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PAULO GABRIEL HILU DA ROCHA PINTO

Ritual, etnicidade
e identidade
religiosa

PAULO GABRIEL
HILU DA ROCHA
PINTO é professor
do Departamento
de Antropologia e
coordenador do Núcleo
de Estudos sobre o
Oriente Médio (Neom)
da Universidade Federal
Fluminense.

nascomunidades
muçulmanas
no Brasil
Movimentos migratórios, trabalho missionário

e novas tecnologias de comunicação fizeram

com que o Islã se tornasse parte do universo

social e cultural de praticamente todos o países

ocidentais. O Islã representa a segunda maior

comunidade religiosa em países como os EUA

(6 milhões), França (5 milhões), Alemanha (2,5

milhões) e Holanda (500.000). Estudos antro-

pológicos e sociológicos feitos nas comunidades

muçulmanas nos países ocidentais mostram como

identidades islâmicas são localmente produzidas

nessas comunidades diaspóricas. Os resultados

dessas pesquisas revelam a complexa interação

entre fatores sociológicos e culturais locais e o

sistema normativo de doutrinas e práticas islâmicas

que se globaliza através da circulação de pessoas

(imigração, viagens, peregrinação, etc.), textos

e imagens (Haddad, 1998; Haddad & Lummis,

1987; Kepell, 1992, 1997).

O Brasil possui uma grande comunidade mu-

çulmana, com cerca de um milhão de membros,

que foi formada desde o século XIX por diver-

sas levas migratórias do Oriente Médio (Síria,

Líbano, Palestina) e pela conversão de brasilei-


o Islã para a compreensão de fenômenos
religiosos, sociais e políticos em escala
global fazem da comunidade muçulmana
um importante universo de pesquisa para
as ciências sociais no Brasil. Assim, anali-
sarei aqui os processos de construção das
identidades muçulmanas no Brasil dentro
do contexto sociocultural das comunidades
muçulmanas do Rio de Janeiro, Curitiba e
São Paulo, de modo a compreender como
diferentes elementos e processos atuam em
cada uma delas (1).

O ISLÃ ENTRE O UNIVERSALISMO


ros não-árabes. A comunidade muçulmana TEXTUAL E A DISTINÇÃO ÉTNICA:
é quase totalmente urbana, com grandes
concentrações no Rio de Janeiro, São Paulo A SOCIEDADE BENEFICENTE
e Foz do Iguaçu. Essas comunidades apre-
sentam importantes diferenças sociológicas MUÇULMANA DO RIO DE JANEIRO
e culturais entre si. Por exemplo, no Rio de
Janeiro o fluxo migratório recente é muito A comunidade muçulmana do Rio de
menor que nas outras duas comunidades, Janeiro tem seu centro religioso na Socie-
o que torna o processo de reformulação e dade Beneficente Muçulmana do Rio de
criação de identidades muçulmanas muito Janeiro (SBMRJ), que possui uma sala de
mais dependente de elementos culturais orações (musala) em um prédio comercial
locais ou nacionais, enquanto nas outras na Lapa, que serve como mesquita para a
comunidades movimentos islâmicos trans- comunidade local. Essa é a única mesquita
nacionais e um constante contato com o funcionando no Rio de Janeiro, pois, embora
Islã praticado no Oriente Médio constituem exista uma mesquita em Jacarepaguá cons-
importantes fatores no processo de produção truída em estilo “islâmico internacional”,
de identidades islâmicas. Os muçulmanos ela está fechada devido a disputas entre a
dessas comunidades tendem a se concen- liderança da comunidade e o construtor da
1 Os dados etnográficos aqui trar em atividades comerciais, com uma mesquita. No Rio de Janeiro existe ainda
analisados foram recolhidos du-
rante minha pesquisa de campo marcada mobilidade social em direção a o Clube Alauíta, no bairro da Tijuca, que
nas comunidades muçulmanas
do Rio de Janeiro, Curitiba e profissões liberais (medicina, direito, en- serve como espaço de sociabilidade e de
São Paulo entre 2003 e 2005. genharia, etc.). celebrações rituais da comunidade alauíta
Esta pesquisa foi financiada por
uma Bolsa de Recém-Doutor do A maioria dos muçulmanos no Brasil é (2). O contato inicial se deu através do imam
CNPq.
formada por imigrantes árabes e seus des- (líder religioso e ritual) Abdu, que nasceu
2 Os alauítas constituem uma cendentes. No entanto, existe um crescente no Sudão e foi criado no Brasil e cuja edu-
seita esotérica xiita existente na
Síria, Líbano e sul da Turquia. número de brasileiros não-árabes que se cação religiosa foi feita durante o período
Os alauítas não seguem os
pilares rituais do Islã, como convertem ao Islã através de relações pes- que trabalhou na Líbia. A minha presença
as orações diárias nas mes- soais (introduzidos por relações de trabalho, como pesquisador foi bem aceita pelo imam,
quitas, sendo considerados
por muitos muçulmanos sunitas amizade ou casamento) ou do trabalho que já está acostumado com a presença de
como heréticos. Os alauítas do
Rio de Janeiro não costumam
missionário que começa a ser feito por pesquisadores na sua comunidade (embora
freqüentar a SBMRJ. Alguns instituições muçulmanas organizadas em esse fator não seja sem ambigüidades, pois
informantes alauítas apontaram
para as tendências salafis da mesquitas ou confrarias sufis. A importância muitos membros da comunidade se ressen-
instituição como um fator que numérica e social dos muçulmanos no Brasil tem da atitude pouco respeitosa de alguns
os desencoraja a freqüentarem
a SBMRJ. e a relevância de estudos acadêmicos sobre pesquisadores que por lá passaram).

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Desse modo, comecei a freqüentar regu- preocupação de se ensiná-la aos membros
larmente as orações de sexta-feira, quando da comunidade que não têm origem árabe
é feito o sermão semanal (khutbah) para a (e mesmo aos que têm, mas não dominam
comunidade, assim como outras atividades o árabe clássico dos textos religiosos), com
comunitárias como os cursos de árabe e o objetivo de permitir a todos um acesso
de doutrina islâmica e, na ocasião do mês direto aos textos sagrados, em especial ao
sagrado do Ramadan (em outubro naquele Alcorão. No entanto, o universo lingüísti-
ano), as refeições comunitárias para que- co das atividades religiosas, nos sermões,
brar o jejum (iftar). O trabalho de campo cursos, etc., é claramente dominado pelo
se deu através da observação participante uso do português, com exceção de fór-
das práticas religiosas e sociais que têm mulas rituais, como “bismillah al-rahman
lugar na SBMRJ, assim como de entrevistas al-rahim” (“em nome de Deus clemente e
abertas e conversas informais com o imam misericordioso”) ou “salam aleikum rah-
e os membros da comunidade. matu-llah wa barakatu-hu” (“que a paz de
A comunidade muçulmana do Rio de Ja- Deus, a sua misericórdia, a sua graça estejam
neiro é bastante pequena se comparada com com vocês”), mostrando a construção de
as existentes em São Paulo, Mato Grosso ou um espaço religioso integrado ao universo
Paraná, tendo cerca de 5.000 membros afi- lingüístico e, em certa medida, à cultura
liados formalmente à SBMRJ. No entanto, local. Mesmo os versos do Alcorão citados
a comunidade do Rio de Janeiro apresenta em árabe durante o sermão de sexta-feira
uma interessante particularidade, pois é são imediatamente seguidos da sua tradução
uma das poucas comunidades muçulmanas em português.
no Brasil cujos membros não são majorita- Da mesma forma, existe a preocupação
riamente de origem árabe, mas constituem em produzir textos explicativos sobre o Islã
um conjunto multicultural e multiétnico em português tanto para a socialização de
de árabes e seus descendentes, africanos novos convertidos no universo doutrinal e
(muitos são estudantes no Brasil, além de ritual da religião, quanto para a divulgação
imigrantes) e brasileiros convertidos de do Islã na sociedade mais ampla. É interes-
outras tradições religiosas. Os árabes e seus sante notar que, ao contrário do que pude
descendentes constituem cerca de 40% dos observar entre os muçulmanos freqüentado-
membros da comunidade, sendo a maioria res de páginas da Internet islâmicas, o uso de
dos demais brasileiros de diversas origens textos doutrinais ou explicativos em inglês,
que se converteram ao Islã, existindo um produzidos pelas comunidades muçulmanas
significativo contingente de africanos e nos EUA, na Europa, ou mesmo no Oriente
seus descendentes (Montenegro, 2002). Em Médio, era muito limitado entre os membros
termos socioeconômicos a grande maioria da SBMRJ uma vez que poucos tinham um
dos membros da comunidade é composta de bom domínio dessa língua. Assim, embora
pequenos comerciantes, geralmente na área essa comunidade tenha questões estruturais
do Saara no centro do Rio, ou empregados no muito próximas das outras comunidades
comércio, havendo um pequeno número de da diáspora muçulmana, o consumo de
estudantes universitários e de profissionais discursos islâmicos globalizados em inglês,
liberais (advogados, veterinários, etc.). que moldam o universo doutrinal das co-
O caráter multiétnico da comunidade no munidades européias e americanas, é feito
Rio de Janeiro faz com que as identidades de forma muito indireta, embora muitos
muçulmanas construídas e veiculadas por pontos em comum com esse “Islã angló-
ela tenham uma relação bastante complexa fono” (Haddad, 1998; Haddad & Lummis,
com a tradição cultural e lingüística árabe 1987) apareçam nos discursos e textos em
e com as realidades sociais e culturais do português produzidos por ela.
Brasil. A língua árabe é valorizada como Porém, o valor simbólico da língua e da
elemento constitutivo, mas não determi- identidade árabe faz com que elas sejam
nante, da identidade muçulmana. Existe a usadas como sinal de distinção religiosa

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dentro da comunidade. Durante os momen- seu self. Tal reconstrução e apresentação
tos de socialização que se seguem aos rituais do self foi constituída através do processo
religiosos é comum ver os falantes do árabe pessoal que o levou a se casar em segundas
usarem esse idioma nas suas interações, núpcias com uma marroquina que usa o
demarcando uma fronteira étnica que os véu islâmico (hijab) após se separar de sua
separa dos demais membros da comunidade. primeira esposa, uma brasileira não-muçul-
Os descendentes de árabe que não falam mana. Porém, apesar da ênfase na perfor-
a língua costumam ser alvo de suaves re- mance moral como arena de legitimação
preensões jocosas que reforçam o valor da da autoridade religiosa, o papel de Abdu
língua como diacrítico cultural constituinte como “mediador cultural” (Antoun, 1989;
da fronteira étnica. Além disso, é bastante Gaffney, 1994) entre a tradição religiosa
significativo que todas as posições de poder do Islã e a realidade cotidiana é constan-
e status dentro da comunidade sejam ocu- temente contestado por vários membros
padas por falantes de árabe, demarcando falantes do árabe na comunidade. Estes
claramente uma hierarquia étnica dentro da reivindicam a capacidade de perceber as
comunidade. O próprio imam, apesar de geo- deficiências presentes nas interpretações
graficamente originário da África (Sudão), de Abdu por poderem ter acesso ao texto
define-se etnicamente como árabe. corânico na língua original, o que mostra
O imam Abdu legitima sua posição como uma disputa dentro do grupo de falantes de
imam, em parte, devido à sua origem árabe árabe por prestígio e autoridade religiosa a
que, em princípio, lhe garante um domínio partir do controle sobre os significados do
lingüístico da tradição textual do Islã. Isso texto sagrado.
fica evidente pelo fato de ele não possuir Apesar da relação entre hierarquia e
formação religiosa que lhe garanta o título de etnicidade árabe na divisão do trabalho
shaykh, tendo feito apenas estudos religio- religioso na SBMRJ, o discurso público de
sos gerais na Líbia. Também é significativo seus líderes enfatiza as atividades voltadas
que ele tenha gradualmente enfatizado cada à divulgação do Islã e à incorporação dos
vez mais a integração entre sua identida- convertidos dentro da comunidade, o que
de cultural árabe, diacríticos identitários se reflete na importância que as atividades
muçulmanos e a performance moral de pedagógicas, como os cursos sobre Islã ou
valores construídos como essencialmente “cultura muçulmana”, possuem no conjunto
islâmicos através de uma reconfiguração das práticas comunitárias. Os cursos sobre
de sua vida pessoal e, implicitamente, de Islã tendem a focalizar os desafios que as
práticas culturais e sociais brasileiras colo-
cam para os muçulmanos, principalmente os
convertidos ou os recém-imigrados, tocando
questões como o uso do véu, a proibição do
consumo de álcool e da carne de porco, e
a interação social com amigos e familiares
não-muçulmanos. É interessante notar que
esses temas são entremeados com outros de
âmbito global, como a imagem do Islã e dos
muçulmanos na mídia, que geralmente é
percebida como hostil ao Islã (Montenegro,
2002), os conflitos no Oriente Médio, ou os
ataques terroristas de 11 de setembro. Tal
confluência de elementos locais e globais
mostra as várias dimensões das identidades
muçulmanas, que são construídas através
da intercessão de diversos universos discur-
sivos e práticos: Islã, mídia internacional,

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mundo muçulmano, sociedade brasileira, submetidos à mesma disciplina religiosa.
interações sociais locais. Da mesma forma, essa forma “objetifica-
É importante ressaltar que as identida- da” do Islã cria novas possibilidades para
des muçulmanas veiculadas pela SBMRJ atrair convertidos que não possuem origem
não se constituem apenas pelo contraste muçulmana, pois permite a codificação das
com universos discursivos e práticos não- práticas e doutrinas islâmicas em termos de
muçulmanos, mas também pelo contraste uma moral universal. Um exemplo disso é a
entre as diversas tradições islâmicas que prática de caridade e trabalho social desen-
informam os membros da comunidade de volvida pela SBMRJ junto a comunidades
acordo com a sua origem. Uma vez que essa carentes do Rio de Janeiro. Tais atividades
comunidade é exclusivamente sunita, as não são acompanhadas de atividades mis-
diferenças nas práticas rituais, nas crenças sionárias explícitas, mas são entendidas
e nos discursos doutrinais tornam evidente pelos membros da comunidade através do
o problema dos filtros culturais e sociais conceito tradicional de tabliq (divulgação
na compreensão e na prática do Islã. Uma do Islã através de obras), cujo engajamento
vez que a tradição dominante na SBMRJ é social e fervor na ajuda ao próximo são
a da Salafiyya, um movimento reformista vividos como a realização das bases morais
surgido no século XIX que prega a volta a do Islã. Essa prática teve seus resultados
um “Islã original” que estaria codificado no evidentes na conversão de um grupo de
Alcorão e na Hadith (coleção de tradições cerca de 20 homens no Morro do Turano,
do Profeta), essas diferenças são percebi- que foram atraídos pelo universalismo e
das como bida (inovações condenáveis), empenho moral mostrados pelos muçulma-
ou seja, desvios do “verdadeiro” Islã que nos (que, segundo um informante, estavam
devem ser corrigidos. empenhados na ajuda de não-muçulmanos
Assim, os líderes religiosos da SBMRJ e não estavam pregando ou impondo a sua
são bastante críticos das outras tradições religião à deles).
muçulmanas como o sufismo, o culto aos No entanto, essa forma de compreensão
santos ou o xiismo, procurando evitar que e prática do Islã cria tensões com os adeptos
os membros da comunidade caiam em tais de outras correntes dentro da tradição islâ-
“desvios”. Desse modo, é possível dizer mica, que vêem a Salafiyya como superfi-
que o caráter multicultural da comunidade cialidade textual, intolerante e excludente.
do Rio de Janeiro criou uma consciência Também entrei em contato com um grupo
das diferenças doutrinais e práticas entre sufi naqshbandi, cujo shaykh (iniciado) foi
as diversas tradições islâmicas, levando à iniciado na Turquia e na Síria, e que conta
busca do “verdadeiro” Islã dentro de um com cerca de 15 fiéis. Embora o shaykh não
quadro de referências de reforma religiosa freqüente a SBMRJ, uma vez que sente a
centrada na tradição textual islâmica. Assim, sua autoridade religiosa negada pelo dis-
os mecanismos disciplinares (Asad, 1993, curso dominante da comunidade, ele faz
pp. 130-5) desenvolvidos pelas autoridades questão de que os seus discípulos o façam
religiosas da SBMRJ (sermões, cursos, para que “tenham uma boa formação na
textos normativos, etc.) produziram um doutrina exotérica (zahiri) do Islã”, como
processo de “objetificação” (Eickelman & afirmou ele. Os discípulos concordam que
Piscatori, 1996, p. 48) da tradição islâmica, a ênfase nos textos e nos princípios da lei
criando um sistema religioso “purificado” islâmica são importantes, mas afirmam que
de práticas culturais e sociais, que passa a isso é um estágio superficial do Islã, e que
servir como referência normativa consciente o desenvolvimento moral dos muçulmanos
para a vida do fiel. deveria incluir a busca do contato místico
Esse Islã “objetificado” facilita a inte- com Deus. É interessante notar que, embora
gração de convertidos na comunidade, uma no Rio de Janeiro o espaço da mesquita
vez que relega as diferenças culturais para tenha se estruturado a partir de práticas
um segundo plano e todos passam a ser e discursos excludentes e objetificados

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ligados à Salafiyya, ele apresenta áreas de Chile permitiu ao shaykh Mahdi desenvol-
intercessão com outras tradições islâmicas ver estratégias para lidar com os desafios
como o sufismo. colocados pela realidade latino-americana
Podemos concluir dizendo que as e pelas interações entre sunitas e xiitas na
identidades muçulmanas na SBMRJ são mesma comunidade, as quais o prepararam
construídas através de mecanismos dis- para as questões que encontrou no Brasil.
ciplinares argumentativos (Whitehouse, Na comunidade de Curitiba as conversas
2000, pp. 34-44), ou seja, discursos e textos e entrevistas eram quase sempre feitas em
normativos, cujo objetivo é criar um Islã árabe ou em uma mistura de árabe com por-
objetificado e universal cujos pressupostos tuguês (o registro lingüístico sendo mudado
culturais e sociais não sejam perceptíveis. conforme o assunto tratado, sendo o árabe
A integração da comunidade na sociedade usado para discutir assuntos religiosos ou
mais ampla se dá através da releitura de culturalmente significados como “importan-
valores sociais difusos em termos de con- tes” e o português para descrever anedotas
ceitos religiosos islâmicos, por exemplo, a prosaicas da comunidade).
solidariedade social é praticada dentro do A comunidade de Curitiba está organi-
quadro da tabliq. zada desde a década de 50 com a criação
da Sociedade Muçulmana. Shaykh Mahdi
ressaltou em uma entrevista que “a comu-
nidade de Curitiba foi muito inteligente
ETNICIDADE COMO SUPERAÇÃO em primeiro criar um clube e depois se
preocupar em construir a mesquita, pois
DO SECTARISMO: A COMUNIDADE o clube permite a integração das famílias
e, principalmente, mantém a juventude
MUÇULMANA DE CURITIBA unida e interessada no Islã. Se os jovens
muçulmanos não fizerem atividades juntos
A comunidade muçulmana de Curitiba e acharem que o Islã é apenas rezar na mes-
mostra um quadro comparativo bastante quita e seguir as regras da religião, eles vão
interessante. As atividades de pesquisa acabar se desinteressando em serem bons
foram desenvolvidas em várias visitas muçulmanos”. É interessante notar que,
feitas à comunidade, em março, junho, ao contrário da comunidade carioca, que
julho e setembro de 2003. A comunidade se estrutura em torno da prática pública da
de Curitiba reúne cerca de 3.000 famílias religião, a comunidade de Curitiba estrutura
(15.000 pessoas) afiliadas à mesquita Imam as suas identidades a partir de um espaço
Ali Ibn Abu Talib (construída em 1977 de sociabilidade informal, mostrando a
em estilo “oriental” ou, melhor dizendo, importância da transmissão de pressupostos
“internacional islâmico”, com minaretes, culturais compartilhados na construção das
arcos em ferradura e cúpula) e à Sociedade suas identidades religiosas.
Muçulmana, que é ao mesmo tempo um Embora a comunidade de Curitiba tenha
clube social e uma instituição beneficente. um caráter árabe bastante marcado, ela apre-
A comunidade é composta quase que exclu- senta uma importante divisão sectária, pois
sivamente de imigrantes sírios, libaneses, metade dela é composta de sunitas e metade
palestinos e egípcios e seus descendentes, de xiitas. A crescente presença dos xiitas se
e é liderada por um shaykh xiita nascido no fez sentir desde os anos 70, quando a Guerra
Líbano, o shaykh Mahdi. Shaykh Mahdi teve Civil Libanesa e a invasão e ocupação is-
a sua formação religiosa no Líbano e antes raelense do sul do Líbano intensificaram o
de assumir a liderança da comunidade de movimento migratório dos xiitas libaneses.
Curitiba foi shaykh da comunidade muçul- A mesquita da comunidade foi construída
mana de Santiago do Chile, a qual, segundo como uma mesquita sunita em 1977 e assim
ele, “era composta quase totalmente de permaneceu até 1986, quando o governo do
libaneses e palestinos”. Essa experiência no Irã, na sua política de disputar com a Arábia

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Saudita o financiamento e o controle do xiita (uma vez que este estará entre o fiel
Islã internacional, passou a dar importantes e a direção de Meca), não é seguida na
doações para a mesquita e, logo, passou a mesquita de Curitiba, onde xiitas e suni-
ter o direito de escolher o seu shaykh, que tas se misturam livremente para formar
passou a ser um xiita. A presença do Irã as fileiras de orantes. Do mesmo modo,
é imediatamente sentida no belo mihrab o adhan (chamado de oração) não inclui
(nicho que marca a direção de Meca) de um trecho usado somente pelos xiitas, que
mosaicos de azulejos em estilo persa, com eleva Ali (genro e sucessor de Maomé) ao
a inscrição em português e árabe “Presente nível do profeta.
da República Islâmica do Irã, 1996”. No nível doutrinal a superação das
Segundo shaykh Mahdi, o zelo em di- diferenças sectárias implica um certo grau
vulgar o xiismo revolucionário e militante de objetificação do Islã, uma vez que este
apoiado pela República Islâmica do Irã denominador comum é buscado consciente-
alienou os sunitas da comunidade e a Guerra mente principalmente no texto do Alcorão.
Irã-Iraque acirrou o conflito entre sunitas No entanto, ao contrário do que se pode
e xiitas a ponto de a comunidade estar em observar na comunidade do Rio de Janeiro,
perigo de se fragmentar ou dissolver. Nas esse processo se baseia menos na criação de
palavras do shaykh Mahdi, “foi uma época um sistema religioso consciente, integrado
muito difícil, para você ter uma idéia a escola e destacado das práticas cotidianas, que
islâmica que tinha sido criada junto com a na criação de um consenso interpretativo
Sociedade Muçulmana fechou por impos- baseado em pressupostos compartilhados
sibilidade de consenso sobre o conteúdo sobre as doutrinas e as práticas do Islã.
do currículo religioso”. Ainda segundo o Tal estratégia permitiu a incorporação de
shaykh, o quadro só começou a mudar com valores e práticas do universo cultural
o seu antecessor, que apagou a militância árabe como parte constituinte do sistema
político-religiosa de seu discurso, assim religioso, ao contrário do que ocorreu na
como retirou da mesquita todos os símbo- comunidade do Rio de Janeiro. Tal processo
los políticos ou sectários, como retratos do levou a uma “etnificação” do Islã como uma
Ayatollah Khomeini ou imagens das figuras “religião dos árabes no Brasil”, criando um
sagradas do xiismo. Assim, uma identidade universo religioso autocentrado, resistente
muçulmana supra-sectária começou a ser à incorporação de novos membros e à sua
construída através da ênfase nos elementos integração na sociedade mais ampla. Com
doutrinais e práticos compartilhados por efeito, shaykh Mahdi confirmou que a co-
sunitas e xiitas. munidade não possui nenhuma estratégia
Atualmente, embora as diferenças rituais missionária ou de tabliq, nem de integração
entre sunitas e xiitas apareçam nas orações dos poucos convertidos. Na verdade esses
coletivas, elas são entendidas e integradas convertidos, que geralmente são estudantes
como variações dentro de um espectro de universitários que entraram em contato com
práticas legítimas. Na mesquita, tabletes de o Islã através de seus estudos, enfrentam
argila (geralmente feitos com o solo sagrado uma grave e poderosa barreira lingüística
de Karbala, no Iraque) ficam disponíveis em na comunidade, uma vez que o ritual, os
uma caixa para que a cabeça toque algum sermões e boa parte das conversas são feitos
material natural durante a oração. Os su- em árabe, havendo poucos momentos em
nitas não possuem tal obrigação. Uma das que são acompanhados de uma tradução
conseqüências de tal esforço integrativo para o português. Do mesmo modo, os
é a tendência a minimizar ou abandonar textos explicativos e normativos usados
os mecanismos de demarcação e exclusão para socializar os mais jovens no universo
usados pelos grupos sectários para marcar religioso são escritos em árabe por especia-
a sua identidade. Assim, a regra de pureza listas religiosos no Oriente Médio.
ritual exigida pelo xiismo, segundo a qual A preocupação em reforçar e reprodu-
um xiita não pode rezar atrás de um não- zir a comunidade através da socialização

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membros através da conversão. A relação
da comunidade de Curitiba com a sociedade
brasileira segue uma dinâmica de “enclave
étnico-religioso”, parecida com a das comu-
nidades judaica ou armênia no Brasil, por
exemplo, o que não impede que a integração
com o universo cultural e social local seja
bastante profunda em outros domínios da
vida dos membros da comunidade (trabalho,
amizades, etc.).

DIVERSIDADE IDENTITÁRIA E
das novas gerações, em contraste com a
incorporação de novos membros, ficou PLURALISMO INSTITUCIONAL: A
clara nas discussões sobre a necessida-
de de se reabrir a escola muçulmana. O COMUNIDADE MUÇULMANA DE
proponente da proposta, apresentada em
árabe e português logo após o sermão do SÃO PAULO
shaykh Mahdi, um professor da PUC-PR,
que também é membro da comunidade, A cidade de São Paulo e seus arredores
argumentou que a abertura da escola, nas apresentam um contexto único de consti-
suas palavras, “é um passo fundamental tuição identitária no quadro mais amplo do
para a nossa comunidade, pois se não edu- Islã no Brasil, pois, dada a forte presença
carmos os nossos filhos com os valores da demográfica (3), a diversidade étnica e
religião e se eles não ficarem unidos, em religiosa e a multiplicidade de instituições,
breve isso aqui [a mesquita] será um mu- ela possui diversos níveis e formas de per-
seu onde as pessoas dirão: ‘aqui é onde os tencimento comunitário.
muçulmanos rezavam’” (grifos meus). Esta
fala mostra como, para os membros e para
a liderança da comunidade de Curitiba, a A mesquita “catedral”:
reprodução da identidade muçulmana não
passa apenas pelo conhecimento do Islã, a Mesquita Brasil
3 Na falta de números precisos mas pela manutenção de laços de sociabi-
ou, mesmo, confiáveis, con- lidade baseados em pressupostos culturais A Mesquita Brasil, na Avenida do Esta-
sidero legítimo supor, a partir
da projeção demográfica dos compartilhados. Podemos concluir dizendo do, embora coexista com outras instituições
números de membros referentes
às comunidades muçulmanas que as identidades muçulmanas da comuni- com ambições de centralização em relação
onde realizei atividade de dade de Curitiba são construídas sobre um à vida religiosa da comunidade muçulmana,
pesquisa, que existam cerca
de 250.000 muçulmanos denominador comum de doutrinas e rituais tais como o Centro de Divulgação do Islã
na região da Grande São
Paulo, constituindo 25% dos
parcialmente objetificados, mas englobados para a América Latina (4), constitui um
muçulmanos no Brasil. por pressupostos conceituais e práticos espaço usado para celebrações e eventos
4 O Centro de Divulgação do identificados com o universo cultural comunitários que ultrapassam os limites
Islã para a América Latina
tem sede em São Bernardo árabe. Isso faz com que os rituais comuns das práticas e rituais religiosos. Assim, mais
do Campo e constitui um dos tenham mais importância que os discursos que um edifício ou um centro religioso, a
principais centros de produção
e tradução de textos doutrinais doutrinais na produção da solidariedade Mesquita Brasil constitui um símbolo da
e de divulgação do Islã. Essa
instituição também controla
coletiva na comunidade. Por outro lado, presença muçulmana em São Paulo, articu-
a distribuição de bolsas de tais mecanismos de produção identitária lando os membros de diferentes instituições
estudos para a Universidade
Islâmica de Medina, assim levam a uma “etnificação” da comunidade muçulmanas em uma comunidade muçul-
como de bolsas para realizar muçulmana, levando a um desinteresse e mana imaginada em dimensões regionais
a peregrinação a Meca (hajj),
um dos cinco pilares do Islã. mesmo resistência à incorporação de novos ou, como indica o seu nome, nacionais.

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A Mesquita Brasil está ligada à mais de maioria sem véu e usando vestidos de
antiga instituição muçulmana do Brasil, a baile, estavam sentados diante da audiência
Sociedade Beneficente Muçulmana, fun- formada por familiares e amigos. Todos
dada em 1929 (5). A mesquita começou a ouviram um discurso em árabe do shaykh
ser construída em 1929 e foi ampliada e ressaltando a importância da educação como
reformada em estilo “neomameluco” em forma de integração e sucesso social, assim
1956. O exterior do edifício branco com como de manutenção dos valores islâmicos
um alto minarete e o seu interior decorado e da língua árabe nas gerações mais novas
com painéis pintados com arabescos ca- de muçulmanos no Brasil.
racterísticos das estampas egípcias evocam Após a entrega dos diplomas, todos des-
a arquitetura religiosa do Oriente Médio ceram para um jantar de confraternização
contemporâneo, assim como um passado no andar térreo do salão da mesquita. Havia
imaginário da “época de ouro” do Islã. uma longa mesa com diversas comidas da
A mesquita tem uma comunidade própria culinária síria e libanesa, sucos e refrigeran-
com 1.680 membros, além de 50 alunos tes, em torno da qual mesas menores foram
registrados nas aulas de árabe e religião. colocadas para as diversas famílias. Embora
Essas aulas são destinadas principalmente a proibição do álcool tenha sido observada,
aos novos convertidos, embora sejam aber- códigos de vestimenta e de segregação se-
tas aos não-muçulmanos, constituindo um xual que são valorizados pela interpretação
importante canal de conversão ao Islã. A azhariana do Islã foram deixados de lado
influência da Mesquita Brasil ultrapassa em em prol da confraternização comunitária.
muito os limites da comunidade formalmente Durante a confraternização as interações
ligada a ela, uma vez que muitas pessoas de verbais eram feitas em árabe e/ou português,
outras comunidades muçulmanas freqüen- com as gerações mais novas usando uma
tam as orações e, principalmente, o sermão mistura dos dois idiomas ou passando de
de sexta-feira nela. Isso é expresso no fato de um ao outro de acordo com o assunto e o
que essa mesquita possui diversos shaykhs status de seu interlocutor.
especializados em cada uma das atividades Um contraste revelador das especifi-
religiosas que compõem a liderança da co- cidades das atividades “comunitárias” em
munidade (liderança das orações, ensino, relação àquelas estritamente “religiosas”
sermão, consultas morais, etc). Os shaykhs é o fato de que, ao mesmo tempo que a
dessa mesquita são todos oriundos da Uni- cerimônia de formatura se desenrolava no
versidade Al-Azhar, a instituição de estudos salão, dentro da mesquita acontecia uma
religiosos mais prestigiosa do mundo sunita, aula de religião em árabe com tradução para
seja da sua sede no Cairo ou de sua filial em português para os convertidos brasileiros,
Beirute, ou da Universidade Islâmica de na qual as mulheres usavam o hijab (véu) e
Medina, na Arábia Saudita. se sentavam separadas dos homens.
Um exemplo etnográfico mostra bem É claro que a divisão das atividades
como a Mesquita Brasil constitui um espaço na Mesquita Brasil entre “comunitárias” e
comunitário que ultrapassa as suas funções “religiosas” não deve ocultar o fato de que
estritamente ligadas ao ritual religioso. ambas visam à produção e reprodução da
Em dezembro de 2004 pude presenciar a identidade muçulmana dos participantes.
celebração da festa de formatura da turma Porém, atividades que aconteceriam em
de pré-vestibulandos da Escola Islâmica de lugares distintos nas sociedades do Oriente
São Paulo. A cerimônia começou com uma Médio são reunidas no espaço da Sociedade
oração na mesquita, da qual algumas pes- Beneficente Muçulmana, mostrando como 5 Na verdade essa instituição
soas, na sua maioria homens, participaram, as identidades muçulmanas no Brasil se foi fundada em 1927 como
Sociedade Beneficente Muçul-
seguida da entrega dos diplomas no andar definem tanto por valores religiosos quanto mana Palestina e refundada
como Sociedade Beneficente
superior do salão adjacente à mesquita. por hábitos culturais e formas de sociabili- Muçulmana em 1929, de modo
Na cerimônia de entrega dos diplomas, os dade associados às culturas das sociedades a incorporar o crescente número
de imigrantes muçulmanos de
alunos, de terno e gravata, e alunas, a gran- do Oriente Médio. origem síria e libanesa.

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tária do xiismo transnacional. O edifício
Entre a identidade árabe e o da Mesquita do Brás segue um modelo da
“arquitetura islâmica” contemporânea, com
universalismo xiita: a mesquita referências estilizadas a um passado comum
às mesquitas contemporâneas. Porém, no
xiita do Brás lugar da arquitetura mameluca, a arquite-
tura persa da época safávida (século XVI-
A Mesquita Muhamad Raçulullah (trans- XVIII) aparece como marca diacrítica de
literação aportuguesada de Muhammad um passado reimaginado pela comunidade,
Rasul Allah – Maomé, o Profeta de Deus), o que reproduz no espaço e no imaginário
também conhecida como Mesquita do Brás, estético a diferença entre o internacionalis-
é o centro religioso da comunidade xiita de mo sunita e o xiismo transnacional, ambos
São Paulo, que conta com cerca de 20.000 fruto de longos processos históricos que
membros. Embora somente uma fração desembocam e se articulam às presentes
destes, cerca de 3.000, seja efetivamente afi- globalizações e diásporas comunitárias. A
liada à mesquita, ela funciona como símbolo arquitetura da Mesquita do Brás revela um
institucional da identidade xiita dentro da processo de “persianização” da imaginação
comunidade muçulmana. Essa comunidade religiosa das comunidades xiitas ao redor
xiita é liderada pelo shaykh Said Hassan do mundo através de elementos estéticos e
Ibrahim, natural de Nabatiya, no sul do imagísticos que conectam o xiismo transna-
Líbano, mas tendo sido criado em Beirute cional com a história religiosa e cultural do
e cujos estudos religiosos foram feitos em Irã. Esse processo é ativamente promovido
Qom, no Irã. A mesquita fica na Rua Elisa pela República Islâmica do Irã, que financia
Whitaker, no centro do setor de comércio a construção ou reconstrução de mesquitas
têxtil do bairro do Brás, o qual é em boa parte e lugares sagrados (6).
dominado por comerciantes muçulmanos e Assim, o exterior da mesquita, visível
por seus concorrentes coreanos. A força de por trás dos muros que a cercam, combina
trabalho nas lojas atacadistas, em sua maioria os arcos ogivais, a cúpula em gota e a deco-
propriedades de muçulmanos, é basicamente ração com mosaicos de azulejo, elementos
nordestina, enquanto nas confecções, majo- característicos da arquitetura clássica persa.
ritariamente controladas pelos coreanos, os No interior da mesquita a influência irania-
trabalhadores são principalmente imigrantes na fica ainda mais evidente, pois o amplo
ilegais bolivianos. Essa diversidade étnica espaço recoberto pela cúpula é recoberto
e religiosa dos empresários e trabalhadores por dez grandes tapetes persas que portam
envolvidos na produção e no comércio têxtil a inscrição bilíngüe – em árabe e inglês
aparece nas diversas instituições religiosas – “Presented by the Islamic Republic of
e espaços comunitários que demarcam a Iran to the São Paulo Mosque”. O mirhab
paisagem urbana do Brás. Assim, esse bairro é ladeado por dois painéis de azulejos ira-
concentra três instituições muçulmanas, a nianos decorados com a inscrição “la ilah
mesquita xiita e a Mesquita Salah al-Din e ila Allah” (“não há deus além de Deus”), a
a Liga da Juventude Islâmica, ambas suni- primeira parte da shahada, a profissão de fé
tas, além do Centro de Cultura Boliviana e islâmica. As paredes brancas da mesquita
6 Esse investimento do Estado diversos bares e forrós que congregam os são decoradas apenas com inscrições pin-
iraniano é evidente na Síria,
onde lugares sagrados ligados migrantes nordestinos. tadas com os nomes de Muhammad, Ali,
à história sagrada do xiismo Dentro desse contexto de pluralismo Hassan e Hussein, o profeta e seus descen-
foram reconstruídos de modo
a exibirem um caráter religioso étnico e religioso, a mesquita xiita aparece dentes, que constituem figuras sagradas na
marcadamente xiita (muitos
lugares, como o túmulo de
como um espaço de construção, afirma- tradição xiita, e por um painel de azulejos
Saiyda Zaiynab em Damasco, ção e manutenção de uma identidade que iranianos com um texto em árabe que in-
foram historicamente constituí-
dos como centros religiosos combina elementos diaspóricos religiosos formava que a mesquita foi um presente da
com forte presença sufi) e uma (a umma do Islã globalizado) e étnicos (a República Islâmica do Irã aos muçulmanos
imagística ligada à arte e à
iconografia persa. diáspora libanesa) com a afirmação sec- do Brasil.

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Na parede oposta ao mirhab fica um no que eles definem como o “Islã oficial”
enorme quadro, pintado por um artista (7), significando a interpretação religiosa
iraniano radicado no Rio de Janeiro, re- favorecida pela República Islâmica do Irã,
presentando a batalha de Karbala, episódio que serve de referência intelectual para o
ocorrido em 680 A.D. entre Hussein e seus shaykh Said.
seguidores e as tropas do califa Yazid, que O elemento mais recorrente nos dis-
terminou na derrota e no martírio daque- cursos dos iranianos como um fator de
les, marcando a separação definitiva entre afastamento deles em relação à comuni-
os xiitas – seguidores de Hussein – e os dade xiita da Mesquita do Brás é o caráter
sunitas, que aceitavam que a liderança dos marcadamente árabe dessa comunidade.
muçulmanos poderia ser dada a pessoas Segundo os meus informantes iranianos,
não relacionadas ao profeta. A presença o uso do árabe como contexto lingüístico
conspícua de representações iconográficas – tanto no sermão de sexta-feira quanto
de episódios da história sagrada do xiismo na maior parte das interações verbais da
mostra novamente a força do imaginário comunidade – cria uma barreira simbólica
religioso construído a partir do xiismo que marginaliza os não-árabes da comuni-
iraniano, o qual tem uma longa tradição dade e afirma o caráter étnico (árabe) da
de iconografia religiosa. O caráter xiita da mesma. Essa questão também é recorrente
mesquita também é marcado pela presença nos discursos dos poucos convertidos que
de caixas com tabletes feitos com argila de não possuem origem árabe, os quais se
Karbala, que fica no atual Iraque, as quais queixam da falta do que alguns definiram
são usadas pelos fiéis para apoiar a cabeça como “espaço de integração” a partir do
durante a oração, fazendo com que todas as qual eles possam se inserir totalmente na
orações sejam feitas, simbólica e fisicamen- comunidade xiita.
te, sobre o solo sagrado de Karbala. Embora a Mesquita do Brás oficialmente
A comunidade da mesquita é composta esteja voltada para a divulgação do Islã na
quase que exclusivamente por libaneses sua vertente xiita na sociedade brasileira,
e seus descendentes, sendo a identidade os esforços para tal e, mesmo, o interesse e
árabe um elemento central na sua consti- investimento na integração dos convertidos
tuição como comunidade étnico-religiosa. parecem ser bastante escassos. O shaykh
Embora a pequena comunidade iraniana Said lidera um curso sobre o Islã dirigido
de São Paulo também tenha a Mesquita do aos convertidos na quinta-feira à tarde, antes
Brás como instituição e espaço referencial da oração do maghrib (pôr-do-sol). Porém,
para a sua identidade religiosa como mu- alguns dos alunos do curso se queixaram que
çulmanos xiitas, os iranianos quase não recentemente a continuidade das aulas do
freqüentam as atividades rituais, como as curso tem sido prejudicada pela precedência
orações diárias, ou comunitárias, como dada pelo shaykh às questões administra-
reuniões ou confraternizações, realizadas tivas ou ligadas à comunidade libanesa.
regularmente nela. A presença iraniana só A presença numérica dos convertidos na
se torna visível nas celebrações importantes comunidade xiita é praticamente insignifi-
do calendário religioso xiita, tais como a cante, contando com cerca de 40 pessoas. Os
’Ashura. Tal distanciamento dos iranianos é convertidos, dos quais encontrei 10 no curso
surpreendente à primeira vista tendo visto o da mesquita, apontaram diversos motivos
fato de que o shaykh Said teve sua formação para a sua conversão ao Islã e, em particular,
religiosa no Irã. Porém, alguns iranianos à sua vertente xiita. Os motivos apontados
com os quais conversei indicaram que a podem ser classificados em três grupos:
ligação intelectual do shaykh com o Irã não a) motivações ideológicas; b) motivações
7 Para a desilusão social e
constitui um elemento de atração. Muitos pessoais; c) motivações religiosas. política e a indiferença e in-
dividualização religiosa que
deles deixaram o Irã desiludidos com os Alguns convertidos me disseram que marcam a sociedade iraniana
rumos políticos e econômicos da Repúbli- foram atraídos ao Islã xiita pelo seu papel contemporânea ver: Adelkhakh,
2000; Roy & Khosrokhavar,
ca Islâmica e não vêem maiores interesses na luta contra o imperialismo norte-ameri- 1999.

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cano e na defesa da autodeterminação dos e sua família, se “convertendo” ao xiismo
povos, assim como por sua mensagem de há três anos. Esse processo de “migração
solidariedade, igualdade e justiça social. sectária” é reforçado e, mesmo, legitimado
Para eles o Islã reúne as características de pelo discurso dominante entre sunitas e
uma religião e uma ideologia política den- xiitas de que o Islã é unitário e as divisões
tro de uma perspectiva terceiro-mundista sectárias não devem ser valorizadas. Porém,
que também pode ser encontrada entre as identidades sectárias são valorizadas na
os adeptos da Teologia da Libertação no prática, demarcando posições na disputa
catolicismo latino-americano. A Revolu- pelo poder de definição do “verdadeiro” Islã
ção Iraniana e a resistência do Hizbollah à e funcionando como arenas de validação e
ocupação israelense do Líbano são alguns legitimação de diferentes práticas e formas
dos exemplos citados por esses convertidos de subjetificação religiosa.
para explicar sua opção pelo xiismo, que Por exemplo, o dono de um açougue
consideram mais “puro” e “revolucionário” halal (lit. “permitido”, neste contexto sig-
que o sunismo. Outros convertidos, três dos nifica a carne cujo abate foi feito segundo
alunos que freqüentavam o curso da mes- os preceitos rituais islâmicos), perto da
quita, me disseram que foram introduzidos Mesquita Salah al-Din, ao ver que eu e
ao Islã por amigos ou colegas de trabalho uma informante que se convertera ao Islã
que eram muçulmanos xiitas. Segundo eles, na Mesquita do Brás, mas agora freqüenta
após algumas visitas à mesquita e conversas a mesquita sunita, vínhamos da direção da
com muçulmanos, ficaram impressionados mesquita xiita, comentou durante uma curta
com a solidariedade e o respeito mútuo conversa: “É bom que eles [na mesquita
de inspiração religiosa que os membros sunita] não saibam de onde vocês vêm.
demonstravam uns em relação aos outros, Senão eles não vão gostar”, mostrando que
e se converteram ao Islã. Por fim quatro existe uma aguda consciência das identi-
membros do curso disseram que se interes- dades sectárias e de suas fronteiras. Entre
saram pelo Islã através de reportagens na os convertidos, a afirmação das fronteiras
mídia ou através de amigos e conhecidos sectárias nas interações sociais associada
muçulmanos e, após visitarem a mesquita à sua negação nos discursos oficiais au-
e se inteirarem dos princípios doutrinais, menta o seu sentimento de alienação em
se converteram por terem se convencido da relação à comunidade religiosa, onde se
verdade religiosa presente nos princípios sentem “sectários por acaso”, como defi-
religiosos do Islã. niu uma informante que passou a adotar
Para os convertidos desses dois últimos a identidade sunita apesar de continuar a
grupos, a identidade sectária de xiita é o freqüentar esporadicamente a Mesquita
mero marcador da comunidade através da do Brás. Alguns convertidos tentam criar
qual eles se converteram ao Islã, não pos- narrativas que dêem conta desse aparente
suindo nenhum valor cultural ou, mesmo, paradoxo identitário ressaltando a história
religioso, o que permite uma certa fluidez de confrontos entre sunitas e xiitas.
e variação contextual na sua autodefinição A articulação entre a afirmação discur-
segundo essas categorias. Não é raro que siva do universalismo e da unidade do Islã
pessoas convertidas ao Islã na comunidade e a afirmação prática e ritual da identidade
xiita passem a freqüentar mesquitas sunitas e xiita é feita dentro de um quadro de refe-
a assumir essa identidade. Do mesmo modo, rências dado pela identidade árabe vivida
encontrei na Mesquita do Brás um rapaz de como conexão diaspórica com o Oriente
25 anos que se converteu ao Islã sunita em Médio, que obviamente falta aos converti-
Londrina, no Paraná. Após se mudar para dos não-árabes. Os limites do imaginário
São Paulo ele passou a freqüentar a Mes- e, mesmo, as arenas de orientação prática
quita do Brás por ser perto de seu trabalho e e simbólica da comunidade xiita não são
acabou sendo atraído pela devoção especial dados pela sociedade brasileira, mas sim
que os xiitas possuem em relação ao profeta pela construção de um espaço diaspórico

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transnacional centrado do Oriente Médio decorado com cordões de luz e faixas em
e, mais especificamente, no Líbano. Assim, árabe celebrando Hussein. O quadro da
em fevereiro de 2005, o quadro de avisos da batalha de Karbala foi levado do interior da
Mesquita do Brás tinha vários avisos, quase mesquita para o pátio, marcando a entrada
todos em árabe com os horários da oração, da Husseiniyya, cujo corredor de acesso ao
a programação das celebrações da ’Ashura, salão principal era ladeado por dois painéis,
os procedimentos burocráticos necessários um diante do outro, com as inscrições “Ya
para obter um passaporte libanês no consula- Fatima al-Zahra” (“Oh Fátima, a Pura/
do do Líbano em São Paulo, e vários textos Bela/Radiante”) e “Ya Hussein” (“Oh Hus-
condenando o assassinato do ex-primeiro- sein”). Na entrada do corredor havia uma
ministro do Líbano Rafiq Hariri. mesa com vários panfletos e textos, sendo
Os processos envolvidos na construção a maioria em árabe e alguns em português,
e experiência das identidades diaspóricas condenando o assassinato do ex-primeiro
adquirem maior intensidade em ocasiões ministro libanês Rafiq al-Hariri, que era
rituais definidoras da identidade xiita dentro descrito em um deles como “Herói da
do Islã, como a ’Ashura, que marca o drama Reconstrução de Beirute é Vítima da Luta
de Karbala e o martírio de Hussein, neto de Pela Paz”, mostrando como o imaginário
Maomé. A ’Ashura, como o nome indica, da comunidade é informado pelas conexões
marca os dez primeiros dias do calendário transnacionais com o Líbano.
lunar muçulmano, nos quais Hussein e seus Durante todas as noites, uma vez que
seguidores foram cercados e, no décimo dia, as celebrações ocorriam após da oração
massacrados pelas tropas do califa Yazid em noturna de ’isha (por volta das 10 horas),
680 A.D. na planície de Karbala no atual os portões ficavam abertos permitindo um
Iraque. Esse episódio marcou a divisão de- constante fluxo de pessoas na multidão
finitiva entre sunitas e xiitas e é relembrado que se espalhava pela rua em frente. Uma
com rituais de lamentação e mortificação. informante convertida há 9 anos me disse
Em 2005, a ’Ashura foi celebrada de 12 que “Agora as celebrações estão muito
a 19 de fevereiro. Durante esse período o mais públicas que 5 anos atrás. Naquela
salão existente embaixo da mesquita foi época a mesquita não era decorada por fora
transformado em uma Husseiniyya (local e as celebrações eram até disfarçadas. Por
dedicado à lembrança e ao lamento ritual exemplo, na festa de Fátima al-Zahra em
de Hussein). O exterior da mesquita foi 1999 foi colocada uma faixa na fachada da
mesquita dizendo: ‘Salve Nossa Senhora de
Fátima’, buscando uma identificação com
as festas católicas”. Esse ocultamento das
práticas e crenças religiosas, procurando
identificá-las com a crença dominante na
sociedade local, faz parte da tradição xiita
através da doutrina da taqiya, que afirma ser
um direito e, mesmo, um dever do fiel ocultar
a sua fé de modo a não colocar a si próprio
e à comunidade em perigo de perseguição
ou hostilidade. Apesar de a taqiya visar a
manter a pureza das crenças e práticas da
comunidade, ela permite a construção de
formas de comunicação ritual e doutrinal
com outras tradições religiosas que, nesse
caso, facilitavam a integração dos conver-
tidos e a universalização da tradição xiita
para fora dos limites étnicos da comunidade
árabe. Nesse caso, para além da preservação

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criação de um espaço diaspórico baseado
em conexões étnico-religiosas com o xiis-
mo transnacional. Essa hostilidade levou,
ironicamente, ao abandono da taqiya com
a afirmação pública de uma identidade
xiita e árabe, mas também a uma crescen-
te marginalização do papel simbólico dos
convertidos na comunidade.
No interior da Husseiniyya as paredes
eram recobertas com panos pretos, inter-
calados por panos pretos com orações e
passagens corânicas referentes à Batalha de
Uhud quando os companheiros de Maomé
foram derrotados e mortos pelas tropas de
Meca (Alcorão III, 121-136; 169-173). Um
púlpito foi colocado na parte anterior da
Husseiniyya, a partir do qual havia 30 fileiras
de 15 cadeiras, que preenchiam a sala. Atrás
da comunidade, a taqiya visava claramente do púlpito foi colocado um grande pano
a criar formas de comunicação ritual entre preto com a inscrição árabe “Ya Hussein”
os universos simbólicos do xiismo e do (“Oh Hussein”). Uma faixa de pano negro
catolicismo, que é percebido pela maioria continha a frase “Kul yum ’Ashura wa kul
dos muçulmanos, sunitas ou xiitas, como ard Karbala” (“Todo dia é ’Ashura e todo
a religião dominante e, mesmo, definidora lugar é Karbala”) que foi cunhada pelo
da religiosidade dos brasileiros não-árabes. Ayatollah Khomeini, mudando o caráter da
Efetivamente, os convertidos com os quais ’Ashura, de uma rememoração quietista do
conversei concordaram que nessa época drama de Karbala, para uma metáfora da luta
havia uma abertura e um interesse maiores contra as injustiças do mundo. Os quatro
na sua integração na comunidade. pilares de sustentação do edifício estavam
Porém, a reação mundial aos atentados decorados com panos, dois representando
de 11 de setembro de 2001, que se refleti- a mesquita-mausoléu de Karbala, onde o
ram no Brasil com um discurso sobre as corpo de Hussein está enterrado, e dois
comunidades muçulmanas veiculado pela com a imagem de um arco azul em estilo
imprensa e pelas autoridades estatais como persa emoldurando uma “mão de Fátima”
se estas fossem um problema de “segurança (8) feita com a caligrafia estilizada dos
nacional”, criou um certo desencanto na nomes de Maomé, Ali, Hassan e Hussein,
comunidade xiita quanto à possibilidade que estava coroando um texto de louvor em
de diálogo e integração na cultura religiosa árabe referente a Hussein e aos membros
brasileira. Esse sentimento se tornou mais do Ahl al-Baiyt (a família do profeta). Uma
forte após uma reportagem na revista Carta longa mesa foi colocada na área lateral da
Capital ter revelado que a polícia federal Husseiniyya, onde havia água mineral e
estava monitorando as atividades da Mes- garrafas térmicas com chá e café para os
quita do Brás com escutas telefônicas e participantes.
agentes infiltrados para traçar possíveis Além disso, havia uma pilha de CDs
conexões com “movimentos terroristas”, com gravações feitas no Líbano da Ta’ziyat
como o Hizbollah ou o Hamas. Assim, (lamentação ritual e recitação do Drama de
8 Fátima era a filha de Maomé e
mãe de Hussein, representações
devido à percepção de uma desconfiança Karbala em memória a Hussein), que os par-
de sua mão direita são usadas hostil por parte da sociedade brasileira, a ticipantes poderiam levar em troca de uma
por sunitas e xiitas em todo
o Oriente Médio e Norte da comunidade xiita abandonou o esforço na contribuição voluntária para a mesquita. Um
África com fins devocionais e de construção de “vasos comunicantes” com informante me disse que esses CDs eram
proteção mágico-religiosa con-
tra infortúnios e mau-olhado. a cultura religiosa local e se voltou para a uma demanda antiga da comunidade, já que

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todos queriam ter uma forma de “lembrar tinham um grau elevado de atenção, mas
Hussein” no seu cotidiano fora da mesquita. as pessoas sentadas na parte posterior da
O uso desses CDs cria um espaço ritual in- Husseiniyya e, em particular, as mulheres
dividualizado, o qual serve de mecanismo logo desenvolviam uma atitude dispersa e
disciplinar do self religioso dos fiéis a partir se engajavam em conversas e atividades
do exercício de uma reflexividade devocio- paralelas. Algumas pessoas alternavam
nal que articula a experiência religiosa de momentos de atenção e de dispersão, e o
rememoração do Drama de Karbala com a stand de chá, água e café era constantemente
identificação emocional e existencial com visitado pelos presentes.
a figura de Hussein. Shaykh Talib articulava discursiva-
Antes do início da cerimônia algumas mente diversas “esferas de experiência”
pessoas já ocupavam as cadeiras no interior que se sucediam em um movimento duplo
da Husseiniyya, com a área reservada para que estabelecia paralelos entre a correção
os homens na sua parte anterior e a área das moral do self, a ordem política do mundo e
mulheres na sua parte posterior, formando o exemplo religioso e pessoal de Hussein.
círculos de conversa organizados a partir Assim, ele conectou a sua reflexão sobre a
das suas relações de amizade e/ou convívio personalidade com o papel da família na
(vizinhança, trabalho, etc.). No pátio e no educação do indivíduo, enfatizando a impor-
estacionamento atrás da mesquita, muitas tância da exemplaridade dos pais. Esta, disse
pessoas, na maioria homens, se socializa- ele, se reflete na sociedade, pois as nações
vam e conversavam sobre assuntos pessoais, também servem como universos exemplares
negócios, política e, eventualmente, assun- de comportamento moral. Então ele citou o
tos religiosos, enquanto crianças brincavam exemplo do Iraque, onde a violência ameri-
e corriam por todos os espaços. Dentro da cana impede que as pessoas vivam a sua vida
mesquita um pequeno grupo, constituído em paz e que as famílias criem e eduquem
quase que exclusivamente por iranianos, seus filhos de forma adequada. Ele disse que
fazia a oração de ’isha sob a liderança de isso indispôs os Estados Unidos até mesmo
um shaykh iraniano que estava visitando com seus aliados europeus. O sofrimento do
a comunidade xiita de São Paulo. Depois povo iraquiano, disse shaykh Talib, lembra
da oração, o shaykh iraniano iniciou uma o sofrimento dos companheiros de Hussein
Ta’ziat, liderando o pequeno grupo presente cercados pelas tropas de Yazid. Em seguida
nas batidas no peito que davam o ritmo da ele começou uma recitação cadenciada do
recitação do Drama de Karbala em persa. cerco dos companheiros de Hussein pelo
A Ta’ziat durou cerca de quinze minutos exército de Yazid.
e, após seu final, todos se dirigiram à Hus- Nesse momento as luzes foram apagadas
seiniyya, onde o shaykh Talib – um shaykh e lenços de papel foram distribuídos para
iraquiano que liderou a comunidade até os participantes enxugarem suas eventuais
cinco anos atrás, quando se aposentou de lágrimas, suprindo de forma “massificada”
suas funções religiosas e passou a se dedicar as necessidades individuais e marcando o
ao comércio – iniciava o seu sermão (9). início de um período ritual marcado pelo
Com o início do sermão todas as conversas recolhimento reflexivo de cada participan-
cessaram e o CD que tocava com recitação te em torno das emoções induzidas pela
do Drama de Karbala foi desligado. recitação do drama sagrado. Shaykh Talib
Shaykh Talib começou seu sermão falan- continuou sua recitação descrevendo o
do da personalidade do “indivíduo crente” sofrimento provocado pela sede dos Ahl
(al-shakhs al-mu’min), enfatizando a idéia al-Bayt, que estavam separados das águas 9 Como o ritual da ’Ashura segue a
de que o verdadeiro muçulmano deve ter um do Eufrates pelos exércitos de Yazid. mesma estrutura durante as nove
noites que antecedem o yum al-
forte senso moral de modo a exercer uma Quando ele mencionou Hussein e sua irmã dam (dia do sangue), que marca
a morte de Hussein, descreverei
função exemplar para a sociedade. Durante Zaynad, todos os participantes emitiram aqui apenas os três últimos dias,
o sermão, que foi feito em árabe clássico, um alto lamento e muitos começaram a de modo a assinalar a crescente
intensidade emocional que
as pessoas mais próximas do púlpito man- chorar. Alguns soluçavam copiosamente. define o processo ritual.

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Nesse momento, shaykh Talib interrompeu
a recitação e voltou ao seu sermão, dizendo
que o sofrimento de Hussein deve ser um
exemplo para todos nós enfrentarmos as
adversidades que encontramos no nosso
cotidiano. Assim, seu discurso se moveu por
esferas de experiências próximas (persona-
lidade e família) para esferas de experiên-
cia distante (Iraque) e voltou para esferas
de experiências próximas (adversidades
cotidianas), as quais eram conectadas pela
realidade/verdade esotérica encarnada no
exemplo e no martírio de Hussein.
Shaykh Talib intercalava seu sermão com
recitações da Ta’ziat, sempre feitas com as
luzes apagadas, alternando assim dispositi-
vos discursivos e experienciais na consti-
tuição do ritual. Por vezes, ele interrompia
a recitação da Ta’ziat para explicar para a
audiência pontos específicos da história sa-
grada, tais como o papel das mulheres ou o
caráter compassivo de Hussein, mostrando
um esforço consciente na direção da disci-
plina e normatização das interpretações e
dos significados associados aos símbolos que
compõem a narrativa doutrinal. Tal preocu-
pação se relaciona à necessidade de educar
na tradição religiosa as gerações mais jovens
que, apesar de falarem árabe na sua maioria,
estão se socializando em uma sociedade onde
o Islã não constitui uma referência moral
presente no cotidiano.
Após o final do sermão, todos se levan-
taram e formaram círculos concêntricos em
torno dos três shaykhs (o iraniano Hassan,
Said e Talib) e de um grupo de 10 homens
que formavam o círculo central. O rawza
khan (líder da recitação) subiu no púlpito
e começou a recitar versos em homenagem
a Ali e Hussein, os quais eram repetidos e
ritmados pelas batidas no peito que todos
os participantes faziam. Os participantes
no círculo interno (que eram todos ligados
à estrutura administrativa da mesquita ou
eram parentes dos shaykhs ou de pessoas im-
portantes na comunidade) batiam com força
no peito, marcando o ritmo da cerimônia.
Versos mais e menos emotivos eram alterna-
dos e, nos momentos de maior intensidade
emocional dado ao conteúdo dos versos ou
à performance da recitação, os participantes

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do círculo de tatbir (flagelação) batiam
no peito com ambas as mãos, fazendo um
som profundo e potente que ressoava pela
sala. Como nos rituais sufis que estudei na
Síria (Pinto, 2002, 2004a, 2004b), quanto
maior era a distância entre os participantes
e os shaykhs, menos intensa e engajada se
tornava a sua participação no ritual.
Em um determinado momento, o rawza
khan foi tomado pela emoção da performan-
ce e sua voz falhou. Logo um membro da
audiência gritou “Ya Hussein, Ya Mahdi”
(nome do último imam e do enviado de
Deus no Juízo Final), o que foi repetido
várias vezes pelos demais participantes no
ritual e foi acompanhado pela intensificação
do tatbir. Então, o rawza khan retomou a
recitação e os flagelantes passaram a bater
violentamente, mas ritmicamente, no peito
com as duas mãos enquanto respondiam
às frases da recitação com o canto de “Ya
Hussein iubrik-na” (“Oh Hussein nos
abençoe”). O canto e o tatbir foram em
um crescendo emocional até que o rawza
khan terminou sua recitação, marcando o
fim do ritual. Em seguida, uma refeição foi
servida a todos, com bandejas com quibes e
esfihas e quentinhas com mensaf e harisse.
Para beber, guaraná, sucos e água. Todos
comiam e formavam animados círculos
de conversação. Uma mesa com comidas
e frutas foi posta para os shaykhs e alguns
membros do “círculo interno” da mesquita
(todos libaneses). Alguns convertidos e um
grupo de visitantes eram ciceroneados por
Ali (um libanês de 36 anos, comerciante
e membro da cúpula administrativa da
mesquita), que dirigia certas pessoas para
conversar e explicar o ritual para eles. Por
volta das 11h30 da noite todos partiram.
Na manhã do décimo dia a Husseiniyya
estava lotada, cadeiras adicionais tinham
sido colocadas nos corredores aumentando
a capacidade do local para cerca de 500
pessoas. Ainda assim, uma multidão lotava o
pátio, o estacionamento e se espalhava pela
Rua Elisa Whitaker. Às 9h30 shaykh Talib
iniciou uma lenta recitação dos crimes dos
kufar (apóstatas = exército de Yazid) contra
os membros do Ahl al-Baiyt, dizendo: “Eles
mataram o neto do Profeta; eles roubaram

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seu lugar; eles mataram o amado de Deus; começou a entoar louvores a Hussein e
eles profanaram seu corpo…”. Depois de trechos do Drama de Karbala em um ritmo
cerca de uma hora ele começou a recitar o acelerado. Todos se levantaram e formaram
drama do último dia do cerco de Hussein e círculos concêntricos em torno de shaykh
seus aliados (ansar) pelas tropas de Yazid, Talib, enquanto o grupo de jovens mais
descrevendo o sofrimento dos ansar como “conectados” com a hierarquia religiosa
a sede e a fome, o desespero das mulheres e administrativa da mesquita (entre eles
ao verem seus filhos morrerem, e a atitude Nasr, o filho de shaykh Talib) formava o
desafiante de Hussein diante da morte e sua círculo mais interno diante dos shaykhs.
compaixão com o sofrimento dos seus, que Esses participantes do círculo interno da-
o levou a mostrar seu filho agonizante às vam fortes golpes ritmados no peito com as
tropas inimigas em uma tentativa de desper- duas mãos, guiando a performance ritual ao
tar piedade para com os inocentes. Porém, serem imitados pelos demais participantes.
as tropas de Yazid dispararam suas flechas, A cada estrofe recitada por shaykh Talib,
destruindo o corpo do garoto e deflagrando os participantes respondiam entoando “Wa
a batalha. A essa altura todos choravam e Husseinan” (“e Hussein”), evocando a
soluçavam (lenços de papel foram distribuí- presença do imam nos eventos de Karbala
dos regularmente pelo pessoal da mesquita). e dentro do coração de cada um dos presen-
Shaykh Talib descreveu minuciosamente a tes. De tempos em tempos alguém gritava
batalha, contando em detalhes como cada “Ya Mahdi”. O ritual foi em um crescendo,
ansar foi morto, o que intensificava o choro com o canto se tornando cada vez mais
dos participantes. forte e emocional, os golpes cada vez mais
Quando ele descreveu a morte de Hus- rápidos e fortes, criando um ambiente de
sein, a audiência emitiu um grito uníssono forte carga emocional onde a presença do
de lamento e as pessoas se abandonaram em imam guiava as experiências vividas pelos
um choro desesperado e sofrido. O próprio participantes. No ápice do ritual, repetiu-se
shaykh Talib começou a chorar e, em um a frase do Ayatollah Khomeini, “Kul yum
certo momento, só soluços e choro eram ’Ashura wa kul ard Karbala” (“Todo dia é
ouvidos no recinto. Shaykh Talib continuou ’Ashura e todo lugar é Karbala”), articulando
relatando como as mulheres do grupo de as experiências religiosas, produzidas pela
Hussein estavam sentadas na porta de sua identificação ritual de cada um dos parti-
tenda (bi bab al-khayma) ao receberem a cipantes com a persona de Hussein, com
notícia de sua morte e se lançaram ao solo a mensagem social e política consagrada
em lamentação e luto. Ele relatou a inten- pela Revolução Iraniana.
sidade da dor de Zaynab, irmã de Hussein, Em seguida, os participantes retomaram
e de Sakina (também conhecida como o refrão de “Wa Husseinan”, o qual era
Ruqaiya), filha de Hussein. A audiência repetido de forma cada vez mais rápida e
respondia com choro, soluços e gritos de emocional. Nesse momento, Nasr desmaiou
“Ya Hussein”. Por fim shaykh Talib elogiou e foi socorrido pelos presentes, em seguida
o martírio de Hussein como sendo um exem- outros homens e várias mulheres – muitos
plo para a humanidade, que deve buscar na ligados ou pertencentes à hierarquia religio-
fidelidade à lei de Deus a liberdade contra sa e administrativa da mesquita – também
as injustiças terrenas. desmaiaram enquanto a audiência se en-
Nesse momento, shaykh Talib tirou o tregava à experiência da presença do imam
turbante branco (shaykh Said usa um tur- em seus corações. Shaykh Talib encerrou
bante negro, indicando ser descendente do a recitação e os participantes continuaram
profeta) que cobria a sua cabeça, mostrando a repetir “Wa Husseinan” de forma cada
a dissolução das hierarquias sociais diante vez mais rápida,acompanhada de golpes
da experiência da rememoração e vivência cada vez mais fortes no peito. Como no
do exemplo de Hussein. Ele pegou um caso dos rituais sufis (Pinto, 2002, 2004)
pequeno livro com um texto de Ta’ziat e diversos níveis semânticos são construídos

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em torno dos símbolos através da inserção
em diferentes modos de performance ritual,
O CYBERISLÃ OU A REDENÇÃO
sem que seja produzida nenhuma interpre-
tação discursiva dos mesmos. Isso permite
LIMINAR DOS CONVERTIDOS
que essa “revelação experiencial” funcione
como um mecanismo disciplinar ao conectar Outro universo etnográfico da minha
o próprio self dos fiéis com as doutrinas e pesquisa foi o “Islã virtual”, as páginas
princípios esotéricos do xiismo. islâmicas na Internet voltadas para o pú-
Após um momento de grande intensidade blico brasileiro. O uso da Internet como
ritual, na qual muitas pessoas desmaiaram, instrumento de comunicação, informação
choravam ou gritavam os nomes de Hussein e, mesmo, trabalho missionário é algo já
e Ali, a performance foi interrompida, e uma bastante estabelecido entre as comunidades
ziarat feita em memória de Hussein. Após muçulmanas no Oriente Médio, Europa e
a ziarat, uma grande refeição foi servida Estados Unidos, onde webpages em inglês,
(eram 13 horas) e as pessoas ficaram con- francês ou espanhol, mas também em árabe,
versando na Husseiniyya e nas dependências urdu e persa (em geral acompanhadas de
da mesquita até a hora da oração da tarde. uma tradução em inglês de modo a captar
Durante o almoço, alguns convertidos e vi- usuários nas comunidades diaspóricas)
sitantes disseram que apesar de se sentirem são uma extensão virtual de quase todas
indiretamente excluídos pela forte identidade as organizações, lideranças, ou seitas
cultural árabe da comunidade, eles continua- muçulmanas. As páginas muçulmanas na
vam a pertencer a ela. Quando perguntei Internet produzidas no Brasil seguem o
quais seriam as razões dessa persistência padrão geral, sendo a mais sofisticada e im-
apesar do desconforto cultural sentido, uma portante a www.geocities.com/islamicchat,
convertida de 25 anos me respondeu: “por uma página produzida e mantida por Maria
tudo isso”, referindo-se ao ritual, “pois aqui, Moreira, uma carioca com nível superior
através do imam Hussein, você sente Deus, convertida ao Islã e atualmente morando
a verdade viva no seu coração”. E um outro em Alexandria, no Egito. Além de textos
convertido completou: “E isso nunca tive explicativos e textos normativos (fatwas)
em nenhum outro lugar”. escritos ou traduzidos em português, essa
Assim, pode-se ver como a comunidade página oferece links para outras páginas is-
xiita passou por um período de “localiza- lâmicas (geralmente em inglês) e um fórum
ção” religiosa do xiismo dentro da lógica de debates. O fórum se mostrou uma fonte
de articulação de diversos níveis de rea- frutífera para minha pesquisa, pois oferece
lidade religiosa da taqiya, o que permitiu longos debates sobre temas religiosos ou
uma efêmera superação do caráter étnico políticos, como a vida matrimonial após a
da comunidade. Porém, esse período foi conversão de apenas um dos cônjuges, o uso
seguido pela tendência atual de afirmação do véu, ou os conflitos no Oriente Médio,
pública da identidade xiita e de sua iden- entre pessoas localizadas em diferentes re-
tificação com uma identidade diaspórica giões do Brasil e com diferentes inserções
árabe, o que acaba por excluir mesmo os no Islã (nascidos muçulmanos/convertidos,
imigrantes iranianos. Porém, a combinação brasileiros/estrangeiros, salafis/sufis, em
entre codificações doutrinais e imagísticas locais com comunidades importantes/mu-
que define o caráter esotérico das doutrinas çulmanos isolados, etc.).
e rituais xiitas permite, ao mesmo tempo, Essa página oferece um contraste inte-
a corporificação das identidades xiitas e ressante às comunidades que estudei por ser
diaspóricas em um self experiencial e uma explicitamente voltada para as necessidades
individualização experiencial da identidade dos convertidos e a promover o trabalho
xiita para além das identidades étnicas e missionário no Brasil (dawa). Maria Mo-
sociais, como transparece no discurso dos reira escreveu em um de seus textos que
convertidos que não têm origem árabe. a visão que muitos líderes islâmicos têm

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do Brasil como uma sociedade puramente inserções e experiências cotidianas do Islã
hedonista e voltada aos prazeres materiais variavam muito entre os membros, esse
decorre de uma incompreensão criada pelo projeto de construção dialógica enfrentou
fato de eles serem imigrantes, pois a religião o problema de conflitos constantes entre os
e as relações familiares têm lugar central na usuários gerados por posições informadas
sociedade brasileira, como mostra o cres- por objetificações concorrentes do Islã
cimento das igrejas evangélicas. Segundo (principalmente entre os convertidos), o que
ela, as lideranças muçulmanas estariam, levou à desativação temporária do fórum
por preconceito e negligência, negando a (mas não da página) em dezembro de 2003.
mensagem do Islã a uma sociedade que é Esse fórum foi reativado em julho de 2004
potencialmente receptiva a ela. Assim, essa com o mesmo perfil que o anterior, mas
página da Internet procura promover um Islã com maior controle em relação a assuntos
objetificado, mas adaptado às condições da “polêmicos” que possam levar a divisões ou
sociedade brasileira, embora falar da criação conflitos dentro da comunidade virtual.
de um “Islã brasileiro” seria ignorar as fortes
conexões que este discurso tem com o Islã
diaspórico nos EUA e na Europa e mesmo
com os movimentos islâmicos reformistas CONCLUSÕES
no Oriente Médio.
A maior parte da literatura normativa Como conclusões gerais e provisórias
usada para responder a perguntas ou legi- dessa pesquisa que ainda está em anda-
timar certas posições religiosas é retirada mento, podemos dizer que as múltiplas
de livros ou páginas da Internet em inglês, identidades dos agentes (gênero, etnicida-
mostrando uma clara conexão com outras de, nacionalidade, classe, etc.) e o habitus
experiências de comunidades muçul- criado pela sua posição no campo social
manas minoritárias e seus conversos. vão determinar a forma de apropriação do
Os freqüentadores do fórum de debates Islã por cada agente e vão se articular com
geralmente têm nível escolar completo as identidades muçulmanas produzidas
ou nível superior (como pude verificar nesse processo. Esses diversos processos
nas fichas de identificação disponíveis identitários se dão dentro de relações de
para cada nickname) e alguns, apesar de poder que definem as formas de autoridade
brasileiros, moram no exterior (EUA ou e a estrutura institucional de cada comuni-
Europa), onde entraram em contato com dade religiosa.
o Islã e se converteram. Para alguns fre- Os elementos disciplinares do sistema
qüentadores em cidades sem comunidade religioso, neste caso as doutrinas e os rituais
muçulmana organizada ou significativa, que caracterizam as diversas vertentes do
o fórum é mais do que um mero espaço Islã e os discursos que circulam através de
de debates, constituindo uma verdadeira diversos meios de comunicação (textos,
comunidade virtual (como afirmou um dos sermões, vídeos, etc.), são diferentemente
freqüentadores do fórum, que se converteu apropriados e incorporados no contexto das
ao Islã através da literatura sufi em For- relações de poder de cada comunidade. No
taleza, onde, segundo ele, existem apenas entanto, a sua circulação permite a criação de
três muçulmanos). Embora existam muitos canais de comunicação ritual e doutrinária,
outros aspectos que poderia ressaltar sobre assim como formas de imaginação religiosa
as páginas muçulmanas na Internet feitas que conectam as diversas comunidades mu-
no, ou para o Brasil, gostaria de concluir çulmanas no Brasil com versões objetivadas
que nesse caso os discursos da mediadora e globalizadas do Islã.
e dos participantes do fórum procuravam Por fim, a produção das subjetividades
articular um Islã objetificado e conectado religiosas e das formas de religiosidade a
às particularidades sociais e culturais do elas associadas não se baseia apenas na
Brasil. Vale a pena ressaltar que, como as transmissão de doutrinas, mas também passa

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pela produção de experiências religiosas que como base do seu self religioso e moral.
são induzidas pelo engajamento dos agen- Assim, pode-se dizer que os muçulmanos
tes nas performances rituais e nas práticas no Brasil apresentam múltiplas formas de
disciplinares. Essas experiências são ao identidade e religiosidade que os conectam
mesmo tempo o produto da socialização dos tanto com codificações transnacionais do
agentes no sistema religioso e o mecanismo Islã, quanto com as configurações locais do
através do qual esse sistema é incorporado campo religioso em que se inserem.

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