o filme é sempre representação. As imagens, em movimento ou não, nunca
mostram a realidade como ela é mas um olhar, uma perspectiva que se deposita sobre a realidade. E apesar de isto ter sido sempre verdade, não apenas desde que há cinema mas desde que há imagens, estas sempre criaram a ilusão de aludir a algo palpável, material. As imagens do cinema mantiveram essa ligação com representado e toda a história do cinema dominante, definida a partir do final da primeira década do século XX com o contributos dos trabalhos fílmicos de D. W. Griffith, foi construída em função de uma noção realista/narrativa em que todos os elementos que indiciavam a construção e a dimensão técnica foram extirpados. O cinema erigiu-se em torno da ideia de que todos os elementos que faziam lembrar que não estávamos a assistir à realidade, mas a uma encenação, deviam ser eliminados. Ainda hoje dizemos “parecia um filme” quando queremos aludir ao carácter surpreendente de uma situação que nos parece irreal mas no cinema ficamos fascinados com a capacidade da tecnologia para criar mundos fantasiosos tornando-os não apenas reais mais também habitáveis. O cinema criou inclusivamente um tipo de montagem a que chamou invisível e que tinha como propósito fazer esquecer o espectador de que estava a ver um conjunto de imagens em movimento e levá-lo a integrar-se no universo do filme. E se, ao longo da história do cinema, esta montagem invisível, transparente, foi contestada, e mais sistematicamente, a partir da década de 1960, novas cinematografias se opuseram ferozmente à sua utilização, o que é certo é que esta permanece e não apenas residualmente mas, ainda, como modo dominante. Lev Manovich, um estudioso dos novos media que tem dedicado grande parte do seu trabalho académico ao cinema, considera que a tecnologia digital vem afastar o cinema deste registo dominante e aproximá-lo das características do cinema dos primórdios. Isto porque, no momento em que a simulação é total, em que quer cenários quer personagens podem ser criadas digitalmente sem necessitar de qualquer referente material, a simulação deixa de poder ser camuflada. Para além disso, na perspectiva de Manovich, estamos, como no início do cinematógrafo, fascinados com a tecnologia. O cinema nasceu oficialmente em 1895 com as primeiras exibições públicas dos filmes dos irmãos Lumière. Mas foi apenas em meados da primeira década do século XX que assumiu a matriz realista/naturalista de representação que permaneceu até hoje. Como se caracterizou então o cinema até esse momento? Tom Gunning, autor que escreveu sobre o cinema inicial, designou essa etapa como o “cinema de atracções”, que se caracterizava por produzir filmes que não tinham a preocupação em contar histórias de modo linear, que não usavam a técnica da montagem como dispositivo para criar continuidade entre os planos e que estavam absolutamente fascinados com as capacidades da tecnologia do filme para mostrar o movimento e para testar composições visuais, mais do que para contar algo.
(continua na próxima edição)
Marta Pinho Alves
CINEMA E REALIDADE (II)
(continuação da edição anterior) Está documentado por vários historiadores do filme que o hábito de contar histórias adquirido pelo cinema, e que agora nos parece a sua modalidade fundamental, resultou da vontade dos produtores de simplificar a linguagem fílmica que gerou desde o início grande entusiasmo junto das massas e que, por essa razão, resolveram reescrever em imagens os grandes romances da literatura de sucesso desse período. Além disso, para estimar os custos das filmagens era mais fácil pensar previamente o que se ia fazer, planificar, do que deixar o curso da filmagem correr ao sabor da criatividade do artista e, com este intuito, foram criados os guiões. O cinema de atracções, na expressão de Gunning que alude às imagens em movimento dos primórdios cinema, tinha como atractivo a tecnologia e as suas potencialidades. Para Manovich, as novas tecnologias assumem agora o mesmo papel, condicionando o registo. Pode-se dizer, no entanto, e é esta a minha intuição, que o cinema dos grandes estúdios, o cinema de Hollywood, apesar de fascinado com as potencialidades tecnológicas, continua a canalizar os seus recursos de produção de imagens, como o computer-generated imagery (cgi), e a edição digital ao serviço do realismo, ajudando-nos a submergir nesses mundos artificiais como se de universos reais se tratassem. O espectador continua, quer na sala de sua casa quer no cinema, por maior que seja a parafernália de dispositivos sensoriais que tenha de usar (óculos esterioscópicos, datagloves, etc), a padecer de uma condição de bipolaridade cognitiva face ao filme: reconhece a sua condição de espectador face ao ecrã e o filme como um espectáculo de ilusões, a história como encenada, as personagens como actores a representar um papel mas, ainda assim, participa da acção, ri, chora, angustia-se, indigna-se, assusta-se e sonha fazer parte daquele universo. Quantas vezes não demos já por nós a fazer advertências à personagem, a tentar dialogar com esta? O filme, contudo, é capaz de assumir outras formulações que ressaltam a sua dimensão plástica e artística. Como disse antes, estas escritas de ruptura com os modos convencionais do cinema e do filme não se iniciaram recentemente mas sempre estiveram presentes. Desde que a modalidade clássica se institucionalizou que as suas alternativas não deixaram de se manifestar e houve momentos em que a influência das vozes dissonantes foi de tal forma importante que as suas linguagens migraram para o interior do mainstream e instalaram-se aí até ser absorvidos por este. Mas a diferença hoje é que o universo de criação alternativo está dilatado. Pela possibilidade de participação de mais indivíduos que beneficiam da simplificação, baixos custos e fácil acesso à tecnologia de registo, edição e distribuição e pela miscigenação e intercruzamento de linguagem, técnicas e influências provenientes de múltiplos campos mediáticos e artísticos.