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JENYU PENG
INTRODUÇÃO
1
Édipo em Colônia de Sofocles, v 131 – citação e tradução de F. Davoine, Guadillière Histoire e trauma
(2004)
2
Para retomar o título de uma obra de Max Milner (1991)
1
grande erro judicial, prejudicando pesadamente 14 pessoas inocentes. Os especialistas,
psicólogos mal conduzidos, não fizeram senão agravar uma questão judicial
catastrófica.
Mas no fim deste processo as vítimas do incesto foram completamente
encobertas pelas vítimas do erro judicial. Para evitar novas acusações mentirosas,
devemos nos ater a aquilo que a palavra das vítimas aponta, ou seja, de agora em diante
gastaremos mais tempo e esta será posta em dúvida.
Quanto ao processo de Angers, o mais importante foi que jamais tinha sido
organizado um assim na França, relativo a abuso sexual. Ele chegou à condenação de 39
homens e 26 mulheres por violação, agressão sexual e proxenetismo cometido contra 45
crianças com idades entre seis meses até doze anos, no momento das ocorrências. No
meio dos atos condenatórios, a maior parte foi decorrente de incesto.Na imprensa, isto
foi fortemente sublinhado, mais do que o fato de os principais acusados serem crianças
postas em curatela ou tuteladas – dizendo de outra maneira – eram pessoas conhecidas
pelo Sistema Social ou Judiciário – se bem que as repercussões deste processo tenderam
a reforçar uma opinião recorrente que dizia que as sevícias de caráter incestuoso
acontecem principalmente nas classes baixas e marginais e com pessoas que vivem “sob
a tutela social”. Ou como numerosas manchetes diziam sobre violência sexual
intrafamiliar, mencionadas em diferentes países nos relatos que nós temos recolhido,
mostram o contrário, que os agressores oriundos da precariedade material representam
somente uma parte que emerge da ponta do iceberg.
É certo que o incesto não está sempre ligado a uma forma de violência e ele
alcança realidades diferentes. A transformação de uma regra matrimonial exogâmica,
estudada na antropologia cultural do incesto, significa que houve uma união ilícita entre
pessoas que são parentes ou similares em um grau proibido por lei (a definição
apresentada pelo Novo Littré). Se olharmos o sentido jurídico do Código Civil, que
regula as relações sexuais entre membros de uma sociedade, esta definição não se refere
exclusivamente a situações onde a violência está presente. O incesto enquanto ato ilícito
é em realidade condenado por diferentes registros da lei, visando diferentes níveis de
transgressões; transgressão de uma proibição organizadora da ordem parental (registro
sociocultural), abominação, sacrilégio, (aspectos religiosos); desejo inconfessável posto
em ato (registro moral); delito ou crime contra a pessoa (registro judicial) tem sido
assim caracterizado.
Considerando as diversas realidades englobadas no mesmo termo, a definição
de incesto deve ser objeto de um recorte ateu dos fenômenos distinguindo, como sugere
Hélene Parat (2004), a violência incestuosa do fantasma incestuoso - a ligação
incestuosa da relação “incestuosa”. Mas, na mídia, os profissionais apontavam o sinal
de alarme (Cap. II). Enquanto vários dados apontados apareciam como resistência a esta
teoria, malgrado a diversidade de metodologias aplicadas e de populações pesquisadas,
sem falar da definição de “violências sexuais”, numerosas pesquisas anglo-saxônicas
convergem para assinalar a amplitude preocupante do fenômeno (Finkelhor ET AL,
1990).
Um primeiro estudo epidemiológico internacional avaliou que o incesto aparece
com uma aproximação larga afirmando que 7% a 36% das mulheres e 3% a 29% dos
homens foram vítimas de abuso sexual durante a infância e na maioria de casos,
ocorreram no seio da família (Finkelhor, 1994). Mas ele estava errado ao confiar, em
1993, quando leu a primeira pesquisa, feita com um objetivo específico, de apontar
violências incestuosas sobre as crianças. Os autores de tal livro usaram uma definição
de incesto: “Toda forma de contato ou tentativa de contato sexual entre pessoas
aparentadas mesmo que distante da linha de parentesco, e cometido antes que a vítima
2
atingisse a idade de 16 anos”. O relatório final concluiu que 17% das mulheres
interrogadas, ou seja, mais de uma em cada seis, tinham vivido um incesto. (Comitê
canadense sobre a violência cometida contra mulheres. 1993).
Para a França, ainda que obtido de modo indireto, os dados assinalam sim a
importância do fenômeno. Em 2000 foi realizada a primeira Pesquisa Nacional sobre
Violências Contra as Mulheres (ENVEF), que foi a primeira iniciativa no gênero.Esta
pesquisa revelou que a importância dessas violências tem sido largamente subestimadas
e que a maioria delas se perpetuam no espaço privado, o que explicaria o porquê delas
serem denunciadas raramente (Jaspard N, 2005 Ed. “La decuverte” Paris – Naryse
Jaspard “Sociologie des comportements sexuales - Série: Gênero, Trabalho e
Sociedade” igualité e diversité 2009).
Infelizmente, por cuidados para facilitar as rememorações dos fatos, esta
pesquisa se concentrou sobre as violências ocorridas nos últimos 12 meses e ocorridas
com mulheres entre 20 e 59 anos; residentes na França metropolitana. Quanto às
violências anteriores, elas foram identificadas, mas não foram detalhadas nem
analisadas. Aliás, segundo a pesquisa “Contexto da sexualidade na França” (CSF), que
foi realizada em 2006 por iniciativa da “Agência Nacional de Pesquisa Sobre a AIDS
(ANRS), 9,4% de mulheres e 3,4% de homens declaram ter sofrido assédios forçados
ou tentativas de relações forçadas antes de chegar aos 18 anos e 27% das mulheres de
mais de 40 anos tinham sido agredidas por seu pai, avô ou um membro da família
(Bajos ET AL, 2008).Esses dados declarados vieram completar os resultados dos
serviços de polícia e das unidades de Germanderias Francesas que apontaram, só para
ao ano de 2007, 5.455 casos de violação e 8.206 outros tipos de agressões sexuais
contra menores, ou seja, no total de 13.661 casos (Ministério do Interior, 2008).
Em uma outra pesquisa, oriunda do Serviço Nacional de Acolhida Telefônica
para a Infância em Perigo, em 54% dos casos de maus tratos sexuais (abusos), os
autores eram membros da família próxima (as pesquisas feitas nos USA apontam uma
taxa maior, de cerca de 2/3 a mais), ainda que as pesquisas feitas nos países anglo-
saxões apontem que só 10% das pessoas vítimas deste tipo de agressão recorrem à
polícia ou a uma instância do Judiciário (Julian Saint-Matin, 1995) o que é uma taxa
próxima da obtida pela ENVEF(1). Se nós relatarmos as percentagens da polícia
confirmadas pelas avaliações anglo-saxônicas, isto seria uma cifra próxima de 75.000
casos de agressões sexuais na França somente no ano de 2007.
Esses dados relatam 50.000 casos de abuso sexual, sofridos a cada ano por
mulheres adultas segundo a ENVEF (ou seja, 10 vezes mais numeroso do que a
pesquisa da polícia).
Não pudemos contestar estes dados em sua construção. Por hora, tais dados
estatísticos deveriam ao menos nos levar a questionar os enunciados que atribuem
peremptoriamente a violência incestuosa a um fantasma originário do Complexo de
Édipo tipicamente feminino. A afirmação de Paul Claude Racamier, “o incesto não é o
Édipo”, não parece ter tirado a dúvida ou deslocado os fatos provados na verdade
expressada por alguns psicanalistas contemporâneos, contra seus pacientes, vítimas de
violências incestuosas. Os relatos que os entrevistadores recolheram e estão neste livro
mostram que sua tentativa em desvelar este segredo continua a ser algo que contrasta
vivamente com uma teoria preconcebida: a do fantasma originário. Uma questão de
ética que se colocava então na escuta analítica.
A questão inicial deste livro nasceu da constatação de que nos encontros entre os
antigos analistas, as vítimas de incesto e os milhares de “psi” terminavam
freqüentemente muito mal no plano teórico, que está mais próximo da Psicanálise e
fundado pela organização libidinal do sujeito. Diante de um trauma real como fica o
3
incesto? Sobre a visão da prática psicanalítica, enquanto uma terapia capaz de é
possível acompanhar uma vítima de incesto sobre o ponto de vista de reconstrução?
Este questionamento nos leva a dois caminhos. O primeiro ao lado das antigas
vítimas, nós vamos descobrir a complexidade da vivência traumática do incesto
(Capítulo 1). O segundo conduz às origens do movimento psicanalítico para desenrolar
os pontos originais do mal entendido (capítulos 2 e 5 ).
Em geral os textos que abordam de frente o incesto podem distinguir
grosseiramente 3 tipos de incesto segundo um registro (de normal e anormal) ou
(benigno x traumático): 1 - o incesto comum (que é originário de um Édipo normal); 2 –
o incesto patológico (o agressor sexual é um Édipo perverso) ; 3 – o incesto traumático
(para a criança que sofre com a perversão do pai-mãe). As análises se concentram sobre
o primeiro tipo de incesto e suas diversas manifestações. A compreensão psicanalítica
das versões violentas de incesto tende a se focalizar sobre as fraturas narcísicas
edipianas. As violências reais do incesto cometido ficam relativamente marginais dentro
do corpo analítico, como se depois do abandono de Freud da “Teoria da Sedução”, o
incesto real tenha se tornado praticamente “acima do objetivo” para a Psicanálise.
Este desinteresse para com o incesto real pode ser talvez atribuído à evolução da
Psicanálise, que para decifrar os sintomas “hieroglíficos”, efetuaram um passo decisivo
atribuindo um status de realidade ao fantasma inconsciente: a realidade psíquica. Nós
discutiremos (no capítulo 2) esta volta teórica para o primado da Fantasia e do Édipo
como organizador da Psique e de suas conseqüências.
Os testemunhos das vítimas apresentadas neste livro foram recolhidos
,principalmente, dentro de um contexto associativo. Este objetivo ocorrido em
2002/2003 por ocasião de um estágio junto a “Associação Paris de Ajuda às Vítimas”
(PAV), que ofereceu consultas jurídicas e psicológicas para vítimas de todas a forma de
violência. Depois, em 2004/2005, eu entrei em contato via internet com a “Associação
Internacional das Vítimas do Incesto” (AIVI), que quis em seguida me autorizar a
participar dos grupos de discussão, como co-animador indulgente. Em seguida a vários
encontros com várias vítimas dentro de enquadre relativamente formal, me foi
permitido fazer entrevistas mais profundas com alguns dos clientes com um pouco mais
de intimidade, graças à confiança que eles me concederam e apesar de suas resistências
com a Psicanálise.
Além de incredulidade expressa pelos circundantes, no momento da revelação
dos fatos, uma coisa que ressoa de modo intenso desses testemunhos é a dificuldade da
vítima em se apropriar de suas próprias lembranças traumáticas. A extrema
complexidade das lembranças de vivências traumáticas oscila entre a amnésia e o
ressurgimento imprevisível, que nos conduzem a perguntar se existe uma especificidade
da memória traumática que a distinga da memória “ordinária”, por exemplo – (Cap. 3).
Uma incursão na fenomenologia “ricoueurienne” permite reabilitar a função veritativa
da memória por sua capacidade em tornar presente um passado ausente.
As vítimas são perseguidas pela questão da justiça. Ao longo de todo seu
percurso, a questão de um reconhecimento pela injustiça sofrida ressurge de maneira
lancinante. Esta questão começa freqüentemente por tentativas para obter um
reconhecimento de “si” de modo geral. É preciso, então, conter um sentimento de
alheamento para sair do adoecimento condicionado pelo incesto. Pouco a pouco, o
questionamento se refina, em função das escolhas oferecidas pelos encontros, tanto os
ocorridos sem programação, como os procurados. Enfim, no final de um longo tempo
corrido, muitas histórias convergem para uma tomada de consciência da necessidade de
ser reconhecido como vítima. Portanto, de saída, o status de “vítima” repugna a vários
deles. Negativamente conotado nas representações coletivas, o termo vítima é,
4
sobretudo, considerado como uma capitulação definitiva diante da vantagem do
agressor, de modo que certas pessoas preferem se chamar de “sobreviventes”.
Num desprazer com uma certa moda persistente em se colocar em guarda contra
a “vitimização” de nossa sociedade, a recusa em se reconhecer como vítima tornou-se
um obstáculo ao trabalho do luto. E nesses casos de incesto, a família participa do
mecanismo de denegação.
No meio das diversas vias experimentadas pelas vítimas para obter certo
reconhecimento eu me senti atraído, muito particularmente, por aquela do sistema
judiciário – mais por sua dificuldade do que por sua freqüência-. Aliás, a pesquisa
misturada aos dados da AIVI revela a força criadora desses encontros. A sustentação
recebida nesta comunidade de semelhantes é benéfica para a reconstrução. Entretanto,
por hora, são ainda as reenvidicações desejando um melhor reconhecimento social do
fenômeno que dominam.
Contrariamente aos dados que encontramos em países como Inglaterra,
Dinamarca ou Suíça, a violência incestuosa sobre menores não está inscrita como
infração específica do Código Penal Francês. Os casos reunidos aqui, de adultos
violentados em sua infância por um pai / mãe revelam, segundo a categoria judiciária
atual que, as vítimas de “agressão sexual” cometida por um ascendente ou uma pessoa
ocupando um lugar de autoridade são mais freqüentes. Mas, depois de alguns anos
houve uma divisão crescente entre os Juízes de Instruções que exigem uma
requalificação jurídica, e desta forma específica e particularmente da violência. O
debate se deu em torno da capacidade de uma criança consentir que ocorra o ato sexual,
capacidade apontada como critério invalidante de uma violação, qualificação de
violência que revela um crime e não um delito. Em julho de 2005 foi tornado público
um relatório da missão parlamentar; “É preciso especificar o incesto em uma infração
específica?” preconizando o uso do termo “agressão sexual incestuosa” para levar em
conta a característica específica de agressão sexual cometida por um parente próximo.
Conservando as antigas qualificações dos fatos, segundo a gravidade dos atos
cometidos do ponto de vista do judiciário e seguindo os impactos físicos e psíquicos do
ponto de vista das vítimas, este relatório tem ao menos o mérito de ter colocado em
causa a questão do “consentimento”. No entanto, a reconstituição dos fatos está
colocada para o Judiciário baseada em uma lógica positivista de provas.O processo
apresentou, ele mesmo, uma série de provas terríveis para vítimas, a ponto de provocar
um novo traumatismo. Sob o signo da pesquisa para o reconhecimento, nós
descrevemos no capítulo 4 o percurso do combate das antigas vítimas, que tentam
mudar a legislação a respeito disso e o olhar que a sociedade coloca sobre elas.
A clínica do traumatismo do incesto real lança dois desafios à psicanálise
contemporânea. Primeiramente, sobre o plano teórico, após o abandono da teoria da
sedução e a relevância atribuída à fantasia e a realidade psíquica, é preciso um novo
acordo de status da verdade histórica ao discurso do analisando? Dizendo de outra
maneira, até onde nós devemos negar a realidade dos fatos para não desconhecer a dor
psíquica do analisando? Em segundo lugar, sobre o plano terapêutico, a psicanálise é
capaz de intervir nos casos de traumatismos psíquicos causados por uma violência
destrutiva vinda do seu entorno? Em uma assistência terapêutica, no último capítulo,
nós perseguiremos ardorosamente os elementos rígidos nos dogmas psicanalíticos que
fazem falhar o encontro dos psicanalistas com as vítimas. Depois, em um segundo
tempo, ao inverso, nós veremos como a psicanálise, apesar de tudo, pode fornecer
ferramentas para assistir um sujeito, que sofreu muito mais do que as intempéries
edipianas: um incesto real que a destruiu.
5
Em se tratando do traumatismo do incesto, a teorização da fantasia incestuosa
oferece aos detratores da Psicanálise um pretexto fácil para qualificar de nociva aos
olhos dos pacientes que sofrem do trauma real. Suas divisões internas não as ajudam
evidentemente a formular uma resposta clara e coerente diante dos ataques que não
escondem seus objetivos: fazer da psicanálise uma disciplina e uma terapia ilegítima,
com o objetivo de afastá-la da Universidade e do Hospital. Portanto, é a Psicanálise que
nos apresenta uma regra crucial, que ordena nas relações familiares as figuras parentais
na organização psíquica dos indivíduos para que eles possam atravessar, sem muitas
dificuldades, o complexo de Édipo e se tornar um sujeito autônomo e ao mesmo tempo
afiliado. A condição de dessacralizar o dogma, o tesouro teórico e metodológico da
psicanálise pode enriquecer a compreensão da catástrofe psíquica do incesto.
6
Capítulo I
Quando tinha oito anos, Paulina voltou com seus pais à sua região de origem
durante as férias de verão. Um dia, após o almoço, um tio do lado paterno propôs que as
crianças fossem se divertir na praia. Ela estava muito feliz. A praia ensolarada estava
contornada por um mar de um azul cintilante. Vários guarda-sóis de azul e branco se
espalhavam em torno de tendas de praia, todas da mesma cor. Ela se recorda de ter se
3
C. Junin “Figuras et destin du traumatisme (1996)
4
S. Ferenczi “Confusão de línguas entre os adultos e as crianças (1933), em Psicanálise IV. Notamos que
este artigo é frequentemente citado no plural por erro, sob o título de “Confusão de Línguas” ou
“Confusão das Línguas”
7
reencontrado com seu tio. Eles se encontraram juntos e sós na tenda. Antes que ela
compreendesse o que ia se passar o tio lhe amarrou a mão a uma das estacas da tenda e
penetrou com seus 2 dedos na sua vagina, lhe impôs uma felação e ejaculou em sua
boca sem tomar cuidado de limpar e no final a virou para sodomizá-la. Estes poucos
minutos de tortura duraram uma eternidade.
“Eu tinha a impressão que minha alma voava acima de meu corpo e eu me via
lá embaixo, eu via o que se passava... mas eu não via a saída. Eu tinha a sensação de
estar prisioneira e me dizia: onde é a saída, onde está a saída. É preciso que eu
encontre a saída”.
Confusão de associações, diria Ferenczi, “psicose passageira” que protegeu
Paulina de um aniquilamento total da morte psíquica. Mas a sombra da morte estará
desde então onipresente. “Naquele dia eu perdi a noção de ser viva. Eu perdi a noção
de vida. Eu fiquei como morta”.
O tio saiu da tenda como se não tivesse acontecido nada. Ela se reencontra em
seguida no terraço do café de lá com ele e seus filhos; ele lhe oferece uma tangerina.
Nada parecia como antes; as risadas das crianças, os raios de sol, o barulho do mar. Em
todo caso foi dito. A interdição da palavra é imposta na estrutura mesma da ação de
força, devido à idade e a ligação parental, que “facilitou” a violação.
Vê-se pouco claro, e não se pode entender porque chamar de uma “confusão de
línguas”. Como se segue no caso, o agressor parece acima de tudo ter premeditado seu
golpe. Trata-se somente de uma resposta deslocada em um registro passional a uma
demanda de ternura da criança. Porque todas essas estratégias de aprisionar? Porque
esse desprezo após ter utilizado a criança como uma boneca inflável? Paulina conta:
“Ele nem mesmo me limpou depois de ter ejaculado na minha boca”. A agressão sexual
sobre a criança não é somente aqui uma resposta apresentada pelo adulto a uma questão
de amor da criança, mas sim uma exploração abusiva desta questão.
O mecanismo de defesa inconsciente funcionou com uma certa eficácia; a cena
foi completamente planejada e posta em hibernação, durante 25 anos. Os sintomas não
maquiavam nada, quaisquer coisas sem jamais trair as recordações que indicavam a
causa.
Pauline se relembra de uma lavagem compulsiva de seu sexo (no bidê de sua
casa) em seguida a este acontecimento, e também da masturbação compulsiva que
provocava uma culpa terrivelmente pesada, e mais ainda porque ela recebeu uma
educação religiosa rigorosa quase ascética. Por seu pai católico e sua mãe testemunha de
Jeová, ela estava convencida que se tratava de um pecado abominável: “A masturbação
é terrível. É necessário praticamente se escaldar as mãos”! Isto a levava a por em ação
todo o dia um sistema de purificação.
“Eu me sentia suja. Era necessário lavar minhas mãos, fazer a oração duas
vezes, eu a fazia vinte vezes. Então se eu dizia um nome antes do outro, era necessário
que eu começasse tudo. Era um pouco como o Padre nosso, mas eram nomes meus,
numa ordem que eu tinha estabelecido e eu não podia seguir em outra ordem diferente
daquela que eu tinha planejado (previsto)”.
Todas as noites, antes de dormir, ela verificava se não havia nada ou ninguém
sob sua cama e se sua Bíblia estava bem sobre o oratório. Ela tinha medo do escuro. Ela
sentia desejos de violência contra as outras crianças: “minha mãe protegia as crianças.
E eu comecei a ser muito agressiva com eles. Eu tinha desejo de martirizá-los”.
Estudando da terceira para quarta série, a agorafobia começou a se agravar e
tornou-se necessário que sua mãe a acompanhasse até a escola e a buscasse todos os
dias. Ela se tornou enurética até os 19 anos. Ela tinha medo de dormir na casa de sua
melhor amiga e acabar urinando nela: “Aos 19 anos eu senti uma grande raiva (ódio)
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no dia em que eu fiz pipi no leito sobre meu marido. Então eu me disse que “devia
haver um problema”.
Durante toda sua adolescência ela se disfarçava de menino imperfeito, optando
por vestimentas masculinas e perfumes para homem, como forma de disfarçar seu medo
dos homens: “Eu tinha muito medo dos homens. Eu não imaginava, por exemplo,
abraçar um rapaz. Eu me lembro de ter abraçado um pela primeira vez aos 19 anos.
Ele era meu marido”.
Ela encontrou o homem que viria a ser seu marido na comunidade de
“Testemunhas de Jeová” na época em que Lea ainda era crente e fazia pregações de
porta em porta. Ele se mostrou um pouco violento e manipulador e ela só tomou
consciência disso um pouco mais tarde. Recém casada e fiel à sua religião ela estava,
sobretudo preocupada pelo fato que antes do casamento, ela não era mais
virgem:“Quando nós nos casamos, normalmente pensam que somos virgens, mas eu
não o era mais. Isto me perturbava verdadeiramente. Eu me dizia: isto não é possível.
Eu perguntei ao meu ginecologista. É muito estranho, eu não sangrei. De fato meu
hímem estava completamente rompido”.
De suas 4 gravidezes, ela conseguiu colocar no mundo 2 filhos e uma filha, mas
cada gravidez foi sempre mau vivida, recusando a idéia de uma vida interior nela
mesma sustentada por uma imagem do passar da criança pura para um lugar do corpo
“impuro”. Pouco tempo depois de ter percebido que ela estava menstruada pela primeira
vez, ela fez uma falsa prenhez, sendo preciso se submeter a uma curetagem para retirar
os restos de um feto.
A partir de sua segunda gravidez, a doença associada ao fato de estar grávida,
cedeu lugar a uma felicidade profunda, desde que ela sentiu que o bebê começou a se
mexer. Entretanto, ela recusava a idéia de que seu bebê devia sair pela vagina:“Quando
eu tive meus bebês disse ao médico que eu não queria tê-los normalmente. Procure
fazer com que seja uma cesariana. Eu não tinha desejo que meu bebê saísse por aquele
lugar. Eu encontrei esta solução, eu encontrei este recurso... Para mim, a vagina não
podia ser um lugar para qualquer coisa pura que pudesse entrar ou sair. Para mim,
uma criança não podia sair por um conduto entre lugares impuros. Eu tinha a
impressão que ele ficaria sujo se ele passasse”,
Tal decisão provocou uma incompreensão do pessoal médico, porque era
injustificável do ponto de vista obstétrico, e finalmente seu próprio corpo encontrou
uma solução. Para seu primeiro filho ela desenvolveu uma toxemia gravídica, que só
poderia ser solucionada com uma cesariana de urgência. No segundo filho e na filha o
parto foi feito com cesariana em conseqüência de uma hipertensão que apareceu no 8°
mês da gravidez. Ela não conseguiu jamais ter um parto “normal”. Cada vez que ela
engravidou, ela e suas crianças foram salvas por uma cesariana. Notemos que ela disse:
“entrar ou sair”. Da mesma maneira o pênis do homem e a mão que masturba são
julgados impuros. Desde que Pauline procurou um Projeto de Associação que fazia
apelo às vítimas de incesto que quisessem testemunhar 5; várias mães que tinham sido
abusadas relataram então a ela uma grande variedade de doenças gravídicas.
Cinco meses após o nascimento de seu primeiro filho, Pauline sofreu uma
depressão violenta. Ela insistiu no fato de que esta depressão “violenta” não tinha nada
a ver com os “bebês azuis”:“Não há dúvidas de que eu golpeio com navalhas. Eu tinha
5
Ela foi um membro dos mais antigos e mais ativos da “Associação Internacional de Vítimas do Incesto”
(AIVI), que acabou abandonando, afinal, em 2005. Os objetivos da Associação consistem em “lutar
contra a negação social” e fazer avançar entre outras, as disposições legislativas referentes às
incriminações contra o incesto; à saber a inserção do termo “INCESTO” como crime específico no
Código penal e a adoção de uma imprescritibilidade para o crime de Incesto. Infra, nota 1 p.24 e Capítulo
4.
9
“ganas” de me matar, ou de destruir toda a família, meu marido, meu bebê. Eu
desejava suprimir todo o mundo. Isto era horrível. São as pulsões. Eu tinha desejo de
me jogar pela janela, de jogar meu bebê pela janela. Isto era terrível. Isto me fazia
medo verdadeiramente. Eu não tinha desejo de me lavar. Para poder me lavar eu tinha
a impressão que precisava de um esforço considerável. As coisas mais banais da vida,
a máquina de lavar roupa e etc... tudo isto tornava-se como se parecesse uma
montanha enorme. Eu me disse: não é possível, eu não vou conseguir chegar, então era
possível somente tomar uma ducha!”
Pode-se perceber que ela consegue sair de uma depressão sem ser hospitalizada
com cuidados psiquiátricos. Por outro lado, pode-se requerer isso se a hospitalização
pudesse permitir a verdadeira causa desta depressão, uma vez que a paciente tinha
perdido todas as lembranças de sua agressão. Para Pauline, após vencer o medo de estar
grávida, era o desenvolvimento deste medo que provocava uma antecipação
extremamente angustiante: “Cada vez, eu me dizia, não é possível, isto não é um filho.
Isto é terrível porque... eu não queria conhecer o sexo da criança... Mas eu não queria
certamente uma menina. E de fato, eu tive uma filha e após isso se tornou muito
agradável... Através dela era um pouco de mim que eu... eu sei que isso não é bom,
mas...”
O sexo feminino estando inevitavelmente ligado à posição de uma ilha sem
defesa no meio de um mundo dominado pelo masculino, vivido e representado como
predador, não poder colocar no mundo uma filha seria significar uma vítima em
potencial a menos. Ou isto parece que, para Pauline, a chegada de sua filha lhe ofereceu
uma oportunidade de se defrontar com suas penas (medos). Ela tomou consciência da
maneira que ela mesma poderia ter sido protegida por sua própria mãe durante sua
infância. Assim, algumas vezes, é a própria criança que se trata do pai psiquicamente
destruído. Foi esta regra que ela endossou quando ela estava pequena, e que ela não
queria sobretudo deixar acontecer com suas crianças.
Além dos sintomas, outros tipos de traços mnêmicos inconscientes - as
lembranças traumáticas, propriamente ditas, levaram 25 anos para retornar à superfície.
Tudo reapareceu ao saber do falecimento de seu tio. “Quando meu pai anunciou
que ele estava morto, e que ele iria ao seu enterro na Sicilia, eu comecei a ter
pesadelos mais e mais claros. E depois comecei a ter rememorações verdadeiramente
muito detalhadas”.
Durante o verão seguinte à morte de seu tio, Pauline fez uma crise histérica após
um encontro sexual, durante o qual ela se recordou da violação sofrida. Uma paralisia
total seguida de vômitos obrigou seu ex-marido a telefonar para o SAMU. Então ela foi
transportada para a Urgência, gritando num estado inconsciente: “Porque você me fez
isso? Eu não queria a tangerina!”... Pauline não pensa que o “esquecimento” seja o
nome exato para designar a eclosão de suas recordações de violação. Isto quer dizer que
quando suas evocações foram “remontadas”, no nível consciente, elas não foram
sentidas como estranhos desconhecidos, mas foram sentidas como conhecimentos
intrusivos dos quais nós procuramos esquecer a presença até que consigamos
“esquecer” sua existência. A impressão de estranheza aliada às suas lembranças
traumáticas reside na sua familiaridade mesma: como podem estar eles lá sempre, no
mais perto de si mesmo sem que o sujeito esteja consciente disso?
As recordações “recusadas” não se limitam à cena da agressão. Pouco a pouco,
Pauline se recorda de outros episódios de sua infância, quando ela tentava encontrar
“soluções” ao evento traumático:“Eu me lembro que eu queria me matar. Eu queria me
suicidar sobre as rodas da moto. Eu me recordo exatamente do momento e do local
1
0
onde eu queria me matar sobre a moto. Isto era o período do retorno às aulas. Eu sabia
exatamente tudo.”
Parece que se exterminar, para a maioria das vítimas de abuso, mais eficaz é a
forma de erradicar os traços da sujeira.Mas esta solução se debruça sobre uma
perspectiva paradoxal quanto a questão da culpabilidade.
Um pesadelo ficou mais marcante entre aqueles que assombraram as noites de
Pauline, após a morte de seu tio:“Estávamos numa sala de teatro. Estávamos ali, eu,
meu ex-marido e meu filho, o mais jovem dos três, e então todo mundo me dizia que ele
se parecia muito comigo. Nós estávamos sobre uma espécie de estrado. Meu marido
impunha uma espécie de felação ao meu filho. Enfim isto me parecia horrível . Ele
ejaculava na sua boca – foi isto que se passou comigo e meu tio. E os olhos da criança,
ele estava como um morto-vivo... de fato foi a mim que eu vi. A criança era o símbolo
de mim. Eu dizia ao meu marido, você podia ao menos limpá-lo”.
Isto se dá através do deslocamento de identidade – ela e seu filho; seu marido e
seu tio; sua mãe ausente e ela como sua mãe( assim ela pode pela primeira vez “se
rever” na cena como criança e começar a anunciar uma acusação tímida). O papel de
mãe é muito ambíguo no sonho: uma protagonista passiva crítica, mas impotente. Ela
testemunha uma desubjetivação, chegando mesmo a uma desumanização da criança
utilizada no erotismo perverso: “Isto é pior do que ser um objeto. É como alguma coisa
de morte, um pedaço de madeira morta, à qual não se dá a menor atenção e que não
tem nenhuma significação. Todos os lados em uma só moeda e todas as utilizações
quando você tem inveja. E isto é o pesadelo. Eu não esquecerei jamais os olhos do meu
filho. De fato eram meus olhos. Eu não jamais esquecerei os olhos de meu filho. Eu
tinha verdadeiramente a impressão de que eles eram olhos de um morto. ( Ela chora ).
Não há outra palavra”.
Na realidade a mãe de Pauline era uma mãe presente, mas incapaz de entender o
sofrimento da filha, daí ausente psiquicamente. Os medos, as angústias, a enurese, os
comportamentos de automutilação, a depressão grave., tudo foi reduzido às explicações
pseudomédicas, como uma crise de “crescimento” ou então de “adolescência”. Três
anos após Pauline ter sofrido e revelado à sua família a história do abuso sexual de seu
tio, ela recebeu ainda uma carta de sua mãe lhe aconselhando perdão como a única
solução possível.
Seu pai, irmão do agressor, foi a última pessoa da família que ouviu o que
Pauline tinha vivido durante suas férias de verão:“Meu pai; a primeira coisa que disse
quando eu contei o acontecido foi: “Bom, escuta: esta história fica entre nós, ela é do
passado, acabou e não se fala mais”. E eu lhe disse: não, eu não posso, eu vivi trinta
anos de silêncio. Isto está acima de qualquer questão, eu não espero nenhum dia mais.
Isto á minha história, eu faço o que eu quiser... Ele se quebrou, meu pai. Ele chorou
também. Isto foi um horror...”
Tomando contato com um dos filhos deste tio que parecia rejeitado pelo resto de
sua fratria, Pauline revelou o abuso. Este primo não manifestou nenhuma surpresa com
o relato e ele falou com ele mesmo: “Meu pai nunca me amou”... Ele assediou minhas
primas quando eu tinha treze ou quatorze anos. Uma prima do lado de sua mãe lhe
relatou espontaneamente, também: “isto também não me surpreende porque quando eu
estava com 12 ou 13 anos ele tentou comigo. Ele passou a mão nas minhas calças,
quando ele estava me levando para andar a cavalo”.
Esta pesquisa sobre o segredo familiar se mostrou frutífera. Muitas pessoas
acabaram por admitir que elas tivessem sabido ou ouvido outras histórias as respeito de
“avanços” que este tio costumava fazer contra outras mulheres ou jovens de suas
relações, principalmente com uma de suas próprias filhas:“Todo mundo estava mais ou
1
1
menos ciente de que ele assediava sua filha, e que havia alguma coisa de bizarra com
eles. Eles lhe disseram: Você se deu conta? Todo mundo suspeitava de algo, e ninguém
disse nada, ninguém fez nada. Mesmo por sua filha, ninguém fez nada! Isto é nojento!
Ele a tratava como sua mulher! Quer dizer que, quando sua filha tinha 16 anos, ele
saia com ela e nunca com sua própria mulher. Ele a presenteava como se ela fosse sua
fêmea. Ela tinha um papel de mulher mais do que de filha... Ela não tinha tido jamais
um noivo. Desde que ela teve um namorado, ele os afastava. Ela não pôde nunca se
casar”.
Muitas histórias de incesto se cruzam ainda num único homem, que não procura
dissimular a orientação de seus desejos sexuais. Os fios de proteção são, com efeito,
estendidos pelo agressor, pelos membros da família extensa que, partilham por sua vez a
identidade da vítima e a do agressor, participam em diferentes graus, da construção de
uma rede de denegações: com o propósito de minimizar o fato, de desculpar o membro
da família, este deboche não acontece sem concessões, a imagem masculina tradicional;
“Isto é um verdadeiro “porco!, e então?.
Os meses que se seguiram à crise histérica, Pauline decidiu ir à Sicilia, lá onde
estava enterrado seu tio. “Eu quero ir cuspir sobre sua tumba”... Mesmo se ele nunca
pudesse receber esse gesto simbólico, desdém, marca a emergência de um sujeito que se
autoriza a exteriorizar a fonte do mal designando-o culpado: “Eu tinha a impressão de
ter acabado esta história com meu tio, como se isso fosse um novo nascimento. E eu
disse ao meu marido; esta á nossa última viagem em conjunto”. Dentro deste
sentimento de renascença, Pauline iniciou um longo processo de reparação e decidiu se
separa definitivamente de seu marido, de abandonar a comunidade de Testemunhas de
Jeová e de respeitar seus próprios desejos e sentimentos.
A subjetividade do objeto
1
2
tenho simplesmente uma recordação de ter dito: “Eu vou contar à mamãe”. E depois
ele me disse: “Você quer que eu me mate, não é?.”
Pouco tempo após, o pai abandonou a mãe deixando Carole e seu irmão recém-
nascido com ela: “Na minha cabeça de criança, eu acreditava que tinha sido por minha
causa. Eu acreditei que minha mãe tinha mais ou menos cumprido a ameaça de que ela
tinha dito para que ele fosse embora, ou então que ela tivesse tido muita raiva, e então
ele resolveu partir. Eu acreditei que ele tinha compreendido que não podia mais ficar
lá”.
Mas muito rápida, ela compreendeu que a partida do pai não era nem uma prova
de tomada de consciência dele, nem a manifestação do amor de sua mãe, que de uma
maneira como a ursa, procura proteger seus filhos ameaçados pelo macho. Ela se deu
conta que o pai tinha partido com a melhor amiga de sua mãe. E quando Carole tentou
explicar à sua mãe o que seu pai tinha feito, sua mãe lhe “deu de ombros”. Ela revê
ainda a cena com uma viva impressão.
Portanto, as agressões tinham durado até os 10 anos, durante os fins de semana e
nas férias, quando Carole e seu irmão iam ver seu pai. Elas acabaram quando, no dia em
que seu pai veio ao quarto de Carole e descobriu com ela seu irmão mais velho na cama.
Nesta tarde ela tinha dito a seu irmão que papai vêm me incomodar à noite. O irmão
pôde compreender imediatamente o que ele queria dizer. Ela se recorda ainda, eles
dormiam todos vestidos, antecipando a surpresa do pai:“Para ele, eu não sou mesmo
nada além de objeto. Porque com um objeto se faz qualquer coisa, nenhuma ambição
para que ele seja valorizado. Mas eu, não existo mesmo para ele! Eu não sou, se não
um prolongamento do meu pai”.
Este testemunho coincide com a observação de Hélène Parat a respeito do ato
incestuoso: Neste “auto-erotismo” particular, o objeto está presente, mas não tem valor
de objeto, e se torna uma forma de “apêndice narcísico” 6. Se a agressão sexual é
frequentemente apresentada como uma morte psíquica, isto é porque sua violência
extrema reduz sua vítima ao nada.
Isto é “o porquê” que a vítima grita: “Eu não conto. Meu sofrimento não conta,
eu não sou nada”. Ou no caso do incesto, a vítima, se avaliando como nada e não tendo
valor nenhum, se sente responsável com o seu agressor, que ela chama no cotidiano de
”pai”, avô, mãe, tio, primo, irmão. Por essa marca parental ela partilha o devir, claro
macabro de preservar a ilusão de unidade familiar, sem ter segurança de ocupar um
verdadeiro lugar, se isto não está de forma negativa. O sujeito não pode estar lá se não
de modo apagado ou ocupando um lugar quase inexistente. Está aí o paradoxo
emblemático do incesto.
Em semelhança com outras vítimas, Carole teve a chance de ter um irmão que
assumiu o papel de parente protetor. Além do mais, como veremos em seguida, na falta
de recordações seguras à respeito das cenas de agressão, a memória do irmão tornou-se
a garantia da verdade desse passado, foi isto que salvou Carole da loucura, não duvidar
mais que ela podia dar crédito a sua própria memória. As dúvidas a respeito das
recordações traumáticas tinham contaminado outros aspectos de sua vida. Antiga aluna
da Escola de Belas Artes, apreciada por seus professores, Carole não pôde jamais
mostrar seus quadros em uma exposição. A falta de confiança em si, até o desprezo por
si mesmo, conduz frequentemente as vítimas de incesto e de agressões sexuais a um
sentimento ilegítimo, impedindo-os de ocupar um lugar verdadeiro. De onde vêem,
frequentemente, as dificuldades de inserção social, profissional e as desventuras das
relações afetivas.
6
H. Parat. “L’Inceste” 2004 p. 84-85
1
3
Nem sujeito, nem objeto, objeto 7
1
4
gostar de meu pai e igualmente por não ser capaz de dizer não” 8. Sem saber que tinha
direito à palavra, nem aos pensamentos ou sentimentos, o envoltório psíquico mal
formado, contendo antes de tudo os descréditos pulsionais, produtos de muitos ecos de
investimentos narcísicos que visam reabilitar o sujeito como tal. Entretanto, a veleidade
de projetar estes de sobre o parente-agressor sob forma de ódio desencadeia
imediatamente o sentimento de culpa.
1
5
Para Franz Alexander, analista americano, o sentimento de culpa é uma tensão
de angústia provocada pelo desejo inconsciente de vingança, o que ele considera como
um dos “silogismos emocionais”, o mais primitivo, como sabemos a Lei de Talião 10.
O sentimento de culpa nasce de uma reação natural induzida pela agressividade
própria do sujeito submetido a uma ameaça real ou imaginária. Este modelo primitivo
do sentimento de culpa vai fazer par com a angústia de castração. A criança se sentindo
castrada pelo acontecimento de força inigualável, com o seu pai rival, será tentado a
atacá-lo no seu eu imaginário inconsciente. Mas seu desejo será inibido novamente pela
realidade material (ele é mais forte do que eu) e pelo amor identificatório pelo pai rival
(eu vou me tornar tão forte quanto você). [Ora, como o pai é a seus olhos de criança um
ser onipotente, onisciente e onipresente, isto resultará no sentimento de culpa], um
correlato de angústia de vingança, não será apaziguada senão através de uma formação
reativa, manifestada na exigência moral da criança sábia.
Mas uma questão merece ser posta aqui; nessa seqüência moral, primitiva;
segundo Alexander, as conseqüências psíquicas dos ataques ou da inveja dos ataques, se
distinguindo segundo um grau de legitimidade? Em outros termos, se a pulsão agressiva
traduz uma tentativa de vingança contra uma injustiça sofrida anteriormente, o
sentimento de culpa existe razão para que ele exista? Logicamente não temos tendência
a pensar que uma vingança legítima, ou ao menos reconhecida como tal subjetivamente,
não devia provocar um sentimento de culpa. E, aliás, é o que Alexander apresenta como
argumento no seu artigo. Nem ao menos, parece que o inconsciente “raciocina” segundo
uma outra lógica.
A clínica das vítimas de incesto apresenta a regra seguinte: sempre acontece, no
nível inconsciente, um desejo de vingança sob forma de pulsão agressiva ou destrutiva
que procura uma via de descarga, uma instância superegóica ameaça de punição. O
aparecimento de um sentimento de culpa é então menos ligada à presença da
agressividade, mesmo justificada, quando há uma impossibilidade de justificar a
agressividade sentida. Se a origem do sentimento de culpa na vítima fica incerta, pode-
se ao menos estar de acordo com Alexander sobre sua função: “o sentimento de culpa
tem um efeito inibidor sobre a expressão da agressividade”. Isto significa que, para a
vítima se sentir culpada é uma maneira enviesada de não cometer a violência em seu
entorno. Dito de outra maneira, a agressividade interna provocada pela violência externa
se acompanha de um aumento do sentimento de culpa sob o olhar implacável de um
superego precocemente deformado.
Eu quero ressaltar aqui algumas hipóteses concernentes de eventuais origens do
sentimento de culpa que não seguem sempre pontos de vista psicanalíticos. A primeira
hipótese segue a pista da regressão, retornando a tempos históricos ou místicos de onde
nasceria a noção e de falta de culpa. Freud a situa sempre por definição à ameaça de
castração ligada às atividades masturbatórias da criança. Mas podemos imaginar outros
cenários respeitando a mesma cronologia da tomada de consciência da culpa: a criança
comete um ato pelo qual é punida quando é descoberta pelo adulto. Aqui, o caráter
furtivo do ato é ulteriormente e artificialmente designado pelo gesto punitivo do outro.
O sentimento de culpa assim provocado se liga então com a “consciência de
cometer alguma coisa de má’. A hipótese de regressão supõe que, em uma experiência
traumática extrema que coloca a vítima em uma impotência total diante da morte
iminente, seu funcionamento psíquico retorna a um modo arcaico, onde o tempo da
punição precede aquele da tomada de consciência da falta. Uma jovem toma
consciência que uma falta que lhe é imposta, gratuitamente ou com razão, após ter
sofrido uma punição dos pais. E é, aliás, ele que será julgado pelo Outro, pais todo
10
F. Alexander – “Remarks about the relation of inferiority fellings to guilt fealings (1938) p. 42
1
6
poderosos aos seus olhos, ao menos durante um tempo, quando os critérios morais lhe
serão transmitidos par construir seu superego antes de ser ajustado, submetido à
influência de outras figuras ideais ou idealizadas. Este modo de funcionamento evoca
uma lógica de causalidade na crença primitiva que, diante de catástrofes naturais, que se
deve procurar em si mesmo a origem das punições divinas. Uma forma de dedução a
“posteriori” visa tornar o acontecimento compreensível.
Esta hipótese de uma regressão cognitiva religa em uma certa medida a idéia
proposta por Freud de uma formação de masoquismo secundário como um retorno
regressivo ao masoquismo primário, processo que nós chamamos provisoriamente uma
“Regressão Pulsional”. A noção freudiana de masoquismo primário se apóia sobre a
determinação corporal e pulsional do sujeito em sua interação com o mundo. Em “O
problema econômico do masoquismo” 11 ele afirma que o masoquismo originário
erógeno será um “componente da libido” e guardará sempre a sensação de ser objeto
próprio do indivíduo 12.
A audácia de Freud o leva a pressupor que, em todo indivíduo, após um combate
parcialmente bem sucedido da pulsão de vida contra a pulsão de morte, um resíduo de
pulsão de morte sem poder descarregar para o exterior ela se volta contra o Eu. E este
resíduo de tendência masoquista, mais ou menos poderoso variando de acordo com os
indivíduos, poderá ser revelado em circunstâncias propícias e atacar o próprio sujeito
como um sujeito externo. Para Freud, o masoquismo secundário e inseparável do
sentimento de culpa inconsciente que o reenvia sempre à vida infantil, de onde Freud
cita como exemplo principal a experiência da masturbação. Eu prefiro sublinhar o
“masoquismo mortífero” 13 marcado por uma violência sexual sofrida durante a
infância.
Em “Luto e melancolia” 14 Freud “desenha” um sujeito melancólico que,
recusando, passo a passo, em perder definitivamente seu objeto, assimila-o, se
identificando com ele, o “homem do objeto” que tombou sobre ele. Comparando a
noção de “identificação com o agressor” esta identificação com o objeto perdido
procura uma explicação mais pertinente para compreender o sentimento de culpa e os
comportamentos autodestrutivos da vítima do incesto: diante da perda insustentável do
objeto de amor, o Eu se deforma a fim de evitar o aprofundamento psíquico que gerara a
tomada de consciência desta perda. Assimilar os traços do objeto é assim uma forma de
guardar no imaginário, ao invés de sofrer.
Além disso, prisioneiro de uma relação de encarceramento, não é raro que a
vítima introjete a palavra do agressor e ache que ela mesma “fez algo para isso
acontecer”. Esta maneira de introjeção alimenta uma imagem do Eu negativo que é
quase sistemático nas vítimas que sofreram um ou vários abusos sexuais na infância,
isto provoca ataques virulentos contra o interior do sujeito. Se nós associarmos o
mecanismo de assimilação do objeto do modo melancólico, que torna o luto impossível,
com esta forma invertida da pulsão destrutiva contra si mesmo, compreende-se melhor
então como uma assimilação do objeto, inicialmente auto conservadora pode se
transformar em um mecanismo de auto destruição. Isto então pode mesmo se transmutar
em uma fascinação dolorosa, que se transforma em uma forma de prazer mórbido e
desestruturante, caminhando para um masoquismo mortífero.
Do mesmo modo, minha segunda hipótese propõe que pelo fato de se sentir
culpado o inscreve em um movimento de auto conservação no qual o sujeito procura se
11
S. Freud (1924) - em “Neurose, psicose e perversão” p. 287 - 297
12
Freud – p. 292
13
B. Rosemberox, Masochismo mortífero et masochismo gardien de La vie (1991)
14
S. Freud (1915), in Metapsichologie – p. 145 - 171
1
7
apegar em um ponto de apoio paradoxal para evitar a alienação completa do Eu. O
sentimento de culpa corresponderá aqui a um esforço para recobrir um sentimento de
controle situando a responsabilidade em si mesmo. Este raciocínio encontra eco no
conceito Winnicottiano de “angústia defensiva”, ligada ao temor da desestruturação; é
necessário evitar a desestruturação redutora que, de fato já se produziu no passado.
Segundo uma forma particularmente torturante, o sentimento 15 de culpa será vital para
poder suspender a via “dissipante” e retardar assim o acontecimento da morte. Mas se
desenvolve então uma atitude mórbida, na qual a vítima espera sempre a chegada da
próxima violência: o “golpe de misericórdia” que ainda não se produziu, mas ele não se
retardará, e é conveniente ficar vigilante. Dito de outra maneira, graças à manutenção do
estado de angústia, o sentimento de culpa permite transformar a passividade - vivida no
momento da agressão e ficar em surdina – uma espécie de ação interna.
A 3ª hipótese é talvez a mais misteriosa: o sentimento de culpa estará sujeito a
uma contaminação do retorno do mal. Sempre ligada à imagem proposta por Freud na
qual “a sombra do objeto cai sobre o sujeito”, mas ao mesmo tempo está ligada a uma
reação instintiva de auto conservação através da manutenção deste objeto interno que é
o sentimento de culpa, o choque exercido pelo mal encarnado em uma visão do homem
“marcado” na psique e aí deixou traços indeléveis. O sujeito vê através deste olhar
aterrador o homem demônio, aquele que é capaz de fazer, ele também enquanto um
animal humano. Tal como a mãe podendo despertar na criança o Eros, o desejo sexual,
pela mamada e os cuidados corporais 16, o mal revelado na vítima, o Tanatus, a pulsão
de morte e de destruição. A vítima interioriza esta pulsão, como em último esforço para
se aproximar da dimensão humana, para não se deixar balançar para outro lado da
fronteira; desordem, monstruosidade, loucura.
Com efeito, o trauma psíquico provocado pelas violências humanas mostra os
limites de nosso instinto auto protetor. Porque a psique assimila um modo de pensar
manifestamente prejudicial para o sujeito, sobretudo quando ele vem daquilo que lhe faz
tanto mal? Este modo de pensar, que traduz por autocrítica tão encarniçada
freqüentemente não justificada, não visaria despertar uma raiva contra o agressor? Este
círculo vicioso, que consiste em se infligir mais mal para justificar o ódio, não é
finalmente um modo indireto de julgar o mal absoluto que representa o agressor? Ora,
fazendo isso, a vítima liga imprudentemente seu destino ao do agressor. O
superinvestimento sobre o objeto agressor reforça mais ainda a ligação estabelecida pelo
sujeito em um desejo de reparação ou de acordo entre as duas partes. Para sair desta
fuga, antes de mais nada emocionante, é necessário que a vítima chegue a se convencer
que ela pode viver sem o agressor. E isto é sem dúvida a parte mais difícil.
15
D. Winnicott – “La viante de l’effondrement et outres situations cliniques (1971)
16
S. Freud. Três ensaios sobre a sexualidade infantil (1905) p.105 Aleitamento
1
8
violência, e apesar disso se identificou com o agressor, por amor, por medo, ou ainda
por dependência.
Carole, que eu evoquei brevemente a sua história anteriormente, teve sua
primeira crise de anorexia aos 14 anos, quando ela ficou apaixonada por um rapaz.
“Como se eu não tivesse o direito...” disse ela. Este direito a escolher um outro objeto
de amor que não seja o pai que foi implicitamente suprimido com o ato incestuoso, tu és
minha e tu me pertencerás para sempre: “Eu me tornei anoréxica como que para me
punir por estar tendo desejo de existir”.
A recusa a se alimentar é freqüentemente comparada a uma percepção
deformada da imagem de si mesmo que leva o sujeito a frear o desenvolvimento
expansivo de seu corpo. Mas, no caso de Carola, parar de absorver aquilo que nutre
(símbolo de amor parental), é uma tentativa mais radical de consumir este corpo dado
pelos pais, acabar com sua existência sentida como um feito ilegítimo. Como Carole
disse: “quando se tem desejos, forçosamente nós existimos... Eu tinha a impressão que
meu pai me dizia que, não me interessa que você exista não me interessa que você
fale... Eu não existia se não quando ele decidia que eu podia existir”.
Retornemos por uns instantes sobre a 3ª hipótese formulada anteriormente. O
sentimento de culpa da vítima (“eu sou má”, e sua tendência a autodestruição (“eu me
puno”) ela já está engrenada quando sua própria pulsão de morte entrou em ressonância
com a pulsão destrutiva do agressor. Mas este magma de culpa é então ampliado por um
segundo conflito pulsional interno desta vez, entra a sexualidade infantil e a sexualidade
adulta. Tudo se passa “como se”, de agora em diante, a vítima estariá habitada e
consumida pelo interior por esta sexualidade que tinha transformado o adulto em
monstro. Uma outra vítima anônima escreve: “há um monstro aqui dentro de mim. E
este monstro é meu pai. Ainda que meu pai não esteja mais lá eu continuo com aquilo
que não consegue acabar...” No momento em que ela escrevia este testemunho, esta
mulher veio a ser hospitalizada por ter tentado se suicidar, pouco após a morte de seu
pai.
Todos os sintomas observados nas vítimas de agressão sexual, durante sua
infância, na adolescência ou na idade adulta torna-os autores da autodestruição. No
início, eles aparentemente reagem com sinais de alarme tendo como objetivo advertir ao
meio circundante ao invés do uso da palavra, que foi interditada pelo agressor: prestem
atenção em mim, eu tenho problemas, mas eu não posso dizer, porque eu vivo sob
ameaça ou porque eu não encontro um meio de desenredar do sentimento de culpa de
vítima. Mais do que um compromisso entre as pulsões contraditórias do supereu e do id,
aqui, os sintomas, os componentes autodestrutivos são como gritos desesperados.
A violência incestuosa condena toda expressão da sexualidade da criança
primeiramente, depois a do adulto que ele desvenda.
A pujança sexual fica bem marcada pela perversidade e pela culpa, que ele quer
melhor e bem interditar para se purificar, ou ainda banalizá-la ao extremo para excedê-
la. Certas vítimas interditam toda sua vida sexual, outras se dão a uma sexualidade
“desregrada”, se servindo dos homens como lenços descartáveis. Mas essas duas
tendências não são mutuamente excludentes, estando todas as duas impulsionadas por
uma estratégia para se desfazer da culpa. É possível que elas surjam em alternância nos
diversos períodos de vida. Na primeira versão, por querer se livrar de sentimentos de
culpa, o sujeito fica aprisionado em uma forma de obsessão de inocência, uma vontade
patógena de se purificar sem cessar, de onde os rituais de purificação chamados de
“transtornos obsessivos compulsivos” (TOC) no DSM 17.
17
Iniciais do Diagnóstico e Manual Estatístico das Desordens Mentais”, um manual escrito e publicado
pela “Associação Americana de Psiquiatria” (APA), que aponta as categorias de doenças mentais e os
1
9
Na segunda versão, une-se vida sexual (vitas sexualis) posta em prática em um
espírito de rebelião, como uma tentativa para superar o sentimento de culpa pela
demolição de todas as regras. Algumas vítimas retomam a lógica que lhe reserva o
agressor e tratam seu próprio corpo como um objeto sem alma, aquilo que é revelado de
modo inquestionável pela taxa de revelação de antigas vítimas de agressão sexual nos
casos de prostitutas 18. Em paralelo à autodestruição escancarada se desenvolve
igualmente um “eu não estou nem aí”, um modo de vida “anarquista”.
Nas tentativas de suicídio ou nas automutilações, muito freqüentes nos casos de
vítimas, deixam-se descobrir um esforço para separar do não eu, ou o do Eu “culpado”,
a parte do Eu tomado como objeto representado pela imagem de um corpo sujo, e o
verdadeiro Eu, ou o Eu inocente, tornando-se o executor da punição ou da purificação.
A vítima do incesto fica bloqueada no lugar onde o incidente traumático se produziu,
tentando eternamente organizar o caos ou de reparar o irreparável. (“Isto não
acontecerá, vive-se com isso”, diz com ênfase Pauline). Ela fica lá a limpar o sangue de
sua própria morte.
critérios de sintomas para os diagnósticos. Ela está hoje em sua 4ª versão e é usada mundialmente pelos
psiquiatras e cada vez mais pelos psicólogos clínicos.
18
Um estudo transnacional mostra que, entre 69% e 95% das prostitutas terem vivido antes de sua
maioridade, uma ou mais agressões sexuais, na maior parte cometidas por membros da própria família, c/
M. Farley et all “Prostituição e traficando...” (2003). Este estudo foi feito após entrevistas com 854
prostitutas em 9 países que tem contexto socioculturais muito diferentes. África do Sul, Alemanha,
Canadá, Colômbia, Estados Unidos, México, Tailândia, Turquia e Zâmbia.
19
Freud “Abrégé de Psychanalyse” (1938) p.5
20
Nós retornaremso a esta história (infra p.31)
2
0
freqüente sob forma de introjeção pulsional na qual o eu “destruído” sofre ao se afirmar
como sujeito. E por um curto-circuito entre se afirmar, agredir, se tornar sujeito,
significaria para a vítima se tornar agressora. Assim, por uma ironia trágica a vítima não
consegue chegar a se tornar ela mesma agressora para exteriorizar a pulsão agressiva
contra o outro, se cliva designando uma parte do eu como objeto de descarga pulsional.
Seu status de sujeito tende a se reduzir a um violento autoflagelo, contrário a um sujeito
autônomo, sem ser esmagado pelo objeto assimilado, capaz de entrar em uma
verdadeira relação com outrem.
Esta dificuldade em se tornar sujeito está fundamentalmente ligada à confusão e
à fragilização dos limites do envoltório psíquico. Ora, se a vítima divide com o agressor
o mesmo problema de limites, nela a natureza deste problema se situa no oposto.
Contrariamente ao agressor, para quem os limites não existem – a tal ponto que a
agressão torna-se mesmo, um modo de provar “além dos limites” – no lado da vítima, a
confusão se apresenta na maior parte dos casos como um colapso permanente durante o
qual os limites, espremendo para o interior e roendo o espaço do psiquismo, o que dá
um sentimento de fechamento oprimente, exacerbado pelo olhar dos outros. Esta
fragilização da estrutura psíquica explica talvez a freqüência da agorafobia e a
claustrofobia nas vítimas.
Para aqueles que viveram agressões abomináveis desde a mais tenra idade, a
estrutura psíquica está construída por sua vez como um anteparo protetor e um enclave
organizado contra o poder oprimente do exterior sob o qual a criança se choca
permanentemente. Desta maneira, todo ato que procura fazer mal para se sentir existir,
as diversas formas de comportamentos autodestrutivos (automutilação, tentativas de
suicídio, anorexia ou bulimia) podem ser interpretados como “dificuldades com limites”
em uma tentativa para fazer explodir os muros psíquicos.
Duplo Recalcamento
2
1
Finalidade do recalcamento: fuga do desprazer
2
2
O impacto deste desprezo alienante vai bem mais além das fronteiras sociais e
culturais. A emancipação do espírito não impede ao inconsciente de obedecer às leis dos
mecanismos de defesa, mas ela legitimará a luta quando o sujeito do recalque se atrelar
a um trabalho reflexivo e rememorativo para amortecer uma tomada de consciência.
2
3
Segundo o Freud Darwiniano, os mecanismos inconscientes de defesa fazem
parte dos reflexos instintivos com vista à segurança da vida psíquica. Nesta perspectiva,
a amnésia ou a denegação das vítimas do incesto, assim como em seu agressor ou em
sua família é antes de tudo uma última estratégia para evitar o desmoronamento do
mundo psíquico. Recalcamento ou clivagem? Os dois, talvez. Porque na experiência
traumática do incesto de cada vítima existem elementos que foram rejeitados após terem
sido percebidos e compreendidos, mesmo se o foram parcialmente, e elementos que
ficaram na obscuridade, descartados muito depressa sob um estado de choque, antes
mesmo de serem percebidos.
Os fatores como idade, circunstâncias nas quais as vítimas se encontravam no
momento da agressão, etc. podem modificar sensivelmente as capacidades cognitivas.
Eu retornarei mais em detalhes sobre este ponto no capítulo quatro, onde eu tentarei
tratar do papel da memória na experiência traumática. Por hora eu me contentarei em
apresentar alguns testemunhos de vítimas quanto a suas experiências de esquecimento
ou de denegação.
22
L.K. Cutting (1998) descreveu este processo de rememoração e de cura em uma autobiografia sobre a
qual eu me baseei como caso clínico para minha memória de DEA, Universidade de Paris VII, 2001
23
xxxx
2
4
Eis um outro exemplo, de testemunho posterior, encontrado em um site da
internet sobre incesto: incest.org. Uma mulher de 40 anos, sob um pseudônimo de
“stainless actio” 24 escreveu com emoção que, oito dias antes, as recordações de
agressões sexuais que um tio tinha lhe feito sofrer entre seis e oito anos tinha aparecido
quando ela viu numa das propagandas da campanha do AIVI para sensibilizar a opinião
pública.
Durante mais de 30 anos ela apresentava diagnósticos de psiquiatra em cima de
seus sintomas, como “alterações maníaco-depressivas”, acompanhadas de fobias, que
lhe atacava o olhar, o que se manifestava em purificações compulsivas: “uma forma de
precisar expiar eu não sei direito o que, uma necessidade maldita de limpar, sempre
tudo que eu tinha tocado, tudo que estava ao meu redor. Sujo, eu sou porca. Isto é
seguro e certo. Mas eu não sabia por quê.” Ela estava convencida que ela provinha de
uma mancha contaminante. Era preciso limpar constantemente para se preservar e ser
salva. Antes desta revelação ela guardava estranhos brinquedos de recordação de sua
infância. Ela estava hospitalizada durante um tempo mas ninguém lhe havia explicado
porque tinham levado ela para aí. Ela se recordava somente disto: “As enfermeiras me
lavavam as entre pernas me interditando o levantar e de ir tomar banho, sem que eu
pudesse participar de nada de maneira nenhuma. Os pais não lhe falaram jamais sobre
essa hospitalização e tinham obsessivamente evitado suas questões: “Portanto, há umas
sensações que retomam como flashes, sonhos que por vezes eu acreditava me tornar
louca. “Me disseram que eu fabulava, os pesadelos recorrentes, fiéis, me
acompanhavam toda vida”.
O visual da l’AIVI intitulado “uma verdadeira língua do papai” 25 apresentando
uma verdadeira língua em uma embalagem de jogos infantis, restabeleceu na época, que
eu vivia ainda um tio paternal adorado e temido: “Ele me oferecia, sobre o olhar e o
pescoço, grandes golpes de língua, me afogando nos seus braços... o desgosto me
dominava, e eu me sentia como se houvesse um ontem que eu jamais tivesse esquecido
completamente” 26. Quanto às vitimas que não esqueceram tudo totalmente, mas que
não conservam senão vagas lembranças, elas ousam muito raramente se confrontar com
o agressor que elas julgam amar e agüentar.
A denegação da vítima
Quando não há a amnésia psíquica, notadamente no caso das vítimas mais velhas
na ocasião em que ocorreu a agressão, um mecanismo de denegação se produz e se
põem em ação segundo um plano para ocasionar uma proteção psíquica. Anna é hoje
uma advogada de cerca de trinta anos, foi vítima de incesto paterno. Ela revelou na
primeira vez que participou de um grupo de palavras, uma história pessoal, que tinha
começado por um desejo que nós podemos qualificar de edipiano e que se transformara
em pesadelos sem saída, se alongando em uma réplica da sua consciência:“Eu tinha
sempre vontade de fazer as coisas porque ele (o pai) era muito orgulhoso de mim... Por
volta da idade de onze ou doze anos nós estávamos no lugar de férias habituais. Nós
nadávamos juntos, e eu estava muito contente de nadar com ele, de lhe mostrar os
progressos que eu tinha feito. Nós estávamos dentro d’água e ele me disse: “Eu estou
24
Stainless quer dizer inoxidável, mas também quer dizer imaculado, aquilo que não é anódino.
25
Xxxx
26
Testemunho colocado em site sobre incesto: incest.org em 06/03/2005 chamado “Amnésia pouco a
pouco revelada”.
2
5
apaixonado por você”. Eu de imediato compreendi que um pai não podia dizer aquilo,
que não era normal que ele dissesse isto, eu ri e eu passei para outra coisa” 27.
Quando a família chegou a casa após as férias, as primeiras apalpadelas tiveram
lugar na ausência da mãe e de seu pequeno irmão. Em seguida, começaram outras
formas de agressão sexual e a violação que perdurou:“Quando minha mãe viajou para
fazer os cursos com meu irmão, para mim surgiu o pânico a bordo. Eu o entendia, ele
se assegurava que o ferrolho da porta de entrada estivesse bem fechado, e eu ouvia
seus passos em direção ao meu quarto... Eu me lembro bem o que eu senti naquele
momento. Não se está mais lá, nós estamos paralisadas... E eu, o que eu fiz após a
terapia breve que eu estava seguindo... após uma felação... não importa quem, em
cinco minutos que se seguiram, eu me joguei no trabalho. Dissertação, exercícios de
matérias... eu me sentia no fundo, lá neste lugar e era como se não tivesse acontecido
nada.”
Ela percebeu, então, que era preciso que nada do que teve lugar impedisse
que ela pudesse continuar a partilhar o mesmo teto que o agressor (ele aprovava
sistematicamente as recusas colocadas pelas violências morais mais ou menos
ligeiras), em seguida os estudos, vivendo uma vida de criança, depois de
adolescente, e em chamar este homem de papai e, sobretudo, para não fazer
destruir a família. “Se eu não queria recorrer à DASS, e se eu queria um futuro
melhor, era preciso que eu guardasse o silêncio... Se então eu tomava sobre mim o
futuro, alguma coisa melhor me aconteceria”. Isso não impediu que ela vivesse duas
crises de depressão. Tendo se tornado advogada, ela não pensa em impetrar uma queixa.
Ela deixo,então, de maneira consciente, escoar os limites de prescrição 28.
Uma outra vítima anônima testemunha em um outro grupo terapêutico em 2003:
“Eu encontrei meios para fugir, para não me recordar; automutilação, bebidas,
agitação... e eu não via nada de estranho nisso”. Ela foi abusada por seu avô desde a
idade de onze anos. Por longo tempo, somente alguns meses. “E depois eu sofri de
modo permanente durante vários anos”.
Durante 24 anos, mais exatamente, ela entrou em uma psicoterapia onde
aprendeu que seu avô era um abusador. Isto ela reviveu , dizendo que não sabia que era
vítima de agressões sexuais, malgrado o fato que ela não tinha jamais esquecido os atos
cometidos por seu avô.
A denegação testemunhal mantém uma suspensão do pensamento que permite
ao sujeito evitar o confronto com o real mas interrompe, bloqueando no mesmo
momento todos os processos de simbolização. Frederica, uma jovem mulher que tem
hoje 30 anos, sofreu entre 5 anos e 15 anos os assaltos de seu meio irmão mais velho e
“adorado”. Aos quinze anos ela viveu mesmo como casal durante três meses com ele,
sob a força da droga, e constrangida ao mesmo tempo para se prostituir. A angústia
deste cerco do seu irmão a levou quase ao suicídio e ela finalmente decidiu largar o
inferno. Após ter retornado à casa de sua mãe, ela pediu para ir para um internato: “eu
me disse que era mais forte do que tudo isso... E eu ia provar a todo mundo que eu
podia construir um caminho que fosse bom, como todo mundo” 29.
Nesse caminho para chegar ao grupo terapêutico, Frederica fez uma crise de
“agorafobia”. Ela estava literalmente por terra, no início do grupo. Quando ela pôde se
27
Testemunho de Anna, em terapia de grupo na AIVI (resumo em “GP” para o seguinte, “Quais os tipos
de sinais após o incesto?” 27/11/2004
28
Ela escreverá mais tarde, em um livro com seu pseudônimo de Anna Gramm – “Le dèni de La mouche
à mile”, (não foi publicado); “Eu deixei isso prescrever por amor aos meus, por amor às minhas crianças,
mas eu precisava escrever essas pequenas páginas.”
29
Testemunho de Frederica: “Viver em casal após o incesto” 22/01/05
2
6
refazer, ela disse, falando de usas relações amorosas da juventude: “Eu era a
encarnação da prostituta. Quer dizer que eu roubava, eu consumia, eu descartava”.
Todavia, ela se casou com um homem que a soube ter como par e não soube
mandá-la embora no final de 15 dias como costumava acontecer habitualmente. Não
podendo mais ter filhos, eles adotaram dois filhos e uma filha. Mas ela acha que não,
que isso não passou de um “mis en cène” (fingimento):“Eu era uma espécie de morta
viva que tinha toda a aparência de uma vivente com toda a construção de “eu faço tudo
para ser feliz”. Eu era uma gorducha valorizada. Eu tinha uma família, um marido
extraordinário e crianças maravilhosas. Tudo ia muito bem, mas eu tinha um
sentimento de que eu tinha construído um teatro. E depois eu estava no fundo de uma
sala no escuro. Eu via todo este pequeno mundo vivo. E nada podia me tocar. Era
alguma coisa muito confortável. Onde não se era nem feliz, nem infeliz. Então é muito
agradável. Até um dia, onde nós nos damos conta que nós estamos em risco de passar
ao lado da nossa vida que nós não tínhamos jamais vivido”.
O falso self funcionou muito bem, até que surgisse uma crise que obrigou
Frederica a conduzir seu filho mais velho a um “psi”. No fim de 6 meses de terapia, o
psicólogo compreendeu que o problema não era o filho, mas sim a mãe. Esta pôde
reconhecer e ter provado uma doença profunda diante de uma tão perfeita afeição que
seu filho mais velho mostrava para com sua pequena irmã. Ela iniciou uma psicoterapia
para ela: “Era preciso que eu salvasse meu filho. Era a única motivação para que eu,
de todas as maneiras, fizesse uma boa ação, uma vez que eu estava morta, o caminho
era através de mim. Eu não tinha nada a dizer”. Ela relata com uma tonalidade irônica
como ela pôde enfrentar a realidade do incesto vivido após 4 meses de escrita íntima e
de pesquisa pela internet, e em seguida falar com sua “psi”:“Eu me tinha dito que, após
o dicionário, isto era incesto, mas que este nome não me dizia respeito. Então eu
procurei na internet, e então, havia um site! Então eu olhei várias vezes quando eu lia
um testemunho, eu me dizia: “mas isso é abominável! “Eu mesmo, não pode ser isso!”
E depois, eu volto para a psicóloga dizendo: “Não, eu não sou isso” E depois, ela
dizia; “neste caso, o que é isto?” Ah, merda! É isto! Então temos que retornar aí. e isto
durou 8 meses. No final de oito meses eu acabei por me inscrever na Associação” 30.
Mesmo no espírito das vítimas, elas mesmas, o incesto fica sempre “um crime
dos outros” (H. Parat). Além da evitação de um desmoronamento psíquico, para criar
uma aparência “normal”, “como os outros”, a denegação da vítima é um produto de um
isolamento radical criado por uma situação dolorosa não compartilhável, impedindo a
vítima de compreender sua vivência com os conceitos correntes. Encontra-se em todas
as vítimas de incesto uma lenta tomada de consciência que começa por um sentimento
de estar só e de ter vivido uma experiência inexpressível. Depois vem um período de
“descascar” e chegar a um acordo entre o vivido e o termo que deve nomear o vivido tal
como é definido culturalmente e socialmente.
A denegação social
2
7
interessante”, “Eu acredito nisso, mas isso deve ficar entre nós”, “Você quer mesmo
mandar seu tio para prisão?”, na polícia: “Você tem provas disso?” e de um psicanalista:
“Isto é normal, uma criança tem fantasmas incestuosos com sua mãe”, às vezes: “Você
tem direito de deitar com seu pai”. Por vezes: “é um silêncio lúgubre, a indiferença,
uma ruptura de uma relação amigável ou amorosa”.
Encontrar uma orelha sensível e compreensiva é encontrar engajamento em um
percurso de combatente. Ora a reação daqueles em quem a vítima confia e que ela
recorre pedindo socorro, quando ele faz isso, é decisiva para sua reconstrução. A pessoa
de confiança escolhida por uma jovem vítima é na maioria dos casos a melhor amiga da
escola. A mãe não aparece se não em segunda opção. Algumas vezes são as professoras
ou então outros elementos da família que tem o ar compreensivo e susceptível de ser a
escuta. E no caso em que o pai ou o avô, ou o companheiro da mãe (padrasto) a criança
frequentemente guarda o silêncio para proteger a mãe ou o casal, tendo sempre a
impressão que a mãe sabe o ocorrido, o que é verdade em certos casos.
Aliás, a denegação não acontece unicamente com pessoas comuns, pouco
esclarecidas sobre a realidade do incesto. Os profissionais podem igualmente utilizar
isso para se proteger. Em um enquadre terapêutico, ou em processos jurídicos, os “psis”
(psicólogos, psiquiatras e psicanalistas), os trabalhadores sociais, os agentes sociais, os
agentes de polícia, os juízes ou membros das instituições, podem ser completamente
despreparados para dizer as palavras certas e difíceis de entender. Acolher todas as
partes é uma tarefa difícil e delicada, que oscila entre muita empatia e muita
neutralidade, e muita desconfiança ou muito de credulidade. Aliás, todos os
interventores em que a sociedade confia esta tarefa não estão sempre prontos ou
preparados, ou formados para isso. A vítima vem procurar a ajuda junto a qualquer um
que seja sensível a este saber, assim como recebedor da demanda. Mas frequentemente
a decepção é forte.
Sob o plano da economia psicológica da escuta, quando a representação de uma
sexualidade ”normal” adulta, comportando fantasias vertiginosas, entra em colisão com
uma sexualidade perversa, isto provoca, além do desgosto e da rejeição, uma fascinação
ligada ao desmoronamento que ameaça as fronteiras entre o normal e o “perverso”.
Diante deste real, aquele que escuta resiste por vezes com sofrimento a esta
sedução, à tentação de balançar do outro lado do limiar, onde a fantasia sadomasoquista
se confundiria com a perversidade e empurra o imaginário para passagem ao ato. Nossa
compaixão para com a vítima torna-se incerta quando nós percebemos em nós mesmos
alguma ressonância a esta perversidade vivamente condenada em praça pública. Mas a
potência na erotização da violência não é possível a não ser com aqueles que a
conheceram e que imaginam que o agressor não faz senão colocar a sua fantasia na
passagem ao ato. Como nos pacientes histéricos examinados sob o olhar qualquer pouco
erotizado do público do século XIX, os relatos das agressões sexuais suscitam uma
erotização no imaginário daqueles que escutam ou lêem. Perdão por infligir um eventual
retorno sobre vocês leitores deste livro, aliás, mas há um obstáculo importante a
atravessar, tanto no enquadre judicial quanto no enquadre psicoterapêutico ou analítico.
Além da dúvida que poderia haver naquele que se coloca numa posição de
escuta, uma outra forma de denegação consiste em não concordar com nenhuma
importância do vivido da vítima, mesmo se o interlocutor reconhece implicitamente a
realidade, isto algumas vezes em nome de evitar a vitimização. Contrariamente à
experiência de Frederica, cuja psicóloga tentou clarificar e nomear seu vivido 31 ou
aquela de Carole que desde sua primeira psicoterapia era menos inspirada.
31
Sem dúvida, graças a este trabalho terapêutico Frederica não tem mais necessidade de um falso self
hoje em dia e nem se esconder, e pode se realizar em seu papel social como coordenadora.
2
8
No momento em que Carole pensou em ter seus filhos, imagens chocantes foram
evocadas de maneira impulsiva. Para esclarecer as dúvidas quanto Às suas lembranças,
ela pensou em avaliar a validade junto a um “psi”:“Como eu, eu não queria acreditar
que era verdade, eu lhes dizia”, “Tudo bem, eu tenho estas lembranças, mas eu não sei
se isso é válido”. “Eu não sei se isso é verdadeiro ou se fui eu que inventei, ou se eu
sou louca”... Minha psicoterapeuta me disse; “Ah, bom! Mas aconteceu... e então? O
Que pode ser feito? É o passado”... Ela estava completamente na denegação 32.
Após os testemunhos destas antigas vítimas, uma reação típica dos anteriores aos
anos 1990: que seja verdadeiro ou falso isto não tem importância, porque isto é do
passado e é preciso se resguardar para o futuro. Infelizmente, como as vítimas não
fazem sempre distinção entre um psiquiatra, um psicólogo ou um psicanalista, é difícil
saber de qual tipo de “psi” estão falando. Mas podemos saber, deduzir que este não
devia ser um prático familiarizado com uma prática psicanalítica, porque mesmo se ele
pudesse não querer resolver sobre a questão; se há uma realidade ou se é fantasia, um
analista não dirá certamente nenhuma palavra visando minimizar o passado.
2
9
os dois acontecimentos exige um "depois do golpe” ao “após o golpe” porque é a vítima
que nos explica: “Eu não estava recordada, a não ser quando...” A ligação que a
vítima faz entre os sintomas e as lembranças das agressões tomam um significado
incontestável aos seus olhos. Efetivamente este momento representa frequentemente um
momento decisivo na história da vítima que, tendo vivido uma experiência incestuosa,
procura resguardar diante ou lá sem sair.
33
Testemunho de Magali postado no site incest.org em 12/07/2002
3
0
Com o reaparecimento das cenas de violação, acompanhadas de pesadelos incessantes,
seus males outrora incompreensíveis “enurese noturna, bulimia, agressividade,
infecções urinárias de repetição, dores de cabeça... a lista é longa” tomaram, de repente,
um sentido novo.
Nos meses que se seguiram sua aparência mudou tanto quanto seu estado
psíquico; ela engordou 17 quilos em 18 meses, sofrendo com “uma angústia que a
colocava em permanente ameaça a todo momento o medo de destruir seu equilíbrio
precário, por causa de um ruído, um cheiro, um gesto”. Alguns meses mais tarde, sob
pressão de questões insistentes desta amiga ao mesmo tempo preocupada e confusa
diante de reações incompreensíveis de Magali, ela foi tomada por uma pulsão
imperativa de “vomitar” seu segredo:“Eu fui vítima de abuso sexual quando eu era
criança. Estas palavras surgiram como um vômito, um “prato estragado”, sem que eu
pudesse impedir, e que se tornou um efeito imediato sobre mim; eu estava me sentindo
leve e a náusea persistente subitamente desapareceu”.
Após esse “vomitado” da verdade escondida, ela não teve mais necessidade de
vomitar o alimento. Esta história ficou, entretanto, difícil de digerir, em se deixar
apropriar. “os dias que se seguiram forma caóticos, eu oscilava entre o desejo de crer
que tudo isto não era senão uma invenção do meu espírito torto e um sentimento de
enfim existir. Eu me descobri pouco a pouco”. Que seria este “Eu” que o sujeito ignora,
e que até onde e que está a ponto de emergir, deixando entrever a possibilidade de uma
existência autêntica?
Antes de reaparecer das lembranças, nós podemos observar uma forma de
clivagem que reflete um caráter autopunitivo dos sintomas. Tudo se passa como se um
“Supereu” punisse a parte clivada do Eu que guardava o segredo do mal, não
distinguindo o autor da vítima, como se a pulsão destrutiva introjetada (assimilada), e
em seguida revelada pela vítima, encontrasse uma satisfação em se irritar contra os
objetos internos, de onde o sujeito mesmo. Este mecanismo autopunitivo vai sem
dúvida ampliara muito bem o sentimento de culpa (em razão da descarga de violência
cuja origem é a ruína do sujeito) que o sentimento de impotência diante de um mundo
exterior sempre mais ameaçador e um mundo interior mais e mais indomável. Pode-se
mesmo dizer que é o sentimento de culpa que vai salvar o sujeito de seu sentimento de
impotência. Este encontra uma saída nas crises de histeria, uma forma de controlar o
interior de si para resolver os conflitos insolúveis no mundo real, e a fim de evitar o
confronto.
As crises de histeria de Magali se manifestavam cada vez que ela se encontrava
próximo de homens. Nesses momentos, os intestinos se contorciam, a nuca se contraia e
o coração disparava; quanto à razão, ela escapava completamente; se misturavam
completamente a inveja de criar, de fazer mal ou de me fazer mal, ou de fugir. E isto
mesmo quando o outro se mostrava amoroso e inofensivo: “Quando sua mão direita
pousava sobre meu joelho, eu sentia aquilo como agressão, como uma declaração de
guerra 34. O outro se tornava sistematicamente um agressor, um tirano; as significações
dos gestos estão fixadas no registro da violação e o estado de impotência da criança
sobrevive na impotência da mulher para construir uma relação equilibrada. O agressor
estando morto, a vingança direta não é mais possível, é necessário procurar um meio.
Magali redigiu uma carta ao Procurador Geral da República para testemunhar com
palavras de adulta os detalhes “da perversão de certos homens e a dificuldade de viver e
crescer com isso”. Os sintomas evoluem ao mesmo tempo em que a capacidade de se
apropriar da história do incesto. E reconhecer a existência desta história é o único meio
34
Testemunho de Magali
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1
de se tornar viva:“E, quebrando o segredo por escrito, eu quero crer que minha vida
vai poder começar”.
3
2
gostavam de fazer amor”. Esta frase não fez sentido para ela, senão muitos anos mais
tarde, quando apareceram as primeiras recordações do dia em que ela viu seu pai lhe
acariciar na banheira, quando tinha apenas dois anos, no momento este que ela teve
seu primeiro relacionamento afetivo com um amigo. Aos poucos e na medida que
outros recordações ressurgiram, sempre durante os encontros sexuais.
Ela evocou “nas noturnas durante as quais seu pai deitava no seu leito e
introduzia carícias e palavras de amor”. Ela ficava acabrunhada com essas
imagens:“Filha maldosa” Eu tinha verdadeiramente este sentimento de ter
pensamentos salgados , desconectados.Uma culpa muito forte de ter inventado
isso.Então, eu me disse que eu estava louca porque isso não podia ser verdade.Como é
que eu poderia imaginar uma coisa parecida?”
E por isso, essas idéias loucas que ela não ousou dividir nunca, nem com sua
mãe, nem com sua irmã” quase como gema”, nem com sua avó querida, “quase como
mãe”, ela desvelava a cada novo pequeno amigo, justamente após ter tido a primeira
relação sexual com eles. Mas, longe de se surpreenderem, esses jovens amigos “não
tinham nenhuma reação, nem ficavam horrorizados, nem nada.Porque eles viam meu
pai.Eles diziam bom dia. Eles lhe apertavam a mão.Aparentemente, isto não lhes
causava nada além disso. Eu me dizia: não é grave”, o que queria dizer não somente
que não era grave mas que podia ser que isto fosse freqüente, finalmente. Houve
tentativas freqüentes de confrontações indiretas por uma pessoa interposta, mas elas
evocaram todas, esta cumplicidade masculina tendo, parece um caráter de banalização
da relação de força/dissimetria entre os dois sexos.
Aos dezessete anos, Nina começa um primeiro ensaio de psicoterapia em razão
de uma fobia de ratos e de banheiros. Até o nosso encontro, ela havia consultado vários
psicólogos e psicanalistas.Nenhum tinha conseguido dar sentido a estas fobias ou se
proposto a interpretar satisfatoriamente os pesadelos recorrentes que a atormentavam
durante trinta anos:“ Este pesadelos tinham 2 ou 3 formas, mas sempre com um mesmo
tema.Eu estou e uma adega.Grandes ratos negros se agitavam em torno de mim, um
por um , eles começam a entrar na minha boca, enfiando na minha goela e há sempre
uma cauda que se agita.Nese momento, eu me assusto e me levanto.É por isso que eu
digo que eu tive fobia de ratos durante trinta anos.Verdadeiramente, eu era fóbica e
super-fóbica.”
Este pesadelo ficou incompreensível, até que outras cenas parecidas com “fotos
instânteneas” vieram á sua memória; no banheiro, seu pai lhe impunha umas felações;
em uma outra evocação, mais aterradora ainda, quando ela era tirada de seu leito á noite
por seu pai, após uma festa particularmente arrojada.Ela sentiu o cheiro de álcool.Ela
viu sua irmã Jeanne que fechava os olhos enrugados contra o muro.Antes de exigir, ele
mesmo, seu pai obrigou a ela fazer felação á dois homens que ela conhecia, seu
padrinho e o marido de sua madrinha:“Até o dia em que tive esses flashes de felação,
quando eu me disse que os ratos representavam a felação.Eu me decidi escrever e
relatar meus pesadelos. Eu associei os dois, o que eles representavam e desde aí, os
ratos desapareceram de minhas noites e eu não precisei nunca mais fazer aqueles
pesadelos”
Sua auto-análise escrita a liberou de pesadelos. Isto foi o início de uma tomada
de consciência de poder ter sofrido um incesto. Até então, ela nunca tinha podido falar
do incesto com seus diferentes terapeutas, simplesmente porque o termo nunca tinha
atravessado seu espírito. O flash mais recente foi o de uma cena no banheiro: seu pai a
sodomizava lhe dizendo que ele lhe colocava um supositório para que ela fosse ao
banheiro bem. Ela pensa, então, ter encontrado a chave do enigma da fobia de banheiros
que tinha transformado sua vida em um calvário:
3
3
“Esta fobia me desestruturava o interior. Ela me adoeceu me lançando em um mundo
sem prazer , onde as simples necessidades fisiológicas de todos os seres humanos me
apareceram como vergonhosos ao ponto de que não era uma questão de aceitar ou de
constranger.Eu me desimpliquei deste meu corpo culpado e da sua negritude de suas
intenções.Eu me decidi de não mais fazer sair aquilo que entrava pela força para o
interior de mim.E eu inconscientemente intimei meu corpo para não funcionar
normalmente. O medo dos banheiros enterrou minha vida social.Eu me condenei à
solidão por necessidade.
Eu iniciei um processo de evitação que me privava de toda vida amorosa, de
férias em família, de fins de semanas com meus amigos. Eu fiz , então, um luto de uma
vida aberta. Eu me reneguei na minha natureza profunda. Eu mentia para a minha
família e meus amigos para justificar minha falta de aceite a cada convite que me
faziam. Era impossível confessar meu passado, falar sobre minha fobia ou preferia,
então, passar como uma anti-social ou uma pessoa definitivamente indisponível. Eu era
incapaz de dizer; eu não irei a sua casa, eu não vou por causa de inveja , mas porque
eu não posso.Porque se eu for, eu acabarei em um hospital como todas as vezes que eu
sai de minha casa depois que era muito pequena. Eu fiz uma crise de apendicite ou uma
oclusão intestinal, porque eu tinha medo de ir ao banheiro. Cada vez que fiz isso, eu
senti suores frios que eu não consegui controlar.Meus mais básicos instintos naturais
foram bloqueados à ponto de que eu não podia sentir nada e que, ter inveja ou não ter
inveja, era então impossível. Urinar ou defecar.
Todos os meus músculos estavam retesados. Meu coração batia intensamente.
Eu tinha a impressão que ia morrer e a minha única astúcia que eu encontrei num dia
foi de lacerar as mãos com minhas unhas ara rejeitar um reflexo natural para todo
mundo. Mas, não para mim.Isto me afastou do mundo. Esta história minha com os
banheiros.”
Para confirmar a realidade dessas recordações que reapareceram ela, no entanto,
tentou se confessar, sem dar os detalhes com sua irmã Jeanne que dormia no mesmo
quarto que ela durante toda sua infância e que, em conseqüência, poderia ser testemunha
de alguma coisa. No primeiro tempo, mesmo se ela não rejeitava nada de sua parte, a
reação de sua irmã foi decepcionante porque ela não tinha nada mais significativo de
recordações.Ela se dirigiu para sua mãe, que teve uma resposta desarmante: “ Foi algo
que me escapou? Ele, respondeu ela quando ela lhe confiou parte de suas dúvidas
sobre o caráter incestuoso de seu pai.Nina se decidiu então a escrever a seu pai para
lhe explicar porque ela não queria mais revê-lo, na esperança de assim inocentemente
obter as confirmações. Mas ele negou os fatos e se inocentou de tal acusação, dizendo
que ela estava louca e que tais acusações eram mentirosas.
Isto causou uma dupla dor. Esta carta, um apelo de socorro me salvou da
demência , mas me desestruturou um pouco mais.Eu tive a impressão de ter enviado
uma bomba cujo estouro me lacerou com uma tal violência que eu regredi tanto que o
testemunho espontâneo que eu esperava liberador se perdeu.
Meu pai negou tudo em bloco, sua mulher sustentou a mentira, a família de meu
pai ficou ultrajada com tal afronta.Meus irmãos estavam em estado de choque, não
sabendo de que lugar se posicionar e minha mãe se obstinava em uma denegação
próxima do absurdo.Eu estava definitivamente só com minha verdade que ninguém
queria entender.Eu pensei: quebrei um tabu, mas isto era tão feroz que a paisagem se
fechou em torno de mim.Eu me tornei enpestiada, aquela me ameaçava o equilíbrio
familiar, aquela que os colocava todos em perigo e a armadilha se fechou sobre
3
4
mim.Maluca eu acreditava que era, maluca eu estava porque todos estavam contra
mim.”
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Ruptura e renovação da filiação
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seu pênis na sua boca e depois na sua vagina para “fazer amor” com ela. Ela acreditava
que isto devia ser normal porque ele era seu pai. No fim e à medida que se repetiam
seus atos, Isabelle começou a apresentar sinais de raiva contra sua mãe; problemas
respiratórios sem causa fisiológica, roubos, fugas, tabagismo a partir dos 8 anos,
anorexia, bulimia(dos 9 aos 23 anos), automutilações,toxicomania, “toneladas” de
tentativas de suicídios...
Entretanto, tudo isso era ignorado por uma mãe absorvida por seus próprios
problemas. Pior, esta contribuía largamente para eliminar os limites e confundir as
regras: “meus pais tinham relações sexuais diante de mim. Duas vezes, eles me pediram,
quando faziam sexo no quintal, para que eu ficar de guarda para ver se alguma pessoa
chegava”.
Além disso, este pai tinha o hábito de relatar à sua filha todas as aventuras
sexuais. Entre 12 e 13 anos, após a separação dos pais, ela ficou sozinha com seu pai:
“ Eu fazia tudo na casa. Aos 12 anos, eu dava os recados, preparava a comida e fazia
as contas. E à noite, eu “trepava” com meu pai. Eu assumi o papel de sua mulher”.
Durante quase 2 anos, além de ocupar o lugar de “dona de casa”, seu pai a
trocava com mulheres de outros homens antes de prostituí-la. Aos 13 anos, uma cena de
amor na televisão fez ela se perguntar. Ela se diz: “mas essas pessoas são adultas e eu,
sou uma menina”. Uma primeira confidência com a vizinha tinha deslanchado muito
rápido um procedimento judicial que durou um ano. No fim, seu pai foi condenado a 6
anos de prisão diante de um tribunal correcional.
Durante anos de instrução, Isabelle retornou para casa da sua mãe, e á então, foi
o seu avô materno que “retomou” o abuso. Quando sua mãe percebeu que Isabelle
estava sendo abusada por este, acabou por levar sua filha à clìnica para fazê-la abortar.
Esgotada por um procedimento judicial alucinante, por causa dos numerosos cinismos
emitidos contra a vítima, Isabelle não conseguiu coragem para se engajar em uma
segunda luta. Diz: “Eu revi meu pai após sair da prisão. O mais duro da reconstrução
foi fazer o luto dos meus pais. E eu me dizia frequentemente que preferiria ser órfã.Ao
menos eu não teria mais ilusões”.
Seu pai se sentia sempre “vítima” diante das contestações do julgamento, da
humilhação e da condenação carcerária que sua filha lhe fez sofrer: “Você fazer isso
com seu pai!”
Entretanto, foi a mãe que tinha insistido para que ela desse queixa: “Eu não
tinha dito nada. Tudo o que eu esperava daquele momento era poder fugir do meu
pai”.
Aparentemente, o julgamento e a pena pronunciada pela Instância Jurídica do
Estado, 3º Supremo, não tinha contribuído em nada para uma tomada de consciência,
por parte do pai, do criminoso nos seus atos. Ele interpretou esta condenação como uma
vingança elaborada por sua filha e sua ex mulher (isto não é totalmente falso no que
concerne à esta última).”Foi sempre ele a vítima e eu a culpada”.
Para Isabelle, fazer o luto de seus pais consistia em sentir e se dizer que ela
nunca teve pais. A desilusão consiste em enterrar o desejo de se inserir em uma filiação
que ela nunca tinha conhecido lugar. Era neste sentido que ela desejava compreender a
cumplicidade quase inevitável da criança para com o parente agressor. “Cúmplice”, um
termo soturnamente culpabilizante aos ouvidos das vítimas, como se elas tivessem
cavado sua própria tumba. Mas, para a psicanálise que se esforça por devolver ao sujeito
o status de sujeito autônomo, o termo é um modo de tornar palpável um paradoxo
insolúvel.
Mesmo sob o ângulo de uma psicoterapia familiar sistêmica, na medida em que
a criança participe do mecanismo de segredo para preservar a integridade da família que
3
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lhe parece a única proteção possível contra o mundo exterior ou meno mal; assim
Magali reduz esta localização a um “foyer” especializado, uma ameaça brandida pelo
avô agressor; Anna reduzida a ter confiança à DASS. A criança se rende à
“cumplicidade”, apesar de adulto de tudo. A cumplicidade é sobretudo mais forte
quando a família goza de uma boa imagem no seu meio social. Ora, a falta de uma
resistência aberta ao sistema incestuoso não quer dizer participar no ato sexual em
partes iguais com o agressor.
Sobre o terreno deslizante de uma família desprovida de sentido, dentro dela
uma tirania afetiva impera. A criança se torna uma espécie de “boneco de
engonço”vivo, sendo importante, então, intervir para oferecer uma nova filiação. Nos
melhores casos, as vítimas de incesto encontram no seu entorno pais substitutos, que
lhes permite construir uma nova base mais segura para a relação objetal.Mas, mais
frequentemente, a vítima se encontra em um isolamento extremo, seja porque ela goza
de uma rejeição familiar, seja porque ousou denunciar os fatos. Muitas das vítimas de
incesto sofrem assim uma dupla condenação: por uma lado, a agressão sexual e por
outro, a atitude de negação de seus familiares e o primado do valor familiar.
Filiação Condenada?
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difícil de situar.Por vezes, mesmo se a reprodução incestuosa se dá graças a uma vítima
suficientemente consciente para conseguir sair do círculo dos atos perversos, o
sentimento de transmitir alguma coisa de mal, permanece muito forte.
A filiação é, então, percebida por certas vítimas como portador de um mau
transmissível de geração para geração. O incesto evoca, na vítima, assim como na
representação coletiva, uma mancha resultante de uma mistura do mesmo sangue por
um ato “impuro” que se perpetuará totalmente na linhagem e se manifestará sob
diversas formas. Isto nos dá a ocasião de constatar que um ato não acontece jamais sem
uma conseqüência, que o corpo reage através das significações estabelecidas e nascentes
em sua interação com o outro. O corpo se constrói com o conteúdo psíquico, e ao
contrário também. Quando os traços físicos desaparecem, são os traços psíquicos que
continuam a “trabalhar”, por sua vez sobre o corpo biológico e sobre o corpo psíquico.
Quando a relação incestuosa produz ou não, descendentes, a mancha do incesto
se “torna transmissível” a partir do momento onde a contaminação simbólica penetra a
representação do biológico. Como se desta ligação incestuosa, o moi-vítima violado
pelo pai, decaído no simbólico, produzisse um moi-monstro deficiente,fruto de uma
transgressão perversa que vem se inscrever na cadeia(no sentido de corpo físico).
A vítima se considera , então, como herdeira de uma déficit “genético” ligado à
perversão incestuosa, que se manifestará por anomalias nos seus descendentes. Por
exemplo, “Anna”, já referida anteriormente: “Eu tenho duas crianças, duas filhas que
tem 6 e 7 anos, dois pequenos lobos adoráveis, mas sem chance, isto eu pensanva,que
era um conjunto de circunstâncias más, meu filho mais filho foi diagnosticado como
autista...Para mim, isto era genético,isso vinha de mim.E porque? Ele era meu filho, e
era eu, eu a filha de meu pai, um menos que nada, e a cadeia genética do meu lado era
podre. Eu o sentia assim42”.Nós vemos aqui como um desastre sobre o plano simbólico(
o incesto na infância) gera na vítima todo um sistema de crenças,no caso de Anna, um
esquema explicativo do ponto de vista biológico(os genes podres) tendo por substrato
real uma crise psicopatológica( o autismo de seu filho). A vítima fica assim convencida
que a criança foi tomada pelo incesto através dela. Que tenha havido ou não uma
gravidez real, tudo se passa como se o ato incestuoso tivesse inseminado um monstro
físico para o qual o aborto parece impossível. No caso de Anna, uma criança fantasma
originário do incesto foi posto no mundo sob forma de autismo. Como o espectro de um
feto abortado errante nos limbos, este indesejável feto psiquico perseguindo a vítima e
se apoderando de todas as ocasiões para se encarnar nas peripécias fortuitas.
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formação de dois campos muito assimétricos no seio da família ampla: um campo para
a vítima frequentemente minoritária versus um apoio para o agressor, frequentemente
majoritário. No seio do primeiro.....
Conclusão
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Apontando a realidade psíquica como o único “lócus” onde reaparecem as cenas
traumáticas, a psicanálise desvia a questão da origem externa ou interna do
traumatismo, a saber, a verdade dos acontecimentos relatados. Esta escolha
epistemológica é compreensível na medida em que a formação do traumatismo e suas
vicissitudes causam um efeito numa dialética , entre os de dentro e os de fora.Não existe
mais acréscimo, correlação direta e certezas entre os acontecimentos psíquicos e os
acontecimentos factuais.
Contudo, devemos nos contentar em descrever os sintomas que testemunham o
“ter ligação com” as “ efrações estendidas” do envelope psíquico e jogar para o infinito
a questão de causa? Isto seria impensável,me parece, para uma psicanálise que pretende
esclarecer o funcionamento inconsciente do sujeito, subjacente aos sintomas para poder
formular uma etiologia e oferecer uma cura.
A neurose traumática, a identificação com o agressor, a clivagem do Eu, a
denegação, tantas chaves oferecidas pela psicanálise para conhecer a experiência
traumática. Mas, na teorização do traumatismo psíquico, falta até o presente, uma noção
que permita elucidar os traumas causados pela violência parental surgida no interior
mesmo da organização edipiana.
Para levar em conta de um lado o desejo edipiano do sujeito-criança e do outro a
pulsão de morte do pai-agressor, verdadeiro assassino da filiação, eu criei, então, a
noção de “édipo incestuoso”. Se o pai pode utilizar sem obstáculos o corpo de uma
criança para saciar seus fantasmas masturbatórios, isto acontece porque a criança o ama.
É então, a presença de um amor edipiano na criança que facilita o incesto e camufla o
aspecto violento do ato.
Negando a subjetividade da criança, o “incestuoso” mata o édipo nascente e destrói sua
capacidade de amar e ser amado.
Mareado pela traição de um ou dos dois pais, a memória do incesto não ameaça somente
a vítima, mas também a todos os membros da família. A denegação coletiva e a rejeição
familiar tornam-se consubstancial ao traumatismo do incesto. O amor e a solidariedade
estarão pervertidos pela lei do silêncio.
Apesar dos avanços das neurociências, a causa de longos períodos de amnésia,
após o ressurgimento aparentemente aleatórios das recordações traumáticas, fica
obscura. Paradoxalmente, sem uma psicanálise inscrita no desejo do sujeito, a versão
auto-protetora ou defensiva da amnésia e da denegação seria incompreensível.De agora
em diante, no lugar de uma desorganização devido ao excesso de stress, o sintoma se
compreende como uma forma de memória traumática que procura se exprimir. Assim, o
analista ou o terapeuta deve se esforçar por abordar e escutar o sintoma e não mais
eliminá-lo do inconsciente do sujeito, subjacentes aos sintomas para formular uma
etiologia e produzir uma escuta.
A amnésia das vítimas que tinham esquecido a agressão, mostra uma
temporalidade múltipla da rememoração e da evolução dos sintomas. O que pode
parecer surpreendente a primeira vista é que o retorno das lembranças não aliviam,
necessariamente, o aspecto enigmático dos sintomas.E elas podem mesmo agrava-los.
Isto sugere um estado de “orfandade” das recordações, que refletem o abandono
psíquico no qual o sujeito se encontra.
Para que as recordações ressurjam e ascendam à status de memória, é necessário
que o sujeito reclame como sua propriedade. O trabalho da memória implica , então,
que um sujeito recitante entre em uma dialética narrativa, a fim de reinserir este “tempo
perdido” no fluxo da história pessoal, familiar e coletiva.Esta pesquisa memorial não
tem como objeto uma restituição completa do passado, mas o engendramento de um
novo sujeito.Só ele pode assumir esta memória oscilante entre o sentido e o não sentido.
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Mesmo se não há uma organização coletiva prévia do crime, a violência do
incesto, em si comparável à outras formas de agressão sexual pode ser considerada
como uma violência de “massa”, não somente pela amplitude provável dos fenômenos,
mas também por uma participação consciente da coletividade..Fundamentalmente, trata-
se aqui de um trauma resultante de múltiplas negações: negação da vítima enquanto
sujeito autônomo, sujeito de direito e de desejo, negação da vítima enquanto objeto de
amor, objeto de respeito, negação dos limites psíquicos e corporais, negação da filiação,
negação do sofrimento, de seu valor, de seu status de vítima, de sua memória e da
verdade.
Enquanto reina este “negacionismo” da experiência traumática, a neutralidade ao
olhar da realidade dos eventos não pode ser bem vinda e o analista não pode evitar a
questão da verdade do lado da vítima. Mas, a impossibilidade para o analista de intervir
o sobre o anterior traumático o coloca em uma posição desconfortável. Ele poderá
contornar a injunção simplista de ver ou não ver a ocorrência do incesto, oferecendo
uma forma de reconhecimento ao sujeito.
A vítima do incesto, isolado por sua vivência traumática incomparável, deve
efetuar uma travessia odisséica antes de reencontrar a comunidade dos
humanos.Sofrendo o risco de fazer um elogio da vítima e de promover uma vez mais a
teoria da “resiliência43” que se propagou na França.Depois de alguns anos , nós não
podemos senão admirar a coragem e a perseverança das vítimas, que se esforçam em ter
sucesso, malgrado a incompreensão dos outros.Estes fatos atingem , aliás, por vezes, a
crueldade. Enquanto a vítima prossegue no combate, ela ainda faz a prova de resistência
em humanidade, ainda que ela pudesse deixar uma compreensão de mundo
extremamente pessimista, até mesmo cínica.
Entretanto, a vítima encontra criatividade precisamente neste nicho obscuro,
onde ela trava seu combate. Nesse sentido, a psicanálise, conhecedora íntima da tensão
permanente entre Eros e Thanatus é , talvez, o melhor lugar para compreender os efeitos
paradoxais dos conflitos que assombram o sujeito. Eis porque , para além de uma
leitura excessivamente rígida da teoria edipiana, uma aliança entre a psicanálise e a
vítima de incesto pode se tornar fértil. Superando um mal entendido mútuo, e
reconciliando o saber experto e os saberes da experiência, o sobrevivente pode recorrer
à psicanálise em suas diferentes facetas dos avatares edipianos, mais além de uma
formalização normativa. De seu lado, a psicanálise pode oferecer um caminho ao
sobrevivente, não para um melhor conhecimento de si, mas para uma melhor maneira de
estar consigo mesmo.
Através de uma escuta psicanalítica que concede ao mesmo tempo um
reconhecimento ao mal sofrido e um “perdão” no sentido proposto por Julia Kristeva, a
saber uma palavra que oferece possibilidades de recomeçar, o sujeito-sobrevivente
descobrirá as fronteiras do território, onde ele pode entender seus justos poderes, fazer
respeitar seus limites e doar sua afeição que ele acreditava estar destruída pelo incesto.
O sentimento de sua autonomia aparecerá pouco a pouco, e o ajudará a se
desligar do poder tirânico do agressor.
Como estipulou Freud(1896) em a “A etiologia da histeria”, o objetivo da
psicoterapia é transformar as lembranças traumáticas para que elas sejam “destituídas de
poder” sobre a vítima.
O analista deve ter em questão que deve retornar o sobrevivente a partir de lá
quando ocorreu a agressão incestuosa que o destruí, de escuta sua desorganização e seu
sentimento de impotência.Ele o pode fazer sair de seu lugar sinistro, tornar-se, fazer ele
se tornar muito familiar, para levá-lo para um depois que ele nem imagina ainda.
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B. Cyrilvuik I. C. Seron(2003)
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