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IMAGENS DA CIBERCULTURA:
As figurações do ciberespaço e do ciborgue no cinema
Joon Ho Kim
À Sofia Koon Ja Song, minha mãe, que acompanhou de perto esta jornada.
A todos os demais colegas, amigos e familiares que de alguma forma
participaram do meu mestrado.
Julho de 2005
RESUMO
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especificamente como aparecem nos filmes produzidos nas duas últimas décadas.
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Imagens da Cibercultura
Julho de 2005
ABSTRACT
The aim of this thesis is to analyze cyberculture images, specifically how they
|
have appeared in films produced over the last two decades. When analyzing films, the
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Imagens da Cibercultura
Julho de 2005
ÍNDICE
I. INTRODUÇÃO ___________________________________ - 7 -
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IV.2. . AS ALEGORIAS DA TECNOLOGIA ..................................................................... - 113 -
IV.3. . AS IMAGENS DO CIBERESPAÇO ...................................................................... - 135 -
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Imagens da Cibercultura • I: Introdução | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Julho de 2005
Julho de 2005
As máquinas do fim do século XX tornaram completamente ambíguas as
diferenças entre o natural e o artificial, a mente e o corpo, o autocriado e o
externamente projetado, assim como outras distinções que costumávamos
aplicar aos organismos e máquinas. Nossas máquinas são perturbadoramente
No fim da década de 1940, foi publicado um livro que propunha reunir sob
uma única disciplina científica a teoria e a pesquisa relacionada aos sistemas de
controle e comunicação, independentemente de serem fenômenos provenientes de
sistemas artificiais ou orgânicos. Sob um paradigma que reduz tudo a uma espécie de
engenharia universal das mensagens, essa disciplina, batizada de “cibernética”
(Wiener, 1948), influenciou praticamente todas as áreas científicas e tecnológicas
existentes, além de ter sido fundamental o reconhecimento de novas áreas
especificamente “cibernéticas”, inimagináveis antes da década de 1940, tais como a
informática, a robótica, a biônica e a biotecnologia. Sob o paradigma cibernético –
segundo o qual tudo aquilo que “funciona”, seres vivos e máquinas, são, no limite,
|
sistemas de unidades intercambiáveis – a ciência e a tecnologia mudaram e
continuam mudando nosso mundo natural e social em uma velocidade avassaladora.
1
O primeiro clone de mamífero produzido com sucesso, Dolly nasceu em 05 de julho de 1996 mas
morreu por complicações de saúde consideradas prematuras para sua idade, em 2003.
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nossa realidade – trazem discussões éticas e de bio-segurança para a pauta das
manchetes, reformatadas e simplificadas, é claro, para se adequar ao entretenimento
jornalístico da hora do jantar. Já a nanotecnologia – que mal passava de especulação
há pouco mais de uma década, quando as iniciais “IBM” foram montadas com 35
|
Segundo Morin, (1967, p. 37-38) é próprio da cultura de massas o sincretismo que
tende a “homogeneizar sob um denominador comum a diversidade dos conteúdos”
2
A soja modificada geneticamente pela Monsanto para ser tolerante ao herbicida glifosato durante
todo o seu ciclo de vida. Em sojas não-transgênicas, o glifosato é utilizado apenas no pré-plantio.
Como o glifosato é vendido pela Monsanto sob a marca Roundup, sua soja transgênica é conhecida
como “Roundup ready”.
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conquistas e promessas da tecnologia em um cientificismo vulgar, porém conveniente
para dar sentido não só a uma realidade mais fantástica que a imaginação, mas
também para dar ares de realidade às fantasias e aos devaneios mais implausíveis. A
cultura de massas matizada com noções cibernéticas deu nomes a seres que eram
|
cinema tem em relação à língua3 e ao nível de instrução do espectador4.
Ao lado da sua grande penetração social, decorrente do cosmopolitismo e
3
Morin (1967, p.45) nota que todo filme legendado já é cosmopolita e que “todo filme dublado é um
estranho produto cosmopolitizado cuja língua foi retirada para ser substituída por outra. Ele não
obedece às leis da tradução, como o livro, mas às leis da hibridação industrial”.
4
De acordo com Bourdieu (2001, p. 302), o cinema é, “dentre as práticas culturais”, a “menos
estreitamente vinculada ao nível de instrução (...) ao contrário da freqüência a concertos, prática mais
rara que a leitura e a freqüência a teatros”.
5
Escobar (2000, p. 56) nota que “enquanto qualquer tecnologia pode ser estudada antropologicamente
de uma variedade de perspectivas, cibercultura refere-se muito especificamente às novas tecnologias
em duas áreas – inteligência artificial (particularmente tecnologias da informação e computação) e
biotecnologia”.
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práticas sob uma perspectiva utilitária que vê a ciência e a tecnologia de forma neutra
e não-problemática (cf. Escobar, 2000, p.58). Com efeito, as imagens do ciberespaço
e do ciborgue engendram profundas alterações na categoria do corpo e cristalizam
uma lógica instrumental na qual a sua sublimação ou alteração da natureza do corpo
|
histórias acerca do futuro constituem um “futuro contemporâneo” porque “ainda que
as narrativas se refiram ao futuro, em última análise, suas âncoras estão
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marcadas pela apropriação de modelos e discursos tipicamente ciberculturais como
estudar a mentalidade social acerca do cibernético a partir das recorrências –
modelos, clichês e estereótipos – e a evolução dessas recorrências nas construções
fílmicas.
(...) todas as épocas (...) têm suas regras para organizar o mundo exterior –
mundo dos objetos e das relações sociais – de maneira que encontrem ali uma
coerência e possam aplicar suas regras de conduta: possuem, em particular,
categorias de análise por meio das quais tal maneira de designar verbal ou
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iconograficamente os objetos é considerada estilizada, falsa, caricaturesca,
humorística ou fiel à realidade (Sorlin, 1985, p.157).
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corpo é um excesso, notou-se durante a pesquisa que o espaço sintetizado pelo
computador é apenas uma das possibilidades reservadas ao corpo na perspectiva da
cibercultura, onde ele é visto como um suporte de defeitos a serem retificados pela
cibernética. A transformação do corpo em um mero “rascunho a ser corrigido” (Le
|
advento do cinema. O capítulo III.2, “A vida moderna e o olhar cinematográfico”,
analisa o realismo associado à imagem cinematográfica e procura demonstrar que o
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imagem das alteridades que os filmes ciberculturais constroem. Essas alteridades
são, invariavelmente, figuras ambíguas, objetos de um certo estranhamento e retratos
desviantes de humanidade: máquinas com aparência humana, seres-humanos
retificados artificialmente ou tricksters que superam no plano do imaginário fílmico
|
realidade espetacular parece não se diferenciar mais do espetáculo realista. Para Le
Breton (2003, p.161), “a ficção científica não se opõe mais ao real”:
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justaposição de partes sujeitas às mais insólitas reinvenções e retificações, introduz a
desordem simbólica no cosmos do qual o corpo é imagem.
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II.
A SOCIEDADE CIBERNÉTICA
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Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Julho de 2005
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II.1. Da cibernética à cibercultura
Em 1948, o matemático Norbert Wiener publicou Cybernetics: or the Control
and Communication in the Animal and the Machine, livro que apresenta as hipóteses
(...) um campo mais vasto que inclui não apenas o estudo da linguagem mas
também o estudo das mensagens como meios de dirigir a maquinaria e a
|
sociedade, o desenvolvimento de máquinas computadoras e outros autômatos
(...), certas reflexões acerca da psicologia e do sistema nervoso, e uma nova
teoria conjetural do método científico (Wiener, 1984, p.15).
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que descreve como “estudo de um sistema elétrico-mecânico que fosse desenhado
para usurpar uma função especificamente humana”: a “execução de um complicado
padrão de cálculo” em um caso e a “previsão do futuro”, no outro. A “previsão do
futuro” a que Wiener se refere, neste caso específico, é a capacidade de se prever a
|
1948, p.13).
Durante as pesquisas com mecanismos controlados por feedback, Wiener
notou que eles podiam apresentar uma oscilação anômala e crescente, capaz de
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as pernas ou ter distúrbios de coordenação nos quais seus movimentos voluntários
não passam de movimentos erráticos que “resultam apenas em uma oscilação
violenta e fútil”. As pesquisas em pacientes com ataxia demonstravam que bons
músculos não eram suficientes para uma ação efetiva e precisa: as informações de
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quando a cibernética sequer havia sido batizada, que a antropologia mantém seu
vínculo teórico com ela: além dos pesquisadores ligados à medicina, estiveram
presentes naquele encontro os antropólogos Gregory Bateson e Margaret Mead. A
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máquinas e sociedades. Mas, de qualquer forma, praticamente todas elas foram
influenciadas, diretamente ou indiretamente, pelo “projeto cibernético” aspirado por
Wiener e que reverberou por todo mundo científico e tecnológico da segunda metade
do século XX a partir dos participantes das Macy Conferences.
|
desempenho humano total”. Segundo Moravec, Kasparov, que vangloriava-se de “ver
a mente do oponente durante o jogo”, teria dito sentir no Deep Blue uma “inteligência
alienígena”. Assim, o autor acredita que “um computador parece ter não apenas
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em diversos trabalhos. Rapport e Overing (2000, p.102-115) notam que, influenciado
pela descoberta apresentada por Wiener de que “o conceito social-científico de
‘informação’ e que o conceito natural-científico de ‘entropia negativa’ eram de fato
sinônimos”, Bateson desenvolveu teorias onde as relações sociais poderiam ser
|
alguma parte, mas no sistema como um todo”. Assim, não é apenas o caso de
descartar a transcendência da mente em relação ao corpo, mas também de alterar o
termo – sistema e não mais corpo – em relação ao qual a mente é imanente pois
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princípios que levam a um processo contínuo de realimentação e influências
recíprocas e condicionadas:
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Ao lado de Bateson, ainda podemos citar Lévi-Strauss como o outro
antropólogo que atentou, ainda em tempos pioneiros, para a importância da
Num livro [Cybernetics, or control and Communication in the Animal and the
Machine (Wiener, 1948)] cuja importância não poderia ser subestimada, do
ponto de vista do futuro das ciências sociais, Wiener se interroga sobre a
extensão, à estas últimas, dos métodos matemáticos de predição que tornaram
possível a construção de grande máquinas de calcular (...) (Lévi-Strauss, s.d.,
p.71).
Modelos (tais como os jogos) são construções teóricas que supõem uma
definição precisa, exaustiva e não demasiado complicada: devem ser também
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parecidos com a realidade sob todas as relações que importam à pesquisa em
curso. Para recapitular: a definição deve ser precisa e exaustiva, para possibilitar
um tratamento matemático. (...) A semelhança com a realidade é requerida para
que o funcionamento do modelo seja significativo (...). (Von Neumann;
|
implícita na noção estruturalista de sociedade de Lévi-Strauss – vista como um
sistema de comunicação baseado na troca de mensagens culturais de tipo binário – e
que seu trabalho relacionado com as combinações e recombinações de unidades de
(...) a razão por que se escolheu a raia é que ela é um animal que, considerando
de um ou outro ponto de vista, é capaz de responder – empregando a linguagem
da cibernética – em termos de ‘sim’ ou ‘não’. É capaz de dois estados que são
descontínuos, um positivo e outro negativo. A função que a raia desempenha no
mito é – ainda que, evidentemente, eu não queira levar as semelhanças
demasiado longe – parecida com a dos elementos que se introduzem nos
computadores modernos e que se podem utilizar para resolver grandes
problemas adicionando uma série de respostas de ‘sim’ e ‘não’. (...) Esta é a
originalidade do pensamento mitológico – desempenhar o papel do pensamento
conceptual: um animal susceptível de ser usado como, diria eu, um operador
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binário, pode ter, dum ponto de vista lógico, uma relação com um problema que
também é um problema binário. (...) Dum ponto de vista científico, a história
não é verdadeira, mas nós somente pudemos entender esta propriedade do mito
num tempo em que a cibernética e os computadores apareceram no mundo
|
(...) quase ninguém, hoje, se auto-intitula um “ciberneticista”. Alguns acreditam
que o projeto de Wiener tornou-se vítima da moda científica, com seus fundos
sugados por pomposas mas ao final irrelevantes pesquisas de inteligência
Mas se, por um lado, a cibernética não obteve muito êxito como uma ciência,
ela influenciou de forma determinante a cultura moderna com resíduos de seus
modelos explicativos, engendrando, junto com outros resíduos que são
incessantemente produzidos pela tecnologia e ciência, o que poderíamos chamar de
“cibercultura”. Tais resíduos são certas noções e valores oriundos do discurso técnico
e científico que, deslocados para o plano do senso comum, introduzem novas
distinções nos antigos esquemas interpretativos para que eles possam fazer frente às
propriedades de um mundo, conforme observa Escobar (2000, p.62), no qual as
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fronteiras entre os domínios do orgânico, do tecno-econômico e do textual tornaram-
se permeáveis:
|
genético). Os produtos – reais e imaginários – de tais tecnologias podem contradizer
certas noções de classificação fundamentais tais como a oposição entre natureza e
cultura, entre orgânico e inorgânico, entre o homem e a máquina, dentre outras.
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podemos enfrentar deliberadamente a anomalia e tentar criar uma nova ordem do
real onde a anomalia se possa inserir” (Douglas, 1991, p.53-54).
O fato é que o universo não é um agregado de “objetos em si”, mas um
repertório organizado de objetos significantes que portam significados socialmente
|
um consenso social. O mesmo ocorre com ciberespaço (“cybernetics space”) ou
ciborgue (“cybernetics organism”). São exemplos onde os termos que sintetizam o
discurso técnico-científico (“E” de electronic ou “Cyber” de cybernetics) adquirem
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provenientes de organismos ou máquinas. O futuro cibernético implica em uma nova
ordem do real, porque, enfim, ao contrário do que ratificam os tabus dos mitos e das
religiões, a intercambiabilidade entre as categorias culturais é apenas uma questão
de compatibilidade funcional.
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categoria do corpo humano e contamina o mundo da vida com o perigoso mundo dos
mortos.
Como o local mais imediato de ligação entre o social e o biológico no homem
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Contudo, desde os anos 1980, produtos “high-tech” têm tornado corriqueiras
as entidades derivadas da fusão de termos provenientes de domínios classificatórios
incompatíveis (texto, máquina, animal, vegetal, corpo). Além disso, a partir da mesma
época, popularizou-se um tipo de ficção científica que ficou conhecida como
|
humano é um amálgama, uma coleção de componentes heterogêneos, uma entidade
material-informacional cujas fronteiras permanecem em contínua construção e
reconstrução”; Haraway (2000, p.313) nos lembra que “não há separação
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Shelley, as questões morais e o medo transbordam a partir no momento em que as
míticas fronteiras que separam Deus do homem e os vivos dos mortos são
transgredidas. Já a cibercultura é marcada por um discurso científico que nega a
existência de tais fronteiras, escamoteando os medos e temores a elas relacionadas.
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Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética
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II.2. O ciberespaço: do abstrato ao sensível
Quais são as traduções possíveis de uma realidade abstrata que se expressa
antes por códigos alfanuméricos do que por imagens gráficas? Como se dá sentido
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O espaço entre os telefones. O lugar indefinido fora daqui, onde dois de vocês,
dois seres humanos, realmente se encontram e se comunicam.
Porque as pessoas vivem nele agora. Não apenas um punhado de pessoas (...)
mas milhares de pessoas, pessoas tipicamente normais. (...) Ciberespaço é hoje
uma ‘Rede’, uma ‘Matriz’, internacional no escopo e crescendo rapidamente e
constantemente.10
9
Argumento utilizado no filme The Matrix (1999).
10
No original:
(…) the territory in question, the electronic frontier, is about 130 years old. Cyberspace is the ‘place’
where a telephone conversation appears to occur. Not inside your actual phone, the plastic device on
your desk. (…)The place between the phones. The indefinite place out there, where two of you, two
human beings, actually meet and communicate.
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A preocupação de Sterling com o estatuto de “realidade” tem a ver com a
natureza “virtual” do ciberespaço, apreendido, em muitos casos do senso comum,
como uma oposição à natureza “real” da “realidade”. Entretanto, o reconhecimento de
que a “realidade” é “uma qualidade pertencente a fenômenos que reconhecemos
|
século XIX e o computador eletrônico ter surgido na década de 1940, o ciberespaço
foi, até o início da década de 1970, uma abstração lógica e matemática compartilhada
apenas por especialistas e técnicos. Durante muito tempo, foi o texto, na forma de
Although it is not exactly “real”, “cyberspace” is a genuine place. Things happen there that have very
genuine consequences (…).
(…) This dark electric netherworld has become a vast flowering electronic landscape. Since the 1960s,
the world of the telephone has crossbred itself with computers and television, and (…) it has a strange
kind of physicality now. It makes good sense today to talk of cyberspace as a place all its own.
Because people live it now. Not just a few people, not just a few technicians and eccentrics, but
thousands of people, quite normal people. (…) Cyberspace today is a ‘Net’, a ‘Matrix’, international in
scope and growing swiftly and steadily.
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são apenas cadeias binárias. O que trafega pelo cabo da impressora, pela linha
telefônica ligada ao modem ou pelo cabo da rede são bits. A própria indexação das
cadeias corretas que compõem um arquivo ou um programa estão em outras cadeias
binárias. Entretanto, um bit por si só não possui significado nenhum. Grosso modo, é
|
quem também é creditada a invenção da caixa registradora. Já o primeiro suporte a
dar persistência ao dado surgiu com a invenção de Joseph-Marie Jacquard que
automatizou a indústria têxtil. O tear de Jacquard utilizava cartões perfurados com a
11
Existe uma correspondência direta entre as bases binária, decimal e hexadecial de numeração. O
número decimal “10”, por exemplo, corresponde ao número hexadecimal “A” (não confundir com a letra
“A”) e ao número binário 1010, conforme a seguinte tabela:
Decimal 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15
Binário 0000 0001 0010 0011 0100 0101 0110 0111 1000 1001 1010 1011 1100 1101 1110 1111
Hexa- 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 A B C D E F
decimal
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regulado de entrada e saída de informações se dá pela cadeia de dispositivos que
compõe, não apenas o computador e suas partes internas, mas também os
dispositivos externos a ele. A comunicação entre os dispositivos é realizada pelas
genericamente chamadas “interfaces”, camadas responsáveis pela saída e entrada
|
impressora, uma máquina qualquer, outro computador, etc. Do ponto de vista
cibernético, esses circuitos podem ser considerados um sistema único.
Alguns dos primeiros computadores modernos sequer possuíam interfaces
12
Contudo, o ENIAC não é o primeiro computador digital. Em 1839, Charles Babbage, desenhou e
desenvolveu o que é considerado o primeiro computador digital. A sua “máquina diferencial” era um
computador mecânico projetado para solucionar problemas matemáticos, incluindo equações
diferenciais. Apesar da máquina não ter sido construída, o seu trabalho incorporou vários princípios da
computação que foram redescobertos quase um século depois. (Winegrad; Atsushi, 1996)
13
O Colossus desenvolvido em 1942 pela Inteligência Britânica, por exemplo, foi especificamente
desenhado para decodificar as mensagens criptografadas pela máquina alemã Enigma, durante a II
Grande Guerra.
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semicondutores que possibilitaram o transistor e o chip), ocupava uma área de 180
m2, consumia quase 200 KW de eletricidade e todo o conjunto pesava cerca de 8
toneladas. Mas apesar de todo esse tamanho, o ENIAC não possuía teclado: a
“interface” entre a máquina e o ser humano consistia de fios e botões para a
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Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética
Figura 1
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meio de luzes (fig. 4). O Altair nem era mesmo entregue pronto, mas era um “kit”
eletrônico para “hobbistas”, composto de peças e componentes soltos que eram
soldados e montados pelo próprio usuário, de acordo com um diagrama eletrônico.
Era evidentemente um produto destinado não só para quem entendia de eletrônica
|
vendido montado14 e a fornecer conexão para um monitor e um teclado. Diz o folclore
que o Apple I era apenas um passatempo feito por Wozniak para mostrar aos amigos
do clube e que Jobs transformou em produto. Mas, seja proposital ou não, o Apple I
14
Montado não tinha o mesmo significado que o de hoje. Mas significava que o “kit” de componentes
eletrônicos já vinha soldado na placa, ao contrário do concorrente Altair que era vendido apenas na
opção de kit desmontado.
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lo. Até então, o uso restritivo dos PCs contrastava com o outro uso dos computadores
que já encontrava ampla disseminação social: os videogames.
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se resumia a botões e luzes.
Figura 3
Figura 5 Figura 6
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dos jogos”, que tinham a ver com o desenvolvimento da inteligência artificial – o
videogame era uma mera curiosidade. Isso não impediu, contudo, que algumas
tentativas fossem realizadas. William Higinbotham do Brookhaven National
Laboratory (BNL), um laboratório de pesquisa nuclear em Upton - NY, montou uma
|
base para muitos videogames dos anos 70.
Figura 7
Figura 10
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Assim como os microcomputadores, os videogames saíram do ambiente de
pesquisa também na década de 1970, mas ao contrário daqueles – que levaram anos
procurando o mercado que definiria o formato do personal-computer – os videogames
criaram imediatamente sua demanda no campo do entretenimento. Eles
Você tinha que ler as instruções antes de poder jogar, as pessoas não querem ler
instruções. Para ter sucesso, eu tinha que fazer um jogo que as pessoas já
soubessem jogar; algo tão simples que qualquer bêbado em um bar possa jogar
(Winter, 2005).
|
primeiro arcade de sucesso, com 38.000 unidades produzidas. O Pong era
basicamente uma simulação de um jogo de pingue-pongue na qual as raquetes eram
pequenas barras controladas pelos jogadores e a bola um pequeno quadrado que
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Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP |
Figura 11
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Figura 13
Figura 14
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O mercado de videogames cresceu rapidamente: novas gerações e inúmeros
consoles domésticos surgiram e, depois do Pong, novos arcades foram inventados às
centenas e as casas de diversões eletrônicas espalharam-se pelas cidades do
mundo. As rudimentares representações do “ciberespaço” de jogos como o Pong
|
friendly interface”, mais de uma década antes de surgir o primeiro personal-computer
com interface gráfica. Seja em consoles ligados a aparelhos de TVs, em engenhocas
de fliperamas ou em pequenas versões de bolso, os videogames se apropriaram
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mouses industrializados. No projeto original, a captura do movimento era realizada
por duas rodas posicionadas perpendicularmente sobre um plano, que repassavam
ao computador as coordenadas relativas do deslocamento do dispositivo. Esse
conceito é utilizado até hoje nos mouses de esfera, que possuem duas rodas internas
|
porque 1984 não será como ‘1984’”, dizia a propaganda, em referência ao livro de
George Orwell (e o Big Brother era a metáfora, é claro, do maior concorrente da
Apple na época, a IBM). Com o Macintosh, caro mas acessível, e o lançamento
41
Figura 19
Figura 21
Figura 16
Figura 15
Figura 17
Figura 23
Figura 22
Figura 20
Figura 18
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Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Julho de 2005
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O ambiente gráfico rompeu a cadeia textual que ia do bit ao nosso cérebro.
Enquanto abstração, o ciberespaço é apenas a metáfora de fatos físicos e
matemáticos. Mas na forma de realidades visuais e (sonoras) sintéticas, o
ciberespaço ganha uma dimensão sensorial que é inacessível por meio do texto.
|
“desktop virtual” no mercado de consumo, William Gibson anunciou o ciberespaço
como um espaço lisérgico que exacerba a dimensão sensorial do virtual:
15
“Ciberespaço. Uma alucinação consensual vivida diariamente por bilhões (...)... Uma representação
gráfica dos dados abstraídos dos bancos de dados de cada computador no sistema humano.
Complexidade inimaginável. Linhas de luz enfileiradas no não-espaço da mente, agregados e
constelações de dados. Como cidades de luz, retrocedendo...”
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vez criada e até ela ser modificada ou eliminada, uma mensagem textual pode
trafegar ao longo da cadeia de interfaces de um sistema sob várias notações sem que
ela perca qualquer fragmento do seu conteúdo. E mesmo quando a questão é traduzir
um mnemônico digitado pelo usuário para a execução de uma função do computador,
|
profissionais de software, de que a “imagem” é apenas um “texto” mais sofisticado. A
simples agregação de uma “casca gráfica” geralmente mutila o aplicativo original e
compromete a intuitividade que um ambiente gráfico deve ter.
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nova relação entre imagem e linguagem” e “pela primeira vez, formalismos abstratos
podem produzir, diretamente, imagens”. Essas imagens não são simplesmente a
reproduções de algo que já existe, “cópias” de outras realidades, mas produtos
sintéticos construídos pela manipulação numérica do átomo da imagem eletrônica: o
|
Se alguma coisa preexiste ao pixel e à imagem é o programa, isto é, linguagem e
números, e não mais o real. Eis porque a imagem numérica não representa mais
o mundo real, ela o simula.
16
An image is a sight which has been recreated or reproduced. It is an appearance, or a set of
appearances, which has been detached from the place and time in which it first made its appearance
and preserved – for a few moments or a few centuries. Every image embodies a way of seeing (Berger,
1971, p.09-10).
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conhecidos e com os quais supostamente compartilham características. Os
infogramas são signos que funcionam como parte de um sistema de metáforas
lingüísticas e visuais que “buscam compensar os limites dos sistemas de
representação (...) propondo analogias entre o contexto normal de uma palavra ou
|
seta e de uma bola não possuir cantos. São como aquilo que Taussig chamou de
“ideogramas pobremente executados” (“poorly executed ideogram”), síntese de traços
daquilo que mimetizam mas também objeto de projeção de expectativas e
17
“How much of a copy does the copy have to be to have an effect on what it is a copy of? How ‘real’
does the copy have to be?”
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diretórios mas que arquivos jamais contenham diretórios, da mesma forma que
pastas podem conter pastas mas documentos jamais contêm pastas.
Assim, em uma lógica semelhante à popularizada anteriormente pelo
videogame, a imagem, ou melhor, os sistemas de imagens articulados por modelos
|
descontinuidade entre aquilo que vemos e aquilo que realmente está por trás da
simulação. A realidade virtual opera em dois sentidos, um que cria mundos sensoriais
da informação digital e outro que trabalha ocultando a estrutura tecnológica e material
18
“...like the surgeon’s hand cutting into and entering the body of reality to palpate the palpitating
masses encloses therein.”
19
“Once the mimetic has sprung into being, a terrifically ambiguous power is established; there is born
the power to represent the world, yet that same power is a power to falsify, mask and pose. The two
powers are inseparable”. (Taussig, 1993: 42-43).
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necessária uma reconstrução seletiva no domínio cotidiano (onde existem pastinhas
amarelas e se conta até dez) das realidades provenientes do domínio tecnológico
(onde o amarelo da pastinha é um número hexadecimal de valor “FDE985” e o
número “dez” é um byte de valor “00001010”). A interface gráfica naturaliza o
|
nosso desktop, tornou-se rapidamente o meio predominante – para o senso comum,
o único – de interação entre o usuário e a Internet.
A contrapartida da naturalização do ciberespaço é que nos tornamos,
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força da tecnologia” (Stelarc, s.d.). Tomando a distinção que Berger e Luckmann
(1998) fizeram sobre “ter um corpo” e “ser um corpo” 20, Stelarc afirma:
|
Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética
20
“Por um lado, o homem é um corpo, no sentido em que isto pode ser dito de qualquer outro
organismo animal. Por outro lado, o homem tem um corpo. Isto é, o homem experimenta-se a si
próprio como uma entidade que não é idêntica a seu corpo, mas que, pelo contrário, tem esse corpo ao
seu dispor” (Berger e Luckmann, 1998, p.74).
49
Julho de 2005
II.3. O corpo na era do pós orgânico
A ausência do corpo nas relações ciberespaciais é um dos sinais
contemporâneos mais visíveis de uma sociedade na qual a presença da pessoa está
(...) fato vivido em seu nível por milhões de ocidentais que perderam sua relação
de evidência com um corpo que só utilizam parcialmente. No limite, esse sonho
de uma humanidade livre do corpo é lógica nesse contexto em que o veículo é
rei e o ambiente é excessivamente tecnicizado, e no qual o corpo não é mais o
centro irradiante da existência, mas um elemento negligenciável da presença (Le
|
Breton, 2003, p.20-21).
50
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refere-se a uma passagem onde o arquiteto romano Marcus Vitruvius descreveu as
proporções do corpo humano a partir da largura dos dedos. Inscrito dentro de um
quadrado e de uma circunferência cujo centro é o umbigo, o Homem Vitruviano
celebra o corpo humano como um ideal matemático. Apesar de ser uma espécie de
|
Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética
Figura 24 Figura 25
51
Julho de 2005
necessário, em vistas ortogonais – o verso e o reverso dos ossos da mão (fig. 31) ou
da mandíbula (fig. 30) – exatamente como são tratadas as representações das peças
de uma máquina. Vesálio instituiu a visão na qual o corpo nada mais é do que a
articulação de mecanismos e peças elementares.
Figura 30
52
Julho de 2005
Ao realizar um tipo de “engenharia reversa” do corpo, os desenhos de Vesálio
também fundam uma separação radical onde o corpo se desconecta da morte que,
de fato, está ligada aos cadáveres que servem de modelos. Ao realizar essa
desconexão, o corpo-artefato de Vesálio também se desconecta da pessoa, esta sim
|
artesão poderia reproduzir tais “peças”, desde que com os recursos técnicos
necessário e um bom “projeto” – do qual De humanis corporis fabrica seria um
escorço – em mãos.
53
Julho de 2005
homem é visto pelo próprio homem. Segundo Coli (2003, p.300), com o Iluminismo
torna-se dominante a visão científica na qual “as partes, organizadas e em função,
produzem o todo”, quebrando a unidade divina irredutível que era conferida ao
homem. Antes “seus pedaços não formavam elementos constituintes”. Acrescenta o
|
aparenta ao vivo” (Le Breton, 2003, p.182).
54
Julho de 2005
químicas e deixá-lo dedicado apenas às atividades relacionadas com a exploração
espacial. Propuseram o termo “cyborg” para o acoplamento de um organismo com
componentes exógenos capazes de auto-regular e estender as funções fisiológicas
do conjunto para novos ambientes.
|
de design” e sua especificidade está em um método que sistematiza a análise
biológica, a formalização matemática e a síntese da engenharia:
55
Julho de 2005
cibernética. Um organismo cibernético. Chame-o de ciborgue...”21 (Caidin,
1972, p. 55-56 apud Abbate, 1999)
|
outros ciborgues imaginários anunciam a imagem de um homem “melhorado” com a
acoplagem da tecnologia e cada vez mais além das limitações ditadas pela natureza.
O ciborgue, seja ele imaginário ou não, é produto do pensamento utilitarista aplicado
21
No original: “(...) to create out of the mutilated human wreck not only a new man but a wholly new
type of man. A new breed. A marriage of bionics (biology applied to electronic engineering systems)
and cybernetics. A cybernetics organism. Call him cyborg...“.
56
Julho de 2005
para o coração a fim de estimulá-lo a bater mais rapidamente. O primeiro marca-
passo foi apresentado em 1955. Desenvolvido por Paul Zoll, o PM-65 consistia de um
gerador de pulsos elétricos sobre o qual era montado um eletrocardiógrafo para a
monitoração do ritmo cardíaco. Apesar de manter o paciente vivo, o PM-5
|
centímetro de espessura e possuía autonomia de 12 a 18 meses (fig. 34).
57
Julho de 2005
para esse procedimento e, a partir dos anos 90, eles passaram a ser pequenos
computadores programados para reagir a diversas circunstâncias cardíacas. Marca-
passos que também monitoram e gravam o histórico da atividade cardíaca do
paciente tornar-se-ão comuns.
|
se até que repórteres tentavam entrar na UTI escondidos nos “cestos de roupa da
lavanderia, ou disfarçados de médicos” (Ditlea, 2002, p.36).
O Jarvik-7 era implantado na caixa torácica, porém permanecia ligado por
58
Julho de 2005
fabricado pela Abiomed, é uma máquina totalmente implantável. A idéia e a imagem
do AbioCor certamente são fascinantes. Confrontado ao seu equivalente orgânico
(Figs. 35 e 37), ele tem a vantagem de ser virtualmente inesgotável e independente
dos fatores de rejeição, orgânicos e simbólicos. Sem possuir tubos ou fios externos –
|
Em resposta às críticas acerca dos problemas que seus protótipos têm
apresentado, o fundador da Abiomed, David Lederman, afirmou que “o coração
artificial continuou funcionando em situações que poderiam ter lesado ou destruído
59
Julho de 2005
Extirpar completamente o coração não é uma boa idéia na prática (...). Em 1982
não se sabia que o coração pode melhorar muito se você o ajudar em certas
doenças comuns. É por isso que você só deve tirar o coração nas situações mais
extremas (Ditlea, 2002, p.43).
|
e aceitos pela sociedade como os primeiros ciborgues a materializarem o que era, há
uma década, apenas imaginação. À semelhança do que o Dr. Kirlian disse a respeito
de Steve Austin no romance Cyborg, uma reportagem sobre o assunto anunciava,
Tony Volpentest inspira admiração e, quem sabe, até despeito. Munido de duas
pernas mecânicas, o atleta americano, de 26 anos, faz 100 metros rasos em
impressionantes 11 segundos e 36 centésimos de segundo - apenas um segundo
e meio atrás do recordista mundial, o canadense Donovan Bailey, que nasceu
com tudo no lugar. Medalha de ouro nos Jogos Paraolímpicos de Atlanta, em
1996, Tony veio ao mundo sem os pés e sem as mãos (Dias, 1999, p. 136).
60
Figura 37
Figura 40
Figura 38
Figura 35
Figura 39
Figura 36
61
Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Julho de 2005
Julho de 2005
No ano anterior, em setembro de 1998, a revista Dazed and Confused trouxe
na capa a imagem que lembra a de uma sereia cujo rabo de peixe foi trocado por um
par de próteses de competição (fig. 39). Nua da cintura para cima e acoplada a
próteses de alto desempenho, mais do que as limitações reais impostas pela
|
impõe a todos os demais atributos “normais”, destruindo as possibilidades de
relacionamento simétrico e igual entre quem possui o estigma e quem não o possui
(cf. Goffman,1988, p.13-14). Além disso, poderíamos acrescentar, na medida em que
62
Julho de 2005
do para-atleta transcende a estigma do corpo incompleto, ao qual falta um pedaço,
justamente porque ele se conforma a uma outra noção de corpo, o corpo-máquina
melhorado pela tecnologia e, nesse sentido, algo sobre-humano ao qual não se aplica
a noção convencional de corpo. A existência do corpo mutilado, porém corrigido pela
|
orgulho” diz: “Jovem amputado exibe em público suas pernas e braço mecânicos e
torna-se exemplo de uma nova tendência”. Esse jovem é Cameron Clapp (fig. 41),
que perdeu, aos 15 anos, ambas as pernas e um dos braços ao dormir bêbado sobre
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Julho de 2005
necessariamente é o do corpo fornecido pela natureza – manifesta um discurso
estritamente ciberneticista e sustenta novas posturas frente ao próprio corpo objeto
da reconstrução. Essa nova postura liberou a tecnologia para saltos fantásticos que
se materializam em dispositivos biônicos de alto desempenho que assumem o design
|
É claro que próteses caríssimas, que podem chegar a US$ 40 mil cada
membro, determinam diferentes possibilidades para que é rico e para quem é pobre,
caso você não seja um para-atleta financiado pelas indústrias. Os para-atletas, além
64
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produto. Daí serem os para-atletas, e de modalidades específicas de deficiência, que
são exibidos e se exibem. Algumas modalidades de deficiência, mesmo que
assistidas pelas mais recentes tecnologias, não fornecem um espetáculo hi-tech e
estigmatizam duplamente seu portador: como mutilado e como protótipo mal
|
continuidade ao espetáculo onde as atuais vedetes são os para-atletas. É um
espetáculo cada vez mais exaltado pela mídia, mas que só adquiriu essa dimensão
atual porque as indústrias de próteses gastam fortunas patrocinando grandes equipes
65
Julho de 2005
Junior”, que aparece em um prospecto decorado com um par de alegres mascotes
dançando. Certamente, o “Total Knee” é uma prótese para ser exibida desde criança.
Para a criança há ainda uma “junior solution from Ossur” (fig. 46) que fornece uma
perna inteira para a criança amputada acima do joelho, com o “total knee” já incluso.
|
um aparador de grama – talvez pelo conjunto menor de situações onde uma mão
mecânica possa executar com naturalidade o que uma mão humana faz.
O concorrente da Hanger, anuncia seu joelho biônico, o Rheo Knee, como:
Ao lado, uma grande foto do Rheo Knee (fig. 49) sintetiza a poética do
fragmento do corpo, agora biônico. A máquina humaniza-se nos testemunhos
ilustrados que mostram Julie Greder (fig. 50) – “o Rheo Knee faz parecer que minha
perna anda por mim” – e Gil Moncrief (fig. 51) – “pela primeira vez na minha vida, eu
tenho uma tremenda sensação (...) de confiança no próprio joelho” – caminhando
com naturalidade.
66
Figura 41
Figura 44
Figura 45
Figura 43
Figura 42
67
Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Julho de 2005
Figura 49
Figura 46
Figura 50
Figura 48
Figura 47
Figura 51
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Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Julho de 2005
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Inserida na lógica do consumo, as propagandas de próteses high-techs
prometem restaurar uma naturalidade que nem sempre é real, mesmo em termos de
funcionalidade, e omitem as circunstâncias nas quais elas não são adequadas. O
quanto a mão mecânica que manuseia tão naturalmente o cortador de grama
|
ele pode ser disposto como um tipo de acessório, mesmo que a pessoa não possua
partes mecânicas.
O corpo ideal do “body building” – atlético, sexy e clean – tão em moda
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Julho de 2005
constrói seu corpo à maneira de um anatomista meticuloso preso apenas à
aparência subcutânea.
|
Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética
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III. O REALISMO ESPETACULAR
71
Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Julho de 2005
Julho de 2005
III.1. O contexto da sociedade de massas
Na sua análise da sociedade americana, Mills nota que a ascensão da
sociedade de massas, é concomitante com o declínio do que ele chamou de
|
com a exacerbação de um tipo em detrimento de outro. Para Mills, na “comunidade
de públicos” há uma proporção entre os grupos que formam opiniões e aqueles que
as recebem, enquanto a sociedade de massas é fundamentada na desproporção
23
“Em teoria, a sociedade consiste em um grupo humano que vive e habita lado a lado de modo
pacífico, como na comunidade, mas, ao contrário desta, seus componentes não estão ligados
organicamente, mas organicamente separados. Enquanto, na comunidade, os homens permanecem
essencialmente unidos, a despeito de tudo o que os separa, na sociedade eles estão essencialmente
separados, apesar de tudo o que os une” (Tönnies, 1995, p.252).
72
Julho de 2005
processo de trabalho mecanizado, para se pôr de novo em condições de enfrentá-lo”
(Adorno; Horkheimer, 1985, p.131).
Em certo sentido, a sociedade de massas possui especificidades culturais
que a diferenciam das “sociedades tradicionais”, em particular no que tange à
|
A indústria cultural não visa apenas a produção e o consumo das
mercadorias culturais mas também inculca – por meio delas – o consumo de produtos
reais e sua eficácia fundamenta-se, em grande parte, na identificação do sujeito com
73
Julho de 2005
vez mais embebidas do imaginário, como as necessidades de padrão social,
luxo, prestígio); o crescimento econômico caminha num sentido que teria
parecido incrível há um século atrás: realizar o imaginário. Ainda há mais: é a
própria vida, pelo menos a um certo nível médio entre dois limiares variáveis,
|
que, por exemplo, exista uma relação causal entre a evolução tecnológica das
câmeras de vídeo e a inovação dos programas de televisão. A tecnologia de
produção de câmeras de vídeo teve tal barateamento que elas deixaram de ser
74
Julho de 2005
A transformação de cada um de nós em um cameraman em potencial não
ocorre simplesmente porque temos acesso à câmera, mas porque o vídeo vernacular
surge no contexto de uma modernidade que há muito incorporou o culto à imagem. É
mero truísmo dizer que sem o desenvolvimento de câmeras de vídeo melhores,
|
vezes, uma máquina de vulgarização serial da imagem, usada compulsivamente
como meio de satisfazer a obsessiva necessidade de “não se perder nada”. Frente à
efemeridade da vida, a câmera de vídeo fornece a ilusão de que é possível capturar a
A cada ano, milhares de homens e mulheres levam suas câmeras de vídeo para
as férias. Conservam-na junto ao rosto e assim eles mesmos nada vêem. (...)
Deixar a câmera filmar significa não filmar mais. E ninguém vê esses pseudo-
filmes, nunca mais, nem mesmo os que os fizeram. Por uma razão: eles não têm
tempo de vê-los. E agora já é tarde para ver o mundo para o qual fecharam os
olhos, enquanto viajavam.
75
Julho de 2005
E foi a partir da produção maciça desses pseudo-filmes, sucedâneos da
experiência, que obteve-se a matéria prima dos programas televisivos baseados em
cenas “reais”, tão comuns hoje em dia. Sem dúvida, isso influenciou o formato e a
linguagem da própria televisão, sendo a obra mais acabada dessa estética do “real”
|
“simplificação, maniqueização, atualização, modernização” para “para aclimatar as
obras de ‘alta cultura’ na cultura de massa”. Essa “aclimatação” se refere às
alterações que retiram “excessos” e introduzem “temas específicos da cultura de
76
Julho de 2005
não sabemos se se destinam para “crianças com caracteres pré-adultos” ou “adultos
acriançados” (Morin, 1962, p.41) – capazes de atrair audiências de 8 a 80 anos.
Homogeneizar não significa simplesmente eliminar a diversidade, significa,
muitas vezes, incorporá-la e, por vezes transformá-la em uma falsa variedade. Para
|
as “intrigas romanescas que têm as aparências da realidade”.
Ainda que surgido em espaços sociais marginais, as apropriações culturais
da cibernética tornaram-se centrais na cultura de massas contemporânea,
24
Como observa Carrière (1995, p.160) acerca da necessidade de tornar a realidade prosaica mais
interessante em um roteiro: “a realidade não é suficiente. O imaginário precisa introduzir-se na
realidade, desfigurá-la, intensificá-la”.
77
Julho de 2005
tanta visibilidade com o advento da Internet que parece até que surgiu com ela. Muito
do que era trivial tornou-se espetacular aos olhos do mercado do fato: cibercrimes,
comunidades virtuais, guerra cibernética, comércio eletrônico, pirataria cibernética. O
apelo cibernético é tão tentador que, se houver algum computador por perto do crime
|
queda do frame rate em transmissões via Internet) e mal-sincronizadas com o áudio –
mas que as imagens sejam produzidas e trafeguem pela “information highway”. O que
consumimos é uma espécie de “reality show” que nos dá a certeza de que se uma
78
Julho de 2005
O raciocínio de agregar compulsivamente “melhorias”, “diferenciais” e
“exclusividades” a produtos já existentes a um custo mínimo, tornando mais rentável
e mais atraente um mesmo produto, é levado a limites, que outrora pareciam
absurdos, com as tecnologias cibernéticas. Se, na década de 60, a idéia de gadgets
|
Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular
Figura 52 Figura 53
79
Julho de 2005
de uma variedade crescente de funções – nem sempre compatíveis – baseadas em
software, freqüentemente comprometendo a utilidade original com o acúmulo de cada
vez mais funções diferentes em um conjunto muito menos flexível de teclas e botões
físicos. Nicholas Negroponte (2000, p.94), um dos fundadores do Media Lab do
Os telefones celulares têm uma interface que consegue ser ainda pior que a dos
videocassetes. Um Bang & Olufsen [uma marca de produtos eletrônicos] é uma
escultura, não um aparelho telefônico – não é mais fácil, mas mais difícil de usar
do que aqueles antigos telefones pretos.
|
utilização praticamente impossível.
80
Julho de 2005
III.2. A vida moderna e o olhar cinematográfico
|
entretenimento que o antecede, baseada na “reprodução mecânica, mobilidade de
produtos, consumidores e nacionalidades”. Nessa perspectiva, segundo os autores,
“a cultura da modernidade tornou inevitável algo como o cinema, uma vez que as
81
Julho de 2005
reflete as “ansiedades de uma sociedade que não havia se adaptado por completo à
modernidade urbana” na sua preocupação com os riscos cotidianos, retratados de
forma intensa e sensacionalista (Singer, 2001, p.133). O cinema surgiu em meio a
essa “estética do espanto” onde predominava a excitação e tornou-se, em alguns
|
observa Sandberg (2001, p.443) havia todo um contexto econômico, tecnológico e
cultural que ampliou as possibilidades de “uma clientela ávida por cultura visual” e
“em combinações diversas, os espectadores de cinema também freqüentavam outras
82
Julho de 2005
siècle onde se praticou um tipo de “flânerie para as massas” intimamente relacionada
com o olhar que irá definir o espectador cinematográfico: os necrotérios de Paris, os
museus de cera e os panoramas. São locais identificados com o espetáculo, onde a
“vida real era vivenciada como um show mas ao mesmo tempo, os shows tornavam-
|
cópias – cenários e adereços – tinham em relação aos originais:
83
Julho de 2005
massas de espectadores das mais diversas origens sociais: “camponeses,
25
trabalhadores (...), homens e mulheres da burguesia, comerciantes e diplomatas” .
Contudo, a despeito do requinte e da sofisticação dos simulacros apreciados por
todos, sem distinção social, seu sucesso “estava no olho e na mente do espectador; o
|
observa Benjamim (1986, p.169), “o modo pelo qual se organiza a percepção
humana, o meio em que ela se dá, não é apenas condicionado naturalmente, mas
também historicamente”. Sorlin (1985, p.157) também atenta para a importância da
84
Julho de 2005
tradição oral. Ele ficava ao “lado da tela, durante todo o filme” explicando aos demais
o que acontecia naquela “sucessão de imagens silenciosas” que eram o oposto
daquilo que estavam acostumados. A figura do “explicador” ainda era encontrada na
África da década de 1950. Em relação às especificidades sociais e históricas que
|
consolidaram-se no fin de siècle, o olhar realista do cinema tem suas raízes na
renascença, mais especificamente na definição de um tipo de perspectiva como a
representação da realidade visual por excelência. A perspectiva pode ser definida
85
Julho de 2005
Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP |
Figura 54 - “A Última Ceia” de Giovanni
Canavesio (Santuário de Notre-Dame des Figura 55 - “A Última Ceia” de Leonardo da Vinci (Convento
Fontaines, La Brigue), de 1492. de Santa Maria delle Grazie, Milão), de 1498.
PF1 PF2
|
Figura 56 Figura 57
Figura 58
86
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Com efeito, duas representações da última ceia de Cristo, uma de Giovanni
Canavesio (fig. 54) e a outra de Leonardo da Vinci (fig. 55), realizadas quase que na
mesma época, mas segundo distintas normas estéticas de representação do espaço
tridimensional, nos impressionam de formas diferentes. É importante observar,
|
ser relativamente menores de acordo com sua posição no sentido da profundidade.
Daí a impressão “chapada” que a cena nos provoca. Além disso, há mesmo uma
aparente aleatoriedade na proporção de tamanho entre os apóstolos e destes com
87
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perspectiva paralela por exemplo, o observador não existe no desenho e o tamanho
relativo dos objetos representados independem dele, tal como ocorre com a pintura
de Canavesio. Isso implica que, por exemplo, ao representarmos um conjunto de
cubos cujas arestas estejam paralelas ao triedro altura X largura X profundidade, não
|
A familiaridade ou estranhamento em relação à tridimensionalidade na obra
de Canavesio ou de da Vinci não é meramente uma questão técnica, mas também de
condicionamento do olhar. Não encontramos em Canavesio a reconstrução
26
A linha do horizonte está sempre posicionada no nível dos olhos do observador e é onde o céu se
encontraria com a terra, em um terreno completamente plano. O ponto de fuga é um ponto localizado
na linha do horizonte para o qual convergem a linhas paralelas ao eixo da profundidade.
27
Um tipo de perspectiva paralela onde os eixos de largura, profundidade e altura possuem um ângulo
de 60º entre elas.
88
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olho colocado diante dela”, a representação fílmica também “supõe um sujeito que a
vê, a cujo olho se assinala um lugar privilegiado”.
Na Renascença, vários dispositivos foram utilizados para automatizar a
perspectivação ou projetar a perspectiva de objetos reais. Dentre eles estava a
|
despedidos pelo técnico”.
Com o advento da fotografia, a subjetividade do pintor deu lugar à
objetividade das lentes da câmera fotográfica. “Quer o pintor queira, quer não, a
89
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perfeita da realidade’” (Dubois, 2003, p.27). Isso explica-se, em parte porque a
fotografia, ao eliminar a intermediação humana da gênese da imagem, passa a ser
percebida, ela própria, como um pedaço da realidade que representa. Como nota
Barthes (1990, p.12-15), a fotografia opera uma redução do objeto – em termos de
|
(Dubois, 2003, p.35). Aqui a foto é índice antes de ser ícone: “por sua gênese
automática, a fotografia testemunha irredutivelmente a existência do referente”.
Acrescenta o autor que o realismo da fotografia deve mais ao seu caráter indicial do
28
Isso também pode ser constatado nos registros fotográficos não convencionais – como, por
exemplo, a fotografia realizada por meio de lentes macro, microscópios, telescópios e vistas aéreas, ou
mesmo aquelas realizadas com o uso de filmes sensíveis às partes do espectro invisíveis ao ser
humano (UV e infra-vermelho) ou raios-X que são prontamente aceitos como evidências de uma
realidade, a despeito das diferenças, às vezes absoluta, em relação ao real que apreendemos com os
nossos olhos. Nestes casos imputamos ao real uma verdade que só pode ser apreendida na sua
reprodução.
90
Julho de 2005
mundo que ela registra. Mas, acerca do quê as fotografias nos comunicam a
verdade? Becker (1978, p.9-13) lembra-nos que, devido ao caráter polissêmico da
fotografia, a sua “verdade” está condicionada às inumeráveis questões que podemos
formular acerca da realidade evidenciada por ela. A verdade dita pela fotografia – que
|
monte Surubachi em 1945, mas era sem dúvida muito mais espetacular do que
aquela tirada pelo fotógrafo da Marinha Americana, Lou Lowery, que acompanhou o
grupo que hasteou a primeira bandeira (fig. 60). Contudo, foi o grupo registrado por
91
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da foto de Rosenthal que sobreviveram a Iwo Jima, tornaram-se garotos-propaganda
e foram envolvidos – aparentemente à contra-gosto – em uma enorme campanha de
arrecadação de dinheiro para a guerra. Tornaram-se, eles próprios, cópias vivas da
fotografia, ícones em carne e osso, não sem impactos, alguns trágicos, na vida
|
Figura 59 Figura 60
Figura 61
Contudo, no dia-a-dia, assumimos a priori que as fotografias são traços da
realidade. Exacerbamos tanto o aspecto objetivo da fotografia que freqüentemente o
29
A história mais famosa é a do soldado indígena Ira Hayes retratado no filme “The Outsider” de 1961.
Ele tornou-se alcoólatra e morreu em 1954.
92
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fotógrafo não passa de um ser anônimo, extensão da máquina que fotografou. Ao
abstrairmos o fotógrafo, esquecemo-nos também que a fotografia não é, no fim das
contas, tão objetiva assim. Ela é, no mínimo, uma seleção da realidade e produto de
um recorte que define o que é deixado ou não no quadro. Ao contrário do que supõe
|
referência espacial – a perspectiva monocular – como se vale de uma característica
desse mesmo olho, a persistência retiniana, para conferir a ilusão de movimento à
ilusão de profundidade do analogon fotográfico. É inegável que o movimento da
30
Alguns crêem que o maior problema da foto de Rosenthal é que ela é “muito perfeita”, não há o que
“pôr ou tirar” para deixá-la melhor. Essa perfeição é a base da freqüente acusação, nunca provada, de
que a foto seria uma fraude, uma encenação produzida por Rosenthal (cf. Landsberg, 1995).
93
Julho de 2005
como pelo campo que é revelado pelo quadro. Esse é o que chamamos de “espaço
diegético” 31 do filme:
(...) o espaço diegético é inseparável dos personagens que evolucionam nele (...).
O espaço fílmico é um espaço vivo, figurativo, tridimensional, dotado tanto de
|
real que deriva de sua condição analógica: “se as propriedades alternativas [do
mundo narrativo] não são especificadas, aceitamos como ponto pacífico as
propriedades que valem no mundo real”32.
31
Originalmente, em Platão, a diegese e mimese são as duas formas de se colocar uma narrativa. Na
diegese o autor conta a história e na mimese a história é representada. Assim, neste sentido, uma
peça é uma mimese e um poema é uma diegese. Contudo, “diegese” é também utilizada para se referir
ao mundo criado por uma narrativa de qualquer tipo e inclui não só aquilo que está descrito – espaço,
personagens, objetos, etc. – mas também aquilo que a narrativa pressupõe, como eventos passados e
futuros, por exemplo. A diegese fílmica está relacionado a este segundo sentido da diegese.
32
“(...) se é verdadeiro que John mora em Paris, também é verdadeiro que John vive na capital da
França, que vive ao norte de Milão e ao sul de Estocolmo, e que vive numa cidade cujo primeiro bispo
foi São Diniz” (Eco, p.172).
94
Julho de 2005
par” (Eco, 2000, p. 174) – tendem a tornar a diegese ininteligível. Isso não impede,
contudo, que mundos inconcebíveis sejam citados e mesmo que sejam possíveis
apesar de estarem além da nossa capacidade de compreensão.
Mesmo sendo um produto mediado pelo imaginário, o cinema estende para si
|
impede, contudo, que a experiência cinematográfica seja mais intensa do que a
experiência de comer pipocas.
Com exceção dos desenhos animados e filmes abstratos ou “experimentais”,
Foi o próprio Méliès, mágico do irreal, que estabeleceu sem equívocos a regra
de ouro da verdade das coisas: ‘Tudo é necessário para dar uma aparência de
verdade a coisas inteiramente fictícias (...) Em questões materiais, deve o
cinematógrafo fazer melhor que o cinema e não aceitar o convencional’.
Enquanto o teatro pode (...) satisfazer-se com panos de fundo e sinais
33
Vale lembrar que o espaço da diegese fílmica vai além do que surge no quadro.
95
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convencionais, o cinema necessita de objetos e dum meio ambiente
aparentemente autênticos. A sua exigência de exatidão corporal é uma exigência
fundamental. Se bem que um filme admita uma voz post-sincronizada, uma
intriga extravagante, uma orquestra no fundo duma mina e um rosto de vedeta
|
É certo que tanto no cinema como no teatro, o plano da diegese não é o
mesmo que o da realidade. Mas, enquanto o palco não faz o menor segredo de sua
irrealidade, e complementamos aquilo que não vemos com a nossa própria
Se, em certo trecho do Mahabharata, um ator inspirado nos diz: “Eu vejo nossos
elefantes na planície, de suas trombas decepadas jorra o sangue”, nenhum
espectador se volta para ver os elefantes no fundo da platéia. Ele os vê, se tudo
correr bem, em algum lugar dentro de si. Eles aparecem independentemente de
qualquer contexto realista (...).
Este tipo de processo seria totalmente inaceitável no cinema. O cinema tem que
mostrar os elefantes. Não existe escolha: é parte do contrato que cada espectador
faz ao pagar pelo ingresso. (Carriére, p. 78)
96
Julho de 2005
Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP |
Figura 62
Figura 65
|
imagem está em uma posição diferente do
“observador” da foto impressa no painel) acaba
Figura 63 anulando a perspectiva da paisagem urbana
impressa no painel.
34
“(...) foi em volta da irrealidade musical que primeiro o complexo de realidade e irrealidade se
formou. A vida real encontra-se, evidentemente, desprovida de eflúvios sinfônicos. E todavia a música,
acompanhante já do filme mudo, vai-se integrar na banda sonora. Esta exigência de musicalidade vem
situar-se no pólo oposto da exigência de objetividade” (Morin, 1970, p.195).
97
Julho de 2005
cinema. Se, por um lado, a trilha sonora, ou mesmo a dublagem, não furtam a
aparência de realidade do filme (cf. Morin, 1970, p.195 e p.202), por outro, a
necessidade de fidelidade fotográfica nas manifestações visuais da sua diegese é
indispensável. Por mais fantasioso que seja um filme, não se toleram deformações da
|
e transformados em signos convencionais, processo no qual podem se tornar
tipificações desprovidas de verdade. E graças aos recursos técnicos que enfatizam
certas características desejadas enquanto ocultam as características indesejadas,
98
Julho de 2005
paisagens, interiores, adereços estereotipados assegura a impressão de familiaridade
frente às mais fantasiosas representações do fantástico (cf. Sorlin, 1985, p.182).
E quais seriam os traços essenciais e supra-objetivados daquilo que não
existe na realidade ou que não possui uma imagem mental definida? Como já foi
|
dos anos 50.
Nas imagens da cibercultura, sua conexão com o mundo vivido está ancorada
em estereótipos construídos a partir de traços genéricos da realidade tecnológica e
99
Julho de 2005
racionalizações realistas. Entretanto, é importante notar que a participação afetiva do
cinema – o que é “afetivamente vivido” na realização do espetáculo em oposição ao
“praticamente vivido” da vida cotidiana – leva os espectadores a se identificar tanto
com o semelhante como com o estranho: seu poder de mobilizar a subjetividade e os
|
Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular
100
IV. AS FIGURAÇÕES DA CIBERCULTURA
Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Julho de 2005
101
Julho de 2005
IV.1. O corpus da pesquisa
Para esta pesquisa, buscou-se montar um corpus composto por filmes que,
além de estarem ligados diretamente aos temas da cibercultura, fossem socialmente
|
debates, polarizado a atenção inclusive daqueles que não se interessavam no
cinema” (Sorlin, 1985, p.208-209), tomou-se como critério de seleção a relevância em
102
Julho de 2005
imaginário coletivo. Foi também considerado indiferente o fato do site The Numbers
listar uma quantidade de filmes menor que o The Internet Movie Database, visto que
os filmes que interessam a esta pesquisa e os de renda mais significativa constam
das duas fontes de dados.
|
exemplo, obras como eXistenZ (bilheteria americana de US$ 2.840.417 e 173º lugar
em um ranking de 428 filmes produzidos em 1990) e SimOne (bilheteria americana de
103
Julho de 2005
IV.1.1 Sinopse dos filmes
|
2001: A Space Odyssey (1968). Os tripulantes da nave espacial
Star Wars (1977). Obi-Wan Kenobi, um cavaleiro jedi, e seu aprendiz Luke
Skywalker partem do planeta Tatooine para ajudar a princesa Leia Organa,
que foi capturada por Darth Vader e as forças imperiais. Acompanhados
dos robôs C3-PO e R2-D2, Luke e Obi-Wan contratam um mercenário,
Han Solo, para partirem de Tatooine. Após serem capturados pelas forças
imperiais, Obi-Wan se sacrifica e é morto por Darth Vader, para que os
demais, junto com a princesa, possam fugir. Leia carrega as plantas da
104
Julho de 2005
Estrela da Morte, uma super-arma imperial capaz de destruir planetas
inteiros, que são fundamentais para que os rebeldes organizem um ataque
à ela.
|
Tron (1982). Flynn é um ex-engenheiro de software da Encon que foi
Wargames (1983). David é um hacker que utiliza seus talentos para coisas
ilícitas como mudar as notas da escola e não pagar conta de telefone. Mas
ao tentar invadir uma empresa de videogames para copiar um jogo antes
de seu lançamento, acaba inadvertidamente acessando o WOPR (War
Operation Plan Response), um novo sistema militar de lançamento de
mísseis nucleares. Decidido a jogar com o WOPR uma partida do que
105
Julho de 2005
pensa ser um simples videogame, David coloca o mundo a beira de uma
guerra nuclear.
|
com seus super-poderes, Jobe planeja se transformar em entidade
puramente ciberespacial para controlar as redes de dados e
106
Julho de 2005
Prometido” e o ensina a manipular as regras da Matrix para realizar coisas
impossíveis. O grupo é traído por um de seus integrantes e Morpheos é
capturado pelos programas vigilantes da Matrix, os agentes. Decidido a
salvá-lo, Neo descobre que não só pode desviar de balas, mas pode pará-
|
Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura
107
Julho de 2005
IV.1.2 Ranking de bilheteria dos filmes selecionados
|
Star Wars
108
Julho de 2005
Blade Runner
Tron
Comparativo a partir dos 127 filmes de 1982 com informações disponíveis no site “The Numbers”.
Bilheteria EUA Bilheteria mundial Orçamento (US$)
Rank. Título original (US$) (US$) (estimativa)
1º ET: The Extra-Terrestrial $431.197.000 $772.000.000 $10.500.000
|
* dados obtidos no site “The Internet Movie Database”.
109
Julho de 2005
The Terminator
Comparativo a partir dos 144 filmes de 1983 com informações disponíveis no site “The Numbers”.
Bilheteria EUA Bilheteria mundial Orçamento (US$)
Rank. Título original (US$) (US$) (estimativa)
1º Ghostbusters $238.600.000 $291.600.000 $30.000.000
|
The Lawnmower Man
110
Julho de 2005
Johnny Mnemonic
Comparativo a partir dos 235 filmes de 1995 com informações disponíveis no site “The Numbers”.
Bilheteria EUA Bilheteria mundial Orçamento (US$)
Rank. Título original (US$) (US$) (estimativa)
1º Toy Story $191.796.233 $356.800.000 $30.000.000
|
The Matrix
111
Julho de 2005
Minority Report
Comparativo a partir dos 464 filmes de 2002 com informações disponíveis no site “The Numbers”.
Bilheteria EUA Bilheteria mundial Orçamento (US$)
Rank. Título original (US$) (US$) (estimativa)
1º Spider-Man $403.706.375 $821.700.000 $139.000.000
|
464º Besotted $656 n. d. n. d.
112
IV.2. As alegorias da tecnologia
Figura 67 (Metropolis)
Figura 66 (Metropolis)
Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Julho de 2005
113
Julho de 2005
Para o realismo da diegese fílmica não importam as premissas e implicações
científicas ou tecnológicas do impossível, mas sim sua “aparência” de cientifico e
tecnológico, articulada em alegorias e racionalizações que reduzem o mito “às
normas da objetividade ou, pelo menos, envolto em verossimilhança” (cf. Morin, 1970,
|
acopláveis ao corpo – que tornam imaginariamente concebíveis mundos onde seres
humanos vivem imersos no ciberespaço, assassinos são condenado por assassinato
114
Julho de 2005
ciborgue, neste caso – muito à frente de seu tempo. Assim, os traços genéricos do
técnico e do científico assentam-se sobre a estereotipação visual da eletricidade e da
química. Em um mundo ainda desprovido de raios lasers, computadores, painéis de
controle eletrônicos e plásticos, o laboratório de Rotwang é uma grande alegoria
|
movimento transformavam o técnico-científico em metáforas visuais. A matemática e
a geometria, em geral, não produziram figurações marcantes até o surgimento da
115
Julho de 2005
equações, enunciados) e os traços geometrizados são praticamente onipresentes nas
estereotipações da computação. Na construção fílmica, tais signos ganham novos
sentidos e referem-se a imagens mentais diferentes daquelas às quais estão
relacionados em seus contextos originais. Reduzidos a estereótipos eminentemente
|
humana, um forte índice de oposição à natureza: a reta é, antes de tudo, produto da
abstração humana. Não existem retas na natureza e a associação visual com elas
116
Julho de 2005
lado de fora da nave, no espaço, desloca-se uma estrutura em forma de anel duplo
girando em seu próprio eixo: é a estação orbital, o destino do ônibus espacial. O
interior da cabine é escuro, o que dá destaque à imagem do exterior, ao mosaico de
luzes dos indicadores e botões e às telas localizadas, estrategicamente, no centro da
|
uma outra nave, cuja manobra de aterrissagem ocorre sem o contato visual dos
pilotos com a plataforma. Eles se orientam por uma imagem, exibida pelo monitor
117
Julho de 2005
coordenadas circulares e retilíneas, acompanhadas de códigos textuais – antes
mesmo que ele seja visualizado: o corpo do colega de Bowman, Frank Poole.
Os instrumentos de navegação em 2001: A Space Odyssey são claramente
tipificações da computação e da aviônica (instrumentação de aviões). Mas eles
|
dos modernos programas de CAD (computer aided design), o filme já cita o
“wireframe”, ou “modelo em arame”. O wireframe é produto inerente ao processo de
118
Julho de 2005
modelo em wireframe gira na tela não parecem fazer o menor sentido para a
linguagem humana, exceto como algo que tem a “aparência” de texto técnico-
científico. Esses textos, juntamente com a matriz quadriculada que acompanha a
imagem em wireframe do módulo, são apenas signos visuais que ao mesmo tempo
|
façam parte da alegoria. Na seqüência em que a espaçonave Millenium Falcon é
atacada pelos caças do Império, a performance nas cenas é praticamente a mesma
119
Julho de 2005
circular esquadrinhada por uma matriz, em uma montagem bastante similar à do
pouso lunar em 2001: A Space Odissey (fig. 69).
|
Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura
Figura 74 (Star Wars)
120
Julho de 2005
Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP |
Figura 76 (Blade Runner)
|
Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura
Figura 77 (Blade Runner) Figura 78 (The Matrix) Figura 79 (The Matrix)
121
Julho de 2005
A união de estereótipos da tecnologia antiga, muito similares esteticamente
com aqueles encontrados em Metropolis, e estereótipos das novas tecnologias
cibernéticas persistem até em filmes mais recentes, não havendo indicação de que os
arcaísmos tecnológicos incorporados aos artefatos estejam relacionados
|
nave onde Neo é acolhido depois de ser desconectado da Matrix é um artefato que
mais parece ter saído de um conto de Júlio Verne. Seus controles, assim como dos
122
Julho de 2005
Logo após as cenas do desastre de uma espaçonave, enquanto a voz em off diz
“Steve Austin, astronauta, um homem que mal está vivo”, passam as cenas de uma
sala de cirurgia e o rosto de um homem inconsciente. É a imagem da fragilidade da
carne. Mas a voz continua:
|
“desempenho” superior do ser humano reconstruído pelas tecnologias cibernéticas
(fig. 80).
123
Julho de 2005
geometrização da forma, no desenho em linha e no código alfanumérico. O filme nos
apresenta um ambiente ciberespacial do ponto de vista das entidades digitais,
representando-o como um mundo paralelo que, apesar do “funcionamento
fenomênico” similar ao mundo presencial do qual supõe-se ser extensão, é marcado
|
pretende retratar o virtual é resultado da filmagem convencional, traços e padrões
similares ao wireframe são reproduzidos no cenário físico ou por trucagem óptica a
35
Processo que resulta na visualização das superfícies do modelo computadorizado. A visualização
em wireframe é uma visão ainda esquemática do modelo que, em tese, desaparece com o processo de
rendering.
124
Figura 82 (The Terminator)
Figura 81 (The Terminator)
Figura 83 (Tron)
Figura 84 (Tron)
Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Julho de 2005
125
Figura 85 (Tron)
Figura 87 (Tron)
Figura 86 (Johnny Mnemonic)
Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Julho de 2005
126
Figura 88 (Johnny Mnemonic)
Figura 91 (The Matrix)
Figura 90 (The Matrix)
Figura 89 (The Matrix)
Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Julho de 2005
127
Figura 92 (The Matrix)
Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Julho de 2005
128
Julho de 2005
Tron também associa esse mundo da hiper-realidade com o mundo do
impossível: ao exagero visual se associa o exagero do desempenho. Na seqüência
onde dois times se enfrentam com as lightcycles (fig. 85), as máquinas virtuais
“surgem” em torno dos jogadores, reproduzindo o próprio processo de “rendering” da
|
fora do ciberespaço.
A penetração da computação e dos gadgets cibernéticos reais na vida prática
36
Tecnicamente conhecidos como HMD (Head Mounted Display).
129
Julho de 2005
regulares são bastante visíveis nas suas imagens do ciberespaço. Nesse sentido,
chega a ser notável a semelhança entre as figurações da realidade virtual na
seqüência na qual Johnny realiza um upload de dados diretamente para o seu
cérebro (fig. 86), as imagens de Tron dos ambientes liminares que mediam a entrada
|
da informação – Internet, mundo, China, Beijing, Hotel – o wireframe e a uniformidade
de superfície tornam-se cada vez mais evidentes, até que ele chega a um banco de
130
Julho de 2005
dos objetos em cena, a matriz continua sendo o estereótipo mais importante quando
se deseja conotar “tecnicidade” ou “artificialidade” às construções imagéticas da
tecnologia.
Não por acaso, em The Matrix, as linhas de grade estão, invariavelmente,
|
A luta de kung-fu entre Neo e Morpheos no “programa de treinamento” (fig. 94) é
ambientada em uma edificação tipicamente oriental, cujos padrões quadriculados são
131
Julho de 2005
quadrados vermelhos (fig. 91). Na cena seguinte, quando Neo e Morpheos já estão
no elevador, o padrão matricial é reafirmado pelo painel de botões do elevador. O
interior da casa que Morpheos e sua gang costumam utilizar para entrar e sair da
Matrix também tem seus padrões visuais regulares disfarçados pela imundície. Na
|
onde Morpheos está aprisionado (fig. 95), é composto por linhas retilíneas que se
cruzam ortogonalmente: o piso, o equipamento de detecção de metal, os painéis de
37
O japonês possui três sistemas que são utilizados na escrita corrente: o kanji, o hiragana e o
katakana. O primeiro corresponde aos caracteres chineses, o segundo e o terceiro são sistemas de
escrita silábicos, sendo que o katakana é o utilizado para palavras estrangeiras.
38
Trata-se também de um certo orientalismo cuja presença vêm se acentuando na cibercultura e que é
melhor analisado no capítulo IV.3 – Imagens da Alteridade Cibernética.
132
Julho de 2005
da Matrix é visto por Neo dentro da realidade virtual, sobre o cenário e os agentes a
sua frente, transmutados em uma composição que evoca um complexo wireframe
sobre o qual os códigos deslizam (fig. 97).
A revelação mediada pelo computador também é tema de Minority Report,
|
vítimas, do assassino, da arma e da cena do crime se organizam de acordo com os
gestos de Anderton sobre um painel transparente onde se vislumbra uma barra
133
Figura 97 (The Matrix)
Figura 96 (The Matrix)
134
Julho de 2005
IV.3. As imagens do ciberespaço
Apesar de serem obras relativamente distantes no tempo, há uma
característica comum a todos os filmes que retratam o ciberespaço: a referência ao
|
só é superada pela perícia em invadir e enganar complicados sistemas eletrônicos,
que não passam, no contexto fílmico, de apenas mais um jogo.
135
Julho de 2005
programas roubados por Dillinger, ex-colega e atual presidente da ENCON. O filme
narra a saga de Flynn dentro dos computadores da ENCON a fim de encontrar provas
contra Dillinger e recuperar os direitos sobre seus softwares.
De forma análoga, em Wargames, o protagonista também é obcecado por
|
com ele um jogo virtual que pode desencadear o lançamento de mísseis reais (fig.
103).
136
Julho de 2005
Angelo diz que a mente de Jobe “é como uma esponja faminta e limpa” e que “sua
atividade sináptica cresceu 400% em menos de um mês”, vemos cenas de Jobe, com
um olhar “esperto”, resolvendo testes de lógica que ele não conseguia, antes, sequer
entender. Durante as cenas que mostram Jobe recebendo drogas e sendo imerso em
|
Na diegese de Tron, existe todo um mundo virtual contíguo ao mundo
presencial populado por “avatares” de usuários e videogamers humanos. A proposta
137
Julho de 2005
continua com uma voz dizendo, em off, “all right, give me room, here we go” e vemos
uma mão empunhando o joystick que controla um dos dois traços luminosos – um
laranja e outro azul – que vão se desenhando no monitor escuro, em segmentos de
reta contínuos e perpendiculares. Conforme o zoom amplia a área da tela do
|
de grafismos luminosos que lembram a regularidade do traçado de circuitos
impressos. Um é a projeção do videogamer no ciberespaço, o “avatar” do jogador
138
Figura 100 (Tron)
Figura 99 (Tron)
139
Figura 104 (The Lawnmower Man)
140
Julho de 2005
Tron também foi o primeiro filme a oferecer uma visão de “videogame” em
“primeira pessoa” (que praticamente não existia naquela época), uma perspectiva que
a diegese tornou possível com a imersão do videogamer no ambiente virtual. Essa
visão é a mesma utilizada para tipificar o que acontece “por trás dos monitores” de
|
movimentos mecânicos. O avatar “virtual” possui a mesma fisionomia de Flynn, seu
usuário do mundo presencial. A semelhança entre ambos indica a extensão da
141
Julho de 2005
portanto mais confortáveis – apesar de visualmente mais pobres – aos espectadores
da época, ao contrário de Tron, que exigiu até mesmo o desenvolvimento de novas
tecnologias de computação gráfica e de trucagem fotográfica para criar imagens de
mundos jamais vistos anteriormente. Entretanto, assim como em Tron, o videogame
|
pelos militares como um ataque real dos russos. O filme trabalha com o argumento de
que se a mesma lógica por trás da simulação dos videogames é utilizada para simular
142
Julho de 2005
avisos vocais, textos e ícones aparecem na tela: um símbolo piscante de “bio-hazard”
com uma barra com o aviso “TOX-DET” e, conforme ocorrem explosões virtuais e
inimigos estilizados são destruídos pelo chimpanzé-videogamer, surgem alertas de
“THREAT” e “KILL COMPLETE”. Johnny Mnemonic, por sua vez, marca uma nítida
|
videogames. Há também referências aos “cartuchos” utilizados para implantar
conhecimento diretamente na mente dos personagens, dispensando o “aprendizado”.
39
Na verdade, a maioria desses estereótipos provém dos mangás (histórias em quadrinhos) e dos
animes (desenhos animados). Porém foi por meio dos videogames que tais estereótipos tiveram ampla
penetração no mercado de massas não-japonês.
143
Julho de 2005
mesma imagem diversos momentos de um movimento a fim de conotar uma grande
velocidade (fig. 111) e impossíveis saltos seguidos de um vôo horizontal contra o
oponente (fig. 112).
A referência que os filmes fazem aos videogames não é gratuita, visto que
|
(2000, p. 479) chama de “discurso do desincorporação” (“discourse of
disembodiment”), central na cibercultura, onde o computador oferece a fuga do corpo,
144
Julho de 2005
Figura 107
Oponentes se encaram
antes de luta em The
Matrix e no videogame
Mortal Kombat.
Figura 109
Imagem do ápice de
salto que precede
golpe, em The Matrix e
no videogame Street
Fighter.
|
Figura 110
Oponente sendo
Figura 111
Efeito “estroboscópico”
típico dos movimentos
“mais rápidos que os
olhos”, em The Matrix e
no videogame Mortal
Kombat.
Figura 112
Salto com vôo
horizontal, em The
Matrix e no videogame
Street Fighter.
145
Julho de 2005
Em Tron, Flynn é inserido no ciberespaço por meio de um gadget quase
inexplicável que desintegra objetos físicos por meio de um canhão de laser e os
transforma em dados de computador. Quando Flynn é atingido pelo canhão (fig. 100),
o tempo parece congelar-se e seu corpo é esquadrinhado e recoberto por uma grade
|
ciberespaço que Flynn obtém aquilo que não consegue como um “usuário”, pelo lado
de lá do monitor. Não mais limitado pela condição de exterioridade ao ciberespaço,
146
Julho de 2005
propor imagens plausíveis do ciberespaço a partir da tecnologia conhecida na época.
A interface gráfica sequer era imaginada fora dos laboratórios tecnológicos e a
computação gráfica parecia ser um luxo sem grande utilidade. Não existia, exceto as
rudimentares visualizações dos videogames, nenhum tipo de tecnologia de imersão
|
altamente sensorial de Tron, o mundo virtual de Wargames desenrola-se como uma
série de planisférios esquemáticos. De certo modo, Wargames era um filme mais
147
Julho de 2005
e 60), conceito que se consolidou nos anos 1980 com o uso integrado do HMD (Head
Mounted Display) e datagloves, dispositivos desenvolvidos especificamente para
emular a relação sensorial do usuário em um ambiente virtual (figs. 57 e 58). O HMD
consiste de dois visores colocados à frente de cada olho que projetam imagens com
|
do corpo – cabeça e mãos – em um espaço virtual. Além da workstation de realidade
virtual, The Lawnmower Man apresenta usuários montados em estruturas mecânicas
40
O R-360 da SEGA era um simulador de combate aéreo e seu maior atrativo era a cabine montada
sobre um mecanismo que permitia a rotação em 360º para qualquer direção, reproduzindo a posição
do avião virtual pilotado pelo usuário, deixando-o, inclusive, de cabeça para baixo.
148
Julho de 2005
experiência sexual ciberespacial na qual os corpos virtuais se tocam, se abraçam e
se fundem, enquanto os corpos físicos permanecem isolados e separados pela
parafernália de simulação (fig. 121). Porém, o filme leva a realização do “discurso do
desincorporação” mais longe. Convencido de que a realidade virtual não é apenas
|
personagem presencial mas quando Johnny veste seu HMD e suas datagloves ele
encontra seu ambiente natural e obtém tudo aquilo que o mundo presencial lhe nega.
149
Figura 117
Figura 116
Figura 113 (Tron)
Figura 118
Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Julho de 2005
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Figura 120 (The Lawmower Man)
Figura 121 (The Lawmower Man)
Figura 122 (The Lawmower Man)
151
Figura 124 (The Matrix)
Figura 125 (The Matrix)
Figura 127 (The Matrix)
Figura 126 (The Matrix)
Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Julho de 2005
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Julho de 2005
O ápice da apologia ao mundo virtual surge com o filme The Matrix. Sua
diegese é centrada na Matrix, sistema de realidade virtual no qual toda a humanidade
está presa e crente de que vive uma realidade presencial. A representação visual do
ciberespaço de The Matrix rompe com a tradição iniciada com Tron, quase duas
|
funcionamento da realidade podem ser exageradas e trapaceadas. Como acontece
nos videogames.
153
Julho de 2005
é obrigado a parar, a fala do policial – “That’s impossible” – verbaliza a nossa própria
surpresa não só frente ao salto dela, mas também diante do salto do “agente”, ainda
mais eficaz e preciso (fig. 125).
“Guns, a lot of guns”, diz Neo ao celular enquanto ele e Trinity aguardam no
|
ciberespaço (fig. 113) e motocycles se materializam em volta dos personagens (fig.
85) são as primeiras a imputar à realidade virtual essa possibilidade. Não muito
41
Componente de interface gráfica com o qual o usuário interage. Exemplos de widgets: botões,
ícones, barras de rolagem, janelas e pop-ups, caixas de diálogo, menus. Um widgets pode ser
composto por outros widgets, como por exemplo o desktop do computador.
154
Julho de 2005
quando Neo e Trinity entram na Matrix para resgatar seu líder, Morpheos, capturado
pelos agentes.
A regra básica dessas seqüências é o exagero. Na seqüência que inicia a
invasão ao edifício onde Morpheos está preso (fig. 95), Neo é solicitado a mostrar os
|
durante elas – e eliminam um a um os adversários ao redor. A coreografia é a
apoteose do exagero, estetizada como um videogame e com ares de videoclipe.
155
Julho de 2005
Em Minority Report, a alienação do presencial é dada por realidades virtuais
que pretendem tanto emular experiências passadas a partir de fragmentos gravados
em hologramas como sintetizar as imagens do devir para evitar certas experiências
futuras. O futuro é reconstruído por meio de uma parafernália cibernética que
|
únicas respostas que Anderton obtém são a música ambiente que começa a tocar e
as luzes do apartamento que se acendem. A pia sobre a qual ele despeja os pacotes
156
Julho de 2005
imagem tridimensional da esposa em tamanho natural, envolve-se com a experiência
mas o choque com o real emerge dramaticamente quando toda a simulação
desaparece e é substituída pela frase “END OF FILE”, bem à frente dos olhos
vidrados de Anderton.
|
uma realidade medíocre: Flynn (Tron) é um programador fracassado que parece um
adulto infantilizado rodeado de brinquedos eletrônicos; David (Wargames) é um
157
Julho de 2005
fundir-se e correr pelos seus braços engolfando-o (fig. 78). O que The Matrix coloca
em pauta é justamente a inversão do estranhamento, onde o virtual parece cada vez
mais com a realidade “por excelência” enquanto o presencial torna-se objeto de
estranhamento e frustração. Logo após acordar no mundo presencial, Neo é
|
entidades digitais desse ciberespaço são representadas como figuras humanas.
Contudo, continua sendo no virtual que os limites humanos são superados: quando
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Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP |
Figura 128 (The Matrix)
Figura 130 (The Matrix) Figura 132 (Minority Report) Figura 133 (Minority Report)
159
Julho de 2005
IV.4. Imagens da alteridade cibernética
A contrapartida da perspectiva que vê o computador como um meio de negar
o corpo é o movimento concomitante de humanização do computador. Nas
|
interlocução. Mas além dos atributos intelectuais, são igualmente recorrentes tanto os
traços de emoção como o antropomorfismo na construção das alteridades
160
Julho de 2005
estão sujeitos à disseminação de doenças por vírus que, por sua vez, pode estar
relacionado a um comportamento “promíscuo” (Lupton, 2000, p.486). Contudo, a
tendência de se atribuir traços humanos ao computador não é recente, nem no
cinema e nem na vida social. Segundo Winegrad e Akera (1996), o ENIAC foi a
|
que seria um primeiro plano da “face” de HAL: um “olho” eletrônico vermelho
emoldurado em um retângulo com as inscrições “HAL 9000” ladeado por monitores
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Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP |
Figura 134 (2001: A Space Odyssey)
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Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura
Figura 137 (Star Wars)
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Julho de 2005
Em um dos monitores de vídeo, que exibe partes do programa de TV, o
jornalista parece se dirigir ao olho de HAL: “(...) você é o cérebro e o sistema nervoso
da nave. Entre suas tarefas está a de cuidar dos que estão hibernando. Isso lhe
causa alguma insegurança?”. Assim que HAL inicia sua resposta – “deixe-me colocar
Bom, acho que ele age como se tivesse emoções genuínas. É claro que ele é
programado dessa maneira para tornar mais fácil que conversemos com ele. Mas
se ele possui ou não emoções reais é algo que acho que ninguém pode realmente
responder.
|
A capacidade de um computador conversar já manifesta uma forte
antropomorfização. A voz monótona e aveludada de HAL-9000 reflete sua natureza
163
Julho de 2005
Boa tarde, senhores. Eu sou um computador HAL 9000. Me tornei operacional
nas instalações HAL em Urbana, Illinois em 12 de janeiro de 1992. Meu
instrutor foi o Senhor Langley e ele me ensinou a cantar uma música. Se quiser
ouvi-la posso cantá-la para você.
|
sintetizada, estridente e metálica –, associada não à engenhoca que a justifica na
diegese, mas à voz de “Joshua”, nome humanizado do WOPR. A “voz” acompanha a
164
Julho de 2005
irritação e frustração onde a fala, muito longe de humanizar, transforma-se no signo
vocal da rigidez mecânica. Em The Matrix, os personagens humanos não conversam
com as máquinas ou com os computadores, cuja relação é estritamente mediada por
botões, teclado, texto ou interface gráfica, e em The Minority Report – reproduzindo
|
capturado, assim que aporta no ciberespaço (figs. 113-114). Levado para a cela (fig.
115), um dos guardas do Master Control Program diz empurrando-o: “Videogame
- É bom estarem lá. Eu não quero fugir daqui e encontrar nada além de um
monte de circuitos frios esperando por mim.
Em uma seqüência posterior, Ram comenta com Flynn: “Eu era um programa
atuarial. Trabalhei para uma grande companhia de seguro. Realmente dá uma boa
sensação ajudar as pessoas planejar suas necessidades futuras”. O MCP, por sua
vez, inaugurou a antropomorfização da imagem sintética. Dentro do ciberespaço, a
voz do MCP é uma “besta” digital que tem um “rosto” lapidado por polígonos
sintetizados por computador (fig. 141), um tipo de construção da entidade virtual que
se tornou um estereótipo corriqueiro, tal como podemos ver em Johnny Mnemonic na
165
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personificação da BBS que Johnny consegue “hackear” (fig 142) ou no corpo
humanóide de Jobe, de The Lawnmower Man, quando ele transforma-se em uma
entidade totalmente ciberespacial (fig. 122).
Contudo, é em The Matrix que temos a antropomorfização total da alteridade
|
inclusive nas diversas conotações que um “agente” de terno preto e óculos escuros
pode ter – em detrimento de categorias relacionadas com o artificial e o sintético. É
166
Julho de 2005
da desincorporação” – é apenas uma das possibilidades abertas por um imaginário
mais amplo, o imaginário do “pós-humano”, onde o ciborgue é a figura emblemática.
A figura do ciborgue anuncia a imagem de um homem “melhorado” com a acoplagem
da tecnologia e cada vez mais além das limitações de desempenho ditadas pela
|
gravação de seu cérebro. Nessa seqüência (fig. 143) somos apresentados ao
pequeno “slot” para a conexão de dispositivos eletrônicos que ele possui em sua
167
Julho de 2005
À frente de uma mesa cheia de gadgets que ele tirou de sua valise, Johnny
prepara seu HMD (Head Mounted Display), espeta o cabo para a transferência de
dados na sua cabeça e diz: “o upload começa quando você pressionar aqui”,
indicando o botão no mini CD player. “Hit me!”, ele anuncia colocando o HMD à frente
|
como meio de transcender o corpo material é levada ao limite em The Matrix, onde o
corpo é reduzido a um mero suporte físico para a conexão dos cabos que introduzem
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Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP |
Figura 140 (Wargames)
Figura 142 (Johnny Mnenomic)
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Figura 139 (2001: A Space
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Do ponto de vista da categoria social, a reconstrução do corpo pela conexão
ou substituição de partes dele por artefatos é sempre um potencial objeto de aversão.
É uma relação homóloga à que ocorre quando esse mesmo corpo, o social, é
contaminado em contextos indevidos pelo corpo natural, suas emanações, secreções
|
a mãe do líder humano que sequer foi concebido e que irá comandar a rebelião dos
humanos contra as máquinas. Construído com tecnologia futurística, o exterminador
170
Julho de 2005
A forma como The Terminator tipifica o corpo ciborguiano, como suporte de
demonstrações exageradas de força e resistência não é inédita. Ela já aparecera de
forma rudimentar no seriado Six Million Dollar Man e, poucos anos antes de The
Terminator, o filme Blade Runner, já havia apresentado construções muito similares.
|
quando Deckard é perseguido por Roy, vemos que atravessar coisas muito sólidas
com o corpo é algo trivial para um replicante. Em uma cena Roy perfura com o punho
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futuro, surge por trás com uma espingarda pump-action e dispara cinco vezes contra
o exterminador que, empurrado pelos tiros, é lançado através da vitrine e cai
aparentemente desacordado na calçada. No breve tempo em que Kyle diz “venha
comigo se quiser viver”, na tentativa de convencer Sarah a fugir com ele, o
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reiniciar a caçada (fig. 157).
Contudo, o filme leva a “recusa em morrer” ao limite: a besta ainda “morre”
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Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP |
Figura 148 (Blade Runner)
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Figura 152 (Blade Runner)
Figura 147 (The Terminator) Figura 151 (Blade Runner) Figura 153 (Blade Runner)
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Figura 156 (The Terminator)
Figura 155 (Blade Runner)
Figura 154 (Blade Runner)
Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Julho de 2005
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Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP |
Figura 157 (The Terminator)
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Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura
Figura 158 (The Terminator) Figura 161 (The Terminator)
Figura 159 (The Terminator) Figura 162 (The Terminator) Figura 164 (The Matrix)
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Nota-se que há uma relação entre a proximidade com a morte e o grau de
humanização de alteridade cibernética. O medo e ansiedade de HAL, impotente
diante de sua própria morte, é desconcertantemente humano e o momento de
máxima humanização dos replicantes de Blade Runner é quando Roy, diante da
|
ciberespaço é uma espécie de arena de videogames onde o “game over” é
experienciado pelos avatares e pelos softwares como a “morte”. Por outro lado, a
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Julho de 2005
caracterizam os replicantes e o exterminador. Não por acaso a seqüência em que
Neo e Trinity invadem o prédio de segurança máxima onde Morpheos está preso (fig.
95) é praticamente uma releitura da seqüência de The Terminator na qual o
exterminador invade a delegacia de polícia atrás de Sarah (fig. 165). Logo após ele
|
justificativa da diegese para a matança, mas o aspecto performático que caracteriza a
“máquina assassina” é o mesmo.
177
Figura 165 (The Terminator)
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Julho de 2005
A despeito das eventuais diferenças, há, notavelmente, um padrão
conservador de representação desse corpo, muito aquém das possibilidades dadas
pelo conceito do ciborgue. A fusão de organismo e máquina é sempre um meio de
ampliar as capacidades e os limites propriamente, ou reconhecidamente, humanos,
|
relações que os signos ligados ao corpo têm entre si e com signos de outras
categorias – inevitavelmente o torna objeto de estranhamento e potencial portador de
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Julho de 2005
como pelo medo que se tem do outro oriental, em oposição às concepções do “eu”
ocidentalizado. Talvez porque seja percebido como um novo território a ser
qualificado, definido e generalizado como por muito tempo foi – e ainda é – o
“Oriente”, a construção do “cibernético” e da alteridade cibernética seja homóloga às
|
a relação entre o Oriente e a modernidade é fundamentalmente de dois tipos: uma na
qual a associação de traços de modernidade e de orientalidade proporcionam figuras
42
Como exemplo recente podemos citar o filme The Last Samurai. Ele retrata a elite militar japonesa
que se alia aos ocidentais e adota armas de fogo como gananciosa e traiçoeira. Ao contrário dos
generais “ex-samurais” que trocaram a armadura pela farda, aqueles que se recusam a abandonar a
espada e a aderir às armas de fogo, são retratados como monumentos de moralidade e coragem. É
sintomático que o “último samurai” seja um ocidental: enquanto o custo da modernidade a um oriental
é a destruição da sua integridade moral, a orientalização de um ocidental resgata sua moralidade
corrompida.
A despeito da aparência “histórica” que têm os eventos do filme, as armas de fogo são utilizadas pelos
exércitos comandados pelos samurais desde o século XVI, período no qual o Japão se unificou sob
Ieyasu Tokugawa.
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presente é atravessado pelo arcaísmo do tradicional. O orientalismo dos filmes
ciberculturais é reflexo de um imaginário popular ocidental que freqüentemente
associa o outro oriental à superação das contradições entre o progresso da
modernidade e as tradições milenares. Na vida prática, esse imaginário se manifesta
|
um traço pitoresco do ecletismo ocidental e o Oriente profanado pela modernidade, e
portanto, encarado como degenerado e impuro. Em um caso, a associação entre o
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Julho de 2005
congelada”, sinais de sobrevivência e salvação nos interstícios do desenvolvimento
tecnológico opressor.
As construções que portam valorações negativas também são supra-
objetivações freqüentes. Aqui podemos situar o mundo deprimente de Blade Runner,
|
signo do estranho, do alienígena, que entra no esquema da hibridação, misturado aos
significantes – a tecnologia e a ciência – ocidentais. Analogamente, a Beijing de
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Julho de 2005
tempo presente. A trajetória deste personagem é pautada pela sucessão de boas e
más ações, ora atuando em benefício dos homens, ora prejudicando-os,
despertando-lhes, por conseqüência, sentimentos de admiração e respeito, por
um lado, e de indignação e temor, por outro.
|
O hacker talvez seja o tipo de personagem que melhor exemplifica a imagem do
“trickster cibernético”. As aventuras dos hackers, como ocorre com os tricksters em
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Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP |
Figura 167 (Blade Runner)
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Figura 168 (Johnny Mnemonic)
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Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP |
Figura 173 (The Matrix)
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Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura
Figura 175 (Wargames)
Figura 176 (The Lawnmower Man) Figura 179 (The Lawnmower Man)
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Nos filmes, os hackers compartilham quase sempre as mesmas
características. São outsiders, diferentes do que é visto como norma na sociedade da
qual fazem parte, são amantes “do viver errante e solitário” e “raramente têm morada
fixa, perambulando pelos espaços sociais, naturais e sobrenaturais” (cf. Queiroz,
|
“normais” (fig. 172).
Os hackers também são, invariavelmente, especialistas que manifestam sua
186
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gadgets esquisitos (fig. 174 e 177). Muitos desses gadgets já foram naturalizados e
incorporados ao nosso cotidiano pela explosão dos personal-computers, tais como o
drive de disquete (gigantesco no filme) e o modem (fig. 177), a engenhoca mais
importante do filme, já que ele não é só um gadget, mas o ícone fílmico da
|
Flynn seja um adulto, a construção do personagem é a de um adulto infantilizado com
um comportamento adolescente e que continua a se dedicar a coisas pouco sérias,
43
Não por acaso, o telefone é uma metáfora onipresente da conectividade em The Matrix.
187
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Essa imagem do “trickster cibernético” talvez seja até anterior à socialização
do termo “hacker”. Nos filmes, o termo só surge a partir de meados dos anos 1990 e
mesmo no ambiente de desenvolvimento de softwares dos anos 1980, essa palavra
não era comum. É provável que a palavra só tenha começado a ser usada fora do
|
foi, ao contrário do que se costuma pensar, tão restrito. A eletrônica já era um hobby
há décadas, antes do personal-computer se popularizar e, quando este surgiu, foi no
188
Julho de 2005
Captain Crunch44, que construiu um dispositivo para esse fim que ficou conhecido
como blue-box45. A partir dos anos 1980, com a popularização dos personal-
computers surgiram as BBBs (Bulletin Board System) que eram redes disponíveis à
conexão de outros computadores via modem para troca de arquivos e mensagens.
|
Além disso, não é incomum que profissionais de desenvolvimento de software sejam,
até por uma afinidade mental, apaixonados por jogos.
189
Julho de 2005
transformação, a máquina é conduzida imponentemente por um Jobe com o corpo
másculo e viril (fig. 178). Por fim, após transcender sua condição humana, não há
corpo conduzindo a máquina, ela é conduzida mentalmente por Jobe (fig. 179). Tanto
em Lawnmower Man como e The Matrix, os protagonistas adquirem “poderes
|
cibernético” que se consolida a tendência mais evidente da cibercultura de se
aproximar do mito, criando modelos lógicos para resolver contradições que são
190
V. CONCLUSÃO
Imagens da Cibercultura • V: Conclusão | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Agosto de 2005
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Mauss (p.369-397) nota que das raras culturas que “fizeram da pessoa
humana uma entidade completa, independente de qualquer forma, exceto de Deus”, a
romana é a mais importante. De acordo com o autor, os romanos herdaram dos
etruscos o sentido original da palavra “persona”, associado à máscara e semelhante à
|
Vale relembrar que as raízes desse corpo remontam à Renascença quando também,
de acordo com Mauss, tem origem a noção de pessoa, a categoria do Eu, identificada
192
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contingências classificatórias trazidas pelos corpos-biônicos, realidades virtuais,
computadores, clones e transgênicos.
No contexto da cibercultura, o ciberespaço e o ciborgue são as categorias
mais fundamentais pois são elas, justamente, que articulam – ou desarticulam – as
|
pessoa do cristianismo. Com a cibernética, passou a dominar a tese de que a
separação do corpo do cogito não é metafísica, mas fisicamente possível. Sustentada
pela vulgarização do discurso cibernético e pelos avanços tecnológicos, a imagem de
193
Agosto de 2005
ciberculturais que, apesar de fantásticos, são logicamente concebíveis e mesmo
plausíveis aos olhos do conhecimento científico de botequim.
Produto cultural indissociável da indústria de massas, pelo seu modo de
produção e de distribuição, o cinema também é o veículo privilegiado de
|
ocorre em outras artes visuais, tais como a pintura, escultura e mesmo fotografia ou
vídeo, o cinema abstrato é raro e dificilmente sai de círculos sociais muito restritos.
O corpo ciberespacial ou o corpo ciborguiano refletem um ideal no qual o
47
Ver: III.2. A vida moderna e o olhar cinematográfico.
194
Agosto de 2005
contexto fílmico e muito além dos videogames e próteses. O advento do “embrião”
como categoria social é um exemplo que sintetiza a necessária adaptação da
mentalidade coletiva frente a uma nova realidade prática: lidar com a produção,
armazenamento e tráfego – e tráfico, algumas vezes – de pessoas potenciais, prontas
|
genético (cf. Le Breton, 2003, p.90-93).
O corpo da mentalidade cibercultural, além de ser herdeiro de uma longa
tradição, também se antecipa às possibilidades de fato da ciência e tecnologia.
195
Agosto de 2005
que o equivalente biológico dos protótipos e mock-ups fabricados pelas atuais
tecnologias de CAD/CAM48.
Ao lado da constatação de que a cibercultura e o modo de ver
cinematográfico estão profundamente enraizados na cultura e história do ocidente,
|
aparência asiática é caracterizado como um fragmento estereotipado do Oriente, tal
como os ideogramas, as roupas típicas e as artes marciais. Corrobora para essa
conclusão, o fato de que, ao contrário, um personagem representado por um ator de
48
Acrônimo de computer-aided design / computer-aided manufacturing. Os sistemas CAD/CAM
permitem que um projeto desenhado por computador seja executado diretamente por uma máquina,
sem a intermediação humana.
196
Agosto de 2005
constituir uma crítica, o reencantamento proposto pela cibercultura não abre mão das
vantagens da modernidade. De fato, são as próprias racionalizações tecnológicas e
científicas a inspiração para as construções fílmicas que ultrapassam as raias do
absurdo. Nessas construções, como em um mito, tudo pode acontecer:
|
de The Terminator, a Matrix e seus agentes de The Matrix e mesmo Darth Vader de
Star Wars. Tais máquinas-gente confrontam-se com heróis que são figuras comuns
197
Agosto de 2005
porque as contradições coexistem no trickster cibernético que é possível restituir, ao
menos imaginariamente, parte da mágica que foi esvaziada pela mesma ciência e
tecnologia que lhe dá forma. Mas, no fundo, talvez eles nada mais sejam do que
sucedâneos ao qual se colou uma película de magia, pouco mais do que refinados
|
Imagens da Cibercultura • V: Conclusão
198
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VII. FILMOGRAFIA
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País de produção: EUA. Produtora: Blade Runner Partnership; The Ladd
Company. Ano de produção: 1982. Disponível em: DVD (117 min), wide/full
209
Julho de 2005
EUA. Produtora: Allied Vision; Fuiji Eight Co.; Lane Pringle Productions;
New Line Cinema. Ano de produção: 1992. Disponível em: DVD (113 min),
wide screen, color, New Line Home Video, 1997.
THE MATRIX (Matrix). Direção: Andy Wachowski; Larry Wachowski.
|
MINORITY Report (Minority Report: a Nova Lei). Direção: Steven
Spielberg. Produção: Jan de Bont; Bonnie Curtis; Gerald R. Molen; Walter
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Julho de 2005
WARGAMES (Jogos de Guerra). Direção: John Badham. Produção: Harold
Schneider. Intérpretes: Matthew Broderick (David Lightman); Dabney
Coleman (Dr. John McKittrick); John Wood (Dr. Stephen Falken); Ally
Sheedy (Jennifer Katherine Mack); Barry Corbin (Gen. Jack Beringer) e
|
(o exterminador); Michael Biehn (Kyle Reese); Linda Hamilton (Sarah
Connor) e outros. País de produção: EUA. Produtora: Hemdale Film
211