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Relatório sobre Integração

Regional na América do Sul


História e Perspectivas

Projeto Diálogo entre Povos


Abril de 2006
ÍNDICE
1-Introdução 3
A Integração no Continente 3
Um Panorama da Onda de Esquerda na América do Sul 5
Síntese deste relatório 6

2-Mercosul: história e instituições 7


História 7
A Participação Social no Mercosul 9
Conflitos nas relações bilaterais 10

3-Relações Mercosul-Comunidade Andina 12


ALCSA 12
Infraestrutura: a IIRSA 13
Comércio: acordos internacionais e perfil das trocas 16

4-Mercosul para além da América do Sul 18


Alca e União Européia 18
O Grupo dos 20 na OMC 18
China e Liga Árabe 19

5-Recursos Naturais 22
Soja 22
Petróleo e Gás 23
Água 25

6.Segurança Humana e Paz 26


Coca 27
Violência urbana 29
Missões de Paz da ONU: Haiti 30
7- Algumas idéias para entender América Latina e Caribe 31
8- Direitos Humanos e Cidadania 31
Direitos e Democracia 31
Movimentos sociais: índios, sem-terra, piqueteros, feministas 33
Migrantes 36

9 -Economia e Finanças 36
10- EUA, o “o 13° país da América do Sul” 41
11- Alternativas: o caso Alba 43
Anexo 1: Estatísticas Sociais da América do Sul 44
Anexo 2: Fontes de Informação na Internet 47
Anexo 3: Mapa Bases dos EUA e Recursos Naturais 48

Lista de Tabelas:
Tabela 1 Marcos Institucionais do Mercosul – 8;
Tabela 2: Órgãos do Mercosul - 9
Tabela 3: Indicadores dos Países da América do Sul - 13
Tabela 4: Aprovação à Democracia na América do Sul - 32
Tabela 5: Liberdade de Imprensa na América do Sul - 32
Tabela 6: Taxa de Inflação (médias anuais), 1980-2003 -39
Tabela 7: Crescimento do PIB, 1990-2003 - 39
Tabela 8: Taxa de Desemprego Urbano, 1990-2004 - 40
Tabela 9 : Analfabetismo - 44
Tabela 10: Porcentagem de População Urbana - 45
Tabela 11: Expectativa de Vida ao Nascer (2000-2005) - 45
Tabela 12: Desigualdade entre Gêneros - 46
Tabela 13: Indicadores de Bem Estar Social - 46

1-Introdução

A Integração no Continente

Nos últimos 25 anos, os processos de integração regional na América do Sul avançaram bastante,
como uma tentativa de lidar com o agravamento da situação econômica e social do continente após
a crise da dívida externa em 1982. Os objetivos deste trabalho são fazer um balanço desses
processos, com ênfase no Mercosul, e propor alternativas do ponto de vista das organizações da
sociedade civil.

Por América do Sul, entende-se o continente limitado ao norte pela Colômbia e ao sul pela
Argentina. O conceito é diferente de “América Latina”, definição mais ampla que inclui Caribe,
América Central e México - regiões cuja dependência econômica com os EUA é mais profunda, e
consolidada em acordos de livre comércio como o Nafta e o Cafta. Porém, algumas estatísticas
apresentadas neste estudo fazem referência à América Latina, principalmente os dados produzidos
pelo Sistema ONU, que trabalha com essa classificação geográfica.

É antiga a idéia de que existe unidade na América do Sul, para além das divisões em fronteiras e
Estados. Esse foi um dos princípios que norteou a luta pela independência das colônias espanholas
no continente, impulsionando a ação de Bolívar e San Martín. A idéia da integração era facilitada
pela história comum, fruto da colonização, e da proximidade cultural e lingüística.

Contudo, os países formados recém-independentes logo se fragmentaram e travaram conflitos


violentos entre si, como a Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870, Argentina, Brasil e Uruguai
contra Paraguai) e a Guerra do Pacífico (1879-1884, Chile contra Peru e Bolívia). Tentativas de
organizar congressos pan-americanos não resultaram em avanços políticos e durante a maior parte
do século XIX houve grande desconfiança entre as repúblicas hispano-americanas e a monarquia
escravista do Brasil, que também se diferenciava por ter como idioma o português.

Além disso, a lógica econômica que havia prevalecido desde os tempos coloniais era a da
integração ao mercado internacional pela agroexportação para Europa e EUA. Os laços comerciais
entre as nações sul-americanas eram frágeis, bem como a baixa quantidade (ou mesmo ausência) de
em estradas, linhas de navegação e infraestrutura entre esses países. Da época da independência até
as guerras mundiais, a maior parte do comércio da América Latina era feito com as potências
européias, em particular a Inglaterra e a França. Elas também eram as maiores investidoras no
continente, controlando ferrovias, empresas de transporte, serviços urbanos e o treinamento e
aparelhamento das forças armadas.

Com o tempo, os EUA se tornaram a potência hegemônica nas Américas, superando os europeus.
Reealizaram intervenções militares no México, em diversos países do Caribe e da América Central
e se colocaram como obstáculo a qualquer processo de integração regional que escapasse ao
controle de Washington. A criação das primeiras associações continentais de integração, como a
Organização dos Estados Americanos (1948) ocorreu no início da Guerra Fria, quando os Estados
Unidos agruparam seus aliados em associações regionais. Os estadounidenses substituíram os
europeus na América do Sul em todos campos: comércio, investimentos, treinamento militar etc.

Sem embargo, os laços com a Europa continuaram fortes, em particular na influência cultural da
França, nas parcerias econômicas e científicas com Alemanha e Inglaterra, e no relacionamento
com as ex-metrópoles coloniais, Espanha e Portugal. A influência européia persiste após a
redemocratização, inclusive com os movimentos sociais e sindicatos estabelecendo parcerias mais
intensas com suas contrapartes na Itália, França ou Espanha do que com os EUA. Capitais europeus,
principalmente espanhóis, também estiveram muito presentes nos processos da privatização sul-
americanos nos anos 90.

Após a Segunda Guerra Mundial houve o crescimento do interesse pela integração como uma
ferramenta para o desenvolvimento, estimulada pela experiência européia e pelo pensamento da
Comissão Econômica da ONU para América Latina e Caribe (CEPAL), cujos estudos tiveram
grande influência na formulação de políticas públicas do modelo de industrialização por
substituição de importações. A CEPAL também foi decisiva no impulso às primeiras tentativas de
integração entre os países latino-americanos, como a Associação Latino-Americana de Livre
Comércio (Alalc), criada em 1960, que tentou formar um mercado comum no continente.

A Alalc fracassou em função das dificuldades de conciliar a abertura comercial com as demandas
protecionistas do modelo de substituição de importações, e também pelos conflitos políticos
crescentes nos anos 60 entre ditaduras militares (Brasil, Argentina) e democracias (Chile,
Colômbia). Contudo, essa primeira tentativa de integração deu frutos, como a formação do Pacto
Andino em 1969, que reuniu os países dessa região e serviu de base para a criação da Comunidade
Andina de Nações, três décadas depois.

A retomada dos processos de integração nos anos 90 é simultânea a duas amplas transformações: a
redemocratização da América do Sul, com a queda das ditaduras militares, e o colapso do modelo
do Estado desenvolvimentista, promotor da industrialização por substituição de importações. Esse
paradigma foi trocado pela implementação de reformas neoliberais nos moldes definidos pelo
Consenso de Washginton, que incluem abertura econômica, privatizações, adesão a regras de
propriedade intelectual, patentes, proteção de investimentos e ênfase na atração do capital externo.

Portanto, a criação do Mercosul ocorre no formato do chamado “regionalismo aberto”, de inserção à


economia globalizada. Regionalização e globalização aparecem como processos complementares na
análise de diplomatas brasileiros:

A regionalização é uma globalização em miniatura. Cada processo de integração


regional reproduz, num espaço mais restrito, mas, com maior veemência, as
principais características da globalização: multinacionalização do processo
produtivo, diversificação e aceleração dos fluxos de capital, interpenetração das
economias, convergência de valores e padrões culturais.

Um país que se engaja em um processo de integração torna-se mais apto a participar


do processo de globalização. Ganha experiência no trato econômico internacional,
recebe estímulos para buscar maior competitividade, amplia o leque de mercados
consumidores e fornecedores. Quem regionaliza, globaliza melhor.

Há contudo uma diferença importante entre regionalização e globalização: os


processos de integração regional estão sujeitos a um acompanhamento político de
que o processo de globalização ainda carece em grande medida.1

1
Sérgio Florêncio e Ernesto Fraga, Mercosul Hoje, São Paulo: Ed. Alfa-Ômega, 1998, p. 95
A história do Mercosul é marcada pela tensão entre enxergar o bloco como parte de um modelo
liberal de inserção na economia internacional ou considerá-lo como um passo rumo à construção de
alternativas que escapem às limitações desse paradigma, como a dependência com relação aos
países desenvolvidos. Tal disputa é central para a ação das organizações da sociedade civil e atingiu
o auge durante as crises financeiras de 1998-2002.

Um Panorama da Onda de Esquerda na América do Sul

O início do século XXI é marcado por vitórias da esquerda na América do Sul. Começando com a
Venezuela em 1998, quase todos os países do continente elegeram governos progressistas, como
Luís Inácio Lula da Silva (Brasil, 2002), Néstor Kirchner (Argentina, 2003), Tabaré Vazquez
(Uruguai, 2004), Evo Morales (Bolívia, 2005) e Michelle Bachelet (Chile, 2006). Esses presidentes
têm origens políticas, trajetórias e práticas bastante diversas, mas possuem em comum discordância
com os cânones neoliberais vigentes (à exceção do Chile), ênfase na maior participação do Estado
como instrumento de desenvolvimento e justiça social, passado de lutas sociais contra as ditaduras
militares do continente e defesa da cooperação sul-sul e do processo de integração regional.

A Venezuela iniciou o ciclo de esquerda no continente após uma década de turbulências políticas
que incluiu duas tentativas de golpe militar e o impeachment de um presidente por corrupção. A
ascensão de Chávez e as lutas sociais no país são inseparáveis das disputas pelo petróleo (ver seção
5). A Venezuela é onde as reformas sociais foram mais longe, e também o local em que os choques
entre direita e esquerda se tornaram mais violentos, com a tentativa de um golpe militar contra
Chávez, boicotes econômicos e grandes manifestações contra e a favor do presidente.

No Brasil, a eleição de Lula se deu como parte normal do processo democrático. O Partido dos
Trabalhadores (PT) já tinha quase 25 anos e havia administrado diversos estados e municípios
brasileiros, além de ter forte presença no Congresso. Mas os meses que antecederam a vitória de
Lula foram marcados por temores do mercado financeiro e elevação da cotação do dólar e do risco
país. Esses receios começaram a diminuir quando o candidato divulgou durante a campanha a
“Carta ao Povo Brasileiro”, comprometendo-se a manter os acordos assumidos com o FMI.

O governo Lula executou a política econômica ortodoxa herdada de seus predecessores e realizou
aliança com os partidos tradicionais de direita. Porém, implantou mudanças alocando mais verbas
para políticas sociais de distribuição de renda, apoiando a agricultura familiar, a busca de segurança
alimentar, o combate ao racismo e o fortalecimento das relações externas com outros países em
desenvolvimento. Em 2005 o governo foi atingido por uma série de denúncias de corrupção que
levaram ao afastamento de ministros e de líderes do PT. Embora a popularidade do presidente tenha
permanecido elevada, houve tensões entre o governo e muitos dos movimentos sociais que formam
sua base de apoio, e que criticaram tanto a corrupção quando a condução da economia.

Na Argentina, Kirchner era o governador pouco conhecido da remota província de Santa Cruz ao
ser eleito presidente em 2003. Havia se oposto ao seu colega do Partido Justicialista, presidente
Carlos Menem, que implantou o neoliberalismo na Argentina e levou o país a uma grande crise. Ao
assumir o poder em meio a uma situação de descrença nos políticos e catástrofe econômica,
Kirchner iniciou reformas significativas. Renegociou a dívida externa em termos vantajosos para o
país, retomou o crescimento econômico e retomou os julgamentos dos crimes da ditadura militar.

No Uruguai, Tabaré Vázquez foi eleito em 2004 pela Frente Ampla, uma coligação de partidos de
esquerda que rompeu com o domínio bipartidário de Conservadores e Liberais, que vinha desde o
século XIX. As dificuldades na economia e os problemas no relacionamento com Argentina e Brasil
o levaram a atitudes controversas, como retomar negociações para um tratado de livre comércio
com os EUA.

Na Bolívia, os movimentos sociais ganharam força ao longo dos anos 90, tornando-se uma força
capaz de vetar medidas neoliberais, principalmente as propostas relacionadas à extração do gás. A
moblilização de indígenas e cocaleiros culminou em 2005 na vitória de Evo Morales à presidência,
pelo Movimento Ao Socialismo (seções 5, 6 e 7).

O Chile é governado por uma coligação de centro-esquerda, a Concertación, desde o fim da


ditadura militar em 1990. Formada pelos partidos socialista e democrata-cristão, a aliança deu
continuidade ao modelo econômico neoliberal implementado por Pinochet, que centra a economia
chilena na exportação de produtos como cobre, vinho, salmão, frutas e celulose. O país assinou
mais de 50 acordos de livre comércio, incluindo EUA e China e participa de maneira secundária do
processo de integração regional, estando em meio a disputas por recursos naturais com os vizinhos
Bolívia e Peru. Contudo, os efeitos mais ruinosos desse processo foram diminuídos por políticas
sociais para a população mais pobre.

A eleição da socialista Michelle Bachelet em 2006 recebeu destaque sobretudo por ser a vitória de
uma mulher numa sociedade conservadora na qual o divórcio só foi legalizado em 2004. Do ponto
de vista econômico não representa mudanças com relação ao modelo implementado pela
Concertación, que se caracterizou por baixa inflação e alto crescimento, mas também pelo aumento
das desigualdades sociais, que no continente só são menores do que as brasileiras.

No Equador, os movimentos sociais, em especial o indígena, fizeram parte da coligação que deu
apoio ao presidente Lucio Gutierrez, eleito em 2002. Mas essas forças progressistas abandonaram o
governo em 6 meses, descontentes com os acordos com o FMI e a política externa pró-EUA.
Gutierrez renunciou em 2005, após protestos populares e acusações de corrupção.

No Peru, o presidente Alejandro Toledo substituiu o governo autoritário de Fujimori, mas


decepcionou a população e se tornou o governante mais impopular da América do Sul. Os altos
índices de crescimento durante seu período não se traduziram em melhora para as condições de vida
da população, abrindo caminho para a candidatura anti-sistema do militar Olanta Humalla, que
tentou um golpe contra Fujimori e é acusado de torturas e assassinatos cometidos durante a guerra
suja contra o grupo guerrilheiro Sendero Luminoso.

Na Colômbia, o poder continua em mãos da direita, com a alta popularidade mantida pelo
presidente Álvaro Uribe em sua política de militarização da questão da segurança (ver seção 6).
Mas as eleições parlamentares de 2006 também marcaram a ascensão do Pólo Democrático
Alternativo, partido de esquerda fundado em 2003 que vem se constituindo como força de oposição
a Uribe.

Síntese deste Relatório

Este estudo está dividido em dez partes. “Mercosul: história e instituições” analisa a trajetória do
bloco e o papel de seus principais órgãos decisórios, chamando atenção para a pouca participação
social no processo de integração regional. “Relações Mercosul e Comunidade Andina” examina a
pauta de acordos e negociações entre os dois blocos, com concentração nas questões de comércio e
infraestrutura. “Mercosul para Além da América do Sul” trata do papel da integração em fortalecer
a inserção internacional dos países do continente, nas disputas envolvendo OMC, Alca, União
Européia e alianças entre nações em desenvolvimento, como G-20, o Fórum de Diálogo entre Índia,
Brasil e África do Sul e a aproximação com a Liga Árabe.

A quarta seção, “Recursos Naturais”, trata da importância do petróleo, gás natural e água para o
processo de integração. “Segurança Humana e Paz” aborda os conflitos no continente em torno do
crime organizado e os problemas sociais que envolvem as plantações de coca na região andina. Em
“algumas idéias para entender América Latina e Caribe, busca-se enfatizar a importância da relação
da região com o Caribe, principalmente Haiti e Cuba, a fim de se compreender melhor
determinados desdobramentos militares e diplomáticos que afetam o processo de integração.
“Direitos Humanos e Cidadania” examina os avanços como a ascensão dos movimentos indígenas e
os impasses, como a persistência da violência.

A oitava seção, “Economia e Finanças”, traça um painel da macroeconomia sul-americana nos


últimos anos, analisando a evolução da inflação, crescimento do PIB e taxa de desemprego. A
última parte discute alternativas ao processo de integração, como as propostas da Alba e da Aliança
Social Continental. Seguem-se a conclusão e dois anexos contendo dados estatísticos e uma lista de
sites com informações sobre o processo de integração. Em, “EUA, o 13° país da América do Sul”,
deixada para o final, antes de um estudo das alternativas, menciona-se, justamente, o papel dos
EUA na América do Sul e Caribe, demonstrando a sua grande inserção em ambas as regiões, o que
teria até influenciado a formulação da Alba, como uma alternativa venezuela às propostas
americanas para a integração regional.

2- Mercosul: história e instituições

História

O Mercosul foi criado em 1991, com a assinatura do Tratado de Assunção, mas seus antecedentes
estão na década de 1980, numa série de acordos de cooperação econômica e política entre Argentina
e Brasil. Os dois países tiveram conflitos sérios durante as respectivas ditaduras militares,
principalmente pelo uso dos rios internacionais do Cone Sul para a geração de hidroeletricidade.
Também houve rivalidade no desenvolvimento de programas nucleares, sem que nenhum dos
Estados conseguisse obter armas atômicas.

A ditadura argentina entrou em colapso em 1983, após a derrota do país para o Reino Unido na
Guerra das Malvinas. A brasileira terminou pouco depois, em 1985, ao fim de um longo processo
de transição que começara 10 anos antes. Os governos civis recém-empossados buscaram eliminar o
“entulho autoritário” e iniciaram uma aproximação diplomática. As dificuldades econômicas pós-
crise da dívida também foram um fator decisivo, na medida em que impulsionavam ambos os países
a buscar mercados na América do Sul para contrabalancear o relativo isolamento dos centros
financeiros dos EUA e da Europa, em função das moratórias decretadas em 1982.

Os entendimentos Argentina-Brasil englobaram acordos de preferências comerciais e um


importante tratado de cooperação e transparência na área nuclear. Logo essa aproximação
aprofundou-se e começou a discussão sobre a construção de um mercado comum, nos moldes do
estabelecido na Europa. Na segunda metade dos anos 80, Uruguai e Paraguai juntaram-se às
negociações, completando os quadros fundadores do Mercado Comum do Sul (Mercosul).

O Mercosul foi formado nos moldes do chamado “regionalismo aberto”, no qual a abertura
comercial é o elemento essencial do processo de integração. Os membros do bloco criaram entre si
uma zona de livre comércio e adotaram com relação aos produtos vindos de fora do acordo uma
tarifa externa comum (TEC), que pode chegar a 20%. Portanto, o bloco forma uma união aduaneira,
embora o objetivo seja alcançar uma integração mais profunda, com livre circulação de pessoas,
capitais e coordenação de políticas macroeconômicas. Eventualmente se discute a adoção de uma
moeda única, seguindo o exemplo da Europa.
Em seus primeiros anos (1991-1998) o Mercosul estimulou o crescimento de 400% do comércio
entre os países-membros 2. O potencial atraiu a participação do Chile e da Bolívia, que se juntaram
ao bloco na categoria especial de “membros-associados”. Isto é, recebem preferências comerciais
mas não têm os deveres e direitos políticos dos membros plenos, como a negociação conjunta de
acordos internacionais como a Alca e a adesão à TEC. Em 2006, todos os países andinos
(Colômbia, Equador, Peru, Venezuela) já haviam se tornado membros-associados do Mercosul. Isso
tornou o bloco a referência principal para se debater integração na América do Sul.

A fase inicial de prosperidade foi interrompida pelos efeitos das crises financeiras internacionais
(Ásia e Rússia) sobre a América do Sul, que levou à desvalorização cambial no Brasil, à gravíssima
situação na Argentina e a dificuldades grandes em outros países do continente. Nesse contexto
turbulento, discordâncias comerciais agravaram-se e o bloco estagnou. Chegou a ser discutida a
possibilidade de que ele regredisse a uma zona de livre comércio, reduzindo sua capacidade de
coordenação política e focando meramente no aspecto econômico.

Também houve avanços. Em 1998 assinou-se o Protocolo de Ushuaia, que reconheceu a


democracia como condição fundamental para a participação no bloco. Países que sofressem golpes
militares poderiam ser excluídos do Mercosul ou submetidos a sanções econômicas. A cláusula
democrática foi implementada em função das crises políticas no Paraguai, onde o general Lino
Oviedo ameaçava as instituições com a possibilidade de um golpe. A pressão dos outros membros
do bloco foi importante para levar a uma solução negociada entre os paraguaios.

Outro sucesso foi a criação do Tribunal Permanente de Previsão, para lidar com disputas
comerciais. É o primeiro órgão supranacional do bloco, cujas decisões têm que ser aceitas pelos
países membros, à semelhança do que ocorre com as instituições jurídicas da União Européia.
Tradicionalmente, o Brasil havia se oposto a esse tipo de arranjo, preferindo utilizar sua hegemonia
para impor seus objetivos através de órgãos inter-governamentais.

O quadro abaixo sintetiza os marcos institucionais do Mercosul, destacando o que cada um deles
trouxe ao bloco. O texto do tratado e dos protocolos está disponível no site da Secretaria
Administrativa do Mercosul.

Tabela 1 – Marcos Institucionais do Mercosul

Acordo Data Decisões


Tratado de Assunção 1991 Criação do Mercosul, com suas regras
comerciais e instituições inter-governamentais.
Protocolo de Ouro Preto 1994 Estabelece personalidade jurídica internacional
para o Mercosul, que passa a poder negociar
acordos como bloco.
Protocolo de Ushuaia 1998 Criação da cláusula democrática
Protocolo de Olivos 2002 Estabelecimento do Tribunal Permanente de
Revisão, dedicado a disputas comerciais,
primeiro órgão supranacional do bloco.

Fonte: Secretaria Administrativa do Mercosul (www.mercosur.int)

2
Luiz Felipe Lampreia, Diplomacia Brasileira: palavras, contextos, razões, Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999,
p. 299.
A estrutura institucional do Mercosul passou por modificações ao longo dos anos, mas manteve
características essenciais, como o foco no Poder Executivo de cada país-membro, no que o
sociólogo uruguaio Gerardo Caetano denomina “hiperpresidencialismo”. Há pouco espaço para a
participação do Poder Legislativo, das unidades subnacionais (governos de estados, províncias ou
municípios) e menos ainda para a influência das organizações da sociedade civil.

As decisões mais importantes no Mercosul são tomadas por presidentes, ministros das relações
exteriores e ministros da economia, com assessoria de representantes de outros órgãos das
administrações do poder central.

A tabela 2 resume os dados sobre os principais órgãos do Mercosul:

Tabela 2: Órgãos do Mercosul

Órgão Funções Membros


Conselho do Mercado Comum Condução política do bloco. Ministros das relações exteriores
e da economia.
Grupo Mercado Comum Executar as decisões do Representantes dos ministérios
Conselho do Mercado Comum das relações exteriores,
economia e bancos centrais.
Comissão de Comércio Assessorar o Grupo Mercado Representantes dos Estados
Comum nos temas comerciais Partes
Secretaria Administrativa Apoio operacional ao bloco – Diretor indicado pelo Grupo
arquivos, organização de Mercado Comum, mais equipe
eventos, difusão de informações técnica de apoio
Comissão Parlamentar Harmonizar legislações, Parlamentares dos Estados Partes
Conjunta implementar decisões do
Conselho e do Grupo,
eventualmente dar pareceres e
consultorias a esses dois órgãos
Foro Consultivo Econômico e Representar setores sociais e Representantes da sociedade
Social econômicos do bloco civil, em especial sindicatos e
associações empresariais
Foro Consultivo de Municípios, Facilitar cooperação e diálogo Representantes de governos
Estados Federados, Províncias e entre governos subnacionais subnacionais no bloco
Departamentos. dos países do Mercosul.
Tribunal Permanente de Julgar controvérsias comerciais Cinco árbitros indicados pelos
Revisão Estados Partes
Parlamento do Mercosul Entra em funcionamento em Parlamentares indicados pela
dezembro de 2006. Comissão Parlamentar Conjunta.

Fontes: Protocolo de Ouro Preto, Protocolo de Olivos e site www.encontromercosul.com.br

A Participação Social no Mercosul

Recentemente, houve mudanças na direção de mais democracia no bloco, como a criação do foro
consultivo das unidades subnacionais. Foi fundada a Casa do Cidadão do Mercosul, que publica
cartilhas e documentos sobre direitos e legislação do bloco. O passo mais importante, no médio
prazo, é o estabelecimento do Parlamento do Mercosul, que entra em funcionamento em dezembro
de 2006. Até 2014 ele terá poucos poderes e seus membros serão eleitos de forma indireta, pelos
parlamentos nacionais. Contudo, a instituição pode ampliar sua influência a partir das pressões
sociais.

O governo da Argentina criou um conselho consultivo da sociedade civil dentro do Ministério das
Relações Exteriores. Em funcionamento desde 2003, seu foco é a participação social no processo de
integração sul-americano, e reúne representantes de mais de mil organizações da sociedade civil,
bem como funcionários dos governos centrais e provinciais.3

As organizações da sociedade civil dos países do bloco questionam a pouca participação que
possuem nos processos decisórios relativos à integração regional, a começar pela falta de
transparência e pelo pouco acesso à informação. Cerca de 60% dos documentos produzidos pelos
órgãos do Mercosul foram declarados de caráter reservado, incluindo o projeto da cartilha do
Cidadão bloco e uma consultoria sobre participação social no processo decisório.

O espaço institucional reservado à sociedade civil, o Foro Consultivo Econômico e Social, não tem
poder decisório, emitindo apenas recomendações. Apesar disso, oferece possibilidades importantes
de atuação, que vem sendo utilizadas principalmente por sindicatos e associações empresariais nas
negociações econômicas internacionais.

O Conselho Industrial do Mercosul (CIM) foi fundado em 1993 pela União Industrial Argentina, a
Confederação Nacional da Indústria, do Brasil, a Câmara de Indústrias do Uruguai e a União
Industrial do Paraguai. O CIM realiza ao menos quatro reuniões por ano para debater os temas
ligados ao bloco e emitir recomendações aos governos.

O setor privado participa das negociações da Alca através dos Foros Empresariais das Américas,
que antecedem as reuniões ministeriais desse processo. Os Foros são o espaço onde os empresários
discutem os temas de seu interesse e buscam posições comuns para pressionar os governos.

Os sindicatos também adquiriram importante acúmulo de experiência na integração regional,


sobretudo pela ação da Coordenadora de Centrais Sindicais do Cone Sul, que atua no Fórum
Consultivo Econômico e Social e no subgrupo de relações trabalhistas, emprego e seguridade social
(subordinado ao Grupo Mercado Comum).

Desse modo, os sindicatos participam de discussões envolvendo uma grande quantidade de temas,
como políticas de geração de emprego, migrações, formação profissional, assistência médica,
proteção contra acidentes de trabalho etc. A mobilização sindical foi fundamental para a aprovação
da Declaração Sócio-Trabalhista do Mercosul e mais ainda em sua implementação: “Este talvez seja
o principal desafío do sindicalismo do Mercosul no nível institucional (...) Esta tarefa se realiza de
forma tripartita em cada país e depois no órgão regional onde finalmente se decide que tipo de
medidas se adotam para o real cumprimento dos direitos trabalhistas.” 4

Conflitos nas relações bilaterais

Tema importante, e pouco comentado é a marginalização dos chamados “sócios menores” do


Mercosul, Paraguai e Uruguai, ambos dependentes economicamente de seus dois vizinhos maiores,
3
O conselho está descrito em http://www.mrecic.gov.ar/ccsc/index.htm.
4
Citado no site da Coordenadora, http://www.ccscs.org/html_particp_instituc/ccscs_partic_instituc.htm.
Argentina e Brasil.

O caso paraguaio ganhou destaque em 2005, quando o país assinou acordo militar com os EUA,
pelos quais 400 soldados estadunidenses se instalarão numa base próxima à região da Tríplice
Fronteira entre Paraguai, Argentina e Brasil. O governo paraguaio concordou em isentar essa tropa
da jurisdição do Tribunal Penal Internacional, que poderia julgar crimes cometidos por eles.

O acordo foi interpretado pelos analistas como parte de uma barganha comercial. O cenário pós-11
de setembro tornou a Tríplice Fronteira estratégica para os EUA, que nela passaram a concentrar
recursos policiais e militares, na suspeita de que o crime organizado da região financie grupos
terroristas. As ações incluem pressões para políticas de segurança mais intensas na área. O Paraguai
se valeu do interesse estadunidense para firmar acordos de cooperação militar e pressionar o Brasil
em temas comerciais, como o preço da energia produzida na gigantesca usina binacional de Itaipu –
também pesou o exemplo da Bolívia, com sua nova Lei de Hidrocarbonetos.5

O Uruguai não possui importância semelhante para a segurança internacional, e tem demonstrado
seu descontentamento através do anúncio de negociações para um acordo de livre comércio com os
EUA. Embora alguns tenham ficado surpresos, pela proposta vir do governo de esquerda de Tabaré
Vasquez, os uruguaios se sentem ressentidos de sua exclusão de importantes negociações dentro do
Mercosul. Um exemplo foi a assinatura, em 2006, do Mecanismo de Adaptação Competitiva
(MAC), no qual o Brasil fez concessões à Argentina, como adoção de cotas e salvaguardas.
Uruguaios e paraguaios sequer foram ouvidos durante as discussões, que envolveram as duas
maiores economias do Mercosul.

Argentina e Brasil também enfrentam dificuldades, além das controvérsias comerciais. A política
econômica conservadora adotada por Lula o colocou em choque com Kirchner, em especial durante
a complexa renegociação da dívida externa argentina. Apesar do processo ter culminado com um
acordo vantajoso para o país, Kirchner se decepcionou com a falta do apoio de Lula, que preferiu o
compromisso com FMI. Rivalidades regionais também vieram à tona quando o Brasil decidiu
investir na candidatura a membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, para desgosto
dos argentinos, que ao longo da maior parte dos séculos XIX e XX disputaram a liderança do
continente com os brasileiros.

No entanto, o Brasil também fez concessões à Argentina, como no caso do MAC, adotado por
pressão de Kirchner. O acordo estabeleceu o recurso a salvaguardas por setores em ambos os países
que se sintam ameaçados por importações em massa do outro parceiro. A aplicação do MAC
precisa ser aprovada por uma comissão de especialistas, convocados caso a caso, e tem duração
limitada até 2009. O acordo foi criticado pelas contradições com as normas da OMC e com o
próprio Tratado de Assunção, que criou o Mercosul. Os liberais condenam a implementação de
medidas restritas ao comércio.

Porém, os diplomatas brasileiros e argentinos justificam o MAC com base na noção de que a
relação estratégica entre os dois países é importante demais para ficar a cargo das oscilações do
mercado e precisa ser regulado pelo “comércio administrado”. A preocupação é com o processo de
desindustrialização na Argentina, que se iniciou com a política econômica neoliberal da ditadura
militar de 1976-1983 e se agravou com as medidas semelhantes adotadas nos anos 90.

Recentemente, a alta dos preços do petróleo deu a Venezuela maior capacidade para se tornar uma
liderança regional na América do Sul. Algumas medidas do governo Chávez, particularmente em
parceria com Kirchner, configuram alternativa às abordagens do Brasil. Os dois presidentes
5
Para uma análise da situação, ver Monica Hirst, “As relações Brasil-Paraguai: baixos incentivos no latu e strictu
sensu”, revista Política Externa, v. 14, n.3, dez. 2005.
lançaram a idéia da cooperação na área da TV, criando o canal Telesur, dedicado a notícias da
América Latina. Chávez comprou cerca de US$1 bilhão em títulos da dívida externa argentina,
ajudando o país num momento decisivo de pressão dos credores internacionais. A Venezuela
também se tornou um importante investidor na América do Sul, construindo refinarias e
encomendando navios no Brasil e assinando acordos energéticos e de cooperação técnica com a
Bolívia.

Em meio a tantos problemas no Mercosul, o governo brasileiro lançou em 2006 iniciativas para
contemplar os parceiros dos bloco, concedendo vantagens comerciais ao Uruguai (possibilidade do
país participar de licitações públicas para fornecer alimentos à merenda escolar brasileira) e
desenvolvendo programas de cooperação social em saúde e educação com o Paraguai, velho pedido
daquele país.6

3-Relações Mercosul-Comunidade Andina

ALCSA

O Mercosul não é o único processo de integração na América do Sul. A experiência da Comunidade


Andina de Nações (CAN) remonta ao Pacto Andino de 1969. Com modificações – a saída do Chile
e a entrada da Venezuela – ele serviu de base institucional para a formação da CAN, em 1996.

Desse modo, a integração regional na América do Sul se deu através de dois processos sub-
regionais principais. A articulação entre ambos é fundamental para a formação de um bloco de
amplitude continental. Coube ao Brasil buscar a iniciativa, às vezes de modo encarado com
desconfiança pelos países vizinhos, que enxergam nas propostas a tentativa brasileira de assumir a
hegemonia na região.

Em 1994 o Brasil lançou a idéia de formar a Área de Livre Comércio Sul-Americana (Alcsa). A
proposta foi feita no mesmo ano em que os EUA defenderam a criação da Área de Livre Comércio
das Américas (Alca) e não passou desapercebido aos analistas internacionais o propósito brasileiro
de afirmar sua própria zona de influência. Para se ter uma noção da importância econômica da
América do Sul, e do peso do Brasil na região, é preciso analisar os dados:

Tabela 3: Indicadores dos Países da América do Sul

País População Área PIB (em US$ Índice de


bilhões) Desenvolvimento
Humano
Argentina 39.537.943 2.766.890 km2 182 0,863
Bolívia 8.857.870 1.098.580 km2 10 0,687
Brasil 186.112.794 8.511.965 km2 605,6 0,792
Chile 15.980.912 756.950 km2 97 0,852
Colômbia 42.954.279 1.138.910 km2 100,9 0,785
Equador 13.363.593 283.560 km2 31,4 0,759
Guiana 765.283 214.970 km2 0,82 0,72
Guiana Francesa ** 195.506 91.000 km2 N/D N/D
Paraguai 6.347.884 406.750 km2 7,6 0,755
6
“Brasil cede mais para tentar salvar o Mercosul”, O Globo, 16/03/2006.
País População Área PIB (em US$ Índice de
bilhões) Desenvolvimento
Humano
Peru 27.925.628 1.285.220 km2 73,3 0,762
Suriname 438.144 163.270 km2 1,39 0,755
Uruguai 3.415.920 176.220 km2 17 0,84
Venezuela 25.375.281 912.050 km2 118,3 0,772

Fonte: World Factbook 2006.

** OBS: a Guiana Francesa é um departamento de ultramar da França e não forma um país


independente. Em geral ela é excluída das séries estatísticas sobre América do Sul.

Ou seja, o Brasil representa sozinho quase metade do PIB e da população sul-americana, num
desequilíbrio regional profundo. Contudo, em termos de desenvolvimento humano a primazia cabe
à Argentina, Chile e Uruguai, países com longo histórico de políticas sociais e sociedades que até
recentemente eram pouco desiguais – o quadro se alterou com as reformas neoliberais e as crises
dos anos 80/90.

Infraestrutura: a IIRSA

Embora a Alcsa não tenha prosperado, foram pensados outros projetos. Na I Reunião de Presidentes
da América do Sul, em 2000, foi lançada a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional
Sul-Americana (IIRSA), um conjunto de grandes obras de infraestrutura para o continente, em
setores como energia e transportes. O então presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso já
tinha planos nesse sentido desde 1997, a partir de conversas com os dirigentes do Banco
Interamericano de Desenvolvimento:

... o Mercosul é a plataforma a partir da qual já estamos trabalhando para a


construção da zona de livre comércio que abrangerá o conjunto das Américas. Trata-
se de um processo necessariamente gradual, que deverá passar pela conformação
de um espaço integrado nas América do Sul, a caminho da integração hemisférica,
sem exclusão de qualquer outra região... Chamo a atenção dos presentes para as
oportunidades extraordinárias de negócios que a integração está gerando em termos
de infraestrutura necessária para fazer a interligação física entre os países da
América do Sul. Um bom exemplo é o gasoduto de 3.500 km ligando o Brasil e a
Bolívia, que começará a ser construído brevemente e que representa um
investimento da ordem de quatro bilhões de dólares.7

A IIRSA teve início lento, mas ganhou impulso a partir de 2003, em particular pelo interesse
demonstrado pelos governos Lula (Brasil) e Chávez (Venezuela) em financiar estradas, usinas e
gasodutos. Emblemáticos dessa nova fase são megaprojetos como a construção de hidrelétricas no
Rio Madeira, na fronteira do Brasil com a Bolívia, e do chamado “Gasoduto do Sul” ou “Gasoduto
Bolivariano” que iria de Puerto Ordaz (Venezuela) a Buenos Aires, num custo estimado de US$25
bilhões.

Essas iniciativas foram recebidas com entusiasmo por empreiteiras e grandes empresas, que as

7
Fernando Henrique Cardoso, citado em Luís Cláudio V. G. Santos, A América do Sul no Discurso Diplomático
Brasileiro . Tese apresentada ao Curso de Altos Estudos do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, 2005,
p.83.
encaram como rica fonte de lucro, sobretudo no setor do agronegócio. Boa parte das exportações do
setor precisa atravessar a América do Sul rumo ao Oceano Pacífico, de onde segue para os
mercados consumidores na China e na Índia.

As organizações da sociedade civil e redes latino-americanas possuem uma visão diferente da


integração, tendo protestado, ressaltando os impactos sócio-ambientais da IIRSA, como devastação
florestal e de recursos hídricos, deslocamento populacional, diminuição da biodiversidade e
aumento da poluição. Também se preocupam com a ausência de transparência e controle social em
obras que lidam com valores bilionários e envolvem atores político-econômicos de influência
considerável. As manifestações ocorrem de forma especialmente contundente contra o “Gasoduto
do Sul”. As entidades, entre as quais está a Rede Brasil sobre Instituições Multilaterais (da qual o
Ibase participa na coordenação) vêm expressando seu descontentamento. Segue a carta:

“Organizações da Sociedade Civil de diferentes países mas principalmente do Brasil, venezuela e


Argentina, entregarão uma carta dirigida as presidentes Néstor Kirchner (Argentina), Luíz Inácio
Lula da Silva (Brasil) e Hugo Chávez (Venezuela), chamando atenção destes governos para a
execução do projeto gasífero chamado “Gasoduto do Sul”. A carta será entregue aos presidentes
que estarão reunidos em Assunção (Paraguai), no próximo dia 19 de abril para discutir a
construção do gasoduto.
A carta chama atenção para os impactos na Amazônia resultantes da construção do
megagasoduto que partiria desde a desembocadura do rio Orinoco (Venezuela), atravessando o
coração da Amazônia no Brasil até chegar a Buenos Aires (Argentina) com o objetivo de
transportar 150 milhões de metros cúbicos de gás venezuelano por dia para a Argentina e Brasil e,
possivelmente, Uruguai. A construção do gasoduto de oito mil quilômetros trará consequências
ambientais desastrosas, atravessará áreas ecológicas importantes, comprometendo o futuro do
país. O projeto orçado em 20 bilhões de dólares percorrerá 522,5 quilômetros de uma região
quase intocada da Amazônia, com biodiversidade desconhecida e onde vivem 22 populações
indígenas.
O projeto “Gasoduto do Sul” não leva em consideração o grave impacto para a Amazônia,
considerada o maior reservatório de água doce, de biodiversidade e habitat natural de muitos
povos indígenas e tradicionais. Esta mal chamada integração, não conduziria nem a unidade, nem
o bem-estar dos povos do sul já que está fundamentada na exploração dos recursos .........
A obra pode causar ainda problemas no regime dos rios que serão atravessados pelo gasoduto,
impactos como barramento, poluição das águas e erosão. Este projeto acrescentará dívida
ecológica e social da região.
A simples apresentação deste faraônico projeto -sem consultar a sociedade civil, parlamentares e
outros Ministérios como o Meio Ambiente -, que além dos impactos sócio-ambientais carece de
coerência econômica, financeira e estratégica, viola Convênios e Acordos de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (DESC) e outros tratados internacionais assinados por nossos
países, e tem sido elaborado por meios oficiais sem contar com estudos prévios necessários em
termos de factibilidade e impacto ambiental, sócio-cultural e econômico.
O atual modelo de hidrocarbonetos está destruindo nossa diversidade sócio-ambiental e assim é
irresponsável continuar tendo uma visão de desenvolvimento baseado nesse modelo. Assim
sendo, é necessário fomentar o desenvolvimento de fontes renováveis de energia, com base
ecológica, que possam fornecer um combustível seguro, duradouro e sócio-ambientalmente,
economicamente, e politicamente responsável...”

Os interesses beneficiados pela IIRSA incluem os governos dos EUA, Índia e China, empresas
transnacionais e órgãos de fomento como o BID. Washington tem pressionado os governos sul-
americanos a adotar o formado das Parcerias Público-Privadas para tocar adiante os mega-projetos.
Por este instrumento, as empresas privadas realizam obras ou prestam serviços ao governo, que
garante o retorno mínimo aos investimentos. As PPPs são criticadas como uma maneira do Estado
arcar com eventuais prejuízos das firmas, que guardam os lucros para si.

Mais do que as divergências em torno de um projeto específico, o que está em jogo no conflito entre
governos e organizações da sociedade civil é a disputa pelo modelo de desenvolvimento que deve
pautar a integração regional.

Em novembro de 2004, houve a III Reunião de Presidentes da América do Sul em Cuzco, no Peru e
na ocasião foi aceita a proposta brasileira de criar a Comunidade Sul-Americana de Nações
(CASA), fórum que agrupa Mercosul, CAN, Guiana e Suriname. O projeto ainda está no início e foi
recebido com algum ceticismo e desconfiança por países como Argentina, que se preocupam com a
possibilidade de que a CASA seja um instrumento para a consolidação da hegemonia do Brasil
sobre o continente.

Os países do Mercosul e da CAN também participam conjuntamente de outras organizações


regionais, com a Organização dos Estados Americanos (que reúne todos os países das Américas,
menos Cuba, e está sediada em Washington), o Grupo do Rio (fórum de articulação dos países
latino-americanos) e Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Esta última é
recente e pouco conhecida, mas apresenta possibilidades interessantes para as organizações da
sociedade civil.

O Tratado de Cooperação Amazônica foi assinado em 1978, reunindo Bolívia, Brasil, Colômbia,
Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela. O objetivo era desenvolver ações conjuntas para o
manejo da bacia amazônica, e o acordo se baseou em disposições semelhantes sobre outros rios
internacionais, como o Danúbio. Inovou ao tratar da cooperação entre países em desenvolvimento
por uma perspectiva diferente do habitual enfoque econômico. Seus temas eram meio ambiente e
saúde pública, vistos como questões que exigiam ação transnacional.

Ambos os assuntos ganharam em importância em anos recente e a pressão dos grupos sócio-
ambientalistas se fez sentir. Em 2002 foi criada a OTCA, com sede em Brasília, com o propósito de
melhorar a implementação dos objetivos do tratado. A organização firmou diversos convênios com
agências da ONU e organismos internacionais e está se tornando uma parceira interessante para
organizações da sociedade civil que atuem na região amazônica.

Podem-se destacar, portanto, oito dimensões fundamentais da IIRSA:

Primeira dimensão: Internamente à América do Sul, os projetos de integração econômica propostos


no âmbito da IIRSA não alteram a dinâmica do comércio regional e apenas reforçam o caráter
assimétrico, desequilibrado mesmo, em favor da maior economia regional, o Brasil. A lógica IIRSA
também provoca o desligamento do nordeste brasileiro do restante do país, ao não considerar, em
seus eixos, os nove Estados nordestinos, onde vive um terço da população nacional;

Segunda dimensão:Reforça o papel da América do Sul de plataforma de exportação de bens com


baixo valor agregado localmente;

Terceira dimensão: Nessa dinâmica, a IIRSA não considera uma enorme porção do continente a
região do nordeste brasileiro, onde vivem cerca de 60 milhões de pessoas;

Quarta dimensão: Se por um lado Venezuela, em primeiro lugar, e Brasil, secundariamente,


rejeitam a Alca (Área de Livre Comércio das Américas), com a IIRSA, que facilitaria o transporte
de mercadorias numa área de livre comércio, esses dois governos demonstram que permanecem
interessados em eventualmente aderirem à Alca, se perceberem nessa proposta uma brecha para
materializarem seus projetos individuais estratégicos.

Quinta dimensão: Para reforçar o caráter livre cambista da IIRSA, é bom retomar um segundo
objetivo desta Iniciativa, o da convergência normativa, para além da construção da infra-estrutura:
“Para viabilizar os investimentos em infra-estrutura regional, é necessária a vontade política dos
governos para promover e facilitar o diálogo entre as autoridades reguladoras e de planejamento
dos países, com finalidade de alcançar a compatibilidade entre as regras que regem e orientam as
atuações da iniciativa privada na região”, diz o texto “Ferramenta de trabalho para o desenho de
uma visão estratégica da integração física sul-americana”, orientador das discussões entre os
governos (financiadores, em última instância, e o capital privado, operador sugerido para a IIRSA;

Sexta dimensão: Como diz a ata de fundação da Comunidade Sul-Americana de Nações (CSN), em
seu sétimo e último princípio orientador, os projetos da IIRSA devem ser desenvolvidos
exclusivamente através de parcerias público-privadas, em que cada ente desempenharia o papel que
deles o mercado espera: o Estado financiando as obras e o capital privado, auferindo os lucros desse
sistema de construção e operação de infra-estrutura.

Sétima dimensão: O Estado através de seus entes financeiros viabilizará a IRRSA através do Bid,
coordenador técnico e financeiro, da Corporação Andina de Fomento (CAF), Bndes, pelo Brasil, e
o Fonplata, o Fundo Financeiros para o desenvolvimento da Bacia do Prata que atenderia aos
projetos no Cone Sul da América do Sul, alcançando regiões da Argentina, do Brasil e do Uruguai
que contribuem para a formação da bacia hidrográfica do Rio do Prata;

Oitava dimensão: Além desses planejamentos estratégicos, a IIRSA e seus projetos pararecem
tentar se beneficiar de um excesso de liquidez que ora se verifica no mercado internacional de
financiamentos de grandes projetos de infra-estrutura. Indícios apontam para uma saída importante
de capitais antes investidos em aplicações financeiras puras em direção ao suporte econõmico para
esses projetos, o que estaria gerando uma disputa entre Bid, Bndes, CAF, Fonplata, Banco Mundial
e banco Europeu de Investimentos pela primazia de financiar esses projetos, que estariam lastreados
por latas taxas de retorno para os finaciadores.

Comércio: acordos internacionais e perfil das trocas

O relacionamento entre Mercosul e CAN também se fortaleceu em termos comerciais. Os países


andinos se tornaram membros associados do Mercosul e em 2003 foi assinado um acordo de livre
comércio entre os dois blocos, que será implantado num prazo de 18 anos, até a queda de todas as
barreiras e tarifas.

Simultaneamente ao acordo Mercosul-CAN, Chile e Colômbia assinaram tratados iguais com os


EUA, e Equador e Peru negociam o mesmo. Ou seja, a integração sul-americana é vista como peça
secundária num processo de liberalização comercial mais amplo, em que o parceiro principal dos
países andinos são os Estados Unidos, destino de mais de 50% de suas exportações.

O comércio entre os países sul-americanos é de cerca de US$64 bilhões anuais, que correspondem a
23,2% do valor exportado por essas nações. Os principais exportadores da região são Brasil (34,9%
do total), Argentina (12,5%), Venezuela (12,4%) e Chile (11,6%).

O intercâmbio é sobretudo de bens industrializados, que respondem por 80% do valor total. Os
principais produtos comercializados são máquinas industriais, equipamentos de transporte, produtos
químicos, roupas, automóveis e autopeças.8

O perfil contrasta com as vendas da América do Sul para fora do continente, onde observa-se outro
padrão, baseado “na concentração nas exportações de produtos primários e manufaturas baseadas
em recursos naturais que representam 2/3 das exportações totais, como nos casos de Argentina,

8
Dados: Organização Mundial do Comércio. International Trade Statistics 2005.
Chile e Colômbia.”9

Contudo, isso não se deve a estratégias das indústrias nacionais do Brasil ou da Argentina, e sim ao
plano de ação das transnacionais, que utilizam ambos os países como plataforma de exportação para
o resto do continente ou para os EUA. Isso explica o interesse dessas empresas (e dos governos)
pelas obras do IIRSA, que melhorarão o transporte da sua produção.

Alfredo da Mota Menezes e Pio Penna Filho10, em recente publicação divulgam dados de um
documento chamado “principais indicadores de integração e desenvolvimento da Comunidade
Andina” que mostra o que aconteceu, em números, naquela região integrada, entre 1970 e 2001:

“O documento da Comunidade Andina diz que a população da área duplicou entre


1970 e 2001; que o PIB aumentou quase dez vezes; que o comércio fora da zona
integrada cresceu nove vezes; que as exportações dentro da integração aumentaram,
naquele período, mais de 50 vezes; que os investimentos externos cresceram 25
vezes; que aumentou cinco vezes o turismo interno; que caiu a menos da metade e a
mortalidade infantil e que a esperança de vida subiu de 60 para 69 anos no período.
Em números diretos, a publicação é mais explícita. O PIB regional, em 1970, era de
28,571 bilhões, chegando em 2001, a 283 bilhões de dólares ou quase dez vezes
mais. A renda per capita regional, nos mesmos anos, era de 515 dólares e subiu para
cerca de 2.200 dólares. As exportações para países fora da integração cresceram
nove vezes, de 5.380 bilhões para 50.173 bilhões, em 1970, para 44.778 bilhões,
2001. A dívida externa total da área, que estava um pouco acima de oito bilhões de
dólares, saltou para 116 bilhões ou 14 vezes mais. A dívida pública, que antes era de
3,7 bilhões , em 2001, foi para 78 bilhões, 21 vezes maior. A dívida externa privada
que era de 4,3 bilhões de dólares, chega a 37,9 bilhões 21 anos depois, nove vezes
maior. O turismo também cresceu, passou de 133 mil turistas para 623 mil, ou cinco
vezes mais. Os investimentos estrangeiros na área passaram de 3,4 bilhões para 84,5
bilhões, ou 74 vezes maior. Também os investimentos internos cresceram, passando
de 15 milhões para 1,1 bilhões de dólares.
O grande salto, na verdade, foi exportação dentro da Comunidade Andina: passou de
111 milhões para 5.631 bilhões de dólares ou 94 vezes maior. É, de fato, um
importante mercado para o comércio regional. Em 2001, por exemplo, a Bolívia
destinou 27% de suas exportações para a Comunidade, sendo que, no ano anterior
havia destinado 21%. Colômbia vendeu 22%, em 2000, acima dos 17% do ano
anterior. Equador destinou 18% de toda sua exportação para a CAN, que no ano
anterior fora de 14%. Peru aumentou de 7% para 8%, entre 2000 e 2001. A
Venezuela manteve seus 5% nos dois anos citados. Os dados mostram que as vendas
internas aumentaram substancialmente desde que a CAN foi reativada,
principalmente depois que se chegou ao entendimento sobre tarifas alfandegárias”

Observa-se, assim, a obtenção de ganhos relevantes com o processo de integração que escapam a
uma dinâmica apenas econômica e comercial,apesar das condicionantes estruturais que marcam
macroeconomicamente a região, como será analisado posteriormente.

4 - Mercosul para além da América do Sul

9
Ricardo Sennes et alli, “Padrões de inserção externa da economia brasileira e o papel da integração sul-americana”.
Análise de Conjuntura, Observatório Político Sul-Americano, março de 2006. Disponível em
http://observatorio.iuperj.br.
10
Alfredo da Mota Menezes, Pio Penna Filho. Integração regional: Blocos econômicos nas Relações Intrenacionais.
Rio de Janeiro: Elsevier, 2006, pp.75-76.
Alca e União Européia

O Mercosul tem negociado diversos acordos comerciais extra-hemisféricos, com a União Aduaneira
da África Austral (SACU), Canadá, Índia, Egito, Marrocos, Israel, Conselho de Cooperação do
Golfo e a busca de um (difícil) entendimento com a União Européia. O bloco também negocia de
maneira unificada a Alca.

Recentemente, o México aproximou-se do Mercosul, principalmente em função das perdas


econômicas que os mexicanos sofrem diante da competição chinesa. A idéia de que com o Nafta o
México teria uma onda de prosperidade como plataforma de exportação para os EUA e Canadá,
baseada em mão-de-obra barata, não se concretizou. Os custos chineses são bem mais baixos e
vantajosos para as transnacionais, e agora os mexicanos buscam opções reforçando seus laços com
o Mercosul e assinando acordos de livre comércio com Chile, Venezuela e Colômbia. Especula-se
que o país poderá solicitar adesão como membro-associado do bloco.

O comércio do Mercosul com os demais países em desenvolvimento tem crescido a taxas rápidas,
em particular com a China, mas as relações econômicas com os EUA e a União Européia se
encontram em impasse. As nações ricas pressionam o Mercosul por concessões em áreas como
serviços, compras governamentais, propriedade intelectual, o que traria prejuízos econômicos e
limitaria a capacidade do Estado em promover políticas públicas de desenvolvimento e saúde –
restringindo por exemplo a fabricação de medicamentos genéricos. O Mercosul, por sua vez, quer
que os ricos diminuam seus subsídios agrícolas. Os principais interessados, são Argentina e Brasil,
grandes exportadores no setor:

... pode-se dizer que a Argentina é o país mais prejudicado do mundo pelas políticas
formuladas para os agricultores dos Estados Unidos e da Europa... Foi estimado que a
liberalização total do comércio agroalimentar, somente na Europa, pouco menos que
duplicaria as exportações argentinas de cereais e oleaginosas ao Velho Continente, e
multiplicaria por quase cinco vezes as de carne.11

O processo da Alca é exemplar nesse sentido. A proposta original foi apresentada na Cúpula de
Miami, em 1994 e incluía, além da liberalização comercial, temas sociais e ligados à cooperação
para educação, saúde e financiamento de infraestrutura. Foram abandonados nas negociações, que
se limitaram à abertura de mercados.

Além disso, o Congresso dos EUA concedeu uma autorização bastante limitada à presidência para
conduzir as negociações, excluindo 500 produtos agrícolas e temas caros ao Mercosul, como regras
antidumping. Os diplomatas do bloco chamam a atenção para o risco de que a Alca procure reverter
ganhos conquistados no âmbito da Organização Mundial do Comércio, como as vitórias contra os
subsídios ao algodão e ao açúcar.12

As negociações para um acordo entre Mercosul e União Européia começaram em 1995. A agenda
inclui ciência e tecnologia, meio ambiente e combate ao crime organizado, mas o pilar é a
liberalização comercial recíproca. No entanto, a maioria das exportações do Mercosul para a Europa
é de produtos agrícolas e a resistência européia a diminuir seu protecionismo nesse setor é muito
grande, particularmente na França. Também há conflitos com relação ao medo da UE que eventuais

11
Lucas Llach e Pablo Gerchunoff, Entre la Equidad y el Crecimento, la economia argentina 1880-2002. Buenos
Aires: Siglo XXI, 2004, p. 113.
12
Adhemar Bahadian e Maurício Lyrio, “Alca: um depoimento da co-presidência brasileira”. Revista Política
Externa. v.14 n. 3, dezembro de 2005.
concessões no acordo com o Mercosul resultem no enfraquecimento de sua posição negociadora na
OMC.

A maior parte das controvérsias diz respeito à proposta européia de aumentar as cotas de
importação dos produtos agrícolas do Mercosul, em troca de adesão por parte dos sul-americanos de
regras de investimentos, patentes, serviços e propriedade intelectual que vão além daquelas
definidas nos acordos da OMC. As organizações da sociedade civil criticam as propostas européias
e chamam a atenção para o mau resultado dos acordos da UE com o México e o Chile, que não
trouxeram benefícios a esses países.13

O Grupo dos 20 na OMC

O Mercosul também tem importante papel no G-20 da OMC, que reúne importantes países em
desenvolvimento para negociar em conjunto, sobretudo em temas agrícolas. Todos os membros
plenos do bloco participam do grupo, bem como os associados Chile e Bolívia. Atuação que reforça
a proposta inicial da criação mercosulina, como um modo de tornar mais eficiente a inserção
internacional dos países sul-americanos.

O Brasil busca aproximação mais estreita com outros membros-chave do G-20, sobretudo Índia e
África do Sul. Os três países criaram um Fórum de Diálogo em 2003. O Fórum IBAS tem sido
apontado como uma inovadora experiência de articulação tricontinental entre países do sul:

A proposta inicial do IBAS era criar uma aliança tênue que pudesse apresentar voz
coesa nas sessões de barganha previstas para a Rodada Doha [da OMC] e que
exerceria pressão sobre as nações ricas de modo a alcançar posições comuns
nas deliberações do Conselho de Segurança da ONU. O IBAS posteriormente
ampliou sua presença num diálogo anual envolvendo os ministros de relações
exteriores da Índia, Brasil e África do Sul para discutir temas ligados ao
desenvolvimento e à possibilidade de abordagens conjuntas em lidar com as
oito Metas do Milênio, que os países do IBAS apóiam ativamente.14

O papel do G-20 na OMC tem sido alvo de controvérsias por parte das organizações da sociedade
civil. Inicialmente ele foi saudado como uma iniciativa que favoreceria os interesses dos países em
desenvolvimento dentro do jogo de poder do comércio internacional. As tensões começaram
quando o G-20 se afirmou como um espaço para a defesa das posições dos grandes exportadores
agrícolas que buscam acesso facilitado aos mercados consumidores dos países ricos.

Na conferência ministerial da OMC em Hong Kong, em dezembro de 2005, o G-20 esteve ao lado
dos EUA e conseguiu uma pequena redução nos subsídios da União Européia para exportações
agrícolas. Contudo, esse movimento foi encarado como prejudicial ao mundo em desenvolvimento,
que teve que fazer concessões significativas em tarifas de proteção industrial. Para Walden Bello,
Brasil e Índia foram cooptados a fazer parte de uma “nova elite” na OMC:

A razão para o colapso dos países em desenvolvimento não foi tanto a falta de
liderança, mas liderança que os trouxe para a direção errada. A chave para a
catástrofe de Hong Kong foi o papel do Brasil e da Índia, líderes do famoso G-
20... seu principal ganho não foi o impacto do acordo sobre suas economias, mas a
afirmação de seu novo status como “articuladores de poder” [power brokers] dentro
da OMC... Novos jogadores precisaram ser acomodados na elite. O círculo de poder

13
Ver http://www.jubileubrasil.org.br/alca/campanhacontinental/campanhacontinental.htm.
14
Kaia Lai,“India-Brazil-South Africa: the Southern Trade Powerhouse Makes its Debut”. Disponível em
http://www.coha.org/NEW_PRESS_RELEASES/New_Press_Releases_2006/06.18_IBSA.html.
teve que ser expandido para colocar a organização novamente de pé, e em
movimento.15

China e Liga Árabe

Em termos econômicos, o parceiro mais forte do Mercosul no mundo em desenvolvimento é a


China. O país entrou com vigor no mercado energético e também se apresenta como um dos
principais compradores de commodities agrícolas e minerais, como soja (Brasil), trigo (Argentina)
e cobre (Chile). Os chineses também oferecem consideráveis possibilidades de investimentos:

Numa visita à Argentina, ao Brasil e ao Chile em novembro de 2004, o presidente da


China Hu Jintao anunciou planos de investir US$100 bilhões na América Latina ao
longo de uma década. De início, assinou um contrato de energia com o Brasil no
valor de US$10 bilhões, para investimentos na infraestrutura de energia e
transporte durante dois anos (a petrolífera chinesa Sinopec já tem um acordo de
US$1,3 bilhões com a Petrobras para construir um gasoduto de 2 mil quilômetros).
Petrolíferas chinesas também investiram em campos na Colômbia, Equador e
Peru, e colocaram US$5 bilhões em projetos no litoral da Argentina.

Além de comprar ativos em energia, os chineses também investem em redes de


transporte para ajudar a levar suas compras para casa. Empresas chinesas estão,
por exemplo, reconstruindo as ferrovias da Argentina e reparando as estradas da
Venezuela.

A China também demonstrou interesse em construir e financiar vários projetos para


modernizar o Canal do Panamá. Uma empresa de Hong Kong já opera portos nos
dois lados do istmo, levantando preocupações entre alguns republicanos em
Washington - e recentemente, Hilary Clinton - sobre a influência efetiva da
China sobre a hidrovia.16

Outra iniciativa importante é a Cúpula América do Sul – Países Árabes, realizada em Brasília em
2005. A aproximação vai além do comércio, abarcando cooperação para o desenvolvimento e a
defesa do multilateralismo e das resoluções da ONU.

No aspecto econômico, os países árabes são grandes compradores da produção do agronegócio sul-
americano. A Sadia, empresa brasileira que é uma das maiores exportadoras de frango do mundo,
vende cerca de metade da sua produção para as nações da Liga Árabe. A América do Sul também
recebeu milhões de imigrantes da Síria e do Líbano ao longo da primeira metade do século XX.
Essas pessoas e seus descendentes exerceram importantes funções na Argentina, no Brasil e na
Venezuela, em particular na modernização do comércio, na medicina e na política – no Brasil, cerca
de 10% dos parlamentares têm origem sírio-libanesa, além de vários governadores estaduais e
ministros de Estado.

Empresas sul-americanas de serviços, como construção civil, são atuantes no mundo árabe.
Venezuela e Brasil desenvolvem parcerias importantes no setor petrolífero, sendo que os
venezuelanos são membros da Organização de Países Exportadores de Petróleo (Opep), recurso

15
Walden Bello, “The Real Meaning of Hong Kong: Brazil and India Join the Big Boys´ Club”, 22/12/2005.
Disponível em http://www.focusweb.org/index2.php?
option=com_content&task=view&id=799&Itemid=36&pop=1&page=0
16
Ben Schiller, "The axis of oil: China and Venezuela". Disponível em www.opendemocracy.net/globalization-
corporations/china_venezuela_3319.jsp
natural fundamental para sua economia.

Embora a cooperação América do Sul-Liga Árabe seja positiva, há aspectos nesse processo que
merecem um exame mais detalhado. As posições de muitos países árabes com relação à
democracia, direitos humanos, direitos reprodutivos e situação das mulheres é problemática e tem
dado origem a discordâncias com as demandas mais progressistas da América do Sul em fóruns
como as conferências sociais da ONU.

A Declaração de Brasília, documento final da cúpula, faz afirmações controversas relativas à crises
internacionais, inclusive ao genocídio no Sudão, onde milícias árabes massacram as populações
negras do sul do país, com apoio e financiamento do governo. Contudo, a postura é apoiar as
autoridade sudanesas:

2.12. [os países sul-americanos e árabes] Afirmam a integridade territorial do Sudão


ea unidade o seu povo e exortam as partes interessadas a apoiar os esforços em
favor de uma paz abrangente e da reconstrução e do desenvolvimento desse país;
acolhem com satisfação as medidas adotadas pelo Governo do Sudão para
facilitar a assistência internacional à crise humanitária em Darfour e manifestam
seu grande interesse pelos esforços da Liga Árabe e da União Africana nesse
sentido.17

O caso é exemplar para demonstrar que nos grandes entendimentos de cooperação entre os países
em desenvolvimento predomina o enfoque econômico-comercial. Questões fundamentais como a
defesa dos direitos humanos são vistas como incômodas, ou quando muito abordadas como
declarações retóricas, sem efeitos práticos. Será necessário intenso acompanhamento dos debates e
pressão política por parte da sociedade civil para modificar esse quadro.

O impulso da América do Sul para fortalecer os laços econômicos e políticos com outras regiões em
desenvolvimento ocorre num momento especial. Após o 11 de setembro as prioridades
estadunidenses concentram-se no Oriente Médio e na Ásia, o que dá um pouco mais de margem de
manobra aos países sul-americanos. Por exemplo, o governo Chávez investiu cerca de US$2 bilhões
no continente em 2005, mais do que a administração Bush alocou para seus aliados na região. 18
Alguns analistas advertem o governo dos Estados Unidos de que é preciso dar mais atenção à
América do Sul.19

Tal agenda possibilitou ao Brasil se posicionar como um importante intermediário entre os Estados
Unidos e os países sul-americanos, mediando crises como as da Venezuela e servindo como um
fator de estabilidade, sobretudo por sua política econômica conservadora. Esse é o contexto que
explica a amizade entre Bush e Lula, que surpreende a muitos.

Contudo, o cenário não significa que a América do Sul esteja fora dos interesses do governo dos
EUA. Há uma agenda intensa que envolve comércio, imigração, narcotráfico e o controle de
recursos naturais (petróleo, gás, biodiversidade) como ilustrado pela disposição das bases militares
estadunidenses no continente:

[ entra mapa sobre militarização e recursos naturais, elaborado por Ana Esther Ceceña]

17
Disponível em http://www2.mre.gov.br/aspa/Decl/portugues.doc.
18
“Chávez, seeking foreign allies, spends billions”. New York Times, 04/04/2006
19
Ver, por exemplo, Peter Hakim, “Is Washington loosing Latin America?”, Foreign Affairs, v.85, n.1,
janeiro/fevereiro de 2006.
5- Recursos Naturais

Soja

Os recursos naturais têm papel fundamental nos processos de integração regional em curso na
América do Sul. Terra, água, petróleo e gás natural estão na base do comércio da maioria dos países
do continente, bem como em sua matriz energética e como diferencial para a atração de
investimentos externos. O uso e abuso dos recursos naturais estão no centro da disputa em torno de
um novo modelo de desenvolvimento para a América do Sul.

Tais preocupações vêm do fato que o continente reúne algumas das reservas naturais mais
importantes do mundo, riquíssimas em biodiversidade e água doce, como a Amazônia e o Aqüífero
Guarani. Ao mesmo tempo, a expansão do agronegócio, sobretudo da soja, coloca em risco a
preservação do meio ambiente e relança o conhecido debate sobre os custos do crescimento
econômico.

A demanda mundial por alimentos, impulsionada pelo crescimento acelerado da China e da Índia,
levou ao boom do agronegócio na América do Sul. O principal produto de exportação é a soja,
usada em óleos, ração animal e alimentos.

Na América do Sul estão localizados dois dos maiores produtores mundiais de soja, Brasil e
Argentina, sendo que o plantio se espalha rapidamente por Bolívia, Paraguai e Colômbia,
substituindo culturas tradicionais, porém menos rentáveis, como algodão e café.

Os emigrantes brasileiros tem se destacado como fazendeiros de soja em regiões fronteiriças ao país
, como os departamentos do Oriente, na Bolívia, e do Alto Paraná e Canideyú, no Paraguai. Os
brasileiros têm sido bem-sucedidos comercialmente e implementado modernizações nas técnicas
agrícolas, mas entraram em conflitos com trabalhadores sem-terra paraguaios, virando alvo
principal das ocupações fundiárias. Como os emigrantes brasileiros são 10% da população do país e
possuem 40% das terras dos departamentos citados, é fácil perceber a gravidade das disputas.20

Há indicações de que conflitos semelhantes possam ocorrer na Bolívia, onde os movimentos rurais
têm pressionado o governo Morales para realizar uma reforma agrária a partir da distribuição das
terras dos fazendeiros brasileiros.

Contudo, a atuação de pequenos e médios fazendeiros no cultivo da soja é minoritária. Trata-se de


um complexo agroindustrial controlado por reduzido grupo de firmas transnacionais: “Quatro
empresas multinacionais decidem o preço de 84 por cento da soja colhida no Brasil e tornam os
produtores rurais seus dependentes desde a hora da compra da semente até depois da colheita.“21

Além do impacto social e nas relações trabalhistas, o fato de que a maior parte dessa produção é de
soja transgênica também preocupa, tanto pelas conseqüências desconhecidas das modificações
genéticas quanto pela dependência que elas acarretam. Os agricultores que usam transgênicos
passam a depender das empresas que as utilizam (em especial a Monsanto, que controla 90% do
mercado) para acesso às sementes.

Os danos ao meio ambiente têm sido especialmente debatidos, visto que a monocultura da soja se
expande para regiões de grande biodiversidade, como Amazônia, Xingu e Pantanal. O crescimento
das plantações costuma provocar deslocamento de população e deixar atrás de si um rastro de
20
Hirst, op. cit.
21
“Soja: um grande negócio”. Série de reportagens disponível em http://www.radiobras.gov.br/especiais/soja/.
“cidades mortas”, para repetir a expressão que o escritor brasileiro Monteiro Lobato usou há 100
anos para descrever o fenômeno semelhante provocado pela monocultura do café. O trabalho do
Fórum Articulação Soja 22, que reúne ONGs sócio-ambientais, tem sido importante para chamar a
atenção para esses problemas.

As cadeias produtivas da soja com freqüência ligam os plantadores sul-americanos às transnacionais


do setor de alimentos, levantando questões sobre a responsabilidade social dessas empresas. Por
exemplo, “muito da ração animal à base de soja chegando no Reino Unido vinda do Brasil é
produto de ´crime florestal´ e o McDonald´s e os supermercados britânicos tem fechado os olhos à
destruição da floresta.”23

Os governos do continente têm dado apoio às iniciativas dos grupos empresariais do agronegócio,
que em geral estão bem representados nos parlamentos nacionais e ainda oferecem a possibilidade
de ganhos econômicos no curto prazo para equilibrar a balança de pagamentos, com conseqüências
para o modelo de desenvolvimento adotado:

... a estratégia buscada para o ajuste do setor externo, objetivando elevar rapidamente
os saldos comerciais em curto prazo, impôs um ´desenho´ geral de
desenvolvimento que, mesmo de forma implícita, é a conseqüência dessa
opção pragmática: uma enorme pressão sobre os recursos naturais do solo e do
subsolo do país, onde existe a possibilidade de ampliação rápida da participação
do país no comércio internacional a curto prazo, com geração simultânea de
expressivo resultado positivo na balança comercial.24

O padrão persiste em outros tipos de cultivo, sobretudo o eucalipto. As grandes indústrias de


celulose são responsáveis pela disseminação do “deserto verde”, plantando áreas gigantescas de
eucalipto e pínus para servir de base à sua produção. Embora a iniciativa seja apresentada como
ecológica e sustentável, destrói a biodiversidade. Tais práticas levam a conflitos com pequenos
agricultores e povos indígenas.

Um exemplo são os choques entre a Aracruz Celulose, uma das maiores empresas do setor, e o
Movimento dos Sem Terra no Brasil, que têm ocupado terras da companhia e chamado a atenção
para o problema sócio-ambiental do deserto verde. Ironicamente, o Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o mais importante órgão de fomento do governo
brasileiro, é acionista da Aracruz e também financia a expansão dos negócios da celulose no Brasil.
Fatos que trazem à tona o debate sobre o modelo de desenvolvimento promovido pelo Estado.25

Petróleo e Gás

Ao longo da década de 90, as questões relativas ao petróleo e ao gás natural tornaram-se centrais
para a integração sul-americana, devido à descoberta de grandes reservas de gás na Bolívia e ao
aumento dos preços do petróleo, que proporcionaram à Venezuela a base econômica para suas
políticas sociais e seus projetos de cooperação internacional. O acesso a essas riquezas também
resultou em grandes projetos de infraestrutura e em disputas políticas, que levaram inclusive a
golpes de Estado e à queda de presidentes.

A Bolívia é um dos países mais pobres da América do Sul e com a história marcada pela espoliação

22
http://www.cebrac.org.br/forumnovo/
23
“The 7,000 Km journey that links Amazon destruction to fast food”. The Guardian, 06/04/2006.
24
Adhemar Mineiro, “Desenvolvimento subordinado ao modelo exportador”. In: Rugidos e Sussurros – Observatório
da Cidadania – Relatório 2005. Ibase, Rio de Janeiro, 2005, p.42.
25
Ver Carlos Tautz, Um Mar de Eucaliptos. CD-ROM do Projeto MAPAS (Ibase, 2005).
de recursos naturais (prata e estranho) por potências estrangeiras ou grandes empresas, sem que essa
riqueza resultasse na melhoria de vida da população. A instabilidade política também é uma
constante no país: foram mais de 200 golpes em cerca de 180 anos de vida independente. Além
disso, a sociedade boliviana é marcada por alto grau de racismo e exclusão com relação aos povos
indígenas, que constituem a maioria da população.

Nos anos 90, a Petrobras descobriu enormes reservas de gás natural no país, que totalizavam cerca
de 10 vezes o total conhecido até aquela data. A novidade estimulou expectativas de que o gás fosse
a chave para o desenvolvimento do país, proporcionando empregos e recursos para o governo. Mas
como tantas vezes na história boliviana, os recursos naturais do país foram controlados por um
punhado de grandes empresas transnacionais: Petrobras, Repsol, BP e Enron. A estatal YPFB foi
privatizada e suas refinarias e gasodutos passaram para o controle dos estrangeiros.

A indústria do gás de fato trouxe benefícios à Bolívia, principalmente pelo aumento das receitas do
Estado – a Petrobras, a maior pagadora de impostos do país, é responsável por 18% do PIB
boliviano. No entanto, essa prosperidade não se traduziu em benefícios para a população pobre. A
luta pelo gás se tornou o coração de uma série de disputas no país, lançando o questionamento sobre
os objetivos dos processos de integração. A quem beneficiam? O que está em jogo?

Além das rivalidades internas, o gás foi o estopim de disputas entre a Bolívia e o Chile, por conta de
uma decisão do ex-presidente boliviano Sanchez de Lozada de exportar gás para os EUA, através de
portos chilenos. Na Guerra do Pacífico (1879-1884), o Chile derrotou Peru e Bolívia pelo controle
do salitre e do guano, existentes em grande quantidade no deserto do Atacama, zona fronteiriça
entre as três nações. Os chilenos tomaram territórios dos dois inimigos e em conseqüência deixaram
a Bolívia sem acesso ao mar, o que muito prejudica sua economia. A reivindicação marítima
continua a ser um tema controverso e que dificulta as relações entre Chile e Bolívia. A decisão de
Sanchez de Lozada provocou tanta oposição popular que o presidente acabou renunciando.

Evo Morales foi eleito presidente da Bolívia em 2005, após três anos de grande instabilidade e
conflitos. O primeiro indígena a assumir o poder no país é um líder sindical e camponês, presidente
de uma central de cocaleiros. Foi dos principais defensores da nova Lei de Hidrocarbonetos, que
aumentou os impostos e royalties sobre o gás para 50%. Todas as empresas estrangeiras do setor,
com exceção da Petrobras, entraram com processos judiciais contra o governo boliviano, mas
também negociam novos contratos. Uma medida sua radicalizou, em 1° de maio último, as disputas
em torno do setor de hidrocarbonetos, ou seja, o Decreto n° 28.701, que nacionaliza o setor no
país. É um documento de certa forma vago, pois reúne apenas nove artigos e não esclarece o tipo de
nacionalização, se com pagamento de indenizações ou não, que o governo está disposto a realizar.
A verdade é que os impactos de tal medida ainda não podem ser avaliados com exatidão, seja na
Bolívia, ou nos outros países da América Latina, mas, de qualquer forma, ressaltam a importância
de se repensar os recursos naturais estrategicamente na região e associá-los a um projeto de
desenvolvimento e integração.

A vitória de Morales, a princípio, teria aberto perspectivas para se chegar a um acordo sobre gás
com a recém-eleita presidente do Chile, Michelle Bachelet, país que tem grande demanda por esse
recurso natural. Cerca de ¾ do gás consumido pelos chilenos vem da Argentina, que já deixou de
suprir o abastecimento em momentos de crise. O parceiro lógico para diminuir a dependência é a
Bolívia, mas os problemas políticos têm impedido um entendimento entre os dois governos.26

O petróleo no centro das lutas políticas da Venezuela. A economia do país é extremamente


dependente das exportações petrolíferas e os conflitos sociais venezuelanos tendem a acompanhar
26
Cristina Alexandre, Flávio Pinheiro e Vitor Acselrad, “As políticas do gás natural dos governos de Morales e
Bachelet”. Disponível em: http://observatorio.iuperj.br.. Março de 2006.
as oscilações nos preços internacionais do produto. Nos anos 80, um período de baixa levou à piora
da situação social e a uma ampla revolta contra o governo, o Caracazo (1989). A sangrenta
repressão contra os moradores dos bairros pobres da capital Caracas desacreditou ainda mais os dois
partidos políticos hegemônicos (que se alternavam no poder desde 1958), já associados à corrupção
e à ineficiência da administração pública. Nesse cenário de crise das instituições, o tenente-coronel
Hugo Chávez tentou um golpe de Estado. Foi derrotado, mas estabeleceu-se como o principal líder
da oposição ao sistema político tradicional. Em 1998, foi eleito presidente.

No rastro dos atentados de 11 de setembro, da invasão do Iraque e de outras crises internacionais, o


preço do petróleo disparou, dando ao governo Chávez recursos para implantar amplos programas
sociais, conhecidos como “missões”, em áreas como saúde, economia solidária, educação e
habitação popular. Os petrodólares também financiam as políticas de integração sul-americana de
Chávez, conhecidas como Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba).

A Venezuela de Chávez se tornou um ativo líder regional na América do Sul, em parte para evitar o
isolamento internacional de seu regime. Assinou acordos de cooperação com Cuba, trocando
petróleo por serviços médicos e educacionais. Criou um canal de jornalismo dedicado à América
Latina, a Telesur, em parceria com a Argentina, a quem ajudou comprando títulos da dívida externa.
Ofereceu auxílio técnico à Bolívia, na área de exploração de gás e petróleo. E iniciou grandes obras
de infraestrutura, como estradas, refinarias e o gigantesco projeto do Gasoduto do Sul.

Contudo, o petróleo também deu a Chávez a possibilidade de interferir na política interna de países
vizinhos, estimulando grupos oposicionistas na Colômbia e no Peru. Denúncias de que estaria
financiando os guerrilheiros colombianos das FARCs e militares nacionalistas peruanos levaram a
tensões com os dois governos. Também entrou em conflito com o presidente mexicano, a quem
critica como submisso aos EUA. Os ataques recíprocos entre Chávez e Bush são freqüentes e
bastante conhecidos, embora os Estados Unidos continuem a ser o parceiro econômico mais
importante da Venezuela, que um dos principais fornecedores de petróleo para o país.

Água

Por sua importância e escassez a água é um recurso natural vital e que os analistas apontam que será
fonte de várias disputas político-econômicas no século XXI. A América do Sul é rica em reservas
hídricas, na Bacia Amazônica e no Aqüífero Guarani. Ainda assim, o acesso à água já impulsiona
importantes conflitos, sobretudo no campo da privatização dos serviços de abastecimento.

O caso da Bolívia é emblemático. A partir dos anos 80, o país adotou um duro programa de ajuste
estrutural, para conter a hiperinflação. O receituário aplicado incluiu privatização em larga escala.
Na cidade de Cochabamba, os serviços públicos de abastecimento de água foram comprados em
1999 pelo consórcio multinacional Águas de Tunari, que reunia empresas da Bolívia, Itália,
Espanha e EUA. Os novos donos fizeram o governo promulgar leis draconianas para regular o uso
dos recursos hídricos, impondo tarifas bem mais elevadas e a proibição de que a população retirasse
águas dos rios ou da chuva. No país mais pobre do continente, em que a maioria das pessoas
sobrevive com menos de U$1 por dia, a nova legislação significava, na prática, retirar dos mais
pobres o acesso à água.

Os movimentos sociais bolivianos formaram a Coordenadora de Defesa da Água e da Vida, que


agrupou representantes de diversos setores, como associações de moradores, sindicatos,
camponeses, aposentados, estudantes. As pessoas bloquearam ruas e estradas, ocuparam
simbolicamente Cochabamba e enfrentaram polícia e exército. Em 2000, depois de meses de
conflitos, o governo boliviano cancelou o contrato com o consórcio e cedeu a administração do
abastecimento de água à própria Coordenadora. A chamada “guerra da água” não foi somente um
conflito social localizado:

A reinvindicação da ´Coordenadora´, que gira em torno da água, conseguiu articular


a população rural e urbana, em função de que esse é um recurso que afeta a
todos. A água, ao ser reivindicada como bem público e, na medida em que a
demanda gira em torno do seu manejo segundo ´usos e costumes´, questiona o
programa neoliberal de destruição sistemática dos espaços coletivos e
comunitários. A demanda de água é a reivindicação de uma subjetividade
associativa/comunitária, de solidariedade e apoio mútuo.27

Os protestos no país mais pobre da América do Sul tiveram impacto numa das nações de maior
desenvolvimento no continente, o Uruguai. Ali, a sociedade civil teve força suficiente para discutir
a privatização da água num referendo nacional, realizado junto com as eleições presidenciais, em
2004. A mesma votação que deu a vitória à Frente Ampla, de esquerda, decidiu que o
abastecimento de água deveria continuar a ser serviço público.

Na Argentina, o governo Kirchner decidiu reestatizar o abastecimento de água de Buenos Aires, que
havia sido privatizado para a empresa Águas Argentinas, controlada pelo grupo francês Suez. O
contrato foi anulado pelos argentinos por uma série de razões que envolvem desde a má qualidade
da água (com nitratos 50% além do nível aceitável) até o preço elevado e as dificuldades de
abastecimento. Segundo Kirchner:

Tampouco estamos dispostos a aceitar qualquer preço, qualquer tarifa, como se a


água fosse um bem inalcansável. Há empresas, há espaços na economia, que
podem ser rentáveis, e há outros que precisam chegar às pessoas como um ato de
28
justiça e dignidade.

A “batalha da água” envolve o governo da França, que está imerso em outras disputas com relação
às privatizações, no setor elétrico argentino. O grupo Suez tem ameaçado processar o governo da
Argentina através de um tribunal do Banco Mundial.

Outro destaque é Aqüífero Guarani, uma das maiores reservas subterrâneas de água doce do mundo,
espalhado entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Possui imenso potencial para abastecimento
de cidades, fazendas e indústrias. A água é de excelente qualidade – pode ser consumida
diretamente, sem filtragem. Também é quente, pode ser utilizada para reduzir o consumo de
eletricidade (em aquecedores, por exemplo), para combater geadas e para irrigar regiões ameaçadas
de desertificação, como certas parte do sul e do centro-oeste do Brasil.

Há preocupações dos grupos sócio-ambientais com as possibilidade de contaminação do aqüífero, e


de seu uso indiscriminado por parte de grandes empresas, temores reforçados pelo péssimo histórico
das transnacionais com relação à agua, como examinados nos casos acima.

6. Segurança e Paz

A América do Sul é um continente com pouca violência internacional. Nos últimos 20 anos houve
apenas uma breve e limitada guerra de um mês entre Peru e Equador, em 1995, rapidamente
encerrada por mediação entre os vizinhos. Mas há muita agressão dentro das fronteiras.

27
Claudia Wasserman, “Bolívia: história e identidade. Uma abordagem sobre a cultura e a sociedade
contemporâneas.”. In: H. Araújo (org.) Os Países da Comunidade Andina. Brasília: IPRI, 2003. v1, p.336-337.
28
Pagina 12, 24/03/2006.
A violência política foi marcante no período da proliferação das ditaduras militares, nas décadas de
60 e 70. Hoje, o problema persiste na forma de intimidação a inimigos políticos, ações de grupos
guerrilheiros e paramilitares e outros ataques armados. Levantamento pioneiro realizado por
pesquisadores argentinos e brasileiros calculou cerca de 1.600 vítimas políticas em 2005, entre
mortos, feridos e seqüestrados.

Os casos concentram-se na Colômbia (55%), Equador (27%), Bolívia (7,6%) e Argentina (4,3%).
No primeiro país, trata-se do conflito que há décadas traz devastação e sofrimento. No Equador e na
Bolívia, diz respeito a choques durante as crises que derrubaram os presidentes Lucio Gutierrez e
Carlos Mesa. Na Argentina, as vítimas ocorreram na repressão a protestos sociais. Em países como
Uruguai e Chile, a pesquisa não encontrou ocorrências de violência política.29

As altas taxas de crime nas grandes cidades da região e o conflito colombiano, com suas
conseqüências internacionais, são responsáveis pela morte, ferimentos ou agressões a centenas de
milhares de pessoas por ano. Quadrilhas de criminosos ligados ao narcotráfico e ao contrabando
com freqüência assumem o controle de bairros pobres e periferias, os mesmo de zonas remotas no
interior. Em países como Brasil, Colômbia e Peru, a ação desses grupos de bandidos é uma ameaça
concreta ao Estado de Direito, pelos ataques a autoridades públicas (policiais, juízes, promotores)
ou pela infiltração nas estruturas do poder político.

Coca

O cultivo da coca é tradicional na região andina da América do Sul, em particular na Bolívia, Peru,
Equador e Colômbia. A planta é utilizada há milênios na alimentação, medicina e cerimônias
religiosas dos povos indígenas desses territórios. Contudo, a formação de uma poderosa indústria
das drogas e a demanda internacional pela cocaína nos EUA e na Europa a partir dos anos 70
transformaram a região andina no epicentro de conflitos armados de escala devastadora, com
impactos sobre a democracia, o meio ambiente e as tradições sociais de milhões de pessoas.

A partir da chamada “guerra contra as drogas” nos Estados Unidos, iniciada no governo Nixon,
Washington alterou sua estratégia com relação à América Andina. O comunismo deixou de ser visto
como a ameça principal e o foco foi reorientado para o combate ao narcotráfico, inclusive com
pressões para que as forças armadas locais fossem utilizadas na tarefa. Na Colômbia e no Peru isso
ocorreu com grande amplitude, com conseqüências trágicas.

As origens do conflito colombiano remontam a 1948, ano em que o líder liberal Jorge Eliécer
Gaitán foi assassinado. O crime serviu de estopim à revolta popular do Bogotazo, e do
enfrentamento armado entre liberais e conservadores, a chamada “La Violencia”, cujo auge ocorreu
entre 1948-1958, deixando cerca de 200 mil mortos.

Em 1958 os partidos liberal e consevador chegaram a um acordo de divisão de poder, mas o pacto
entre as elites não foi capaz de representar as demandas sociais da população mais pobre e a
violência continuou a imperar. Na década de 60 foram organizadas guerrilhas de inspiração
marxista das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARCs) e do Exército de Libertação
Nacional (ELN). Para combatê-los, surgiram grupos paramilitares. Com o tempo, as organizações
armadas acabaram envolvendo-se com o narcotráfico, em geral cobrando taxas para permitir o
cultivo de coca nos territórios sob seu controle, executando seqüestros por razões políticas ou
simplesmente para ganhar dinheiro.

Nos anos 80 e 90, houve um agravamento do conflito – no auge, os grupos armados controlavam
29
Marcelo Coutinho e Juan Claudio Epsteyn, “Os Atuais Números da Violência Política na América do Sul”, Revista
do Terceiro Setor, 10/02/2006.
cerca de 40% da Colômbia, cometendo assassinatos e atentados a bomba. Os EUA já tinham um
profundo envolvimento na guerra civil colombiana e em 1999 implantaram o Plano Colômbia, com
verbas de U$7,5 bilhões para militarizar o combate ao narcotráfico e às guerrilhas. O volume de
dinheiro tornou o país o terceiro receptor de ajuda externa estadunidense, atrás apenas de Israel e do
Egito.

Os métodos utilizados pelo governo da Colômbia e dos EUA provocaram repúdio das organizações
da sociedade civil devido às repetidas violações de direitos humanos, além dos danos sócio-
ambientais, como destruição de plantações com herbicidas tóxicos que causam problemas de saúde
em seres humanos e poluem águas e florestas. Ao longo dos anos, o conflito colombiano também
deu origem a milhões de desplazados, refugiados que trocaram seu lar no interior pelas periferias
das grandes cidades, ou fugindo para outro país. Povos indígenas foram muito afetados e alguns
estão ameaçados de desaparecer.

A guerra civil colombiana também cria tensões internacionais. Países vizinhos - Venezuela, Brasil,
Equador e Peru - temem a invasão de seu território por grupos guerrilheiros ou paramilitares, o que
ocorreu algumas vezes. Também têm medo que os EUA utilizem o narcotráfico como pretexto para
intervenções militares na Amazônia. Ainda assim, os governos da América do Sul não foram
capazes de articular uma coligação em busca da paz na Colômbia. Há um precedente no Grupo de
Contadora, formado por países latino-americanos, que intermediou negociações de paz na América
Central, no período das guerras civis dos anos 80, opondo-se às intervenções militares apoiadas
pelos Estados Unidos.

Durante o governo do presidente colombiano Andrés Pastrana (1998-2002) foram iniciados


diálogos com os grupos armados e criada uma zona desmilitarizada no interior do país,
administrada pelas FARCs. Contudo, o processo não avançou, com acusações mútuas de
desrespeito aos acordos. Os atentados de 11 de setembro e a decretação da “guerra contra o terror”
por parte do governo dos EUA também tiveram impacto sobre a Colômbia. O presidente Álvaro
Uribe tomou posse em 2002 com uma grande votação e políticas de “linha dura” no combate às
guerrilhas e aos paramilitares.

No Peru, o governo de Alberto Fujimori (1990-2000) utilizou-se das ameaças à segurança para
implantar um regime autoritário a partir do “autogolpe” de 1992, sob o pretexto de combater o
terrorismo dos grupos Sendero Luminoso e Movimento Revolucionário Tupac Amaru.

Fujimori também conquistou as simpatias dos EUA abraçando seu programa de combate militar ao
narcotráfico. A maior parte das operações ficou a cargo de seu principal assessor, Vladmiro
Montesinos, um ex-oficial do exército, expulso das forças armadas por corrupção. Ao longo dos dez
anos de governo de Fujimori, Montesinos foi acusado de montar um grande aparato de crime
organizado usando como instrumento os serviços de informação e espionagem do exército peruano.
Entre as denúncias estão corrupção, tortura, tráfico de drogas e fornecimento de armas para as
guerrilhas colombianas. Com a queda de Fujimori, Montesinos foi preso, junto com generais
suspeitos de envolvimento em suas atividades ilícitas.

Na Bolívia, ao longo dos anos 90 vários governos se submeteram às diretrizes da política anti-
drogas dos EUA, principalmente em troca de incentivos comerciais, como acesso facilitado ao
mercado estadunidense para produtos agrícolas. A venda da folha de coca foi restrita e muitos
cocaleiros foram prejudicados economicamente.

Não é por acaso que o principal líder sindical cocaleiro, Evo Morales, tornou-se um dos principais
coordenadores dos movimentos de oposição aos governos bolivianos e foi eleito presidente do país
em dezembro de 2005. Discursando à Assembléia Geral da ONU, Morales colocou a questão das
drogas no contexto do racismo e do massacre sofrido pelos índios:

Como sabem, a coca é um arbusto perene que aproveita os solos mais pobres e afeta
o meio ambiente menos do que outros cultivos... a medicina natural dos Andes
empregou a coca por séculos para aliviar problemas estomacais, deter hemorragias,
cicatrizar feridas e aliviar a dor... Como não será digno produzir uma planta tão
benéfica? Desde o princípio da história colonial, quem condenou aos índios como
selvagens e ignorantes condenou a coca junto com toda uma cultura diferente para
eles. Nossa música não era música, era folclore. Nosso idioma, só um dialeto. Nossa
religião, idolatria. Nossa coca, um vício. E trataram de nos impor sua música, seu
idioma, sua religião... e seus vícios. Quando uma pessoa culpa à pedra por ter
tropeçado, dizemos que é imatura e que foge de sua responsabilidade. 30
O desafio para Morales é como conciliar a defesa dos interesses de sua base social com as pressões
econômicas e políticas que sofrerá dos EUA para continuar com a repressão ao plantio da coca.
Violência urbana
O tráfico de drogas é um dos fatores mais importantes para explicar os altos índices de violência nas
cidades sul-americanas. Mas não é o único. A ele se somam vários elementos que fazem do recente
processo de urbanização do continente uma história de exclusão social. Boa parte dos centros
urbanos do continente – São Paulo, Lima, Rio de Janeiro, Bogotá, Caracas, Buenos Aires –
passaram um crescimento populacional acelerado no pós- Segunda Guerra Mundial, na medida em
que milhões de pessoas fugiram da míséria rural (ou de conflitos armados, como na Colômbia) para
tentar a sorte nas indústrias e serviços das cidades.
Muitas delas conseguiram uma forma de inserção apenas marginal nas sociedades recém-
industrializadas, trabalhando em subempregos, na economia informal ou como prestadores de
serviços para a classe média e a elite. É significativo que no Brasil, o país com o maior PIB do
continente, as empregadas domésticas sejam a categoria profissional mais numerosa. Essa situação
social precária também está presente em formas de habitação e assentamento nas favelas,
poblaciones, villas misérias, cerros ou qualquer que seja o nome que os bairros pobres recebem nas
capitais sul-americanas.
Embora o acesso a serviços públicos seja melhor, de maneira geral, no meio urbano do que no rural,
essas comunidades são carentes de muitas atividades básicas do Estado como segurança,
saneamento, atendimento médico. Isso as tornou presas fáceis de grupos armados que impõem sua
própria lei, como quadrilhas de traficantes de drogas, bandos paramilitares ou matadores de aluguel.
Com freqüência, contam a conivência da polícia e das autoridades políticas, pela via do suborno e
da corrupção. A ação policial nessas zonas pobres é marcada pelo desrespeito aos direitos humanos,
pela violência e pelo racismo.
Os números impressionam. Colômbia, Venezuela e Brasil estão entre os países com mais mortes
violentas do mundo. Na América do Sul, são cerca de 80 mil por ano, concentradas de maneira
desproporcional entre a parcela mais frágil economicamente da população: jovens negros/índios e
pobres, do sexo masculino. O dado supera os 50 mil soldados que os EUA perderam em quase uma
década na guerra do Vietnã e é mais do que o triplo de civis mortos na guerra do Iraque.
Para além da morte e do sofrimento, a violência do crime organizado ameaça as instituições
democráticas, através da corrupção ou da intimidação/assassinato das autoridades que se opõem a
ele. Quadrilhas de bandidos também já conseguiram notável influência junto a parlamentares,
governadores estaduais e até presidentes em muitos dos países do continente.

30
Citado em Walter Martinez. “La Coca Cola Del Gas”. In: www.soberania.info/Articulos/articulo_217.htm
Missões de Paz da ONU: Haiti
Países sul-americanos como Argentina, Brasil e Uruguai têm forte participação nas missões de paz
das Nações Unidas. Esta tradição remonta aos primórdios da organização e reflete a defesa dos
governos sul-americanos do direito internacional e do multilateralismo.
Às vezes, a participação no sistema ONU atende a projetos de poder dos governos nacionais. A
partir dos anos 90, é conhecida a ambição brasileira de se tornar membro permanente do Conselho
de Segurança das Nações Unias, promovendo articulações internacionais com Índia, Alemanha e
Japão.
A recente intervenção da ONU no Haiti (Minustah) provocou oposição da maior parte das
organizações da sociedade civil do continente. O Haiti é o país mais pobre do hemisfério
americano, ocupando cerca de metade de uma pequena ilha no mar do Caribe. Uma revolução de
escravos no início do século XIX fez da nação a primeira a se tornar independente na América
Latina, mas o momento glorioso foi breve e a história haitiana é marcada por miséria, violência,
autoritarismo e ocupação militar estrangeira.
Em 2004 o presidente Jean-Bertrand Aristide, eleito democraticamente, foi deposto por um golpe.
No período de instabilidade e perseguições que se seguiu, os EUA se preocuparam com a
possibilidade de uma crise humanitária que levasse milhares de refugiados às praias da Florida. A
ONU decidiu então intervir no Haiti, numa missão liderada pelo Chile (aspecto político-
diplomático) e Brasil (lado militar).
A Minustah já nasceu controversa, pois ao invés de trazer de volta ao poder o presidente eleito,
respaldou o governo autoritário, encarregado de organizar eleições. A escolha se deveu ao fato de
que Aristide, um ex-padre vinculado à teologia da libertação, era considerado instável demais pelos
EUA.
A missão da ONU atuou em parceria com o governo golpista, dando apoio às ações repressivas da
polícia haitiana nas favelas da capital, Porto Príncipe, incluindo massacres de civis nas
comunidades de Bel Air, Cité Soleil e Gran Ravin-Martissant. Autoridades haitianas acusadas de
violações sistemáticas dos direitos humanos, como o ex-chefe de polícia Léon Charles, foram
promovidas e assumiram cargos diplomáticos de importância.31
As dificuldades da missão prosseguiram com o suicídio do comandante militar da Minustah, o
general brasileiro Urano Bacellar. As eleições presidenciais no Haiti foram realizadas em fevereiro
de 2006, depois de quatro adiamentos. O ex-presidente René Preval, homem ligado a Aristide, foi
reeleito para o cargo numa votação tumultuada que incluiu denúncias de fraudes e intervenção dos
diplomatas brasileiros, canadenses e estadunidenses, que pressionaram por uma interpretação
heterodoxa das regras eleitorais, de modo a garantir a vitória de Préval no primeiro turno. O apoio
se deveu a opinião é que ele era o candidato com maior possibilidade de estabilizar o Haiti.
Líderes de organizações da sociedade civil, como o argentino Adolfo Pérez Esquivel, chamam a
atenção para que a Minustah é a tentativa de um novo modelo de intervenções da ONU, no qual
atuações controversas buscam se legitimar pela participação de países em desenvolvimento,
enquanto as grandes potências evitam os custos do envolvimento direto.
O próprio governo brasileiro defende seu papel no Haiti com o argumento de que sem a liderança
do Brasil, a ação seria empreendida por EUA ou França, supostamente mais truculentos com a
população local. Ao fim, as atividades da Minustah repetem padrões bastante diferentes daqueles
desejados pela sociedade civil:
31
Para uma síntese dos problemas da missão, ver Larry Birns, “Botched Job: The UN and the Haitian Elections”.Em:
www.coha.org/NEW_PRESS_RELEASES/New_Press_Releases_2006/06.10_Botched_Job_UN_and_Haiti.html,
fevereiro de 2006.
Em verdade, o Brasil pratica no país caribenho uma política semelhante ao que fazem
os EUA no Iraque. Hoje, enviamos soldados. Amanhã, mandamos ''nossas'' empresas
e financiamentos para ''reconstruir'' o país. Se isto vai resultar em mais dívida externa
- uma das verdadeiras razões da crise haitiana -, na privatização dos serviços
públicos e na manutenção de um modelo de desenvolvimento que destruiu aquela
nação, não é problema nosso. 32

7- Algumas idéias para entender América Latina e Caribe


Cuba também representa uma questão estratégica importante para a América Latina. Este país e o
Haiti são uma ilha e meia no mar do Caribe. Juntas, têm somente pouco mais de 20 milhões de
habitantes. Mas, apesar dos números pequenos, as questões que ambos os países colocam para toda
a região são enormes. A primeira é um dos últimos países de regime assumidamente comunista do
mundo e se localiza a cerca de 100 milhas dos EUA, a maior potência econômica e militar da
história do capitalismo, que lhe faz oposição ferrenha – e boa medida por pressão dos EUA, Cuba é
o único dos 35 países independentes das Américas que firmou a Carta de fundação da Organização
dos Estados Americanos mas que está impedido de participar da entidade desde 1962.
Cuba se transformou na principal inspiração para o governo Chávez, da Venezuela. Foi com o país
caribenho que Chávez deu início à sequência de oito acordos que já assinou até agora com países
sul-americanos, dentro do escopo de princípios definidos definidos com a Alba (Alternativa
Bolivariana para as Américas). O Haiti mobiliza as sociedades das Américas em função da sua
posição peculiar e agora, o páis, como já abordado, está ocupado por tropas da Minustah, a força
militar integrada por soldados da ONU liderados pelo Brasil e com presença decisiva da Argentina.
No campo diplomático, um chileno chefia a intervenção das Nações Unidas na ilha caribenha de
Hispaniola – que o Haiti divide com a República Dominicana.
Em verdade, o que também levou o Brasil a comandar tropas militares, além dos já mencionados
interesses econômicos, foi sua busca por uma vaga no Conselho de Segurança da ONU. Na prática,
Brasil e Chile realizam o trabalho sujo que as grandes potências recusam-se a fazer. Na condição de
lider militar da ocupação do Haiti, o Brasil cai numa armadilha, porque assim, contraia dois
princípios que o país sempre defendeu- o da soberania e o da não-intervenção.

8- Direitos Humanos e Cidadania


Direitos e Democracia
A exemplo do que ocorre em outras regiões do mundo, a mobilização pelos direitos humanos na
América do Sul deixou o enfoque tradicional, limitado à proteção contra o abuso das autoridades, e
passou a abarcar uma série de direitos econômicos, sociais e culturais (DESCs) reconhecidos por
acordos internacionais. A defesa dos DESCs é inseparável dos debates sobre desenvolvimento e
inclui críticas às políticas econômicas conservadoras adotas pela maioria dos países do continente.
O maior obstáculo à concretização dos direitos civis é a violência, conforme observado na seção
“Segurança Humana e Paz”. Com muitas áreas das grandes cidades, ou regiões inteiras sob controle
de grupos armados, as garantias do Estado de Direito são inacessíveis à boa parte da população.
No que toca aos direitos políticos, os países sul-americanos puseram fim ao período das ditaduras
militares e vivem hoje em regimes democráticos. Contudo, essa democracia muitas vezes é limitada
pelas desigualdades sociais, concentração de poder nas elites econômicas e à fragilidade do Estado
para atender as demandas da população. Isso dificulta o controle cidadão sobre as políticas públicas

32
Carlos Tautz, “Imperialismo Diet”, Jornal do Brasil, 09/03/2006.
e ocupantes de cargos oficiais, como demonstrados pelos altos índices de corrupção no continente.
Nesse contexto, é natural que a população desconfie das instituições, sentindo-se distante do Estado,
e mostre hostilidade até diante dos pilares do regime democrático Só 14%, por exemplo, têm
confiança nos partidos políticos.33 Uma recente pesquisa do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD perguntou a 19 mil pessoas na América sobre seu apoio à democracia e
constatou que a maioria estaria disposta a aceitar governos autoritários, contanto que houvesse
crescimento econômico. Os índices:

Tabela 4: Aprovação à Democracia na América Latina


Região Democratas Ambivalentes Não-democratas
América Latina 43% 30,5% 26,5%
Mercosul + Chile 43,6% 21,9% 34,5%
Países Andinos 37,3% 34,4% 28,3%
Fonte: PNUD, 2004, p. 143

A conclusão do estudo do PNUD é que vigora na América Latina uma “cidadania de baixa
intensidade” e que é preciso passar de uma “democracia de eleitores” para uma “democracia de
cidadãos”, com mais participação social e instituições mais próximas dos problemas da população.
Outro ponto no qual é possível observar as dificuldades da América do Sul com relação aos direitos
humanos é a liberdade de imprensa. Embora garantida formalmente nas constituições do continente,
é bastante limitada na prática. As restrições englobam fatores como a concentração dos meios de
comunicação nas mãos de poucas empresas, as concessões de rádios e TVs feitas a políticos, em
troca de apoio aos governos, e as perseguições a jornalistas movidas por políticos, autoridades ou
criminosos comuns. Vale recordar que o apoio dos barões da imprensa foi fundamental para a
instalação e manutenção das ditaduras militares no continente e na recente tentativa de golpe contra
Chávez, na Venzuela (2002).
A expansão dos veículos comunitários e da internet é uma maneira de melhorar esse quadro, mas os
governos não tem favorecido essas estratégias de democratização da comunicação, muitas vezes
taxando as emissoras de rádio comunitárias como “piratas” e reprimindo-as com a polícia.
Na avaliação da ONG Repórteres sem Fronteiras, a América do Sul fica numa posição intermediária
quanto à liberdade de imprensa, entre os países do norte da Europa, os de melhores resultados, e os
da Ásia e e Oriente Médio, que ocupam as últimas posições:

Tabela 5: Liberdade de Imprensa na América do Sul

País Nota Classificação


Bolívia 9,67 45
Uruguai 9,75 46
Chile 11,75 50

33
PNUD, A Democracia na América Latina: rumo a uma democracia de cidadãos e cidadãs, São Paulo: LM&X,
2004, p.37.
País Nota Classificação
Argentina 13,50 59
Brasil 14,17 63
Paraguai 15,25 69
Equador 21,50 87
Venezuela 23 90
Peru 33,33 116
Colômbia 40,17 128
Guiana, Suriname e Guiana N/D N/D
Francesa

Fonte: Repórteres sem Fronteiras, 2005


(http://www.rsf.org/IMG/pdf/CM_2005_Am_Eur.pdf)
Movimentos sociais: índios, sem-terra, piqueteros, feministas
Apesar dos problemas com instituições ineficientes e distantes, a sociedade civil sul-americana tem
dado provas de vitalidade e capacidade de organização e mobilização. Os anos 90 marcaram a
consolidação dos movimentos indígenas do continente como atores importantes, em particular na
Bolívia e no Equador. Esse processo é inseparável da redemocratização, porque os povos indígenas
tradicionalmente foram submetidos à pobreza, ao racismo e freqüentemente foram massacrados nas
“guerras sujas” da região, como o combate ao Sendero Luminoso no Peru.34
A luta dos índios envolve a preservação de recursos naturais e de sua cultura, e também é
indissociável da resistência aos modelos neoliberais adotados no continente.
Na Bolívia, essas medidas começaram com a "Nova Política Econômica" do presidente Victor Paz
Estenssoro, em 1985. Para controlar a hiperinflação adotou um pacote de reformas que resultou no
desmonte da atividade econômica estatal.
O fechamento das minas de estanho causou o desemprego de cerca de 30 mil trabalhadores e foi um
golpe para o movimento sindical. A abertura econômica provocou dificuldades para os camponeses,
cujos cultivos tradicionais, como o milho, não conseguiram fazer frente à concorrência
internacional. Tudo mais doloroso porque Paz Estenssoro fora um dos líderes da Revolução de
1952, um símbolo das mudanças progressistas na política boliviana.
Muitos dos mineiros que perderam o emprego tentaram nova vida como agricultores, entrando em
contato com os camponeses indígenas do Altiplano. O resultado foi o encontro de duas tradições de
luta: o histórico dos sindicatos em mobilizações e confrontos e as demandas dos índios pelo acesso
aos recursos naturais, em especial terra e água e a questão da exploração do gás, como analisado em
seções anteriores.
A agenda do movimento indígena boliviano aborda temas econômicos, sociais e culturais. Por isso,
seus líderes optaram por articulações amplas entre índios, sindicatos e outras organizações sociais,
como no Movimento ao Socialismo, partido de Evo Morales e na Coordenadora de Defesa da Água
e da Vida, que impulsionou a campanha em Cochabamba. Há um partido étnico, o Pachakuti de
Felipe Quispe, mas é uma força minoritária, com cerca de 5% do parlamento.
O movimento indígena boliviano foi fundamental para a queda dos presidentes Sanchez de Lozada
34
Para um bom apanhado do tema, ver Pablo Dávalos (org.) Pueblos Indígenas, Estado y Democracia. Buenos Aires:
Clacso, 2005.
(2003) e Carlos Mesa (2005) e também para a eleição de Evo Morales, que em 2006 tornou-se o
primeiro indígena a assumir a presidência da Bolívia, dando os primeiros passos para encerrar o
regime de exclusão racial que vigora desde a conquista espanhola no século XVI. Francisco Carlos
Teixeira, professor Titular de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, contextualiza a participação indígena na escolha de Morales:

“(...)Três países andinos – a Bolívia, o Peru e o Equador – apresentam uma forte


ascensão dos movimentos sociais, com o rompimento de séculos de dominação
branca, de elites voltadas para o exterior e nutridas por um consolidado desprezo pelo
bem-estar da maioria do povo. Estes três países andinos- o chamado Arco Indígena –
apresentam, para além de uma história comum, um conjunto de forte componente
étnico indígena, cujos representantes, após décadas de dominação e de desesperança,
passaram a liderar amplos movimentos de rebeldia, exigindo transformações de
caráter social e político. No Peru (28 milhões de habitantes, dos quais 45% são índios
e outros 37% são mestiços) a fuga do ex-presidente Alberto Fujimori e a queda da
máfia de Montesinos, em 2000, no poder desde 1990, permitiu a eleição do primeiro
presidente não criollo do país, Alejandro Toledo.
Entretanto, a opção neoliberal de Toledo acabou por surgir aos olhos de seus conterrâneos como
uma verdadeira traição, levando a uma perda vertiginosa da autoridade e de prestígio do governo,
expressas em amplas manifestações populares de protesto contra o neoliberalismo (2002). No
Equador (13 milhões de habitantes, dos quais 25% são índios e outros 55% são mestiços), após uma
longa crise institucional, entre 2000 e 2003 o movimento indígena – denominado Pachakutik-
expressão da Confederação das Nacionalidades Indígenas- passa a exercer uma oposição direta ao
governo formulando um projeto autônomo para o país. As últimas ações do governo em Quito
fizeram soar alarmes e Washington, que começou a denunciar a “chavenização” do país. Contudo, é
na Bolívia (9 milhões de de habitantes, dos quais 55%são índios e outros 15% são mestiços) que os
movimentos sociais autônomos ganharam mais força e apresentam-se em condições reais de
assumir o poder”
Outro ponto crucial para os movimentos indígenas diz respeito à inserção de seus produtos e
culturas tradicionais nos regimes de proteção à propriedade intelectual. Na década de 90, os países
andinos assinaram uma série de tratados se submetendo às leis de patentes propostas pelos EUA.
Esses acordos são bastante eficientes na defesa das grandes empresas transnacionais da indústria e
dos serviços, mas deixam de fora as garantias às criações dos índios, como remédios, roupas e
mesmo seu patrimônio biogenético.
Os movimentos indígenas estão conscientes da importância de influírem sobre esses tratados e de
obterem mais conquistas, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da
qual os países andinos são signatários e que garante uma série de direitos no que toca à educação,
saúde e cultura. Muitos desses dispositivos foram incorporados às constituições da Colômbia, Peru,
Equador e Bolívia.
No caso equatoriano, os movimentos indígenas organizaram uma Confederação de Nacionalidades
Indígenas do Equador (Conaie) e um braço partidário, o Pachakuti (o nome é o mesmo do
boliviano, mas são organizações diferentes). Com um intenso trabalho no nível local, conquistaram
várias prefeituras e cadeiras parlamentares e foram uma das forças que derrubaram o presidente
Jamil Mauad (2000). Participaram da coalizão que elegeu presidente o coronel Lucio Gutierrez. O
movimento indígenas recebeu ministérios, mas rompeu com o governo 6 meses depois, por
discordâncias quando à política econômica conservadora e à aproximação com os EUA. Gutierrez
acabou renunciando em 2005, após intensos protestos por parte dos movimentos sociais.
A maior parte dos movimentos indígenas na América do Sul diz respeito a povos como quéchua e
aymara. Contudo, existem dezenas de culturas que ainda não conseguiram o mesmo nível de
mobilização e influência política. O exemplo mais dramático é o dos guarani, que vivem em vários
países do Mercosul e são parcela muito significativa da população do Paraguai, onde sua língua é
idioma oficial ao lado do espanhol. Apesar disso, os guaranis continuam em situações sociais
difíceis, em particular no Brasil, com violações a seus direitos, disputas por terra e alto índice de
suicídio.
Além dos movimentos indígenas, outros setores socialmente marginalizados se organizaram de
forma efetiva com a redemocratização da América do Sul. Para citar dois dos mais importantes, há
o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Brasil e o surgimento dos piqueteros
na Argentina, no rastro da grande crise que abalou aquele país no fim dos anos 90.
O MST nasceu a partir das lutas de pequenos agricultores contra a ditadura militar brasileira, cujo
modelo econômico privilegiou as grandes empresas do agronegócio. A expansão da fronteira
agrícola para o Centro-Oeste e o Norte se fez às custas de expulsões de posseiros e povos indígenas.
Com o apoio da Igreja Católica, os trabalhadores rurais conseguiram se articular nacionalmente e
deram início a uma série de ocupações de terras improdutivas, reivindicando a reforma agrária.
No decorrer dos anos 90, o MST também ampliou sua luta política e abordou temas como a
oposição às privatizações e aos alimentos transgênicos, colocando em questão o modelo de
desenvolvimento e a política econômica executada no Brasil. Além das ocupações de terra, o
movimento organizou grandes marchas em 1999 e 2005, que partiram de assentamentos em
diversos pontos do país e rumaram para a capital, Brasília. Ambos os processos foram ocasiões para
divulgação de idéias e debates sobre os problemas sociais brasileiros.35
No caso da Argentina, o empobrecimento da população, a deterioração dos serviços públicos e a
indignação com os desmandos das autoridades levaram à criação de diversos movimentos sociais
que ajudaram a derrubar o presidente Fernando de La Rúa (2001) e a contestar o modelo neoliberal
vigente. Os grupos piqueteros, como o Barrios de Pié agregam desempregados e moradores de
bairros pobres e lidam com temas como geração de empregos, serviços públicos e instituições
comunitárias, entre outros.
Além dos piqueteros, outros movimentos sociais importantes surgiram na Argentina, como a
mobilização das chacareras, pequenas agricultoras que impedem o leilão por dívidas de suas
propriedades, cantando o hino nacional e opondo resistência pacífica às autoridades. Outra
mobilização bastante conhecida é a das “fábricas recuperadas”, empresas em processo de falência
ocupadas pelos trabalhadores, que as administram em esquemas de cooperativas e economia
solidária.36

O feminismo merece destaque e tem importante papel nas questões ligadas ao Mercosul. A
mobilização das mulheres cresceu em importância junto com a redemocratização na América Latina
e os encontros feministas da região, realizados nos anos 80, “conseguiram criar uma identidade
política feminista que coloca no cenário regional a interpelação radical aos sistemas de
conhecimento e organização da sociedade”37.

35
Para um relato da história do movimento feito por um de seus principais líderes, João Pedro Stedile e Bernardo
Mançano, Brava Gente: a trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil, São Paulo: Editora Fundação Perseu
Abramo, 1999.
36
Boas fontes de informação sobre os movimentos sociais argentinos são o documentário “La Dignidad de los
Nadies”, dirigido por Fernando Solanas (2005) e o livro “La Protesta Social en Argentina 1990-2003”, de
Guillermo Almeyra (Buenos Aires: Continente, 2004).
37
Lilian Celiberti, “El movimiento feminista y los nuevos espacios regionales y globales”. In: E. Jelin (org.), Más allá
de la nación: las escalas múltiples de los movimientos sociales (Buenos Aires: Libros del Zorzal, 2003).
A preparação para as conferências sociais da ONU, em especial a IV Conferência sobre a Mulher
(Beijing, 1994) contribuiu para a articulação das redes nacionais e para a formação de uma agenda
internacional para os movimentos feministas. Dessa experiência de trabalho conjunto nasceu a
Articulação Feminista Marcosur, dedicada principalmente ao tema da integração regional.

Os movimentos de mulheres vêm chamando atenção para as deficiências das políticas das
organizações econômicas internacionais no que diz respeito a gênero, lançando campanhas como
“Sexo, mentiras e comércio internacional” e debatendo questões como combate ao
fundamentalismo, condições de vida de migrantes e direitos sexuais e reprodutivos.

Migrantes

Nos últimos anos ganhou força a questão da migração entre os países da América do Sul. Cidadãos
dos Estados mais pobres, como Bolívia, Peru e Equador, tentam a sorte nas economias mais
prósperas da Argentina, Brasil e Chile. A origem indígena dos migrantes os torna alvo de racismo e
outras formas de discriminação, que com freqüência implicam condições de trabalho aviltantes,
exploração como mão-de-obra barata e em situação ilegal. A situação é semelhante àquela que
muitos sul-americanos experimentam nos EUA ou na Europa.
Outro tipo de problema, mais comum entre os brasileiros, são de comunidades de migrantes que se
destacam por sua força econômica, como os emigrantes do Brasil que ganharam influência no
agronegócio do Paraguai e da Bolívia. Esses grupos têm sido vítimas de tensões nacionalistas.
Em ambos os casos, é fundamental formular políticas públicas de apoio aos migrantes, num modelo
que considere uma integração de povos, e não simplesmente o formato tradicional de abertura de
mercados e trocas comerciais.

9- Economia e Finanças
Os aspectos do comércio e da infraestrutura já foram abordados em seções anteriores deste estudo.
Trataremos então das características gerais da macroeconomia dos países da América do Sul,
procurando identificar os pontos mais relevantes para o processo de integração.
A América do Sul foi integrada ao sistema econômico internacional durante a era colonial (1492-
1824), onde exerceu as funções de produtora de gêneros agrícolas e recursos minerais para a
Europa. A independência política não alterou esse quadro: os novos países assinaram os chamados
“tratados desiguais” com a Inglaterra e demais potências da época, abrindo seu comércio às
mercadorias manufaturadas produzidas pelos europeus. Embora Argentina e Brasil tenham
desenvolvido alguma atividade industrial, sobretudo no contexto da substituição de importações
durante a Primeira Guerra Mundial, o continente ainda era largamente agrícola até a Grande
Depressão iniciada com a quebra da bolsa em 1929. Os anos 30 são o marco do nascimento de um
novo modelo, que vigorou até a década de 1980:
... se pode afirmar que o “desenvolvimentismo” latino-americano nasceu no México,
durante o governo do presidente Lázaro Cárdenas, na década de 1930.
Cárdenas foi nacionalista e seu governo fez uma reforma agrária radical; estatizou
a produção do petróleo; criou os primeiros bancos estatais de desenvolvimento
industrial e de comercio exterior da América Latina; investiu pesadamente na
construção de infra-estrutura; praticou políticas de industrialização e proteção do seu
mercado interno; criou uma legislação trabalhista e de proteção social; e
manteve uma política externa independente e antiimperialista. Depois de Cárdenas,
com pequenas variações, este programa se transformou no denominador comum de
vários governos latino-americanos, “nacional-populares” ou “nacional-
desenvolvimentistas”, como foi o caso de Vargas, no Brasil, de Perón, na Argentina,
de Velasco Ibarra, no Equador e de Paz Estenssoro, na Bolívia, entre outros.
Nenhum deles era socialista, nem muito menos marxista, pelo contrário, eram
quase todos conservadores, mas suas idéias, políticas e posições internacionais
também se transformaram na referencia obrigatória da esquerda latino-
38
americana.

O modelo nacional-desenvolvimentista teve aplicações progressistas, como nos anos 50 na Bolívia


(reforma agrária), anos 60 no Brasil (movimento pelas reformas de base) e Peru (Plano Inca,
governo Velasco Alvarado). E também momentos conservadores e autoritários, como no ciclo de
ditaduras militares do continente. Com seu legado positivo (industrialização, modernização) e
negativo (desigualdades, marginalização social) esse modelo entrou em colapso no início da década
de 1980, tornado inviável pela crise do petróleo, pela queda no preço internacional dos produtos
agrícolas e pelo aumento dos juros da dívida externa.
A dívida externa tem papel central na dependência político-econômica da América do Sul. As
ditaduras militares do continente recorreram pesadamente ao crédito externo para tentar manter
crescimento acelerado da economia, visando à busca de apoio popular. Quando os juros
internacionais foram elevados como parte da “política do dólar forte” adotada pelo governo dos
EUA, os países em desenvolvimento quebraram, pois não tinham mais como pagar o serviço da
dívida. Mais de 30 decretaram moratória em 1982.
Houve uma tímida tentativa de formar uma frente sul-americana para renegociar a dívida externa de
forma conjunta, através do Consenso de Cartagena – uma espécie de OPEP dos países devedores –
mas as pressões dos Estados Unidos falaram mais alto e prevaleceu o modelo em que cada governo
negociava individualmente com Washington. A maioria bastante fragilizados pela crise econômica
e pelas dificuldades políticas da transição da ditadura para a democracia.39
À exemplo do que ocorreu em outras regiões, a questão da dívida externa se transformou num
instrumento importante para submeter os países da América do Sul às diretrizes políticas oriundas
dos EUA, da União Européia, mercados financeiros e empresas transnacionais. Os canais principais
pelos quais se expressa essa influência são as Instituições Financeiras Internacionais (IFIs), como o
FMI, o Banco Mundial e a OMC.
Nas duas décadas desde a crise da dívida a América do Sul adotou modelos neoliberais de reforma
econômica, baseados em privatizações, abertura comercial e financeira, ênfase no investimento
externo como suposto motor do crescimento, adesão a normas internacionais sobre patentes,
investimentos, propriedade intelectual etc. O continente havia sido pioneiro, já nos anos 70, na
adoção dessas medidas, pelas ditaduras militares do Chile (1973-1990) e Argentina (1976-1983).
No quadro de fragilidade econômica da redemocratização, o neoliberalismo espalhou-se pelo
continente.
O que une todas essas orientações políticas é a diminuição da autonomia do Estado para executar
políticas públicas de desenvolvimento, como proteção à indústria nacional. A ação do governo é
cerceada através de determinações como controle dos gastos (por exemplo, leis de

38
José Luís Fiori, “A Esquerda e o Desenvolvimentismo”. Disponível em
http://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=3022. Abril de 2006.
39
Para um exame caso a caso, ver Monica Hirst (org) Continuidad y Cambio em las relaciones Estados Unidos –
América Latina (Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1987). Para uma análise da economia internacional e
seus impactos na América do Sul no início da década de 80, Maria da Conceição Tavares e José Luís Fiori (orgs.)
Poder e Dinheiro: uma economia política da globalização (Petrópolis: Vozes, 1998).
“responsabilidade fiscal”, geração de superávit primário, precarização das leis de trabalho e
proteção ambiental e benefícios concedidos às grandes empresas, como nas obras de megaprojetos
de infraestrutura (como analisado na seção sobre a IIRSA).
O pagamento de serviço da dívida continua a exaurir os recursos dos governos sul-americanos,
apesar de 20 anos de políticas de “austeridade” anunciadas como sacrifícios necessários para
resolver o problema. Estima-se que a dívida da América Latina esteja em cerca de US$800 bilhões.
No Brasil, em 2004 o governo pagou R$128 bilhões em juros, enquanto sua política social mais
importante, o programa Bolsa Família, recebeu menos de R$10 bilhões.40
Outro aspecto importante dessas políticas foi a adoção de âncoras cambiais vinculando as moedas
locais ao dólar. Na Argentina, vigorou uma severa Lei de Convertibilidade, proibindo o governo de
alterar a paridade de 1:1 do peso ao dólar. No Equador, houve dolarização pura e simples. No
Brasil, embora sem legislação semelhante à argentina, a partidade foi mantida na prática até as
crises financeiras internacionais de 1998 (e a reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso).
A maior realização do modelo neoliberal foi a contenção da inflação nos países sul-americanos, que
nos anos 80 e 90 apresentou índices muito altos. Contudo, os custos sociais foram bastante
elevados. O desemprego aumentou em grande proporção, com aumento da informalidade e da
marginalização social, e o crescimento do PIB ocorreu a taxas reduzidas, sobretudo em comparação
com o ritmo acelerado dos anos desenvolvimentistas:

Tabela 6: Taxa de Inflação (médias anuais), 1980-2003

País 1980-1985 1985-1990 1996 2000 2001 2002 2003


Argentina 322,6 583,8 0,2 -0,9 -1,1 25,9 13,4
Bolívia 610,9 46,5 12,6 4,6 1,6 0,9 3,3
Brasil 145,5 653,8 15,4 6,2 6,8 8,5 14,7
Chile 21,3 19,4 7,6 3,8 3,6 2,5 2,8
Colômbia 22,4 25,0 20,8 9,2 8,0 6,3 7,1
Equador 27,7 45,7 24,4 96,1 37,7 12,5 7,9
Guiana N/D N/D N/D N/D N/D N/D N/D
Paraguai 15,8 28,0 9,8 9,0 7,3 10,5 14,2
Peru 102,1 823,7 11,5 3,8 2,0 0,2 2,3
Suriname 7,0 19,1 -0,7 N/D N/D N/D N/D
Uruguai 44,8 78,2 28,3 4,83 4,407 14,0 19,4
Venezuela 11,1 36,9 99,9 15,7 12,5 22,4 31,1
Fonte: CEPAL, Anuário Estadístico de América Latina y Caribe, 2004, p.136
Como se observa, a década de 80 é marcada por altas taxas de inflação, particularmente na
Argentina, na Bolívia, no Brasil e no Peru. Os índíces melhoram ao longo dos anos 90, mas voltam
a ficar altos no início do século XXI. A persistência da inflação será um dos argumentos mais
utilizados pela direita para defender cortes nos gastos públicos, apontados pelos conservadores
como os grandes vilões da questão.

40
Luciana Badin, “IFIs, orçamentos públicos e o percurso da dependência””, IbaseNet, 06/05/2006. Disponível em
www.ibase.br.
Se as reformas neoliberais tiveram sucesso mediano no combate à inflação, na promoção do
crescimento econômico os resultados foram bem mais modestos:

Tabela 7: Crescimento do PIB, 1990-2003

País 1990 1995 2000 2001 2002 2003


Argentina -2,0 -2,9 -0,8 -4,4 -10,8 8,7
Bolívia 4,4 4,7 2,3 1,6 2,7 2,4
Brasil -4,6 4,2 3,9 1,3 1,5 0,6
Chile 3,3 9,0 4,5 3,5 2,0 3,3
Colômbia 4,1 4,9 2,4 1,5 1,9 4,8
Equador 2,9 2,1 0,9 5,5 3,8 2,3
Guiana -3,7 3,8 -2,3 2,3 1,5 -2,0
Paraguai 3,1 5,7 -3,3 2,0 -1,6 3,8
Peru -5,4 8,6 2,8 0,1 4,9 3,8
Suriname -2,1 0 -1,2 1,3 1,2 3,5
Uruguai 0,5 -2,4 -1,9 -3,6 -12,7 3,0
Venezuela 5,5 5,9 3,8 3,4 -8,9 -9,7

Fonte: CEPAL, Anuário Estadístico de América Latina y Caribe, 2004, p.121

De modo geral, a tabela registra taxas de crescimento baixas. Poucos países do continente
escaparam de períodos recessivos, de queda no PIB, ao longo dos anos analisados. O ritmo de
evolução das economias sul-americanas é o de stop and go, com a incapacidade de estabelecer
cursos de desenvolvimento sustentável, à exceção do Chile. O desempenho medíocre ajuda a
explicar a instabilidade política e a vitória de coligações de centro-esquerda críticas ao modelo
neoliberal. Há piora generalizada após as crises financeiras internacionais de 1998-1999.
Destaca-se nos indicadores o peso da crise da Argentina, tanto para o próprio país quanto para o
vizinho Uruguai. Ambos sofreram os imensos impactos da crise. No caso argentino, foram anos de
recessão econômica e explosão social, no que foi sem dúvida um dos momentos mais difíceis da
história do país. Somente a partir de 2003 o PIB voltou a crescer, ou mais precisamente a recuperar
a capacidade ociosa de produção.
O caso da Venezuela também chama a atenção. Embora a economia crescesse rapidamente em
função da alta dos preços petrolíferos, a instabilidade política resultante da tentativa do golpe contra
Chávez, em abril de 2002, teve sérias conseqüências para o país. Além disso, é preciso lembrar que
a elite venezuelana travou uma verdadeiras guerra econômica contra o presidente, realizando
paralisações empresariais e até sabotagem contra empresas estatais.
A tabela 8 mostra os indíces de desemprego:

Tabela 8: Taxa de Desemprego Urbano, 1990-2004


País 1990 1995 2000 2001 2002 2003 2004
Argentina 7,4 17,5 15,1 17,4 19,7 17,3 13,8
Bolívia 7,3 3,6 7,5 8,5 8,7 9,5 N/D
Brasil 4,3 4,6 7,1 6,2 11,7 12,3 11,5
Chile 7,8 7,4 9,2 9,1 9,0 8,5 8,8
Colômbia 10,5 8,8 17,2 18,2 17,6 16,7 15,5
Equador 6,1 7,7 14,1 10,4 8,6 9,8 11,0
Guiana N/D N/D N/D N/D N/D N/D N/D
Paraguai 6,6 5,3 10,0 10,8 14,7 11,2 N/D
Peru 8,3 8,2 8,5 9,3 9,4 9,4 9,5
Suriname N/D N/D N/D N/D N/D N/D N/D
Uruguai 8,5 10,3 13,6 15,3 17,07 16,9 13,0
Venezuela 10,4 10,3 13,9 13,3 15,8 18,0 15,3
Fonte: CEPAL, Anuário Estadístico de América Latina y Caribe, 2004, p.97

O aumento do desemprego é o indicador que melhor retrata os custos sociais dos programas de
ajuste estrutural implementado pelos neoliberais nos anos 90. Todos os países sul-americanos
enfrentam problemas sérios nesse setor e estão pior hoje do que antes das reformas econômicas.
Mesmo países cujo PIB cresceu constantemente, como o Chile, apresentam deterioração da
situação. Alguns, como o Brasil, triplicaram os índices.
A situação é ainda mais grave pela ausência de estruturas eficazes de proteção social, como seguro-
desemprego. Isso significa que uma grande quantidade de trabalhadores precisa procurar seu
sustento no mercado informal, sobrevivendo de forma precária de biscates e ocupações temporárias.
O efeito das dificuldades extrapola a economia e abarca o bem-estar social de milhões de famílias,
mais sujeitas à instabilidade, problemas de violência doméstica e alcoolismo, depressão e outras
conseqüências da perda da segurança econômica.

10- EUA, o “13° país da América do Sul”


Como já foi possível constatar, é intensa e profundamente impactante a presença dos EUA nas
Américas. A começar pelo México, seu vizinho latino mais próximo, com quem possui milhares de
quilômetros de fronteira, que em 1994 aderiu ao Nafta sob a promessa de acessar facilmente o
mercado interno dos EUA. O México, entretanto, teve parte de sua economia transformada em um
parque de montadoras – as “maquilladoras”-, numa precarização do processo de produção e das
relações de trabalho de milhões de mexicanos. Aliás, é histórica e até folclórica a forma como os
EUA vêem a América Latina, desde pelo menos o século XVIII: como o seu quintal, onde a Europa
intervém pouco. Quanto ao Brasil, maior mercado interno da região, os EUA são o principal
parceiro comercial: compram 20% do que os brasileiros produzem e exportam para esse país
montante equivalente, do total das importações. Mas, para muito além das relações comerciais, os
EUA têm uma presença tão forte, que recentemente o secretário-geral do MRE brasileiro, Samuel
Pinheiro Guimarães, referiu-se a les como o 13° país da região”, que em verdade possui 12 nações.
O diplomata brasileiro referia-se à sequência de áreas estratégicas em que os EUA possuem o peso
e o papel determinante.
Foram os EUA que propuseram a Alca em 1994. Em verdade, a Alca seria uma extensão do
experimento do Nafta e que o próprio Pinheiro Guimarães já definiu como um projeto com
dimensões comerciai, por certo, mas também com interesses diplomáticos, financeiros e até
militares. Ao contrário de uma visão corrente na América Latina garante, de o Oriente Médio rico
em petróleo e monopoliza a atenção e as capacidades estadunidenses, o que garantiria à América
Latina e ao Caribe uma espécie de segunda categoria entre as preocupações dos EUA, tamanha é a
atenção que Washington dedica à América Latina, financia a guerra que o governo da Colômbia
(com quem acabou de assinar um acordo de comércio livre) mantém com dois exércitos
guerrilheiros – as Farc e o ELN sob o argumento do combate aos cultivos de coca- aquele país
latino-americano é um dos maiores produtores de cocaína e os EUA, seu maior mercado.
Os EUA mantêm na América Latina vários interesses que se materializam em bases militares.
Segundo o levantamento da professora e economista Ana Esther Ceceña, da Universidade
Autônoma do México e do Conselho Latino Americano de Ciências Sociais, estas bases estão
localizadas em áreas de ocorrência intensa e extensa de recursos naturais estratégicos- água potável,
diversidade biológica e petróleo, para ser mais preciso. Com outros países da região, os EUA
assinaram tratados subregionais e/ ou bilaterais de livre comércio, como estratégia paralela de
superar o impasse ocasionado pela suspensão de fato das discussões sobre a Alca. Entre esses
tratados subregionais e/ou bilaterais está o caso do Acordo de Livre Comércio EUA-América
Central-república Dominicana, já mencionado (conhecido como cafta ou Cafta-DR), firmado em
2005.
No caso da Alca,a a evolução mais recente dessa proposta de acordo foi a interrupção das
discussões oficiais, após a derrota sofridas peloes defensores (EUA e México à frente) em
novembro de 2005. naquele mês, a cidade de Mar del Plata (na Argentina), sediou a IV Cúpula das
Américas, reunião convocada pela Organização dos Estados Americanos (OEA), e, em paralelo, a
III Cúpula dos Povos, organizada por várias organizações da sociedade latino-americana, em
especial a Aliança Social Continental, a ASC, cujas elaborações sobre integração regional serviram
de base para que o governo venezuelano formulasse a sua Alba.
Ao final da Cúpula Oficial, a Cumbre paralela também avaliou que a Alca estancou, o que
representava uma ampla e inédita derrota da estratégia estadunidense para a região:
“En el año de 2001, em la cumbre oficial de Québec, cuando tadavía la absoluta mayoría de
los gobiernos se inclinaban ciegamente a la ortodoxia neoliberal y a los dictados de
Washington, com la honrosa excepción de Venezuela. Estados Unidos logró que se fijara el
primero de enero del 2005 como la fecha fatal para que entrara em vigor su nuevo proyecto
de dominación llamado Área de Libre Comércio de las Américas (ALCA) y que la Cuarta
Cumbre de las Américas a realizarse previamente em Argentina fuera la culminación de las
rnegociaciones de este proyecto perverso. Pero el primero de Enero del 2005 amanecimos
sin ALCa y la cumbre oficial de Argentina há llegado finalmente com las negociaciones del
ALCA estancadas.”Hoy estamos también aquí para celebrarlo!”, afirmava adeclaração final
da Cumbre de los Pueblos.
Derrotados, os EUA reforçaram o seu plano B, os acordos bilaterais ou subregionais, que há anos
vinham sendo costurados: “Não se pode dar a ALCA como favas contadas. Não somente porque os
EUA possuem um enorme arsenal militar, político e econômico, o que permitiria recuperar a
ofensiva a qualquer momento, mas, também, porque há uma espécie de segunda estratégia para
construir uma área de livre comércio nas Américas. Ela envolve a assinatura de tratados
subregionais de comércio livre com a América Central, o Cafta, e a abertura de negociações com os
países andinos para implantar ali o Afta, além de tratados bilaterais que vêm sendo negociados com
o Chile e o Paraguai”, escreveu o autor desse relatório à época, para o site do Ibase na internet.
Posteriormente, também o Uruguai, que em 2005 elegeu o progressista Tabaré Vasquez, viria a ser
assediado pelo governo dos EUA para assinar tal acordo bilateral e só não consumou o ato devido,
de um lado, às fortes resistências internas da coalização de centro-esquerda que o apóia e , de outro,
da pronta intervenção dos presidentes da Argentina, Kirchner, e, do Brasil, Lula. Não fosse esses
três atores, o Uruguai teria aumentado a fenda nos países da América do Sul e enterrado o
Mercosul.
Agora mesmo em abril, o jornal Diário Hoy(Equador) noticia que “as mais importantes manobras
navais estadounidenses no mar do Caribe começam em Abril e se estenderão até fins de maio. A
demonstração de força aponta para a Venezuela e Cuba, e para toda a América Latina (...)
Parte d a VII Frota norte-americana saiu da sua rota no mediterrâneo e estacionou no Caribe (...)
desde 1983 a região não via tantos navios da Marinha dos EUA como agora, durante a operação
“Partnership of the Americas” (Parecria para as Américas).
O porta-aviões atômico “George Washington”, o mais moderno da frota saiu em 4 de abri da sua
base de Norfolk, Virginia, chegou ao porto de Mayport, Florida, onde tem sede ao Comando Sul do
Exército dos EUA. (...)
Esse porta aviões leva 70 naves de combate F-15, F-16, F-18, Harrier e helicópteros, siendo cabeza
de la Fuerza de Tareas de Combate n° 10 de la armada. Navega junto com o cruzador Monterrey, o
destróier Stout e a fragata Underwood (...)Em 14 de abril esta força deixou águas estadounidenses e
entrou no Caribe (...).

11-Alternativas: O caso Alba


Algumas iniciativas oficiais, como se verificou, são apontadas como alternativas para o
desenvolvimento e a integração regional, dentre as quais podemos citar, com ênfase comercial, a
Alca e a IIRSA, que ainda por cima pode resultar na constituição de enclaves desconectados da
nação em que se situam e vinculados aos mercados internacionais; e iniciativas claramente de
governo, como a Alba e a OCTA, que ainda não provaram que possam romper com a lógica do
crescimento econômico associal, ou incorporar ao seu processo de desenvolvimento o diálogo com
organizações da sociedade. Tendo em vista a divulgação do seu papel de alternativa primeira ao
projeto de formação da Alca, e defesa governamental como um projeto de resistência venezuelano
face à política econômica americana para as Américas, será dado um destaque especial à Alba
Apresentada como alternativo pelo governo da Venezuela, seu principal defensor e operador, a
Alternativa Boliviana para a s Américas (Alba) caracteriza-se mais por se constituir numa reação à
Área de Livre Comércio das Américas do que por inventar uma lógica distinta, que ofereça uma
forma inovadora de planejar e decidir a produção de bens e valores. Outra característica fundante da
Alba é, em boa medida, basear-se no acúmulo da Aliança Social Continental (ASC).
Assim, na antítese à Alca, e seguindo as bases do documento “Aliança para as Américas, da ASC, a
Alba vem se construindo muito fortemente em função do desempenho do governo venezuelano e,
em especial, de seu chefe, o presidente Hugo Frías Chávez, que tem buscado, ainda ue
aparentemente de forma empírica, fortalecer laços econômicos com seus parceiros caribenhos e
latinos. Firmou com Cuba e outros países do Caribe cooperações no campo da troca de petróleo
(subsidiado) por serviços sociais. Nessa perspetiva, criou a empresa pluriestatal Petrocaribe e
assinou e vem colocando em prática acordos com Cuba para troca de óleo (recurso abundante na
Venezuela) por prestações de serviços nas áreas de esporte e saúde pública, em que Havana detém
expertise reconhecido no mundo inteiro.
Outras iniciativas vêm sendo colocadas em prática e essa práxis é justamente um dos pontos fortes
da Alba.
Para o Ministério da Economia Popular da República Bolivariana da Venezuela, a Alba é “ um
projeto de integração latino-americana baseada na complementariedade econômica e social e não na
competição” que “respeita os valores sociais, culturais e ambientais das comunidades” para a
criação conjunta de projetos sócio-produtivos”
Em verdade, é uma agenda de boas intenções que o governo da Venezuela planeja colocar em
prática ao longo de sua política externa, que tem dois objetivos em paralelo: firmar sua liderança
política regional e, ao mesmo tempo, defender-se da potência imperialista mundial, os EUA, com
quem mantém intensas e atribuladas relações comerciais. De um lado, os EUA rejeita e acusam
quaisquer governos, como o venezuelano, que fujam de sua órbita de influência – o que, na
conjuntura pós-11 de setembro de 2001, o colocou na condição de alvo da guerra preventiva do
governo George Bush.
Mas, de outro lado, Caracas é o 4° maior exportador para Washington de petróleo, mercadoria
estratégica que representa 80% dos ingressos da venezuela. Este país também possui 15% da
capacidade de refino de petróleo instalada no território continental estadunidense, além de uma
empresa de distribuição de gás natural sediada na região de Boston, Estado de Masachussets (EUA).
Oficialmente, a Alba, entre outros, tem como objetivos orientadores a luta contra a pobreza e
exclusão social; a defesa dos direitos humanos, trabalhistas, da mulher, do meio ambiente e da
integração física da região e de políticas anti-protecionistas dos mercados. Propõe-se a “atacar os
obstáculos à integração desde sua raíz, a saber: a pobreza da maioria da população; as profundas
desigualdades e assimetrias entre países; o intercâmbio desigual e condições injustas das relações
internacionais; o peso de uma dívida impagável, etc.”
No geral, relaciona entre esses objetivos as principais bandeiras de luta dos movimentos sociais e
organizações que desde 2001 vêm se reunindo sob o Fórum Social Mundial, com o que atraiu como
aliados movimentos de todas as partes da América Latina e do Caribe, como o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Brasil, com quem o governo Chávez mantém vários
tipos de intercâmbio- entre os quais o de construção de escolas de agricultura orgânica no Brasil e
na Venezuela. No campo da da comunicação – encarada como estratégica por Chávez-criou, como
já foi mencionado, a tevê por satélite Telesur, com capital majoritariamnete venezuelano (51%)
cubano e uruguaio, que transmite para toda a América Latina e Caribe.

ANEXO 1: ESTATÍSTICAS SOCIAIS DA AMÉRICA DO SUL

Fonte dos dados: CEPAL – Informes Estadísticos

Tabela 9 : Analfabetismo (2005)

País Índice
Argentina 2,8%
Bolívia 11, 7%
Brasil 11, 1%
Chile 3,5%
Colômbia 7,1%
Equador 7%
Guiana 1%
Paraguai 5,6%
País Índice
Peru 8,4%
Uruguai 2%
Venezuela 6%

Tabela 10: Porcentagem de População Urbana (2005)

País Índice
Argentina 90,6%
Bolívia 68,2%
Brasil 81,7%
Chile 86,9%
Colômbia 76,6%
Equador 65,8%
Guiana 38%
Paraguai 59,6%
Peru 73,5%
Suriname 77,2%
Uruguai 93,1%
Venezuela 88,8%

Tabela 11: Expectativa de Vida ao Nascer (2000-2005)

País Total Homens Mulheres


Argentina 74,1 70,6 77,7
Bolívia 63,8 61,8 66,0
Brasil 71,0 67,3 74,9
Chile 77,7 74,8 80,8
Colômbia 72,2 69,2 75,3
Equador 74,2 71,3 77,2
Guiana 63,2 60,1 66,3
Paraguai 70,8 68,6 73,1
Peru 69,8 67,3 72,4
Suriname 71,1 68,5 73,7
Uruguai 75,2 71,6 78,9
País Total Homens Mulheres
Venezuela 72,8 69,9 75,8

Tabela 12: Desigualdade entre Gêneros:


Porcentagem dos salários femininos com relação aos masculinos, por anos de estudo

País 0-5 6-9 10-12 13 ou mais


Argentina 89,3 65,8 80,9 69,3
Bolívia 48,0 59,6 70,2 68,5
Brasil 66,1 62,4 63,1 60,6
Chile 87,1 79,5 80,1 69,5
Colômbia 84,9 86,6 82,5 80,0
Equador 132,0 68,7 78,5 72,9
Paraguai 67,9 77,3 86,0 72,6
Peru 81,6 83,4 84,8 74,8
Uruguai 85,5 70,7 77,6 66,8
Venezuela 82,1 79,9 79,4 86,1

Tabela 13: Indicadores de Bem Estar Social

País Mortalidade Desnutrição % com acesso à % com acesso a


infantil (por mil) infantil, % abaixo água potável saneamento
do peso / altura
Argentina 19 5 / 12 97 (dados só N/D
disponíveis para
população urbana)
Bolívia 71 10 / 26 85 45
Brasil 37 6 / 11 89 75
Chile 12 1/2 95 92
Colômbia 23 7 / 14 92 86
Equador 29 15 / 27 86 72
Guiana 72 14 / 11 83 70
Paraguai 30 5 / 11 83 78
Peru 39 7 / 25 81 62
Suriname 40 13 / 10 92 93
Uruguai 15 5/8 98 94
Venezuela 22 5 / 13 83 68
Anexo 2: FONTES DE INFORMAÇÃO NA INTERNET

Diretório de sites sobre Mercosur


http://www.rau.edu.uy/mercosur/

Alca
www.ftaa-alca.org

Centro Brasileiro de Relações Internacionais


www.cebri.org.br

Centro Nueva Mayoria


www.nuevamayoria.com

Comissão Econômica da ONU para América Latina e Caribe


www.eclac.cl

Comunidade Andina de Nações


www.comunidadandina.org

Consejo Argentino de Relaciones Internacionales


www.cari1.org.ar

Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais


www.clacso.org

Council on Hemispheric Affairs


www.coha.org

Gateway to oil and gas world in the Latin American region


http://portal.arpel.org/wps/portal

Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA)


www.iirsa.org

Latin American Studies Association


http://lasa.international.pitt.edu/

Mercociudades
www.mercociudades.org

Observatório de Políticas Públicas de Derechos Humanos en el Mercosur


http://www.observatorio-mercosur.org.uy/

Observatório Político Sul-Americano


http://observatorio.iuperj.br

Organização dos Estados Americanos


www.oas.org
Organização do Tratado de Cooperação Amazônica
www.otca.org.br

Secretaria do Mercosul
www.mercosur.int

Sites das Organizações Sul-Americanas do Diálogo entre Povos:

Aliança Social Continental


http://www.asc-hsa.org/

Amigos de la Tierra
www.tierra.org

Articulación Feminista Marcosur


www.mujeresdelsur.org.uy

Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (Abia)


www.abiaids.org.br

Barrios de Pié
www.barriosdepie.org.ar

Central Única dos Trabalhadores (CUT)


www.cut.org.br

Centro de Capacitación Popular y Asesoramiento Legal (Cecopal)


www.cecopal.org

Centro Interdisciplinario de Estudios sobre el Desarrollo (Ciedur)


www.ciedur.org.uy

Coordenadora das Centrais Sindicais no Mercosul


www.ccscs.org

Federação de Órgãos de Assistência Social (FASE)


www.fase.org.br

Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase)


www.ibase.br

Instituto de Estudos Socioeconômicos


www.inesc.org.br

Instituto Eqüit
www.equit.org.br

Rede Brasileira pela Integração dos Povos


www.rebrip.org.br

Viva la Ciudadania
www.vivalaciudadania.org
Anexo 3: Mapa – Bases dos EUA e Recursos Naturais
Elaborado por Ana Esther Ceceña (UNAM – México e CLACSO)

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