuevo cuadro de prioridades:
politana. De acuerdo con muchos autores ordenar el territorio es ahora “gobernar
(véanse por ejemplo Hall, 1988 o Harvey, proyectos en contextos de gran incertidum-
1989), la nueva perspectiva de gobernar bre, delimitar objetivos desde los medios 97
una ciudad como se tratara de una empresa que están disponibles, integrar nuevos mo-
supera la importancia de los servicios que los delos de evaluación, adaptar la ciudad a di-
municipios deben proporcionar a los ciuda­ ferentes necesidades, concebir espacios para
danos. Mientras que la dotación de buenas las nuevas funciones, potenciar la diversidad
infra-estructuras, de mantenimiento y de vi- social, readaptar la misión de los poderes
vienda protegida fueron las preo­­cupacio­nes públicos, promover distintas cualidades ur-
después de la Guerra, hoy los gobiernos te- banas y ajustar la democracia a los nuevos
rritoriales están bastante más enfocados en fenómenos urbanos”.
la competitividad económica, en el marke- Después de esta introducción, veamos
ting y en la promoción turística, para vender entonces los parámetros indicados para deli-
la ciudad como un producto. mitar la mayor o menor capacidad de gober-
Desde las ciencias políticas, se confirma nar los territorios metropolitanos. Seis retos
la misma tendencia para el abandono de la se relacionan entre sí, formando un círculo
visión racionalista de la Administración (de de carácter secuencial, que volverá al mismo
tradición cartesiana), hacia posturas más li- punto, después de pasar por los demás (Fi-
berales, que demandan “políticas imperfec- gura 2). Una línea oblicua separa los desafíos
tas”, porque limitadas (Espada, 2007). De más relacionados con el contexto (competen-
un gobierno limitado, no tenemos que es- cias y marco jurídico, recursos y democracia
perar la solución para todos los problemas y liderazgo) de los procesos más metodológi-
territoriales, sino que estimule el pluralismo cos (participación, estrategia y colaboración).

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rui florentino

Figura 2 – Parámetros de gobernabilidad territorial metropolitana


y su relación encadenada

Recursos humanos
económicos y Democracia
tecnológicos y
liderazgo

Competências
y Participación
marco jurídico y
capital social

98

Colaboración para
la implantación de Estrategia
proyectos territorial

Competencias ción de proyectos se fragmentan en estos


casos en diferentes niveles (seguramente no
y marco jurídico menos de 3), desde luego en función de la
organización política del Estado, como he-
El primer parámetro del cual depende la mos visto anteriormente.
gobernabilidad territorial de una región Según el contexto, los poderes de or-
metropolitana tiene que ver con las compe- denación de estos territorios se distribuyen
tencias y el marco jurídico, que son la base por los municipios, las entidades de dimen-
institucional y normativa donde se mueven sión metropolitana, las provincias (estas dos
los procesos operativos de ordenación. Las cuando existen), la región y la administra-
competencias de planeamiento y de aproba- ción central. Pero además de esta jerarquía

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parámetros de gobernabilidad territorial metropolitana

vertical, las competencias se reparten aún con valor jurídico, por la simplificación legal
horizontalmente en sectores concurrentes, en códigos de urbanismo más integrados y
como por ejemplo los de infra-estructuras, objetivos, por una descentralización de com-
transportes, medioambiente, turismo, salud,­ petencias siempre que se justifique y por la
vivienda y educación, que muchas veces pro- mayor demanda de participación cívica en la
ponen objetivos contradictorios entre sí – lo toma de decisiones (Oliveira, 2004).
que a uno favorece, a otro perjudica.
Los principales instrumentos para la
ordenación metropolitana son sin duda los
planes territoriales, que a escala urbana sue-
Recursos humanos,
len tener poder vinculante, de regulación económicos y tecnológicos
sobre los usos y formas admisibles de ocu-
pación del suelo, lo que es común en países Mismo considerando su importancia, mayor
europeos, 4 bien así como la existencia de o menor según los casos, la verdad es que la
planes de escala superior, supra-municipal, definición de competencias y las eventuales
metropolitana y regional, estos de carácter reformas del marco jurídico no son más de
integrado o estratégico, que dan las pautas que un parámetro a condicionar la gober-
para el desarrollo de los recursos y activi- nabilidad territorial de las grandes regiones
dades. Pero el mismo territorio puede ser urbanas. Desde luego se coloca siempre la
aún parcialmente objeto de planes especiales cuestión paralela de que recursos se pueden
de la administración central, necesarios para aplicar en los diferentes niveles e institucio- 99
la protección de paisajes culturales y áreas nes. En este contexto, hablar de recursos
vulnerables o ecológicas, o interesados por no es únicamente colocar el problema en
ejemplo únicamente en uno de los sectores el campo de las finanzas públicas, porque
arriba mencionados, lo que seguramente habrá que mirar igualmente a las dimensio-
complica el acuerdo de prioridades. nes humanas y tecnológicas de los recursos,
En un marco jurídico particularmente que se gestionan en el sentido de mejorar
complejo como el territorial, no solamente la gobernabilidad y la ordenación de estos
por la coordinación que exige, consideran- territorios.
do los varios ámbitos de competencias, sino El capital humano está presente en el
porque tampoco responde al desarrollo de discurso político y oficial, pero la realidad
procesos económicos de las empresas, las es que la inversión en recursos humanos
reformas legales tienden a corregir tardía- queda casi siempre muy por debajo del ni-
mente los problemas diagnosticados, cuando vel necesario, mismo sabiendose de que es
lo que deberían de hacer sería anticiparlos, un elemento crítico para la evolución social
ya que las situaciones que van a aparecer y económica de los territorios. En particular
mañana no serán las mismas de hoy. en la administración pública, lo que dificulta
Algunas de las tendencias comunes en también la mayor capacidad de gobernar es
Europa para solucionar los conflictos de la tradicional inercia en pasar información
competencias en la ordenación del territo- de un departamento a otro. Al revés de un
rio, pasan por el repliegue del planeamiento funcionamiento en vertical, los organismos

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estatales precisan sobretodo de apostar por social y legitimidad política. Según nos con-
el cambio de información en horizontal, es firma Christian Lefèvre (2005), el “sentido
decir, desarrollar los procesos no solamen- de pertenencia ha permanecido en las mu-
te en el ámbito de cada área gubernamental nicipalidades o en unidades de gobierno tra-
pero sobretodo entre distintos sectores. dicional existentes, porque la identidad es
En cualquier caso, recursos técnicos un producto de la historia y el tiempo. En
de coordinación supra-municipal parecen verdad, los ordenamientos metropolitanos,
indispensables, para asegurar la coherencia sean supra-municipales o inter-municipales,
de la estrategia territorial. En ese sentido, son recientes y como tal no pueden tener
el apoyo de instrumentos tecnológicos e una densidad o consistencia histórica simi-
informáticos es una herramienta en la cual lar, como las viejas instituciones políticas.”
la gobernabilidad debe seguir trabajando, Además, los aparatos técnicos y administra-
porque­también ahí se plantean serios retos: tivos descentralizados del Estado no están
la seguridad de la información, el tiempo organizados territorialmente en ámbitos
que es necesario para validarla, la equidad metropolitanos y en algunos casos tampoco
en su acceso, el cruce de datos estadísticos el gobierno regional es elegido democrática-
y mayor­trabajo intergubernamental en red, mente por los ciudadanos.
por poner algunos ejemplos. El voto popular es una condición im-
Sobre los recursos económicos se tra- portante para construir la legitimidad de un
ta un poco de lo mismo, porque para los gobierno metropolitano. Esto se puede ha-
100 ciudadanos lo que importa es reconocer los cer de una forma directa para elección de
efectos, deseablemente positivos, que ha un Presidente, o indirecta, a través del voto
producido la inversión pública y no tanto el para una asamblea, que después designará
hecho de confirmar de que departamento o y pasa a controlar las políticas del órgano
nivel administrativo salió la dotación finan- ejecutivo, como suele ocurrir en la mayoría
ciera. En realidad, para el balance de cos- de los Estados y municipios europeos. Pero
tes y beneficios, si cuentan los resultados de mismo la elección puede no ser suficiente en
los proyectos, como veremos más adelante. términos de legitimidad, si le falta la respon-
La experiencia muestra que los problemas sabilidad de dar cuentas de los resultados de
urbanos y territoriales no se resuelven con la acción de gobierno, que se justifica por su
mucho dinero en cima, al contrario, medidas lado con el aumento de competencias a ese
de gran éxito han resultado de esfuerzos lo- nivel metropolitano, lo que obviamente no
cales sin grandes medios disponibles. será también fácil de conseguir, por la re-
sistencia conservadora de la Administración
Central y de los alcaldes de los distintos mu-
nicipios vecinos.
Democracia y liderazgo Con este vínculo a la construcción de
la democracia metropolitana se completa
Otro de los problemas más relevantes pa- la primera parte de los parámetros de go-
ra la gobernabilidad metropolitana es que bernabilidad territorial, más relacionada
su escala de actuación carece de identidad con el contexto institucional. La formación

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parámetros de gobernabilidad territorial metropolitana

de competencias­ y reformas normativas, el gobierno de los municipios de la región,


apoya­d as por nuevos recursos humanos, dada la proximidad con los ciudadanos, en
económicos y tecnológicos, ofrecen pues particular de la ciudad capital, porque tiene
condiciones para dotar también de legiti- mayor visibilidad política y ofrece buenas
midad política a los arreglos de gobierno condiciones para asumir el liderazgo igual-
metropolitano, sea a través de una elección mente a escala metropolitana, como pasó
directa o indirecta. Esta escala de poder, en Bolonia con el Presidente Walter Vitali.
que será necesaria para lograr la ordena-
ción territorial, promueve entonces nuevos
espacios de liderazgo personal e institucio-
nal, que deseablemente han de trabajar en
Participación
sintonía con la idea de gobernar en alian- y capital social
za, con las organizaciones civiles y econó-
micas de la región. Aún de acuerdo con El capital social de una región o un territo-
Lefèvre (2005), “un líder, sea individual o rio es un concepto relativamente difícil de
colectivo, es alguien­ que puede demostrar determinar, formando una idea original de
que representa el interés general del área los campos disciplinares de la sociología y
metropolitana y tiene los recursos necesa- economía, que apenas se estuvo utilizando
rios, para actuar en ese sentido. Estos re- en la construcción de políticas urbanas y te-
cursos provienen naturalmente de su po- rritoriales. En uno de los textos más refe-
sición, pero también de su capacidad para renciados por la literatura académica en ese 101
complementarlos mediante los recursos de ámbito, Roberto Camagni (2003) define el
otros actores,­ lo que significa tener capa- capital social como “el conjunto de normas
cidad para negociar, relacionarse con otros y valores que rigen la interacción entre las
segmentos de la sociedad, crear vínculos, personas, las instituciones a las cuales están
promover la búsqueda de consenso y, por incorporadas, las redes de relaciones que se
último, proponer un proyecto aceptable pa- establecen entre los diferentes agentes so-
ra la mayoría de las partes interesadas más ciales y la cohesión global de la sociedad. En
relevantes.” resumen, el capital social constituye el ele-
El nombre de Ken Livingstone, Alcalde­ mento aglutinador de toda la sociedad.”
de la Greater London Authority, es con fre- La posible aplicación de este amplio
cuencia comentado como un ejemplo de li- concepto a la gobernabilidad del territorio
derazgo, por su independencia partidaria y se relaciona con el grado de participación
la proximidad que ha conseguido mantener ciudadana e institucional en la definición de
con los ciudadanos, dando cuenta de la efi- políticas, planes y proyectos de ordenación.
cacia de los poderes metropolitanos, delan- Para eso, se reconoce que el instrumento
te de los ministerios centrales, a los que los que reúne mejores condiciones para fo-
habitantes no otorgan la misma confianza mentar la participación activa y conciente
para la solución de problemas urbanos y de los diferentes actores urbanos es segu-
territoriales.5 En algunos casos, puede ser ramente la planificación estratégica de ciu-
también relevante la experiencia anterior en dades, tal y como lo demuestra su práctica

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y metodología­ (Fernández Güell, 1997). Estrategia territorial


Mientras que en la planificación tradicional
la participación de las comunidades y de El planeamiento territorial, entendido como
algunos actores privilegiados se encuentra un instrumento impulsor del capital social y
al margen de su esencia técnica y metodo- de la participación ciudadana, es por eso un
lógica, ya que el plan territorial se preocu- factor importante para mejorar la goberna-
pa en primer lugar en dar respuesta a los bilidad de la región metropolitana. Su obje-
problemas urbanos y medioambientales, tivo es presentar espacialmente una estra-
aunque promueva foros de discusión pú- tegia de desarrollo, que sea aceptada por el
blica en momentos claves del proceso (en conjunto de la sociedad y se pueda manejar
general al inicio y en la propuesta final), la con suficiente flexibilidad. El éxito de esa
planificación estratégica no puede existir sin visión de futuro, que en determinado mo-
la participación comprometida de los ciuda- mento será materializada en un documento
danos y de las empresas. En el límite, son intitulado de plan, depende de algunas ca-
ellos que hacen el plan y sólo con su interés racterísticas, que podemos reunir en cuatro
será posible lograr una buena implantación planos. La estrategia territorial debe ser vo-
de los proyectos, que articulados según la luntaria, inclusiva, continua e pro-activa.
visión de futuro para la región suelen inte- En primer lugar, el planeamiento es
grar los objetivos de desarrollo físico, social deseablemente voluntario, sobretodo el de
y económico, de modo a construir la soste- ámbito supra-municipal, porque con inde-
102 nibilidad de la estrategia territorial. pendencia de los requisitos normativos, debe
La participación pública en la estrategia partir de una conciencia colectiva, tanto del
territorial o metropolitana tiene también su poder político como de las organizaciones
propia metodología, para que sea lo más privadas, de que efectivamente hace falta.
eficaz posible, produciendo los resultados En algunos casos, es mismo el sentimiento
esperados. En ese sentido, la participación de incapacidad de los métodos tradicionales
focalizada por grupos de interés temáticos, de planificación para situar el crecimiento
que permite una mayor profundidad en el económico y social que lleva a propuestas
debate, por la intervención de actores más más innovadoras. Con base en una actitud
o menos homogéneos (organizaciones no claramente voluntaria, las líneas estratégi-
gubernamentales, desarrollo económico, cas son indicativas y se manejan igualmente
etc.), no debe sin embargo dispensar la desde la creatividad, para motivar la unión
promoción simultánea de foros más alarga- de las esferas públicas y privadas, logrando
dos, que posiblemente ofrecen mayor com- objetivos comunes y no excluyentes.
plejidad a los escenarios en análisis. Lo que Precisamente el carácter inclusivo es el
importa considerar es que la participación segundo aspecto de referencia, en una doble
es un proceso de doble sentido, en que los perspectiva, espacial y sectorial. Eso signi-
agentes se informan y aprenden en conjun- fica que la estrategia territorial deberá su-
to, de manera a conseguir acuerdos más in- perar límites administrativos e integrar di-
tegrados (Silva, 2003). ferentes visiones de desarrollo, los retos de

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parámetros de gobernabilidad territorial metropolitana

equidad social, sostenibilidad medioambien- administración pública, en los momentos de


tal y competitividad económica (Fernández inversión. Ya en la fase de implantación de
Güell, 2005). El proceso se configura enton- los proyectos considerados prioritarios, se
ces “como un eficaz nexo de unión entre la verifica pues que los retos de gobernabilidad
planificación económica, social y espacial.” 6 son interrelacionados y no se resuelven de
En este sentido, el planeamiento responde forma aislada, pero sí se pueden ir acotando
mejor a la complejidad fenomenológica que a través de la continua intervención en to-
condiciona la evolución de las metrópolis dos estos parámetros.
contemporáneas, siguiendo incluso el espíri-
tu de los viejos urbanistas, que ya en aquel
momento veían la ventaja de equilibrar co-
Colaboración para
nocimientos de áreas contrastadas, como la
ecología, la sociología, la economía, etc.
la implantación
En tercer lugar, la estrategia territo- de proyectos
rial debe ser también continua en el tiem-
po, porque importa tanto el documento En este último punto, se reúnen las tareas
aprobado como el aprendizaje colectivo para relevantes para la implantación de la es-
llegar a una visión pactada para la región. trategia territorial: el establecimiento de
Para tal, es necesario monitorizar la evo- acuerdos de colaboración pública-privada,
lución del territorio, por ejemplo mediante la interiorización de costes, la evaluación de
observatorios o dispositivos de información impactes y el liderazgo técnico de proyectos 103
integrados, que cubran variables habitual- urbanos. En la lógica de gobernabilidad, los
mente separadas en varios departamentos compromisos son pactados previamente,
estadísticos, como los usos del suelo, los según los recursos destinados para la inver-
transportes, la movilidad del empleo, las di- sión, pero se deben de mantener abiertos a
námicas socio-económicas y los indicadores una posterior negociación, con otras institu-
medioambientales. Se procura así mantener ciones o empresas, interesadas también en
la atención crítica sobre los objetivos fijados el desarrollo de los proyectos. Uno de los
por el plan, facilitando también una poste- desafíos importantes es entonces conseguir
rior revisión de la estrategia territorial. comprometer los agentes privados en la in-
Por último, la estrategia metropolita- versión a medio plazo, procurando asegurar
na o regional debe ser pro-activa, ya que la continuidad de los objetivos perseguidos,
a esta escala la ordenación territorial no se cuando termine el calendario de aplicación
persigue a través de la simple regulación del dinero público.
de las iniciativas privadas. Para aproximar La gestión de los procesos de implan-
la evolución real al escenario de futuro que tación de estrategias territoriales necesita
es procurado, resulta por tanto fundamen- igualmente de la evaluación previa de las
tal tener en cuenta y activar los recursos de posibles externalidades de los proyectos, de
que ese mismo escenario depende, lo que modo a interiorizar costes y beneficios, se-
en muchos casos no se consigue por la falta gún respectivamente los impactes negativos
de acuerdo entre los diferentes niveles de la o positivos esperados en el territorio. Una

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rui florentino

evaluación correcta de las estrategias exige Aportaciones


pues que el balance ecológico pondere en
simultáneo las cuentas medioambientales,
sociales, económicas y fiscales (Fariña y Este texto presenta una reflexión teórica,
otros, 2001): la cuenta medioambiental con que no pretende llegar a conclusiones inme-
el objetivo de se conocer la pegada urbana diatas. Sin embargo, sí nos gustaría termi-
de la intervención, considerando-se los tipos nar con dos aportaciones que creemos de
de energía y materiales utilizados, el consu- valor en relación a nuestro tema. La gober-
mo y también la recuperación de los suelos nabilidad es una evolución conceptual de los
necesarios para el equilibrio del sistema; la términos de administración y gestión, que
cuenta social para saber quién beneficiará refleja la actualidad socio-económica en que
con el proyecto y en que cuantía, revelando vivimos. Tener capacidad para gobernar es
los verdaderos resultados de la operación; equilibrar desafíos, integrar visiones y lide-
la cuenta económica para cerrar el progra- rar procesos en colaboración con la sociedad
ma en la perspectiva monetaria, incluyendo civil, cosa que parece simple pero en reali-
efectos inducidos y no ocultando costes di- dad sabemos que no lo es.
rectos o indirectos, a medio y largo plazo; y Lo que puede resultar innovador de es-
la cuenta fiscal con el sentido de percibir la ta exposición es que las referencias que te-
repercusión del proyecto sobre la inversión nemos de gobernabilidad, en los diferentes
y hacienda pública. campos disciplinares, se deben también de
104 Finalmente, es oportuno mostrar de integrar, porque no basta reformar uno de
nuevo la importancia del liderazgo, también estos parámetros para lograr una mejor go-
en la coordinación técnica para la implanta- bernabilidad. De acuerdo con los casos par-
ción de los proyectos estratégicos. Es obvio ticulares, de las regiones metropolitanas que
que los procesos de decisión se deben sos- puedan estar en análisis, obviamente habrá
tener en la evaluación ponderada de los cri- puntos más fuertes u otros más flojos, pero
terios técnicos, pero nos gustaría reforzar se deben atender en su conjunto. Cualquier
que cuando las propuestas de ordenación de estos seis parámetros parece necesario al
son relegadas para un segundo escenario, sistema, pero también ninguno es suficiente
no estamos a contribuir para la clarificación por si mismo para mejorar la gobernabilidad
de las posibles opciones en análisis. Es ne- territorial de una región metropolitana.
cesario por tanto que los planes y proyec- Por otro lado, la secuencia propuesta
tos territoriales tengan efectivamente una parece tener igualmente alguna lógica. A pe-
visibilidad técnica bien asumida, represen- sar de que se “salten” indiferentemente es-
tada por profesionales con capacidad para tas variables, según el caso concreto, de un
gobernar en colaboración y liderar las di- parámetro del contexto a otro más opera-
ferentes sensibilidades en el ámbito metro- tivo, la cadena sí puede ser útil, ya que por
politano. ejemplo buenas condiciones democráticas y

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parámetros de gobernabilidad territorial metropolitana

de liderazgo favorecen de alguna manera la caso, el sentido que procuramos ofrecer


formación de más capital social y la parti- aquí es que el esfuerzo hecho en cada uno
cipación es también condición fundamental de estos parámetros contribuirá, segura-
para la estrategia territorial. En cualquier mente, para una mayor gobernabilidad.

Rui Florentino
Arquitecto. Professor de Urbanismo da Faculdade de Engenharia da Universidade Católica
Portuguesa (Lisboa, Portugal).
rflorentino@fe.lisboa.ucp.pt

Notas
(1) Investigación que el autor tiene en curso, para los casos de Madrid, Barcelona, Paris y
Lisboa.­

(2) Según Marc Jorgensen (2007), Consejero de Asuntos Internacionales de la ciudad de


Copenhagen,­ “…se puede facturar el equipaje en Suecia y dejar el coche en el aparca-
miento de la estación de tren del lado sueco.”

(3) Según la definición de Jan Kooiman, “una sociedad es gobernable cuando no hay mucha 105
diferencia entre las necesidades (problemas) y las capacidades (soluciones).” Fernández
Güell añade que “la buena gobernabilidad es el resultado de sumar la acción de gobierno,
la involucración de agentes socioeconómicos y la participación ciudadana.”

(4) A excepción del Reino Unido, donde mismo los planes municipales tienen un carácter de
referencia u orientación, más abierto a la posibilidad de negociación.

(5) Livingstone fue el último presidente de la Greater London Council, la anterior entidad me-
tropolitana, que el gobierno Thatcher abolió en 1986. En 2000, en la primera elección
para el GLA, Ken Livingstone ha vuelto a ganar, siendo entonces elegido como indepen-
diente, ya que el Partido Laborista había apoyado otro candidato.

(6) Fernández Güell (2007) se está aquí refiriendo, en concreto, a la metodología de planificación­
estratégica de ciudades.

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Lisboa, Instituto Superior Técnico.

Recebido em maio/2008
Aprovado em ago/2008

cadernos metrópole 20 pp. 93-106 20 sem. 2008


Modelos de ordenamento
em confronto na área metropolitana
de Lisboa: cidade alargada
ou recentragem metropolitana?
Margarida Pereira
Fernando Nunes da Silva

Resumo Abstract
O artigo aborda os modelos de ordenamento This article focuses on the disputing planning
territorial em confronto no processo de metro- models in the metropolization process
polização da região de Lisboa. Um, a partir do occurring in the Lisbon region. One of them,
planeamento municipal, formaliza a cidade alar- within the municipal planning structure,
gada. Outro, concebido à escala regional, apos- embodies the enlarged city. The other one,
ta na cidade compacta. A execução do modelo outlined on a regional scale, rather gambles
extensivo conduziu a uma estrutura de cidade on the compact city model. Implementing the
distendida. Esta ocupação, objecto de críticas, extensive model has led to a stretched-out city.
permanece activa, bem como os factores que This occupation model remains a reference
a induzem, o que justifica as reticências sobre to local authorities as well as the factors
a inversão de tendências com uma expressão that trigger it, justifying doubts on a claimed
que signifique mudança de paradigma. O mo- reversal trend, sizeable enough as to mean a
delo de contenção proposto pressupõe uma change in paradigm. The proposed containment
forte acção voluntarista da Administração e um model is closely associated with unmistakable
envolvimento empenhado dos municípios nessa and engaged action by the Administration, as
estratégia, (ainda) não salvaguardado. Por isso, well as commitment to this strategy by the
identificam-se factores críticos na mudança que municipalities. Therefore, critical factors to
importa controlar para caminhar no sentido da master in the process change are identified in
convergência. the article, in order to achieve convergence.
Palavras-chave: metropolização; cidade alar- Keywords: metropolization; enlarged city;
gada; cidade compacta; planeamento regional; compact city; regional planning; municipal
planeamento municipal; gestão do território. planning; territorial management.

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margarida pereira e fernando nunes da silva

Introdução e nas relações externas. De facto, agora in-


teragem factores e protagonistas com ori-
gem em diversas escalas, da transnacional
Nas duas últimas décadas do século XX, as ci- à local, conferindo incerteza, instabilidade
dades europeias foram afectadas pela emer- e imprevisibilidade às metamorfoses físicas
gência de um novo ciclo urbano, associado e funcionais destes territórios. Na mudança
à mundialização da economia e à afirmação sobrepõem-se processos contraditórios: re-
da sociedade da informação e do conheci- forço da concentração (à escala macro) e da
mento. O modelo centro-periferia da cidade explosão urbana (à escala meso), induzindo
fordista, caracterizado por um processo de a cidade distendida, descontínua, fragmen-
desconcentração de população e actividades tada, sem referências e ambientalmente
menos qualificadas (indústria e terciário ba- predadora. Esta (re)organização urbana in-
nal ligado aos serviços locais), designado de tensifica as disfunções típicas das aglomera-
suburbanização, muito dependente dos eixos ções, confere-lhes outros contornos e coloca
de transporte colectivo, colapsa. O modelo dificuldades acrescidas ao desenho das polí-
emergente é marcado por uma “explosão” ticas urbanas. O contexto de enquadramento
urbana, gerando uma periferia alargada, também é afectado, devido à fragmentação
a partir de uma rede rodoviária densa que do poder político e à visibilidade crescente
confere grande mobilidade ao automóvel. dos grupos económicos transnacionais que,
Os padrões de uso do solo daí resultantes, em permanência, impõem as suas lógicas
108 globalmente de baixas densidades, são agora próprias, fazendo e refazendo a cidade. Nes-
mais complexos, onde convivem áreas habi- te tumultuoso processo de “produção” urba-
tacionais de diferentes tipologias, actividades na, tem vindo a ganhar audição os princípios
diversificadas, muitas qualificadas, que sus- da sustentabilidade urbana, defendidos por
citam a emergência de centralidades perifé- documentos emblemáticos como o Relatório
ricas, gerando movimentos relacionais cada Rogers (1999), as várias orientações da UE
vez mais multidireccionais. Diversos autores sobre cidades sustentáveis – por exemplo
têm abordado esta reconfiguração urbana, Carta de Aalborg (1994), Compromissos de
que associam ao processo de metapolização Aalborg (2004) e Carta de Leipzig (2007) –
(Ascher, 1999, 2005) ou metropolização a Nova Carta de Atenas (2003) do Conselho
(Lacour e Puissant, 1999). Ascher usa o Europeu de Urbanistas. Porém, a sua aplica-
conceito para referenciar o processo de con- ção choca com dinâmicas difíceis de contra-
centração de homens, actividades e capital riar no terreno.
nas aglomerações que albergam várias cen- Tomando como caso de estudo a Área
tenas de milhares de habitantes, fortemen- Metropolitana de Lisboa (AML), o artigo
te integradas na economia mundial. Lacour coloca em evidência as reconfigurações re-
e Puissant enfatizam não só o aumento do centes que têm afectado este território e as
poder de comando da grande cidade sobre duas­ concepções de ordenamento (munici-
um território cada vez mais alargado, mas pais e metropolitana) em confronto, reflec-
também múltiplas recomposições, no plano tindo sobre o seu potencial de convergência
interno (dos conjuntos urbanos envolvidos) prática. Para tal a exposição está organizada

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modelos de ordenamento em confronto na área metropolitana de lisboa

em três pontos: o primeiro retrata os prin- O crescimento urbano associado à in-


cipais sinais de evolução e os factores que dustrialização do pós-guerra processa-se
lhe estão associados; o segundo compara os segundo um modelo monocêntrico, radial,
modelos de ocupação pensados pelos muni- funcionalmente dependente de Lisboa. No
cípios e o modelo regional; o terceiro identi- final dos anos 60, a ocupação suburbana
fica alguns factores críticos para a mudança, tem duas marcas distintas: aglomerados
pois se hoje a defesa da cidade compacta é articulados com os principais eixos radiais
politicamente correcta, os caminhos para a de ligação à cidade-centro; urbanizações e
sua viabilização permanecem com excesso terrenos expectantes (de produção legal e
de obstáculos. ilegal) dispersos pelo território. Na década
seguinte, acontecimentos diversos (início da
recessão industrial carreada pela crise ener-
gética, reforço da expansão urbana ilegal na
As reconfigurações sequência da “liberdade” pós “25 de Abril”,
territoriais na Área regresso de milhares de antigos residentes
Metropolitana de Lisboa: nas ex-Colónias devido à descolonização,
consolidação do poder local democrático
marcos relevantes com competências no ordenamento dos ter-
ritórios municipais) introduzem dados novos
A AML tem um papel hegemónico no sis- na dinâmica territorial. Estas mudanças não
tema urbano nacional. Ocupando cerca de interferem na estrutura do modelo de cres- 109
3% da superfície do território nacional, em cimento metropolitano, mas intensifica-se a
2004 concentrava 2,8 milhões de habitan- ocupação da matriz territorial desenhada: as
tes (26,2% da população do país), desigual- grandes urbanizações legais persistem e as
mente repartidos por 18 municípios das urbanizações ilegais alargam em perímetro
margens direita e esquerda do Tejo, para e densificam-se, estimuladas pela instabi-
além de aí se concentrarem 35% do PIB e lidade política e descoordenação da Admi-
37% do VAB nacionais. nistração. Lisboa-cidade, que nos anos 60
regista uma ligeira perda populacional as-
sociada à terciarização da sua área central,
recupera agora ligeiramente (por razões
O modelo centro-periferia conjunturais decorrentes da fixação de parte
(1960-1980) dos recém-chegados de África). Nos municí-
pios da margem sul do Tejo, e em particular
A cidade metrópole emerge nos anos 50 e nos mais próximos ao mar, intensifica-se a
a sua consolidação prolonga-se até à déca- 2ª residência.
da de 80 (Pereira, 2004). Neste período, a O poder local democrático consagrado
AML regista um acréscimo populacional de na Constituição da República Portuguesa
64,7%, embora com diferenças acentuadas (CRP) (1976) recebe um território onde
entre a margem direita (163,8%) e esquer- os problemas se avolumam. A cidade legal,
da (100,6%). dos núcleos suburbanos e das urbanizações

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isoladas no campo, densos e de tipologias O modelo de cidade


plurifamiliares, apresenta infra-estruturas alargada (com início
incipientes, equipamentos básicos escassos e nos anos 90/em curso)
um espaço urbano pouco qualificado; a cida-
de "clandestina", alimentada pelo mercado
ilegal de solo, é maioritariamente construída De 1980 para 2001 o crescimento da popu-
em baixa/média densidade, com tipologias lação na AML abranda (7,2%) face a igual
unifamiliares, e sem as infra-estruturas mí- período anterior, mas as diferenciações in-
nimas intrínsecas ao estatuto de "urbano". ternas acentuam-se: Lisboa-cidade reduz em
As quantidades de solo envolvidas na urba- 30% os seus residentes e o crescimento da
nização, e o ritmo da sua integração, di- periferia norte (26,9%) supera ligeiramente
ficultam uma correcta infra-estruturação, o da periferia sul (22,2%).
pelos custos inerentes e a incapacidade de Nos anos 90, a discrepância de com-
resposta da Administração em tempo útil. portamentos entre a população residente e
A periferia permanece muito dependente de os alojamentos ajuda a explicar a explosão
Lisboa, onde se concentra o emprego terciá- da mancha urbana: a variação da população
rio, os equipamentos de hierarquia superior, na AML foi de 5%, mas a dos alojamentos
o comércio e os serviços mais especializados atingiu os 22%, sendo o contributo maior
e qualificados. dado pela 2ª residência. Porém, o facto mais
Os anos 80 marcam a transição para relevante foi o acréscimo dos alojamentos
110 o ciclo urbano que se afirmará na década vagos, que ultrapassou os 47% na AML (e
seguinte (Pereira, 2004). A integração de os 60% em Lisboa). Apesar do crescimento
Portugal na U.E. desencadeia a convergência populacional pouco expressivo, a sua reor-
de diversos factores, nomeadamente: exe- ganização interna é relevante: Lisboa perde
cução da rede de infra-estruturas rodoviá- 15% dos seus residentes, absorvidos pela
rias prevista no Plano Director da Região de periferia. As mudanças no modelo funcional
Lisboa (1964) viabilizada pelos fundos co- e espacial também são marcantes: progres-
munitários, reforço do investimento estran- siva ascensão do terciário, queda da indús-
geiro induzido pela abertura das fronteiras, tria pesada, desenvolvimento de indústria
aumento do rendimento das famílias e das ligeira, aparecimento da logística. O sector
facilidades de crédito (privatização da ban- bancário privado sofre uma grande expan-
ca), com reflexos na expansão do consumo são e é em parte responsável pelo desenvol-
de bens duráveis (entre eles a habitação, de vimento do imobiliário (George, 2004).
1ª ou 2ª residência) e de serviços estimulado Da reestruturação económica, com im-
pelo crescimento da massa monetária dispo- pacte na (re)localização das actividades me-
nível. A passagem do modelo rodoviário ra- rece referência
dial para um modelo radioconcêntrico mais
estruturado altera as condições de mobilida- [...] por um lado, a quebra do empre-
de, potencia alterações acentuadas no uso go industrial e a expansão dos serviços,
do solo e multiplica e afasta as frentes de e, por outro lado, a diminuição do em-
urbanização. prego na cidade e os ganhos na coroa

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suburbana, em relação com as trans- tecnológicos­ e de escritórios, centros co-


formações estruturais da economia e merciais nas suas diversas configurações,
da organização do trabalho. (Salgueiro, parques temáticos, campos de golfe).
2001, 58)

Os movimentos­de desconcentração e reloca-


lização de actividades para a periferia deixam
de ser exclusivos da indústria, registando-se Duas visões de
expansões das actividades terciárias (comér- ordenamento
cio e serviços) designadamente pela cons- (inconciliáveis) para o
trução de grandes centros comerciais, cen-
tros de escritórios e parques tecnológicos.
território metropolitano
O poder político e o poder económico per-
manecem em Lisboa-cidade, mas o modelo
monocêntrico vai-se esbatendo. A metrópo-
A perspectiva (egocentrada)
le é marcada pelo alastramento da mancha
dos municípios
urbana, pela fragmentação (física, funcional
e social), e começa a emergir uma estrutura O poder local democrático reforça o seu en-
policêntrica mais equilibrada (ibid.). volvimento na gestão do território, embora
Apesar de Lisboa-cidade continuar a continuando com tutela técnico-administrati-
perder população e actividades, a recen- va central (através de órgãos regionais des- 111
tralização, associada à (re)valorização de concentrados – as Comissões de Coordena-
áreas na cidade consolidada, ganha outra ção de Desenvolvimento Regional – CCDR).
dimensão e diferentes formas (reabilita- Para apoiar a gestão municipal é criada,
ção de sítios antigos, reaproveitamento de em 1982,1 a figura de plano director muni-
áreas sub-u­t i­lizadas ou abandonadas por cipal (PDM), mas o seu carácter facultativo
obsolescência física e funcional). O conges- e a fraca tradição de planeamento justificam
tionamento do tráfego, o imobilismo do a escassa adesão das autarquias à sua ela-
mercado de arrendamento, a hiper-inflação boração. Algumas autarquias recorrem a
do imobiliário são tendências pesadas que planos de urbanização ainda do regime au-
inibem mudanças estruturais para a sua (re) toritário ou entretanto lançados e a estudos
qualificação e para a sua afirmação externa de reconversão urbanística para as áreas de
como centro da Região Metropolitana. urbanização ilegal para apoiar a gestão ur-
Nas novas periferias, sobressai uma banística. Mas a maior parte da gestão do
“organização caótica” (Pereira, 2004), pela território, embora carecendo sempre do
coexistência de realidades distintas: áreas aval da entidade regional (CCR), decorre de
habitacionais desqualificadas, com standards­ decisões avulsas e casuística. Este modo de
urbanísticos e de habitação muito abaixo aprovação das urbanizações da iniciativa dos
do aceitável; produtos imobiliários de ele- particulares favorece a dispersão das áreas
vado standing e por vezes inovadores (con- urbanas, ainda muito dependentes da ofer-
domínios habitacionais privados, parques­ ta de transporte colectivo, dada a deficiente

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rede viária de grande capacidade e a reduzi- •interesse colateral sobre o espaço rural
da taxa de motorização. e manifesta dificuldade em interpretar e or-
A integração de Portugal na UE obriga à denar as dinâmicas que afectam as franjas
definição em plano eficaz dos investimentos urbanas;
candidatáveis a financiamento comunitário.
• admissibilidade de construção em espaço
Este facto leva à revisão2 do enquadramento­
rural (áreas agrícolas, florestais, agro-flores-
legal do PDM, aligeirando o seu conteúdo
tais, ...), de vários usos (habitação, indústria,
e processo de elaboração, mas tornando-o
equipamentos, turismo, ...), referenciados a
obrigatório. Em consequência, durante os
uma dimensão mínima da parcela;
anos 90, todo o território metropolitano fi-
ca coberto com orientações de ordenamento • os planos posteriores a 1995 tendem

a partir da escala municipal. ainda a integrar nos perímetros urbanos as


Nos modelos territoriais então propos- áreas urbanas de génese ilegal (AUGIs);3
tos identificam-se um conjunto de tendên- • definição relativamente coerente e deta-
cias comuns: lhada das grandes redes de infra-estruturas
•áreas urbanizáveis de grandes dimen- e de equipamentos;
sões, suportadas em perspectivas de cres-
• as áreas agrícolas, florestais e agro-flo-
cimento que já não seriam expectáveis
restais tendem a decalcar os usos existentes,
ocorrer;
sem preocupações da sua valorização en-
• diminuta atenção dada à cidade existente; quanto espaços de produção.
112

Tabela 1 – Classes de uso do solo dos PDM da AML em área e percentagem

Classes de uso do solo PMOT Área total (ha) Área total (%)
Equipamentos metropolitanos e infraestruturas 11542,7 4,1
Estrutura verde agrícola 75719,7 26,6
Estrutura verde agro-florestal 24455,3 8,6
Estrutura verde florestal 42507,8 14,9
Estrutura verde indústria-extractiva 1046,3 0,4
Estrutura verde zona única 64281,8 22,6
Urbano consolidado 29578,3 10,4
Urbano industrial 7892,4 2,8
Urbano livre 3649,3 1,3
Urbano não consolidado 21323,0 7,5
Urbano recreio e lazer 1250,2 0,4
Por classificar* 27307,5 9,6
Total 310554,17 100
* Corresponde principalmente à rede viária principal
Fonte: DGOTDU, vários anos.

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A Figura 1 representa o modelo de intervir na cidade consolidada conduzem à


ocupa­ção territorial da AML, a partir da jus- sua progressiva degradação física e conse-
taposição das propostas de ordenamento de quente desqualificação, o que motiva a saída
todos os Planos Directores Municipais, cuja de muitos residentes (ou a não fixação de
classificação do uso do solo foi compatibili- outros).
zada. A leitura da carta é bem elucidativa da Nas áreas rurais (agrícolas, florestais,
fragmentação urbana, aqui marcada por de- agro-florestais), a construção isolada (pa-
feito, já que aí não estão assinalados os usos ra usos diversos) é admitida quase sem-
urbanos que poderão surgir em espaço rural. pre, apenas condicionada a uma dimensão
Outro resultado deste exercício é a do- mínima­ das parcelas e às restrições à cons-
minância dos espaços não urbanos em to- trução impostas pelas servidões de utilidade
do o espaço metropolitano, com destaque pública. Também podem ocorrer ocupações
para os agrícolas (26,6%), agro-florestais para fins turísticos, aproveitando as prerro-
(8,6%) e florestais (14,9%), que no con- gativas dadas pela legislação específica (em-
junto representam mais de metade da área bora seja comum tratar-se de subterfúgios
total. O urbano consolidado corresponde a para concretizar urbanizações fora dos perí-
10,4% da área total, sendo que o urbano metros urbanos, convertendo-se a posterio-
não consolidado representa 7,5%, o que ri em condomínios fechados para primeira
não deixa de ser significativo no que esta ou segunda residência). Isto é, a par da dis-
dimensão (quase idêntica à dos espaços con- persão da urbanização nos perímetros urba-
solidados, quando a população cresceu mui- nos, a ocupação difusa também acontece no 113
to pouco) traduz de uma ocupação extensiva espaço rural.
do território. Note-se ainda que uma boa Esta filosofia de organização territorial
parte do que é classificado como “estrutura enquadra formas de gestão já praticadas.
verde agro-florestal” inclui áreas de foros Cada município pretende concentrar no seu
com edificação dispersa, o que não é mais território as tendências da dinâmica metro-
que uma morfologia urbanística característi- politana, sendo pouco frequente a concer-
ca dos espaços peri-urbanos. tação de soluções inter-municipais, mesmo
O sobredimensionamento das áreas nos territórios de fronteira. O investimento
de expansão é justificado pela incapacidade público central na rede rodoviária de gran-
da Administração controlar a iniciativa da de capacidade, sem preocupações sobre os
sua execução, dependente dos detentores impactes territoriais induzidos, estimula o
da propriedade, assegurando uma oferta afastamento e pulverização das frentes de
superior à procura, para evitar efeitos mo- urbanização.
nopolistas e a fuga de oportunidades não Os modelos de ordenamento en-
previstas. O processo de urbanização4 per- fermam de vários vícios, mas a situação
manece agarrado ao cadastro da proprie- agrava-se na gestão do plano. De facto, a
dade e às iniciativas dos particulares (e dos execução dos planos é ainda uma intenção
seus objectivos, meios, timing, estratégias), sem consequên­cias, a julgar pela sua pouca
dada a ausência do princípio de programa- credibilização e pelo raro envolvimento dos
ção. A escassez de objectivos e acções para promotores de forma aberta e transparente­

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Figura 1 – Classes de uso do solo dos PDM compatibilizadas para a AML

114

urbano consolidado urbano livre


equipamentos metrop. e infraestruturas estrutura verde zona única
urbano recreio e lazer estrutura verde florestal
urbano industrial estrutura verde agro-florestal
urbano não consolidado estrutura verde agrícola
estrutura verde indústria-extractiva por classificar

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(Antunes, F. Rocha, 2006). A gestão não tem A visão top down


sentido estratégico, estando reduzida a uma da entidade regional
atitude burocrática de controlo de usos e ín-
dices urbanísticos (densidades, cérceas, áreas
de construção e de implantação, áreas de ce- O Plano Director da Região de Lisboa
dência para equipamentos colectivos, ...). (PDRL), o primeiro plano regional, concluí­
do em 1964, preconiza um modelo que
aposta na concentração urbana, quer pelo
A atitude “nim”5 reforço da aglomeração de Lisboa (consti-
da entidade metropolitana tuída pela cidade e cinco aglomerados con-
tíguos), quer pela estruturação do cresci-
A visão egocêntrica dos municípios não é mento suburbano (expansão contida dos
contrariada pela entidade metropolitana. núcleos existentes na periferia, ignorando
Em 19916 surgem as áreas metropo- grandes manchas dispersas de urbanização
litanas de Lisboa e do Porto, como asso- ilegal). A sua não aprovação inviabiliza a
ciações de municípios de carácter especial concretização das infra-estruturas estru-
(obrigatórias). Estas entidades revelaram turantes do desenvolvimento previsível e a
total inoperância no seu funcionamento, elaboração dos planos de urbanização, para
como Pereira e Silva (2001) o demonstram particularizar à escala local as orientações
para a AML. A Junta Metropolitana (órgão regionais. Embora numa outra conjuntura,
executiva, constituído pelos Presidentes de importa reter para futuras comparações 115
todas as Câmaras Municipais aí integradas), duas ideias-chave: o conceito de concentra-
sempre aludiu falta de legitimidade políti- ção urbana prevalecente na estruturação
ca para justificar a não tomada de posição metropolitana; o “esquecimento” de impor-
sobre os projectos estratégicos para a área tantes dinâmicas no terreno, que não são
metropolitana; o Conselho Metropolitano enquadradas nem travadas.
(órgão de coordenação entre as políticas De facto, a maior parte das infra-estru-
sectoriais nacionais e as políticas munici- turas viárias estruturantes só serão concre-
pais), nunca desempenhou as suas funções, tizadas com os fundos comunitários (mais
porque subestimado pelos departamentos de ¼ de século depois!). Todavia este plano
centrais. Nem a coordenação do nível mu- tem constituído um “guião” para a Adminis-
nicipal foi salvaguardada, aqui por falta de tração Central ir “controlando” a actuação
empenhamento dos municípios envolvidos, dos municípios.
ciosos do seu protagonismo local. Nos anos 80, a CCRLVT promove a
A alteração introduzida à lei das áreas elaboração do plano regional de ordena-
metropolitanas, em 2003,7 persistiu num mento do território da área metropolitana
modelo baseado na associação dos municí- (PROT-AML), cujo processo se arrastará
pios (agora voluntária) e nem o reforço de por mais de uma década (Tomás, 2002). Só
competências trouxe alterações ao modo em 2002 a AML tem aprovado um plano, 8
funcionamento, persistindo a ausência de de natureza estratégica, para o território
posições sobre o território metropolitano. metropolitano. Enquadrado pelos princípios

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definidos na Lei de Bases do Ordenamento Assim, aponta como prioridades funda-


do Território e Urbanismo (LBOTU)9 e nos mentais:
Instrumentos de Gestão Territorial (IGT),10 • a sustentabilidade ambiental, onde se

a proposta do PROT aposta em “Estruturar destaca a (re)valorização e a revitalização


e qualificar a área metropolitana (...) em do meio rural como elemento do equilíbrio
contraponto com o urbanismo expansivo e metropolitano;
depredador de recursos que caracterizou • o reordenamento metropolitano, através

a Região nos últimos 30 anos” (CCDRLVT, da contenção de expansão urbana e de um


2004, p. 9). modelo de estrutura metropolitana;
Face às múltiplas disfunções no terre- • a coesão sócio-territorial;

no, marcadas por um urbanismo expansivo • a organização do sistema metropolitano

e desorganizado e problemas ambientais de transportes e da logística.


graves, e à pressão sobre ecossistemas frá- A estratégia territorial visa quatro ob-
geis (orla costeira, estuários, rede hidro- jectivos específicos:
gráfica), o PROT adopta a sustentabilidade • recentrar a área metropolitana no Estuá­
como o conceito de base para ancorar a filo- rio do Tejo, salvaguardando os valores natu-
sofia do plano. rais e as áreas protegidas;

116
Figura 2 – Esquema do modelo territorial para a AML (PROT-AML)

ACÇÕES URBANÍSTICAS CENTROS / PÓLOS

área urbana central a revitalizar centro de 1º nível


área urbana a articular e/ou qualificar centro de nível sub-regional
área urbana a estabilizar pólo industrial e logístico
área urbana crítica a conter e qualificar pólo de investigação e desenvolvimento
área urbana a estruturar e ordenar pólo de internacionalização econômica e/ou cultural
área de dispersão urbana a controlar pólo de valência turística e ambiental
área urbana periférica a estruturar pólo de equip. e serviços de nível sub-regional
área turística a estruturar e qualificar pólo de equip. e serviços de nível sub-regional
área logística a estruturar e ordenar centralidade em eixo ou multipolar

ÁREAS A ESTABILIZAR FLUXOS/LIGAÇÕES A REFORÇAR OU FOMENTAR


principal externa
área agrícola
secundária externa
área agro-florestal principal interna
área florestal secundária interna
área natural principal do Centro da AML

SISTEMA ECOLÓGICO METROPOLITANO aeroporto internacional existente

novo aeroporto internacional


áreas estruturantes primárias
porto
ligações/corredores estruturantes primários

limite da AML
0 2 4 6 8 km

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• desenvolver a “Grande Lisboa”, cidade • qualificar


urbanística e paisagisticamente
das duas margens, ancorada na cidade de as áreas urbanas centrais, assegurando-lhes
Lisboa; um papel na prestação de bens e serviços;
• policentrar a região; • definir mecanismos de reforço da ima-

• valorizar a diversidade territorial, corri- gem própria dos aglomerados rurais;


gindo desequilíbrios existentes. • promover a contenção da edificação dis-

A estrutura do modelo territorial (Fi- persa e do parcelamento da propriedade em


gura 2) alicerça-se na filosofia de cidade meio não urbano.
compacta, recentragem no núcleo central Ora, é inequívoco que estes princípios
(agora alargado à margem esquerda do são efectivamente o contrário do que até
Tejo, com a integração de Almada, Seixal e agora tem sido praticado.
Barreiro), contenção das áreas urbanas pe- A aprovação do PROT não teve efeitos
riféricas, restrições à dispersão e valoriza- imediatos ao nível municipal. O preâmbulo
ção e salvaguarda dos corredores ecológicos do diploma que aprova o plano regional re-
e das áreas­ agrícolas, florestais e naturais. fere que
São identificadas áreas homogéneas, para as
quais são dadas orientações sempre no sen- [...] são genericamente incompatíveis
tido da “contenção”, “requalificação”, “reva- com o PROT-AML as seguintes disposi-
lorização”, estando ausente o termo “expan- ções constantes de plano municipal de
são”. As redes de transporte são orientadas ordenamento do território: a) a classi-
para a consolidação de um sistema radiocon- ficação como solo urbanizável (destina- 117
cêntrico (Nunes da Silva, F.; Gaivoto, C.; Lo- do a fins urbanos, industriais ou equi-
pes, V., 2002). Ao nível ambiental, sobres- pamento) de áreas inseridas na rede
saem as propostas da estrutura metropoli- ecológica metropolitana (...), ou seja,
nas áreas estruturantes primárias ou
tana de protecção e valorização ambiental,
secundárias, nos corredores e nas áreas
incluindo a rede ecológica metropolitana, a
vitais; b) as que admitam ocupação, uso
rede ecológica secundária e as áreas vitais
e transformação do solo não consentâ-
(Bettencourt,­H. , 2002).
nea com as indicações do PROT-AML
A operacionalização do PROT passa
nas áreas integradas na estrutura me-
pela integração das suas orientações nos
tropolitana de protecção e valorização
PDM, já que compete a estes o estabele-
ambiental, incluindo a rede ecológica
cimento de um regime de ocupação e de
metropolitana e as áreas a estabilizar
uso do solo. Daí a importância das normas
(agrícolas, agro-florestais, florestais e
específicas para enquadrar os IGT a elabo- naturais).
rar ou a rever. Entre as orientações para
os instrumentos de planeamento municipal Tal incompatibilidade
sublinha-se:
• promover a urbanização programada; [...] implica a necessidade de alterar
• definir limites coerentes e estáveis para (...) as disposições manifestamente in-
os espaços urbanos; compatíveis dos planos municipais de

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ordenamento do território quando estas Mas os municípios não optam pela revi-
contrariem os objectivos visados com as são dos PDM em vigor, apesar de propostas
normas do PROT-AML que motivaram aí contempladas contrariarem/inviabilizarem
a situação de incompatibilidade. Quando orientações consagradas no plano regional,
a alteração referida no número anterior nomeadamente no que se refere aos cor-
não possa dispensar uma reavaliação redores ecológicos, espaços verdes vitais
global das propostas de ocupação e uso e áreas­ de maior sensibilidade ambiental.
do solo no âmbito de uma acção de pla- Aliás,­é precisamente para esses espaços que
neamento ou quando não seja possível
se tem dirigido o apetite de grandes grupos
determinar com segurança, por razões
financeiros e promotores imobiliários, ten-
de escala ou pela natureza das disposi-
do conseguido a aprovação de verdadeiras
ções em causa, o alcance ou a própria
“mini-cidades” sob a cobertura de empre-
existência da incompatibilidade, deve a
endimentos turísticos, algumas vezes exi-
reavaliação necessária processar-se em
bindo mesmo a chancela ecológica dada por
procedimento próprio de elaboração,
algumas organizações ambientalistas que,
alteração ou revisão de plano municipal
sob o pretexto da necessidade de assegurar
de ordenamento do território.
sustentabilidade­ ao empreendimento, aca-
Para dar cumprimentos ao determina- bam por aceitar o trade off entre as restri-
do na Lei,11 o PROT identifica as incompati- ções ambientais e os benefícios económicos
bilidades dos PMOT com a estrutura regio- que se possam obter. Assim, surgem algu-
118 mas situações de difícil ultrapassagem for-
nal do sistema urbano das redes, das infra-
estruturas e dos equipamentos de interesse mal, já que no actual quadro legal o PROT
regional. (de natureza estratégica) apenas vincula os
municípios e não os particulares (por exem-
Detectaram-se mais de uma centena plo: um particular desencadeia a urbanização
de incompatibilidades, particularmente da sua propriedade, em conformidade com
com a Rede Ecológica Metropolitana as orientações do PDM, mas esta aprovação
(...), embora só em 13 casos (...) es- contraria as orientações regionais, a que a
sas incompatibilidades obrigam a revi- autarquia está vinculada).
sões significativas dos PDM. (Ferreira, A ambiguidade destas situações justifi-
2002, p. 40) cou um despacho12 do Ministro do Ambiente
Ordenamento do Território e Desenvolvi-
Assim
mento Regional, determinando:
(...) as incompatibilidades de alcance a adopção das disposições contidas no

significativo obrigam a alterações dos PROT-AML como quadro orientador do


PDMs, através de fortes reduções de exercício de todas as competências;
edificabilidade, de permutas de direitos • a elaboração, alteração ou revisão de
de construção ou, quando juridicamente PMOT devem assegurar a conformidade do
consolidados, a indenizações. (Ibid.) plano com o PROT-AML;

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• os procedimentos conducentes à alte- Para atingir tal objectivo defende-se na in-


ração dos PMOT (embora ainda não inicia- tervenção territorial
da), para garantir que os mesmos passem
a estar em conformidade com o disposto no [...] o princípio da integração dinâmi-
PROT-AML. ca da região no contexto internacional,
A partir de então, a CCDR tem promo- ibérico e nacional (...), o princípio da
vido processos de negociação tendo em vista eficiência e sustentabilidade ambiental
a concertação de soluções que viabilizam as (...) e o princípio da requalificação e
orientações do PROT (em particular as asso- revitalização do território, do patrimó-
ciadas à viabilização dos corredores ecológi- nio habitacional e patrimonial, assegu-
cos) (Carmo, 2006). rando a coerência territorial, controlan-
Mais recentemente (2007) o documen- do o uso extensivo do solo, apoiando
to “Lisboa 2020 – Uma Estratégia de Lisboa uma renovação de funções e formas de
para a Região de Lisboa”, integra nos pro- apropriação da terra e, sobretudo, con-
jectos estruturantes ou estratégicos (defini- jugando tradição e modernidade no uso
dos como da cidade. (CCDRLVT, 2007, p. 102)

[...] projectos susceptíveis de provoca-


rem rupturas com a situação existente
e as tendências de desenvolvimento
“instaladas”, conduzindo as mudanças
Factores críticos
119
no sentido da construção do modelo para a mudança
de território desejado, “plasmado” na
visão (...) As situações descritas sobre as orientações
de planeamento elaboradas ao nível da área
proposta no PROT (CCDRLVT, 2007, metropolitana (PROTAML) ou a partir dos
p. 109), a “Articulação dos Instrumentos objectivos definidos em cada município
Muni­c ipais de Gestão Territorial com o (PDM) são inequívocas quanto ao seu an-
PROT-AML­” (ibid., p. 111). tagonismo. No terreno temos implantado
Na visão para a próxima década – “Lis- um modelo urbano em extensão (activo),
boa Euro-Região Singular” – impõe-se inter- enquanto os sinais de degradação das áreas­
ferir de forma decisiva na dinâmica territo- consolidadas (com particular dimensão em
rial, defendendo um novo modelo territorial Lisboa) persistem e acentuam-se diaria-
baseado mente, apesar de intervenções pontuais em
sentido inverso (caso da operação de rege-
neração urbana no Parque das Nações, na
[...] nos princípios da cidade compacta
(...) e da polinucleação, afirmando-se sequência da Expo 98, e de algumas acções
como uma região metropolitana polinu- de reabilitação urbana, sempre de dimensão
cleada em substituição do actual mode- exígua e com escasso efeito multiplicador).
lo radiocêntrico e fragmentado. (Ibid., Nos PDM em revisão parecem persis-
p. 101) tir as tendências expansionistas. As práticas

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margarida pereira e fernando nunes da silva

de gestão reactiva, que colocam na iniciativa que tem que ser enquadrado nas soluções
privada grande parte (senão mesmo o exclu- de intervenção (Soares, 2005). Uma atitude
sivo) da expansão territorial, são marcadas voluntarista deve encarar tal circunstância
for falta de objectivos relativos ao interesse como uma oportunidade, já que a cidade
colectivo a defender na organização do ter- policêntrica está lançada e a periferia tem
ritório. ganho autonomia (em emprego, em equi-
Assim sendo, como promover a conver- pamentos, em serviços). Assim, é necessário
gência dos dois modelos? Para tal, defende- apostar em operações de requalificação/col-
se como indispensável contrariar/neutralizar matação dos espaços urbanos da periferia,
algumas das causas determinantes no cresci- ajustadas às especificidades dos diferentes
mento da cidade fragmentada e na expansão tecidos urbanos, embora seja certo que a
urbana difusa: (re)estruturação da cidade alargada difere
• persistência na densificação da rede ro- da gestão da cidade compacta (Portas, Do-
doviária de grande capacidade, em prejuízo mingues e Cabral, 2003).
do investimento nas redes de transporte 3 - Revalorizar a cidade existente.
colectivo; Esta exige uma actuação diversificada, que
• ausência de controlo sobre as mais-valias envolve acções de grande dimensão e com-
fundiárias geradas pelos planos e ainda me- plexidade ou apenas de “acunpultura urba-
nos da sua apropriação (ao menos parcial) na” (Lerner, 2005). Nas primeiras podem
por parte dos poderes públicos; integrar-se operações de regeneração urba-
120 • fraca agilidade e difícil operacionalização na sobre áreas funcionalmente obsoletas e
dos mecanismos para a regeneração da cida- ou abandonadas (por exemplo importantes
de consolidada; troços das frentes ribeirinhas do estuário
• valorização do espaço não urbano/rural do Tejo, antigas áreas industriais ou de ar-
sempre dependente de usos urbanos, sejam mazenamento, equipamentos abandonados
empreendimentos residenciais ou turísticos, ou com localizações desajustadas (quartéis,
seja apenas uma habitação. prisões, ...). São intervenções mais difíceis
Depois, a intervenção municipal deve de “montar”, pela elevado envolvimento fi-
privilegiar três frentes de actuação: esta- nanceiro e escassez de recursos públicos.
bilizar a mancha urbana; (re) estruturar a Mas muitos destes espaços são propriedade
cidade alargada e revalorizar a cidade exis- pública, o que permite a criação de parcerias
tente, caminhando no sentido defendido pe- de diferente natureza (público-privadas, pri-
lo PROT. vadas-privadas), mas onde a Administração
1 - Estabilizar a mancha urbana. Esta tem de garantir a salvaguarda dos interesses
é uma acção fundamental, que passa pela colectivos da cidade/área metropolitana. As
“libertação” da valorização dos espaços não segundas estão associadas à requalificação
urbanos/rurais do licenciamento da constru- e animação das áreas residenciais, actuan-
ção e da urbanização. do sobre o espaço público, o favorecimento
2 - (Re)estruturar a cidade alargada. A da reabilitação do edificado, a facilidade da
matriz de dispersão da urbanização na AML mobilidade, a instalação dos equipamentos
é um dado incontornável (Soares, 2002), colectivos e do comércio de proximidade.

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modelos de ordenamento em confronto na área metropolitana de lisboa

Como se pode constatar ao longo deste líticas sectoriais se têm sempre sobreposto a
texto, o diagnóstico dos problemas da AML uma visão de conjunto, como dos municípios,
está feito, o enquadramento conceptual pa- sempre ciosos de conservarem os seus pode-
ra o seu ordenamento territorial explicitado res territoriais e temendo qualquer raciona-
e as principais propostas de intervenção pa- lidade supra-municipal que lhes retire auto-
ra resolver as suas insuficiências estruturais nomia no licenciamento da urbanização. Só
claramente formuladas e constam já de ins- quando estes dois bloqueios políticos forem
trumentos de gestão territorial aprovados ultrapassados será possível passar dos pla-
pelo governo central. A questão está por nos à sua concretização, criando desse modo
isso na ausência de mecanismos eficazes pa- as condições para que o processo de trans-
ra as levar à prática, o que encontra fortes formação do território da AML seja efecti-
resistências, tanto ao nível da administração vamente conduzido pelos poderes públicos
central do Estado, onde as estratégias e po- segundo objectivos de interesse colectivo.

Margarida Pereira
Licenciatura em Geografia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Doutoramen-
to no ramo de Geografia e Planeamento Regional, especialidade de Planeamento e Gestão
do Território, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Professora Auxiliar com Nomeação Definitiva no Departamento de Geografia e Planeamento 121
Regional da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (Lisboa,
Portugal).
ma.pereira @fcsh.unl.pt

Fernando Nunes da Silva


Licenciado em Engenharia Civil, ramo de Urbanização e Transportes, e Doutoramento no ra-
mos da Engenharia Civil, pelo Instituto Superior Técnico da Universidade Técnica de Lisboa.
Professor Catedrático, no domínio da área científica de Urbanismo e Transportes, no Depar-
tamento de Engenharia Civil e Arquitectura do Instituto Superior Técnico (Lisboa, Portugal).
fnsilva @ist.utl.pt

Notas
(1) Decreto-Lei nº 208/82, de 26 de maio.

(2) Decreto-Lei nº 69/90, de 2 de março

(3) Ao abrigo da Lei nº 91/95, de 2 de setembro (estabelece o regime excepcional para a recon-
versão urbanística das Áreas Urbanas de Génese Ilegal).

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margarida pereira e fernando nunes da silva

(4) No actual quadro legal português, compete à administração local a classificação e quali-
ficação do solo (em rural e urbano), através dos planos municipais de ordenamento do
território, de natureza regulamentar, com a definição de usos e parâmetros urbanísticos.
O processo de urbanização está reservado aos particulares detentores da propriedade que,
respeitando aquelas orientações, promovem o loteamento, a infra-estruturação e a cons-
trução da respectiva propriedade.

(5) Isto é, esta entidade tem adoptado uma atitude de indefinição sobre as decisões estruturan-
tes para a Área Metropolitana de Lisboa, não dizendo não nem sim, já que o seu processo
de constituição compromete uma visão metropolitana e não permite mais do que visões
municipais, poucas vezes convergentes.

(6) Lei nº 44/91, de 2 de agosto.

(7) Lei nº 10/2003, de 13 de maio.

(8) Resolução do Conselho de Ministros nº 68/2002, de 8 de abril.

(9) Lei nº48/98, de 11 de setembro.

(10) Decreto-Lei nº 380/99, de 22 de setembro.

(11) Artº 59 -2º do Decreto-Lei nº 380/99, de 22 de setembro.

(12) Despacho nº 12772/2006 (2ª série) do MAOTDR, de 24 de maio.

122

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Recebido em jun/2008
Aprovado em ago/2008

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Operações urbanas – nova forma
de incorporação imobiliária: o caso
das Operações Urbanas Consorciadas
Faria Lima e Água Espraiada*
Laura Cristina Ribeiro Pessoa
Lucia Maria Machado Bógus

Resumo
O surgimento de localizações para novas ativi- Abstract
dades econômicas, os empreendimentos imo- The emergence of areas for the development
biliários daí decorrentes, as políticas públicas of new economic activities, the real estate
associadas aos novos empreendimentos ou a enterprises that derive from them, the public
ausência delas têm levado ao aumento da den- policies associated with the new enterprises or
sidade e da ocupação de determinadas áreas da their absence, have caused the intensification
cidade de São Paulo, ao mesmo tempo em que of the density and occupation of certain areas
a evasão de algumas atividades econômicas e in the city of São Paulo, while the evasion of
de população ocasionaram o abandono e a de- some economic activities and population have
gradação de outras áreas. led to the abandonment and degradation of
O presente artigo tem como objetivo analisar as other regions.
transformações no espaço urbano e o processo The aim of this paper is to analyze the urban
de valorização imobiliária ocorridos na porção space transformations and the increase in
sudoeste da cidade de São Paulo, a partir dos value of real estate that have been occurring
anos 1990, como conseqüência da implementa- in the Southwestern part of the city of São
ção das Operações Urbanas Faria Lima e Água Paulo since 1990, as consequences of the
Espraiada, identificando os impactos físico-es- implementation of the Faria Lima and Água
paciais e socioeconômicos dessas transforma- Espraiada Urban Operations, and to identify
ções para outras áreas da cidade e, principal- physical and socioeconomic impacts on the
mente, para as áreas do entorno. city.
Palavras-chave: valorização imobiliária; in- Keywords: increased real estate value; urban
tervenção urbana; projetos urbanos; legislação; intervention; urban projects; legislation; shared
operação urbana consorciada; São Paulo. urban operation; São Paulo.

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laura c. r. pessoa e lucia maria machado bógus

As cidades contemporâneas têm passa- observados em uma área da cidade de São


do por constantes mudanças em sua dinâmi- Paulo, em decorrência da implantação das
ca socioespacial, fato que tem promovido a Operações Urbanas Consorciadas Faria Lima
valorização e ampliado o debate das ques- e Água Espraiada. O poder público, em uma
tões urbanas. Como forma de adaptação à ação conjunta com a iniciativa privada, ins-
essas mudanças, as discussões e as ações do tituiu, em 1995, a Lei 11.732 e, em 2001,
urbanismo e do planejamento urbano vêm a Lei 13.260, com o objetivo de reestrutu-
tomando um novo rumo, ganhando relevân- rar um setor da região sudoeste da cidade e
cia crescente e refletindo, como cita Vassalo criar um espaço renovado com mais qualida-
Rosa (1999) de de vida, através do ordenamento territo-
rial e da regulamentação e controle da ação
[...] uma cultura de fluxo constante e do mercado imobiliário.
global da informação, avessa à unifor- Como indica a Cons­t ituição Federal
mização e ao estilo; tornando as suas (art. 182 e 183) e o Es­tatuto da Cidade, a
criações muito mais livres e criativas, legislação urbanística – enquanto instrumen-
abertas a novas formas. to de política urbana – deve sempre­ buscar
a cidadania através da garantia da função
A remodelação urbana tem sido de grande social da cidade e do bem-estar de seus ha-
importância para os urbanistas, desafiando- bitantes. Mas, ao contrário­ dessa orienta-
os a fornecer subsídios para a criação de po- ção, os projetos de renovação urbana estão,
126 líticas públicas mais efetivas e estimulando via de regra, se voltando, cada vez mais, aos
o permanente processo de reconstrução e interesses privados do mercado imobiliário,
criação de novas bases espaciais de produção fundiário e financeiro, atuando, primordial-
através da substituição, renovação e ruptu- mente, em benefício das elites dominantes e
ra das estruturas preexistentes. Além disso, do capital, levando à perda do valor de uso
observa-se a presença, cada vez maior, de da terra, à expulsão da população de baixa
grandes projetos urbanos e de parcerias pú- renda para a periferia e à consolidação de
blico-privadas na promoção da recuperação enclaves sociais.
urbanística e ambiental de áreas importan- Como citado anteriormente, a visão de
tes da cidade. construção, transformação e renovação da
Esses projetos têm como proposta a cidade ou parte dela por meio de projetos
requalificação urbana por meio de um pro- urbanos tem sido bastante aceita e utilizada
cesso social e político de intervenção ter- em todo o mundo. Dentro desse contexto,
ritorial, num conjunto de ações integradas podemos identificar vários exemplos concre-
seguindo a lógica de desenvolvimento urba- tos já implantados que, baseados na realida-
no e visando essencialmente a qualidade de de, nas características, nas necessidades de
vida da população, com a criação de novas cada local e no público a atingir, definiram
centralidades. objetivos, estratégias e feições diferentes,
Nesse contexto, coloca-se o foco princi- de forma a torná-los mais adequados e mais
pal deste texto, que é a análise das mudan- viáveis de serem executados. Alguns exem-
ças urbanas e dos impactos socioespaciais plos podem ser citados: as Docklands­ de

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operações urbanas – nova forma de incoporação imobiliária

Londres e o bairro de Marais em Paris que o perímetro, os objetivos, o programa de in-


tinham como objetivo a criação de novos tervenções e os limites de flexibilidade em
distritos de negócios através da renovação relação aos parâmetros estabelecidos pela
urbana das áreas degradadas; as olimpía- Lei de Zoneamento, ou seja, como será fei-
das de Barcelona, a feira de Baltimore e a ta a concessão de incentivos urbanísticos e a
Expo’98­de Lisboa que, aproveitando a pro- correspondente obtenção de contrapartidas.
moção de eventos internacionais ou espetá- O valor arrecadado nessa outorga onerosa
culos, conseguiram promover a renovação só pode ser usado em melhorias urbanas na
de uma área da cidade. própria região.
No caso de São Paulo, cabe mencionar No cenário da cidade de São Paulo,
as operações urbanas consorciadas, que, de existem cinco operações urbanas consor-
acordo com o Estatuto da Cidade (Lei Fede- ciadas aprovadas e em fase de implantação:
ral n. 10.257, de 10 de julho de 2001, Art. Centro (1991), Água Branca (1995), Faria
32, §1°), são Lima (1995), Água Espraiada (2001) e Rio
Verde-Jacu-Pêssego (2004).
[...] um conjunto de intervenções e me- O texto trata das Operações Urbanas
didas coordenadas pelo Poder Público­ Faria Lima e Água Espraiada, que foram as
Municipal, com a participação dos pro- que se destacaram pela grande contribuição
prietários, moradores, usuários per- no processo de valorização imobiliária que
manentes e investidores privados, com ocorreu na porção sudoeste da cidade de
o objetivo de alcançar em uma área São Paulo a partir dos anos 1990. 127
transformações urbanísticas estrutu- A Operação Urbana Consorciada Fa-
rais, melhorias­ sociais e a valorização ria Lima foi aprovada pela Lei n. 11.732,
ambiental. de 1995, visando, primordialmente, ao
prolongamento­ da Avenida Faria Lima, com
Constituem um instrumento legal de reno- a implantação de infra-estrutura e desa-
vação de espaços predeterminados da cidade propriações necessárias. As intervenções
e/ou ampliação de infra-estruturas urbanas previstas viriam para aliviar a saturação da
por meio de intervenções, tendo em vista a rede viária da região sudoeste do municí-
intensificação do uso e ocupação do solo ur- pio, identificada como uma área nobre da
bano e, para tal, lança mão da parceria entre cidade, o que trouxe alterações profundas
o poder público e a iniciativa privada. Por- nessa porção da cidade de São Paulo, não
tanto, para lograr êxito na consecução dos somente na área em si como também em
objetivos, é preciso definir uma estratégia seu entorno imediato.
capaz de despertar o interesse da iniciativa O perímetro dessa Operação Urbana
privada, para que esta venha, efetivamente, abrange 450 hectares entre a Avenida Fa-
a custear a implantação de obras, melhorias ria Lima e a Marginal Pinheiros, que foi di-
ou equipamentos de interesse público. vidido em quatro subperímetros: Pinheiros,
Cada operação urbana deve ser regula- Faria Lima, Hélio Pelegrino e Olimpíadas.
mentada por lei específica aprovada pelo po- Em 2004, na revisão da lei 11.732/1995,
der legislativo. Através da lei, serão definidos­ foi regulamentado o Certificado de Potencial­

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Adicional de Construção (Cepac). Foi então além da presença da Emurb e da CVM


determinado o estoque de Cepac para ca- na emissão e regulação dos Cepac’s,
da perímetro da Operação Urbana, ou seja, também há a fiscalização do Banco do
qual o potencial que cada região tinha para Brasil e da Caixa Econômica Federal, o
o adicional de construção, estipulando-se, que garante o rigor dos processos de
a partir daí, um valor mínimo por Cepac e definição e arrecadação das contraparti-
uma equivalência em m2 de terreno e m2 das e a sua correta utilização por parte
adicional para determinados usos. da administração municipal.
O Cepac é um título mobiliário rastrea-
do pelo mercado imobiliário, atrelado a uma Também na perspectiva de Paulo
única operação urbana e também aos proje- Sandroni,
tos previstos nela, podendo ser negociado
[...] a criação dos Cepac’s foi um suces-
livremente na Bolsa de Valores. De acordo
so e é exatamente o que proporciona
com a lei da Operação Urbana Faria Lima
o êxito das operações urbanas – ga-
(11.769/2004), a definição do valor míni-
rantem a obtenção das contrapartidas
mo do Cepac e a sua gestão é competência
de forma justa e integral, permitindo
da Empresa Municipal de Urbanização –
a arrecadação­ antecipada dos recursos
Emurb. Esses títulos deverão ser alienados
necessários para a execução das obras
em leilão público, na forma determinada
públicas previstas na lei. Assegura,
pela Emurb ou utilizados para o pagamento principalmente, o controle eficiente da
128 de projetos, desapropriações, gerenciamen- utilização dos recursos obtidos pela ad-
to e obras previstas no Programa de Inves- ministração pública através das opera-
timentos da operação urbana. A emissão ções urbanas.
de Cepac’s é controlada pela Comissão de
Valores Mobiliários­ – CVM. Segundo João E acrescenta ainda que
d’Ávila, sócio e diretor técnico da Empresa
Amaral d’Ávila – Engenharia de Avaliações as operações urbanas são importan-
tes instrumentos de financiamento de
[...] em relação ao modelo anterior obras públicas, devido à possibilidade
de financiamento das obras públicas e que oferecem ao poder público de apro-
às fórmulas anteriores de determina- priar parte das mais valias geradas pe-
ção do potencial de valorização do so- los investimentos privados.
lo e das contrapartidas que deveriam
ser devolvidas à administração pública O “sucesso” da Operação Urbana Fa-
(mais valias), a instituição do Cepac é ria Lima é mais uma vez evidenciado por
extremamente positiva, considerando Montandon­e Souza (2007), quando afirma
ainda que foi o que possibilitou a real que ela
implantação da operação urbana e tem
sido responsável pelo sucesso dela. [...] contabilizou o maior fluxo de recur-
sos dentre todas as operações urbanas
Acrescentou, ainda, que instituídas em São Paulo – entre 1995

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operações urbanas – nova forma de incoporação imobiliária

e 2004 foram obtidos cerca de R$300 viário que possibilitou a ligação da Avenida
milhões provenientes de contrapartida Jornalista Roberto Marinho com a Margi-
financeira, em função da concessão de nal Pinheiros, incluindo nessa intervenção a
potencial adicional de construção. Em construção de uma ponte estaiada, que, con-
relação ao investimento privado, houve forme afirmação do governador José Serra,
ampla adesão de novos empreendimen- “trata-se de uma obra faustosa” que irá be-
tos, notavelmente os de alto padrão e neficiar o transporte público individual.
não residenciais. A Operação Urbana Água Espraiada
abrange um perímetro de 1.426 ha lindeira
A Operação Urbana Consorciada Água ao córrego de mesmo nome, na zona sul de
Espraiada foi aprovada pela Lei 13.260 de São Paulo. Ela foi instituída, como citado em
2001, com um programa de intervenções, parágrafo anterior, com o principal objetivo
segundo a própria lei, que visava de complementar a Avenida Jornalista Ro-
berto Marinho, ou seja, objetivamente, es-
[...] a complementação do sistema sa operação urbana vem dar continuidade à
viá­r io e de transportes, priorizando obra de abertura da Avenida Água Espraiada
o transporte coletivo , a drenagem, a iniciada no governo do prefeito Paulo Ma-
oferta de espaços livres de uso público luf em 1995. Nessa época, havia no local 68
com tratamento paisagístico e o provi- núcleos de favelas lineares com uma popula-
mento de Habitações de Interesse Social ção superior a 50 mil pessoas e também na
para a população moradora em favelas. região; entre a Marginal Pinheiros e a Aveni- 129
(grifo nosso) da Luís Carlos Berrini, ficava a favela Jardim
Edith, formada aproximadamente por três
Para tal, previa, fundamentalmente, a com- mil famílias, num terreno de 68 mil metros
plementação da Avenida Jornalista Roberto quadrados (Fix, 2001). Para a abertura da
Marinho (antiga Água Espraiada) até a Ro- avenida, foi necessária a remoção das popu-
dovia dos Imigrantes, passando pela Mar- lações das favelas existentes, o que ocorreu
ginal Pinheiros; implantação de viadutos de de acordo com os interesses do mercado
acesso e de um complexo viário, com pontes, imobiliário em nome de uma “revitalização
interligando a Avenida Jornalista Roberto do espaço urbano”. As decisões sobre essa
Marinho com as marginais do Rio Pinheiros obra foram impostas pelo governo:
e implantação das vias locais margeando a
Avenida Água Espraiada. [...] um projeto propondo o aumento
As intervenções previstas, seguindo uma da faixa da avenida e o seu prolonga-
ordem de prioridades, serão executadas pa- mento até a Rodovia dos Imigrantes,
ralelamente à venda de Cepac’s, ou seja, eles com quatro pistas expressas e duas
serão lançados e negociados de forma casada locais. Como não se tratava de uma
com a execução das obras previstas na lei. Os operação urbana, não havia o com-
recursos auferidos com a venda do primei- prometimento de manter a população
ro lote de Cepac’s colocado no mercado fo- desapropriada no mesmo perímetro
ram investidos na implantação do complexo e, nesse caso, o governo optou por

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laura c. r. pessoa e lucia maria machado bógus

Figuras 1 e 2 – Incremento populacional por anéis – Município de São Paulo

Fonte: IBGE.
130

Tabela 1 – Incremento populacional por anéis – distritos englobados


pelas OUC Faria Lima e Água Espraiada

Denominação Anel 1991-1995 1996-2000


Jardim Europa interior -78034 -24155
Pinheiros interior -78034 -24155
Brooklin intermediário -99074 -3956
Campo Belo intermediário -99074 -3956
Ibirapuera intermediário -99074 -3956
Itaim intermediário -99074 -3956
Moema intermediário -99074 -3956
Vila Mascote intermediário -99074 -3956
Vila Olímpia intermediário -99074 -3956
Morumbi exterior -82395 109204
Real Parque exterior -82395 109204
Vila Santa Catarina exterior -82395 109204
Chácara Santo Antonio exterior 504916 531446

Fonte: IBGE.

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operações urbanas – nova forma de incoporação imobiliária

construir­ conjuntos habitacionais na e 2000, só houve incremento positivo nos


Cidade Tiradentes, Zona Leste do mu- anéis exterior e periférico: 18,3% e 89,4%,
nicípio. (Fix, 2001) respectivamente.
Dos 13 distritos englobados pelas Ope-
Entretanto, as discussões sobre a im- rações Urbanas Consorciadas Faria Lima e
plantação da Operação Urbana Água Es- Água Espraiada (Tabela 1), dois localizam-se
praiada já existiam, só foram “congeladas” no anel interior, sete no intermediário e três
por uns tempos, com o governo alegando no exterior. Na década de 1990, o incremen-
que a construção da avenida iria funcionar to populacional desses anéis foi negativo,
como uma “alavanca” para a aprovação sendo que o anel intermediário foi mais sig-
dessa operação urbana e que a abertura da nificativo nessa queda de população, sendo
avenida seria mais fácil de ser aprovada, por também o que detém o território com maior
não implicar mudança de zoneamento e por influência das operações urbanas. Essas duas
facilitar a execução das desapropriações e a regiões, apesar de, comprovadamente, esta-
remoção, criando o famoso “fato consuma- rem passando por um processo de verticali-
do” (ibid., p. 96). Na verdade, o prefeito, zação, ou seja, de incremento na densidade
atendendo a seus próprios interesses e aos construtiva, vêm apresentando redução na
interesses de uma classe dominante, decidiu população residente, indicando, provavel-
pela construção da avenida a qualquer custo. mente, que as operações urbanas contribu-
Como em muitas outras situações, es- íram para a mudança no perfil da população
sa ação revelou um processo perverso de residente e para a mudanda de uso. 131
ocupa­ção do espaço, criando “centralidades Sandroni e Biderman (2005), anali-
de ou para elite”, expulsando parte da popu- sando a distribuição de renda na metrópole,
lação de baixa renda para a periferia, onde citam que há um círculo de riqueza aproxi-
o preço do solo e das moradias é menor e o madamente no centro da mancha urbana
custo de vida mais acessível, mas, em con- da RMSP (um pouco deslocado para Oeste)
trapartida, onde há carência de infra-estru- e que a Operação Urbana Consorciada Faria
tura, de equipamentos sociais e de emprego, Lima fica no centro desse círculo de riqueza.
contribuindo para intensificar a demanda Podemos acrescentar, ainda, que também a
por transporte público coletivo. Operação Urbana Consorciada Água Espraia-
Analisando os índices populacionais re- da está inserida nesse círculo. Ou seja, nessas
lativos à década de 1990 (Figuras 1 e 2), regiões concentram-se as classes mais altas e
é possível perceber que o anel periférico do é justamente a área que detém a maior ofer-
município de São Paulo recebeu o maior in- ta de infra-estrutura e de empregos.
cremento de população, ou seja, um aumen- No caso dos lançamentos imobiliários,
to de mais de 1.000.000 habitantes, o que o comportamento foi um pouco diferente
equivale a mais de 130% do total do cres- para o mesmo período, ou seja, de 1991
cimento da população do município. Entre a 2000. Entre os anos de 1991 e 1995,
os anos de 1991 e 1995, esse incremento os lançamentos imobiliários ocorreram de
chegou a representar mais de 260% do to- forma­ mais acentuada nos anéis interme-
tal do município e, entre os anos de 1996 diário e exterior (Figura 3), sendo que os

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Figuras 3 e 4 – Número de lançamentos imobiliários por anéis


Município de São Paulo

Fonte: Embraesp.

132
Figura 5 – Lançamentos imobiliários antes e depois de 1995

Fonte: Embraesp.

cadernos metrópole 20 pp. 125-139 20 sem. 2008


operações urbanas – nova forma de incoporação imobiliária

dois são responsáveis por quase 70% dos Observa-se, também, que antes mesmo
lançamentos nesses cinco anos, enquanto no de a lei da operação urbana ser aprovada
anel periférico se localizaram 14% desses pelo legislativo, ou seja, quando ainda es-
lançamentos. tava em fase de discussão, a região já pas-
Entre os anos de 1996 e 2000 (Figura sava a ser alvo de especulação imobiliária,
4), o maior número de lançamentos aconte- processo que se acentuou com a aprovação.
ceu no anel intermediário seguido pelo anel Ainda é possível verificar que o processo de
exterior, mas houve um pequeno aumen- valorização imobiliária decorrente das inter-
to de lançamentos no anel periférico. Isso venções urbanas extrapolou os limites pre-
mostra que grande parte população de alta vistos na operação consorciada, o que indica
renda, que é o foco de interesse do merca- a necessidade de um olhar atento também
do imobiliário, continuou se instalando na para o entorno imediato da região, sem per-
parte mais central do município, onde, de der de vista que essa parcela da cidade é so-
uma forma mais geral, ocorreram os im- mente parte de um todo e que essas ações
pactos das Operações Urbanas Faria Lima e devem ser vistas como parte de uma estra-
Água Espraiada. Os poucos lançamentos ve- tégia maior de desenvolvimento da cidade.
rificados no anel periférico foram os condo- Segundo Sandroni e Biderman (2005),
mínios horizontais e verticais em forma de
empreendimentos fechados voltados para a [...] na região da Faria Lima houve
classe média/alta, considerados por Caldeira cerca de 15% de valorização no preço
(2000) “enclaves sociais”, que vêm contri- médio do metro quadrado e antigas re- 133
buindo de forma significativa para a segre- sidências unifamiliares de classe média
gação e para a exclusão, fomentando as de- deram lugar a edifícios de apartamento
sigualdades socioespaciais. de classe média alta e também de edifí-
É possível, portanto, identificar uma cios comerciais de alto padrão, levando
continuidade no processo de periferização à elitização.
no município paulista. As taxas de cresci-
mento e de incremento populacionais indi- Criou-se uma nova centralidade que con-
cam os anéis mais externos como destino centra dinheiro e poder e reforça a segre-
da população, em contrapartida, também há gação socioespacial, exercendo, sem dúvida,
indicação de maior concentração da renda um impacto na reestruturação espacial da
nos anéis interior, central e intermediário, cidade.
ou seja, os moradores da periferia, que são A compreensão da dinâmica com que se
a maioria, ainda apresentam níveis de ren- processam essas grandes intervenções urba-
da mais baixos que os residentes nas áreas nas e das modificações estruturais geradas
centrais. As favelas continuam se instalan- por elas é fundamental para a proposição de
do, preferencialmente, na região periférica políticas públicas compatíveis com um de-
do município e os lançamentos imobiliários senvolvimento sustentável da cidade. Além
residenciais, que são direcionados à classe disso, o processo especulativo do mercado
mais alta, têm como alvo as zonas mais va- imobiliário, indiscutivelmente, é determinan-
lorizadas da cidade. te na ocupação do espaço, respondendo de

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forma significativa pela expansão do tecido finiria uma área de abrangência (Figura 5),
urbano. Isso indica que o estudo da atuação constata-se que, dos lançamentos imobi-
dos agentes imobiliários também é impor- liários ocorridos em todo o município en-
tante para a compreensão dessas interven- tre 1985 e 2004, o Morumbi aparece em
ções e, principalmente, para a definição das primeiro lugar, com 741 imóveis, seguido
ações do poder público. por Moema (355), Butantã (292), Jardins
Focalizando a área das duas operações (208), Campo Belo (162), Pinheiros (151),
urbanas e seu entorno imediato, o que de- Itaim (149) e Brooklin (137). No cenário

Tabela 2 – Lançamentos imobiliários

Áreas Antes % Depois % Total


Chácara Flora 1 8.3 11 91.7 12
Alto da Boa Vista 3 11.5 23 88.5 26
Santo Amaro 9 15.8 48 84.2 57
Planalto Paulista 1 20.0 4 80.0 5
Ibirapuera 5 29.4 12 70.6 17
Butantã 92 31.5 200 68.5 292
Jardim Europa 7 33.3 14 66.7 21
Aeroporto 3 33.3 6 66.7 9
134
Alto de Pinheiros 19 38.0 31 62.0 50
Chácara Santo Antonio 21 43.8 27 56.3 48
Água Funda 4 44.4 5 55.6 9
Pinheiros 69 45.7 82 54.3 151
Vila Olímpia 46 46.0 54 54.0 100
Morumbi 342 46.2 399 53.8 741
Vila Nova Conceição 44 46.8 50 53.2 94
Itaim 70 47.0 79 53.0 149
Vila Madalena 51 47.2 57 52.8 108
Brooklin 67 48.9 70 51.1 137
Vila Santa Catarina 21 50.0 21 50.0 42
Sumaré 12 52.2 11 47.8 23
Jabaquara 77 53.1 68 46.9 145
Real Parque 52 53.1 46 46.9 98
Campo Belo 87 53.7 75 46.3 162
Vila Mascote 51 54.3 43 45.7 94
Jardins 116 55.8 92 44.2 208
Moema 219 61.7 136 38.3 355
Jardim Marajoara 72 63.7 41 36.3 113
Total 1.561 47.8 1.705 52.2 3.266

Fonte: Embraesp.

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operações urbanas – nova forma de incoporação imobiliária

Tabela 3 – Áreas com maior número de lançamentos imobiliários entre 1985 e 2004,
por total de imóveis e por total de unidades lançadas

Zonas de valor TT imóveis Zonas de valor TT unidades


Morumbi 741 Morumbi 32.062
Moema 355 Butantã 19.560
Butantã 292 Moema 16.945
Jardins 208 Jardins 9.499
Campo Belo 162 Brooklin 8.647
Pinheiros 151 Pinheiros 8.134
Itaim 149 Jabaquara 7.775
Jabaquara 145 Jardim Marajoara 7.388
Brooklin 137 Itaim 6.260
Jardim Marajoara 113 Vila Olímpia 6.251
Fonte: Embraesp.

geral­ da cidade, dos dez primeiros distri- com o total de unidades lançadas no perío­
tos no ranking de lançamentos, somente do estudado (Tabela 3), é possível perce-
três estão fora da área de abrangência das ber que o Morumbi, o Butantã, Moema e
operações urbanas: Tatuapé, Vila Mariana e Jardins mantêm a mesma posição, ou seja, 135
Santana, apontando para a existência de es- estão entre os quatro primeiros colocados.
peculação imobiliária na área. Já o Brooklin, o Jardim Marajoara e, mais
Fazendo uma comparação entre todos acentuadamente a Vila Olímpia, mudam de
os lançamentos ocorridos nos dez primeiros posição, ou seja, em virtude do maior nú-
anos – 1985 a 1994, ou seja, antes da opera- mero médio de apartamentos por lança-
ção urbana Faria Lima (1.562 lançamentos), mento, eles assumem um lugar à frente no
com os ocorridos entre 1995 e 2004 (1.706 ranking, evidenciando maior verticalização
lançamentos), observa-se que esse número nessas áreas.
praticamente se manteve (Tabela 2). Quando­ Deve ser destacado que os distritos do
são analisadas as áreas separadamente, a Morumbi e Butantã são, territorialmente,
diferença é observada de forma acentuada maiores que Moema, Jardins, Brooklin e Vi-
em alguns pontos da região, como, Chácara la Olímpia, o que indica que, em relação os
Flora, Alto da Boa Vista, Santo Amaro, Ibi- dois primeiros, esses quatro últimos tiveram
rapuera e, principalmente, Butantã. maior densificação construtiva.
Do total de unidades lançadas na re- Uma análise separada das duas décadas,
gião de estudo, mais uma vez, o Morumbi­ de 1985 a 1994 e de 1995 a 2004, tanto
aparece em primeiro lugar, com mais de por empreendimento imobiliário como por
32.000 unidades, seguido por Butantã, unidades lançadas, mostra que o Morumbi,
Moema, Jardins, Brooklin e Pinheiros (Ta- que esteve bastante à frente ao longo dos
bela 3). Comparando o total de imóveis últimos 20 anos, perdeu posição, ou seja, na

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laura c. r. pessoa e lucia maria machado bógus

Tabela 4 – Lançamentos Imobiliários por total de unidades

1985 a 1995 a
Zonas de valor % % TT
1994 2004
Jardim Europa 167 34.6 316 65.4 483
Jabaquara 2.876 37.0 4.899 63.0 7.775
Vila Santa Catarina 741 37.0 1.261 63.0 2.002
Água Funda 150 38.1 244 61.9 394
Jardim Marajoara 2.840 38.4 4.548 61.6 7.388
Aeroporto 356 42.2 488 57.8 844
Sumaré 254 44.0 323 56.0 577
Vila Madalena 1.080 45.2 1.307 54.8 2.387
Moema 7.771 45.9 9.174 54.1 16.945
Jardins 4.547 47.9 4.952 52.1 9.499
Vila Nova Conceição 1.386 50.8 1.340 49.2 2.726
Campo Belo 2.241 53.7 1.934 46.3 4.175
Vila Mascote 2.203 54.8 1.820 45.2 4.023
Alto de Pinheiros 822 57.7 603 42.3 1.425
Pinheiros 4.733 58.2 3.401 41.8 8.134
Itaim 3.682 58.8 2.578 41.2 6.260
Real Parque 1.434 59.8 963 40.2 2.397
Morumbi 19.211 59.9 12.851 40.1 32.062
Santo Amaro 2.144 64.2 1.198 35.8 3.342
136
Alto da Boa Vista 148 64.9 80 35.1 228
Brooklin 5.672 65.6 2.975 34.4 8.647
Butantã 12.938 66.1 6.622 33.9 19.560
Ibirapuera 446 71.6 177 28.4 623
Chácara Santo Antonio 1.933 71.9 755 28.1 2.688
Chácara Flora 1.631 72.1 632 27.9 2.263
Vila Olímpia 4.633 74.1 1.618 25.9 6.251
Planalto Paulista 78 81.3 18 18.8 96
Total 86.117 56.2 67.077 43.8 153.194

Fonte: Embraesp.

segunda década, proporcionalmente ao total (1985 a 1994) e as lançadas na década se-


da área, caíram os lançamentos, indicando guinte (1995 e 2004), houve significativa­
uma mudança no interesse imobiliário, que queda (quase 20.000 unidades). Como o
se deslocou para o Jardim Europa, Jaba- número de empreendimentos lançados foi
quara, Jardim Marajoara, Moema e Jardins maior, considera-se que de forma geral hou-
(Tabela 4). ve uma redução na densidade habitacional
Entre o total de unidades lançadas na na região. Diante da afirmação de que hou-
região de estudo nos dez primeiros anos ve aumento no preço da terra em função da

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operações urbanas – nova forma de incoporação imobiliária

renovação do espaço e, conseqüentemente,­ indicar­ que esse processo já vinha aconte-


do maior interesse imobiliário, é possível cendo em função de uma visão prévia do
concluir que houve aumento da renda da mercado imobiliário e dos estudos e indica-
população que passou a residir nesse es- ções de mudanças na legislação local. Essa
paço, o que também é indicativo de menor expectativa de valorização futura traz um
densidade. Outra indicação foi a mudança aumento da demanda das áreas, o que faz
no uso, ou seja, houve um aumento do uso com que o valor da terra e dos terrenos se
não-domiciliar, o que automaticamente leva eleve.
a uma diminuição da densidade em função Concluindo, há evidências claras de
da redução da população residente. valorização imobiliária de uma área já
Dessa forma conclui-se que o cresci- valorizada, onde houve a substituição da
mento da verticalização (caso do Brooklin, classe média pela classe média alta. As
Vila Olímpia, por exemplo) e da renda da operações urbanas se propunham a “al-
população residente associado à queda na cançar, em uma área, transformações ur-
densidade habitacional é indicação de que banísticas estruturais, melhorias sociais e
houve um processo peculiar de "gentrifica- valorização ambiental", estando sempre
ção" na região: esse interesse voltado para a coletivida-
de, mas, ao contrário, o que se observa
[...] uma área em franca valorização e é a criação de centros que concentram ri-
residencial de classe média deu lugar a queza e expulsam parte da população re-
uma ocupação de residências de classe sidente para uma condição de vida pior, é 137
média alta; grosso modo, na região da o favorecimento da concentração de inves-
Operação Urbana Faria Lima houve um timentos públicos e privados nas áreas­ de
aumento da renda média da faixa de interesse do mercado imobiliário, nas áre-
R$2,3 a 3,6 mil em 1991 para a faixa as que já são bem infra-estruturadas. Mas
acima de R$3,7 mil em 2000. (Sandro-
essa infra-estrutura, com a ação da espe-
ni e Biderman, 2005).
culação (fomentada pela operação urbana)
fica sobrecarregada e, conseqüentemente,
Verifica-se também a intensificação de a região passa a sofrer pressão por novos
comércio e serviços em detrimento do uso investimentos.
residencial, que Sandroni chama de “gen- Efetivamente, as operações urbanas são
trificação dos negócios”, ou seja, uma troca instrumentos para obtenção de recursos fi-
de casas e sobrados por edifícios verticais nanceiros para investimento público, através
luxuo­sos, que foram ocupados, na sua maio- da promoção e do incentivo à verticalização.
ria, por pequenos negócios, levando à mu- Esse instrumento oferece a possibilidade ao
dança do uso e, conseqüentemente, à queda poder público de se apropriar de parte da
da densidade habitacional. mais-valia gerada pelos investimentos pri-
Cabe assinalar, ainda, que a verticali- vados, que se beneficiam dos adicionais de
zação em algumas áreas da região ocorreu construção permitidos pela legislação e da
ao longo das duas décadas e não somente valorização do solo nas regiões que são obje-
após as intervenções urbanas, o que poderia­ tos de operação urbana. Essa, como observa

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laura c. r. pessoa e lucia maria machado bógus

Claudino Ferreira, é uma visão bastante eco- mente “rentabilizável” numa ótica financeira
nomicista, muito centrada numa concepção da exploração da capacidade do solo para
do solo urbano como mercadoria ilimitada- albergar construção, via verticalização.

Laura Cristina Ribeiro Pessoa


Graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de Taubaté. Licenciatura em Edu-
cação Artística pelas Faculdades Integradas Tereza D’Ávila. Mestrado e doutorado em Estru-
turas Ambientais Urbanas pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de
São Paulo. Pós-doutorado junto à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (São Paulo,
Brasil).
lpessoa@usp.br

Lucia Maria Machado Bógus


Bacharel/Licenciada e Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. Doutora em Arquitetura na área de Estruturas Ambientais Urbanas pela Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Professora do Departamento de
Sociologia e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da Pontifícia Univer-
sidade Católica de São Paulo. Vice-Coordenadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em
Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (São Paulo, Brasil).
lubogus@uol.com.br
138

Nota
* Esse texto é resultado da pesquisa de pós-doutorado intitulada “Reestruturação Urbana e Desi-
gualdades Socioespaciais: município de São Paulo“, desenvolvida junto ao Núcleo de Estudos e
Pesquisas Urbanas/Observatório das Metrópoles São Paulo do Programa de Estudos de Pós-Gra-
duação em Ciências Sociais e do Departamento de Sociologia da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, sob a coordenação da Profa. Dra. Lucia Bógus.

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Recebido em maio/2008
Aprovado em jul/2008

cadernos metrópole 20 pp. 125-139 20 sem. 2008


Os “vários Paranás”
e o planejamento do estado
Rosa Moura
Sandra Teresinha da Silva
Maria Isabel de Oliveira Barion
Nelson Ari Cardoso
Diócles Libardi

Resumo
O trabalho sintetiza os resultados da análise da Abstract
dinâmica social, econômica e institucional do TThis paper summarizes the results of the
Paraná, que mostram que a natureza da inser- analysis of the social, economic and institutional
ção desse estado na divisão social do trabalho dynamics of Paraná, which show that the the
vem se dando heterogeneamente, tornando di- insertion of this State in the social division of
ferentemente integradas as partes de seu terri- labor has been occurring in a heterogeneous
tório. Discute a absorção, pela estrutura de pla- form, integrating parts of its territory in
nejamento do desenvolvimento do estado, dos different levels. It discusses how the State’s
resultados dessas análises e das linhas de ação development planning structure absorbs
propostas em função dessa heterogeneidade e the outcomes of this analysis and the lines
da diversidade presente. Conclui que o conheci- of action proposed based upon the present
mento não se transforma necessariamente em heterogeneity and diversity. It concludes that
ações objetivas. knowledge does not necessarily turns into
Palavras-chave: desenvolvimento regional; objective actions.
planejamento do desenvolvimento; divisão so- Keywords: regional development; planning
cial do trabalho; espacialidades do Paraná; es- of development; social division of labor;
pacialidades relevantes; espacialidades social- Paraná’s spatialities; relevant spatialities;
mente críticas. critical spatialities.

cadernos metrópole 20 pp. 141-163 20 sem. 2008


rosa moura et alii

Introdução urbano e regional do estado. Em intenso


trabalho conjunto e num curto período, esse
grupo elaborou a referida política a tempo
O presente trabalho sintetiza uma série de de orientar as práticas do governo que se
estudos que caracterizam a dinâmica social, instalava.
econômica e institucional do Paraná, Região Cabe salientar que a preocupação com
Sul do Brasil, nas últimas décadas (Ipardes,­ uma política regional e urbana também
2005; 2006a, 2006b)1 e discute a incor- ocorreu no âmbito do governo federal, mas
poração de seus resultados nas políticas de não somente. No início dos anos 2000, en-
âmbito regional formuladas pelo governo quanto a política nacional também assumia
do estado. A pesquisa na qual se pauta foi a retórica do estado mínimo, ampliava-se
desencadeada para subsidiar o processo de significativamente a dívida pública, as desi-
planejamento urbano e regional do Paraná, gualdades sociais e regionais do país eram
proposto pela Política Estadual de Desenvol- nítidas, a imprensa explicitava os conflitos
vimento Urbano e Regional – PDU (Paraná, da sociedade e do Estado, e os movimentos
2003). sociais se colocavam ativos. A esse contex-
Essa política foi formulada imediata- to soma-se a intensidade do crescimento e
mente após a posse do governador Roberto expansão das cidades. O reconhecimento
Requião (gestão 2003-2007), que sucedeu das particularidades regionais do território
os oito anos findos da gestão do governador motivou a busca da sociedade por institucio-
142 Jaime Lerner, gestão essa marcada por uma nalizar mecanismos de gestão pública, incor-
atuação fiel aos pressupostos do modelo­neo­ porando a participação em suas formulações
liberal, de estado mínimo, flexibilização das e controle social da execução.
políticas públicas, particularmente as sociais. Conseqüentemente, é desse período a
Em lugar de políticas urbanas e políticas de criação do Ministério da Integração Nacional
desenvolvimento regional, o estado vinha e do Ministério das Cidades; da aprovação
experimentando uma estratégia de atração do Estatuto da Cidade, após 13 anos de
de capitais e corporações com base em con- tramitação no Congresso Nacional; da ins-
cessão de incentivos fiscais, alimentando a tauração do processo das Conferências das
guerra fiscal entre estados brasileiros e o Cidades; da formulação da Política Nacional
acirramento da competição entre municípios de Desenvolvimento Urbano (Brasil, 2004);
para lograrem novos investimentos.­ da Política Nacional de Desenvolvimento
Assim, o novo governo, cujo perfil ideo­ Regional (Brasil, 2005); e das discussões
lógico se opõe ao viés neoliberal, convocou em torno de uma Política Nacional de Or-
a imediata criação de uma equipe compos- denamento do Território (Brasil, 2006), no
ta por servidores públicos da área técnica, âmbito Federal. No âmbito estadual houve
complementada por profissionais de renome o fortalecimento da Secretaria Estadual do
da academia, de escritórios de planejamento Desenvolvimento Urbano, que coordenou a
e por representantes das Associações de Mu- formulação da PDU e assumiu a condução
nicípios, para que fosse estruturado um pla- do processo de Conferências das Cidades
no estratégico voltado ao desenvolvimento­ no Estado, dando maior transparência ao

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os “vários paranás” e o planejamento do estado

critério­ de inversão dos recursos públicos, pesquisa­ que mostrasse as transformações


que passou a ser pautado no Índice de De- recentes e a organização regional do territó-
senvolvimento Humano Municipal (PNUD, rio paranaense.
2003), priorizando municípios com os índi-
ces mais baixos.
Além dessas medidas governamentais,
iniciativas da sociedade civil tornaram-se re- Desenvolvimento
correntes. É o caso do Fórum Futuro 10, e resultados da pesquisa
organizado pela Rede Paranaense de Comu-
nicação, de uma série de eventos regionais
organizados pela Federação das Indústrias Aspectos metodológico-
do Estado do Paraná, além da emergência operacionais e primeiros
de outros planos de desenvolvimento regio- resultados
nais, muitos deles de iniciativa das associa-
ções de municípios paranaenses. É o caso A pesquisa desenvolvida para subsidiar a Po-
também da contínua proposição legislativa lítica de Desenvolvimento Regional do Esta-
de criação de “regiões metropolitanas” nos do do Paraná e que resultou na identificação
mais variados centros urbanos do estado. dos “Vários Paranás”2 teve como objetivos:
Ou seja, o governo do estado oficializa es- (i) identificar, a partir da análise de um
sa discussão e aponta para uma perspecti- amplo conjunto de indicadores, as distintas
va mais abrangente e participativa de ação espacialidades existentes no Paraná; (ii) di- 143
governamental, inserindo-se num processo mensionar suas potencialidades e limitações
construído pela sociedade, que se organiza ao desenvolvimento regional, como contri-
em torno dessas idéias. buição à formulação de políticas de desen-
A Política de Desenvolvimento Urbano e volvimento; e (iii) compreender as trans-
Regional para o Estado do Paraná consubs- formações territoriais em curso no estado,
tanciou-se em três grandes linhas estratégi- ante o estreitamento da internacionalização
cas: desenvolvimento regional, desenvolvi- da economia e de suas relações socioterrito-
mento urbano e desenvolvimento institucio- riais e institucionais. Para compreender as
nal. A Política de Desenvolvimento Regional mudanças na organização territorial do Pa-
proposta, e sobre a qual se volta a pesquisa raná e identificar as diversas espacialidades3
considerada neste trabalho, desdobra-se em configuradas, a pesquisa tomou como fio
três programas específicos: de estrutura- condutor a divisão social do trabalho, cate-
ção integrada das grandes aglomerações e goria capaz de mediar o entendimento entre
suas respectivas regiões funcionais; de pro- o processo de desenvolvimento em geral e
moção acelerada de regiões deprimidas; e o desenvolvimento específico de uma econo-
de atuação dirigida a regiões especiais. Foi mia e sociedade particulares.
para subsidiar seu detalhamento e orientar A pesquisa partiu da hipótese de que
sua implementação que o Instituto Parana- a natureza da inserção do Paraná na divi-
ense de Desenvolvimento Econômico e So- são social do trabalho vem se dando hete-
cial (Ipardes) foi convocado a desenvolver­ rogeneamente, tornando diferentemente

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rosa moura et alii

integradas­ as partes de seu território. Para cípios com participação superior a 0,25%;
confirmar tal hipótese, foram organizadas entre eles, somente Curitiba e Paranaguá
duas matrizes básicas de análise. A primei- respondem por 63,17% do total do esta-
ra, contemplando, sempre que possível, um do (desconsiderando os serviços públicos,
período entre os anos 1970 e 2005 (em que acentuam ainda mais esse perfil). Vem
séries atingindo a informação mais recen- seguido do VAF da Indústria, para o mes-
te disponível), relacionou informações so- mo ano, no qual Araucária, Curitiba e São
bre valor adicionado fiscal (VAF), emprego José dos Pinhais somam 50% do total. As
formal, ocupação e produção agropecuária, empresas entre as 300 maiores do estado
infra-estrutura científico-tecnológica, infra- estão presentes num conjunto comparativa-
estrutura viária e principais centralidades mente menos concentrado: 68 municípios
urbanas. Uma superposição das informações (Tabela 1). No entanto, enquanto em 36
temáticas espacializadas, demarcando a con- deles há apenas uma empresa, em Curitiba
junção dos indicadores de melhor participa- encontram-se 69. A distribuição no terri-
ção e melhor desempenho econômico-social tório dos municípios com as maiores par-
no conjunto, concentração de ativos institu- ticipações ressalta as aglomerações, acom-
cionais e a evolução na posição central na panhando e sedimentando a economia do
rede de cidades evidenciou os municípios e estado.
“espaços relevantes”.4 Entre os indicadores contemplados
Tendo como corte a participação do para análise dos ativos institucionais, fo-
144 município no total do Estado igual e/ou su- ram selecionados os referentes à presença
perior a 0,25%, 5 essa matriz mostrou o da infra-estrutura técnico-científica (Tabela
grau de concentração presente na geração 2). Os mesmos confirmaram a concentração
da riqueza do VAF estadual (Figura 1). O espacial, dando ainda maior conteúdo à re-
VAF dos Serviços, em 2003, apresentou levância de determinadas espacialidades (ver
maior concentração, com apenas 24 muni- Figura 1).

Tabela 1 – Indicadores e classes de relevância econômica – Municípios do Paraná

Mun. que somam Mun. com Mun. com Total mun.


Indicador 50% e mais do participação participação relevantes
total do indicador >=0,25 a <1,00% >=1,00% (Part. >+0,25%)
Faturamento empresas 2002 7 31 15 46
Número de empresas 2002 4 56 12 68
Emprego formal 2003 6 37 15 52
VAF total 2003 5 33 15 48
VAF indústria 2003 3 29 14 43
VAF serviços 2003 2 16 8 24

Fontes: SEFA, RAIS.


Nota: Informações trabalhadas pelo Ipardes

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os “vários paranás” e o planejamento do estado

Tabela 2 – Indicadores da distribuição da infra-estrutura técnico-científica –


municípios do Paraná – 2005

Mun. com Mun. com Total mun.


Mun. sem
Infra-estrutura mais de uma apenas uma com alguma
infra-estrutura
infra-estrutura infra-estrutura infra-estrutura
Parque tecnológico 0 5 394 5
Incubadora 3 10 386 13
Instituições e fundações de pesquisa 5 31 363 36
Instituição de ensino superior 31 47 321 78

Fonte: SETI.
Nota: Informações trabalhadas pelo Ipardes.

Em cada espacialidade, foram identifi- espacialidades delimitadas a partir dos mu-


cados um ou mais municípios, considerados nicípios que obtiveram melhor desempenho
centrais à rede de cidades do estado, inter- nos indicadores econômicos e institucionais
conectados entre si com apoio do sistema trabalhados neste estudo.
viário principal. Tal sistema apresenta as A segunda matriz, contemplando um
melhores condições do Paraná em termos de conjunto de indicadores sociais disponibiliza-
trafegabilidade e garante os fluxos da ativi- dos para o ano 2000, relacionou dados so-
dade econômica, servindo de estrutura física bre componentes demográficos, saúde, edu-
para sustentação da dinâmica desse conjunto cação e renda, saneamento e moradia, cuja 145
privilegiado de municípios e espacialidades. sobreposição evidenciou os municípios “so-
A conjunção da relevância econômica, cialmente críticos”. Os valores relativos de
da densidade técnico-científica e do papel cada indicador (taxas, índices e proporções
de lugar central na rede de cidades, apoia- ao total do município) foram ordenados e
do na presença do sistema rodoviário como salientadas as 39 piores posições, ou seja,
suporte físico para as interconexões, define os 39 municípios (correspondendo a 10%
o espaço de concentração e densificação, do total de municípios do Paraná, em 2004)
apropriando-se aqui do conceito de Santos com as proporções mais elevadas de pessoas
e Silveira (2001). Esse espaço de concen- em condições críticas quanto à educação e
tração e densificação reúne as espacialidades renda, menores índices de envelhecimento,
polarizadas pelas principais centralidades do coeficientes de mortalidade infantil mais ele-
Paraná, assumindo diferentes graus de rele- vados, maior proporção de déficit de mora-
vância (ver Figura 1). dias ou domicílios em situação de carência ou
Em situação extrema, 282 municípios deficiência quanto a serviços fundamentais,
não registraram indicadores classificados en- como saneamento. Foi somado o número de
tre os mais expressivos, sendo considerados vezes que o município se posicionou entre
como de baixíssima relevância. Contudo, é esses 10% com os piores indicadores em
importante ressaltar que, mesmo nessa con- relação ao estado e o somatório resultan-
dição, eles ou parte deles estão interligados te apontou a escala daqueles em condições
de alguma forma à dinâmica econômica das mais críticas no aspecto social.

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rosa moura et alii

Mapeados os indicadores proporcionais, Pode-se concluir que as espacialidades


formaram-se duas porções contínuas, uma economicamente relevantes são, concomi-
na parte central do estado e outra no Vale tantemente, detentoras do poder, do co-
do Ribeira, avizinhando-se a espacialidades nhecimento e geradoras da riqueza, porém,
economicamente relevantes (ver Figura 1). A concentradoras de carências, avizinhadas
faixa alongada na porção central do estado por extensões desprovidas e dependentes,
se avizinha aos municípios que formam duas­ representativas do fato estrutural próprio
principais espacialidades economicamen- da dinâmica seletiva da expansão do capital.
te relevantes, do Norte Central e do Oeste Por conseguinte, os primeiros resultados da
paranaense; a porção do Vale do Ribeira faz pesquisa apontam para um território diver-
parte do território institucional da Região so, concentrado e desigual, compondo espa-
Metropolitana de Curitiba, enfatizando a cialidades com certo grau de similaridade,
convivência dos extremos em proximidade. complementaridade e relativa integração em
Essas áreas, relegadas inicialmente pe- seu interior, cuja integração na divisão social
las restrições do solo à produção agrícola, do trabalho resulta da história e sustenta a
funcionam como reservas para a expansão dinâmica do território como um todo.
física das atividades das espacialidades re- As distintas espacialidades respondem
levantes, sendo incorporadas aos poucos, por diferentes papéis na divisão social do
com apoio de tecnologia e infra-estrutura. trabalho, tanto externa quanto internamente
Somada à limitação física, a falta de repre- ao estado. São notórios os espaços de man-
146 sentação política também se coloca como do e os espaços de obediência, conforme no-
obstáculo à inserção dessas áreas na divisão ção de Milton Santos (1999), assim como
social do trabalho. as relações sinérgicas a partir dos principais
Enquanto os indicadores de proporções centros urbanos e das porções fronteiriças.
de carências sociais revelaram áreas nas Essa configuração espacial heterogênea não
quais as situações críticas se dão abrangen- é específica do Paraná, mas decorrente da
temente nos municípios e em porções contí- natureza do modo de produção vigente:
nuas do território, informações de volumes concentrador, seletivo e excludente. Para
de pobres e de domicílios carentes e defi- seu enfrentamento, a ação pública torna-se
cientes, embora com baixa proporção, mos- indispensável no sentido de, ao menos, mi-
traram grande concentração desses volumes nimizar os efeitos sociais e territoriais das
em poucos municípios. Correspondem àque- chamadas forças do mercado.
les economicamente relevantes ou centrais, Certamente, os processos que remete-
e àqueles que mais crescem e se urbanizam ram a essa configuração diversa também se
no Paraná, como confirmam informações ajustam, salvo especificidades, a configura-
dos Censos de 1991 e 2000. Tais consta- ções similares em outros estados brasileiros
tações reforçam a compreensão de que, ou países, como também se colocaram pre-
nas espacialidades econômicas relevantes, sentes entre os que deram origem aos “agru-
a produção da riqueza se faz gerando de- pamentos territoriais de alta performance”6
sigualdades, excluindo municípios, bairros e identificados no estado de São Paulo (Silva
segmentos da população. Neto, 2006). A dinâmica engendrada por

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esse modelo insere o Paraná na divisão so- de geração de riquezas, ativos institucionais
cial do trabalho especialmente a partir de e na diversidade de opções produtivas, de
seu potencial em recursos naturais. Ao lon- comércio e de serviços. Outra distinção com
go do tempo, o estado consolidou seu papel relação àquele espaço é que as atividades
centrado na exploração desses recursos e na agropecuárias ainda mantêm participação
agroindustrialização e, mais recentemente, significativa no total da sua produção. Nes-
na incorporação de segmentos modernos e sa espacialidade, ao mesmo tempo em que
internacionalizados da indústria. se constata uma unidade no desempenho
de sua função na divisão social do trabalho,
distinguem-se relações que irradiam de uma
Os “vários Paranás” condição de bipolaridade, impondo sub-re-
cortes espaciais a partir de Londrina, num
Espacialmente, as situações de maior ho- vetor para o Norte Pioneiro, e de Maringá,
mogeneidade percorrem um amplo espec- num vetor para o Noroeste.
tro, abarcando desde grandes conjuntos de A porção Oeste é considerada como o
municípios, conjuntos mais dispersos e indi- 3º espaço relevante, tendo Cascavel como
víduos (referindo-se a municípios), configu- principal pólo, desenvolvendo um vetor de
rando distintas espacialidades no estado (ver dinamismo em direção a Toledo e Marechal
Figura 1). Cândido Rondon. Em grau de importância,
Entre os “espaços relevantes”, destaca- essa espacialidade guarda menor distancia-
se uma espacialidade de máxima relevância, mento com o 2º espaço do que este para 147
concentração e densidade, formada pela com o 1º espaço relevante, diferenciando-
aglomeração metropolitana de Curitiba, pelo se nitidamente de ambos. Sua articulação à
entorno de Ponta Grossa e por Paranaguá, divisão social do trabalho se dá a partir de
denominada 1º espaço relevante. Essa espa- um número menor de atividades, ligadas,
cialidade participa de forma mais integrada, fundamentalmente, à produção agroindus-
nacional e internacionalmente, na divisão trial, assim como aos serviços. Sua posição
social do trabalho, a partir do desempenho fronteiriça, cuja centralidade se manifesta
de um conjunto de atividades econômicas em Foz do Iguaçu, assegura-lhe o desem-
diversificadas, concentrando os principais penho de funções importantes nas relações
constitutivos da sociedade paranaense, no internacionais e no comércio, elevando seu
que se refere ao poder econômico, político peso na geração de riquezas e estreitando
e ideológico. vínculos do Paraná com os países do Merco-
Duas espacialidades com elevada rele- sul. Agrega-se o turismo, pela presença do
vância são identificadas no Norte Central e Parque Nacional do Iguaçu, onde se encon-
Oeste do Estado. No Norte Central, as aglo- tram as Cataratas do Iguaçu, dos municípios
merações de Londrina e Maringá polarizam lindeiros ao Lago de Itaipu e pelo comércio
o 2º espaço relevante que, historicamente, de fronteira.
sustenta uma matriz produtiva diversificada, Quatro recortes foram apontados co-
que se assemelha à do 1º espaço, mantendo, mo espacialidades de média relevância. Um
contudo, uma grande distância nos volumes deles é a espacialidade especializada do

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Centro-Oriental, com nítidos vínculos nacio- Outra espacialidade de média relevân-


nais e internacionais em função da ativida- cia é a porção Sudoeste, articulando municí-
de papeleira, composto por poucos municí- pios que historicamente funcionaram como
pios, porém em número crescente, dada a portas de entrada dos vetores de atividades
necessidade de expansão do uso da terra, oriundas dos estados do Sul. Insere-se na di-
mantendo presente a função do Paraná no visão social do trabalho pela entrada da for-
desempenho de atividades que requerem a ça colonizadora do Rio Grande do Sul e de
utilização de recursos naturais. A forte es- Santa Catarina, mantendo a predominância
pecialização e a natureza da atividade, com da produção e transformação agropecuária.
baixa capacidade de geração de emprego, Esses municípios tentam ampliar sua inte-
renda e consumo, portanto, de indução de gração nacional e internacional pela inova-
atividades de comércio e serviços, torna essa ção e diferenciação de produtos e atividades
espacialidade economicamente relevante cir- do Setor Primário (vinhos, embutidos etc.),
cundada e até infiltrada por extensas áreas em função de seus reduzidos capitais. Pou-
socialmente críticas. Seus vínculos externos cas novas indústrias surgem em busca de
resultam, assim, em relações verticalizadas, alternativas para inserção econômica nessa
sem engendrar sinergias regionais. espacialidade, colocando-se como tentativas
Na porção Noroeste do estado, Umua­ locais de diversificação, porém sem manifes-
rama, Paranavaí, Cianorte e outros muni- tar, ainda, condições de aglutinar e otimizar
cípios do entorno desses se destacam com excedentes mais expressivos, sofrendo as
148 média relevância, porém exercendo papel barreiras impostas pela própria estrutura
central no desempenho de funções mais produtiva.
complexas e modernas em uma região que Guarapuava (estendendo-se a Irati) e
mantém base agropecuária. Nessas centrali- Campo Mourão constituem pontos economi-
dades, começam a se consolidar atividades camente de média relevância, centrados em
possivelmente irradiadas do 2º espaço, se- porções do território que não manifestam
ja pelos vínculos históricos do caminho da condições similares. Funcionam como re-
ocupação, seja pela própria expansão das ceptáculos da produção do entorno, o que,
atividades, num movimento do capital a pela natureza, não permite impulsionar uma
partir do Norte Central, todavia num está- estrutura econômica e social horizontaliza-
gio relativamente mais atrasado. Apontam da. Em Guarapuava e imediações, a estru-
para a possibilidade de estarem constituin- tura da terra em grandes propriedades, a
do articulações na própria região, sem per- presença de atividades com baixo potencial
derem, ainda, a condição de expulsores de gerador de emprego – basicamente a soja e,
população, dando indícios de que as ativida- mais ao sul, o extrativismo – e incapazes de
des desenvolvidas não conseguem absorver desencadear outras atividades, além do bai-
a força de trabalho existente, muito embo- xo potencial para o uso agrícola, contribuem
ra tenha apresentado taxas de crescimento para reduzir o dinamismo regional. Os pou-
anual do emprego formal, particularmente cos excedentes que permanecem na região
do emprego industrial, bem acima da média centram-se em Guarapuava, que se consolida
estadual. como base de apoio e prestação de serviços,­

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os “vários paranás” e o planejamento do estado

favorecida, também, pela localização privi- porção­ paranaense, que se estende em di-
legiada num dos mais importantes corre- reção ao aglomerado metropolitano, histó-
dores viários do estado, a BR 277. Campo rica no que concerne a isolamento, pobreza
Mourão tem como explicação da verticalida- e dependência. Os demais municípios, com
de das relações o fato de sediar a Coamo elevada incidência entre os mais críticos,
Agroindustrial Cooperativa – considerada a fazem parte da mancha contínua na porção
maior cooperativa agroindustrial da América central do estado, que se alonga no sentido
Latina –, colocando-se sob comando dessa Norte Pioneiro/Centro-Sul, aproximando-
importante unidade empresarial. Extrai sig- se e contornando a porção sul de Cascavel,
nificativo excedente de seu entorno, o que reunindo ainda um grande número de muni-
lhe assegura expressão econômica e política cípios com no mínimo uma ocorrência entre
e lhe permite instrumentalizar sua estrutura os 10% mais críticos do conjunto de indica-
de comércio e de serviços, estreitando seus dores analisados. Outras manchas contínuas
vínculos externos, porém sem grandes des- menores margeiam as fronteiras com Santa
dobramentos regionais. Catarina e com São Paulo, porém, não tão
Espacialidades com mínima relevância problemáticas quanto as anteriores.
são identificadas nos municípios de fronteira A porção central do estado apresenta
com o estado de Santa Catarina, que usu- fatores socioculturais importantes, como
fruem da sinergia das relações fronteiriças a presença de reservas indígenas, comuni-
que se manifestam nas pequenas aglomera- dades quilombolas, assentamentos rurais,
ções ou ocupações contínuas entre centros além de uma estrutura fundiária predomi- 149
urbanos dos dois estados. Reproduzem, em nantemente de grandes estabelecimentos
parte, a história de ocupação do Centro-Sul rurais, entre outros que, certamente, pos-
paranaense, pautada no extrativismo; repre- suem papel contributivo na realidade atual.
sentam um vetor de entrada das atividades As restrições no uso do solo, bem como o
econômicas catarinenses; e recebem os efei- modelo econômico extrativista (madeira/
tos da dinâmica econômica metropolitana, erva mate) que remonta aos primórdios da
nesse caso facilitados pela infra-estrutura exploração capitalista nessa região, são fato-
viária. Espacialidades de mínima relevância res determinantes. Acresce-se a isso o fato
são identificadas também no Norte Pioneiro, de a maioria desses municípios encontrar-se
que conta uma história de apogeu e deca- ilhada – ou seja, contornada – pelo princi-
dência ligados à economia cafeeira, que le- pal sistema viá­rio do estado, sendo pouco
gou a possibilidade de consolidação de pou- recortada internamente por outras vias de
cos, mas importantes ativos institucionais. transporte.
Essa porção do Paraná ainda estabelece for- Observa-se que os municípios com as
tes vínculos com o estado de São Paulo. maiores incidências entre os mais críticos
O outro conjunto de municípios rela- apresentam elevadas proporções de ocupa-
tivamente homogêneos corresponde aos ção formal na agropecuária e no setor públi-
“espaços socialmente críticos”. Pequena co. Em sua grande maioria, são municípios
parte desses municípios encontra-se na fai- rurais, localizados em áreas com menor po-
xa demarcada como Vale do Ribeira, em sua tencial para uso agrícola da terra e de baixo

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crescimento populacional. Alerta-se para o e situações impostas pela realidade. Decor-


fato de que a leitura das proporções de pri- re da lógica do mercado – e sua busca de
vação e carência é insuficiente para mapear a rentabilidade – que, no caso em estudo, se-
situação de precariedade no estado, já que a lecionou porções do território paranaense;
localização dos maiores volumes de pessoas privilegiou a exploração das condições físi-
pobres, desatendidas e dos domicílios caren- co-ambientais; em alguns casos, apropriou-
tes ocorre em municípios dinâmicos, porém se de atividades existentes e, em outros,
sem capacidade de oferecer ocupação em ní- introduziu atividades ainda inexistentes;
veis compatíveis à população residente. viabilizou diferentes níveis de incorporação
Ao se considerarem as relações eco- da população; acumulou, concentrou, aden-
nômicas, sociais e políticas, verifica-se que sou e criou uma desigualdade espacialmente
o Paraná se insere na dinâmica nacional e visível em termos regionais, mas também
internacional, fundamentalmente, por meio interna a qualquer escala. Sob tal lógica, o
das três principais espacialidades, 1º, o 2º e Paraná se incorporou à divisão nacional e
o 3º espaços, articulados pelo sistema rodo- internacional do trabalho de modo grada-
viário principal. Ressalta-se o elevado desní- tivo e diverso, envolvendo desigualmente a
vel entre o 1º espaço e os dois últimos, com totalidade de seu território e de sua popu-
nítida concentração no primeiro. As demais lação. Como contraponto à mera lógica da
espacialidades com algum grau de relevân- rentabilidade econômica e ao enfrentamen-
cia se inserem desempenhando papéis mais to das desigualdades, o trabalho salientou,
150 especializados, enquanto as espacialidades com grande ênfase, a importância da ação
socialmente críticas permanecem relativa- pública.
mente à margem da dinâmica econômica
e política do estado. Nestas, há profundas
dificuldades na geração de emprego e ren- Subsídios à política de
da, além de sérias restrições na oferta de desenvolvimento regional
ocupações e na atenção às necessidades so-
ciais da população. Dessa forma, é o grau Essa etapa da pesquisa apontou a necessida-
de inserção ou exclusão na divisão social do de de realização de uma seqüência de estu-
trabalho que desenha os Vários Paranás. dos, buscando aprofundar, detalhar e expli-
Como síntese geral, a análise ressal- citar nexos e lógicas nos processos identifica-
tou um Paraná complexo e heterogêneo, dos em sua expressão espacial.7 Além disso,
com áreas economicamente relevantes e so- os resultados divulgados permitiram apontar
cialmente críticas, concentrado e desigual. alguns elementos fundamentais, consubstan-
Não poderia ser diferente. Essa é a mesma ciados em um conjunto de linhas de ação, pa-
situa­ção encontrada em nível nacional e in- ra constituir uma agenda de desenvolvimen-
ternacional, muito embora possa apresentar to regional para o Paraná (Ipardes,­2006b).
graus diferenciados, segundo a história do Tais linhas serão inócuas, caso o estado não
país e de cada uma de suas regiões, e a ca- assuma a centralidade necessária à condução
pacidade de estruturar e implementar res- de um processo de planejamento para o de-
postas regionais às determinações exógenas senvolvimento regional.

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os “vários paranás” e o planejamento do estado

Pensar uma política de desenvolvi- da mudança desejada para que assuma a


mento que contemple toda a diversidade e sua coordenação. Assim, é primordial que
heterogeneidade­do Paraná não é tarefa fácil se institua, na esfera governamental, uma
e exige ações de contratendência, de resis- instância articuladora da política, com as
tência aos desequilíbrios e injustiças, assim demais instâncias setoriais das diferentes
como de construção de experiências coleti- esferas governamentais e instituições públi-
vas integradoras e includentes. Em primeiro cas e privadas que atuam em cada espaciali-
lugar, a diversidade não deve ser tida como dade paranaense, e com os diversos planos
problema, mas como maior possibilidade de desenvolvimento regional já existentes e
de alavancar o desenvolvimento do estado, em execução.
portanto, é fundamental investir no enorme Destaca-se também a importância do
potencial de variedade (intra-regional, seto- estado para estreitar vínculos inter-regio-
rial, urbana, cultural, ocupacional, etc.) que nais, aprofundar estudos das relações fron-
o Paraná possui. Isso exige que se contrapo- teiriças, além do fortalecimento da relação
nha à tendência dominante de organização do Paraná, e das suas regiões em particular,­
da dinâmica econômica e populacional pelo com a matriz produtiva nacional e dos paí-
mercado, para que não se acentuem as desi- ses do Mercosul. Nesse sentido, a articula­
gualdades em todos os aspectos. ção dos diferentes planos regionais e das
Nesse contexto, o estado se apresenta políticas setoriais sobressai como condição
como agente fundamental de desenvolvi- de fortalecimento de uma Política Estadual
mento e com autoridade para influir nessa de Desenvolvimento Regional e da estrutura 151
trajetória, compensar as desigualdades e socioeconômica paranaense.
equilibrar diferentes pesos econômicos, fi- A articulação e o acompanhamento de-
nanceiros e políticos. Com isso, arrefecer vem acontecer diante da premissa de que
a concentração, criar novas possibilidades, uma política de desenvolvimento não é so-
estimular potencialidades, corrigir rumos, mente uma coletânea de problemas levanta-
dinamizar espaços e setores econômicos, dos ou um rol de metas e ações registradas
enfim, incluir territórios e população, por em documento específico, mas uma constru-
meio de uma política de desenvolvimento in- ção permanente. Construção essa que exige
tegradora e socialmente justa. um processo de elaboração contínuo da Polí-
Tendo em vista a multiplicidade de fa- tica de Desenvolvimento Regional, particular-
tores interrelacionados, que afetam a so- mente em sua dimensão territorial, de modo
ciedade na sua totalidade, é fundamental que ela possa não somente contribuir com
que uma política de desenvolvimento seja essa construção, mas, principalmente, cons-
uma iniciativa do estado, em qualquer ní- tituir-se como seu elemento fundamental.
vel, sem se restringir às ações cotidianas Planejar e intervir na busca do de-
da atuação pública, mais pertinentes a um senvolvimento regional implica, substan-
plano operacional. Nela se explicita a idéia cialmente, entender a história das regiões,
de transformação da realidade vigente, que suas relações, seus arranjos particulares;
pressupõe que o estado, como instância de compreender as formas como o capitalismo­
poder político, organize sua ação na busca as organiza e desorganiza; e considerar as

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dinâmicas socioeconômicas, o que torna à consolidação­ do direito à mobilidade e à


complexo seu entendimento e a definição informação; e fortalecimento de uma rede
de seus limites. Por isso, as espacialidades ampliada de centros e de municípios perifé-
identificadas­ são apenas uma manifestação ricos nas aglomerações urbanas.
no território; um meio de compreender o (b) Inclusão social e econômica: fortaleci-
todo, não um produto. Por conseguinte, mento das economias locais nas espacialida-
é fundamental analisar cada uma delas, na des socialmente críticas; e distribuição dos
busca de compreender processos que distin- frutos do desenvolvimento por meio de po-
gam as que requerem políticas diferenciadas líticas sociais abrangentes e territorialmente
para o seu desenvolvimento e o desenvol- diferenciadas, com vistas à inclusão social e
vimento do estado, e trazer para o diálogo à eqüidade.
sobre o presente e o futuro da região toda
(c) Implementação e diversificação dos
a diversidade de organizações da socieda-
ativos técnico-científicos: ênfase em investi-
de, que possam pactuar uma participação
mentos em atividades de pesquisa avançada
contínua e legítima nesse processo. Enfim,
em biotecnologia e tecnologias produtivas
é imprescindível adentrar os Vários Para-
alternativas, apropriando-se das possibilida-
nás, para obter os elementos que instruam
des oferecidas pelo potencial agrícola, tec-
a construção de uma agenda de desenvolvi-
nológico e científico do estado.
mento regional que faça emergir um Paraná
diverso, porém sem privar parcelas do seu (d) Desenvolvimento e gestão ambiental:
152 território e de sua população dos frutos do conservação ambiental com vistas à prote-
desenvolvimento e do acesso aos direitos de ção da biodiversidade e ao uso sustentável
cidadania. dos recursos naturais para a produção de
Considerando essas premissas, foi su- energia.
marizado o conjunto de linhas de ação para (e) Gestão do desenvolvimento: considera
as dimensões econômica, social e institucio- premissa fundamental da Política Estadual
nal, com vistas a combater as desigualdades de Desenvolvimento Regional que a mesma
regionais e explorar o potencial da diversi- seja assumida pela sociedade paranaense,
dade paranaense. Essas linhas estão agrupa- entendida como o conjunto de segmentos
das nas seguintes estratégias: produtivos, políticos e sociais, com seus di-
(a) Desconcentração, competitividade e versos interesses, conflitos, reivindicações,
mobilidade: desconcentração econômica e prioridades e recursos. Cabe ao estado a
populacional, pelo reforço às atividades pre- coordenação geral dessa política, instituin-
sentes nas espacialidades de mínima, média do, na esfera governamental, uma instância
e elevada relevância econômica; moderni- de acompanhamento da implementação que
zação do sistema de circulação de pessoas, articule as políticas setoriais das diferentes
mercadorias e informações, com vistas à esferas de governo e demais instituições
equiparação das condições de competiti- públicas e privadas que atuam no território
vidade do estado com outros mercados e estadual.

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os “vários paranás” e o planejamento do estado

A estruturação do ambiental e institucional para as quatro ma-


crorregiões. Internamente a estas, foram
planejamento urbano consideradas as diferenças regionais, pela
e regional no Paraná proposição diferenciada de programas e
subprogramas às dez regiões.
A pesquisa “Os Vários Paranás” (Ipardes, A análise da proposta de regionalização
2005; 2006a) e suas proposições progra- do PRDE e das espacialidades identificadas
máticas em linhas de ação (Ipardes, 2006b), em Os Vários Paranás revela, contudo, al-
pelo nível de sistematização que atingiram, gumas diferenças, muito embora o primeiro
ofereceram ao governo do estado os funda- tenha usado como base o segundo. A dife-
mentos para a definição da pretendida Polí- rença principal está na definição do PRDE
tica Estadual de Desenvolvimento Regional. da região denominada Centro Expandido,
Tendo como origem a PDU, tais estudos se na qual foram agrupadas as espacialidades
constituíram em subsídios para a definição socialmente críticas (região central do esta-
dos Planos Regionais de Desenvolvimento do) e as porções Noroeste e Norte Pioneiro
Estratégico (Paraná, 2006). (Figura 2). Há que se lembrar que essas úl-
Apoiado no eixo central do Plano de timas foram classificadas, respectivamente,
Governo 2003-2006, “desenvolvimento como espacialidades de média e mínima re-
sustentável e inclusão social”, e consideran- levância em Os Vários Paranás.
do as principais conclusões obtidas pelo Os Destaca-se que, no conjunto, o PRDE
Vários Paranás, o PRDE definiu como não atingiu o nível de definição dos instru- 153
mentos de intervenção e das ações para a
[...] principal alinhamento estratégico sua implementação. Entretanto, tendo sido
a INCLUSÃO social, seja a inclusão ci- concluída a primeira etapa dos trabalhos no
dadã dos paranaenses excluídos social, final de 2006, último ano da gestão gover-
econômica e culturalmente do desen- namental iniciada em 2003, e tendo passado
volvimento estadual, seja a inclusão o processo eleitoral com o governador do
territorial de integração ao espaço estado sendo reeleito, a Sedu desencadeou
paranaense de suas partes marginais, uma reestruturação interna, redefinindo sua
buscando-se forte COESÃO INTERNA ação no âmbito do governo, preparando-se
no ordenamento do território. (Paraná, institucionalmente para a implementação
2006, p. 52 – grifos no original) das definições contidas naqueles Planos (De-
creto nº 350, de 21/3/2007).
Sobre as espacialidades identificadas Com a reestruturação, foram criadas­
em Os Vários Paranás, o PRDE definiu dois quatro coordenadorias técnicas – de Progra­
níveis de atuação: o macrorregional, com ma de Desenvolvimento Urbano; de Relações
quatro recortes, e o regional, com a defi- Institucionais e Qualificação; dos Planos de
nição de dez regiões específicas. A partir Desenvolvimento Regionais; e das Regiões
dessas definições, foram idealizadas linhas Metropolitanas, Microrregiões e Conselhos
estratégicas, programas e subprogramas das Cidades. Paralelamente, ocorreu tam-
para as áreas econômica, social, territorial- bém a institucionalização das coordenações

cadernos metrópole 20 pp. 141-163 20 sem. 2008


rosa moura et alii

das Regiões Metropolitanas de Maringá e de Com o objetivo de reduzir as disparida-


Londrina8 e das microrregiões de Cascavel, des regionais, priorizando o atendimento à
Foz do Iguaçu e Litoral, todas elas vinculadas­ população mais pobre e excluída, foram de-
à Sedu. Em síntese, a Sedu reorganizou-se finidas ações diferenciadas, priorizando os
institucionalmente no nível estadual e regio- investimentos nas regiões menos dinâmicas
nal, neste último, estando presente nas prin- do estado. Assim sendo, a PDE prevê que a
cipais espacialidades relevantes, e deu início região Centro Expandido, considerada uma
aos trabalhos para a gestão governamental espacialidade socialmente crítica onde se en-
2007-2010. contram os menores índices de desenvolvi-
Nesse ínterim, a Secretaria de Estado mento, irá receber maior atenção do estado.
do Planejamento, sob a gestão de um grupo A região terá o maior volume de recursos
político diferente da primeira gestão gover- per capita e será beneficiada com o maior
namental, resgatou sua função de coordena- volume de ações de vários órgãos do estado.
dora e de articuladora das ações do governo Para as outras regiões, foram definidos in-
do estado e lançou a Política de Desenvolvi- vestimentos que potencializam o dinamismo
mento do Estado (PDE) em 24 de agosto de já existente e que incentivam o crescimento
2007. Essa política também tomou por base das regiões menos dinâmicas, a partir das
os resultados de Os Vários Paranás, apre- relações interregionais. Além dessas, foram
sentando como meta propostas ações transversais, comuns a to-
das as regiões, principalmente nas áreas de
154 [...] estimular o desenvolvimento eco- infra-estrutura urbana, energia e logística
nômico e social do Estado, priorizando de transporte, produção industrial e produ-
as regiões com menores índices de de- ção agrícola.
senvolvimento humano, respeitando os O investimento total previsto é de
limites fiscais das contas públicas. (Pa- R$18.154,10 milhões, envolvendo apor-
raná, s/d, p. 3) tes de empresas estatais (R$11.055,29
milhões), recursos de vinculações constitu-
Para implementação da PDE, o estado cionais (R$2.368,33 milhões) e investimen-
foi dividido em seis regiões de planejamen- tos de secretarias de estado e vinculadas
to, que resultaram de uma combinação dos (R$4.730,48 milhões). Do investimento to-
recortes definidos em Os Vários Paranás e tal, mais da metade (55,3%) será destinado
PRDE (ver Figura 2). Essa combinação fica à infra-estrutura urbana, energia e logística
evidente ao se observar a extensão da re- de transporte; 18,9% para ciência e tec-
gião denominada Centro Expandido, que nologia, educação, saúde e meio ambiente;
não englobou a porção Noroeste, como em 10,8% à produção agrícola; 10,4% à pro-
Os Vários Paranás, mas incorporou a porção dução industrial; e 4,6% para justiça, segu-
Norte Pioneiro, como no PRDE. No que se rança e modernização do estado.
refere às demais espacialidades, não há di- A distribuição regional dos recursos de-
ferenças entre a PDE e o PRDE. Há que se finidos para infra-estrutura urbana, energia
mencionar que participaram da definição da e logística prevê que 32% sejam destinados
regionalização da PDE, o Ipardes e a Sedu. à região Leste (1º espaço), 21% ao Centro

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os “vários paranás” e o planejamento do estado

Expandido, 8,6% para a região Norte (2º estabelecimentos­ de ensino, no turismo na


espaço), 6,1% para a Noroeste e 5% para a região de Foz do Iguaçu, e em centros de
região Oeste (3º espaço). No Centro Expan- detenção e penitenciá­rias são os prioritaria-
dido e na região Leste esses investimentos mente elencados; no Sudoeste, a escala de
são responsáveis por mais de 70% do total investimentos contempla a construção, am-
dos investimentos regionais programados, pliação e adaptação de estabelecimentos de
enquanto que nas demais regiões esse per- ensino, investimentos em produção­ agríco-
centual varia entre 51% e 64%. Em todas la, abastecimento e tratamento de esgoto,
elas, os maiores investimentos serão feitos construção de hospital e centro de saúde e
em geração, transmissão e distribuição de aquisição de equipamentos.10­
energia e telecomunicação,9 com exceção da Indiscutivelmente, a PDE deu uma im-
região Leste, em que a prioridade de inves- portante contribuição: assumiu a espacialida-
timento é na infra-estrutura portuária (por- de socialmente crítica Centro Expandido co-
tos de Paranaguá e Antonina). mo área prioritária de governo, para a qual
Em relação aos demais investimentos, propôs um conjunto de ações e definição or-
a escala de prioridades varia em cada re- çamentária envolvendo todos os órgãos do
gião, de acordo com suas características ou governo estadual. O objetivo principal foi a
deficiências: no Centro Expandido apare- inclusão social e ampliação da presença do
cem em seguida, embora com participação poder público, por meio da oferta de servi-
muito baixa, os investimentos em habita- ços sociais e de aporte técnico e financeiro
ção para atendimento a famílias de baixa para viabilizá-las economicamente. 155
renda, em produção agrícola, em obras de Contudo, por mais que a PDE tenha
abastecimento de água e tratamento de proposto ações regionalizadas, verifica-se
esgoto, investimentos na construção, am- que ela se limitou a constituir um plano de
pliação e adaptação de estabelecimentos de definição orçamentária e distribuição re-
ensino; na região Leste, com percentuais gional dos investimentos estaduais, e de
bem mais equilibrados, vêm logo a seguir orientação ao Plano Plurianual (PPA) – que
os investimentos em geração, transmissão instrumentaliza a competência de planeja-
e distribuição de energia, abastecimento e mento disposta às três instâncias de gover-
tratamento de esgoto, integração do trans- no pela Constituição Federal, com objetivos,
porte metropolitano, consórcios metro- diretrizes e metas definidas, introduzindo a
politanos para resíduos sólidos; na região regionalização orçamentária –, no caso do
Noroeste, destacam-se investimentos na Paraná, também coordenado e acompanha-
construção, ampliação e adaptação de es- do pela SEPL. Nesse sentido, não pode ser
tabelecimentos de ensino e habitação para considerado uma política desenvolvimento
famílias de baixa renda; na região Norte, regional, não articula uma estratégia de de-
vêm a seguir investimentos em obras de senvolvimento regional para o Paraná, tam-
abastecimento de água e tratamento de pouco instaura o planejamento e a gestão do
esgoto e habitação para famílias de baixa desenvolvimento do Estado.
renda; na região Oeste os investimentos Assim, a proposta de Os Vários Para-
na construção, ampliação e adaptação de nás (Ipardes, 2006b) de construção e de

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fortalecimento­ de uma Política Estadual prias de desenvolvimento, a partir das quais


de Desenvolvimento Regional, apesar dos definem os caminhos para sua região, ela-
avanços obtidos até o momento, ainda não boram pautas de reivindicação e conquistam
se concretizou. Talvez o PRDE tenha sido o maior capacidade de pressão política junto
programa estadual que mais se aproximou aos governos estadual e federal. Muitos pro-
dessa proposição, ainda que se observem gramas federais, com recursos volumosos,­
diferenças­ conceituais e epistemológicas en- estão voltados a estratégias regionais ou
tre o que se entende por Política de Desen- territoriais de desenvolvimento. Assim, as
volvimento Regional em Os Vários Paranás regiões que estão organizadas e articuladas
e no PRDE. O simples e quase imperceptível por um plano de desenvolvimento têm con-
uso dos termos Política de Desenvolvimento dições de se credenciar e se inserir nesses
Regional, pelo primeiro, e Planos Regionais programas.
de Desenvolvimento, pelo segundo, é reve- A emergência desses planos não está
lador dessas diferenças. Sutileza que advém desvinculada da ação do governo do estado,
da própria compreensão de desenvolvimento que prestou, para a elaboração de alguns,
adotada nos trabalhos. Enquanto o primei- apoio técnico e financeiro. Tal iniciativa tem
ro admite o desenvolvimento como processo sido incentivada fortemente pela SEPL e pela
multifacetado de intensa transformação es- Sedu. Nesse aspecto, destaca-se o Programa
trutural, resultando de variadas e comple- de Formação de Líderes Públicos que, desde
xas interações sociais, e que ativa recursos 2003, vem promovendo encontros estaduais
156 materiais, simbólicos e mobiliza sujeitos so- e regionais, envolvendo um número expres-
ciais e políticos buscando ampliar o campo sivo de prefeitos, vice-prefeitos e secretários
de ação da coletividade, o segundo admite municipais, dos quais o desenvolvimento re-
que o plano físico territorial é estruturador gional é um de seus eixos estratégicos.11
do desenvolvimento e que um rol de proje- No entanto, reiterando, não há uma
tos regionais pode ser suficiente para sua política que oriente estrategicamente tais
materialização. Dessa forma, muito embora planos ou que articulem suas proposições
um trabalho tenha se constituído em subsí- no âmbito de uma construção voltada para o
dio para a elaboração do outro, as duas equi- desenvolvimento regional do estado.
pes técnicas partiram de arcabouços teóricos A própria proposição desmedida de
distintos e de proposições também distintas criação de unidades regionais, ou “regiões
quanto ao processo de implementação da metropolitanas”, algumas oriundas do pró-
política. prio executivo estadual, também se volta a
Além disso, não se podem desprezar preencher a lacuna aberta pela ausência des-
os inúmeros Planos de Desenvolvimento Re- sa política. Decorrentes da disposição cons-
gionais elaborados para praticamente todas titucional que faculta aos estados federados
as regiões do estado. O surgimento desses institucionalizar “regiões metropolitanas”,
planos pode estar apontando que, na ausên- “aglomerações urbanas” e “microrregiões”
cia de uma efetiva Política Estadual de De- para planejamento e gestão das funções
senvolvimento Regional, os municípios estão públicas de interesse comum, que antes era
se organizando para propor estratégias pró- uma prerrogativa da União, tais proposições

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os “vários paranás” e o planejamento do estado

vêm desprovidas de estratégias de desen- privilegiaram a atração do capital pelo Esta-


volvimento que articulem as unidades entre do, e o investimento público foi em grande
si e no conjunto do estado, apontando pa- parte aplicado em uma porção do território
ra a ausência e urgência do planejamento e estadual (o 1º espaço), resultando no apro-
de políticas de desenvolvimento urbano/re- fundamento da concentração econômica,
gional/territorial (Moura, Libardi e Barion, populacional e institucional de um lado, e na
2007).12 concentração da pobreza e quase ausência
do Estado, da função pública, de outro. Na
verdade, a face pública do Estado foi subsu-
mida pela face privada.
Encontros e desencontros Na sociedade capitalista, o Estado é
entre resultados técnicos capitalista. As contradições inerentes à re-
lação capital e trabalho estão refletidas no
e práticas de governo Estado, organizando-o, estruturando-o. Os
conflitos sociais, a luta de classes, a busca
Para compreender o processo de formula- pela hegemonia econômica e política estão
ção de uma Política de Desenvolvimento Re- presentes em cada ação do Estado (Figuei-
gional no Paraná é necessária uma reflexão redo, 2003). No âmbito da sociedade, é
sobre o papel do Estado na contemporanei- no processo eleitoral que a explicitação das
dade. Como foi dito anteriormente, a idéia contradições torna-se mais evidente. Pro-
de construção de uma política de desenvol- jetos de sociedade são defendidos nesse 157
vimento regional foi iniciada com um gover- momento. Organizar o estado para implan-
no que se opunha direta e explicitamente às tar o projeto eleito não é tarefa fácil. Es-
práticas neoliberais, particularmente às im- pecialmente quando se assume um estado
plementadas pelo governo do estado nas fragilizado, que mesmo assim deve condu-
duas gestões governamentais precedentes. zir os rumos do desenvolvimento, e se faz
Nessas duas gestões, de 1995 a 2002, opção pela inclusão social e redução das
acompanhando o mesmo movimento em ní- desigualdades. Tem-se, com isso, mais que
vel nacional e obedecendo às regras estabe- um problema de ordem operacional, o da
lecidas nesse nível, o governo do estado do capacidade do poder público na formulação
Paraná aplicou as medidas de flexibilização, e implementação de políticas de desenvolvi-
abertura ao capital internacional, privatiza- mento. Capacidade que esbarra no fato de
ção de serviços e órgãos públicos, criação que esses não são pressupostos, premissas
de entes privados para a oferta de serviços ou objetivos que dizem respeito à natureza
públicos e outras preconizadas pelo Consen- do Estado capitalista, bem como da socieda-
so de Washington. Destaca-se que muitos de capitalista ou do Estado capitalista. Não
políticos com esse perfil contaram com fi- é por outro motivo que inexiste nação ca-
nanciamentos do Banco Mundial e do Ban- pitalista em que a desigualdade, em algum
co Interamericano de Desenvolvimento. Em nível, não esteja presente. A concentração,
decorrência, a função de planejamento foi a heterogeneidade e a desigualdade são da
fragilizada, restringindo-se a medidas que natureza desse modo de produção.

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Se para a sociedade é no processo elei- incluir­e dinamizar a inserção ampla de seg-


toral que as contradições do conflito capi- mentos populacionais e territórios excluídos
tal e trabalho podem aparecer mais explici- no mapa da produção e capacidade de con-
tamente, no âmbito da gestão pública elas sumo. Na esfera federal, a formulação de
estão presentes cotidianamente. Os diversos uma Política Nacional de Desenvolvimento
segmentos sociais, interesses econômicos, Regional foi um avanço em relação à prática
representações políticas etc. estão repre- regional precedente, dado que reconhece e
sentados no estado, seja na condução dos prioriza em sua pauta de objetivos a atua­
trabalhos, seja na forma como o aparelho ção sobre regiões conforme desempenho
do estado está estruturado, jurídica e ins- da renda. As intenções da PNDR são elo-
titucionalmente. Por isso, ressalta-se a im- giáveis: orientar políticas e programas que
portância da participação da sociedade na promovam o desenvolvimento territorial,
formulação, aprovação e implementação de articulando políticas setoriais para regiões
políticas públicas. e sub-regiões prioritárias, sobretudo as de
Há que se mencionar, também, que os baixa renda, estagnadas e com dinamismo
governos acompanham as composições e recente, segundo tipologia proposta. Seu
apoios políticos que participam do processo fundamento reside na oportunidade de ar-
eleitoral. Nem sempre o conjunto dos parti- ticulação de iniciativas de cunho territorial,
dos que compõem o mesmo processo eleito- com vistas a ampliar os níveis de coesão e
ral, tendo à frente um único candidato, co- integração das estruturas socioeconômicas
158 munga das mesmas idéias ou instrumentos espacialmente localizadas (Brasil, 2005).
(meios) para se atingir o mesmo objetivo. Galvão (2007) avalia que os esforços
Todo esse conjunto de situações este- governamentais na construção dessa políti-
ve presente no governo do estado do Pa- ca foram positivos, tendo conseguido insti-
raná ao longo do período em que se ela- tucionalizar alguns marcos que se tornaram
boraram os estudos, proposições e políticas referência a ações do governo, inclusive os
anteriormente citadas. Elas são facilmente Programas Mesorregionais, que levaram
percebidas nas diferenças de proposições seu apelo a outras pastas ministeriais e aos
contidas em Os Vários Paranás e o PRDE estados. Mas a mesma não foi dotada de
e entre esses dois e a PDE. O mesmo pode recursos e instrumentos compatíveis com a
ser dito em relação à condução da política dimensão efetiva de sua tarefa.
de desenvolvimento do estado pela Sedu e Alguns desafios propostos não foram
pela SEPL. sequer tangenciados. A boa recepção dos
Mas esse não é fato único do Paraná. princípios gerais da PNDR não logrou ul-
Movimento semelhante vem acontecendo trapassar os limites que se antepõem a sua
também no governo federal. O perfil con- adoção prática como uma política de gover-
testador às políticas neoliberais, também no, como originalmente proposto. Alguns
presente no governo Luiz Inácio Lula da Sil- diálogos essenciais para isso não puderam
va, no Brasil, reativou os ânimos da socieda- acontecer diante da fragilidade dos instru-
de quanto às possibilidades de planejamen- mentos de ação mobilizados pela PNDR
to e gestão do desenvolvimento, de forma a (ibid., p. 346).

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os “vários paranás” e o planejamento do estado

Ou seja, por mais que se produza uma Uma política de desenvolvimento regional e
base técnica com argumentos capazes de toda ordem de problemas e soluções que ela
viabilizar a organização de uma agenda para envolve não se esgota em uma ou duas ges-
o desenvolvimento, fatores de ordem polí- tões governamentais. Reiterando, para que
tica, exigências de financiadores e reduzida se efetive, essa política tem de ser assumida
margem de pressão de municípios e seg- como um projeto de sociedade.
mentos interessados se fragilizam perante a Assim, é preciso superar a visão limita-
ausência de um Estado forte. da de ações imediatas, de crédito rápido, co-
Seguindo trajetória similar, a Políti- locando em seu lugar a verdadeira noção de
ca Nacional de Ordenamento do Território Estado, que se constrói com e na história,
(PNOT), pensada como instrumento de cres- pela ação contínua e coletiva. Ou seja, rom-
cimento econômico, justiça social e desen- per com a conduta do abandono ou destrui-
volvimento sustentável (Brasil, 2006), vem ção de projetos e ações desencadeadas por
tendo os mesmos destinos da PNDR, eviden- governantes sucessivos, sem uma séria ava-
ciando que no Brasil, o maior desafio talvez liação do que vinha se realizando e os impac-
seja o de tirar do papel, do plano teórico, tos sociais decorrentes, propondo caminhos
da simples formulação as políticas nacionais opostos, sem fundamentos sólidos, somente
consideradas e, efetivamente, assumir sua com o propósito de se colocar em evidên-
implementação, numa sistemática de gestão cia. Em síntese, superar a visão estreita de
articulada e controle social. que cada gestão governamental inicia uma
Planejamento regional é um processo nova história. Os governantes que ficam na 159
que coloca ao Estado o papel de propor e história são justamente aqueles que, ao pro-
articular ações de base territorial, antecipar jetarem o futuro, desencadeiam políticas e
situações e projetar o futuro. Talvez, no ações que vão além do seu tempo.
Paraná e no Brasil, se esteja na fase de re- Não se quer dizer com isso que o pla-
estruturar o Estado para implementar uma nejamento regional seja estático, inviolável,
política com esse perfil. Reestruturar é a uma certeza que se perpetua, independen-
palavra adequada considerando o desmonte temente das mudanças que acontecem em
sofrido pelo Estado brasileiro e o parana- qualquer nível. Enfatiza-se: é um processo.
ense em particular. Ou seja, criar condições Mudanças de natureza global e macro, em
para que políticas formuladas se efetivem. sua dimensão territorial, refletem no pla-
Mas é ao longo da implementação que o Es- nejamento realizado, demandam revisão de
tado se organiza. procedimentos, criação de novas soluções,
Entretanto, há outros dois aspectos reforço a propostas já existentes, enfim,
fundamentais nessa trajetória. O primeiro é correção de rumo, sem abandonar ou des-
o entendimento da sociedade de que esse é considerar a trajetória realizada. Mas os
o caminho, o que se efetiva pelos canais já fundamentos da política, consubstanciados
existentes de participação popular e que de- num projeto que é, antes de tudo, da socie-
vem ser ampliados. O segundo diz respeito dade, implementado sob a condução do Es-
à perspectiva pela qual o Estado é gerido. tado, devem ser firmemente sustentados.

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rosa moura et alii

Rosa Moura
Geógrafa pela Universidade de São Paulo. Doutoranda em Geografia pela Universidade Fede-
ral do Paraná. Pesquisadora do Núcleo de Desenvolvimento Regional e Urbano do Instituto
Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social – Ipardes. Pesquisadora da Rede Obser-
vatório das Metrópoles, Projeto Instituto do Milênio-CNPq (Paraná, Brasil).
rmoura@pr.gov.br

Sandra Teresinha da Silva


Enfermeira e obstetra pela Universidade Estadual de Maringá. Mestrado em Educação e Dou-
torado em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Federal do Paraná. Pesquisadora
do Núcleo de Desenvolvimento Regional e Urbano do Instituto Paranaense de Desenvolvimen-
to Econômico e Social – Ipardes. Coordenadora dos Planos Regionais de Desenvolvimento da
Secretaria de Estado do Desenvolvimento Urbano – Sedu (Paraná, Brasil)
sandrateresinha@yahoo.com.br

Maria Isabel de Oliveira Barion


Administradora e Especialista em Administração de Recursos Humanos pela Universidade Fe-
deral do Paraná. Pesquisadora do Núcleo de Estudos do Desenvolvimento Regional e Urbano
do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social – Ipardes (Paraná, Brasil).
isabelb@ipardes.pr.gov.br

Nelson Ari Cardoso


Sociólogo pela Universidade Federal do Paraná. Pesquisador do Núcleo de Estudos do De-
senvolvimento Regional e Urbano do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e
160 Social – Ipardes (Paraná, Brasil).
nelsonac@ipardes.pr.gov.br

Diócles Libardi
Veterinário e Especialização em Economia Rural pela Universidade Federal do Paraná. Pesqui-
sador do Núcleo de Estudos do Desenvolvimento Regional e Urbano do Instituto Paranaense
de Desenvolvimento Econômico e Social – Ipardes (Paraná, Brasil).
diocles@pr.gov.br

Notas
(1) Disponíveis em www.ipardes.gov.br.

(2) Os autores referenciam a importante contribuição, no desenvolvimento da pesquisa, de Car-


los Antonio Brandão, consultor e propositor da idéia de “Vários Paranás”.

(3) Espacialidade é a expressão usada para designar um recorte espacial de porção do território
que se peculiariza por algum traço determinante na interação de dinâmicas sociais, cultu-
rais, econômicas, ambientais, institucionais e territoriais, no fenômeno de produção do es-
paço, configurando uma morfologia particularizada por padrões de continuidade, relações
intensas ou articulações. Desconsidera divisões territoriais ou político-administrativas, ex-
pressando um fato (urbano-regional, regional) em si.

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os “vários paranás” e o planejamento do estado

(4) Embora reconhecidos como espacialidades, a adoção da expressão “espaço relevante”, e


não “espacialidade relevante” assume o seu uso recorrente admitido a partir de Ipardes
(2005). A idéia de “relevante” foi tomada de Diniz e Crocco (1996), que a usaram na iden-
tificação das aglomerações industriais relevantes.

(5) A escolha do limite inferior em 0,25%, quando em participações no total do estado, deve-se
ao pressuposto de que, numa situação igualitária, considerando os 399 municípios para-
naenses, essa participação hipotética seria de aproximadamente 0,25%. No caso de séries
históricas, esse marco de corte foi mantido, mesmo reconhecendo que o número de muni-
cípios do estado era menor entre os anos de 1970 e 1991.

(6) Municípios agrupados em classes que representam performance econômica e social acima
da média estadual (Silva Neto, 2006).

(7) Estudos que vêm sendo realizados pela mesma equipe de pesquisadores do Ipardes, tendo
sido concluída a análise pormenorizada do 3º espaço – porção oeste paranaense – (Ipar-
des, 2008), e iniciada a organização das informações para análise de dois outros conjun-
tos: a porção Sudoeste e o 1º espaço relevante.

(8) As Regiões Metropolitanas de Londrina e de Maringá já estavam institucionalizadas respec-


tivamente desde 1998 e 1999, mas ainda não havia, no âmbito do governo estadual, uma
instância de coordenação. As três microrregiões foram formalizadas a partir da constituição
das coordenações, embora não tenham sido institucionalizadas por lei, conforme exige a
Constituição Federal, no Artigo 25, § 3º. Há que se mencionar que, em 2006, a Coorde-
nação da Região Metropolitana de Curitiba (Comec), em funcionamento desde 1975, que
atende à principal espacialidade socioeconômica do Estado, passou a se vincular à Sedu.

(9) Há previsão de construção, na região Centro Expandido, de uma usina hidrelétrica, de duas 161
pequenas centrais termelétricas, fábrica de biodiesel e de metanol.

(10) As definições para as transferências federais no âmbito do Programa de Aceleração do


Crescimento (PAC) foram desvinculadas da PDE. Os investimentos previstos pelo Progra-
ma, para habitação e saneamento no Paraná, totalizam R$1.251,6 bilhão, incluindo inves-
timentos federais, financiamentos e contrapartidas do estado e municípios. A previsão é
atender a 18 municípios na Região Metropolitana de Curitiba e a outros 17 no interior do
estado, poucos deles pertencentes ao Centro Expandido. No Norte e Oeste serão contem-
plados os grandes centros, assim como Guarapuava e Irati na porção central do estado. Os
critérios gerais de priorização dos investimentos contemplam obras de grande porte, com
impacto na articulação e integração do território; obras de recuperação ambiental e de
bacias hidrográficas críticas; combate à mortalidade infantil elevada; atendimento à popu-
lação de baixa renda e complementação de obras já iniciadas.

(11) São quatro os eixos estratégicos deste Programa: planejamento estratégico, desenvolvi-
mento local e regional, liderança e micro e pequena empresa.

(12) Inúmeros processos e indicações legislativas encontram-se em tramitação no legislativo


estadual, correspondentes a Ponta Grossa, Cascavel, Apucarana, Foz do Iguaçu, Toledo,
Campo Mourão, Umuarama, Paranavaí, Guarapuava, Cornélio Procópio, Pato Branco.

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rosa moura et alii

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Recebido em maio/2008
Aprovado em ago/2008

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A dimensão política de Brasília
Vera Chaia
Miguel Chaia

Resumo Abstract
O texto apresenta uma abordagem política do This article presents a political approach
significado histórico de uma cidade, com o fo- to the historical meaning of a city, having
co voltado para Brasília. A nova capital federal Brasília in the spotlight. The new federal
é analisada em função das diferentes políticas capital is examined due to the role it played
implementadas pelos governos brasileiros, a in the implementation of different policies by
partir de Juscelino Kubitschek, passando pe- diverse Brazilian governments, from Juscelino
lo regime militar e alcançando o processo de Kubitschek’s period up to the democratic
transição democrática. Algumas idéias servem transition process. Some ideas are used as
de parâmetro analítico para abordar a dimen- an analytical parameter to approach the
são política de Brasília, como, por exemplo, de- political dimension of Brasília, as for example,
senvolvimento econômico, unidade territorial e economic development, national and territorial
nacional, isolamento urbano e autoritarismo, unit, urban isolation and authoritarianism,
utopia realizada, espaço urbano como cenário realized utopia, and urban space as political
político. scenario.
Palavras chaves: urbanismo e política; pla- Keywords: urbanism and politics; urban
nejamento urbano; Brasília; cidade e governo; planning; Brasília; city and government; federal
capital federal capital.

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vera chaia e miguel chaia

Muitos são os tipos de cidades. Existem pela sua “origem”, isto é, a maneira como
desde aquelas que florescem espontanea- se dá a fundação de uma cidade imprime-lhe
mente no lento fluxo da história até as que sua natureza histórica. Assim, ao analisar os
são levantadas imediatamente pela vontade motivos das grandezas e da decadência de
construtora do homem. Brasília é uma cidade­ Roma, Maquiavel trata das cidades que “os
cuja origem encontra-se na artificialidade da habitantes, espontaneamente ou movidos
política, nasceu de um projeto visionário do pela tribo de maior autoridade, decidem ha-
governante Juscelino Kubitschek de Oliveira­ bitar em conjunto“ (Maquiavel, 1979, p. 20)
e se materializou pelo plano arquitetônico e e das cidades “construídas por um príncipe,
urbanístico de Oscar Niemeyer e Lucio Cos- não com o propósito de ali fixar residência,
ta. Assim como a política foi uma invenção mas exclusivamente para a sua glória, como
iniciada pelos gregos, Brasília é um projeto dá exemplo a cidade de Alexandria, estabele-
inventado por alguns homens que agem no cida por Alexandre” (ibid., p. 20). No caso de
interior de instáveis relações de forças. Não Brasília, temos o envolvimento de um sujeito
é à toa que, entre as diferentes noções de construtor respaldado pela idéia de uma nova
política, destaca-se aquela que a vincula com capital que vem atravessando a história brasi-
o termo grego polis (politikós), “que significa leira desde a Independência. Se o projeto de
tudo o que se refere à cidade e, conseqüen­ Juscelino concretiza-se no início da década de
te­men­te, o que é urbano, civil,­público e até 60, os antecedentes do ideário de uma nova
mesmo sociável e social” (Bobbio,­ 1986, capital vem de longe: Visconde de Porto Se-
166 p. 954).­Nesse sentido a retomada do proje- guro, Francisco Adolfo de Vernhagen, já co-
to de uma nova capital brasileira constituiu- gitara uma cidade no planalto central do país;
se num significativo trunfo­ político para o José Bonifácio de Andrada, o Patriarca da
governo Kubitschek que, na retórica popu- Independência, em 1823, indica a necessida-
lista de “crescer cinqüenta anos em cinco”, de da cidade; a Constituição de 1891 registra
incorporou o entusiasmo coletivo­ nacional. a fundação de uma nova capital; e, inclusive,
E, desde sua inauguração,­em 1960, a cidade sob o governo de Getúlio Vargas foi indicado
vem enfrentando diferentes conjunturas polí- um local indeterminado no planalto central
ticas, refletindo a história do país. para alocar a nova capital do país.1
Brasília emerge, assim, de um longo
processo de afirmação do ideal de integra-
ção territorial e político do país, que se inicia
no período colonial, com a fuga da família
A cidade, a unidade
imperial de Portugal e a instalação da Corte
territorial e a de D. João VI no Brasil, atravessa o Império,
centralização do poder cuja política está calcada na proposta da cen-
tralização política pelo Poder Moderador e
Nicolo Maquiavel, em “Comentários sobre expresso na primeira Constituição Brasileira
a Primeira Década de Tito Lívio”, chama (outorgada) e alcança a República, principal-
a atenção para o fato de que as cidades e, mente com o Estado Novo (1937-1945),
portanto, Estados e Impérios são marcados quando Getúlio Vargas impõe a centralização

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a dimensão política de brasília

política como estratégia de controle governa- militares anteriores, bem como aquelas que
mental. Brasília, nesse sentido, realiza não só brotavam na sua gestão, a política desenvolvi-
a utopia da nova cidade e do novo país, mas mentista de Juscelino incentivou não só a mo-
também encarna o andamento efetivo do pro- bilização de recursos humanos e financeiros,
jeto de integridade territorial e de integração mas também o apoio popular. Nesse sentido,
nacional do país, ante o esfacelamento da uni- Juscelino afirma enfaticamente a instauração
dade experimentada pela América espanhola. do “novo” e a aceleração do tempo político ao
Brasília ganha reatualização histórica ao ser propor o desenvolvimento de cinco décadas
incorporada como um elemento fundamental durante o seu governo. Brasília será a síntese
no modelo desenvolvimentista de Juscelino perfeita desses objetivos. Uma nova capital
Kubitschek. como símbolo de um novo governo, de um
Dessa forma, interessa abordar neste novo começo e de uma nova nação.
artigo os componentes políticos que moti- Brasília é o projeto político composto
varam a criação de Brasília e marcaram al- por múltiplas facetas: incorpora o entusias-
gumas fases do seu crescimento urbano. Se mo coletivo nacional; dinamiza o fluxo dos
num primeiro momento a cidade é pensada imigrantes trabalhadores agora atraídos pe-
como conseqüência de uma determinada polí- la construção da cidade; direciona a vontade
tica de crescimento econômico, em outra eta- construtora de intelectuais e artistas; e inclui
pa histórica a cidade torna-se um território na vida brasileira a sinalização de um futuro
fértil para viabilizar os governos militares. país mais justo e mais rico. Juscelino emer-
Assim, no final dos anos 50 e início dos anos ge como o governante que propõe romper 167
60, Brasília emerge como expressão de um com os modelos do passado e potencializar
novo olhar político sobre a unidade nacional, o país para ingressar numa etapa moderna.
já no final da década de 1960 e na década Kubitschek arma um grande lance político ao
de 1970, a nova capital federal constitui-se colocar a ação governamental em torno de
em espaço facilitador de utilização de técni- um “novo começo”, identificando seu gover-
cas governamentais autoritárias dos regimes no com o esforço para construir de manei-
militares. ra particular o espaço público, traduzindo a
O nacional-desenvolvimentismo é uma construção de uma nacionalidade cosmopolita
política que se instaura solidamente no Brasil, e equiparável a parâmetros internacionais. No
sob o governo de JK, enfatizando a criação interior desse dinâmico movimento político
de um parque industrial, formação do mer- pensado por Juscelino, Brasília é pedra fun-
cado interno e o vínculo com o capital inter- damental, idéia nacionalista que convive com
nacional: os ingredientes considerados neces- as agitações culturais e ideológicas do período
sários para realizar o crescimento econômico personificadas pelo Iseb (Instituto Superior
do país.­ Juscelino Kubitschek implanta uma de Estudos Brasileiros), CPC (Centro Popular
“experiência (que) resultou num governo de Cultura da União Nacional dos Estudantes)
politicamente estável, apesar de marcado e pelo ritmo da Bossa Nova.
por crises militares no começo e no fim do A estratégia política de JK, portadora de
período” (Benevides, 2002, p. 23). Buscan- um otimismo inovador, reflete-se no âmbito
do neutralizar resquícios de crises políticas e das áreas da arte e da política, à medida que

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vera chaia e miguel chaia

[...] sem ignorar a relação ambivalente não conseguiu administrar a crise de 1964,
e, por vezes precária, existente entre pois a conjuntura política era outra, com um
estética, técnica e política, torna-se ne- sistema partidário polarizado, estando o pró-
cessário refletir sobre o convívio da in- prio partido fragmentado, sem possibilidade
dustrialização com a vanguarda artística de gerenciar os conflitos que marcaram aque-
promovida pelo discurso modernizador le período pré-golpe.
de Kubischek. A arquitetura, em escala Após nove meses da inauguração de
bem maior do que outras manifestações Brasília, Jânio Quadros assumiu a Presidência
culturais representaram para o gover- da República, no dia 31 de janeiro de 1961.
no, uma maneira visível e popular de Na Praça dos Três Poderes, Juscelino Kubits-
novamente redefinir os conceitos de
chek passou oficialmente o cargo para Jânio
território e de apropriação na era mo-
Quadros. Na festa de posse do novo governo
derna. (Souza,­2002, p. 109)
compareceram 1.500 pessoas vindas de vá-
rias partes do Brasil, mas eram oriundas, na
Assim, o governo de JK irá surgir como sua maioria, de São Paulo, local político do
sensível às manifestações populares e como novo governante. Nesse momento da posse,
articulador das expressões e desejos cultu- Brasília tornou-se um radiante pólo político,
rais engendrados por diferentes intelectuais, repetindo a festa de sua inauguração. A cida-
assumindo então a tarefa modernista de pro- de atrai, então, a atenção do país.
jetar uma nova capital. Deve ser ressaltada a
168 maneira eficiente que levou JK a se apropriar
da arquitetura tendo em vista armar uma es-
tratégia geopolítica para o país.
Interregno: entre
Tal eficiência deve-se muito ao gover-
nante, mas também à sua agremiação po-
o isolamento local
lítica. O PSD (Partido Social Democrata) foi e outros palcos nacionais
o partido de Juscelino Kubitschek e que se
caracterizou como um partido de centro, A cerimônia de transmissão do cargo não foi
sempre buscando a “conciliação e moderação” tranqüila, pois Juscelino havia sido informado
(Hippolito, 1985) e o equilíbrio e era marca- que Jânio Quadros faria um pronunciamento
do por membros e lideranças com experiência extremamente crítico ao seu governo. En-
e, segundo analistas, com competência admi- tretanto, as críticas ao governo de Juscelino
nistrativa. Durante o governo de Juscelino, o somente aconteceram quando Jânio Quadros
PSD teve uma posição de centro e ajudou a fez um pronunciamento em cadeia nacional
promover e preservar uma estabilidade políti- de rádio, no programa Hora do Brasil. O no-
ca, estabelecendo alianças com a UDN (União vo presidente acusou Kubitschek­ de privile-
Democrática Nacional), com o PSP (Partido giar certos grupos econômicos e políticos e
Social Progressista) e com o PTB (Partido de ter aumentado a dívida externa do país,
Trabalhista Brasileiro). dentre outros aspectos.­E a cidade de Brasília
Entretanto, o PSD, diferentemente de era considerada um dos fatores importante
outros momentos de crise na história política, desse endividamento do país.

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a dimensão política de brasília

A primeira reação de Jânio Quadros ao da cidade­ para conhecer seus problemas e,


se estabelecer em Brasília foi a de reclamar quando governador, costumava percorrer
de seu isolamento na cidade; afinal, essa as diferentes regiões e cidades do estado de
liderança­ surgiu em São Paulo, e toda car- São Paulo. Agora, como presidente, resolveu
reira política (prefeito, deputado estadual adotar uma prática semelhante: invento o
e governador) foi construída na movimen- “governo itinerante”, que consistia em passar
tada São Paulo. Jânio não conhecia as lide- oito dias em cada estado brasileiro. Assim,
ranças mais importantes em outros estados ao invés de permanecer em Brasília, criou
da federação brasileira, seus interlocutores uma nova maneira de conhecer os problemas
eram políticos de São Paulo e ele tinha pou- dos diferentes estados da federação e com
ca familiaridade com o Congresso Nacional, essa medida promoveu uma maior centrali-
que havia sido composto em outro período zação do poder em suas mãos (Chaia, 1991,
eleitoral. Tais fatores fizeram com que Jânio pp. 204-208). Pode-se dizer que, com o
Quadros se sentisse estranho e deslocado em governo itinerante, Jânio Quadros retirou,
Brasília. Tanto que escreveu ao diretor geral parcialmente, as funções de capital federal
do Departamento de Correios e Telégrafos o de Brasília.
seguinte ofício: Ao renunciar, em 24 de agosto de 1961,
depois de permanecer no poder somente
“Senhor diretor-geral:
por seis meses, afirmou, ao sair de Brasília:
Tenho notícias de que carta ou cartas “Maldita cidade! Ajude-me Deus a nunca mais
dirigidas a mim foram restituídas à ori- precisar voltar a este inferno!” (A Tribuna, de 169
gem por não conhecerem, os agentes do 27/8/1961).
Correio, o meu endereço. Fico sabendo Por ocasião da renúncia de Jânio Qua-
agora, que o mesmo sucedeu com o Sr. dros, seu vice, João Goulart encontrava-se
Oscar Niemeyer. em missão diplomática na China e, de ime-
Admito que os servidores ignorem quem diato, os militares colocaram obstáculos à sua
somos e onde moramos, mas sugiro posse na Presidência da República e, dessa
que V. Excelência recomendar, nesses forma, armaram uma séria crise política.
casos e em casos semelhantes, interesse Para defender a posse de Goulart, foi orga-
maior dos servidores na identificação e nizado um amplo movimento, liderado por
localização dos destinatários. Leonel Brizola, então governador do estado
J. Quadros”. do Rio Grande do Sul. A frente Legalista con-
(O Estado de S. Paulo, de 6/7/1961). seguiu apoio de amplos setores da população
e de alguns setores expressivos das Forças
Essa carta, com forte sentido irônico, Armadas. Nessa crise de sucessão, o palco
reforça a indignação e apreensão com relação dos acontecimentos não se deu em Brasília,
ao seu isolamento em Brasília. mas sim em outras regiões do país.
Quando foi prefeito da cidade de São Para assumir a Presidência, foi negocia-
Paulo, Jânio Quadros adotou um estilo da no Congresso Nacional uma emenda ins-
de lide­rança política que o aproximava de tituindo um sistema parlamentarista e o Pri-
setores­da população; ele percorria os bairros­ meiro Ministro, que faz parte do governo­de

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vera chaia e miguel chaia

Goulart, foi Tancredo Neves, político mineiro­ anticomunistas da sociedade brasileira, como
do PSD. Esse sistema vigorou até janeiro de a União Cívica Feminina, Sociedade Rural Bra-
1963, quando se realizou um plebiscito para sileira, dentre outros, e foi realizada em São
que os eleitores brasileiros se manifestassem Paulo, sob a liderança de D. Leonor de Bar-
contra ou a favor da preservação do Parla- ros, mulher do então governador Adhemar
mentarismo, vencendo a volta ao regime de Barros, liderança política do PSP. O Ipes
Presidencialista. (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e o
O governo Goulart formulou e tentou Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democráti-
colocar em prática uma política econômica ca), criados pelos setores mais conservadores
planificada, sintetizada no Plano Trienal. Os e com apoio dos Estados Unidos, também
pontos mais importantes desse plano eram fizeram uma oposição ferrenha ao governo
a manutenção da taxa de crescimento do de João Goulart.
produto, a redução da inflação e das desi- João Goulart, por sua vez, realizou, no
gualdades regionais e a melhor distribuição dia 13 de março de 1964, um grande Comí-
de renda. Para sensibilizar a opinião pública, cio na Central do Brasil, na cidade do Rio de
o governo fez uma campanha a favor das Janeiro, convocando o povo a apoiar as refor-
reformas de base (agrária, bancária, fiscal, mas de base, propagadas pelo seu governo.
administrativa) e da política externa inde- A anterior capital federal demonstrava ainda
pendente. A reforma agrária adquiriu uma sua vitalidade política. Nessa mesma cidade
preeminência sobre as outras reformas e en- teve lugar um motim dos marinheiros, que se
170 controu fortes resistências em vários setores rebelaram contra as condições de trabalho a
da sociedade brasileira. que eram submetidos por seus superiores. Os
Goulart enfrentou oposição ao seu go- marinheiros rebeldes são presos e logo a se-
verno no Congresso Nacional, principalmente guir Jango manda soltá-los, provocando uma
através das ações da UDN (União Democrá- reação crítica das Forças Armadas e, principal-
tica Nacional), que emperrou o andamento mente, dos almirantes da Marinha Brasileira.
de vários projetos enviados pelo Executivo, A destituição de João Goulart estava
além de encontrar resistências no interior das sendo articulada pelas Forças Armadas, com
Forças Armadas. Por adotar uma política na- apoio dos governadores de São Paulo, Adhe-
cionalista, sofreu represálias por parte dos mar de Barros, e de Minas Gerais, Magalhães
Estados Unidos e de outros países que desa- Pinto, com a presença da CIA americana e
provavam tal política. Vários segmentos que outros políticos como Carlos Lacerda, ex-
se opunham ao seu governo se organizaram governador do estado do Rio de Janeiro.
para depô-lo e assumir o poder do Estado. Na madrugada de 31 de março de 1964
No dia 31 de março de 1964 João Goulart tanques do Exército ocupam o estado da Gua-
foi deposto por um golpe militar. nabara e, no dia 1º de abril, a zona sul da
As grandes manifestações contra o go- cidade do Rio de Janeiro também é tomada.
verno de Jango ocorreram em cidades no João Goulart, ao saber das manobras milita-
eixo Rio/São Paulo. A primeira manifestação, res que estavam ocorrendo nos estados de
“Marcha da Família, com Deus, Liberdade”, Minas Gerais e São Paulo, viaja para Brasília,
foi convocada por setores conservadores e que não oferecia segurança ao presidente, por

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a dimensão política de brasília

ser vulnerável às manobras militares. Goulart consciência de vulnerabilidade, cenário


partiu então para Porto Alegre, no estado do de ingovernabilidade. Precisava fugir
Rio Grande do Sul. Logo após a sua saída de daquela atmosfera de agitação e gol-
Brasília, o presidente do Congresso, senador pismo. E desgrudar o Brasil do litoral:
Auro de Moura Andrade, do PTN (Partido “Não é possível que cinqüenta cidadãos
Trabalhista Nacional), opositor de Jango, na capital da República estejam a in-
declara vaga a Presidência da República e o quietar e a ameaçar cinqüenta milhões
acusa de deixar a nação acéfala, homologando de brasileiros”. (Couto, 2001, p. 20)
com essa decisão o golpe militar. Ocorreram
reações a favor do presidente, mas a então Essa última frase citada e dita por Juscelino
oposição conseguiu seu feito: destituir João indica como o seu governo estava exposto,
Goulart da presidência do Brasil. no Rio de Janeiro, às crises políticas provo-
Durante essa crise de sucessão, Brasília cadas por militares, partidos políticos oposi-
não foi palco de grandes manifestações, como cionistas e grupos organizados. A mudança
as que ocorreram no eixo RJ-SP. Ainda é uma da capital para o interior inabitado tornou-
cidade incipiente, formada “compulsoriamen- se também uma estratégia de defesa contra
te” por funcionários públicos e políticos e, oposições aguerridas e tentativas interven-
naquele período, ainda sem vida e sem ra- cionistas ou golpistas.
mificações na sociedade de grupos políticos.
Assim, seu espaço urbano não servia, ainda,
para as explosões cívicas ou manifestações 171
pontuais, mas o seu asséptico espaço urbano
Brasília: uma utopia
facilitava manifestações militares. Aliás, esse autoritária realizada
isolamento de Brasília que, paradoxalmente,
fora criada para integrar o país, atravessa a Pode-se dizer que a dimensão política de Bra-
sua história desde JK, passando por Jânio sília exacerba-se ao se constatar que a nova
Quadros, e torna-se um relevante fator para capital não apenas faz parte de um modelo de
a implantação dos regimes militares pós-64. desenvolvimento, mas também foi pensada
Brasília será portadora não apenas da como um instrumento de isolamento políti-
monumentalidade que se verifica no movi- co, um espaço protegido para o desempenho
mento moderno desde os anos 30 e na cons- governamental. A localização da cidade, sua
trução das grandes obras estatais do Estado concepção arquitetônica e o plano urbanís-
Novo, mas, paradoxalmente, também será tico são pistas que indicam vários tipos de
solução para a difícil governabilidade do pe- isolamento, principalmente o geopolítico.
ríodo que emperrava o dia-a-dia da política. Brasília é uma parte à parte do restante do
Para Ronaldo Costa Couto, JK país. Aliás, tais características antecipam
sua funcionalidade para servir aos regimes
[...] queria seu governo bem longe autoritários como os que seguem ao golpe
do Rio o mais depressa possível. Sen- de 1964. Paradoxalmente, a estratégia de
sibilidade, argúcia e instinto político. transferir a capital da agitada Rio de Janeiro
Trauma e lições do drama de Vargas, para o isolado Planalto Central­ não surtiu o

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vera chaia e miguel chaia

efeito de anteparo de golpes, como imagi- As características do autoritarismo im-


nava Juscelino. Quatro anos depois da sua plantado no Brasil pós-1964 iriam ao encon-
inauguração, um golpe militar rompe com a tro das peculiaridades encontradas na então
legalidade institucional. incipiente cidade de Brasília: controle da mo-
Brasília aparece, então, como a utopia bilização; pluralismo limitado e estabelecido
antecipadora dos governos militares, pois pelos governos militares; e poder exercido
permitiu ampliar a centralização política, por um líder ou um grupo político, expresso
o isolacionismo e a separação da sociedade pelos militares no poder. No caso específico
civil e a sociedade política no país. A nova da mobilização política, pode-se afirmar que
capital se metamorfoseou, tornando-se um essa mobilização é baixa, limitada, ocorrendo
elemento­facilitador­para a ditadura militar. uma “despolitização da massa de cidadãos”
Como cidade incipiente que era, não engen- (Linz, 1973), que são chamados à partici-
drou um espaço público vitalizado, carac- pação somente em momentos cruciais do
terizando-se por ser habitada por políticos regime político. Esse regime não possui um
profissionais, tecnocratas e funcionários pú- elemento utópico, tende a reduzir a política à
blicos que eram incentivados de diferentes administração dos interesses públicos.
maneiras para se transferirem para a recém- O primeiro presidente militar a assumir
construída capital. o cargo foi o marechal Umberto Castello
Brasília é fruto da racionalidade, orga- Branco, chefe do Estado-Maior do Exérci-
nização e cálculo que atravessavam a política to e que recebeu apoio dos líderes civis e
172 implantada no período. Seu projeto arquitetô- militares que atuaram no movimento para
nico rompe com a tradição barroca brasileira, derrubar João Goulart do poder. Ele foi elei-
instaurando a ruptura da modernidade. Essa to indiretamente pelo Congresso Nacional a
cidade não segue a tendência da colonização 11 de abril de 1964, adotando as seguin-
portuguesa, de fundar cidades desorganizadas tes decisões: cassação dos direitos políticos
originadas pelos “semeadores”, em oposição de diferentes setores da oposição, inclusive
às cidades organizadas dos “ladrilhadores” da de militares simpatizantes de João Goulart;
colonização espanhola (Holanda, 1981). política estrita de estabilização e desenvolvi-
Os governos militares ocupam gradati- mento; determinação de manter uma imagem
vamente a nova capital. Ronaldo Costa Couto de “legitimidade democrática” no mandato
(2001, pp. 289-291) relata que o general presidencial, defendendo um mandato fixo e
Médici (1970-1974) foi o primeiro a gover- sem possibilidade de reeleição.
nar exclusivamente de Brasília, consolidando Castello Branco também adotou uma
assim a capital federal. Se os anteriores go- política externa anticomunista, estabelecen­do
vernos militares, de Castello Branco e Arthur fortes vínculos com os Estados Unidos, além
da Costa e Silva, não se estabeleceram na to- de apoiar um sistema de empresa semi-livre,
talidade do tempo na cidade, os governantes apoiado e orientado por um governo cen-
militares posteriores a Emilio Garrastazu Mé- tral fortalecido. Defendeu uma democracia
dici (Ernesto Geisel e João Batista Figueiredo) tutelada e enfatizou a possibilidade da ado-
assumem definitivamente a capital como sede ção de soluções “realistas e técnicas”. Nesse
do governo. momento, justapõem-se o intenso sentido de

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a dimensão política de brasília

ordenamento da metrópole modernista e a primeiras greves operárias no meio sindical


racionalidade técnica-administrativa do go- nas cidades de Contagem, em Minas Gerais,
verno militar. e em Osasco, em São Paulo. Uma parcela do
O Ato Institucional n. 2 aboliu o sistema movimento de esquerda se organiza e passa a
pluripartidário, instituindo o bipartidarismo, confrontar as Forças Armadas e o movimento
com a criação do MDB (Movimento Demo- armado, destacando-se nessa luta as organi-
crático Brasileiro), formado por políticos que zações ALN (Aliança de Libertação Nacional),
fizeram oposição ao golpe de 64, e a Arena liderada por Carlos Mariguella, VPR (Van-
(Aliança Renovadora Nacional), formada por guarda Popular Revolucionária), AP (Ação
políticos governistas. Havia, portanto, uma Popular) e o PC do B (Partido Comunista do
vida política consentida e implantada pelo Brasil), entre outras.
governo militar. Por sua vez, a Igreja Católica muda sua
Brasília era, naquele momento, palco de postura ante o golpe militar. Se antes deu
manobras militares, de desfiles comemora- apoio à derrubada de João Goulart, após o
tivos, mas não de manifestações populares, Concílio Vaticano II e a Conferência Geral rea-
proibidas pelo regime militar. Um cenário lizada pelo Episcopado da América Latina na ci-
urbano propício para as manifestações dos dade de Medellín, na Colômbia, adota a Teolo-
fechados costumes e rituais militares. gia da Libertação, que vê a história e a teologia
O marechal Arthur da Costa e Silva ele- pela ótica dos pobres e oprimidos, e assume
ge-se presidente da República do Brasil em uma resistência ao regime militar, apoiando e
outubro de 1966, pelo Congresso Nacional, incentivando os movimentos populares. 173
através da eleição indireta, pois fora suprimi- O governo de Costa e Silva, após um
do o direito de voto do povo brasileiro. Logo confronto direto com as manifestações de
após a sua eleição, ocorre uma reativação vários segmentos da sociedade brasileira – e
da discussão política, com grupos políticos após o caso Márcio Moreira Alves, deputado
oposicionistas se rearticulando e promovendo federal do MDB que fez uma declaração con-
manifestações contra o regime militar. A UNE siderada ofensiva aos militares e que por ter
(União Nacional dos Estudantes) organiza imunidade parlamentar não pode ser proces-
grandes passeatas e, no dia 28 de março de sado –, edita, em 13 de dezembro de 1968,
1968, seria realizada uma manifestação no o Ato Institucional nº 5, que fechou ainda
Rio de Janeiro, e ela será reprimida por for- mais o governo, ampliando o autoritarismo,
ças policiais; um estudante, Edson Luís Lima a repressão e reduzindo radicalmente o uso
Souto, será morto no restaurante universitá- do espaço público.
rio Calabouço e sua morte se transformará
numa bandeira de luta contra o regime mi-
litar brasileiro. Brasília parecia separada das
dinâmicas e tumultuadas mobilizações que A democracia relativizada
ocorriam na antiga capital federal, em São
Paulo e em Minas Gerais. De modo geral, o caso do militarismo brasi-
O movimento operário se reorganiza e, leiro é caracterizado como caso único, sui ge-
em abril e julho de 1968, irão ocorrer as neris, pois, diferentemente de outros regimes

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vera chaia e miguel chaia

autoritários instaurados na América Latina, militares e com as políticas econômicas ado-


não possuiu características estáveis e defini- tadas pelos diferentes governantes.
tivas. Nesse sentido, Carlos Estevam Martins Sustentando uma tradição política bra-
e Sebastião Velasco e Cruz indicaram que es- sileira de difícil equilíbrio entre os três pode-
se regime autoritário possuía um alto poder res, no regime autoritário, o Poder Executivo
de transmutação, ocorrendo um processo de manteve a preponderância sobre o Legislativo
constante reestruturação do regime, expresso e o Judiciário. Intensificando tal tendência, os
através de sucessivas alterações­em algumas­ militares governaram fazendo uso constante­
de suas esferas (Martins e Cruz,1983), por- dos decretos-leis, além de baixarem atos ins-
tando dois aspectos aparentemente contradi- titucionais e alterarem as regras do jogo elei-
tórios: a “durabilidade”, isto é, continuidade toral segundo as conveniências do poder cen-
de 21 anos dos militares no poder, sem pro- tral. Predominou, dessa forma, o casuísmo
mover alternância entre governo e oposição; e o controle da participação política – então
a “mutabilidade”, isto é, constantes transfi- restrita a certos grupos e instituições, delimi-
gurações promovendo ora a liberalização, ora tados pelos próprios governantes. Portanto,
vigorando a repressão. O regime autoritário o pluralismo foi limitado e a exclusão política
brasileiro conseguiu manter-se durante todo foi uma constante, reduzindo ou eliminando
esse período exatamente pela capacidade de os espaços políticos possíveis a oposições ou
jogar com esses dois aspectos, conseguindo críticos do governo.
assim viabilizar por maior tempo a conser- No caso específico do Brasil, a questão
174 vação do poder político nas mãos do grupo da transição começou a ser discutida nos
militar. meados dos anos 70, com o processo de li-
Quanto à diversidade verificada na trama beralização promovido pelo governo Geisel.
de relação entre diferentes tipos de poder, A transição era entendida, de forma geral,
pode-se dizer que o autoritarismo brasileiro como processo gradual rumo à democracia,
foi um sistema híbrido, pois atendeu aos inte- com permanência de traços do regime an-
resses do capital oligopólio, representado pe- terior e criando condições de confrontos e
las empresas multinacionais, fortalecendo ao lutas entre atores políticos diversos. Dada a
mesmo tempo a empresa pública e ampliando sua conceituação polêmica e a sua efetivação
a área decisória do governo e sua capacidade histórica, por vezes, contestada como tal,
de controle sobre a sociedade civil. O Estado cabe perguntar: afinal, quais são as forças
brasileiro fortaleceu-se às custas da sociedade desencadeadoras desses processos de transi-
civil, expandindo suas atividades e exercendo ção e quando se pode afirmar que a transição
seu papel disciplinador e repressor. A coe- foi concluída?
são interna ao poder, baseou-se então num O denominado processo de abertura po-
“pacto de dominação” com a participação de lítica coincide com a crise econômica gerada
funcionários públicos, com “burguesia de Es- pelo endividamento do governo anterior –
tado”, com o grande empresariado privado do general Emílio Garrastazu Médici – e pela
e com setores das “novas classes médias” crise internacional gerada pelo aumento do
(Cardoso, 1975). Esse pacto se alternou de preço do barril do petróleo, associada à falên-
acordo com as especificidades dos governos cia do “milagre econômico brasileiro”. Tal ce-

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a dimensão política de brasília

nário gera, conseqüentemente, desemprego representante dos militares no poder. E nesse


e até mesmo um estremecimento de relações processo de formação de uma nova onda de
entre a burguesia nacional e a internacional, resistência e de crítica ao governo militar,
ante o processo crescente de estatização. Brasília irá se destacar gradativamente como
Conjugado a esses fatores, destaca-se a espaço de manifestação popular.
crise de legitimidade do próprio regime mili- Em síntese, durante a década de 1970 e
tar, tanto que, como um significativo sinal de começo da de 1980, caracterizou-se o regime
questionamento desse regime, compreende- autoritário brasileiro como um regime que
se­­­o processo eleitoral de 1974, que acabou fortaleceu o Estado, promoveu um projeto de
por se constituir em um plebiscito, em que os desenvolvimento econômico visando favore-
governos militares foram julgados negativa- cer as empresas multinacionais e a burocracia
mente. Naquela conjuntura política, o grande estatal, excluiu amplos setores da sociedade,
vencedor foi o MDB (Movimento Democrático limitou a participação política, controlou as
Brasileiro) que se transformou, legitimamen- ações do Legislativo e Judiciário e – nesse
te, no partido da oposição. quadro assim configurado – pode-se indagar
Também se destaca como condicionan- ainda quais foram os traços autoritários que
te da abertura política o posicionamento de permaneceram nesse processo de transição
determinados setores das Forças Armadas, – já que, como se assinalou anteriormente, o
ligados ao castellismo, que optaram por pro- processo representou avanços, mas também
mover esse processo de liberalização visando manteve traços anteriores.
recuperar o controle sobre as forças militares Deve-se avaliar as especificidades da 175
(Stepan, 1986), uma vez que proliferavam transição brasileira tendo em vista melhor
serviços secretos e aparatos paramilitares, definir a transição política. Embora o país te-
sem o consentimento do poder central. O nha passado de um governo militar para um
então presidente general Ernesto Geisel, na governo civil, com a eleição indireta da chapa
verdade, preparava a saída dos militares do Tancredo Neves/José Sarney, observou-se que
poder, de forma planejada, objetivando não a presença dos militares no governo Sarney
prejudicar a imagem dos militares, evitando foi uma constante. Esse grupo preservou suas
assim o que ocorrera em processos seme- prerrogativas (Stepan, 1988) e se manteve
lhantes em outros países da América Latina, no novo contexto político da democratização.
onde a imagem dos militares sairia extrema- Isso se tornou possível porque os militares
mente desgastada. controlaram todo o processo de transição,
Associado a todos esses fatores, ainda negociando, regulando e alterando as regras
devem ser relevadas a organização e a pres- do jogo político, uma constante preocupação
são da sociedade civil brasileira sobre o regi- de manter as rédeas desse processo tornado
me militar, o que, significativamente, também “lento, gradual e seguro”.
possibilitou o aceleramento do processo de Um outro aspecto que ainda caracteri-
abertura política, viabilizada com graves pro- zou essa transição diz respeito à presença
blemas que indicavam retrocessos e ganhos de atores marcadamente autoritários que se
que levavam a avanços durante o governo transmutaram em democráticos. Ou seja, o
do general João Batista Figueiredo, o último processo de democratização teve à sua frente

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atores que vivenciaram todas as vantagens de repúdios individuais, a cidade adequa-se


que o poder propiciou e, como camaleões, aos novos tempos e, agora, facilita também
eles se adaptaram às novas circunstâncias e a expressão política que se origina nos movi-
se incorporaram ao sistema político. Isso im- mentos sociais. E, assim, ela continua guar-
plicou a preservação e ampliação de práticas dando as tensões agônicas que se produzem
políticas perversas, como a clientelística, o e reproduzem ao se considerarem os jogos
nepotismo, a corrupção, a manipulação e a de forças e interesses que se originam no
apropriação da “coisa pública”. interior dos gabinetes e aqueles que se ma-
nifestam nas ruas.
Em 1984, com a “Campanha pelas Di-
retas Já”, Brasília alcança um novo patamar
A cidade como espaço de uso do espaço público urbano, pelas mani-
de novas tensões festações populares que acontecem em todas
as grandes cidades e, de forma significativa,
Brasília torna-se cada vez mais um lócus na capital federal. Essa dinâmica de ocupa-
significativo dos debates e ações políticas, à ção do espaço público amplia-se a partir da
medida que o processo de transição avançava. autonomia política formal que a cidade ob-
A cidade ia se constituindo numa efetiva ca- tém pelo Artigo 18 da Constituição Federal
pital federal, ao abrir seu espaço para novas de 1988, que dá o direito à população pa-
forças institucionais e também por alargar- ra a escolha direta de seus representantes.
176 se, repercutindo em diferentes pontos das Brasília, a capital federal, iniciou então um
instituições e territórios do país. Se, anterior- movimento de aproximação com o restante
mente, a nova capital ampliou e facilitou os do país. Com a transição política, nos anos
fluxos políticos baseados nos interesses dos 70 e a instauração plena da democracia, a
governantes, a partir do momento em que partir dos anos 80, Brasília abre-se para a
a democracia se consolida no país, a cidade política nacional e torna-se uma referência
passará a receber novos sujeitos históricos para se medir a consciência cívica do país. Seu
que passam a atuar no território urbano das território torna-se um espaço aberto para as
ruas e praças de Brasília. Centro de chegada mais diferentes manifestações da sociedade
de caravanas, local de manifestações das mais brasileira, mobilizada por diferentes idéias,
diferentes ordens e até zona de expressão projetos e agentes políticos.

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a dimensão política de brasília

Vera Chaia
Graduada em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutora em
Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Professora do Programa de Estudos Pós-
Graduados em Ciências Sociais e do Departamento de Política da Faculdade de Ciências Sociais
e Coordenadora e Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política – Neamp, da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pesquisadora do CNPq (São Paulo, Brasil).
vmchaia@pucsp.br

Miguel Chaia
Graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutor em
Sociologia pela Universidade de São Paulo. Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados
em Ciências Sociais e do Departamento de Política da Faculdade de Ciências Sociais e Coorde-
nador e Pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política – Neamp, da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (São Paulo, Brasil).
mwchaia@pucsp.br

Nota
(1) Tal medida no governo Getúlio Vargas permitiu que Juscelino acelerasse a mudança da ca-
pital do Rio de Janeiro para Brasília
177

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Recebido em mar/2008
Aprovado em jun/2008

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Território e experiência imigratória:
os refugiados em São Paulo
no pós-Segunda Guerra Mundial
Maria do Rosário Rolfsen Salles

Resumo Abstract
O artigo resultou de pesquisa realizada junto This article is the result of a research study
ao Memorial do Imigrante, SP, cujo objetivo carried out at the Immigrant’s Memorial of
foi a construção de um banco de dados sobre São Paulo. It aimed at the construction of a
a entrada de imigrantes refugiados em São database about the entrance of refugees in São
Paulo, no pós-Segunda Guerra Mundial, entre Paulo after the Second World War, between
1947 e 1951. Trabalhou-se com uma amostra 1947 and 1951. We worked with a sample of
de pouco mais de 10%, de um total de mais 10% of a total of more than 5,000 forms. We
de 5.000 fichas. Considerou-se a inserção dos considered the immigrants’ insertion in industrial
imigrantes nas ocupações industriais e nas em- occupations and in employing companies, as
presas empregadoras do período, a localização well as the location in the territory of those
no território dessas empresas e residências, companies and residences, with the objective
com o objetivo de entender as formas de agru- of understanding the forms of agglutination of
pamento de cada uma das nacionalidades que each nationality that composed those groups
compõem o grupo de imigrantes provenientes of immigrants, which originated from Eastern
da Europa do Leste e que se encontravam em Europe and were in refugee camps. The results
campos de refugiados. Os resultados revelam can help to understand the urban history and
uma faceta da história urbana da imigração em the development of working class districts in
São Paulo. São Paulo.
Palavras-chave: São Paulo; bairros; indús- Keywords: São Paulo; districts; industry;
tria; imigrantes; refugiados. immigrants; refugees.

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maria do rosário rolfsen salles

Introdução a área entre a Luz e o Brás e parte do Bom


Retiro, o que caracteriza a evolução urba-
na da cidade até 1900 é que ela se dá de
O objetivo do presente trabalho é apresen-
maneira pouco compacta e já apresenta um
tar alguns resultados decorrentes de pes-
“surto industrial” significativo. A cidade que,
quisa realizada com documentação presente
em 1890, conta com 64.939 habitantes,
no Memorial do Imigrante, SP, que se ateve
passa para 239.820 em 1900, quase qua-
aos anos de 1947 a 1951, especialmente
druplicando (Langenbuch, 1976). É uma fa-
os anos de 1947, 48 e 49, que constituem
se em que esse aumento se deve, em grande
aqueles em que se deram as maiores entra-
parte, à imigração subsidiada, especialmente
das de imigrantes conhecidos como refugia-
à imigração italiana.
dos ou deslocados de guerra no Brasil. No
Esse período caracteriza-se por arrua-
presente trabalho, optou-se por focalizar
mentos isolados, completamente separados
uma amostra de 10% do total de entradas
da cidade propriamente dita. Caracteriza-se
em São Paulo, que totaliza pouco mais que
também pela absorção quase total do cintu-
5.000 imigrantes, considerando-se que as
rão das chácaras. A parte arruada vai da Vár-
fichas de entrada eram preenchidas em no-
zea do Tietê, Barra Funda, Belenzinho, até
me do imigrante, mas incluem dados sobre
a Quarta Parada, Mooca, Vila Deodoro, Acli-
toda a família. Uma descrição do perfil desse
mação, Paraíso, Santa Cecília, Vila América e
grupo foi feita em trabalho anterior, publi-
Higienópolis. Além desses bairros, Vila Ma-
cado na revista Studi Emigrazione (Salles,
180 riana, Vila Clementino e Perdizes aparecem,
2004). No presente trabalho, procurou-se
então, como apêndices desse bloco mais
identificar a localização das diferentes nacio-
compacto. Pinheiros, antigo aldeamento in-
nalidades que compõem o grupo, na cidade
dígena, e a antiga Freguesia do Ó aparecem
de São Paulo e as razões que determinaram
como loteamentos com arruamentos bastan-
as escolhas dos bairros.
te amplos, o que denota a expansão da cidade
e a tendência do desdobramento do espaço
urbano. O transporte urbano já estava relati-
A cidade de São Paulo vamente desenvolvido desde finais do século,
primeiro com os bondes “a tração animal”
e o seu desenvolvimento (cuja primeira linha se inaugura em 1872,
até a década de 1940 ligando o Centro à Estação da Luz), depois
com o bonde elétrico (depois de 1900), in-
A cidade que os imigrantes encontrariam no terligava o espaço urbano com o auxilio da
final da década de 1940 era, evidentemen- malha ferroviária do estado, a qual, em par-
te, bastante diferente da metrópole de ho- te, penetrava na cidade interligando a ativi-
je. Como se sabe, São Paulo se desenvolveu dade cafeeira e o desenvolvimento urbano da
muito rapidamente a partir do seu núcleo cidade. O bonde elétrico facilita a expansão
inicial, desde finais do século XIX. Embora, difusa do espaço urbano, estendendo suas li-
em 1890, já apareçam arruados os bairros nhas aos bairros mais afastados e a regiões
da Bela Vista, Vila Buarque, Santa Cecília e ainda não urbanizadas (ibid.).

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território e experiência imigratória: os refugiados em são paulo no pós-segunda guerra mundial

Os bairros são relativamente isolados, entre a Lapa e a Vila Leopoldina é ocupado


mesmo no período posterior a 1900, o que por novos loteamentos e algumas áreas vizi-
se acentua com a implantação dos núcleos nhas ao bloco central são também arruadas:
coloniais nos arredores da cidade. Os núcleos­ Pacaembu,­Jardim América, Jardim Europa,
coloniais se caracterizam pela entrada de J. Paulista, Alto da Mooca. Todos, segundo
imigrantes estrangeiros, na época, italianos. Langenbuch,­são mais ou menos desprovidos
Eles auxiliam na reorganização espacial, que de edificações, permanecendo uma tendên-
se traduzia numa maior valorização do cha- cia do perío­do anterior, que é a especula­
mado cinturão caipira. As ferrovias, que já ção imobiliária. Entretanto, esboçam-se
existiam desde o período anterior, demons- novas tendências, entre as quais a ocupação
trando atrair as indústrias, continuam­ a de trechos de várzea com loteamentos re-
desempenhar importante papel como pola- sidenciais. A isso se chama “surgimento do
rizadoras da industrialização e de formação cinturão de loteamentos residenciais subur-
de bairros e conferem às faixas servidas por banos”. Surgem os “Bairros Jardins”, des-
elas uma “vocação suburbana” que se man- tinados às classes abastadas, há uma valo-
teria posteriormente. Exemplos bastante rização do Setor Oeste da cidade, o ônibus
significativos são a Ferrovia Santos-Jundiaí, surge como novo veículo de transporte co-
notadamente o trecho da Mooca-Barra Fun- letivo, com 35 linhas municipais em 1935;
da e a Sorocabana, entre a Estação Central e persiste, em 1940, a pequena densidade de
a Barra Funda, onde as indústrias adensam. ocupação urbana da porção mais externa da
Depois de 1900, dá-se o crescimento das cidade, o que denota a especulação imobiliá­ 181
áreas afastadas das ferrovias, como é o caso ria desenfreada em que os terrenos se vêem
de Itapecerica e Embu. Cotia e Guarulhos já artificialmente valorizados. Há, segundo o
eram municípios atingidos pela ferrovia du- autor citado, um grande impulso gerador
rante o período.1 de subúrbios residenciais que se originou
Segundo Langenbuch, de 1915 a da ampliação do parque industrial na faixa
1940, verifica-se a expansão propriamen- de várzeas e terrenos fluviais, onde se ve-
te urbana de São Paulo, o início da metro- rificará a maior concentração de imigrantes
polização. Segundo o mesmo autor, se no a partir de meados dos anos 40, conforme
período de 1900 a 1920 houve um cresci- dados da pesquisa com os imigrantes entra-
mento de 141% na população, entre 1920 dos no pós-segunda guerra.
e 1940, há um crescimento de 124% que, O Mapa Sara Brasil, de 1930, mostra
embora seja relativamente menor, é maior o colar quase contínuo de indústrias que
em termos absolutos. Em 1920, a cida- se estabelecem entre a Lapa e o Ipiranga.
de contava com 579.033 habitantes e, em Como dissemos no início, essa implantação
1940, com 1.294.223. Embora continue convidava os operários a se estabelecerem
a tendência anterior de um certo isolamen- em torno das estações ferroviárias fora da
to dos bairros, já há um esboço de arrua- cidade, onde os terrenos e os aluguéis eram
mento entre vários deles, como Pinheiros e mais baixos. Essa função residencial dos
Consolação; entre Perdizes e a Lapa, nasce subúrbios, com bem mostra Langenbuch,
a Vila Pompéia e a Vila Romana; o espaço também se caracterizou pela implantação de

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maria do rosário rolfsen salles

populações­ estrangeiras em terrenos cam- polização­ recente que se desenvolveria­ a


pestres da zona suburbana, como é o caso partir daí. A cidade de São Paulo que os
dos anglo-saxônicos e alemães que se insta- imigrantes desembarcados na Hospedaria
laram no Brooklyn e no Tremembé, atraindo de Campo Limpo encontraram era já, ao
posteriormente outros imigrantes nórdicos. mesmo tempo, bastante complexa, mas
No conjunto, a maioria dos bairros foi também cheia de oportunidades. Ela era
comandada pela ferrovia e pela implantação uma cidade tradicionalmente receptora de
industrial e operária que orientou a expan- imigrantes e esses, de maneiras diferentes,
são suburbana. Nesse processo aparecem: encontravam identidades e se mesclavam à
São Bernardo, Santo André, São Caetano, vida da cidade na sua tendência há muito
como “zona industrial paulistana”, que, na esboçada à industrialização.
década de 1940, são bairros bastante signi-
ficativos na concentração dos imigrantes do
período estudado, sem considerar as eman-
cipações posteriores de alguns dos bairros A inserção dos imigrantes
e sua transformação em municípios, como e a constituição dos
Santo André, São Caetano e São Bernardo. bairros na década de 1940
De acordo com Langenbuch, há uma
outra tendência do período, que é o desen-
volvimento do meio rural circundante, e que Os imigrantes entrados na década de 1940
182 de certa forma também tem a ver com os participaram da formação dos bairros, não
imigrantes, desenvolvendo-se com equipa- no sentido da formação de quistos, mas evi-
mento hidráulico e hidroelétrico da cidade; denciavam uma certa aglutinação, como se
desenvolvimento de uma recreação campes- observará nos dados apresentados nas Ta-
tre e de uma agricultura comercial visando belas a seguir.
a cidade, com a produção de frutas e hor- Inicialmente, a Tabela 1 apresenta da-
taliças num cinturão verde desenvolvido em dos sobre os imigrantes entrados nos anos
grande parte pelos japoneses. Os japoneses de 1947, 48 e 49, segundo as principais na-
formam o terceiro grupo estrangeiro a se cionalidades.
fixar em São Paulo visando o meio rural, co- A participação dos imigrantes das di-
mo haviam feito os italianos e os alemães. versas nacionalidades, que são o nosso ob-
Com a implantação de Cotia, em 1913, eles jeto de estudo nesse contexto de evolução
desenvolveram a agricultura de tipo subur- urbana, não é muito “visível”, nem numeri-
bano que abastecia a cidade, fenômeno que camente muito expressiva, como se verifica
acompanhou a crescente industrialização e pela Tabela 1. A maior parte das entradas
urbanização da metrópole paulista e o de- se deu através da International Refuges Or-
senvolvimento de suas cidades-satélite e o ganization (IRO), entre os anos de 1947,
conseqüente aumento da demanda de abas- 48 e 49. Entretanto, são de fundamental
tecimento que a expansão exigia. importância num “nicho” bastante significa-
A década de 1940, dessa maneira,­ é tivo de ocupa­ções e na própria constituição
um marco no processo da grande me­t ro­ urbana da cidade de São Paulo, dadas as

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Tabela 1 – Deslocados de guerra (DPs) matriculados na Hospedaria de Campo Limpo


durante o triênio 1947, 1948 e 1949, segundo a nacionalidade.

1947 1948 1949 Total


Nacionalidades
nºs % nºs % nºs % nºs %
Poloneses 923 35,78 1.024 26,82 1.282 26,21 3.229 28,60
Ucranianos 439 17,02 517 13,54 430 8,79 1.386 12,27
Húngaros 11 0,42 267 6,99 595 12,16 873 7,73
Baltas 363 14,07 234 6,13 420 8,58 1.017 9,01
Russos 141 5,46 391 10,24 323 6,60 855 7,57
Iugoslavos 58 2,24 402 10,53 338 6,91 798 7,07
Tchecos 13 0,50 84 2,20 176 3,59 273 2,41
Outras 187 7,25 636 16,66 944 19,3 1.767 15,65
Apátridas 444 17,21 236 6,18 187 3,82 867 7,68
Sem informação – – 26 0,68 196 4,00 222 1,96
Total 2.579 100,0 3.817 100,0 4.891 100,0 11.287 100,0

Fonte: Boletim do Departamento de Imigração e Colonização, n. 5, dezembro de 1950.

características­ gerais da sua evolução, como aponta caminhos percorridos nas primeiras 183
“mão-de-obra qualificada” e, especialmente, fases, em que a busca de empregos era de-
a formação dos bairros industriais. terminante. Há diferenças entre a concen-
Embora seja um fato mais ou menos tração das empresas e das residências, que
aceite, que não há formação de quistos ou talvez se deva ao processo descrito ante-
bairros étnicos em São Paulo, como é o caso riormente, em que à tendência de concen-
de Nova York, por exemplo, podemos dizer tração industrial se soma a busca dos locais
que há evidentes concentrações étnicas. Tal- em que os aluguéis ou os terrenos eram
vez a não visibilidade desse grupo de nacio- mais baratos.
nalidades na cidade de São Paulo e no inte- De uma maneira geral, também as pro-
rior se deva exatamente ao fato de que se fissões declaradas no passaporte no momen-
tratam de grupos menos expressivos nume- to da chegada a São Paulo determinaram as
ricamente. A localização desses imigrantes oportunidades de trabalho na chegada dos
na cidade de São Paulo evidencia aglomera- imigrantes, mas indicam algumas diferenças
ções que nos ajudam a entender as aproxi- entre as efetivamente desempenhadas no
mações a determinados grupos, como os de primeiro emprego.
mesma nacionalidade ou religiosos. A locali- Ou seja, se havia 71% dos imigrantes
zação também é determinada pela oferta de classificados como operários qualificados,
oportunidade de trabalho. 21%, como técnicos e profissionais de ní-
A concentração/dispersão dos imigran- vel médio e superior e 9% como serviços
tes pelos bairros na cidade de São Paulo e ocupações não qualificadas, os empregos

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Tabela 2 – Ocupações desempenhadas pelos imigrantes no 1º emprego,


segundo as nacionalidades

Téc. e profis. – Serviços e


Operários
nível médio e ocupações não Total
Nacionalidades qualificados
superior qualificadas
nºs % nºs % nºs % nºs %
Poloneses 111 33,3 9 18,4 8 22,2 128 30,62
Ucranianos 49 14,7 1 2,0 2 5,6 52 12,44
Húngaros 25 7,5 10 20,4 3 8,3 38 9,09
Baltas 26 7,8 9 18,4 4 11,1 39 9,33
Russos 31 9,3 5 10,2 3 8,3 39 9,33
Iugoslavos 29 8,7 2 4,1 3 8,3 34 8,13
Tchecos 14 4,2 3 6,1 5 13,9 22 5,26
Outras 11 3,3 4 8,2 2 5,6 17 4,07
Apátridas 24 7,2 5 10,2 2 5,6 31 7,42
Sem informação 13 3,9 1 2,0 4 11,1 18 4,31
184
Total 333 100 49 100 36 100 418 100
Fonte: Listas de Desembarque – Hospedaria de Campo Limpo – Memorial do Imigrante, São Paulo.

Tabela 3 – Profissão declarada e ocupação desempenhada no 1º emprego

Serviços e
Operários Téc. Prof. Nível
ocupações Total
qualificados médio e superior
não qualificadas
Passaporte 71,0% 20,6% 9,1% 100%
1º emprego 79,6% 11,7% 8,6% 100%

Fonte: Listas de desembarque, Memorial do Imigrante, SP.

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efetivamente­ conseguidos nos primeiros ríodo examinado. Assim, foi possível acom-
contratos em São Paulo indicam um aumen- panhar, através das mudanças de emprego,
to daqueles classificados como operários as trajetórias ascendentes desses primeiros
qualificados para quase 80%, ao passo que técnicos qualificados que compunham o gru-
os classificados como técnicos de nível médio po. Além disso, as ocupações de nível mé-
e superior caem para 11,5%, enquanto que dio e superior já envolviam, desde o início,
os serviços se mantêm, praticamente. Esse cargos como engenheiros, assistentes de
dado é significativo, na medida em que in- várias ordens, calculistas, administradores,
dica um primeiro ajuste das qualificações ao químicos, especialistas em hidráulica, em
mercado de trabalho e salários ao chegar, laticínios, embutidos, papéis, gráfica, rádio,
de acordo com as condições paulistas. elevadores, professores, etc.
Uma análise das ocupações que com- Uma análise da distribuição das ocupa-
põem cada uma dessas categorias profissio- ções entre nacionais e estrangeiros poderia
nais ajuda também a compreender o leque de mostrar em que medida os estrangeiros
opções que eram oferecidas aos imigrantes.­ realmente ocupavam os postos mais quali-
Um quadro demonstrativo das principais ficados. No entanto, isso demandaria outro
profissões, oferecido pelo Departamento de tipo de fontes. De qualquer maneira, é bom
Imigração e Colonização à época, evidenciam lembrar que estávamos sob a legislação dos
semelhanças entre as profis­sões encontradas chamados 2/3 (dezembro de 1930), que
na pesquisa (profissões de­sempenhadas pe- visava proteger o trabalhador nacional, o
los “Displaced persons” – Dps, RIC n. 1950).­ que provocou muitas nacionalizações, con- 185
Os operários qualificados referiam-se a forme pudemos verificar nos depoimentos
ocupa­ções especializadas na indústria metal- e nas anotações das fichas preenchidas no
mecânica como automecânicos, eletricistas, momento da chegada. A julgar, entretanto,
ferramenteiros, ajustadores, montadores, pelas justificativas dos defensores da imigra-
serralheiros, torneiros-mecânicos, etc., assim ção contidas nos artigos da revista Imigra-
como soldadores, vidreiros, ferreiros, enca- ção e Colonização analisados em trabalho de
nadores, carpinteiros, marceneiros, etc., que 2007 (Salles, 2007), os estrangeiros eram
refletiam bem o estágio de desenvolvimento muito bem-vindos quando se tratava de de-
da indústria paulista na época, ou seja, uma sempenhar tarefas que exigiam qualificação.
indústria a caminho da industrialização pesa- Dessa maneira, as empresas empre-
da que caracterizaria o desenvolvimentismo gadoras nesse momento, muitas das quais
da época JK com a implantação da indústria já colocavam as suas necessidades junto às
automobilística na década seguinte. autoridades e à Hospedaria, de modo que
Na medida do possível, acompanhou-se boa parte já chegava com um contrato de
os depoimentos orais colhidos pela Profa. trabalho,­ eram empresas de médio e gran-
Sonia M. de Freitas e disponíveis junto ao de porte, como frigoríficos, construtoras,
Arquivo da Biblioteca do Memorial do Imi- firmas de engenharia, mecânica, de auto-
grante, bem como realizaram-se entrevis- peças, de produtos alimentícios, de tecidos
tas com alguns membros significativos das e estamparia, de motores, como a montado-
nacionalidades imigrantes presentes no pe- ra da General Motors, indústria de couros,

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Tabela 4 – Distribuição dos imigrantes pelas zonas da cidade de São Paulo,


segundo as nacionalidades – Empresas

Outras
Centro Norte Sul Leste Oeste Total
regiões
Nacionalidades
nº % nº % nº % nº % nº % nº % nº %

Poloneses 22 20,0 1 5,3 18 36,0 8 25,8 19 39,6 19 40,4 87 28,5

Ucranianos 5 4,5 2 10,5 4 8,0 7 22,6 6 12,5 12 25,5 36 11,8

Húngaros 10 9,1 4 21,1 2 4,0 4 12,9 6 12,5 3 6,4 29 9,51

Baltas 17 15,5 3 15,8 5 10,0 3 9,7 4 8,3 3 6,4 35 11,4

Russos 12 10,9 2 10,5 5 6,0 0 0 2 4,2 2 4,3 23 7,54

Iugoslavos 10 9,1 3 15,8 3 4,0 5 16,1 3 6,3 2 4,3 26 8,52

Tchecos 11 10,0 1 5,3 2 8,0 2 6,5 3 6,3 2 4,3 21 6,89

Outras 5 4,5 1 5,3 4 8,0 2 6,5 1 2,1 0 0 13 4,26

Apátridas 13 13,0 1 5,3 4 6,0 0 0 3 6,3 2 4,3 23 7,54

Sem informação 5 4,5 1 5,3 3 9,8 0 0 1 2,1 2 4,3 12 3,93

Total 110 100 19 100 50 100 31 100 48 100 47 100 305 100

Fonte: Listas de Desembarque – Hospedaria de Campo Limpo – Memorial do Imigrante.

186 mineração, etc. Entre as empresas, estão sobretudo Mooca, Belenzinho, Ipiranga, Ta-
relacionados nomes, muitos dos quais es- tuapé, Vila Bela, Vila Zelina, Vila Prudente,
trangeiros, como a Swift, a Armour, a Ge- São Caetano, Santo André, São Bernardo,
neral Motors, a Firestone, ou pertencentes etc. De uma maneira geral, os poloneses se
a imigrantes como as Indústrias Reunidas F. encontram em maior número, na Zona Oes-
Matarazzo, a Fichet Schwartz e Hautmont, te (39,6%), Sul (36%) e Centro (20%). Os
a Fiação de tecidos e estamparia Ipiranga ucranianos, mais concentrados em São Cae-
Jafet, etc. tano, encontram-se em 22,6% na Zona Les-
A Tabela 4 fornece uma idéia da dis- te, depois Oeste (12,5%), Norte (10,5%),
tribuição dos imigrantes pelas empresas, se- Sul (8%), Centro (4,5%). Para os húngaros,
gundo diferentes regiões da cidade de São há uma maior concentração em empresas da
Paulo. Zona Norte (21,1%), Leste (12,9%), Oeste
Como se verificou pela análise efetuada (12,5) e menor no Centro (9,1%). Os baltas
por Langenbuch sobre a estruturação dos e os russos se concentram mais em empre-
bairros naquele momento, há uma nítida­ sas localizadas no Centro e Zona Norte.
concentração em bairros industriais que Com relação aos locais de residência,
compõem o Centro, a Zona Sul, Leste e Oes- há diferenças interessantes no que se refe­
te, que são zonas de expansão industrial na re­ à concentração e que nos auxiliam na
década de 1940, sobretudo as regiões Oeste compreen­são dos caminhos seguidos pelos
em expansão, a Água Branca, a Lapa, Vila grupos em São Paulo. As escolhas, como
Romana, Vila Anastácio, Osasco; Sul/ Leste, dissemos, do local de moradia, dependiam,

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Tabela 5 – Distribuição dos “deslocados de guerra” pelas zonas urbanas


do município de São Paulo, segundo as nacionalidades – Residência

Outras
Nacionalidades Centro Norte Sul Leste Oeste Total
regiões

nº % nº % nº % nº % nº % nº % nº %

Poloneses 8 14,8 4 19,0 38 35,5 22 28,9 36 38,7 16 38,1 124 31,5

Ucranianos 0 0 1 4,8 11 10,3 12 15,8 12 12,9 7 16,7 43 10,9

Húngaros 8 14,8 2 9,5 7 6,5 5 6,6 13 14,0 5 11,9 40 10,1

Baltas 10 18,5 2 9,5 8 7,5 6 7,9 5 5,4 6 14,3 37 9,41

Russos 0 0 3 14,3 8 7,5 13 17,1 5 5,4 2 4,8 31 7,89

Iugoslavos 4 7,4 2 9,5 14 13,1 4 5,3 8 8,6 1 2,4 33 8,4

Tchecos 12 22,2 1 4,8 3 2,8 1 1,3 5 5,4 0 0 22 5,6

Outras 3 5,6 3 14,3 5 4,7 1 1,3 2 2,2 1 2,4 15 3,82

Apátridas 3 5,6 2 9,5 9 8,4 8 10,5 4 4,3 3 7,1 29 7,38

Sem informação 6 11,1 1 4,8 4 3,7 4 5,3 3 3,2 1 2,4 19 4,83

Total 54 100 21 100 107 100 76 100 93 100 42 100 393 100

Fonte: Listas de Desembarque – Hospedaria de Campo Limpo – Memorial do Imigrante.

é claro, em grande medida, das oportunida- tratava fornecia a moradia ou moravam no 187
des de emprego e de salário e se deveram emprego, em casos de serviços domésticos.
também, em grande parte, às oportunidades Quando se tratava, porém, de aluguel, a es-
oferecidas pelo mercado imobiliário em São colha se dava pelos bairros mais próximos
Paulo, à formação dos bairros residenciais, ao trabalho e aos parentes e conterrâneos.
etc. No entanto, dada a residência anterior No entanto, essa aproximação também era
das mesmas nacionalidades em São Paulo, bastante reveladora do processo de adap-
as opções são bastante reveladoras das re- tação dos imigrantes; havia aglutinação por
lações que então se estabeleceram em São nacionalidade, mas a filiação religiosa ou po-
Paulo. lítica também determinava a aglutinação.
Os mecanismos de adaptação a São Entre os poloneses, por exemplo,
Paulo, tanto para os imigrantes que ha- os católicos e os judeus formavam grupos
viam chegado pela IRO, quanto para aque- distintos. O Sr. Zdzislaw (entrevistado por
les que vieram através de cartas de chama- Freitas, 1994-), por exemplo, polonês, ca-
da de parentes ou amigos, eram bastante tólico, mecânico de profissão e cuja primeira
semelhantes.­ Em ambos os casos, além do ocupação foi numa indústria automobilísti-
emprego, a primeira providência a tomar ca, chegou bastante jovem, com a família,
era a moradia. Nos primeiros tempos, fica- e escolheu a Vila Zelina, por razões de pa-
vam em casa de parentes ou amigos, até o rentesco e de vizinhança com outros conter-
primeiro salário permitir o aluguel de uma râneos já residentes no bairro. Era prove-
casa. Em alguns casos, a empresa que con- niente de uma família de agricultores, cujo

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pai era proprietário de um moinho na região europeu, pessoas de quem ficaram amigas
de Chelm, lugarejo a Leste da Polônia, a 40 depois. A primeira moradia em São Paulo
km da fronteira russa, rica em grãos, trigo, foi na Vila Zelina, onde já se encontravam
centeio, batata e beterraba para produção os poloneses residentes em São Paulo, além
de açúcar. Sua história é semelhante, em de outras nacionalidades do Leste europeu.
muitos pontos, à dos judeus poloneses, no Imediatamente se filiaram à Sociedade Po-
entanto, há diferenças bastante marcantes, lonesa Joseph Pilsudski, marechal libertador
já na própria Europa. A família perde a pro- da Polônia em 1918. O pai conseguiu em-
priedade quando a Polônia é invadida por prego no Moinho Gambá, na Borges de Fi-
russos e alemães durante a guerra. Nessa gueiredo. Para o entrevistado, que era espe-
ocasião já existia a United Nations Refuges­ cializado em mecânica, o primeiro emprego
Rehabilitalion Association (UNRRA) e a fa- foi na Mecânica Nacional, fábrica de tornos
mília pôde se refugiar no campo de refu- mecânicos do Grupo Matarazzo, passando
giados na Alemanha, ainda em 1943. Ali o depois para a Usina de Aços Villares em São
entrevistado teve oportunidade de estudar Caetano. No segundo emprego, o salário su-
mecânica e tornou-se técnico em mecâni- biu 50% em relação ao primeiro. Da Villares
ca. No final da guerra, a família trabalhava passou para a Vemag, indústria automobi-
numa fábrica de blocos de concreto. Com a lística, e de lá para a Mercedes, sempre se
criação dos campos de refugiados por na- aperfeiçoando na profissão (o que dá uma
cionalidades, pela UNRRA, lá ficaram até idéia das várias trajetórias semelhantes de
188 1949, período em que freqüentou a escola, técnicos especializados e com qualificação).
o ginásio e a escola técnica. O pai, com o Casou-se e foi morar no bairro do Paraíso
auxílio da UNRRA­e da Cruz Vermelha, arru- com os sogros. A relação com a colônia se
mou trabalho, mas como não queriam voltar dá através da Sociedade Polonesa, que fica
à Polônia, onde haviam sido expropriados, ao lado da Estação Armênia do Metrô, onde
optaram pela emigração. Várias possibilida- os poloneses se reúnem todos os sábados
des se apresentavam além do Brasil: Cana- e domingos, e da Igreja, a Capela Polone-
dá, Austrália, EUA e Argentina. Dizia que os sa, Nossa Senhora Auxiliadora, com missa
solteiros podiam ir para o Canadá, a família em polonês e localizada no bairro do Bom
poderia ter ido para os EUA, mas ele tinha Retiro. Pratica o escotismo juntamente com
20 anos e teria que fazer o serviço militar e amigos poloneses. A língua é falada em casa,
havia a guerra da Coréia. Pretendiam então ao lado do português – até os netos sabem
ir para a Argentina, onde tinham parentes. polonês. Lêem jornais escritos em polonês, o
Subitamente, entretanto, a Argentina fe- Ziarna I Zlosy (Espiga), dirigido por padres
chou a imigração. Como tinham parentes e também o Stepien, dirigido por salesianos
também em São Paulo, vieram para o Brasil. naturalizados brasileiros.
Chegaram na Ilha das Flores onde permane- Além disso, a trajetória de um judeu
ceram até surgir a oportunidade de trabalho polonês é um pouco diferente: o Sr Abraão
em São Paulo, onde ficaram duas semanas (Freitas, 1994-), judeu polonês, cujo pai
na Hospedaria. O relato da viagem é de que pertencia a um grupo de resistência na Po-
havia muitas outras nacionalidades do Leste lônia e conseguiu se refugiar na Itália, teve

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território e experiência imigratória: os refugiados em são paulo no pós-segunda guerra mundial

a mãe aprisionada num campo de concen- Paulo.­ Não possuímos dados, entretanto,
tração para mulheres, tendo sido resgatada tão minuciosos. Não há como, a não ser
apenas depois da guerra. Uma vez tendo se pelos depoimentos, dimensionar detalha-
decidido pelo Brasil porque a mãe foi incen- damente as diferenças de nível educacional,
tivada por um irmão, além de terem tido senão fornecer um perfil geral.
auxílio internacional e da Hebrew Interna- Assim, as Tabelas 2 e 3, sobre as
tional Association (HIAS) vieram para São ocupa­­ções, pode auxiliar na análise das
Paulo onde foram acolhidos pela comunida- qua­li­f icações. É nítida a diferença entre
de judaica; primeiro foram morar no bair- poloneses e ucranianos, por exemplo, e os
ro de Santana e depois no Bom Retiro. A húngaros, baltas e russos, no que se refe-
comunidade promovia eventos para ajudá- re à concentração nas ocupações classifica-
los e integrá-los. O pai, que era comerciante das como operários qualificados, técnicos e
antes da guerra, começou como mascate de profissionais de nível médio e superior e os
roupas, logo conseguiu comprar uma ca- serviços e ocupações não qualificados. Po-
sa própria no Bom Retiro. O entrevistado loneses e ucranianos apresentam uma con-
estudou no Colégio Renascença e estudou centração maior entre os operários quali-
depois na PUC. Começou a trabalhar no ficados e ocupações menos qualificadas do
Renascença como auxiliar de limpeza, ainda que entre os profissionais de nível médio
criança, depois passou a inspetor de alunos. e superior. Entre os húngaros, baltas e
Secretário, Vice-Diretor e Diretor da Esco- russos, a maior concentração está entre as
la. Conta que os demais alunos eram judeus ocupações mais qualificadas, como já in- 189
poloneses, alemães, russos, lituanos, além dicavam os artigos da revista Imigração e
de espanhóis e portugueses. Colonização (RIC) e os argumentos da Co-
Dessa forma, parece que a colônia missão Brasileira encarregada de selecionar
identificada com o idioma e a cultura po- os imigrantes deslocados.
lonesa, de maioria católica, em São Paulo, Na sua trajetória posterior em São
existia mais ou menos paralelamente e sem Paulo, os húngaros serão empresários bem-
contactos diretos com a colônia dos judeus sucedidos, intelectuais e profissionais libe-
poloneses. Isso parece ser válido, também, rais. Assim se apresentam nos depoimen-
para todas as outras das nacionalidades que tos, como uma comunidade bem-sucedida
estudamos, na medida em que, como os em São Paulo.
poloneses, os demais também apresentam Quanto aos russos, não se apresentam­
nítidas divisões por diferentes vinculações muitos empresários entre eles, são um gru­
religiosas. po­­­ com alto nível cultural e educacional no
Há diferenças no nível educacional de terreno das artes e da cultura européia,
cada um dos grupos, também, o que deter- músi­ca e idiomas. Em artigo sobre os rus-
mina o destino profissional, de certa forma. sos no Chile (Norabuena e Uliánova, 1996,
Seria preciso uma análise detalhada, dentro pp. 2-3),­as autoras afirmam que há um “bai-
de cada etnia, da qualificação profissional, xo prestígio das atividades burguesas” entre
do nível educacional e dos caminhos per- os russos nobres e ilustrados, o que pode
corridos na trajetória profissional em São ter influenciado nas escolhas ocupa­cionais­­­

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para a sobrevivência­ da colônia. Na realida- no que se refere às empresas como no que


de, assim­ como para o Chile, os imigrantes se refere aos locais de residência. Em pou-
russos significaram mais para a sociedade co tempo, esse desenvolvimento foi acom-
paulista como profissionais e técni­cos do que panhado pela circulação rodoviária e pelos
como empresários e comerciantes. Por isso ônibus urbanos.
se concentram mais nos centros urbanos. Os poloneses se localizaram sobretudo
A geração que chega no final dos anos 40, nos bairros das zonas Oeste, Sul, Leste e em
produto da ajuda internacional (IRO), trouxe menor número também no Centro e na zona
a maioria dos chamados russos brancos, que Norte, sendo também essa a distribuição dos
se opuseram à repatriação proposta pelos locais de residência, com exceção do Centro,
Aliados. São os que menos querem dar de- que aparece em último lugar. Já os ucrania-
poimentos sobre suas experiências. nos concentram-se em maior proporção nas
A distribuição das nacionalidades pe- Zonas Leste, Oeste, Sul, no caso das resi-
los bairros de São Paulo, primeiro quanto dências e, depois, Norte e Centro, o mesmo
às empresas empregadoras e depois quanto se dando para a concentração nas empresas.
ao local de residência, auxilia na compre- Assim como os ucranianos, os russos apre-
ensão das aglutinações. De uma forma ou sentam uma alta concentração residencial
de outra, as regiões Centro, Oeste, Leste, nas Zonas Leste, depois Norte e Sul, Oeste
Sul apresentam as maiores concentrações e Central, sendo que para as empresas em
no que se refere às empresas, e, de cer- que trabalhavam, a concentração é maior no
190 ta forma, a zona Norte da cidade. Nesse Centro, na Zona Norte e depois na Sul, Oes-
processo, merece destaque a tendência à te e Leste. Os húngaros trabalham na Zona
industrialização que incorpora regiões su- Norte, Leste, Oeste, Central e Sul e residem
burbanas. Nesse sentido, um dos fatos mais na Zona Central, Oeste, Norte, Leste e Sul,
significativos é o grande desenvolvimento enquanto os baltas trabalham na Zona Nor-
industrial de Osasco, “subúrbio-estação” da te, Central, Sul, Leste e Oeste e residem na
E.F. Sorocabana; e, na linha Santos-Jundiaí Central, Norte, Leste, Sul, e depois Oeste.
em direção a Santos, verifica-se uma inten- Algumas recorrências existem, embora
sificação do parque industrial de São Cae- seja difícil afirmar os motivos que levaram
tano e Santo André com a implantação de os imigrantes de cada uma das etnias estu-
fábricas em trechos de ferrovia ainda não dadas a escolher os locais de moradia. Como
afetados pela industrialização suburbana. vimos, há toda uma conjuntura própria aos
Na direção oposta, entre a Lapa e as imedia- bairros industriais, os terrenos e aluguéis
ções de Jundiaí, a Ferrovia Santos-Jundiaí mais baratos, um sistema de transporte ra-
praticamente não atraiu novas indústrias, zoável, tanto ao longo das ferrovias quanto
a não ser Jaraguá e Campo Limpo. Essa das rodovias e quanto ao transporte urba-
função industrial deu lugar a um desenvol- no, o bonde e depois o ônibus, etc. O que,
vimento de suburbanização­ residencial­ (Cf. entretanto, é mais significativo do ponto de
Langenbuch, 1976), o que talvez explique vista das escolhas dos bairros é o fato de
a concentração dos imigrantes que estamos que anteriormente já havia imigrantes das
enfocando em torno desses bairros, tanto mesmas etnias nesses bairros.

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território e experiência imigratória: os refugiados em são paulo no pós-segunda guerra mundial

O caso da Vila Prudente, por exemplo, os recém-chegados também se concen-


é bastante significativo: localizada entre a traram em parte nesses locais, embora as
Região Sul e Leste da cidade, foi fundada novas gerações tenham se dispersado. (cf.
por imigrantes italianos, os Falchi, que ali www.vilaprudente.com e informações obti-
fundaram uma fábrica de doces e bombons das com pessoas especialmente indicadas)
no final do século. Começaram comprando No Bairro da Mooca, podemos encon-
uma grande área para loteamento para re- trar lituanos também, e uma Aliança Cultu-
sidência de seus empregados que moravam ral Lituano-Brasileira. Há festas folclóricas
no Brás. O bairro deve seu nome ao Enge- atual­mente, reuniões culturais e a preser-
nheiro Antonio Prudente de Moraes, primo- vação da língua e transmissão aos descen-
irmão de Prudente de Moraes, Presidente dentes. Há um coral lituano junto à Igreja
da República. Muitas casas foram construí- Lituana.
das em regime de mutirão e uma olaria foi
construí­d a­­ no bairro para suprimento de
material. A área possuía 1.200.000 m2 e,
em 1891, abrigava 400 pessoas (www.vi- São Paulo: a inversão da
laprudente.com). A demora da luz elétrica dispersão. As identidades
levou o proprietário a transferir a fábrica
e as associações
para o centro de São Paulo. No antigo pré-
dio se estabeleceu uma fábrica de tecela-
gem, que, mais tarde, se transformou nu- Ao processo imigratório, que consiste na 191
ma fábrica de chapéus, a “Manufactora de adaptação a uma nova cultura, uma nova
Chapéus Oriente”. A eletricidade só chegou língua, etc., se acrescentam, no caso das na-
ao bairro em 1908 e em 1910, a linha te- cionalidades analisadas, como vimos, ques-
lefônica, que vinha do Cambuci e em 1912, tões políticas muito próximas à experiência
o primeiro bonde chega­ao bairro. Na déca- européia que os países envolvidos na guerra
da de 1920, foi construído o Monumento passaram durante e após o término do con-
do Ipiranga. A partir da década de 1930, o flito. Nesse caso, é preciso dizer que o papel
bairro começou a valorizar-se e empresas desempenhado pelas comunidades étnicas
chegavam ao bairro, que assim atraía cada nesse processo, particularmente as organi-
vez mais operários. zações religiosas, as Igrejas, as associações,
Na Vila Zelina, a construção da Igreja adquiriram um peso político adicional para
São José e de escolas lituanas passou a atrair essas nacionalidades, que ainda não foi de-
a população lituana. Além deles, os russos vidamente dimensionado. Ou seja, como no
se estabeleceram na região, onde mantêm caso da Sociedade Ucrânia Livre, por exem-
um Centro cultural importante. Na Vila Al- plo,
pina, igualmente, concentram-se lituanos e
russos. A leva que veio em 1906, chamada [...] no seu Estatuto, está inserido um
de “velhos crentes”, se estabeleceu na Vila documen­to intitulado: ‘Linhas ideológi-
Alpina, onde ainda funciona uma Igreja e um cas básicas da Sociedade Ucrânia Livre’,
centro cultural. Depois da Segunda Guerra,­ que demonstra, de forma inequívoca,

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maria do rosário rolfsen salles

que os dirigentes e associados não es- persistência­da idéia da volta aos seus países
tavam empenhados­ em reunir a comu- de origem, volta que implicava mobilização
nidade ucraniana residente no Brasil e, política, pelo menos para parte significativa
em particular, em São Caetano: seus deles, mobilização importante e que perma-
interesses estavam voltados para o de- neceu por algum tempo, pelo menos para a
senrolar dos acontecimentos político- primeira geração do pós-guerra, o que sig-
sociais na Ucrânia da época. (Jovanovic, nificou, ao nosso ver, um elo importante,
1992, p. 25) um vínculo muito forte que sedimentou as
identidades (e as diferenças) que se forma-
Ou seja, ram então, e as intermediações das insti-
tuições com a sociedade paulista da época
[...] os reais interesses do povo ucra- e com os seus conterrâneos anteriormente
niano se resumem no estabelecimento
aqui presentes.
de um país soberano, democrático e
As observações feitas acima para os
republicano (clara alusão à Rússia Im-
ucranianos valem para uma parte signifi-
perial e ao governo soviético instalado
cativa dos russos, mas nem tanto para os
no começo dos anos 20).
húngaros que, depois da tentativa de levan-
Esse fato tem uma indicação clara de que te popular em 1956, de cunho nacionalista,
sufocado pelo Exército soviético com enor-
[...] a primeira corrente imigratória me derrame de sangue, não visualizam um
192 pre­s ente em São Caetano se compu- retorno possível.
nha de dois tipos básicos de pessoas: Além das divisões regionais apontadas
um grupo de ex-oficiais do Exército acima, as diferenças entre as diferentes le-
ucraniano e um grupo de trabalhado- vas se davam em função das origens sociais
res que abandonaram suas terras em e familiares. Havia a experiência bastante
decorrência das precárias condições de comum, dos campos de trabalhos força-
vida. (Ibid.) dos. Entretanto, dada a situação vigente na
Europa do Leste, misturavam-se pequenos
Essas observações valem também pa- camponeses e agricultores que tiveram suas
ra os russos e para as outras comunidades terras invadidas, com proprietários rurais
presentes em São Paulo. Se, por um lado, de grande porte e mesmo industriais, pes-
interessava reconstruir as vidas pessoais e soas pertencentes na origem à burguesia
familiares num país de inúmeras possibili- russa, por exemplo, intelectuais, professo-
dades, que poderia lhes permitir “esquecer, res, profissionais liberais. Essas diferenças
perder-se no mundo”, “não serem mais determinavam as trajetórias na Europa e,
encontrados”, como disse uma depoente posteriormente, no Brasil. Sendo assim,
húngara, para uma boa parte das comuni- em São Paulo, as comunidades formaram
dades tratou-se de preparar a volta. Uma subgrupos em torno de algumas institui-
das dimensões interessantes, então, pre- ções, associações, Igrejas e pessoas, assim
sentes nos depoimentos, e inesperadas, do como procuraram se aglutinar nos bairros
processo vivenciado pelos “deslocados”, é a em que já existiam conterrâneos que, por

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coincidência,­ eram bairros residenciais no- Na Vila Alpina, há a Igreja Ortodoxa da


vos, como procuramos descrever no item Santíssima Trindade, onde o padre Petrenko
sobre o desenvolvimento­ urbano de São exerce uma enorme liderança. Ele é bastan-
Paulo na década de 1940. te representativo de uma parte importante
A localização dos russos em São Pau- dos russos. Filho de um soldado russo na
lo, conforme depoentes, obedeceu à che- Ucrânia, foi feito prisioneiro e levado para
gada das diferentes levas e determinou as a Alemanha, juntamente com a mãe, para
vinculações posteriores. A primeira leva, trabalhos forçados. O pai, em São Paulo, foi
dos chamados “velhos crentes”, chegada em trabalhar como torneiro mecânico na Volvo,
1906 em diante, se localizou na Vila Alpi- na Avenida do Estado; logo conseguiram
na; os chamados “russos chineses”, aqueles comprar um terreno no Parque São Lucas,­
provenientes da leva que estava na China e num loteamento. Até 1953, moraram num
que foi obrigada a sair depois da Revolução cortiço em Vila Bela, até construírem um
Chinesa depois de 1953, localizou-se na re- barracão no fundo do terreno comprado
gião de Moema, mas também na Vila Alpina, pelo pai. A escolha inicial de Vila Bela se
Vila Zelina, Vila Formosa, Vila Bela e Vila deu por causa dos avós, que chegaram an-
Prudente. Da mesma maneira, os litua­nos tes e contataram conhecidos em Vila Bela.
se encontram também na Vila Zelina, Vila O padre resolveu seguir carreira religiosa,
Prudente. apesar da família não ser religiosa. O pa-
Os húngaros se encontram na Vila Ze- dre Petrenko, hoje, é uma das referências
lina, na Vila Prudente, mas se dividem tam- importantes na liderança religiosa ortodoxa 193
bém pela Vila Anastácio, onde há um Con- entre os russos.
vento de irmãs católicas, a Igreja de Santo São inúmeras as associações étnicas
Estevão, a Lapa e Vila Romana, onde se lo- mencionadas nos depoimentos. Uma bre-
caliza (Lapa) a Igreja Reformada (de orien- ve análise já demonstra as diferenças que
tação protestante calvinista), a Igreja Lute- mencionamos e as agregações. Entre os
rana (Evangélica), assim como se encontram húngaros, há uma clara definição por um
também na Mooca, Ipiranga, Vila Ipojuca assistencialismo e filantropia recentes, como
e Zona Oeste, Pinheiros e Jardins, no caso a Entidade Filantrópica “Recanto da Vovó”,
dos empresários mais bem-sucedidos. assim como cultural, como a Casa Húngara,
A construção da Igreja São José na Vila a Universidade Livre, etc., o próprio Colé-
Zelina atraiu famílias lituanas para o bairro gio Santo Américo, que é uma referência
que se transformou num bairro cultural e cultural importante dentro da comunidade
religioso da comunidade, assim como as re- húngara e onde se organiza atualmente um
giões próximas, atraindo outras nacionali- importante Museu da Imigração Húngara,
dades também, como vimos. As associações além de sediar uma das mais importantes
congregam boa parte dos antigos imigran- bibliotecas sobre história húngara, religiosa
tes e parte das novas gerações, como é o e política (Depoimento padre Iroff, Colégio
caso do Círculo Cultural Nadejda, mais re- Santo Américo).
cente, de 1982, que surgiu para revitalizar Os depoimentos apontam uma agrega-
a cultura, a língua e o folclore russo. ção entre judeus de diferentes nacionalidades.­

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Os judeus húngaros, por exemplo, freqüen- Considerações finais


tam a Sinagoga da Rua Augusta, a Sinagoga
alemã e a Congregação Israelita da City. Já
Não é possível, nos limites deste trabalho,
entre os húngaros não-judeus, a identifica-
percorrer todas as nacionalidades e suas
ção se dá segundo as igrejas dos protes-
trajetórias com detalhes e a sua morfologia
tantes reformados, dos evangélicos e dos
interna, tentando recompor as relações que
católicos, cuja maioria se aglutina em torno
então se estabeleceram entre os grupos, den-
da Igreja de Santo Estêvão.
tro deles, e com a sociedade paulista da épo-
Além disso, entre os poloneses, como
ca. São possíveis, entretanto, algumas con-
dissemos, há uma nítida divisão entre os
clusões que nos parecem importantes, dadas
católicos, que são a maioria, e os judeus, as premissas colocadas para os “deslocados
além, provavelmente, dos intelectuais não de guerra” e contidas na política imigratória
religiosos. Assim, as associações que recom- expressa nos artigos da revista de Imigração
põem a identidade polonesa são: a sociedade e Colonização antes analisados e os objetivos
Polonesa Joseph Pilsudski, a Associação Po- gerais que nortearam este projeto.
lonesa da Estação Armênia, a Capela Nossa Parece que, de uma forma geral, os
Senhora Auxiliadora do Bom Retiro, o Cír- imigrantes examinados se reconhecem como
culo Israelita, a TAIB, associação cultural de deslocados ou refugiados e essa autopercep-
intelectuais, a Sociedade Brasileira de Cultu- ção, de certa forma, determina a sua traje-
ra Polonesa, o Clube Macabi no Tremembé, tória em São Paulo, pelo menos nos primei-
194 o Clube 44 e o Pil, todos mencionados nas ros tempos. Determina também o associa-
entrevistas. cionismo, que é uma forma de identificação,
Entre os russos, a Igreja Ortodoxa da de resistência e de sobrevivência.
Vila Alpina, a Igreja da Rua Gaivota em Moe- Em todos os casos, verificam-se polari-
ma, a Catedral da Rua Tamandaré entre ou- zações em torno de alguns subgrupos signi-
tras, recompõem o mosaico de identidades ficativos dentro das comunidades. A história
em São Paulo. anterior do pré-guerra, da vivência na guer-
Da mesma maneira, entre as nacionali- ra e do pós-guerra, é uma referência cons-
dades que compõem os baltas, há a divisão tante. A composição dos grupos é diferente
entre os católicos, os batistas, os luteranos quanto a diversos fatores. Alguns são mais
e há as associações culturais e assistenciais. preparados profissional e intelectualmente
As associações desempenharam impor- que outros, em termos de qualificações.
tante papel no acolhimento e recepção dos De uma maneira geral, entretanto, a
imigrantes na cidade de São Paulo, ao lado autopercepção como “deslocados” parece
dos parentes e conhecidos. Entretanto, há se diluir nas identificações que menciona-
que se considerar o papel das organizações mos acima, de caráter político e/ou religio-
internacionais de apoio e dos escritórios para so, as identidades se recompondo segun-
colocação de mão-de-obra que selecionavam do suas histórias e vinculações anteriores,
as empresas e direcionavam os imigrantes ou seja, segundo suas nacionalidades, e,
nos seus primeiros empregos na cidade. dentro delas, segundo os subgrupos que

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território e experiência imigratória: os refugiados em são paulo no pós-segunda guerra mundial

mencionamos,­ muitas vezes, ultrapassando junto ao Memorial do Imigrante: “Novos


as identidades nacionais, como é o caso dos imigrantes: fluxos migratórios e industria-
judeus. Do ponto de vista da sociedade pau- lização em São Paulo: 1947-1980”, criou
lista da época, seria preciso outra pesquisa, e disponibilizou, a partir de 2008, junto ao
no sentido de verificar quais os mecanismos Memorial, um Banco de Dados que permi-
de reconhecimento que se desenvolveram, te a realização de inúmeras pesquisas so-
como a sociedade paulista vê e recebe os bre as entradas de imigrantes de diferentes
deslocados, etc. nacionalidades no período compreendido
Procurou-se chamar a atenção para a entre o final da guerra, a partir de 1947
importância da experiência imigratória des- até 1980, utilizando-se da farta documen-
se grupo imigrante entrado no pós-segunda tação presente no Memorial, como: fichas
guerra mundial em São Paulo para a com- de registro de imigrantes, curriculum vitae,
preensão de uma faceta da industrialização e avisos de chegada, pedidos de mão-de-obra
urbanização da cidade, chamando a atenção qualificada, e que se encontra à disposição
para a direção e implantação territorial dos dos pesquisadores. Além disso, são refe-
imigrantes e a constituição de determinados rências o artigo de Paiva (2000), sobre os
bairros no final da década de 1940. refugiados; Salles (2007), além dos artigos
É importante ressaltar, também, as di- que podem ser encontrados nos boletins
ferentes fontes possíveis de pesquisa sobre e revistas de imigração e colonização, pu-
esse grupo imigrante. Em primeiro lugar, blicados pela Secretaria da Agricultura do
o Projeto Temático referido no início deste Estado de São Paulo e Departamento de 195
artigo, desenvolvido com o apoio da Fapesp Imigração e Colonização.

Maria do Rosário Rolfsen Salles


Doutora Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista. Docente e pesquisadora junto
ao Programa de Pós-Graduação de Mestrado em Hospitalidade da Universidade Anhembi Mo-
rumbi (São Paulo, Brasil).
mrrsalles@uol.com.br

Nota
(1) Esse retrospecto se baseia em Langenbuch (1976).

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Referências
BOLETIM do Departamento de Imigração e Colonização (1950). Quadro demonstrativo das prin-
cipais profissões dos imigrantes deslocados de guerra, colocados no estado de São Paulo
nos anos de 1947 a 1949, n. 5, dez.

FREITAS, S. M. de (1994-). Série Depoimentos Orais – Projeto História Oral, Memorial do Imi-
grante. Arquivo da Biblioteca.

JOVANOVIC, A. (1992). Ucranianos, sete décadas de presença marcante. Revista Raízes, janeiro.

LANGENBUCH, J. (1976). A estruturação da Grande São Paulo. São Paulo, IBGE.

NORABUENA, C. e ULIÁNOVA, O. (1996). História oral em los estúdios migratórios: el caso


de los rusos em Chile. Universidade de Chile. Boletim CEDHAL, n. 4, julho/dezembro de
1996.

PAIVA, O. da C. (2000). Refugiados de guerra e a imigração para o Brasil nos anos 1940 e 1950.
Revista Travessia. Ano XIII, n. 37, mai/ago, pp. 25-30.

SALLES, M. R. R. (2004). Panorama da imigração para São Paulo após a Segunda Guerra Mun-
dial: os deslocados de guerra. Revista Studi Emigrazione. Roma, Revista Trimestral do Cen-
tro Studi Emigrazione, ANNO XLI, setembro, n. 155.

________ (2007). A política imigratória brasileira no pós- segunda guerra mundial e os refugia-
dos: uma leitura da Revista Imigração e Colonização. Brasília, Revista Cena Internacional,
UNB, n. 2.
196

Recebido em maio/2008
Aprovado em ago/2008

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Ocupação e urbanização dos cerrados:
desafios para a sustentabilidade
Aristides Moysés
Eduardo Rodrigues da Silva

Abstract
The Cerrado (Woodland Savanna) of Brazil’s
Central-West region continues threatened as a
result of the occupation of its soil by exportable
products, which have been fundamental,
Resumo from 1970 onwards, to the development of
Os Cerrados do Centro-Oeste continuam the region. The production of commodities
ameaça­d os pela ocupação de seu solo com replaced the natural vegetation with soy
produtos exportáveis, determinantes, a par- beans, maize, sorghum and pastures, which
tir de 1970, para o desenvolvimento da re- do not feed the ground waters of the Cerrado,
gião. A produção de commodities substituiu affecting more than 300 watercourses. Two
a vegetação natural por soja, milho, sorgo e distinct moments marked the occupation of
pastagens e estas não alimentam os lençóis the Central-West region: the 1970-1980
freáticos dos cerrados, afetando mais de 300 period, when the economic transformations
cursos d’água. São dois momentos distintos imposed a process of perverse occupation
dessa ocupação: de 1970 a 1980, período on the biome, as a result of agriculture and
em que as transformações econômicas impu- farming modernization, and the decade of
seram um processo de ocupação perversa ao 1990, when the effects of this occupation,
bioma cerrado; na década de 1990, os efeitos associated with the transformations provoked
dessa ocupação se manifestam de forma mais by globalization, manifested themselves more
contundente, provocando um processo de strongly, leading to an extensive process of
concentração urbana de grandes proporções. urban concentration.
Palavras-chave: ocupação dos cerrados; Keywords : occupation of the cerrado;
commodities; Centro-Oeste; concentração ur- commodities; Brazilian Central-West region;
bana; desenvolvimento regional. urban concentration; regional development.

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aristides moysés e eduardo rodrigues da silva

Introdução dividendos proporcionados pela produção


de commodities. O foco central deste artigo
é o processo de ocupação dos cerrados do
A região Centro-Oeste, fortemente influen- Centro-Oeste e suas perversas conseqüên-
ciada pelo investimento estruturante do Es- cias tanto para o bioma cerrado quanto pa-
tado, tem sofrido modificações significativas ra as cidades, receptadoras imediatas dessa
nas últimas quatro décadas. Esse fenômeno ocupação.
intensificou-se com a modernização da agri-
cultura, o que possibilitou condições com-
petitivas para a produção de commodities.
Esse processo, por um lado, modificou as Características
relações de trabalho no campo, substituindo importantes do cerrado
o modelo de produção voltado para a subsis-
tência por um modelo que contemplava fun- Os cerrados são um tipo de vegetação que
damentalmente a produção de mercadorias se caracteriza por uma variedade de árvores
destinadas para o mercado exportador; por baixas e retorcidas, típicas do Centro-Oeste
outro lado, desmantelou a incipiente produ- brasileiro, mas que podem também ser en-
ção agrícola calcada na agricultura familiar, contradas na Amazônia, em parte do Nor-
liberando para as cidades uma leva signifi- deste e Sudeste Brasileiro e até mesmo no
cativa de migrantes. Tudo isso repercutiu Sul, embora em menor quantidade.1
198 de forma intensa nas principais cidades do Segundo Abramovay (1999, p. 2), o
Centro-Oeste, principalmente nos entornos cerrado é o segundo maior bioma brasileiro
de Goiânia e de Brasília, onde se concentra, (após a Amazônia) e concentra nada menos
em apenas 33 municípios, aproximadamente que um terço da biodiversidade nacional e
40% da população de toda a região. 5% da flora e da fauna mundiais. No que
Goiânia e Brasília, vistas como territó- se refere à flora, é considerada a mais ri-
rios isolados, possuem indicadores globais ca dentre as savanas existentes no mundo.
que as qualificam como cidades com ótima Destaque-se que o cerrado ocupa posição
qualidade de vida e com alto potencial de estratégica, tanto do ponto de vista hidro-
consumo. Entretanto, quando a análise se gráfico quanto da geografia econômica.
estende para o espaço metropolitano, intra- No que se refere à sua hidrografia,
metropolitano e intra-urbano, percebe-se a Altair Sales Barbosa, antropólogo e pesqui-
existência de grandes contradições que re- sador do Instituto do Trópico Subúmido da
velam outra faceta da realidade social, de- Universidade Católica de Goiás, lembra que
lineada pela fragmentação e pela segmen- o cerrado desempenha papel importante co-
tação social. Isso significa que os espaços mo alimentador das principais bacias hidro-
desses territórios estão marcados por forte gráficas brasileiras.
segregação socioespacial, conseqüência do
processo de desigualdades sociais que tem O cerrado é a cumeeira da América do
se manifestado também em outras cidades, Sul, distribuindo águas para as grandes­
sobretudo aquelas que se beneficiaram dos bacias­ hidrográficas do continente. Isso

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ocupação e urbanização dos cerrados: desafios para a sustentabilidade

ocorre porque na área de abrangên- A esse respeito, Abramovay (1999,


cia do Cerrado se situam três grandes p. 3) afirma que
aquíferos, responsáveis pela formação e
alimentação dos grandes rios do conti- [...] a água acumulada nos lençóis freá-
nente: o aquífero Guarani, associado ao ticos dos cerrados do Centro-Oeste vai
arenito Botucatu e a outras formações abastecer nascentes que dão origem a
areníticas, mais antigas, responsáveis seis das oito maiores bacias hidrográ-
pelas águas que alimentam a bacia do ficas brasilei­r as, exceção apenas para
Paraná. Os aqüíferos Bambuí e Urucuia. as bacias do Rio Uruguai e do Atlântico
[...] são responsáveis pela formação e Sudeste.
alimentação dos rios que integram as
bacias do São Francisco, Tocantins, Ara- Os cerrados ocupam 85% do grande
guaia e outras, situadas na abrangência platô do Brasil Central Brasileiro, o que re-
do Cerrado. Estes aquíferos, que se vêm presenta cerca de 20% da superfície do Bra-
formando durante milhões de anos, de sil. Em suas entranhas está grande parte das
pouco tempo para cá não estão sendo nascentes que abastecem as principais bacias
recarregados como deveriam, para sus- hidrográficas brasileiras, tais como a Amazô-
tentar os mananciais. Isso ocorre por- nica, a do São Francisco e a Bacia do Prata,
que a recarga dos aquíferos se dá pelas
e sua abundância hídrica é muito importan-
suas bordas nas áreas planas, onde a
te na vegetação (Pires, 1996, p. 52, apud
água pluvial infiltra e é absorvida cerca
Abramovay, 1999). Essa ligação permite o
de 60% pelo sistema radicular da vege- 199
intercâmbio de sementes, pólen e mesmo
tação nativa, alimentando num primeiro
a dispersão da fauna através das matas de
momento o lençol freático e lentamen-
galeria que acompanham córregos e rios,
te vai abastecendo e se arma­z enando
possibilitando que indivíduos de espécies do
nos lençóis mais subterrâneos. Com a
cerrado se acasalem com representantes de
ocupa­ção dos chapadões­ de forma in-
espécies da Amazônia, da Mata Atlântica, da
tensa, que trouxe como conseqüên­c ia
Caatinga, o que contribui para aumentar a
a retirada da cobertura vegetal, sua
substituição por vegetações temporá-
variabilidade genética das espécies (Novaes,
rias de raiz subsuperficial, a água da 1994, apud Abramovay, 1999).
chuva precipita, porém não infiltra o Em suma, o cerrado é considerado uma
suficiente para reabastecer os aqüífe- das principais áreas de ecossistemas tropi-
ros. Conseqüência, com o passar dos cais da Terra, sendo um dos centros priori-
tempos, estes vão diminuindo de nível, tários para a preservação da biodiversidade
provocando, num primeiro momento, a do planeta. Entretanto, vários fatores têm
migração das nascentes, das partes mais contribuído para alterar essa situação. Den-
altas, para as mais baixas e a diminuição­ tre eles, ressaltam-se a pressão urbana e o
do volume das águas, até chegar o pon- rápido estabelecimento de atividades agrí-
to do desaparecimento total do curso colas na região, o que tem provocado uma
d'água. Convém ressaltar que este é um rá­p ida redução da biodiversidade desses
processo irreversível. (Barbosa, s.d) ecossistemas.­

cadernos metrópole 20 pp. 197-220 20 sem. 2008


aristides moysés e eduardo rodrigues da silva

No que se refere à geografia econô- produção­média de 20 milhões de toneladas


mica, a posição estratégica do cerrado vem em 1990, duplicando a produtividade mé-
atraindo investimentos a partir dos anos dia. Atualmente, a região é responsável por
1970, pelas seguintes razões: por estar no cerca de um terço da produção brasileira de
centro do país, portanto próximo dos gran- grãos.
des centros consumidores; pela sua malha Da mesma forma, grandes extensões de
rodoviária que facilita o escoamento da pro- terras foram ocupadas com pastagens para
dução; pelo desenvolvimento de cultivares a produção de carne e leite. A produtividade
adaptados ao solo e clima; pela sua geogra- elevou-se significativamente com o uso de
fia com grandes extensões de planícies, o técnicas de melhoramento genético e de ma-
que propicia o desenvolvimento da pecuária nejo de rebanho, colocando a região numa
e da agricultura mecanizada, dentre outras. posição de destaque no ranking nacional,
Por isso, grandes empresas agropecuárias com 40,5% do rebanho nacional, ou seja,
instalaram-se no Centro-Oeste, sobretudo aproximadamente 60 milhões de animais.
no Sul, Sudeste e Sudoeste do estado de
Goiás, graças aos incentivos governamen-
tais, transformando a região numa das prin-
cipais produtoras de commodities oriundos Ocupação desordenada
das agroindústrias. do cerrado e
Cabe destacar que, na segunda metade
desigualdades sociais
200 dos anos 70, o governo federal criou o Pro-
grama de Desenvolvimento dos Cerrados nos centros urbanos
(Polocentro) que previa grandes investimen-
tos em infra-estrutura, recursos para pes- Destaquem-se dois aspectos relevantes. O
quisa agropecuária e assistência técnica na primeiro é historicamente conhecido e re-
região Centro-Oeste do país. Esse progra- fere-se ao desmantelamento das formas de
ma compreendia três programas especiais: produção rudimentares de cultivo da terra,
Programa Especial de Desenvolvimento do voltadas para a subsistência das famílias en-
Pantanal (Prodepan), Programa Especial da volvidas. Esse processo foi hegemônico até
Região de Grande Dourados (Prodegan) e o o final dos anos 60 e foi sendo substituído
Programa Especial da Região Geoeconômica por uma estrutura econômica e tecnológica
de Brasília (Geoeconômica) moderna a partir dos anos 70. Tal fato via-
É visível a transformação que esses in- bilizou uma produção de escala que visava,
centivos fiscais provocaram na região como sobretudo, o mercado exportador. Sob esse
um todo. Segundo dados estatísticos do Mi- aspecto, estudiosos vêm analisando o agra-
nistério da Agricultura, a evolução da ocupa- vamento das condições socioeconômicas nos
ção das terras dos cerrados brasileiros, que centros urbanos provocado pelo afluxo in-
passou de 5 milhões de hectares cultivados tenso de pessoas para as cidades, mas tam-
com cereais, com uma produção de cerca de bém as conseqüências psicossociais provo-
5 milhões de toneladas de grãos em 1970, cadas pelo que os antropólogos chamam de
para cerca de 10 milhões de hectares e desenraizamento, ou seja, a falta de chão,­

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ocupação e urbanização dos cerrados: desafios para a sustentabilidade

de convivência mais profunda, enfim, sau- faz com que a vegetação e a vida animal
dades das raízes ligadas essencialmente ao nos cerrados sejam mais importantes
cultivo da terra. sob o solo do que acima de sua superfí-
Outro aspecto tem a ver com a forma cie (Floresta de cabeça para baixo), aju-
como se utiliza o solo e os problemas am- da a explicar a ausência de campanhas
bientais derivados de seu uso. Sendo assim, públicas voltadas a sua preservação. (o
cabe uma pergunta: existe uma correlação grifo é nosso).
entre ocupação e desigualdades sociais nas
cidades, frutos de um processo desordena- Ao se fazer uso intensivo de pivôs, 2
do e perverso de ocupação do cerrado no colocam-se em risco as fontes perenes de
Centro-Oeste? água, muitas delas provenientes de “águas
Primeiramente, por que perverso? O profundas”. A esse respeito, Abramovay
“perverso” pode ser explicado a partir de (1999, p. 9) estima que o consumo de água
três variáveis que se complementam e são em pivôs, em certas épocas, chega a 3,45
indispensáveis no processo de transforma- bilhões de litros utilizados em irrigação dia-
ção da região numa grande produtora de riamente, apenas no estado de Goiás – cer-
commodities (grãos, cana-de-açúcar, car- ca de 20 vezes o consumo doméstico diário
nes e algodão, entre outros): ver o cerrado do milhão de pessoas que vive em uma ci-
como área de fronteira; utilizar largamen- dade como Goiânia. “É um risco, uma vez
te pivôs de irrigação e usar intensivamente que não se tem conhecimento confiável dos
fertilizantes, sobretudo agrotóxicos. Inú- aqüíferos da região, suas áreas de recarga e 201
meros estudos, principalmente do Centro descarga, seus ciclos internos e sua capaci-
de Pesquisas Agropecuárias dos Cerrados dade de suporte”.
(CPAC) e da Empresa Brasileira de Pesquisa Em 2003, essa situação de conflito
Agropecuária (Embrapa), têm apontado as entre irrigação e abastecimento urbano
fragilidades do cerrado no que se refere à fez com que o Ministério Público de Goiás­
sua forma de ocupação, ou seja, ocupar esse lacrasse­ pivôs centrais, para que não se
bioma como área de fronteira é exaurir dele comprometesse o abastecimento de cidades
toda a fertilidade que possui, fertilidade es- inteiras.
sa que tem como função garantir o futuro Outro problema está relacionado ao
do próprio bioma. uso de fertilizantes e agrotóxicos, sobre os
Mais uma vez, vale registrar as obser- quais só recentemente o Congresso Nacional
vações de Abramovay (1999, p. 5) quanto à produziu legislação específica visando o con-
abundância de água nos cerrados e sua fun- trole de sua utilização. Ainda assim, um con-
ção irrigadora do próprio solo: trole mais efetivo esbarra na morosidade e
deficiência do aparato de fiscalização. Surge,
Essa concentração do período das chu- portanto, a hipótese de que também é perti-
vas sucedida por uma prolongada seca nente relacionar as desigualdades sociais nas
(4 a 7 meses) determina a estratégia cidades às questões ambientais advindas de
adaptativa das plantas de buscar água um processo produtivo não sustentável do
a dez metros de profundidade, o que ponto de vista ecológico, não as associando

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apenas às formas clássicas de explicação das melhoria das precárias estradas rodoviárias
desigualdades que, em parte, estão rela- e a implantação de infra-estrutura, ao longo
cionadas ao forte processo migratório e ao do tempo, foram importantes para a con-
êxodo rural. formação dos núcleos urbanos, porém insu-
Migrar, num primeiro momento, não é ficientes para dar a densidade demográfica
uma decisão que se faz de forma tranqüila, necessária à ocupação do Centro-Oeste.
pois significa romper com laços familiares, Reconhece-se, também, que o inves-
com relações de vizinhança. Na verdade, é timento maciço do setor público, principal-
uma profunda ruptura com o modus viven- mente nas esferas federal e estadual, pro-
dus no qual se estava inserido por um longo duziu estímulos à formação de uma rede
período de tempo. Num segundo momento, urbana que se configurou de forma dispersa
quando o migrante já está novamente ins- na maior parte do território, porém densa
talado, ainda que em situação precária, ele em pontos específicos como Brasília, Goiâ-
se engaja no propósito de promover trans- nia, Campo Grande e Cuiabá. A decisão do
formações pessoais e familiares, buscando Estado de atuar como principal agente es-
obter melhores condições de vida. truturador da região se acentuou, sobretu-
No caso do cerrado, o processo perver- do a partir dos anos 30, com a política de-
so de preparo da terra, visando ampliar a nominada “Marcha para o Oeste” e a criação
produção de grãos e de carne, está exaurin- da Superintendência de Desenvolvimento do
do as potencialidades naturais de seu solo e Centro-Oeste (Sudeco) em 1967, que pas-
202 tornando o acesso à água cada vez mais di- sou a coordenar as ações e investimentos
fícil, na medida em que o lençol freático vai públicos destinados ao Centro-Oeste.
ficando mais profundo. Como conseqüência, Como destaque de ações concretas,
várias nascentes secaram.3 deve-se salientar a construção de Goiânia,
cuja pedra fundamental foi lançada em 24
de outubro de1933. Já nos anos 50, antes
mesmo da construção de Brasília, Goiânia já
Formação da rede era um núcleo urbano expressivo, com uma
urbana no Centro-Oeste população acima de 100 mil habitantes e
um comércio dinâmico, sinalizando que ti-
Apesar de o Centro-Oeste, no seu conjunto, nha vocação e assumiria muito brevemente
se apresentar como um território de baixa a condição de núcleo polarizador, o que de
densidade demográfica, pode-se dizer que, a fato ocorreu.
partir dos anos 70, formou-se aí uma rede A construção de Brasília, a partir da se-
urbana que desempenha papel importante gunda metade dos anos 50, consolidada no
na estruturação do espaço regional-urbano. início da década de 1960, intensificou ainda
No processo histórico, identificam-se alguns mais o processo de ocupação da região, na
vetores que dinamizaram a ocupação do medida em que atraía um contingente signi-
Centro-Oeste. Assim, estímulos endógenos ficativo de imigrantes. A implantação dessas
como as atividades mineradoras, a pecuá- duas capitais planejadas no Planalto Central
ria extensiva, a implantação de ferrovias, a possibilitou a formação do “eixo” Goiânia-

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Anápolis-Brasília,­ que reúne atualmente a região Norte do país – foram frutos de


33 municípios, constituindo um espaço de ingerências tomadas endogenamente e que
grande concentração de população, repre- resultaram na conformação de um espaço
sentando mais de 1/3 da população total do urbano dinâmico na região Centro-Oeste,
Centro-Oeste. embora tenham ocorrido em momentos
diferentes,
A reflexão a seguir tem como referên-
cia temporal os seguintes períodos: 1930-
Metamorfose urbana 1969 e 1970-1989. Os anos 90 serão obje-
no Centro-Oeste tos de estudo à parte, por se tratar de uma
e no Planalto Central década marcada por políticas públicas de
caráter mais restritivo e que confrontaram
brasileiro as das décadas anteriores, assumindo, por-
tanto, funções explícitas de desmonte dos
A urbanização do Planalto Central fez parte instrumentos de estruturação da economia
integrante do mesmo processo que urba- regional e sinalizando o advento das políti-
nizou a região Centro-Oeste. As cidades de cas de recorte neoliberal.
Goiânia e Brasília são o alfa e o ômega, e
ambas têm o estado de Goiás como base lo-
gística, já que nele emergiram. Vale ressaltar
que a construção dessas duas cidades, em Características 203
pleno cerrado, constituiu um dos fatos mais
socioeconômicas
relevantes que ocorreram naquele período.
Assimetrias à parte, também o des-
da ocupação do
membramento do estado de Mato Grosso, espaço centroestino
em 1977, implicou a criação do estado do
Mato Grosso do Sul e transformou Campo Conforme Moysés et alii (1999, pp. 3-4), a
Grande em capital, o que constituiu também conformação geoespacial da região Centro-
um fato relevante, na medida em que a re- Oeste vem sofrendo modificações significati-
sultante dessa decisão foi a consolidação do vas ao longo das últimas décadas, como po-
desenvolvimento econômico do lado sul do de ser observado na seqüência apresentada
antigo estado e a consolidação de um gran- na Figura 1. Em 1940, a Região era forma-
de centro urbano que já existia, mas que ga- da pelos estados de Minas Gerais, Goiás e
nhou impulso quando foi alçado à condição Mato Grosso; contudo, na década seguinte,
de capital. passou a ser composta apenas pelos dois úl-
Quatro decisões tomadas exogena- timos. No Governo JK, foi criado o Distrito
mente, ou seja, a construção de Goiânia, a Federal (DF), iniciando-se a construção de
de Brasília, o desmembramento do estado Brasília. Em 1977 e 1989, os estados de
de Mato Grosso e, por fim, a subdivisão de Mato Grosso e Goiás, respectivamente, fo-
Goiás em 1989 – passando sua parte norte ram subdivididos. Dessa forma, atualmente
a receber o nome de Tocantins e a integrar a Região Centro-Oeste é constituída pelos

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Figura 1 - Conformação geoespacial da Região Centro-Oeste

1940 1950

1977 1989

204

Fonte: IBGE – Anuário estatístico 1996.

estados de Goiás, Mato Grosso, Mato Gros- tariamente nas cidades. Esse grau eleva-
so do Sul e pelo Distrito Federal. do de urbanização vem ocorrendo a partir
O Centro-Oeste brasileiro ocupa 18,8% dos anos 1970. Até então, a população do
do território nacional e possui uma popula- Centro-Oeste era predominantemente ru-
ção de mais de 11,5 milhões de habitantes, ral. Isso significa que a dinâmica econômica
representando 6,9% da população total das cidades existentes era determinada pelo
brasileira. Desse contingente, 86,7% resi- setor rural, cuja base econômica era cons-
dem nas cidades, conforme Tabela 1. tituída por uma economia de subsistência,
Percebe-se que todos os estados da o que, em termos de renda, empobrecia a
região têm sua população vivendo majori- economia de toda a região.

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Tabela 1 – População residente, urbana e rural do Centro-Oeste – 1991-2000

Brasil Urbana Rural Total Urbanização


CO 1991 2000 1991 2000 1991 2000 1991 2000
Brasil 110.990.990 137.953.959 35.834.485 31.845.211 146.825.475 169.799.170 75,6 81,2
CO 7.663.122 10.092.976 1.764.479 1.543.752 9.427.601 11.636.728 81,3 86,7
MS 1.414.447 1.747.106 365.926 330.895 1.780.373 2.078.001 79,4 84,1
MT 1.485.110 1.987.726 542.121 516.627 2.027.231 2.504.353 73,3 79,4
GO 3.247.676 4.396.645 771.227 606.583 4.018.903 5.003.228 80,8 87,9
DF 1.515.889 1.961.499 85.205 89.647 1.601.094 2.051.146 94,7 95,6

Fonte: IBGE – Censos.


Elaboração: Prefeitura de Goiânia - Seplam/DPSE/DVPE/DVSE.

Com base nos censos de 1940 a quanto da urbanização. O Centro-Oeste


1960, observa-se que o Centro-Oeste era passou a ser, em termos relativos, a região
uma região quase despovoada, considera- que mais cresceu economicamente em todo
da, por Milton Santos (1996, p. 61), uma o país. Também a que mais se urbanizou.
região virgem, um imenso vazio, pré-me- Os números confirmam que houve uma mu-
cânica, conforme Tabela 2. Até o final dos dança radical no perfil de sua ocupação a
anos 60, menos de 3 milhões de pessoas partir desse ano. A densidade demográfica
habitavam toda a região, que apresentava no Centro-Oeste teve crescimento assusta- 205
uma densidade demográfica de 1,8 hab/ dor em relação ao conjunto das outras re-
km2, enquanto a população do país era de giões do país. Destarte, enquanto a média
aproximadamente 70 milhões de brasilei- de crescimento da densidade do Brasil, no
ros, com uma densidade demográfica de período de 1960 a 2000, foi de 142,9%,
8,2 hab/km2. a do Centro-Oeste foi de 301,7%, eviden-
A partir de 1970, esse quadro alte- ciando a força do movimento migratório
rou-se, tanto do ponto de vista econômico­ em direção à região.

Tabela 2 – Densidade demográfica da Região Centro-Oeste – 1940-2000

Área Densidade populacional – Total


Brasil/CO
(km2) 1940 1950 1960 1970 1980 1991 2000
Brasil 8.547.404 4,8 6,1 8,2 10,9 13,9 17,2 19,92
Centro-Oeste 1.612.077 0,8 1,1 1,8 3,1 4,7 5,8 7,23
Mato Grosso do Sul 358.159 0,0 0,0 0,0 0,0 3,8 5,0 5,81
Mato Grosso 906.807 0,5 0,6 1,0 1,8 1,3 2,2 2,77
Goiás 341.290 2,4 3,6 5,6 8,6 11,3 11,8 14,69
Distrito Federal 5.822 0,0 0,0 24,1 92,3 202,1 275,0 352,16

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Depto. de População e Indicadores Sociais, Censos Demográfico.

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Esses dados, para Milton Santos (1996, Esse estudo reconhece, portanto, que a
p. 61), mostram a região Centro-Oeste co- região tinha como característica uma popu-
mo um espaço muito receptivo aos fenô- lação rarefeita, o que lhe conferia um aden-
menos de urbanização, dado, segundo ele, samento pouco significativo e uma economia
o seu caráter de despovoamento. Por isso, assentada em formas arcaicas de relações
descobre que a região: sociais (pecuária extensiva, agricultura de
subsistência, regime de posse da terra e de
Pode, assim, receber uma infra-estru- trabalhadores agregados), o que implicava
tura nova, totalmente a serviço de uma “uma relação socioeconômica com grande
economia moderna, já que em seu ter- capacidade de resistência aos estímulos do
ritório eram praticamente ausentes as mercado”.
marcas dos precedentes sistemas técni- Observando-se os dados da população
cos. Desse modo, aí o novo vai dar-se em termos absolutos (Tabela 3), pode-se
com maior velocidade e rentabilidade. E verificar que, até a década de 1960, a popu-
é por isso que o Centro-Oeste conhece lação do Centro-Oeste representava menos
uma taxa extremamente alta de urbani- de 5% da população brasileira. A partir da
zação, podendo nele se instalar, de uma década de 1970, esse percentual se ampliou,
só vez, toda a materialidade contem- passando de 5,4% para 6,9%, conforme o
porânea indispensável a uma economia Censo 2000. Verifica-se que 60,6% da po-
exigente de movimento. pulação do Centro-Oeste está concentrada
206 no estado de Goiás e no Distrito Federal.
Outra interpretação, mais recente, não De 1940 até o final dos anos 60, as
reconhece a região como um vazio econô- taxas de crescimento populacional, apresen-
mico ou demográfico, na medida em que o tadas na Tabela 4, foram superiores às das
ciclo mineratório possibilitou a emergência demais regiões do país. A partir dos anos
de núcleos urbanos necessários às ativida- 70, continuaram ascendentes, porém em ín-
des econômicas da mineração. Segundo dices menores. Cabe destacar que as taxas
estudo do IPEA, IBGE, Unicamp/IE/Nesur de crescimento do Centro-Oeste só perdem
(2002, p. 163), para o Norte do país, o que evidencia o pa-
pel desempenhado pela região como “porta
[...] não se tratava de uma área até en- de passagem” para o processo de interiori-
tão desocupada, ou um grande vazio, zação do desenvolvimento.
como é suposto freqüentemente. Em A partir de 1970, portanto, com exce-
função do legado histórico, a região ção da região Norte, as taxas de crescimento
dispunha de núcleos e experiências de anual da população total do Centro-Oeste
vida urbanas importantes, ainda que foram superiores à taxa nacional e às das de-
dispersas, tipificando uma ocupação mais regiões do país. Ressalte-se que todos
descontínua e sustentada por uma ba- os estados do Centro-Oeste também tive-
se econômica tradicional, subproduto ram incremento populacional acima do con-
característico da atividade mineratória junto das demais regiões do país, sendo que
originária. o Mato Grosso, puxado por aglomerações­

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ocupação e urbanização dos cerrados: desafios para a sustentabilidade

Tabela 3 – População total residente na Região Centro-Oeste – 1940-2000

Brasil/CO 1940 1950 1960 1970 1980 1991 2000


Brasil 41.236.315 51.944.397 70.070.457 93.139.037 119.002.706 146.825.475 169.799.170
Centro Oeste 1.258.679 1.736.965 2.942.992 5.073.259 7.544.795 9.427.601 11.636.728
CO/Brasil (%) 3,1 3,3 4,2 5,4 6,3 6,4 6,9
Mato G. do Sul 0 0 0 0 1.369.567 1.780.373 2.078.001
Mato Grosso 432.265 522.044 889.539 1.597.090 1.138.691 2.027.231 2.504.353
Goiás 826.414 1.214.921 1.913.289 2.938.677 3.859.602 4.018.903 5.003.228
Distrito Federal 0 0 140.164 537.492 1.176.935 1.601.094 2.051.146

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Depto. de População e Indicadores Sociais. Censo Demográfico.

Tabela 4 – Taxa Média Geométrica de Crescimento Anual da População, segundo as


Grandes Regiões e Unidades Federativas do Centro-Oeste 1940 - 2000

Brasil e regiões 1940/50 1950/60 1960/70 1970/80 1980/91 1991/00


Brasil 2,3 3,0 2,9 2,5 1,9 1,6
Norte 2,3 3,3 3,5 5,0 3,9 2,9
Nordeste 2,3 2,1 2,4 2,1 1,8 1,3
Sudeste 2,1 3,1 2,7 2,6 1,8 1,6
Sul 3,2 4,1 3,5 1,4 1,4 1,4
Centro-Oeste 3,4 5,4 5,6 4,1 3,0 2,4 207
Mato G. do Sul – – – – 2,4 1,8
Mato Grosso 1,9 5,5 6,0 -3,3 5,4 2,4
Goiás 3,9 4,6 4,4 2,8 0,4 2,5
Distrito Federal – – 14,4 8,2 2,8 2,8

Fonte dos Dados Básicos: IBGE, Censos Demográficos de 1940 a 1991. Tabela extraída do Relatório MPO/
SEPRE “Revisão das Estratégias de Desenvolvimento do Centro-Oeste: Relatório Final da Coordenação
(1998)”. 1991/2000 – IBGE – Download – Censo/Dados do Universo

como Sinop e Alta Floresta, registrou taxa expulsão­ existentes na dinâmica econômica
de crescimento geométrico de 5,4% no pe- capitalista de outras regiões, com efeitos
ríodo 1980-91, reduzindo para 2,4% no perversos em uma economia como a brasi-
período 1991-2000. Nesse período, Goiás e leira, quanto de atração, existentes no Cen-
o Distrito Federal obtiveram as maiores ta- tro-Oeste. Sem a combinação desses dois fa-
xas, 2,5% e 2,8% respectivamente. tores, atração de um lado e expulsão de ou-
Ora, manter taxas expressivas de cres- tro, o “fenômeno” não teria transformado a
cimento populacional e sustentá-las duran- região num espaço econômico e urbanizado,
te um longo período (de 1950-1980) jus- integrado à economia nacional e internacio-
tifica-se tanto pela existência de fatores de nal e integrador da região Norte.

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Cabe ressaltar que a existência desses potencialidades de crescimento econômico,


fatores mostra a ineficiência de uma polí- pois a natureza continental do país permi-
tica nacional de desenvolvimento regional. tia “empurrar” a fronteira agrícola para
Na verdade, políticas de desenvolvimento regiões­“vazias”.
regional existiam e expressavam-se através O fato é que o Centro-Oeste deixou de
de inúmeros programas e projetos que, des- ser majoritariamente rural e passou a ser
de a segunda metade da década de 1950, majoritariamente urbano a partir da década­
foram implantados em diversas regiões do de 1970, exatamente quando o governo fe-
país. Tais políticas, todavia, eram imple- deral fez-se presente através da injeção de
mentadas de forma isolada, não integradas, grandes somas de recursos na região. Vale
muito embora o discurso da integração na- destacar que as ações governamentais, tra-
cional sempre estivesse presente na retórica duzidas em importantes aportes de recur-
dos políticos. A ausência de uma política na- sos, a grande maioria a fundo perdido, por
cional de integração econômica acabou por um lado, estimularam o seu desenvolvimen-
fortalecer o desenvolvimento econômico dos to, sobretudo nas atividades agropastoris
estados da região Sudeste do país, sobretu- e agroindustriais; por outro, provocaram
do São Paulo, e, conforme Estevam (1998, grandes impactos nos seus espaços urbano e
p. 189), isso reforçou o caráter complemen- rural, alterando o seu perfil socioespacial.
tar das economias das demais regiões. Não resta dúvida de que os investimen-
Quanto aos fatores de expulsão e de tos públicos e privados alocados por conta
208 atração, vale dizer que estão associados a dos incentivos e programas governamentais
um processo que combina a mobilidade da foram de extrema importância para o cresci-
população, enquanto força propulsora das mento da região, na medida em que propor-
atividades econômicas, com os investimen- cionaram um grande dinamismo econômico
tos na modernização do aparato produtivo, local, ao mesmo tempo em que assegura-
tanto no campo quanto na cidade. Entretan- ram a sua integração à economia nacional.5
to, cabe analisar tudo isso sob outro enfo- No entanto, cabem algumas ponderações
que, também plausível, que coloca a ques- quanto aos efeitos decorrentes desse apor-
tão da mobilidade populacional num quadro te maciço de investimento, pois, se de um
amenizador de tensões localizadas em ou- lado, ele deu um novo perfil econômico à re-
tras regiões­do país. Nesse sentido, a região gião, de outro, proporcionou também uma
Centro-Oeste acabou servindo de acomoda- nova feição social às suas cidades, sobretudo
ção para seguidos fluxos migratórios. àquelas que mais se desenvolveram.
O recorte amenizador de tensões assu- Os fluxos migratórios ganharam sig-
mido pela região teve também o seu lado nificância, pois estavam revestidos de um
positivo, na medida em que grande parte componente de natureza eminentemente
do capital humano que se dirigiu para o social, dado o grau de mobilidade que assu-
Centro-Oeste contribuiu para incorporá- miam, e de natureza econômica, na medida
lo à dinâmica da economia brasileira. Esse em que deslocavam não só sonhos e espe-
processo, conforme Moysés (1999),4 trans- ranças, mas também mão-de-obra barata
formou a região num espaço com grandes que alimentava um processo de acumulação

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ocupação e urbanização dos cerrados: desafios para a sustentabilidade

extremamente perverso. Um outro compo- diversificado. Porém, essa conformação as-


nente era de caráter cultural, pois o proces- sumiu também um caráter excludente. Isso
so de “desenraizamento”, para aqueles que porque, a partir dos anos 70, a moderniza-
haviam deixado para trás a convivência de ção da agricultura importou não só máqui-
um mundo marcado pela solidariedade, em nas, equipamentos e commodities (sementes
que a vida, apesar de rudimentar era har- de soja e de milho) tecnologicamente mais
mônica, gerava, também, frustrações pelo modernos, mas também migrantes com um
que haviam perdido e medo do que viria pe- perfil diferente, constituídos por “paulistas,
la frente, pois o seu mundo anterior desmo- paranaenses e gaúchos, em geral portado-
ronara-se diante da modernização. res de capital e com experiência na atividade
Na leitura de Borges (1999, pp. 8-9), agrícola” (IPEA, IBGE, Unicamp/IE/Nesur,
esse processo também provocou transfor- 2002, p. 170).
mações na ordem social, alterando o padrão Se, por um lado, as práticas moder-
de sociabilidade da população local, porque nas possibilitaram o rápido desenvolvimen-
mantinha a predominância do sistema fun- to de grandes áreas do Centro-Oeste, por
diário, assentado em grandes propriedades outro, trouxeram problemas de nature-
rurais que se tornaram ainda maiores, de- za social que foram desaguar nas médias
salojando seus habitantes, que se desloca- e grandes cidades. Em outros termos, a
ram para as periferias das cidades próximas, combinação de fatores tecnológicos aliados
perdendo, conseqüentemente, o seu vínculo à experiência em agricultura de exportação
empregatício. e os investimentos públicos produziram, de 209
Não se pode ignorar que o conjunto de fato, um novo modelo que resultou num
ações exógenas já citadas contribuiu também processo de esvaziamento do campo e con-
para acelerar o movimento migratório e, centrou nas cidades o excedente rural que
conseqüentemente, adensar o Centro-Oeste. fora expulso.
Basta verificar os dados sobre a dinâmica Observe-se a perversidade desse novo
populacional para se verificar que a popula- modo de acumulação: a entrada de capital
ção total e urbana alcançara, já a partir dos moderno na agricultura, voltado para a pro-
anos 50, taxas expressivas de crescimento dução de commodities, substituiu não só os
médio superiores à média nacional e à das despossuídos assentados na fase anterior
demais regiões vistas isoladamente. Isso (até os anos 60), mas também a produção
significa que os propósitos da Marcha para tradicional como arroz, feijão, milho e man-
o Oeste, na perspectiva de se interiorizar dioca, necessária à economia de subsistên-
o desenvolvimento, pelo menos no Centro- cia, mas também importante para minimizar
Oeste, foram atingidos. o custo da reprodução da força de trabalho
De fato, esse contexto tipicamente eco- nas cidades. Nesse caso, os despossuídos e
nômico possibilitou a formação de uma re- os produtos tradicionais constituíam fatores
de urbana que passou a desempenhar papel de produção típicos da economia de subsis-
importante na conformação do urbano no tência, que antes assumiam um caráter soli-
Centro-Oeste, em que o setor terciário era dário, mas perderam sentido no novo con-
responsável por um consumo moderno e texto econômico. Nessa linha de raciocínio,­é

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aristides moysés e eduardo rodrigues da silva

oportuna a argumentação de Borges (1999, Esse tipo de economia tem suas espe-
p. 8) de que, com os incentivos e financia- cificidades assentadas numa dinâmica que
mentos governamentais, a produção no exige, de um lado, cada vez mais capital (ca-
campo passou a atuar sob a lógica capita- pital inovado) e, de outro, cada vez menos
lista no complexo grãos e carne, com bus- mão-de-obra (especialmente qualificada) e,
ca crescentes de produtividade, voltando-se por conseqüência, novos produtos em que
prioritariamente à exportação. se incorporam cada vez mais trabalho mor-
to em detrimento do trabalho vivo.
As mudanças que ocorreram no pro-
cesso de reprodução do capital na região fo-
Conformação de uma ram radicais, pois evoluíram de um processo
rede urbana concentrada de acumulação simples para um processo de
acumulação ampliada, ou seja, se antes pro-
O processo de desenvolvimento urbano do duziam valores de uso, passaram a produzir
Centro-Oeste revestiu-se de uma dinâmica praticamente valores de troca. Isso não sig-
contraditória marcante. De um território nifica que sua economia tenha sido fechada,
pouco adensado e com uma base econômi- havendo comercialização apenas entre os
ca extremamente precária, evoluiu para um seus próprios membros e nunca com o ex-
processo acelerado de urbanização sustenta- terior, mas sim que o porte de sua produção
do por uma economia voltada para o abas- e, conseqüentemente, de sua comercializa-
210 tecimento do mercado externo. A economia, ção (ou seja, as transações comerciais) foi
até o final dos anos 60, atraía um tipo de insuficiente para assegurar a continuidade
mão-de-obra que demandava tecnologia de de um processo ininterrupto de produção e
baixo custo e, portanto, não era poupadora de consumo de escala.
de força de trabalho. Os migrantes que para Em outros termos, a produção ante-
cá se dirigiam estavam ligados às atividades rior tinha como objetivo principal abaste-
de natureza tradicional e eram basicamente cer a própria região e, muito raramente, o
constituídos de trabalhadores despojados de mercado externo, já que produzia excedente
meios de produção. apenas para os mercados locais, portanto,
Com o advento da modernização da insuficientes para atender à demanda exter-
agricultura e a intensificação industrial das na. Isso permite concluir que as disparidades
economias urbanas, num quadro de de- regionais não seriam superadas enquanto os
pendência, alterou-se o perfil do migrante. investimentos públicos se dirigissem predo-
Entraram em cena os migrantes vindos do minantemente para o grande capital.
sul do país, detentores de capital, de novos No que se refere ao desenvolvimento
conhecimentos e apoiados por incentivos da produção para o mercado externo, os
governamentais. A combinação de capital, dados da Tabela 5 ajudam a entender essa
trabalho mais qualificado para lidar com dinâmica, na medida em que mostram o
equipamentos modernos e incentivos fiscais crescimento expressivo das exportações de
engendraram uma nova economia, voltada excedentes do Centro-Oeste pós-1970, so-
para o mercado externo. bretudo de produtos semimanufaturados­ e

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ocupação e urbanização dos cerrados: desafios para a sustentabilidade

Tabela 5 – Taxa média anual de crescimento das exportações brasileiras


no período 1985/95, por regiões (em %)

Semi-
Brasil e regiões Básicos Manufaturados Total
manufaturados
Brasil 3,45 9,58 3,86 4,62
Região Norte 9,62 23,59 5,13 12,7
Região Nordeste -1,05 8,28 2,4 3,01
Região Sudeste 3,54 8,28 3,26 4,03
Região Sul 2,43 9,02 6,22 5,01
Região Centro-Oeste 16,48 20,85 11,99 16,82
Mato Grosso 22,23 48,08 9,02 20,82
Mato G. do Sul 19,61 39,29 15,21 20,88
Goiás 8,76 10,96 21,57 10,39
Distrito Federal -5,72 – 2,37 6,49

Fonte dos Dados Básicos: Ministério da Indústria e Comércio e do Turismo. Elaboração: Atlas Regional das
Desigualdades. IPEA/DIPES, IBGE.
Obs.: No campo onde não constam valores, não foi possível calcular a taxa de crescimento, pois, em alguns
anos, não ocorreram exportações. Tabela extraída do Relatório MPO/SEPRE “Revisão das Estratégias de De-
senvolvimento do Centro-Oeste: Relatório Final da Coordenação (1998)”.

manufaturados. Esses produtos são resul- externos e, num segundo momento, funcio- 211
tado dos novos processos produtivos im- naram como “imãs”, atraindo para si e para
plantados, advindos dos vários complexos seus respectivos entornos grandes contin-
agroindustriais de grãos-carnes, evidencian- gentes populacionais, já como fruto de uma
do o amadurecimento econômico da região mobilidade mais interna do que externa.6
no sentido de cumprir o papel de que fora Essa dinâmica resultou num processo
incumbida como região de fronteira, ou se- de “urbanização concentrada”, o que im-
ja, produzir excedentes para exportação e, plicou a existência de poucas cidades com
com isso, contribuir para o equilíbrio da ba- população elevada, ou seja, apenas 2,6 dos
lança comercial brasileira. municípios possuem população superior a
A mudança do perfil econômico da re- 100 mil habitantes. No entanto, estes, jun-
gião, evidenciada pelo comportamento das tos, detêm metade do contingente popula-
exportações, trouxe elementos que altera- cional da região (49,9%), lembrando que
ram a dinâmica das cidades e seus respecti- nesse quantitativo existem duas capitais:
vos funcionamentos. O processo de urbani- Brasília, capital nacional, e Goiânia, capital
zação, visto sob o aspecto populacional, foi regional, ambas com população acima de
extremamente acelerado em todo o Centro- 1 milhão de habitantes. No outro extremo,
Oeste, principalmente nas cidades médias encontram-se 32,1% dos municípios com
e grandes. Num primeiro momento, elas população de até 3 mil habitantes, onde re-
tiveram sua população aumentada em fun- sidem apenas 4,2% da população. Se, por
ção dos vários fluxos migratórios internos e um lado, esses números revelam a força de

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Tabela 6 – Distribuição dos municípios do Centro-Oeste


segundo as classes da população por Estado (GO, MT, MS e DF – 2000)
(em 1.000 habitantes)

Nº de
Distribuição por Estados População por Estado População total
Classes de municípios
população Resi-
MS MT GO DF MS MT GO DF Nº % %
dentes
até 3 mil 0 9 40 – 0,0 20,5 96,9 – 49 11,0 117,4 1,0
de 3 a 5 mil 8 22 64 – 33,5 89,2 246,1 – 94 21,1 368,9 3,2
de 5 a 10mil 20 34 55 – 146,9 250,1 390,9 – 109 24,4 787,9 6,8
de 10 a 20 mil 28 39 36 – 394,5 554,7 499,4 – 103 23,1 1.448,7 12,4
de 20 a 50 mil 16 15 31 – 438,8 469,2 959,7 – 62 13,9 1.867,8 16,1
de 50 a 100 mil 3 4 10 – 235,7 271,6 729,3 – 17 3,8 1.236,6 10,6
de 100 a 500 mil 1 3 5 – 164,9 848,9 987,9 – 9 2,0 2.001,7 17,2
de 500 a 1 milhão 1 0 0 – 663,6 0,0 0,0 – 1 0,2 663,6 5,7
mais de 1 milhão 0 0 1 1 0,0 0,0 1.093,0 2.051,1 2 0,4 3.144,2 27,0
Total 77 126 242 1 2.078,0 2.504,4 5.003,2 2.051,1 446 100 11.636,7 100

Fonte: IBGE – Censo demográfico de 2000.

atração das médias e grandes cidades, de isso, reduzir a pressão migratória sobre os
outro, fica evidente a incapacidade das po- municípios maiores.
líticas locais e regionais no sentido de reter Já as cidades pequenas, com menos de
212 nos municípios menores sua população. Em 20 mil habitantes, têm sistematicamente ce-
outros termos, a modernização agrícola dos dido sua população para as cidades médias,
anos 70 desencadeou um processo de de- e estas, para as cidades grandes. Mesmo os
sertificação populacional que afetou grande municípios com menos de 100 mil habitan-
parte dos municípios do Centro-Oeste. tes possuem capacidade limitada de reten-
Ressalte-se que no Centro-Oeste, se- ção de seus moradores, certamente por não
gundo o Censo 2000, existem 446 municí- possuírem uma rede de serviços e de comér-
pios, sendo: 242 no estado de Goiás, onde cio capaz de atender às suas expectativas.
residem 43,0% da população da região; Dentre as cidades mais receptoras,
77 no Mato Grosso do Sul, com 17,9% da encontram-se as que estão na faixa de 100
população; 126 no estado de Mato Grosso, a 500 mil habitantes. Essas cidades recebe-
com 28,3% da população e o Distrito Fede- ram população da própria região e de ou-
ral, com 17,6% da população centroestina. tras regiões do país. No entanto, o topo da
Outro aspecto a ser considerado é que, “urbanização concentrada” está também nas
nos municípios de porte médio, as possibili- cidades com população acima de 500 mil ha-
dades de vida mais digna e com menos de- bitantes e menos de 1 milhão. Nesse pata-
sigualdades sociais são maiores. Nesse sen- mar, apenas duas cidades, Cuiabá (com me-
tido, políticas públicas voltadas para muni- nos de 483 mil) e Campo Grande (com 663
cípios desse porte deveriam ocupar priorita- mil). A Região Metropolitana de Goiânia e
riamente a agenda dos governantes, com o a Região de Desenvolvimento Integrado do
objetivo de fortalecer sua economia e, com Entorno (RIDE-Brasília) possuem, juntas,

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ocupação e urbanização dos cerrados: desafios para a sustentabilidade

mais de 4,5 milhões, ou seja, mais de 1/3 da mais disperso, apesar da existência de cen-
população (39,5%) de todo o Centro-Oeste. tros polarizadores como as capitais e outras
A concentração fica mais evidente quando aglomerações urbanas de menor porte, que
se observa a população residente urbana, foram importantes enquanto espaço estra-
em que aproximadamente 65% moram em tégico para alavancar a fase seguinte. A par-
Goiás­e no Distrito Federal. tir dos anos 70, o perfil da região alterou-
Quanto à evolução da população urbana se com o crescimento acelerado de algumas
no Centro-Oeste, verifica-se que, com exce- cidades e a dinamização de centros urbanos
ção de Mato Grosso, a taxa de crescimento é de pequeno porte existentes em seu entor-
superior à média nacional. As maiores taxas no, ensejando o surgimento de uma rede ur-
de crescimento ocorreram em Goiás no pe- bana sem a construção de mecanismos que
ríodo de 1950-70, devido à construção de assegurassem a articulação e a complemen-
Goiânia e de Brasília, e no Mato Grosso no taridade entre as cidades (ver Michel Roche-
período de 1980-91. A explicação tem a ver fort, 1998, p. 19).
com a anexação de parte do estado do Ma- A idéia de “rede urbana” estimula
to Grosso ao recém-criado estado do Mato pensar na possibilidade concreta de que é
Grosso do Sul. necessário que as cidades se articulem em
Todo esse processo resultou na eleva- função de objetivos comuns, criando verda-
ção da taxa de urbanização da região, que deiras “redes de cidades”, o que implica ne-
passou de 21,5% em 1940, 48% em 1970 cessariamente romper com as formas ver-
para 86,7% em 2000, sendo que no Distrito ticalizadas e hierarquizadas ainda hoje pre- 213
Federal essa taxa atinge 95,6% (Tabela 1). dominantes e evoluir para formas que pri-
Obviamente, a população rural, em vilegiem o poder sinergético que há nessas
termos absolutos, vem decrescendo a taxas “redes”, em maior escala, e nas cidades, em
elevadas, refletindo um processo rápido de escala menor. Isso significa que as cidades,
deslocamento da população rural para as ao invés de competirem entre si, devem es-
periferias das cidades pequenas, médias e tabelecer relações de complementaridade,
grandes. de modo que “o específico” de cada cidade
Vale destacar que as ações governamen- da rede seja potencializado e não sufocado,
tais, de um lado, estimularam o desenvol- neutralizado.7
vimento da região, sobretudo as atividades A Tabela 7 mostra em quais centros
agropastoris e agroindustriais a partir dos urbanos está concentrada a grande maio-
anos 70; de outro lado, porém, provocaram ria da população total do Centro-Oeste.
grandes impactos nos espaços urbano e ru- Observa-se que 57,4% estão concentrados
ral, alterando sobremaneira o seu perfil. em apenas 40 municípios, o que correspon-
O conjunto dos dados disponibilizado de a 9,0% dos 446 municípios da região.
para a região dá a medida do quanto a rede Só as capitais dos estados abrigam mais de
urbana no Centro-Oeste está concentrada 4 milhões de habitantes, correspondendo a
em poucas cidades, onde as relações se dão 36,9% da população total do Centro-Oeste.­
de forma verticalizada e hierarquizada. Até Outro espaço de grande concentração po-
os anos 60, as cidades assumiam um perfil pulacional é o denominado eixo Goiânia-

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Tabela 7 – Principais aglomerações urbanas do Centro-Oeste brasileiro


(acima de 100 mil habitantes)

Quantidade População % em relação à


Aglomerações urbanas
de municípios (2000) população total
1. Metropolitana Nacional de Brasília (Ride) 22 2.958.196 25,4
2. Metropolitana Regional de Goiânia 11 1.639.516 14,1
Sub-total (1+2) 33 4.597.712 39,5
3. Não Metropolitana de Cuiabá + Várzea Grande 2 698.644 6,0
4. Centro urbano isolado de Campo Grande (MS) 1 663.621 5,7
Sub-total (1+2+3+4) 36 5.959.977 51,2
5. Centro urbano isolado de Anápolis (GO) 1 288.085 2,5
6. Centro urbano isolado de Dourados (MS) 1 164.949 1,4
7. Centro urbano isolado de Rondonópolis (MT) 1 150.227 1,3
8. Centro urbano isolado de Rio Verde )GO) 1 116.552 1,0
Sub-total (5+6+7+8) 4 719.813 6,2
Total geral (1 a 8) 40 6.679.790 57,4
População do Centro-Oeste – 11.636.728 100,0
População urbana total do C.O. – 10.092.976 86,7
Total de municípios envolvidos 40 – –

Fonte: Relatório VI da pesquisa IPEA/Unicamp-IE-Nesur/IBGE (Tabela VIII) – Caracterização e Tendências da


Rede Urbana no Brasil/1999 – (Dados organizados e atualizados pelo autor).

214

Anápolis-Brasília, com 33 municípios, consi- que emolduram a paisagem urbana e com-


derando os entornos de Goiânia e Brasília. prometem o visual da cidade. Os espaços do
Nesse eixo, concentram-se 4,8 milhões de “entorno”, ou seja, das Regiões Metropoli-
pessoas, correspondendo a 42% da popu- tanas, são formados pela incapacidade de os
lação do Centro-Oeste, portanto, mais de núcleos centrais absorverem a pressão das
1/3. Se, por um lado, a concentração em correntes migratórias.
cidades disponibiliza mão-de-obra abundan- Nesse sentido, acabam funcionando co-
te e barata, por outro, por ser abundante mo “biombos” para reduzir as pressões so-
e mal remunerada, gera problemas urbanos bre as áreas centrais. Entretanto, o que se
de toda ordem. verifica é que, nas Regiões Metropolitanas,
Assim, Goiânia e Brasília produziram também estão se formando espaços ocupa-
periferias internas nos seus respectivos ter- dos por enormes “manchas de pobrezas” ca-
ritórios e no entorno de suas respectivas da vez mais inseridas num processo crescen-
áreas de influência que funcionam como te de segregação social, em que imperam a
“tapete” para onde se varre a sujeira que insegurança, a criminalidade incontrolável, o
incomoda e desvirtua a beleza das chama- alcoolismo, os desajustes familiares e o de-
das “áreas nobres” - as manchas de pobres semprego crescente.

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ocupação e urbanização dos cerrados: desafios para a sustentabilidade

Considerações finais vimento, iniciado em meados dos anos 30


com o governo Vargas. São vários os pro-
cessos humanos de ocupação dos cerrados
Ousamos enquadrar a ocupação dos cer- com fins econômicos: a exploração do ouro
rados no Centro-Oeste como resultado da e de pedras preciosas (século XVIII); a cria-
transferência de tecnologia podre dos cen- ção extensiva de gado (a partir do século
tros mais devolvidos para a periferia do XIX) e, mais recentemente, a produção de
sistema capitalista. Essa ousadia está na commodities,­ processos esses que conso-
constatação de que, nos países de origem lidaram a presença humana nos espaços
do grande capital, existe uma grande in- urbanos.­
tolerância quanto ao uso de produtos que Por que o período pós 1970 é consi-
podem causar algum dano à saúde de quem derado o mais devastador do ponto de vista
os maneja, como também de quem os con- ambiental e social? Porque as atividades pro-
some. Essa intolerância vem tanto dos con- dutivas, não só no Centro-Oeste, mas em to-
sumidores quanto das autoridades ligadas do o país, a partir da década de 1970 passam
à saúde humana. Na medida em que o uso a se orientar por uma dinâmica econômica
desses produtos é rigorosamente controla- que procura a maximização dos investimen-
do, até mesmo proibido em seus países de tos a todo custo. É o período da entroniza-
origem, a tendência do poder econômico é ção real do capitalismo na sociedade brasilei-
buscar novos espaços onde eles possam ser ra, quando este, já amadurecido, encontra-se
utilizados com o mínimo de controle, tanto pronto para sua inserção internacional. Para 215
dos governos como dos setores da socie- essa inserção, mais do que nunca, existe a
dade civil. necessidade de se abrirem novas fronteiras e
O processo de ocupação dos cerrados modernizar a produção e sua forma de orga-
no Centro-Oeste brasileiro não é recente, nização política, social e ideológica.
remontando aos tempos em que a presen- As conseqüências ambientais que resul-
ça humana se fazia presente por meio dos tam da forma predatória de como o capital
caçadores e coletores de frutos e de muitos se apropria das terras dos cerrado no Cen-
outros alimentos próprios dos cerrados. Ca- tro-Oeste são muitas. Nas décadas de 1970
be salientar que esse processo de ocupação e 1980, houve o deslocamento da fronteira
primitivo não implicava ameaças ao bioma agrícola para o Centro-Oeste, com base em
cerrado, pois havia sintonia entre o homem desmatamentos, queimadas, uso de fertili-
e a natureza. A extração dos produtos na- zantes químicos e agrotóxicos, cujos efeitos
turais não tinha caráter econômico, desti- antrópicos modificam as áreas dos cerrado,
nando-se exclusivamente à sobrevivência de tendo como conseqüência o aparecimento
seus habitantes. de grandes voçorocas, o assoreamento dos
A dinâmica econômica do Centro-Oeste cursos­d’água e o envenenamento de ecossis-
assume caráter perverso, sobretudo a par- temas. Essa decisão de expandir as ativida-
tir dos anos 70, quando o Estado brasileiro des agrícolas exigiu o uso indiscriminado de
(era dos governos militares) decide aprofun- agrotóxicos que, por sua vez, contaminam­o
dar a lógica da interiorização do desenvol- solo e as águas e comprometem mais ainda­

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aristides moysés e eduardo rodrigues da silva

as bacias hidrográficas já ameaçadas em O fato é que, em pouco menos de qua-


decorrência­ de sua exploração exaustiva pa- renta anos, a paisagem dos cerrados no
ra uso da agricultura irrigada. Atualmente, Centro-Oeste mudou radicalmente em fun-
cerca de 70% do cerrado é utilizado para a ção dos interesses estruturais do desenvol-
agropecuária, principalmente para o cultivo vimento econômico brasileiro. Para isso, o
da soja. Estado brasileiro formulou políticas de in-
Somente a partir da década de 1990 é vestimentos que implicaram a implantação
que os cerrados passam a ocupar a agenda de infra-estrutura e disponibilizaram fartas
ambiental, primeiro nas academias e, poste- linhas de crédito, muitas, inclusive, a fundo
riormente, nas instituições governamentais. perdido. Ressalte-se que tudo isso foi leva-
Nesse sentido, governos e setores organiza- do a efeito sem se levar em consideração as
dos da sociedade começam a debater sobre conseqüências ambientais. A esse respeito,
como conservar o que restou do cerrado,8 Corrêa (ibid.), conclui que,
com a finalidade de buscar tecnologias em-
basadas no uso adequado dos recursos hí- A efetivação de medidas legais como a
dricos, na extração de produtos vegetais na- criação de reservas legais e promoção
tivos, nos criadouros de animais silvestres, de cuidados contra a erosão no ma-
no ecoturismo e em outras iniciativas que nejo do solo pode servir de justificati-
possibilitem um modelo de desenvolvimento vas para a concretização de atividades
sustentável e justo.9 que, apesar dessas medidas, continuam
Lamentavelmente, os cerrados con­ sendo impactantes ambientalmente. O
216
tinuam­ sendo um bioma ainda esquecido Prodecer 10 é um exemplo dessa rea­
lidade. Ao mesmo tempo em que os
pelos brasileiros, até mesmo pelas pessoas
seus planejadores admitem a ocorrência
que habitam o Centro-Oeste e que vêem
dos danos ambientais provocados pela
com bons olhos o processo de desenvolvi-
agricultura moderna no Cerrado, este
mento pelo qual está passando. Ou seja, o
Programa tem sido um indutor da ex-
próprio homem do Centro-Oeste não leva
pansão da fronteira agrícola, a fim de
em consideração a biodiversidade presente
contribuir com a ampliação da oferta
nesse bioma e as ameaças que pairam sobre
de grãos nos mercados mundiais. No
ele com a perspectiva do “progresso”. No
entanto, pouca atenção foi destinada ao
dizer de Corrêa (2000), “durante a constru-
impacto ocasionado ao meio ambiente.
ção de Brasília, não houve preocupação com Em decorrência, houve a perda de parte
a preservação do cerrado: afinal, ali estava da biodiversidade, cujas potencialidades
a ‘vegetação lixo do Brasil’, que precisava econômica, científica e medicinal não
ser eliminada para ceder espaço à urbaniza- são nem sequer totalmente conhecidas.
ção”. Palavras duras, mas que expressam a Embora não exista uma avaliação global
concepção que os empreendedores tinham sobre os danos provenientes dessa rápi-
dos cerrados e que, abruptamente, a partir da incorporação produtiva, que se ini-
dos anos 70, foi se alterando, tendo como ciou nos anos setenta é possível afirmar
base os estudos da Embrapa que sinaliza- que esta proporcionou desmatamentos
vam para o seu aproveitamento produtivo. constantes, compactação e erosão­ dos

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ocupação e urbanização dos cerrados: desafios para a sustentabilidade

solos, contaminação das águas por atividades humanas, permanecem castigan-


agrotóxicos, destruição das matas de do o território centroestino até os dias de
galerias, invasão de plantas e faunas hoje, contraditoriamente, como constata
exóticas alterando o equilíbrio dinâmico Correa, quando observa que há “desequilí-
do ecossistema. brio, francamente favorável a alguns seto-
Os efeitos ambientais desse processo res da sociedade e desfavorável para o meio
de ocupação perversa, em decorrência das ambiente”.

Aristides Moysés
Economista pela Universidade Católica de Goiás. Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Professor Titular do Departamento de Ciências Econômi-
cas e Coordenador do Mestrado em Desenvolvimento e Planejamento Territorial da Univer-
sidade Católica de Goiás. Professor do Mestrado em Ecologia e Produção Sustentável. Coor-
denador e Pesquisador do Observatório das Metrópoles: Núcleo Goiânia/Instituto do Milênio-
CNPq. Técnico do Departamento de Ordenação Socioeconômico da Secretaria Municipal de
Planejamento da Prefeitura de Goiânia (Goiás, Brasil).
arymoyses@uol.com.br

Eduardo Rodrigues da Silva


Economista pela Universidade Católica de Goiás. Mestre e Doutorando em Desenvolvimento 217
Econômico, Espaço e Meio Ambiente pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual
de Campinas. Professor e Diretor do Departamento de Ciências Econômicas da Universidade
Católica de Goiás. Pesquisador do Observatório das Metrópoles: Núcleo Goiânia/Instituto do
Milênio-CNPq (Goiás, Brasil).
eduardo.eco@ucg.br

Notas
* Trabalho apresentado no XII Encontro Nacional da Anpur – Associação Nacional de Pós-
graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional - ST 2 - Rede urbana e estrutura
territorial em Belém, Pará – 21 a 25 de maio de 2007, com o título “Ocupação e urba-
nização dos Cerrados do Centro-Oeste e a formação de uma Rede urbana concentrada e
desigual”.

(1) Os cerrados, segundo Abramovay (1999), ocupam um quarto do território brasileiro, num
total superior a 200 milhões de hectares. Desse total, 155 milhões de hectares estão no
Planalto Central e 38,8 milhões de hectares no Nordeste (Freire, 1997, p. 201), dos quais a
maior parte (30,3 milhões de hectares) na região Meio-Norte; 43,3% da superfície do Ma-
ranhão é composta de cerrados e 64,7% da do Piauí (Rocha, 1997, p. 63). Existem áreas de
cerrados ainda em Rondônia, Roraima, Amapá e Pará, bem como em São Paulo.

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(2) Dentre as técnicas de irrigações utilizadas na agricultura moderna, cujos objetivos princi-
pais são o fornecimento controlado de água e a fertilização do solo com a deposição de
elementos necessários para torná-lo mais produtivo, destaca-se o Pivô Central. Trata-se de
um sistema de tubulação metálica com aspersores, montado sobre uma estrutura metálica
com rodas, sendo uma das extremidades o ponto central (ponto do pivô) de onde é bom-
beada água, fertilizantes, inseticidas e fungicidas. Esse sistema se move como hélice e é
capaz de irrigar áreas ente 50 e 130 hectares

(3) O ITS estima que mais de 300 cursos d’água secaram no Centro-Oeste em conseqüência da
forma de ocupação do cerrado.

(4) O estudo “Desenvolvimento urbano do Centro-Oeste” é fruto de esforço coletivo do qual


participaram Aristides Moysés, Eduardo Rodrigues da Silva, Fernando César de Macedo
Mota e Zoraide Amarante Itapura de Miranda.

(5) “Grande parte deste dinamismo está associado às características de fronteira aberta do Cen-
tro-Oeste, à sua extensão territorial e às potencialidades naturais e sociais de sua região,
tais como a vasta vegetação típica do cerrado, recursos hídricos em abundância, recur-
sos minerais, taxas crescentes de população alavancadas por um fluxo migratório intenso”
(Moysés et alii, 1999).

(6) Esse fenômeno foi chamado de “desconcentração urbana” por vários autores, dentre eles
Luiz César de Queiroz Ribeiro (1994).

(7) Com a emergência das cidades globais, fala-se hoje em rede de cidades globais. Trata-se de
um espaço em que um conjunto de atividades econômicas e de integração sociocultural
ocorre em tempo real, graças ao avanço da tecnologia computacional e das telecomuni-
218 cações. A esse respeito, existe vasta literatura. Nesse novo contexto, a cidade ocupa papel
central. Autores como Sassen (1991; 1998; 1999), Borja (1998), Castells (1999), Ascher
(1998), Ianni (1994), Hall (1998), de leitura obrigatória, focalizam a cidade como o novo
ponto cardeal das questões urbanas.

(8) Não há consenso entre os estudiosos do bioma cerrado, para os quais as áreas de cerrados
preservadas variam de 20 a 50%; na década de 1990 e nos anos 2000, a situação vem se
agravando com o uso intensivo de tecnologias defensivas para os interesses econômicos,
mas agressivas para o meio ambiente. Entretanto, há consenso quanto às possibilidades de
seu desaparecimento no futuro, caso as reservas ainda existentes não sejam preservadas.

(9) No caso de regiões onde ocorreu desmatamento para permitir a expansão da agricultura, a
recuperação exige a intervenção humana, ou seja, o replantio de espécies nativas do cerra-
do. Para recuperar totalmente essas áreas a estimativa é de 50 a 100 anos.

(10) O Prodecer (Programa de Cooperação Nipo-Brasileiro para o Desenvolvimento dos Cer-


rados) foi idealizado em 1974. Os anos de 1974 a 1977 foram de entendimentos, acordos
e amadurecimento do projeto, para então, em 1978, dar início concreto às atividades no
cerrado, local que até então era considerado impróprio para a agricultura. Os recursos ja-
poneses (financiamento) vieram de fontes institucionais do governo e dos bancos privados,
liderados pelo Long Term Credit Bank, que são os co-financiadores. Os projetos-piloto
foram financiados pela Japan International Cooperation Agency (JICA) e o projeto de ex-
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Recebido em maio/2008
Aprovado em ago/2008

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Reflexões sobre o estudo
da proliferação de condomínios
fechados: críticas e sugestões
Hélio Rodrigues de Oliveira Jr.

Resumo Abstract
O objetivo do trabalho é pensar as relações en- The purpose of this paper is to think about
tre a cidade e a proliferação de condomínios the relation between the city and the spread of
fechados. Para tanto, procura desenvolver ar- gated communities throughout it. To achieve
gumentos sobre o modo como a cidade é re- this, it develops arguments on the way the
tratada por parcela significativa do pensamento city is portrayed by a significant part of the
social, bem como sugerir a pertinência de pen- social thought, and suggests the pertinence of
sar de outro modo as relações entre cultura de reflecting, in a different perspective, on the
consumo, estilos de vida, segregação, violência relations between culture of consumption,
e espaço construído, com o intuito de compre- lifestyles, segregation, violence and constructed
ender a cidade e a proliferação de condomínios space, with the aim of understanding the city
fechados. and the spread of gated communities.
Palavras-chave: condomínios fechados; cultu- Keywords: gated communities; culture of
ra de consumo; violência; segregação; relações consumption; violence; segregation; social
sociais; cidade. relations; city.

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hélio rodrigues de oliveira jr.

Introdução exclusão que a alimenta – e, uma vez mais,


se satisfazer com isso. Mas é preciso se in-
quietar diante de conclusões já apaziguadas
De modo geral, explorar um pouco mais o e realizar seu trabalho em negativo.
quadro de análises sobre a proliferação de Se é verdade que os condomínios fe-
condomínios fechados vis-à-vis as formas chados conciliam habitação a um elevado pa-
de consumo conspícuo e a exacerbação da drão de conforto, de qualidade de vida e de
violência (real e imaginária), na sociedade segurança, bem como reiteram uma certa
contemporânea, é uma opção que se justifi- percepção da localização espacial da riqueza
ca à medida que se tomam como evidentes e da pobreza, logo, da segurança e do me-
as relações entre tais processos. Chama a do, é preciso que se discuta em que medida
atenção, entretanto, que, na literatura vol- os fatores que constituem o processo de sua
tada à problemática urbana, o tratamento proliferação são estimulados por posturas
dispensado às relações existentes entre o individuais que, a um só tempo, são exten-
consumo focado em bens codificados como sivas aos grupos sociais e potencialmente
algo a que se confere status social elevado – reversíveis às pessoas que compartilham
como os condomínios fechados – e a violên- situações comuns, que freqüentam umas às
cia, no contexto das grandes cidades, ignore outras, não sendo, para tanto, suficiente a
aspectos fundamentais no tocante às positi- imagem de sua reintegração social a partir
vidades que tais relações resguardam. Dito de um caráter politicamente reconciliado e
222 de outro modo, as análises que buscam sua reconstituído. É preciso também que se dis-
compreensão se satisfazem parcamente com cuta aquilo que, em sua variante violenta,
o apontamento de nexos causais entre variá- expressa, sobretudo, vida social e, por isso,
veis já bastante conhecidas, retratando a vio- se torna condição de movimento, proporcio-
lência como expressão máxima da desordem na mudança e gera transformações nos es-
e do desequilíbrio de uma sociedade e os paços das cidades.
condomínios fechados como solução elitista e À luz das proposições clássicas voltadas
resposta perversa a uma perturbação engen- para a cidade e das recentes contribuições
drada no contexto social, visto que, dentre que integram o debate sobre as possibilida-
outras coisas, retroalimentam ou autoforta- des por ela engendradas, o presente traba-
lecem os processos que os informam.1 lho aborda aspectos conceituais e analíticos
Decerto, há que haver algum conforto considerados necessários à compreensão do
em desmascarar a realidade dos fatos, em fenômeno de proliferação de formas espa-
descobrir que, sob as inúmeras facetas pe- ciais segregatórias – como os condomínios
las quais se considera um mesmo processo, fechados –, tendo em vista as relações en-
o problema fundamental da manutenção tre segregação, violência, estilos de vida,
do status quo econômico e social subsiste. cultura de consumo e espaço construído,
Nesse sentido, quando se observa a vio- na contemporaneidade. Busca-se, desse
lência, há também que se reconfortar uma modo, compreender a extensão e os senti-
consciência já cauterizada, porém, capaz de dos dessas configurações socioespaciais que
revelar algo – a miséria que ela encerra, a invadem­ paulatinamente a cidade, a partir

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reflexões sobre o estudo da proliferação de condomínios fechados: críticas e sugestões

de uma sensibilidade que se abre para o que esvaziamento­ de sentido de tudo aquilo que
diversamente a informa, mesmo que de um se entende como público e, por intermédio
modo aparentemente avesso, agressivo ou, de recursos lógicos de coerência, procuram
ainda, negativo. assimilar à cidade a vulgaridade das postu-
ras restritivas e preventivas ao contato com
estranhos, as manifestações reclusas de sen-
timentos, de aspirações, de afetividades, etc.
Notas preliminares sobre Desse modo, a cidade – outrora considerada
referências analíticas o palco privilegiado para a exposição e o en-
e questões conceituais contro com a alteridade – passa a refletir
em seus espaços mais diversos as imagens
É notório o fato de que, ao se voltarem pa- do isolamento físico e social que, por sua
ra a proliferação de condomínios fechados, vez, denotam posturas e decisões intimis-
numerosas análises o integram ao debate tas, eventualmente consideradas tirânicas,
sobre as cidades como uma das evidências compreendidas como próprias à privacidade
empíricas mais recentes da difusão de um dos sentimentos, às intenções e aos gestos
comportamento elitista e asséptico em rela- individuais.
ção a tudo que o espaço público representa e Observe-se, contudo, que, na crítica
acolhe.2 Nesse sentido, ao se projetarem co- aos condomínios fechados, um corpo social
mo opção de moradia para os estratos mais moral e politicamente reconstituído ressur-
abastados, os condomínios fechados consoli- ge (não mais esfacelado ou fragmentado, 223
dam uma imagem bastante coesa de grupos como se poderia esperar). Nela, são a ho-
sociais que, efetivamente, têm condições de mogeneidade e a coesão social dos grupos
adquirir e de morar nas áreas mais caras da mais abastados e, por oposição, do restante
cidade, sejam aquelas que originariamente da sociedade enquanto massa excluída do e
concentram a alta renda, sejam aquelas que pelo mercado, que efetivamente orientam o
mais recentemente passam a ser ocupadas debate.4
por empreendimentos desse tipo – muitas Para se ter uma idéia melhor do que
vezes, confirmando e demonstrando o des- aqui se alude, observe-se o comentário de
locamento das elites dentro de um mesmo Boaventura de Souza Santos (1999) a pro-
vetor espacial.3 pósito do que ele chama de “proliferação da
Note-se, entretanto, que essa perspec- lógica de exclusão”:
tiva analítica supõe uma sutil inversão do
quadro de referências estabelecido pela lite- Analisemos antes de mais os riscos.
Julgo que todos eles se podem resu-
ratura especializada.
mir num só: a emergência do fascismo
Não raro, as análises que têm como
societal. Não se trata do regresso ao
fo­c o os condomínios fechados partem da
fascismo dos anos trinta e quarenta. Ao
idéia de que a sociedade experimenta as
contrário deste último, não se trata de
con­­se­q üên­c ias do chamado retraimento
um regime político, mas antes de um
social.­ Com efeito, buscam demonstrar que
regime social e civilizacional. Em vez de
o recrudescimento da intimidade implica o

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hélio rodrigues de oliveira jr.

sacrificar a democracia às exigências do Por intermédio de categorias economi-


capitalismo, promove a democracia até camente definidas, que trazem a reboque as-
ao ponto de não ser necessário, nem se- pectos sociais, políticos e culturais, tornou-
quer conveniente, sacrificar a democra- se trivial estabelecer um antagonismo social
cia para promover o capitalismo. Trata- mediado pela aquisição de bens de consumo
se, pois, de um fascismo pluralista e, (sobretudo os de custo elevado) e pela ex-
por isso, de uma forma de fascismo que clusão que os acompanha, visto que poucos
nunca existiu. se encontram em condições de adquiri-los. A
A primeira forma é o fascismo do esse antagonismo social soma-se, não raro,
apartheid­ social. Trata-se da segrega- uma associação de teor etnocêntrico, que
ção social dos excluídos através de uma
confere aos estabelecidos (incluídos) poder
cartografia urbana dividida em zonas
de decisão, participação, intervenção e cria-
selvagens e zonas civilizadas. As zonas
ção, enquanto que aos outsiders (excluídos)
selvagens são as zonas do estado de na-
pouco ou quase nada resta senão se subme-
tureza hobbesiano. As zonas civilizadas
ter, em um universo extremamente restrito
são as zonas do contrato social e vivem
de opções, às condições objetivas de vida.6
sob a constante ameaça das zonas sel-
Além disso, a adoção de conceitos co-
vagens. Para se defenderem, transfor-
letivos e, mais especificamente, de sistemas
mam-se em castelos neofeudais, os en-
de categorias socioprofissionais ou – para os
claves fortificados que caracterizam as
novas formas de segregação urbana (ci- que assim preferem – de classes sociais, pa-
224 dades privadas, condomínios fechados, ra exprimir a existência concreta de grupos,
gated communities ). A divisão entre é desencadeadora de equívocos sucessivos e
zonas selvagens e zonas civilizadas está também de um inaceitável efeito de disso-
a transformar-se num critério geral de lução. Bem entendido, como tais categorias
sociabilidade, um novo espaço-tempo permitem alocar os indivíduos em grupos,
hegemônico que atravessa todas as re- e os grupos são, via de regra, o indício de
lações sociais, econômicas, políticas e um comportamento médio, raison d’être da
culturais e que por isso é comum à ação análise, tem-se a impressão enganosa de se
estatal e à ação não estatal. (p. 103)5 tratar de unidades sociais estáveis e coesas,
nas quais os membros de um determinado
O que me parece um entrave à aceita- grupo parecem sempre compartilhar, tal
ção de argumentos como os propostos por como ocorreria em uma comunidade fe-
Santos é que, embora reconheçam os pro- chada, objetivos comuns, que motivam sua
cessos crescentes de fracionamento da so- ação conjunta, racional, com fins claramente
ciedade (para este autor, dividida em múl- definidos. Por conseguinte, aquelas circuns-
tiplos apartheids) e de sua polarização ao tâncias excepcionais em que os indivíduos
longo dos eixos econômico, social, político e alinham-se às proposições do grupo, seja
cultural, a lógica que os encerra reproduz, pela facilidade ou pela segurança que ele re-
paradoxalmente, um discurso que literal- presenta, tornam-se, para a análise, regra
mente cola os fragmentos da vida social e a comportamental, o que dissolve o indivíduo
expõe como unidade recomposta. no grupo do qual é membro. Desse modo,

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reflexões sobre o estudo da proliferação de condomínios fechados: críticas e sugestões

não só se neutralizam as diferenças nas si- nele se realiza. Logo, essas relações duram
militudes como, o que me parece mais gra- o período que devem durar, nem mais nem
ve, as faz silenciar.7 menos. São, porém, cristalizadas pelo corte
Complementarmente, parece-me que analítico que as toma como referência.
por “contaminação”, as noções de “grupo” e Note-se que, não obstante o fato de
de “sociedade” se forjam, como de costume, que continue a funcionar, essa lógica de teor
no sentido extremo da domesticação das di- totalizante já não tem mais a mesma eficá-
ferenças e das particularidades: o indivíduo cia. Dentre outras coisas, isso se dá porque
considerado integrante de determinado gru- seu efeito planificador torna inaudita a pre-
po passa a ser visto como uma metáfora do sença do outro. Não o elemento estranho
grupo e, a um só tempo, como há uma re- e exterior ao grupo, para o qual se deve
lação lógica de pertencimento entre grupos atentar e do qual se deve resguardar, mas o
e sociedade (lembrando que cada sociedade outro que, no cotidiano, está dentro do pró-
constrói sua própria versão de ser humano e prio grupo, e, mais especificamente, dentro
que as concepções sobre o ser humano são do próprio condomínio fechado.
reveladoras da natureza cultural dessa socie- Qualquer tentativa de compreensão so-
dade), o indivíduo passa, então, a ser visto bre “o muro dentro do muro” – e, dentro
como uma metáfora viva da própria socieda- de seus limites físicos, dos portões e das
de. Disso decorrem combinações já bastante cercas, além de outros muros que definem
conhecidas entre indivíduos inertes, grupos as próprias residências – torna-se, por isso,
estagnados e sociedade totalizante, pala- inviável, visto que não se admite que tais 225
táveis à análise e aos esquematismos, que elementos justificam-se, senão pelo “incô-
muito pouco têm a dizer sobre uma gama modo”, pela “ameaça” que a alteridade, ain-
de acontecimentos que caracterizam a socie- da que familiar (leia-se, o próprio vizinho),
dade contemporânea.8 representa. O vizinho é sempre um estranho
Por fim, o que se torna realmente pro- que mora ao lado e, como tal, assim será
blemático é a percepção de uma estabilida- potencialmente tratado.10
de basilar contínua, que nega toda e qual- A fixação do indivíduo em um único
quer agitação interna, gerando a crença de grupo tornou-se, com efeito, delicada, bas-
que o que motiva a existência do grupo e tante improvável, bem como tornaram-se
sua coesão é algo permanentemente pre- inviáveis as análises e os conceitos que dessa
sente e invariável para o próprio indivíduo. imobilidade dependem, dada sua incapacida-
No mais das vezes, esquece-se que a lógica de estrutural de atualização. Isso porque,
que orienta a formação do grupo é fugaz e, dentre outras coisas, tais análises e concei-
por isso, ele não se sustenta ad infinitum.9 tos não dão conta das infinitas interseções
Mais ainda, esquece-se que essas uniões são entre grupos (o que desloca a ênfase nas
instáveis: dão-se por motivos específicos relações internas ao grupo para as relações
que permitem a aglutinação de pessoas em que se dão nas fronteiras existentes entre
torno da busca por soluções pontuais para grupos) e, sobretudo, daquelas que o pró-
demandas comuns e também pela satisfação prio indivíduo cria cotidianamente com ou-
que advém do encontro com o outro, que tros indivíduos, nos mais diversos contextos­

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hélio rodrigues de oliveira jr.

e pelas mais diversas razões. Logo, há que lhes­ forma­ e sentido.­ Trata­-se­­­ de conhecer
se considerar que o indivíduo não assume o outro (o indivíduo, suas sensações, suas
mais a condição una de portador de todas opções, etc.) sem transformá-lo no mesmo
as virtualidades do grupo. Ele está em trân- (nos grupos com os quais dialoga). Trata-
sito. Movimenta-se freneticamente e dilui, se, ao fim, de afastar-se das antinomias
desse modo, as essencialidades tangíveis clássicas do pensamento social; de apontar
(uma cultura, um território, uma forma de suas limitações; e, de algum modo, seguir
organização política etc.) tão caras ao pen- adiante, quiçá ao rés do chão, como pro-
samento moderno, o que obriga a pensar põe Michel de Certeau­ (1994), a fim de
indivíduos e grupos de um ponto de vista aproximar-se mais daquilo sobre o qual se
flexível e relacional. pronuncia a análise.
Em suma, se a definição de um padrão Exposto isso, cumpre apreciar, ainda,
comportamental narcisista e sua aceitação uma ordem complementar de problemas re-
enquanto categoria explicativa denota a au- lativos às opções de consumo e suas implica-
sência de sensibilidade analítica para com os ções no tocante ao processo de proliferação
mais variados processos manifestos em con- de condomínios fechados.
textos de grandes cidades, não seria o seu
inverso tão desastroso quanto aquilo que
nega, ao afirmar uma ordem social totali-
zante, que tem agora a coletividade como Relações entre
226 premissa analítica? Em ambos os casos, é a cultura de consumo
interessante notar, cria-se algo com caráter e a proliferação de
definitivo: explicações conclusivas sobre co-
mo aquilo que se aloja sob o dístico de “so-
condomínios fechados:
cial” se produz na cidade e tem seus efeitos um pouco mais do mesmo?
sobre ela: o que nega a imbricação criativa e
contínua entre o indivíduo e a sociedade e, À medida que os condomínios fechados são
mais especificamente, entre esses e os espa- tomados como uma das expressões materiais
ços das cidades, muito embora, frise-se, se daquilo que Pierre Bourdieu (1983) definiu
afirme o contrário. como “gostos de classe e estilos de vida”, é
No debate sobre as cidades e a proli- normalmente aceito que a opção de morar
feração de condomínios fechados, privile- em empreendimentos desse tipo coloque em
giar analiticamente o indivíduo ou a socie- relevo bens de consumo codificados como al-
dade e, ainda, a proeminência de um sobre go a que se confere status social elevado.
o outro é, acima de tudo, sustentar um De modo geral, sabe-se bem, o uso de
equívoco. O desafio que se impõe é perce- expressões como “modos” ou “estilos de
ber as sutilezas com que posturas e senti- vida”, “alta cultura”, “cultura de massas” e
mentos individuais­ –­ que podem, a um só “poder simbólico”, denota certamente a im-
tempo, ser extensivos­ aos grupos sociais, portância atribuída a alguns elementos com-
sem, contudo,­ neles se dissolverem – se partilhados por diversos grupos sociais, de
refletem­nos espaços da cidade, conferindo- onde se conclui que, em contextos definidos,­

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reflexões sobre o estudo da proliferação de condomínios fechados: críticas e sugestões

as especificidades de um dado grupo social contribuiriam­ para a criação e consolidação


são delineadas, dentre outras coisas, pela do que Caldeira denomina mito de “um novo
adoção e pelo compartilhamento de deter- conceito de moradia”.
minados símbolos que, mediante sua decodi- Dentre essas imagens, a autora ressalta
ficação, permitiriam, por contraste, atribuir que a
aos grupos um conjunto de características
que os distingue uns dos outros. [...] que confere maior status e, portan-
Veja-se, a propósito, as considerações to, a mais sedutora, é a de uma comu-
de Teresa Caldeira (1997) ao analisar os di- nidade fechada e isolada, um ambiente
versos anúncios imobiliários veiculados pela seguro no qual se pode usufruir dos
imprensa acerca dos enclaves situados na ci- mais diversos equipamentos e serviços
dade de São Paulo. e, sobretudo, viver apenas entre iguais.
[...] A imagem dos enclaves opõe-se à
da cidade, representada como um mun-
A construção de símbolos de status é
do deteriorado, permeado não apenas
um processo que elabora distâncias so-
por poluição e barulho, mas principal-
ciais e cria meios para a afirmação de
mente por confusão e mistura, ou seja,
diferenças e desigualdades sociais. [...]
heterogeneidade social e encontros in-
A publicidade de imóveis ao expressar/
desejáveis. (Ibid., p. 160)
criar os estilos de vida das classes média
e alta revela os elementos que consti-
Ora, se as associações e as imagens que
tuem os padrões de diferenciação social 227
as mercadorias proporcionam podem ser
em vigência na sociedade. Os anúncios
utilizadas e renegociadas para enfatizar di-
não só revelam um novo código de dis-
ferenças de estilos de vida, demarcando as
tinção social, mas também tratam expli-
relações sociais, é pertinente que se recorde
citamente a separação, o isolamento e a
que, no âmbito da cultura de consumo, que
segurança como questões de status. Em
marca a cena contemporânea, a expressão
outras palavras, eles repetidamente ex-
“estilo de vida” conota individualidade, auto-
pressam a segregação social como um
valor. (p. 159) expressão e uma consciência de si estilizada,
tal como observa Mike Featherstone (1995).
Nesse contexto, como salienta o autor,
As metas estabelecidas por Caldeira, ao
analisar o material publicitário, visavam a
O corpo, as roupas, o discurso, os en-
identificar, dentre outras coisas, o que pos-
tretenimentos de lazer, as preferências
sivelmente captava a imaginação e os dese-
de comida e bebida, a casa, o carro, a
jos das classes média e alta de São Paulo,
opção de férias etc. de uma pessoa são
bem como a indicar as principais imagens vistos como indicadores da individuali-
que seus membros dispunham para cons- dade do gosto e do senso de estilo do
truir seu lugar na sociedade. proprietário/consumidor. (p. 119)
Imagens de segurança, isolamen-
to, homogeneidade, além da existência Dentre os diversos fatores que in-
de instalações e de serviços diversificados formam essa compreensão, pode-se,

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hélio rodrigues de oliveira jr.

certamente,­ encontrar a instabilidade dos É pouco apropriado, portanto, que, na


símbolos de consumo e a velocidade com busca por compreensão de processos rela-
que se multiplicam, bem como a enorme va- tivamente recentes, como o de proliferação
riabilidade de sentidos que se atribui a eles. de condomínios fechados, múltiplos fatores
Parece ser no mesmo tom de ressalva associados à esfera do consumo e aos sen-
que R. Boudon e F. Bourricaud (2001) rea- tidos que as pessoas podem atribuir ao que
lizam comentário conclusivo sobre o concei- consomem se percam em meio às opera-
to de status. Para os autores, ções analíticas que têm o seu escopo com-
prometido, primariamente, pela defasagem
À medida que os sistemas de estratifi- conceitual.
cação vão se tornando mais complexos A produção do espaço urbano no con-
e sujeitos a evoluções mais rápidas, texto da cultura de consumo enceta um
a atribuição dos status torna-se mais universo ilimitado de possibilidades que di-
incerta. Primeiramente, a lista dos cri- ficilmente se permite reduzir à formulações
térios que entram em sua definição é harmoniosamente ajustadas ao mercado ou
mais longa. Além disso, esses traços à convivência social.
são freqüentemente incongruentes, ou Logo, residir em um mesmo condo-
então redundantes, ou ainda, em certa
mínio não garante a proeminência de uma
medida, contraditórios. Torna-se difícil
lógica racional voltada para o mercado – e
resumir o conjunto de atributos hete-
para a distinção social que nele encontra seu
róclitos que está ligado a cada um de
228 principal intermediário. Não garante a expe-
nós por um símbolo único, como nas
riência sociocultural concreta de uma comu-
sociedades tradicionais, onde era sufi-
nidade de gosto, de um estilo de vida único
ciente dizer “é o filho de fulano” para
que se compartilha, nem a união sociopolíti-
se conhecer o nível da pessoa de que se
ca dos moradores. A junção analítica entre
tratava, sua fortuna, o círculo de seus
aspectos ligados à cultura de consumo e à
amigos, parentes e aliados. Nas comu-
nidades rurais tradicionais, pessoa, per- proliferação de condomínios fechados enseja
sonagem e status estavam estreitamen- tais possibilidades, mas não as garante, ca-
te associados. Hoje, a pessoa e o status bendo ao trabalho investigativo, cercado de
tendem a se distinguir. A identidade precauções, estabelecer as potencialidades
pessoal não é mais dada; constrói-se a relacionais entre experiências reais e nisso
partir do esforço de uma vida inteira. se aprofundar.
Assim recuperamos uma identidade que Desse modo, nos dias atuais, descon-
tende a nos escapar devido à multiplici- siderar a diversidade de razões que podem
dade dos aspectos sob os quais aparece levar à opção por residir em um condomí-
nosso status. Ao mesmo tempo, a iden- nio fechado, afirmando-se um sentido linear
tidade pessoal põe-se à prova menos para tal escolha, acarreta também o emba-
por aderir a um status fixado definiti- raçoso risco de tornar uma análise que se
vamente do que pelo sentimento de sua pretende atual, desde o começo, anacrônica
precariedade. (p. 547) e, por conseguinte, obsoleta.

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reflexões sobre o estudo da proliferação de condomínios fechados: críticas e sugestões

Qualquer tentativa de explicação sobre conveniências­ pessoais tendem infalivel­me­


as decisões tomadas no âmbito pessoal que nte­a segregar e, conseqüentemente, a clas-
repercutem social e espacialmente requer sificar as populações das grandes cidades.
atenção ao fato de que, dentre outras coi- Ocorre, porém, que, na perspectiva analíti-
sas, os referenciais a partir dos quais são ca sob a qual se inscreve boa parte dos es-
geradas as informações sobre aquilo que se tudos produzidos sobre o urbano, há uma
define enquanto estilo de vida podem facil- tendência evidente em criticar a segregação
mente não ser mais os mesmos, nem para o socioespacial enquanto construto social e
indivíduo nem para os grupos. dado de realidade, afirmando-se seu teor
Do mesmo modo, há que se considerar negativo, tendo em vista um ethos igualitá-
que qualidade de vida, conforto, elevado pa- rio e, por conseguinte, critérios de inclusão
drão cultural, sucesso profissional, riqueza social como valores.
material, segurança, etc. são, antes de tudo, Ora, é paradoxal e em alguma medida
referências primárias, pontos de partida pa- redundante que autores preocupados com a
ra que se estabeleçam as mais diversas cone- construção do espaço residencial e com os
xões de sentidos a propósito da proliferação mecanismos de exclusão/inclusão social no
de condomínios fechados, e não seu ponto contexto de importantes cidades brasilei-
de chegada, para onde tudo deve confluir. ras – como Caldeira (1997), ao analisar o
material publicitário de empreendimentos
imobiliários voltados para as classes média
e alta em São Paulo – condenem, a priori, 229
Sociedade e condomínios qualquer manifestação aberta de segrega-
fechados: segregação, ção social como um valor. Isso pela simples
violência e medo razão de que a segregação se constitui e
se evidencia empiricamente, tanto espacial
e a produção do espaço quanto moralmente, com base em valores,
nas cidades mesmo que eles não coincidam com as ex-
pectativas mais elevadas sobre o social, se-
O cruzamento entre variáveis como rique- jam elas a do próprio pesquisador e/ou do
za material, segurança, pobreza, violência e campo em que se estabelece o trabalho de
medo para explicação do processo de proli- reflexão.
feração de condomínios fechados pode ser É pertinente que se recorde, o próprio
bastante proveitoso, desde que uma pers- Park (1987, p. 29) reconhece que
pectiva analítica demasiado valorativa, cujo
espectro está sempre rondando, seja evita- [...] a cidade possui uma organização
da. Embora bastante óbvia, reconheço, essa moral bem como uma organização fí-
ressalva inicial requer breve justificativa. sica, e essas duas interagem mutua-
Desde, pelo menos, as importantes mente de modos característicos para­ se
contribuições de Robert Ezra Park, admi- moldarem­ e modificarem uma a outra.
te-se que motivos de crença, renda, inte- É a estrutura da cidade que primei-
resses vocacionais e econômicos, gostos e ro nos impressiona por sua vastidão­

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hélio rodrigues de oliveira jr.

e complexidade visíveis. Mas, não garanta­ um tratamento realista e objetivo.


obstante,­ essa estrutura tem suas ba- Trata-se,­ sim, de permitir que a própria
ses na natureza humana, de que é uma investigação do modo pelo qual os proces-
expressão. Por outro lado, essa enorme sos são produzidos traga à tona os valo-
organização que se erigiu em resposta res que lhes são constitutivos, sem que se
às necessidades de seus habitantes, uma determine um dever ser ou, dito de outro
vez formada, impõe-se a eles como um modo, sem que se aponte um vetor, uma
fato externo bruto, e por seu turno os direção na qual os problemas em questão
forma de acordo com o projeto e inte- poderão repousar, por fim, apaziguados,
resses nela incorporados.11 superados.
Nesse sentido, a clássica análise webe-
Com efeito, dado que a cidade é uma riana sobre a neutralidade de valores, vale
“entidade viva”, enraizada nos hábitos e lembrar, possui aspectos ainda bastante
costumes das pessoas que a habitam, como contundentes. A amplitude da significação
pensa esse autor, ela enseja, exatamente cultural de um dado problema é, como con-
por esses mesmos motivos, as condições de sidera Weber (1992), com maior ou menor
possibilidade para ser assim reconhecida e intensidade, influenciada pelas perspectivas
pensada. pessoais pelas quais se orientam os ideais e
Logo, é incontornável o fato de que, os julgamentos concretos. As disputas entre
da urgência das necessidades de defesa e interesses diferentes e a solução de pro-
230 de sobrevivência à escassez dos meios e dos blemas práticos singulares muitas vezes se
recursos, passando à formação de técnicos confundem, visto que a referência a juízos
especialistas e à produção cultural e artísti- de valor que se introduzem de maneira acrí-
ca, a cidade se constitui de modo a sempre tica, embora prejudicial à análise, é, inega-
“reservar” lugar para todos, mesmo que is- velmente, uma constante. Por isso, a busca
so implique a sua ocupação periférica e, em pela chamada imparcialidade do trabalho
conseqüência disso, a marginalização social científico se faz necessária não para sufocar
e também por isso valorativa. Se a segre- a expressão legítima de valores mas, sim,
gação se dá por razões passíveis de crítica, para regular a formação de um “caráter”,
inclusive ética e moral, ela supõe um quadro visto que rejeita a parcialidade valorativa de-
de referências valorativas contextualmente corrente de uma não-reflexão, seja ela sutil
estabelecido, o que requer também discus- ou explícita – o que equivaleria a consolida-
são e aprofundamento analítico. ção indesejável, do ponto de vista científico,
Esse breve comentário coloca em fo- de uma tendência.12
co o papel que se confere ao pesquisador O que se pretende aqui reiterar é rela-
diante do objeto de reflexão e, mais que is- tivamente simples: se a imparcialidade é im-
so, o tipo de relação axiológica que a pró- praticável, que se assuma, então, suas con-
pria análise exprime. Não se trata de obter seqüências. E, sobretudo, que não se afirme
contentamento com a descrição formal dos que ela norteia, desde o começo, a reflexão.
processos analisados, o que suporia o fala- Tal consideração faz-se mister em virtu-
cioso distanciamento subjetivo para que se de do fato de que a segregação socioespacial­

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reflexões sobre o estudo da proliferação de condomínios fechados: críticas e sugestões

constitui uma das mais ricas expressões­ da mais efêmero ao mais duradouro. E
potencialidade de conflito social engendra- nesse complexo, a esfera da indiferença
das pela cidade e, em que pesem os julga- é relativamente limitada, pois nossa ati-
mentos de valor sobre suas causas e efeitos, vidade psicológica responde por um de-
sua apreciação em negativo constitui, para- terminado sentimento a quase todas as
doxalmente, e desde o começo, empecilho impressões que vêm de outra pessoa. A
para a percepção mais ampla de um elemen- natureza subconsciente, fugidia e mu-
to fundamental às análises sobre a socieda- tável desse sentimento apenas aparen-
de e o espaço em construção: o modo in- ta reduzi-lo à indiferença. Na verdade,
trínseco e inevitavelmente conflituoso como tal indiferença seria para nós tão pou-
co natural quanto seria insuportável o
se manifestam as mais diversas formas de
caráter vago de inumeráveis estímulos
relação social.
contraditórios. A antipatia nos protege
Visto que a metrópole agrega um gran-
desses dois perigos típicos da cidade;
de número de pessoas com interesses bas-
a antipatia é a fase preliminar do anta-
tante diferenciados e, parafraseando Simmel
gonismo concreto que engendra as dis-
(1987, p. 14), “a maneira metropolitana de
tâncias e as aversões, sem as quais não
vida é certamente o solo mais fértil para a
poderíamos, em absoluto, realizar a vi-
reciprocidade” – entendida, aqui, como re-
da urbana. A extensão e a combinação
lação social –, é bastante razoável que se
da antipatia, o ritmo de sua aparição e
compreenda que a vida na cidade é efetiva- desaparição, as formas pelas quais é sa-
mente marcada pela iminência do conflito. tisfeita, tudo isso, a par de elementos 231
Isso porque mais literalmente unificadores, produ-
zem a forma de vida metropolitana em
Onde as relações são puramente ex-
sua totalidade insolúvel; e aquilo que
ternas e ao mesmo tempo de pouca
à primeira vista parece desassociação,
importância prática, esta função [a de
é na verdade uma de suas formas ele-
oposição entre partes constitutivas da
mentares de sociação. (pp. 127-128)
relação] pode ser satisfeita pelo con-
flito em sua forma latente, isto é, pela
Sabe-se bem, no cotidiano, o contato
aversão e por sentimentos de mútua es-
com a alteridade e, em decorrência disso, os
tranheza e repulsão que, num contato
embates inerentes às relações sociais impli-
mais íntimo, não importa quão ocasio-
cam a criação de dispositivos emocionais e
nal, transforme-se imediatamente em
físicos. No contexto da metrópole, esses dis-
ódio e lutas reais.
Sem tal aversão, não poderíamos imagi- positivos se tornam vários e refletem, com
nar que forma poderia ter a vida urba- maior ou menor intensidade, o grau de tole-
na moderna, que coloca cada pessoa em rância para com as diferenças que a própria
contato com inumeráveis outras todos cidade comporta.13
os dias. Toda a organização interna da Nesse sentido, os condomínios fechados­
interação urbana se baseia numa hierar- representam somente uma das incontáveis­
quia extremamente complexa de simpa- formas pelas quais o espaço absorve­ e
tias, indiferenças e aversões, do tipo reflete­ a potencialidade de conflito que a

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cidade­ produz. Se os condomínios segre- fligem mutua­mente em guerras, em lutas


gam, se conformam áreas relativamente políticas, na vida privada ou seja onde for,
homogêneas,­ sobretudo do ponto de vista resulta, desde o começo, um estreitamento
econômico, e indicam seu fechamento e ina- da imagem que se tem de civilização. Com
cessibilidade para os demais indivíduos, eles efeito, o próprio conceito de civilização tor-
o fazem de modo a confirmar uma lógica na-se de tal modo delimitado que, na reali-
urbana que exprime, ela mesma, uma ten- dade, apenas um de seus aspectos passa a
são constitutiva, que a um só tempo separa ser considerado: a coexistência não-violenta
e une, afasta e aproxima os indivíduos. de seres humanos.
Se, por partilharem um ethos iguali- Assim, não causa estranheza que o de-
tário, as sociedades ocidentais e, para que senvolvimento analítico em torno do conflito
se torne mais apropriado ao debate, o pen- social ressalte e condene os aspectos trágicos
samento social contemporâneo repelem as da convivência humana: as chamadas mani-
disparidades sociais e seus efeitos conside- festações “patológicas” da vida social – asso-
rados perversos, por culpa e expiação, não é ciadas ao choque cultural, ao marginalismo,
preciso muito mais do que se disse até aqui à delinqüência, etc. – são freqüentemente
para que se compreenda que é sobre essa entendidas e designadas por seu caráter vio-
desigualdade fática de acesso, de condições lento, disfuncional, improdutivo e irracional,
e de bens apropriados que a civilização oci- estabelecendo-se pouca ou nenhuma tolerân-
dental se ergue – e isto se dá ainda que ela cia para com o comportamento considerado
232 se pretenda igualitária e, desse modo, me- desviante ou divergente. Na maioria das ve-
nos excludente. Vale lembrar, esse traço zes, o caráter belicoso das relações humanas
insuperável, dado que lhe é absolutamente é tomado, unicamente, como traço negativo
constitutivo, compõe, talvez, a maior de das relações sociais, relações essas que se
suas­contradições.14 encontrariam em estado “crítico”, “limítrofe”
De modo complementar, importa con- ou, ainda, “anômico”, sendo essa a perspec-
siderar que, sob determinado ângulo, a tiva dominante com que o conflito figura no
própria idéia de civilização supõe, em senti- quadro das referências sociológicas que bus-
do lato, o aplacar da animosidade para com cam, de algum modo, explicar as causas de
a alteridade, uma pseudo-evolução da his- sua existência. Como notam Norberto Bobbio
tória humana, que, a propósito, se difunde et al. (2000, v. 1, p. 225), aqueles que vêem
academicamente e torna insuportável tanto qualquer grupo social, qualquer sociedade e
para o Ocidente quanto para a academia qualquer organização como algo harmônico
o peso da desigualdade de condições que e equilibrado tendem a conceber a harmonia
a própria civilização engendra e perpetua, e o equilíbrio como um estado normal, ao
bem como da truculência com que sua his- passo que todo o conflito é considerado uma
tória se constrói. Por isso, como notavel- perturbação, uma patologia social, um mal a
mente observa Norbert Elias (1997), de ser reprimido e eliminado.
uma operação relativamente simples, onde Essa parcialidade com que se expressa
se contrasta civilização com violência, com o dever ser de uma convivência social – em
a espécie de violência que as pessoas se in- uma sociedade que, em consonância com o

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que deseja e exprime parte significativa do sua natureza – a síntese de elementos que
pensamento social, deveria caminhar aos trabalham juntos, tanto um contra o outro,
passos largos, em marcha contínua, rumo quanto um para o outro – resguarda-lhe es-
a um mundo mais civilizado –, como reco- ta ambigüidade e, com efeito, suscita novas
nhece o próprio Elias (1997), faz com que formas de sociação.
o exame do problema da violência física na
vida social seja freqüentemente norteado Essa natureza [a do conflito] aparece de
pelo tipo errado de pergunta. Ajustar-se-ia modo mais claro quando se compreen-
melhor aos fatos e seria, assim, mais pro- de que ambas as formas de relação – a
veitoso, se as perguntas fossem formuladas antitética e a convergente – são funda-
com vistas ao que possibilita a convivência mentalmente diferentes da mera indife-
normal e pacífica entre tantas pessoas, e rença entre dois ou mais indivíduos ou
não como é possível que pessoas, vivendo grupos. Caso implique a rejeição ou o
em sociedade, possam agredir fisicamente e fim da sociação, a indiferença é pura-
matar umas às outras. mente negativa; em contraste com a
Nessa mesma direção inclina-se Simmel negatividade pura, o conflito contém
(1983, p. 122), ao observar que, algo de positivo. Todavia, seus aspectos
positivos e negativos estão integrados;
podem ser separados conceitualmente,
[...] sob um ponto de vista comum,
mas não empiricamente.
pode parecer paradoxal se alguém per-
Assim como o universo precisa de “amor
guntar, desconsiderando qualquer fenô- 233
e ódio”, isto é, de forças de atração e
meno que resulte do conflito ou que o
de forças de repulsão, para que tenha
acompanhe, se ele, em si mesmo, é uma
uma forma qualquer, assim também a
forma de sociação.
sociedade, para alcançar uma determi-
nada configuração, precisa de quantida-
Ora, como bem argumenta esse autor, des proporcionais de harmonia e desar-
monia, de associação e competição, de
Se toda a interação entre os homens é tendências favoráveis e desfavoráveis.
uma sociação, o conflito – afinal, uma (Ibid., pp. 123-124)
das mais vívidas interações e que, além
disso, não pode ser exercida por um in- Se, para Simmel e para Elias, o conflito
divíduo apenas – deve certamente ser se destaca como elemento potencialmen-
considerado uma sociação. E de fato, te presente em todas as instâncias da vida
os fatores de dissociação – ódio, inve- social, isso ocorre porque ambos colocam
ja, necessidade, desejo – são as causas em relevo o caráter constitutivo, estrutura-
do conflito; este irrompe devido a essas dor ou fundador de outras expressões do
causas. (Ibid., p. 122) social, que nele potencialmente residem.
Nesse sentido, as condições de vida criadas
Para Simmel, o conflito estaria destina- pela metrópole oferecem uma boa mostra
do a resolver dualismos divergentes, a re- da positividade com que o conflito se mani-
solver a tensão entre contrastes, visto que festa, visto que, nela, inúmeros processos

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hélio rodrigues de oliveira jr.

motivados­ por ele podem, ao longo de seu Fruto da imbricação de universos hu-
desenvolvimento, deflagrar um comporta- manos coexistentes, de séries de arranjos
mento cooperativo entre os indivíduos. estruturais que se fazem registrar ao longo
Parece-me ser exatamente esse com- do tempo, a cidade exercita sua capacidade
portamento cooperativo que, na contempo- de articular valores e teores nem sempre
raneidade, faz com que o cenário urbano, consoantes, aglutinando e acentuando di-
mas não só ele, se torne pano de fundo para ferenças, ensejando conflitos e permitindo
o desenrolar e o recrudescimento de séries conciliações muitas vezes inesperadas. Dis-
sucessivas de ações reativas e adaptativas à so se desprendem sensações confusas, que
violência, respaldadas, frise-se, pelos e nos dificilmente, dadas suas características ima-
mais diversos níveis sociais. nentes, repousariam apaziguadas.
Nesse contexto, a violência e o medo, O “teatro das colisões hostis entre ho-
além de se constituírem enquanto referên- mens” – para citar a feliz expressão cunha-
cias para a mudança de hábitos, horários, da por Elias (1998, v. 1, p. 191) – tem
trajetos, etc., também aglutinam pessoas como enredo a própria vida em sociedade.
em torno de idéias comuns sobre o uso dos Nela, o conflito é uma das mais vívidas ex-
espaços públicos e, mais especificamente, pressões de sua concretude – o que torna
sobre a constituição física dos espaços pri- extremamente importante a compreensão
vados, o que, grosso modo, remete à difu- dos sentidos que ele resguarda. Para tan-
são do que se pode pertinentemente cha- to, é evidente a necessidade de ampliação
234 mar de “arquitetura do medo”.15 do universo discursivo no qual se situam os
Nos dias atuais, à medida que a sen- problemas analíticos cunhados a partir da
sação de desconforto gerada pela violência cena contemporânea, o que, por sua vez,
se encontra na base das motivações apon- constitui exercício instigante e prolífero.
tadas para o surgimento e a efetivação de Nesse ambiente de argumentações e
empreendimentos como os condomínios fe- debates, uma perspectiva sociologicamen-
chados – concorrendo com uma vasta lista te positiva do conflito – como a que reside
de razões­que levam as pessoas a optar por nos trabalhos de Elias e de Simmel – certa-
neles residir –, seria razoável que a litera- mente possui lugar de destaque, visto que
tura especializada se aproximasse, sem os acarreta outras possibilidades e aponta para
preconceitos de outrora, dos matizes rela- caminhos quiçá mais interessantes de serem
cionais entre a violência e o medo e a pro- percorridos na busca por adequação, atua­
dução do espaço residencial na cidade e que lização, aprimoramento e desenvolvimento
nisso aprofundasse. Mais que isso, a se con- do instrumental analítico à realidade vivida.
siderar que a proliferação de condomínios Sabe-se, contudo, que essa busca e o reco-
fechados pode ocasionar mudanças sensí- nhecimento das limitações que lhe são ine-
veis na configuração espacial das cidades, rentes requerem, como aqui se tentou ar-
é pertinente que se analise mais de perto gumentar, (re)avaliações sensíveis, inclusive
quão estreita e fecunda é essa relação, o de um ponto de vista formal.
que efetivamente não convém que se perca Seguramente, a cidade é uma des-
pelas razões até aqui criticadas. sas formações duradouras que, dada sua

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reflexões sobre o estudo da proliferação de condomínios fechados: críticas e sugestões

capacidade­de incorporar elementos, de con- de qualquer outro gesto, se questionem so-


ceder ao que ela acolhe e produz uma mar- bre sua capacidade de explicá-la e, a partir
ca que lhe é própria, proporciona estímulos disso, como propõe Simmel (1987), se dis-
suficientes­ para que os especialistas, antes ponham a compreendê-la.

Hélio Rodrigues de Oliveira Jr.


Graduado em Ciências Sociais e Mestre em Sociologia pela Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Adjunto da Funcesi – Fundação
Comunitária de Ensino Superior de Itabira (Minas Gerais, Brasil).
helio.oliveira@funcesi.br

Notas
(1) Como observa Maria A. R. de Carvalho (2000, pp. 47-55, passim), embora a discussão sobre
a violência no Brasil esteja apontando para questões mais amplas – a delinqüência, o des-
regramento e a generalização social de práticas violentas –, derivadas de causas igualmen-
te mais complexas, como a ausência de uma cultura cívica e a insociabilidade que tem
presidido o processo de individuação nos grandes centros urbanos do país, é ainda maciça
a recorrência à exclusão social como variável explicativa do crescimento das práticas vio-
235
lentas, assim como é inegável que a denúncia do padrão de desigualdade existente segue
sendo o ângulo hegemônico das análises sobre o alto grau de conflito presente nas cidades
brasileiras. Por outras palavras, embora se esteja abandonando a preocupação estrita com
os nexos de pobreza e o crime, estes ainda constituem o cerne da discussão sobre a vio-
lência no Brasil.

(2) O interesse despertado pelo tema “condomínios fechados” se verifica ante o grande núme-
ro de abordagens recentes voltadas para o fenômeno de sua proliferação, originárias de
campos do conhecimento diversos (antropológico, sociológico, geográfico, político e eco-
nômico), em níveis analíticos tanto macro como micro. Veja-se Andrade (2004). A autora
realiza interessante levantamento sobre diversas contribuições à compreensão do tema,
bem como uma discussão mais aprofundada sobre algumas conclusões já consagradas por
pesquisas diversas e, mais precisamente, sobre a aplicabilidade do conceito de segregação
para a compreensão deste fenômeno.

(3) Veja-se Villaça (1998).

(4) Além dos fatores que aqui se pretende explorar, é de uma total incongruência a operação
a que se submete o chamado “objeto de reflexão”, seja por circunstâncias diacrônicas,
se levadas a sério forem as evidências históricas apresentadas pela própria literatura, seja
pelo disparate epistemológico que essa mudança de referencial produz. Por conseguinte, e
com razão, pode-se perguntar: afinal, de que sociedade se está falando? De uma sociedade
destruída pelo vigor do narcisismo? De uma sociedade bipartida, composta, de um lado,
por proprietários, consumidores, cidadãos estabelecidos e, de outro, por não proprietários,
alijados do consumo e excluídos pelo capital? E, ainda: qual é a referência analítica? O
indivíduo ou grupo?

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hélio rodrigues de oliveira jr.

(5) Nesse estudo já bastante conhecido, o autor se estende até a sexta forma de fascismo socie-
tal, não sendo preciso mais do que o já exposto para se perceber o tom demasiado áspero
e as expressões bastante pesadas com que ele retrata as alterações, inclusive espaciais, de-
correntes da perda relativa da capacidade reguladora do Estado ante os interesses privados
e, sobretudo, os interesses de grupos com forte capital patrimonial.

(6) Ao chamar a atenção para os diversos fatores associados à produção do espaço residencial
na cidade, Luciana Teixeira de Andrade (2004, p. 11) denomina “armadilha etnocêntrica”
a atitude de “pensar os ricos como capazes de fazer escolhas e os pobres como totalmente
condenados pelas condições objetivas” e realiza algumas considerações que têm o escopo
de evitá-la.

(7) Uma excelente crítica ao efeito de grupo pode ser encontrada em Boudon e Bourricaud
(2001, pp. 253-260).

(8) A propósito das implicações clássicas e problemáticas relativas ao uso do conceito de iden-
tidade, sobretudo a perda ou diluição de sua dimensão contrastiva concreta, bem como
as relações forçosas que se estabelecem entre o indivíduo, o grupo e a sociedade, veja-se
Durham (1986). Cf. Montero (1997).

(9) A expressão latina ad libitum (“à escolha”, “à vontade”, “a seu bel-prazer”) surge como al-
ternativa bastante interessante para expressão do desejo de estar-junto, comum às pessoas
ao freqüentarem grupos distintos. Contraposição bastante razoável, visto que a lógica da
qual se pretende afastar aprisiona o indivíduo em um único e permanente grupo social, ad
infinitum (“até o infinito”).

(10) Veja-se, a propósito do conceito de alteridade, a interessante contribuição de Pelbart


236 (2002).

(11) Embora Park reserve ao termo “estrutura” à designação dos elementos físicos visíveis da
cidade (como prédios, casas, ruas etc.) e à expressão “ordem moral”, a designação dos
fenômenos concernentes à natureza humana, a junção entre esses fatores resulta, para o
autor, em um “complexo cultural comum”, que determina, em última instância, o que é
característico e peculiar na cidade, em contraste com a vida em aldeia e a vida no campo.

(12) Não se negligenciam, aqui, outros desdobramentos para a questão da objetividade do


conhecimento científico e para as implicações subjetivas na realização do trabalho
intelectual.

(13) Vale lembrar, é também por esse motivo que Simmel, com a sofisticação e o refinamento
que lhes são característicos, atribui ao dinamismo e à intensidade da vida na metrópole
a originalidade do fenômeno psíquico denominado atitude blasé, que consiste no esgo-
tamento nervoso, na incapacidade de reagir a novas sensações com energia apropriada e
no embotamento do poder de discriminar, diante da rapidez, da violência e da contradi-
toriedade de significados e de valores com que as pessoas são estimuladas. Disso resulta
um comportamento de natureza social comum aos indivíduos submetidos às condições
impostas pelo modo de vida metropolitano: uma reserva moral que, mais do que apenas
indiferença, sugere “uma leve aversão, uma estranheza e repulsão mútuas, que redundarão
em ódio e luta no momento de um contato mais próximo, ainda que este tenha sido provo-
cado” (Simmel, 1987, pp. 16-17).

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reflexões sobre o estudo da proliferação de condomínios fechados: críticas e sugestões

(14) É no século XVIII, com Rousseau – para quem a reconstrução hipotética da história da
humanidade culmina com a legitimação da desigualdade entre os homens –, que a crítica
às condições de acumulação, apropriação e distribuição de bens materiais e culturais ad-
quire os contornos primeiros de um discurso social e político. É, também, a partir de suas
contribuições que o pensamento social constrói, com outros matizes, sua própria crítica à
nascente sociedade capitalista. Cf. Rousseau (1983).

(15) Não se negligencia, aqui, o processo de superexposição midiática, que, como se sabe,
responde, em alguma medida, pela amplificação exponencial da criminalidade e pela irra-
diação de uma sensação crescente de insegurança e de medo, nem seus efeitos sobre o os
contextos socioespaciais. Para um tratamento aprofundado da questão, consulte-se Pereira
et al. (2000).

Referências
ANDRADE, L. T. de (2001). Condomínios fechados da Região Metropolitana de Belo Horizonte:
novas e velhas experiências. In: IX ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR. Anais. Rio de
Janeiro, v. 2, pp. 936-943.

________ (2003). “Segregação socioespacial e construção de identidades urbanas na RMBH”. In:


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Recebido em maio/2008
Aprovado em jul/2008

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Metrópoles e sociabilidade: os impactos
das transformações socioterritoriais
das grandes cidades na coesão social
dos países da América Latina*
Ruben Kaztman
Luiz César de Queiroz Ribeiro

Resumo Abstract
O texto propõe a reflexão sobre a relação en- The text proposes a reflection on the relation
tre sociabilidade nas grandes cidades latino- between sociability in the large Latin American
americanas que atravessam transformações cities that are undergoing socio-spatial
socioespacial e os desafios da coesão social em transformations and the challenges of social
democracia. Assumimos como ponto de parti- cohesion in a democracy. We assume that the
da que a qualidade das relações sociais é alta- quality of social relations is highly dependent
mente dependente do grau das desigualdades on the level of unequal distribution of wealth,
na distribuição da riqueza, da renda, do poder income, power and also on the resources that
e também dos recursos que fundamentam o support social prestige, honor and recognition.
prestígio, a honra e o reconhecimento sociais. We take into account the existence of
Levamos em consideração a existência de im- important processes – urban growth, the
portantes processos – crescimento urbano, expansion of the education level and of
expansão do nível educacional e das comunica- telecommunications, the strong incorporation
ções, a forte incorporação dos direitos sociais of social rights into political discourses –
nos discursos políticos – que contribuem pa- that contribute to elevate aspirations and to
ra elevar as aspirações e criar expectativas de create expectations of equality and material
igualdade e de participação material e imaterial and immaterial participation of the urban
da população urbana e aumentam a probabili- population, thus increasing the probability of
dade de tensões sociais. O texto procura explo- social tensions. The text tries to explore to
rar em que medida a sociabilidade nas grandes what extent sociability in large cities depends
cidades depende do jogo das forças menciona- on the interplay of the forces mentioned
das anteriormente. above.
Palavras-chave: metrópoles; socialibilidade; Keywords: metropolises; sociability; residential
segregação residencial; coesão social. segregation; social cohesion.

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ruben kaztman e luiz césar de queiroz ribeiro

A compreensão da natureza e formas fundamentar­ as interpretações sobre os


de sociabilidade nas grandes cidades latino- deter­minantes, a natureza e as perpectivas
americanas está relacionada com o enten- da sociabilidade nas grandes cidades com
dimento dos desafios da coesão social para dados secundários e resultados de pesquisa.
a democracia. Ambas as noções se referem
às condições em que ocorrem as interações
entre grupos sociais e as relações com as
Cidade e cidadania:
instituições sociais que efetivam a demo-
cracia. O propósito do artigo é discutir as
referências históricas
transformações que vêm sofrendo a qua- e teóricas
lidade das relações sociais como resulta-
do das mudanças na morfología social das Há boas razões históricas e teóricas para
grandes cidades latino-americanas. justificar a ligação etimológica entre as pa-
Assumimos como ponto de partida que lavras cidatino, cidadania e cidade. Em sua
a qualidade das relações sociais é altamen- obra magistral Economia e Sociedade, Max
te dependente do grau das desigualdades Weber propôs a distinção entre a cidade
na distribuição da riqueza, da renda, do como assentamento denso e a cidade como
poder e também dos recursos que funda- veículo de importantes transformações so-
mentam o prestígio, a honra e o reconhe- cioculturais decorrentes da emergência da
cimento sociais. Esses últimos elementos visão de mundo racionalizada e de relações
242 relacionam-se diretamente com o maior ou de dominação racional-legal. As cidades que
menor isolamento social entre as classes cumpriram esse papel histórico foram aque-
e grupos sociais. Também reconhecemos las que associaram a aglomeração de coisas
que cada país­ desenvolveu matrizes socio- e das pessoas à emergência simultânea do
culturais que ativam mecanismos mais ou mercado como mecanismo fundamental das
menos eficazes para resolver as tensões trocas econômicas, a autonomia política da
e os conflitos suscitados pelas desigualda- comunidade na forma de autogoverno e de
des. Finalmente, na análise, levaremos em leis baseadas na igualdade jurídica entre os
consideração a existência de importantes indivíduos. Essas cidades desconectaram-se
processos – crescimento urbano, expansão do feudalismo, com efeito, pela introdução
do nível eduacional e das comunicações, a de um regime de propriedade privada co-
forte incorporação dos direitos sociais nos mo objeto de relações de compra e venda e
discursos políticos – que contribuem para não mais como fundamento da dominação
elevar as aspirações e criar expectativas de pessoal fundada nos valores da tradição, do
igualdade e de participação cívica da popu- carisma e da honra presentes na ordem es-
lação urbana e aumentam a probabilidade tamental. Mas o fato verdadeiramente novo
de tensões sociais. e revolucionário do fenômeno urbano foi a
O texto procura explorar em que me- formação de associações livres de cidadãos
dida a sociabilidade nas grandes cidades que des-legitimaram o poder senhorial.
depende do jogo das forças mencionadas Ainda que alguns Estados patrimoniais
anteriormente. Para tanto, buscaremos tenham desenvolvido idéias concernentes

cadernos metrópole 20 pp. 241-261 20 sem. 2008


metrópoles e sociabilidade

ao bem público, a institucionalização dessa afirmação de sociedades­ organizadas sob


noção foi também a criação da cidade. Tal as bases do moderno regime democrático.
institucionalização foi amadurecendo em Além disso, também teve grande relevância
territórios relativamente pequenos de alta a ampliação das oportunidades de mobili-
densidade demográfica, nos quais a total dade social nos anos posteriores à Segun-
interdependência material e o uso dos es- da Guerra Mundial, período batizado por
paços e serviços coletivos criaram condições Hirschman como os “trinta gloriosos”. A
favoráveis à percepção pelo cidadino da de- abertura e a complexificação da estrutura
pendência do seu bem-estar individual da social pela criação de novas posições resul-
cooperação com os outros integrantes da tantes do capitalismo da grande indústria e
comunidade. da expansão do Estado de Bem-Estar social
A percepção coletiva da necessidade tornaram a condição urbana não apenas re-
da cooperação, seja no universo do mundo lacionada à integração à sociedade e à mo-
fabril, seja no universo da cidade, tornou dernidade cultu­ral, mas também à ascensão
imperiosa a incorporação da massa traba- social.
lhadora à sociedade política e ao regime Esse conjunto de mudanças associou,
de solidariedade interclassista capaz de ga- na experiência social, no imaginário coletivo
rantir de forma coletiva padrões mínimos e nas instituições de regulação das relações
compartilhados de bem-estar social. Como sociais, a condição urbana à afirmação da
contrapartida desse processo, as cidades cidadania como direitos cívicos, políticos e
industriais tornaram-se veículos e palcos sociais, como regime de bem-estar homo- 243
da experimentação de reformas sociais e genizador de condições básica de vida e
institucionais que simultaneamente reco- promotor da democracia de oportunidade
nheceram a existência de conflitos sociais e e, finalmente, como novo padrão de socia-
estabeleceram valores e mecanismos de in- bilidade. Quais são os traços desse padrão?
tegração social e de negociação do conflito. Destacamos três, que consideramos impor-
Em outros termos, quando examinamos a tantes para o argumento sustentado neste
história das reformas urbanas iniciadas na trabalho: (a) o conflito de classes é social-
segunda metade do século XIX e expandi- mente reconhecido; (b) simultaneamente, é
das nos primeiros decênios do século XX, legitimada a hierarquia social do status ad-
constatamos que a cidade foi o laboratório quirido em contraposição ao herdado pela a
da experimentação de um novo regime de origem; e (c) são institucionalizadas regras
gestão da sociedade fundador dos pilares de negociação dos conflitos interclassiatas.
do Estado de Bem-Estar Social, cujos tra- A cidadania constitui-se em campo das lutas
ços fundamentais foram práticas sociais e e interlocução entre as classes, tornando o
institucionais orientadas por valores de pro- mundo social estabilizado. A grande cidade
teção e coesão sociais.1 A essa transforma- participou dessas mudanças como veículo e
ção corresponderam mudanças de “classes palco.
perigosas” para “classes laboriosas” na re- O final do século XX inaugura, no en-
presentação social do povo da cidade. Sem tanto, outra fase. Começa a tomar força
tal mudança seria impensável a expansão e a idéia segundo a qual a cidade continua

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ruben kaztman e luiz césar de queiroz ribeiro

operando como pedra fundamental da coletivos­ – especialmente na esfera educati-


arquitetura­ das sociedades modernas, mas va – e a segmentação espacial.
enfraqueceu a percepção coletiva do seu pa- São mudanças globais, atingindo em
pel no desenho e na promoção de sociedades maior e menor grau as sociedades conforme
coesionadas em torno de um ideal democrá- a intensidade da inserção no novo modelo
tico. Contribuem para essa mudança de sinal de organização do capitalismo e a formação
os processos de suburbanização, com a cria- histórica das cidades. Nas metrópoles latino-
ção de novos modelos de cidades dispersas e americanas, essas mudanças ocorrem em
desintegradas, espalhadas por vastos terri- um marco histórico que se caracteriza por
tórios, a desindustrialização e, sobretudo, o maior heterogeneidade social, menor conso-
enfraquecimento dos vínculos com o merca- lidação das instituições democráticas, níveis
do de trabalho conseqüente à decomposição mais elevados de desigualdades de riqueza
da “sociedade assalariada”. Não obstante as e renda, como também nas arquiteturas de
diferentes leituras interpretativas, há lar- regimes de bem-estar – muito menos de-
go consenso na literatura sobre o papel de senvolvidos no sentido da existência de um
tais mudanças na transformação da relação sistema público de regulação e proteção
entre a condição urbana e a cidadania, na sociais. Ademais, em todos os países latino-
medida em que a sociabilidade nas grandes americanos, a modernização cultural ocor-
cidades deixa de ter como substrato (objeti- reu de maneira apenas parcial, ou seletiva
vo e subjetivo) os mecanismos e os valores ou conservadoramente, de tal forma que a
244 promotores da solidariedade, da integração urbanização e, em alguns casos a industria-
e da igualdade sociais. Nesse sentido, acre- lização, não chegaram a fundar um padrão
ditamos ser aceitável a hipótese de que a de sociabilidade baseado integralmente nos
sociabilidade dominante nas grandes cidades pressupostos do reconhecimento do conflito
tem relevante papel na explicação das ten- interclassista, da igualdade moral dos indi-
dências da perda de capacidade de coesão víduos e, portanto, no pressuposto da ne-
na escala societária. Os vínculos sociais, com gociação como prática de interação social.
efeito, são crescentemente organizados por Para entender as diferenças entre os países
mecanismos instrumentais desencarnados da região, é conveniente um breve resumo
das prerrogativas e obrigações que, na fase dos seus antecedentes históricos.
anterior, fundaram o sentido coletivamente
compartilhado de cidadania, ou por valores
que reintroduzem formas tradicionais de
As cidades nas matrizes
dominação, nas quais o controle sobre as
fontes do carisma, da honra e do prestígio
socioculturais latino-
legitima relação de subordinação pessoal de americanas
pessoas e grupos sociais.
Contribuem decisivamente nessa dire- A globalização se desdobra em cenários na-
ção as combinações que vêm ocorrendo nas cionais profundamente marcados pela inér-
sociedades entre a segmentação do merca- cia de matrizes socioculturais que se formam
do de trabalho, a segmentação dos serviços desde o período colonial. Essas matrizes­

cadernos metrópole 20 pp. 241-261 20 sem. 2008


metrópoles e sociabilidade

imprimiram­ um selo particular a cada país. colonial.­Resumindo, o argumento de Maho-


Nosso interesse na natureza e evolução das ney chama a atenção para a possibilidade de
matrizes socioculturais nacionais justifica-se a inércia das antigas matrizes socioculturais
pelos pressuposto teórico de que seu conhe- nacionais enraizadas na experiência colonial
cimento permite entender melhor os marcos ter influenciado a rigidez e a resistência a
da referência que utilizam as pessoas para mudanças de tecidos sociais e instituições
atribuir significados às experiências de inte- desenhadas e sustentadas para preservar
rações sociais. Mahoney (2003) se pergun- privilégios.
ta sobre a possível gravitação das matrizes Ainda que não se possa atribuir as dife-
socioculturais de raíz colonial no desenvol- renças entre as matrizes socioculturais dos
vimento dos países da América Latina. Sua países da região somente à experiência colo-
pergunta nasce da seguinte constatação: nial, parece razoável esperar que as socie-
tanto nos indicadores de desenvolvimento dades que nasceram com padrões de convi-
social quanto nos relativos ao desenvolvi- vência organizados em torno de hierarquias
mento econômico, as posições relativas dos tiveram mais dificuldades do aquelas orga-
países da América Espanhola não variou ao nizadas em torno da igualdade para fazer
menos nos últimos 100 anos. Tal fato decor- despertar mais cedo em seus cidadãos capa-
reria da persistência de alguns traços sociais cidades de empatia, sentimentos de obriga-
e culturais do período colonial, de modo que ção moral em relação aos outros e manter
quanto mais estreitas e próximas as relações baixos níveis de tolerância à pobreza e às
que estabeleciam os países com os centros desigualdades. Todas essas virtudes que fa- 245
do poder metropolitano constituí­dos na re- vorecem uma maior eqüidade no desenvol-
gião, mais atrasados seriam o seu desenvol- vimento emergem com maior dificuldade ali
vimento posterior. Mahoney associa princi- onde a hierarquia opera como critério geral
palmente duas características dos países, que regula as relações entre as classes.
decorrentes da proximidade geográfica aos O anterior sugere que, quando se ana-
centros de poder colonial. A primeira é que lisa o grau de permiabilidade a propostas
tais centros se localizaram em sociedades de ampliação dos direitos de cidadania dos
com alta densidade de população indígena. grupos de poder e de interesses, torna-se
A segunda, que a proximidade com a coroa conveniente explorar as características prin-
operou como barreira à emergência de ide- cipias das matrizes socioculturais nacionais,
ais liberais. Ambas as características teriam ao menos nas dimensões relacionadas com a
favorecido a persistência de regimes de inte- forma através das quais as classes sociais se
ração social altamente hierarquizados. perceberam historicamente umas em relação
Não é necessário insistir nessa argu- às outras. Em algumas sociedades da região
mentação para inferir que, para Mahoney, de fortes bases estamentais, a aparente flui-
tanto o tipo de desenvolvimento como o dez das relações entre os “de cima” e os “de
nível de eqüidade dos atuais regimes de baixo”, na forma de personalismos, cliente-
bem-estar dos países latino-americanos de lismos, apadrinhamentos escameita relações
língua espanhola estariam fortemente de- e práticas sociais que misturam servilismo e
terminados pela gravitação desse legado ressentimento ou simplesmente.

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ruben kaztman e luiz césar de queiroz ribeiro

Desigualdades de renda não são suficientes para distinguir com cla-


reza o peso relativo das distintas matrizes
e polarização social socioculturais como causas da persistência e
à luz das matrizes do surgimento de problemas sociais. É im-
socioculturais nacionais portante advertir para o fato de que a iden-
tificação das rupturas e continuidades, assim
Dos apontamentos anteriores, podemos como a atribuição de causalidade entre as
deduzir que os elevados graus de desigual- ordens institucionais (e suas transforma-
dades, pobreza, informalidade e desprote- ções) e os problemas sociais é uma tarefa
ção social, assim como as segmentações e difícil que requer esforços continuados de
segregações residenciais que apresentam as longo prazo. Em particular, não sabemos
metrópoles não representam nenhuma no- o quanto as vulnerabilidades emergentes se
vidade em alguns países da região. Mas têm devem às novas modalidades de crescimen-
sido e seguem sendo em alguns casos traços to, combinadas à incapacidade dos Estados e
distintivos dessas sociedades. de outras instituições sociais de facilitarem
Supomos, porém, que as transforma- as interações e trocas sociais, e dessa forma
ções econômicas e seus impactos sociais es- criarem as condições requeridas para o de-
tão produzindo dois fenômenos novos: de senvolvimento de cidades desfrutáveis e sus-
um lado, transformando essas matrizes so- tentáveis em um mundo globalizado (Evans,
cioculturais e diminuindo o seu papel amor- 2002). Podemos, por enquanto, sugerir hi-
246 tecedor das desigualdades sociais sobre o póteses de reflexão e caminhos de pesquisa.
tecido social dos países latino-americanos e As brechas de emprego e renda entre
engendrando padrões de sociabilidade ca- os mais qualificados e os menos qualificados
racterizados por distanciamentos e variadas podem levar a situações de maior ou menor
formas de atitudes de intolerância social; de polarização social nas metrópoles. A polari-
outro lado, em conexão com essas transfor- zação social implica ao menos três efeitos:
mações, estão em curso nas metrópoles da crescente concentração de configurações de
América Latina transformações da sua mor- ativos com altos níveis de capital físico, hu-
fologia espacial e dos padrões de provisão mano e social nos estratos superior e, simul-
dos serviços coletivos – gerando tendências taneamente, crescente concentração de con-
de descoesão social com impactos sobre os figurações de ativos com baixos níveis desses
mecanismos de integração societária. Tal capitais nos segmentos inferiores da estru-
hipótese sugere a necessidade de que os tura social; crescente redução da interação
analistas nas sociedades latino-americanas e da sociabilidade entre pessoas que perten-
desenvolvam esforços de pesquisa empíri- cem a distintas classes (ou grupos étni­cos ou
ca que permitam avançar na identificação e raciais); e, por último, a exacerbação da po-
compreensão das rupturas e continuidades larização social pela constituição de grupos
dos padrões de desenvolvimento nacional, de alto poder de coesão social, formado exa-
assim como sobre seus efeitos sobre a vul- tamente por aqueles que alcançam integra-
nerabilidade e as transformações na estrutu- ção nas novas formas de acesso ao mercado
ra social urbana. As informações disponíveis­ de trabalho, compartilhando estilos de vida e

cadernos metrópole 20 pp. 241-261 20 sem. 2008


metrópoles e sociabilidade

identidades convergentes e um vasto mundo através­ do sistema do encortiçamento e


social fragmentado por diversos princípios seus congêneres. Trata-se de espaços carac-
de estratificação: étnicos,­raciais, culturais e terizados por alta instabilidade da população
mesmo territoriais, separados por barreias moradora, o que traz como conseqüência
e mecanismos que dificultam a constituição forte instabilidade das relações sociais e da
de uma identidade comum. vida coletiva.
A polarização será maior onde as desi­ 4) Espaços informais intersticiais com
gualdades originadas no mercado de trabalho a produção de novas favelas e seus congê-
se transladam para outras esferas da intera- neres, através da construção de moradias
ção social, como, por exemplo, as escolas, precárias em vias públicas ou em áreas com
os hospitais e os bairros. No nível extremo vazios urbanos.
inferior, estariam os perdedores das novas 5) Espaços de favela e congêneres for-
modalidades de acumulação, configurando temente adensados no plano territorial e do
um espaço social das metrópoles marcadas próprio domicílio.
pelas tendências abaixo sintetizadas. Essas descrições não pretendem apre-
1) Espaços periféricos de abandono, sentar uma tipologia de bairros que abar-
formados pelo deslocamento territorial das que o universo de diversidade da difusão do
frações mais atingidas pelos processos de habitat informal e precário que expressa no
marginalização decorrente do novo modelo plano da organização social do território das
de crescimento, onde o solo urbano é ainda grandes cidades os efeitos da combinação
acessível a segmentos sociais que mantêm da segmentação do mercado de trabalho e 247
frágeis laços com o mercado de trabalho; dos processos de segmentação e segrega-
2) Espaços populares homogêneos que ção espacial. A diversidade dessas “soluções”
outrora continham certo grau de heteroge- obedece às diferenças com que em cada
neidade social, mas abandonados por aque- metrópole está se conectando às mudanças
les que conseguem a infiltração em outros macrossociais em curso com as matrizes so-
territórios, aproveitando as estreitas bre- cioculturais de cada país e com o sistema de
chas de mobilidade social existentes nessa forças locais que conformam regimes urba-
nova sociedade. Nesses bairros, perde-se a nos específicos.
diversidade da composição social, pela forte De qualquer maneira, a constituição
presença de trabalhadores com empregos de espaços sociais homogêneos no sentido
precários e trabalhos informais, desfrutan- de agruparem segmentos vivendo os efei-
do de escassa proteção social, exercendo tos des-socializadores decorrentes da insta-
atividades ligadas aos serviços pessoais e bilidade da sua relação com o mercado de
domésticos viabilizados por efeitos de loca- trabalho tende a ter como contrapartida a
lização (acessibilidade ou proximidade) de segmentação da composição dos usuários
zonas demandantes dessas ocupações. dos serviços sociais e urbanos, em especial
3) Espaços centrais desvalorizados eco- aqueles realizados por equipamento de pro-
nômica e socialmente, nos quais o parque ximidade de vizinhança, como as escolas, os
imobiliário é reaproveitado para a exploração­ centros de saúde, os equipamento e lugares
da escassez relativa de oportunidades­ de lazer e os meios de transporte. No outro

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extremo oposto da estrutura urbana, cons- Na reflexão do papel explicativo das


tituído por aqueles que se beneficiam das matrizes socioculturais de tais diferenças
novas modalidades de acumulação, haverá parece-nos pertinente utilizar a tipologia
uma proporção maior de pessoas que deser- proposta por Filgueira (1988). Ela com-
tam do sistema público de bem-estar social, preende as seguintes categorias: universa-
atraídos pelas oportunidades de adquirir no lismo estratificado, sistemas duais e siste-
mercado serviços urbanos de melhor quali- mas excludentes.
dade. Também trataram de se afastar das O regime universalista-estratificado alu-
vizinhanças onde a densidade das precarie- de a uma combinação de ampla cobertura de
dades favorece a emergência dos elementos prestações sociais, com fortes diferenciais
mais disruptivos da pobreza e, se seus meios quanto à variedade dos benefícios, aos limi-
assim lhes permitem, tratarão de se refugiar tes de acesso (como idade de aposentadoria
em bairros fechados/condomínios. ou requerimento para financiamentos de
A descrição anterior das possíveis vin­ habitação) e à qualidade das prestações. A
cula­ções entre o incremento das desigualda- conformação de sistemas desse tipo segue as
des no mercado de trabalho e as polariza- linhas de modelos dos regimes de bem-estar
ções sociais nas metrópoles é, sem dúvida, corporativos da Europa continental. Os paí-
muito simplificada, mas no nosso entender, ses da região que apresentam essas caracte-
enuncia bem a essência do crescente isola- rísticas são tipicamente Argentina, Costa Ri-
mento e das distâncias entre as classes so- ca, Chile e Uruguai, mesmo quando o perfil
248 ciais. Com efeito, quando observamos os que está assumindo o regime de bem-estar
países latino-americanos considerando suas chileno parece estar se inclinando para um
diversidades históricas, a análise dos efeitos modelo mais liberal tipo o anglo-saxão.2
dos macroprocessos (e de seus mecanismos) O Brasil e o México são tomados co-
deve levar em consideração as diferenças mo exemplos por Filgueira como regime
entre as metrópoles que se formaram desde dual . Embora a população residente nas
a sua origem como espaços segmentados e principais áreas urbanas desses países tenha
segregados e assim permaneceram, e aque- acesso a um sistema de bem-estar próximo
las que, tendo sido submetidas a processos ao que tipificamos anteriormente como uni-
de segmentação e segregação em suas fases versalismo estratificado, o resto da popula-
de explosão demográficas dos 1940 e 1950, ção tem muito pouca cobertura dos serviços
posteriormente, foram transformadas pe- sociais. Nesses casos, a diferença está em
la a ação dos mecanismos integradores do que, politicamente,
mercado de trabalho e da intervenção pú-
blica. São as metrópoles situadas em paí­ses [...] o controle e a incorporação dos
que buscaram realizar avanços importantes setores populares tem descansado em
nos seus processos de modernização, demo- uma combinação de formas clientelísti-
cratização e cobertura de direitos e prote- cas e patrimonialistas nas zonas de me-
ções. No fundo dessas diferenças estão as nor desenvolvimento econômico e social
matrizes­ socioculturais mencionadas no iní- e formas de corporativismo vertical nas
cio deste trabalho. áreas mais desenvolvidas.­3

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metrópoles e sociabilidade

A categoria de regime excludente, que, potencializar suas indústrias puderam mon-


com exceção do Panamá, inclui para Filguei- tar sistemas de bem-estar social que, ainda
ra o restante das sociedades latino-ameri- que incompletos, beneficiaram segmentos
canas se caracterizara historicamente pela importantes da população urbana. Portan-
presença das elites que to, supomos que esses segmentos incor-
poraram essas conquistas como marco de
[...] se apropriam do aparato estatal e referência de suas expectativas, além de
que, apoiadas na exportação de bens tê-las como parâmetros a partir dos quais
primários em economias-chave, utili- avaliam as vantagens e desvantagens das
zam a capacidade fiscal desses esta- situações que passaram enfrentar com o
dos para extrair rendas, sem prover a funcionamento das novas modalidades de
contrapartida de bens coletivos, sejam acumulação. Em revanche, no extremo que
eles na forma de infra-estrutura, regu- chamamos de regimes excludentes, os efei-
lação ou serviços sociais. Os sistemas tos segmentadores das novas modalidades
de proteção social e seguro desse tipo
de crescimento provavelmente encontrarão
consistem na sua maior parte de polí-
menores resistências, reforçando as pro-
ticas elitistas que agregam privilégios
fundas fragmentações já existentes em suas­
adicionais para a população em situação
metrópoles, pois, em muitos casos, as atuais­
já privilegiada. Profissionais, um nú-
tendências de transformação produzem im-
mero muito reduzido de trabalhadores
pactos des-coesionadores por quebrar os
formais e os funcionários públicos é que
padrões tradicionais de dominação, com 249
são tipicamente favorecidos neste mo-
suas relações complexas de reciprocidade
delo. A maior parte da população repre-
hierárquicas e obrigações morais, sem erigir
sentada no setor informal, a agricultura
e a mão-de-obra secundária se encontra como substituto padrões de reciprocidade
excluída... Consistente com esse pano- fundados no pleno e efetivo reconhecimen-
rama, os indicadores sociais nesse tipo to de direitos de cidadania.5 Mas, por serem
de países apresentam sistematicamente países com longa experiência de exclusão
os piores igualitarismo assim como os social, o aumento do isolamento dos pobres
diferenciais mais altos em regiões com urbanos inerentes às novas modalidades de
distintos graus de desenvolvimento.4 crescimento é ofuscada, pouco visível social-
mente, em razão da inexistência de ampla
É razoável esperar que as sociedades e enraizada consciência coletiva de direitos
com matrizes socioculturais mais igualitárias sociais universalizados. Por essa razão, es-
(universalismo estratificado, na nossa clas- sas sociedades mantêm em estado latente as
sificação) reajam de formas parecidas com tensões sociais básicas, que eclodem na for-
as dos países mais desenvolvidos diante das ma de conflitos e violências de tempos em
tendências de perda da coesão social que tempos, refletindo a existência de uma ne-
suscitam as novas modalidades de acumu­ gociação difícil entre projetos alternativos e
lação. A maioria dos países que conseguiu conflitivos de construção da nacionalidade.

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Segmentação, privados, countries,­etc.) são expressões. Os


segundos segmentos, com qualificação insu-
segregação residencial ficiente e/ou com especializações tornadas
e desigualdades sociais obsoletas, passaram enfrentar problemas
para pagar seus aluguéis e para conseguir as
Em todas as metrópoles, observamos a ten­ condições de garantias exigidas em contratos
dên­cia de a organização social do território de locação ou em sistemas de financiamen-
expressar diferenças étnicas, raciais e socio- tos para aquisição da moradia. A retração
econômicas, formando unidades de vizinhan- da intervenção do Estado no mercado habi-
ça que agrupam domicílios com característi- tacional agravou essas situações. Sob essas
cas particulares. A intensidade desse proces- situações, os processos de mobilidade so-
so de diferenciação intra-urbana é distinta cial descendente foram acompanhados pela
entre as metrópoles latino-americanas, em migração intraurbana em direção àqueles
razão de suas trajetórias produtivas, polí- bairros com urbanização precária – freqüen-
ticas e pelos conteúdos das matrizes socio- temente periféricos – onde era mais barato
culturais. Em particular, o peso das classes ou nos quais, em caso extremo, existiam po-
médias na estrutura social das metrópoles sibilidades de ocupar ilegalmente terrenos.
tem grande importancia, uma vez que a sua Ganhadores e perdedores estão distanciados
presença tende a amortecer a tendência à socialmente em termos de renda, qualifica-
associação entre o pertencimento a certas ção e estabilidade de empregos, segmenta-
250 categorias sociais e a localização residencial. ção dos serviços sociais e urbanos e também
As novas modalidades de acumulação as- pela segregação residencial.
sociadas à globalização trouxeram novidades Esses processos de conexão de desi-
nesse campo. A elevação dos níveis de quali- gualdades geradas por processos macro-
ficação necessária ao acesso às ocupações es- sociais e a organização social dos territorios
táveis e protegidas, a flexibilização das rela- das metrópoles variaram de país a país.
ções de trabalho e a liberalização do mercado Aqueles que não passaram pela experiência
imobiliário têm gerado segmentos sociais vi- da industrialização ou nos quais a industria-
toriosos e perdedores nas sociedades latino- lização foi insuficiente para gerar empregos
americanas em transformação. Graças a suas para os que migraram para as cidades sem-
elevadas qualificações, os primeiros puderam pre mostraram altos níveis de segregação
aproveitar as oportunidades de mobilidade residencial. Ademais, suas classes médias e
social ascendente criadas com a abertura e médias baixas (microempresários, operá-
a acelerada incorporação das novas tecnolo- rios industriais e empregados públicos, do
gias. Os mais exitosos se deslocaram para os comércio e escritórios) tinham um pequeno
bairros específicos de maior status social e, peso relativo na estrutura social desses paí­
em algumas metrópo­les, passaram a gozar ses. Nesses casos, a magnitude de desloca-
de amenidades e proteções oferecidas por mentos de certas áreas das metrópoles para
formas privadas de urbanização e produção as novas áreas das cidades não chegou a al-
da moradia, cujo condomínios fechados e terar as dimensões e o grau da segregação
seus congêneres (bairros cerrados, bairros residencial preexistente.

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metrópoles e sociabilidade

A topologia das metrópoles também Jorge Rodríguez (2006) fez talvez a


contribuiu para dar forma à segregação análise mais minuciosa das tendências de
residencial provocada pelas novas tendên- segregação residencial realizado na Amé-
cias de desigualdades sociais, basicamente rica Latina. Seu estudo se aplica a 4 cida-
porque os agentes imobiliários reagiram de des (Cidade de México, Rio de Janeiro, São
forma diferente ante os desafios colocados Paulo e Santiago do Chile) e colocou à prova
pela geografia urbana. Por exemplo, é difícil distintas variáveis e escalas de segregação.
comprender as diferenças quanto às proxi- Suas­ conclusões relativas a essas três últi-
midades físicas entre áreas de estratos so- mas cidades são, de um lado, a constatação
cioeconomicos opostos sem considerar os de clara tendência ao aumento do índice de
morros do Rio de Janeiro ou as planícies segregação residencial (não pôde elaborar
sem limites da província de Buenos Aires. esse índice para a Cidade do México), mas
Em Santiago do Chile, observamos claras di- incertos resultados com a aplicação do ín-
ferenças nos custos de construção e comuni- dice de dissimilaridade de Duncan para as
cações nos vales e nas ladeiras das encostas quatro cidades. Para Montevidéu, uma série
das montanhas. de trabalhos utilizando diferentes índices e
Sem dúvida, essas histórias da morfolo- níveis de agregação coincidem na constata-
gía social das cidades e o modo como foram ção do crescimento do índice de segregação
afetadas por sua geografia, pelos padrões e residencial (Kaztman, 1999; Cervini e Gallo,
graus de segregação residencial previamen- 2001; Macadar, Calvo, Pellegrino e Vigori-
te existente e pelos processos de mobilidade to, 2002; Kaztman e Retamoso, 2005). 251
social ascendentes e descendentes colocam O nosso interesse neste trabalho não
dificuldades para interpretar as novas ten- está concentrado em constatar um tipo qual-
dencias de organização do espaço social das quer de segregação residencial, mas aque-
metrópoles decorrentes das macrotrans- les tipos cuja dinâmica tem efeitos sobre a
formações. Outras dificuldades são relacio- convivência social e pode colocar bloqueios
nadas com as possibilidades de medir esses à construção de projetos coletivos no plano
processos: quais são as variáveis pertinentes das cidades e da sociedade. Nesse sentido, o
para capturar essas conexões em cada país?­ que nos importa são os tipos de segregação
Como medir de maneira comparativa as di- que reflitam as novas características da po-
ferenças e semelhanças da composição so- breza relacionadas com o impacto da crise
cial das metrópoles e de seus bairros? Quais do mundo do trabalho sobre os segmentos
são os índices que refletem melhor as di- com baixa qualificação.
mensões da segregação que nos parecem
importantes para superarmos descrições
meramente impressionistas? Fundamental- Os bairros da nova pobreza
mente, qual é a escala territorial agregação
mais adequada para a observação das ten- Esses bairros são produto de processos de
dências – o setor censitário, um conjunto de segregação residencial que, na América La-
quarteirões com carácterísticas semelhantes, tina, operam fundamentalmente a partir
o bairro, o distrito ou o município? dos anos 1980. O contexto da metrópole

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mostra importantes diferenças com aqueles A concentração espacial – historica-


que caracterizaram a constituição dos dois mente inédita – de pessoas com aspirações
tipos anteriormente mencionados. O que inerentes à vida urbana, com privações e
prevalece nesse contexto são experiências escassas esperanças de alcançar metas signi­
de desindustrialização e de encurtamento da ficativas através do emprego, gera fortes
importância do Estado – as duas fontes mais sentimentos de privação relativa. Sob essas
importantes de emprego urbano não precá- circunstâncias, os novos guetos urbanos fa-
rio –, de acelerada diminuição das oportu- vorecem a germinação dos elementos mais
nidades de emprego não qualificado e com disruptivos da pobreza. As famílias que con-
especialização tornada obsoleta pelo desen- tam com recursos abandonam esses bair-
volvimento tecnológico e a elevação dos re- ros, deixando em seu lugar uma população
querimentos de qualificação requerida para empobrecida, crescentemente precarizada e
a incorporação ao mercado de trabalho. Em isolada das pessoas que reúnem os elemen-
vez da atração da cidade, nesses casos, ope- tos mínimos para alacançar êxito na socieda-
ra a expulsão para a periferia. Em vez de de contemporânea.
domicílos estimulados por novas oportuni- A concentração espacial das pessoas que
dades de trabalho e progresso, crescem os compartilham essas características reforça a
segmentos da população desalentada e com precariedade do grupo por várias vias. Em
poucas esperanças de inserção estável na es- primeiro lugar, a interação com vizinhos es-
trutura produtiva. À diferença dos migran- tá limitada a pessoas cujas habilidades, há-
252 tes rurais que contrastavam favoravelmen- bitos e estilos de vida não são favoráveis à
te sua situação presente com a que haviam valorização de resultados exitosos de acordo
desejado, muitos dos atuais pobres urbanos com os critérios predominantes na socieda-
contrastam negativamente sua situação pre- de. Segundo, as redes de vizinhança são ine-
sente com um passado melhor e enfrentam ficazes para a obtenção de informação sobre
dificuldades para o exercício efetivo dos di- emprego ou oportunidades de capacitação.
reitos sociais já conquistados e para satisfa- Terceiro, a mesma instabilidade trabalhista
zer aspirações legítimas de participação em gera dificuldades para a manutenção das
estilos de vida predominantes nas cidades. instituições locais, existentes na escala do
Ao invés de expectativas de mobilidade as- bairro, e dos níveis adequados de organi-
cendente, predomina a experiência da mobi- zação e controle social informal. Quarto,
lidade descendente como fato inevitável. Os as crianças e jovens carecem de exposição
efeitos negativos de todos esses processos e contatos a modelos, isto é, a pessoas que
sobre o bem-estar dos pobres urbanos e têm êxitos nos circuitos sociais e econômi-
suas posibilidades de integração social são cos principais da cidade. Por último, um as-
agudizados pela combinação perversa de pecto explosivo dessa situação localiza-se no
dois fenômenos: enquanto o eixo da forma- fato de que as fontes de produção e repro-
ção das identidades de desloca do mundo do dução da elevação das aspirações não deixa-
trabalho ao mundo do consumo, amplia-se a ram de funcionar, ao mesmo tempo em que
distância entre a participação material e par- avançam os processos de enfraquecimento
ticipação simbólica desses estratos. dos vínculos com o mercado de trabalho, a

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metrópoles e sociabilidade

segmentação­ dos serviços coletivos e a se- grupos de referências locais. As crianças e os


gregação residencial. A universalização da jovens deixam de ser socializados para ado-
educação, não obstante sua baixa qualidade, tarem valores e orientações culturais favorá-
cria a expectativa de integração social pelo veis ao comportamento social racionalmente
mérito e eleva as aspirações de sucesso. De orientado, capaz de levá-los à construção
um modo ou de outro, ao mesmo tempo, a de projetos de futuro. A existência dessas
globalização coloca as grandes maiorias em subculturas encurtam os horizontes espaço-
contato com discursos que sublinham a legi- temporais dos habitantes dos guetos pobres,
timidade do acesso a uma série de direitos o que tem como consequência a reação da
sociais cujo exercício efetivo é negado pe- sociedade e a alimentação e o profundamen-
la experiência cotidiana no contato com as to do isolamento social dos pobres.6
instituições mais gerais a sociedade, seja a Os exemplos da operação desses me-
justiça, a policía ou a administração pública. canismos de reprodução ampliada do isola-
Temos como conseqüência focos territoriais mento são inúmeros.
de anomia, cuja essência é a homogeneiza- 1) Os habitantes dos bairros, especial-
ção de metas e expectativas culturais e, ao mente os jovens, são vítimas da chamada
mesmo tempo, o aumento da desigualdade “discriminação estadística” pela qual somen-
de recursos e oportunidades. Algumas das te a consideração do seu lugar de residência
reações a essa situação são produtoras de é suficiente para os empregadores recusa-
efeitos disruptivos sobre o tecido social das rem empregos.
cidades, com potencial para se alastrar para 2) O abandono desses bairros pelas fa- 253
o conjunto da sociedade. mílias que têm ainda recursos desertificam
esses espaços das pessoas que “têm voz” e
que poderiam assumir o papel de transmisso-
Mecanismos retroalimentadores res dos padrões normativos da sociedade glo-
da nova pobreza bal e de contatos e informações para a obten-
ção de empregos e/ou acesso aos serviços.
Uma vez criados bairros com as caracaterís- 3) As pessoas evitam entrar nesses
ticas apontadas anteriormente, o isolamen- bairros, o que faz com que os seus habitan-
to e a densidade de experiência da privação tes experimentem a redução da frequência
relativa geram condições fertéis à emer- de contatos familiares e de amizades com
gência de subculturas locais, fundadas em quem vivem em outras áreas da cidade.7
valores e orientações diferentes e mesmo As subculturas dos bairros da nova po-
contraditórios com aqueles requeridos pe- breza urbana se expressam por uma ampla
la sociedade da competição que se implanta gama de padrões atitudinais e normativos
com as transformações operadas pela glo- que se sedimentam em torno do reconheci-
balização. A honra fundada na bravura, na mento das adversidades compartilhadas pela
coragem para enfrentar situações de riscos população com graves carências materiais­
e a misoginia são valores que permitem aos e precárias condições de vida, de barrei-
habitantes desses bairros pobres e isolados ras à mobilidade social e da necessidade de
alcançarem­ a estima e o reconhecimento de encontrar bases comuns para construir ou

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reconstituir­ um sentimento de autoestima Possíveis efeitos da residência


altamente atingida pela experiência da exclu- em bairros da nova pobreza
são não apenas do emprego e dos serviços, sobre comportamentos
mas também das fontes legítimas de pres- e expectativas
tígio e reconhecimento sociais. Para muitos
dos seus residentes, o trabalho deixou de
ter o papel universalizador da sua condição Em revisão exaustiva da lieratura americana
social e de referente central para a organi- sobre os efeitos dos bairros pobres sobre
zação social da vida cotidiana, para a pro- uma série de comportamentos considera-
visão de disciplinas, regularidades e para a dos de riscos no sentido da perpetuação da
articula­ção de expectativas e escalonamento situa­ção de pobreza, Christopher Jencks e
de metas de vida. Por sua vez, o progres- Susan Mayer (1990) encontram abundante
sivo isolamento tende tornar cada vez mais evidência sobre as conseqüências dos con-
difusos os sinais (quando existem) oriundos textos sociais conformados pelos efeitos da
da sociedade global que indicam caminhos segregação residencial sobre o rendimento
acessíveis a pessoas de baixa qualificação educativo, condutas aditivas e delituosas, as-
para alcançar condições dignas de vida. Pa- sim como sobre a maternidade adolescente.
ra outros, que alcançam maior escolaridade Essa hipótese, embora contestada por parte
que seus pais, por outro lado, vivem essa da literatura sociológica americana, foi ob-
experiência como deslocamento social, uma jeto de outros balanços dos resultados das
254 vez que aumentam crescentemente os re- pesquisa americanas, como nos trabalhos de
querimentos da qualificação necessária ao Dreier, Mollenkopf e Swanstron (2004).
acesso aos postos de trabalho estáveis, pro- Na América Latina, os estudos dos efei-
tegidos e maior remuneração. A defasagem tos da segregação residencial urbana sobre
entre a oferta e a demanda de qualificações as expectativas e comportamentos das pes-
contatada no recente relatório da Cepal soas que residem em bairros com composi-
(2007) tende a ter impactos desvatadores ção social homogênea são muito escasssos.
da sociabilidade imperante nos bairros que Não obstante, algumas poucas investigações
apresentam os traços dos guetos urbanos nos fornecem pistas nessa mesma direção.
descritos anteriormente. Estudo feito por Ribeiro et al. (2005)
Esse contexto sociocultural é altamen- sobre as 15 principais metrópoles brasilei-
te favorável ao aumento da permeabilidade ras nos fornece indicações empíricas sobre
da população pobre a caminhos paralelos de a existência de fortes sinais da relação en-
integração social via o atingimento de metas tre a concentração espacial de trabalha-
via o consumo. Enquanto isso, a vida social dores com frágeis laços com o mercado
no bairro, a relação com as instituições da de trabalho e a incidência nesses espaços
sociedade e o isolamento social tendem a de alta concentração­ de crianças e jovens
inibir a eficácia de eventuais iniciativas que com atraso­ escolar, jovens que não traba-
poderiam contrabalançar essas predisposi- lham, não estudam e também não procu-
ções invocando normas e valores modais da ram emprego e jovens adolescentes mães
sociedade. solteiras. 8 Os estudos sobre a relação da

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metrópoles e sociabilidade

segregação­ residencial e o desemprego no de variáveis relacionados com o rendimen-


município de São Paulo (Gomez e Amitra- to escolar, tais como distorção série-idade,
no, 2004) e sobre as limitações a ocupa- evasão escolar, etc.9 Outros trabalhos ana-
ções estáveis e sobre os rendimentos da lizam espeficamente a relação entre as ca-
ocupação na Região Metropolitana do Rio racterísticas sociais do bairro e as médias
de Janeiro (Ribeiro, Rodrigues e Correa, de jovens sem afiliação institucional por
2008), embora também descritivos, ten- não trabalharem, não estudarem e nem
dem mostrar que os residentes em bairros procurarem emprego (Sabattini, Cáceres e
que concentram adultos fragilizados na re- Cerda, 2002 e Kaztman,­ 1999). O sentido
lação com o mercado de trabalho têm mais de risco dos comportamentos mencionados
problemas acesso ao mercado de trabalho funda-se em seu potencial para operar co-
em razão de efeitos dos mecanismos de mo barreira à acumulação, através da esfe-
spatial mismatch­ entre lugares de traba- ra do mercado, da sociedade e do Estado,
lho e residência, pela escassez de oportu- dos ativos requisitados à integração virtuo-
nidades de empregos nos próprios bairros sa na sociedade.
e também por falta de informação e con-
tatos que falicitem a busca e obtenção de
trabalho e pelos efeitos da discriminação E classes médias?
dos territórios. Outro estudo, realizado em
Montevidéu, confirma a existência de asso- A qualidade das relações sociais relaciona-se
ciações positivas entre o nível de homoge- não apenas com as particularidades da nova 255
neidade da composição social dos bairros pobreza e seus efeitos na sociabilidade im-
pobres e as taxas de desemprego, propor- perante nas metrópoles, mas também pelo
ções da PEA dedicada a atividades informais peso relativo das classes médias urbanas e
e sem proteção trabalhista, e também com suas orientações presentes na interação com
as proporções de jovens que não traba- as camadas populares e com as esferas cívi-
lham, não estudam e tampouco procuram cas da cidade. Trata-se de estruturas atitu-
emprego. (Kaztman e Retamoso, 2005) dinais ativadas diante dos incrementos dos
Uma série de trabalhos mostram asso- indicadores de desigualdades que ultrapas-
ciações significativas entre as características sam o nível do tolerado, incentivando ações
dos bairros e o comportamento de risco de solidárias diretas ou apoio a iniciativas que
crianças e adolescentes que alimentam os restabeleçam o equilíbrio. Elas podem incluir
mecanismos de reprodução intergeneracio- desde a constituição (ou associação à) de en-
nal da pobreza e das desigualdades nas me- tidades não-governamentais de filantropia e
trópoles. Tal é o estudo dos efeitos de vizi- promoção social, apoio eleitoral a iniciativas
nhança sobre os comportamentos reprodu- dirigidas a proteger os mais frágeis e man-
tivos de adolescentes (Rodríguez, 2006; ter a universalidade dos serviços urbanos,
Kaztman 1997, 1999; Sabattini, Caceres e até a disposição a pagar mais impostos para
Cerda, 2003). Outro conjunto de estudos apoiar medidas redistributivas.
analisa as consequências da residência em A aversão à desigualdade10 fundamen-
determinados bairros sobre distintos tipos ta-se na capacidade de empatia dos mais

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ruben kaztman e luiz césar de queiroz ribeiro

favorecidos com os que têm menos e em os bares, as praias, os espetáculos massi-


seus sentimentos de desobrigação moral vos, as ruas, etc. Tanto a segregação resi-
em relação ao destino dos pobres. Esses dencial como a segmentação dos serviços
conteúdos mentais perdem vigência se não públicos, delimitando a base­ estrutural­ que
são renovados periodicamente através de sustenta a capacidade de empatia e de re-
contatos informais entre pessoas com dis- conhecimento sociais, enfraquecem os sen-
tintas condições econômicas. Mas não se timentos de obrigação moral, que, por sua
trata apenas de maior ou menor frequência vez, elevam os níveis de tolerância com a
de contatos, mas do sentido atribuído por desigualdade.
ambos os segmentos – os “ganhadores” e O clima de insegurança e medo reinan-
os “perdedores” da nova sociedade – a es- te em muitas metrópoles da América Lati-
sas interações sociais. Trata-se de relações na participa do processo de desconexão das
entre indivíduos­ que se representam como classes médias das funções que no passado
moralmente iguais ou, ao contrário, tais exerceram, uma vez que incentiva a ado-
interações realizam âmbitos sociocultu­rais ção de comportamentos autodefensivos e
nos quais “os de cima” vêm os “de baixo” individualistas, em última instância, de des-
como “inferiores” porque não são portado- solidarização com os destinos da cidade.
res dos sinais hegemômicos de pertencimen- Essas práticas estão presentes na busca de
to à sociedade. Os “de baixo” representam modelos segregados de moradia, como são
os “de cima” apenas como canais de acesso os condomínios fechados, através dos quais
256 a recursos tornados escassos por sua con- as classes médias pretendem se proteger da
dição social, portando, através de atitudes “desordem urbana”.
orientadas apenas pela razão instrumental? Entretanto, em algumas metrópoles,
Os sentimentos de obrigação moral serão a persistência de mecanismos de solidarie-
mais fortes quando, simultanea­mente, hou- dade preexistentes ao período da globali-
ver intensidade e frequência das interações zação gera contratendências ao isolamento
e compartilhamento de valores, atitudes das classes médias. São visíveis os sinais de
e expectativas comuns. Tais sentimentos rupturas do tecido social nas metrópoles
ocorrem nas interações realizadas em âmbi- em que as formas contemporâneas­ de ter-
tos signficados coletivamente como espaços ritorialização da nova pobreza se combinam
públicos, ou seja, marcados pelos valores e com a forte deserção da cidade pelas classes
exigências inerentes à noção da igualdade médias, materializada pelo seu afastamento
moral e legal – o transporte, as praças, os e encerramento residencial e a privatização
hospitais, as escolas, os campos de futebol, dos serviços coletivos.

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metrópoles e sociabilidade

Ruben Kaztman
Mestre em Sociologia pela Universidade de Berkeley. Diretor do Instituto de Programa de
Investigación sobre Integración, Pobreza y Exclusión Social da Universidade Católica do Uru-
guay e Coordenador do Grupo de Estudo sobre Segregação Urbana (Montevideo, Uruguai).
kaztman@adinet.com.uy

Luiz César de Queiroz Ribeiro


Professor Titular do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano da Universidade Federal do
Rio de Janeiro e Coordenador do Observatório das Metrópoles/Instituto do Milênio-Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. Pesquisador 1 A do CNPq (Rio
de Janeiro, Brasil).
cesar@ippur.ufrj.br

Notas
(*) Versão anterior deste artigo foi escrito como contribuição ao projeto Nova Agenda de Coe­
são Social para a América Latina, realizado pelo iFHC-Instituto Fernando Henrique Cardo­
so e pelo CIEPLAN-Corporación de Estudios para Latinoamérica. O projeto foi realizado
em 2006, graças ao apoio da União Européia e do PNUD. As informações e opiniões 257
apresentadas pelos autores são de sua responsabilidade pessoal e não representam neces­
sariamente nem comprometem as instituições associadas ao projeto.

(1) Ver Topalov (1988; 1994; 1996) sobre a relação entre a reforma social e a reforma urbana e
seu papel na constituição da percepção coletiva da necessidade de um sistema institucio­
nal de regulação e de proteção social que fundamentou as bases do Estado do Bem-Estar
Social.

(2) Sobre a definição e características predominantes em distintos regimes de bem-estar, ver


Gösta Esping-Andersen (1999), Social Foundations of Post Industrial Economies. Oxford,
Oxford University Press.

(3) Filgueira (1998).

(4) Ibid.

(5) Essa é a argumentação de alguns trabalhos sobre o Brasil que têm procurado encontrar os
fundamentos da violência urbana na decomposição do sistema híbrido de reciprocidade
formado historicamente em razão da modernização conservadora ou seletiva, sem que
seja substituído por regras fundadas nos direitos de cidadania. Ver a esse respeito Soares
(1997) e Velho (1996). Para uma interpretação em que se confronta a hipótese de crise do
sistema híbrido de reciprocidade, ver Souza (2003).

(6) Sobre a dimensão da violência geradora dessa subcultura, ver Soares (2000). Segundo esse
autor, a violência nas favelas do Rio de Janeiro e, de maneira mais geral, nos bairros po­
bres, gera as seguintes tendências: desorganização da vida associativa e política das comu­
nidades; imposição de um regime despótico nas favelas e bairros populares; recrutamento

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da força de trabalho infantil e adolescente; disseminação de valores bélicos, contrários ao


universalismo democrático e cidadão, fazendo com que os princípios de orientação dos
comportamentos sociais, especialmente dos jovens, sejam os ligados à lealdade, honra e
coragem, próprios de uma sociedade feudalizada, havendo retração dos valores civiliza­
tórios que habilitam seu portador com disposições subjetivas para o respeito às regras da
sociabilidade e para a racionalidade estrategicamente orientada; como conseqüência, nos
bairros populares, observa-se o predomínio agressivo dos valores da guerra feudalizada,
fundados na crença da supremacia da coragem e da lealdade, o que leva, invariavelmen­
te, a um quadro social de faccionalismo fratricida; destruição das estruturas familiares e da
dinâmica da reprodução cultural ao inverterem-se as relações de autoridade intergeracio­
nais, convertendo-as em laços de poder militarizado. Em decorrência da vigência desses
valores, há, nos bairros populares, uma permanente disputa em torno da supremacia moral
de duas estruturas de hierarquia: a familiar e a do tráfico; a conseqüência é a degradação
da “lealdade comunitária tradicional, substituindo-a por relações exclusivistas com grupos
paramilitares e por um narcisismo consumista extremo”; nos bairros em que o tráfico tem
presença marcante “a identidade predominante passa a ser o grupo criminoso, que usa o
vínculo simbólico de uma das grandes ‘famílias’ do tráfico para diferenciar-se dos rivais.
Esse processo tende a ser mais traumático quando os traficantes são invasores, isto é, não
originários da favela que dominam”; fortalecimento e disseminação do patriarcalismo, a
homofobia e a misoginia; estimulação de reações que tendem a estigmatizar a pobreza e
os pobres, promovendo imagens negativas das comunidades dos bairros populares, que
passam a ser vistos como fontes do mal; essas imagens inspiram e reforçam práticas dis­
criminatórias da sociedade como um todo em relação às favelas e aos bairros populares,
sobre os quais passam a vigorar concepções e discursos estigmatizadores. Bem sabemos, a
258 partir dos resultados das pesquisas de Wacquant (2001) sobre os guetos negros de Chicago
e sobre as periferias pobres de Paris, que o estigma acaba sendo incorporado pelos estig­
matizados, o que os leva a comportamentos orientados pela busca em se dissociar desses
lugares.

(7) Ver a respeito Zaffaroni, em Kaztman (1999).

(8) Identificação e análise das áreas socialmente vulneráveis das metrópoles, Observatório das
Metrópoles, www.observatoriodasmetropoles.ufrj.br.

(9) Para Santiago de Chile, Flores (2008) e Sabattini, Cáceres e Cerda (2002); para Ciudad de
Mexico, Solís (2006); para Rio de Janeiro, Ribeiro (2005) e Alves, Franco e Ribeiro (2008);
para Belo Horizonte, Soares, Rigotti e Andrade (2008); para São Paulo, Torres, Ferreira e
Gomes (2004); para Buenos Aires, Suarez e Groissman (2008); para Montevideo, Kaztman
e Retamoso (2008).

(10) Certamente, a contribuição das classes médias e altas à manutenção dos espaços públicos
que posibilitam interação interclasse não descansa somente em seu nível aversão à desi­
gualdade. Também intervém o temor das externalidades que freqüentemente acompa­
nham a deterioração da qualidade de vida das maiorias sociais e dos serviços públicos que
utilizam a instabilidade política, o descenso da legitimidade das instituições, conseqüen­
temente, as dificultades das elites em mobilizar a vontade coletiva em apoio a projetos de
mudanças – e, sobretudo, cada vez mais, as conseqüências da insegurança pública sobre
as suas condições de vida.

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metrópoles e sociabilidade

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Recebido em jun/2008
Aprovado em set/2008

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