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‘Acidentes’ tecnológicos e
modernização reflexiva:
o caso do Acidente de Goiânia
Eduardo A. Izumino
Dissertação apresentada ao
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a
obtenção do título de Mestre em Sociologia
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS 5
INTRODUÇÃO 6
AGRADECIMENTOS
O objeto desta dissertação foi, originalmente, tema de um trabalho durante o curso de
graduação de ciências sociais (FFLCH USP), para a disciplina Sociologia da Educação, no segundo
semestre de 1987, ministrado por Heloísa Fernandes, a quem primeiro devo agradecer pelas sugestões.
Quando surgiu a oportunidade de ingressar na Pós-Graduação do Departamento de Sociologia, o tema
do Acidente de Goiânia foi a minha primeira idéia de projeto. Desejo agradecer a Paulo Sérgio
Pinheiro, Nancy Cardia, Malak Poppovic, coordenadores do Núcleo de Estudos da Violência - USP,
com quem comecei a me tornar um pesquisador, pelas sugestões apresentadas ao meu projeto. Um
agradecimento especial a Sérgio Adorno, que, além de coordenador do NEV, como professor do
Departamento de Sociologia acompanhou, em várias oportunidades, com sugestões e apoios, a
trajetória algo oscilante desse meu trabalho.
Agradeço a todos os meus professores e colegas do Programa de Pós-Graduação, pelas críticas,
sugestões e indicações, sem as quais possivelmente essa dissertação não seria concretizada.
Agradeço o apoio do CNPq, Conselho Nacional de Pesquisas.
À Fundação do Desenvolvimento Administrativo - FUNDAP, de onde sou funcionário, pelo
apoio institucional e incentivo, que tornou possível a minha dedicação ao Programa de Pós-Graduação.
Especialmente, agradeço a meus colegas de trabalho: Mari Shirabayashi, Paula Picciafuoco, Sílvia de
Almeida Prado Sampaio, Alice Martins Gomes, Liliana Gallucci, Samuel B. Conceição, Jurandir Belli
Passos, aos Drs. Pedro Dimitrov, Luiz Alberto Bacheschi, Ruy Bevilacqua, com quem em diversas
vezes pude contar com sugestões e apoios intelectuais, profissionais, e, principalmente, de amizade.
Devo agradecimento imensurável a minha orientadora, Maria Helena Oliva Augusto, que
suportou não só minhas dificuldades intelectuais, mas também minha preguiça, minha indesculpável
gramática, minhas dúvidas, muito além do que seria sua tarefa, e isso não apenas agora, mas desde
quando eu fui seu aluno pela primeira vez, tempos atrás, no curso de graduação. ‘Orientadora’ é uma
palavra que não exprime, de maneira nenhuma, a importância que Maria Helena teve para este trabalho,
nem a sua atenção, dedicação, competência científica e capacidade de ensinar. Poder trabalhar com ela
foi uma experiência que transcende, para mim, qualquer outro resultado.
Para minhas queridas filhas, Beatriz e Júlia, devo muito mais que agradecimentos por
suportarem a ausência do pai em inúmeras ocasiões, por iluminarem a minha vida com seus sorrisos.
Elas são minha ligação com a terra e com o futuro.
Para Wânia, que é a melhor pesquisadora lá de casa, e com certeza, em qualquer outro lugar,
devo começar agradecendo pelas críticas certeiras, pela sinceridade estonteante, pelo incentivo diário, e
por me manter sempre dentro do razoável, coisa que sabe melhor que ninguém. Sua presença e seu
amor são tudo que eu poderia querer, e mesmo assim, é ela quem me faz sempre avançar.
Apesar de todos os apoios recebidos, é claro, sou o único responsável pelos defeitos dessa
dissertação.
Introdução
Dia 1 de outubro de 1987, quinta-feira. Os brasileiros em geral e os habitantes de
Goiânia em especial se depararam, neste dia, com uma notícia surpreendente - e logo se viu,
especialmente ruim. A blindagem de um aparelho de radioterapia teria sido destruída com
marretadas, em um ferro-velho, na cidade de Goiânia, capital do Estado de Goiás,
provocando o mais grave acidente radioativo do país, como já se avaliava:
1
JORNAL DO BRASIL. 01/10/87. Césio em ferro-velho espalha radioatividade em Goiânia.
7
desenrolar, nas suas conseqüências, nos sentidos que lhe foram atribuídos e nos problemas
que levantou para o país, o Acidente de Goiânia ‘desconstruiu’ um complexo institucional
pouco conhecido (o setor voltado à tecnologia nuclear) e permitiu visualizar diversos
elementos constituintes da modernização reflexiva: a existência, realização ou possibilidade
de riscos ou perigos não previstos ou não conhecidos, mas criados pelo próprio
desenvolvimento da sociedade industrial; o papel da ciência e da tecnologia na produção,
conhecimento e controle desses riscos e sua relação problemática com as outras esferas,
como o Estado ou a população; a forma reflexiva de criação, apropriação e circulação de
conhecimentos, forma característica que também surgiu com a modernização; a correlata
constituição e desempenho de responsabilidades (isto é, de papéis sociais); o papel agora
central dos agentes técnicos (peritos ou burocratas especializados); a peculiar dramaticidade
do acontecimento derivada da situação de emergência e das tarefas de reconstituição de
uma normalidade afetada pelo desastre.
O Acidente em Goiânia foi o maior do tipo no Brasil (até agora) e um dos mais graves
já ocorridos em todo o mundo: o primeiro no país a ter como vítimas a população em geral e
não profissionais da área, nela provocando mortes e ferimentos; o primeiro a se espalhar por
uma cidade povoada; o primeiro a testar uma série de medidas de emergência que eram
apenas hipotéticas ou, menos ainda, formais; e, principalmente, o primeiro experimentado
como um grande evento público. Pareceu, e de fato se mostrou ser, algo tão grave que
mereceu uma atenção especial, perigoso e de difícil compreensão, agora próximo mas
também ainda distante, novo porém familiar; e brasileiro, mas também estranho, estrangeiro,
como descreveu Fernando Gabeira(1987), inspirado em Freud.
2
(1983) , mais que como um grande evento envolvendo grandes personalidades e grandes
decisões.
Trata-se de uma experiência com uma nova forma de morrer. A morte por radiação é
uma das invenções mais significativas deste século. Se for suficientemente forte, a radiação
pode desintegrar uma pessoa, quebrando todas as moléculas do corpo e espalhando-as pelo
3
espaço, tal como sucedeu às vítimas no hipocentro da explosão de Hiroshima . Isso foi tão
rápido e brutal que transformou o próprio conceito de morte: numa pequena fração de um
instante, se vivia, entre outras pessoas e coisas, preocupações e alegrias, e depois,
simplesmente, nada. Desaparece-se. Nenhuma prova material da existência anterior. Se a
radiação não for tão forte para provocar a morte instantânea, ela radicaliza o conceito de
morte, como em Goiânia: estenderá a agonia por minutos, por meses, anos ou gerações, e,
antes, provocará uma espécie peculiar de morte social e de estigma.
“Leide morreu no início da noite [do dia 23 de outubro de 1987, cerca de um mês após sua
contaminação], vitimada por uma contaminação e ingestão de césio-137 em níveis nunca
antes observados pela medicina nuclear. A menina - que ingeriu pó de césio comendo pão
com as mãos sujas - quando seu quarto no hospital estava às escuras mostrava uma aura
azulada pelo efeito do césio, que continuava a irradiar. Até os médicos tinham que se
aproximar dela com precaução para não se contaminarem. Nos últimos dias, Leide não
respondia aos testes, alimentava-se por via parental e sofria muito com febre alta
constante, diarréia, sangramento nos olhos e nariz e quadro hematológico muito grave.” 4
2
“Os factos não existem isoladamente, no sentido de que o tecido da história é o que chamaremos uma intriga, uma mistura
muito humana e muito pouco ‘científica’ de causas materiais, de fins e de acasos; numa palavra, uma fatia de vida, que o
historiador recorta a seu bel-prazer e onde os factos têm as suas ligações objetivas e a sua importância relativa (...)”
(Veyne, 1983: 48). (A tradução brasileira utiliza a palavra trama, em lugar de intriga).
3
“Vi quatro ou cinco meninos brincando na rua, e uma mãe carregando um bebê nas costas, ao mesmo tempo em que
conduzia pela mão outra criança, de seus 3 anos. Quando elas estavam a uns 10 metros de mim, houve o clarão da
explosão. A mãe e as crianças desapareceram. O que vi não foi fumaça. Foi uma espécie de vapor, que se levantou da mãe
e das crianças. Logo depois, elas desapareceram.” (Depoimento de um sobrevivente de Hiroshima). VEJA, 2 de agosto de
1995. Hiroshima, 50 anos. Memórias dos filhos do clarão. Editora Abril, Ano 28. N. 31: 62.
4
JORNAL DA TARDE. 24/10/87. Césio 137: morrem duas vítimas.
9
A ameaça da morte por radiação já foi sentida como maior. Uma guerra termonuclear
traria uma devastação global que faz parecer muito otimista a lendária resposta de Einstein à
pergunta de com que armas ocorreria a terceira guerra mundial, que disse não saber, mas
para ele a quarta seria, com certeza, com paus e pedras. A possibilidade ainda existe,
porque as armas existem e estão prontas para serem usadas, e pelo fato de o futuro ser, por
excelência, o campo das incertezas5.
Isto coloca a questão de pensar esta etapa histórica como decorrente das maiores
capacidades já alcançadas, ao mesmo tempo, tanto para a destruição quanto para a criação:
“O que nos ocorre em primeiro lugar, naturalmente, é o tremendo aumento de poder humano
de destruição, o fato de que somos capazes de destruir toda a vida orgânica da Terra e de
que, algum dia, provavelmente seremos capazes de destruir a própria Terra. No entanto, não
menos terrível e não menos difícil de compreender é o novo poder de criar, o fato de que
podemos produzir novos elementos jamais encontrados na natureza, de que somos capazes
não apenas de especular quanto às relações entre massa e energia e quanto à mais secreta
identidade destas duas, mas, de fato, transformar massa em energia ou transformar radiação
em matéria.” (Arendt, 1991: 280-81). A noção desse poder, que tem mais de cinqüenta anos,
já é generalizada na população, gerando movimentos de contestação, e tema de inúmeras
obras científicas ou de ficção. Mas de maneira geral, pela condição do Brasil de país do
‘Terceiro Mundo’, os brasileiros nunca se experimentaram sujeitos ou alvos (até no sentido
literal) dessas grandes possibilidades e ameaças.
5
“O novo sempre acontece à revelia da esmagadora força das leis estatísticas e de sua probabilidade que, para fins práticos
e cotidianos, equivale à certeza; assim, o novo sempre surge sob o disfarce do milagre. O fato de que o homem é capaz de
realizar o infinitamente improvável (...) Contudo, embora as várias limitações e fronteiras que encontramos em todo corpo
político possam oferecer certa proteção contra a tendência, inerente à ação, de violar todos os limites, são totalmente
impotentes para neutralizar-lhe a segunda característica relevante: sua inerente imprevisibilidade. Não se trata apenas da
mera impossibilidade de se prever todas as conseqüências lógicas de determinado ato, pois se assim fosse um computador
eletrônico poderia prever o futuro; a imprevisibilidade decorre diretamente da história que, como resultado da ação, se
inicia e se estabelece assim que passa o instante fugaz do ato. O problema é que, seja qual for a natureza e o conteúdo da
história subsequente - quer transcorra na vida pública ou na vida privada, quer envolva muitos ou poucos atores - seu
pleno significado somente se revela quando ela termina.” . (Arendt, 1991: 191 e 204)
10
judiciárias (portanto as posições oficiais), sejam explicações suficientes não apenas para o
caso em questão quanto para outros perigos advindos de uma grande e importante série de
sistemas, que estão profundamente envolvidos na forma de organização da vida atual, e que
estão agora nitidamente interligados: o sistema científico-tecnológico e produtivo, que, por
sua vez, também está interligado com várias outras esferas, como a militar, econômica,
política, ecológica, até o nível da determinação da individualidade.
Além desses elementos, por assim dizer, institucionais (os sistemas envolvidos na
constituição da atualidade), passado o momento de emergência, sempre resta um
sentimento de frustração e angústia: apesar de um dos efeitos do acidente ser o grande
falatório, debates, apelos, dos mais diversos tons, que ele provoca, de algum modo, ou em
virtude disso, não há sentidos evidentes nem efeitos previsíveis num acontecimento deste
tipo, mas a sensação consensual de que algo muito grave aconteceu. As interpretações
múltiplas não reconfortam, pelo contrário. Nenhuma explicação que contemple a gravidade
das implicações do uso da energia nuclear pode ser tranquilizadora. Há toda a questão do
passado, de uma linhagem que a mídia sempre faz questão de lembrar, e portanto atualizar,
que começa em Hiroshima, passa pela Guerra Fria e Tchernobyl. Há a cultura, onde a
radioatividade é mostrada pela ficção geralmente como a pior das ameaças: traz a imagem
de um futuro que não queremos habitar7. Há o fato de se tomar consciência, forçosamente,
de um perigo invisível, ou mais, que não pode ser apreendido por nenhum sentido, e para o
6
Pode parecer uma ironia (ou coisa pior) dizer que a sociedade industrial capitalista pode desaparecer por sua própria
conseqüência quando alguns celebram a morte do marxismo. Mas nesse caso, não seria o socialismo que avançaria pela
Terra.
7
“Assisti muito filme de guerra e de bomba atômica e aprendi o que é irradiação.” Ernesto Fabiano, uma das vítimas, que
carregou um pedaço de césio 137 no bolso da calça. O ESTADO DE S. PAULO, 21/10/87.
11
qual não há prevenção individual que se possa tomar. A idéia que surge após um grande
desastre como o de Goiânia é a de que o mundo está mais perigoso, mais ameaçado e
degradado do que antes.
8
ISTOÉ, 14/10/87. Diante da morte e perplexos.
12
grande temor seja o de se assumir como sujeito de seus próprios atos e perder os relativos
confortos de ser prisioneiro das circunstâncias.
13
Sociologia e risco
A guerra termonuclear global foi (ou continua sendo) o mais importante não-evento da
atualidade, isto é, a possibilidade mais ameaçadora que se tem notícia, mas o
desenvolvimento global tem trazido outras ameaças potenciais que vem sendo
progressivamente conhecidas. Catástrofes ecológicas, por exemplo, pelo efeito estufa ou
pelo envenenamento do ambiente pela poluição, ou ainda, o esgotamento das fontes de
água potável. Dizer que se reconhecem agora essas possibilidades significa que adquire-se
um reconhecimento dos riscos permanentes não só para indivíduos ou nações, mas para a
espécie humana e para a vida no planeta. Significa o reconhecimento de novas limitações à
organização da sociedade tal como vem se desenrolando desde o advento da Modernidade.
Giddens trabalha, dentre vários, com temas e conceitos como “segurança versus
perigo” e “confiança versus risco”, no objetivo de desenvolver uma análise institucional do
“caráter de dois gumes” da modernidade. Para tanto, Giddens vai problematizar o próprio
papel da reflexividade da sociologia na modernidade, que, defende ele, sofre de limitações a
partir das perspectivas clássicas (Marx, Durkheim e Weber cada um se fundamenta numa
única dimensão institucional); da centralidade do conceito de ‘sociedade’ como objeto da
sociologia (que corresponde entretanto ao Estado-nação devido às suas delimitações
conceituais e onde o problema da ordem deveria ser substituído pelo do distanciamento
tempo-espaço); e da noção que a sociologia deveria prover um conhecimento que redundaria
num maior controle e previsão, à imagem das ciências físicas (:19-25). Contra essa última
noção, demasiadamente simples, Giddens propõe que “A relação entre a sociologia e seu
objeto - as ações dos seres humanos em condições de modernidade - deve (...) ser
entendida em termos de ‘hermenêutica dupla’. O desenvolvimento do conhecimento
sociológico é parasítico dos conceitos dos leigos agentes; por outro lado, noções cunhadas
nas metalinguagens das ciências sociais retornam rotineiramente ao universo das ações
onde foram inicialmente formuladas para descrevê-lo ou para explicá-lo. Mas este
conhecimento não leva de maneira direta a um mundo social transparente. O conhecimento
15
sociológico espirala dentro e fora do universo da vida social, reconstituindo tanto este
universo como a si mesmo como uma parte integral desse processo.”(: 24. Grifo no
original). O que se teria nesse modelo não seria nem o acúmulo de conhecimento nem o
aumento de controle, mas “ordenação e reordenação reflexivas das relações sociais à luz
das contínuas entradas (inputs) de conhecimento afetando as ações de indivíduos e grupos”
(:25). À sociologia, portanto, tendo um acidente como objeto, não cabe um papel de
verificação de erros ou falhas de controle, de olhar para o social como um mero mecanismo
de mau funcionamento, situação em que seu papel seria de aperfeiçoar os controles sociais
com o objetivo de evitar o contingente, mas até de, através da crítica, entender seu próprio
papel de produtor de conhecimento nesse e para esse mecanismo social, e portanto,
conhecimento compartilhado também nos seus erros, falhas ou acidentes.
Por outro lado, apesar das limitações, Giddens vai enfatizar a posição de “pivô” da
sociologia na reflexividade da modernidade, que vem de seu papel como o “mais
generalizado tipo de reflexão sobre a vida social moderna”(:48). Os exemplos dados vão das
estatísticas oficiais (utilizadas pela administração dos Estados e empresas, mas permeadas
pelas descobertas das ciências sociais), até aos que mostram como as mudanças nos papéis
familiares ou sexuais influem na decisão de um indivíduo se casar. “O discurso da sociologia
e os conceitos, teorias e descobertas das outras ciências sociais continuamente ‘circulam
dentro e fora’ daquilo de que tratam. Assim fazendo, eles reestruturam reflexivamente seu
objeto, ele próprio tendo aprendido a pensar sociologicamente. A modernidade é ela
mesma profunda e intrinsecamente sociológica” (:49). Para Giddens, criticando os
16
autores que postulam que estamos numa fase pós-moderna ou “além-modernidade”, o que é
característico, hoje, é que a reflexividade da modernidade é cada mais vez reconhecida,
implicando uma circularidade da razão que forma o cerne enigmático da modernidade, pois
não há respostas à natureza intrigante dessa mesma circularidade, assim como não há como
justificar racionalmente um compromisso com a própria razão.
9
“Por desencaixe me refiro ao ‘deslocamento’ das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação
através de extensões indefinidas de tempo-espaço” (Giddens, 1991: 29).
10
"O termo vem do hindu Jagannãth, 'senhor do mundo', e é um título de Krishna; um ídolo desta deidade era levado
anualmente pelas ruas num grande carro, sob cujas rodas, conta-se, atiravam-se seus seguidores para serem esmagados."
(Giddens, 1991: 133, nota)
11
“Os riscos de alta-consequência e baixa probabilidade não desaparecerão do mundo moderno, embora num cenário
otimista eles possam ser minimizados. Assim, mesmo se fosse o caso de que todas as armas nucleares existentes fossem
17
O sociólogo alemão Ulrich Beck realizou uma análise em vários pontos parecida com
a de Giddens, embora o inverso seja mais fiel à realidade, já que seu livro foi publicado em
1986 como Risikogesellschaft: Auf dem Weg in eine andere Moderne (que é citado por
12
Giddens), traduzido para o inglês como Risk Society Toward a New Modernity (1992) . A
visão multifacetada de Beck da Risk Society, é bom observar, é anterior à Tchernobyl, à
Goiânia, à descoberta do buraco na camada de ozônio, à discussão sobre a bio-diversidade
e à polêmica sobre a engenharia genética, todos temas já encontrados em seu texto, entre
vários outros.
Beck assevera que somos testemunhas, como objetos e sujeitos, de uma época em
que se pode notar o surgimento dos contornos de uma era nova industrial desconhecida, do
mesmo modo que um observador do século XIX pôde observar o avanço da modernização
sobre o feudalismo em dissolução e o nascimento da sociedade industrial. “Tal como a
modernização dissolveu a estrutura da sociedade feudal no século dezenove e
produziu a sociedade industrial, hoje a modernização está dissolvendo a sociedade
industrial e uma outra modernidade está surgindo (...) Hoje, no limiar do século vinte e
um, no mundo ocidental desenvolvido, a modernização consumiu e perdeu seu outro e
agora solapa suas próprias premissas como uma sociedade industrial junto com seus
princípios funcionais. A modernização dentro do horizonte da experiência da pré-
modernidade está sendo deslocada pela modernização reflexiva (...) estamos
testemunhando não o fim, mas o começo da modernidade - isto é, de uma modernidade para
13
além do seu projeto industrial clássico.” (:10) (Grifos no original). Para Beck, uma segunda
onda de racionalização, que está apenas começando, pode levar a ultrapassar a sociedade
industrial sem um explosão política ou revolução, pela “escada dos fundos dos efeitos
colaterais”(:11). Nesse processo, o papel ‘anti-modernista’ de movimentos sociais ou de
críticos dos perigos e conseqüências indesejáveis da ciência e tecnologia não está em
contradição com a modernidade, mas no escopo da modernização reflexiva, pois a crítica à
ciência e à técnica deriva ela própria da disseminação dos conhecimentos científicos e
técnicos entre os indivíduos leigos, que, por necessidade, se apropriam e problematizam
destruídas, nenhuma outra arma de força destruidora comparável fosse inventada, e nenhum distúrbio catastrófico
comparável da natureza socializada assomasse, ainda existiria um perfil de perigo global.” (: 135)
12
Segundo a introdução de Scott Lash e Brian Winne para a edição inglesa, Risikogesellschaft já era um dos mais influentes
trabalhos de análise social do fim do século, não somente entre as disciplinas das ciências sociais mas também entre o
público leigo e nas discussões sobre as políticas ecológicas alemãs.
13
“Just as modernisation dissolved the structure of feudal society in the nineteenth century and produced the industrial
society, modernisation today is dissolving industrial society and another modernity is coming into being. (...) Today, at
the threshold of the twenty-first century, in the developed Western world, modernisation has consumed and lost its other
and now undermines its own premises as an industrial society along with its functional principles. Modernisation within the
horizon of experience of pre-modernity is being displaced by reflexive modernisation (...) we are witnessing not the end but
the beginning of modernity - that is, of a modernity beyond its classical industrial design.”
18
esses conhecimentos. Isto é, forçam uma aproximação com o social e uma democratização
(portanto politização) das esferas da ciência e da produção. A essa sociedade onde a
modernidade clássica estaria, ao mesmo tempo, se completando e dissolvendo, Beck chama
de Risk Society.
14
“More urgently than ever, we need ideas and theories that will allow us to conceive the new which is rolling over us a new
way, and allow us to live and act within it. At the same time we must retain good relations with the treasures of tradition,
without a misconceived and sorrowful turn to the new, which always remains old anyway.”
15
“...while in classical industrial society the ‘logic’ of wealth production dominates the ‘logic’ of risk production, in the risk
society this relationship is reversed. The productive forces have lost their innocence in the reflexivity of modernisation
processes. The gain in power from techno-economic ‘progress’ is being increasingly overshadowed by the production of
risks.”
19
O outro aspecto da modernização reflexiva, articulado com o primeiro, tem lugar nas
“contradições imanentes entre a modernidade e contra-modernidade dentro da sociedade
industrial” (:13). Para Beck, as categorias da sociedade industrial devidas à modernização
são agora tradicionais; classe e cultura de classe, família nuclear e papéis sexuais, o trabalho
etc. são, na fase da modernização reflexiva, papéis em relação aos quais os indivíduos
podem flexibilizar-se, isto é, podem aderir ou não conscientemente e/ou de acordo com uma
biografia auto-planejada. As ciências disseminaram-se assim como seus métodos; agora
seus próprios métodos voltam-se para as ameaças que a própria ciência ajudou a
estabelecer. A democracia parlamentar foi estabelecida pela sociedade industrial; agora
“sub-políticas” apontam a necessidade de democratização dos negócios, ciência e
tecnologia, ou seja, esferas cuja regulação não era ‘política’ agora têm um papel
transformado pelos riscos e pela modernização reflexiva. Beck considera que a
“tradicionalidade” inerente à sociedade industrial começa a desintegrar: “Estranho como pode
parecer, as irritações da época em torno disso são todas resultado não da crise mas do
sucesso da modernização. Está sendo bem sucedida mesmo contra suas próprias
asserções e limitações industriais. Modernização reflexiva significa não menos, mas mais
modernidade, uma modernidade radicalizada contra as vias e categorias das regulações
industriais clássicas (...) a sociedade industrial desestabiliza a si própria através do seu
próprio estabelecimento.”16 (:14)
16
“Strange as it might sound, the epochal irritations aroused by this are all results not of the crisis but of the success of
modernization. It is successful even against its own industrial assumptions and limitations. Reflexive modernization means
not less but more modernity, a modernity radicalized against the paths and categories of the classical industrial setting.
(...) industrial society destabilizes itself through its very establishment.”
20
necessária de todas as outras esferas sociais. “O indivíduo, ela ou ele, se tornam a unidade
17
reprodutiva do social no mundo da vida” (Beck, : 90)
O indivíduo deve encarar o mundo das ameaças latentes da risk society, que o
diferencia enquanto mais ou menos afetado pela produção e distribuição destes riscos,
diferenciação que se dá de um modo ainda relacionado, mas diferente de sua posição de
classe, e relacionado com o conhecimento que adquire sobre a sua posição dentro destes
fatores de risco, isto é, com a consciência que adquire pela educação, pelos meios de
comunicação etc.. Os riscos estariam conectando agora cada um dos indivíduos entre si e ao
global, pois não haverá (ou já não há) nem uma posição totalmente segura, nem uma
distinção clara entre vítima e perpetrador (isto é, diante dos riscos, a sociedade e os
indivíduos estão perdendo seu outro), pelo que Beck chama de efeito bumerangue (:37) da
circularidade social dos perigos19. O efeito bumerangue pode se manifestar através de
diversas formas, como efeitos colaterais não desejados ou previstos. Dependendo de sua
posição de risco, o indivíduo pode ser mais ou menos afetado (pobres estão mais expostos a
certos riscos por suas piores condições de vida), mas a diferença fundamental é que,
enquanto a posição de classe é objetiva, a posição de risco é subjetiva, exige um
conhecimento sobre os riscos invisíveis como a contaminação de alimentos, portanto, que
conhecimentos produzidos pelos sistemas peritos sejam de alguma maneira absorvidos (o
que em si traz conseqüências ao relacionamento com esses sistemas). O que leva à questão
de como e quando esses conhecimentos, antes internos à ciência e à tecnologia (e que
17
“The individual himself or herself becomes the reproduction unit of the social in the lifeworld.”
18
“...individualism does not signify the beginning of the self-creation of the world by the resurrected individual.”
19
“A pobreza é hierárquica, a fumaça é democrática”. (Poverty is hierarchic, smog is democratic) (: 36)
21
portanto obedeciam sua lógica interna) são contrapostos aos seus efeitos colaterais práticos:
um momento em que esse conhecimento circula ao mesmo tempo de modo explícito, mas
ainda misterioso, é o do acidente tecnológico.
Acidentes tecnológicos
O acidente radioativo em Goiânia pode ser colocado numa categoria de eventos que,
ao mesmo tempo, são e não são esperados, os acidentes tecnológicos. Numa primeira
aproximação de uma definição, visando a aplicação empírica de temas e conceitos de
Giddens e Beck, acidentes tecnológicos seriam desastres graves, devidos ao
desencadeamento ‘acidental’ dos perigos inerentes, produzidos pelos sistemas industriais,
complexos produtivos, máquinas, veículos e materiais, a elementos químicos ou outras
substâncias, à força e/ou potência e/ou velocidade mobilizada, onde, por algum motivo, o
controle sobre tais perigos se perdeu.
“segunda natureza” não será menos caótica e ameaçadora do que a primeira (...)”.(: 382)
Giddens observa que o entrelaçamento dos afazeres humanos no espaço-tempo absorveu a
natureza, tal como entendida anteriormente, estando ela agora inteiramente dentro dessa
rede de relações sociais: ”Desastres naturais obviamente ainda acontecem, mas a
socialização da natureza no presente significa que uma diversidade de sistemas
anteriormente naturais agora são produtos de decisões humanas”20 (Giddens, em Beck et
alii, 1994: 78). Um exemplo de sistema natural produto da ação humana é a própria
atmosfera, cuja constituição química vem se alterando com a poluição, o que se especula
esteja produzindo catástrofes como mudanças climáticas, secas e desertificação.
20
“Natural disasters obviously still happen, but the socialisation of nature in the present day means that a diversity of
erstwhile natural systems are now products of human decision-making.”
23
21
Para Bachelard, a ciência é construída sobre a base dos erros retificados, ao contrário da experiência comum. (Bachelard,
1996: 14)
22
A irracionalidade da ciência, assim como a necessidade de racionalizá-la extensamente é apontada por diversos autores,
como Horkheimer e Adorno, Lefebvre (1973), Habermas, e também por Giddens e Beck. O quanto a ciência é expressão da
Razão parece ser um dos grandes temas da modernidade. A maior ou menor racionalidade de alternativas tecnológicas são
sempre o ponto central dos seus conflitos internos.
24
23
No Acidente de Goiânia, um único corpo do Estado, a Comissão Nacional de Energia Nuclear - CNEN, teve apontada, entre
o público em geral, de maneira inédita a contradição entre suas funções de promover e fiscalizar as atividades nucleares.
Não foi um problema exclusivamente nacional: o modelo da CNEN aparentemente seguiu a da AEC (Atomic Energy
Comission), sua congênere nos Estados Unidos, que teve, porém, seus poderes divididos com a NRC (Nuclear Regulatory
Comission), que ficou com a atribuição da regulamentação do setor, em 1974.
25
Vários outros grupos, além dos ligados ao Estado como funcionários, se envolvem no
acidente tecnológico, como cientistas e técnicos, que auxiliam, criticam ou explicam ao
público leigo o que aconteceu, ecologistas e cidadãos preocupados e críticos, médicos e
outros peritos nas conseqüências à saúde, jornalistas e meios de comunicação, militantes de
partidos políticos, etc. Pelo seu caráter público, o acidente tecnológico tem como
conseqüência social o debate público sobre as versões, causas e efeitos presumíveis etc.
numa circulação, pela mídia, coletiva e desordenada de informações, boatos e debates, e
sentimentos como o medo e a angústia. Isto é, o acidente tecnológico tem por efeito uma
certa desorganização social localizada, uma crise onde o Estado e demais instituições
procurarão agir no sentido de recuperar a normalidade dessa organização e de, após todas
as investigações e críticas, aperfeiçoar essa normalidade visando a uma maior segurança e à
prevenção dos efeitos colaterais, para o qual o próprio acidente contribui como objeto de
pesquisa e oportunidade de conhecimento.
24
Expert System. "Sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes
material e social em que vivemos hoje" (Giddens, 1991:.35).
25
Processo que Beck (1992: cap. 2) chama de “miserabilização” (immiseration) decorrente da civilização, isto é, da
abundância, que implica numa degradação diferente da provocada pela pobreza na sociedade de classes.
26
Giddens define extensamente o que entende por confiança nos sistemas peritos. A base é a crença no conhecimento e
controle dos peritos sobre variáveis e conceitos aos quais o leigo não tem acesso. “A confiança pode ser definida como
crença na credibilidade de uma pessoa ou sistema, tendo em vista um dado conjunto de resultados ou eventos, em que essa
26
a relação com a própria saúde é mediada pelo sistema perito médico, a segurança da escada
de casa garantida pelo conhecimento do engenheiro. Isso significa que a relação com riscos
invisíveis ou que não se podem conhecer profundamente deve ser mediada pela ‘fé’ no
conhecimento perito através de amplos contextos. A relação com os sistemas peritos se dá
através dos mecanismos de desencaixe das relações sociais, o saber perito não precisa
estar presente fisicamente ou mesmo ser consciente ao leigo para que continue agindo na
organização do ambiente e das condutas. Essa relação é normativa, isto é, o sistema perito
impõe aos indivíduos novas condutas, limites e condicionamentos, advindos dos
conhecimentos, da constituição do ambiente e organizações racionais (nesse sentido,
libertos das restrições tradicionais, como as religiosas), mas também pode ser conhecimento
reflexivamente apropriado pelos indivíduos.
crença expressa uma fé na probidade ou amor de um outro, ou na correção de princípios abstratos (conhecimento técnico).
(...) Em condições de modernidade, a confiança existe no contexto de: (a) a consciência geral de que a atividade humana -
incluindo nesta expressão o impacto da tecnologia sobre o mundo material - é criada socialmente, e não dada pela
natureza das coisas ou por influência divina: (b) o escopo transformativo amplamente aumentado da ação humana, levado
a cabo pelo caráter dinâmico das instituições sociais modernas. (...)” (Giddens, 1991.: 41)
27
Um deles definiu as usinas como “um sistema projetado por gênios e dirigido por idiotas” (: 133). Como Beck comenta,
para os críticos nenhuma probabilidade é pequena o bastante se apenas um acidente significa aniquilação (1992: 30).
28
A área diretamente atingida pelo acidente de Tchernobyl é de 140.000 km2, equivalente a um Portugal e meio [ou ao Estado
do Ceará]. SUPERINTERESSANTE. O núcleo do futuro. Ed. Abril. Ano 11 n. 1 janeiro de 1997: 33. O número de
vítimas diverge entre as várias fontes, até atingir centenas de milhares.
27
a interpretação que se fixe como verdade terá o domínio desse acontecimento (na fórmula de
quem faz a história são os vencedores). Isso é agora tão óbvio (reflexivamente) que a
interpretação sobre o acidente tecnológico (e não só) como aquela que ficará na história já é
disputada por todos os agentes no presente, porque todos já sabem que o futuro se dará a
partir de hoje (dito de outra forma, o presente é só o passado do futuro). A estratégia de
garantir o espaço de poder no futuro orienta agentes como o Estado e os críticos de sua
ação, a ciência e os críticos da ciência, uma empresa e sua concorrente, e assim por diante.
Pode vender jornais, gerar livros, propagandas e contrapropagandas, filmes, documentários,
e papers, porque é uma disputa parcialmente resolvida no mercado (parece haver um
mercado para o conhecimento, mas não deixa de ser mercado). Deve-se trombetear hoje a
importância do evento, para resgatá-lo amanhã como acontecimento. Funciona quase como
um investimento bancário.
6) Para Beck, como os riscos são produzidos, eles são dependentes de decisões, e
nesse sentido politicamente reflexivos (1992: 183). No projeto da sociedade industrial, o
cidadão teria se dividido entre o citoyen, cuja ação se dá na defesa de seus direitos nas
arenas democráticas, e o bourgeois, defendendo seus interesses privados no trabalho e nos
negócios. Esse último campo, onde se desenvolveu a esfera técnica e econômica, era
considerada não-política, assim justificada enquanto seu principal aspecto foi a geração de
riquezas identificada ao progresso social. Beck afirma que a modernidade, seguindo essa
divisão, limitou a democracia parlamentar e seu sistema de legitimação, removendo das
regras tanto os negócios quanto a ciência, em nome da liberdade de mercado ou de
pesquisa29. Beck aponta várias conseqüências dessas afirmações, que deverão ser
posteriormente retomadas, mas talvez o ponto mais importante a fixar - no caso dos
acidentes tecnológicos - é o aspecto da politização do que era não-político em princípio, que
é a necessidade de estabelecer mecanismos de decisão democrática sobre alternativas em
negócios ou sobre alternativas pretensamente técnicas, ou pelo menos de que essas
alternativas começam a ter de adquirir uma nova dimensão política e ética.
29
Para Habermas, a ciência e a técnica se tornaram também as principais fontes de legitimação, invadindo com a racionalidade
instrumental as outras esferas: a própria política passa a ser uma esfera em que as decisões tem de ser orientadas e/ou
avalizadas pela técnica (Habermas, 1983. op.cit).
28
expôs “fenômenos sociais surgidos das profundezas” que, sem ele, teriam ficado “enterrados
nas rugas do mental coletivo. O acontecimento testemunha menos pelo que traduz pelo que
revela, menos pelo que é do que pelo que provoca. Sua significação é absorvida na sua
ressonância; ele não é senão um eco, um espelho da sociedade, uma abertura” (:188). O
acidente, como um exemplar de acontecimento moderno, é um fenômeno de comunicação
de massas: amplifica e distorce suas causas e conseqüências, põe em relevo atores antes
anônimos, redefine papéis e conteúdos de autoridades, esclarece, confunde e difunde
conhecimentos e conceitos antes privativos dos sistemas peritos. O Acidente de Goiânia foi
tema diário da imprensa brasileira por quase três meses, quando se procuraram mostrar
todos os aspectos envolvidos numa grande confusão de textos, imagens, mensagens, numa
mistura de temas e significados contrastantes, mostrando, ocultando ou definindo o real. A
imprensa, nesse caso, é quem, ao veiculá-lo, procurar traduzi-lo aos leigos e explorar os
seus desdobramentos, produz o acidente tecnológico como algo que não só vai além do
próprios fatos, como o produz o acontecimento enquanto tal. Sem a sua transformação em
espetáculo, em evento de massas, a natureza do acidente é outra: é como se não tivesse
existido.
Acidentes tecnológicos, além dos pontos arrolados acima, trazem uma relação, de
certa maneira, inesperada entre a ciência e a tecnologia e as outras esferas, como
procuramos arrolar. Para Habermas (1970 [1968]: 52), no entanto, a ciência e a tecnologia
estariam virtualmente separadas do mundo da vida, pelo fato de o método científico e sua
linguagem serem impenetráveis aos leigos, os quais somente, mas de uma maneira muito
importante, se relacionariam com esse sistema através das aplicações práticas. Hannah
Arendt (1991 [1958]: 11) já apontava que a ciência não podia se expressar na linguagem
comum, bloqueando o discurso e a discussão, portanto, a política e a ação. Arendt
considerava que a era moderna começara politicamente com as primeiras explosões
atômicas (: 13), exemplificando com a ingênua expectativa dos cientistas que as criaram de
que seriam ouvidos antes de sua utilização pelos militares, a expressão de quanto a ciência
se afastara do mundo comum e da sua visão das coisas para um ponto arquimediano, fora
da Terra. Na modernização reflexiva, entretanto, devido aos riscos e ameaças tecnológicos,
os termos das linguagens da ciência invadem a linguagem comum e as iniciativas das outras
esferas (e ao mesmo tempo o social invade a ciência e a técnica), embora numa situação de
funcionamento esperado e normal, onde aparentemente a tecnologia e a ciência mantém sob
controle calculado seus riscos, a separação entre as duas linguagens ainda é predominante.
29
30
“it is only with the breakdown of shared meanings that human beings become ‘subjects’ from one another. This is where
the expert-systems, this is where the legitimating discourses, come in; that is, to repair the breakdown so that practices and
shared meaningful activities can resume once again. But when the expert-systems and discourses chronically intervene,
when they intervene ‘preventively’ and pervasively, then the practices, shared meanings and community become
increasingly marginalized, made progressively less possible.”
31
Idéia que também está em Foucault, de agências produtoras de verdades.
30
Uma das visões que, entre outras, no ponto a seguir, é semelhante e antecipa a
32
crítica da tecnologia como a de Beck é a de Paul Virilio . Para ele, o enigma da natureza
(revelado pela ciência) está sendo substituído pelo enigma da tecnologia. Segundo Virilio, a
ciência, os cientistas e técnicos, a linguagem da ciência e da técnica, ocultam o real ao
postular serem os únicos verdadeiros e autorizados a tratar da natureza. Para Virilio, “O
enigma da tecnologia é também o enigma do acidente. Explico. Na Filosofia Clássica
aristotélica, a substância é necessária e o acidente é relativo e contingente. No momento,
ocorre uma inversão: o acidente está se tornando necessário e a substância, relativa e
contingente. Cada tecnologia produz, provoca, programa um acidente específico. Por
exemplo: quando inventaram a estrada de ferro, o que foi que inventaram? Um objeto que
permitia que você fosse mais depressa, que lhe permitia progredir uma visão a la Júlio Verne,
positivismo, evolucionismo. Ao mesmo tempo, porém, inventaram a catástrofe ferroviária. A
invenção do barco a vapor foi a invenção dos naufrágios. A invenção da máquina a vapor e
da locomotiva foi a invenção dos descarrilamentos. A invenção da auto-estrada foi a
invenção de trezentos carros colidindo em cinco minutos. A invenção do avião foi a invenção
do desastre aéreo. Creio que, de agora em diante, se quisermos continuar com a tecnologia
(e não penso que haverá uma regressão neolítica) precisamos pensar instantaneamente
(grifo no original) a substância e o acidente - sendo a substância tanto o objeto como seu
acidente. O lado negativo da tecnologia e da velocidade foi censurado. Os técnicos, ao
tornarem-se tecnocratas, tenderam a positivar o objeto e dizer: ‘Estou escondendo; não estou
mostrando’. Há muito a ser dito sobre a ‘obscenidade’ da tecnologia (...)” (Virilio & Lotringer,
1984: 39-40). Virilio sugere com essas afirmações uma chave para o enigma da tecnologia,
que é pensar o seu acidente não como um fato isolado, mas como virtualidade negativa e
censurada, criada a partir da própria concepção da técnica e inseparável dessa. O acidente
também é uma realização possível da tecnologia, o avião tanto é sua viagem como é seu
desastre. O autor chegou a propor, como provocação, um ‘museu do acidente’, onde cada
tecnologia escolheria seu acidente específico a ser questionado como um seu produto. O
acidente é algo que propõe a decifração do enigma dos objetos técnicos, “seu acidente é a
consciência que temos dele. Se não estamos conscientes do acidente, não estamos
conscientes do objeto: donde a crise tecnológica” (:117).
32
Virílio, urbanista e filósofo, entretanto faz um caminho bastante diferente de Beck, que parece mais influenciado por
Mannheim, e, principalmente, por Habermas e a Escola de Frankfurt. Virílio faz um desenvolvimento de temas como a
ecologia e a técnica a partir do que ele vê como subordinação da sociedade às necessidades de uma preparação permanente
para a guerra, não baseada na tomada de posições e territórios, mas na dissuasão, na velocidade dos meios, que
revolucionam conceitos como tempo e espaço.
31
não desejada. Isto não deve ser entendido como uma sutileza, mas uma mudança de
abordagem. Alain Touraine nota que Beck “reverteu a visão tradicional que fazia do indivíduo
33
o lugar do imprevisível , enquanto o sistema econômico parecia conduzido pela razão e pelo
progresso.” (Touraine, 1995: 278) Atualmente não seria o contrário, Touraine pergunta, para
isso utilizando a observação de Giddens que o aumento de conhecimento das ciências
exatas não significou um controle real maior nem racionalidade. Isso significa buscar a fonte
do contingente, acidental, nesse aparente paradoxo: na ciência e na tecnologia que quanto
mais obtém conhecimento, mais persegue e consegue controlar variáveis, por outro lado
mais produz como efeito o contingente.
33
Como em Arendt (op.cit), onde, no entanto, a imprevisibilidade do ser humano é uma característica positiva, por expressar a
possibilidade de liberdade.
32
34
Para Certeau (1982), a História investiga as condições que a produziram e os seus produtores.
35
A crise econômica e sua profundidade na década de 80 pode ser expressa pela idéia da “década perdida”, expressão com a
qual se costuma designar aquele período.
33
como paradigmático, isto é, onde o projeto da modernidade pode ser entendido como ‘mais
acabado’, e onde o debate está mais centrado na suposta transição da modernidade para
uma pós-modernidade, e onde mesmo assim persistem, como “tradições
destradicionalizadas” (Giddens, em Beck et alii. 1994) o que seriam resquícios pré-modernos,
o caso brasileiro, parece, num primeiro olhar, também partilhar de elementos pré-modernos,
modernos e ‘pós-modernos’ ao mesmo tempo, mas em proporções completamente
diferentes. Mesmo esses elementos permitiriam diferentes leituras. O ferro-velho, locus do
acidente em Goiânia, seria pré-moderno na forma de existência do dono e dos empregados,
marginais do modo de produção industrial, ou pós-moderno, já que o que existe num ferro-
velho, sem metáforas, são restos de artefatos da modernidade dissolvidos, obsoletos,
descontruídos, exemplares de uma transição em curso?
36
Os exemplos de Beck sobre a mútua atração entre miséria e risco são Bophal, na Índia, e a explosão da favela de Vila Socó,
em Cubatão, a mais poluída cidade do planeta. (Beck, 1992. Op.cit.: 42-4)
34
Para Beck, a mudança da sociedade industrial para a risk society é devida ao seu
sucesso, que dissolve as suas próprias bases (‘self-dissolution’) em decorrência de seus
efeitos não-previstos, não-intencionais e não-conhecidos (‘self-endangerment’). É necessário
enfatizar que Beck diferencia reflexão de reflexividade e propõe uma dialética entre
conhecimento e não conhecimento, entre intencional e não intencional: “A premissa clássica
da teoria da modernidade refletida pode ser simplificada sob as teses inicialmente
declaradas: o quanto mais as sociedades são modernizadas, mais agentes (sujeitos)
adquirem a habilidade para refletir sobre as condições sociais de suas próprias existências e
deste modo mudá-las. Em contraste com esta, a tese fundamental da teoria da modernidade
reflexiva, cruamente simplificada, se desenrola como: mais longe a modernização das
35
37
“The classical premise of the reflection theory of modernity can be simplified down the initially stated thesis: the more
societies are modernized, the more agents (subjects) acquire the ability to reflect on the social conditions of their existence
and to change them in that way. In contrast to that, the fundamental thesis of the reflexivity theory of modernity, crudely
simplified, runs like this: the further the modernization of modern societies proceeds, the more the foundations of industrial
society are dissolved, consumed, changed and threatened. The contrast lies in the fact that this can quite well take place
without reflection, beyond knowledge and consciousness”
38
Robert Kurz (1992: 228) chama essa civilização de um “comunismo das coisas”, oculto pela fetichização total do trabalho e
pela globalização das condições da reprodução humana.
36
que parece permitir uma análise sociológica abrangente de um objeto complexo, como
procurou se demonstrar com a idéia de acidente tecnológico.
Para Nora, os mass media detêm agora o monopólio da história (não mais o próprio
historiador), e, por seu intermédio, “o acontecimento marca sua presença e não pode nos
evitar”(:180). Produzem o acontecimento, embora o que mostrem não seja equivalente ao
real, determinando que não basta terem acontecido para serem históricos, é necessário que
sejam conhecidos, participam deles como condições, e obrigam à participação das massas
no acontecimento. Nos dois sentidos do termo, o acontecimento é projetado, lançado na vida
privada e oferecido sob a forma de espetáculo. (...) dessa forma, fizeram da história uma
agressão e tornaram o acontecimento monstruoso. Não porque sai, por definição, do
ordinário, mas porque a redundância intrínseca ao sistema tende a produzir o sensacional,
fabrica permanentemente o novo, alimenta uma fome de acontecimentos. Não que os crie
artificialmente (...) A própria informação segrega seus anticorpos, e a imprensa escrita ou
falada, no seu conjunto, teria como efeito, antes de tudo, limitar o desencadeamento de uma
opinião selvagem. (:183).
O Acidente de Goiânia não foi algo circunscrito a poucas pessoas, seus participantes
e vítimas diretos, mas se tornou um evento socializado através da notícia. Como tal, foi
documentado, mostrado, foi trabalhado de maneira a satisfazer curiosidades, levantou
questões e dúvidas, ganhou e produziu repercussões, obrigou seus participantes a ações e
discursos. É nos media que o Acidente é experimentado como o desenrolar do presente,
como um tempo estranho na esperada continuidade entre o passado e futuro, pois um
acidente tecnológico aponta para o futuro como uma alternativa indesejada, gestada antes e
agora. Voltado ao indivíduo como telespectador, leitor ou ouvinte, a mídia quer a sua atenção
e a obterá pelo trabalho com manchetes, locuções dramáticas, imagens, as palavras
profissionalmente escolhidas: a mídia é um sistema perito tão envolvido no Acidente como os
demais técnicos. Subjaz de seu objetivo econômico imediato de ‘vender’ a atenção
conquistada o objetivo de armar e produzir o cenário público do Acidente e por meio disso
controlá-lo, dominar pela palavra a natureza do acontecimento traduzido em notícia. O
sistema perito da mídia quer controlar seu objeto-notícia assim como o sistema perito nuclear
quer controlar as reações nucleares.
próprios produtores, em que ideologias e esquemas são confrontados com resultados, onde
o fato cotidiano se transforma em um acontecimento.
39
“Morcegos Atômicos - Cientistas espantados com o alto índice de radiação das crianças do campo na Sibéria descobriram
que a fonte vinha dos morcegos trazidos de um lago contaminado. A radiação no campo em Chelyabinsk alcançou mil
micro roentgen por hora, ou 40 vezes o nível que pode causar uma sensível queda nas células brancas do sangue, segundo
o jornal local Rvening Chelyabinsk. Os morcegos, depois de se alimentarem no lago Karachai, espalhavam sua radiação
nos prédios do campo. Karachai foi contaminado por uma fábrica química e nuclear local.” FOLHA DE S. PAULO,
26/07/93
40
“Tchernobil inglesa vira Disneylândia atômica - (...) A usina inglesa de Sellafield foi palco de dois acidentes nucleares no
passado, mas hoje, ainda em pleno funcionamento, é a atração turística que mais cresce no país (...)” FOLHA DE S.
PAULO, 09/08/92. A notícia cita o acidente de Sellafield como o primeiro acidente nuclear grave, juntamente com o de
Kichtim, na Rússia, este de gravíssimas conseqüências, no mesmo ano de 1957.
41
FOLHA DE S. PAULO, 26/03/94. Um avião militar sofreu um acidente no mar, em segredo. As bombas que carregava não
foram recuperadas.
40
atualidade tanto sua especificidade em relação à História quanto seu perfume já histórico.
Daí essa impressão de jogo mais verdadeiro que a realidade, de divertimento dramático, de
festa, que a sociedade dá a si própria através do grande acontecimento. Todo mundo e
ninguém toma parte, pois todos formam a massa à qual ninguém pertence. Esse
acontecimento sem historiador é feito da participação afetiva das massas, o só e único meio
que elas têm de participar na vida pública: participação exigente e alienada, voraz e
frustrada, múltipla e distante, impotente e portanto soberana, autônoma e teleguiada como
essa impalpável realidade da vida contemporânea que se chama opinião.” (: 185-6)
Por esse outro lado, a imprensa trabalha o que considera os interesses, problemas e
assuntos principais, e com um determinado ‘tom’ que acha adequado à gravidade do
assunto. Há também o modo como o fato desencadeia outros, como surgem as relações,
parte delas produzidas, fabricadas através da imprensa pela repercussão, isto é, a técnica
jornalística de colher opiniões sobre fatos anteriormente noticiados; e parte através das
conseqüências do fato. Surgem então focos onde estariam as informações a serem colhidas,
os depoimentos e repercussões, as dúvidas a serem esclarecidas. A dúvida de hoje é a
notícia de amanhã. Quando as dúvidas não despertam tanto interesse, a notícia some, a
pauta esfria, e se abre o campo do esquecimento42.
O noticiário da grande imprensa escrita parece ter sido até burocrático, em relação à
gravidade dos fatos e ao impacto que teve na população e até aos seus próprios títulos,
chamativos e ameaçadores; já que grande parte dele se resumiu a descrever depoimentos
de alguma autoridade, que são endereçados a outras autoridades, num debate cifrado, ou ao
‘público’ em geral, esse ente abstrato. Ou ainda, relacionou-se ao conteúdo dessa
‘autoridade’, quer dizer, à imagem de si mesmo e ao seu próprio papel. Quando o
governador de Goiás ou o presidente da CNEN explicam detalhadamente o que puderam
fazer, o que deveriam, o que se esperava que tivessem feito, respondem a expectativas da
população através da imprensa, formulam intensivamente o que é esse papel, acentuam ou
atenuam contradições e rivalidades, num contexto inédito, o resultado é uma atualização
desse conteúdo da autoridade. Esta atualização do conteúdo da autoridade visa uma re-
legitimação, no caso, tanto política quanto técnica, e que pode ou não ser bem sucedida.
O espectador não tem uma participação passiva, como poderia se entender: é a ele
que se dirige todo o trabalho de organizar e apresentar fatos e imagens, se objetiva não
somente informá-lo ou esclarecê-lo, busca-se de modo implícito provocar reações, emocioná-
lo ou indigná-lo, procura-se convencê-lo ou tranquilizá-lo (o sucesso nessa tarefa é
parcialmente avaliado de imediato pelas oscilações de venda ou de audiência). O espectador
42
Apenas quatro meses após a descoberta do acidente, a rotina de Goiânia havia voltado ao normal, e as vítimas do acidente
haviam sido praticamente esquecidas, sofrendo de falta de medicamentos, atrasos de indenizações, e de incerteza perante
sequelas futuras. A cidade procurava esquecer o acontecimento, tendo este virado uma espécie de assunto tabu (sempre
segundo notícias na imprensa). O GLOBO, 31/01/88; JORNAL DA TARDE, 28/04/87.
42
O sistema perito nuclear nasceu em plena Segunda Guerra Mundial, como um inédito
esforço conjunto de cientistas, militares e do governo norte-americano para produzir a arma
mais poderosa já concebida a partir de pouco mais que um conjunto de hipóteses. A façanha
científica e tecnológica conhecida como Projeto Manhattan foi realizada em segredo, com
objetivo estratégico de ganhar a guerra. A conjunção da ciência e da tecnologia com
objetivos militares marca a especificidade do sistema nuclear, na forma de uma politização
que caracteriza mesmo as chamadas aplicações pacíficas da energia nuclear. Estas últimas,
por suas ligações intrínsecas com as aplicações militares (por exemplo, certos tipos de
reatores nucleares civis produzem plutônio, que pode ser utilizado na fabricação de armas).
A relação do sistema nuclear com a imprensa parece ter sido sempre, por um lado, de
um sistema produtor de segredos e de fatos e informações; e, por outro, o seu canal para o
público, isto é, uma relação que já nasceu planejada e politizada, sendo a imprensa
instrumentalizada basicamente como veículo de propaganda e legitimação. Na primeira
explosão atômica, em Alamogordo, Novo México, EUA, em 1945, veículos selecionados da
imprensa já estavam presentes para documentar o fato, com o compromisso de não revelá-lo
de imediato. O ataque a Hiroshima foi planejado como uma ação militar tanto quanto como
uma ação de propaganda, sendo filmado e documentado nos seus mínimos detalhes43. O
Enola Gay, o avião que carregou a bomba, foi escoltado por um avião idêntico mas armado
somente de câmaras cinematográficas. A destruição de Hiroshima e Nagasaki, no entanto,
foi mostrada de início ao público americano de longe, apenas como um imenso cogumelo de
fumaça e cinzas, como símbolo do poder militar americano e sua vitória. Os seus efeitos
malignos na população e na cidade foram mostrados bem depois.
43
Num documentário exibido pela TV Cultura de São Paulo, chamado Retorno a Hiroshima, podem ser vistos trechos da
operação de bombardeio. Produzido pela BBC inglesa, o documentário mostra a visita de integrantes das tripulações da
operação à Hiroshima, às vésperas do 45º aniversário da Era Nuclear. Exibido em 2/8/1995.
44
O documentário Rádio Bikini reconstitui o caráter de propaganda dessa operação. Exibido pela Rede Cultura de Televisão,
em 3/8/95.
44
teriam condições de entrar em combate logo após um ataque nuclear. Grande parte deles
posteriormente morreu de câncer e leucemia, em conseqüência dessa exposição.
A situação não deixava de ser ambígua, pois o sistema nuclear militar dos EUA
precisava da imprensa para que todos soubessem que havia segredos, os quais deveriam
continuar secretos por questões de segurança nacional, contra o ‘perigo vermelho’ e as
‘nações hostis à democracia’ representadas pela URSS. A imprensa, por sua vez, precisava
dos fatos, sua matéria-prima. Isto é, não era um ‘completo segredo’, pois desse nem se
imagina a existência. Mas se sabia que o sistema nuclear militar possuía segredos sobre
como fabricar e explodir bombas, embora muitos deles não fossem tão secretos assim por
definição, já que constituíam conhecimento científico publicamente veiculado. O
conhecimento científico é hermético, mas não secreto nesse sentido. A natureza do sistema
militarizado de controle de informações científicas e tecnológicas (essas últimas sim,
passíveis de serem controladas, na forma de know-how) não conseguia entretanto apenas
efeitos positivos. A especulação sobre os ‘segredos’ começa a partir do momento em que se
admite que se tem um segredo, ou de um fato que aponte sua existência, seja num grupo de
crianças ou de vizinhos, seja em corporações ou nações.
45
Reflexivamente, pode se dizer.
46
Ou os diversos flagrantes de despejos de lixo radioativo no oceano pelo Greenpeace. O acidente de Tchernobyl aconteceu
em abril de 1986, na Ucrânia, então URSS. As ressonâncias desse impressionante acidente não deixaram de estar presentes
em Goiânia.
45
47
protesto nos países industrializados contra a continuidade de usinas nucleares , chega a
expressivas vitórias nesses países, vários deles tendo suspendido seus programas após
48
consultas democráticas como a Alemanha, a Itália e a Inglaterra . “Para grandes segmentos
da população e para os oponentes da energia nuclear, seu potencial catastrófico é central.
Não importa o quão pequena seja considerada a probabilidade, ela é muito grande quando
49
um acidente significa aniquilação” (Beck, 1992: 29). A luta entre esses dois grandes lados
dessa questão inverte a posição de superioridade de quem antes mantinha o segredo. Antes,
era uma vantagem, uma posição de poder, a suposição de que o sistema nuclear mantivesse
segredos. Agora, a suposição de segredo se tornou a arma dos seus críticos: o sistema
nuclear esconde algo, possui segredos, porque não pode revelar os perigos sobre os quais
se baseia; portanto, mente, esconde a verdade, sonega e distorce informações (acidentes
nucleares graves costumavam ocorrer em segredo, como vimos), ameaça o sistema
democrático e a própria sociedade: acidentes tecnológicos como Tchernobyl seriam a prova,
pois tudo o que se comia ou se bebia na Europa tinha a presença de Tchernobyl50. São as
conseqüências indesejadas ou imprevistas do sistema nuclear que agora produzem os fatos
e, portanto, dividem o interesse da imprensa.
O Brasil também tem seus segredos no campo nuclear (nisso não é diferente de
outros países), visto que o monopólio do Estado sobre o assunto até há bem pouco tempo
era uma extensão da ditadura militar, ou seja, a visão de que se tratava de um assunto
estratégico stricto sensu foi dominante, por diversas razões (Giroti, Marques, De Biasi,
Goldemberg, Pinguelli Rosa51 e outros autores brasileiros desenvolvem esse tema). O eixo
foi a divisão interna entre os que entendiam ser a capacitação nuclear brasileira necessária:
de um lado, os que advogavam que essa capacitação teria de ser nacional e autonomamente
desenvolvida (que é a visão mais nacionalista); de outro, a visão de que o desenvolvimento
nuclear poderia ser obtido via ‘colaboração’ com outros países (como foi o caso do acordo
Brasil-Alemanha e da compra de Angra I da Westinghouse norte-americana) (Motoyama e
47
E mesmo contra a venda de reatores nucleares a países como o Brasil (Girotti, 1984).
48
SUPERINTERESSANTE. Op.cit. A matéria dessa revista, no entanto, tenta passar a imagem de que a energia nuclear é
indispensável e está mais segura. Nos EUA, entretanto, a última encomenda não cancelada de um reator nuclear foi em
1973. Em toda a União Européia, apenas a França tem reatores em construção. (GREENPEACE, 1996: Chernobyl - 10
anos)
49
“For large segments of the population and for opponents of nuclear energy, its catastrophic potential is central. No matter
how small an accident probability is held, it is too large when one accident means annihilation.”
50
Um pouco antes do Acidente em Goiânia, houve um caso muito comentado de uma importação de carne da Polônia que
visava a falta do produto no mercado brasileiro, durante o plano Cruzado. A carne estaria contaminada por substâncias
radioativas do Acidente de Tchernobyl.
51
Segundo Pinguelli Rosa, em artigo anterior a Goiânia, até o plano de emergência para a cidade de Angra dos Reis em caso
de acidente na usina era secreto, subordinado ao Conselho de Segurança Nacional, além de instalações para testes nucleares
no Pará e para o desenvolvimento de um submarino nuclear da Marinha, em Iperó (interior de SP) (Pinguelli Rosa, 1987).
46
Marques. 1994). O peso desses segredos, dos erros e das opções do Estado brasileiro no
programa nuclear também apareceram em Goiânia, de forma inusitada, mas também contra
os interesses do sistema nuclear.
Roberto, o Betão, tinha 21 anos e Wagner, 19. Levaram a parte do equipamento que
puderam carregar (cerca de 120 quilos) num carrinho de mão para a casa de Roberto, que
52
O ESTADO DE S. PAULO. 1/12/87. Procurador culpa cinco pelo acidente radioativo.
47
com uma marreta emprestada tentou desmontá-la, provavelmente para separar os metais
para vender, durante quatro noites seguidas, segundo o depoimento de vizinhos que foram
obrigados a ouvir o trabalho. Roberto trabalhou especialmente num cilindro de cerca de 12
53
centímetros de altura por 30 de diâmetro (onde estava o núcleo radioativo) . Apesar de seus
esforços conseguiu apenas romper o lacre de um orifício lateral, mas que liberou a
passagem da radiação. Roberto deve ter recebido, nesse momento, uma irradiação de cerca
de 1.000 REMs54. No dia 17 de setembro os dois amigos levaram a peça cilíndrica ao ferro-
velho de Devair Alves Ferreira, que aparentemente só se interessou por ela após notar a bela
luminosidade azul que escapava da peça ao se apagarem as luzes, já no dia 21. Prometeu
ao dois amigos que pagaria CZ$ 1.500 por ela (cerca de 20 dólares). Devair parece ter sido a
primeira das vítimas a se encantar com a luminescência, e talvez achando que tivesse algo
de valor, levou a peça para dentro de sua própria casa, nos fundos do ferro-velho, na rua 26-
A. Devair procurou descobrir de onde vinha a luz: conseguiu quebrar a pastilha de césio e
retirar algumas ‘pedrinhas’ com uma chave de fenda através do orifício onde estava o lacre.
A peça ficou no quarto de Maria Gabriela Ferreira, mulher de Devair, por alguns dias,
irradiando igualmente a sua sogra, também chamada Maria Gabriela.
No dia 24, Ivo Alves Ferreira, irmão de Devair, recolheu alguns fragmentos numa
caixa de fósforos para mostrar à própria mulher, Lourdes. Em sua casa, nos fundos de outro
ferro-velho de sua propriedade, na rua 6, Ivo esfregou os fragmentos no cimento, onde
brincava sua filha Leide, de 6 anos. Logo após, com as mãos ainda sujas do pó, Leide
comeu um ovo cozido. Devair também distribuiu, como presentes, fragmentos da pedra a
amigos, como os irmãos Ernesto e Edson Fabiano.
O menino Carlos, sete anos (...) disse ter brincado, junto com mais cinco ou seis
amiguinhos, no ferro-velho onde foi desmontado o container que continha a cápsula de
césio-137 (...). Madalena Pereira Gonçalves, 46 anos, também ‘brincou’ com a ‘pedrinha
que era a coisa mais bonita do mundo’. Lembrou que a passou no braço ‘para ver se eu
ficava bonita também’, disse rindo, ignorando qualquer preocupação.55
53
JORNAL DO BRASIL. 1/11/87. Entre a pobreza e a ignorância, a tragédia nuclear.
54
O REM, sigla para Roentgen Equivalent Man, é uma medida de dose efetiva de radiação recebida pelo homem. A dose em
questão é altíssima.
55
JORNAL DA TARDE, 05/10/87. Goiânia: um novo foco de radiação.
48
adoeceu. Ernesto, que carregara o presente no bolso da calça, teve também uma ferida na
perna direita, com bolhas e muitas dores. No domingo, dia 27, ocorreu em Goiânia talvez o
mais importante evento do ano quando a cidade sediou uma etapa do campeonato mundial
de motociclismo de velocidade, no seu autódromo. Com a atenção da cidade voltada para a
corrida, Maria Gabriela, a esposa de Devair, teve dificuldades para conseguir auxílio médico.
Maria Gabriela desconfiou que o que estava causando o adoecimento de todos era a
tal peça. Contra a vontade de Devair, que não achava que algo tão bonito pudesse fazer mal,
Maria Gabriela pediu que a outro ajudante, Geraldo, que a ajudasse a levar a peça até o
prédio da Vigilância Sanitária. Envolta num saco, que Geraldo carregou nas costas (onde
sofreu uma radiodermite, ou seja, um ferimento provocado pela radiação), durante parte do
percurso, levaram o cilindro num ônibus, irradiando passageiros e transeuntes. Já era o dia
28, e Maria Gabriela foi atendida pelo sanitarista e médico veterinário Paulo Roberto
Monteiro, a quem teria dito que era aquela coisa que estava ‘matando o seu povo’. Maria
Gabriela conseguiu convencê-lo a verificar, deixando o cilindro na mesa56.
A criança morena, 6 anos, brinca na terra batida da rua pobre de Goiânia, apesar dos
enjôos que sofre há três dias. Dez metros adiante, um pelotão da polícia escolta dois
homens com detetores de radioatividade. Fim de tarde no cerrado, 29 de setembro de
1987. A menina reconhece o pai guiando o grupo e sorri. Um dos aparelhos - o ultra-
sensível cintilômetro, que descobre urânio no subsolo - ‘enlouquece’. O ponteiro chega ao
limite (5 milirrens/hora) e vibra no canto direito da escala, informando que a menina é
uma bomba radiativa. O homem do aparelho se assusta. A menina ameaça chorar e o pai a
toma no colo.57
56
Existe um longa-metragem, disponível em vídeo (Sagres/Riofilme), que reconstitui esses eventos. Césio-137: o pesadelo de
Goiânia foi escrito e dirigido por Roberto Pires, com os atores de telenovelas Nelson Xavier (como Devair), Paulo Betti
(como Roberto), Joana Fomm (Maria Gabriela) e outros. O filme é centrado no deslumbramento de Devair e termina com a
descoberta do acidente pelas autoridades. Segundo informa, foi baseado no depoimento das testemunhas.
57
JORNAL DO BRASIL. 1/11/87. Entre a pobreza e a ignorância, a tragédia nuclear.
49
de Janeiro e São Paulo. Formavam a linha de frente de um grupo montado para enfrentar
emergências com materiais radioativos, como acidentes em usinas nucleares e instalações
industriais, e que já havia sido organizado há 15 anos e tinha alguma experiência em
58
situações de acidentes , mas nem eles sabiam exatamente o que estariam enfrentando
dessa vez.
O Acidente, entretanto, não ganhou as manchetes logo no seu primeiro dia. Para a
maioria da população, que não era informada quanto aos perigos da radiação, ou pelo
menos para os jornalistas dos principais media de São Paulo e do Rio de Janeiro ele não era
tão óbvio como, por exemplo, a queda de um avião. Logo ficou claro que o acidente ainda
estava acontecendo - embora poucos tenham notado dessa forma - aumentando o tom
dramático do desastre, e ninguém conseguia, claramente, prever o seu desfecho.
58
O ESTADO DE S. PAULO, 04/10/87. “É um batismo de fogo”.
59
“Susto radioativo - (..) comparado ao césio 137, (...) o iodo 131 é suco de laranja”. VEJA, 10/05/95, em notícia sobre um
acidente nas instalações do IPEN - Instituto de Pesquisas em Energia Nuclear, no campus da USP, em São Paulo.
50
quanto aos termos técnicos, e quanto ao tom, e num outro nível, dificuldades decorrentes da
crescente complexidade da situação. De certa forma, essas características aderiram ao
Acidente, isto é, à idéia que se pode ter dele por esse ângulo.
Entretanto, vários pontos que, já no dia 1 de outubro, foram divulgados pela CNEN
não foram desmentidos depois. Já se sabia que a bomba pertencia ao Instituto Goiano de
Radioterapia, que a usava no tratamento do câncer; que os dois catadores de papel, Wagner
e Roberto, foram os que a retiraram de um prédio semi-destruído; que aparecera num ferro-
velho como sucata; que Devair, o dono do ferro-velho, distribuíra a “pedra brilhosa” como
presente aos seus parentes, amigos e vizinhos. Já se divulgava o perigo do césio-137, e se
prometia um “rigoroso” inquérito policial para “apurar as responsabilidades” sobre o acidente.
A imprensa também já cobria quais medidas tinham sido tomadas; soube-se que já existiam
vítimas em estado grave, e que a população de Goiânia já estava “em pânico” - em suma,
soube-se que algo de extrema gravidade havia acontecido, envolvendo um perigo muito
grande, e que alguém ou alguma coisa havia deixado que isso acontecesse, numa situação
quase inimaginável.
Vários agentes centrais foram surgindo nesse drama. Em primeiro lugar, a CNEN,
órgão fundado em 1962, que centralizava os esforços brasileiros na área nuclear. É através
dessa agência que o Estado brasileiro exerce o monopólio sobre o setor. Surgiu no Acidente
através de técnicos, como foram chamados, peritos na área de radioproteção. José de Júlio
Rosenthal, então diretor da CNEN, foi o primeiro porta-voz desse grupo (chegaram entre o
dia 30 de setembro e 1 de outubro cerca de 15 técnicos). Rosenthal confirmou que o
acidente era grave, assim como o estado das vítimas. Disse desconhecer acidente
semelhante, e que haviam sido tomadas medidas para isolar o cilindro com concreto60. A
CNEN também explicou qual era o seu papel - na linguagem burocrática, quais eram suas
competências e atribuições, e quais os requisitos que uma clínica de radioterapia deveria
cumprir.
José de Júlio Rozental explicou ontem à tarde que a CNEN - Comissão Nacional de
Energia Nuclear é a instituição que controla todo esse tipo de material no país. “A CNEN”
- disse - “executa a política, a normalização e a fiscalização do programa nuclear
brasileiro. Todos os órgãos e entidades que lidam com material radioativo, sejam médicos,
engenheiros, reatores, precisam da autorização da CNEN”. Ele revelou que o Instituto
Goiano de Radioterapia “está credenciado na CNEN, tendo sido fiscalizado. Acontece que
eles desativaram esse irradiador e não nos comunicaram. Para a CNEN, o equipamento
continuava operando normalmente. E eu também não sabia da situação em que esse
irradiador estava, nem o local onde deveria estar funcionando. De forma que, quando ao
problema da penalidade, nós teremos que avaliar”.
60
JORNAL DA TARDE, 01/10/87. Goiânia: césio contamina 20 pessoas.
51
Ele disse que o “que mais preocupa agora é o problema da contaminação das pessoas que
estiveram expostas à radiação. Estamos cuidando desta primeira etapa. Depois, faremos
um levantamento, abriremos um inquérito, para saber por que o Instituto Goiano de
Radioterapia permitiu que a peça fosse roubada”. Disse também que a CNEN tem normas
específicas e que, no caso de Goiânia, elas foram passadas para o Instituto. O
credenciamento passa por uma série de exigências, como manter um convênio com o
Colégio Brasileiro de Radiologia; ter um médico especialista que passa por um exame
nesse mesmo Colégio, além da necessidade de ter um equipamento adequado. A empresa
goiana passou, segundo ele, por tudo isto. Rozental afirmou que o governo e a CNEN
terão que, a partir de agora, dar toda a cobertura ao tratamento das pessoas afetadas, que
ainda poderão ir à Justiça reclamar direitos e cobrar indenizações.61
O governo do Estado de Goiás, que foi outro ator de destaque, aparece na pessoa do
então governador, Henrique Santillo, do PMDB, eleito em 1986, e do secretário da saúde,
Antônio Faleiros. A polícia estadual, a quem coube começar a investigação, seria depois
substituída pela Polícia Federal. Tanto a CNEN quanto o governo estadual já falavam na
necessidade do inquérito e em apuração de responsabilidade: atribui-se portanto um sentido
de crime para o Acidente, o que também é significativo num país onde os milhões de
acidentes de trabalho e de trânsito não são, na maioria, considerados como crimes, mas
como ‘acidentes’.
Outro grupo da maior importância, mas que nos primeiros dias não estavam em
destaque62, até pelas limitações de sua condição, era aquele composto pelas vítimas da
radiação. O termo contaminado, que vai delimitar quais são as pessoas normais e quais as
condenadas, já era usado para qualificar aqueles que tiveram contato com a radiação,
embora, do ponto de vista técnico, a contaminação diga respeito a apenas uma das formas
de interação com a fonte radioativa (a outra é a irradiação, na qual alguém ou alguma coisa
fica exposta aos ‘raios’ propriamente ditos, mas não entra em contato com a substância ou
equipamento que provoca a radiação). Estar contaminado tem uma evidente conotação de
doença, sujeira, impureza ou envenenamento contagioso; portanto, de ameaça.
61
JORNAL DO BRASIL, 01/10/87. Césio em ferro-velho espalha radioatividade em Goiânia
62
Por exemplo, não se noticiou exatamente quantas pessoas eram, quem e em qual estado de saúde estavam.
52
63
O GLOBO. 28/01/1996.
53
64
FOLHA DE S. PAULO, 06/10/87
65
O símbolo de radioatividade não lembra de modo algum, para quem não o conheça, o perigo envolvido. Isso não deve ser
coincidência, pois o sistema nuclear sempre procurou evitar as conotações de seu perigo.
66
A esse respeito ver, por exemplo, Gomes, in CIÊNCIA HOJE, vol.7 n. 40, p.6, 36-7, suplemento Autos de Goiânia.
(SBPC, 1988) Também algumas obras sobre energia nuclear ou política nuclear trazem anexos sobre as unidades utilizadas.
54
existam no ambiente diversas substâncias que são radioativas. Numa emergência, falar de
‘desintegrações’ radioativas deve ter sido assustador: cada átomo que se ‘desintegra’ na
verdade, ao perder partículas nucleares, ‘decai’ e se transforma num outro elemento químico
(de menor peso atômico), que também pode ser instável e decair sucessivamente até se
transformar num elemento estável. O césio-137, por exemplo, não existe livre na natureza,
mas somente como produto da desintegração do urânio em reatores ou bombas.
67
Edição brasileira 1976. Freud analisa um conto de Hoffman a partir dos sentidos da palavra alemã unheimlich. A estranheza
adviria do que se sente diante do fato de não se saber se um ser estava ou não vivo, do que haveria de familiar numa
situação estranha
68
Os termos ‘descuido’ ou ‘negligência’ não são suficientes para a descrição desse aspecto: talvez manifeste um estágio da
violência que subjaz na relação entre indivíduos e/ou classes no Brasil (basta ver quão pouco ela é formalmente punida
pelos aparelhos de justiça criminal, em relação ao quanto são disseminados acidentes de trabalho ou de trânsito). O
‘descuido’ talvez seja um termo ‘doce’ que apenas encubra a agressão potencial por trás de cada norma de segurança básica
sistematicamente contornada.
69
O ESTADO DE S. PAULO. 02/10/87. Radiação: só Chernobil supera Goiânia.
55
de 100, durante todo o evento), além da CNEN, vinculados à Furnas (estatal do setor elétrico
responsável pela operação de Angra I), e à Nuclebrás (outra empresa estatal, uma holding
voltada à industria nuclear). Além deles, foram mobilizados a Aeronáutica e a Marinha, dona
do único hospital no país capacitado a atender vítimas de acidentes nucleares, o Hospital
Marcílio Dias, no Lins, zona norte do Rio de Janeiro, para onde foram levadas seis vítimas
em estado mais grave: Devair, Ivo, Roberto, Wagner, Ernesto e a menina Leide. As outras
vítimas estavam sendo atendidas por um esquema que utilizou o Hospital Geral do INAMPS
de Goiás (HGG), que cedeu uma ala para recebê-los, e cerca de meia dúzia de médicos
especialistas, profissionais raros e convocados inicialmente nas agências nucleares
nacionais. Vários contaminados estavam ainda isolados no Estádio Olímpico da cidade, onde
a CNEN montara um centro de monitoração (depois seriam levados dali para o HGG ou para
instalações da Febem de Goiânia). O atendimento às vítimas constituiu uma das principais
frentes do Acidente, pelo menos na imprensa, que procurou acompanhar a evolução dos
tratamentos e o estado das vítimas. Por exemplo, nos primeiros dias já eram descritos os
procedimentos de descontaminação através de banhos, para retirar as partículas de césio-
137 da pele, e o uso do medicamento radiogardase, conhecido também como Azul da
Prússia.
No mesmo dia (ainda no dia 1, noticiado no dia 2 de outubro), a CNEN já afirmava ter
o controle da situação. Ou pelo menos, de parte dele:
CNEN afirma que processo de radiação está sob controle - (...) Em entrevista coletiva à
imprensa, às 16h de ontem, os técnicos da CNEN informaram que já está sob controle o
processo de contaminação radiativa em Goiânia. Segundo o físico José Júlio Rozental, sua
equipe já tem mapeadas onze áreas contaminadas ou suspeitas, para onde teria sido levada
uma das peças do aparelho, denominado “bomba de césio”.70
Pouco depois, ver-se-ia que esse controle não era tão bom quanto dizia a CNEN. Já
se começava também a detalhar quais as responsabilidades do Estado, no caso, da CNEN,
na fiscalização e controle de fontes radioativas. Fernando Bianchini, presidente interino da
Comissão, revelou que a desativação da bomba não fora comunicada, como previa a norma,
à CNEN. Por outro lado, admitiu que a CNEN tinha falta de pessoal para a fiscalização71.
Bianchini também pediu calma à população, negando o temor de uma contaminação
generalizada. Um dos donos da bomba, o médico Orlando Alves Teixeira, foi entrevistado e
disse não ser responsável pelo Acidente. Segundo ele, foi impedido de levar a bomba por
uma ordem judicial, quando o IGR mudou de endereço, em favor do IPASGO (Instituto de
70
FOLHA DE S. PAULO. 02/10/87.
71
idem.
56
Na cidade, várias ruas e quarteirões em torno dos “focos” de radiação tinham sido
evacuados e isolados. Pelo fato de o césio-137 estar na forma de um pó, ele havia se
impregnado nas casas, roupas, objetos e pessoas que estiveram em contato com ele, que
chegaram a esfregá-lo no corpo “como purpurina”, mas, segundo os técnicos, apenas quem
estivera em contato direto ou muito próximo dos pontos de radiação corria algum perigo. As
ruas da cidade e os trajetos do material radioativo teriam sido monitoradas, não se
encontrando níveis acima do “mínimo suportável” pelo ser humano72.
Aqui é a Marinha, a Marinha de Guerra. É claro que temos que estar preparados para uma
emergência (...)73
Na mesma entrevista, o almirante também declarou que três das vítimas tinham
“chances mínimas” de sobrevivência: Roberto, Devair e Leide. Pode-se questionar o quanto
há de real preparo num hospital que achava que nunca iria ser utilizado, mas a frase é
sintomática de que, por algum motivo, não se levava a sério a possibilidade de um acidente.
72
O ESTADO DE S. PAULO. 02/10/87. Preocupação e medo na cidade. (Vale lembrar que o conceito de ‘mínimo
suportável’ não é aceito por vários críticos do sistema nuclear.)
73
ISTOÉ. 14/10/87. Diante da morte e perplexos.
74
O ESTADO DE S. PAULO. 03/10/87. Pouca chance para vítimas da radiação.
57
O Marcílio Dias contava com uma enfermaria especial, com isolamento de chumbo,
aparelhos e equipe especializada, e que havia sido montada como parte das exigências de
segurança das normas internacionais (da AIEA, Agência Internacional de Energia Atômica)
para o funcionamento de Angra I. O hospital receberia o auxílio de alguns médicos
estrangeiros, alguns com a experiência do Acidente de Tchernobyl. O hospital foi cercado por
tropas armadas e em trajes de combate, e os jornalistas e curiosos foram mantidos à
distância durante quase o mês inteiro. O cerco do hospital apavorou a vizinhança,
‘exportando’ o clima do Acidente para a cidade do Rio.
Semanas depois, o Jornal do Brasil publicou uma matéria na qual revelava que o
‘preparo’ do hospital não era tão bom como informou o almirante. Citando médicos do
hospital cujas identidades não foram reveladas, a reportagem indicou uma série de erros e
medidas equivocadas, “provocadas pela falta de conhecimento prático”:
A imprensa não teve muito acesso ao Marcílio Dias, mesmo quando, por efeito da
reportagem do Jornal do Brasil, os jornalistas foram convidados a conhecer parte das
instalações, mas sem ver as vítimas (no mesmo dia em que morreram duas delas). Os
boletins sobre a evolução do estado de saúde das vítimas, publicados diariamente, são o
75
JORNAL DO BRASIL. 22/10/87. Despreparo espalhou a radiação pelo Marcílio Dias
58
retrato de uma agonia lenta e dolorosa, falando sobre radiodermites, síndrome aguda de
radiação, destruição das defesas imunológicas, e outros efeitos da radiação.
Tomamos todas as precauções: usamos calça, bota, avental, máscara, gorro, luvas duplas e
sobressapatos. Acompanhados de dois físicos de radioproteção, entramos finalmente na
enfermaria, o Dr. Brandão e eu. Foi uma situação que nos chocou muito. Os onze
pacientes estavam no fundo, todos sentados, juntos. Alguns apresentavam lesões graves e
sentiam dor. Entre eles, havia duas crianças. Mostravam-se visivelmente atemorizados,
angustiados, e sofriam. Não tinham idéia do que estava acontecendo: de uma hora para
outra ficaram doentes, foram internados, isolados e tratados como suspeitos. A cena me
causou certa emoção.76
Não tive receio no contato com os contaminados. Se havia gente competente se expondo
da forma que se expôs, não haveria razão para ter medo. Apesar disso e dos
esclarecimentos sobre como trabalhar, a colaboração da classe médica de Goiânia foi
mínima, para não dizer nula. No início, por desinformação ou medo, o pessoal se negava
até a entrar no hospital. Não tiro a razão, cada um tem sua razão. Eu diria que é um
problema goiano mesmo.77
O medo, que se espalhava pela cidade, na descrição dos jornais, levou a algumas
manchetes preocupantes. Por exemplo: Muitos contaminados fogem de Goiânia, no O
Estado de S. Paulo, ou a afirmação da Folha de S. Paulo que nada menos que quarenta
mil pessoas começavam a abandonar bairros inteiros, ainda no dia 3 de outubro. Mesmo que
tantas pessoas não tivessem fugido ao mesmo tempo e em total descontrole emocional (o
76
CIÊNCIA HOJE. Op. Cit. (SBPC, 1988: p.7)
77
Idem. p.11
59
78
FOLHA DE S. PAULO. 03/10/87. Moradores deixam área atingida pela radiação.
79
JORNAL DA TARDE. 03/10/87. Goiânia: os técnicos trabalham na descontaminação.
60
O deputado Fábio Feldmann (PMDB-SP) disse ontem em Brasília que o acidente ocorrido
em Goiânia demonstra, mais uma vez, a necessidade de criação de mecanismos, a nível
constitucional, visando a defesa da população. (...) a nova Constituição precisa garantir à
população o conhecimento prévio do que é feito na área nuclear, para opinar a respeito.
(...) A questão nuclear, disse o deputado, foi de difícil discussão, por se tratar de assunto
considerado de segurança nacional. O atual projeto de Constituição já representou um
grande avanço, na sua opinião, ao determinar que a energia nuclear só seja utilizada para
fins pacíficos e com prévio consentimento do Congresso. Feldmann afirmou que, na
próxima segunda feira, solicitará informações à Comissão Nacional de Energia Nuclear e
ao Ministério das Minas e Energia, pois considera “gravíssimo” o fato de “não haver
transparência de informações quando se trata da área nuclear”.81
80
FOLHA DE S. PAULO. 03/10/87. Acidente é caso de cadeia, afirma físico da Unicamp
81
FOLHA DE S. PAULO. 03/10/87. Deputado diz que uso nuclear deve ser fiscalizado
61
O país voltava sua atenção para um drama provocado por um acidente tecnológico à
moda da casa, e à moda da sociedade de classes. Pobres foram envolvidos aparentemente
pelo descuido das elites, das classes dirigentes e esclarecidas, que agora surgiam
prometendo solucionar e explicar o crime, o problema, a emergência, na figura de
especialistas, médicos e a polícia, e os governantes prometiam tomar todas as medidas para
proteger a população. Surgiu a questão do medo, do perigo desconhecido que poderia estar
se alastrando, das dúvidas e dos segredos agora vislumbrados, e também, pode-se dizer, do
inusitado, do contingente, mas também de aspectos coletivos como a irresponsabilidade, os
descuidos, que nos lembravam que éramos não só uma sociedade insegura, mas também
atrasada, incapaz de tomar um mínimo de cuidado, como disse Cerqueira Cézar. Um grupo
de pessoas estava sofrendo e morrendo pela única propriedade do césio que não se previu
que poderia ser, em qualquer medida, perigosa: a bela luminescência azul82, que iluminou o
galpão de um ferro-velho numa noite em Goiânia.
Por outro lado, a inocência de Devair e dos outros encantados pela beleza da
natureza artificial, é mais do que prevista: é temida pelo sistemas peritos. A inocência,
ignorância ou não-conhecimento do leigo são fatores de risco pelos quais os sistemas peritos
entendem ser necessário seu controle direto ou sua mediação sobre processos ou artefatos:
os sistemas peritos almejam o controle do chamado fator humano83, sempre imprevisível
nesse sentido. Os leigos não sabem identificar perigos invisíveis como a radiação ou a
contaminação química ou bacteriológica; o mecanismo de defesa dos leigos contra esses
perigos é a confiança nos sistemas peritos. Giddens demonstra que a confiança só é exigida
onde existe a ignorância (1991: 92), confiança que porém deve ser constituída socialmente,
metodicamente (através, por exemplo, do que ele chama de “currículo oculto” de respeito às
ciências, implícito na educação formal); e que sempre é ambivalente pela ignorância também
propiciar, ao lado da confiança, o ceticismo e a cautela. Mas a ignorância é produzida pelas
ciências tanto quanto o conhecimento84; pois qualquer conhecimento que se produz,
82
A cor azul é característica do césio e lhe deu o nome, derivado do latim, e que significa céu azul.
83
Dessa situação advém repetidos apelos para que a população seja informada sobre este ou aquele aspecto perigoso de coisas
disseminadas como medicamentos, produtos químicos de limpeza ou elevadores. Num outro nível, se desenvolveram os
métodos gerenciais do trabalho, lançando mão da psicologia e da sociologia industrial ou das organizações visando um
maior controle do “fator humano”.
84
Na formulação de Popper [1976], conhecemos muito, mas também “Nossa ignorância é sóbria e ilimitada. De fato, ela é,
precisamente, o progresso titubeante das ciências naturais (...), que constantemente, abre nossos olhos mais uma vez à
nossa ignorância, mesmo no campo das próprias ciências naturais. Isto dá uma nova virada na idéia socrática de
ignorância. A cada passo adiante, a cada problema que resolvemos, não só descobrimos problemas novos e não
solucionados, porém, também, descobrimos que aonde acreditávamos pisar em solo firme e seguro, todas as coisas são, na
verdade, inseguras e em estado de alteração contínua.”(:13)
62
Pode-se aqui somente propor uma tentativa de decifração, à maneira de Beck (1992:
cap. 7): a inocência/ignorância são opostas à técnica e à ciência, mas ao mesmo tempo são
produzidas e, em outro nível, também são funcionais, necessárias à técnica e à ciência, pois
mantêm as relações (como a confiança) que necessitam para legitimar-se e institucionalizar-
se. A técnica e a ciência quando encontram a inocência e/ou ignorância, na verdade
encontram a si mesmas como, e nas, conseqüências não previstas, não percebidas de suas
próprias ações85, como problemas que não vem mais da natureza, mas de um mundo
transformado e em larga medida criado por elas. A ciência e a técnica são, portanto, elas
mesmas as ‘inimigas’ da modernização, criaram seus limites na sua, e pela sua, implantação.
Porém, para Beck, este aparente paradoxo mostra não o fim da modernização, mas é um
indicador de que ela se volta para si mesma, como uma “modernização da modernização”,
como auto-confrontação. A modernização se tornando reflexiva. Talvez daqui venha a
estranheza, pois o que a ciência (em sentido amplo, de busca pelo esclarecimento) consegue
imediatamente ver num acidente tecnológico, como o de Goiânia, também é, no fundo, o
familiar que foi esquecido. É a inocência, como a de Devair, cuja curiosidade sem
prevenções é a mesma da ciência na época que esta ainda não havia produzido,
intencionalmente ou não, o poder de, por exemplo, destruir o mundo.
85
Uma interpretação marxista poderia ser que a ciência e a técnica, trabalho e engenho humano, fetichizadas, aparecem numa
forma não mais reconhecida pelos seus próprios autores.
64
Por volta dos dias 3 e 4 de outubro, a situação seguia mais ou menos o seguinte
arranjo: a CNEN vasculhava pessoas e ruas atrás de novos focos de radiação, e planejava o
que fazer para descontaminar os locais atingidos, o que nunca havia sido feito nessa escala
e nem no meio de uma cidade, com tudo o que existe dentro dela: casas, pessoas, árvores,
móveis, roupas, ruas, animais. Pensou-se até nos pombos, que poderiam carregar partículas
pela cidade. Já estavam na cidade 43 técnicos para os trabalhos do Acidente. As chuvas
abundantes ainda provocavam especulações sobre se o césio poderia contaminar a água, o
que chegou a provocar manchetes alarmistas86. Mais quatro vítimas em estado grave foram
transferidas para o Marcílio Dias, por um avião da FAB (Força Aérea Brasileira): Maria
Gabriela, mulher de Devair, fotografada pela última vez com vida, em trajes hospitalares, de
luvas e máscara; Luiza Odete Motta dos Santos, Kardec Sebastião dos Santos (o outro
catador de papel, que retirou a segunda parte da peça dos escombros do IGR), e Admilson
Alves de Souza, empregado de Devair (e que viria a ser outra vítima fatal).
86
O ESTADO DE S. PAULO. 08/10/87. Água pode ser contaminada
87
FOLHA DE S. PAULO. 04/10/87. Cai movimento em mercado da cidade.
65
se sabia quanto material radioativo fora perdido, onde ele se espalhara, qual a intensidade da
radiação, informações básicas para a ação.
88
FOLHA DE S. PAULO. 04/10/87. CNEN promete rigor na apuração.
89
FOLHA DE S. PAULO. 05/10/87. CNEN descarta chance de vida para três vítimas.
90
Aparentemente, a diferença entre acidente nuclear e radiológico é que, no primeiro, estão envolvidas reações nucleares e
alta liberação de energia, como a fissão; no segundo, a radiação é devida apenas à radioatividade inerente ao elemento.
66
pela CNEN para outro lugar. “Goiânia não será a Chernobyl dos cerrados”, disse várias
91
vezes Santillo.
Na mesma noite, a Folha de S. Paulo ‘comprovou’ que o local era habitado, próximo
de uma escola, de uma granja e de uma criação de peixes. Uma das moradoras mais
próximas, uma senhora de 83 anos, teve problemas cardíacos ao saber da notícia e teve de
ser socorrida às pressas. Um grupo de moradores montou uma vigília no local para tentar
impedir a entradas das máquinas que preparariam o terreno.92 A reação dos moradores, que
se armaram com paus e pedras, suspendeu o início dos trabalhos.
“O que eles queriam era um absurdo, como botar toda aquela porcaria aqui, junto da
estrada, em área com tanta gente e a menos de 300 metros de um grupo escolar”, explicou
Manuel Dias, presidente da Associação dos Moradores da Vila Pedroso. Ele fez questão
de dizer que “não pertence a nenhum Partido Verde ou ao PT, sou independente, mas luto
por nossas crianças”.93
91
O ESTADO DE S. PAULO e FOLHA DE S. PAULO. 06/10/87
92
FOLHA DE S. PAULO. 06/10/87. Lixo radiativo será depositado em local habitado: O governo de Goiás decidiu
levar o material contaminado para a periferia de Goiânia, perto de uma escola.
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O ESTADO DE S. PAULO. 07/10/87. População reage e vence.
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A voz nem sempre obedece aos movimentos dos lábios, mas pela expressão estampada em
seu rosto os médicos do Hospital Marcílio Dias conseguiram entender: Devair Alves
Ferreira (...) queria que a cortina de chumbo, própria para evitar a contaminação, não fosse
mais colocada entre a sua cama e a da filha, a menina Leide das Neves Ferreira, de seis
anos, que como ele também é paciente terminal. O pedido foi prontamente atendido, e a
cena que se seguiu comoveu até os mais experimentados funcionários daquela unidade:
Devair sorriu e com as mãos queimadas tocou o corpo da filha para depois adormecer, em
um dos raros momentos em que a dor, sempre presente, acabou substituída por um misto
de felicidade e amor paterno. A cortina de chumbo não foi mais colocada entre a cama dos
dois e eles continuam unidos no sofrimento94.
A notícia, entretanto, continha pelo menos um erro, já que Leide não é filha de Devair,
mas de Ivo. A imprensa, aliás, teve muitos erros quanto aos nomes e parentescos das
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vítimas, erros que não costuma cometer quando se trata de pessoas ‘importantes’ .
Segundo um outro relato, entretanto, Devair, já desenganado, auxiliava o tratamento de
Leide dando-lhe de comer, já que a menina estava tão contaminada que enfermeiras e
médicos não podiam ficar muito tempo próximos a ela, para não ultrapassarem os limites de
exposição. Os funcionários que deram o depoimento acima estariam revoltados com os erros
e descasos das autoridades para com as vítimas, que estariam isoladas do mundo exterior,
para que não viessem a cobrar os seus direitos. No contato com os pacientes, os
funcionários souberam que assim que ficaram doentes, os pacientes teriam procurado a
secretaria de saúde de Goiás, que não teria acreditado inicialmente na gravidade dos
sintomas nem que a peça levada à secretaria seria a causadora das doenças. Estavam
revoltados, sobretudo, com a suposta versão que as autoridades já sabiam de tudo antes,
mas evitaram divulgar a notícia para não atrapalhar a realização da etapa do campeonato
mundial de motociclismo, que lotou os hotéis da cidade, lembrando para eles o prefeito do
filme Tubarão (de Steven Spielberg).
No dia 19, Maria Gabriela de Abreu, de 57 anos, e Israel Batista dos Santos, de 22,
foram transferidos do HGG para o Marcílio Dias. Maria Gabriela era a sogra de Devair, e teria
passado uma noite num leito ao lado do cilindro com o césio-137. Israel era empregado de
Devair, sorriu para fotos e fez sinais para os jornalistas dizendo que estava bem. Israel
morreria poucos dias depois. No mesmo dia, Ernesto Fabiano teve alta do Marcílio e voltou
para o HGG. Em entrevistas, algumas dadas pela janela do hospital, Ernesto falou de suas
94
JORNAL DA TARDE. 16/10/87. A dor de Devair, ao lado da filha.
95
Em novembro de 1996, com a queda de um avião na cidade de São Paulo, praticamente todas as 99 vítimas tiveram suas
biografias levantadas e comentadas na imprensa. Quase todos eram executivos e profissionais liberais.
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dores, da pedrinha que ganhou do irmão Edson e que carregou no bolso da calça durante 45
minutos, das bolhas que foram aparecendo e virando uma grande ferida na perna direita, que
ele quase perdeu. Sua mulher Dalva acabou jogando a pedra no vaso sanitário (cuja fossa a
CNEN teve depois que concretar). “O tratamento foi militar; eles não informavam nada, não
contavam nada. Só tratavam da gente.(...) Quero ir para casa96”. Os pacientes no Marcílio
ficavam isolados, mas às vezes era permitido que se encontrassem. “Houve momentos em
que eu pensei que ia desintegrar, desaparecer”. O Marcílio Dias “é uma prisão, a gente não
tem direito de falar nada, não tem ar livre, só ar condicionado (...) [porém] eles dão de tudo,
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até cigarro. Só não dão cachaça, por não podermos beber. Mesmo assim, foi horrível. ”.
Aparentemente, a vida das vítimas que ficaram em Goiânia também não era fácil. A
avaliação de uma equipe local que procurou dar apoio psicológico e enfrentou dificuldades,
descreve assim as condições psíquicas gerais: “No Hospital Geral de Goiânia (HGG), o
comportamento oscilava entre reações depressivas e maníacas, entre a tristeza e a revolta e,
em alguns casos, havia grande excitação psicomotora. Estados de insegurança e ansiedade
surgiam como manifestações diante da possibilidade de morte, gerando certa regressão. As
dúvidas e as indagações sobre o estado de saúde eram respondidas apenas em termos de
probabilidades, o que favorecia as fantasias e a forte tensão emocional. A impotência diante
das limitações impostas pelas barreiras físicas e psíquicas gerava a apatia, a depressão e a
revolta, que se misturavam com o medo e a angústia, acompanhadas de eventuais
sentimentos de culpa pela perda da própria saúde e das demais pessoas atingidas, em geral
familiares e amigos.”(Helou & Costa, orgs. 1995: 15-6) Essas reações das vítimas foram
descritas apenas de passagem na imprensa, como dificuldades causadas por “excepcionais”
ou deficientes mentais. As vítimas eram vigiadas, na Febem, pela polícia98.
A indefinição da situação das vítimas, segundo esses autores, provocou efeitos como
o comprometimento da identidade do Ego, manifestações agressivas e crises depressivas
naqueles internados na Febem. “Os radioacidentados albergados na Febem reagiam
agressivamente contra suas instalações, por elas motivarem o medo, o desamparo, a
discriminação e a perda. Depredavam o prédio e espalhavam fezes e urina pelas instalações,
com o intuito de contaminar o ambiente. Entre eles eram freqüentes os gritos, as crises de
choro e os pedidos de socorro. Havia resistência às informações e ao tratamento
preconizado. Entre as crianças, além do medo e da agressividade, percebia-se o sono
sobressaltado, a enurese noturna e a fantasia da perda de membros” (:17). Mesmo depois de
96
O ESTADO DE S. PAULO. 21/10/87
97
FOLHA DE S. PAULO. 22/10/87. Vítima da radiação quer processar os responsáveis.
98
FOLHA DE S. PAULO. 21/10/87. Excepcionais são vigiados na Febem. (A matéria é ilustrada por uma foto de crianças
sorridentes)
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passada a emergência, ainda ficaram para as vítimas as seqüelas físicas, mentais, a ameaça
à saúde, o desamparo material e a discriminação. Durante a cobertura intensiva do acidente,
entretanto, o tom reservado para observações sobre essas pessoas não passava, na maioria
dos casos, de descrições secas de doentes e seus sintomas, copiados pela imprensa dos
boletins médicos. Mal chegavam a personagens, mas apareciam apenas como vítimas.
No dia 23 de outubro, sexta feira, por volta das 12 horas, morreu Maria Gabriela,
mulher de Devair, então com 38 anos. Sua sobrinha Leide morreu no mesmo dia, às 18
horas.
A mãe de Leide Ferreira, Lurdes Ferreira, disse ontem que a única coisa que espera agora
é saber quem foram os responsáveis pelo acidente radiativo (...) “Se fosse doença, era mais
fácil me conformar. Mas só de saber que isso podia ter sido evitado...”. Lurdes disse que,
se pudesse, passaria o resto da vida no centro de recuperação da Febem, onde se encontra
em observação junto com outras 22 vítimas da radiação: “Para mim, Goiânia acabou.”99
Maria Gabriela tinha 11 irmãs. Uma delas a descreveu como muito trabalhadora,
“enquanto o Devair, marido dela, ficava bebendo.”100 Israel era órfão de mãe, tendo sido
criado por uma tia. Admilson morava nos fundos do ferro-velho de Devair. Sua família, do
interior de Goiás, só ficara sabendo que ele estava internado havia 15 dias. O secretário de
saúde de Goiás, Antonio Faleiros, explicou que os enterros seriam realizados num cemitério
da periferia de Goiânia (onde depois se soube, eram enterrados os pobres e indigentes da
cidade), e que não ofereceriam nenhum perigo de vida. No dia 24, o então presidente da
Câmara, do PMDB e do Congresso Constituinte, Ulysses Guimarães, fez uma visita de
solidariedade à cidade, participando de uma missa na Praça Cívica, na qual estiveram cerca
de mil pessoas.
A morte das vítimas, principalmente de Leide e Maria Gabriela, foi uma espécie de
anti-clímax previsível do Acidente, pela gravidade de seu estado de saúde. Envolvendo
pessoas não ligadas profissionalmente ao setor, elas talvez tenham sido as primeiras vítimas
99
FOLHA DE S. PAULO. 25/10/87. Mãe da menina morta por radiação quer apuração da responsabilidade.
100
O ESTADO DE S. PAULO. 24/10/87. Em Goiânia, a dor da família.
70
da radiação admitidas como tal desde Hiroshima, excluindo os acidentes nucleares que
ocorreram em segredo. Do ponto de vista do sistema nuclear e de suas afirmações quanto à
segurança, nada mais grave poderia ocorrer. Os peritos defensores da energia nuclear são
particularmente hábeis em produzir estudos minimizando riscos e conseqüências (Myers III,
[1977]). Mesmo a incidência de câncer e leucemia nos trabalhadores da indústria nuclear,
nas vizinhanças de usinas, ou em militares americanos como os que tiveram que assistir a
testes nucleares é refutada como não sendo ‘cientificamente’ comprovada. Nos acidentes
tecnológicos, as investigações invariavelmente apontam para ‘erros humanos’101, como em
Three Mile Island e Tchernobyl. Daí a afirmação de Nazareth, que esperava que os culpados
pelas mortes fossem responsabilizados criminalmente (ele se referia aos donos do IGR),
“pelo bem da energia nuclear no Brasil”102. Isto é, para sacramentar a ‘inocência’ do sistema
nuclear.
101
Beck diz que o imperativo que recai sobre todos os membros da sociedade diante das ameaças produzidas pela tecnologia é
de que não podemos errar. Não há humanidade sem erros, embora seja isso o que postula a tecnologia. Como os seres
humanos vão continuar errando, todos seremos os bodes expiatórios da tecnologia: uma sociedade bode expiatório
(scapegoat society). (Beck, 1992. Op.cit.: 49, 75)
102
FOLHA DE S. PAULO. 25/10/87.
71
Embora a maior parte dos resíduos radioativos gerados por toda a atividade nuclear,
cuja atividade dura relativamente poucos anos, seja de manejo conhecido, a parte dos
resíduos de alta radioatividade, geralmente rejeitos das usinas nucleares, constitui um
problema cuja solução não foi alcançada: devem ser guardados por períodos de centenas de
milhares de anos em condições especiais e sob refrigeração, tal o seu nível de radiação - e
simplesmente nenhum artefato humano pode ser garantido por tal período. É um problema
tão grave que poderia ter inviabilizado as usinas nucleares, por exemplo, se o custo do lixo
radioativo fosse acrescentado ao da geração de energia: esse ‘inconveniente’ foi sempre
minimizado ou censurado pelos defensores da energia nuclear103.
103
Ver Biasi (1979). O autor é totalmente favorável ao programa nuclear brasileiro, e toca no assunto dos rejeitos radioativos
como se fosse apenas um detalhe técnico.
104
FOLHA DE S. PAULO, 09/10/87. Aeronáutica diz que serra do Cachimbo pode abrigar lixo atômico de Goiânia.
72
... professores, alunos, cientistas e todo o corpo dirigente estão em estado de alerta
máximo para impedir que os resíduos radioativos do acidente sejam levados para ser
enterrados no depósito do Instituto de Energia Nuclear, sediado na área da universidade.105
No dia 7 de outubro, Rex Nazareth anunciou que iria propor que o lixo radioativo fosse
depositado numa base da Aeronáutica na Serra do Cachimbo, sul do Estado do Pará. Nessa
mesma base existiam instalações apropriadas para testes subterrâneos de armas atômicas,
que tinham sido construídas secretamente dentro do programa nuclear paralelo. A escolha
teria se baseado nas condições geológicas supostamente propícias para as instalações. O
governador Santillo mantinha a posição de não permitir que o lixo permanecesse no Estado
de Goiás, nem mesmo em caráter provisório, e insistia que o problema do lixo era do governo
federal e da CNEN, “que nunca se importou em prever a situação atual106”.
105
O ESTADO DE S. PAULO. 07/10/87. Estrangeiros já estudam a radiação.
106
JORNAL DA TARDE, 09/10/87.
107
O uso do recurso da cadeia nacional de rádio e televisão dá uma idéia da importância que adquiriu o Acidente.
73
108
construção adequada à meia-vida do césio, respeitando as normas da própria CNEN. A
alternativa da Serra do Cachimbo, porém, seria atacada imediatamente, tanto pelo seu lado
técnico quanto político.
Pelo lado técnico, por exemplo, Rogério Cézar Cerqueira Leite afirmou que levar o lixo
até a Serra do Cachimbo era um cuidado excessivo, “um requinte”. Na sua opinião, os
rejeitos do Acidente não eram de manejo complicado, necessitando uma caixa de concreto e
chumbo, coberta com terra, sendo um problema menor diante das tarefas de
descontaminação. Por outro lado, a operação de levar os rejeitos de caminhão até o Pará
esbarrava no perigo desse transporte e na ausência de estradas. Outra opinião discordante
foi a do geólogo do Departamento Nacional de Produção Mineral - DNPM, Taylor Collier, para
quem Serra do Cachimbo não teria as condições de terreno necessárias para o depósito.
Pelo lado político, os jornais noticiaram que a cidade de Itaituba, de 110 mil habitantes, a 400
(ou 600, como noticiou outro jornal) quilômetros da Serra do Cachimbo estaria revoltada e/ou
assustada109. O governador do Pará, Hélio Gueiros, atacou Nazareth, dizendo que a idéia
“era uma pilhéria de muito mau gosto desse tal senhor Rex, que pensa que o Pará é uma
lixeira”. Nazareth não comentou essas declarações, dizendo que “Minha atividade é técnica,
não política”. Ainda no mesmo dia, o governador do Estado do Rio de Janeiro declarava que
não ficaria com os rejeitos de Angra I nem os do hospital Marcílio Dias. “Quem produz o lixo
que cuide dele”, afirmou. Na cidade do Rio de Janeiro, uma vereadora propôs a criação de
uma lei que “desnuclearizaria” a cidade.110
Gueiros dirigiu-se, então, diretamente a Sarney em carta aberta, dizendo que estava
estarrecido e horrorizado, pedindo para que o Presidente revisasse sua decisão, protestando
pelo fato de não ter sido consultado, e chamando o presidente da CNEN de “rato atômico”.
Gueiros considerou um desrespeito não ter sido previamente informado de “tão arriscada
decisão, como se este território fosse reserva para lixeira de detritos que o resto do Brasil
não quer ou vaso sanitário no fundo do qual se lance tudo quanto não presta ou como se isto
111
aqui fosse terra de ninguém, sem autoridades constituídas” . Naquele ano, a procissão do
Círio de Nazaré, em Belém, foi marcada pelos protestos dos paraenses contra a decisão de
Sarney. Os índios caiapós, moradores da Serra do Cachimbo, fizeram mais: embarcaram
para Brasília e dançaram diante do Palácio do Planalto e para as câmaras da televisão em
108
Meia-vida é o tempo necessário para que um elemento radioativo decaia à metade de sua radioatividade original, que para
o césio-137 é de 30 anos, mas chega a milhares de anos para elementos como o plutônio. Note-se que não é um decaimento
linear: quanto mais o tempo passa, mais vagaroso é o decaimento da atividade.
109
Para se ter uma idéia do ‘exagero’, São Paulo está a cerca de 300 km da usina de Angra dos Reis, enquanto o Rio de
Janeiro a pouco mais de 100 km. Entretanto, alguém de mais bom senso diria que Angra I é que está no lugar errado.
110
FOLHA DE S. PAULO. 10/10/87.
111
O ESTADO DE S. PAULO e FOLHA DE S. PAULO . 11/10/87
74
112
protesto contra o lixo. Segundo Gabeira (1987, op.cit.: 44), a pajelança arrancou de Sarney
a promessa de que voltaria atrás na sua decisão.
Empurrado de um lado para outro no campo dos planos e das intenções, e depois de
apavorar boa parte do território nacional, onde supostamente passaria ou ficaria, a batata
quente do lixo radioativo acabou ficando mesmo com o Estado de Goiás, bem próximo da
capital, na cidade de Abadia de Goiás. Quando a decisão foi anunciada, a população da
localidade bem que tentou protestar (segundo uma notícia, unindo a Igreja, o PC do B e até a
UDR114 local), mas, dessa vez, a polícia interveio. Num gesto de propaganda, Santillo
resolveu passar os seus fins de semana num sítio próximo do local, levando seu neto e
sendo fotografado promovendo um animado churrasco. O depósito consistiu de uma área
aplainada e concretada, depois cercada com arame, onde foram empilhados a céu aberto
contêineres, caixas e tambores com os resíduos115.
112
José Sarney é um supersticioso notório, mas, aparentemente, Sarney desejava não contrariar o governador de um Estado
por onde passaria a grande obra que planejara, a ferrovia Norte-Sul.
113
(citar a fonte)
114
“Um dos diretores da UDR, o fazendeiro Márcio Ribeiro, com propriedades próximas ao local, sugeriu que o lixo fosse
depositado a pouco mais de 140 km dali, no sítio de São José do Pericumã, do presidente Sarney”. JORNAL DA TARDE.
18/10/87. População fecha estrada para o depósito nuclear.
115
Consiste em 3.000 m3 de lixo atômico em 1.219 caixas, 2.822 tambores e 14 containers. CIÊNCIA HOJE. Op.cit.
(SBPC, 1988: 5).
75
Embora pareça típico do modo de agir que a oligarquia atrasada utiliza no Brasil,
aplicado a um problema da modernidade, o qual seria, por definição, impotente para resolver,
nos países industrializados e democráticos, há exemplos de que, quando se trata da questão
do lixo radioativo, não há muitos canais possíveis de negociação política que permita o
trânsito livre da vontade dos peritos. Não importa o quanto os técnicos garantam a segurança
de instalações de lixo radioativo, as populações próximas dos locais escolhidos têm por
hábito protestar, e muito, e não se encontrou ainda uma solução política e tecnicamente
viável. Não é à toa que a Inglaterra despejava seus resíduos químicos e radioativos no Mar
do Norte secretamente, ameaçando poluir a costa da Irlanda com plutônio, até que foi
denunciada pelo Greenpeace.
Nos EUA, a AEC (Atomic Energy Commission), equivalente à CNEN até 1974,
quando foi dividida, utilizou, nas décadas de 60 e 70, alguns subterfúgios para tratar com o
crescente problema do lixo de alta radioatividade de usinas nucleares, como classificá-lo não
como lixo, mas como ‘recurso’. Uma das soluções apontadas foi a de utilizar uma mina de sal
abandonada. Nos fins dos anos 70, a AEC encontrou uma que parecia adequada, na região
da cidade de Lyons, no Kansas, com apenas 5 mil habitantes. Anunciada como solução com
entusiasmo, aos poucos a resistência dos habitantes, de seus representantes políticos, dos
76
cientistas e até da empresa proprietária da mina, bem como estudos mais aprofundados,
obrigou a AEC a desistir:
Segundo o Greenpeace (1996), em 1994, havia 130 mil toneladas de lixo radioativo
acumuladas nas piscinas de refrigeração117 de reatores em todo o mundo, sem uma solução
definitiva para o problema. Embora o lixo radioativo de Goiânia não fosse tão perigoso
quanto o de um reator, as preocupações que deveriam ser consideradas quanto à segurança
são, basicamente, as mesmas. A contragosto dos moradores, o depósito definitivo do lixo do
Acidente foi construído a poucos metros de onde está o provisório, em Abadia. No início de
1997, deveriam estar em curso as operações de transporte do segundo para o primeiro, com
um atraso de quase dez anos em relação às primeiras estimativas.
116
“The Lions fiasco demonstrated a pattern that has repeated itself subsequently. Nuclear proponents declare that a
solution to the problem of wastes is either certain or imminent. Then in a flurry of enthusiasm, the AEC or the Department
of Energy announces that it has discovered a site or a technique, or both, to implement the solution, and it rushes ahead
with plans to make its solution a reality. Then scientist critics, some of them inside the nuclear establishment, point out fatal
technical flews in the scheme. Congress or the president recommends that the project be dropped, and nuclear proponents
return to the beginning of the cycle, promising an imminent solution and declaring that the problems are only political, not
technical. The search begins once again for a technical fix and/or a politically feasible site.”
117
Um dos problemas técnicos do lixo de alta radioatividade é que ele produz calor: ninguém conseguiu pensar num meio de
manter esses resíduos refrigerados, por milhares de anos.
118
Das 129, 49 tiveram de ser internadas, 21 necessitaram de tratamento médico intensivo.
77
0,2 a 0,3 miliroentgen/h), incluindo vizinhos e transeuntes nas ruas onde estavam os
principais focos, mais as que estiveram no ônibus onde Maria Gabriela e Geraldo levaram a
fonte para o prédio da Vigilância Sanitária, mais alguns funcionários dessa repartição
(incluindo o veterinário Paulo Monteiro, que atendeu a Maria Gabriela). Ainda segundo a
CNEN, de 30 de setembro a 22 de dezembro foram monitoradas 112.800 pessoas no Estádio
Olímpico (o que representa cerca de 10% da população de Goiânia)119. A descontaminação
dessas pessoas produziu rejeitos hospitalares, roupas, utensílios, excrementos etc., mas que
foram considerados, na maioria, lixo de baixa radioatividade.
119
Todos os dados foram fornecidos pela CNEN à SBF (Sociedade Brasileira de Física). CIÊNCIA HOJE, (SBPC, 1988: 16)
120
Medeiros. Idem: 12-13.
78
É uma mentira. Eu mesmo estive em Goiânia duas vezes e cumpri meu papel (...)
Fundamentalmente, nós levantamos de imediato uma série de questões que visavam
auxiliar na correção de medidas tomadas pela CNEN. Nossa função é pedagógica. Será
que a comunidade científica deveria ter ido a Goiânia para catar lixo atômico? Essas
coisas exigem treinamento profissional. As Forças Armadas existem para isso, são elas as
encarregadas da segurança nuclear. Se os bombeiros não conseguem extinguir um
incêndio, eles não reclamam porque a população não ajudou a apagá-lo.121
121
Pinguelli Rosa. Idem: 18. As emergências radioativas, aliás, são das poucas, senão a única, emergência que o Corpo de
Bombeiros não é preparado para combater.
122
Isso quer dizer, basicamente, que os níveis de radiação, após os trabalhos de descontaminação, baixaram a níveis
considerados pelos técnicos, incluindo aqueles críticos à CNEN, como ‘aceitáveis’. Uma parte do césio-137 não foi
recuperada no trabalho de descontaminação, diluiu-se e disseminou-se no meio ambiente da cidade. As conseqüências a
longo prazo são desconhecidas.
79
permitiu que ocorresse o Acidente; seu aparente e às vezes assumido despreparo para a
eventualidade, sua linguagem técnica e as repetidas garantias de que controlava a situação
contra evidências de que isso não era verdade minaram sua credibilidade, sem contar o seu
passado de envolvimentos misteriosos como com o programa nuclear paralelo. Por outro
lado, não havia a quem mais recorrer, pela especificidade do saber requerido na tarefa de
descontaminação radioativa. Uma situação ao mesmo tempo de dependência e de
desconfiança no sistema perito: a mesma CNEN que aparecia como causa do problema,
paradoxalmente, era a principal encarregada da solução.
A imprensa também errou quando lidou com números em geral, tanto de pacientes
quanto de focos, pesos, distâncias, percentagens, unidades de medida de radiação, o que é,
pelo menos, expressão de uma dificuldade estrutural de lidar com quantidades,
probabilidades, dimensões; e outras noções básicas de ciências, por exemplo, o que vem a
ser um isótopo ou para que serve um fusível. Noções que se exigem, por exemplo, de
vestibulandos. Mesmo quando entrevistou cientistas críticos, a imprensa centrou-se mais nas
discordâncias políticas do que nas concordâncias técnicas.
Um outro fator é que não havia, para o leigo, como relativizar, avaliar e comparar as
propostas técnicas, como a do lixo radioativo. O conflito e a discordância de opiniões são
123
O ESTADO DE S. PAULO. 08/10/87. Também FOLHA DE S. PAULO, idem. Ventos e chuvas podem ter levado
material radiativo a cursos d’agua
80
Sob o título Indigência, a revista semanal IstoÉ, de 14/10/87 encerrou uma longa
matéria de cobertura do acidente, muito crítica ao governo, com um ‘box’ consistindo de duas
fotos e um texto curto:
124
In CIÊNCIA HOJE, op.cit. (SBPC, 1988: 29-35).
125
O ESTADO DE S. PAULO. 17/10/87. Goiás define área para guardar lixo radioativo.
126
JORNAL DA TARDE e FOLHA DE S. PAULO. 28/10/87.
82
Não quer dizer que a CNEN não deva ser criticada, que não tenha sido de fato omissa
na fiscalização, que não tenha procurado resguardar seus segredos, que não tenha sido
inábil ou incompetente em vários pontos, que não tenha em larga medida responsabilidade
sobre o Acidente, que não haja por trás do que apareceu na imprensa fatos apavorantes
sobre ela e o Acidente que não sabemos, nem temos como saber. Não quer dizer que a
CNEN não possa e não deva ser responsabilizada, avaliada, reformada ou tudo que seja
necessário para que possa cumprir, pelo menos, o seu papel básico de evitar acidentes. Mas
ver as aparências somente, como no caso da roupa, amplifica e/ou mascara outros
problemas.
Como foi assumido, a imprensa também é um sistema perito que, tanto quanto o
nuclear, participou da produção do Acidente de Goiânia como acontecimento. Voltando à
questão da separação entre as linguagens da ciência e do mundo da vida, com Habermas já
se podia entender que a tarefa de aproximar as duas linguagens era, ela mesma, uma tarefa
agora também de caráter técnico. “Mas se tecnologia provém da ciência, e penso a técnica
de influenciar o comportamento não menos que a de dominar a natureza, então a
assimilação dessa tecnologia no mundo da vida prático, em conjunção com o controle técnico
de áreas particulares dentro do alcance da comunicação de homens em ação, na verdade
requer a reflexão científica. O horizonte pré-científico da experiência se torna infantil quando
127
ele ingenuamente incorpora contato com os produtos da mais intensiva racionalidade”
127
“But if technology proceeds from science, and I mean the technique of influencing human behavior no less than that of
dominating nature, them the assimilation of this technology into the practical life-world, bringing the technical control of
83
(Habermas, 1970: 56). Ao papel da imprensa como sistema perito, portanto, caberia a
mesma crítica que ela própria fez à CNEN: não estaria preparada para o acidente, não foi
‘tecnicamente’ competente, pois embora conseguisse produzir muitas manchetes as quais
atraiam a atenção, pouca informação sem correções conseguia veicular. A imprensa,
entretanto, é apenas parte do problema. Esse aspecto não passou despercebido pelos
cientistas.
particular areas within the reaches of the communication of acting men, really requires scientific reflection. The
prescientific horizon of experience becomes infantile when it naively incorporates contact with the products of the most
intensive rationality”.
84
128
Quando uma agência de desenvolvimento tecnológico pode ser socialmente e/ou politicamente conservadora, e no contexto
de mudança da época, é um sinal claro que essa agência é não só anacrônica ou antidemocrática, mas também o
desenvolvimento que ela propõe.
86
não só. “Onde os riscos da modernização foram ‘reconhecidos’ - e aqui há muito envolvido,
não somente conhecimento, mas conhecimento coletivo deles, crença neles, e a iluminação
política das cadeias associadas de causa e efeito - onde isso aconteceu os riscos
desenvolveram uma dinâmica política incrível. Eles confiscaram tudo, sua latência, sua
‘estrutura de efeitos colaterais’ pacificantes, sua inevitabilidade. De modo súbito, os
problemas simplesmente estão ali, sem justificação, como puros e explosivos desafios à
ação. Pessoas emergem por detrás das condições e restrições objetivas. Causas se voltam
para os causadores e suas declarações. Os ‘efeitos colaterais’ falam abertamente,
organizam-se, entram em campo, afirmam-se, recusam-se a ser ainda desviados. Como se
disse, o mundo mudou. Aqui está a dinâmica da politização reflexiva produzindo consciência
do risco e conflito. Isso pode não ajudar automaticamente a conter o perigo, mas escancara
áreas e oportunidades para a ação que estavam ainda fechadas. Produz o súbito ponto de
fusão da ordem industrial, onde o impensável e impossível se tornam possibilidades para um
breve período”. (:77)129
129
“Where modernization risks have been ‘recognized’ - and there is a lot involved in that, not just knowledge, but collective
knowledge of them, belief of them, and the political illumination of the associated chains of cause and effect - where this
happens the risks develop an incredible political dynamic. They forfeit everything, they latency, their pacifying ‘side effect
structure’, their inevitability. Suddenly the problems are simply there, without justification, as pure, explosive challenges to
action. People emerge from behind the conditions and objective constraints. Causes turn into causators and issue
statements. ‘Side effects’ speak up, organize, go to court, assert themselves, refuse to be diverted any longer. As was said,
the world has changed. These are the dynamics of reflexive politicization producing risk consciousness and conflict. This
does not automatically help to counteract danger, but it opens up previously closed areas and opportunities for action. It
produces the sudden melting point of the industrial order, where the unthinkable and unmakeable become possibilities for a
short period.”
130
Embora provavelmente não se conheça muito mais do que já se sabe.
87
Entretanto, isso não talvez não seja o essencial. Espera-se que o sistema perito
funcione (e de modo racional), nisto reside a base da confiança do leigo no saber dos
sistemas abstratos (Giddens: 1991). A CNEN tinha um grupo de emergência, com certa
experiência. Existia um serviço especializado no hospital Marcílio Dias, que, como disse o
almirante Amihay Burlá, nunca se esperou que fosse utilizado. Existiram também os
exemplos de acidentes nucleares anteriores, como Tchernobyl, que gerou no Brasil inclusive
um grupo de trabalho que produziu recomendações, entre outras, sobre a segurança de
Angra I131. Mas boa parte do que apareceu na imprensa, como dificuldades no tratamento
das vítimas e dos pontos de radiação, como incompetência, imprevisão, omissão,
negligência, etc. teria sido impossível sem o saber perito que identificou e publicizou os
problemas, e que gerenciou a emergência, porque apenas ele sabia como e com o que
estava lidando, a radiação invisível e impalpável para os leigos. Foram os técnicos, seus
131
Pinguelli Rosa, in CIÊNCIA HOJE,.op.cit. (SBPC, 1988: 17)
88
Os perigos da radiação são apenas um primeiro fator que pode ser destacado como
desencadeador do medo. O segundo fator assustador referiu-se às expectativas sobre o
controle que se deveria ter sobre esses perigos tão graves: por que o aparelho radioativo
tinha sido abandonado, a ponto de poder ser destruído com marretadas, e se demoraram
preciosos dias para que fosse descoberto. Catadores de ferro-velho provocaram o acidente,
mas também ficou claro que autoridades, médicos e outros especialistas também falharam e
estariam, até, mais envolvidos nas causas do desastre do que aqueles que marretaram a
132
Embora parte da população possa ter absorvido informações através da imprensa, se tivermos como paradigmas os cursos
acadêmicos, a relação com os perigos, principalmente, tem um outro enfoque: é diferente escolher lidar com tais perigos,
por profissão, do que ser obrigado a tal, sem escolha. De qualquer maneira, assuntos técnicos e científicos demandam, para
a maioria das pessoas, uma dedicação bastante grande ao aprendizado, mesmo de conceitos básicos.
90
bomba, pessoas que não tinham a dimensão do que haviam feito. Se o primeiro fator se
refere ao medo diante dos perigos e aos efeitos, digamos, materiais ou concretos, o segundo
se refere a um temor ligado ao fato que responsabilidades, papéis sociais supostos não
tinham sido cumpridos: nos termos mais simples, que o responsável por ‘tomar conta’, por
cuidar do tal aparelho tinha sido negligente ou irresponsável, e somente por isso o acidente
acontecera. O fator humano incontrolável estivera em ação, surgindo de quem menos se
esperava - quem, por dever e responsabilidade, conhecia os riscos envolvidos. Ao longo dos
dias, a dificuldade da CNEN de controlar o acidente levantou o temor sobre se o acidente
seria mesmo controlável, ao mesmo tempo em que o papel da CNEN nos antecedentes do
desastre, por omissão e/ou negligência, também se tornou público. A experiência concreta
com o sistema perito nuclear brasileiro era agora o desastre (e Angra I e os programas
nucleares más referências); a segurança era uma promessa em que poucos confiavam.
Medo e discriminação
O primeiro fator, isto é, o medo da radiação, não foi propriamente um foco no
noticiário da imprensa, mas o background por trás das maiorias das ações e preocupações
que foram noticiadas. O segundo fator formou nos noticiários um foco consistente que se
pode chamar de debate da responsabilidade (O que veremos mais adiante).
133
JORNAL DO BRASIL, 01/10/87. Césio em ferro-velho espalha radioatividade em Goiânia. Já nos dois primeiros dias,
cerca de três mil pessoas procuraram o posto da CNEN, no estádio olímpico.
134
JORNAL DO BRASIL, 01/10/87. Um remédio mortal.
92
Apesar da CNEN, já nos primeiros dias, afirmar que a situação estava sobre
135
controle , o desenrolar dos acontecimentos pareceu demonstrar que não foi essa a
impressão que passou à população. “O governo diz que tudo está sob controle, mas todo dia
mais pessoas são internadas por causa da radioatividade. Se tivesse para onde ir, fugia
daqui”, dizia uma moradora do Setor Aeroporto136. No dia seguinte à sua afirmação (1 de
outubro), o diretor da CNEN Rosenthal já pedia à população paciência para com os trabalhos
de descontaminação137, dizendo que em dez dias ou ‘pouco mais’ os mais atingidos poderiam
voltar às suas casas, o que na verdade levou três meses.
Nas ruas de Goiânia o assunto não é outro: os perigos de uma contaminação generalizada.
Antonio Faleiros [o secretário de saúde] esclarece que somente quem teve contato direto
ou prolongado com a peça radioativa necessita de cuidados médicos especiais, passando
primeiramente por um aparelho medidor de radioatividade. “As regiões circunvizinhas por
onde a partícula atômica de césio-137 passou no trajeto até chegar à Coordenadoria de
Vigilância Sanitária da Organização de Saúde do Estado já foram liberadas (...) 138
Como já foi visto, outros medos chegaram a constituir focos nos temas explorados
pela imprensa, como o do lixo radioativo. Ou, como o medo de contaminação da água da
135
FOLHA DE S. PAULO, 02/10/87. CNEN afirma que processo de radiação está sob controle
136
O ESTADO DE S. PAULO, 07/10/87. Apesar de calma, Goiânia tem medo.
137
JORNAL DA TARDE, 03/10/87. Goiânia: os técnicos trabalham na descontaminação.
138
O ESTADO DE S. PAULO, 01/10/87. Preocupação e medo na cidade.
139
O ESTADO DE S. PAULO, 03/10/87. Muitos contaminados fogem de Goiânia.
93
cidade pelas chuvas, foram ampliados pela imprensa. Nos primeiros dias, a população de
Goiânia se queixava de não estar sendo informada, ou estar sendo apenas de forma
superficial, pelos técnicos.
O pavor das pessoas criou um ambiente altamente propício a uma enorme onda de boatos,
já prevista pelo secretário estadual da Saúde, Antonio Faleiros. Ontem, era freqüente o
comentário de que na praça do Bandeirante, a poucos quilômetros da área diretamente
afetada, o grau de radioatividade seria elevado. O físico e médico Carlos Eduardo
Almeida, um dos técnicos da CNEN, tranqüilizou a população, argumentando que já foi
feita a medição no local (...)140
140
JORNAL DA TARDE, 03/10/87. Goiânia: os técnicos trabalham na descontaminação
141
IMPRENSA. Novembro de 1987. A síndrome da manchete radioativa.
142
O ESTADO DE S. PAULO, 30/10/87. CNEN decide examinar todos os ferros-velhos.
143
JORNAL DA TARDE, 09/10/87. Ninguém aceita o lixo radioativo.
144
O ESTADO DE S. PAULO, 08/10/87. Temporal piora situação em Goiânia.
94
prefeito de Goiânia, Daniel Antonio de Oliveira, que se encontrava afastado, e com seu
mandato sub judice por acusações de corrupção, foi um dos que manifestou essa versão,
145
embora estivesse mais preocupado em não ser acusado de culpa no acidente.
“É verdade que a cidade será evacuada?”. “Todas as mulheres grávidas terão de deixar
Goiânia para que seus bebês não nasçam com problemas?”. “O césio foi transportado de
ônibus e contaminou todo o transporte público?”. “É verdade que os pombos, pássaros,
cães, gatos, ratos, insetos, estão espalhando a radioatividade?”.
Estas foram algumas das perguntas mais freqüentes no debate organizado ontem entre
técnicos, autoridades, jornalistas e a população, durante três horas, por uma cadeia de
rádio e televisão, com grande audiência.149
145
JORNAL DA TARDE, 08/10/87. Prefeito acusa: autoridades sabiam de tudo há um mês.
146
JORNAL DA TARDE, 09/10/87. Ninguém aceita o lixo radioativo.
147
O ESTADO DE S. PAULO, 10/10/87. Medo afasta até doentes do hospital.
148
O ESTADO DE S. PAULO, 10/10/87. Estudantes paulistas deixam jogos e voltam.
149
O ESTADO DE S. PAULO, 10/10/87. População faz debate direto com técnicos.
95
Na sexta feira, dia 9 de outubro, uma passeata de cerca de 400 pessoas (ou cinco
151
mil, de acordo com outra notícia ) percorreu as ruas centrais da cidade. A passeata, que
exigiu a retirada do lixo radioativo da cidade, foi organizada por Fernando Gabeira, Harlen
dos Santos (superintendente do meio ambiente de Goiás) e por artistas como Siron Franco
(artista plástico de Goiânia, que usou o acidente como tema de seu trabalho)152. Nela, surgiu
a idéia da criação de um monumento, com a participação de Burle Marx, além de Siron
Franco. A idéia do monumento foi depois encampada por Santillo, incluindo-se um projeto do
arquiteto Oscar Niemeyer (o que configura uma ‘receita típica’ das obras monumentais
brasileiras: Niemeyer-Burle Marx). A passeata, embora muito plástica e alegre, com pessoas
mascaradas, fantasiadas, e performances, foi uma das poucas manifestações de protesto
noticiadas a se realizar fora do espaço dos debates acadêmicos, dos textos e entrevistas, ou
dos gabinetes.
150
JORNAL DA TARDE, 15/10/87. O cerco às aparas contaminadas.
151
O GLOBO, 10/10/87. Manifestantes mascarados protestam em Goiânia.
152
FOLHA DE S. PAULO, 10/10/87. Passeata de protesto pelo centro de Goiânia.
153
O ESTADO DE S. PAULO, 11/10/87. Medo, uma rotina agora na cidade. IMPRENSA. Op.cit.
96
“Esse acidente vai mudar a cidade”, avalia o superintendente de política do meio ambiente
de Goiás, Jadson Araújo Pires. “O país vai ter asco de Goiânia, o Estado vai sofrer uma
queda na sua exportação agrícola e até mesmo de roupas produzidas na cidade”, calcula
ele. Na verdade, alguns goianos vão ter asco de outros goianos, gerando um grupo de
párias tão discriminados quanto os portadores de AIDS. Muitos residentes nas
vizinhanças das áreas contaminadas foram retirados de suas casas e não conseguem abrigo
sequer na casa de parentes. Todos têm medo de contaminação. Hotéis recusam hóspedes,
hospitais repelem pacientes e empresas demitem empregados que de alguma forma
tiveram contato com as áreas atingidas pelo césio.154
Com todo esse quadro de medo, é compreensível que Santana Nunes Fabiano,
mulher de Edson Fabiano, tenha escondido até o dia 15 de outubro que ela tinha dormido na
casa de parentes, numa cidade do interior de Goiás157, após ter uma briga com o marido,
aparentemente no mesmo dia em que ele trouxe um fragmento de césio-137 para casa para
mostrar à mulher, sujando o chão da cozinha, o que teria provocado o desentendimento.
Santana, por não ter ficado na casa contaminada e ainda ter levado os filhos, escapou de
uma exposição mais prolongada158. A CNEN vasculhou a casa dos parentes de Santana e
nada encontrou. Em entrevista, uma das irmãs de Maria Gabriela se queixou de ser
discriminada apenas por ser sua parente159.
“Nós não vamos deixar que enterrem os corpos da Leide e Maria Gabriela aqui no
cemitério Parque. ”Essa ameaça foi feita ontem por Maria Vieira, moradora das
proximidades (...) Ela foi um das responsáveis pelo início de um movimento de moradores
de cinco bairros das redondezas do cemitério, que começaram a se organizar no início da
tarde de ontem, para impedir que os corpos sejam ali depositados.
154
ISTOÉ, 14/10/87. Diante da morte e perplexos.
155
FOLHA DE S. PAULO, 03/11/87. Morador sem atestado não pode sair de GO.
156
FOLHA DE S. PAULO, 10/10/87. Sarney autoriza o depósito do lixo atômico de Goiânia na Serra do Cachimbo.
157
O ESTADO DE S. PAULO, 16/10/87. Goiás pode ter novos focos de radiação.
158
O ESTADO DE S. PAULO, 26/11/87. Goiânia prepara-se para o Natal.
159
O ESTADO DE S. PAULO, 24/10/87.
97
No dia seguinte, 26, os caixões blindados que vieram do Rio de Janeiro, cercados de
cuidados de segurança no seu transporte, encontraram, no cemitério, os populares dispostos
a cumprir suas ameaças. Durante o protesto, gritaram e deitaram-se em frente ao caminhão
que trazia os caixões, atiraram pedras, cruzes e blocos de concreto no veículo, que chegou a
ter os vidros quebrados, e cerca de 50 moradores tiveram de ser contidos por duas dezenas
de policiais. Nem todos porém, protestavam: em solidariedade aos familiares, muitas
pessoas gritavam “tem de enterrar, sim”, e aplaudiram os policiais que afastavam à força
quem tentava impedir o enterro. Dentre as cerca de mil pessoas presentes, os vizinhos do
cemitério somente se acalmaram, na descrição dos jornais, após notarem a emoção e a dor
dos familiares e ouvirem as explicações de Rosenthal, que garantiu repetidamente que não
haveria perigo nenhum nas sepulturas.161
No enterro das outras duas vítimas, Israel e Admilson, a polícia goiana se preparou
melhor para impedir manifestações, mobilizando uma tropa de choque, com cães e muitos
homens, que manteve curiosos à distância, e não foram registrados incidentes parecidos:
foram quase enterros normais, isto é, apenas muito tristes. No feriado do dia 2 de novembro,
dia de Finados, “centenas” de populares levaram flores e acenderam velas nos túmulos de
concreto, em solidariedade. Entretanto, o movimento no cemitério foi menor que nos anos
anteriores. Em São Paulo, o cardeal d. Paulo Evaristo Arns, durante a missa de Finados,
160
JORNAL DA TARDE, 26/10/87. Moradores contra o enterro das vítimas.
161
O ESTADO DE S. PAULO, JORNAL DA TARDE e FOLHA DE S. PAULO, 27/10/87.
162
O ESTADO DE S. PAULO, 27/10/87. idem.
98
disse que o Brasil inteiro rezara pelas vítimas, e que “a vida delas serviu de exemplo para
todo o nosso futuro (...) há sempre quem sirva de semente para que as plantas da nação
163
possam crescer” .
Nos primeiros dias do Acidente pode-se dizer que o governo de Goiás e a CNEN até
164
procuraram tranqüilizar a população , que, embora alarmada, mesmo na própria Goiânia
procurou manter a sua rotina. Mas logo, durante um certo período, o medo e a discriminação
contra os produtos produzidos em Goiás provocaria alterações e prejuízos econômicos, tais
como os que já estavam ocorrendo no pequeno comércio mais próximo dos pontos
radioativos, abandonados por seus fregueses habituais. O movimento no comércio, por volta
da segunda semana após a descoberta do acidente, havia caído de 30% a 40%, pois
circulavam boatos de que vários alimentos, verduras, carnes, leite e até a cerveja e mesmo
notas e moedas de dinheiro estariam contaminados. Vários pedidos às indústrias de Goiás
foram cancelados por compradores de outros Estados, provocando queixas de industriais e
de entidades patronais, que apontavam manobras de concorrentes e tentativas de
desvalorização de mercadorias. A CNEN teve de atestar a qualidade da produção do Estado,
efetuando várias medições, a pedido dos empresários afetados.
Apesar de tudo, a vida segue em Goiânia e a população de tanto ouvir falar no césio-137,
que gerou todo o problema, acabou fazendo combinações com o número para jogar na
Loto, enquanto vários banqueiros do jogo do bicho resolveram cortar o 137, que passou a
pagar a metade por ser muito apostado. 165
No início de novembro, uma barraca com produtos goianos foi impedida de participar
167
de uma feira beneficente, promovida pela Arquidiocese do Rio de Janeiro. Como forma de
protesto, os organizadores da barraca montaram-na do lado de fora do Parque de
Exposições do Riocentro, onde ocorria a feira. A barraca conseguiu vender rapidamente todo
163
FOLHA DE S. PAULO, 03/11/87. Em Goiânia, centenas de moradores visitam os túmulos das quatro vítimas.
164
Matérias pagas do governo de Goiás e da CNEN reafirmavam que a situação estava sob controle, muito embora ambas as
instituições estivessem em choque por causa da questão do lixo radioativo. O ESTADO DE S. PAULO, e O GLOBO,
10/10/87.
165
O ESTADO DE S. PAULO, 11/10/87. Medo, uma rotina agora na cidade.
166
JORNAL DA TARDE, 16/10/87. E lá vão os técnicos, à procura de novos focos. IMPRENSA, op.cit.
167
FOLHA DE S. PAULO, 05/11/87. Goianos são impedidos de participar de beira beneficente.
99
seu estoque de produtos, o que Gabeira (1987: 82) interpretou como uma reação de parte da
população à discriminação que estavam sofrendo os goianos.
Gifford, um ano antes, havia reclamado dos prejuízos causados à economia pela
discriminação aos produtos de Goiás dizendo que “a ignorância é muito grande” sobre o que
estava acontecendo. Mas talvez não tenha sido exatamente a ignorância que prejudicou a
economia e os habitantes do Estado, porque não é propriamente a apenas a ignorância, a
ausência de saber, que impele à discriminação, mas também o surgimento de algum tipo de
conhecimento que prescinde (ou recusa) sistemas explicativos e normativos tais como a
religião, a ciência ou as normas legais, e as verdades estabelecidas por eles. Discriminação
e medo tiveram aqui a mesma fonte, que é não só falta de conhecimentos, mas também
conhecimento científico reflexivamente apropriado, mas de maneira negativa, distorcida,
deslegitimadora, fragmentada e descontrolada - os conhecimentos da ciência, espiralando
(como diz Giddens) no corpo social, criaram não só vítimas, mas também os alvos da
discriminação, imputaram-lhes um estigma.
Goffman, através de sua idéia de que um estigma pode ser imputável a alguém
através de informação prévia sobre a sua condição, informação sem a qual o estigmatizado
pode escapar de sua condição, possibilita pensar que a discriminação não advém da
‘ignorância’, simplesmente, mas de algum tipo de conhecimento adquirido (mesmo errado,
deformado ou incompleto). De outro lado, Goffman demonstra pelo seu conceito de
“informados” que se relacionam pela estrutura social com os indivíduos estigmatizados, como
“a filha do ex-presidiário, o pai do aleijado, o amigo do cego, a família do carrasco, todos
estão obrigados a compartilhar um pouco o descrédito do estigmatizado com o qual eles se
relacionam” (Goffman, 1982: 39). Por exemplo, a noção de que se deve manter distância e
168
JORNAL DA TARDE, 10/10/88. A tragédia faz Goiás crescer. “O retorno foi maior que imaginávamos”.
100
não tocar em nada contaminado traduziu-se em procurar impedir o enterro, evitar os goianos
e coisas de Goiás, em outras palavras, frente a um perigo invisível, discriminá-los todos. Tal
como na ciência, as pessoas estabeleceram sua própria teoria de relações causais e suas
próprias conseqüências normativas. Quando Rosenthal, da CNEN, disse não entender a
atitude dessas pessoas, provavelmente estava sendo sincero: ele como técnico podia ‘ver’ o
perigo, calculá-lo e controlar seu próprio medo. Os populares puderam, com poucas noções,
imaginá-lo, e portanto, libertar o medo. A essa imaginação descontrolada também se chamou
ignorância. O que faria surgir a discriminação é menos a ignorância que um conhecimento e
uma produção de sentido descontrolada, e não é coincidência que a domesticação da
linguagem promovida como antídoto pelo ‘politicamente correto’, tenha surgido no ambiente
acadêmico norte-americano, crivado de militantes vigias do sentido. Sentidos diversos e
imaginação, ignorância científica ou esperteza comercial, as noções da física, espiralando,
deixam de ser conceitos próprios à ciência; e seus novos usos, nada nobres e até opostos
aos originais, mas tomam um sentido próprio e prático de lidar com o medo da maneira mais
elementar, de afastar-se do perigo ou procurar se salvar sem o limite de nenhuma regra,
moral, legal ou científica: aqui se pode identificar o pânico.
A imagem de um físico ou engenheiro nuclear, cercado por uma multidão que queria
impedir o enterro de vítimas de sua arte, mas secundado por policiais, clamando para que
confiassem em suas garantias, em suas palavras, poderia ser uma daquelas cenas
cinematográficas com final edificante. Ali estariam o cientista, representando a razão, os
policiais pelo Estado, o cemitério pela religião, os populares que apoiavam o enterro e os
parentes emocionados representando a moral e os bons sentimentos humanos, contra
aqueles que representavam o irracional, a discriminação, a ignorância, a violência ilegítima e
o ódio. O mocinho iluminista teria até uma ‘face humana’, dividida pela culpa das mortes
causada por seus colegas de profissão. Se na ficção o filme-catástrofe poderia terminar por
aqui, até com final feliz, estando salvos os valores da civilização, na realidade o drama se
estende.
169
O estabelecimento ou restabelecimento da confiança nos sistemas peritos são processos que Giddens chama de “reencaixe”,
a atualização das relações sociais entre leigos e sistemas peritos (1991: 83-113)
101
Passados oito meses do acidente com o césio-137 em Goiânia na prática pouca coisa
mudou. O sistema de fiscalização de aparelhos radiativos ainda não foi modificado, o lixo
atômico continua num depósito provisório, sem que se saiba onde será colocado
definitivamente, e os médicos responsáveis pelo aparelho cuja violação provocou a
tragédia que comoveu o país continuam a trabalhar com equipamento de radioterapia. Só
para as vítimas a vida não é mais a mesma: elas trazem no corpo as marcas do acidente.
(...). É impossível saber como vai evoluir o estado de saúde dessas pessoas. “Não há como
prever quem vai ter comprometimento hematológico ou citogenético, nem até quando”, diz
a médica Maria Paula Curado, coordenadora da Fundação Leide das Neves, criada pelo
governo de Goiás para atender as vítimas. “É preciso acompanhá-los o tempo todo”,
completa outra médica da equipe, a pneumologista Rosana Farina, contratada pela CNEN
(Comissão Nacional de Energia Nuclear).171
170
JORNAL DA TARDE 28/10/87. Goiânia: o césio se foi. O medo, não.
171
JORNAL DO BRASIL, 29/05/88. Acidente com césio 137 só mudou a vida das vítimas.
102
quem não se confia, não se sabe quem é, que não consegue expressar-se em termos que se
possam entender, que tem um passado duvidoso, que impõe uma dependência sem
garantias e que, finalmente, não tem a legitimidade de nos obrigar a aceitar esses riscos,
sejam eles reais ou imaginários.
172
Tais operações legitimantes, como vimos, não mobilizam apenas conhecimentos, pseudo-conhecimentos ou promessas com
bases em probabilidades, mas também a ‘necessidade de segredos’, o nacionalismo e objetivos militares, a crença no
progresso, a ignorância e a atitude de respeito para com a ciência. É uma mistura, portanto, de argumentos ‘racionais’ e
‘irracionais’.
103
vínculo, sem essa relação, a instituição da medicina não teria conseguido avançar até aqui, e
os países não veriam, como conseqüência, o aumento na expectativa de vida. Não se
raciocinaria por hábito na relação entre vírus e gripes, e não se elaboraria através dela nosso
temor de adoecer e morrer. Entretanto, continua-se a adoecer e morrer, mesmo que do
modo transformado pela medicina, um modo no qual nos socializamos, e somente dentro do
qual é possível, agora, pensar em doença e morte (dentro do que se convencionou como
racional).
A confiança quebrada no sistema perito, num acidente tecnológico ou num erro, irá
restabelecer-se desde que, por um lado, o sistema perito invista na demonstração de que
não eram seus princípios que estavam errados ou falhos (princípios que são intra-validados:
médicos avaliam médicos e físicos nucleares avaliam físicos nucleares), mas sim os
operadores (não o sistema abstrato mas os humanos concretos). De outro, é necessário
investir, em fazer com que os leigos aceitem, esqueçam, perdoem ou se resignem com seus
malefícios, em vista de promessas de aperfeiçoamentos no controle, na segurança e nos
benefícios. Uma outra solução, como a de optar por não depender de algum sistema perito
(por exemplo, recusando a medicina em favor de práticas animistas, ou recusando a tomar
água fluoretada), só poderia ser individual e em contextos específicos (Giddens. 1991:?). De
certo modo, a recusa total de confiança ao saber perito também significaria negar grande
parte das certezas que se tem sobre o mundo, o que levaria, ao mesmo tempo, a abdicar de
boa parte do sentimento de segurança que essas certezas proporcionam, o que, por sua vez,
levaria à conseqüências psicológicas. Por exemplo, se não confiar na solidez de uma casa
ou ponte, ou de qualquer outro objeto construído por outros, se não for capaz de viver de
alguma maneira com os riscos implícitos em atividades comuns como deslocar-se numa
cidade ou trabalhar, uma pessoa pode impedir-se de ter relacionamentos normais de
qualquer tipo. Para Giddens, por esses e outros fatores, a “antítese profunda de confiança é
o angst, pavor existencial“(: 102), não a desconfiança, simplesmente. Leigos, e mesmo
peritos, em decorrência, têm limites quanto à extensão da revisão que pode ser feita por
ocasião de erros ou acidentes. Limites que vão além de algo como entraves corporativos e
mecanismos auto-legitiminantes de manutenção de sistemas peritos. Apesar (melhor seria
dizer: por causa) da dinâmica dos erros e acidentes, provavelmente, nunca será o caso de
uma revisão de princípios que leve a um retrocesso no saber perito, na ciência.
Os leigos, entretanto, também aprendem com os erros dos peritos: todos nos
tornamos menos céticos, mais cautelosos e desconfiados, apesar de não menos
dependentes de peritos. O próprio desenvolvimento da técnica implica em renovação de
padrões de exigência, tanto quanto à sua eficácia quanto à segurança e ao risco envolvido. E
sempre haverá um cientista, ou um grupo deles, que apóie uma visão mais crítica e menos
104
assimétrica entre peritos e leigos, ou mesmo, ampare as desconfianças dos leigos, que
surgem em episódios como acidentes tecnológicos ou pela disseminação do reconhecimento
social dos riscos da modernização. É através da crítica científica à ciência, ou como, na
proposição de Beck (1992: Cap. 7), é na crítica à ciência, comprometida com o social
ameaçado, reflexivamente voltada às suas conseqüências, que a ciência seculariza a si
mesma e renova o impulso racional da modernização. O medo e a discriminação parecem ter
surgido, no Acidente de Goiânia, não somente como indicador de que esse aspecto foi
renegado em favor do recalque, mas também como necessidade e possibilidade histórica.
‘Apuração de responsabilidades’
No Acidente de Goiânia, como foi apontado, uma outra questão, que pode ser
resumida na pergunta: de quem foi a culpa? também prendeu a atenção da imprensa.
Apontar os culpados faz parte do processo de restaurar a segurança, de controlar o medo,
que relaciona perigos a indivíduos perigosos. O nervoso debate sobre esse processo é
indicativo de questões que extrapolaram o que poderia parecer apenas como uma discussão
institucional. No início do Acidente, como em várias outras tragédias, as autoridades se
disseram comprometidas em ‘apurar as responsabilidades’, ‘até as últimas conseqüências’ e
‘com o máximo rigor’. Para tanto, essas autoridades estavam ‘determinando a abertura de
inquéritos’, prometendo ‘manter a opinião pública informada’. Esses jargões, junto com o já
citado ‘a situação está sob controle’, foram a parte inicial, superficial e algo formal do foco do
debate da responsabilidade.
Dos atores principais desse debate, a CNEN, conforme foi apresentada por seu
diretor Rosenthal (no capítulo 4), teve a atribuição das tarefas de cuidado das vítimas; de
detecção, isolamento e descontaminação dos locais atingidos pelo césio (o que incluiu o
manejo e armazenamento do lixo radioativo); e de procurar esclarecer e informar a
população sobre todos os aspectos do Acidente. Formalmente, ela teria também a atribuição
de verificar a conduta dos responsáveis pelo aparelho de radioterapia, tarefa que delegou à
Polícia Federal. Como já foi apontado, a CNEN já tinha alguma experiência em acidentes
radioativos, mas a situação em Goiânia era inédita, bem como a exposição à mídia e à
críticas que veio a sofrer. Desde logo, entretanto, a CNEN reconheceu ter dificuldades para
cumprir um de seus papéis essenciais, que era a de fiscalizar todos os equipamentos
nucleares no Brasil (o que foi admitido até mesmo por Rex Nazareth, em entrevista173). A
173
FOLHA DE S. PAULO, 08/10/87. Cnen vai solicitar que lixo atômico seja depositado na serra do Cachimbo - “(...)
Durante as cerca de três horas em que debateu com parlamentares em Brasília, Nazareth rebateu críticas dirigidas à
CNEN, que, a seu ver, age de forma ‘transparente’. Segundo ele, a atuação do órgão em Goiânia foi ‘eficaz’. Mas no Rio,
às 6h15 de ontem, Nazareth admitiu que o órgão também é responsável pelo acidente. (...) afirmou ainda que cabe ao
usuário a responsabilidade primeira pelo material, ‘logicamente, com a responsabilidade central resguardada’. (...)
Segundo Nazareth, ‘a CNEN tem responsabilidade. Não estou, de maneira nenhuma, dizendo que a CNEN não tem
105
responsabilidade. À CNEN caberia a fiscalização do aparelho instalado no Instituto de Radiologia de Goiânia’. Nazareth
disse que será o primeiro a ‘tomar as medidas para a correção do sistema’, caso sejam verificadas falhas da CNEN.
174
O ESTADO DE S. PAULO, 04/10/87. Comissão quer punir responsáveis pelo acidente em Goiânia
106
chamou a atenção dos catadores de papel Wagner e Roberto. Segundo o médico Orlando
Alves Teixeira, um dos donos do IGR, “Ninguém ignorava que naquele prédio havia uma
bomba de césio. Nem a CNEN, nem a Santa Casa nem o Instituto de Previdência de Goiás.
175
É lamentável o que aconteceu. Mas não podemos assumir a culpa sozinhos”. A CNEN,
entretanto, alegou que não havia sido comunicada da desativação do aparelho, o que seria
obrigação do IGR. O então presidente do IPASGO afirmou desconhecer a participação do
instituto no caso, pois, segundo ele, naquela altura (outubro de 1987) o Instituto ainda não
havia recebido o terreno da Santa Casa, mas admitiu que havia recorrido à polícia para
impedir a saída de material da antiga clínica, “mas não se tratava do aparelho e sim de
telhas, portas, janelas e grades que estavam retirando da casa”176.
Como se pode perceber, há uma série de inconsistências nas falas dos envolvidos no
que de fato interessava saber, isto é, quem havia sido responsável pelo abandono da bomba
(o que evidentemente ninguém queria assumir, sendo, portanto, as declarações
propositadamente parciais), além de pendências judiciais que, por vezes, são tão difíceis de
entender quanto a física nuclear, o que motivou um debate jurídico paralelo (pode-se dizer
que mais um sistema perito agregou-se à situação). Por exemplo, o presidente da Sociedade
Brasileira de Direito do Meio Ambiente, Paulo Affonso Leme Machado “[queria]
responsabilizar tanto o Instituto de Radiologia por negligência quanto a CNEN por omissão
na fiscalização”177. A OAB - Ordem dos Advogados do Brasil - secção de Brasília; manifestou
que o Estado de Goiás poderia ser responsabilizado, caso ficasse comprovado que a guarda
do equipamento era da Justiça estadual, tendo havido negligência de oficiais de Justiça que
teriam impedido a retirada da bomba, conforme a versão dos donos do IGR.
175
JORNAL DA TARDE, 13/10/87. Falam os médicos acusados.
176
FOLHA DE S. PAULO, 02/10/87. CNEN afirma que processo de radiação está sob controle.
177
FOLHA DE S. PAULO, 06/10/87. Negligência com equipamento causa acidente.
107
Se, por um lado, o Acidente deveria ser interpretado como um crime, portanto,
mobilizando não só os aparelhos da polícia, justiça e os respectivos especialistas, mas
também as expectativas de que era necessário que alguém fosse identificado e punido, por
outro, questionava-se também o papel da CNEN, e por meio desse, se evoluiria para o
questionamento do próprio programa nuclear. Isto é, o debate sobre a responsabilidade se
politizou, em vários sentidos.
Não alivia ninguém o fato de saber que serão tomadas providências para apontar os
culpados pelo acidente - até porque já se sabe quem são. O que espanta é a facilidade com
que ele ocorreu. Mergulhadas num programa nuclear a longo prazo e ambicioso, as
autoridades governamentais ligadas ao setor costumam gabar, por exemplo, os sistemas de
segurança da usina de Angra dos Reis. Garantem que ela é capaz de agüentar o impacto de
um avião Jumbo 747, de tão segura. O que assusta o contribuinte, contudo, é saber que de
repente, apesar de tão segura, a usina pode explodir porque queimou um simples fusível
por falta de fiscalização.
“O que a gente pode concluir deste acidente é que o sistema de radioproteção no Brasil
precisa de maior atenção”, diz o físico Enio Candotti, presidente da Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência (SBPC). “Como a CNEN tem se ocupado de tantas tarefas,
como o enriquecimento de urânio e a construção de submarinos, sobra pouco tempo para
dar atenção à sua principal atividade, que seria justamente o controle de todas as
atividades em que se utiliza energia nuclear. Para Paulo Nogueira Neto, que durante doze
anos foi secretário nacional do Meio Ambiente, “foi um desleixo de alto nível”, com
imprevisíveis conseqüências para o meio ambiente (...).180
178
FOLHA DE S. PAULO, 07/10/87. Instituto e União podem ser responsabilizados.
179
FOLHA DE S. PAULO, 05/11/87. CNEN é responsável pelo acidente com césio, diz advogado.
180
ISTOÉ, 07/10/87 (28-30), Trágica negligência.
108
181
FOLHA DE S. PAULO, 07/10/87. Governo volta atrás; lixo atômico será colocado em área desabitada.
182
Não se localizou no material pesquisado se tal questionário foi respondido e devolvido à Gabeira.
183
FOLHA DE S. PAULO, 08/10/87. CNEN vai solicitar que lixo atômico seja depositado na serra do Cachimbo.
109
(que eram também posição do Conselho de Segurança Nacional, o que era mais que
significativo), pois segundo ele, isso significaria um retrocesso no estágio do programa
nuclear paralelo, pela dispersão de recursos, e pela subordinação à entidade fiscalizadora.
Nazareth rebateu também as críticas quanto à fiscalização, dizendo que as atividades da
CNEN obedeciam às normas internacionais, que recomendavam inspeções a cada cinco
anos, ou no caso de desativação da fonte.
Além disso, Nazareth levantou um argumento que não parecia ser óbvio: que não
havia motivos para suspeitar que “pessoas qualificadas e de elevado nível cultural”, médicos
especialistas, membros de uma elite profissional, negligenciassem as normas de
segurança184, o que parece ser um outro aspecto do que Giddens chama de confiança em
sistemas abstratos (motivo pelo qual não se poderia suspeitar dos médicos), embora pelo
avesso, isto é, quando a confiança não foi confirmada. Mas o argumento de Nazareth vale
também para a própria CNEN: à medida que foi ficando claro que a CNEN era uma
instituição suspeita, cercada de segredos, estreitamente ligada aos governos militares,
omissa na fiscalização e, até aquele momento, aparentemente incompetente em lidar com a
emergência, e que ela própria não era formada somente por técnicos ‘qualificados e de alto
nível cultural’, foi ficando cada vez mais isolada, e portanto, mais difícil de acreditar que
pudesse a situação controlar. Em outra das várias ocasiões em que foi entrevistado,
Nazareth pode adicionar argumentos à sua tese, e se manifestou favorável ao aumento das
penalidades civis e criminais para culpados de acidentes provocados por negligência.
Entretanto, disse que não concordava com uma afirmação de José Goldemberg, físico e
reitor da Universidade de São Paulo - USP, que teria dito que bastariam à CNEN apenas
quatro fiscais para todas as fontes radioativas importantes, por Goldemberg ter esquecido de
milhares de fontes de uso industrial. Nazareth disse que, a não ser que se montasse um
enorme Estado policial, com um fiscal para cada operador, o sistema de segurança não
funcionaria sem a responsabilidade do usuário da fonte radioativa185.
184
O ESTADO DE S. PAULO, 09/10/87
185
O ESTADO DE S. PAULO, 27/10/87. Perigo pode ficar para sempre.
110
186
O ESTADO DE S. PAULO, 10/10/87. Tecnologia sem segurança.
111
187
O GLOBO, 10/10/87. Rex Nazareth fala em cadeia de rádio e televisão: Situação em Goiânia está totalmente sob
controle.
188
O GLOBO, 10/10/87. A cadeia da imprudência.
189
JORNAL DA TARDE, 13/10/87. Novos acidentes poderão ocorrer.
190
O ESTADO DE S. PAULO, 10/10/87. Físicos franceses mostram os perigos.
112
191
A receita federal, por exemplo, não consegue fiscalizar o imposto de renda de médicos, para não falar dos aspectos
profissionais propriamente, como os chamados erros médicos.
192
FOLHA DE S. PAULO. 03/10/87. Acidente é caso de cadeia, afirma físico da Unicamp; Deputado diz que uso
nuclear deve ser fiscalizado; Secretaria da Saúde faz a fiscalização em SP.
113
expiatórios. A PF também decidiu não indiciar os catadores de papel, porque a bomba teria
193
sido abandonada, e sua retirada do local não caracterizava o furto . Nessa altura, a PF
estaria estudando o indiciamento de alguém vinculado à CNEN e ao IPASGO . A AMB,
Associação Médica Brasileira, por outro lado, através do seu presidente, manifestou apoio à
versão dos donos do IGR, lembrando que o IPASGO era do governo estadual, que poderia
procurar preservar-se no episódio194.
193
O ESTADO DE S. PAULO, 11/10/87. Polícia Federal indicia os 3 donos do instituto. FOLHA DE S. PAULO,
11/10/87. PF indicia proprietários da bomba de césio.
194
JORNAL DA TARDE, 13/10/87. Falam os médicos acusados.
114
(...) Além disso, explicou que o [IGR], segundo as normas, ao desativar o aparelho deveria
ter comunicado imediatamente o fato à CNEN, aguardando que a comissão definisse um
local definitivo para depositar a fonte. Até que isso ocorresse, o IGR teria a obrigação de
controlar o acesso ao césio, guardando-o sob condições de segurança e vigilância
constante. (...) Sobre a responsabilidade da CNEN no acidente, (...) “a CNEN não tem
culpa no caso”, a não ser que tenham sido descumpridos os regulamentos que definem
sobre os deveres da comissão.(...)195
Para que o acidente pudesse ocorrer, entretanto, todas essas normas tinham sido
descumpridas, no dizer de uma revista semanal, “num devastador efeito dominó de
negligências”196. “Novos acidentes podem ocorrer no país a qualquer momento”, diz José
Goldemberg à revista. “Há um flagrante desleixo por parte de pessoas que têm material
radioativo sob sua responsabilidade, e a fiscalização da CNEN é falha”. Em outra entrevista,
entretanto, o então reitor da USP faz um comentário, no mínimo, bairrista.
195
JORNAL DA TARDE, 12/10/87. Os donos do césio, fichados e indiciados.
196
VEJA. 14/10/87. Desolação radioativa. Em Goiânia, a paisagem do descontrole da energia nuclear.
197
FOLHA DE S. PAULO, 08/10/87. Goldemberg [dropes]
198
ISTOÉ, 14/10/87. Diante da morte e perplexos.
115
Acidente, chegando a dizer que ele foi o maior do mundo em número de vítimas imediatas e
não-profissionais da área. Pinguelli concordava com as primeiras medidas tomadas pela
CNEN, envolvendo a localização e tratamento das vítimas da radiação, a localização e
isolamento dos locais contaminados etc. “É fundamental, por outro lado, a apuração da
responsabilidade pelo abandono do equipamento em local sem vigilância e, ao mesmo
tempo, fazer uma revisão em profundidade do sistema de proteção radiológica nacional a
cargo da CNEN. Esta se revelou desaparelhada para cumprir essa missão (...) É fundamental
que o governo federal e o Congresso levem em conta as recomendações da SBPC, da
Sociedade Brasileira de Física e de duas comissões que trataram da questão nuclear com
participação de autoridades, cientistas e técnicos, formadas por determinação do próprio
presidente da República no âmbito do Ministério de Minas e Energia [uma dessas comissões
tratou de avaliar as conseqüências de Tchernobyl]”. Pinguelli destacou a recomendação da
divisão de funções da CNEN, entre desenvolvimento e fiscalização, apontando a ênfase que
a CNEN dava à primeira, no programa paralelo, em detrimento da segunda. Destacou
também a necessidade de democratizar e descentralizar os órgãos ligados à segurança
nuclear, que herdaram suas estruturas do período autoritário. Por fim, sintetizou as
responsabilidades envolvidas, posição das entidades de cientistas: “Cabe ao governo, que
promove o uso da energia nuclear, cuidar de proteger a população através da fiscalização e
orientação; cabe a quem a usa cumprir com rigor as normas de segurança; cabe à sociedade
cobrar isso do governo e das instituições e empresas de forma aberta e democrática” 199. Tais
responsabilidades são, vistas agora, tão óbvias que a questão que se pode levantar é
justamente sobre o por quê de tais responsabilidades óbvias terem de ser enunciadas,
repetidas, e colocadas como objetivos para alcançar não um estágio superior, mas um nível
ainda básico de normalidade institucional: a resposta parece ser a constatação que mesmo
esse estágio básico de organização estava longe de ser percebido.
Com exceção de São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná, não há controle no país sobre os
centros de radiologia. A afirmação foi feita ontem pelo presidente da Associação
Brasileira dos Físicos em Medicina (ABFM), Homero Cavalcanti de Melo. Segundo ele, a
responsabilidade da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) recai apenas sobre as
fontes geradores de radiação dos aparelhos radioterápicos, (...) cabendo às autoridades
estaduais a fiscalização dos centros de diagnóstico. “Esse descontrole ameaça a saúde de
pacientes, médicos e de qualquer um que se exponha a aparelhos fora das especificações
normais de funcionamento, afirmou Melo200.
Um outro aspecto que corroeu a credibilidade da CNEN, mas que não foi muito
explorado pelo noticiário, foi o possível envolvimento de alguns de seus técnicos com
199
FOLHA DE S. PAULO, 14/10/87. A responsabilidade pelo Acidente de Goiânia. Artigo de Luiz Pinguelli Rosa.
200
FOLHA DE S. PAULO, 14/10/87. Não há controle sobre centros, afirma físico.
116
empresas que fabricavam e/ou vendiam equipamentos para o setor, além de clínicas de
radioterapia:
O deputado federal Fábio Feldman (PMDB-SP) anunciou ontem [13/10/87] que ingressará
com uma representação ao procurador-geral da República, Sepúlveda Pertence, pedindo a
instauração de inquérito civil para apurar o tipo de relacionamento mantido por técnicos e
funcionários da CNEN com empresas e instituições de radioterapia. Feldman acha que
existem “fortes evidências” de que funcionários da CNEN trabalham como “consultores”
dos próprios serviços de medicina nuclear que deveriam fiscalizar. O inquérito deverá
também, segundo o deputado, verificar os termos de um suposto convênio pelo qual a
CNEN transferiu funções de fiscalização para o Colégio Brasileiro de Radioterapia.
Feldman disse “estranhar” a posição assumida pela Associação Médica Brasileira (AMB)
e pela Associação Brasileira de Físicos em Medicina (ABFM) que, segundo ele, fizeram
uma “intransigente defesa” da CNEN.201
Quando visitou Goiânia no dia 14 de outubro para anunciar a proposta de lei sobre o
lixo radioativo, o presidente Sarney declarou que “Este acidente é resultado da
irresponsabilidade e ignorância”, mas referindo-se apenas aos donos da bomba, e disse
também que (provavelmente confiando em Romeu Tuma) as responsabilidades seriam
apuradas com todo o rigor. Antes de embarcar de volta a Brasília, Sarney passou por uma
medição completa por contadores Geiger e cintilômetros da CNEN, para ter certeza de que
não estava levando nenhum resíduo radioativo.203 Outras autoridades também trataram de
anunciar providências: O Ministério da Educação ordenou um levantamento de quantas
fontes radioativas existiam em seus 38 hospitais, ligados às universidades, a mando do
ministro Jorge Bornhausen204. O Secretário de Saúde do Estado de São Paulo, José
Aristodemo Pinotti, estudou a criação de um serviço especializado em atender vítimas de
radiação, dentro do Hospital das Clínicas205.
201
FOLHA DE S. PAULO, 14/10/87. Para Nazareth, consultoria é legal.
202
JORNAL DA TARDE, 26/10/87. Descontaminação total? Quase impossível.
203
O ESTADO DE S. PAULO, 15/10/87. Sarney anuncia lei para lixo atômico.
204
FOLHA DE S. PAULO, 20/10/87. MEC inicia levantamento.
205
FOLHA DE S. PAULO, 20/10/87. Saúde quer equipar o HC.
117
Lutando contra a tarefa de ficar com o lixo radioativo, Henrique Santillo, após a
desistência de Sarney da opção da Serra do Cachimbo, criticou tanto o Presidente quanto a
CNEN, que segundo ele, nunca havia estudado a sério a questão dos depósitos de rejeitos,
desde a sua fundação, em 1962. Para ele, a responsabilidade do assunto era da CNEN, que
deveria arranjar um local adequado para o depósito definitivo (desde que não fosse em
Goiás). Admitiu, porém que, no futuro Goiás deveria ter um local próprio, definido pela
Universidade Federal de Goiás e pela comunidade científica nacional. Uma decisão, que
neste caso, seria “técnico-científica e não política”206.
Henrique Santillo passou dois dias (19 e 20/10) em viagem pelo Rio de Janeiro e São
Paulo, para “convencer” os principais jornais e tevês do país de que estariam noticiando o
acidente de forma sensacionalista, prejudicando Goiás e a cidade de Goiânia. Santillo, como
outras autoridades goianas, acusaram jornalistas “de fora” de prejudicar a imagem do
207
Estado . De volta a Goiânia, Santillo resolveu cobrar da União todos os gastos com o
transporte e armazenamento do lixo radioativo, cerca de 220 milhões de cruzados, pois
considerava a União responsável pela fiscalização dos equipamentos radioativos (e portanto,
pode-se dizer, pelo acidente). Santillo reclamou do Ministério da Saúde, que não participara
de nenhuma das atividades na cidade, cobrando uma maior participação do governo federal.
Reclamou também das universidades, que segundo ele, estavam numa redoma, isoladas do
povo pelo excessivo corporativismo, embora no mesmo dia Goldemberg tenha visitado a
cidade, a seu convite.
Nessa visita, Goldemberg voltou a polemizar com Nazareth e atribuir à CNEN o papel
de omissa na fiscalização: “Os órgãos de fiscalização existem justamente para lembrar a
existência de normas a serem respeitadas”. Após visitar os locais contaminados, entretanto,
Goldemberg elogiou os trabalhos de descontaminação dirigidos por Rosenthal208. A polêmica
entre Goldemberg e Nazareth chegou a ponto de o primeiro ter declarado que Nazareth
deveria se demitir, ao que este replicou que respeitava muito Goldemberg, mas este deveria
fazer uma avaliação geral antes de acusações.
206
O ESTADO DE S. PAULO, 16/10/87. Governador protesta contra lei para lixo.
207
FOLHA DE S. PAULO, 20/10/87. Governador faz críticas a imprensa.
208
O ESTADO DE S. PAULO, 28/10/87. Governador cobra tudo da União. Goldemberg visita área e lamenta omissão.
118
O governo, entretanto, foi incapaz de passar essa mensagem simples à população, tanto
porque as autoridades brasileiras ainda não se convenceram de sua responsabilidade de
dizer a verdade aos cidadãos sobre o que está ocorrendo e o que estão fazendo, como
porque sua credibilidade está completamente destruída. Aliás, esses dois aspectos estão
claramente interligados. Em virtude disso, os desencontros de informações e o
comportamento dos dirigentes da Comissão Nacional de Energia Nuclear, assim como do
próprio presidente da República, estabeleceram uma situação de insegurança tal, que levou
ao pânico uma população enorme. A radiatividade foi concebida como um eflúvio ou
miasma que contaminava a todos, sem possibilidade de defesa.
O esforço do governo se concentrou em mostrar que não era responsável pelo acidente.
Ante a gravidade da situação, isso era, no momento irrelevante. Cabia à autoridade pública
tomar medidas firmes em defesa da população (...). Mas a questão da responsabilidade
também não podia ser evadida. Era necessário, para resguardar a credibilidade do governo,
afastar os servidores da Comissão (...) cuja omissão permitiu que o acidente ocorresse.
Entretanto, para resguardar uma comissão que inclui veteranos do regime autoritário
ligados ao aparato militar, o presidente não tomou até agora nenhuma medida concreta de
caráter político, mesmo que simbólica, para restabelecer a confiança da população em
relação às autoridades públicas.
Numa situação em que as informações prestadas são parciais e contraditórias, as omissões
não são cobradas e a ação é sempre atrasada e lenta, não é de estranhar que a população
manifeste uma profunda incredulidade em relação à capacidade do poder público de agir
em sua defesa (...)
É por isso que esse incidente é tão revelador - ele indica o processo pelo qual se perde a
credibilidade, que é o que o Poder Público mais necessita no momento209.
209
FOLHA DE S. PAULO, 01/11/87. Credibilidade na transição. Artigo de José Goldemberg.
119
as atitudes de respeito aos seres humanos em suas ansiedades e incertezas, adotando uma
postura vigilante de que a energia nuclear pode, de fato, mesmo em pequena quantidade
manipulada, ser uma real ameaça à vida, à tranqüilidade, à ordem social e econômica e às
finanças públicas”210
210
O ESTADO DE S. PAULO, 04/11/87. Radiação pode repetir-se, diz SBPC.
211
Quocientes de inteligência.
212
Um quiloton equivale a potência de mil toneladas de TNT (dinamite).
213
Além dele, Niels Böhr, Linus Pauling e vários outros cientistas que participaram da criação da bomba atômica logo
anteviram as conseqüências de suas descobertas, inclusive o risco de uma corrida armamentista, e chegaram a iniciar um
movimento pelo controle da energia nuclear por um organismo supranacional. O fracasso relativo de sua empreitada, a
despeito de quem eram, amplifica as dimensões da tragédia, embora atitudes de cientistas como eles sejam responsáveis por
boa parte do que se sabe sobre os problemas da utilização da energia nuclear. Todo o desenvolvimento histórico posterior da
energia nuclear, como risco, já fora previsto e apontado por estes cientistas, portanto poderia em tese ter sido evitado.
120
214
“ ... corresponding to the highly differentiated division of labor, there is a general lack of responsibility. Everyone is cause
and effect, and thus non-cause (...) This reveals in exemplary fashion the ethical significance of the system concept: one can
do something and continue doing it without having to take personal responsibility for it. It is as if one were acting while
being personally absent. One acts physically, without acting morally or politically. The generalized other - the system - acts
within and through oneself: this is the slave morality of civilization, in which people act personally and socially as if they
were subject to a natural fate, the ‘law of gravitation’ of the system.”
121
para a atração de indústrias perigosas, num movimento de exportação de riscos, dos países
industrializados para a periferia. Nesses países, a população assumiria, sem consciência,
riscos considerados inimagináveis nos países industriais, isto é, a implantação e legitimação
de riscos seria livre onde a consciência dos mesmos seria nula. Regulamentos de proteção e
segurança, bem como a legislação, poderiam inexistir ou ser apenas um monte de papéis.
Neste contexto, facilmente se poderia atribuir a responsabilidade por acidentes à cegueira
cultural quanto às ameaças (: 42).
Os aspectos notados por Beck não deixaram de estar, de alguma maneira, presentes
no Acidente. Apesar de a única culpa formalmente verificada ter sido a dos médicos do IGR,
a crítica na imprensa procurou explicitamente apontar como culpados os últimos, e também a
CNEN, Sarney, o programa nuclear, os governos militares, e também os problemas
‘culturais’, como a ignorância e o atraso; os problemas políticos, como a necessidade de
democratização do setor; e mesmo os ‘técnicos’, como a necessidade de estabelecer locais
para o lixo nuclear, isto é, as diferentes responsabilidades tanto no acidente quanto no
aperfeiçoamento das condições de segurança. Por alguns meses, o outro generalizado e
normalmente oculto no subsistema nuclear estatal teve nome, cargo e rosto, teve de ser
sujeito, na defesa do status quo (e apenas por isso já seria criticável), e se pôde vislumbrar
sua relação com os outros sujeitos, mesmo que mediada pela imprensa. Como acidente
tecnológico, toda a discussão também se orientava para o futuro, como aperfeiçoamentos da
segurança, como mudanças necessárias nas instituições, como esclarecimento e verificação
de papéis e de responsabilidades. A grande questão, entretanto, é que a discussão sobre os
papéis dos envolvidos no acidente não envolve apenas a atuação conjuntural, específica e
particular, deste ou daquele agente real, mas também e concomitantemente, o do conteúdo
no relacionamento com um ou mais sistemas abstratos, portanto formais, e em relação aos
quais se formam as expectativas de confiança.
Virilio (Virilio & Lotringer, 1984) diz que acidentes estão para as ciências sociais como
o pecado está para a natureza humana, “uma certa relação com a morte, ou seja, a
revelação da identidade do objeto” (:41). Médicos que matam ao invés de curar, assim como
aparelhos de radioterapia que provocam câncer ao invés de tratá-lo, técnicos nucleares
especializados mas negligentes, fiscais que não fiscalizam, são imagens relacionadas
diretamente a um duplo pecado, um pecado paradoxal, assim como Papas pecadores, mães
prostitutas, policiais bandidos, juizes corruptos, cientistas loucos, presidentes subservientes
etc.. Há ambivalência, estranheza e ambigüidade intoleráveis nessas imagens, e isto quer
dizer, não há confiança, responsabilidade ou compromisso possível, já que todo discurso
desses elementos é hipócrita pela duplicidade: não se firma nem como verdade e nem como
mentira, nem bem nem mal. São agentes da confusão, da divisão e da relatividade, da
122
É o que parece ser um elemento chave para a atenção nacional presa, de forma
aflita, ao acidente de Goiânia: se os acontecimentos provocaram tal desaprovação, medo,
indignação, pode ser porque, além da situação de emergência, houve um drama composto
por valores contraditórios coexistindo, o pequeno ladrão da bomba, o médico descuidado, o
técnico negligente, o político oportunista, as crianças inocentes, um governo pusilânime, um
Brasil de pequenos expedientes tolerados, misturados à radiação invisível, dos materiais
estranhos, siglas, efeitos permanentes, regras rígidas, normas inquebráveis, altas
tecnologias, nucleares e atômicos - o mundo sério, duro e inexorável das instituições
modernas corroído pelos pequenos vícios nacionais, pelos defeitos genéticos de um país
que, nesse instante, foi pego em flagrante, expôs suas fraquezas e se envergonhou tanto
quanto se amedrontou, se culpou tanto quanto acusou. O acidente de Goiânia condensou e
precipitou, mesmo (ou por causa) da maneira confusa e emocional em que ocorreu, uma
elaboração coletiva sobre elementos que nos caracterizariam como nação e que surgiram na
problematização do acidente pelos seus comentadores e atores: a negligência, a
imprevidência, a ignorância, a tecnocracia, a covardia, o medo, a impunidade, a
irresponsabilidade, o oportunismo, a burocracia, o bacharelismo, a indecisão, o
sensacionalismo, a incompetência, e vários outros aspectos, surgiram nas diferentes notícias
para explicar, ilustrar, mostrar, comentar e, principalmente, politizar o acidente, suas causas
e as responsabilidades na sua emergência.
Dessa maneira, o que se elaborou foi a idéia de que o acidente é uma comprovação
do ‘atraso’ nacional (até a bomba era obsoleta), provocada por uma espécie de ‘impotência’
em ser moderno, ancorada em características culturais amplamente compartilhadas - daí a
sensação de estranheza diante algo que nos era, no fundo, familiar - aspectos que geraram,
no entanto, um evento inesperado no modo e na gravidade concreta, e que foram
identificados como defeitos capitais nas ações do Estado e do sistema perito. Os
desdobramentos a partir da descoberta do acidente, conforme foi focalizado e exposto pela
imprensa, tocam constantemente nessa ferida: alguns comentadores, cuja autoridade lhes
permitiu, foram trabalhados pela imprensa de forma que seu discurso foi sutilmente
editorializado, isto é, claramente, a imprensa tomou o partido de pôr em relevo os críticos da
ação governamental, trabalhando uma espécie de ressentimento geral contra o Estado.
123
Fazendo isso, alimentou a expectativa da população (ou pelo menos, de seus leitores) de
que o Estado não estava, de antemão, capacitado para a emergência, como não estava para
nenhuma tarefa importante: controlar a inflação, realizar políticas sociais, agir
democraticamente, em resumo, ser um Estado moderno e democrático, do modo como a
imprensa e parte da elite formulavam essa questão.
Por outro lado, o efeito da atuação da imprensa pode ter ajudado a comprovar a sua
própria tese, pois ao postular a incompetência e irresponsabilidade do Estado, pode ter
prejudicado as ações de emergência e agravado as suas conseqüências, isto é, ajudou a
constituir justamente o que gostaria de demonstrar: a impotência estatal. Por essa via,
contribuir para inviabilizar, ao menos no imaginário vigente, a possibilidade de que a
população se tranqüilizasse, já que ninguém estaria autorizado a resolver o acidente, ao
contrário, auxiliando menos para o esclarecimento do que para a desinformação e o medo.
E, em decorrência, também para o surgimento das manifestações discriminatórias e
irracionais.
Em segundo lugar, o avanço não foi apenas uma questão material, mas de
descompasso entre discurso e práticas, entre intenções e ações. O Estado e o sistema perito
assumiram seu lugar na emergência, na forma vigente na atualidade: o Estado apropriou-se
do acidente, monopolizou-o, procurou solucioná-lo através da CNEN, isto é de seu aparato
técnico, procurou apurar as responsabilidades através de seu aparato policial e judiciário,
procurou assistir as vítimas, proteger os demais cidadãos e recuperar a normalidade da
cidade, procurou tranqüilizar a população, envolvendo-se de modo raras vezes visto. No
215
ISTOÉ, 07/10/87. op.cit.
124
entanto, poucas dessas ações foram vistas, em tempo real, como adequadas, ou mesmo,
como legítimas, poucos resultados positivos foram reconhecidos. Os diversos agentes do
Estado, quando foi o caso, explicaram quais eram seus papéis formais, que poderiam ser
considerados tecnocráticos ou burocráticos, mas não ‘atrasados’. Nada disso, porém,
confirmou as ações concretas, principalmente dos governantes, vindos em geral de uma
tradição política de fato atrasada, tanto que não realizaram a ligação fundamental entre a
ciência e a técnica e a política, isto é, não deram primazia ao racional, principal fator de
legitimação nos Estados modernos, quando essa ligação era mais necessária, em plena
emergência.
empreendimento que deve ser racional também para, no caso brasileiro, ao mesmo tempo,
lidar com os perigos e riscos, com o medo coletivo, com efeitos que, agora, não são
simplesmente colaterais, mas simultâneos, do processo de modernização.
216
ATENÇÃO!. Ano 2, nº 9, 1996. (: 10-6). Goiânia - 137. Reportagem de Laura Greenhalgh. Várias informações e citações
a seguir foram retiradas dessa matéria, bastante abrangente.
217
Autor, entre outros trabalhos polêmicos, do laudo de P.C. Farias, assassinado em circunstâncias misteriosas em Maceió,
1996.
218
Embora o alcoolismo poder ser considerado, de um outro ponto de vista, uma doença desencadeada, no caso, pelo próprio
acidente.
127
e outras vítimas chegaram a ser tratadas em Cuba, através de um acordo oferecido por Fidel
Castro quando esteve no Brasil para a Eco 92, no Rio de Janeiro. Cuba tem experiência com
milhares de crianças soviéticas afetadas pelo acidente de Tchernobyl, e um grupo de 50
vítimas usufruiu, ao que parece, de um clima diferente. “Tínhamos de tudo: casa, comida,
exames, remédios, lazer e um atendimento bem diferente do que existe no Brasil. Lá, médico
é igual ao paciente. Ele não chega para dar ordens nem para meter medo”. O acordo com
Cuba foi unilateralmente interrompido pelo governo brasileiro, Ministério da Saúde, CNEN,
Funleide, como pretexto de que o mesmo tratamento era oferecido aqui. “Disseram que
fizemos turismo e que o tratamento cubano só fez bem para a nossa cuca. Não é verdade.
Mas, se fosse, seria um ganho. Aqui, nem a cabeça da gente os médicos consertam”.
219
ISTOÉ. 01/06/88. Seqüelas do acidente. Casos de impotência de bombeiros de Goiânia são atribuídos à contaminação
por césio-137.
220
ATENÇÃO!. idem.
128
realizavam, as cercas de arame em volta do depósito caíram, vigilantes nas guaritas foram
rareando, e crianças utilizavam o depósito como atalho, caminhando entre tambores e
contêineires enferrujando a céu aberto. As diversas administrações do lixo radioativo da
221
CNEN atribuíam a demora a interesses políticos . A construção do depósito definitivo
custou cerca de R$ 8 milhões, e a sua manutenção custará, segundo estimativa, R$ 1 milhão
por ano.
Quem vive em Goiânia sabe que seus filhos, netos, bisnetos e seus descendentes
continuarão a conviver com o problema do césio-137 - ainda que a solução funcione, os
rejeitos estarão ali, a 20 quilômetros da cidade; exigirão cuidados permanentes e terão
sobrevida de mais de três séculos. Sabe o que é viver numa cidade estigmatizada na época
do acidente, com seus moradores até apedrejados em outras partes do País nos primeiros
dias?222
Em 1989, a CNEN realizou uma operação de fiscalização que cobriu todo o território
nacional, e na qual recolheu nada menos que 14 mil fontes radioativas em situação de risco
ou irregulares, em hospitais, clínicas e indústrias. Apesar disso, fontes e cápsulas de material
radioativo ainda são perdidas, roubadas, e/ou abandonadas em beiras de estrada, ferros-
velhos e depósitos de lixo. A CNEN não foi dividida entre uma agência de desenvolvimento e
outro de fiscalização das atividades nucleares, como parecia ser consenso no sistema perito
não-estatal à época do acidente. Lembre-se que, em 1987, o país sequer havia conseguido
ter eleições diretas para presidente, o que só veio acontecer em 1989, e que nem a
Constituinte que foi simultânea ao acidente, conseguiu democratizar a questão nuclear além
da necessidade de aprovação pelo Congresso de iniciativas do Executivo, e da necessidade
de lei federal para instalação de novas usinas nucleares223. A redemocratização e a crise
econômica, entretanto, coincidiram com a interrupção dos investimentos energéticos,
incluindo a construção das plantas nucleares planejadas, como o complexo Angra, que
chegou a ter oito usinas previstas. A lei federal que regulamentaria a questão dos depósitos
definitivos de rejeitos nucleares ainda está tramitando no Congresso.
Ninguém tem certeza quanto aos danos ao meio ambiente e à saúde dos habitantes
de Goiânia. Até porque a abordagem científica dos efeitos é controversa, não só em Goiânia,
e nem mesmo indicadores de que doenças como o câncer aumentam na população da
cidade são conclusivos em indicar que a causa tenha sido o césio-137 ou devido a outros
fatores. Também não se sabe quais serão os efeitos através das sucessivas gerações, já
221
Idem, ibidem.
222
GAZETA MERCANTIL. 10/12/96. Notícias de um velho pesadelo. Artigo de Washington Novaes.
223
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Art. 21, XXIII; art.22, XXVI; art. 49, XIV; art.
225, § 6.
129
Acidente com césio condena quatro médicos. Pena por homicídio culposo será
cumprida em regime aberto. GOIÂNIA. Quatro pessoas envolvidas no desastre do césio
137, ocorrido em Goiânia há nove anos, foram condenadas por homicídio culposo das
quatro vítimas da radiação. Após uma demorada batalha judicial, a sentença se tornou
definitiva anteontem, porque os cinco acusados não recorreram da decisão do Tribunal
Regional Federal do Distrito Federal, que reformou as penas impostas pela Justiça de
Goiânia. Os médicos Carlos Bezerril, Criseide Castro Dourado e Orlando Alves Teixeira e
o físico hospitalar Flamarion Barbosa Goulart cumprirão em regime aberto a sentença de
três anos e dois meses de prisão.
Em 1992, todos os envolvidos tinham recebido penas mais brandas, mas um recurso
impetrado junto ao TRF alterou toda a situação. A condenação não vai impedir, porém,
que eles mantenham suas atividades profissionais. Eles poderão exercer a medicina
durante o dia, devendo, à noite, se recolher à Casa do Albergado, onde também ficarão nos
fins de semana e feriados224.
A condenação definitiva dos donos do IGR mereceu poucas linhas na imprensa, com
alguns jornais dando apenas pequenas notas em páginas internas. O pouco destaque dado a
um dos mais aguardados desfechos do Acidente, quase dez anos atrás, entre várias
interpretações possíveis, talvez esteja demonstrando não que o acidente tenha sido
esquecido, mas que a imprensa, à sua maneira, desaprovou a demora e a aparente brandura
da punição que receberam os médicos. A maneira da imprensa fazer isso, de manifestar seu
desacordo, é negando espaço e destaque, e portanto, atribuindo uma certa desimportância
ao desfecho. Um gesto que significa algo como um certo desprezo, um silêncio mais eficaz
que manchetes e editoriais.
224
O GLOBO. 28/01/1996.
130
225
ATENÇÃO! Idem.
131
quais finalmente estaríamos entrando no rol dos países industrializados, tampouco parecem
garantir que estejamos construindo mecanismos eficazes e democráticos de segurança
social ligados a um modelo de welfare state. Antes o contrário, como representam por
exemplo os projetos de desregulamentação do mercado de trabalho e privatização da
previdência social226. Acidentes, tecnológicos ou não, irão continuar ocorrendo, mas em que
medida isso será devido a contingências ou, como se pode interpretá-los, continuarão sendo
socialmente produzidos?
226
Apenas um comentário é necessário para dar uma idéia de como os termos dessa discussão parecem estar todos invertidos.
Na forma como se organiza, a desregulamentação do mercado de trabalho leva logicamente ao enfraquecimento da
previdência pública, embora o contrário é que é veiculado como ‘verdade’, isto é, a falência da previdência é que tornaria
necessária a desregulamentação do trabalho. O capital, libertado, agradece.
132
às vezes como desejo (mas sempre politicamente), o Brasil como sociedade moderna,
porque a idéia de ‘segurança’ aqui adere à idéia de modernidade (como de fato está na idéia
da modernidade clássica). O problema foi colocado, em termos teóricos mais abrangentes (e
um tema sociológico), como o descompasso aparente entre o desenvolvimento das técnicas
e do atraso dos homens, das relações e práticas sociais (Mannheim, 1962. ): essa
formulação implicitamente traz a idéia de que os homens são dominados pelas suas
criações, que elas seriam mais evoluídas que eles próprios, e demonstrativos de uma
separação entre os mundos da ciência e do social (Arendt, 1991; e Habermas, 1970.). A idéia
de mudança social e de modernização passaria pela adaptação do social às imposições da
modernização tecnológica, e conforme a normatividade imposta pelo ambiente produzido em
decorrência da centralidade da ciência; ou, na formulação de Habermas, pelo contato com as
aplicações práticas derivadas da ciência; ou ainda, na de Arendt, pelo fato de os cientistas
serem os únicos ainda capazes de agir politicamente e de criar mudanças.
nas indústrias de automóveis, onde acidentes são simulados com riqueza de detalhes.
Acidentes são pedagógicos, devem ser sempre lembrados por esse aspecto, pois quando se
tem em vista tanto a necessidade de renovação de confiança quanto exigências do mercado,
cada vez mais atento a aspectos de segurança, repetir o erro é indesculpável. Lembrar de
acidentes, estudá-los cientificamente, prever suas variáveis, dentro desse mecanismo é,
portanto, uma atividade racionalizada, profissional, voltada ao conhecimento, mas também
intrínseca e funcional à produção - é um investimento, não um custo. Levantar o passado em
termos de variáveis falhas, de construir uma história técnica dos acidentes e de utilizá-la em
cada novo artefato produzido constitui não apenas uma genealogia ou uma cadeia evolutiva
da técnica, mas também um sentido suposto e impositivo dessa história (do menos para o
mais seguro), tanto quanto se tornou uma ideologia, da necessidade imanente de
aperfeiçoamento constante, de evolução, de ultrapassagem de limites, de expansão de
controle para manter ou atingir tal segurança.
227
“...Even more pessimistic observers connected knowledge and control. Max Weber’s ‘steel-hard cage’ - in which he
thought humanity was condemned to live for the foreseeable future - is a prison-house of technical knowledge; we are all,
to alter the metaphor, tove small cogs in the gigantic machine of technical and bureaucratic reason. Yet neither image
comes close to capturing the world of high modernity, which is much more open and contingent than any such image
suggests - and is so precisely because of, not in spite of, the knowledge that we have accumulated about ourselves and
about the material environment. It is a world where opportunity and danger are balanced in equal measure.” (Grifo no
original)
134
A demanda por segurança e controle leva a paroxismos, através dos quais pode-se
vislumbrar o desenvolvimento suposto pelo movimento da técnica em direção à segurança a
qualquer preço. Pegue-se um exemplo, também retirado da imprensa:
Alemães vendem cadáver de filho para teste de segurança em carros. Das agências
internacionais - cerca de 900 cadáveres de crianças são vendidos por ano a laboratórios de
pesquisa na Alemanha, revelou ontem o jornal ‘Bild’ - o mesmo que levantou o caso do
uso de corpos em lugar de bonecos por uma universidade alemã para testar sistemas de
segurança em automóveis.
De acordo com o jornal, os pais vendem os cadáveres de seus filhos por valores entre US$
130 e US$ 900 aos laboratórios que fazem testes de segurança.
Provas semelhantes foram realizadas nos últimos 50 anos pelos laboratórios das maiores
universidades dos EUA, financiados pelo governo e pelas três grandes indústrias
automobilísticas do país - Chrysler, Ford e GM.
‘Você não pode usar um manequim de loja em testes como esses”, disse Albert King,
bioengenheiro da Universidade Estadual Wayne, de Detroit (Michigan, centro-norte
oriental).
228
“Industrial society, the civil social order and, particularly, the welfare state and the insurance state are subject to the
demand to make human living situations controllable by instrumental rationality, manufacturable, available and
(individually and legally) accountable. On the other hand, in risk society the unforeseeable side and after-effects of this
demand for control, in turn, lead to what had been considered overcome, the realm of the uncertain, of ambivalence, in
short, of alienation. Now, however, this is also the basis of a multiple-voiced self-criticism of society.”
229
“... the entrapment of human thought and action in mistakes and errors. Where technological developments begin to
contradict this one certainty (...) they encumber humanity with the unbearable burden of infallibility. As risks multiply, the
pressure grows to pass oneself off as infallible and thereby deprive oneself of the ability to learn”.
135
King argumentou que os testes com cadáveres não só são mais eficientes que os feitos com
bonecos, por mostrarem os efeitos dos choques no corpo humano, mas também ajudam a
aperfeiçoar os próprios bonecos - para que as provas com cadáveres possam ser
abandonadas.
‘Tenho a consciência tranquila’, afirmou Dimitrios Kallieris, 55, o responsável pelos
testes feitos com cadáveres na Universidade de Heidelberg (sul da Alemanha) por
encomenda de indústrias automobilísticas.
A Universidade de Heidelberg fez testes entre 1972 e 1989 com 200 cadáveres, entre os
quais os de 8 crianças, disse o diretor do Instituto Médico Legal da universidade, Rainer
Mattern.230
230
FOLHA DE S. PAULO, 26/11/93.
136
231
FOLHA DE S. PAULO, 18/04/94.
137
coincidência do acidente de TMI com um filme de ficção chamado The China Sindrome
(Síndrome da China) que dramatizava um acidente nuclear semelhante, e a cobertura da
imprensa, que passou a um tom crítico, diante dos desencontros de autoridades e técnicos,
levou a um expressivo impulso os movimentos antinucleares americanos, agrupados pelo
slogan No Nukes (Clarfield & Wiecek : 383-9). No acidente de Tchernobyl, a cidade de
Pripyat, vizinha às usinas, sofreu contaminação por 48 horas antes de ser evacuada. Seus
habitantes só bem depois souberam o que havia acontecido. Raras imagens, feitas por uma
equipe que filmava os preparativos da comemoração do 1º de maio na cidade, são todas
marcadas por estranhos clarões, brilhos e riscos, tendo flagrado, involuntariamente, a
chegada de uma enorme fila de ônibus e tropas do exército que evacuariam a cidade. As
anomalias no filme já se deviam à enorme dose de radiação no ambiente. As autoridades da
então URSS só admitiram externamente o acontecimento do acidente quando uma nuvem
radioativa foi detectada nos países escandinavos. A URSS era um país autoritário, como se
sabe: houve censura à imprensa interna, e mesmo as inspeções internacionais foram
cuidadosamente guiadas. À época de Goiânia, falava-se do heroísmo dos bombeiros e
técnicos que combateram e controlaram o acidente e do sucesso relativo dessa empreitada
(existem na Ucrânia monumentos em sua homenagem e um museu do acidente). O
desmantelamento da URSS e a necessidade da recém independente Ucrânia de conseguir
cooperação internacional e dinheiro (24 bilhões de dólares) para reformar seu parque de
usinas, aparentemente mudou a versão: 600 mil homens teriam sido forçados pelo governo
soviético a trabalhar na descontaminação da usina, 800 deles protegidos por pedaços de
borracha e de chapas de metal amarrados ao corpo, equipados nos primeiros e decisivos
dias apenas com pás comuns para limpar o teto da usina, sendo que cada um cumpriu
turnos de trabalho de 90 segundos, onde e quando receberam doses de radiação que se
calculavam o máximo admissível a um ser humano por toda a vida. Desses homens, 350 já
teriam morrido, até 1994, em conseqüência.232
O que se quer dizer com esses exemplos é que apesar das impressões iniciais, que
julgavam o acidente tão representativamente brasileiro, em acidentes tecnológicos
assemelhados, mas em países diferentes, as reações de governantes, sistemas peritos e da
população foram mais semelhantes entre si do que poderia supor, e isso não é oculto, mas
somente possível, como produto das cores e condições locais, e há razões plausíveis para
que isso se dê. Em primeiro lugar, as ciências, as técnicas, os sistemas peritos e,
principalmente, suas criações, seus artefatos e sistemas são globalizados, basicamente os
mesmos em qualquer lugar do mundo, não obstante suas sempre ressaltadas variações
232
Crianças de Tchernobyl. Documentário exibidio pela Rede Cultura de Televisão, em 4/8/95. O governo soviético admitiu
oficialmente, durante quase cinco anos, apenas 31 mortes, a maioria de bombeiros.
138
tecnológicas, assim como suas leis e sua linguagem. Assim sendo, se a radiação é invisível e
segue as mesmas leis naturais em qualquer país, também seus problemas técnicos não
serão diferentes, e mesmo suas respectivas propostas de solução e até mesmo a atitude dos
técnicos, que mistura otimismo, ceticismo, conflitos e desacordos e a característica
inabilidade política será semelhante. As diferenças advêm do fato que esses sistemas, como
quaisquer outros, não se distribuem de modo homogêneo entre os diferentes países,
gerando diferenças e/ou graduações de competência, de capacidade para a ação e de
influência nas decisões, de recursos materiais e humanos, de instituições, de diferentes
histórias parciais. O que aparece, então, é sempre a relação entre o global e o local, o ideal e
o real, o teórico e o prático, o estágio em que se está e o estágio que se deve atingir, entre
estrutura e conjuntura. Seja qual for o nome que se dê, o acidente tecnológico explicita, mas
não cria tal relação: ao contrário, o acidente tecnológico decorre dela, manifesta e realiza
essa relação.
233
Como cinco anos de mandato ou a ferrovia norte-sul para Sarney, à época do acidente.
139
Em terceiro lugar, mesmo para as ditaduras, acidentes tecnológicos não podem mais
ser facilmente escondidos - pela ‘exportação’ de conseqüências e dos avanços nos meios de
detectá-los e de mostrá-los como notícia - e portanto, há uma globalização de perigos, de
riscos e do medo. A morte nuclear, atômica ou radioativa, é uma ameaça para todos,
trabalhada como ficção, como espetáculo, como política ou como conseqüência da ciência,
ameaça que é exemplar e tornou patente a transformação da relação com a natureza -
inclusive a íntima e individual - como fenômeno global. Como argumentam Giddens e Beck, a
interligação e interdependência no tempo e no espaço transformados das atividades
humanas tornou obsoleta a separação entre natureza e sociedade. A sociedade absorve
completamente o natural quando as decisões humanas implicam a continuidade ou não da
existência da natureza. Os perigos e o medo não advêm mais das forças naturais ‘puras’,
mas das realizações da sociedade industrial. Mesmo o entendimento popular acerca dos
acidentes tecnológicos não se detém em nacionalismos234, e acidentes nucleares são
entendidos como sendo de sistemas globalizados, da tecnologia em si, e não de países em
particular, pois o medo pode ser compartilhado sem (ou além das) fronteiras. Foram
mostrados goianos com medo de vítimas, brasileiros com medo de goianos, todos com medo
do lixo radioativo e do césio 137, perigo porém oficialmente circunscrito a partes de três
bairros na cidade. Poucos não teriam algum medo, não só brasileiros. A lamentável
discriminação que ocorreu aqui, entretanto, não só não é inédita (sobreviventes de Hiroshima
também o foram)235, como é uma espécie de reação recorrente (e complexa) na história
diante de situações desconhecidas, doenças (como a AIDS, mas antes a peste, o cólera, o
câncer), estrangeiros etc.. No Acidente de Goiânia, o medo foi entendido como fruto da
incapacidade das autoridades de tranqüilizarem a população, através de ações claras de
informação, tarefa para a qual foi apontado que não teriam a credibilidade necessária, e da
distorção dos fatos pela imprensa, o que parece até razoável, pois é possível imaginar os
modos de atuação que minimizassem as preocupações populares, embora seja difícil dizer
se tais ações seriam realmente possíveis, numa situação confusa e grave como o acidente
234
Como alegações de especialistas, ingleses e americanos, de que Tchernobyl aconteceu, por um lado, por falhas no projeto
soviético, e por outro, por características culturais que não valorizavam as condutas de segurança. Isso para defender seus
respectivos projetos e condutas de segurança em seus países. (Disaster, série de televisão inglesa sobre desastres, veiculada
pelo canal a cabo GNT-Globosat, em abril/97)
235
VEJA, 02/08/95. Hiroshima 50 anos. Memórias dos Filhos do Clarão
140
236
Durante a Guerra Fria, um filme destinado a treinar as populações para o caso de um ataque nuclear, e que optou por uma
abordagem realista da situação, teve de ser censurado pelas autoridades britânicas, pois era tão apavorante que o seu efeito
nos espectadores era exatamente o contrário do pretendido. Nos EUA, optou-se por desenhos animados, jingles e outros
truques de propaganda para o mesmo treinamento. (The BBC People’s Century, série de televisão, exibido pelo canal a
cabo GNT- Globosat em abril/97).
237
Como as forças econômicas elas próprias, que aqui tiram vantagem da pobreza (pelo barateamento da força de trabalho), da
ignorância (que facilita a dominação política) e da irresponsabilidade (que na economia se confunde com a livre iniciativa).
141
238
Mesmo nos países industrializados, quando deixam de ser pensados como modelos perfeitos e homogêneos, podem ser
encontradas áreas onde ‘atrasos’ são apontados como fatores de risco. Um exemplo são as piores condições de vida dos
negros americanos, na média mais insegura que a dos brancos.
142
Goiânia, do qual seria também uma demonstração. Nós somos atrasados, portanto, tivemos
um acidente como esse. Não foi azar nem obra dos deuses. Mas de certa maneira, o que
ocorreu foi que a consciência desse atraso não é tão anterior ao acidente, mas foi elaborada
por ele - e mesmo que já existisse, o acidente a atualizou e reelaborou em relação a um
outro objeto. O país confrontou-se com as conseqüências indesejadas de haver se
constituído da maneira que se constituiu, politizou e racionalizou suas causas, nomeou-as
como atraso - e, para tanto, foi postulado como projeto, desejo e necessidade o avanço, a
mudança, a transformação em direção à modernidade. Esse processo criou o acontecimento
“Acidente de Goiânia”.
Menos que verificar uma hipótese, para o que, no mínimo se precisaria uma base
empírica maior e mais consistente, a análise aqui proposta procurou dar conta de aspectos
que não só desafiam a sociedade como problema, mas também sobre os quais a sociologia
pouco contribuiu para uma visão menos convencional e crítica. Num mundo de atividades
interligadas, onde o íntimo se conecta ao global, e onde todas as atividades e atos começam
a ganhar a urgência e a radicalidade de colocar o destino do planeta como opção consciente
de um sujeito coletivo, que agora equivale a toda a humanidade, a sociologia está
obviamente colocada diante do desafio de não ser só uma ciência entre as outras, para ter
também um papel no planejamento da sobrevivência (Giddens, 1991: 151-72). O próximo
acidente tecnológico, como o de Goiânia, pode ser o último, para alguém sozinho ou para
todo um país. A sociologia, quem sabe, pode afinal salvar vidas se contribuir para evitá-lo
não procurando, como a técnica, eliminar o erro, controlar e prever o contingente, mas ao
contrário, mostrando que lidar com o contingente, o fortuito, é menos uma questão de
aperfeiçoamento técnico, que sempre pode ser desejável, e mais a necessidade de se
constituir uma sociedade em que um acidente possa ser prevenido porque essa própria
sociedade poderá decidir prescindir de produzir seus maiores perigos, auto-infringidos por
meio desse desenvolvimento técnico: “Talvez a verdadeira sociedade se farte do
desenvolvimento e deixe, por pura liberdade, possibilidades sem utilizar, ao invés de se
precipitar, com uma louca compulsão, rumo a estrelas distantes” (ADORNO, 1992: 138). Tal
proposta, é claro, é utópica, joga contra as probabilidades. Acidentes também, mas não é por
isso que deixam de acontecer. Por menor que seja, essa probabilidade existirá, enquanto for
possível, ao menos, imaginá-la.
143
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Retorno a Hiroshima. Documentário produzido pela BBC/ Entertainment Net. 1990. Dir.:
Edward Goldwin. Exibido pela TV cultura, 2/8/95.
Rádio Bikini. Documentário dirigido por Robert Stone. Exibido pela TV Cultura, 3/8/95.
Crianças de Tchernobyl. Documentário dirigido por Clive Gordon. Exibido pela TV Cultura,
4/8/95.
Globo Ecologia: Césio-137. Programa jornalístico da Rede Globo. Exibido em setembro/93.
The BBC People’s Century. Episódio: Fallout. Série de televisão, prod. BBC. Exibido pela
GNT-Globosat, em abril de 1997
Disaster. Episódio: Meltdown. Série de televisão. Exibido pela GNT-Globosat, em março de
1997.
Grandes mistérios e mitos do século XX. Série de televisão. Episódio: Tchernobyl. Exibido
pelo Discovery Channel, em abril de 1997.